O PADRE - Historias Proibidas - Mila Wander

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PIRATARIA É CRIME!
Sumário
PARTE 1
PARTE 2
PARTE 3
PARTE 4
PARTE 5
PARTE 6
PARTE 7
PARTE 8
PARTE 9
PARTE 10
PARTE 11
PARTE 12
PARTE 13
PARTE 14
PARTE 15
PARTE 16
PARTE 17
PARTE 18
PARTE 19
PARTE 20
PARTE 21
PARTE 23
PARTE 24
BÔNUS
PARTE 1 – O DELEGADO
AGRADECIMENTOS
SOBRE A AUTORA
LANÇAMENTOS RECENTES
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PARTE 1
Saudade, sim, tristeza, nunca

Padre Benício

Conheci cada canto daquela cidade em poucas horas de


minha chegada, há dois anos. Era um território pequeno e de
poucos habitantes, não chegava nem a 20 mil, de forma que existia
a sensação constante de que todo mundo se conhecia.
Não havia muito para se ver além de casas antigas
justapostas e coloridas, como uma típica localidade interiorana e de
recursos escassos. Um dos pontos turísticos era uma pedra em
formato de anel logo na entrada do município, onde os visitantes
paravam e tiravam uma foto como se aquilo fosse a coisa mais
interessante do mundo. Além disso, um grande lago no leste da
cidade era comumente utilizado para a pesca esportiva e atividades
de recreação entre crianças, jovens e famílias.
Mais nada.
Eu achava São João do Paraíso maravilhosa pelas suas
montanhas, extremo verde e pacatez. Os ares ali pareciam mais
suaves, melhores de se respirar, livres da poluição das grandes
metrópoles. Minha única dificuldadeera compreender as pessoas, e
eu tentava porque, mais do que querer, precisava, de alguma forma,
atingir seus corações. Por exemplo, naquele instante não
compreendia como tanta gente poderia ir a um mesmo velório. O
morto nem era famoso.
Infelizmente, não era apenas a morte, entidade tão natural aos
reles mortais, que trazia o interesse daquela aglomeração, mas o
assassinato brutal. Não entrava na minha cabeça como coisas ruins
chamavam tanta atenção, mais até do que as boas. Fazia mais de
vinte anos que nenhum crime parecido acontecia na cidade,
segundo o delegado Moura comentara, depois de bater no peito e
avisar que eu deveria me despreocupar porque aquele caso seria
solucionado em breve.
Bom, eu estava, sim, naturalmente preocupado com a
existência de um assassino à solta, colocando em perigo a vida de
inocentes. Ainda assim, demorei a entender por que ele me
procurara para dizer tais palavras, especificamente. A mim cabia o
dever de orar e vigiar, como sempre fazia. Mas após um curto
raciocínio, compreendi que o delegado queria que eu lhe contasse
caso alguém falasse qualquer coisa que pudesse servir para a
solução do caso durante uma confissão.
Participei da oração do terço na companhia de umas trinta
senhoras idosas; ajudei na cantoria ao lado de Jeremias, o músico
voluntário da igreja; nunca tive um público tão vasto durante uma
pregação desde que cheguei; acompanhei a chuva de pétalas que o
prefeito encomendou para aquele dia e, por fim, falei as seguintes
palavras, porque me pareceu prudente:
— Saudade, sim, tristeza, nunca.
A terra começou a ser jogada sobre o caixão de madeira
entalhada, deixando-me com uma breve sensação de tontura.
Nunca gostei de enterros. Demorei demais a compreender a morte
e, assim que o fiz,decidi que não era o maior fãdela. Não pelos que
se vão, porque encontrarão o Senhor, mas pelos que ficam e
sempre sofrem.
Apesar de eu ter dito aquilo em alto e bom tom, poucas
pessoas pareciam tristes, para ser sincero. Um ou outro gato
pingado que provavelmente pertencia à família do falecido. Sua
esposa, no entanto, mantinha um ar sério, de poucas palavras e
semblante indecifrável. Não consegui encontrar sofrimento,
tampouco havia sinais de choro, o que considerei incomum até me
dar conta de que o parceiro, geralmente, é o primeiro suspeito em
crimes como aquele.
Ela estava com medo, talvez. De ser acusada ou descoberta?
Eu não sabia. Só entendia que ela era muito jovem para passar por
tal trauma, e que seu olhar escuro sempre me deixava inquieto. Não
era de aparecer nas missas, mas vez ou outra entrava na igreja em
silêncio durante uma tarde qualquer, em seguida deixava algumas
notas na caixinha de doações e partia.
Nunca me atrevi a puxar conversa. Em condições normais,
teria a questionado, oferecidoconfortonem que fossecom palavras,
convidado para alguma celebração, mas eu conhecia os meus
limites e os ultrapassar seria estupidez de minha parte.
Depois que o defunto é enterrado, não se tem nada mais a
fazer, e foi por isso que a multidão foi deixando o cemitério. Não
consegui mensurar quantas mãos apertei em cumprimento – desde
a do prefeito até a do mais humilde morador –, nem quantos
abraços e saudações foram trocados até perceber que era hora de
partir. Aquele dia havia sido muito cansativo, mas sentia que meu
dever fora cumprido dentro dos conformes.
Sentia paz por ter sobrevivido àquele enterro com o juízo no
lugar. Achava que em algum momento não suportaria, mas Deus
era muito bom comigo.
Esperei que todos partissem porque achei que seria
indelicado de minha parte ir embora antes. Permaneci distraído com
as lápides, orando em silêncio enquanto sentia a brisa da tarde e
ouvia o cantar de alguns pássaros. Há muitos anos a espera deixou
de ser um martírio para o meu coração; eu sabia ficar onde não
desejava com perfeição cirúrgica.
— Padre Benício? — A voz feminina, muito suave, ecoou.
Por uma fração de segundo, a fantasia que existia em toda mente
me fez acreditar que viera de um dos mortos. Bobeira minha.
Virei-me e encontrei a jovem viúva; uma mulher de seus trinta
e poucos anos, trajando um vestido preto de mangas compridas e
um véu curto da mesma cor sobre os cabelos longos e ondulados,
de um castanho-escuro quase preto. O semblante estava
modificado, naquele instante parecia aliviada.
— Sim? — Passei as mãos sobre a batina, como se limpasse
uma poeira invisível. Só então notei que nós dois éramos os únicos
diante da lápide. — A senhora deve estar cansada. O dia foi longo.
É hora de partir.
Ela assentiu.
— Estava aguardando o senhor.
Abri um sorriso leve.
— E eu, aguardando que a multidão se dissipasse.
A mulher suspirou, parecia um tanto chateada.
— Tinha muita gente aqui. Gente até demais.
Deveria ter sido um baita incômodo ter que aturar tantos
curiosos em um momento difícil, mas nada pôde ser feito porque
aquele público não era esperado e a direção do cemitério era tão
“morta” quanto as pessoas que ali foram enterradas. Nem a
presença do prefeito adiantou para manter o respeito e a ordem.
— Concordo... — Assenti com a cabeça. — A senhora está
com algum transporte?
— Não... Eu moro perto. Vou andando.
Na verdade, todo mundo morava perto de tudo, porque só
havia uma avenida principal que cortava a cidade de ponta a ponta,
e o resto eram vielas e mais vielas que sempre davam para o
mesmo lugar. No entanto, a bicicleta e a moto costumavam ser bem
utilizadas em São João do Paraíso, por isso a minha pergunta.
— Então eu a acompanho até a sua residência — falei com
educação medida. Uma viúva não deveria ser deixada sozinha. E,
pelo visto, nenhum familiar permaneceu para ampará-la, o que
considerei, no mínimo, estranho.
— Obrigada, padre. — Ela abriu um sorriso bonito.
Virei de lado e iniciei uma preguiçosa caminhada antes que
me demorasse nos lábios rosados. Aquela mulher me intrigava por
me lembrar a saudosa Sofia.Uma vida inteira foideixada para trás e
eu não perdia tempo sentindo remorso ou aflição; era natural que
meu corpo de homem reagisse a um ideal de passado. Aprender
que servir a Deus e ser um santo não eram a mesma coisa fez com
que me tranquilizasse e enfrentasse minhas falhas.
Se meu desejo fosse ser perfeito, eu teria problemas.
— O senhor deve estar exausto — ela prosseguiu,
caminhando ao meu lado enquanto eu continuava observando as
árvores do cemitério. — De todos os envolvidos, foi o que mais
trabalhou neste enterro. Não tenho palavras para agradecer pelo
esforço e por ter dado dignidade à memória do Samuel.
— Imagina, minha filha, não precisa agradecer. Todos
merecem dignidade e a benção de Deus, mais ainda depois de uma
partida tão... — demorei a encontrar o termo correto — brusca.
Atravessamos os portões do cemitério, onde pessoas ainda
transitavam aqui e ali. Algumas nos cumprimentaram de novo,
enviando condolências à mulher em luto caminhando ao meu lado.
Ninguém estranhou aquela aproximação. Pudera, estavam cientes
de que um consolo seria necessário ao coração da jovem viúva.
Ela tomou a frente e virou à esquerda na segunda esquina, e
a acompanhei no mesmo passo lento, sem pressa, com as mãos
para trás e atento aos seus movimentos sempre tão delicados.
Queria lhe perguntar sobre os familiares. Ninguém deveria
voltar para casa sozinha depois de enterrar o marido. Não tinha o
menor cabimento. Ainda assim, já bastavam as senhoras
fofoqueiras da cidade, eu não me via fazendo o papel de
importunador a ponto de falar mais do que devia.
Mas ela pareceu ler meus pensamentos, porque murmurou
em tom de confissão:
— A família do Samuel não quer papo comigo. Acham que
tenho alguma coisa a ver com o assassinato. — Não falei nada,
apenas a olhei de soslaio e acenei para que prosseguisse. —
Disseram que eu estava felizcom a morte dele. Isso não é verdade,
embora não me sinta exatamente triste. — Suspirou. — Padre, é
pecado não ficar triste com a morte de alguém?
Por um instante, não soube responder àquela pergunta. Eu
não gostava de dizer que tal coisa era ou não pecado, ainda que
fosse minha obrigação alertar das maldades do mundo. Eu achava
que julgar tão facilmente abria portas para ainda mais julgamentos,
e esse ciclo quase nunca tinha fim porque, no fim das contas, até
respirar pareceria errado.
— A senhora não está triste e nem feliz?
— Não. Não sinto nada. Acho que... Só um alívio.
— Alívio?
Ela ficou quieta por alguns instantes. Continuei caminhando,
mas passando a considerar a possibilidade de uma confissão.
Aquela mulher doce, gentil e amável havia cometido tamanha
barbaridade? Parecia-me impossível, mas qualquer discernimento é
suscetível às falhas, por que o meu não seria?
— Não me entenda mal, padre Benício. Por favor, não quero
que pense que sou insensível ou que tive algo a ver com a morte
dele. É só que... Samuel não me tratava bem. Ele... — Parou e,
mais uma vez, suspirou. — Não me dava muita atenção, na
verdade. Eu era mais a empregada dele do que esposa, e tenho
certeza de que me traía com várias mulheres. Andava bebendo por
aí, vivia na farra. Nunca foi um bom esposo. — Ela fez nova pausa.
— Parece errado falarisso em voz alta agora que ele se foi. Mas é a
mais pura verdade, padre, estou aliviada.
Ela estacionou e me olhou fixamente, removendo o grampo
que prendia o véu negro em seus cabelos. Mantive-me calado,
porém sustentei aquele olhar escurecido e brilhante porque não
encontrei outra opção. Eu não sabia o que falar e, profundamente,
podia entender seus sentimentos com relação ao falecido marido.
— É coerente não ficar triste por não ver mais alguém que te
fez tanto mal. A senhora sente remorso por causa disso?
Ela soltou uma pequena risada, capaz de fazer um arrepio
atravessar a minha pele. Aquela reação foi tão descabida que dei
um passo para trás e aguardei, um tanto confuso. Não sabia o que
tinha acontecido comigo.
— Ora, não me chame assim, parece que sou uma idosa.
Maria Luísa está bom, padre. E respondendo à pergunta do senhor:
não, não sinto remorso. — Deu de ombros. — Talvez eu devesse.
Franzi a testa, ainda bastante confuso. Meu corpo reagia de
forma inesperada e aquela havia sido a nossa conversa mais longa,
logo, acreditava que era apropriado que nos tratássemos
formalmente. De qualquer modo, acrescentei:
— Maria, ninguém deveria se preocupar em sentir o que não
sente, ou o contrário. Se o seu coração está em paz, quem sou eu
ou qualquer um para dizer que está incorreto?
Ela sorriu amplamente.
— O senhor é muito bondoso.
Devolvi o sorriso e voltamos a caminhar. A curiosidade
acabou falando mais alto e soltei, sem refletir:
— E os seus familiares?
— Ah... Eu não tenho família. Minha mãe faleceu ano
passado e nunca conheci meu pai. Não tive irmãos... Sou só.
— Compreendo.
E me espantava ainda mais o fatode ela não ter ninguém por
perto.
— Mas não se preocupe comigo, padre. Estou bem. — De
repente, ela paralisou na frentede um modesto casebre. Era bonito,
com um pequeno jardim na frente e um portão de ferro adornado. A
típica casinha interiorana que inspirava conforto logo na entrada. —
Chegamos. Eu moro aqui. — Apontou.
— Está entregue, então. — Sorri. — Que Deus te abençoe,
Maria.
Ela me olhou por alguns instantes, sem nada falar, mas
expressava uma tranquilidade que a deixava muito bela. As
bochechas ficaram mais rubras e os olhos cintilaram, e me perguntei
o que raios estava pensando naquele momento.
— As pessoas me enviam comida desde que Samuel faleceu.
A geladeira já não suporta mais outra entrega. O senhor não quer
entrar e jantar? — Voltou a apontar o casebre. — É o mínimo que
posso fazer depois de tanto empenho e dedicação. Por favor, não
recuse, padre Benício.
Olhei de um lado e do outro na viela, reparando que o sol já
queria se pôr. Não havia crianças brincando, provavelmente porque
os pais estavam com medo de que o assassino reaparecesse. Nem
mesmo tinha senhoras com suas cadeiras de balanço na calçada. A
morte de Samuel fez a cidade temer e se esconder em seus
domicílios, e assim seria até o encontrarem ou a fatalidade cair no
esquecimento.
Ainda que não soubesse exatamente se era apropriado entrar
sozinho na casa de uma viúva, lembrei-me de que já havia jantado
em inúmeras residências antes, porque frequentemente recebia
aquele tipo de convite e, se eu negasse, seria feito um sermão
maior do que já fiz em qualquer celebração. Além do que não me
sentiria bem a deixado sozinha depois do que dissera.
Sendo assim, afirmeicom um aceno e Maria Luísa girou para
abrir o ferrolho do portão. Cruzamos o jardim e, como eu esperava,
adentrei um lar aconchegante, extremamente limpo e com cheiro de
flores.Depois de um tempo, notei que a viúva havia recebido alguns
arranjos por causa do falecido, que estavam distribuídos pela sala
de dois ambientes.
— Sente-se, padre, vou esquentar a comida. Não demoro.
— Posso te ajudar a pegar os pratos e talheres.
Ela sorriu na minha direção.
— Tudo bem.
Em poucos minutos, organizei a mesa enquanto ela
esquentava o rango no micro-ondas. Havia de tudo um pouco: tortas
doces e salgadas, lasanha e dois tipos de suflês. Embora fôssemos
apenas duas pessoas, Maria esquentou tudo e colocou sobre a
mesa dentro de cumbucas de porcelana pintadas à mão.
Fiz uma pequena oração e começamos a comer em silêncio,
que se desfez em poucos minutos:
— O senhor acha que vão encontrar? Digo, o assassino?
A comida estava boa, mas naquele instante foi difícil engolir,
porque me recordei do delegado informando que o homem tinha
sido morto a facadas. Dezessete, para ser mais preciso. A pessoa
que o matou estava com muita ira no coração.
— Eu não sei, mas espero que sim. Deus sabe de todas as
coisas. Que seja feita a vontade Dele.
Maria ficou me olhando enquanto eu voltava a comer.
— O senhor é meio jovem para ser padre, não é? — Soltou
uma risadinha, e ergui a cabeça para encará-la. A bochecha voltou
a corar e, enfim, compreendi por que seu rosto estava esquentando.
Ela me achava atraente. Bem, muitas mulheres que
frequentavam a igreja me consideravam bonito demais para o
sacerdócio, e algumas já tinham feitoquestão de me informarcara a
cara. Eu achava engraçado quando partia de senhorinhas, mas
quando o elogio vinha de mulheres mais novas, não me sentia tão
relaxado assim. Intimamente, temia me envolver em problemas caso
alguma delas não entendesse direito as minhas intenções. Todo
cuidado era pouco.
— Para ser padre, é necessário ter mais de vinte e cinco
anos — respondi calmamente. — Logo, devem haver mais novos do
que eu, que tenho trinta e seis.
— Sério? O senhor parece mais novo.
Não soube o que responder e, na dúvida, coloquei mais
comida na boca e mastiguei. Mas ela continuou os
questionamentos:
— Faz quanto tempo que é padre?
Ergui o rosto.
— Cinco anos. Mas faz dois anos que estou dando conta da
igreja matriz da cidade.
— É recente, então.
— Sim... Há padres com muito mais anos de missão, só
estou começando.
Ela tomou um gole do suco de uva que nos serviu em copos
bonitos.
— Interessante.
Não falei mais nada e Maria Luísa, finalmente, resolveu se
concentrar na comida. Depois de alguns minutos, retomou a
conversa.
— Pretendo me livrar das coisas dele. Do Samuel. — Seu
semblante voltou a ficarfrioe distante, como no velório. — A família
não quer os pertences... Disse para eu doar. Penso em deixar na
igreja, o senhor recebe?
Assenti. Não considerei esquisito que ela se desfizesse tão
rápido das coisas do falecido, pois sua justificativa dada mais cedo
era forte o bastante para que quisesse mudar de vida depressa.
Pelo que tinha entendido, seu casamento se assemelhava mais à
uma prisão. Era aceitável que desejasse a liberdade.
— Claro, será de grande valia — confirmei, largando o talher
dentro do prato depois de dar a última garfada. — Tem muita gente
precisando. Infelizmente, várias pessoas aqui em Paraíso vivem em
condição de extrema pobreza.
Ela prendeu os lábios, parecendo se compadecer de
verdade.
— Gostaria de ajudar mais. Sinto que faço pouco pelos que
precisam.
— A igreja está de portas abertas, Maria. Sempre precisamos
de voluntários.
— Prometo que vou aparecer.
— Não, não prometa a mim. — Apontei o dedo para o céu. —
Resolva tudo com Ele. Sou só um servo do Senhor.
Ela balançou a cabeça em afirmativa, sorrindo com certo
constrangimento.
— Eu e Ele não somos tão íntimos, mas darei um jeito. —
Maria se levantou ao perceber que havíamos terminado a refeição.
— O senhor quer sobremesa?
— Se não se importar...
Eu tinha visto uma das tortas doces e ela estava realmente
apetitosa.
— Claro que não, padre, será um enorme prazer ter sua
companhia por mais tempo.
Maria não me deixou espaço para responder, levou os pratos
sujos de volta para a cozinha e lá se perdeu, enquanto eu piscava
os olhos sem parar e me sentia confuso pela forma como ela tinha
falado aquilo. Sua entonação me fez pensar que talvez eu devesse
tomar mais cuidado.
Levantei-me da cadeira e estava pronto para inventar uma
desculpa quando ela reapareceu, trazendo dois pratos com fatias
generosas de torta. O cheiro do doce me fez voltar a sentar e
acalmar o coração de vez. Afinal, o que uma recém-viúva poderia
fazer? Eu sabia bem o meu lugar e nada aconteceria se
mantivéssemos a civilidade.
— Está realmente muito gostoso — comentei, deliciando-me.
Sempre fui bom de boca, e precisava me atentar de forma
redobrada para não cometer o pecado da gula.
— Sim, uma delícia! — O rosto dela estava radiante enquanto
comia. — Sabe, padre... Obrigada. Sinceramente, não sabia o que
faria quando chegasse em casa. Obrigada por me distrair. Me
incomoda conviver com as coisas do Samuel, eu... Sei lá, estou com
medo.
Franzi o cenho, encafifado.
— Medo? Do quê?
— Do assassino ainda estar por perto, rondando minha casa.
Não sei. — Ela suspirou e arqueou a coluna, depositando o rosto
em uma mão. — O cheiro dele me dá... repugnância. E está em
toda parte. Uma mistura de tabaco e perfume barato que ele
gostava. — Ela revirou os olhos. — Desculpa a sinceridade, padre,
mas nos últimos meses estava realmente difícil conviver com meu
marido. Eu queria pedir o divórcio, só não encontrava coragem.
Prendi os lábios, assentindo.
— Maria... — Ela me olhou de forma demorada. — Você tem
alguma coisa a ver com... Bem.
Seus olhos se arregalaram.
— Claro que não! Não, não... Eu não fiz nada, padre, o
senhor precisa acreditar em mim. — Ela começou a marejar, por
isso ergueu a cabeça e fitou o teto. — Ninguém dessa cidade
acredita. Percebi o jeito que me olhavam no enterro... Como se eu
fosseuma criminosa. Eu sei, padre, sei que todos acham que fuieu,
até o delegado. Imaginei que... que o senhor não fosse me julgar.
— Querida, não estou julgando, só precisei fazer essa
pergunta. Se diz que não, então eu acredito. — Confiarnas pessoas
era fundamental para mim. Se colocasse as palavras alheias em
dúvida, então facilmente duvidaria de todo o restante, inclusive da
própria Bíblia Sagrada. Eu sentia a força de cada sílaba e escolhia
ser um crédulo sem medo de decepções.
Maria enxugou as lágrimas, parecendo desconcertada.
Segurei a sua mão que estava depositada sobre o tampo da mesa e
a apertei. Ela voltou a me olhar.
— Eu acredito. E se precisar de qualquer coisa, conte
comigo. Deus vai guiar o caminho da verdade e ela aparecerá cedo
ou tarde. Tenhamos fé.
— Obrigada. — Sua voz não saiu mais forte do que um
murmúrio. A mão dela apertou a minha com certo desespero, o que
me fez entender que havia algum nível de sofrimento ali, mesmo
que Maria ainda não tivesse noção, talvez porque era tudo muito
recente.
— O caminho do luto é tortuoso... — falei, sentindo que
deveria confortá-la. — Perder alguém não é fácil, sei que no fundo
você está confusa e solitária. Se tudo isso por acaso se tornar
insuportável, venha assistir a uma missa ou apenas conversar. —
Precisava deixar aberta a possibilidade de ela buscar conforto na
paróquia. Era meu dever.
Maria aquiesceu, contendo o choro. Olhou-me por alguns
instantes.
— O senhor já perdeu alguém?
A pergunta me tirou de tempo. Em um raio de instante, a
visão daquela cama de hospital me deixou nauseado. Precisei
chacoalhar a cabeça para sair do devaneio.
— Sim. — Fui sincero. — Já.
— Algum parente?
Encarei-a enquanto refletia melhor na minha resposta. Eu
não queria falar demais. Ninguém na cidade sabia do meu passado
e era melhor que não soubessem mesmo.
— Sim, um parente que eu amava muito. — Tomei cuidado
para não mentir. Se tinha uma coisa que era ameaçadora, perigosa
e feia era a tal da mentira.
— O senhor deve ter sofrido muito.
Fiquei em silêncio por alguns segundos. Ela não fazia a
menor ideia do tamanho do sofrimentoque atingiu o meu coração. A
confirmação saiu sem que eu fizesse esforço:
— Sofri, mas Deus me amparou quando mais precisei Dele.
Ela sorriu, porém não chegou qualquer resquício de alegria
aos seus olhos.
— Diferente de mim, que não estou conseguindo sofrer,
apenas lamentar por uma partida tão cruel e me aliviar por estar
livre de um casamento infeliz.
— Não se frustre dessa forma. Confie na ideia de que todos
os desígnios têm um grande propósito. Não tenho dúvida de que
você o encontrará e seguirá em uma vida mais próxima à felicidade.
Maria Luísa não respondeu, comeu o resto da torta em
silêncio e fiz o mesmo.
Depois da sobremesa, percebi que já estava tempo demais
naquela casa e que deveria ir embora de uma vez. Sendo assim,
tive que negar o cafezinho, alegando que precisava cumprir
algumas tarefas ainda naquela noite, o que não era uma mentira.
Maria me levou até o jardim e, antes de abrir o portão, virou-se para
mim.
— Mais uma vez, obrigada, padre. O senhor foi muito gentil.
— Imagina. Eu que agradeço por me receber em sua casa e
pela comida, que estava uma delícia.
— Eu me sinto mais tranquila agora. — Soltou o ar dos
pulmões. — Mais forte. O senhor tem uma energia incrível.
Não ousei me envaidecer.
— Que bom que se sente melhor. Não se esqueça,
precisando, a igreja pode te receber de braços abertos.
Maria sorriu e balançou a cabeça afirmativamente.
— Posso te dar um abraço? — a pergunta foi feita com uma
voz amena, doce, quase infantil, de forma que ficou visível a
necessidade daquela mulher. E então me dei conta de que não
havia ninguém por ela, sequer para trocar um pequeno afeto diante
de sua perda. Não a vi abraçando nenhuma pessoa durante todo o
velório.
Obviamente, não fui nem um pouco capaz de negar. Sequer
hesitei.
Abri os braços e a recebi por completo em meu centro.
Espalmei suas costas e ela fez o mesmo, afundando a lateral do
rosto no tecido da minha batina. Senti a quentura que advinha dela
e, mais do que isso, senti também o formato de seu corpo se
moldando ao meu, de formaque, de um segundo para outro, aquele
abraço afetuoso se transformou num enorme problema.
Fui inocente e imprudente demais. Não imaginei que um
simples abraço pudesse ser tão apertado a ponto de sentir um par
de seios fartos grudados em mim. Nem pensei que o cheiro do
cabelo dela fosse me inebriar como se eu tivesse tomado umas dez
taças de vinho. Nem que alguém pudesse exalar tanto calor e fosse
tão...
O problema se intensificou quando me tornei ciente de que
partes sugestivas do meu corpo não tinham se mantido quietas. Ao
menor sinal de mudança, simplesmente a afastei,de maneira quase
arrogante. Preferia que um raio caísse sobre mim a deixar que
Maria Luísa percebesse o quanto tinha me afetado abaixo do
umbigo.
Ela só queria um mísero abraço, que não recebeu quando
merecia e precisava, e eu... Não fui capaz de acolhê-la com amor
fraterno. Em vez disso, caí num limbo carnal e mundano.
Foi difícil suportar a mim mesmo naquele instante.
— Até mais, Maria.
Eu mesmo abri o portão e saí a passos largos sem sequer
olhar para trás, usando as mãos para disfarçaro volume desprezível
que despontava nas minhas vestes. Praticamente corri até a igreja.
Em algum momento do percurso, voltei ao normal, mas senti como
se cada pessoa que cruzou meu caminho tivesse percebido a minha
falha gravíssima.
Atravessei o terreno da igreja por foradela, pois não me senti
apto a adentrar o solo divino. Tinha coisas para ajustar na sacristia,
porém ficaria para depois. Subi as escadas para os meus aposentos
e, tão logo fecheia porta atrás de mim, removi a batina como se ela
fosse absolutamente inapropriada.
Envergonhado, coloquei-me completamente despido e me
ajoelhei de frente para a minha humilde cama de solteiro, onde
havia uma enorme cruz na parede acima.
— Aqui estou eu de novo, Senhor, de joelhos perante ti. —
Lágrimas se juntaram em meus olhos e não ousei erguer a cabeça.
— Perdoe esse teu filho pecador, que nem sempre consegue
controlar os instintos da carne.
E me pus a orar ao longo da noite.
PARTE 2
Perdoe-me por isso

Maria Luísa

Depois que padre Benício foi embora às pressas, passei um


bom tempo olhando a rua pela abertura do portão, tentando
entender o que tinha acabado de acontecer conosco. A dúvida me
martirizava, e quanto mais raciocinava a respeito, sobretudo pela
maneira como o pároco saiu, mais me aproximava à certeza de que
algo estranho ocorreu durante aquele abraço. Cheguei a sentir uma
protuberância no meu ventre, porém foi tão rápido que me
questionei sobre a natureza daquilo.
Soltei o milésimo suspiro, considerando-me ainda mais
perdida. Não pelo enterro ou pela confortável ausência do Samuel,
mas pelo que aquele padre me fez sentir durante o jantar e nos
segundos finais de nosso encontro. Havia uma força imensurável
vindo dele, uma fé que me fazia acreditar, também, que tudo daria
certo e que eu estava segura, protegida. Contudo, havia sido mais
do que um consolo cristão.
Feito uma tola sem juízo, não conseguia parar de observar
seus olhos castanho-claros, da cor de mel. Eram realmente
atraentes por serem profundos, contornados por cílios cheios e
escuros, num desenho muito agradável a qualquer mulher.
Sobretudo a uma tão carente e solitária.
Eu não devia, mas tinha reparado sua altura e altivez, os
cabelos claros e bem cortados emoldurando um rosto másculo, com
uma barba aparada e muito sexy, e me peguei imaginando o que
teria por baixo da batina, porque o padre era maior e mais largo do
que eu achava que um servo do Senhor poderia ser.
Era loucura. Insanidade. Meu rosto esquentava toda vez que
o olhava com mais exatidão, reparando seus modos gentis, sua voz
suave, mas firme, o andar tranquilo e a expressão que inspirava
serenidade. Foi uma reação automática, involuntária e incontrolável,
porque não consegui parar. Meu Deus do céu, tende piedade dessa
alma que pensou besteira ao ver aqueles lábios sujos de torta.
Quando lhe pedi um abraço, juro pelo que é mais sagrado
que não tive nenhuma intenção suja, muito pelo contrário. Só fiz isso
porque o sorriso dele trazia calma, e meu coração agitado
necessitava de amizade. Sobretudo, pedi um gesto como aquele a
alguém com quem me sentia segura, e que sabia que seria sincero.
Além do mais, não havia qualquer ser humano em Paraíso que
estivesse a fim de me abraçar, a não ser...
Tão logo pensei na criatura, Luís apareceu do outro lado do
portão. Levei um pequeno susto, mas abri o ferrolho e deixei que
entrasse.
— Estava esperando o padre ir embora... Ele deu sermão? —
foi logo comentando, arrumando os cabelos lisos e escuros para
trás da orelha. O homem era charmoso, não exatamente bonito, e
éramos vizinhos desde que me casei com Samuel, há quase sete
anos. Havíamos combinado de não ficarmos juntos no enterro,
porque pegaria muito mal. — Foi tudo muito bonito no velório.
Dei de ombros, pois não queria falar de nada daquilo. Estava
cansada e precisava dormir, além do que me sentia absolutamente
confusa com a saída do padre Benício. Ele tinha, ou não, ficado
excitado com o abraço?
De qualquer forma, mesmo sem saber direito da parte dele,
precisava parar de negar que eu tinha ficado louca de tesão desde
muito antes, só com a sua presença mais próxima. O que era
constrangedor e errado num nível absurdo.
Onde que eu estava com a cabeça?
— Foi, sim... O que faz aqui? — Não queria ser indelicada,
mas Luís me conhecia e sabia que eu podia ser meio grossa, às
vezes.
— Vim prestar apoio, te dar um abraço... — Ele me puxou e
me envolveu, mas não fui capaz de sentir muita coisa. Quero dizer,
foi bom receber aquele afeto, coisa que me faltava fazia muito
tempo, já que meu falecido marido não tocava em mim havia uma
eternidade. — Como está com tudo isso? Sei que te perguntei
ontem, mas hoje, no enterro, percebi você séria e fechada.
— Estou bem. Vou ficar.
— Se precisar de alguma coisa, saiba que estou aqui, certo?
— Ele se afastou um pouco e me olhou, só que não encontrei nada
de interessante em seus olhos castanhos, não como aconteceu toda
vez que padre Benício me analisou. Precisei até prender a
respiração em alguns instantes. Muita loucura. — Não hesite em me
procurar, estou logo ali ao lado. — Abriu um amplo sorriso.
— Tudo bem, obrigada. Você sabe que não estou tão triste
assim, não é? Já queria o divórcio. Claro que não estou feliz por
Samuel ter sido morto a facadas, não sou tão cruel assim e não
desejo esse desfechoa ninguém, mas... — estacionei, sabendo que
podia ter falado demais. Confiava em Luís, mas ele poderia me
entender mal, como aconteceu com padre Benício.
Será que meu vizinho também desconfiava de mim? Bom,
seu semblante iluminado não me fazia crer nisso.
— Eu te entendo, Luísa, não se preocupe. — Ele olhou para
além de mim, mirando a entrada da minha casa. — Posso entrar?
Dei de ombros.
— Acho melhor não. As pessoas vão achar que já estou de
enxerimento para outro homem.
Luís colocou as mãos nos bolsos da calça jeans.
— Ora essa... Um homem não acabou de sair daqui?
Olhei feio para ele.
— Um padre acabou de sair daqui, não seja mesquinho e
tenha respeito. — Revirei os olhos. Por dentro, sabia que estava
sendo uma hipócrita de marca maior. Mesmo de batina, vi padre
Benício com um homem e isso me constrangia infinitamente.
Luís riu um pouco alto demais.
— Tem alguma coisa nesse padre que me incomoda.
Minha careta se intensificou.
— Só porque ele é bonito e novo? O bichinho é um santo,
bondade pura.
Depois da possível ereção, já não tinha mais tanta certeza
disso, porém queria acreditar. Até porque ninguém era de ferro,
certo? Devia ser difícil manter o celibato. Eu mesma estava subindo
pelas paredes.
— Sei lá, ele é galã demais para ser padre, as mocinhas
ficam doidas atrás dele. Coisa feia. Vai saber o que acontece no
fundo da igreja...
— Nossa, não fala assim, Luís! — Dei um pequeno tapa no
ombro dele. — Padre Benício é um amor de pessoa. Você está é
com ciúmes.
— Eu mesmo não. — Deu de ombros. — Sei que um dia
você será minha. — Sorriu novamente, daquela vez de forma mais
maliciosa.
Eu o analisei por um bom tempo. Sabia que Luís tinha uma
queda por mim. Ele conhecia as traições de Samuel e me
incentivava a separar, até chegou a propor que a gente ficasse na
surdina, mas eu não quis. Não me sentia bem pagando na mesma
moeda. Não queria perder a razão, embora lá no fundo sentisse
vontade, principalmente porque fazia um bom tempo que não sabia
o que era sexo. Meus hormônios estavam a flor da pele e precisava
de alívio, só que não me sentiria bem sendo uma adúltera.
— Não fala assim. O corpo do Samuel nem esfriou dentro do
caixão. É melhor você ir. — Girei-o na direção do portão, mas Luís
retornou e segurou meus cotovelos, impedindo-me de movimentar.
— Escreva o que estou te dizendo, Luísa. Você será minha. E
será muito feliz comigo, pode ter certeza. Até nossos nomes
combinam. — Esgueirou-se e me plantou um beijo na testa. Foi um
gesto quase puro, se não soubesse que ele queria muito mais do
que aquilo.
Enfim, Luís sorriu e saiu pelo portão, caminhando até a
residência que ficava duas casas depois, na mesma rua. Fechei o
ferrolho e soltei um enorme suspiro. A minha vida tinha virado de
cabeça para baixo e o que menos me preocupava naquele instante
era o meu vizinho.
Adentrei na minha sala, que naquele momento era mesmo
apenas minha, e a ficha finalmente caiu: eu estava sozinha e livre,
com milhões de possibilidades diante de mim. Podia voltar a
trabalhar, porque Samuel me impedia de ter meu próprio sustento,
alegando que o dinheiro que ganhava como zelador da
Universidade era suficiente para nós dois e alguém deveria tomar
conta da casa.
Poderia viajar e até me mudar para a capital. Samuel tinha
umas economias guardadas, sabia bem disso, e eu mesma guardei
um dinheiro de algumas unhas que fiz por aí, sem que meu esposo
soubesse. Talvez me tornasse, de vez, uma manicure muito
procurada na cidade. Havia clientela, as mulheres de São João do
Paraíso eram vaidosas.
Precisava me reerguer de alguma forma e me sentia ansiosa
para isso.
A vontade de viver do meu jeito era tanta que a primeira coisa
que fiz, em vez de descansar e me aquietar, foi reunir todas as
coisas do Samuel dentro de malas velhas. Doaria tudo para a igreja
sem pensar duas vezes.
Lembrar da paróquia me levou ao padre Benício, aos
momentos em que seu olhar amarelado grudou no meu e, por fim,o
volume que senti na barriga.
Meu Deus.
Era uma ereção. Sim, era. E não era pequena, não. Parecia
bem avantajada, do contrário eu não a sentiria. O tecido escuro da
batina era grosso. Como deveria ser o...
— Pare de pensar em merda, Luísa. Peça perdão a Deus! —
disse a mim mesma em voz alta. Sentei-me na cama de casal, com
tudo do Samuel ainda espalhado, e juntei as mãos. Fechei os olhos
energeticamente. — Senhor, perdoe-me por isso. Eu não quero ficar
pensando essas coisas de um padre. Nem desvirtuar o coitado,
fazer com que se incomode comigo.
Abri os olhos, sem saber se a pequena oração tinha
funcionado. Nunca fui de rezar muito. Mamãe não era religiosa,
embora fosse prática, caridosa e cheia de afeto, mas sem religião
envolvida, o que eu achava bom. Não fui criada com essa coisa de
pecado para lá e para cá, moldando minhas ações e vontades.
Gostava de tomar umas biritas às vezes, de me vestir livremente, de
me arrumar, dançar e, claro, transar.
Pena que Samuel não soube aproveitar a mulher que tinha.
Eu nem sabia direito como havia me apaixonado por alguém tão
imbecil, que depois de um tempo se mostrou um grande cafajeste.
Mas os tempos de escuridão haviam passado e naquele instante
podia ver o brilho do sol na minha frente, ainda que fosse noite.
Nunca mais me colocaria no breu de novo, por isso não via
tanto sentido nas investidas de Luís. Queria transar, claro, mas não
estava a fim de me amarrar a outro cara.
Por isso que, talvez, fosse melhor morar numa cidade
grande. As pessoas de Paraíso costumavam se meter na vida dos
outros, e não estava a fim de ser taxada como a viúva que se
deitava com todo mundo.
Sentindo-me um tanto cansada, deixei a arrumação de lado e
fui para a cozinha a fim de lavar os pratos. Meu rosto ficou próximo
ao armário aéreo e identifiquei as tantas garrafas de vinho que
Samuel guardava para ocasiões especiais. Foram caros e pareciam
bons, mas ele nunca os abriu e menos ainda quis beber comigo.
Mas ele não estava ali e achei que aquela noite pedia uma
bebida alcóolica. Foi por isso que tirei a poeira de uma taça de
cristal, guardada no fundo da despensa, e tive certa dificuldade de
remover a rolha de um dos vinhos. O líquido era escuro e viscoso, e
ao experimentar, percebi que, durante toda a minha vida, nunca
havia me permitido beber algo caro e bom daquele jeito.
O gosto era de liberdade.
Enchi a taça e coloquei a garrafa dentro do congelador, para
que resfriasse um pouco. Saí andando e observando a casa vazia,
limpa – porque nunca fuiuma esposa relapsa –, pensando em como
deveria ter doído levar tantas facadas. Bom, talvez Samuel as
merecesse. Ele andava fazendo coisa errada, se envolvendo em
brigas de bar. Claro que em algum momento não daria certo.
No fundo, já esperava uma notícia como aquela.
— Eu sou livre agora — murmurei para mim, na tentativa de
me fazer compreender o peso da liberdade. Não sabia bem qual
era. Nunca fui. Mesmo antes de Samuel, cuidava da minha mãe e
vivia para todo lado com ela. Minhas vontades e gostos nunca foram
ouvidas em sua totalidade, por ninguém. — Posso fazer o que
quiser. O que sentir vontade.
Suspirei. Sinceramente, depois de bebericar metade da taça,
percebi que o que o meu corpo queria mesmo era uma pegada
vigorosa, com muita selvageria. Havia uma força fatal me matando
por dentro, e o tesão às vezes se tornava incontrolável. Nos últimos
tempos vinha me sentindo cada vez menos mulher, mas, ao me
olhar no espelho do corredor, percebi que eu era, sim, jovem, bonita
e gostosa. Estava bem cuidada.
Removi aquele vestido preto, traduzindo um luto que eu não
sentia na totalidade, e me observei apenas de calcinha e sutiã
pretos. Virei-me de costas, analisando que minha bunda ainda tinha
um bom desenho dentro do tecido rendado nas laterais. Não tinha
por que me prender ou me sentir inferior. Maria Luísa era uma
mulher merecedora como qualquer outra.
Fiz umas dancinhas sensuais, enquanto segurava a taça, e ri
de mim mesma. Permiti que me sentisse feliz, alegre de verdade. A
cidade inteira poderia me julgar, mas a morte de Samuel me fez um
bem danado. Fiquei com tudo o que era dele sem intrigas e
confusões judiciais, não seria importunada pela sua personalidade
irritante e pronto, assunto resolvido.
Andei até o sofá e me sentei meio deitada, observando a
televisão desligada, pensando que nunca mais precisaria aguentar
os futebóis todo domingo, no máximo volume. Assistiria a minhas
novelas sem ser incomodada com gente inútil pedindo jantar.
Terminei aquela taça e a enchi de novo, depois voltei para o
sofá e me deitei. Tive vontade de tocar o meu corpo, e foi o que fiz
com lentidão, sentindo as reentrâncias de minha pele e me
considerando uma mulher de verdade.
Parei com os dedos sobre a minha calcinha e sorri. Senti-me
meio envergonhada, mas logo espantei cada pudor e deixei os
dedos escorrerem para dentro.
Soltei um curto gemido quando encontrei meu ponto mais
íntimo, e estranhamente molhado. Não esperava encontrá-lo assim,
prova de que eu realmente tinha ficado molhada com... padre
Benício.
Parei um pouco e olhei para baixo, conferindo o formato de
meus seios dentro do sutiã. Estava confusa e constrangida com o
rumo dos pensamentos, porém voltei a agitar os dedos e me
contorci de desejo. Era bom demais. Havia me esquecido do quanto
era prazeroso. Samuel não gostava que eu me tocasse sozinha.
Foda-se.
O corpo era meu. Eu podia fazer o que quisesse com ele,
inclusive, até os pensamentos me pertenciam e ninguém poderia
tirá-los de mim.
Foi por este motivo que me deixei guiar por ideias
pecaminosas. Criei uma versão do padre Benício na minha cabeça,
deixando-o grande, nu e vigoroso na minha frente,com as mãos me
tocando de uma forma intensa. Minha lubrificação quase melava o
sofá, de tão exagerada que se tornou.
Deixei meu clitóris inchado ainda mais pronto, sedento,
enquanto acelerava o trabalho de meus dedos sobre ele.
Gemi e me contorci, louca, imaginando o dono dos olhos cor
de mel invadindo uma ereção poderosa dentro de minhas carnes.
— Oh...! — soltei, na doce ilusão de um corpo musculoso me
penetrando e agarrando em várias partes.
Pude até ouvir a voz doce dele em minha mente:
— Você é toda minha.
Eu achava que padre Benício nunca tinha falado nada
parecido em toda sua vida. Mas na minha cabeça ele era quem eu
queria que fosse, e que o restante se explodisse. Era só ilusão
mesmo. Não perdi tempo nutrindo culpa ou me martirizando,
continuei até querer mais e mais, de forma que precisei enfiar dos
dedos de uma vez em minha abertura, enquanto o polegar
prosseguia sobre o ponto sensível.
Agitava-me e imaginava. Como era delicioso...
Em poucos minutos, irrompi em um orgasmo diferente, muito
intenso, potente, e me contorci toda, alcançando um paraíso que,
depois, tornou-se muito distante para alguém que acabara de gozar
pensando num padre.
— Devo ter ficado louca... — sussurrei, quase como se ainda
gemesse.
Levantei-me do sofá, com o corpo todo meio inerte, virei a
segunda taça de vinho e me coloquei dentro de um banho frio, de
cabeça, enquanto me esforçava para não pensar mais no que não
devia.
Se me arrependesse, talvez Deus me perdoasse. Só que eu
não sentia nenhum arrependimento, mesmo sabendo que era
errado, portanto decidi que não era o momento de implorar perdão.
Faria isso depois, quando estivesse pronta e fosse sincera.
Vesti uma camisola e voltei aos afazeres dentro do quarto. O
quanto antes me livrasse das coisas de Samuel, melhor.
Removi um monte de tralhas dentro do guarda-roupa e
encontrei uma caixa preta desconhecida bem no fundo, quase
imperceptível. Não sabia que existia aquilo ali. Devia ser dinheiro
guardado, ou revistas pornográficas. Coloquei-a sobre a cama e a
abri, mas o que encontrei me deixou absolutamente estarrecida:
Um revólver de verdade, um punhado de comprimidos dentro
de uma sacola de plástico e o último, e mais intrigante dos objetos,
uma fotografiade um casal que nunca vi na vida em pleno ato
sexual. Um cenário bastante pesado, pois pude visualizar o órgão
do homem dentro do da mulher. Dava para ver, também, os rostos
de ambos contorcidos pelo prazer.
Fiz uma careta enorme.
— Que merda é essa?
PARTE 3
Cristo!

Padre Benício

Acordei de um sonho que me deixou transtornado; nele, eu


era o defunto enterrado no cemitério no dia anterior. Os coveiros
jogavam terra sobre mim, porém eu ainda estava vivo e, por algum
motivo, não conseguia gritar.
Só podia ser um sinal depois do que acontecera na noite
passada. Um aviso para me afastarda viúva de olhos penetrantes e
das sensações contraditórias que me fez sentir, que no fim se
transformaram numa ereção constrangedora, pela qual eu ainda não
sabia se deveria me desculpar. Apenas o perdão divino serviria?
Não seria prudente obter, também, o perdão daquela mulher?
Pensava enquanto observava meu próprio membro.
Todas as manhãs era inevitável despertar com ele no modo
mais rígido, latejante e melado. Era frustrante. Não havia muito o
que fazer a respeito, o meu corpo biológico agia sozinho, por si
mesmo, e a única coisa que me apetecia era não me perturbar por
algo natural, orar e esperar que passasse. Ao menos eram as
recomendações que recebia dos clérigos superiores.
Durante os estudos como seminarista, o celibato foi uma
questão que me trouxera muitas perguntas e me fizera entrar em
profundo estado de meditação, a fim de alcançar uma paz de
espírito que em diversos momentos me escapava. Fiz o voto de
castidade com muita consciência. Conter os instintos se tornou
necessário, de modo que aprendi a fazer isso até certo ponto.
Naquela específicamanhã, por exemplo, não conseguia me livrar da
sensação de estar à beira de um precipício.
Temi que o controle fugisse de mim e que a insanidade me
alcançasse no lugar dele. Ainda que o bispo da região tivesse
recomendado que eu me aliviasse algumas vezes, quando se
tornasse insuportável – e depois passasse por um processo de
penitência que me traria o perdão divino –, eu evitava o máximo que
podia.
Não me sentia nada bem fazendoaquilo, porque descontrolar
meu corpo podia significardesajuizar a minha mente tão focadanos
deveres. Por esse motivo, escolhi ignorar a nova ereção; levantei-
me da cama e me direcionei à pequena sala ao lado de meu
escritório particular, onde eu havia colocado uma esteira e alguns
alteres. O espaço que me foidesignado, uma construção por trás da
igreja, era humilde e confortável o suficiente para ser chamado de
lar.
Fazer exercício me acalmava e ajudava a equilibrar meus
hormônios, de modo que se tornava mais fácil controlar os impulsos
mais sombrios que todo ser humano guarda dentro de si. No silêncio
da alvorada, longe dos olhares de todos da cidade, eu me
movimentava com vigor, pegava pesado de propósito com o intuito
de trazer uma saciedade menos vulgar ao meu próprio corpo.
Após trinta minutos de corrida e mais quarenta de exercícios
de musculação, entrei no banho me sentindo revigorado, satisfeitoe
cansado o bastante para pensar no que não devia. Vesti uma batina
limpa e me olhei no espelho durante alguns segundos, passando as
mãos nos cabelos e na barba, antes de descer para a igreja. Fiquei
felizpor não me sentir tão mal quanto achei que ficaria.Reconhecer
as falhas fazia parte do processo.
A minha missão sempre começava cedo, a primeira missa
era realizada às 7h da manhã, e as atividades na igreja me
deixavam ocupado ao longo dos dias. Havia muito a ser feito.
Aquela cidade era pequena, mas cheia de serviço, porque as
pessoas precisavam do amparo para manterem a serenidade. A
maioria dos habitantes era pobre, vivia com muito pouco e precisava
de fé em Deus para suportar os desafios.
— Bom dia, padre Benício — Toninho, o coroinha mais
experiente, saudou-me quando nos encontramos no corredor que
levava à uma pequena capela e à sacristia. — Tudo bem com o
senhor? Está um pouco vermelho.
Eu devia ter exagerado no exercício sem sequer perceber.
— Está tudo bem, meu filho, bom dia. Vamos nos organizar?
— Sim, claro. As beatas já chegaram. — Ele se esgueirou e
confidenciou em voz baixa: — Aliás, depois do assassinato, a igreja
está cheia.
— Que esses corações encontrem conforto na casa de Deus
— falei em um murmúrio, e Toninho abriu um sorriso para mim,
assentindo. Bom rapaz. Ele me ajudava bastante, era o meu braço
direito, sempre muito solícito e bondoso.
Nós nos concentramos, juntamente com dois coroinhas mais
novos, em separar o cálice, a âmbula, para conservação das
hóstias, as galhetas para a água e o vinho e os demais objetos
litúrgicos necessários para a celebração da missa.
Coloquei, por cima da batina, a túnica branca e a estola
verde, pois aquele era um dia comum, sem festividades. Em
seguida, passei ao redor da cintura o cíngulo, cordão branco que
significava a vigilância e, também, a castidade e pureza. Por um
instante estacionei diante da peça. Soltei um suspiro inaudível e a
vesti, pois eu deveria tratar a mim mesmo com misericórdia.
Nenhuma falha me tiraria de meu propósito e nem do caminho que
escolhi para mim, repleto de sentido e de graça.
Fiz a oração de praxe, ao colocá-lo:
— Cingi-me, Senhor, com o cíngulo da pureza, e extingue
nos meus rins o fogo da paixão, para que resida em mim a virtude
da continência e da castidade.
Abri a bíblia e sorri diante do sermão do dia, que era sobre o
perdão. Eu gostava daquele trecho e já começava a me inspirar
para falar àquelas pessoas da maneira mais clara possível. Saudei
os demais ajudantes voluntários, o Jeremias, que passou por nós
para iniciar seu trabalho no violão, e as duas freirasque estavam na
cidade para auxiliar.
Subi ao altar me sentindo ótimo, pronto para iniciar os
trabalhos e satisfeito em ver a casa cheia logo cedo, mas o
resquício de sorriso morreu ao visualizar a viúva sentada na
primeira fileira,ao lado das velhinhas que sempre ocupavam aquele
lugar.
Por instantes que me pareceram eternos, não soube o que
fazer. Fiquei sem reação diante dela, como se a sua presença fosse
única dentro da igreja e não houvesse mais nada nem ninguém por
perto. A percepção que tive dela foi tão caótica que até enxerguei
uma aura luminosa ao redor de seu rosto, como se brilhasse e
emitisse raios de sol brandos, iguais aos de fim de tarde.
Usando outro vestido preto, parecido com o do dia anterior –
o que era apropriado, já que ainda respeitava o luto pela morte do
marido –, mantinha os cabelos ondulados soltos e o olhar
compenetrado na minha figura. Pisquei os olhos e ela fez o mesmo,
como se fosse um espelho, e então recobrei o juízo e virei o rosto
na direção das outras pessoas.
Abri um sorriso constrangido e me perguntei se todos tinham
notado a breve incapacidade de tirar os olhos da viúva. Não
consegui entender a minha própria reação, porém ao menos não
tinha ficado excitado em cima do altar, o que significava que eu
ainda não havia enlouquecido de vez.
— Bom dia, igreja! — falei ao microfone, passado pelo
Toninho depois de tudo estar em seu devido lugar.
— Bom dia! — a saudação veio em uníssono.
— Não ouvi direito, vocês estão com sono? Não tomaram
café? — Ouvi algumas risadas e me animei. Eu gostava de levar as
missas de uma maneira mais descontraída, para que todos se
sentissem à vontade. — Bom dia, igreja!
A resposta foi muito mais calorosa e cheia de energia que a
anterior, portanto iniciei os trabalhos contente, enquanto tentava não
direcionar meu olhar ao lugar onde sabia que Maria Luísa estava
sentada. Não queria me distrair ou me perturbar. Concentrei-me
como pude e, cerca de uma hora depois, consegui encerrar a
celebração me sentindo mais como eu mesmo.
Entrei na sacristia e logo deixei todo o ar escapar dos meus
pulmões. Removi as vestes e fiquei apenas com a batina, pronto
para dar conta de questões burocráticas que exigiam a minha
atenção. Mais tarde teríamos grupo de estudo da bíblia, em seguida
algumas missões nas residências de pessoas doentes, a missa das
19:30h e o sopão, que sempre organizávamos aos sábados.
— Padre Benício, tem uma mulher querendo falar com o
senhor. — Toninho despontou na sacristia e disse, depois de dar
algumas batidas na porta aberta. Ergui o rosto na direção dele e não
pude evitar o espanto.
O meu coração retumbou a toda velocidade, reação
completamente desproporcional.
— Comigo? Quem? — Geralmente eu não perguntava,
apenas pedia que entrasse e recebia a pessoa de braços abertos e
sorriso no rosto, mas daquela vez não consegui agir como sempre.
— Dona Luísa, a viúva. A que o marido faleceu
recentemente. — Ele prosseguiu, baixinho: — O que foi
assassinado.
Engoli em seco, sentando-me ao birô antigo, feitode madeira
maciça. Não tinha como fugir daquela mulher, por mais que, por
dentro, eu desejasse. Nunca deixava de receber ninguém que me
procurava, pois geralmente era um pedido desesperado de socorro,
e Toninho sabia disso, portanto negar seria chamar atenção e ir
contra tudo o que eu acreditava.
— Pode pedir para ela entrar, Toninho.
Ele sorriu de maneira suave e desapareceu no corredor.
Poucos minutos depois, Maria Luísa adentrou a sacristia, trazendo
consigo um perfume de flores que me deixou arrebatado. Prendi a
respiração e me ergui para cumprimentá-la, mas eventualmente
precisei aspirar e a perturbação retornou.
Apertamos a mão um do outro.
— Bom dia, Maria — falei como se absolutamente nada
estivesse acontecendo. Porque, afinal, não deveria mesmo. —
Gostei de te ver na missa... — Não soube o que dizer e nem se
aquilo era uma mentira, por isso travei, sem completar a frase.
A mulher sorriu. Apontei para a poltrona do outro lado do birô
e ela se sentou, olhando para os lados como se estranhasse o
recinto. Era um ambiente sagrado porque guardava vestes,
utensílios, símbolos, livros antigos, documentos, enfim. Havia muita
informação e a decoração era repleta de imagens de santos,
quadros, velas, cruzes e longos armários de madeira escura.
Eu já estava acostumado.
— Nunca entrei numa sacristia antes... — Soltou um risinho
que me deixou inerte, apenas a olhando e esperando. Não soube
pelo quê. — É meio abafada, né? — Riu novamente e, percebendo
meu silêncio, clareou a garganta e se aprumou na poltrona. —
Bom... Eu... — Suspirou. — Tenho duas coisas para conversar com
o senhor.
Assenti, percebendo seu desconcerto. Antes que ela falasse
qualquer coisa e ficasse ainda mais constrangida, decidi que não
dava para fingir normalidade e me livrar da culpa. Pelo contrário,
teria que lidar com a situação e encarar com responsabilidade, se
quisesse algum perdão.
Foi por isso que me esgueirei um pouco para frente e falei
baixo:
— Maria, por favor, peço que me desculpe por ontem. — Ela
abriu bem os olhos, parecendo surpresa. — Sei que devo tê-la
deixado constrangida e confusa... Perdoe-me. Apesar de ser padre,
também sou homem e possuo um corpo. Respeito meu celibato com
afinco e resignação, por isso aquilo foi uma falha que...
— Oh, meu Deus! — Maria levou uma mão à boca e
continuou me encarando com espanto. — Então... Então foi mesmo
um... Oh! Achei que eu tivesse enlouquecido.
Senti o meu rosto inteiro esquentar de vergonha. Não era
sobre aquele assunto que ela falaria, só então reparei, e ter me
adiantado talvez não tivesse sido a melhor escolha.
— Perdoe-me, por favor. — Abaixei o rosto na direção do
piso encerado, utilizando um tom ameno. — Algo assim nunca
aconteceu e jamais se repetirá. Peço também para que, se possível,
não conte esse infortúnio para ninguém. As pessoas vão entender
mal e perder a fé. Não é minha intenção causar escândalo e afastar
esse povo sofrido da igreja. — Pensei melhor após dizer aquelas
palavras, percebendo que seria mal-interpretado. Maria podia
pensar que eu estava exigindo seu silêncio. — Bom, a não ser que
queira fazer uma denúncia formal à arquidiocese, se for o caso,
posso ajudá-la e...
— Não. — Ela foi taxativa. Continuou me olhando fixamente,
parecendo bastante decidida. — Não será necessário, padre, por
Deus... — Balançou a cabeça em negativa e soltou um riso. — O
senhor ia me ajudar a te denunciar?
Relaxei os ombros, resignado.
— Toda a minha missão perderia o sentido se eu não agisse
com justiça e verdade. O mundo seria outro se todos se
responsabilizassem por seus atos.
Maria Luísa ficou muda por bastante tempo, o que fez com
que eu elevasse o rosto novamente para encará-la. Ela me
analisava com surpresa, mas logo sua faceexpressou compreensão
e serenidade.
— Não se preocupe, padre. Esqueça isso. Eu que peço
desculpas por tê-lo deixado daquela forma. Também não é minha
intenção trazer desconforto ao senhor. — Sorriu de leve, embora eu
pudesse notar que estava envergonhada tanto quanto eu. Mal podia
acreditar que estávamos imersos naquele assunto. — Talvez seja
certo confessar ao senhor que também pequei... — Chacoalhou a
cabeça em descrença, envolta pelo constrangimento. Foi a vez dela
de afastar o olhar para o lado. — Fiquei... muito excitada. E pensei
no senhor de um jeito... hum... vulgar. Não devia, eu sei. Espero que
o senhor e Deus possam me perdoar.
Mantive o meu corpo imóvel sobre a poltrona, e por longos
instantes só consegui ouvir o meu próprio coração batendo nas
têmporas. Maria Luísa ficou calada e sem me olhar, enquanto eu
tentava manter o funcionamento natural do meu corpo. Vê-la diante
de mim naquele momento não estava sendo nada bom.
Uma coisa era ter errado e estar ciente e arrependido disso;
outra era saber que aquela mulher tinha me visto como homem num
instante perturbador e correspondido à toda aquela bagunça. Não
esperava que dissesse tais palavras, menos ainda que confessasse
sentimentos tão íntimos logo quando o controle me parecia distante.
Enfim, Maria estacionou os olhos nos meus. Como não sabia
o que falar, apenas continuei calado. Seria melhor do que piorar as
coisas. Na dúvida, eu sempre escolhia o silêncio, porque ele era
sábio. Naquele instante, contudo, o fato de ter perdido as palavras
só deixou com que o olhar dela grudasse com mais força no meu, e
passamos um tempo antinatural numa troca que eu não fazia ideia
do que significava.
Depois de um tempo, a mulher entreabriu os lábios rosados e
soltou um ofego semelhante a um gemido. Não houve sequer uma
parte de mim que não tivesse se arrepiado diante de timbre tão
perturbador.
Mordi a parte interna das bochechas, percebendo que, se me
permitisse levar, novo volume entre minhas pernas deixaria meu
discernimento mais desequilibrado.
— Está perdoada — murmurei, quebrando o silêncio que de
sábio não tinha nada. Ao contrário, aquele me pareceu imprudente.
— Mas o que a senhora queria falar comigo?
Maria piscou os olhos como se tivesse saído de um transe.
Não ousei pensar ou me questionar sobre o conteúdo que se
passava naquela mente.
Poderia ser um caminho sem volta.
— Ah, sim... Bem... — Clareou a garganta mais uma vez. —
Separei as coisas do Samuel para doar, só que é muita coisa... E
está pesado. Vim aqui perguntar se o senhor teria algum transporte,
ou alguém para ajudar a trazer as malas, sacolas e caixas. São
muitas.
Aquiesci, ainda me sentindo um pouco aéreo.
— Sim, claro. Pedirei ao Toninho e ao Jeremias para ajudar.
Vou providenciar os serviços de um carroceiro. A senhora estará em
casa nesta tarde?
— Sim, estarei. — Deu de ombros. — Ainda não sei o que
farei da vida, então estarei em casa pensando no futuro.
Tive vontade de fazer mais perguntas, porém achei por bem
me manter distante tanto quanto possível. Pensei também em
questionar se ela queria mesmo se livrar de todas as coisas do
falecido um dia depois do enterro. As pessoas certamente não
veriam com bons olhos. Entretanto, meu papel não era julgar e nem
impedir uma doação para os necessitados por causa do que os
outros pensariam.
— Muito bem.
— Ah... — Maria abriu a bolsa preta, que tinha o formato de
uma grande sacola, e retirou de dentro um pote de plástico. —
Trouxe torta para o senhor. Sobrou bastante, e percebi que gostou...
Abri um sorriso gentil.
— Obrigado. Não fiz o desjejum ainda.
Não havia ingerido nada além da hóstia, que sempre foi
capaz de me trazer um sentimento bom de saciedade.
— Como não, padre? O senhor precisa se alimentar. — A voz
doce saiu em tom de desaprovação, e achei sua atitude divertida.
— Só costumo sentir fome após as missas matinais.
— Então a torta veio em uma boa hora. — O sorriso dela
iluminou o ambiente ao redor, e tentei dispersar aquelas ilusões da
minha mente. Eu não sabia o que estava acontecendo com meu
juízo.
— Sim, muito obrigado, Maria.
Deixei o pote sobre o birô, pois achei que seria indelicado
comer imediatamente, embora estivesse realmente com fome, e
voltei a olhá-la enquanto ela me devolvia um sorriso satisfeito. Mas
logo ele se desfez completamente.
— O segundo assunto é um pouco mais delicado. — Ela se
virou para trás, a fim de visualizar a saída da sacristia. — Talvez o
senhor queira fechar a porta, padre.
Franzi o cenho, confuso.Ela não havia considerado os outros
assuntos delicados? O que poderia ser pior? E também não sabia
se seria correto ficar sozinho com ela dentro da sacristia com a
porta fechada. O que se passava na cabeça de Maria Luísa?
Ainda que compreendesse que minhas preocupações eram,
em sua maioria, irracionais, não pude deixar de me sentir perdido.
— Preciso mostrar uma coisa ao senhor — ela prosseguiu
aos murmúrios, olhando-me, e me espantei consideravelmente.
Deus que me perdoasse, mas imaginei o pior cenário
possível, com uma riqueza absurda de detalhes. Suspendi a
respiração e me mantive mudo, quieto. Maria deve ter percebido o
meu desconcerto, pois voltou a abrir a sacola e retirou dela uma
embalagem alguns centímetros menor que uma caixa de sapatos.
— Aqui dentro tem uns objetos que... Não sei o que fazer,
padre Benício. Estou confusa e preciso que veja, discretamente,
para me aconselhar. Achei nas coisas do Samuel.
Observei a caixa e suspirei de alívio. Não era nada do que eu
estava pensando, o que me fez questionar a pureza de minhas
ideias. Precisaria voltar com as meditações urgentemente, porque
me sentia, naquele momento, envenenado pelas sombras.
Eu me levantei e, por fim, fechei a porta de madeira pesada
da sacristia, porém não antes de conferir o corredor vazio. Os que
restaram estavam ocupados com seus afazeres e certamente não
me procurariam, por saberem que eu estava dando conta da
papelada e precisava de concentração. Voltei para a poltrona e me
sentei, visualizando a caixa preta sobre o birô. Parecia-me bastante
suspeita.
Com a expressão agravada, Maria Luísa abriu o tampo da
caixa e eu me curvei para frente, a fim de ver os tais objetos. Uma
arma de fogo chamou logo a minha atenção e olhei para ela, que
deu de ombros. Voltei a encarar a caixa, mas não estava
entendendo direito o que tinha nela além do revólver.
Maria percebeu que eu não tocaria em nada daquilo – não
era tão tolo assim para segurar coisas que poderiam ser evidências
de um assassinato –, por isso ela mesma puxou uma sacolinha
transparente com comprimidos que pareciam drogas ilícitas.
— O que é isso? — questionei, fazendo uma careta.
— Eu não sei. Mas não deve ser remédio para dor de
cabeça.
— Provavelmente, não.
Maria balançava a sacolinha na frente de nosso rosto.
— Meu marido não tinha um bom caráter e bebia muito, mas
não sabia que estava envolvido com droga. — Devolveu os
comprimidos para a caixa e retirou outra coisa lá de dentro,
semelhante a um pedaço de papel. — Mas foi isso aqui que me
deixou mais intrigada, padre.
Ela o girou e, no mesmo instante, vi uma cena que fazia
muitos anos que não visualizava, de qualquer forma que fosse,
porque as evitei severamente.
— Cristo! — soltei, engasgando com minha própria saliva e
girando o rosto para longe daquela figura.
Tratava-se de um retrato de duas pessoas... copulando. E era
explícito o suficiente para desbloquear todas as memórias
sensoriais que guardei dentro do mais profundo poço em meu
coração. Achava até que as tinha perdido para sempre, mas
estavam ali, reavivadas e me deixando completamente
transtornado.
Tossi algumas vezes, enquanto Maria balançava o papel em
insistência.
— Padre, me perdoe, mas o senhor precisa ver quem são
essas pessoas. Talvez as conheça. Eu nunca vi nenhuma delas,
mas...
Segurei o pulso de Maria e afastei a fotografiapara baixo.
Encarei-a com surpresa e o coração batendo acelerado.
— Maria... Não me mostre uma coisa dessas assim.
Ela prendeu os lábios. Continuei a segurando, ciente do
toque entre nossas peles, até que achei melhor me afastar e a
larguei.
— Desculpa, padre Benício. Mas eu queria muito saber o que
essa foto está fazendo nos pertences do meu marido. — Ela não se
deixou abalar, seu olhar se manteve firme e decidido, como se
sequer se importasse com o que acabou de fazer comigo. — Não
me parece certo. Será que ele estava ameaçando alguém? O
senhor deve conhecer todos dessa cidade...
Soltei um suspiro profundo, advindo das profundezas do meu
ser. Abaixei o olhar para a foto e depois o ergui. O susto inicial
estava passando.
— Que diferença faria se eu soubesse quem são? —
questionei, reflexivo. — Você deveria entregar tudo isso ao delegado
Moura.
Maria Luísa ficou calada. Algo a perturbava profundamente.
Começou a balançar a cabeça em negativa, e os olhos escuros
marejaram um pouco.
— Tenho medo. Ele pode achar que tudo isso é meu. O
delegado só quer que eu saia um centímetro da linha para me enfiar
atrás das grades, padre. Sou a principal suspeita, mas como não
existem provas, estou aqui... — Abriu os braços, afetada e
demonstrando extrema tristeza. — Já bastam os interrogatórios que
ele fez comigo sem nem esperar Samuel ser enterrado. Eu estava
em casa na hora do assassinato, mas não tenho um álibi, ninguém
me viu naquele dia porque simplesmente não saí. Isso tudo não me
ajuda em nada.
Assenti, compreendendo o temor daquela jovem viúva. Ela
estava sozinha para enfrentar essas situações, o que era um
agravante. Contudo, seria necessário confiar na justiça dos homens
em casos como aquele. O delegado Moura era competente, apesar
de impulsivo e meio grosseiro. Fazia seu trabalho perfeitamente.De
modo rude, mas eficaz e justo.
— O meu conselho é que leve esses objetos daqui para a
delegacia neste momento.
Maria continuou negando com a cabeça.
— Padre... — Expirou com força. — Não sei quem são essas
pessoas. Meu marido pode ter feito mal a elas... Se essa foto vazar,
posso prejudicar a vida desse casal, e só Deus sabe quais serão as
consequências.
De uma coisa eu tinha certeza, aquelas pessoas na foto não
tinham inocência nenhuma, mas compreendia o que Maria queria
dizer. O ser humano faz coisas erradas movidas pela paixão. Talvez
aquele casal não devesse estar fazendo aquilo, mas faziam porque
se amavam. Ou será que eu estava sendo romântico demais?
— Não creio que o delegado vá tratar essa foto com
leviandade.
Maria bufou, insatisfeita.
— Talvez não ele, mas os policiais dessa cidade são uns
ridículos. Corruptos, inescrupulosos, colocam terror no povo que
deveria proteger. O senhor sabe disso, padre. Essas pessoas serão
expostas muito depressa, garanto.
Passei algum tempo observando o olhar angustiado de Maria.
Por fim, suspirei e peguei a fotografiapornográfica, mal acreditando
que faria aquilo. Tentei me preparar melhor e, por fim, reparei nos
detalhes dos rostos deles.
— Não os conheço. Nunca vi. Talvez não sejam daqui.
— Repare bem, padre... Eles... Parecem estar fazendo isso
numa sala de aula. — Maria apontou para o redor da foto. — Isso
aqui parece uma cadeira escolar. O meu marido trabalhava no
Campus, talvez...
Ela tinha razão. O casal estava fornicando num ambiente
escolar. Percebi a aresta do que parecia um quadro branco e
comprovei definitivamente. Só podia ser na Universidade que
chegara à cidade fazia pouco mais de 5 anos.
— O que pretende fazer? — perguntei.
— Encontrar essas pessoas e sondar. O senhor me ajuda?
Ergui os ombros, negando com a cabeça.
— Não posso me envolver nisso, querida. — Segurei sua mão
por sobre o tampo, demonstrando sinceridade. Havia limites
importantes na minha missão e eu os conhecia muito bem. — E
ainda acho que deve entregar ao delegado.
Ela assentiu e foi guardando tudo de volta para a caixa, em
seguida a enfiou na sacola novamente.
— Obrigada, padre. — Levantou-se de forma abrupta, e
percebi que estava decepcionada comigo. Esperava que eu a
ajudasse, porém, além de não poder, também não concordava com
sua atitude de esconder possíveis evidências.
— Gostaria de poder ajudá-la mais. — Levantei-me também.
— Eu o entendo. — Ela apoitou a bolsa nos ombros e me
encarou com firmeza. — Obrigada por me receber, e espero que
nossa conversa se mantenha sigilosa.
— Sem a menor dúvida. Obrigado pela comida.
Andei até a porta para a acompanhar com educação, visto que
ficou apressada de repente. Maria caminhou rápido demais até a
saída, e ao parar diante da madeira fechada, ergueu a mão na
maçaneta ao mesmo tempo que eu. Nossos dedos se tocaram
sobre o metal frio. Esperei que ela se afastasse para que eu
pudesse abrir a porta de uma vez, mas não aconteceu. Em vez
disso, Maria ergueu o rosto, muito próximo, na minha direção.
As mãos se mantiveram encostadas na maçaneta e paralisei.
Não esperava que ficássemos tão perto um do outro, parecia
inimaginável depois da noite anterior. Seu olhar escuro fixo em mim
me fez, novamente, acreditar que o silêncio seria o bastante, mas
não foi. Por dentro, eu estava aos gritos, e havia uma força
descomunal mantendo meu rosto exatamente sobre o dela, sem
desvios ou desfaçatez.
Novamente, Maria soltou um suspiro com os lábios
entreabertos.
Os dedos delicados repousaram sobre minha mão como uma
pequena carícia, que foi se elevando devagar e de maneira
constante. Senti-os na manga escura da batina, subindo como se
tivesse direção certa, mas meus olhos se mantiveram nela e pude
notar o quanto estava hesitante. Maria Luísa parecia assustada. Já
eu, continuava feito uma estátua, incapaz de me mexer, como se
todo controle me fosse sugado de uma só vez.
Ela arquejou quando os dedos circularam sobre meu peito.
Espalmou e apertou a mão o suficiente para me fazer arquejar
também. Não entendia o que eu estava fazendo. Sabia
perfeitamente que o “fazer nada” significava muita coisa e me
atribuía responsabilidade, portanto não compreendia como ou por
que estava me deixando levar por um toque visivelmente indevido.
Maria ergueu a outra mão como se precisasse se equilibrar em
mim. Os dedos circularam meus ombros, devagar, fazendo um
trajeto que me era desconhecido, e por isso me enchia de pavor.
Mas não era apenas isso. Talvez, se fosse só medo, eu já tivesse
me afastado. O que sentia, também, era uma enorme onda de calor
invadindo cada centímetro do meu ser, atiçando cada nervo e me
deixando fora de mim.
Eu não sabia como ela conseguia mexer comigo com tanta
facilidade.
A viúva se aproximou mais, deixando nossos rostos muito
próximos, de forma que foi possível respirar o mesmo ar que ela.
Estávamos ofegantes, ainda mantendo uma conexão perturbadora
através dos nossos olhares.
Ela acariciou a batina e ambas as mãos apertaram meus
braços, como se quisessem desvendar o que havia por dentro do
tecido. E em um ínfimo instante me senti despido diante dela. Na
tentativa de me proteger daquilo tudo, segurei a sua cintura com
certa força, mas a intenção de afastamento se perdeu no meio do
caminho e, em vez de acabar com aquela insanidade, minha mão,
sozinha, puxou-a até seu corpo colar ao meu. Voltei a sentir aquele
par de seios sobre mim.
O silêncio que pairava entre nós me ensurdecia.
Seus dedos continuaram me apalpando enquanto eu pedia
socorro a qualquer força que ainda estivesse olhando por minha
pobre alma. Deus me pareceu distante, mas tão perto quanto Maria
Luísa estava.
Ela atravessou meu peito e desceu pelo abdômen,
descobrindo, apertando delicadamente, com visível curiosidade,
espanto e certa hesitação. Não parou, no entanto. Aquela mulher
imprudente estava em busca de algo que encontrou em pouco
tempo, após explorar meu tórax e descer mais. Apertou a mão em
cheio na ereção que despontava sem que eu pudesse fazer mais
nada para escondê-la.
Estava completamente perdido. Um cordeirinho.
Segurei a cintura dela com muita força e soltei um ofego mais
alto. O som saindo dos meus lábios me fez despertar daquele
instante como se fosse tragado por um transe absurdo. Chacoalhei
a cabeça e consegui me afastar, profundamente abismado e me
considerando o pior dos seres.
— Por favor, vá — pedi, mas minha voz quase não saiu.
Foi igual ao pesadelo, em que terra era jogada em mim e não
pude reagir. Conheci, dentro da minha realidade, a mesma
sensação do sonho, de ser dominado por uma força sufocante e que
era muito mais forte que eu.
— Me perd... — ela começou, mas a interrompi.
— Vá. — O timbre saiu gutural, feroz, de um jeito
irreconhecível até para mim.
Maria Luísa finalmente abriu a maçaneta e partiu, deixando
para trás o rastro de seu perfume delicioso. Continuei na mesma
posição durante um bom tempo.
PARTE 4
Por trás da cerca

Maria Luísa

Saí da igreja correndo, como se fosse um mal sendo


exorcizado de território divino. Passei pelo coroinha à toda
velocidade, e apesar de perceber seu estranhamento, não ousei
parar nem com o objetivo de disfarçar minha atitude. Estava
assustada, frustrada e absolutamente excitada com o que tinha
acontecido dentro da sacristia.
Desejei ser tomada pelo padre ali mesmo, sem qualquer
pudor ou respeito.
Só consegui parar quando entrei em casa, com a respiração
ofegante e o coração acelerado pelo exercício e pelas recentes
emoções. A clareza foime atingindo e me sentia ainda mais culpada
por tudo que fiz. Não devia ter ido lá. No fundo, desejava ver padre
Benício de novo, o restante foram apenas desculpas que dei a mim
mesma para justificar o fato de ter acordado cedo para assistir a
uma missa, sendo que nem me considerava a melhor das católicas.
Rememorar cada olhar que trocamos me matava por dentro.
Ainda que não tivesse sido minha pretensão, a curiosidade falou
mais alto e foi como se uma entidade amaldiçoada o tivesse tocado
na maior vulgaridade. Acariciei e o apalpei por causa de um desejo
gritante de conhecer o que existia por baixo daquela batina.
Eu desconfiava que ele era forte, musculoso. Padre Benício
sem dúvida nenhuma malhava, o que por si só já era algo
impressionante. Não imaginei que padres poderiam ser sarados.
Havia um homem enorme ali, escondido por várias camadas de
tecidos religiosos, sagrados. Agarrar a sua ereção me fez
comprovar o quanto aquele ser camuflado era grande. E muito
grosso. Sinceramente, um verdadeiro desperdício, pois aquele pau
todo faria um estrago, em condições normais.
Chacoalhei a cabeça para me livrar de tanto pecado, tanta
heresia. Já não bastava ter me masturbado pensando nele,
cometendo um sacrilégio apenas dentro de minha cabeça; naquele
instante, precisei lidar com uma atitude que o envolvia diretamente,
e que com certeza o deixara perturbado, desconfortável.
O coitado era um santo. Até cogitou uma denúncia, coisa que
gente de caráter duvidoso jamais faria. Sua bondade, gentileza e
educação me encantavam e, infelizmente, deixava-me louca de
tesão. Não consegui conter os pensamentos libidinosos a cada
palavra bonita que saía de sua boca. Imaginava-o com aqueles
lábios cheios envolvendo minhas carnes mais ocultas, e aquela
barba resvalando entre as coxas.
Por outro lado, o fato de ele não me afastar no primeiro
instante me intrigava. Por um mísero tempo, insuficiente para me
trazer qualquer saciedade, porém o bastante para me atordoar, ele
aceitou aquilo tudo e até demonstrou sentir prazer através de
gemidos que me tiraram do sério, fizeram com que eu perdesse, de
vez, a compostura.
Não queria continuar pensando em padre Benício e naquela
loucura toda, por isso me concentrei, pelo restante do dia, em juntar
e embalar os pertences de Samuel. Tudo o que me incomodava
dentro daquela casa foi colocado para doação, e no fim descobri
que vivia rodeada por coisas que me afetavam negativamente. A
casa ficou meio vazia.
No fim da tarde, reconheci o coroinha da igreja, que todos
chamavam de Toninho, batendo palmas no portão. Ele avisou que
estava com um carroceiro e que recolheriam as coisas de Samuel,
portanto deixei que entrassem e me ajudassem com as caixas.
— É tudo isso, dona Luísa? — ele perguntou, meio
espantado, olhando para dentro da minha casa com curiosidade. A
sala estava tomada, quase não se via o chão.
— Sim... São lembranças que não quero ter. Outras pessoas
farão proveito do que já não preciso mais.
— Entendi. — Ele sorriu com bondade. — Padre Benício
pediu que eu agradecesse pela doação. Será de grande valia para
os necessitados.
Dei de ombros, envergonhada.
— Imagina. Queria poder ajudar mais.
O coroinha me olhou por alguns instantes, em reflexão,
enquanto segurava uma das malas velhas cheias de roupas
masculinas. Eu sabia que aquilo estava pesado e o coitado se
esforçavacomo podia. Achei bonita a sua atitude de auxiliar a igreja
com tanta dedicação.
— Na verdade, a senhora pode. Hoje distribuiremos o sopão
e faltam voluntários, padre Benício está bastante preocupado.
Pouca gente se interessa em ajudar num sábado à noite.
Eu sabia que não deveria me aproximar da igreja tão cedo,
principalmente do padre Benício, mas seria péssimo de minha parte
se simplesmente ignorasse o pedido do coroinha. Passei uns
instantes sem saber o que responder, até que um ímpeto acabou
me fazendo soltar:
— Tudo bem, estarei presente. É a que horas?
— Depois da missa das 19:30h. Encerramos perto da meia-
noite.
Era bastante tarde e eu, assim como boa parte de São João
do Paraíso depois do assassinato de meu marido, estava temerosa
em andar pelas ruas em horário elevado, mas mesmo assim afirmei:
— Certo, eu vou.
O sorriso de Toninho se tornou maior.
— Obrigado mesmo, de coração. Deus pague a senhora.
Dei de ombros e sorri, sem nada mais comentar.
As coisas de Samuel foram colocadas sobre uma carroça e
levada para a igreja em menos de uma hora. Quando acabou, olhei
para todos os lados e o que vi foi um lar vazio, sem vida, o que me
deixou num estado de melancolia difícil de lidar.
Chorei muito quando recebi a notícia de morte do Samuel,
mas depois me acalmei e não derramei nenhuma lágrima. Porém,
naquele momento, eu me permiti entrar em novo pranto, daquela
vez porque tinha medo do futuro, de não conseguir caminhar pelas
minhas próprias pernas.
Um dia a reserva de dinheiro se esgotaria e eu precisava agir,
antes que minha vida se tornasse caótica e fosse eu a necessitada
a pedir alimento na igreja. Passei o restante da tarde e começo da
noite fazendoalgumas pesquisas sobre materiais de manicure. Sem
Samuel perto, podia trabalhar com unhas até dentro de casa.
Talvez, preparar a sala como uma espécie de salão, assim as
clientes ficariam confortáveis.
A ideia me pareceu maravilhosa e a tomei como se fosse
uma luz no fim do túnel. Precisaria me organizar para a nova vida
que estava por vir, e que seria do meu jeito, fazendo o que eu sabia
e gostava sem homem algum para impedir ou atrapalhar.
Quase perdi a hora para o sopão, por isso tomei um banho
rápido e fiz a caminhada de cerca de vinte minutos até a igreja
matriz. Não sabia bem o que encontraria, não depois do que tinha
acontecido mais cedo entre mim e padre Benício. Estava morrendo
de vergonha, na verdade. Ter agarrado o pau dele só fazia com que
me sentisse uma enorme pecadora, no mínimo, e me questionei
várias vezes se seria certo fazer qualquer coisa que tivesse a ver
com o catolicismo.
Mas ajudar o próximo independia de religião, por isso
simplesmente fui.
Cheguei dentro do horário combinado com Toninho, e
encontrei algumas freiras e o coroinha terminando de montar um
pequeno estande no pátio da igreja. Já tinha uma fila imensa
esperando começarem a servir a comida – gente que visivelmente
passava necessidade.
Nenhum sinal do padre Benício, para o meu alívio e, sendo
honesta comigo mesma, frustração. Não conseguia espantar a
vontade de vê-lo, porque observar aquele ser maravilhoso era um
acontecimento, ainda que ficasse confusa.
— Que bom que veio, dona Luísa. — Toninho me recebeu
com um sorriso no rosto. Estava vestido de maneira mais informal,
com uma calça jeans e uma camisa branca lisa. Fiquei satisfeita
porque escolhi uma roupa comum também, tomando o cuidado de
usar uma blusa preta para manter o luto que todos esperavam que
eu respeitasse. — A senhora pode ficar encarregada de partir e
entregar o pão? — Apontou para uma mesa adjacente onde várias
cestas de pão estavam dentro de sacolas. — É só cortar no meio e
colocar uma fatiade queijo e outra de presunto dentro. Pode colocar
essas luvas aqui. — Mostrou onde ficavam os alimentos e objetos
para garantir o asseio, e percebi que a tarefa era bastante simples.
— Claro, sem problemas.
— Se precisar de qualquer coisa, é só chamar algum de nós.
— Pode deixar!
Assenti com um sorriso e ele se afastou para coordenar o
que seria feitoem outra mesa. Rapidamente percebi que o tal sopão
não servia apenas sopa, como imaginei, mas uma grande variedade
de alimentos para consumo imediato, como se fosseuma ceia farta.
Gostei de estar ali, apesar de acanhada e me perguntando se veria
o padre naquela noite. Senti-me bem por fazer alguma coisa para
ajudar. Fazia algum tempo que não me considerava uma pessoa
útil, o que estava me matando por dentro nos últimos meses.
Alguns minutos depois, quando eu já tinha preparado uns
trinta pães, visualizei uma pessoa segurando duas caixas enormes
e de aparência muito pesada. Elas foram colocadas sobre a mesa
vizinha a que eu estava, e foi então que percebi que era o padre
Benício que as trouxera.
— Eu sabia que as caixas com as frutas estavam em algum
lugar... — comentou com uma das freiras, e em seguida ergueu o
rosto na minha direção.
Seu semblante se fechou visivelmente ao me encontrar ali,
por isso achei melhor virar o rosto e voltar a me concentrar no
serviço. Ao menos tentei, porque, de repente, parecia que eu tinha
duas mãos esquerdas.
— Ah, que bom que encontrou! — a irmã respondeu,
animada, mas padre Benício nada mais falou,e sentia que seu olhar
ainda estava sobre mim. Foi inevitável que meu rosto esquentasse
de vergonha.
Não deixei de perceber que se vestia de uma maneira
normal. Quero dizer, sem batinas ou elementos religiosos, apenas
uma calça escura e uma camisa azul de manga comprida, que não
condizia com o calor que fazia naquela noite. O padre certamente se
escondia por dentro das vestes, talvez para não chamar a atenção,
mas o fato de ter carregado aquelas caixas pesadas e o tecido
levemente esticado na região dos bíceps não o deixava negar: ele
era sarado, sim, senhor.
Eu não sabia o que fazer com essa informação e nem com o
fatode ter apalpado aquilo tudo mais cedo, mesmo que por cima da
batina. A reação natural do meu corpo foi simplesmente esquentar
entre as pernas, de modo que precisei de muito foco para não
transpirar ali mesmo, doida de tesão por ele.
Era uma necessidade que me controlasse.
Quando todas as mesas se organizaram, a distribuição
começou a ser feita e a fila passou a andar. As pessoas estavam
ansiosas e com medo de ficarem sem nada, mas era o que
acontecia quando a fome batia: o desespero vinha à tona. Respirei
fundo e tentei ser solícita, entregando não apenas o pão, mas
também um sorriso acolhedor e palavras carregadas de gentileza.
Não me considerava uma pessoa muito caridosa, mas havia
bondade e compaixão em mim o suficiente para oferecer a alguém,
e foi aquele lado meu, há bastante tempo escondido, que explorei
durante aquela ação.
Passamos horas entregando comida, e parecia que cada vez
mais chegava gente sabe-se lá de onde. A impressão que tive foi
que a cidade toda tinha vindo pegar alguma coisa. Fiquei esgotada
conforme o tempo passava e o trabalho prosseguia, mas, enfim,
quando notei que não havia mais ninguém no pátio, soltei um longo
e exausto suspiro.
A equipe começou a desfazer as mesas como se estivessem
bastante acostumados com aquilo.
— O que eu faço agora? — questionei quando Toninho
passou por mim, visto que padre Benício não se aproximou de jeito
nenhum. Podia entendê-lo. Era prudente que se afastasse. A doida
ali poderia atacá-lo de novo.
— Pode ir embora ou... Se puder, ajudar a guardar as
coisas... Será rápido.
— Eu ajudo, então. — Não havia trazido celular ou relógio,
com medo de ser assaltada, embora Paraíso não fosse exatamente
perigosa, portanto não tinha noção de horário. Mas, se eu já estava
ali, então que ao menos concluísse a tarefa.
— Pois bem, vamos levar tudo para um galpão por trás da
igreja, vem comigo.
Toninho me mostrou o que o pessoal estava fazendo e eu
ajudei. Não sabia que o terreno era tão grande, mas foi o que
constatei ao circulá-lo várias vezes, indo com materiais e voltando
com as mãos vazias para pegar mais. Havia construções ao redor
que imaginei que fossem o lar das freiras e do padre, porém não
ousei fazer perguntas.
Terminamos de guardar tudo em minutos, já que os demais
voluntários pareciam acostumados e sabiam o que fazer. Por fim,
avistei todo mundo trocando saudações e indo embora, o que me
fez travar porque só então me dava conta de que teria que voltar
para casa sozinha, no escuro, tarde da noite. Paralisei na calçada
da igreja.
Respirei fundo e olhei para trás ao escutar o barulho do
grande portão de ferro sendo fechado. Ele era vazado, todo
adornado, e por isso pude observar o padre Benício enrolando
correntes grossas e pesadas para, enfim, fechar a igreja.
O fatode ele ter ficadodo lado de dentro me trouxe a certeza
de que sua moradia era uma das que eu tinha visto dentro do
terreno.
— Boa noite — foi a única coisa que falou, num tom baixo e
sem me olhar. Deu para perceber que só fez isso por pura
educação, pois só havia sobrado nós dois ali.
— Boa noite... — murmurei e achei melhor voltar para casa
de vez.
A passos largos, atravessei a rua mal-iluminada e deserta,
morrendo de medo até da minha própria sombra. Àquela hora, aos
sábados, somente os bares e o hospital central ficavam abertos, o
restante simplesmente era tragado pelo breu e parecia que não
existia ninguém na cidade. Até as residências já estavam com as
luzes apagadas.
Com o coração acelerado, venci os quarteirões um a um, e
poucos minutos depois fui tomada pela sensação esquisita de ser
perseguida. Não ousei olhar para trás. Em vez disso, apertei o
passo, apavorada, achando que seria a próxima vítima. Cada
sombra projetada nas vielas me causava pavor, porque minha
mente desenhava um monstro, um vulto ou, na pior das hipóteses, a
figura de um homem.
Comecei a ofegar na metade do caminho, tentando me
acalmar por estar passando em frenteà casa do prefeito,de longe a
melhor construção da cidade, onde provavelmente deveriam ter
câmeras. Porém, foi naquele instante que ouvi o som de passos
logo atrás de mim. Simplesmente me desesperei.
Sem conferirnada, virei a esquina sombria num impulso e me
apoiei na cerca do prefeito,percebendo o quanto tinha sido idiota ao
tentar me esconder num local ainda mais macabro. Aquela viela era
de mão única e, do outro lado, havia apenas um matagal onde eu
facilmente poderia ser levada, molestada e assassinada. Os
cenários que se formavam na minha cabeça eram um pior do que o
outro.
Em desespero, abri minha bolsinha de mão e retirei o spray
de pimenta velho que sempre levava comigo a pedido de Samuel,
mas que nunca usei na vida e sequer sabia se ainda funcionava.
Devia ter passado da validade, e eu não sabia se isso me ajudaria
ou atrapalharia.
O vulto se aproximava, foi o que constatei ao reparar as
sombras provenientes da viela transversal. Apertei os punhos,
pronta para atacar assim que o criminoso desse as caras. Empunhei
o spray, preparei-me para o ataque e, no instante em que a sombra
se transformou na figura de uma pessoa, apertei-o bem onde achei
que o rosto dela estava.
— Ahh! — Ouvi um grito masculino e continuei apertando em
desespero, como se usasse inseticida numa barata asquerosa,
enquanto ele tentava se desvencilhar do meu ataque.
Até que, segundos depois, reparei que o homem se tratava
de ninguém menos do que o padre Benício. Meu Deus. Não bastava
levar o pobre para o mal caminho, ainda enfiava pimenta em seus
olhos?
— Padre! — Joguei o spray ao longe e me aproximei para
socorrê-lo. As mãos dele se mantinham no rosto, tentando enxugar
o líquido que escorria. — Oh, meu Deus... Me desculpe, padre, eu...
E-Eu...
Não sabia o que fazer ou dizer, até que me lembrei que
também costumava guardar um lenço e o encontrei na bolsa.
Praticamente enfiei o tecido na cara do padre, que o segurou na
tentativa de se limpar.
— Jesus, o que foiisso? Arde! — ele perguntou, visivelmente
tentando conter os espasmos. Sua respiração se mantinha errática.
— Spray de pimenta... — comentei, tocando-o no rosto e
tentando observar se ele continuaria enxergando ou se eu o tinha
cegado de vez. Rezava mentalmente para não ser responsável por
uma possível deficiência do padre Benício.
— O que... — Ele ia perguntar alguma coisa, mas parou e
afastou o lenço para tentar enxergar. Seus olhos piscavam muito e
lacrimejavam perigosamente. O coitado não conseguiu passar
sequer um segundo sem o lenço, precisou cobrir a face de novo.
— Desculpa, padre, eu pensei... Pensei que fosse o
assassino. Senti que estava sendo seguida e...
Ele escorou o corpo enorme na cerca atrás de si e suspirou,
com o lenço ainda sobre os olhos bonitos, que naquele momento
deveriam estar vermelhos.
— Não se preocupe, a culpa foi minha. — Ainda que
estivesse em sofrimento, a voz continuou saindo gentil e doce. No
lugar dele, eu já teria soltado milhões de palavrões. — Não avisei
que a acompanharia até em casa.
Pisquei os olhos como ele fizera a pouco, estarrecida.
— O senhor... O senhor estava... me acompanhando até em
casa?
A pergunta ficouno ar. Padre Benício não respondeu, apenas
continuou esfregando o tecido na face e tentando recuperar a
compostura, mas sem muito sucesso. Estava escuro ao nosso
redor, de forma que eu o enxergava muito pouco, sob a luz fraca da
lua e de um poste próximo.
Depois de instantes que me pareceram eternos, ele se
explicou:
— Não achei prudente que voltasse só. Mas não quis
constrangê-la com a minha presença, então... — Parou. Esperei que
prosseguisse, mas o padre não comentou mais nada e continuei o
olhando sem acreditar.
Por dentro, meu coração se esquentava tanto quanto o ponto
abaixo do meu umbigo. Era muita gentileza da parte dele me
acompanhar, e mais ainda não querer que eu me incomodasse com
isso, o que nunca aconteceria. O contrário, talvez. A verdade era
que eu gostava de tê-lo perto. Foi uma constatação perigosa, que
me trouxera muita confusão.
— Nós temos que sair daqui. — Olhei para a viela tomada
pelo breu. Ainda faltavam alguns quarteirões, e só de pensar no
padre voltando sozinho depois de me deixar, eu não me sentia legal.
Ele não enxergaria um palmo diante de si. — O senhor precisa
colocar água nos olhos. Vou te guiando até a minha casa.
Segurei a cintura dele, mas padre Benício se afastou num
impulso, uma defensiva que me fez acreditar que eu era mesmo
uma maldição.
— Não... Não precisa, eu...
— Claro que precisa, o senhor não está vendo nada. — Voltei
a me aproximar lateralmente e circulei o braço por aquela cintura
forte, máscula, recheando sua roupa comum. Precisei respirar
fundo.
Começamos uma caminhada lenta, porque o homem estava
totalmente às escuras. Depois de um grande esforço, só tínhamos
andado até a metade daquela face da cerca, o que começava a me
apreender. Contudo, o medo de ser atacada havia amenizado,
afinal, quem em sã consciência faria alguma maldade com um
padre? Quem estava mais perto disso era eu. Estaria protegida ao
lado dele, sem dúvida.
Foi pensando nisso que comecei a escutar vozes do outro
lado da cerca. Poderia tê-las ignorado, já que ali deveria ser o
quintal da casa do prefeito, mas o conteúdo me chamou a atenção
imediatamente, de forma que paralisei:
— Você tem a ver com a morte daquele homem? — O timbre
era feminino.
Padre Benício virou o rosto, com os olhos cerrados pelo
lenço, na minha direção, como se questionasse o motivo de eu ter
estacionado.
— Claro que não... Não fiz nada. É o que pensa de mim?
Que sou um assassino? — A segunda voz era de um homem, e
parecia decepcionado pela acusação.
O padre fez menção de abrir a boca, mas o interrompi
colocando um dedo sobre aqueles lábios. Foi uma péssima decisão.
Eu poderia viver minha vida numa boa sem sentir a maciez dele e
daquela barba que me excitava demais. Porém, o foco era no que
acontecia por trás da cerca, não nos meus pecados acumulados.
— Não. Mas eu precisava perguntar — a mulher respondeu.
— Olha... A gente... Não pode se encontrar de novo. Temos que
parar com isso, antes que algo ruim aconteça. É arriscado demais.
Alguns segundos de silêncio foram feitos, e olhei para o
padre quieto ao meu lado, com o corpão grudado no meu. Levei-o,
suavemente, para perto da cerca, encostando-nos para ouvir melhor
aquela conversa intrigante. Padre Benício não pestanejou,
continuou mudo e, se pudesse, certamente estaria me olhando com
curiosidade.
— Não vai acontecer. Não fizemos nada com aquele
homem... Foi uma coincidência. — O cara não estava satisfeitocom
o rumo da conversa, e a minha curiosidade só se intensificava.
Esgueirei o rosto até alcançar o ouvido do padre. Movimento
imprudente até demais, porém não tive escolha e precisei lidar com
o cheiro dele tão próximo ao meu nariz. Não foi nada legal. Quero
dizer, foi mais legal do que devia.
— Faz apoio com as mãos, preciso ver quem são essas
pessoas... — sussurrei ao seu ouvido, bem baixinho.
— O quê? Não, eu...
— Shhhh... — Voltei a enfiar o dedo indicador sobre seus
lábios, pois a voz dele soou um pouco mais alta. — Padre, eu
preciso... Eles estão falando do Samuel.
Padre Benício chacoalhou a cabeça em negativa, refletindo, e
com os olhos ainda cerrados por causa do spray, puxou a minha
cintura. Por um instante, fiquei sem saber o que ele faria e me
assustei, porém logo meu corpo foi projetado para cima como se eu
não pesasse absolutamente nada. O homem simplesmente me
ergueu e apoiou meu traseiro entre o peitoral e o ombro. Se alguém
nos visse daquela forma, com certeza teria muitas perguntas a
fazer.
Fiquei chocada com aquele movimento e a cabeça
desenvolveu milhões de caraminholas, porém, como consegui
alcançar o final da cerca e observar o que havia do lado de dentro
do terreno, tentei me concentrar em não ser vista e reparar no que
estava acontecendo de fato.
Uma mulher e um homem estavam frente a frente, no meio
de um jardim, sendo que ela se mantinha escorada na face lateral
da cerca, enquanto o cara se esgueirava praticamente sobre ela.
Semicerrei os olhos para tentar ver de quem se tratava. Imaginei
que poderia ser o mesmo casal da fotografiaque estava nas coisas
de Samuel, e busquei semelhanças de imediato. Não as encontrei,
embora estivesse um pouco escuro por ali.
— Não me deixe sem você... — o homem dizia, tocando a
mulher em carícias bem intensas. — Acha que posso ficarsem essa
sua bocetinha apertada?
Meus olhos arregalaram e acreditei que o padre tivesse
surtado um pouquinho com aquele papo, porque se moveu
perigosamente e precisei me apoiar na madeira da cerca para não
cair. Ele retomou o controle, mas ter consciência de seu corpo
grande me erguendo não me fez nada bem. Começava a ficar
excitada demais com todo o perigo envolvido e os estímulos ao meu
redor.
— Não falaassim... Eu não quero parar, mas isso está errado
— a mulher prosseguiu, recebendo cada carícia sem desviar. — Um
homem morreu depois de ter nos visto. E se alguém... E se...
— Ei... Já falei que não tive nada a ver com isso.
Ela o olhou com certa descrença, mas soltou o ar dos
pulmões e envolveu os braços ao redor do pescoço do homem,
dando-se por vencida. Comecei a identificá-los, pois meus olhos se
acostumavam mais com a penumbra. E, quando percebi de quem
se tratavam, fiquei surpresa e ainda mais interessada.
— Estamos perdendo tempo... — o homem disse, afundando
o rosto nos ombros dela e distribuindo beijos quentes. Fiquei ainda
mais passada. — Quero me afundar em você, agora. Não consigo
esquecer como é te comer todinha.
Começaram a se beijar e não foi um movimento delicado ou
mesmo inocente. Pelo contrário, pareciam comer um ao outro, um
beijo intenso, profundo, com muitos toques e tesão. Uma paixão
avassaladora, sem dúvida.
Apertei minhas coxas uma na outra, consciente do ombro do
padre logo abaixo do meu centro. A quentura se espalhou bem ali,
de forma que já não conseguia mais me conter. Observar aquele
casal improvável só piorava a situação, e se agravou quando o cara
girou a mulher e começou a roçar na bunda dela. Soltei um ofego
inaudível.
Padre Benício se mexeu de novo, tentando me descer dali.
Travei, segurando na cerca para que ele não fizesse isso, porém
não teve jeito; fui colocada no chão em dois tempos. Olhei-o assim
que me coloquei a sua frente. O pobre ainda mantinha os olhos
fechados e o lenço na mão. Continuei o encarando.
— Temos que sair daqui, antes que... — ele sussurrou, mas
parou, visivelmente constrangido. Atrás da cerca, consegui ouvir um
gemido fraco, capaz de me despertar. Padre Benício devia ter
ouvido também, porque prendeu os lábios e os punhos.
Aproveitando que ele não estava vendo nada mesmo, desci o
olhar para o ponto entre suas pernas. Queria saber se ele tinha,
como eu, se excitado também, mas nada consegui enxergar porque
estava muito escuro e a calça jeans dele era preta. Claro que não
ousei o apalpar de novo. Ainda não tinha perdido completamente o
juízo.
Envolvi meu braço na sua cintura novamente e voltei a nos
guiar para longe dali. Daquela vez, padre Benício andou mais
rápido, ainda que meio sem saber para onde estava indo. O fato de
ter perdido a visão era um agravante e eu comecei a ficar com medo
de sermos pegos naquela situação inusitada. Esperava que, àquela
hora, ninguém nos visse lado a lado no meio da rua.
Deixamos a casa do prefeito para trás e só tive coragem de
falar qualquer coisa depois de uns três quarteirões, quando já
estávamos perto da minha residência.
— Aqueles dois... — Arquejei, lembrando-me da pegação que
ainda devia estar rolando. Morria de inveja. — O senhor se lembra
dos irmãos de família rica que chegaram à cidade recentemente?
Um todo esquisito e problemático e o outro bem certinho, estudioso?
— Hum... — Padre Benício refletiu um pouco. — Lembro,
sim. As pessoas comentam muito sobre eles. São estudantes na
Universidade, não é?
A fofoca corria solta em Paraíso toda vez que alguém
diferente chegava. Aliás, eu sabia pelo menos duas ou três coisas
que não deveria saber de cada um daquela cidade, por pura
capacidade de compartilhamento de informações que aquele povo
tinha.
— Isso. Moram numa baita casa ao lado da do prefeito.
Bom... — Forcei para que continuássemos andando na viela
deserta, e ele me acompanhava. Percebi que tentava não se
aproximar muito, embora precisasse de meu apoio. Tê-lo tão
próximo era algo em que eu estava tentando não pensar, para não
enlouquecer. — A esposa do prefeito, nossa primeira-dama Diana
Teixeira, era a mulher atrás da cerca.
Padre Benício assentiu como se estivesse acostumado com
uma notícia daquelas.
— Imagino que o homem não seja o prefeito, mas um dos
irmãos que moram ao lado. E, claro, certamente o problemático —
supôs, com o rosto agravado.
Suspirei.
— Não. Era o certinho.
— Jesus Cristo. — Padre Benício ofegou, surpreso.
Achei sua reação meio engraçada, e embora estivéssemos
numa situação apavorante, soltei uma leve risada. Eram muitas
informações para compreender, mas naquele instante só queria
chegar a casa.
Alguns minutos de silêncio depois, abri o ferrolho do portão
sem avisar nada ao padre e praticamente o empurrei para dentro,
fechando-o logo em seguida e tomando o cuidado de observar se
havia alguém na rua.
Ninguém.
— Chegamos? — ele perguntou, aturdido, passando as mãos
nos olhos e tentando abri-los, porém sem muito sucesso.
— Sim. Venha, padre, vamos cuidar desses olhos.
Segurei a mão dele para puxá-lo, mas padre Benício
paralisou. Estacionei junto com ele, girando para o encarar. Estava
visivelmente nervoso.
— É melhor eu voltar para a igreja, agora que está segura.
Podia entender sua hesitação. Ele estava com medo que eu
o atacasse de novo. Mas não faria aquilo novamente, porque...
Porque era errado para cacete. Mal podia acreditar que estava
vivenciando umas situações como aquelas logo com um padre.
Não tinha o menor cabimento.
— O senhor não vai conseguir voltar desse jeito. — Aquela
verdade nos deixou em silêncio durante um tempo. Ele parecia
quase desesperado. Era inevitável que ficasseum pouco, ao menos
até se recuperar. — Juro por Deus que... — pausei, envergonhada.
Diminuí o tom de voz. — Que não vai acontecer nada. Vou me
comportar.
— A grande questão, Maria, é que eu... — Engoliu em seco.
Em seguida, desistiu do que falaria, deixando-me numa curiosidade
absurda. — Tudo bem. Será rápido, não a incomodarei mais do que
o necessário.
Ele se moveu para frente, pois resolvera entrar de vez na
minha casa. Guiei-o para dentro sem entender direito como me
sentir com relação a tudo. O fato de ele estar com roupas comuns
me faziacair na ilusão de que era um homem normal, alto, grande e
gostoso, e eu estava ensandecida, fora do meu juízo. Vê-lo era
difícil, senti-lo perto era um martírio. Uma tentação.
Deus, livrai-me desse mal que só cresce entre minhas
pernas.
Seria muito difícil manter o juramento.
PARTE 5
Não nos deixeis cair em tentação

Padre Benício

Deus conhecia todos os meus esforços para continuar


ajuizado e me manter distante de Maria Luísa. Depois do acontecido
na sacristia, entrei em meditação na pequena capela e só saí de lá
horas depois – ignorando boa parte de meus compromissos do dia
–, quando me senti bem o suficiente para não ser perturbado pelas
emoções inadequadas que senti diante do toque dela.
A princípio, briguei comigo mesmo, questionei a minha fé, os
meus votos e o meu propósito, mas depois de um tempo, a calma
foi se achegando. Percebi que não adiantaria colocar em dúvida
toda a missão, se havia me aceitado como um pecador e, como tal,
propício a erros, a falhas. Eu sabia o que fazer porque a Bíblia era
bem clara: “se a tua mão direita te fizerpecar, corta-a e lança-a de
ti” (Mateus 5:30).
Aquele trecho era bastante mal interpretado pelos fiéis e,
muitas vezes, tomado ao pé da letra, o que não fazia muito sentido
porque Deus não quer que nos machuquemos. Pelo contrário, Ele
quer o nosso bem. Porém o mal, aquilo que faz pecar, precisa ser
aniquilado e afastado, evitado a todo custo.
Eu não faria nada ruim a mim mesmo ou a Maria Luísa, pois
necessitava perdoá-la e me perdoar também, mas certamente
deveria evitar qualquer contato, porque um simples gesto poderia
ser muito perigoso para nós dois. Era prudente que me distanciasse,
parasse de nos colocar em situações como as mais recentes.
Apenas daquela forma eu obteria o perdão divino e continuaria com
meu propósito sem culpa.
Só que tudo foi por água abaixo a partir do instante em que,
depois de tê-la ignorado com sucesso durante toda a noite, vi seu
olhar amedrontado e vacilante ao perceber que voltaria para casa
sozinha, na escuridão. Maria Luísa estava temerosa e eu temi por
ela também. Se alguma coisa acontecesse, jamais me perdoaria,
por isso arrisquei o que me propus a fazer na intenção de garantir
sua integridade durante o retorno.
Decidi não a avisar que estaria por perto, afinal, ainda que
estivesse apavorada, o importante era que nada de fato
acontecesse. No fim, tudo daria certo, porque eu não permitiria que
algo a atingisse. Mas me manter nas sombras foi o meu maior erro.
Aquela mulher era inteligente e guerreira demais para não perceber
minha presença e não buscar uma reação efetiva diante do cenário
que lhe parecia assombroso. Por outro lado, se tivesse avisado
desde o princípio, ela seguiria ao meu lado durante todo o percurso,
o que nos traria uma aproximação que eu considerava inadequada.
Pois bem, lá estávamos nós em outra situação extremamente
inadequada, e nada pude fazer para atenuar ou me afastar de vez.
Sem conseguir ver um palmo à minha frente, após ter sentido sua
pele, calor, sussurros ao pé do ouvido e toda a agitação dela diante
do que acontecia na cerca da casa do prefeito, já não estava mais
conseguindo pensar com clareza. Maria Luísa me levava pelas ruas
da cidade e eu me sentia guiado rumo à forca.
Adentrei a casa dela por pura falta de opção; precisava ao
menos lavar o rosto e me livrar da ardência que fazia meus olhos
lacrimejarem sem freios. Não esperava ser atacado daquele jeito.
Se pensasse melhor no acontecido, começaria a rir de sua atitude,
só que a preocupação era tanta que me mantive sério demais.
— O banheiro é aqui, padre — Maria Luísa disse ao me
ajudar a atravessar sua residência, depois de jurar que se
comportaria. O problema todo era que eu não me sentia equilibrado
o suficiente, mesmo depois de ter passado tanto tempo em oração.
Reparar o olhar dela sobre mim mais cedo, ainda durante a
entrega de alimentos, simplesmente removeu toda a tranquilidade
que consegui, a duras penas, reunir dentro do meu coração. Ela me
afetava demais, de modo que compreendia que, realmente, não
haveria outra maneira a não ser o distanciamento completo entre
nós.
Ela me soltou e fechei a porta do banheiro para que fosse
obrigada a se manter afastada, além de me dar certa privacidade.
Abri a torneira da pia e joguei uma quantidade abundante de água
em meu rosto, percebendo que estava funcionando. A ardência
passava pouco a pouco. Consegui abrir os olhos depois de um
tempo; estavam muito vermelhos e irritados, constatei ao me olhar
no espelho, mas já conseguia pelo menos voltar à igreja.
O meu tempo ali seria curto.
Lavei o lenço de tecido que Maria me emprestara e o deixei
estirado na pia, para que secasse. Não precisaria mais dele. Ajustei
minha camisa de mangas compridas no lugar, pois tinha entortado
depois que a segurei nos braços, e, enfim, saí do banheiro.
Devagar, caminhei pelo corredor até retornar à sala, onde ela me
aguardava sentada no sofá. Não se levantou quando me viu,
apenas me encarou como se a culpa a dominasse por ter me
deixado daquele jeito.
— Obrigado, Maria. Eu já vou. — Dei mais uns passos para
frente, então ela finalmente se levantou.
— Espere, padre Benício. Temos que... — Suspirou. —
Temos que conversar sobre o que vimos. Quer dizer, sobre o que eu
vi. E o que o senhor escutou. — Ela fezum muxoxo com os ombros,
e percebi que o rosto bonito corou um pouco.
Evitou me olhar, porém eu, ao contrário, não consegui desviar
o rosto.
— Não tem o que ser conversado, eu acho. — Coloquei as
mãos nos bolsos da calça. — Claro que você não deveria dizer a
ninguém o que descobriu. Não é bom fazer esse tipo de fofoca.
Maria Luísa finalmente me encarou, parecendo ofendida.
— Não vou espalhar a fofocapor aí, padre, não sou dessas.
Odeio isso. É só que... — Voltou a suspirar. — Diana Teixeira parece
confiar naquele cara, mas eu, não. Ele disse que não tinha nada a
ver com a morte de Samuel, só que não acredito nisso.
O problema de Maria Luísa era querer solucionar uma
questão que não era de seu dever ir atrás. Todas aquelas
informações deveriam ser passadas para o delegado da cidade,
pois ele saberia o que fazer e ajudaria nas investigações.
— Vá à delegacia amanhã mesmo — aconselhei, num tom
ameno, para que ela se tranquilizasse e parasse de agir assim.
Podia ser perigoso. Sem querer, havíamos descoberto um
escândalo que, caso viesse à tona, traria consequências para toda a
população. — Entregue aquelas coisas que me mostrou e falesobre
o que viu. Só assim algo poderá ser feito.
Maria bufou e revirou os olhos. Deu as costas por alguns
instantes e voltou a se sentar no sofá.Sua atitude deixava claro que
queria que eu me sentasse também. Foi o que fiz, porém me
mantendo o mais distante possível, do outro lado. Não queria me
demorar, por isso mal me concentrava no que ela dizia:
— Posso enrolar uma corda no meu próprio pescoço ao fazer
isso, padre Benício. Já expliquei ao senhor, o delegado Moura só
quer um motivozinho para prender uma mulher sozinha, sem família,
e forasteira na cidade. Uma forma rápida e prática de solucionar o
crime que todos esperam que ele solucione. — Fez uma pausa para
refletir. — Não... Serei mais esperta do que isso. Samuel estava
fazendo besteira e, quem quer que o tenha matado, fez isso de
forma calculada. E eu vou descobrir quem foi.
Maria ergueu o rosto na minha direção e manteve o olhar
firme, seguro, sobre mim. Suspendi a respiração por alguns
instantes, mas depois expirei e tentei pensar no que ela tinha
acabado de falar. Era mais preocupante do que eu imaginava.
— Você entende o quanto isso é perigoso? Descobrir,
sozinha, um assassino? — Balancei a cabeça em negativa.
— Eu não estou sozinha. — Assim que falou tais palavras, o
olhar dela pareceu modificar instantaneamente. — O senhor estava
lá.
Franzi o cenho, confuso.
— Maria, eu... Eu nem deveria estar lá. Nem mesmo aqui. —
Apontei para o piso lustrado. — Seja o que for que espere de mim,
não posso oferecer.
Ela se demorou mais um pouco em mim, fixando um par de
olhos escuros que me deixava meio inerte. O que falei servia para
todas as situações imagináveis que tivesse circulado pela cabeça
dela. Não era certo que continuássemos nos encontrando em
situações malucas, nem em nenhuma, aliás.
— Não me chame assim — murmurou, finalmente, sem
desviar o rosto. — O senhor fazde propósito, não é? Maria, mãe de
Jesus e tals... Bom, padre, não sou tão inocente. A cidade toda me
chama de Luísa e o senhor sabe disso.
— Foi como se apresentou a mim. Maria Luísa. — Dei de
ombros. Era certo que eu tinha escolhido chamá-la pelo primeiro
nome com um propósito, mas que realmente só piorava a situação
em que havíamos nos enfiado. — Achei que era um nome grande
demais e...
Parei quando soltou bastante ar dos pulmões, como se
duvidasse seriamente de mim. Eu me considerei um tolo, por isso
me calei e assim permaneci. A nossa troca de olhares prosseguiu
em silêncio, e eu não soube o que fazer, então me levantei a fim de
acabar logo com aquilo. Já sabia perfeitamente que ficar calado
olhando para ela não resolveria nada.
Não havia dado uma chance a mim mesmo para logo em
seguida jogar tudo pelos ares, como se tanto esforço de nada
valesse.
— Já consigo voltar à igreja. Obrigado por... — Eu não soube
bem pelo que deveria agradecer, pois ela tinha causado tudo aquilo,
ainda que sem querer. — Por tudo. Passar bem.
— Espera, eu... Desculpa, padre. Estou exausta e com medo
do que pode acontecer. E me sentindo muito sozinha... — Ela se
levantou, colocando-se à minha frente.Dava para perceber que não
estava nada bem, de fato. — Deixei água esquentando para um
chá. Já deve ter fervido. Vou buscar e então retomamos a conversa
sobre o assassinato. Quanto ao meu nome, o senhor pode me
chamar do que desejar.
Ela passou por mim e pensei em segurar a sua mão para
deixar claro que eu deveria ir embora o quanto antes, mas me
pareceu muito pior encostar sequer um dedo nela. Não seria
prudente. Além do mais, era desfeita não aceitar tomar nem um chá
e ainda a deixar com aquela ideia de bancar a detetive num caso de
extrema seriedade. Maria Luísa necessitava esquecer aquilo tudo e
seguir em frente do jeito correto, do contrário poderia acabar morta.
A ideia me apavorou tanto que me empertiguei de verdade.
Ela corria perigo, de algum modo. Se Samuel estava ameaçando
alguém, e esse alguém o matou, então também estava visada. O
assassino poderia achar que ela sabia de alguma informação que
não devia – talvez até a estivessem observando de longe. Maria
parecia entender isso muito bem, talvez por esse motivo tivesse
ficado com medo de voltar para casa sozinha.
Fiquei espantado com meus próprios pensamentos, e me
restou fazer uma pequena oração aos anjos, para que guiassem e
protegessem aquela alma desamparada. Andando de canto a outro
da sala, enquanto refletia e finalmente compreendia a gravidade da
situação, decidi ir à cozinha para dizer que estaria ao lado dela para
o que precisasse.
Afinal, os meus pecados e falhas não podiam se sobressair
ao dever de proteger e ajudar o próximo, sobretudo quando eu sabia
que tanta coisa estava em jogo. A ideia de me distanciar ficariapara
depois, porque nada era mais importante do que garantir a vida de
uma pessoa.
— Luísa, eu... — Atravessei o portal que dava para a
cozinha, porém, no mesmo instante, ela vinha com uma bandeja e
duas canecas fumegantes em cima.
O choque foi inevitável, simplesmente nos trombamos.
Parecia que aquela mulher tinha sido feita para me atordoar e tirar
dos eixos, porque o conteúdo das canecas viraram a toda
velocidade, atingindo-me bem no tórax. Elas rolaram pela bandeja,
mas Maria Luísa conseguiu salvá-las antes que fossem ao chão.
Nada pôde ser feito com a minha camisa, no entanto. O
líquido fervente me atingiu e precisei agir rápido, afastando-a da
pele para não me queimar. Não funcionou muito. Ele continuou
escorrendo, até que ouvi gritos estridentes perto do meu ouvido:
— Tira! Tira! Tira! — Luísa vinha ao meu socorro, com a
bandeja ainda em mãos, quase desequilibrando, porém, preocupada
comigo.
Não tive alternativa. Foi reação involuntária me livrar da
camisa de uma só vez, removendo-a por cima da cabeça antes que
uma tragédia acontecesse e, além dos olhos vermelhos, saísse dali
com a barriga queimada. Com certeza teria que ir ao hospital,
porque seria uma queimadura e tanto.
Joguei a camisa no chão na maior velocidade, com o peito
subindo e descendo pelo susto. Por longos instantes, nós nos
encaramos em pleno espanto. Mal dava para acreditar que eu não
só ainda estava na casa daquela mulher depois de tudo, como
também estava ali parcialmente despido.
Aconteceu tão rápido que sequer consegui entender.
Com movimentos vagarosos, Luísa deixou a bandeja sobre a
bancada na cozinha e voltou a me olhar, daquela vez de cima a
baixo. Sua boca prosseguiu meio aberta. Ela pegou um pano de
prato, ainda lentamente, quase em câmera lenta, e se aproximou
para colocá-lo sobre a minha pele, que não chegou a realmente
queimar.
Nada daquilo seria necessário. Contudo, eu não conseguia
me mover.
— Perdão... — murmurou, e reparei demais nos movimentos
de seus lábios rosados, carnudos, ao dizer aquilo. Seu choque se
intensificavaconformeme observava de mais perto, alisando o pano
sobre mim com cuidado e delicadeza.
Continuei mudo, imóvel, com os olhos arregalados.
Os dela quase saíam das órbitas a cada parte de mim que
conseguia visualizar. Além de ser incapaz de reagir, eu também não
soube o que sentir ou pensar, porque a minha mente sofreu um
apagão. Tornei-me um pedaço de nada diante dela, inerte, apenas
um corpo respirando ofegante.
Em algum momento Luísa simplesmente deixou o pano de
prato cair. Não ousei conferir o paradeiro do tecido, continuei a
olhando de perto. Ela ergueu uma mão visivelmente trêmula e
hesitou. Os dedos tremelicando se mantiveram alguns centímetros
afastados durante um tempo que não pude calcular, e perceber sua
hesitação me fez compreender que ela tinha ciência do quanto
avançar era errado.
Mas Luísa avançou mesmo assim.
A mão se derramou sobre a minha pele, e parecia tão quente
quanto o chá, por isso soltei um arquejo no mesmo instante. Ela
ofegou junto comigo, talvez sentindo a onda elétrica que me
percorreu por inteiro, como se todas as minhas terminações
nervosas se concentrassem ali, no ponto onde nossas peles se
encostavam.
O choque me fez dar um passo para trás, mas não havia
nada além de uma parede, que me deteve e tornou a pequena fuga
impossível. A tentativa de manter qualquer juízo se esvaía conforme
Maria Luísa aprofundava o toque sobre mim, colocando mais
pressão no mesmo local.
Seus olhos, outrora concentrados no meu peito, subiram para
o meu rosto e o percebi esquentando consideravelmente. Sentia-me
exposto, vulnerável, desprotegido diante da fatalidadeque acontecia
toda vez que me olhava daquele jeito. Havia muitas emoções
naquele olhar brilhante. Conseguia identificar o desejo como se
fosse uma entidade palpável rondando sobre nós, tirando-nos toda
paz.
— E-Eu... — ela tentou falar, mas parou e ergueu a outra
mão. Apalpou-me em cheio, e novo arquejo escapuliu entre os meus
lábios. Senti como se tivesse abandonado tudo o que eu era
naquele segundo. Não me reconheci diante dela.
Eu não poderia ser aquele homem.
Fechei os punhos enquanto Maria Luísa decidia o que fazer,
o que aconteceu mais rápido do que pude me preparar. As mãos
lentas e curiosas foram passadas do meu peito para o tórax,
atiçando cada reentrância. Só não me senti mais louco porque ela
voltou a analisar minha pele em vez dos meus olhos. Sua
curiosidade era marcante e me enchia de um sentimento
inominável, mas seja qual fosse, não permitia que eu me movesse.
Ela foideslizando os dedos suavemente, com uma calma que
me escapava, distribuindo arrepios por toda parte. As mãos subiram
para os meus ombros, e então deu um passo à frente, deixando o
corpo quase colado ao meu. Encarou-me de novo. Prendi os punhos
com mais força e parei de respirar, porque se o fizesse, não teria
volta.
Maria Luísa abriu a boca, que tremia como as mãos, porém
as fechou e encarou meu peito. Em um ínfimo segundo, talvez
tivesse pensado se faria mesmo o que fez. Deu para notar sua
reticência, mas o que sobrou para mim não foi nada além de uma
abocanhada no bico do meu peito. Ela abriu os lábios com fervor e
me tomou de uma só vez, fazendo com que meu ventre
contorcesse.
Só então notei o quão duro eu estava. A ereção queria
explodir em minhas calças, e o faria com facilidade se Luísa
continuasse me lambendo daquele jeito. Infelizmente, ou, sei lá, ela
não parou. A boca sedenta escorreu ao longo de minha pele, e o
trajeto foi acompanhado pelos movimentos com as mãos.
Ela me tocava, apertava, lambia e esfregava os lábios,
deixando-me completamente louco, ainda mais fora de mim do que
antes. Eu já não lembrava mais qual era o meu nome, só havia uma
pessoa que sabia que tinha se perdido, mas que agradecia por isso,
porque era delicioso.
Não deu para evitar sentir aquilo. Era muito, muito gostoso.
— Você... — Um pequeno rosnado escapou da boca dela.
Luísa mordeu a pele acima do meu peito, quase no ombro. Olhou-
me. — É... — Desviou o rosto e agarrou minha nuca com ambas as
mãos. Colocou-se de ponta de pé e simplesmente afundou a face
corada no meu pescoço. Arfeiruidosamente, e ela só se afastouum
pouco para completar a frase: — Uma delícia.
Voltou a se afundar ali e senti a língua quente e macia
circulando minha pele sensível, causando-me nova onda de arrepios
poderosos. Fechei os olhos por não suportar mais tanto estímulo.
Era muito para mim. Não estava me aguentando e começava a ter
noção de que me encontrava à beira de um precipício. Se eu não
parasse naquele momento, talvez não conseguisse parar nunca
mais.
Maria Luísa tinha se empoleirado em mim de um jeito
alucinante. Continuou me envolvendo em carícias absurdas,
beijando-me em pontos inimagináveis, até que segurou as laterais
do meu rosto e juntou nossas testas. Ela respirava tão ofegante
quanto eu. Lambeu os próprios lábios, como se me aguardasse,
mas eu não podia...
Quando achei que recobraria algum juízo, suas mãos
desceram arranhando as minhas costas, fazendo-mequase explodir
de tanto tesão.
— Luísa — implorei numa súplica que mais pareceu um
gemido, enfim,trocando a escolha do nome dela para não me sentir
mais sujo ainda.
Ouvir a minha própria voz me fez acordar, mas só um pouco.
Foi um instante ínfimo de lucidez, que me fez a empurrar para que
se afastasse de mim, talvez na última tentativa de não cair em
tentação. No entanto, o corpo dela estacionou com um leve impacto
na parede à frente,e como o meu havia ido junto, afinal,Luísa ainda
me segurava forte, parei sobre seu corpo.
Espalmei a parede ao redor dela como única opção para não
a tocar. Se a tocasse... Se me deixasse levar... Eu não queria
pensar nisso.
A mulher continuou agarrada a mim, olhando-me em
desespero visível.
— Eu não vou parar — sussurrou num choramingo, com o
hálito quente perto do meu rosto, atiçando-me. — Não consigo. Não
sou capaz. — Agarrou minha nuca com mais força, prendendo o
início dos meus cabelos em seus dedos e me fazendo ofegar
.
— Luísa... — Enfim, peguei seu queixo com uma mão e
apertei, obrigando-a a me encarar e, talvez, a entender o que estava
em jogo naquele momento. Seus olhos repousaram nos meus. —
Eu sou uma represa agora. — Usei o meu tom mais duro e firme.—
Se deixar romper, não terá volta. Serei inevitável.
Ela abriu um sorriso que poderia facilmente ser confundido
com a personificação de todos os pecados mais luxuriosos que
existiam. Prendi seu queixo com força diante de tamanha
desfaçatez. Como podia achar aquilo engraçado, se eu estava
quase enlouquecendo?
— Já estou transbordando faz tempo... — murmurou
praticamente sobre meus lábios, e puxou a mão que a segurava
para baixo. O movimento me causou certo choque, porém a
curiosidade falou alto e me deixei ir, até que percebi o que queria.
Luísa fez minha palma invadir dentro de sua calça jeans.
Agarrou-me a nuca com a mão livre, juntando-nos mais e se
apoiando em mim para abrir um pouco as pernas, permitindo que eu
adentrasse em seu centro.
— É justo que, dessa vez, você saiba como me deixa. Como
é martirizante o que faz comigo... — tornou a sussurrar, abrindo
aquele sorriso cretino que removia meu equilíbrio interno.
Meus dedos foram guiados ao seu ponto mais sensível e
quente, com o desejo ardente misturado à hesitação. Podia senti-los
trêmulos ao tocarem aquela carne macia e muito, muito úmida. Eu
me melei apenas ao afundar um pouco, e então me senti um passo
mais perto da queda. Um segundo depois, percebi que jamais sairia
dali sem me enterrar em Maria Luísa. Sem perceber, já tinha sido
empurrado.
Seria impossível evitar, depois de senti-la tão profundamente.
Apertei mais a região já inchada, sedenta, gotejante, e
agarrei seu rosto com a outra mão, empurrando-a contra a parede
de uma vez por todas. Dois dedos a penetraram sem freios, e me
deliciei com o gemido alto que irrompeu dela. Retrocedi uma vez e
empurrei novamente, olhando bem para sua expressão, que
começava a se contorcer de prazer.
— Eu avisei — informei em tom baixo e sério.
Em seguida, puxei seu rosto contra o meu e juntei nossos
lábios em um beijo cru. Se já estava caindo, que ao menos
aproveitasse a queda. Lá no fundo, sabia que o impacto me
destruiria.
PARTE 6
Ardendo em chamas

Maria Luísa

A promessa de me comportar foi jogada ao chão junto com a


camisa de padre Benício. Depois de vê-lo sem ela, o meu corpo
agiu sozinho; uma força descomunal e eletrizante guiou meus
movimentos sem que eu conseguisse recuar, sem que encontrasse
forças para não cometer uma estupidez. Sequer me lembrei de
quem ele era, para mim, não passava de um baita homem gostoso e
sarado na minha frente.
O que eram aqueles músculos, meu Deus? Todos tonificados,
firmes,na medida certa para me enlouquecer. Quase não acreditava
no que os meus olhos viam e precisei, de verdade, tocar aquilo tudo,
sentir como era, apalpá-lo para conferir se era de verdade.
Já imaginava que fosse daquele jeito, mas não tão perfeito
assim. Conforme o acariciava e percebia sua quentura e maciez,
ficava mais louca para ir além, para avançar, até que se tornou
impossível encontrar qualquer controle.
Avisei a ele que não podia, deixei claro que não tinha a
menor capacidade de me afastar, e, pelo visto, padre Benício
compartilhava do sentimento, porque nada mais justificaria os seus
lábios sobre os meus naquele instante, nem mesmo os dedos
ligeiros atiçando a minha vagina com habilidade.
Não precisei nem de um minuto completo para entender que
ele já tinha feito aquilo antes, e não apenas isso, havia repetido o
suficiente para se tornar bom. A experiência ficava mais perceptível
conforme avançava em minha boca, circulando a língua com
exigência e precisão, deixando-me sufocada com ele todo sobre
mim, imprensando-me naquela bendita parede.
Achei que me sentiria esquisita, errada, uma pecadora
dissimulada, mas naquele momento não senti absolutamente nada
além do tesão, e não quis nada além de que ele avançasse mais e
me fizesse dele de uma vez. Estava ansiosa para senti-lo
profundamente, porque sabia, em meu íntimo, que aquele erro
tremendo valeria a pena. Por isso, não ousei me arrepender antes
do tempo. Talvez jamais me arrependesse.
Os dedos puxaram minha lubrificação para o clitóris e o
circularam numa constância que exigia dele, no mínimo, algum
conhecimento de causa. A forma como me atiçava era surreal, e o
fato de ser capaz de fazer aquilo comigo enquanto me beijava sem
pausas me deixou sem opção. Não tive saída, só me restou gozar
ruidosamente nos dedos dele, tomada por aquele desejo insano,
desmedido e muito inapropriado.
Eu não soube nem o que gritar, quando explodi. Chamá-lo de
padre me pareceu uma coisa suja, despropositada. E nunca tinha o
chamado pelo nome como se ele fosse um cara normal, por isso só
consegui gemer e gemer, mais alto e estridente, enquanto me
contorcia e o puxava para se afundar em meu pescoço.
Gemi e me contorci de modo feroz, segurando sua nuca, e
mais uma vez me deparei com a pequena corrente de ouro que ele
usava, que estava para trás desde que tirara a camisa e que não
ousei puxar para frente. Tive receio de descobrir o que havia nela,
porém já imaginava. Como me agarrava a ele com bastante força,
uma mão acabou sobre o cordão e pude sentir o formato da cruz
entre os dedos.
Larguei-a de imediato, por não saber lidar com minha própria
consciência.
Padre Benício sugou a minha pele como se precisasse disso
para viver, em seguida removeu os dedos de mim e os ergueu para
enfiá-losna minha boca. Chupei meu próprio gosto enquanto ele me
olhava em transe, guiado unicamente pelo desejo carnal, cru,
latente entre nossos corpos exaustos de lutar contra aquilo.
Passei a língua nas pontas dos dedos dele na maior tara,
com segundas intenções bem evidentes. Estava louca para
abocanhar outra parte de seu corpo, a que eu sabia que era
enorme. Pensando nisso, abaixei uma mão e o agarrei sobre a
calça. Ele gemeu perto do meu ouvido, mas achei que era
insuficiente ficar naquela etapa. Eu queria ultrapassar todas as
barreiras, ainda que fosse loucura.
Se era para descer até o inferno, então que eu fosse
queimada de uma vez. Sentia-me ardendo em chamas
efervescentes, e considerei a mim mesma como uma pessoa
terrível, mas que estava se sentindo ótima por isso. Não me
reconhecia naquele papel de vilã, e ao mesmo tempo me deliciava
com a mudança tão drástica.
Ele enfiou um dedo mais fundo na minha boca, e recuou um
pouco só para acompanhar o que eu estava fazendo. O rosto
expressava puro desejo e zero discernimento. Era errado demais
considerá-lo mais lindo com aqueles olhos vermelhos fixos em mim?
A parte cor de mel ficava ainda mais acesa daquele jeito, o que
removia de mim todo o juízo.
— Seu gosto deve ser bom... — murmurou num tom rouco,
diferenciado. Nunca imaginei que padre Benício pudesse alcançar
tal timbre. Eu me arrepiei por inteira, já preparada para a próxima.
Como podia alguém me dar tanto tesão assim?
— Por que não prova direto da fonte? — respondi com um
sorriso arteiro escancarado, dando-me conta de minha própria
canalhice. Sentia que estava brincando com as chamas que me
envolviam.
Ele segurou os meus cabelos com força e me puxou para si.
Aspirou profundamente perto dos meus lábios, como se ainda
buscasse algum controle antes de se deixar levar de vez. Em algum
momento aquele homem já foi um grande de um comedor, eu tinha
certeza, porque a forma como me segurava não me deixava
dúvidas.
Padre Benício me olhou por uns instantes, prendendo os
lábios em profunda reflexão. Por fim, afastou-se o bastante apenas
para começar a remover a minha calça. Quase explodi de alegria
com aquela decisão, o que não fez tanto sentido porque a mente
ainda repetia que tudo aquilo era um enorme sacrilégio. Mas o
proibido nunca me pareceu tão excitante quanto quando ele
simplesmente se abaixou junto com as peças que me cobriam,
ficando de joelhos diante de mim e me olhando de baixo.
Encarei-o com a respiração suspensa, sem acreditar em seu
gesto.
Padre Benício segurou minha bunda e separou as nádegas,
ainda me observando fixamente. Soltei um ofego carregado,
sufocado pelo desejo. Puxou-me mais, deixando o rosto perto da
vagina, que àquela altura quase implorava por ele. Apertou as mãos
em minhas carnes com força bruta, e aspirou meu centro
demoradamente, como se apreciasse uma iguaria antes de, enfim,
provar.
— Tende piedade de mim — sussurrou de um jeito fraco,
quase inaudível, de forma que percebi seu sofrimento. No entanto,
não tive tempo de pensar melhor, de tirá-lo daquele limbo, porque
padre Benício se ergueu de vez e me levou em seus braços,
removendo meus pés do chão.
Fui colocada sobre a mesa da sala, e as mãos grandes dele
logo abriram minhas pernas, segurando-me pela parte interna das
coxas. Ele me analisou por alguns instantes. Em seguida, observou
minha boceta suplicando para ser beijada sem demoras. Achei que
fosse desistir. Por um ínfimo momento, pensei que padre Benício
fosse dar as costas e ir embora, deixando-me ali, sedenta. Mas não
foi o que aconteceu.
Ele se curvou e afundoua boca com vontade, de um jeito que
me levou às alturas mesmo eu estando ciente de que seria mais
fácil que estivéssemos no andar de baixo. Agarrei seus cabelos
macios com força, enquanto ele avançava mais e mais. Senti sua
língua circulando meu ponto sensível, junto com aqueles lábios que
sabiam o que estavam fazendo,e ainda tinha aquela barba roçando
na minha pele.
— Delícia! — gritei, chocada com aquele estímulo tão
perfeito.
Percebi quando a pele dele se arrepiou sob meu toque, na
tentativa de segurar tamanha pressão que me fazia convulsionar.
Como se não bastante, padre Benício voltou a enfiar alguns dedos
em mim, que trabalharam junto com a língua ansiosa, então novo
grito escapou pela minha garganta.
Eu não tive a mínima condição de continuar nem por mais um
minuto. O segundo orgasmo se aproximou depois de três ou quatro
arremetidas, como se estivesse sempre ali, à beira da explosão,
apenas esperando um mínimo estímulo. Tremi e contorci por inteira,
enquanto ele se afundava e me tomava em sua boca deliciosa.
Só se deu por satisfeito quando parei de gemer, atordoada.
Padre Benício se aprumou novamente e ficou me encarando,
servida sobre a mesa. Ainda não enxergava culpa em seu
semblante, mas sabia que ela estava ali em algum lugar, bem como
a minha.
— E então? — perguntei baixinho, com medo da resposta e
de que ele saísse correndo do nada. Eu ainda queria muito mais.
Até então, nada do que fizera foi capaz de me deixar totalmente
saciada.
Ele soltou um suspiro carregado antes de murmurar:
— Deliciosa.
Nós nos encaramos por certo tempo. Eu não queria que
fosse embora sem que o sentisse em mim. Não estava pronta para
lidar com as complicações que sabia que viriam. Foi por este motivo
que me sentei diante dele e tirei a minha blusa preta por cima da
cabeça. Padre Benício ficou me olhando atentamente, o que me
impulsionou a prosseguir; com as mãos para trás, removi o fechodo
sutiã e o joguei para o lado, permitindo que meus seios se
colocassem expostos.
Nua em pelo diante dele.
O homem nada fez durante um tempo. Ficou me olhando
com o rosto em brasas, e daria tudo para saber o que estava
pensando. O desejo exalava da expressão asseverada, dava para
sentir a quentura mesmo sem nem encostar naquela pele que eu
sabia que era deliciosa.
De repente, fechou os olhos com força. Percebi que tentava
se controlar, porém não permiti que pensasse demais. Trouxe suas
mãos para os meus seios e ele os apertou, abrindo os olhos em
seguida.
— Você é... — Engoliu em seco, passando os polegares
pelos bicos já endurecidos. Eu já nem tentava mais respirar direito,
sabia que seria impossível. Tinha acabado de gozar duas vezes e
ainda assim não o desejava menos do que antes. — Uma tentação
— concluiu, soltando o ar na minha pele. — Essa loucura precisa
acabar aqui.
Padre Benício removeu as mãos e tentou se afastar, mas, no
impulso, agarrei seu pescoço. Ele fezforçapara trás, na tentativa de
se esquivar do ataque. O meu desespero me fez segurá-lo de
qualquer modo, por isso puxei a correntinha de ouro. O homem
estacionou e, por longos segundos, mantive a mão erguida e
esticada, segurando aquele objeto perturbador: o único que nos
separava.
Ele me encarou, incrédulo, sem se mover.
— Não — eu disse, por fim. — Prefiro me arrepender do que
fiz. Se ir embora agora, jamais vamos parar de imaginar o que
poderia ter sido. Não teremos paz.
O padre deu um passo para frente, talvez para não arriscar a
integridade do cordão. Ouvi seu suspiro audível, carregado de
dúvida. Não deixei que pensasse demais nas minhas palavras,
embora ele, no fundo, soubesse que eu tinha razão.
Puxei-o pelo cós da calça que vestia, trazendo-o para perto, e
ele se deixou vir. O homem arquejou enquanto eu removia o fecho
de seu cinto, o botão e o zíper numa pressa desmedida, implorando
internamente para que não desistisse antes da hora. O meu
desespero ficou visível; movia as mãos rapidamente, até que, por
fim, deixei toda a sua grossura do lado de fora.
Olhei o membro ereto com atenção redobrada, duro feito
pedra, mantendo os lábios presos para conter o choque, a emoção
que explodia dentro de mim. Era uma obra de arte perfeitae toda ao
meu dispor, com a cabeça inchada e lustrosa derramando
lubrificante, pronto para ser consumido.
Comecei a massageá-lo e ouvi, distante, os arquejos dele
diante de meu toque. Estava tão focada que parecia que só existia
aquela coisa pulsante e eu no mundo todo. Continuei sem titubear,
impressionada em como era grosso, do tamanho certo para trazer
total satisfação a uma mulher. Eu me esbaldaria, com certeza.
Queria muito chupá-lo, porém desejei mais ainda tê-lo dentro
de mim.
Eu me abri novamente, deixando os calcanhares sobre o
tampo da mesa, e o puxei mais uma vez, fazendo-o se debruçar
sobre o meu corpo que queria apenas recebê-lo, e mais nada. Teria
meu próximo orgasmo com ele todo afundado, preenchendo-me.
— Eu preciso de você — supliquei, chorosa, voltando a
encarar sua expressão vidrada no que acontecia. Padre Benício,
naquele momento, não estava apenas com os olhos vermelhos, mas
com o rosto todo corado e os cabelos despenteados. O que só me
deixava mais insana. — Agora. Me fode, por favor... — Agarrei-o
com mais força. — Quero tudo isso em mim.
Ele não respondeu nada, mas também não ficou parado.
Segurou-me a cintura com uma mão e, com a outra, mirou o
membro enorme na minha entrada, movimentando o quadril com
desenvoltura para se enfiar sem hesitação. Padre Benício apertou a
minha carne e me encarou profundamente.
— Nunca teremos paz — afirmou com convicção, antes de
apertar a cabeça inchada dentro de mim. Minha boceta resistiu
àquela grossura toda tentando avançar. — Mas vou te comer assim
mesmo — murmurou num rosnado capaz de me fazer vibrar
internamente. Suas palavras inimagináveis me chocaram tanto
quanto me incitaram. Em seguida, a voz rouca soou ainda mais
baixa, quase não escutei: — Deus nos perdoe.
Já estava louca pela expectativa, sentindo toda a antecipação
remover a sanidade, quando ouvi um barulho no ferrolho do portão.
Reconhecia aquele ruído de longe, porque Samuel sempre chegava
tarde da noite.
Empurrei padre Benício e congelei da cabeça aos pés, sem
saber o que fazer e do que se tratava. Por um momento, achei que
meu marido tivesse saído do túmulo e caminhado feito zumbi pelas
ruas para vir me impedir de cometer tamanha heresia.
O padre mal se endireitou e já foi enfiando o pau dentro da
calça, observando-me com o olhar espantado.
— Ai, meu Deus... Ai, meu Deus... — repeti enquanto ouvia o
ferrolho se movimentando, e acreditei que padre Benício tivesse
entendido o que estava acontecendo, porque pegou a camisa do
chão e, apavorado, começou a vestir.
Parecia um sinal dos céus, talvez um aviso diante de sua
última frase dita. Era Deus mandando alguém para nos fazer parar.
Ou eu estava fantasiando demais?
Puxei a minha calça, mas não estava conseguindo me
acalmar para me vestir. Fiz isso aos trancos e barrancos, toda
atrapalhada e ignorando a calcinha. Eu sabia que quem quer se
fosse demoraria um pouco para abrir o portão sem chamar atenção
da vizinhança, porque o ferro estava emperrado fazia um tempo e
Samuel nunca dava um jeito naquilo, por mais que eu pedisse.
— Luísa... — Padre Benício tentou me segurar, mas eu o
empurrei para o corredor, na direção do banheiro.
— Vamos, se esconda.
Peguei a minha blusa sem me importar de vestir o sutiã
antes. Coloquei-a, mas tive quase certeza de que tinha ficado pelo
avesso.
— Quem pode ser a essa hora? — ele questionou,
segurando meus ombros, já todo vestido. Fez aquilo na velocidade
da luz, em dois tempos, diferente de mim. Seu semblante se
mantinha confuso, sem entender nada. — E por que está abrindo o
portão da sua casa desse jeito?
Abri meus olhos ao máximo, em seguida, levei uma mão à
boca. Não tinha parado para raciocinar direito. Na minha cabeça, só
poderia ser o Samuel, ninguém mais. Só que a realidade era outra,
precisava manter os pés no chão. A ideia logo veio à mente e
precisei externá-la para não explodir:
— Meu Deus. O assassino. Veio me matar!
Padre Benício escancarou os olhos e a boca
simultaneamente, depois me puxou contra si, girando nossos corpos
para seguir pelo corredor e me deixar atrás dele, protegida. Porém,
eu o puxei pela mão, impedindo-o de confrontar quem quer que
fosse.
— Não... Não, não... — Comecei a marejar imaginando o pior
cenário. Uma coisa era levar aquele ser abençoado para o caminho
da luxúria e do pecado da carne, outra era permitir que fosse morto
por alguém que queria me matar. — Vamos sair daqui. Ele não pode
nos pegar aqui, assim.
— Como? — padre Benício perguntou, assustado até o
último fio. — Ele está no portão e... — O ferrolho foi, finalmente,
aberto.
A pessoa teria que atravessar o jardim, abrir a grade do
pequeno terraço, que eu sempre deixava sem o cadeado, e entrar
pela porta da sala – também aberta, afinal, o padre tinha entrado e
sairia em breve, ao menos era o que eu achava –, mas poderia
fazer isso mais depressa, depois de ter conseguido passar pelo
portão.
Puxei a mão do padre e o guiei pela cozinha, saindo pelos
fundos. Em silêncio, pé ante pé, prendendo a respiração e quase
enlouquecendo, contornamos a casa, que era pequena, modesta,
um sobrado arrumadinho que cabia apenas Samuel e eu.
Vi quando uma sombra adentrou o terraço e abriu a porta da
sala. O meu coração batia agitado diante daquela invasão; eu
morreria facilmentenaquela noite se estivesse dormindo, em vez de
fazendo besteira.
Olhei padre Benício por alguns instantes, tomado pelas
sombras da noite. Não aguardei que confirmasse, puxei-o
novamente e andei ligeiro pelo jardim até alcançar o portão
escancarado, com ele na retaguarda. Passamos pela saída da
maneira mais furtiva possível, e sequer ousei olhar para trás.
Acelerei o passo assim que alcançamos a rua, e então corri o
máximo que pude, na direção do desconhecido.
Dobramos muitas esquinas às pressas, até que padre
Benício finalmente me segurou e me fez parar
.
— Temos que ir à delegacia — aconselhou, ofegante pela
corrida.
Balancei a cabeça em negativa, sentindo lágrimas em meus
olhos.
— Como explicar que você estava na minha casa a essa
hora? — Passei uma mão pelos meus cabelos, confusa e
assustada. Apavorada, na verdade. — Aquele filho da puta não vai
me ouvir. O assassino vai embora assim que descobrir que não
estou em casa e serei dada como louca — balbuciei, tentando
raciocinar, mas falhando. Eu não confiava no delegado para
absolutamente nada e padre Benício ainda não entendia direito o
meu ponto, o que poderia nos custar tudo.
— Que história é essa? O delegado vai...
— Precisamos sair daqui! — resmunguei um pouco mais alto,
porém ainda mantendo os sussurros. Eu estava com medo até da
minha sombra. — Agora. Padre Benício, nós temos que...
Ele voltou a me segurar.
— Shhh, vem!
Fui guiada às pressas pela rua da cidade, e só depois de um
tempo que compreendi para onde padre Benício me levava: ao
único lugar que um suposto assassino evitaria.
À igreja.
PARTE 7
Não existe meio pecado

Padre Benício

Caminhamos apressadamente pelas ruas desertas de


Paraíso; eu, tentando não chamar qualquer atenção e reparando até
nas nossas sombras; Maria Luísa, agitada, visivelmente
assombrada e grudada no meu braço de uma forma inimaginável.
Eu queria tirá-la dali, remover o contato que me empertigava, porém
achava que seria mais demorado discutir sobre aquilo no meio da
rua, por isso apenas a guiava na maior velocidade que podia.
Com a pele suada, as roupas enfiadas de qualquer jeito, o
coração batendo forte, as bolas latejando e a cabeça fervilhando a
mil: era assim como ela me deixava. Aquela mulher estava me
enlouquecendo pouco a pouco, e o meu erro foi ter permitido que
chegássemos tão longe. Teria avançado ainda mais se não fosse a
invasão em sua residência, outro fator maluco que eu não
conseguia conceber.
O que aquela pessoa queria? Era capaz mesmo de invadir
uma casa na calada da noite e assassinar alguém?
De uma coisa eu tinha certeza, aquela história toda estava
muito mal contada. Maria Luísa não estava sendo totalmente
sincera, pois eu ainda não sabia por que evitava tanto qualquer
contato com o delegado, inclusive para entregar objetos que
poderiam servir como provas. Suas justificativas faziam sentido até
certo ponto, mas não eram o bastante para encobrir uma invasão de
um possível criminoso.
Se ela queria tanto a verdade, as suas atitudes me pareciam
querer encobri-la em vez de colocá-la à tona. De qualquer forma,
nada fazia muito sentido, menos ainda o que tínhamos acabado de
fazer. Ou quase fazer. No meu caso, fiz muito mais do que deveria,
mais do que minha consciência conseguia suportar.
Abri as correntes da igreja ciente de que as tinha deixado
sem o enorme cadeado, pois pretendia voltar no mesmo pé, sem
demoras. Praticamente empurrei Luísa para dentro, fechando tudo
logo em seguida, e a segurei pela mão. Olhei rapidamente para seu
rosto tomado pelo pavor. Estava meio pálida e não parecia capaz de
falar uma só palavra com firmeza.
Não teci qualquer comentário, apenas a guiei pelo terreno da
igreja, contornando-o para alcançar a construção lateral onde
ficavam meus aposentos. Ela paralisou um pouco diante da
escadaria que dava para o andar de cima, mas a puxei rápido. Não
queria que uma das irmãs que estavam estabelecidas no andar de
baixo acordasse e nos visse. Corríamos muito risco. Será que ela
tinha noção do que estava em jogo ao ser levada para a minha
casa?
Abri a porta e deixei que Luísa entrasse, coisa que fez
devagar até demais. Eu estava meio impaciente. Fazia muito tempo
que não me sentia daquele jeito, perdido, nervoso, tomado por
emoções controversas que nada tinham a ver com a tranquilidade
que tanto me esforcei para adquirir. Fechei a porta atrás de nós e a
tranquei por puro medo de que alguém simplesmente resolvesse
abrir e a encontrasse ali comigo.
Maria Luísa abraçou o próprio corpo enquanto observava o
meu humilde lar. Não era nada demais, um ambiente bem menor do
que sua casa. O quarto era acoplado à cozinha americana e à sala
de estar num só ambiente, feito uma quitinete. Havia apenas um
quarto menor, onde eu guardava os objetos de malhação, e a outra
porta dava para um banheiro modesto.
— Você vive aqui? — ela perguntou como se não
acreditasse.
O espaço era pequeno, mas limpo, e gostava de deixar meus
pertences organizados, com cada coisa em seu lugar, para não
dificultara minha rotina. Havia um armário sem porta que enfileirava
as batinas e demais roupas. Uma cômoda de seis gavetas no canto,
onde jaziam velas e imagens religiosas. Havia uma cruz grande
pendurada acima da minha cama, um pequeno sofá, uma poltrona
caindo aos pedaços e uma mesa de centro minúscula.
— Sim. — Demorei um pouco a responder, observando
enquanto ela andava e analisava cada item do meu lar. Senti-me tão
exposto quanto há alguns minutos, quando ela... Enfim. Eu não
queria me lembrar do que houve. Ainda não. — Sente-se, vou
preparar um chá. Sem acidentes, desta vez.
Apontei para o sofá, mas Luísa me ignorou completamente.
Continuou observando tudo o que via. Desisti de fazer qualquer
sugestão e coloquei água na chaleira elétrica. Peguei alguns
pacotes com chás de diversos sabores e os coloquei na mesa de
centro, para que escolhesse o sabor. Senti medo de fazer o menor
ruído, por isso me movimentei calmamente, tudo para que as freiras
não acordassem e desconfiassem.
Quando me virei de novo, percebi que a mulher resolvera se
sentar. Ainda estava pálida, com os olhos mais abertos do que o
normal, sem conter o espanto. Sentei-me na poltrona velha do outro
lado e nos servimos em silêncio. Nós dois escolhemos o chá de
camomila e acreditei que não poderia ser diferente. Ambos
precisavam de muita calma.
Eu não tinha a menor ideia do que fazer a respeito dela.
Queria que fosseembora, mas nunca a mandaria de volta para casa
naquelas condições, com uma ameaça pairando. Sentia que,
naquela noite, não havia conseguido fazer nada direito, ainda que
tivesse tentado. Mas só de pensar que Luísa poderia estar morta
caso as minhas escolhas fossem diferentes... Um arrepio sinistro
percorria o meu corpo.
De repente, ela soltou uma risadinha. Eu a olhei, sem
entender. Seu riso continuou leve, divertido, até se transformar
completamente e finalizar num choro sofrido. Aquela mulher não
estava normal, e pior, também não me sentia como eu mesmo.
Parecia que uma sombra havia ocupado o meu lugar, depois de
tantos anos na luz.
— Não fique assim — falei, sério demais, sem saber o que
dizer de verdade para que não chorasse daquele jeito.
Luísa enxugou o rosto com uma mão e tomou o primeiro gole
do chá. Suspirou profundamente. Continuei a olhando, sem
acreditar que estava ali. Nunca tinha levado ninguém para os meus
aposentos, nem mesmo um amigo ou conhecido. Era um espaço
somente meu, e eu prezava pela privacidade como poucos.
— Não posso sair da cidade — ela disse, com um ofego
murcho. Olhava para algum ponto além da única janela existente, e
que se encontrava fechada, com as cortinas lacradas. — O
delegado disse para eu não fazer isso. — Luísa finalmente me
olhou. Os olhos brilhantes pelas lágrimas me fizeram prender a
respiração e apertar a caneca entre os dedos. — Estou à mercê
desse assassino. Uma hora ele vai conseguir o que quer.
Balancei a cabeça em negativa, começando a me sentir
apavorado.
— Luísa... E se não for um assassino que...
— Quem mais poderia ser? — Assim que soltou a pergunta,
interrompendo-me, ela se calou bruscamente, parecendo refletir. —
A essa hora da noite... De fininho... — Chacoalhou a cabeça. —
Não. Eu que não esperaria para ver. — Deu de ombros.
Pisquei os olhos várias vezes, finalmente me dando conta de
que Maria Luísa teria que ficar por perto naquela noite. Só
poderíamos verificar ou fazer qualquer coisa mais efetiva quando
amanhecesse e o perigo tivesse passado. As reflexões me
trouxeram ainda mais pavor. Onde ela dormiria? Quanto tempo
permaneceria em minha casa? Não era certo. Era um absurdo
deixá-la ali.
Só que eu não conseguia enxergar outra maneira.
— Você sabe pilotar moto? — questionei, com a voz segura,
temendo que o descontrole me invadisse novamente.
Luísa fez uma careta.
— Por quê?
— Semana passada recebemos uma de doação. Está no
estacionamento da igreja — respondi, com o mesmo tom
controlado, mas sentindo a agitação se aproximando lentamente. Eu
já estava arrependido de ter mencionado a motocicleta. — Você
pode... Hum... Pode pegar emprestada e talvez dormir num dos
hotéis da estrada... Ou numa pousada. Na casa de alguém
conhecido.
Luísa ficou me encarando quase sem piscar. Eu a olhava de
volta, mas me sentia tão constrangido que senti meu próprio rosto
esquentando, provavelmente corando. Ela prendeu os lábios. Seu
silêncio me matava pouco a pouco, era um martírio suportar o olhar
fixo em mim.
Ao menos ela pareceu ter entendido o meu ponto.
— Não quero incomodar, padre. Desculpa... É só que... —
Deixou a caneca sobre a mesa de centro e voltou a me observar. —
Eu só vim com a roupa do corpo, nada mais. Aliás, nem estou com
nenhuma peça íntima e minha blusa está pelo avesso. — Sorriu um
pouco, mas logo ficou séria, igualmente constrangida. — Deixei
carteira, documentos, tudo em casa. Eu... — Suspirou. Vi quando os
olhos marejaram novamente. — Estou com medo. Por favor, me
deixe ficar. Posso dormir na igreja, bem longe do senhor, mas me
deixe ficar. Só por essa noite. Prometo que nunca mais vai me ver
de novo.
Acontecia um fenômeno interessante no meu interior. Ao
mesmo tempo em que me sentia aliviado por ela sugerir um
afastamento definitivo, também me sentia repleto de angústia e
certa tristeza. Eram emoções bastante controversas. Continuei a
olhando enquanto tentava pensar numa saída, ou numa resposta
que não fosse tão afetada ou insana, enfim, em nada que
comprometesse aquele acordo.
Porque era óbvio que nunca mais poderíamos nos ver.
Não depois de...
Eu me levantei antes que a memória me levasse para o que
acontecera mais cedo. Precisava esquecer tudo aquilo o quanto
antes. Se permitisse, seria devorado pelas lembranças tal como
Luísa devorou a minha pele, e eu, a dela. Era uma necessidade me
livrar de todas as sensações, do sabor do pecado que ainda
circulava na minha língua. Podia sentir seu toque ardente na minha
pele. Um verdadeiro absurdo.
Caminhei até o armário e retirei de lá uma camisa e um short
que já não cabiam mais em mim – e que ainda não tinha doado por
puro esquecimento –, além de uma toalha limpa. Voltei e a encontrei
de pé rente ao sofá, aguardando por mim e me olhando
atentamente. Ela toda me deixava desnorteado. Olhá-la era difícil,
porque era impossível não pensar em onde aquela boca esteve.
Não ousei clamar a Deus. Nem pedir perdão. Eu me sentia
sujo demais até para retornar ao que era antes de conhecê-la.
Precisaria de um longo processo de purificação antes de sequer
pensar em me desculpar por aquilo. Não adiantaria nada ser
perdoado e continuar sendo traído pelos desejos do meu corpo. Ele
estava completamente sedento.
— Tome um banho e use isso para dormir. Vou arrumar a
cama para você. — Apontei para a única cama de solteiro no
ambiente, em seguida entreguei as roupas em suas mãos, tomando
cuidado para não encostar nela.
— E você?
Olhei para o lado, reflexivo. Não tinha pensado nisso. Talvez
fosse melhor expiar meus pecados o quanto antes. Uma noite em
claro em oração na capela talvez fosseuma boa solução. Só que eu
estava exausto. O dia tinha sido longo e sentia que não encontraria
clareza sequer para rezar.
— Dormirei no sofá.
Luísa assentiu, fazendoum muxoxo ruidoso. Por um instante,
deixou claro que a definição não era exatamente o que ela queria,
pela sua expressão e postura. Ainda pensava em prosseguir com o
erro, talvez continuar de onde paramos.
Como era possível que não estivesse arrependida? Que não
se sentisse horrorizada? Que quisesse... consumar o ato? Aquele
invasor apareceu no instante em que estava prestes a possui-la. Só
podia ter sido um sinal, ainda que apavorante. Deus escrevia certo
por linhas tortas.
— Onde fica o banheiro? — perguntou depois de segundos
que me pareceram eternos. Não pude calcular quanto tempo fiquei
ali, olhando para ela enquanto analisava a cama, depois o sofá, e
enfim me encarava de volta.
— Naquela porta. — Apontei.
Ela assentiu, suspirou e ergueu, novamente, a cabeça na
minha direção. Havia uma energia que pairava entre nós, uma força
carregada, intensa, profunda. Eu não conseguia nem respirar diante
daquilo, ou ter firmeza, convicção, princípios, moral... Nada.
Mantinha-me perdido, e o pior de tudo era não me sentir exatamente
mal por isso. Por outro lado, existia um sentimento que pendia para
uma terrível culpa, a sensação de que não deveria sentir nada perto
do que me acometia naquele momento.
— Você vem comigo? — Maria Luísa perguntou e
simplesmente não acreditei naquele conjunto de palavras. Pisquei
várias vezes. O meu coração passou a bater acelerado de novo.
— O quê? — ofeguei, constrangido.
Ela desviou o rosto, envergonhada. A pele da tez corou um
pouco. Sua expressão desajeitada me deixou perto da insanidade.
Era incrível como aquela mulher tinha coragem, ao menos para
dizer o que pensava sem receio.
— E-Eu... — Lambeu os lábios. — Já disse que não me
arrependerei do que não fiz. — Abaixou a cabeça diante de mim. —
Não importa de onde paramos, jamais vou esquecer, de toda forma.
Nunca mais verei o senhor depois de hoje, é uma promessa. —
Encarou-me com uma firmeza que me faltava. Naquele instante,
soube que ela de fatosumiria. — Então o senhor prefereviver como
se nada tivesse acontecido, mas pensando sem cessar no que
poderia ter feito, ou aproveitar o momento até o fim e se arrepender
de tudo de uma vez? Não existe meio pecado.
Ao contrário de antes, eu a olhei sem piscar nem uma vez.
Encontrar algum sentido em suas palavras insanas foi o que mais
me assustou. Maria Luísa estava certa ao dizer que não existia meio
pecado, mas o esforço em não o cometer era levado em
consideração, o controle, o “parar de pecar”, também. As intenções,
sejam boas ou ruins, precisavam ser consideradas.
Eu não duvidava da capacidade de Deus me perdoar. Ele
fazia isso setenta vezes sete vezes, quantas fossem necessárias.
Só duvidava amargamente da minha capacidade de me sentir
arrependido, porque até aquele instante nada tinha acontecido que
me fizesse correr dali para a capela.
— Eu ainda te quero — Maria Luísa completou, evitando me
olhar. — Ainda desejo tanto quanto antes, talvez mais. É provável
que piore. — Ofegou, resoluta. — Mas não vou forçar a barra de
novo. Cada um que lide com suas sombras depois.
Ela simplesmente andou até a porta do banheiro, abriu-a sem
olhar para trás, entrou, ligou a luz e deixou a passagem aberta de
propósito. Fiquei plantado no meio da casa, sem saber o que fazer
ou pensar, perguntando-me como tudo aquilo poderia ser possível.
Como aquela mulher conseguia ser tão ousada?
Olhei para a cruz sobre a minha cama, sentindo meus olhos
marejando de pura autocompaixão. Sabia que aquele era um
instante decisivo. O mais prudente era recuar, ficar na minha,
suportar aquela noite e esperar a alvorada para começar a
penitência. Eu sabia bem como era entrar em contato com minhas
próprias sombras. Não havia nada que me agradasse no meu lado
mais obscuro, perdido. Há muito tinha encontrado a luz através da
Palavra. Recebi uma segunda chance para viver dentro de um
propósito, para continuar de uma forma mais digna. Fazer uma
escolha diferente disso não estava em meus planos e nem deveria.
Observei as velas acesas e os santos enfileirados, até
localizar o único porta-retratos do recinto, exibindo uma foto
sorridente de Sofia. Meu coração se apertou consideravelmente.
Suspirei fundoe mergulhei numa onda horripilante, que me trouxera
os piores sentimentos.
Fui acordado daquele pequeno transe pelo barulho da água
do chuveiro se chocando contra o piso. Imaginei Maria Luísa nua,
molhada, usando meu sabonete para lavar aquele corpo que eu
sabia que era maravilhoso, perfeito para a luxúria.
Passei as mãos pelos cabelos, em nervosismo.
— O que eu faço...? — Deixei a pergunta sussurrada no ar.
Sentei no sofá e encarei a parede mais próxima, disposto a
esperar que a chama vibrante dentro de mim se extinguisse. Talvez
cessasse quando Maria Luísa concluísse o banho. Ela saberia a
minha escolha e se recolheria para dormir, então nada mais seria
feito até que desaparecesse do meu caminho. Só me restava
aguardar mais uns minutos...
Apertei os punhos e recordei do caminho que seus lábios
fizeram em minha pele. Lembrei seu cheiro, o gosto do beijo, o
sabor de sua parte mais íntima. Salivei tanto que precisei engolir.
Mordi as bochechas pelas partes internas na tentativa de me
segurar, esperando que o martírio acabasse. Uma lágrima escorreu
por causa do esforço.
Soltei um rosnado gutural, potente, e me levantei no impulso.
Retirei a camisa e a joguei para longe, depois andei na direção do
banheiro, largando os tênis, as meias, a calça pelo caminho. Antes
de ultrapassar a porta do banheiro, abaixei a cueca e me coloquei
despido, olhando para baixo e reparando meu membro pulsante,
pronto, ensandecido por um alívio.
Todo pensamento racional foi removido da minha mente.
Fui tragado pelo vazio enquanto adentrava aquele espaço
úmido pelo vapor da água quente. Visualizei a mulher despida atrás
do vidro do boxe e paralisei. Admirei a perfeição que fazia parte
inerente dela, de seus modos, dos traços, das reentrâncias. Os
seios perfeitos, médios, com auréolas mais escuras, amarronzadas.
A barriga com uma saliência na frente,trazendo um corpo de mulher
real. As coxas grossas e os quadris fartos numa escultura
fascinante. Os cabelos longos e pretos, molhados, escorrendo até
metade de suas costas.
A minha ereção vibrava de alegria, porque sabia que eu não
voltaria atrás. Teria aquela mulher insolente de uma forma ou de
outra, sem impedimentos, porque naquele instante nem mesmo
meus princípios mais rígidos me fariam recuar.
Ela soltou um pequeno grito de susto ao me ver do outro lado
do vidro, nu em pelo, admirando-a. O sorriso que abriu era capaz de
esquentar as terras mais gélidas, evaporar um iceberg. Eu me
sentia como um sorvete derretendo ao sol diante da expressão
maliciosa que se formou após o primeiro instante de espanto.
Sem nada falar, abri a porta de vidro, escorrendo-a para o
lado sem desviar o olhar. Luísa continuou me encarando com
malícia, analisando-me de cima a baixo, parecendo ansiosa,
sedenta, demorando-se ao avaliar o meu pênis ereto.
Não tive a menor piedade. Agarrei seu queixo e a trouxe para
o meu rosto, fazendo questão de grudar nossos olhares, enquanto a
empurrava contra a face de uma parede azulejada. Senti a água
morna caindo sobre mim, porém continuei a olhando, juntando
nossos corpos, colocando-me sobre ela.
De repente, eu a girei. Empurrei seu rosto contra a parede e
ela ofegou, então encaixei meu membro entre suas nádegas. Desci
e subi, alisando aquela reentrância com a ereção pulsante,
começando a sentir a delícia que era fazer um movimento que eu
evitava sempre. Apertei sua bunda com uma mão, enquanto a outra
juntava seus cabelos, terminando numa espécie de rédea curta.
Luísa gemeu, contorcendo-se para me sentir em sua
retaguarda.
— Vou foder você — murmurei em seu ouvido, grudando a
língua na pele sensível do pescoço. Ela arquejou e voltou a gemer,
daquela vez mais alto. — Sua boca... — Ergui a mão que estava na
bunda dela e puxei seu rosto um pouco para trás, mirando aqueles
lábios roseados e quase os juntando aos meus. Desci e subi mais
uma vez, arremetendo naquele curto espaço entre as bandas.
Ofeguei, alucinado. — Sua boceta gostosa... Deliciosa... —
prossegui do modo mais sujo possível, porque se fosse para fazer
aquilo, então seria como minhas sombras ansiavam. Sujo,
pervertido, bruto, cru. Selvagem. — Seu rabo será meu, hoje. Você
toda.
Luísa soltou um gemido engasgado, porque uma das minhas
mãos apertaram o seu pescoço.
— Será que você aguenta? — questionei aos sussurros,
pressionando meu pau mais fundo. Desci e o apontei mais para
baixo, procurando por uma entrada, qualquer uma. O importante era
entrar. Queria estar dentro dela, era urgente. — Vai ter que
aguentar. Lembre-se de que foi você quem pediu por isso.
Enfim, senti meu membro forçando suas carnes apertadas,
até encontrar um pequeno espaço. Eu me enfiei ali sem receio,
sentindo ceder devagar, e pela lubrificaçãoexacerbada, supus ser a
vagina mesmo. A que eu sabia que era uma delícia e comprovava
naquele minuto: apertadinha e escaldante.
Eu me afundei de uma vez, penetrando-a até o talo, sem dó.
Luísa gritou e eu a calei com uma mão, para que não chamasse a
atenção das irmãs. Seria difícil, para tudo o que eu queria, que
prosseguíssemos no silêncio, porém seria muito necessário.
Sentir uma boceta quente em mim foi tão bom que abafei um
rosnado e mil xingamentos, mais palavras para a lista que só
aumentava conforme eu avançava naquela mulher. Nunca pensei
que repetiria tais termos na minha vida, mas sabia que um grande
pecado jamais surgia desacompanhado.
Retrocedi uma vez e empurrei com força, bruscamente.
— Toma, gostosa... Não era o que você queria? Hein? —
Repeti o movimento e ela se contorcia perigosamente, com a boca
fechada pela minha mão. A outra continuava agarrando seus
cabelos. — Toma. — Senti as suas carnes cedendo mais. — Toma,
porra... Boceta deliciosa do caralho.
Eu me sentia outra pessoa repetindo aqueles absurdos e
agindo assim, por outro lado, acreditava piamente que não estava
sendo nem um pouco diferente do monstro que guardava em mim, e
que vinha à tona a cada estocada. Metia fundo e retrocedia quase
até a cabeça, para me enfiar novamente, torcendo para não gozar
antes do tempo.
Já Luísa, contorcia-se tanto, tremia sob meu toque nada
delicado, até que convulsionou e se deixou derramar. Deu para
sentir cada movimento que sua boceta fez ao gozar profundamente
com meu pau lá dentro.
— Você já gozou? — questionei num murmúrio frio, e soltei
uma risada tão perversa quanto as que ela soltava perto de mim,
deixando-me sem chão. — Quando eu gozar, será na sua cara. Ou
quer beber a porra que guardei para você desde que me abraçou
naquela noite?
Ela não respondeu, nem mesmo quando soltei sua boca para
que falasse. Maria Luísa apenas gemeu, revirando os olhos de
maneira insana. Enfim, afastei-me um pouco e agarrei sua cintura
para me ajudar no vai-e-vem.
Afundei meus dedos na sua pele e movimentei os quadris
com vigor, entrando e saindo dela, sentindo suas contrações e a
lubrificaçãose acumular até ser possível uma entrada fácil,liberada,
escorregadia.
— Olha só como você já come meu pau todinho —
resmunguei, espalmando aquela bunda empinada para mim e me
arrependendo em seguida, porque fez um barulhão. Agarrei a
nádega avermelhada pelo tapa e grunhi. — Será que seu cu vai me
receber assim?
— Oh... — Foi a única coisa que ela conseguiu dizer, o que
nem era uma palavra.
De repente, Luísa me empurrou um pouco para trás, talvez
encontrando alguma forma de reagir, porque até então se mantinha
controlada pelos meus gestos firmes. Nós nos desencaixamos e ela
não perdeu tempo antes de se virar de frente para mim e acocorar
aos meus pés. Puxou o meu pau e o abocanhou, parecendo já
saber o que fazer.
Precisei segurar os gemidos e mais praguejos. A mulher
insana enfiou tão fundo que tocou na sua garganta, provocando-lhe
um engasgo. Eu não estava mais aguentando. As sensações que
me tomavam eram deliciosas tanto quanto absurdas. Sabia que viria
logo, na verdade, ainda não entendia como pude me segurar tanto.
Talvez fosse o fato de estar em choque comigo mesmo. Espantado,
porém não surpreso.
— Ah, que boca deliciosa... Como chupa gostoso... —
Segurei seu rosto e intensifiqueios choques, fodendoaqueles lábios
que esticavam cada vez que me afundava.
Quando senti que não suportaria mais, agarrei os cabelos
dela com força e puxei o membro para fora, derramando-me sobre
seu rosto. Havia tanto gozo acumulado que soltei uns três ou quatro
jatos grossos, cheios do desejo que guardei por tanto tempo.
Precisei me esforçar para não gemer tão alto; deixei os ofegos
abafados, controlando-me.
Luísa terminou com a cara toda gozada. Maravilhosa.
Olhando-a daquele jeito, nem tive tempo para me recuperar.
Sabia que emendaria porque havia muito mais guardado para ela.
Sequer amoleci. A noite estava apenas começando e a lista de
pecados seria extensa demais, porque, de uma forma ou de outra,
aquela loucura precisava valer a pena.
PARTE 8
Bruto e obsceno

Maria Luísa

Eu estava tão surpresa que nem conseguia me mexer, depois


que padre Benício gozou horrores sobre o meu rosto, expressando
muito contentamento. Minhas pernas estavam bambas e não tive
forças para sequer me levantar dali. Não podia imaginar que ele
seria tão bruto no sexo, tão fodidamente selvagem e delicioso.
Estava espantada, mas muito, muito excitada com tudo aquilo e
cada segundo louca por mais.
Havia uma insaciedade que circulava meus nervos e não me
permitia encontrar qualquer lucidez. Olhando-o daquele ângulo, com
o pau ainda ereto e latejante próximo ao meu rosto, não conseguia
imaginá-lo como ninguém além de um homem cheio de desejos, e
que poderia ser a ruína de uma mulher com facilidade.
Eu tinha certeza de que padre Benício tinha um passado, um
em que fazia sexo regularmente. Estava encafifadacom a foto de
uma mulher que encontrei sobre a sua cômoda – será que era o
familiar que comentou que perdera? Talvez fosse uma namorada
antiga. Algo me dizia que não se tratava de uma irmã ou uma prima,
mas de alguém que roubou seu coração em algum momento. As
dúvidas norteavam meus pensamentos, porém meu corpo só pedia
por mais e implorava para que aquele ainda não fosse o fim.
O homem me levantou devagar, respirando forte, e teve a
maior delicadeza ao aproximar a água do chuveiro, que corria
incessante, no meu rosto todo melado. Passou a mão grande no
sabonete e me limpou com paciência, sem nada falar. Fechei os
olhos e me tornei muito consciente daquele corpo imenso do meu
lado, vibrante e ardente como eu inteira estava. Senti-lo perto me
causava arrepios insanos, uma coisa de louco.
Enfim, já limpa, abri os olhos e o encarei, embasbacada. Um
padre podia falar tantos palavrões daquele jeito? Não. Mas também
não podia transar com ninguém. Percebi que aquele homem
simplesmente abrira as comportas que o seguravam dentro de um
ser quase divino, um papel de pureza, castidade e benevolência.
Quem estava ali comigo era a pessoa sem qualquer amarra ou
convenção. Ele por si só.
Descobri que ambos me agradavam, cada um com seu jeito.
Padre Benício – ou seria melhor pensar nele apenas como
Benício? – segurou meu rosto com as duas mãos, de uma forma
mais gentil que antes. Enfim, grudou nossas bocas num beijo
profundo, não exatamente devagar, mas cheio de nuances que me
arrepiavam.
Até então não tínhamos nos beijado e me sentia meio
estranha, como num filme pornográfico, mas não exatamente infeliz
com tanta crueza. Era daquela formaque necessitava ser comida, e
aquele homem parecia saber disso. Sentir-me desejada de novo me
fazia um bem estupendo, era diferente e ao mesmo tempo elevava
demais minha autoestima. Sentia-me poderosa.
Fui envolvida por toda sua grandeza e calor debaixo do
chuveiro, e fiz questão de acariciar sua pele em vários pontos,
enquanto enlaçava minha língua com tamanha perfeição. Ele
esfregava a ereção ainda firme em meu ventre, fazendo com que
me contorcesse e voltasse a me deliciar com o sabor da
antecipação.
— Quero que goze no meu pau de novo — murmurou, rouco,
a voz quase falhando.Não consegui lhe oferecerqualquer resposta.
Será que sabia que eu estava completamente desesperada por
mais?
Os lábios dele se afastaram para brincar com os meus,
devagar. Fui tragada por aquele momento de profunda conexão,
espantada com o fato de não achar nada daquilo nem um pouco
errado, muito pelo contrário. Padre Benício envolveu os braços ao
meu redor e desceu uma mão entre a minha bunda. Invadiu a
abertura sem pedir licença, provocando-me um gemido pelo toque
inusitado.
— Depois, vou arregaçar esse cu.
Suspirei ruidosamente.
— Meu Deus... — As palavras simplesmente saíram, sem
que eu pensasse direito.
O padre usou a outra mão para segurar meu queixo daquela
forma bruta que fazia. Encarou-me com um olhar severo, como se
estivesse prestes a me castigar. E eu não via a hora por isso.
— Shh... Não — resmungou, selvagem, os olhos pareciam
arder em chamas. — Ele não tem nada a ver com isso, pode ter
certeza. — Enfiou um pouco do dedo na minha segunda abertura,
fazendocom que me contorcesse e gemesse. Não faziaideia se ele
caberia ali, mas não me oporia a nada, de jeito nenhum. Queria tudo
com aquele homem. — Quando eu te foder aqui, não haverá
ninguém a quem você possa implorar.
Parecia que eu estava vivenciando um sonho cretino, maluco
e excitante. Cada palavra suja que saía daquela boca me causava
um espanto diferente.
Ele se retirou daquela parte tão sugestiva e me puxou para si
num solavanco, obrigando-me a abrir as pernas ao redor do tronco
másculo e viril. Fechou o chuveiro e me carregou como se o meu
peso não fosse nada, de forma que me impressionei com o fato de
não fazer tanto esforço ao abrir o boxe de vidro.
Nossos corpos nus e sedentos por mais molharam o piso
durante o percurso até a cama de solteiro. Eu ainda estava
espantada com a humildade que o cercava; nenhum móvel parecia
novo, embora todos fossem bem cuidados. Padre Benício não tinha
muita coisa, e sua simplicidade me fascinava de um jeito
impensável.
Percebi que evitou olhar ao redor, encarava-me fixamente,
talvez porque havia muitos artigos religiosos por perto e ele sabia
disso. Fui colocada sobre o colchão com delicadeza, e seu corpão
veio junto. Aquilo tudo sobre mim deixou que a sensação de
entorpecimento circulasse por cada fibra do meu ser.
A cruz acima da cama me constrangia daquele ângulo, bem
por trás dele, assim como a correntinha que escapuliu para frente e
repousou entre os meus seios expostos. Mas aqueles olhos me
encarando foram capazes de tirar a minha atenção sobre qualquer
outra coisa. O foco se manteve nele, no rosto molhado com cabelos
claros assanhados e um brilho na tez que me fez suspender a
respiração.
O fato de estarmos grudados, e eu toda aberta, abraçando-o
com as pernas, sentindo sua ereção próxima, era estimulante e
tentador. De novo, a antecipação preenchia meus sentidos e eu não
pude desejar nada além de prosseguir com a entrega.
Enfim, padre Benício saiu do transe e mirou o bico de um
seio. Não hesitou em abrir a boca e me tomar com ferocidade,
dando uma sugada barulhenta que me arrancou um gemido. Ele
agarrou os dois seios e intercalou as chupadas entre as pontas
arrebitadas, deslizando lábios e língua em movimentos
perturbadores.
Soltei um gemido mais alto e ele ergueu o rosto para me
calar com um beijo, deixando claro para que eu me mantivesse
silenciosa. Já tinha entendido aquilo desde o banheiro, mas não
estava conseguindo. Aquele homem me provocava sensações
deliciosas demais, que eu nunca havia sentido com nenhum outro.
Era estranho me sentir repleta logo com alguém como ele.
Acreditava que nunca na vida tinha me entregado daquele
jeito, de forma inteira e feroz, com um tesão que não cessava.
Sempre gostei de sexo, porém nunca fiz com tanta vontade, uma
que me fazia não pensar em mais nada. Perdia o juízo.
Padre Benício afundou os braços por baixo de mim e elevou
a minha cabeça um pouco, unindo nossas testas. Movimentou-se
lentamente, até que encontrou minha entrada pronta para recebê-lo.
Voltou a me penetrar fundo, e a nova posição permitiu que eu
sentisse muito mais toda a pressão em meu ventre, as carnes
cedendo e pulsando ao seu redor.
A sensação de preenchimento me fezquase gritar. Ele voltou
a prender meus lábios com uma mão firme.
— Shhh... — murmurou, enfiado dentro de mim. Eu estava
desesperada para que continuasse. — Caladinha.
Assenti apressadamente, prometendo algo que não sabia se
era capaz de cumprir. Padre Benício escorreu os lábios pelo meu
queixo, resvalando a barba em meu rosto. Retrocedeu uma vez e
arremeteu, bruto. Precisei me controlar para transformar o grito
entalado em apenas meio arquejo.
— Seu gemido é uma delícia — sussurrou perto do meu
ouvido, distribuindo beijos na orelha e me deixando arrepiada.
Chocou-se de novo, e senti minha boceta expelindo mais
lubrificante. — Mas trate de fazer com que só eu te escute.
Segurei seu rosto.
— Você é gostoso demais... — desabafei,meio desesperada.
— Me fode, por favor . Fode rápido, forte, eu...
Ele não esperou nem que eu terminasse de implorar. Com
um rosnado, movimentou-se bruscamente, entrando e saindo de
mim num ritmo surreal. Juntou nossas bocas e assim ficou,
arremetendo de um jeito insano.
Eu mal podia respirar ou me mover, porque ele me mantinha
presa em seus domínios. Minhas mãos puxavam ora seus cabelos,
ora a pele quente das costas largas.
— Goza em mim... — suplicou depois de alguns minutos de
pura agilidade, sem que cansasse ou saísse do ritmo, embora a
respiração estivesse muito ofegante. Ele sabia que eu estava perto
de explodir. — Preciso te sentir.
Enfiou os dedos entre meus cabelos, prendendo-me mais
contra si e socando fundo. O primeiro grito simplesmente escapou,
enquanto corpo e mente traziam um orgasmo intenso. Ele sufocou
meus próximos gemidos com a sua boca.
Convulsionei e tremi, sentindo o ventre se mover, e cada
enfiada daquele pau me levava a um estágio de gozo mais
avançado que o anterior. Acreditei que nunca tinha gozado por tanto
tempo; os segundos se prolongaram e foicomo se o tempo parasse.
Quando teve fim, eu me sentia amolecida,
momentaneamente saciada.
— Gostosa. — Ouvir aquela palavra no meu ouvido trouxe
uma emoção diferenciada. — Agora, sim, posso esporrar nesse
cuzinho.
O fato de ele ainda se manter falante,usando termos que um
padre jamais ousaria exprimir, deixava-me tomada pela certeza de
que aquele homem comigo ainda era uma versão sem amarras,
obscena.
Padre Benício deixou o corpo enorme pender para o lado e
me puxou por trás, forçando uma conchinha; fui sem hesitação,
porque mal conseguia me mexer de tão atordoada que estava. O
recente orgasmo tinha me tirado de órbita, arrancado da realidade.
Por outro lado, queria que alcançasse seu intento. Que me
invadisse por toda parte, ainda que eu não soubesse se daria conta,
já que anal, para mim, sempre foi uma questão mais complexa.
Ele deixou uma mão por baixo de mim, que logo me agarrou
um seio, enquanto a outra analisava minha segunda entrada sem
pedir licença. Circulou os dedos pela região, e eu estava tão
molhada que conseguiu levar lubrificante para ali, também.
Enfiou a ponta de um dedo e ofeguei. Sentia meu coração
batendo nas têmporas, de tão agitado e ansioso. Padre Benício
segurou o membro e o pincelou em minhas nádegas, depois o
encaixou entre as bandas, atiçando, deixando aquela tora dura
fincada em mim. Senti aquele tamanho e grossura friccionando
minha pele e a chama se acendeu muito depressa. Eu não fazia
ideia de como ainda era capaz de querer mais.
A mão que estava por baixo agarrou meu rosto e me fezgirar
para o encarar lateralmente. Ele passou a língua nos meus lábios,
brincando e me torturando, enquanto continuava deslizando entre a
minha bunda.
Com a outra mão, mirou a cabeça pulsante na entrada que
tanto ansiava, forçando um pouco. Encontrou resistência, por mais
que eu tentasse relaxar para que me penetrasse de uma vez.
Percebendo que não seria tão simples, ele trocou o membro
pulsante por um dedo, pressionando com suavidade.
Naquele instante, entendi mais um detalhe: Padre Benício já
tinha feito, inclusive, sexo anal. Aquela paciência e delicadeza só
podiam ser frutos da experiência, nada mais justificava o zelo.
— Que rabo mais apertado! — resmungou como se
reclamasse, mas notei que, na verdade, regozijava-se com isso. —
Aposto que nunca conheceu um pau.
Ele não estava tão certo assim, mas eu que não elucidaria
nada num momento profundo. O ar que nos envolvia era difícil até
de ser respirado, de tão denso. O homem enfiou mais o seu dedo,
que recebi com facilidade, enlouquecida pelo estímulo novo,
diferente. Juntou mais um dedo ao primeiro, e precisei prender os
lábios para não gritar. Sentia-me à beira da loucura com aquela
invasão.
O padre começou um movimento de vai e vem, fazendo com
que me acostumasse, e o incômodo logo deu lugar ao completo
tesão. Nem acreditava que aquele homem estava se enfiando ali,
assim, com uma liberdade assustadora, e que eu estava tão
estimulada que poderia gozar de novo sem nem tocar na parte da
frente.
Loucura demais.
Eu me contorcia com ele ofegante e emanando um calor
absurdo na minha retaguarda. A água do chuveiro há muito havia se
transformado em suor.
— Deixe que eu faça as apresentações — murmurou,
substituindo os dedos pelo pau, enfim. Forçou e, daquela vez, a
cabeça encontrou certo espaço. Senti minha carne ceder mais e
mordi as bochechas para não gritar.
O homem foi vagaroso, paciente. Saiu e entrou inúmeras
vezes, esperando que me acostumasse com a grossura, sempre
empurrando minha própria lubrificação, e a dele, para ajudar na
fricção. Mantive-me relaxada, aberta, disponível. Em poucos
minutos, eu já não suportava mais esperar.
Rebolei e me movimentei, incitando-o a ir fundo de uma vez.
Padre Benício prendeu meu corpo ao seu e, por fim, enterrou-se
com vigor, já colocando a mão na minha boca por saber que eu
gemeria alto.
— Muito prazer... — ele disse, carregado de malícia, uma
safadeza crua que não parava de surpreender. — Meu pau amou te
conhecer... Te achou apertadinha e deliciosa. — Em seguida,
resmungou: — E vai te dar um presente por causa disso.
Mais uma vez, nada respondi porque não conseguia formular
sequer uma frase. Ele me empurrou com a barriga sobre a cama,
erguendo minhas mãos acima da cabeça, e jogou seu corpo todo
por cima. Não teve o que fazer ou como fugir, o encaixe se tornou
mais cru, implacável. Abafei os gritos escandalosos no colchão,
contorcendo-me por causa das múltiplas sensações.
O padre colocou os braços sobre os meus e iniciou nova
sessão de arremates, chocando seu quadril em minhas nádegas,
enfiando-se na minha bunda com selvageria e posse. Rosnava
baixo ao meu ouvido, parecia dominado por um tesão insuportável,
talvez tão grande quanto o meu.
Sentia minhas carnes arregaçarem, como prometido. Aquela
posição me deixava aberta sem ressalvas. Em minutos, fui
acometida por um clímax doido, que eu nunca tinha sentido; era
menos intenso, fraco, porém derramou muito lubrificante no colchão
abaixo de mim. Eu nem soube se ele percebeu, apenas se manteve
veloz, resmungando palavrões, e eu mal respirava porque o padre
me calava com a mão.
Nunca vivenciei nada igual na minha vida. Era como se
tivesse perdido a sanidade de uma vez, e não sobrava mais nada
além daquele preenchimento cru, obsceno.
— Vou encher esse cu de porra! — rosnou, firme, latente
atrás de mim, como uma máquina incansável. Sentia o suor dele
pingando na minha pele, mas o homem não parecia que
desaceleraria. — Argh! — Abafou o próprio grito enfiando a boca no
meu ombro. Senti um jato quente me preencher. — Toma! —
praguejou, entrecortado. — Toma, caralho! — Mais jatos foram
expelidos a cada choque brutal, de forma que escorreram
perigosamente ao longo da minha vagina.
Eu teria que me virar com uma pílula depois, porque sequer
pensei sobre preservativos e ele certamente não teria nenhum por
perto.
Padre Benício se repetiu mais algumas vezes, até paralisar e
eu só conseguir sentir seu coração batendo, na maior velocidade, às
minhas costas. Um silêncio quase ensurdecedor pairou sobre
nossos corpos despidos e exaustos. Acompanhei aquele coração se
aquietando, até alcançar uma frequência aceitável.
Aquilo me fez ter vontade de chorar. Não consegui
compreender essa emoção, por isso engoli em seco e me controlei.
Ele amoleceu dentro de mim, só então se afastou. Deitou-se
ao meu lado com a barriga para cima e fez uma expressão
repentina de espanto. A ficha deve ter caído, finalmente. Eu o olhei
e não precisei de mais nada para compreender que Padre Benício,
enfim, deparava-se com a cruz enorme em sua parede, acima de
nós.
Virei-me dentro daquele curto espaço, de frente para ele,
acompanhando o seu arrependimento surgir e o deixar com uma
expressão de dar dó. Eu sabia que, quando o tesão passasse, ele
ficaria daquele jeito, tomado pela culpa.
Só não tinha ideia de que doeria tanto em mim.
Continuei o olhando em silêncio. Ele se empertigou e fez
menção de se levantar, mas me coloquei um pouco sobre seu corpo
quente e suado, impedindo-o de um afastamento que só me deixaria
pior. Eu não queria me sentir feitoum lixo descartado, não depois do
que vivenciamos ali.
— Está tudo bem — murmurei, tentando engolir o caroço que
se formara em minha garganta.
Padre Benício marejou, encarando-me como se sofresse
muito.
— Me desculpe. — A voz soou falha. Sua culpa veio com
ferocidade, dava para perceber o quanto tentava controlar o
impacto. Já não existia mais aquele homem que me tomara para si
com tanta convicção.
Balancei a cabeça em negativa, pois me recusava a seguir
por aquele caminho.
— Vamos resolver isso com Deus, depois. Entre nós não
haverá desculpas. — Acariciei seu rosto. — Por enquanto, só
preciso que me beije...
Ele me olhou profundamente. Em seguida, puxou-me para
mais perto, mantendo meu corpo em seus braços e o rosto sobre o
peitoral esculpido. Não me beijou. Temi que nunca mais o fizesse.
— Durma, Luísa — aconselhou baixinho. Seu timbre voltou à
doçura de antes. Ele segurou meu queixo e o ergueu uma última
vez, então juntou nossos lábios num beijo muito rápido. A frustração
me dominou, mas eu não poderia exigir mais nada dele.
— Boa noite, padre Benício.
Ele não respondeu. Ficou em silêncio, alisando meu cabelo
quase que sem perceber. Adormeci nos braços dele por puro
cansaço físico e mental. Se fosse para ser castigada pelas forças
divinas, teria que ser apenas quando amanhecesse.
Eu não suportaria mais nenhuma emoção naquela noite.
PARTE 9
Princípio da penitência

Padre Benício

— Eu prometo que, depois de você, não haverá mais


ninguém.
Acordei sobressaltado, com aquela frase reverberando tanto
em minha mente que foi capaz de invadir até os meus sonhos. Eu
morria de calor e estava todo ensopado de suor, grudento, e
demorei a compreender que havia uma mulher toda nua adormecida
em meus braços, enlaçada como se eu pudesse transmitir alguma
segurança.
Ao contrário de mim – que tive um sono atribulado –, parecia
dormir calmamente, feito um anjo. Como se não tivesse acontecido
nada intrigante. Eu não sabia se a consciência de Maria Luísa
doeria tanto quanto a minha, embora acreditasse que não, porém,
não poderia exigir isso dela. Afinal, fui eu quem fiz votos e
promessas.
Minha culpa, minha culpa, minha máxima culpa.
Fui tomado pela angústia como alguém que atravessa a rua
sem olhar, bem na hora em que está passando um caminhão. Sabia
que seria destruído depois que me deixasse levar. Estava ciente de
que teria que recolher os cacos, mas naquele momento não fui
capaz de organizar nenhum pensamento que me ajudasse.
Caí no desespero, por isso me levantei sem muito cuidado,
porque precisava me afastar urgentemente. A mulher resmungou e
girou no colchão, em seguida voltou a dormir. Suspirei, evitando
olhá-la despida. Já bastava de pecados. O arrependimento me
sobrecarregava o suficiente para o resto da vida.
Paralisado e nu no meio do ambiente que eu considerava o
meu lar, analisei a cruz na minha parede. Guiei os olhos pelas velas
e santos, estacionando no sorriso de Sofia. Eu tinha feito tudo
errado. Deus não foi o único a quem decepcionei com aquele
comportamento perverso, repleto de imundície.
Parecia que tudo ao meu redor desmoronava, toda a base
que me mantinha convicto sobre o que era certo ou errado. Não
pude evitar que uma lágrima de desespero escorresse, mas a
enxuguei por acreditar piamente que eu não merecia nem mesmo
chorar. Clamar pela autopiedade era injusto, uma atitude covarde de
quem se isenta das responsabilidades.
— O que eu fiz?— murmurei, olhando o relógio na cozinha e
constatando que não tinha muito tempo para me preparar para a
missa.
Sendo bem sincero, não sabia se um dia voltaria a estar apto
para realizar uma celebração tão sagrada. Mas era domingo e eu
sabia que o pátio da igreja já estava lotado de fiés. O povo me
aguardava, o que me fez entender que Luísa precisaria tomar muito
cuidado ao deixar a minha casa. Alguém poderia vê-la e então o
resto do que sobrara de mim se transformaria em pó.
Peguei uma batina limpa dentro do armário e corri para o
banheiro a fim de tomar um banho rápido. Não tinha tempo nem
para pensar, e um atraso de minha parte levantaria
questionamentos, que poderiam se tornar suspeitas com facilidade.
Vesti aquele traje me sentindo a pior pessoa do mundo, um
falso, hipócrita, traidor. Evitei olhar no espelho e só voltei para o
quarto quando já estava pronto. A melhor hora para Luísa sair dali
seria quando a missa já tivesse começado. Eu precisava avisá-la,
por menos que quisesse vê-la naquele instante.
Cobri-a com um lençol e só então a chacoalhei, murmurando
seu nome em tom baixo. Ela se sobressaltou em pouco tempo,
piscando os olhos para mim, ainda desnorteada. Olhou ao redor
como se não soubesse onde estava, depois me encarou e pareceu
recordar do que tínhamos feito.
Pulei qualquer saudação matinal. Não estava com cabeça
alguma para formalidades.
— A missa vai começar daqui a pouco — alertei, num tom
sério e até meio frio. Não pude evitar certa aspereza. — Vista-se e
coma alguma coisa da geladeira. Deixe a porta sem trancar mesmo
e, por favor, não seja vista.
Ela continuou piscando mais vezes que o normal.
— Entendeu? — Nem eu estava reconhecendo o meu próprio
timbre. Não havia qualquer emoção, apenas uma profunda apatia.
Luísa assentiu devagar.
— Sim. — Sentou-se, levando o lençol consigo para cobrir os
seios.
Não falei mais nada. Dei as costas para ela e caminhei até a
porta, mas, antes de sair, lembrei-me de um assunto importante.
— Você... — Paralisei e virei um pouco o rosto, sem ousar
olhá-la de fato. — Precisa de alguma coisa para... — pigarreei,
extremamente constrangido. A próxima frase saiu muito baixa: —
Não engravidar. — Deveria ser uma pergunta, mas soou como
afirmação.
Maria Luísa demorou alguns segundos para responder.
— Não. — Devolveu toda a frieza que eu tinha lhe oferecido
em apenas uma única palavra.
— Não brinque com isso. Se precisar, me avise.
Virei mais um pouco e a encontrei com os olhos marejados,
ainda sentada sobre a cama como se não acreditasse naquela
conversa. Bom, eu também custava a crer que eu tinha chegado
àquele ponto.
— Quem você acha que sou? — ela resmungou, sussurrante,
e pude sentir a raiva que emanava de sua voz dura. Era melhor
assim. Seria mais fácil se me odiasse e sumisse de vez. O que
poderia acontecer se eu fosse amável e gentil? Não era meu intento
seduzi-la de nenhuma forma. — Claro que não vou brincar com
coisa séria. Fique tranquilo, nunca mais o senhor ouvirá falar de
mim.
Prendi os lábios, observando o chão, em seguida me virando
novamente para ir embora. Não ousei falar nada. Não tinha como
remediar aquele desfecho sem confundir seus sentimentos a
respeito de minhas intenções. Além do mais, fizemos uma coisa
muito errada e sair dali sem ter noção disso seria o pior dos
sacrilégios.
Transformei aquele aperto em meu peito diante de suas
palavras em um castigo mais do que justo. O mínimo que eu
merecia era penar pelo seu desprezo, até conseguir uma redenção
divina, se um dia viesse.
Foi com a cabeça quase alcançando a loucura que entrei na
igreja pelos fundos. Sabia que os funcionários e ajudantes já
estavam deixando tudo pronto para a missa, de forma que eu só
precisaria me preparar. Parei na frente da capela e tentei buscar
qualquer paz de espírito, mas não consegui. Sequer suportei entrar.
Não sabia de que modo cumpriria os meus deveres daquele dia; era
um dos mais cheios da semana e eu precisaria, obrigatoriamente,
estar conectado com Deus.
— Padre Benício? — Toninho surgiu no corredor, com o
semblante especulativo ao me analisar. — O senhor está bem?
Encarei-o. Será que percebia o quanto eu estava
destroçado? Nunca fui muito bom de disfarçar expressões faciais.
Quando algo me aborrecia, o coroinha costumava saber.
— Estou. — A mentira se acumulou aos outros pecados,
como tinha mesmo de ser. — Só preciso de alguns minutos. Peça a
Jeremias para tocar duas ou três músicas antes de começarmos.
— Claro, padre.
Ele me olhou um pouco mais e só então fez o caminho
inverso, rumo ao altar. Soltei um longo suspiro. Mesmo me sentindo
péssimo, adentrei a pequena capela e ajoelhei perante o Cristo
Crucificado.
Roguei não pelo perdão, mas por forças para oferecer
acalento às pessoas. Implorei para que me considerasse, ao menos
momentaneamente, apto para cumprir os deveres da igreja. Prometi
que faria a penitência o quanto antes e pedi para aquele aperto no
coração não cessar, porque assim eu não me esqueceria do pecado
que cometi.
— Proteja-a, Senhor. — Fiz o último pedido, aquele de forma
quase desesperada, sentindo as lágrimas encharcarem o meu rosto.
— Por favor, não permita que mal algum a atinja. Castigue a mim,
que a usei em um momento de vulnerabilidade.
Soltei todo o ar dos pulmões e enxuguei as lágrimas. Não me
sentia melhor, não ousaria fazer isso tão cedo, mas já podia focar
nos deveres e nas pessoas que necessitavam da Palavra. Por elas,
eu prosseguiria sem desabar.
Assim que me levantei, percebi que Toninho me aguardava
na entrada da capela, com os olhos arregalados de quem tinha visto
um fantasma. Achei que tivesse escutado minha oração e se
espantado, ou pior, encontrado com Luísa, por isso o meu coração
se apertou. Entretanto, ele disse, sem esperar qualquer pergunta:
— Padre, o delegado Moura o aguarda na sacristia. Falou
que era um assunto urgente e que não podia esperar pelo fim da
missa.
Estranhei a presença do delegado na igreja, tão cedo e num
domingo. O que queria comigo? Será que possuía mais informações
sobre o assassinato? Ao menos pude compreender a expressão
assombrada de Toninho, que passou a ser minha, também.
— Então, verei o que ele quer.
— Vou pedir ao Jeremias que distraia os fiés por mais tempo
— o coroinha sugeriu, pensando rápido.
— Faça isso, Toninho. Obrigado.
Ele saiu andando apressadamente, tomado pela aflição.
Tentei buscar alguma calma, mas naquele dia nada de bom e
tranquilo me apetecia, por isso segui para a sacristia sem me sentir
preparado para qualquer conversa.
Encontrei o delegado sentado sobre o birô de madeira, como
se a igreja o pertencesse. Desceu quando me viu, o que agradeci
por dentro, pois não queria que tratasse o ambiente como se fosse
sua delegacia.
— Delegado — saudei, balançando a cabeça.
— Padre Benício.
O homem à minha frenteera mais ou menos da minha idade,
talvez apenas alguns anos mais velho. Tinha o cabelo escuro
raspado num corte militar, o rosto quadrado e um jeito robusto
traduzido num olhar azulado, frio e calculista. Ele possuía um senso
de humor meio esquisito e era extremamente desbocado, mas
exalava confiançae levava seu trabalho a sério, o que me agradava
até então.
Ergui uma mão e nos cumprimentamos.
— Como o senhor está? — Percebi que só perguntou por
educação.
— Com pressa. A missa já se inicia e as pessoas estão
aguardando. — Fui sincero, deixando claro que ele deveria pular
qualquer enrolação que pensasse em fazer.
— Não vou ocupar muito do seu tempo, padre.
Apontei para a poltrona, e o delegado se sentou enquanto eu
contornava a mesa e me sentava na cadeira do outro lado.
— Sou todo ouvidos.
— Serei bastante direto. — Ele se espalhou no assento e
levou ambas as mãos para trás da cabeça. — O senhor se juntou
com a viúva, dona Maria Luísa Cortês, para assassinar o marido
dela, Samuel Cortês?
Meus olhos se abriram ao máximo e o meu coração
congelou, espalhando um arrepio frio ao longo do meu corpo. Quase
engasguei. O ar foi tragado dos meus pulmões velozmente.
— O quê? Mas que... — Levantei-me, espantado e
extremamente perturbado com a acusação. — É claro que não! De
onde o senhor tirou um absurdo desses?
Ele me encarava com frieza, mantendo-se sério. Percebi que
estudava a minha reação de maneira cirúrgica, muito perspicaz.
— Sente-se, padre. Eu precisei perguntar.
Voltei a me acomodar na cadeira, porém minha respiração
continuou entrecortada pelo susto. Em vez do frio inicial, naquele
instante meus nervos esquentaram consideravelmente.
— Sequer conhecia Maria Luísa antes da preparação do
enterro — prossegui, tentando me acalmar. — Nunca trocamos uma
só palavra antes disso.
O delegado assentiu, chacoalhando uma mão para que eu
parasse de me justificar.
— Certo. Quero deixar claro que isso não é uma acusação,
não ainda, mas preciso saber o que o senhor fez na noite de ontem.
Encarei-o, muito surpreso, engolindo em seco. Sentia minhas
mãos começarem a suar e as pernas tremiam. Não fazia ideia do
que estava acontecendo, mas se o delegado me associou àquela
mulher, alguém certamente tinha nos visto e contado para ele.
Mentir seria pior. Eu podia ter cometido um grande pecado, mas não
havia matado ou planejado matar ninguém.
Tudo aquilo só podia ser parte do castigo divino. Que fosse
feita a vontade Dele.
— Claro. — Firmei as expressões. — Ontem foi noite de
sopão aqui na igreja, como o senhor bem deve saber. Distribuímos
alimentos para os menos favorecidos até quase meia-noite. — Fiz
uma curta pausa, enquanto aquele homem austero me analisava
atentamente. — A senhora Maria Luísa se voluntariou e trabalhou
conosco. Ao fimdo serviço, percebi que voltaria para casa sozinha e
estava bastante assustada. Decidi acompanhá-la até em casa.
Delegado Moura assentiu, mantendo-se indecifrável.
— O senhor a levou em casa?
— Sim.
— O senhor entrou na casa dela? — questionou
rapidamente, mal me dando tempo para pensar. Ele era acostumado
a fazer aquele tipo de interrogatório, percebi que usava toda a sua
experiência comigo naquele momento.
Continuei o encarando, embora constrangido e ainda muito
espantado.
— Ela me ofereceu um chá e achei que seria desfeita
recusar. Entrei e fiz companhia a ela.
— E depois? — Cruzou os braços à sua frente, deixando as
pernas mais abertas. Parecia muito à vontade com meu desespero.
Eu me perguntei se Maria Luísa tinha razão em não confiar naquele
homem.
Soltei um suspiro e escolhi a verdade, mas não seria estúpido
a ponto de detalhar tanto.
— Ela ouviu que alguém entrava na casa... Ficou muito
assustada, disse que o assassino de seu marido viria matá-la. Não
pareceu ter dúvida disso. — Delegado Moura, enfim,fezuma careta
do tamanho do mundo. — Nós saímos pelos fundos enquanto uma
pessoa desconhecida invadia a casa dela. Foi assustador.
— Espera... Invasor? Assassino?
Assenti.
— Alguém entrou na casa dela e a mulher se desesperou.
O homem balançou a cabeça em negativa, sem entender
nada.
— Padre... Onde raios essa mulher foi parar? — Fiquei em
silêncio, apenas o olhando. Precisava pensar melhor antes de
responder, para não o assustar ou me incriminar por algo que não
fiz. — Um vizinho ligou dizendo que ouviu gritos que vinham da casa
dela. Como ele é muito amigo de Maria Luísa, tomou a liberdade de
entrar lá depois que percebeu que estava tudo aberto, sem
cadeados, porque imaginou que ela precisava de ajuda. No entanto,
não encontrou ninguém. Ele esperou que ela aparecesse, mas
amanheceu e nada da mulher, então ficou preocupado e ligou para
a delegacia bem cedo.
— Então... — Fiz uma careta, achando a história toda muito
louca.
Quem de fato era esse vizinho? Por que entrou na casa de
Luísa daquela forma? O meu cérebro dava um nó, enquanto que o
Delegado Moura não parecia estar diferentede mim. Seu semblante
passou a exalar confusão.
— O tal vizinho disse que viu o senhor entrando na casa mais
cedo. Mas que porra... — o homem começou com seus palavrões.
Fazia isso sempre que estava irritado ou a fim de zombar de uma
situação. — E é por isso que estou aqui. O senhor foi o último a vê-
la e eu não sou idiota de esperar que outro assassinato ponha o
meu trabalho à prova!
Ele estava chateado por um motivo, mas eu me irritei por
outro.
— Me parece que esse vizinho especula demais. Não acha?
Ele me viu entrando, ouviu gritos, foilá ver... Deve ser um fofoqueiro
que observa a vida alheia por esporte — resmunguei. Eu queria
muito saber quem era aquela pessoa que se achava no direito de
invadir a casa dos outros sem mais nem menos.
Gritos... O máximo que ouviu foram alguns gemidos.
— Padre... Onde está essa mulher?
Ofeguei, sabendo que não poderia escondê-la, do contrário
sobraria para mim. Foi por isso que eu me levantei com seriedade,
de prontidão.
— Presumo que esse assunto é muito delicado para ser
tratado aqui. Por favor, me acompanhe até meus aposentos.
Delegado Moura me olhou atentamente, depois abriu um
meio sorriso carregado de malícia, como se tivesse entendido tudo.
— Claro, padre. Vamos aos seus aposentos tratar deste
assunto.
Andei com aquele homem praticamente me escoltando.
Graças aos céus, ninguém nos viu, já estavam todos dentro da
igreja, inclusive as irmãs e demais funcionários. Deviam estar se
perguntando os motivos de minha demora, coisa que me chateava
internamente. Os problemas só se acumulavam, mas o que podia
esperar depois de ter feito tanta coisa errada numa noite?
Quando abri a porta, imaginei que me depararia com Maria
Luísa, no entanto, não havia ninguém. Girei ao redor de mim mesmo
e olhei para a porta do banheiro, que estava aberta. Procurei-a lá e,
depois, na sala de ginástica, mas não havia sinal da mulher.
Delegado Moura me aguardava com as mãos nos bolsos.
— O senhor está procurando alguém?
Suspirei, apontando para o sofá.
— Sente-se.
Ele bufou, rindo, e se sentou.
— Olha, padre, relaxa. O senhor é novo, imagino como deve
ser difícil essa porcaria de celibato. — Chacoalhou os ombros
enquanto eu me sentava à sua frente, na poltrona velha. — Eu no
lugar do senhor já teria comido metade da cidade. Quem liga para
essa merda?
— Delegado, por favor, tenha decoro — resmunguei, ciente
de que o meu rosto estava corado. — Luísa precisou dormir na
igreja porque não se sente segura, nem mesmo quis ir à delegacia.
O senhor deveria protegê-la, mas está a espantando.
Ele rosnou de raiva.
— E o que o senhor acha que estou fazendoaqui? — Passou
as mãos nervosas pelos cabelos. Aquele assassinato o estava
empertigando, removendo sua tranquilidade. — Eu vim para
proteger essa mulher sem nem ter dado tempo suficiente para ser
considerada desaparecida. Poderia ter ignorado o chamado e
mandado o vizinho se aquietar, mas estou aqui com o senhor.
— Maria Luísa está apavorada, achando que o assassino do
marido vai fazer a mesma coisa com ela — falei a verdade, pois eu
não poderia protegê-la pessoalmente. O delegado deveria fazer
isso, já que era preparado e estava ciente do caso.
— Padre Benício, ela é a principal suspeita. Não se deixe
amolecer tanto.
Prendi os lábios com força. O que ele estava sugerindo ao
dizer aquilo?
— O que sei é que o senhor deve encontrar esse assassino o
quanto antes.
Ele praguejou alguns palavrões.
— Eu encontrarei esse filho ou filha de uma puta. — A voz
saiu dura. — E se quer um conselho... — Levantou-se depressa,
como se não suportasse mais ficar quieto. — Afaste-se. Pode sobrar
para o senhor.
— Não me oporei se ela precisar dos serviços da igreja.
Ele soltou uma pequena risada.
— Padre... Deixe disso. Encontrei uma calcinha e um sutiã
jogados no chão da casa da viúva. Eu sei que o senhor... — Ele
parou no mesmo instante e pigarreou. — Que seja. Não me
interessa. Só se afaste,pelo seu bem, essa mulher não é florque se
cheire. Ela esconde alguma coisa e vou descobrir o que é.
Continuei imóvel, expressando o meu descontentamento num
semblante sério. Não ousei comentar sobre os objetos que Luísa
encontrou, porque de fato o delegado guardava tanta desconfiança
quanto a viúva, porém eu não me envolveria em mais nada. Minha
mandíbula doía de tanto que eu a tinha contraído.
Delegado Moura voltou a colocar as mãos nos bolsos
despreocupadamente.
— O senhor está seguro. Não se preocupe. — Abriu um
sorriso ameno. — Sei que é um sujeito bondoso, tem ajudado a
cidade e a igreja nunca foi tão bem frequentada. Esse povo de
Paraíso precisa de fé e do senhor com a cabeça no lugar.
— Eu... — Levantei, sem saber o que dizer.
— Passar bem, padre Benício. Pode conduzir sua missa, vou
me retirar.
Abri a porta e o Delegado Moura a atravessou às pressas,
deixando um leve aceno como despedida. Nem esperou que eu o
acompanhasse de volta ao pátio da igreja. Sumiu das minhas vistas
e precisei de um minuto completo para me recuperar.
Algo me dizia que o castigo que eu merecia estava apenas
começando.
PARTE 10
Uma mão lava a outra

Maria Luísa

Claro que não esperava ser acordada com caféda manhã na


cama, flores, beijinhos e corações flutuando ao meu redor. No
entanto, Padre Benício me despertou como se eu fosse uma
meretriz, com aquela cara de cão abandonado e uma seriedade que
me angustiou.
As palavras saíram frias, sem emoção alguma. Já foi logo
dizendo o que eu tinha que fazer para ir embora, nem disfarçou o
constrangimento ou a pressa em se livrar de mim. Para completar,
ainda achava que eu era uma irresponsável.
Por um lado, eu podia entendê-lo. A cabeça dele deveria
estar uma bagunça completa, e ainda ter que celebrar uma missa
depois daquela noite... Coitado. Percebi que estava desconfortável
dentro da própria pele, sabia o quanto se sentia mal. Porém, eu era
uma mulher como qualquer outra, tinha vivenciado um momento
muito intenso e, por dentro, necessitava de um pouco mais de
consideração.
Sua aspereza me deixou destroçada, e nada pude fazeralém
de engolir o choro e sair dali o mais rápido possível. Assim que o
padre deixou a casa, tomei um banho depressa, só para arrancar os
vestígios dele espalhados por toda parte – cheiro, gosto, suor, gozo.
Eu estava sem nenhuma peça íntima para usar por baixo da calça, e
o incômodo foi tanto que procurei algo para vestir dentro de seu
armário. Achei uma cueca boxer preta com facilidade, coloquei-a e
tentei não me sentir mal por isso.
Não ousei abrir a geladeira, no entanto. Estava sem apetite
nenhum, segurando a vontade de cair no choro e assustada comigo
mesma, com as reações do meu corpo. Nem a culpa e nem o
arrependimento haviam me encontrado, ao contrário do que eu
esperava, apenas uma tristeza esquisita e certa raiva pela situação.
Deixei a casa dele em poucos minutos, esgueirando-me pelo
corredor e escadaria rumo ao pátio. Olhei por toda parte, conferindo
inúmeras vezes se havia alguém por perto, e a sensação de
estranheza só fez piorar. Avancei conforme percebia que a barra
estava limpa, até alcançar a parte frontal da igreja e me misturar
com os fiés. Ninguém percebeu de onde vim e, como não conhecia
ninguém direito, simplesmente saí de fininho, sem falar com
ninguém.
Apenas uns dois quarteirões depois foi que consegui voltar a
respirar, ainda que o fato de estar indo para casa me trouxesse
aflição, afinal, não sabia o que encontraria. Estava muito cansada,
meu corpo todo doía, sobretudo as partes mais sugestivas. O padre
tinha acabado com a minha raça em todos os sentidos possíveis. Eu
já sabia que demoraria demais para esquecer daquela foda; a
melhor da minha vida em disparada.
Ainda não conseguia lidar com as surpresas. Estava chocada
demais para elaborar qualquer pensamento coerente. Enquanto
inevitavelmente recordava cada toque, cada beijo trocado, e tentava
não desejar aquilo para mim nunca mais, passei pela farmácia a
caminho de casa e me lembrei de que deveria comprar uma pílula
do dia seguinte com urgência.
Estava sem dinheiro, mas sempre comprava ali e Samuel
tinha uma conta antiga, a ser paga todo final do mês. Na verdade,
tínhamos contas no mercadinho, em algumas vendinhas, na
mercearia, enfim, às vezes eu saía de casa sem nada no bolso e
voltava com praticamente a feira do mês; meu falecido marido
pagava tudo depois. O lado bom de morar em cidade pequena.
Adentrei a farmácia olhando de um lado para o outro, de
repente constrangida com o meu pedido. Pensando melhor, o que o
farmacêutico pensaria de mim? Recém-viúva, sozinha... Meu Deus.
Não tinha pensado naquilo. Comprar uma simples pílula naquela
cidade poderia gerar um caos na minha vida, principalmente se o
homem fossefofoqueiro,como a grande maioria dos habitantes era.
Só que pedir para que Padre Benício providenciasse algo assim
seria extremamente pior.
Eu não me lembrava de ter visto a farmácia fechada um só
dia. Até em feriados ela abria, pois era a única num raio de
quilômetros. A outra mais conhecida ficava meio longe e eu não
tinha conta, por isso precisava resolver aquilo logo. Engoli em seco
e fingi olhar alguns esmaltes, próxima ao local onde o único
farmacêuticoatendia uma senhorinha. Pela hora, havia pouca gente
ali e na rua, era cedo demais de um domingo.
Esperei a senhorinha se afastar e só então me aproximei do
farmacêutico atrás do balcão. Olhei ao redor de novo, para o caso
de outra pessoa entrar na farmácia e me pegar no flagra.
— Bom dia, dona Luísa! — saudou, bastante sorridente.
Eu não lembrava o nome dele, nunca fui muito boa com
socialização, mas claro que o homem sabia o meu. Todo mundo que
ainda não me conhecia passou a conhecer depois do assassinato
de Samuel.
— Bom dia... — falei baixo, quase inaudível. Sorri um pouco,
completamente envergonhada. O meu rosto começava a esquentar
perigosamente. — Uma pílula do dia seguinte, por favor.
— Perdão? — ele perguntou alto demais, fazendo uma careta
confusa de quem não ouviu a minha vozinha sussurrante. Não o
culpava, nem eu me escutei.
Soltei um suspiro, paralisada. Tive até medo de conferir se
alguém se aproximou.
— Uma pílula do dia seguinte — eu disse num tom um pouco
mais firme.
— Ah... — Ele sorriu, mas percebi que o rosto corou um
tantinho. Não falou nada, apenas digitou alguma coisa num
computador velho e desapareceu para conferiro estoque. Voltou em
menos de um minuto com uma caixa em mãos. — Só isso, dona
Luísa?
Dei de ombros. Eu queria me enterrar num buraco.
— Só, obrigada. Coloca na conta do Samuel, por favor.
Ele me olhou como se desacreditasse da minha cara de pau,
e só então percebi o quanto tudo aquilo soava ridículo. Mal fazia
quatro dias que Samuel havia falecido e eu já estava alegando
claramente que tinha transado com outra pessoa.
Quando estava nos braços do Padre Benício, não me sentira
tão suja quanto passei a me sentir naquele momento.
— Vou trocar o nome da conta para o da senhora, tudo bem?
— Sim, claro... Por favor. — Soltei uma risadinha nervosa e
totalmente fora de contexto.
O homem devia ter me achado uma maluca, safada e
ridícula, porém não teceu qualquer comentário. Educadamente,
perguntou meu nome completo e refez o cadastro, deixando o
medicamento registrado para ser quitado depois. Saí da farmácia
apressadamente, enrolando a sacola ao redor da medicação para
que ninguém tivesse a mínima chance de conferir o que eu tinha
comprado.
Estava a poucos quarteirões de casa quando uma viatura da
polícia encostou do meu lado, de formatão repentina que quase caí
na calçada e derrubei o remédio, mas consegui me manter de pé.
Filho de uma...
Delegado Moura estava sorridente ao volante, esperando
pela minha reação, que se resumiu em uma olhada feiapara aquela
cara cretina dele. O homem era lindo feito o diabo, mas um
completo imbecil. Seus modos grosseiros me irritavam muito. Eu
não confiava nele de jeito nenhum, menos ainda depois do
interrogatório que fez, quase me incriminado pela morte de Samuel
sem ter nenhuma prova.
— Bom dia, dona Luísa — ele disse, ainda sorrindo,
observando-me com atenção.
— O que o senhor quer? — resmunguei, sem paciência. Já
bastava estar cansada, sentindo-me um lixo, devastada, imunda,
ainda teria que lidar com o sujeito àquela hora da manhã? Me
poupe!
— Entra aí, eu te levo em casa.
Encarei-o, sem entender sua atitude e ainda mais
desconfiada.
— Não é necessário, vou andando.
Ele apertou os punhos ao redor do volante e deixou o sorriso,
enfim, morrer.
— Se eu fosse você, entrava logo nessa porra. — Delegado
Moura era o rei dos bons modos. Só que não. Eu não sabia ainda
como mantinha seu cargo falando daquele jeito. O cara era um
folgado, achava que a cidade inteira era a casa dele.
Revirei os olhos, morta de raiva e começando a sentir,
também, pavor. O que queria comigo? Será que havia encontrado
algum indício?
De qualquer forma, não seria prudente desobedecê-lo. Abri a
maçaneta e me sentei no banco do carona, ao lado do homem. Ele
começou a dirigir sem falar nada, numa velocidade devagar demais
para o meu gosto.
— E então, o senhor já descobriu quem matou o meu
marido?
Não falou nada. Olhei-o de soslaio e percebi que prendeu a
mandíbula com força. Aquele era um assunto delicado para
Delegado Moura. Achar o assassino era a única coisa que ele tinha
que fazer para livrar a própria barra, mas havia se passado quatro
dias e ninguém foi preso. A cidade estava pressionando,
amedrontada e cheia de revolta.
— Acabei de vir de lá da igreja — falou como quem não
queria nada.
Meus nervos pareceram congelar no mesmo instante.
— E daí?
Ele me olhou por tempo demais, o que me deu muita agonia,
porque simplesmente dirigiu alguns metros sem ver nada. Capaz de
causar um acidente.
— E daí que desvendei o caso da vizinha que gritou e depois
passou a noite fora. — Ele riu sozinho, todo debochado. Olhou para
o embrulho que eu carregava, e o segurei com mais força, tirando-o
de suas vistas. — Nenhum assassino invadiu a sua casa ontem,
garota, foi seu vizinho, o tal de Luís. Ele foi te socorrer depois de
você ter gritado, mas já entendi que não foi bem um grito, não é
mesmo?
Arregalei os olhos, estupefata. Sobre o que aquele homem
estava falando, meu Deus? Nada fez sentido na minha mente, só
consegui elaborar que, de uma forma ou de outra, Delegado Moura
sabia tudo sobre mim e Padre Benício.
— Como assim?
Ele relaxou no banco do motorista, sorrindo vitorioso.
— Não se faça de desentendida. Se eu estivesse na sua
pele, inventava uma boa desculpa para o seu vizinho, antes que ele
espalhe para a cidade que você está fodendo com o padre.
Os meus olhos se abriram ainda mais. Minha única reação foi
desconversar, negar tudo, porque me pareceu absurdo que aquilo
saísse de sua boca esteticamente linda, porém suja em cada
palavra que deixava escapulir.
— O senhor enlouqueceu? Não repita isso! — grunhi,
chocada, com meu coração batendo muito forte. Não dava para
acreditar na velocidade em que fui descoberta.
Não se podia fazer merda nenhuma em Paraíso!
— Eu que sou o louco? Agora fodeumesmo! Presta atenção:
o vizinho viu o padre entrar na sua casa e depois ouviu gritos. Foi
ver o que era e não te encontrou lá. Passou a madrugada te
esperando e, como você não retornou, ligou para a delegacia hoje
cedo. Fiz meu dever de te procurar na igreja e descobri sua
lambança — contou tudo aquilo com pressa, sem paciência, de um
jeito grosseiro e enojado. — Esse lance de achar que era o
assassino invadindo a sua casa não cola comigo, está bem? Você
sabia que seria encontrada com a boca na botija e saiu de lá sem
nem ter se vestido direito.
Ainda tentava, mas não conseguia encontrar nexo naquela
história perturbadora. O que porra Luís foi fazer dentro da minha
casa? Por um lado, sentia-me aliviada por não ter sido um criminoso
e eu estar segura, mas por outro... Não estava tão segura assim.
Aquele otário na minha frente havia conseguido o que queria.
E a culpa de toda aquela merda era do Luís, um bisbilhoteiro
de marca maior. Ele precisava aprender a ficar na dele, mas se
achava no direito de tomar conta da minha vida desde a morte de
Samuel.
— O que o senhor está dizendo, Delegado?
O homem bufou, contrariado, mas ainda com aquele senso
de humor cretino traduzido num sorriso carregado de malícia.
— Estou dizendo que a senhora foimuito estúpida. Era só ter
enfiado o pobre do padre dentro do armário! — Deu uma gargalhada
que me irritou profundamente. Soltei alguns resmungos, puta da
vida com aquele sujeito.
— Pare com isso.
Enfim,Delegado Moura estacionou na frenteda minha casa e
se inclinou para me encarar. Havia escárnio em seu semblante,
embora tivesse ficado sério de um segundo para o outro. Os olhos
azuis, que poderiam encantar qualquer mulher, causavam-me
repulsa.
— Você foi longe demais, não acha? Coisa feia... O corpo do
marido nem esfriouno caixão e já foiseduzir logo quem? Um padre.
Passado o susto inicial, soltei uma risada debochada. Sério
que Delegado Moura estava me dando lição de moral? Era só o que
me faltava! Eu estava errada e sabia disso, mas não era ele quem
me julgaria daquela forma.
— Não sei se lembra, se alguma coisa afetoua sua memória,
mas posso esclarecer: o senhor fode com a filha do prefeito, que é
seu melhor amigo de infância. Devo lembrar também que a menina
nem saiu da fralda ainda? Seu pedófilo.
Ele apertou os punhos e me encarou como se pudesse me
matar facilmente. Há cerca de um mês, Samuel se enfiou numa
briga de bar e eu fiquei sabendo porque uma vizinha me procurou
avisando que ele estava fazendo confusão. Eu não soube o que
fazer, pois sabia que, quando meu marido bebia, ficava impossível
de lidar, então, antes que algo terrível acontecesse, fui para a
delegacia buscar ajuda qualificada.
Era tarde da noite e não tinha ninguém na recepção, por isso
tomei a liberdade de adentrar o recinto e... Vi Delegado Moura numa
cena muito escandalosa com a filha mimada e insuportável do
prefeito, uma sem-noção que mal tinha completado 18 anos. Ele
tentou desconversar e, desde então, ficava na minha cola, achando
que eu espalharia o escândalo a qualquer momento. Claro que não
fiz nada, fiquei na minha.
Mas o assassinato de Samuel mudou tudo. Delegado Moura
tinha uma necessidade ferrenha de descobrir um podre meu, e faria
o possível e o impossível para me jogar em maus lençóis, só para
salvar a própria pele depois. Necessitava de uma moeda de troca.
Ele morria de medo que eu colocasse a boca no trombone e
soltasse a bomba no ar, que certamente lhe custaria o cargo.
— Primeiro, ela é de maior — vociferou, com a tez
começando a avermelhar de raiva. — E em segundo, nenhum dos
dois fez voto de castidade. Não coloque sua sujeira na mesma
medida.
Continuei rindo.
— Não me diga que se apaixonou pela criança. — Ele
continuou calado, soltando uns resmungos, o que me deixou
surpresa e ainda mais irritada. Revirei os olhos, ciente de que aquilo
poderia ser tudo, menos amor. — Fala sério. O senhor tem quantos
anos? Quarenta? Te falta vergonha na cara. Poderia ser o pai dela.
— Eu me aproximei mais do rosto dele. — Mas tudo bem, agora que
o senhor conseguiu, pode ficar tranquilo. Uma mão lava a outra. Eu
fico com minha sujeira e o senhor, com a sua. Só me deixe em paz
e trate de encontrar esse assassino.
Fiz menção de me virar e ir embora, mas o sujeito segurou o
meu pulso, impedindo-me com força e grosseria. Típico dele. Eu
não queria nem saber o que andava fazendocom a filhado prefeito;
a menina tinha a metade do tamanho e da idade. O que vi
rapidamente já foi horripilante o suficiente para querer distância.
Não era um sexo normal, não. Tinha até algema envolvida.
— Deixe o Padre Benício em paz — resmungou, mantendo-
me presa. — A cidade precisa dele. O sujeito é boa gente.
— Me larga! — Puxei a mão com a mesma dose de
grosseria, e ele, enfim,me soltou. — Não vou ficaraqui ouvindo sua
hipocrisia. Estamos rodeados de hipócritas nessa merda de cidade!
Que se explodam!
Resmunguei, tomada pela raiva completa, sem conseguir
medir qualquer palavra. Naquele instante, queria mesmo que todo
mundo se explodisse. Bando de fofoqueirodo caralho. Duvidava
muito de que, se estivessem na minha pele, teriam guardado o
segredo do Delegado. E ainda tinha outro escândalo envolvendo a
mesma família,não podia esquecer da cena atrás da cerca, embora
também não pretendesse espalhar.
Delegado Moura ficou calado, em seguida avançou na minha
direção. Achei que fosse me atacar, porém apenas abriu o porta-
luvas e tirou de lá um envelope, com um semblante frioe resignado.
— O prefeito mandou te entregar, abusada.
— O que é isso? — perguntei, segurando o papel dourado,
meio brilhoso.
— Não sabe ler? Abra e leia você mesma. Agora saia do meu
carro antes que eu te leve para a delegacia.
Grunhi, possessa, e saí dali muito rápido, porque sabia que
ele era capaz de inventar qualquer desculpa para me prender.
Abri o portão da minha casa sem nem olhar para os lados e
só então me dei conta.
— Pobre prefeito, isso, sim — sussurrei, pensando que o
coitado estava sendo traído por todas as partes. Filha, esposa,
melhor amigo... Estava todo mundo se comendo e ele com a cara
lisa, fazendo campanha em prol da família tradicional porque era
ano de eleição.
Um segundo depois, eu me lembrei da quantidade de gente
que passava fome em Paraíso – o sopão me deixou com o coração
apertado – e pensei que, talvez, todo castigo para corno fosse
pouco.
Entrei na minha humilde casa com o envelope na mão – após
deixar a medicação sobre a mesa –, encafifadapor ter recebido a
atenção do prefeito. Será que era um cheque? Uma carta de
condolências? O político estava meio desesperado para resolver o
caso e eu sabia que pressionava o Delegado Moura para que
ninguém saísse queimado.
Abri o papel no mesmo instante em que ouvi palmas
provenientes do portão da frente. Dei uma olhada rápida,
constatando que se tratava do Luís. Estava demorando. Claro que
ele tinha acompanhado minha chegada. Será que dormiu ou ficou
só xeretando para saber a hora exata que eu voltaria?
Estava tão revoltada com aquele cara que pensei em ignorar
o chamado, mas ele insistiu e imaginei que seria melhor dar um
“chega para lá” o quanto antes. Abri o ferrolho do portão e o olhei
com um semblante de poucos amigos. Já Luís parecia
genuinamente preocupado, o que só aumentava minha raiva pela
confusão que fez.
— Luísa? — Soltou um suspiro prolongado. — Que bom que
está bem. Eu... — Parou quando percebeu que eu não estava para
conversa. Encarava-o com indignação. — Está tudo bem contigo?
— Olha aqui, Luís... — Aproximei-me um pouco. — Você
sabe que eu odeio gente fofoqueira. Um dos pontos que mais
detesto nessa cidade é o “disse me disse”. Nunca te dei abertura
para tomar conta da minha vida, então por que se achou no direito
de invadir esta casa durante a noite?
Ele piscou os olhos algumas vezes, espantado com a minha
reação dura.
— Eu... Ouvi gritos, Luísa. Só vim conferir se estava bem e...
Tem um assassino à solta. Uma pessoa que matou o seu marido. —
Nós nos olhamos por alguns instantes, em completo silêncio. — Não
acha que você precisa se proteger melhor?
Resmunguei, muito chateada. Nada que ele me dissesse me
traria tranquilidade.
— Você mora a três casas da minha e diz que ouviu gritos.
Como sabia que tinha vindo daqui e não da TV de algum outro
vizinho? — Ele não respondeu, apenas deu de ombros. — Ninguém
gritou. Você já estava xeretando, não foi?
— Não é isso, eu vi o padre entrando por acaso e fiquei
preocupado, somente.
Fiz uma careta do tamanho do mundo. Luís pode não ter
ouvido gritos, mas se estava bisbilhotando, provavelmente ouviu
alguma coisa. Apesar de saber que eu não tinha sido tão silenciosa
assim, a porta da sala estava encostada e havia certa distância
entre o terraço e o portão. Cheguei à conclusão de que o homem
tinha ouvido, no máximo, resmungos.
De qualquer modo, eu precisava me defender daquilo tudo e
arrancar qualquer desconfiança que o vizinho poderia ter.
— Nunca mais faça isso. Achei que a casa estava sendo
invadida e saí daqui com o padre na maior correria, parecia cena de
filme. — Dei uns passos para trás, deixando claro que fecharia o
portão a qualquer momento. — Você me fez passar uma noite na
igreja, morrendo de medo de ser morta.
Não foi bem assim o que aconteceu, mas precisava trazer
drama à história e fazer com que se sentisse culpado. Afinal, a culpa
daquela merda era dele mesmo. Quero dizer, não de eu ter transado
com o padre, mas de ter dormido fora.
— Me desculpe, Luísa. Sério mesmo... — Colocou as mãos
nos bolsos, fazendo uma expressão meio desolada. — Só quis
ajudar. Não fica chateada comigo, sabe que tenho um carinho
enorme por você e me preocupo.
A forma como falou aquilo me fez amolecer, mas só um
pouquinho. Eu sabia que ele era apaixonado por mim desde que me
mudei, e que respeitava o fato de eu ser casada, pelo menos até
Samuel ficar muito descarado. Luís devia esperar que eu
correspondesse ao sentimento após minha viuvez, o que me
causava certa pena.
— Tudo bem, só não façamais isso — concluí, afastando-me
mais. Antes que falassealguma coisa, cortei logo: — Tenha um bom
dia. Preciso tomar um banho e deitar.
Fechei o ferrolho, daquela vez com o cadeado. Tranquei a
grade do terraço e, também, a porta da sala. Cuidaria melhor da
minha proteção, não vacilaria de novo e nem daria margens para
que as pessoas se intrometessem na minha vida. Queria passar por
aquela cidade de maneira imperceptível, o que depois percebi que
seria complicado, já que o assassinato não seria esquecido tão cedo
e, também, pretendia abrir um salão de unhas. Eu precisaria
daquelas pessoas para me manter.
— Droga — resmunguei, jogando-me no sofá, com o papel
ainda em mãos.
Finalmente o abri e me deparei com um convite, coisa que
simplesmente não esperava e me deixou confusa. O prefeito faria
aniversário na semana que vem e daria uma festa na sua
residência. Pela qualidade do convite dourado, seria uma
comemoração e tanto. Fiquei sem entender por que havia sido
convidada, já que conheci o sujeito apenas no enterro e não
tínhamos a mínima intimidade para isso.
Depois de refletir um pouco, imaginei que tivesse me
convidado para que as pessoas não falassem que ele estava
comemorando diante de uma cidade assolada por um assassinato,
ainda em luto. Se a própria viúva estivesse presente, ninguém
questionaria coisa alguma, afinal, a mais interessada no assunto
estaria seguindo em frente.
Impressa no convite, havia uma foto dele, da filhinha mimada
e da nova esposa, que deveria ser apenas alguns anos mais velha
do que a filha do primeiro casamento.
— O que esses caras têm com as novinhas? — resmunguei,
pensando no Delegado Moura e em sua grande cara de pau ao
mexer com fogo. Aquilo tudo daria numa merda muito grande. Eu
que não faria parte do escândalo, pois queria e precisava de paz.
Para tal, necessitava me afastar de Padre Benício
definitivamente. Só de pensar na nossa noite, o meu peito se
comprimia e eu perdia todo o ar, tomada pelas sensações malucas
que as lembranças causavam.
Ao menos aquilo me fez pensar na pílula e me levantei do
sofá para tomá-la de uma vez, mas paralisei ao encontrar o meu
sutiã repousado no encosto de uma das cadeiras. Parecia ter sido
deixado ali de propósito, para que eu me lembrasse do que fiz. O
fato do Delegado ter estado na minha casa me desesperou.
Na agonia, corri até o armário onde outrora jaziam os
pertences do Samuel. Suspirei aliviada ao encontrar a caixa preta
no mesmo lugar, do jeito que a deixei, com aqueles indícios intactos.
O homem não tinha mexido nas minhas coisas. Ele sabia que não
poderia fazer isso sem um mandato, o que me fez entender que
deveria tirar aquelas coisas dali, guardá-las em um lugar seguro.
Um pouco mais calma, voltei para a sala e resmunguei na
direção do sutiã: a prova do meu grande pecado. Peguei-o para
levá-lo ao cesto de roupas sujas, porém não achei a calcinha em
parte alguma. Procurei-a embaixo dos móveis, começando pela
sala, e depois a busca evoluiu para uma faxina, pois simplesmente
não a encontrava.
Depois de horas limpando e arrumando, eu me dei conta de
que a peça não estava ali. Não poderia estar. Delegado Moura a
tinha levado.
— Cretino, filho de uma puta!
PARTE 11
No confessionário

Padre Benício

Toninho ficou sorridente quando eu o chamei para me


acompanhar em uma festa que aconteceria na casa do prefeito
naquele sábado, e que fui convidado não sabia direito o motivo,
podendo levar um acompanhante. Não parava de falar sobre
precisar alugar um terno, além de fazer milhões de suposições a
respeito do convite. Ele era jovem e merecia se divertir mais, não
apenas participar da organização das festividades da igreja.
O coroinha quase nunca se divertia porque trabalhava muito
– servia a Deus com bastante esmero e sem reclamar. Quando
surgiu com o envelope que tinha o selo do prefeito em mãos,
curioso e mal esperando a última pessoa sair do confessionário
naquela noite, aguardou que eu o abrisse na frente dele. Não
pestanejei, porque confiava no meu braço direito. Depois da
surpresa inicial, entendi que era melhor atender àquela solicitação,
portanto frequentaria a tal festa para não fazer desfeita.
— Mas o senhor tem um terno? Vai precisar se vestir direito,
padre, nada de batinas ou aquelas coisas enormes e surradas que o
senhor usa. — Olhou-me com atenção. Às vezes Toninho dizia que
eu precisava ter mais zelo com minhas vestimentas, mas ele não
sabia que eu costumava usar roupas largas para não chamar muita
atenção para o meu corpo.
— Tenho um bom terno guardado, ele basta.
— Acho que vou amanhã a uma loja de aluguéis. Minha mãe
vai ficar contente. Festa na casa do prefeito? Muito chique, não é?
Assenti, feliz com a empolgação de Toninho. Era apenas um
moleque, no fim das contas. Não deixei de notar que aquele foi o
primeiro resquício de sorriso que consegui abrir dentro de quatro
longos dias.
Estava sério, com o emocional em frangalhos,buscando uma
redenção que me parecia longe e uma motivação que havia se
escondido. Um período de trevas. Eu me encontrava num túnel
escuro e ainda não tinha achado a saída.
Enquanto o coroinha continuava a deliberar sobre a festa,
mantive-me com os olhos sobre ele, mas com os pensamentos
muito distantes. Realizei cada uma das tarefas com empenho e
dedicação, ainda que não me considerasse o suficiente para
nenhuma delas. Segui em frente como pude. Entretanto, quando
chegava ao silêncio dos meus aposentos e me lembrava de Maria
Luísa, voltava ao limbo, à incerteza, ao fracasso. Falhava todas as
vezes que tentava não recordar.
Sonhei com seu corpo no meu e imaginei milhões de
situações vulgares em todos os cantos em que estive. Meus
pensamentos estavam nebulosos demais, e nem mesmo rezar,
meditar, orar e pedir socorro a Deus estava funcionando. Era o meu
castigo, eu sabia. Precisava me confortar com o fato de que um dia
teria fim. Nenhum sofrimentodura para sempre, sobretudo quando a
força do amor divino nos ronda.
— Padre? — Toninho balançou a mão na minha frente.
Aquela atitude já tinha se repetido algumas vezes ao longo daqueles
dias. — Padre?
Pisquei os olhos, enfim, focando no seu rosto de novo.
— Hum... Sim?
Toninho mostrava um semblante carregado de preocupação.
— O senhor anda distraído.
Dei de ombros.
— Muitos pensamentos. — Levantei-me de uma das cadeiras
do confessionário.
A nossa igreja possuía uma pequena saleta lateral que servia
para atribuir conforto nos momentos das confissões; um espaço
pequeno, de uns quatro metros quadrados, em que só havia uma
mesa e duas cadeiras uma na frente da outra, como num
consultório. A única decoração era uma cruz na parede, nada mais.
Não havia porta, apenas uma cortina vermelha com detalhes em
dourado, garantindo certa privacidade.
Toninho também se levantou diante de mim.
— Temos que fechar a igreja, padre, o dia foi longo.
— Sim, vamos... — expirei, realmente me sentindo cansado.
Toninho abriu a cortina e parou, observando alguma coisa
dentro da igreja, em seguida se virou para mim.
— Padre, me desculpe. Eu não vi que ainda tinha uma
pessoa aguardando para confessar. O envelope me deixou
empolgado.
Resignado, voltei para a cadeira e me sentei de novo.
— Não se preocupe, pode pedir para que entre. É a última?
— Sim, não tem mais ninguém. Vou organizando as coisas
enquanto o senhor atende.
O coroinha saiu e eu soltei mais um suspiro. Andava
suspirante pelos cantos, demorando a me dar conta de meus
próprios devaneios. Não sabia o que tinha sido pior, realizar as
missas ou ouvir confissões. Não me sentia nem um pouco
preparado para encarar os pecados dos outros. E como aquela
gente pecava, santo Deus! Era cada coisa absurda que escutava.
Só que, quem era eu, que tinha cometido uma barbaridade
sem precedentes, para dizer quantos pais-nossos aquelas pessoas
precisavam rezar? Eu já estava cumprindo uma penitência tortuosa
e exaustiva, e ainda assim não me sentia perdoado. Será que elas
se sentiam assim, também? Porque eu estava prestes a explodir de
angústia.
Sem me dar conta, eu me distraí de novo. Fiquei olhando
para o tampo da mesa como se o tempo tivesse paralisado. Acordei
apenas quando a pessoa diante de mim soltou um pigarro,
chamando a minha atenção. Ela entrou e eu sequer percebi. Não
estava no meu juízo perfeito, via a hora de cometer uma gafe assim
no meio de uma missa.
Quando ergui o rosto para observar a última fiel a se
confessar, simplesmente congelei. Meus olhos se abriram e o
coração passou a bater num ritmo frenético,que me arrancou todo o
fôlego. Os segundos voltaram a se arrastar, enquanto me
perguntava se estava vendo uma assombração, um fantasma fruto
da minha mente torturada, ou se de fato Maria Luísa havia se
sentado ali.
— Padre Benício. — Sua voz soou comedida. Achei que
nunca mais ouviria aquele timbre doce de novo, e não estava
preparado para lidar com o que ele me causava.
Percebi que Luísa estava séria e envergonhada ao mesmo
tempo, usando uma roupa cor-de-rosa e com os cabelos soltos,
além de um pouco de maquiagem. Não deixei de me perguntar se
tinha se arrumado para vir à igreja. E com qual propósito fizera isso.
Eu não consegui saudá-la. Nenhuma gentileza saiu dos meus
lábios, apenas me fechei numa carranca impassível, como um
mecanismo de defesa. Ela não podia aparecer e tragar a minha paz
daquela forma. Já bastavam as memórias conflitantes...
Maria Luísa tinha prometido que eu nunca mais ouviria falar
dela, porém não conseguia cumprir nem mesmo ficando longe. As
beatas fofocavam demais sobre a recém-viúva da cidade. Ouvi
quando disseram que ela tinha aparecido na feira, no dia anterior,
usando uma blusa branca. Todos comentavam que havia
abandonado o luto cedo demais. Escutei até uns ruídos de pessoas
questionando se não tinha sido ela a assassina.
Eram muitos boatos envolvendo aquela mulher – inclusive,
deparei-me com rumores a respeito de uma pílula do dia seguinte, o
que me deixou num nível de perturbação beirando o descontrole.
Quando não pensava nela, de fato alguém estava falando perto de
mim, deixando-me ainda mais transtornado e perdido. Eu não a
havia esquecido nem por um mísero segundo, e começava a ficar
cansado de lutar contra toda aquela insensatez.
— O senhor não vai falar comigo? — Luísa continuou, ainda
mais séria, só que percebi os olhos piscando muitas vezes,
ameaçando marejar. — Sou tão miserável assim?
Eu a olhei sem acreditar no que dissera.
— Quem disse isso?
Ela fez um muxoxo, desviando o rosto, coisa que agradeci
internamente. Aqueles olhos redondos e escuros mirados em mim
eram capazes de me arrancar não somente a paz, mas também
qualquer chance de me sentir arrependido. E então me deparava
com meu grande problema. Como ser perdoado se, no fundo, ainda
sentia que faria tudo de novo, milhões e milhões de vezes?
— Não sou idiota, tenho percebido os rumores. Falam de
mim por onde quer que eu ande. — Balançou a cabeça, assentindo.
— Pretendo ir embora dessa cidade, mas se fizer isso agora, serei
dada como assassina fugitiva. Não tenho para onde correr, é
enfrentar essa gente ou surtar. Por isso decidi que ninguém vai me
ditar suas verdades ou me obrigar a nada.
Fiz uma careta.
— Do que está falando?
— Não me importo de romper o luto, se não o sinto, não da
forma como esperam. Também não me importo de fazer o que
quero.
Ela me olhou daquele modo fixoque me faziaperder a razão.
Ficou me encarando, com certeza ciente do quanto me provocava.
Sustentei aquele olhar como pude, mas eu era um fraco,um ser que
tinha muitas falhas. Desviei o rosto em algum momento, incrédulo e
rezando para que Luísa sumisse da minha frente, antes que nada
mais pudesse ser feito para me manter controlado.
— E o que a senhora quer?
Ela sorriu de leve, os olhos ainda brilhantes por causa de
lágrimas não derramadas. Notei que tinha muito sofrimento em seu
semblante, uma dor não tão oculta assim, ao menos para minhas
percepções. Os últimos dias não pareceram fáceis para ela,
também.
— O senhor não está preparado para ouvir a resposta —
desconversou, deixando-me chocado com a ousadia, e observou o
envelope que ainda se encontrava sobre a mesa do confessionário.
— Também fui convidada de última hora. Acho que o prefeito não
quis cancelar a festa e me chamou para se sentir menos culpado.
Aquela informação me deixou empertigado, pois não
esperava ver Maria Luísa na casa do prefeito. Com certeza não
daria em nada bom, pois lá estariam o delegado e também a
primeira-dama adúltera. Muitos possíveis escândalos reunidos em
um só lugar, contando conosco, claro, porque era o que havíamos
nos tornado: um grande escândalo.
— O que está fazendo aqui, Luísa? — perguntei, enfim,
tomado pela curiosidade. Até então ela estava me enrolando, talvez
sentindo o terreno antes de pisar com força. — Suponho que não
veio se confessar.
A mulher voltou a me encarar e o ar simplesmente foi tragado
do recinto. Tentei conter a imaginação, porém foi trabalho
impossível. Não pude fazernada além de esperar por uma resposta,
que veio segundos depois:
— Não, não preciso me confessar, padre Benício. Não estou
arrependida.
O fato de ter dito aquilo olhando no fundo dos meus olhos me
fez soltar um leve grunhido. Não era possível que estivesse
acontecendo. Nós devíamos nos evitar, esquecer o que houve, pedir
perdão a Deus e seguir em frente sem falhas. Mas o que eu
percebia era que tê-la no mesmo ambiente ainda era um perigo. O
alerta soava alto e piscava bem diante de mim, porém me via sem
defesas.
Antes que a loucura me dominasse, a mulher retirou da bolsa a
caixa preta que havia me mostrado outro dia. Fiquei meio
espantado, porque pensei que já tivesse sumido com aquilo, mas
pelo visto me enganei.
— Preciso que esconda essas coisas, padre. Não tenho onde
deixar. Se o delegado Moura encontrar em minhas mãos... Eu não
sei o que vai ser, porque ainda não sei o que o Samuel estava
fazendo.
Olhei para a caixa, confuso e ciente de que deveria continuar
sem me envolver com aquele assunto, pelo meu bem e o da igreja.
Não tinha cabimento esconder indícios, menos ainda num lugar
santo. Mas olhando de relance para ela, notei o seu desespero, a
dor por trás da escuridão de seus olhos. Maria Luísa estava
sozinha, mal falada, perdida. Uma alma que carregava uma história
trágica e infeliz.
Alguma forçadesconhecida, mas intensa, me fezpegar a caixa
e a puxar sobre o tampo da mesa.
— Certo. Vou me certificar de que ninguém encontre.
Ela me olhou com descrença. Estava pronta para um embate,
para argumentar e implorar, se fosse preciso, mas não precisou de
nada daquilo.
— O-O... V-Vai guardar?
— Sim.
Os olhos dela se arregalaram.
— Vai me ajudar? — E então, uma lágrima caiu, sorrateira.
O meu coração ficou ainda mais apertado. Não queria que
chorasse daquele jeito. Foi assim que percebi que seu sofrimento
me angustiava muito, uma coisa fora do comum. Eu era acostumado
a me compadecer com as dores alheias, naturalmente, a me
importar e me implicar com as mazelas. Mas Maria Luísa me trazia
novas emoções para experimentar, que eu sequer sabia nomear
com clareza.
Percebendo que ela precisava de apoio, apertei uma de suas
mãos, a que estava sobre o tampo. Não importava que uma simples
atitude pudesse me arrastar de novo para o abismo.
— Você não está sozinha.
Ela prendeu os lábios com força, mas logo deixou um soluço
escapar, e mais outro e outro. Caiu num pranto e eu tive que me
levantar para socorrê-la. Em condições normais, teria arranjado um
lenço do pacote que guardava numa das gavetas embutidas na
mesa, mas, em vez disso, fuiaté ela e a puxei para um abraço forte,
colocando-a de pé.
Envolvi minhas mãos em sua cintura e a trouxe para mim. Ela
rodeou os braços no meu pescoço e chorou por alguns instantes,
puxando-me como se não quisesse que eu escapasse. Podia
imaginar a tristeza infiltrada naquele coração. Infeliz no casamento,
aguentou traições e desprezo. Numa das fofocas,eu soube que
Luísa perdera a mãe fazia pouco tempo e, agora, o marido, de uma
formabrutal. Ficou conhecida e caiu na boca do povo da pior forma,
e numa delas eu era diretamente culpado.
Se era inevitável pecar, que ao menos eu tivesse nos
protegido melhor. Aquela irresponsabilidade minha custou caro para
Luísa.
Foi ela quem ergueu a cabeça, buscando meus olhos, e então
nos mantivemos muito perto um do outro. Perigosamente próximos.
Eu estava cansado de pensar. De lutar. De buscar qualquer controle
ou coerência. Era a primeira vez que me sentia vivo de verdade
desde que nos despedimos, e não queria me livrar de uma boa
sensação, ainda que estivesse instalada no meio de uma maré
carregada de piores sentimentos.
Toquei a lateral daquele rosto lindo, corado, e plantei um beijo
suave na ponta de seu nariz; um gesto que não tinha vulgaridade,
mas um afeto que, ainda assim, era inadequado.
Ela riu, chorando, tudo ao mesmo tempo.
— O-Obrigada.
Continuei a acariciando, arrastando os dedos por onde via que
as lágrimas escapavam, a fim de as enxugar. Não consegui dizer
nada durante um bom tempo. Olhava-a e a tocava com ternura,
enquanto ela, emocionada, não disfarçava o desejo de avançar. Eu
não queria seduzir ou ser seduzido, mas me via sendo tragado pelo
momento como um rio escorrendo à mercê da casualidade.
— Eu quase morri de saudade de você — confessei, tão baixo
que mal escutei. As palavras absurdas escapuliram de uma maneira
surreal, cruas e intensas, e só então constatei aquela verdade.
Eu havia remoído uma falta de algo que sequer entendia ou
conhecia. Só sabia que Luísa tinha deixado um vazio que eu tentava
preencher com a culpa, com a fé, com a penitência e os deveres,
com qualquer coisa que não funcionava. Porque naquele espaço
novo e impertinente talvez coubesse apenas ela.
Ao menos eu me sentia preenchido enquanto a olhava,
lutando com todas as forças para não juntar nossos lábios e colocar
tudo a perder. Entretanto, não foi necessário me controlar, porque
aquela mulher simplesmente fez a tarefa: segurou minha nuca com
ambas as mãos e afundou a boca na minha sem pestanejar.
Apertei sua cintura com força enquanto a língua dela
chamava a minha para participar da loucura na totalidade. Eu
poderia ter me afastado, se fosse um pouco mais forte e decidido,
mais firme em meus propósitos. Em algum momento achei que eu
era, mas não. Qualquer convicção caía por terra com Luísa me
apertando contra si, exigindo contato aprofundado, de forma que
não consegui pensar em mais nada.
Fui tragado pelas sensações e a enlacei de vez, empurrando
os lábios num beijo intenso. Agarrei-a com intimidade e a girei para
sentá-la sobre a mesa, naquele instante sequer me dando conta de
que estava num confessionário. A igreja pareceu ter sumido,
evaporado, virado fumaça.
Luísa se abriu por inteira ao meu redor, permitindo que
minhas mãos encontrassem suas coxas desnudas, e só daquela
formapercebi que usava um vestido rosa-claro, atribuindo-lhe um ar
virginal. Eu sabia que era apenas uma impressão. Aquela mulher
era fogo puro, uma chama que não se apagava e me despertava
para os piores pecados, arrancava de mim os desejos mais
obscenos.
— Quero você... — ela murmurou num curto gemido,
misturado a ofegos. Aproveitei a pequena pausa para afundar a
boca em seu pescoço e avaliar o arrepio deixando a pele macia e
cheirosa toda empolada. — Aqui. Agora.
Havia em mim algum resquício de consciência que sabia
perfeitamente que estávamos dentro da igreja, no confessionário, e
que inclusive trajava uma batina, veste sagrada que significava que
eu me mantinha dentro de uma missão. Sequer deveria pensar em
vesti-la enquanto estivesse tomado por qualquer outra mentalidade
que não fosse Deus. Mas lá estava eu, de novo, aos amassos com
aquela mulher, descontrolado e com o membro rígido entre as
pernas, implorando para se enfiar em suas carnes.
— Sentiu falta do meu pau te comendo, foi? — falei muito,
muito baixo, perto de seu ouvido. Luísa assentiu, desesperada,
esfregando-se em meu corpo e se contorcendo para que os toques
ousados evoluíssem logo.
— Não só dele. De você todo — admitiu, agarrando meu
rosto para dizer aquilo me olhando fixamente. Eu me perdi ainda
mais. Deu para sentir meu coração amolecendo, fraquejando,
batendo depressa por ela, querendo-a como nunca.
Como era possível que eu ignorasse toda a loucura que era
trocarmos tais palavras, enquanto nos acariciávamos de um jeito tão
íntimo? Por um instante, senti-me extremamente vulnerável, o que
me fez paralisar um pouco.
Minhas reflexões foram guiadas para a memória de Sofia e
foi o que tornou possível certo controle. Engoli em seco e dei um
passo para trás, passando as mãos nervosas pelos cabelos
enquanto encarava Maria Luísa sentada e aberta sobre a mesa.
Seu olhar mudou para curiosidade e receio.
— Está errado — sussurrei, balançando a cabeça em
negativa. Dei mais um passo para trás e choquei contra a parede.
Não tinha mais para onde fugir, fiquei ali, olhando-a e a desejando,
enquanto lutava contra todos os meus fantasmas.
Por incrível que parecesse, não pensei tanto assim nos votos
ou na igreja, mas num passado que ainda me martirizava. Eu queria
e precisava deixá-lo intacto como uma parte profunda da minha
vida, mas Luísa mexia com tudo. Estava me virando pelo avesso.
Alheia ao meu desespero, a mulher sorriu um pouquinho,
carregada de perversidade, e endireitou as pernas apenas para, por
baixo do vestido, remover a calcinha branca. Foi a tirando devagar,
resvalando na pele até libertá-la. Por fim, jogou a peça íntima na
minha direção, praticamente no meu rosto. Segurei-a, à beira do
desespero.
Luísa abriu as pernas lentamente, parecia em câmera lenta,
deixando a boceta muito lubrificada à mostra. Os contornos me
seduziram e não consegui desviar o olhar do cenário. Passei a
língua sobre os lábios, sentindo-me sedento de repente, com a boca
cheia d’água e uma necessidade descomunal de tomar cada gota
de seu prazer.
— É errado, padre... — Ela assentiu, inclinando até depositar
os cotovelos na mesa, sem deixar de me olhar. As pernas se
arreganharam ainda mais, de forma que pude ver tudo o que mais
desejava naquele instante. Meu coração batia tão forte que a
respiração saía ruidosa. — Muito errado. É podre, imundo... Um
pecado. Eu me sinto uma ordinária fazendo isso. — Parou, abrindo
um sorriso cretino e rebolando os quadris num convite impossível de
negar. — Mas nunca me senti tão viva. Eu tenho ânsia de viver,
porque só agora tenho o direito de tomar decisões, ainda que ruins.
Eu sabia que não teria como me controlar diante daquele
corpo entregue de bandeja na minha frente. Bem que tentei me
esforçar para manter a cabeça no lugar, para implorar a Luísa que
não fizesse aquilo de novo, porém foi impossível. Quanto mais
raciocinava, menos me via saindo dali sem me afundar nela, por
isso, meu último resquício de sensatez me fez começar a
desabotoar a batina. Ela não caberia no cenário que se desenrolava
em meus pensamentos, e que eu não via a hora de colocar em
prática.
Luísa ficou me analisando atentamente, com aqueles olhos
escuros desejosos, acompanhando cada um dos trinta e três botões
sendo retirados, enquanto ainda segurava a sua calcinha obscena,
e o homem por baixo daquela veste sagrada reaparecendo,
ressurgindo como se tivesse adormecido durante todo aquele
tempo.
Chegando à metade, desisti do intento e removi o restante
por cima da cabeça. Deixei o tecido pesado cair ao chão, bem como
fizera com a minha própria sanidade. Ergui as mãos e me desfiz do
colarinho clerical, terminando apenas com a calça escura que
costumava usar por baixo da batina.
— É você — Luísa murmurou, expirando ruidosamente.
Assentiu e sorriu de um modo que eu poderia considerar perverso,
cheio de malícia, mas também havia uma doçura difícil de
descrever. — É você mesmo que eu quero.
Fiquei surpreso por ela compreender a enorme diferença
entre a pessoa que vestia a batina e aquela que estava despido e
muito excitado diante dela, porque nem eu mesmo conseguia
discernir na maioria do tempo, de maneira tal que quase sempre me
perdia.
Um grunhido surgiu do âmago do meu ser e explodiu, dando-
me impulso para diminuir a distância entre nós. Podia entender o
sentimento dúbio que ela mencionou e que também me invadia; eu
me sentia sujo, traidor e covarde, mas meu sangue circulava nas
veias feito brasa, agitando-me, oferecendo a mim mesmo uma ideia
de alegria despudorada. Era o sabor do proibido.
O delicioso gosto do veneno.
Eu me inclinei sobre sua intimidade, sentando-me na cadeira
apenas para me apoiar e ficar no ângulo perfeito para tomá-la.
Agarrei suas coxas grossas com força, mantendo-as abertas, e
passei a língua uma vez, de sua abertura até o início do clitóris.
Luísa se contorceu e abafou o gemido, pendendo a cabeça para
trás.
Repeti o movimento algumas vezes, provocando, fazendo
com que se desesperasse para receber mais estímulo. Eu parava
para a analisar de propósito, querendo conferir o que cada toque
causava em seu corpo. A mulher estava ensandecida, dava para
perceber no olhar desesperado por mais.
Quando me senti misericordioso o suficiente, afundei os
lábios no seu ponto mais sensível e circulei a língua várias vezes.
Bebi a umidade que não parava de escapar a cada instante,
embriagado pelo cheiro e gosto daquela boceta maravilhosa.
Um resquício de juízo me fez olhar para o lado, enquanto a
chupava e sugava, na direção de onde estava a cortina vermelha
fechada. Toninho não invadiria uma confissão, mas, ainda assim,
talvez estranhasse a demora e surgisse para conferirse estava tudo
em ordem. Havia a possibilidade de sermos descobertos, pegos no
flagra. Em vez de me desesperar, simplesmente considerei o fato
um enorme incitador.
Não podíamos demorar. Talvez eu devesse fodê-la sem
preliminares.
Eu me ergui, infelizmente sem arrancar seu gozo, e a puxei
para mim. Forcei um beijo que misturou nossas salivas com o gosto
dela, em seguida agarrei seus cabelos, mantendo-a presa perto de
mim.
— Tem que ser rápido e silencioso — sussurrei, enfiando a
sua calcinha no bolso da calça, já que até aquele instante estava a
apertando entre meus dedos. — Não grite.
Antes de esperar por uma resposta, puxei-a pela cintura,
colocando-a de pé novamente, depois a girei e empurrei seu tronco
na direção da mesa. Luísa soltou um arquejo, parando de costas,
com a bunda farta empinada para mim, posição perfeita para foder
do jeito que eu ansiava.
Apressado, desci o zíper da minha calça e me desfiz do
botão, abaixando-a um pouco, junto com a cueca. Não daria tempo
de remover todas as nossas vestes, e já estávamos arriscando
demais: a ausência da minha batina fazia com que ficasse
impossível o disfarce, caso fôssemos pegos.
Assim que o meu pau, duro feito pedra, ganhou liberdade,
pincelei-o na abertura dela, espalhando nossos lubrificantes,
misturando-os.
Dei mais uma olhada na direção da cortina.
Com uma mão, puxei os cabelos de Luísa, fazendo-a se
inclinar para trás, e com a outra encaixei o membro naquela boceta
sedenta. Ele escorregou rápido para dentro dela, ajudado pela
quantidade excessiva de umidade. Senti-a escaldante ao meu redor,
latejando e me apertando de um jeito que me fez rosnar baixo.
Luísa se manteve calada, muda, mas percebi que a
expressão era de quem se controlava infinitamente para prosseguir
na surdina.
Enfieicom força,chacoalhando um pouco a mesa, e paralisei
por causa do barulho indevido. Talvez não tivesse sido uma boa
ideia. Afastei-a dali, trazendo-a junto do meu corpo, e meti
novamente, com mais força. Luísa ficou sem apoio com o
distanciamento da mesa, por isso acabei me sentando na cadeira
mais próxima.
Ela pareceu ter gostado da posição, porque logo começou a
quicar sobre mim, subindo e descendo rapidamente, usando as
braçadeiras da cadeira para se apoiar. Eu a ajudei segurando sua
cintura, a fim de garantir um movimento mais bruto. Queria que
comesse meu pau até o talo. Queria possuir seu interior até onde
fosse possível.
Um calor absurdo tomou meu corpo, fazendo-me suar e
perceber o quão quente era o confessionário, que nem janela tinha.
Enrolei o vestido dela para conferir melhor os choques de nossos
sexos a toda velocidade, de maneira crua e sagaz, intensa. Era uma
delícia perceber o contorno daquela bunda se movimentando, a
boceta apertada me recebendo sem hesitar, meu pau entrando e
saindo, exigindo sempre mais.
Eu não queria que acabasse, mas precisava gozar logo. Não
seria qualquer dificuldade para mim, logicamente, porém queria que
aquela mulher entrasse no clímax antes. Ao perceber que a posição
talvez não fosseideal para receber seu gozo, puxei-a mais inclinada
para mim.
Luísa depositou o corpo quente e cheiroso sobre o meu, e se
abriu toda para continuar sendo invadida. Os pés buscaram apoio
nas braçadeiras, só assim notei que usava sandálias de tiras
douradas. Sem demora, levei uma mão ao seu clitóris exposto e
comecei a chacoalhar os dedos, circulando-os para a atiçar. Com o
outro braço, agarrei-a com força e busquei ritmo nos quadris,
movimentando-me para continuar enterrando nela.
Havia um silêncio perigoso nos pairando. Ouvia-se, de vez
enquanto, um choque ou outro que saía mais potente, além de
ruídos do líquido que não parava de escorrer de sua abertura. A
fricção estava deliciosa quando Luísa levou as mãos para trás e
começou a tremer, contorcendo-se toda. Agarrou-me os cabelos
com tanta força que doeu, mas fez tudo o que foi possível para
gozar sem gritar.
— Isso... — balbuciei no seu ouvido. — Calada. Goza
quietinha, como uma boa menina.
Ela se contorceu mais, enquanto meus dedos não a
largavam. O clitóris inchado vibrava, e a boceta ansiosa prendia
minha circunferência de um jeito surreal. Tive muita vontade de
gozar dentro dela, mas me segurei como pude, porque sabia que
não podia colocá-la em risco de novo.
Assim que a mulher ficou mais calma, sem soltar sequer um
ruído, eu a empurrei para que saísse de mim, pois não aguentaria
nem um só segundo. Luísa compreendeu a minha pressa e,
esperta, já foi se colocando de joelhos no chão. Agarrou o meu
membro e o levou à boca sem dizer nada, ciente do que estava
prestes a acontecer.
Então, tomado pela sensação maravilhosa, eu me deixei
derramar.
Prendi seu rosto no meu pau e senti os jatos de sêmen
preencher aquela boca pequena, enquanto me segurava para
manter o silêncio. Foi muito difícil. A explosão me levou para um
estado de letargia, um torpor perfeito. Eu me acabei ali, com Luísa
tomando cada gota do meu gozo.
Depois que terminei, ainda a mantive parada naquela
posição. Era lindo demais ver seus lábios esticados ao meu redor.
Por fim, permiti que se afastasse. Luísa me encarou de baixo e abriu
um sorrisinho obsceno.
Mais uma vez o tesão cessou e eu precisei lidar com o fim.
Ou com o começo da culpa e dos sentimentos controversos. Era
fácil demais quando estava enterrado nela; não havia dúvidas e nem
nada. Tudo parava de existir. Mas quando o desejo ganhava uma
dose de tranquilidade, a consciência tomava lugar e me julgava sem
piedade.
Balancei a cabeça em negativa, fechando a expressão.
Luísa percebeu a diferença e também retornou à seriedade.
Ela permaneceu de joelhos enquanto eu guardava meu membro
dentro da calça. Por fim, voltei a olhá-la.
— A gente precisa parar com isso — avisei com uma firmeza
que não sentia antes do tesão. Ela só surgia naqueles momentos,
quando nada mais poderia ser feito para evitar, o que me deixava
doente por dentro.
— Vai voltar a me tratar mal? — ela resmungou, levantando-
se diante de mim e ajeitando o vestido, que ficou todo amassado.
— Eu nunca quis te tratar mal. — Olhei ao redor, começando
a sentir o peso da culpa sobre os meus ombros. Meu Deus... No
confessionário. Como podia? Como me deixei ir tão longe? — Peço
desculpas pela frieza. É só que... — Levantei-me na frente dela.
Apontei para o nosso redor, e então Luísa se abraçou, esboçando
algum constrangimento. — Isso não pode se repetir. É insanidade
demais.
— Tudo bem. Já entendi.
Mas ela não pareceu ter entendido de verdade. Ficou
visivelmente chateada, tanto que pegou de volta a sua bolsa e
estava prestes a ir embora, mas eu a puxei pela mão.
— Onde acha que isso vai parar? — questionei, tentando não
soar tão frio e calculista, mas demonstrar que eu também sofria, e
muito. E que precisávamos dar um basta, antes que fosse tarde
demais. — Não há um futuro para nós que seja diferente da
tragédia, Luísa.
Ela assentiu, um pouco menos irritada. Segurei seus ombros
e a analisei com ternura, esforçando-mepara não fazercomo antes,
para não a magoar com o desprezo. Ela não merecia ser tratada
daquele jeito. Eu precisava separar as coisas e guardar a
indiferença apenas para mim mesmo, não para ela.
— Eu me comprometi a servir a Deus num momento de muita
escuridão — desabafei, porque senti necessidade. — Quando
estava desesperado e perdido, Ele me salvou. Ele me mostrou um
caminho e me deu um sentido para continuar. — Pausei por alguns
instantes, a fimde não me emocionar demais na frentedela. Aquele
assunto sempre me perturbava e nunca tinha dito tais palavras em
voz alta, mas senti que era preciso que soubesse o que se passava
dentro de mim. — Fiz votos e promessas que preciso cumprir. Não
tenho como fugir disso, não posso. Nem o meu corpo e nem o meu
coração podem te pertencer. Me perdoe por lhe oferecer o que não
tem como ser seu.
Vi quando uma lágrima escorreu de seus olhos escuros,
enquanto me encarava com espanto e tristeza. Eu a larguei em
seguida, dando um passo para trás, sentindo-me imerso no
fracasso. Derrotado, destruído, desestruturado.
— Tudo bem. — Ela suspirou, enxugando as lágrimas que
derramou. — Obrigada por não sair correndo desta vez.
— Pretendo te ajudar — informei, amargo, desviando o rosto
para não ter que lidar com a sua dor e menos ainda com a minha. —
No que for preciso. Mas é só. Essa loucura acaba aqui... — Voltei a
observar o redor. — E que Deus, um dia, nos perdoe.
Que, um dia, eu me arrependa, pensei, mas não ousei falar
em voz alta. Não ajudaria em nada se Maria Luísa soubesse que eu
não conseguia me arrepender. Era uma questão a ser resolvida
apenas entre mim e Deus.
A viúva assentiu calmamente e, acenando a cabeça com
suavidade, deixou o confessionário. Peguei as roupas sagradas do
chão e tentei me vestir, mas me senti imundo demais para isso. Meu
corpo praticamente caiu sobre a cadeira e me sentei quase sem
sentir, inerte, transtornado.
Olhei para a cortina sabendo que Toninho não se demoraria,
mas simplesmente não pude fazer nada naquele momento. Não
soube quanto tempo fiquei ali, apenas assistindo ao meu mundo
desabar, pouco a pouco, até criar coragem para cobrir a parcial
nudez.
PARTE 12
Maldita calcinha

Maria Luísa

Saí da igreja às pressas, quase trombando no coroinha, que


chegou a perguntar se eu estava bem, porém não tive coragem de
responder e menos ainda de encará-lo. Apenas continuei andando
até a saída. O fato de estarmos naquele ambiente já dizia muita
coisa sobre mim: eu estava mais do que errada, agia com absurda
heresia, profanando locais sagrados e seduzindo uma pessoa que
claramente se perturbava com a minha presença.
Eu não fazia bem para ninguém permanecendo ali, por isso,
sobretudo depois das palavras duras de padre Benício, estava
disposta a nunca mais aparecer. Na verdade, não deveria tê-lo
procurado. Ele disse que me ajudaria, mas eu não poderia exigir
nada. Guardar os pertences de Samuel já era muita coisa.
O meu coração batia descontrolado e a minha mente
detonada tecia milhões de críticas e xingamentos ao meu respeito.
Ainda que tivesse prometido não me deixar abalar pela opinião dos
outros, a minha própria percepção acerca de meus pecados era
importante e eu deveria sentir, no mínimo, vergonha na cara.
Só que eu estava perdida em tantos sentidos que não sabia a
quem recorrer, encontrava-me sozinha para lidar com um mundo
maldoso e sem noção. Aquela semana ainda estava na metade e a
minha vida tinha se afundado, estava no fundo do poço e mais
solitária do que nunca.
Começou com o idiota do farmacêutico, que deixou a
informação da compra da pílula escapar. As pessoas estavam
comentando, de forma que expliquei a uma ou duas fofo
queiras da
cidade que comprei o medicamento porque tive relações com o meu
marido no dia da morte dele, por isso precisei me certificar de que
não teria uma criança de alguém que já havia morrido. Porém, a
história toda só fez piorar, porque algumas pessoas achavam que
eu deveria ter deixado Deus agir na minha vida e esperado para ver
se haveria de fato algum filho, que seria uma bênção.
Depois disso, resolvi ficar em silêncio, porque percebi que
qualquer coisa que eu dissesse seria usada contra mim e que não
valeria a pena viver de acordo com a opinião dos outros. A cidade
estava disposta a me detonar, então eu que não perderia mais
tempo me explicando para ninguém. Quando apareci na feira
usando uma blusa branca, mais picuinhas se formaram, porém
sequer me importei. Não viveria de aparências por mais nem um
segundo, já me bastavam anos e anos sem ter o controle de minha
própria vida. Uma hora parariam de falar ao meu respeito; era
sempre assim, alguém ficava na berlinda por um tempo, até ser
esquecida totalmente.
Na manhã da quarta-feira, no entanto, algumas cartas
chegaram em nome do Samuel e tive que as abrir, então me deparei
com informações que eu não fazia ideia. O nome dele estava sujo,
havia uma dívida absurda a ser paga, coisa que eu estava disposta
a deixar para lá, porque afinal ele tinha morrido. Contudo, ao cutucar
nossa situação financeira mais a fundo, descobri coisas que me
arrasaram completamente.
Eu achava que a casa, que estava em meu nome, estava
quitada, mas na verdade havia uma hipoteca com vários meses em
atraso. Samuel tinha feito inúmeros empréstimos usando o meu
nome, com quitações ainda a serem feitas. Todo o dinheiro que eu
achava que tinha precisou ser repensado, porque a verdade era que
só havia me sobrado dívidas e mais dívidas, e que eu não tinha
conhecimento de nada porque nem mesmo isso meu odioso marido
me deixava ciente.
Fui relapsa, despreocupada demais, confiante no que ele
estava fazendo. O idiota tinha praticamente roubado a minha vida e
eu, boba, fui a esposa perfeita, a dona de casa exemplar que não
precisava me preocupar com gastos, dívidas, nada. O papel que
desempenhei foi de completa otária.
Descobrir aquilo me deixou tão sem chão que novas
preocupações foram se acumulando, dentre elas os indícios que
encontrei. E, claro, o fato de não tirar padre Benício da cabeça.
Nossos momentos se mantinham vívidos, claros demais em cada
instante, de forma que o desespero só se acumulava e culminou na
minha procura por ele. E devia confessar, não havia sido apenas
para que guardasse aqueles objetos.
Precisei vê-lo. Precisei de sua companhia, nem que fosse
ínfima. E ao perceber o desejo claro em seus olhos, a saudade que
afirmou sentir de mim, não pude me conter. Eu quis o contato, o
envolvimento, necessitei de mais dele e o seduzi de propósito. A
carência, o medo, a solidão... Tudo se juntou numa mistura terrível,
que me fezprecisar de uma pessoa que jamais me ofereceriao que
eu tanto queria.
Nem o meu corpo e nem o meu coração podem te pertencer.
A frase se repetia na minha mente, arrancando-me o fôlegoe
me trazendo uma vergonha, uma culpa, um sentimento horrível que
não se tratava de uma coisa só.
Com as mãos trêmulas, depois de ter corrido até em casa
com o vestido amassado e a intimidade melada, tentava abrir o
portão de casa. Foi quando Luís surgiu, saindo da casa dele, e me
olhou com curiosidade.
— Você está bem, Luísa?
— Estou — choraminguei, finalmente conseguindo abrir.
Ele correu ao meu alcance, antes que eu entrasse de vez e o
deixasse do lado de fora. Eu o estava evitando desde o que
acontecera no fim de semana; sua invasão à minha vida. Sabia que
ele estava ciente das fofocase não queria me explicar de forma
alguma. Na verdade, estava arrancando qualquer pessoa da minha
vida. Não sobrara ninguém.
— Espera... Ei. — Ele colocou a mão no portão, fazendo-me
parar para olhá-lo. As lágrimas invadiam o meu rosto sem cessar. A
loucura na igreja tinha sido a gota d’água. Eu estava destruída e
sozinha. — Não faz assim, não me afasta desse jeito.
— Luís... Fique longe. Por favor. Ou vai sobrar para você
também.
Ele soltou uma risada sem graça, ficando sério logo em
seguida.
— Acha que eu ligo para o que essa gente diz? Está
enganada. Só quero ficar do teu lado, Luísa, ser um ombro amigo.
Eu o olhei, sentindo toda a exaustão invadir o meu corpo.
Tentei sufocar um soluço, porém outros se achegaram e caí num
pranto tão sofrido quanto o que deixei escapar no confessionário. O
meu vizinho fez a mesma coisa que padre Benício: tomou-me para
si em um abraço apertado. Entretanto, não fui capaz de sentir nem
um por cento do que me arrebatou quando estive nos braços do
padre.
Luís fechou o portão e me levou para dentro de casa, em
seguida se sentou ao meu lado no sofá. Eu não sabia o que fazer e
estava tão arrasada que contei a ele o que Samuel havia feito
comigo: além de ter me impedido de estudar e trabalhar, fez dívidas
em meu nome e morreu me deixando com uma mão na frente e
outra atrás.
Foi com surpresa que o vizinho ouviu aquele desabafo
pranteado, que mesclava não somente a tristeza pela péssima
condição financeira, mas pela recente rejeição que enfrentei. Tudo
doía em mim mais do que suportava.
— Luísa... Não se preocupe — ele disse, por fim, com os
braços ao redor dos meus ombros. Eu me deixei levar por aquele
aconchego pela profunda carência e desolação que sentia. Estava
cansada demais. — Não vou te deixar passar necessidade. Tenho
algumas economias e posso te ajudar.
Eu me afastei um pouco, encarando-o com a expressão
confusa. Não estava pedindo favor algum, apenas desabafando,
porque de fato não sabia como proceder. Talvez fosse uma boa
ideia renegociar as dívidas, mas eu precisaria de um sustento, um
trabalho, algo que me fizesse pagar tudo aos poucos. Falei aquilo
para o Luís.
— Você não estava com a ideia de abrir um negócio de
unhas? Por que não faz isso? — Ele alisava os meus cabelos com
ternura, e eu me sentia um pouco errada, como se estivesse traindo
alguém. Queria gostar do Luís como ele gostava de mim, mas não
conseguia de jeito nenhum. Na verdade, todos os meus
pensamentos estavam no padre, inclusive ainda guardava
resquícios de suas carícias, o que me deixava mais assombrada.
— Eu te ajudo com os materiais — Luís prosseguiu. — Tenho
bastante crédito no cartão. Faz assim, eu te empresto e você faz as
compras de tudo o que precisa. — O homem pegou a carteira de
dentro do bolso da calça e me ofereceuum cartão. Eu o peguei com
as mãos trêmulas, reticente quanto aquela ideia. — Aos poucos vai
me pagando. Não tem problema, eu vou cobrindo até você
conseguir se restabelecer.
Balancei a cabeça em negativa.
— Não posso aceitar, Luís. — Ofereci o cartão de volta, mas
ele não o pegou, apenas se afastou um pouco. — É sério, não
posso. E se der errado e eu só te deixar endividado? Não posso
arriscar.
— Não se preocupe, Luísa. Faça isso, compre logo tudo de
que precisa e abra seu negócio o quanto antes. Vai dar certo. — Ele
embrulhou minhas mãos em volta do cartão e empurrou até o meu
peito. — Fica tranquila. Falei que vou te ajudar e não estava
brincando. Você sabe que guardo muito apreço por você. Que tipo
de homem eu seria se te deixasse passando necessidade? —
Chacoalhou a cabeça. — De jeito nenhum. Por favor, me deixe te
ajudar.
Sorri para ele, sentindo que poderia ser a luz no fim do túnel.
Se eu trabalhasse direitinho e renegociasse tudo de que precisaria
pagar, talvez desse certo e eu saísse daquele sufoco logo, logo. Eu
não tinha medo de colocar as mãos na massa. Na verdade, não via
a hora de ter a minha vida, minhas coisas, meu serviço. Daquele
modo pararia de me considerar uma inútil e me perdoaria por ter
vivido, até então, às custas do que os outros consideravam melhor
para mim.
— Obrigada. De verdade, muito obrigada.
Luís devolveu um sorriso bonito e voltou a me puxar para si
em um abraço apertado. Eu fui, afinal, ele estava sendo muito bom
para mim, oferecendo um auxílio quando as coisas pareciam
insuportáveis. Contudo, o vizinho se afastou um pouco e tentou
juntar nossos lábios. No reflexo, eu me afastei, um tanto assustada.
Era impensável beijá-lo, sobretudo porque ainda saboreava o gosto
do padre na boca.
Ele fez uma careta de contrariedade.
— Luís... Não misture as coisas, por favor. — Achei por bem
ser sincera. Ele não poderia se iludir ao meu respeito. Receber a
sua ajuda não significava que eu o queria de outra forma. — Aceito
sua amizade, pois é só o que posso oferecer em troca.
Ele assentiu devagar.
— Tudo bem, terei paciência.
Ofeguei, rindo um pouco, descrente com aquelas palavras.
Fiquei bastante desconcertada com a situação, porque era como se
ele estivesse me auxiliando com a intenção de me seduzir.
— Não espere mais nada de mim, por favor. Eu...
Luís segurou minha mão e me encarou com firmeza.
— Não se preocupe, eu entendi. Fica tranquila. Seremos
bons amigos.
Aquiesci, mas me sentindo péssima por dentro, uma meleca
humana. Seria muito mais fácil se eu pelo menos sentisse tesão
pelo vizinho. Poderíamos nos conhecer melhor, nos envolver e,
quem sabe, evoluir uma relação bacana, sem perigos ou proibições,
apenas duas pessoas dentro da normalidade.
Mas não... Eu tinha que ter aqueles gostos absurdos,
duvidosos, aqueles desejos desregrados e que me empurravam
para o abismo. Por que fuidesejar logo um padre, meu Deus? E por
que não conseguia tirá-lo de nenhum pensamento? Por que havia
permitido que adentrasse tanto nos meus sentidos?
Balancei a cabeça, tentando afastar tais pensamentos, e
encarei o Luís diante de mim. Talvez eu devesse dar uma chance.
Parar de pensar no padre Benício de uma vez por todas e focar no
vizinho, a fim de construir algo bom, saudável, com respeito. Quem
sabe? Precisava estar aberta para que ele entrasse. Se me
fechasse, então ficaria sempre batendo na mesma tecla, desejando
o que nunca seria meu.
Foi por isso que, disposta a mudar os rumos da minha vida,
convidei Luís para ser meu acompanhante na festa da casa do
prefeito, já que não queria ir sozinha. Ele gostou tanto da ideia que
disse que me compraria um vestido novo, por mais que eu tivesse
negado. Alegou que eu precisaria estar bonita e bem-vestida para a
ocasião, a fim de calar a boca de todos os fofoqueirosque falavam
de mim como se eu fosse uma coitada.
Ainda que me sentisse mal com tudo, aceitei sua ajuda.
Apesar de meio invasivo, sabia que aquele homem queria apenas o
meu bem e não tinha nada de mal permitir que demonstrasse o
afeto que sentia. Quem sabe assim eu pudesse corresponder, nem
que fosse um pouquinho?

*****

Olhei-me no espelho e me senti linda, pronta para a festaque


me causaria certo constrangimento, mas que não ousei faltar. Usava
um vestido vermelho longo, além de sandálias douradas de salto e o
batom combinando com o vestido, ou seja, uma grande gostosa, ao
contrário de como vinha me sentindo nos últimos tempos.
Soltei um suspiro ruidoso, sentindo-me, também, angustiada,
porque sabia que me depararia com padre Benício. Só esperava
manter a sensatez e me divertir sem pensar nele. O meu foco
estava no Luís. Queria estreitar a amizade, passar bons momentos
e, quem sabe, permitir um beijo, algo mais aprofundado, sei lá.
Qualquer coisa que arrancasse do meu corpo a vontade de
pertencer ao padre mais uma vez.
Estava quase enlouquecendo com as memórias, que
simplesmente não cessavam. Lembrava-me das mãos dele na
minha pele, de sua invasão sempre perfeita,dos sussurros ao pé do
ouvido, de seu cheiro e gosto pairando ao meu redor... Não. Eu não
podia ficar pensando em besteira, de jeito nenhum. As palavras dele
foram incisivas e precisava enfrentar a realidade, aceitar que não
podia ter tudo o que queria.
— Uau... Você está linda demais! — Vestido dentro de um
terno elegante, Luís sorriu quando o encontrei na saída de casa.
Combinamos de ir de táxi, pois o vizinho pretendia aproveitar as
bebidas caras que o prefeito certamente serviria em sua festa.
Ele plantou um beijo na minha bochecha e ofereceu o braço,
como um cavalheiro, acompanhando-me até o carro que solicitou e
já tinha chegado. Em pouco tempo, paramos na frente da mansão
do prefeito, a mesma que tinha uma cerca na parte de trás e que
não fazia muito tempo que eu flagrara a sua mulher com o vizinho.
Uma história que ficava cada vez mais difícil de ser mantida em
segredo, porque minha vontade era espalhar para todo mundo, só
para ver se me esqueciam depressa.
A festa já estava movimentada. Como o previsto, muito bem
decorada e servida, com gente elegante circulando por toda parte.
Eu não conhecia quase ninguém, apenas um ou outro figurão da
política, e me perguntei o que eu estava fazendo ali. Se não tivesse
ido com Luís, certamente voltaria para casa no mesmo pé, de tão
constrangida que fiquei com tamanho luxo.
O quintal da mansão era imenso, com um jardim maravilhoso
e bem cuidado. Havia um palco montado e uma pista de dança, e as
mesas estavam estrategicamente colocadas perto da piscina cheia
de luzes. Parecia cenário de novela. Nunca pensei que um dia
estaria do lado de dentro daquela cerca, realmente não era um
ambiente para mim, que fui acostumada com a simplicidade a vida
toda.
Luís não largou o meu braço, apontava para os detalhes da
festa e tecia comentários enquanto eu só me constrangia mais e
mais, sobretudo por receber olhares de pessoas estranhas que
deveriam ter me reconhecido. Afinal, quem não sabia quem era a
esposa do homem que fora assassinado na semana anterior?
Tentei não olhar muito para os lados, a fim de não me
deparar com o padre. Não estava pronta para isso. Se pudesse,
jamais o veria de novo, mas sabia que em algum momento eu teria
que pegar de volta os objetos que deixei com ele.
E talvez devesse, também, devolver a cueca que confisqueie
que jazia debaixo do meu travesseiro, para eu cheirar sempre que
sentisse saudade. Incrível como aquela peça guardava tanto dele, e
como eu simplesmente não conseguia me desfazer.
— Dona Luísa! — O prefeito surgiu enquanto Luís e eu nos
mantínhamos ao redor da piscina, conversando amenidades sobre a
decoração e o vinho gostoso que era servido. — Que bom vê-la
aqui. — Ele abriu um sorriso enorme, cheio de dentes brancos
enfileirados. Era impressionante que ainda soubesse o meu nome.
— Senhor prefeito, meus parabéns. — Trocamos um
cumprimento com as mãos. Eu fiquei completamente constrangida,
porque não tinha intimidade alguma com o homem e me sentia
estranha ali.
— Obrigado. — Ele encarou o meu acompanhante, que logo
se apresentou e trocaram mais um cumprimento, cheio de
formalidades. Esperava que o político dissesse o que queria me
convidando para a festa,mas claro que sequer tocou no assunto. —
Aproveitem a noite e fiquem à vontade, vocês são muito bem-
vindos.
— Obrigada, senhor prefeito. — Sorri, sem graça.
Ele nos deixou a sós de novo e Luís me encarou. Achei
esquisito ainda não ter visto a primeira-dama Diana Teixeira. Achei
que os dois estariam juntos, como anfitriões, cumprimentando os
convidados, mas não vi a mulher em parte alguma.
— Ele é meio estranho, não é? — Luís olhou para o lado,
disfarçando. — Acho que foi isso mesmo, o prefeito te chamou para
não ter que cancelar a festa.
— Pois é. Bom, pelo menos estamos comendo e bebendo de
graça. — Ergui a taça de vinho na direção do meu vizinho, que as
juntou num brinde silencioso, sorrindo com empolgação.
Bebi um gole, virando-me um pouco de lado, e foi assim que
encontrei ninguém menos que o padre Benício, de pé do outro lado
da piscina, observando-me quase sem piscar, imerso numa
seriedade que só o deixava mais comestível. Eu girei no impulso,
tentando expurgar a cena da minha mente, porque o que vi me
deixou completamente desestabilizada.
Ele tinha vindo de terno escuro e sem qualquer item que o
identificasse como padre. Sem batina, sem colarinho, nada. Apenas
o homem, não o servo de Deus, viera para a festa, e talvez fosse
aquele que era capaz de me imprensar numa parede e falar
obscenidades ao meu ouvido. O que era uma loucura de se pensar.
Padre Benício não era uma espécie de Clark Kent e eu tinha que
controlar meus desejos com urgência.
Sem fôlego e desajeitada, trombei no Luís e derramei um
pouco de vinho em seu terno.
— Oh, desculpa! — Foram apenas algumas gotas, mas que
deixariam marcas se ele apenas esperasse secar.
O homem não se importou muito, sorriu gentilmente e falou:
— Vou ao banheiro rapidinho. Volto já. Não saia daqui.
Eu me percebi sozinha, no meio de um ambiente chique
demais e com um homem me observando do outro lado. Paralisei,
desconcertada e inquieta. Devagar, olhei na direção do padre de
novo e o encontrei do mesmo jeito, só que daquela vez com as duas
mãos nos bolsos. Sustentei seu olhar por apenas alguns segundos,
depois não consegui mais. Não suportava relembrar as suas últimas
palavras, estava cansada demais para isso.
Sendo assim, ignorei a recomendação de Luís e deixei a área
da piscina praticamente sem ar nos pulmões. Alcancei um minibar
instalado perto da entrada da casa e fiqueipor ali, fingindoaguardar
uma bebida e olhando para os lados só para confirmar que o padre
não tinha se aproximado.
Alguém pigarreou perto de mim e quase gritei de susto.
Precisei me controlar e focar a mente na figura do delegado Moura,
usando um terno cinza-escuro, parecendo até um homem decente.
Ele riu ao notar meu constrangimento.
— Achei que não teria cara de pau para vir aqui — disse,
entonando aquela voz estupidamente sexy e cretina ao mesmo
tempo. — Mas me enganei, a senhora é capaz de tudo, não é?
Bufei, indignada. Aquele homem removia toda a minha
paciência só por existir.
— Vê se me erra, delegado. Eu vim porque fui convidada,
apenas.
Ele deu de ombros e entornou o copo de uísque que
carregava consigo.
— Fico me perguntando se apenas eu notei que o padre não
para de te olhar desde que você chegou na companhia de outro
homem — falou, sorrindo, com muito cinismo. O meu coração
pareceu se afundar, partir em milhões de cacos. Não houve uma só
parte de mim que não tivesse começado a tremer diante do que o
delegado disse.
Padre Benício estava com ciúmes? Era isso? Meu Deus... Se
o que o delegado Moura dizia era verdade, então...? Eu não sabia o
que pensar.
Depois de alguns segundos desnorteada, questionei:
— Já encontrou o assassino? — Percebi que era aquilo o que
o homem queria: me desestabilizar. Só que dois podiam jogar
aquele jogo. Eu sabia o que o tirava dos eixos e usaria todas as
armas sem dó.
Como previsto, o homem fechou as expressões. Não falou
nada, apenas ficou me encarando com ódio. Eu me sentei diante
dele, em uma das cadeiras de perna alta ao redor do bar, porque
era isso ou ficar sozinha à mercê dos sentimentos mais confusos.
Depositei a minha taça sobre o balcão.
— E por falar nisso, quando pretende devolver a minha
calcinha?
Delegado Moura quase cuspiu o uísque. Arregalou os olhos e
tossiu por alguns instantes, deixando o rosto afilado corar.
— Do que porra está falando? Calcinha?
— Não se faça de desentendido. — Devolvi as palavras que
usou comigo, imersa na raiva. Eu tinha passado tantos perrengues
naquela semana que havia me esquecido de cobrar pela calcinha
roubada. — Abusado.
Ele balançou a cabeça em negativa.
— Você está cada vez mais ousada, não é? Acha que sou o
quê? — Ele se aproximou mais de mim, falando num tom baixo: —
Se não medir suas palavras, eu te levo daqui dentro de uma viatura,
por desacato.
— Então me faça o favor de devolver a minha calcinha, ou
todo mundo vai saber que senhor — apontei um dedo quase na cara
dele — é um pervertido filho de uma...
— Eu não peguei a sua maldita calcinha! — ele disse alto
demais, indignado, e o rosnado saiu tão ferozque olhamos ao redor.
Não tinha muita gente por perto, apenas uma pessoa estava mais
próxima, e era exatamente a filha do prefeito.
Ela nos olhava com o rosto angelical aterrorizado. Usava um
vestido prateado muito bonito. Aliás, ela toda era linda, pena que
dava tanto trabalho. Analisou-me fixamente, depois fez o mesmo
com o delegado, em seguida voltou a me olhar. Não soube o que se
passou naquela cabecinha oca, mas a menina simplesmente virou
as costas e correu, espantada.
Encarei o delegado, que exalava um ódio absurdo.
— Olha o que você fez, caralho — resmungou, deixando o
copo sobre o balcão. — Merda!
— Agora explica essa para a sua criança. Explica que você
não é a droga de um príncipe encantado, mas um tarado comedor
de novinhas — murmurei, ainda morrendo de raiva dele, nem um
pouco compadecida com a filha do prefeito. Eu não sabia se o
delegado estava blefandoou se de fatoera verdade que não estava
com a calcinha, mas bem que ele tinha merecido. Quem sabe a
menina se afastasse daquele homem.
Em boa coisa aquela relação doida deles não daria. Se o
prefeito soubesse...
— Não fale assim — ele grunhiu, segurando meu pulso. —
Fique na sua. Você não a conhece e nem me conhece. E eu não sei
quem porra frequenta a sua casa, que tal perguntar o paradeiro da
sua calcinha para o padre? Ou talvez para o seu vizinho
mexeriqueiro? — Delegado Moura exalava muita raiva. — Ou para
quem mais você tenha dado essa semana? — E saiu andando,
certamente atrás da filha do prefeito, deixando-me humilhada e
quase explodindo de tanto ódio.
Tentei não chorar na frente daquelas pessoas, mas uma
lágrima escapou e me levantei dali às pressas, enfiando-me no
jardim para fugir de possíveis olhares curiosos. Andei numa trilha
bonita feita de pedras justapostas, até encontrar um banco de ferro
adornado e me sentar para encontrar algum pensamento coerente.
Se o delegado não estava com a calcinha, então...?
Comecei a ouvir alguns murmúrios, como se alguém
estivesse chorando por perto. Bom, talvez jardins meio escuros ao
redor de uma festa servisse para isso, afinal. No entanto, a
curiosidade falou alto e me levantei, seguindo o som. Dei alguns
passos e encontrei a senhora primeira-dama sentada perto de um
arbusto, aos prantos.
Fiquei a olhando por vários instantes. Eu não tinha nada a ver
com aquela mulher, mas, sinceramente, senti-me compadecida com
a dor. Ela parecia sofrer muito, talvez como eu, que estava detonada
por dentro.
Nós duas desejávamos pessoas que não podíamos ter.
Mesmo sem possuirmos qualquer intimidade, eu me sentei do
lado dela. A mulher, que não parecia ter mais que vinte e cinco
anos, ergueu o olhar na minha direção e tentou se recompor,
aprumando os ombros.
— Oh... — Piscou na minha direção, buscando algum
reconhecimento. — Dona Luísa. — Quase revirei os olhos. Até
aquela mulher sabia quem eu era. Tornei-me uma celebridade de
uma hora para outra, pelo motivo mais terrível. — Eu... Bom.
— Não se preocupe comigo, também vim aqui para chorar.
Ela abriu um sorriso bonito, colocando uma mexa loira para
trás. Estava espetacular dentro daquele vestido roxo, com detalhes
brilhantes. Um verdadeiro luxo. O meu vestido parecia um pedaço
de pano inútil perto do dela, mas não me senti mal por isso. Cada
um com sua vida.
— Imagino que a senhora esteja passando por um momento
muito delicado... — ela disse, enxugando as lágrimas, evitando me
olhar. — Sinto muito pelo que houve com seu marido.
— Tudo bem.
Na verdade, Samuel era o menor dos meus problemas. Eu
agradecia por já nem me lembrar direito de como era o rosto dele.
Mal acreditava em quanto tempo perdi ao lado de alguém que só me
trouxe dor de cabeça.
Encarei-a por alguns instantes, de repente disposta a tirar a
situação a limpo. Afinal,em que outro momento teria a oportunidade
de ficar frente a frente com aquela mulher?
— Posso fazer uma pergunta meio esquisita? — questionei,
tomada por uma repentina coragem, ainda que não soubesse em
que terreno estava pisando. Entretanto, precisava fazer alguma
coisa para que o responsável pela morte de Samuel aparecesse
logo, pois meu objetivo era deixar a cidade assim que tivesse a
chance.
Diana Teixeira piscou os olhos na minha direção.
— Claro... — Mas não estava tão certa assim da própria
resposta.
— Eu... — Suspirei. — Por acaso o meu marido... Hum...
Estava ameaçando a senhora?
— Ameaçando? Não! Eu... Não. — Ficou muito espantada e
finalmente me encarou. Continuei a olhando com atenção,
perguntando-me se estava fazendo a coisa certa ou apenas
amarrando uma corda no meu próprio pescoço, até que ela soltou
bastante ar num arquejo audível. Deu-se por vencida. — A senhora
sabe. Claro que sabe, ele deve ter contado.
Assenti lentamente, pois não pretendia explicar que na
verdade não sabia de nada, fiquei sabendo por acaso que ela e o
vizinho estavam se relacionando. Se dependesse do Samuel, eu
continuaria na escuridão completa.
— Quanto você quer para ficar calada? — Diana perguntou
de uma vez, antes que eu dissesse qualquer coisa.
A confusão me atingiu e neguei com a cabeça.
— Nada. Eu não quero dinheiro, não estou ameaçando a
senhora e nem ninguém.
— Então o que você quer com essa conversa? Por favor, diga
logo o que quer e me deixe em paz! — choramingou, parecendo
muito abalada.
— Olha... Se vocês precisaram dar cabo do Samuel, tudo
bem, eu compreendo, ele só arranjava confusão e intrigas, não era
uma boa pessoa. Mas preciso que alguém seja culpado por isso
tudo, alguém que não seja eu, porque não fiz nada! — Aquela
verdade me chocou tanto quanto a Diana. Minha insensibilidade
quanto à morte de meu marido era imensa e eu só precisava de paz
para seguir em frente. Pouco importava quem matou e por quê
matou, só queria viver a minha vida. Era uma necessidade maior do
que qualquer justiça.
Espantada, parei de falar para não parecer tão maldosa aos
olhos dela. Eu não sabia em que tipo de pessoa tinha me tornado.
Será que sempre fui essa mulher de caráter duvidoso e só
descobria naquele instante? De qualquer forma, não me reconhecia
naquele papel ardiloso. Talvez fosse o desespero.
— Eu não sei quem matou seu marido — Diana sussurrou,
por fim. — Não foi o Eric, confio nele. Samuel nos viu por acaso e
dias depois foi assassinado, mas não fizemos nada, não somos
criminosos. — A mulher parecia sincera, mas eu ainda tinha dúvidas
com relação ao vizinho com quem ela literalmente pulava a cerca, o
tal de Eric. — Ele nos ameaçou uma vez e pediu dinheiro, eu paguei
e pronto. Estava disposta a pagar mais, sabia que ele pediria de
novo.
— Percebe o quanto tudo isso soa esquisito? — sussurrei a
pergunta, balançando a cabeça em negativa. — Ele ameaçou vocês
e depois foi morto a facadas.
Diana chacoalhou os ombros.
— Eu sei.
— Delegado Moura sabe disso?
Ela me olhou com espanto, os olhos arregalados.
— É claro que não. A senhora não pode contar, por favor...
Só diga seu preço, eu pagarei de bom grado, não vou questionar.
— Eu não sou o meu marido, dona Diana — resmunguei,
prendendo os lábios diante do desespero daquela mulher. Não era
porque eu estava lisa, sem grana e cheia de dívidas que venderia a
minha alma de vez para o demônio. Já bastava ter transado com o
padre dentro da igreja, o restante seria demais até para mim. — Já
disse que não estou ameaçando e não vou contar nada.
— Então por que a senhora entrou nesse assunto? O que
quer com isso?
Fiquei em silêncio porque sequer soube responder com
clareza àquela pergunta. Pensando melhor, não fazia muito sentido,
de fato. Talvez eu só precisasse de um milagre ou de alguém que
pudesse me ajudar a achar o assassino. Alguém influente como a
primeira-dama e que não me detestasse, como era o caso do
delegado.
— Nós não estamos mais juntos — Diana acrescentou, como
se precisasse se justificar logo para mim. — Nunca mais vou fazer
isso de novo. — Percebi que continha o choro, provavelmente
porque estava gostando do vizinho.
Neguei com a cabeça.
— Não me interessa. O que a senhora faz não me interessa.
— Soei meio amarga e grossa, sobretudo porque me vi demais
naquele discurso desesperado, por isso tentei amenizar: — A vida é
sua, não me meto. Eu só quero que esse assassino apareça para
que eu possa respirar de novo. Apenas isso. Sinto que estou
sozinha nessa questão e a senhora me parece boa gente.
— Compreendo a senhora, mas infelizmente não tenho
informações para dar. Não posso ajudar porque não sei de nada e,
com sinceridade, não posso me meter nisso.
Assenti, resignada.
— Está certo.
A primeira-dama se ergueu, enxugando as lágrimas.
— Bom... Vou voltar para a festa. Meu marido espera que eu
seja um troféu a ser exibido e preciso fazer meu papel de boa
esposa.
Olhei para ela com incredulidade, porém a compreendendo
totalmente. Coitada. Se eu estava na merda, com certeza não era a
única. Aquela mulher na minha frente tinha muito dinheiro, mas
parecia não guardar qualquer felicidade. Estava presa numa
situação medonha, e mais uma vez me vi nela. Naquele instante,
prometi a mim mesma que nunca mais me anularia por homem
nenhum.
Levantei-me ao seu lado.
— Se quer um conselho de mulher para mulher, saia dessa —
murmurei com firmeza. — Ninguém merece estar onde não cabe.
— Não é tão simples assim.
— Eu imagino, por isso é preciso ter coragem. Espero que a
senhora a encontre e seja feliz.
Sem mais nada a dizer, deixei Diana Teixeira reflexiva no meio
do jardim e decidi voltar para a festa. Avistei Luís de longe,
procurando-me, e uma sensação ruim dominou os meus nervos.
Afinal, se o delegado Moura não estava com a minha calcinha, só
havia uma pessoa que poderia tê-la pegado às escondidas e ficado
para si.
E se o meu vizinho fez aquilo, do que mais seria capaz?
Meus nervos congelaram de repente, dando-me conta de que,
talvez, eu tivesse feito uma péssima escolha. Mais uma para a pilha
enorme de decisões ruins, que só faziam se acumular porque eu
não passava de uma ingênua.
Eu não podia confiar em ninguém.
PARTE 13
Uma dança

Padre Benício

Eu não esperava passar por aquela noite ileso, seria bobagem


de minha parte achar que me manteria tranquilo. Sabia que me
desestruturaria assim que colocasse os olhos sobre Maria Luísa,
porém, o abalo foi mais intenso do que imaginava e não conseguia
me controlar desde que a encontrei na companhia de um homem.
Não sabia quem era o sujeito, mas vê-los conversando,
sorrindo e de braços entrelaçados me deixou com um sentimento
amargo no peito. Uma emoção profunda e impossível de disfarçar,
por mais que tentasse. Não ajudava em nada o fato de ela estar
linda, muito sensual e provocante em cada gesto, em cada olhar, a
todo momento.
Ou será que era tudo coisa da minha cabeça? Talvez eu a
tivesse associado à energia que me arrancava o fôlego, à força
obscura que existia em mim, intrinsecamente, e se revelava apenas
diante de sua presença. Ela arrastava qualquer razão e coerência
como um furacão, de forma que pouco de mim sobrava.
Como alguém podia ser capaz de me devastar daquele jeito?
— Padre, o senhor precisa experimentar isso. — Toninho
surgiu com um petisco em mãos e outro num guardanapo. Ele
tentava me fazer comer o tempo todo, mesmo eu alegando que
estava passando por um jejum necessário. — Padre?
Pisquei algumas vezes. Embora estivesse com os olhos nele,
a mente se encontrava longe. O companheiro de Luísa tinha se
afastado, porém perdi a deixa para falar com ela sobre um assunto
de extrema importância. Queria a encontrar sozinha para não
levantar qualquer suspeita, mas estava difícil. Ela simplesmente
sumiu e eu não sabia o que estava acontecendo. Pensar que talvez
estivesse em um lugar mais reservado com aquele homem estava
me enlouquecendo.
— Sim? — Peguei o petisco na mão de Toninho e o enfiei na
boca sem mais nada dizer. Estava uma delícia. Tentava ignorar a
fome, mas ficava cada dia mais difícil. Aquela penitência estava me
enfraquecendo e eu já não sabia mais o que fazer para carregar a
profunda culpa.
O coroinha sorriu diante de meu movimento impulsivo.
— Vou trazer mais. O senhor precisa comer.
Ele se virou e saiu das minhas vistas antes que eu pudesse
questionar, dizer que não, que na verdade eu tinha que sofrer de
alguma forma pelo que fiz. Em vez de aproveitar a festa como o
adolescente que era, Toninho estava preocupado comigo, com o
fato de eu estar praticamente passando fome para cumprir um
castigo doloroso ao que me impus, depois de ter praticado um ato
de extremo desrespeito dentro da igreja.
Passei uma mão pelos cabelos, sentindo o desespero se
achegar e murmurando uma pequena prece para manter a calma. A
combinação pão, água e oração devia bastar para me trazer alguma
luz, porém me percebia entrando fundo naquele poço escuro e
sombrio. Eu tinha medo de nunca mais ser capaz de enxergar a
superfície.
O meu coração palpitou ao observar Luísa saindo entre dois
arbustos alguns metros adiante, parecia fugirde alguma coisa ou de
alguém. Ela olhava para o outro lado e por isso virei o rosto,
encontrando o homem que veio consigo para a festa. Alguma coisa
estranha estava acontecendo e aquela era a minha chance de falar
com ela.
Eu me aproximei com cautela, observando seu rosto, que
parecia a cada segundo mais apavorado.
— Boa noite... — Não soube o que dizer a princípio, uma
saudação me pareceu a coisa mais apropriada. Maria Luísa se
assustou consideravelmente, soltando um gritinho abafado e
levando uma mão ao peito.
Os olhos escuros estavam muito abertos, revelando espanto.
— Padre Benício — murmurou, e não soube dizer se o timbre
era de decepção ou de alívio. Pareceu-me que as duas coisas se
misturavam e não a deixavam nem um pouco normal. Ela me
parecia tão descontrolada quanto eu estava por dentro.
— Preciso falar com você — avisei de uma vez, porque era
realmente necessário contar o que havia descoberto nos últimos
dias. Não ousei a procurar antes, nem mesmo enviar uma
mensagem e sequer sabia o número dela. Havia esperado pela
festa como uma oportunidade de nos comunicarmos num ambiente
neutro, público, sem complicações ou possibilidades de maior
envolvimento. — Urgente.
Ela me encarava com estranheza.
— Comigo? Achei que não tivéssemos nada para falar um
com o outro — resmungou, encarando o outro lado da piscina e se
virando um pouco, como se quisesse usar o meu corpo para se
esconder.
— Do que está fugindo?
Luísa voltou a me encarar, com a expressão esquisita.
— Do senhor. Ao menos eu deveria. É melhor se manter
afastado, padre. — Deu um passo para o lado, porém eu a impedi
me movimentando junto com ela. Não tive coragem de tocá-la para
tirá-la dali de uma vez por todas, apenas me mantive com os braços
nas laterais do corpo, segurando-me como podia.
— Preciso te passar uma informação importante. Prometo
que a deixarei em paz logo em seguida.
Luísa deu de ombros, desviando o rosto e se mantendo em
alerta, como se alguém pudesse a encontrar e lhe fazeralgum mal a
qualquer instante. Seu comportamento muito me intrigou, mas
entendi que não queria ser vista pelo homem que a acompanhara
até então. Foi por isso que comecei a dar alguns passos para fora
da área da piscina, e ela me acompanhou sem pestanejar, porém,
ainda em vigília, exalando pavor.
Eu não sabia para onde levar aquela mulher, precisava de um
momento em sua companhia sem provocar suspeitas, por isso parei
quando chegamos perto da pista de dança. Havia alguns casais
bailando ao som de uma orquestra. A ideia que me invadiu mal foi
processada, as palavras saíram da minha boca sem que eu as
sentisse direito:
— Aceita dançar comigo?
Se Luísa estava confusa,naquele momento ficouainda mais.
Olhou-me com uma expressão de quem não esperava, de jeito
nenhum, por aquela atitude minha. Não podia julgá-la, também
estava impressionado.
Contudo, como não falou nada e nem objetou, simplesmente
a puxei pela mão e nos juntei o suficiente para a dança, porém sem
encostar muito os nossos corpos. Eu ainda tentava conceber o
cheiro bom que ela exalava, e também aquele batom escarlate
emoldurando os lábios cheios. Não queria pensar muito nisso, na
verdade.
Olhei ao nosso redor, tudo para não ter que lidar com sua
proximidade.
— Estou curiosa, o que tanto o senhor tem para falar que
exige uma dança?
— Isso é apenas um disfarce — alertei, em tom baixo,
ensaiando um passo lento e sem muitas firulas. Um para cá e um
para lá, nada que chamasse a atenção dos convidados. — Estava
esperando por uma oportunidade, mas aquele homem não saiu da
sua cola. — O resmungo escapuliu de uma vez, tanto que prendi os
lábios. Eu não devia falar naquilo. Precisava manter o foco e depois
a deixar, sem demoras.
Luísa ficou em silêncio por alguns instantes. Girei nossos
corpos para o lado, afastando-nos de um casal que estava mais
próximo. Continuei mudo, no fundo aproveitando um pouco aquele
momento, por menos que minha consciência pudesse aceitar. Sabia
que não teríamos nenhuma chance de nos ver de novo durante um
bom tempo. O quanto durasse o nosso controle.
— E então? — Luísa ofegou, e foi tão perto que senti o ar
escapulindo entre seus lábios e se chocando contra algum ponto
sensível do meu pescoço. Prendi a cintura dela com um pouco mais
de força.
— Não sei se você pensou em fazer isso antes, mas... —
Olhei ao redor, para conferir, pela última vez, se alguém nos
escutava. Obtendo a resposta negativa, prossegui em voz baixa: —
Toda arma de fogo tem um número de série. Fiquei curioso para
saber se aquela que você encontrou estava registrada, e se sim, no
nome de quem.
Luísa se espantou um pouco, tanto que parou de dançar e
ficou me olhando com assombro. Retomei a dança de um jeito
forçado, para que mantivesse o disfarce. Ela se moveu de acordo
com o comando, mas percebi que tinha ficado inflexível, menos
focada no que fazíamos.
— E o que descobriu? — questionou, guiando os olhos
curiosos pelo meu rosto e depois os afastando para o lado, em
visível constrangimento. Ela também me evitava. — Não, eu não
tinha pensado nisso. Estou me sentindo uma estúpida.
— Descobri que a arma está, sim, registrada, porém não no
nome do seu marido.
Luísa assentiu, ansiosa, e por um instante eu não soube
como dar aquela notícia. Não fazia ideia do que tudo aquilo
significava, mas o meu coração dizia claramente que aquela mulher
corria perigo. Um que ela sequer imaginava.
— Está no nome de quem? — a pergunta saiu de um jeito
grave, pois Luísa certamente já podia prever uma revelação, no
mínimo, intrigante.
— Anthony Bernardes Teixeira — murmurei, perto de seu
ouvido. Não podia arriscar que qualquer um nos escutasse.
Luísa parou a dança de novo, apertando os braços ao meu
redor com espanto.
— O prefeito? — expôs alto demais, de forma que a rodopiei
num sobressalto e coloquei meu corpo mais próximo.
— Shhhh... — Encarei-a com pavor, vendo toda a inquietude
refletida naqueles olhos brilhantes. — Sim, o prefeito. Pensei em
avisar antes, talvez te impedir de vir a essa festa, mas... — Ela
prendeu os dedos entre os meus, apertando-os com força, e permiti
que fizesse isso porque notei que precisava de apoio, qualquer que
fosse. — Acho que foi melhor ter vindo, de fato, mostrar que está
tudo bem, que você não tem nada contra ele. Eu não sei o que o
seu marido estava fazendo, Luísa, mas o prefeito tem alguma coisa
a ver com isso e deve estar te sondando neste momento.
— Meu Deus. — Vi quando os olhos dela se encheram de
lágrimas. — A esposa dele, eu... E-Eu acho que acabo de fazeruma
besteira das grandes.
— O que você fez?
— Luísa? — Um homem se aproximou de nós e nos viramos
num pulo, ambos assustados até com nossas próprias sombras.
Era o acompanhante dela. O cara de quem não desgrudou
desde que chegou.
Afastei-me, soltando-a para não arranjar qualquer confusão.
Não sabia que tipo de envolvimento eles tinham, mas pareciam
íntimos e eu que não me colocaria entre os dois.
No entanto, não evitei fechar a expressão numa carranca e o
encarar com seriedade, talvez para mostrar que eu estava de olho,
que aquela mulher não era sozinha e vulnerável. O que era uma
loucura, logicamente. Um comportamento desproporcional e
inadequado para um padre.
— Luís? Eu... E-Eu... — A mulher ficou desconcertada, sem
saber o que falar ou o que fazer. As lágrimas ainda estavam
contidas, proporcionando à sua expressão um ar desesperado que
muito me comoveu.
— Estava te procurando — o homem disse, tão sério quanto
fiquei, sem desviar o rosto de mim. Possivelmente ele não sabia
quem eu era, para estar me encarando daquele jeito, como se eu
fosse uma ameaça. Mas as dúvidas se extinguiram quando
murmurou, numa saudação esquisita: — Padre Benício. — Enfim,
virou-se para a mulher confusa. — Aconteceu alguma coisa, Luísa?
Ela apertou o tecido do vestido com certa força,na imediação
do quadril.
— Não estou muito bem, acho que já vou embora.
Eu não sabia se era prudente que Luísa partisse naquele
momento, mas a acompanhei com o olhar durante quase uma hora
e vi quando falou com o prefeito. O dono da festa sabia que ela
tinha vindo e se cumprimentaram normalmente. Talvez bastasse.
Ninguém era obrigado a ficaraté o fimda noite, certo? Sequer sabia
como proceder numa situação assim, porque desconhecia os
propósitos do aniversariante.
— Certo, eu a acompanho — o tal de Luís se adiantou,
colocando-se do lado da mulher espantada, mas ela deu um passo
para trás, recuando.
— Não precisa. Pode ficar e se divertir, vou pegar um táxi...
— Mal concluiu a frase, Luísa saiu às pressas entre os convidados,
na direção da saída da mansão.
Luís me encarou por um segundo, com a mandíbula presa e
o olhar bastante afetado, depois virou as costas e seguiu o mesmo
trajeto da mulher. Eu não senti nada de bom vindo dele,
sinceramente. Havia algo naquele olhar rígido direcionado a mim,
que parecia ciúmes, porém era forte o bastante para me deixar
preocupado. E o fato de Luísa ter se afastado dele, fugido e se
escondido me deixou com uma pulga atrás da orelha.
Será que a estava forçandoa alguma coisa e eu, imbecil, não
notei?
Não precisei de nem um segundo a mais de reflexão para
seguir o homem, a fim de garantir que Luísa não se machucasse.
Um pavor incomum tomou conta de mim, o desespero crescente
pela integridade daquela mulher crescia a cada segundo.
Estávamos rodeados de pessoas que não conhecíamos
verdadeiramente, e que podiam ter objetivos longe de nossa
compreensão.
Eu só sabia que nunca me perdoaria se algo ruim
acontecesse com Luísa.
Alcancei a bela entrada da mansão, onde algumas pessoas
elegantes circulavam aqui e ali, sem ver nenhum dos dois, o que me
angustiou ainda mais. Olhava ao redor à procura deles, sequer
disfarçando e com a terrível sensação de que, se não fosse ligeiro,
algo horrível poderia acontecer.
Corri para fora do terreno até a calçada, observando que a
rua estava movimentada com táxis e veículos de aplicativo –
bastante gente havia sido convidada, pessoas influentes de toda a
cidade. Virei o rosto para a direita e foi então que encontrei Luísa
quase no fim do quarteirão, com o homem a segurando pelo
cotovelo de um jeito que me desagradou profundamente.
Corri até eles o mais rápido que pude, a tempo de ouvir uma
grande nojeira saindo da boca daquele cara:
— Eu só quis te proteger daquele padre de meia tigela. Acha
que não sei a merda que fez, Luísa? Não sou idiota.
Ela se contorceu, enfim, conseguindo escapar do toque
agressivo dele.
— Você é um tarado, um pervertido! — respondeu num
timbre mais alto, espantando-me, enquanto eu ainda me
aproximava. — Por que raios ficoucom a minha calcinha, Luís? Isso
é nojento, é imundo e...
Eu não precisava ouvir mais nada. Embora não tivesse
entendido o contexto direito, pesquei as palavras-chave e concluí
que o sujeito não podia ser boa coisa, e que estava assediando a
Luísa. Sequer tive dúvida; já cheguei puxando o homem pela
gravata pomposa, apertando-a ao redor do pescoço dele.
O homem se assustou e arregalou os olhos na minha
direção. Empurrei-o para se chocar na cerca da mansão do prefeito,
apertando ainda mais a pegada ao redor da sua garganta. Ele se
debateu, mas só precisei de uma mão para mantê-lo ali.
— Vá embora — resmunguei, possesso, invadido por um
sentimento difícil de lidar. Estava prestes a acabar com a raça dele e
com certeza um padre não deveria sentir tanta vontade de
estrangular alguém.
— Me solte, seu... — A voz dele saiu abafada pelo aperto, e
percebendo que eu podia facilmente fazer uma enorme besteira,
com bastante testemunha a nossa volta, decidi que seria prudente
me afastar.
Abaixei a mão, mas não antes de o sacolejar uma única vez,
com tanta forçaque o cara quase caiu no chão, desequilibrado. Luís
ofegou alto e forte, levantando o rosto para me encarar, exalando
um ódio que nunca presenciei no rosto de ninguém. Eu não estava
enganado com relação a ele: o sujeito não prestava e a vida de
Luísa corria perigos provenientes de mais partes do que eu poderia
supor.
— Nunca. Mais — falei pausado, num timbre irreconhecível,
aproximando-me até o encarar de muito, muito perto. — Encoste.
Um só dedo. Nela. Ouviu?
Luís soltou uma risada cheia de escárnio.
— O senhor deveria era ter vergonha na cara e não tocar em
nenhuma mulher — resmungou baixo, quase encostando a testa na
minha. — Se aproveita da vulnerabilidade dos outros para colocar
as garras de fora. O senhor é uma aberração! Que padre que nada!
Devia estar bem longe da igreja, seu caminho é do mal e do pecado.
Voltei a agarrar a gravata dele e o empurrei forte para o lado,
fazendo-o quase cair de cara na calçada. Pelo menos o gesto fez
com que se afastasse. Se um dia eu encarei a maldade, foi olhando
nos olhos daquele homem. Enquanto me julgava, ofendia e dizia
aquelas coisas horríveis, não associei nada a mim, por mais
pecador que eu fosse, mas a ele próprio. Era podre por dentro.
— Se afaste,ou juro que acabo com você — faleide um jeito
tão brando, calmo, porém firme, que até me surpreendi. Mal
reconhecia a minha voz. Tive a impressão esquisita de estar, na
verdade, fazendo um exorcismo. Cara a cara com as sombras.
— Vá embora, Luís, por favor! — Luísa pediu, aos prantos,
tão espantada com aquilo tudo que se abraçava em desamparo.
Parecia vulnerável como nunca, demonstrando uma dor enraizada
que me entristeceu profundamente.
Ela não merecia nada daquilo acontecendo na vida dela.
O homem riu, soberbo, mas percebeu que não era páreo
para mim. Um magricela que se partiria ao meio se ganhasse um
soco na cara, e eu estava tão disposto a fazerisso que agradeci aos
céus quando ele se afastou, seguindo para a pequena fila de táxis
do outro lado da rua. Não disse mais nada, apenas saiu bufando,
exalando ódio, uma raiva que eu não sabia se traria novas
consequências.
Só sosseguei quando o veículo partiu, levando-o para longe
de nós.
Eu me virei para Luísa, que me olhava com emoção,
misturando a gratidão com o desespero. Parecia um animal
indefeso, à mercê da sorte e sem nenhum amparo. Não me contive
e a puxei para um abraço apertado, carregado de um sentimento
que me preenchia de uma forma inacreditável.
Era algo que se sobrepunha a qualquer culpa, que fazia com
que me esquecesse os erros. Era uma preocupação, mas também
uma saudade, um alívio e uma pressa. Nunca sentia uma coisa só
perto daquela mulher.
— Eu quero morrer — confessou aos prantos, entre um
soluço e outro que sufocava no tecido do meu terno. Seu corpo
tremelicava por inteiro, ela estava no auge da agonia.
Balancei a cabeça em negativa, arrasado e ao mesmo tempo
chateado pelas suas palavras. O que seria de mim se Luísa
simplesmente sumisse? Encarei-a de perto, com as mãos
repousadas sobre seu cabelo cheiroso. Eu a conhecia há uma
semana e já não sabia mais conviver com a mera ideia de sua
inexistência.
— Não fala assim — murmurei, puxando-a mais. Ela circulou
os braços ao redor da minha cintura e continuou chorando,
inconsolável. — Deus tem um propósito para você, tenho certeza
disso.
— Eu não aguento mais — choramingou, ignorando as
minhas palavras, a tentativa vã de trazer algum conforto. — Quero
sumir.
De repente, uma ideia se fixou na minha mente e a afastei
um pouco, erguendo seu rosto pelo queixo, a fim de a encarar.
Precisava que aquela mulher confiasse em mim para tirá-la daquele
antro. Pelo menos enquanto a gente não descobrisse quais de fato
eram os perigos que a rodeavam.
— Vem comigo.
Ela me agarrou com força.
— Para onde? — Piscou várias vezes, derramando mais
lágrimas.
— Vamos sumir. — Ela me pareceu hesitante, sem saber
como reagir. Segurei o seu rosto com a outra mão, incapaz de
desviar daqueles olhos lindos. — Confia em mim.
— Eu confio — sussurrou, e foi tão intenso que senti uma
energia louca se apossar não só do meu corpo, mas do meu
espírito.
Por uns instantes, eu me senti no paraíso, um que sempre
sonhei ser merecedor. Havia calma, paz, tranquilidade. Era como
uma brisa suave no fim da tarde, com cheiro de café fresco e um
bom livro a tiracolo. Era estável e certo, não cabiam dúvidas. Era o
exato lugar onde existia tudo de bom e bonito no mundo.
Eu não precisava de absolutamente mais nada.
Prendi os lábios e segurei a mão dela, guiando-a na direção de
onde deixei a velha motocicleta doada para a igreja. Tinha vindo
com ela porque não me pareceu prudente voltar para casa a pé
tarde da noite. Parecia que eu estava adivinhando: com um meio de
transporte, podia levar Luísa para longe de toda aquela confusão.
E para mais perto de mim.
PARTE 14
A verdade nos libertará

Maria Luísa

Eu não sentia o meu próprio corpo enquanto andava lado a


lado com padre Benício, até alcançarmos a rua lateral onde ele
deixara uma moto estacionada. Havia várias por perto, em fileira,
certamente pertencentes aos convidados do prefeito. Ainda não
conseguia assimilar o que tinha acabado de acontecer, e tão
depressa: a pequena confusão com o delegado, a conversa
intrigante com a primeira-dama, a dança reveladora com o padre e
depois ele me defendendo do tarado do Luís.
Estava derrotada, humilhada, morrendo de medo e meio
apática, porém minhas entranhas se contorceram de alegria ao ver
aquele homem enorme disposto a bater em alguém por minha
causa. Um sentimento bem contraditório, egoísta e nada normal,
mas que me invadiu em cheio e me senti realmente protegida.
Quando me pediu para confiar nele, não tive a menor dúvida. Em
toda aquela cidade, padre Benício era a única criatura em quem eu
ainda guardava alguma confiança.
Ele me ofereceu um dos capacetes e olhou para mim por
mais tempo, como se refletisse profundamente. Tive medo de que
desistisse de fugir comigo. Eu não fazia ideia de para onde iríamos,
mas ali não era um bom lugar e voltar para casa, com meu vizinho
pervertido à espreita, não era uma opção. Enquanto estivesse com
o padre, sabia que estaria segura, ninguém me faria qualquer mal.
— Preciso avisar ao Toninho que estou saindo, ou ele vai
ficar muito preocupado, pois viemos juntos — padre Benício disse,
sacando o celular do bolso do terno de um jeito que me deixou
vidrada, e se afastou alguns passos para fazer aquela ligação.
Depois de algumas tentativas, enquanto eu olhava por todos os
lados, em plena desconfiança, o homem se virou novamente para
mim: — Ele não atende. Vou precisar voltar para a festa e avisar.
Pode me esperar aqui?
Observei a rua, que estava movimentada e iluminada. Não
era possível que alguém fizesse qualquer coisa contra mim
naquelas condições. O pior de tudo era não ter a menor noção de
quais perigos me cercavam, se é que de fato havia algum.
— Tudo bem, eu espero.
Padre Benício deu um passo para frente, depois paralisou.
Passou uma mão pelo cabelo e se virou para me encarar.
— Não, é melhor que venha comigo. — A voz saiu comedida,
exalando uma seriedade que me comoveu. Ele estava muito
preocupado, de forma que simplesmente me envaideci. Sentia uma
gratidão imensurável por ele ter afastado o Luís. — Não vou te
deixar sozinha de maneira alguma.
Abri um leve sorriso e usei as costas das mãos para limpar o
rosto. Não sabia como estava a minha maquiagem e não queria
entrar de novo na casa do prefeito, mas era isso ou ficar sozinha na
rua, coisa que eu realmente não queria. Quando ergui a cabeça,
pronta para retornar, padre Benício me observava.
— Continua perfeita — murmurou, fazendo-me soltar um
arquejo.
Eu me perguntei se meus ouvidos tinham mesmo escutado
aquilo, mas não tive muito tempo para raciocinar. Ele colocou os
capacetes sobre a moto de novo e foi andando, portanto precisei o
acompanhar a passos apressados.
Adentramos a festa novamente e fiz de tudo para me manter
invisível, sem alardes, enquanto o padre procurava pelo coroinha.
Encontrou-o no grande terraço da mansão, na companhia de outros
adolescentes de sua idade, pessoas que eu não conhecia muito
bem.
Os dois começaram a conversar num canto, e aguardei
enquanto observava por toda parte, como se um ataque contra a
minha pessoa fosse inevitável. Tudo ali passou a me incomodar
muito. Encontrar o prefeito sorridente e conversando com uma roda
de empresários engravatados me fez suspirar de exaustão.
Eu me virei um pouco, a fim de sair das vistas do
aniversariante. Andei até uma pilastra, e foi então que uma mulher
muito bonita passou por mim. A princípio, fiquei meio chocada com
a beleza evidente. Estava dentro de um vestido azul-escuro muito
bonito, e o penteado trançado era uma perfeiçãopor si só. Contudo,
depois de alguns segundos a analisando, percebi que não havia
sido a roupa que tinha me chamado a atenção para ela. Eu a
conhecia. Era a mulher da fotografiade Samuel. Aquela que estava
nua e dando para um homem que eu não fazia ideia de quem era.
— Oh, meu... — Levei uma mão à boca, enquanto ela
circulava com um porte todo elegante.
Simplesmente me esqueci do padre Benício e a segui, a certa
distância, pela festa. Ela parecia bastante conhecida, sobretudo
pelos mais jovens. Vi que o grupo de amigas da filha do prefeito a
abordaram e trocaram cumprimentos. Conversaram por uns
instantes e depois se afastaram.
Continuei seguindo a desconhecida, até que parou diante do
minibar e aguardou a sua vez para pedir um drink. Eu me aproximei
com cautela, sentindo a curiosidade crescer junto com a coragem, e
fingi que também estava na fila para pegar uma bebida, logo atrás
dela. Analisei suas costas com atenção, assombrada como se
estivesse frente a frente com um fantasma.
— Podemos ir — a voz do padre Benício atrás de mim me
assustou e dei um pulo. Virei para ele e abri bem os olhos, tentando
apontar para a moça sem dar muito na cara, chamando sua atenção
para confirmar o reconhecimento, afinal, nós dois tínhamos visto a
foto. — O que foi?
Gesticulei com mais veemência, parecendo uma doida na
frente do padre, que continuava me olhando com a expressão
confusa. Por fim, apontei quase para a cabeça da mulher e ele
ergueu o rosto na direção dela. Ouvi quando a desconhecida
solicitou uma taça de champanhe. O garçom lhe entregou a bebida
em questão de segundos e ela se virou rápido, quase se chocando
comigo.
A mulher ficou meio desajeitada, mas sorria tranquilamente,
até que o olhar esverdeado recaiu sobre mim e o semblante mudou
de um instante para o outro. O sorriso morreu, os olhos se
arregalaram e ela pareceu ter um troço bem diante de mim. O rosto
ficou pálido, e então percebi que o fantasma naquela festa, na
verdade, era eu.
— Desculpa — murmurei, sem jeito, já abrindo passagem por
não conseguir lidar com um reconhecimento por parte dela.
Achava que algo assim não aconteceria, como a ingênua que
eu era, mas pelo visto Samuel estava fazendo coisa errada com
aquela mulher também. Ficou ainda mais óbvio.
— Sem problemas — sussurrou, espantada, e rapidamente
virou de lado e se distanciou de nós sem olhar para trás.
Continuei paralisada, exausta por não saber o que estava
acontecendo na minha própria vida. Aquela gente toda achava que
eu continuaria com as falcatruas do meu marido? Ou será que
tinham a ver com a morte dele? Talvez os dois. Alguém muito puto
da vida tinha dado aquelas facadas. Precisava existir um motivo
forte, e um escândalo era o suficiente numa cidade que vivia de
aparências.
Ninguém ali lidava com a verdade, não como eu. Aquela
semana terrível me fez desistir de uma vida de mentiras e
falsidades, sobretudo de esconder meus desejos mais ocultos. Foi
pensando nisso que encarei padre Benício, que certamente
reconheceu a mulher, porque me olhava com espanto e muitas
dúvidas.
— Aquela não era...?
— Era. — Engoli em seco.
— Sabe quem ela é?
— Não, mas estou cansada e nem sei se quero saber.
Padre Benício pegou o próprio celular e, dali mesmo e de
forma muito discreta, tirou uma foto dela, que precisou parar no
caminho porque mais um grupo de pessoas a cumprimentou. Era
conhecida, com certeza. Não teríamos muita dificuldade para
descobrir, depois, de quem se tratava.
— Vamos? Ou o senhor desistiu? — provoquei de propósito,
guiada pelo cansaço e pelo medo que tanta insegurança me
causava.
Eu não sabia se tinha feito alguma coisa certa naquela noite,
talvez fugir com ele fosse a única. E incrivelmente era a que
também parecia bem errada.
— Não vou desistir.
Ele guardou o celular no bolso e andou antes que eu pudesse
responder ou analisar suas reações. O timbre saiu firme, seguro, o
que já era demais para aquele homem em seu modo mais
reservado. Eu não sabia o que me aguardava, mas tinha plena
certeza de que em algum momento daquela noite eu estaria em
seus braços. Era algo mais forte do que nós, e parecia que padre
Benício já estava aprendendo a lidar com essa verdade.
Foi em silêncio que saímos da festa. Mantive-me alguns
metros atrás dele, a fim de disfarçar nem que fosse um pouco. Não
queria que falassemque eu tinha saído dali na companhia do padre.
Não que me importasse, já não ligava mais para a opinião de
ninguém ao meu respeito, mas ele certamente se importaria.
Continuamos mudos enquanto ele colocava o capacete e me
ajudava com o meu, tomando o cuidado de ajustá-lo com atenção.
Padre Benício subiu na moto e me aguardou. Mesmo estando de
vestido, segurei o tecido mais para cima e me abri ao seu redor,
segurando-o pela cintura.
Sequer perguntei o destino. Não queria me sobrecarregar de
questionamentos, já bastavam os que circulavam a minha mente
sobre toda aquela gente que encontrei. Se me sentia constrangida
por sair com padre Benício no meio da festa? Nem um pouco. Eu
estava fodidademais para me preocupar. Minha reputação já estava
uma meleca, não tinha dinheiro, poder, status, nada.
Padre Benício pilotou numa velocidade elevada que muito me
surpreendeu, principalmente quando atravessou a via principal e
pegou o acesso à rodovia. Estávamos saindo da cidade e nem
assim teci qualquer comentário. Se queria me levar para bem longe,
ótimo. Meu desejo era, sinceramente, nunca mais voltar. Parecia um
sonho deixar tudo para trás só com a roupa do corpo e um homem
como ele, nada além disso.
Eu recomeçaria do zero sem reclamar.
Com os dedos enfiados naquela cintura estreita e dura,
mantive a cabeça dispersa e aproveitei a viagem, ainda que a
adrenalina da velocidade me fizesse quase gritar em alguns pontos
do percurso. Logo o cenário urbano mudou e a via trouxe a natureza
escura àquela hora, um cenário que poderia ser sinistro se eu não
estivesse tão necessitada da plena calmaria.
Padre Benício adentrou uma estrada desconhecida, no meio
do nada, e continuou veloz rumo a qualquer que fosse o lugar onde
me levava. Percebi que minha confiança nele era maior do que
deveria. Depois de tudo pelo que passei, seria prudente não me
deixar levar para canto algum por alguém que mal conhecia, mas
simplesmente não senti medo. Estava segura e calma com ele por
perto.
Quando uma baita casa apareceu na minha frente, e enfim
estacionamos, fiquei me perguntando que lugar era aquele.
Distante, tranquilo, sem cercas ou muros. Havia uma residência
grande, feita de madeira e várias partes envidraçadas, um cenário
bucólico que mesclava o moderno ao interiorano clássico.
Continuei sem falar nada enquanto descíamos da moto. O
padre prosseguiu calado, como eu, e novamente me ajudou com o
capacete, levando os dois consigo e caminhando para a entrada da
casa. Eu o segui, sentindo os saltos sobre os cascalhos que
formavam um caminho bonito. Havia plantas por todas as partes,
com vasos de diferentes tamanhos aqui e ali, formando um
jardinzinho muito meigo.
Ele pegou uma chave por trás de um dos quadros
pendurados e abriu a residência, que se mostrou aconchegante logo
de cara. Tinha um estilo americanizado, com sala e cozinha num
mesmo ambiente, tudo bem aberto, amplo e decorado com bom
gosto. Uma casa de campo para quem realmente queria descansar
e se ver livre da confusão da cidade.
Padre Benício acendia as luzes e me deixava espantada com
a beleza da residência, e fiquei mais maravilhada ainda quando
abriu uma porta envidraçada de correr e deixou a brisa da noite
adentrar o ambiente. Havia um pequeno deck na parte de trás, com
espreguiçadeiras e uma piscina pequena, que infelizmente estava
seca.
— Que lugar é esse? — perguntei, porque a curiosidade
gritava em meu peito. O homem se mantinha tão sério que se tornou
visível que aquilo que fazia não era tão fácil assim para ele.
— A minha casa, numa outra vida. Bom, tecnicamente
pertence aos meus pais agora, pois fiz votos de pobreza e não
tenho nada em meu nome — falou baixo, e continuou a ligar mais
luzes. — Desculpa a poeira, faz uns dias que não venho aqui.
— Eu achava que o senhor morava no terreno da igreja. —
Parei no meio da sala, desistindo de seguir seus passos. Ele abria
uma quantidade absurda de janelas e ligava luzes embutidas em
toda parte.
— Eu moro no terreno da igreja. Só venho aqui para limpar e,
às vezes, para ficar no completo silêncio sem ser incomodado.
Mas ele parecia extremamente incomodado em estar ali.
Talvez fosse minha presença, eu não sabia direito. Aquele homem
ainda era um mistério para mim. Era difícil confiar em alguém sobre
quem não se sabia quase nada. Senti-me um pouco mal por
remover, visivelmente, a sua tranquilidade, por isso me sentei no
sofá, constrangida.
— Por que me trouxe aqui?
Padre Benício não respondeu. Talvez não soubesse a
resposta.
Quando terminou de abrir tudo, ele fez o percurso inverso e
parou na cozinha, abrindo a geladeira.
— Está com fome? Não guardo muita coisa por aqui, para
não estragar, mas tem sorvete, petiscos, refrigerantee um monte de
besteira industrializada.
— Aceito.
Eu realmente estava faminta. Não havia comido quase nada
na festado prefeito,por pura vergonha e também porque foqueinas
bebidas caras. Na verdade, não vinha sentindo muita vontade de
comer nos últimos dias. Andava triste, cabisbaixa e ansiosa, mas a
presença do padre me trazia uma ânsia, um impulso fora do comum.
Padre Benício reuniu o que estava na geladeira e na
despensa, dispondo tudo sobre a mesa grande no canto. Segui para
lá e aguardei que concluísse, só então abri um pacote de
amendoins. Ele se sentou perto, mas distante o suficiente para
deixar claro que não pretendia me tocar, deixar-se cair em tentação
de novo.
— Não vai comer?
Ele olhou para os alimentos por bastante tempo e deu de
ombros.
— Não... — Mas não parecia muito certo disso. Eu o analisei
por um tempo maior, percebendo o quanto padre Benício parecia
abatido. Estranhei completamente, pois não estava assim na última
vez em que nos vimos.
— O que você tem? Está pálido, esquisito... Você... — Ele
virou o rosto para o lado. — Coma alguma coisa, padre. Está
claramente com fome. O senhor... Você não tem comido direito, é
isso?
Ele não respondeu, apenas ficou encarando o tampo da
mesa. Ofeguei, chocada com a informação que descobri sem
querer. Percebendo meu desconforto, confessou:
— Estou jejuando.
Balancei a cabeça em negativa, sem acreditar no tamanho da
culpa que aquele homem carregava pelo que andávamos fazendo.
E então me senti extremamente culpada por lhe trazer sofrimento
àquele ponto. Decepcionada comigo mesma, abri um pacote de
biscoitos, peguei um e coloquei quase no rosto dele.
— Coma, por favor.
— Luísa, não se preocupe comigo.
— Coma. — Chacoalhei o biscoito e, depois de me observar
por alguns segundos, padre Benício o pegou e o mastigou
depressa. Engoliu-o tão rápido que ficou evidente o quanto estava
faminto.
Coitado, meu Deus. A que tipo de sofrimento estava se
submetendo para buscar uma redenção? Enquanto eu, tola, sequer
me arrependia de nada, por mais desrespeitosa e vulgar que tivesse
sido. E ainda planejava continuar como se tudo fosse simples e
permitido, sem me dar conta de que cada ato tinha consequências.
Abri cada lanche um por um, entregando-os ao padre e
apenas sossegando quando ele comia com gosto, sem mais hesitar.
Fiquei cheia muito antes que ele, que continuou mastigando até que
não sobrou quase nada.
— Não faz isso de novo — pedi, emocionada com o fato de
ele se resignar tanto, e mesmo assim ainda ser capaz de me
proteger e ajudar. — Não se machuca dessa forma.
Ele prosseguiu em silêncio, evitando colocar os olhos em
mim.
— Por que me trouxe aqui? — questionei mais uma vez. —
Este lugar claramente te traz memórias indesejadas. Estou errada?
Ouvi seu arquejo forte. Padre Benício, enfim, me encarou, e
precisei suspender a respiração, porque ainda era um
acontecimento olhá-lo de tão perto.
— Vou arranjar roupas limpas para você. Tome um banho e
fiqueà vontade. Estará segura aqui. — Ele se levantou, mas peguei
a sua mão e o impedi de se afastar.
— Por favor, responda. Me tratar desse jeito não vai me fazer
te desejar menos, nem o contrário. Só vai nos deixar machucados.
Ele me olhou com certo espanto, como se refletissemuito em
um curto espaço de tempo, até que, por fim, ergueu uma mão e
alisou minha bochecha. Fechei um pouco os olhos, deixando-me
levar por aquela carícia ínfima, suave, mas que significava muito.
— Nada do que fizaté agora foicapaz de me fazerte desejar
menos. Você tem razão, Luísa, mas eu preciso continuar tentando.
Uma hora alguma coisa tem que funcionar. Não se magoe, não tem
nada a ver com você, mas comigo. Se eu pudesse... — Parou por
uns instantes, descendo os dedos pelo meu pescoço e
transformando o toque em algo muito mais profundo. — Se eu
pudesse, te faria minha. Mas você merece alguém inteiro e eu sou
quebrado. — Padre Benício se afastou de vez, deixando-me sem
fôlego. — Vou buscar as roupas.
Suas palavras permaneceram naquela sala durante muito
tempo depois que se retirou. Foram tão intensas e palpáveis que se
tornou difícil até tirar alguma conclusão. Eu via um desejo absurdo
naqueles olhos claros, mas também um sofrimentodesmedido, uma
dor que fugia de minha compreensão e que ia muito além de seus
compromissos com a igreja. Foi naquele instante que percebi que
não era apenas o celibato que nos separava.
Eu me levantei e caminhei pelo corredor até encontrar uma
porta aberta, que dava para o quarto onde padre Benício estava
parado, na frentede um guarda-roupas cheio. As roupas eram todas
de mulher. Olhei para o lado a fimde observar o ambiente; parecia a
suíte principal, com cama de casal e porta-retratos espalhados nos
móveis. Havia muitas fotografias do padre, bem mais novo, ao lado
da mesma mulher que jazia em sua cômoda, na igreja, inclusive dos
dois com vestes de casamento.
Todas as informações, juntas e misturadas, fizeram o meu
peito doer e se apertar consideravelmente, arrancando-me algumas
lágrimas. Analisei cada foto uma por uma, enquanto ele nem se
movia, apenas observava as vestes da pessoa que, eu sentia, o
homem tinha amado profundamente. Ele já foi casado, meu Deus.
— Você não precisa fazer isso — murmurei, ainda distante.
Não queria invadir aquele espaço que era só dele e de suas
memórias. — Vamos embora daqui.
— Não. Ela já se foi há muitos anos. — Seu timbre saiu mais
tranquilo do que antes, na sala, o que me deixou em alerta. — Tudo
isso já deveria ter sido doado para quem precisa. É o que farei.
Eu me sentei sobre a cama, mesmo sabendo que talvez seria
invadir demais aquele espaço tão sagrado para ele. Só que estava
cansada e meus pés doíam com aqueles saltos. Ergui uma perna,
depois a outra, e os retirei devagar, enquanto padre Benício pareceu
ter encontrado uma peça dentro do armário.
— Não vou vestir as roupas dela.
Ele se aproximou e se sentou na minha frente.
— Não lembro dessa, acho que ela nunca usou. — Colocou
uma camisola branca ao nosso lado, no colchão. Era muito bonita e
parecia nova em folha.
— Padre... — resfoleguei, com o peito ainda sangrando. Eu
tinha muita pena dele, mas também de mim mesma. Não fazia ideia
de que sofreria tanto ao finalmente entender que eu não era páreo
para uma lembrança tão dolorosa. — Se não vai me contar a
história, nem me fazer sua, se vai se manter distante e se fechar
para mim... Não vejo qualquer motivo para vestir isso e fingir que
está tudo bem. Eu não sei o que estou fazendo aqui, parece que
não me encaixo. Não tenho qualquer espaço na sua vida.
— E você lamenta por isso? — perguntou num fio de voz.
— É claro que lamento. — Ele ficou me olhando com visível
emoção, os olhos marejaram imediatamente. — Esse desejo
absurdo que sinto por você pode não ser apenas desejo —
confessei baixo, enfim me dando conta de mais uma grande
verdade. — É muito cedo para ter certeza, mas me dói assistir ao
seu sofrimento e me dói não encontrar qualquer lugar para mim ao
seu lado. Suas últimas palavras no confessionário me dilaceraram
por dentro.
Padre Benício assentiu devagar, parecendo arrependido por
ter me causado aquela dor, no entanto, não se desculpou e nem
falou nada durante um minuto completo. Continuou com os olhos
claros fixos em mim, até que suspirou e iniciou uma narrativa
emocionada, por conta própria.
— Começamos a namorar com quinze anos, aquele amor à
primeira vista que foi devastador e durou mais do que qualquer
relacionamento entre adolescentes. Éramos muito novos, mas
apaixonados demais. Nós nos casamos quando completei vinte e
um anos — sussurrou como uma oração, tão baixo que precisei me
aproximar um pouco mais para ouvir melhor. — Assim que saí da
faculdade e arranjei meu primeiro emprego, e ela também,
financiamos essa casa. Era a vida que queríamos: distante de tudo,
com muito verde, simplicidade, mas conforto. Vivemos felizes aqui
durante uns dois anos. — Ele parou, prendeu os lábios por alguns
instantes e, por fim,segurou a minha mão. Entrelaçou os dedos nos
meus e o segurei firme, percebendo que precisava daquele apoio.
— Sofia descobriu um câncer muito rigoroso no pâncreas, num
estágio avançado demais. Entre o diagnóstico e a morte foram
apenas quatro meses.
— Meu Deus — ofeguei, apertando-o com mais força.
— Eu assisti ao amor da minha vida indo embora, sem poder
fazer nada. Ela definhou na minha frente e esperei pela morte ao
seu lado. No fundo, sentia como se fosse o meu próprio fim. Eu
morri no dia que Sofia deu o último suspiro.
Ele ficou mudo de repente, encarando-me. Eu mal conseguia
respirar, de tão apertado que o meu coração estava.
— Sinto muito.
— Eu era novo, todo mundo dizia isso. — Relaxou os
ombros, prosseguindo com a narrativa que claramente o magoava.
Não sabia direito por qual motivo, mas se esforçava para continuar,
parecia importante que desabafasse comigo. — Falavam que o
amor chegaria para mim de novo, que eu superaria essa dor e
seguiria em frente.Mas... Eu não consegui, Luísa. — Acompanhei a
primeira lágrima rolar por aquele rosto tão belo. — Não via mais
sentido em nada, não sem Sofia ao meu lado. Deixei de trabalhar,
de sair, de viver. Eu me afundei no álcool, me tornei um viciado,
vivia bêbado para não sentir nenhuma dor. Estava perdido...
Completamente desamparado.
Fiquei bastante espantada e, sem perceber, já quase o
abraçava, de tão perto que ficamos um do outro. Segurei seu rosto
com as duas mãos, chorando junto com ele em plena empatia.
Sentia aquele sofrimento exalando e me compadecia por inteira.
— Meus pais surtaram comigo, dei muito trabalho para eles.
Não sabiam mais o que fazer, porque fui deixando de ser eu pouco
a pouco. — Padre Benício inspirou profundamente e soltou o ar
devagar, buscando tranquilidade. Continuou, com a voz um tanto
serena: — Foi na terceira clínica de reabilitação que encontrei Deus.
Achei um propósito forte, capaz de me tirar do vício e da dor.
Ele sorriu, derramando lágrimas, e sorri junto porque
realmente só Deus mesmo para salvar um espírito tão deprimido e
infeliz. Eu acreditava muito Nele, apesar de ter agido de forma
péssima nos últimos dias.
— A minha vida ganhou um sentido: ajudar, servir... Espalhar
a Palavra. Decidi entrar para o seminário e me dediquei, me
empenhei para arrancar todas as dores e colocar o amor ao próximo
no lugar de cada vazio na minha alma.
Ele acariciava os meus cabelos, mantendo os olhos grudados
em mim.
— Durante o seminário, fiz promessas não apenas a Deus,
mas à memória de Sofia. — Mais uma vez, prendi a respiração e
tive que suportar aquela dor nova, diferente.Um ciúme infundadose
apossou do meu corpo. — Prometi que ela seria minha última, que
não haveria ninguém depois dela. Meu primeiro e único amor. Fiquei
em paz com isso. Eu me conformei e segui o caminho da fé com
resignação e muito zelo.
Naquele instante, eu não soube direito o que sentir, tudo doía
demais. A culpa e o arrependimento, finalmente, varreram-me e
levaram tudo. Arrancaram o que havia sobrado de mim, e que já não
era tanta coisa.
Eu não tinha o direito de seduzir aquele homem, de jeito
nenhum. Forcei a barra e fui uma cretina da pior espécie, usando
meu corpo para tentá-lo, levando-o para o pecado, cavando dores
antigas. Sequer sabia que nossos momentos significariam tanto
para ele. Que o tirariam de um caminho que escolheu com tanto
cuidado, depois de um período difícil e de superação.
— Me perdoa — murmurei, inconformada, sentindo-me
péssima. — Eu não sabia, eu... Não deveria...
Ele colocou os polegares nos meus lábios.
— Você chegou. Aliás, não foi uma chegada, foium acidente.
Daqueles que não se prevê e não se pode evitar. — Padre Benício
agarrou meus cabelos com força e juntou nossas testas. — Luísa,
você mexeu com tudo. Eu achava que era incapaz de deixar outra
pessoa entrar... Achava que seria fácil me manter puro, casto,
porque nunca sequer desejei ninguém depois de Sofia. Mas eu te
desejei, te tomei para mim e agora não consigo conviver com a ideia
de te ver de longe. Eu quase morri de ciúmes daquele cara, quase
bati nele e fugi contigo porque você é o acidente que ainda está
acontecendo. A única coisa que sei é que não vou sair disso ileso.
Prendi um soluço na garganta.
— Eu não quero ser um acidente. Acidentes são ruins e você
tem toda a razão em querer me evitar.
Ele desceu os dedos para o meu pescoço.
— É a primeira vez que entro nesse quarto e sinto que está
tudo errado — murmurou, convicto, sorrindo um pouco enquanto eu
só sabia chorar. — Essas fotos deviam estar numa caixa. As roupas
e pertences, doados. — Olhou para os lados, observando o
ambiente ao nosso redor. — Passei a semana me sentindo culpado
por não me arrepender de quebrar todas as promessas. Consegue
entender?
Assenti, compreendendo aquilo na totalidade. Eu tinha me
sentido da mesma forma ao longo da semana. Busquei a culpa e o
arrependimento no meu coração, mas não encontrei nada além da
vontade de fazer de novo. Mas naquele momento eu estava muito
confusa e sabia que o certo era recuar, pelo bem daquele homem.
Não queria magoá-lo; ele estava tão vulnerável quanto eu.
— Olha como sou uma bagunça — concluiu, soltando uma
risada sem graça. — Não tenho qualquer direito de te puxar para
isso. Falei que preciso te evitar porque é a verdade. Depois de tudo
pelo que você passou, não merece alguém detonado assim.
Eu ri como ele, sem nutrir o menor divertimento.
— Benício... — murmurei unicamente seu nome pela primeira
vez, porque sabia que aquela conversa era com aquele homem, não
com o padre. Não cabia nenhum papel ou cargo naquele momento.
— Eu espero que você se reencontre e seja feliz. De verdade. Mas
o que está dizendo não faz sentido para mim, não é questão de
merecimento meu. A minha vida não é nenhum parâmetro de
normalidade para você se preocupar tanto assim. Nossas bagunças
se misturaram e se transformaram num caos, e seria prudente nos
afastarmos para não piorar.
Ele aquiesceu, concordando.
— Ao mesmo tempo, sinto que nada mais será como antes
— admitiu com seriedade. — Não sei se vou me sentir bem fingindo
uma pureza que está longe de mim, principalmente quando eu te
olho ou penso em você, o que tem acontecido o tempo todo. — O
pleno desejo ardia naquele olhar fixo na minha direção, removendo
não só o fôlego, mas qualquer pensamento racional. Ele mexia
demais comigo, de uma maneira que não parava de me
surpreender. — Deus me deu conforto,consolação e propósito, mas
foi você que fez eu me sentir vivo de novo, Luísa.
Senti uma vontade esmagadora de juntar nossos lábios de
uma vez, mas me contive. Pisávamos em terrenos desconhecidos, e
talvez aquela ânsia atrapalhasse nosso discernimento. Eu ainda não
sabia o que estava acontecendo, nem o tamanho daquela forçaque
me empurrava para os braços dele. Era intensa e poderosa, mas, ao
mesmo tempo, confusa. Eu já não separava o certo do errado, o
justo do injusto.
Se beijá-lo significava magoar, mexer com uma ferida antiga,
então precisava ter mais cuidado. Só que suas palavras diziam o
oposto, traziam a ideia de que um beijo, talvez, nos salvasse, nos
libertasse de uma vida de fingimentos.
— Eu estou aqui porque não tenho absolutamente nada a
perder. — Fui sincera, recordando-me de todos os meus problemas.
Não existia qualquer motivo para me fazer voltar sem que fosse
para preservar aquele homem. — Só me sobrou esse desejo, essa
vontade de estar contigo, mas entendo que você tem tudo a perder.
A memória de Sofia,sua vocação, seus compromissos com a igreja,
uma boa imagem... Não vou complicar a sua vida, então acho
melhor eu ir embora.
— Não. — Benício se levantou e me puxou para junto de si,
impedindo o meu afastamento. Eu estava juntando força e coragem
para não me descontrolar e fazer a coisa certa daquela vez, mas
estava sendo muito difícil. — Você não vai embora.
— Não consigo te ver e fingir que não quero — soltei num
impulso, incapaz de sair dos seus braços quentes. Como resistir a
tudo aquilo? Eu estava cansada demais. Se Benício precisava se
manter afastado, então que não me levasse para o meio do nada. —
Depois de tudo o que me contou, eu te entendo mais ainda... E te
quero com mais força,mesmo sabendo que não posso. Dói demais.
Não quero ficar aqui e lidar com essa impossibilidade. Me deixe em
casa e a gente vai descobrindo como seguir em frente longe um do
outro, sem misturar nossas bagunças.
Porém, os braços dele me agarraram com intensidade.
Benício me puxou para seu colo e o vestido novo fez um barulhão
de costuras sendo abertas, mas não deixei de pular sobre aquele
corpo enorme. Envolvi as pernas ao seu redor e o encarei,
incrédula. O que ele estava fazendo,depois de me dar uma extensa
explicação do porquê não podermos continuar com aquilo?
— Você me quer mesmo assim? — questionou, encarando-
me. Ele estava nervoso com a resposta, e de repente me pareceu
um menino, como se ainda fosse o moleque daquelas fotografias.—
Mesmo sabendo de tudo?
— Sua bagunça não me incomoda. A preocupação é a minha
te incomodar.
Ele chacoalhou a cabeça em negativa.
— A sua nunca me incomodou, do contrário eu teria
conseguido me manter longe.
Suspirei, enquanto ele me levava para algum lugar
desconhecido, em seus braços, deixando aquele quarto carregado
de memórias para trás. Meu foco estava em seu olhar se
iluminando, nosso destino era completamente irrelevante.
Só percebi que estávamos de volta para a sala quando ele
me depositou sobre o sofá,colocando o corpo por cima de mim sem
qualquer afastamento.
— Posso te fazer minha? — murmurou a pergunta, alisando
meus cabelos com uma doçura comovente. O rosto emanava um
semblante mais calmo, tranquilo, como se tivesse exorcizado todos
os problemas que nos cercavam.
— Só se nunca mais disser que seu corpo e seu coração não
podem ser meus.
Ele riu um pouco, porém o rosto corou. Ganhei um beijo na
ponta do nariz.
— Hoje eu vou te entregar tudo, Luísa. Podendo ou não.
Deslizou os lábios para baixo e se afundou na minha boca
sem esperar uma resposta. De qualquer forma, eu não conseguiria
dizer nada, porque fiquei embasbacada com aquelas palavras,
muito surpresa e ainda mais emocionada.
A formacomo me beijou daquela vez foidiferente.Não houve
pressa ou selvageria, nem aquela sensação de proibido que nos
envolvia a cada instante. Pelo contrário, jamais me pareceu tão
correto estar em seus braços, recebendo-o por inteiro.
Ele disse que me faria sua, mas também estava sendo meu.
PARTE 15
Presente divino

Padre Benício

Quanto mais me aprofundava nos lábios de Luísa, mais


percebia que pedaços de mim voltavam à vida. Os cacos outrora
quebrados se uniam pouco a pouco, dando-me uma sensação
absurda de inteireza. Ela gemia na minha boca e me puxava para si
com uma ânsia inexplicável, como se fosse possível que nossos
corpos se unissem numa só carne. As dúvidas que tive quanto a
levá-la para aquele lugar desabavam, perdiam o sentido conforme
os gemidos se misturavam aos beijos infindáveis.
Eu disse que daria tudo de mim e era assim que me sentia
em seus braços: completamente entregue. Corpo, alma e coração
unidos com o objetivo de lhe oferecer saciedade, mas não só isso,
de entregar para ela o que eu sequer sabia que possuía. Embora
não me sentisse correto fazendo aquilo, porque de fato não estava,
esqueci as objeções que nos circulavam e deixei a racionalidade em
último plano.
Por um instante, eu me permiti apenas sentir as emoções, o
coração batendo forte,aquela pele macia ardendo sob meus dedos,
seu cheiro me inebriando e a nossa entrega total acontecendo sem
ressalvas. Encontrei o zíper lateral do vestido e a desembalei
daquele tecido que havia me feito perceber, naquela noite, que me
manter distante seria a maior perda de tempo, porque não
conseguiria.
Sentei-me no sofá e a ergui, deixando-a de pé na minha
frente. Encarei-a de baixo, analisando com afinco a sua beleza tão
natural e única. Apenas de calcinha e sutiã, Luísa me olhou de volta
e percebi que o rosto ficou um pouco avermelhado de
constrangimento. Apalpei seus quadris, venerando-a, encantado
com a energia vibrante que partia dela e me atingia sem pudor.
— Você é linda demais — murmurei, encostando os lábios
em seu ventre, logo acima da calcinha, depois me afastando para
voltar a encarar seus olhos. Ela sorriu com suavidade, mas ainda
parecia envergonhada.
Não falei mais nada, tratei de arrancar aquela calcinha com
certa brutalidade, embora tentasse me controlar para a noite durar o
máximo possível. Eu não tinha pressa de sair dali, mas confesso
que nutria uma vontade tão absurda de me enterrar dentro dela que
quase não encontrava paciência para fazer tudo devagar.
Envolvi os braços ao redor de seu tronco e desfiz o fecho do
sutiã, removendo-o de uma vez, então aquela mulher espetacular
ficou completamente nua diante de mim. Eu ainda achava esquisito
me sentir daquela forma depois de tantos anos evitando contatos
íntimos e pensamentos libidinosos.
Minha sexualidade recém despertada não deixava de me
surpreender, e sem que eu pudesse controlar, muitas perguntas
tomaram a minha mente, todas relacionadas ao futuro. Contudo,
tratei de abafá-las, ciente de que não adiantaria nada me
empertigar.
— Perfeita — murmurei, puxando-a pelas nádegas e
enterrando o rosto em algum ponto abaixo de seu umbigo. Aspirei
aquele cheiro de mulher ruidosamente, em seguida me afastei só
para ver de novo aquele semblante corado. — Como não cair em
tentação? — Afastei as bandas daquela bunda recheada,
apertando-as com força entre meus dedos. — Como não te desejar,
Luísa? Não tive a menor chance.
Eu a puxei para que se sentasse sobre meu corpo. Ela abriu
as pernas ao meu redor e veio devagar, repousando a umidade no
meu centro, sem desviar os olhos brilhantes de mim. Percebi que
ficou sem palavras diante das minhas. Eu me aconcheguei no
encosto macio do sofáe a trouxe pelo queixo, para que depositasse
seu peso em mim de uma vez. Alisei suas costas com a outra mão,
apertei aquela cintura desenhada e concluí com um tapa naquele
rabo meio empinado.
— Ah... — Ela ofegou, mesclando susto com um tesão
evidente no semblante.
Levei uma mão até sua intimidade escaldante, encontrando
uma boceta muito molhada, e lamentei o fato de eu ainda estar
vestido. Circulei os dedos enquanto a encarava, observando
atentamente quando Luísa fechou os olhos e gemeu baixinho,
tomada pelas sensações daquele toque íntimo.
— Eu vou foder essa boceta até ela entender que, agora, é
minha — resmunguei, enlouquecido pelo tesão.
Quando a mente embaçava pelo desejo que sentia por ela,
tornava-me aquela pessoa sedenta e meio agressiva, selvagem,
apressada, bruta. Encontrava uma versão de mim que me era
espantosa, mas que eu me identificava mais do que poderia
imaginar. Não conseguia medir palavras, por mais obscenas que
fossem.
Deixei seu rosto e guiei a outra mão até ser possível tocar a
segunda abertura, aquela que se mantinha bem aberta por causa de
sua posição empinada. Luísa arfou forte perto do meu ouvido, com
os olhos ainda fechados e a expressão de quem estava preenchida
pela excitação. Eu a estimulada por frente e por trás, sem pausas,
enquanto não deixava de admirar aquele rosto.
— Esse cuzinho apertado vai viciar no meu pau.
— Oh... — Luísa se contorceu, parecendo tão desajuizada
quanto me tornei naquele instante.
Levei as mãos dela para segurarem a parte de cima do
encosto e escorri o meu corpo por baixo do seu, descendo de forma
que a deixava na mesma posição, parada, apenas aguardando meu
ataque. Apoiei-me no chão quando meus lábios atingiram a altura
que eu queria; seu centro gostoso e sedento. Apertei a bunda,
trazendo-a para mim, e a abocanhei de uma vez, envolvendo as
duas aberturas simultaneamente.
Ouvi seus gemidos se intensificarem e as pernas tremerem,
mas não ousei parar de tomá-la para mim. Meus lábios ansiosos
subiam e desciam, ora circulando o clitóris cada segundo mais
inchado, ora descendo para estimular o ânus. Luísa começou a
rebolar e se movimentar na minha cara, deixando claro o quanto
estava louca com tudo aquilo.
Ergui as mãos e agarrei seus seios, apertando-os para a
apoiar melhor e mantê-la aberta sobre mim. Os gemidos se
tornaram tão altos que viraram gritos de pleno prazer. Percebia o
quanto ela queria gozar, por isso me concentrei no clitóris e a chupei
sem pausas, focado em manter o ritmo. Eu quase não conseguia
respirar daquele jeito, mas não me importava. Ela se tornou meu ar
e todas as minhas necessidades, até romper em um orgasmo
ruidoso, vibrante.
Larguei os seios e voltei a equilibrar sua bunda em mim, para
que não esmorecesse ou se afastasse diante da intensidade do
clímax. Forcei-a a permanecer, mantendo a língua trabalhando no
seu ponto sensível, bebendo seu gozo até não sobrar mais nada.
Quando terminou, tentei subir por baixo dela, fazendo o percurso
inverso, mas não consegui e desci para o chão de vez, levantando-
me em seguida.
Luísa sequer saiu da posição. Ficou paralisada, respirando
ofegante e com o corpo inteiro ainda trêmulo. Sorri ao vê-la daquela
forma.
Tirei as minhas roupas devagar, enquanto a admirava, e ela
finalmente se sentou no sofá e ficou me observando. Sorriu um
pouco, toda travessa, e amei ver seu rosto corado não mais pela
vergonha, mas pelo recente orgasmo. Removi o terno, a gravata e a
camisa, encontrando uma paciência que não tinha. Livrei-me da
calça junto com a cueca, as meias e o velho sapato social. Deixei-
me despido diante dela. Foi a minha vez de sentir certo
constrangimento diante daquele olhar vidrado.
Luísa me analisou da cabeça aos pés, porém fixou no meu
membro ereto, ansioso por um alívio. Não estava me aguentando.
Teria que me concentrar muito para não gozar logo. Eu tinha muitas
partes dela para foder até cansar, e depois repetir, porque meu
desejo por aquela mulher era insaciável.
Ela moveu o dedo indicador, chamando-me para mais perto,
sem tecer qualquer comentário. O rosto traduzia o mais puro
contentamento, o que me fezrir de leve e me aproximar mais. Luísa
agarrou meu pau pelo talo, em cheio, fazendo-me soltar um gemido
curto. Aprumou-se no sofá para mantê-lo perto de seus lábios.
Ficou me olhando, brincando com ele, passando-o pelo seu
rosto e deixando beijinhos. Apertei os punhos para manter o
controle. Aquele cenário me enchia de um sentimento despudorado,
uma ânsia que prometia explodir a qualquer momento. Prendi os
lábios com força, mas deixei um palavrão escapar quando ela,
finalmente, colocou-o na boca. Empurrou fundo, depois retornou e
sorriu, cretina.
Segurei seu queixo.
— Você me engole tão gostoso, porra.
Ela repetiu o gesto, afundando todo o mastro até a garganta,
para em seguida se afastare deixar uma lambida capaz de me levar
para as nuvens. Meu membro latejava com força em sua mão,
desejando mais e mais, deixando-me à beira do desespero.
— Eu vou foder esse pau até ele entender que não vai ter
jeito, terá que ser meu — disse, ofegante, voltando a sorrir como a
safada que era. Suas palavras me desestruturaram, de forma que
só consegui soltar um rosnado e agarrar seus cabelos para que
continuasse com o intento de me enlouquecer.
Ela me lambeu do talo até a ponta, depois abocanhou,
deslizando os lábios e os afundando novamente. Fez aquilo tantas
vezes que eu já nem sabia mais o que fazer para me segurar. A
situação piorou quando enfiou o rosto nas minhas bolas, chupando-
as uma a uma, enquanto me masturbava com cadência. Mal pude
acreditar nas sensações. Tudo ainda era uma novidade e me
chocava, mas eu me deliciava como nunca. Havia me esquecido do
quanto adorava aquilo.
Prendi os dedos entre os fios de seus cabelos e deixei que
fizessede mim o que quisesse. Ela me mamou com desenvoltura, e
cada movimento me estimulava em demasia. Soltei xingamentos
murmurados, e foi minha vez de tremer e me contorcer sob seu
estímulo. Luísa arrancou cada gemido de mim, levou-me a um limite
que me obrigou a afastar, depois de longos minutos, caso contrário
gozaria na garganta dela.
Sentei-me novamente no sofá e a puxei de uma vez,
obrigando-a a se sentar sobre mim de novo. Daquela vez, não perdi
tempo, mirei o pau na sua boceta e nos encaixei com um movimento
só, de forma brusca. Senti-a cedendo, abrindo-se para me receber,
e não poupei um gemido forte, que foi correspondido no mesmo
instante.
Luísa quicou forte sobre mim, pausando para rebolar
enquanto me presenteava com um beijo que dividia salivas e
intimidades. Nossos gostos foram compartilhados com veemência,
uma intensidade que se traduzia nos choques barulhentos entre
nossos sexos, que sempre buscavam mais daquela entrega
desmedida.
Ela me deu uma verdadeira surra ao se movimentar com
agilidade, encontrei-me perdido e desajuizado, mas ainda assim a
segurando em toda parte, beijando-a, sentindo-a por inteira. Foi
Luísa quem nos desencaixou e tomou a iniciativa de se endireitar
para mirar a minha ereção na sua outra entrada.
Enlouqueci de vez, por isso soltei um rosnado feroz e a
agarrei para tomar o controle de volta – do contrário, gozaria antes
de a sentir por trás. Pincelei o membro naquele ânus, reencontrando
o fôlego, embebedando-o com nossos lubrificantes. Eu me enfiei
devagar, embora meu real desejo fosse penetrar forte, arregaçar
aquele cu que eu sabia que me levaria ao limite com facilidade.
— Me fode toda... — Luísa soltou num gemido, e precisei
parar para observar seu rosto. Agarrei sua nuca e a trouxe para
mim, enquanto o membro se colocava mais fundo dentro dela. —
Ah, fode...
— Não faz isso — arquejei, desesperado. — Se pedir de
novo, vou te arregaçar. Estou avisando.
Ela me olhou com um sorriso carregado de malícia.
— Fode... — E se contorceu para que eu enfiasse mais. —
Fode o meu cuzinho, por favor!
— Argh, sua... — Não completei a fraseporque não encontrei
nenhuma palavra que se encaixasse com perfeição. Em vez disso,
enterrei meu pau de uma vez, até o fim, e como previsto, suas
carnes cederam com força.
Luísa gritou muito alto, agarrando minha cabeça, porém
continuou se movimentando para que a entrega não paralisasse a
fim de esperar a dor passar. Não tive piedade, afinal, ela que pediu
por isso. Meti tão forte e fundo que a posição se tornou incômoda,
por isso a deitei ao lado e me coloquei por cima. Puxei as suas
pernas para o alto, até apoiar as panturrilhas em meus ombros, e
simplesmente a fodi com brutalidade.
Ela gritava de um jeito insano.
— Quando você se sentar amanhã, vai lembrar muito bem de
onde eu estive... — resmunguei em seu ouvido, ofegante,
penetrando-a duro. Aquela nova posição tornou possível uma
entrega crua, ruidosa, sem empecilhos. — Quero que essa bunda
não se esqueça de que posso esfolar sem dó.
Luísa não respondeu, mas gemia cada vez mais alto, de
forma que agradeci por estarmos sozinhos e distantes demais de
qualquer pessoa que pudesse nos ouvir. Era a primeira vez que não
precisávamos nos preocupar com isso, e talvez por esse motivo
estivéssemos tão soltos, mais quentes e dispostos a tudo.
No meio daquela foda impressionante, a mulher levou uma
mão ao seu clitóris e o esfregou com força, rompendo num clímax
em questão de segundos. Precisei pensar em outra coisa para não
me deixar derramar, mas falhei miseravelmente. Contudo, um curto
lapso de juízo me trouxe a ideia de que eu não podia gozar nela de
novo, não se não quisesse nos complicar mais.
Eu me retirei depressa, e bombeei o membro apenas uma
vez para começar a expelir jatos sobre seu corpo nu e suado. Meu
sêmen melou sua barriga exposta, enquanto ela ainda se
masturbava e gozava, observando-me fazer o mesmo. Foi tão
gostoso que, quando acabou, eu me senti arrasado em todos os
sentidos. Ao mesmo tempo, estava felize completo. Tomado por um
sentimento que eu já nem sabia mais como era.
Sorri para ela, que sorriu de volta.
Luísa me puxou para si e me deitei, sem me importar de
melar meu tórax com meu próprio gozo. Ela repousou minha cabeça
em seu ombro e alisou meus cabelos, enquanto nos acalmávamos.
Senti uma paz absurda. Nada de culpa ou arrependimento, nada de
me sentir sujo ou inadequado. Era a primeira vez que a felicidade
me invadia desde a morte de Sofia.
— Arrependido? — Sua voz saiu sussurrada, e pude
perceber que estava temerosa. Nossos momentos pós-sexo foram
sempre bem traumáticos, mas não daquela vez. Eu me sentia
diferente e não queria me afastar
.
Ergui o rosto para vê-la de perto. De fato,havia medo em sua
expressão.
— Nunca.
Luísa sorriu, mas logo retornou à seriedade.
— O que vamos fazer?
A pergunta ficou no ar durante um bom tempo. Eu ainda não
tinha pensado nisso. Tudo aconteceu rápido demais. Aquela mulher
chegou na minha vida atropelando meu discernimento, mudando
todas as coisas de lugar e me deixando sem saber o que fazer ou
pensar. Apenas sentia que não seria capaz de abrir mão dela, ainda
que isso significasse abrir mão da vida que construí nos últimos
anos.
Como se adivinhasse meus pensamentos, ela soltou
baixinho:
— Você não pode largar a batina por minha causa, Benício.
Fiz uma careta em sua direção, sentindo-me confuso.
— Não me quer mais? — A pergunta saiu de um jeito
dolorido. Meu coração sentiu o impacto e me percebi afundando
num estado muito desagradável. Um lugar que eu já conhecia e que
não gostaria de retornar.
— Não seja bobo, é claro que eu te quero. Mas... — Ela
agarrou meu rosto com as duas mãos. Eu estava com o rosto entre
seus seios expostos, só que ninguém parecia constrangido por
causa disso. — Não posso te machucar. Já te trouxe tantos
problemas... E-Eu... Não sabemos no que isso vai dar, essa é a
verdade. Deixar seus propósitos por algo incerto não me parece
prudente. Eu sei que sou uma incerteza para você.
— Temos que falarnisso agora? Não podemos ter paz depois
de uma transa, só para variar?
Ela sorriu um pouquinho e me levou aos seus lábios.
Enroscou a língua na minha com uma ternura fora do comum, tanto
que me percebi cedendo mais, entregando os últimos resquícios de
mim que ainda tinham faltado. Quando me afastei, percebi que
Luísa continuava preocupada.
— Vou te dar um banho, te enrolar num edredom fofinhoe
dormir agarrado contigo — murmurei, alisando sua bochecha. Vi
outro sorriso se desenhar em seus lábios e me tranquilizei. —
Estamos cansados. Amanhã é um novo dia e não vou te deixar
sozinha por nada nesse mundo.
— Promete?
Beijei a ponta de seu nariz.
— Minhas promessas não têm valido muita coisa
ultimamente. — Dei de ombros, recordando-me de tudo que deixei
de lado para estar com ela naquele momento. Como lhe prometer
algo, se eu vinha falhando em cumprir? — Mas acredite que isso
não vai acontecer, porque de todas as coisas que não quero perder,
você é a primeira da lista.
Luísa me beijou e só saímos do sofá muito tempo depois,
quando nossos corpos esfriaram e precisamos tomar um banho
quente, juntos. Eu a aconcheguei no quarto de hóspedes, pois seria
esquisito levá-la para a suíte com as coisas de Sofiaao nosso redor.
Sentia que ela estava desconfortável com isso, e eu, envergonhado
por ter me apegado tanto a uma memória que só me trazia
sofrimento.
Eu não fazia ideia do que nos aguardava no amanhã, mas
estava cansado de pensar e me preocupar. Sentia-me exausto de
lutar contra minha própria consciência, por isso apenas aceitei que
não dava para ser o mesmo de antes – centrado e controlado. Sabia
que algo deveria ser feito, obviamente, e esperava encontrar um
caminho antes que a gente se machucasse. E enquanto observava
Luísa adormecida em meus braços, compreendia que qualquer
percurso se direcionaria a ela.
Talvez sua presença não fosse um castigo, como imaginei,
mas um presente divino. Deus sabe de todas as coisas, e Ele sabia
perfeitamente das dores que eu guardava no coração, dia após dia.
PARTE 16
Não é uma despedida

Maria Luísa

Despertei já procurando pelo calor que o corpo de Benício


emanava, e que me aconchegou durante toda a noite. Tive um sono
agitado, turbulento, mas toda vez que acordava espantada e me
percebia grudada nele, encontrava uma calma fora do comum. Ele
sequer percebeu minha agitação, dormiu com uma tranquilidade de
dar inveja. Admirar seu rosto enquanto descansava, relaxado,
deixava-me encantada e, ao mesmo tempo, morrendo de medo. Tê-
lo comigo era bom demais para ser verdade.
Não conseguia me livrar da ideia de que o perderia em breve.
Uma hora o castigo pelos nossos pecados viria e eu não estava
pronta para seguir em frente sozinha, afinal, encontrava-me no
fundo do poço. Por outro lado, não podia depender tanto dele, nem
de ninguém. Corria sérios riscos de me afundar no marasmo de
sempre, sem controle algum da minha vida e de minhas vontades,
sempre aguardando que os outros resolvessem meus problemas.
Precisava quebrar o ciclo de dependência emocional, reencontrar a
mim mesma, porém sequer sabia por onde começar.
Luís tinha me prestado apoio nos últimos dias, com a clara
intenção de ficar comigo a todo custo, naquele momento eu me
dava conta. Mesmo desconfiada, deixei que entrasse no meu
mundo e me ajudasse, falhando novamente em caminhar pelas
próprias pernas. Aquele idiota ter ficado com minha calcinha já
deixava claro o quanto era um tarado. Andava me espreitando e
chamou o delegado para me procurar, quando sumi com o padre, de
propósito, pois sabia que estávamos juntos.
Ainda tinha o prefeito e o fato do Samuel estar com uma
arma no nome dele, o que para mim não fazia o menor sentido.
Será que o político tinha descoberto as traições da esposa e
mandado Samuel matar um dos dois? Depois se arrependeu e
“queimou o arquivo”, livrando-se do meu marido? Várias teorias
circulavam na minha mente, causando-me sérias dores de cabeça.
Empertigada por não encontrar Benício no quarto, e
assombrada com a minha situação, levantei-me da cama enrolada
no lençol, pois não me sentia bem vestindo qualquer coisa que
pertencera à Sofia. Andei pela casa silenciosa, procurando por ele,
e o encontrei sentado numa das espreguiçadeiras da área externa.
O homem vestia apenas uma bermuda desgastada,
segurando um terço com tanta força que a mão já estava vermelha,
e orava com fervor. Uma força incrível que fazia lágrimas
escorrerem pelo seu rosto. Vê-lo daquele jeito abriu um buraco no
meu espírito. Benício sofria muito e a culpa era toda minha. Por
mais que me colocasse num papel de salvação, na verdade, eu
estava sendo a sua ruína.
Aproximei-me devagar, para observar tanta dor de perto e
tentar dizer a mim mesma que precisava me afastar dele antes que
tudo piorasse. Padre Benício parecia em transe, murmurando sem
pausas coisas ininteligíveis. Estava lindo com o tórax exposto e a
correntinha dourada carregando a pequena cruz. Olhei para o céu,
reparando que ainda era cedo. Não havíamos conseguido dormir
direito, pelo menos não eu.
De súbito, ele abriu os olhos e me encontrou de pé na sua
frente. Endireitou-se, enxugando os olhos lindos com as costas das
mãos, afastando-se para abrir espaço para mim. Eu me sentei em
silêncio, sentindo-me derrotada pelo mundo, e padre Benício
percebeu o meu desânimo, porque expressou muita preocupação
no semblante.
— Bom dia. Você está bem? — perguntou, guardando o terço
que segurava no bolso da bermuda. Dei de ombros, sem responder.
O padre, porque dentro de mim ele havia se transformado
novamente no servo do Senhor, ficou me olhando com atenção por
alguns instantes. — Estou me preparando para a missa. É domingo,
a igreja já deve estar cheia. Estou um pouco atrasado, inclusive.
Assenti, hesitante, sentindo mais uma ferida se abrindo no
meu coração. O coitado tinha responsabilidades que não poderia
largar de uma hora para outra, sobretudo por causa de uma
estúpida feito eu. A cabeça dele deveria estar uma bagunça, talvez
tanto quanto a minha.
— Como se sente com isso? — questionei, porém morrendo
de medo da resposta.
Ele soltou o ar dos pulmões e encarou o horizonte verde ao
nosso redor. A propriedade era ainda mais espetacular pela manhã.
A vegetação densa e verde circulava a casa, os pássaros cantavam
e a calmaria dominava, mas eu estava tão angustiada que não
conseguia aproveitar nada daquilo do jeito certo.
— As pessoas precisam de mim — murmurou finalmente,
evitando me olhar, o que só me deixava mais triste e envergonhada.
— Estarei lá com toda a fé que reúno no meu peito, espalhando a
Palavra e trazendo conforto.
— Sim, o senhor deve fazer isso.
Enfim, padre Benício me olhou.
— Pare, Luísa. Não me chame assim. Já passamos dessa
fase. — A voz saiu sombria, muito séria e impactante. — Não sou
senhor ou padre para você, apenas Benício está bom. Não voltamos
à estaca zero só porque eu ainda preciso cumprir com os deveres
da igreja. Irei num pé e voltarei no outro, assim que puder, para ficar
contigo.
Meus olhos se encheram de lágrimas não derramadas,
enquanto o encarava com emoção. Eu não sabia se aquilo era bom
ou ruim; ele tinha tarefas a desempenhar e minha presença era um
incômodo que Benício não queria se desfazer. Precisei me controlar
muito para não cair no choro e o deixar ainda mais preocupado.
— Vou com você. Tenho que ir para casa.
— Fique aqui. Cheguei do mercado há pouco, fui bem
cedinho. Comprei comida e algumas coisas para você.
Chacoalhei a cabeça em negativa.
— Preciso de roupas e... — Suspirei. — Sei que tem seus
compromissos, o domingo é sempre cheio na igreja. Não quero
incomodar.
— Não vou te deixar sozinha, Luísa. Estou preocupado com
sua segurança. Aquele cara... — resmungou, endurecendo o
semblante. — Não o quero perto de você. Pode ser perigoso.
— Ele sabe sobre nós.
— Sim, e não sei o que é capaz de fazer com essa
informação. Talvez já tenha espalhado para todo mundo, por isso
estou me preparando para qualquer rebordosa dos fiéisna missa de
hoje.
Suspirei mais uma vez, apertando o tecido do lençol sobre o
meu corpo, em pleno desespero. Estava quase entrando em pânico
com todas as possibilidades de tudo dar errado. Eram muitas. O
delegado Moura também sabia sobre a gente e podia usar isso
contra mim a qualquer momento, por mais que eu também
soubesse um podre dele. Quanto mais raciocinava, mais me dava
conta de que deveria fugir daquela cidade e nunca mais voltar. O
problema era não ter nenhum tostão, só dívidas acumuladas.
Benício segurou a minha mão, entrelaçando nossos dedos.
— Se alguém me questionar, não mentirei, Luísa. Hoje
mesmo vou escrever uma carta para a arquidiocese, pedindo pelo
meu afastamento.
Agarrei sua pele com força, assustada.
— Não.
Benício fez uma careta que misturava espanto e desolação.
Ficou me olhando enquanto eu apenas me desesperava em
silêncio, enfim derramando as lágrimas contidas. Ele arquejou e
negou com a cabeça, insatisfeito.
— Se eu sou uma brincadeira para você, Luísa, diga logo, por
favor. — Sua voz nunca soou tão dura e fria quanto naquele
instante, e olha que já tínhamos passado por situações bastante
sérias antes. — Tenha a bondade de ser clara comigo, assim como
fui sincero ontem.
Neguei com a cabeça, entrando em pânico de verdade. Ele
soltou a minha mão, fazendo cara feia para mim, e minha vontade
foi de gritar, sair correndo dali o mais depressa possível. Diante do
meu silêncio, Benício prosseguiu:
— Eu me abri e me entreguei, e você permitiu. Se não me
queria de verdade, por que me deixou ir tão longe?
— Não seja injusto — falei rápido, nervosa. — Olha só o que
está em jogo, Benício. Eu não tenho nada em casa, não tenho vida,
perdi tudo e todos a minha volta. Ficar contigo não é peso algum
para mim, mas você... Você tem toda uma vida dentro da igreja.
Como quer que meus sentimentos sejam sinceros ao mesmo tempo
que eu permita que abra mão de tanta coisa por minha causa? Não
dá para te amar e querer seu sofrimento. Entenda, por favor .
Ele riu, solto, talvez diante da palavra específica que usei, e
foi tão lindo que fiquei vidrada naquele sorriso aberto. Voltou a
apertar minhas mãos e, mais do que isso, puxou-me para o seu
colo. Exausta, simplesmente fui, deixei que me embalasse num
abraço aconchegante, confortável.
Sua mão grande acariciou o meu rosto com gentileza.
— Se vai largar a batina, precisa ser por si próprio, não por
mim. Posso ser um sopro na sua vida, e então o que vai te sobrar?
Mais dor? Nenhum consolo? Você está melhor nos braços de Deus
do que nos meus braços.
Ele tentou negar, mas não deixei que falasse. Tampei seus
lábios com os dedos e o encarei com seriedade.
— Pense melhor — murmurei. — Dê mais um tempo. Eu não
tenho para onde ir ou que fazer, portanto não há pressa.
— Não posso viver uma vida dupla, Luísa. Não dá para te
amar durante a noite e celebrar uma missa pela manhã. Vai contra
tudo o que acredito.
Assenti, tentando me conformar com aquilo, e não deixei de
notar que Benício usou a mesma palavra que eu. Amar. Sequer
sabia se era isso mesmo que estava acontecendo com a gente.
Parecia-me impensável, mas o coração vibrava e todo o meu corpo
compreendia que aqueles sentimentos eram diferentes de todos os
que já senti, inclusive pelo Samuel ou por qualquer outro homem.
— Eu sei. — Segurei seus ombros e juntei nossos narizes
num afago lento, carregado de emoção. — Imagino como deve estar
se sentindo. Você não é assim, não é falso ou hipócrita. Jamais
exigiria que prosseguisse com essa situação que só te machuca, é
por esse motivo que devo me afastar.
Ele apertou as mãos ao redor da minha cintura.
— Não. Não, por favor.
— Benício... Meu Ben. — Sorri de mim mesma, porque adorei
o joguinho com o seu nome. — Só vou me afastar para respeitar o
seu tempo. Pense, reflita... Coloque as coisas sob perspectiva.
Tentarei ser minha melhor versão, enquanto isso. Preciso me
encontrar antes de ter qualquer pessoa na minha vida de novo. —
Agarrei seu rosto muito próximo. — O que é de verdade não vai
embora, não se perde. O que é para ser, será. Tenha um pouco de
fé na gente.
Ele me abraçou forte e deixei vários soluços escaparem,
porque no fundo não queria me despedir, não desejava ficar sem
sua presença. Contudo, era uma necessidade que fôssemos com
calma. Tomar decisões precipitadas poderia nos trazer muita mágoa
a longo prazo. Eu nem estava acreditando na minha capacidade de
dar uma basta naquilo, de deixá-lo livre e ficar apenas na
esperança.
Talvez fosse uma evolução na questão da dependência. Ou
talvez fosse o amor verdadeiro se achegando no meu peito, aquele
que necessita de calma e racionalidade para florescer, para ser
saudável e só trazer coisas boas. Eu desconhecia sentimento tão
puro, era novidade para mim. Só me restava, de fato, ter fé de que
tudo se resolveria.
Benício grudou nossas bocas e puxou o lençol, com força,
para longe de mim. O tecido cedeu rápido e fácil, deixando-me nua
no colo dele. Era impressionante como acendia minhas vontades
sem precisar de quase nada. Tinha sido assim desde o início, a
partir do momento em que o olhei com mais atenção. Aquele
homem me descontrolava.
— Tenho que ir... — murmurou enquanto eu rebolava em seu
centro, já sentindo a ereção crescendo sob meu estímulo. Ofeguei
em seus lábios, disposta a ir até o fim. — Mas quero você antes.
Não vou embora sem te sentir de novo.
Ele não pestanejou antes de simplesmente abaixar a
bermuda de elástico e colocar o pau duro para fora. Eu sabia que
teria que ser depressa, por isso contive a vontade de chupá-lo e me
esgueirei para nos encaixar. Ainda estava dolorida da noite
passada, sobretudo na parte de trás, mas minha boceta úmida era
incansável. Eu o queria o tempo todo, a qualquer hora e em
qualquer lugar.
Gememos, ofegantes,quando me afundeiao seu redor. Senti
toda aquela grossura me preenchendo com a perfeição de sempre,
e me perguntei se conseguiria prosseguir sem aquelas sensações.
Era viciante e eu sabia que morreria de saudade.
— Não será a última vez... — Benício falou baixinho,
agarrando minha cintura para ajudar no movimento de vai e vem.
Mantemos um ritmo mais lento, raso, porém carregado de
intensidade. — Isso... — Mais um choque. — Não é... — Meteu
fundo, fazendo-me gemer baixo. — Uma despedida.
Contornei sua nuca com meus dedos, mantendo firmeza e
seu corpo colado no meu. Benício se inclinou para frente, de forma
que precisei ir para trás a fim de continuar encaixada. Ele apoiou
minha coluna com as mãos firmes, segurando meu peso, enquanto
se enfiava e me ajudava a continuar no ritmo. Abocanhou um seio
entre resmungos, xingamentos em tom baixo, porque aquele
homem era assim quanto ao sexo: falante, obsceno, extremamente
despudorado e gostoso.
Olhando para o céu azul por trás de seu rosto lindo, foquei
nas sensações e gozei poucos minutos depois, sendo preenchida
pelo entorpecimento que o prazer desenfreado me proporcionava
toda vez que me derramava para ele.
— Eu... E-E... — ofegou, empurrando-me um pouco para
desencaixar na hora certa, porém fixei meus braços ao seu redor e
continuei arrancando sua sanidade. Prendi minhas pernas
fortemente, disposta a senti-lo por completo dentro de mim. Era
loucura, eu sabia, mas não me importei. — Luísa!
Senti os jatos de seu clímax escorrendo, escaldantes, e fiz
questão de me movimentar para sentir mais e mais fundo. Ele me
preencheu, prendendo as mãos nos meus cabelos, expressando
profundo contentamento no semblante tomado pelo desejo. Eu me
senti repleta e contente. Realizada. Eu o queria assim, dentro de
mim, livre, sem impedimentos.
Benício me olhou quando buscou alguma calma após o
orgasmo.
— Dessa vez, eu providencio o remédio — murmurou,
beijando meu nariz. — Mas não vamos fazer assim de novo.
Comprei uns preservativos hoje cedo, só não quis interromper o
momento para buscar. Bom, na verdade, esqueci completamente.
Não estou muito acostumado a...
Abri bem os olhos.
— Você comprou? — interrompi-o, surpresa. Achei que ele
fosse totalmente contra, afinal, era o que pregava o catolicismo.
Sexo apenas para procriação e dentro do casamento. Não fiz
nenhum comentário sobre isso, no entanto.
— Aproveitei que estamos em outra cidade. Ninguém me
conhece. — Ele plantou mais um beijo terno em meus lábios,
infelizmente foi um gesto rápido demais. — Guarde-os com você.
— Eles vão te esperar.
— E você? — Guiou os olhos sobre meu rosto, analisando.
— Também.
— E a minha bocetinha?
Sorri. Eu gostava dele naquele modo espontâneo.
— Ela é sua, vai te esperar impacientemente.
Benício soltou um rosnado e me deu o último beijo antes de
nos levantar da espreguiçadeira. Tomamos um banho rápido, porém
juntinhos. Não tive como negar uma roupa pertencente à Sofia,
embora estivesse constrangida. Seria pior chegar em casa com o
vestido de festa, sendo assim, usei um short jeans dela, apertado
demais, por sinal, e uma blusa branca simples. Seus sapatos não
cabiam em mim, por isso coloquei novamente as sandálias de salto.
Benício me garantiu que estava tudo bem, mas não gostei muito da
ideia e me senti péssima durante todo o percurso de volta.
Ele me deixou perto da esquina de casa, uns dois quarteirões
a frente, segurando uma sacola com o vestido, preservativos, um
lanche e o remédio que comprou numa farmácia distante.
Combinamos de fazer isso para não gerar falatório. Tudo de que
menos precisávamos era da cidade inteira desconfiada, falando de
nós pelos cantos.
Eu me segurei muito para não deixar um beijo em seus lábios
assim que desci da moto, arrependida por não ter feito isso mais
vezes antes de nos separarmos de vez. Tive que me conformar em
apenas lhe entregar o capacete, piscar um olho em cumplicidade e
seguir a passos rápidos, firmes, sem olhar para trás.
A cada metro de distância entre nós, meu coração sangrava
e a vontade de chorar me consumia. Dobrei a esquina da minha rua
e me deparei com três viaturas da polícia, todas estacionadas na
frente de casa. Meu fôlego foi tragado de uma só vez e as pernas
bambearam, porém encontraram forças para continuar o percurso.
Sem nada entender, o assombro intensificava ao reparar o
portão da minha casa aberto, com gente fardada entrando e saindo
como se fossemos donos dali. Ao me aproximar, hesitante, deparei-
me com a figura do delegado Moura, que se colocou na minha
frente de prontidão.
Nossos olhos se encontraram fixamente. Os meus,
apavorados, os dele, muito sérios. Não achei nenhum resquício de
divertimento ou malícia, como era de seu costume, o que no fundo
não me desagradou, porque era sinal de que não debochava de
mim. Por outro lado, significava que eu estava fodida de verdade.
— Maria Luísa Cortês, a senhora está presa pelo assassinato
de Samuel Cortês. Tem direito a um advogado e a permanecer
calada. Tudo o que for falado pode ser usado contra você. — Ele
me guiou sem muita delicadeza até o muro mais próximo, levou
minhas mãos para trás e me algemou.
Fiquei tonta no mesmo instante, como se estivesse imersa
num pesadelo. Não acreditei, de jeito nenhum, que tudo aquilo era
real. Perdi o ar e as palavras, não fuicapaz sequer de questionar ou
me defender.
Olhei ao redor, para o rosto de transeuntes e vizinhos, que se
achegavam com curiosidade. Minha vista embaçou e escureceu,
tive medo de desmaiar ali mesmo. Não senti nada além de meus
próprios passos seguindo para a parte de trás de uma das viaturas.
Fui colocada lá dentro e a porta do veículo se fechou num
baque surdo, fazendo-me pular de susto. Encarei o vidro fechado,
atônita, e vi a aglomeração que se formava ficando cada vez maior.
Entre os rostos detectados, parei exatamente no de Luís. Estava
sério, visivelmente decepcionado, mas logo minha atenção foi
desviada quando o delegado se sentou no banco do motorista.
— Finalmente eu te peguei, garota.
Olhei-o pelo retrovisor, onde nossos rostos ficavam lado a
lado. Não reconheci o meu próprio, deformado pelo choque. As
lágrimas desesperadas surgiram do meu âmago e só me restou
chorar pela desgraça que se transformou aquela minha vida
miserável.
PARTE 17
Lobo em pele de cordeiro

Padre Benício

Celebrei a primeira missa do domingo com o pensamento


muito distante. Por mais que tentasse me manter conectado com
Deus e com o que eu estava fazendo, tornava-se tarefa impossível a
cada segundo. O sermão saiu morno, sem graça, porque a
interpretação da Palavra fez com que me sentisse um grande
impostor. A pregação inteira parecia mecânica, não sentida na
totalidade, e desempenhei cada etapa da cerimônia de um jeito
automático, o que me deixou completamente frustrado ao final.
Luísa garantiu que eu precisava de um tempo para refletir, mas
percebi que, na realidade, não tinha como prosseguir com aquilo. Eu
não estava arrependido de ter me entregado a ela e nem ficaria,
mesmo se rezasse muito, portanto pender a balança para uma
reconexão com Deus e meus propósitos seria um erro medonho.
Novos objetivos cresciam em meu peito, e por mais que mantivesse
uma fervorosa fé, precisaria arranjar outra forma de estar com Deus
e de ajudar as pessoas.
Manter-me no papel de padre só provocaria mais
desconcerto, o que prejudicaria aquelas pessoas aglomeradas atrás
de um conforto, de uma salvação. Minhas aptidões haviam se
perdido em questão de dias. Anos de estudo e de extrema disciplina
se esvaíram a partir do momento em que pus as mãos no corpo
daquela mulher.
Não tinha volta, nem mesmo motivo para me manter afastado
dela. Eu deveria me retirar da igreja, fariamais sentido. Sabia que o
processo demoraria, e que no meio do caminho poderia perder
Luísa para sempre, por isso deixar o tempo passar sem fazer nada
não era uma opção. O quanto antes resolvido, melhor. E ainda que
aquela mulher não conseguisse me esperar, ainda que o que
tivemos fosse um sopro, usando suas palavras, eu não me
enxergava mais como o mesmo homem.
Meus desejos estavam acesos, o celibato, comprometido, a
sede de viver havia retornado e a escuridão em meu espírito se
dissipara. Eu amava a Deus sobre todas as coisas e ao próximo
como a mim mesmo, e assim seria ao longo de meus dias, porém
minha existência se deparara com uma encruzilhada e me via
percorrendo um caminho diferente. Minha própria consciência
gritava comigo, exigindo que me controlasse, mas eu a calava e a
questionava. Como me controlar, se tudo o que eu mais queria era
sair dali e correr para os braços de Luísa?
Eu não desejava mais nada além disso.
Adentrei a sacristia já removendo as vestes sagradas,
empertigado, constrangido e disposto a escrever uma carta para a
arquidiocese, diferentemente do que Luísa tinha sugerido que eu
fizesse. Havia fugido dos fiéis, não fiquei para saudar ninguém,
sequer para ouvir os burburinhos da cidade. Apenas me recolhi
alegando estar ocupado com alguma coisa importante.
Eu me sentei diante do birô, peguei um papel ofício e uma
caneta, iniciando as reflexões a respeito do que escreveria.
Precisava ser claro e sincero, para que eles não objetassem e
dessem logo andamento ao processo. Precisava avisar aos meus
pais. Não sabia o que achariam daquela nova decisão, mas algo me
dizia que ficariam felizes. Eles não tinham gostado muito da minha
repentina ideia de me tornar um seminarista. Só não objetaram
porque era isso ou me ver na sarjeta de novo, entregue ao álcool.
Meu passado sombrio me fez paralisar. E se eu, novamente,
caísse naquele limbo? Se me deixasse levar de vez pelo mundo e,
diante de inevitáveis decepções, retornasse ao vício? Fazia anos
que me sentia curado, mas também tinha evitado qualquer
pensamento contraditório e me apoiado no amor de Deus. Toda vez
que sentia a abstinência, ajoelhava e rezava até passar. Conseguir
beber o vinho durante as celebrações, sem me deixar cair, eram
vitórias diárias. Seria capaz de continuar no controle?
Percebi que existiam muitos medos para lidar, e que talvez
aquela decisão machucasse outras pessoas ao meu redor. Larguei
a caneta e suspirei, apoiando-me no encosto da poltrona. Eu
precisava colocar cada fato numa balança, medir bem as decisões
antes de agir. Luísa tinha razão, no fim das contas. Não era algo a
ser feito no impulso, precipitadamente, porque mexeria demais com
vários aspectos da minha vida.
— Padre? — Toninho surgiu na porta da sacristia.
Senti-o bastante introspectivo durante a missa; mal me
saudou quando cheguei e fez seu trabalho em silêncio, o que para
ele era novidade. Achava estranho, mas, por outro lado,
compreendia que o coroinha começava a desconfiar. Ele era
inteligente e me conhecia bem, sabia que tinha alguma coisa errada
comigo.
— Sim? — Ergui a cabeça para analisá-lo. Seu rosto estava
tomado por uma seriedade incomum, por isso me endireitei na
cadeira e continuei o olhando com atenção, pronto para o que
viesse.
Toninho fechou a porta atrás de si. Virou-se e caminhou para
mais perto, parando do outro lado do birô. O semblante manteve a
seriedade e mais do que isso, parecia decepcionado. O meu
coração se agitou diante da atitude estranha, fazendo-me entender
que talvez eu não estivesse tão pronto assim para encarar as
minhas novas escolhas.
— O senhor estava com ela, não foi? Com a viúva. — A voz
saiu carregada de firmeza. Toninho manteve os olhos nos meus,
convicto, e não fui capaz de inventar outra história ou de negar. Por
outro lado, fraquejei. Não consegui dizer a verdade, afirmar suas
desconfianças. No fundo, eu me senti errado e péssimo. — Eu
sabia. — Sentou-se na poltrona livre, suspirando e desviando o
rosto, como se tivesse vergonha de me encarar. — Depois de ela ter
saído correndo da igreja duas vezes, e do senhor ter ido embora
com ela na moto ontem... Ficou óbvio demais para mim.
Percebi um rancor absurdo escapando entre seus lábios,
junto com aquelas palavras. Aquele jovem estava muito chateado, e
não era para menos. Ele tinha muita fé em Deus, na igreja e em
mim. Seguia cada regra à risca, era um bom menino. Eu não queria
ser o culpado pela sua descrença, o que me fez enxergar que,
realmente, minhas escolhas não trariam consequências para uma
só pessoa.
— Toninho, escuta, eu...
— Como pôde fazer isso? — questionou, com os olhos já
brilhantes pelas lágrimas. — Eu confieino senhor. Todo mundo dizia
que era bonito e jovem demais para ser padre, e sempre o defendi.
Acreditei na sua benevolência, no bem que estávamos fazendo...
Acreditei em cada palavra que o senhor disse. Como fui estúpido!
Fiquei em silêncio, paralisado e contendo o soluço. Uma
culpa avassaladora tomou conta da minha existência, de forma que
sequer fui capaz de me defender. Havia defesa, afinal? Que
justificativa daria para um jovem crédulo, que seguia todos os
dogmas e que planejava ingressar de cabeça na vida cristã?
— Nada do que fizemos foi em vão, Toninho — murmurei,
porque ele precisou de um tempo para conter o choro e enxugar as
lágrimas com os dedos trêmulos. Vê-lo daquela forma acabou
comigo. Meu coração se partiu mais uma vez, distribuindo pedaços
por toda parte. — Cumpri com meus compromissos e segui a
doutrina com disciplina durante anos. Nada do que falei foi mentira.
Mantive meus votos com respeito e resignação até... Até semana
passada.
Ele ergueu o rosto para me observar, expressando um
descontentamento sem fim. A notícia o deixou abalado, sem chão,
dava para perceber o quanto meu comportamento tinha mexido com
ele. Toninho colocava em dúvida tudo em que acreditava, e a culpa
era toda minha e da incapacidade de manter o controle do meu
próprio corpo. Eu deveria ter agido diferente.
— Vocês transaram dentro da igreja? Naquela noite, no
confessionário? — resmungou a pergunta, em meio às lágrimas
escorrendo e à plena irritação. Um nó imenso se formou na minha
garganta. Sentia meu corpo inteiro ferver de raiva de mim mesmo.
Ficar diante daquele jovem, frente a frente com a realidade,
me descompensou. Até então eu tinha relativizado minhas atitudes,
descartado a verdade como se ela tivesse deixado de existir apenas
porque fui um pecador e dei as costas para ela.
Acreditei que um sentimento puro poderia surgir de uma
heresia. Mas a verdade era única e intransponível. Eu era um
covarde e tinha cometido um ato absurdo de profanação,e o fatode
não me arrepender até aquele momento me tornava um ser com
caráter, no mínimo, duvidoso.
— Eu... — Ele ofegou, apertando os punhos sobre a mesa. —
Como teve a... Como pôde profanar a igreja dessa forma? Por que
tanta indecência?
Prendi os lábios, e as lágrimas me escaparam devido ao
esforço e à enxurrada de sentimentos que me atingiam como socos
na face. Toninho continuou me encarando, e só mantive os olhos
nele porque me pareceu cruel desviar. Obriguei-me a sentir cada
impacto de minhas más atitudes através de seu olhar julgador.
— O senhor tem noção do que deixei para trás? — soluçou,
revoltado, a voz saindo entredentes. — O que a igreja significou
para mim? — Toninho removeu a sobrepeliz branca, veste sagrada
que ainda o adornava. Aquele ato foi cruel demais de assistir, por
isso paralisei outra vez, em pleno choque. Largou o tecido no chão e
voltou a me encarar. — As infinitas orações... Os momentos de
deslizes, em que minha fé falhava e o senhor sempre dizia para eu
me manter firme.
Eu sabia do que Toninho estava falando porque havia se
confessado várias vezes comigo. Seu coração angustiado
encontrava conforto e consolação em Deus, e ele guardava a
esperança de controlar os instintos que considerava inapropriados
para seguir com os propósitos divinos. Acompanhei seu sofrimento,
fiquei lado a lado de suas angústias e me orgulhava dele, de sua
disciplina e bondade.
O coroinha, então, esgueirou-se para retirar a túnica
vermelha, em claro alerta de que deixaria aquela vida por pura
revolta. O movimento fez com que se levantasse. Depositou a veste
sobre o birô, com a respiração ofegante pela raiva, enquanto
chorava e parecia sofrer consideravelmente. Ele usava uma calça
jeans e uma camisa branca por baixo das vestimentas.
— Não faz isso — sussurrei, espantado. — Vou me retirar da
cidade. Já estava fazendouma carta. — Apontei para o ofíciodiante
de mim. — O pecado precisa ser expurgado, e eu sou o pecado,
não você.
— Não aguento mais essa merda — desabafou,exalando um
ódio que me surpreendeu. Seus olhos estavam bem abertos e
vermelhos, derramando lágrimas que ele sequer parecia se dar
conta. — Cansei de esconder meus desejos para viver dentro de
uma disciplina que ninguém segue. NINGUÉM! O senhor é um
pecador, eu também, somos todos hipócritas dentro de um antro de
falsidade. Mas não vou perder nem um segundo do meu tempo
acreditando que é possível viver desse jeito.
Eu me levantei diante dele, pronto para me aproximar, porém
Toninho deu um passo para trás, assustado.
— Não fale assim — tentei, mais uma vez, fazer com que ele
permanecesse com suas crenças. — Só porque me deixei cair em
tentação, não significa que...
— Eu amo o Dimas — vociferou, interrompendo-me. — É
isso, eu sou gay, não tem o que fazer. Nem o senhor, nem a minha
mãe e nem Deus vão mudar isso. Se o senhor pode ser esse
miserável, então posso ser, finalmente, quem eu quero.
— Toninho, sempre deixei claro que temos livre arbítrio. —
Engoli em seco, sem acreditar no tamanho da dor que ele guardava.
Jamais deixou transparecer daquela forma, sempre me pedia
conselhos para se manter equilibrado e repetia que queria seguir o
caminho da igreja, que era de seu desejo um dia ser seminarista. —
Nunca te julguei pelos seus desejos, falei que Deus sempre te
acolheria, mostrei que...
— Foda-se! — resmungou, dando mais passos para trás, e
aquela grosseria me deixou boquiaberto. — Não vou fazer parte
disso, e se o senhor tiver um pouco de vergonha na cara, vai
embora daqui também.
O rapaz saiu da sacristia, abrindo e fechando a porta com
força, deixando-me absolutamente derrotado. Eu me sentia o
verdadeiro lobo na pele de cordeiro. Ainda fui atrás dele, alcançando
o corredor e chamando seu nome, mas apenas vi seu vulto ao
longe, saindo apressado. Passei as mãos pelos cabelos, mal
conseguindo conter os soluços que teimavam escapar.
Voltei para sacristia arrasado, certo de que não teria retorno
ou mais questionamentos; o meu afastamento da igreja precisava
ser definitivo. O resto eu resolveria depois. Não poderia ficar ali, por
mim, pela Luísa, por Toninho e por todos que acreditaram e
confiaram na minha missão. Não era meu intento colocar a fé de
ninguém à prova, mas foi o que fiz agindo com extrema covardia e
perversidade. As consequências eram infindáveis e se tornou
necessidade agir corretamente pelo menos uma vez.
Voltei a me sentar na poltrona e peguei de volta a caneta.
Contudo, antes mesmo que pudesse iniciar a carta, ouvi batidas na
madeira da porta e ergui o rosto, na esperança de ser Toninho
retornando. Mas me deparei com o delegado Moura, o que trouxe
nova perturbação para o funcionamento do meu corpo.
— Padre Benício?
Eu me levantei de prontidão. O rosto sério do delegado me
deixou certo de que alguma coisa muito grave tinha acontecido, e
que envolvia Luísa. A vontade foi de sair correndo dali atrás dela,
mas fechei os punhos e me segurei na mesma posição.
— Sim?
Ele andou com tranquilidade forçada e se sentou na poltrona
que Toninho acabara de usar. Gesticulou para que eu fizesse o
mesmo, por isso me acomodei, porém me mantendo em alerta,
pronto para reagir se fosse preciso.
— Serei direto. — Delegado Moura segurou um peso de
papel em formato de presépio e o observou atentamente, como se
fosse a coisa mais normal do mundo. Quase arranquei o objeto de
suas mãos e o atirei contra aquele rosto impassível. Novamente,
tive que controlar os pensamentos. — Onde o senhor estava na
noite da morte de Samuel?
Semicerrei os olhos. Soltei um ofego e um riso fora de hora
escapou junto.
— O senhor não pode estar falando sério, delegado.
— Tenho cara de que estou brincando? Não... Faço o meu
trabalho com muita seriedade. O senhor, por outro lado, parece que
está brincando de ser padre.
Fechei os punhos embaixo da mesa. Nunca precisei me
controlar tanto para não esmurrar alguém, e olha que estive frentea
frente com o Luís. Talvez fosse porque meu desequilíbrio passava
por provas em série, testando meus limites a cada segundo.
— Serei igualmente direto, delegado. Eu não vou deixar que
encontre um bode expiatório para esconder os crimes do seu melhor
amigo. Arranje outra pessoa para culpar, deixe a Luísa em paz.
O homem arregalou os olhos, surpreendido.
— Melhor amigo?
— O prefeito— murmurei, para que ninguém forada sacristia
nos ouvisse, já que a porta tinha ficado aberta.
Ele chacoalhou a cabeça em negativa e se endireitou,
visivelmente confuso.
— O que porra o Anthony tem a ver com isso? — resmungou,
inclinando o rosto para me avaliar com cuidado. — Sua namorada
falou a mesma coisa não faz muito tempo. Que merda é essa?
Podem me dizer o que caralho está acontecendo ou vão continuar
com essa farsa?
Meu corpo travou diante das palavras daquele sujeito.
— Esteve com Luísa? Hoje?
Ele voltou a se encostar no assento, abrindo as pernas com
seu jeito irritante de se mostrar à vontade em ambientes impróprios.
— Ela foi presa.
Eu simplesmente não soube o que pensar. A calma foi
removida de mim, sugada de uma vez, e me levantei no mesmo
instante, batendo os punhos sobre o tampo da mesa com uma força
capaz de fazer a madeira tremelicar perigosamente.
— O que disse? — perguntei alto, possesso. Não esperei que
respondesse, apenas caminhei até a porta, disposto a ir à delegacia
ou a qualquer lugar onde Luísa estivesse, mas o delegado se
colocou na minha frente antes que eu pudesse deixar a sacristia.
— Calma lá, padre. Estamos no meio de uma conversa.
— Onde ela está?
Ele resmungou, praguejando baixo.
— Onde toda criminosa é levada quando é descoberta: na
delegacia.
Bufei, descontrolado, voltando a soltar aquele riso carregado
de desdém. Delegado Moura se aproximou mais, como se tentasse
me intimidar. Éramos quase da mesma altura e tínhamos um porte
físico muito parecido, por isso eu sequer hesitei em crescer para o
lado dele. Parecia que brigaríamos como alunos da quinta série,
mas não deixei aquela posição de ataque por nada.
— O senhor vai me dizer o que o prefeitotem a ver com essa
merda?
Olhei-o com tanto ódio que não me reconheci. A sombra
tomava conta da minha alma e eu sabia que me dominaria de vez.
Padre Benício não existia mais. Aquela versão pura, bondosa, justa
e tranquila não retornaria, ao menos não enquanto Luísa corresse
perigo.
— Já falei uma vez e repito: não a conhecia na época e não
tive nada a ver com a morte do marido de Luísa. Ela também não —
falei bem perto da cara dele. — Alguém está mancomunando para
incriminá-la e o senhor sabe disso, nós todos sabemos, mas esse
alguém é poderoso e a corda sempre arrebenta para o lado mais
fraco.
Ele deu um passo para trás, visivelmente desconfortável.
— Eu não sei. Não estou por dentro — murmurou, descrente.
— Padre, não sei que lavagem cerebral essa mulher fez no senhor,
mas ela não é confiável.Encontramos a arma do crime enterrada no
quintal da casa dela, após recebermos uma denúncia anônima.
Passei a madrugada arranjando contatos confiáveis e
acompanhando a apuração imediata das digitais. Há vestígios do
sangue da vítima, os ferimentos cabem perfeitamente com o formato
da arma, e a única digital encontrada no cabo da faca pertence à
Luísa. — Aquelas informações, jogadas de maneira nua e crua,
pareciam socos no meu estômago. Eu não podia acreditar em nada
daquilo. Não era possível.
Não poderia ser.
Eu o olhava com o rosto tomado pelo pavor.
— Ela o matou, padre Benício. E tudo indica que foipara ficar
com o senhor, já que pelo dinheiro não foi. Samuel estava falido e
só deixou dívidas e encrenca, até a casa Luísa está para perder. A
dúvida é se o senhor teve participação nesta lambança.
— Não... — ofeguei, descrente, sentindo cada certeza
desabando diante dos meus pés. — Não é possível.
O delegado Moura voltou a se aproximar.
— Aposto como foi ela que te seduziu. Pense bem padre.
Balancei a cabeça em negativa, rememorando nosso primeiro
contato. Luísa tinha forçado a barra num primeiro momento, mas eu
caí fácil e nos empurrei para a perdição. Ela não era a culpada e
nem fez de propósito. Não fazia sentido.
Ou será que eu estava cego demais?
— Não — respondi em voz alta a pergunta que ecoou na
minha mente.
— Só não o prendo neste momento porque não tenho nada
contra o senhor além de uma leve suspeita. Uma mulher não dá
dezessete facadas a troco de nada. Um veneno resolveria. Ou é
psicopata ou alguma coisa...
— Não! — rosnei, desequilibrado. Eu a tinha possuído e me
conectado com aquela mulher. Não podia ser mentira. Todos os
meus instintos me imploravam para continuar confiando. — Ela não
matou ninguém.
— E quem foi, então? — Riu, debochado. — Estou curioso
para ouvir o palpite.
— Conheço um punhado de pessoas que poderiam ter feito
isso. — O prefeito,a primeira-dama, o casal da fotoe o Luís. Sim, o
Luís... Naquele instante, uma ideia se fixou, tomou forma nos meus
pensamentos. — Pelo visto, o senhor não sabe de nada. Diz que faz
seu trabalho com seriedade, mas nem assim foi capaz de perceber.
— Do que está falando?
Balancei a cabeça, inconformado.
— Uma denúncia anônima. Que porra é essa? — Soltei o
palavrão sem hesitar e nem por um instante pensei que estávamos
numa sacristia. E que eu era o padre daquela igreja. — Pelo que
entendi, a ligação foi durante a festa do seu amiguinho. Do nada
alguém sabia que uma faca estava enterrada? O senhor não acha
esquisito?
Ele apenas prendeu os lábios. Claro que tinha achado
estranho. Delegado Moura poderia ser qualquer coisa, menos
estúpido a ponto de deixar um furo daquele tamanho passar
despercebido.
— Ela pode ter enterrado ontem, após a festa.
— Impossível. Eu mesmo a tirei da casa do prefeito.
Ele fez uma careta de descontentamento.
— Então os dois enterraram a faca?
— Não sei, o que seu denunciante viu? — Delegado Moura
continuou em silêncio, visivelmente empertigado. — Ela estava
comigo a noite toda. Longe daqui. Eu mesmo a levei depois que o
vizinho dela a ameaçou na porta da casa do prefeito. O senhor
sabia disso? — Sua mudez perdurou. — Quem foi que denunciou o
sumiço dela semana passada? O vizinho. Ele invadiu a casa dela,
delegado, depois de ter ouvido nossos gemidos. — Fui o mais claro
possível, sem nenhum constrangimento. — E depois de eles terem
discutido na festa, uma denúncia anônima... — Virei as costas,
juntando os pontos rapidamente, em seguida voltei a olhá-lo. Estava
claro como a mais límpida das águas. — Ele roubou uma calcinha
dela, sabia do meu envolvimento com Luísa... Esse cara sabe
demais, sabe tudo, e nutre um amor fodido pela vizinha. Um amor
que pode tê-lo levado a dar facadas num marido problemático,
tirando-o de seu caminho.
Delegado Moura balançava a cabeça, negando, mas seu
olhar dizia que estava levando muito sério cada uma de minhas
palavras. E tudo começou a fazer sentido. Eu só não sabia o que o
prefeito,a primeira-dama ou a mulher da fotografiaindecente tinham
a ver com aquela história toda. Mas me era muito certo de que o
vizinho não era bom sujeito e de que era capaz de tudo para ter
Maria Luísa para si.
— Esse homem imaginava que ficaria com ela depois que
Samuel saísse de cena. — Ergui a cabeça e percebi o delegado
completamente espantado. Certamente via sentido em tudo aquilo.
— Mas se deu mal. Porque Luísa se tornou minha. — Foi estranho
não sentir vergonha ou objeção quanto a isso, por mais espantado
que o delegado estivesse. Falar em voz alta me encheu de júbilo. —
Luís guardou a arma do crime, como um bom psicopata, talvez
pensando que poderia usá-la para incriminar outra pessoa ou até
ameaçar Luísa. Guardou para o momento certo. Aposto que essa
faca é mesmo dela, faz parte de seu aparato de cozinha. Não deve
ter sido difícil para ele invadir a casa e pegá-la.
— Se o que está dizendo é verdade, então o senhor corre
perigo e ela, também. Mas o que o prefeito tem a ver?
Dei de ombros.
— Eu não sei. Não sou detetive e nem delegado.
Ele grunhiu alto, irritado.
— O senhor vem comigo. Vamos tirar toda essa história a
limpo. Se fizersentido, esse homem precisa ser parado. Mas se não
fizer, padre, o senhor vai se encrencar.
O homem andou até a porta, porém continuei estacionado.
Se o delegado agia daquela forma, supus que realmente não sabia
nada sobre o prefeito. Não estavam juntos para incriminar Luísa,
como eu imaginava. E se ele realmente estava do nosso lado, então
precisava saber de tudo.
Não tinha mais como continuar escondendo. A verdade
precisava surgir.
— Espere — falei, convicto. Delegado Moura se virou para
mim. Eu me encaminhei para um armário antigo dentro da sacristia,
onde tinha um cofre em que eram guardados os objetos mais
valiosos da igreja. E a caixa deixada por Samuel. — O senhor
precisa ver uma coisa.
PARTE 18
Encarcerada

Maria Luísa

Foi muito difícilmanter qualquer tranquilidade ou pensamento


coerente enquanto era levada para a delegacia, algemada,
humilhada e ciente de que a minha vida tinha acabado de vez
naquele momento. Não me sobraria mais nada, nem a liberdade. Eu
não fazia ideia do que tinha acontecido para que delegado Moura
resolvesse me prender de vez, mas ele deveria estar preparado e,
eu tinha certeza, não deixaria brechas.
Aquela gente conseguiu, enfim, me incriminar pelo que
fizeram. Apesar de não saber quem de fato matou Samuel, muita
gente possuía motivos, e pessoas influentes, cheias de dinheiro,
que poderiam comprar tudo, inclusive a justiça fracadaquela cidade.
Eu não passava de uma mulher sozinha, abandonada e, aos olhos
de todos, rancorosa, uma psicopata esquisita. Presa fácil. Era muito
simples jogar toda a culpa em mim.
No fundo, sabia que aquele instante chegaria, cedo ou tarde.
Talvez por isso tenha me afastado de Benício, sugerido que
pensasse direito, que não agisse por impulso. Eu sabia que nossa
história ficaria no passado e que meus problemas nos afastariam
para sempre. Tudo foi apenas um sonho. Um pequeno oásis no
meio de um deserto escaldante.
Foi diante de minhas lágrimas incontidas que o delegado me
levou diretamente para a sua sala. Fez com que me sentasse numa
cadeira dura, desconfortável, e fechou a porta atrás de si. Em
silêncio, sentou-se à sua mesa de trabalho, enquanto eu mantinha o
rosto para baixo, envergonhada, desamparada, quebrada em
milhões de cacos e sem a mínima esperança de recuperação.
— Suponho que não tenha dinheiro para um advogado. —
Não o respondi, apenas dei de ombros. De que adiantaria me
defender, se aquela gente viria com tudo para cima de mim? Eu não
tinha grana, status e menos ainda um álibi. — Hoje é domingo e não
vou conseguir ninguém da defensoria pública para você, só
amanhã. Enquanto isso, vai permanecer detida.
Novamente, meus ombros relaxaram. Eu não me importava.
Que me prendessem e que eu mofassena prisão. Deveria ter fugido
quando tive a chance, mas não fiz isso, como a estúpida que era,
então nada mais poderia ser feito. Antes tivesse ficado na casa de
Benício, vivendo um romance proibido e delicioso, longe de tudo.
— Você tem direito a saber por que está aqui. Não quer
saber? — Delegado Moura prosseguiu, numa seriedade gritante.
Achei que ele ficaria feliz com minha prisão, mas parecia
realmente estressado, irritado, como se algo estivesse errado, fora
do lugar e de seu entendimento. Talvez se sentisse mal por
mancomunar com o verdadeiro assassino. O pingo de vergonha na
cara que sobrava nele fazia com que não me zoasse?
Continuei muda.
— Tudo bem, amanhã nós conversamos com o advogado
presente. Suas coisas foram guardadas. Aliás, fiquei feliz em saber
que você, ao menos, está se precavendo. — Riu de leve, com
certeza mencionando os preservativos que trouxe dentro da sacola.
Ergui o rosto tomado pelas lágrimas, ciente de que eu estava
transformada pela profunda tristeza e derrota. Encarei-o
severamente.
— Está contente? — resmunguei, com a voz falhando, mas
mantive o olhar firmena sua direção. — Quanto está ganhando com
esse circo, delegado? Espero que valha a pena. Que deite a cabeça
no travesseiro e tenha paz para dormir.
Ele se empertigou, movendo-se na cadeira do outro lado de
sua mesa de trabalho, que estava repleta de papéis e objetos nos
quais não prestei atenção. Meu foco permaneceu naqueles olhos
muito azuis, que contrastavam com a pele morena, como se
tivessem sido colocados ali por acaso, na pessoa errada.
— Quer ver o meu contracheque? Lá tem descrito
exatamente o que ganho para fazer o meu trabalho.
Bufei, soltando uma risada de escárnio. Ela veio
acompanhada de mais lágrimas, que simplesmente escorriam, eu
não as percebia totalmente nem me esforçava para soltá-las ou
segurá-las.
— Conta outra. O amiguinho deve ter recheado seu bolso
para me enfiar aqui.
Ele fez uma careta enorme.
— Do que está falando?
— Do prefeito. Quem mais?
Ele piscou os olhos algumas vezes. Arquejou, e um finco
enrugado surgiu na sua testa. Acompanhei aquelas reações e a
dúvida surgiu. Não parecia que ele sabia de nada a respeito do
prefeito, mas poderia ser só impressão. Aquela gente era
dissimulada, capaz de tudo. Eu que não confiaria em ninguém,
menos ainda estando ali, algemada.
— Não sei que porra está insinuando. Que tal desembuchar
de uma vez?
Sorri, debochada. Eu tinha menos a perder a cada instante,
porém uma coisa era não ter esperanças, outra era agir feito uma
burra.
— Não sem um advogado.
Ele resmungou, soltando uns palavrões bem ofensivos, mas
que não me causaram nada além de indiferença. Deixei meu corpo
amolecer na cadeira, exausta de tudo aquilo, e o movimento fez
meus olhos paralisarem sobre a mesa do delegado. De súbito, algo
me chamou a atenção. Fiz uma careta e fiquei observando, tentando
encontrar algum sentido, porque meu cérebro embaralhou,
deixando-me incapaz de fazer qualquer associação.
— O que é isso? — Apontei.
Delegado Moura pegou a sacolinha transparente idêntica à
que estava dentro da caixa deixada por Samuel. Porém, aquela só
continha dois comprimidos, e não pude deixar de reparar que tinham
o mesmo formato. Como era possível que... Aquelas sacolas só
podiam estar relacionadas, talvez advindas da mesma fonte.
— Não te interessa. — Delegado Moura pegou o objeto e o
enfiou dentro da gaveta embutida em sua mesa.
Eu o olhei com espanto.
— Por que estou aqui? — murmurei, assombrada. Se o
motivo tivesse a ver com aquela droga, então talvez a solução fosse
entregar o que encontrei ao delegado, para que assim tirasse suas
conclusões. Eu não sabia se ajudaria ou pioraria o meu caso, mas
precisava estar ciente do que tudo aquilo significava. — Quero
saber por que me prendeu. Por que agora?
Voltei a encará-lo, e o homem se endireitou na cadeira,
expressando certa confusão e descontentamento.
— Achamos a arma do crime. — Ele se levantou e caminhou
até um armário, pegando outra sacola transparente, daquela vez
maior e com algumas etiquetas coladas. Mostrou-me o objeto
ensanguentado e sujo de terra dentro dela, o que fezcom que meus
olhos se arregalassem. Reconhecia aquela faca. Parecia muito a
que eu usava para cortar carne, com o cabo azul e detalhes
marrons. — Tem suas digitais aqui, além do sangue do seu falecido
marido.
Ofeguei, o ar foi tragado de meus pulmões de uma só vez.
Por aquela eu não esperava de jeito nenhum. Não era possível.
Alguém pegou aquela faca da minha casa. Quem matou o Samuel
tinha o propósito claro de me incriminar, desde o princípio.
— Claro que tem minhas digitais — sussurrei, vacilante, com
mais lágrimas escorrendo sem pudor. O desespero me invadiu,
deixando-me meio zonza, com a vista embaçada. — Essa faca é lá
de casa. — Solucei, arrasada. Aquele crime extremamente
premeditado foi calculado com uma precisão enorme.
Delegado Moura guardou a sacola com a evidência de volta
ao armário.
— É melhor que fique calada. Como falei, tudo será usado
contra você.
— O senhor não está entendendo, delegado. É ÓBVIO que
tudo será usado contra mim. Quem matou o meu marido articulou
muito bem para me incriminar.
Ele voltou a se sentar, passando a mão nas têmporas como
se não suportasse mais aquela história, em visível cansaço.
— Você não tem álibi, as suas digitais estão na arma do
crime, que foi claramente passional... — Encarou-me severamente.
— O meu dever está cumprido, Luísa. O resto agora é com o juiz. —
Levantou-se de novo, aproximando-se de mim. — E eu espero que
você não toque no meu nome ou no da Aisha em seus depoimentos.
Se fizer isso, o seu namoradinho de batina vai pagar caro.
Entendeu? Falta isso aqui... — Fez um gesto com o polegar e o
indicador. — Para eu descobrir o envolvimento dele nesse crime.
Ergui-me diante do homem, sem controlar o impulso de partir
para cima daquele prepotente. Delegado Moura soltou uma risada
sem graça, segurando meus punhos por cima da algema e
mantendo os olhos frios no meu rosto.
— Está me ameaçando, delegado?
Negou com a cabeça.
— Não. Estou avisando. Eu não tenho nada a ver com essa
sua bagunça, por isso, se me envolver de algum modo, a cidade
inteira vai saber que padre Benício é um santo do pau oco e você,
uma cretina que matou o marido para foder com um padre.
Eu estava tão desesperada que comecei a rir daquele sujeito.
Não era possível que estivesse falando aquilo assim.
— Isso tudo é medo de ser pego, pedófilo? — Ele soltou um
rosnado e me apertou um pouco mais antes de me soltar como se
eu pegasse fogo. Ficou claro que se controlava para não deixar
marcas em mim e se enroscar de vez. — Pois fique tranquilo, estou
pouco me fodendo para quem você come. Só espero que essa
garota recobre o juízo e te dê um pé na bunda, é o mínimo que você
merece, abusado.
O rosto dele se contorceu de ódio bem na minha frente. A
gente se odiava de uma forma meio gratuita, mas muito sincera.
— Eu digo o mesmo. Ah, é... Você está presa. Padre Benício
não vai precisar fazer nada. Não tem como chutar cachorro morto.
Estava na beira do desequilíbrio quando o delegado,
sabiamente, chamou dois policiais para me levarem para a prisão
dentro da delegacia. Fui acompanhada aos trancos e barrancos,
contorcendo-me de fúria, segurando-me para não gritar toda a
podridão daquele cara ali mesmo. Eu sabia que seria pior tocar no
assunto. Ele tinha como foder com a minha vida de várias maneiras
possíveis.
A cela para onde me levaram era pequena, mas as barras de
metal eram roliças, grossas. Fui enfiada ali como um bicho feroz a
ser contido. Trancaram a fechadura imensa, de aparência
intransponível, e soltei um grito furioso, exalando toda a ira que
sentia por estar naquela situação deplorável.
Andei para trás, desnorteada, até alcançar a face de uma
parede, perto de uma cama metálica e de péssima aparência. Só
então olhei para o lado e me deparei com a filha do prefeito: Aisha
Teixeira. Estava ainda com o mesmo vestido da noite passada, a
maquiagem manchada e o cabelo despenteado. Não parecia
exatamente triste por estar ali, apenas conformada, observando-me
com visível descontentamento.
— Ah, claro! — Bufei,encarando a figuradeprimente sentada
no canto da cama, com os joelhos dobrados perto do rosto. — Não
se cansa de arranjar problema, menina? Começo a achar que age
feito bandidinha só para ser presa pelo delegado. Se é que me
entende — resmunguei, recordando-me do que vi quando os flagrei.
Ela fez uma careta feia. Eu nunca tinha falado com aquela
criatura em toda a minha vida, mas era como se a conhecesse de
longa data. Tê-la visto com o delegado acabou com minha paz de
espírito e me empurrou diretamente para aquele lugar.
— Cala a boca — murmurou entredentes, mas o rosto
continuou impassível.
— Será possível que ainda não viu que esse homem não
presta? — continuei, embalada pela exasperação. Eu não
conseguiria me aquietar, ficar calada dentro daquela jaula ao lado
de uma imbecil. — Você é nova, bonita, tem todo um futuro pela
frente.
— Vocês transaram? — ela perguntou, apenas, sem sequer
me olhar. O timbre saiu com uma firmeza impressionante. A filha do
prefeito achava que o mundo girava ao seu redor. Uma princesinha
num castelo de cartas, prestes a desabar, eu sabia.
— É isso o que te preocupa? — Bufei. — Pois bem, a gente
fodeu— menti na cara dura, mas com um objetivo claro. Era melhor
deixá-la decepcionada e a afastardaquele homem com uma mentira
do que dizer a verdade e aquela relação deles continuar. Claro que
eu não tinha esse direito. A escolha era dela. Mas, naquele instante,
não consegui encontrar discernimento. — O que vai fazercom isso?
Aisha Teixeira, enfim, encarou-me. Os olhos marejaram
imediatamente. Soltou um soluço alto e, quando achei que me
xingaria, simplesmente caiu no choro. Senti muita pena, o que me
fez paralisar. Observei a sua dor por alguns minutos; ela ficou
inconsolável, acuada, como se estivesse totalmente perdida.
Não pude prosseguir com aquilo. Arrependi-me das palavras,
da minha atitude covarde, por isso me aproximei e me sentei na sua
frente.
— Eu menti, não toquei no delegado, nem ele em mim. Na
verdade, a gente se detesta. — Ela voltou a me encarar, aos
prantos. A coitada era tão inocente, meu Deus. — Desculpa. Achei
que, falando isso, você fosse se afastar dele. Eu não acho certo
uma garota se relacionar com um homem feito, mas, no fim das
contas, isso tudo é hipocrisia minha. Fiz coisas piores.
Ela balançou a cabeça em negativa.
— Do tipo matar um cara?
Prendi os punhos com força.
— Não. Não matei ninguém.
— Então o que está fazendo aqui?
— Eu não sei. E você? — Aprumei o corpo, encostando-me
na face da parede e trazendo as pernas para cima daquela única
cama.
Aquele lugar era meio escuro, sórdido, causava-me nojo.
— Sou muito estúpida. — Soluçou, mas logo enxugou as
lágrimas e buscou alguma calma. — Faço tudo errado.
— Compreendo.
Eu não me sentia nem um pouco diferente. Olhando aquela
menina chorando, só conseguia nutrir compaixão por nós duas. Não
parecíamos tão diferentes assim, embora houvesse uma grande
diferença de idade e de história de vida. Nunca tive berço de ouro,
as coisas jamais foram fáceis para mim. Mas éramos mulheres e
estávamos enroscadas por causa de homens. Sempre eles.
Ouvi o barulho de passos e, enfim, o delegado Moura surgiu
entre as barras de ferro. Não me encarou, sequer pareceu notar a
minha presença. Toda a atenção estava fixada na filha do prefeito.
Ele não parecia nem um pouco feliz, exibia um semblante sério e
muito preocupado.
— Seu pai chegou — avisou, pegando a chave para abrir as
grades. A menina continuou imóvel, encarando o horizonte como se
nada daquilo fosse com ela. Eu congelei com a mínima menção do
prefeito estar próximo. — Dê o fora daqui. — Delegado Moura usou
um timbre severo, quase um rosnado.
— Quando vai agir como homem e encarar o meu pai? — a
garota questionou, e abri meus olhos ao máximo, surpresa com a
cena que se desenrolava. Por um instante, esqueci minha condição
de prisioneira. — Quando vai assumir o que sente? Você me ama,
Vitor, eu sei disso.
Aisha o encarou, e eu fiqueiali guiando o rosto na direção de
ambos. Delegado Moura estava quase tendo um troço. O rosto se
mantinha avermelhado, os punhos, cerrados, e parecia que
explodiria a qualquer momento. Tive vontade de soltar um deboche,
mas não fiz isso em respeito à garota. Já estava sofrida demais,
coitada.
— Saia. — Ele se limitou a dizer.
— Cansei! — Aisha se levantou, aprumando o vestido
amarrotado, suspirou e parou para me olhar por uns instantes. —
Boa sorte. — Acenei com a cabeça, dando de ombros. Virou-se
para o delegado de novo. — Eu nunca mais quero te ver. Nunca
mais vai encostar um só dedo em mim.
Quase a aplaudi naquele momento, mas me contive.
Delegado Moura se manteve rígido, mas percebi o olhar azulado
começando a brilhar. Ainda assim, continuou com a postura
calculista, como se não sofresse nem um pouco. Até que tentei
sentir pena, porém minha raiva era grande demais para que eu
chegasse àquele ponto.
— Não entre em confusão, então nunca mais vai precisar me
ver, garanto.
Aisha ofegou, incrédula, e eu fiquei puta com tanta frieza
daquele idiota. Como ele conseguia ser daquele jeito? Claramente
era superapaixonado pela menina, mas a tratava como lixo. Ainda
bem que estava ganhando um belo chute na bunda ali mesmo, ao
vivo e em cores.
— Agora compreendo que nunca signifiquei nada para você
— ela completou, caminhando a passos vagarosos. Saiu da prisão e
se colocou na frente dele.
Delegado Moura fechoua grade. Relanceou o olhar na minha
direção, com uma expressão de profundo pesar.
— Não — resmungou, virando-se para Aisha. — Desapareça.
A menina sequer esperou ser levada para fora. Também não
vi nenhum policial por perto. Ela passou pelo delegado, esbarrando
no ombro dele de propósito, dando um sanfanão. Desapareceu em
dois tempos, deixando-o ali, paralisado, encarando algum ponto na
parte de forada cela. O homem tinha feitouma escolha baseada no
bom senso, o que lhe atribuiu, no meu conceito, um mínimo ponto
ao seu favor.
— Fez a coisa certa — murmurei, depois de um minuto
completo sem que ele conseguisse se mexer. — Ela vai superar.
— Você não sabe porra nenhuma sobre certo e errado —
resmungou, movendo-se depois de um bom tempo. Reparei que
enxugou o rosto, porém não cheguei a ver lágrima alguma. — Não é
nenhum exemplo de moral e bons costumes. Fique na sua, atrevida.
— Ah, vai se ferrar, seu fodido— soltei, mas foida boca para
fora, assim como senti que seu xingamento saiu por sair, sem
qualquer propósito ou emoção.
Ele se foi e me encontrei sozinha naquela cela, mais solitária
do que nunca, imersa num vazio existencial que prometia não ter
fim. Estava incomodada por vestir as roupas justas de Sofia, pois
sequer tive tempo de tirá-las. Nem mesmo pensar em Benício me
trouxera paz, muito pelo contrário: tive verdadeiro pavor. O que
acharia daquela prisão? Como reagiria sabendo sobre a arma
encontrada? Confiaria na minha inocência?
Nós não nos conhecíamos tanto, aquela era a cruel verdade.
Quando soubesse de tudo, eu perderia sua confiança junto com o
apreço. Não me restaria nada, nem aquele sentimento que florescia
dentro de mim, e que eu não tinha ideia do que fazer com ele.
Sequer podia rezar, porque Deus não me ajudaria depois dos
pecados que cometi.
Deixei o choro me dominar e o meu corpo cair sobre a cama.
Não havia o que ser feito além de lamentar tanto infortúnio.
PARTE 19
Quem é mais útil?

Padre Benício

Deixar a igreja em pleno domingo não era uma tarefa fácil, mas
a presença do delegado assustou as irmãs e demais funcionários, o
que tornou a minha saída possível, sem muitos questionamentos.
Ninguém sabia o que estava acontecendo, por isso tentei os
acalmar e deixei claro que nada daquilo deveria se tornar uma
fofoca entre os fiéis, mesmo sabendo que pedir algo assim em São
João do Paraíso era inútil.
Entrei na viatura do delegado Moura me sentindo esquisito,
sobretudo porque, ao conferir cada item dentro da caixa preta, ele
ficou mudo, com o semblante muito sério e imerso em reflexões.
Não teceu qualquer comentário mais elaborado, apenas perguntou
onde a caixa tinha sido encontrada e o motivo de estar comigo na
igreja. A minha resposta sincera fezcom que soltasse um resmungo
e só. Eu não sabia se tinha enrolado a corda no meu próprio
pescoço, nem se pioraria a situação de Luísa. Apenas ouvi meu
instinto, que costumava funcionar com relação às pessoas.
Delegado Moura me fez entrar em sua sala assim que
chegamos à delegacia. Pediu que eu me sentasse e depositou a
caixa preta sobre sua mesa, analisando-a com bastante atenção.
Colocou o revólver dentro de uma sacola transparente, tomando o
cuidado de pegá-lo com um pano, bem como os outros itens.
— Nós nos deparamos com essa mulher na festa da casa do
prefeito — comentei quando ele segurou a fotografiapornográfica.
Saquei o celular do bolso e mostrei a foto que tirei durante a
festividade. — Não sabemos quem ela é, mas olhou para Luísa de
um jeito bem estranho, como se a reconhecesse. O senhor sabe de
quem se trata?
Delegado Moura assentiu, com o queixo apoiado na mão,
pensando. A expressão que fez exalava a mais completa confusão e
espanto. Talvez soubesse de algo que nem eu ou Luísa sabíamos, e
ainda assim não encontrava respostas.
— O senhor sabe quem é esse rapaz com ela? — questionei,
já que ficou em silêncio. Tentei conter a curiosidade, afinal, quanto
menos soubesse, melhor, mas se era para proteger Luísa, eu
deveria buscar os fatos em totalidade.
Delegado Moura soltou um longo suspiro, em seguida abriu um
meio sorriso.
— Ele é estudante de Direito na Universidade de Paraíso. Um
filhinhode papai que só arranja confusãoe ex-namorado da filhado
prefeito. — Delegado Moura mudou a expressão para o
descontentamento, e fiqueime perguntando o motivo. Certamente já
teve trabalho com esse rapaz. A chegada do campus na cidade
trouxe avanços e modernidade, mas também trouxera problemas
sobretudo entre os jovens. — Um idiota.
Aquiesci, movendo a cabeça lentamente. Não deixei de
pensar no Toninho, que cursava o primeiro semestre de Teologia, e
na forma como saiu da igreja. O meu coração estava apertado e
entristecido, carregado de culpa e muitas emoções misturadas. Eu
precisava conversar com ele, mas de nada adiantaria naquele
momento. Sua raiva precisava passar, acalmar um pouco.
— Ela é professora e coordenadora na Universidade. —
Quando aquelas palavras saíram da boca do delegado, meus olhos
arregalaram e quase perdi o fôlego. Um estudante e uma
professora? Meu santíssimo. Um segundo depois, considerei a mim
mesmo um grande hipócrita e percebi o quanto era fácil julgar os
outros. — Mônica Teixeira. Irmã mais nova do prefeito. Ela é
discreta, não participa muito do mundo político. — O homem olhou
para a fotografia. — Nem tão discreta assim, pelo visto.
O meu assombro se intensificou consideravelmente. A irmã
do prefeito se relacionando com o ex-namorado da sobrinha?
Parecia coisa de novela das nove. Sem contar que eu sabia muito
bem que a esposa do político dormia com o vizinho. Aquela família
era mesmo muito esquisita, no mínimo, e era óbvio que estavam
envolvidos na morte de Samuel. Tanta traição num só lugar não
poderia dar em nada bom.
Mas como relacionar toda essa gente ao Luís? O meu
cérebro estava se enroscando entre tantas informações distintas.
— Delegado, o que tudo isso significa?— questionei, com os
pensamentos desvairados, formulando as mais loucas teorias para
justificar o assassinato. — A família do prefeito parece estar
vinculada ao Samuel de alguma forma. Tem alguma coisa muito
errada em toda essa história.
— Amanhã, quando o advogado de Luísa aparecer, irei
interrogá-la. Ela deve saber mais do que o senhor a respeito desta
caixa.
Dei de ombros.
— Ela sabe tanto quanto eu, inclusive pensava que o senhor
sabia das falcatruas do prefeito e estava envolvido nisso.
Claramente, o homem detestou as minhas palavras, porque
resmungou e balançou a cabeça em negativa, coçando o queixo em
sinal de perturbação.
— Não sei de porra nenhuma, padre Benício. Neste
momento, não saber dessa merda está me enervando. Achava que
era um caso simples de crime passional.
— O senhor deveria soltá-la imediatamente, está óbvio que
não teve nada a ver com a morte do marido.
Ele balançou a cabeça em negativa.
— Nada disso aqui prova alguma coisa, padre. São indícios,
não fatos.O fato é que tem digitais de Luísa na arma do crime e ela
não tem álibi. — Prendi a respiração diante daquelas palavras. Eu
não sabia nada sobre a questão da arma do crime, mas acreditava
piamente na inocência dela. Precisava confiar, ainda que de forma
meio cega, já que nos conhecíamos tão pouco. O delegado
prosseguiu com seriedade: — Luísa poderá ser solta apenas com o
habeas corpus, mas não consigo um advogado da defensoria hoje,
num domingo. Pela minha experiência, o juiz provavelmente vai
liberar uma fiança, mas duvido que ela possa pagar a quantia, já
que estamos falando de assassinato.
Aquela possibilidade me carregou de assombro. Não tinha
pensado nisso, pois não era acostumado a conviver com essas
coisas da lei. Desconhecia os procedimentos.
— E quanto seria? — perguntei, chocado e temendo a
resposta.
Ele coçou a cabeça, refletindo.
— Coisa de quarenta mil reais, por aí. Depende do juiz... O
advogado pode recorrer para tentar diminuir, mas não creio que
fique menos de uns trinta mil.
— Meu Deus.
Fiquei olhando para o sujeito com o coração em frangalhos.
Soube que Luísa não tinha dinheiro, e eu também não, sobretudo
por causa dos meus votos de pobreza, mas podia ligar para os
meus pais e reunir algum valor para pagar a fiança. Eu não
permitiria que aquela mulher ficasse enjaulada por um crime que
não cometeu.
— Ainda assim, ela terá que responder em liberdade. — O
delegado continuou explicando: — Se for julgada e condenada,
voltará para a prisão pelo tempo estipulado em julgamento. Neste
caso, serão longos anos, padre.
Meu coração batia tão forte que era difícil manter a
respiração. Estava à beira do colapso enquanto imaginava a minha
garota cumprindo uma pena extensa. Sua vida seria destruída,
perdida dentro da cadeia.
— O senhor precisa encontrar o assassino antes disso,
delegado.
A verdade precisava surgir para que Luísa fosse inocentada
de uma vez.
— Estou intrigado quanto ao vizinho, o tal de Luís. —
Delegado Moura se apoiou no encosto da cadeira e suspirou.
Percebi que não voltou a culpar Luísa. Provavelmente mudou de
ideia quando viu os objetos, o que já era alguma coisa. — Tem
muita coisa estranha acontecendo ao mesmo tempo com relação a
esse caso. — Olhou-me fixamente, muito sério. — Fez bem ao me
entregar essa caixa, padre. Não colocarei seu nome no relatório.
Hoje fizemos a busca e apreensão na casa da viúva, então colocarei
tudo isso como recolhimento dessa ação.
— Eu não tenho objeções. Se o senhor achar por bem me
envolver no caso, aceito perfeitamente, pois já estou envolvido
demais.
Ele me olhou de cima a baixo.
— Estou vendo. — Sorriu com certo desdém, certamente se
referindoao meu envolvimento com Luísa. — Padre, eu entendo... A
mulher é linda, uma gostosa, tem a boca afiada e olhos
hipnotizantes, mas o senhor não pode prosseguir com essa merda.
Falei uma vez e reafirmo, se continuar com isso, vai sobrar para o
senhor. Olha a confusãoem que ela já te enfiou!— Apontou para os
itens distribuídos sobre a mesa.
Não gostei da forma como se referiu a Maria Luísa. O ciúme
extremo dominou o meu corpo e, por um instante, me vi enrolando
os dedos ao redor da garganta do delegado, bem como tinha feito
com o Luís. Fechei os punhos para manter o controle. A reação da
minha mente me assustou tanto que me mantive calado, com a
mandíbula presa pelo desgosto e pelo nervosismo. A única coisa
que sabia era que não podia deixá-la.
— Eu quero vê-la. É possível?
Delegado Moura fez uma careta e soltou um xingamento
baixo.
— Não deveria. Por que o senhor não aproveita e se afasta
de vez?
— Porque eu não vou fazer isso, delegado. — A convicção foi
tanta que ele se espantou um pouco. Ainda que eu estivesse de
batina, pois não tive tempo de removê-la, quem estava ali diante
dele não era o padre, mas o homem que lutaria pela mulher que o
tocou profundamente.— Luísa é inocente e o senhor vai chegar até
a verdade, se Deus assim permitir.
— Uma hora a cidade vai descobrir que está apaixonado pela
viúva, principalmente se continuar se comportando desta forma.
Será um escândalo medonho.
— Que assim seja — eu disse baixo, como o fim de uma
oração.
Delegado Moura me analisou por alguns instantes, depois se
ergueu e me levou para o local onde estavam as celas, no coração
da delegacia. Policiais passaram por nós e estranharam a minha
presença, porém não comentaram nada. Assim que alcançamos o
ambiente escuro onde Luísa estava, acuada como um animal
indefeso, o meu coração apertou tanto que parecia sangrar.
Ela estava sentada sobre uma cama metálica decaída, com
as pernas recolhidas, envolvidas pelos braços e a cabeça abaixada.
Delegado Moura abriu a cela, fazendo um barulho alto, mas Luísa
não se mexeu, o que me encheu de desespero. Entrei naquele lugar
impensável e corri até me ajoelhar diante dela. Só então ergueu o
rosto e, ao me encontrar ali, deixou vários soluços escaparem.
Puxei-a para mim, abraçando-a com toda força reunida.
— Não matei o Samuel, não fui eu... — Soltou mais soluços
sofridos.Ela me puxava em vários pontos, nunca se decidindo, e eu
a enlaçava no meu corpo como se nunca mais fosse capaz de
afastá-la. — Não fui eu, juro, não fui...
— Shhh, eu sei. Não se preocupe. Estou contigo.
Luísa afundou o rosto no meu pescoço e permaneceu
inconsolável durante vários minutos. Eu não sabia o que fazer para
tirá-la dali. A entrega da caixa não havia funcionado. Segundo o
delegado, poderia existir uma fiança a ser paga, mas ainda não
passava de uma possibilidade, que geraria mais um empecilho:
dinheiro. Era difícil demais acreditar que Luísa teria que ficar
naquele lugar terrível por mais tempo.
Passei os dedos pelo seu rosto, enxugando algumas
lágrimas.
— Vai dar tudo certo, confie em Deus — sussurrei, ainda que
não tivesse certeza se Ele nos ouviria, depois do que fizemos
naquela semana. Perceber a minha fécomeçando a falharme tirava
todo o chão. Eu não era mais o mesmo.
Luísa negou com a cabeça, em pleno desespero, e enfim se
afastou.
— O senhor não deveria estar aqui — disse num choramingo.
Toquei seu braço, mas ela recuou de repente, ainda em lágrimas.
Seu afastamento me deixou terrivelmente entristecido, sobretudo
por ter me chamado daquele jeito. Culpei a presença da batina.
Devia tê-la confundido. — Eu vou mofar na prisão. Não tenho como
provar nada e nem me defender dessa gente.
— A verdade virá, Luísa.
Ela continuou negando.
— Eu não tenho o direito de... — Olhou-me com atenção,
mas as lágrimas ainda escorriam. Sua aflição evidente me
arrebentava por dentro. Vê-la daquela forma me deixava irritado
pela minha impotência. — O senhor precisa sair daqui. Não pode se
meter nessa confusão. Eu não valho tanto assim.
— Você vale tudo. — Toquei a lateral do seu rosto, e ela
fechou os olhos. Enxuguei mais uma lágrima com o polegar. — Eu
não vou te deixar. Não te fiz minha à toa, Luísa — reafirmei,
convicto, aproximando nossos rostos para fazer com que
entendesse de uma vez. — Acha que tenho medo de ir ao inferno
contigo? Não mais. Aquela carta está sendo escrita e em breve
nada vai me impedir de ter você.
— Ben... — Ela arquejou, soluçando. — Não é justo.
— Vou te tirar daqui. Prometo.
Dei um beijo em seu nariz e a abracei de novo. Luísa veio,
sem mais objeções, visivelmente enfraquecida por toda aquela
situação que nos rodeava. Delegado Moura avisou, com a voz
grave, que o meu tempo tinha acabado e eu precisava deixar a cela.
Fiz isso, mas não antes de dar um último abraço bastante apertado
em Luísa e plantar um beijo no topo de sua cabeça. Mesmo sem
querer, eu a deixei aos prantos, sentindo o meu coração bater
rápido em plena angústia.
— Concordo com ela, o senhor deve ir embora daqui, agora
— o delegado comentou enquanto voltávamos pelo mesmo
corredor.
— Retornarei ao fim da última missa do dia.
Ele suspirou, hesitante.
— Já que vai voltar, ao menos disfarce a preocupação com
uma fiel comum. Traga roupas limpas e produtos de higiene, ela vai
precisar.
Eu deveria ter pensado no bem-estar de Luísa antes de
qualquer coisa, por isso me indignei com meu próprio descaso.
Claro que precisaria de roupas, inclusive, ainda estava usando as
de Sofia, que claramente não a deixavam confortável. Pretendia
retornar mais preparado. Luísa precisava de um bom advogado, e
não era difícil, para mim, pedir um favor a alguém da cidade. Muitas
vezes rogava por auxílio de profissionais que se voluntariavam para
ajudar as pessoas que precisavam.
Delegado Moura me acompanhou até a recepção, mas
paralisei ao me deparar com ninguém menos que o Luís, o irritante
vizinho mexeriqueiro. Os olhos dele se abriram em espanto, iguais
aos meus, depois se afunilaram em descrença. A minha expressão
se fechou no mesmo instante, e então não consegui me manter
calmo. Cheguei ao limite.
— O que está fazendo aqui? — perguntei, arrogante, focado
naquele homem. A delegacia pareceu ter sido tragada ao meu redor.
Luís arquejou num resmungo, dando de ombros e colocando
as mãos nos bolsos.
— Atualmente trabalho na administração da empresa da
minha família — ele disse, impassível, encarando o delegado ao
meu lado. — Mas sou advogado por formação. Não atuante, porém
devidamente credenciado. — Voltou a olhar para mim. A expressão
exalava uma frieza que muito me desagradava. — Enquanto o
senhor vem rezar por ela, padre, eu venho tirá-la daqui. —
Praticamente cuspiu as palavras. — Quem o senhor acha que é
mais útil?
Prendi os punhos com tanta força que doeu, e impulsionei
para frente, pronto para perder todas as estribeiras. Teria acabado
com a raça daquele homem dentro da delegacia se o delegado
Moura não tivesse segurado meu braço e se colocado na minha
frente.
— Então o senhor é o advogado de Maria Luísa Cortês? — A
voz saiu dura, imponente, deixando claro que tomaria as rédeas da
situação, e que eu não deveria me meter em briga dentro da
delegacia. Seria muita burrice, embora não fosse má ideia ficar com
ela dentro da cela.
Continuei encarando o Luís e, Deus que me perdoasse, não
conseguia nutrir nada bom com relação a ele. Não havia piedade,
compaixão, amor ao próximo... Nada do que um padre deveria
sentir. Em vez disso, a raiva me dominava, a revolta, o ciúme.
Sentia um gosto amargo dentro da minha boca, por isso engoli em
seco.
— Se ela assim desejar — o vizinho respondeu, implacável.
— Ela não deseja — resmunguei, nutrindo mais ira a cada
segundo. Entrar novamente em contato com aquele pecado capital
me desestabilizava. Eu não me reconhecia e, ao mesmo tempo, não
podia agir diferente. Não conseguia.
Luís guiou o olhar pelo meu rosto, avaliando-me.
— Agora o senhor fala por ela? — Bufou, exalando
descontentamento. — Achei que falasse apenas por Deus. — E
virou-se para o delegado: — Já acionei o juiz de plantão e estou
com a papelada pronta. Se Luísa desejar, sequer precisará dormir
numa cela essa noite. Mas pelo visto tem gente que quer que ela
fique presa.
Luís voltou a me encarar e eu soltei um rosnado gutural,
advindo das profundezas do meu ser. Novamente, quase avancei,
mas o delegado interveio.
— Certo, vamos resolver isso o quanto antes. — Virou-se
para mim. — Padre, creio que o senhor tem compromissos na
igreja. — Ele acenou de leve, fazendo-me compreender que ficaria
de olho naquela situação esquisita.
Delegado Moura estava visivelmente encafifado com a
presença do vizinho ali, mas eu ainda não sabia se podia confiar
totalmente. Para mim, Luís era um fortesuspeito e tinha denunciado
Luísa depois de ele próprio ter enterrado a arma do crime. Como era
possível que aparecesse para salvá-la? Estava fazendo de
propósito, para ser o salvador da pátria? Eu não duvidava nem um
pouco, porém, era necessidade sair dali. Não era de minha alçada
prender aquele homem, nem mesmo conseguir provas.
O que eu podia fazer?
Sentir-me inútil, incapaz de ajudar Luísa e ainda deixá-la nas
mãos daquele homem me revoltava muito. Não ter qualquer escolha
também me destruía por dentro. Eu tinha certeza, mais do que
nunca, de que não era capaz de realizar nenhuma celebração.
Considerava aqueles sentimentos de amargura, de ódio e raiva
muito piores que qualquer ato de luxúria. Porém, continuava sem
alternativa. A força dos acontecimentos me levava como uma
pequena folha flutuando na superfície de um rio.
Relanceei o delegado e, em seguida, o Luís. Com a
expressão fechada, saí da delegacia sem acreditar no rumo que a
minha vida tomou. Voltei para a igreja andando e acalmei as irmãs
quanto a minha saída. As atividades prosseguiam e eu precisava
me preparar de uma forma ou de outra. Não ver Toninho por perto
foi mais um fator que me deixou imerso numa onda cruel de aflição.
Tranquei-me na sacristia e peguei meu celular, desesperado,
a fim de ligar para os meus pais. Eu não tinha nada em meu nome
além de uma reserva pequena de dinheiro, um valor proporcional e
permitido pela igreja, o que não dava para muita coisa.
Se aquele imbecil conseguiria a fiança, então eu estaria
preparado para pagar e ser útil na vida de Luísa. Ser mais do que
uma pessoa que até então lhe oferecera apenas sexo.
Minha mãe atendeu no segundo toque, contente pela minha
ligação.
— A senhora vai achar estranho, mas... — Suspirei. —
Preciso que venda a minha casa. — Na semana retrasada ela tinha
arranjado um comprador para o imóvel, eu que neguei o trâmite por
puro apego às memórias de Sofia. Meus pais não sabiam que eu
ainda o usava, mas compreendiam que a existência dele me fazia
sofrer muito. Não viam sentido em mantê-lo. — Imediatamente.
Claro que a residência valia muito mais do que a fiança. Só
que eu tinha direção certa para o que restasse: usaria para retomar
a minha vida de verdade, fora da igreja. Afinal, o que tinha a
oferecer a Luísa? Ela precisava de mais do que momentos de
desejo. Mais até do que qualquer sentimento que eu pudesse nutrir,
e que ainda não sabia nomear. Tornar-me um homem em sua
completude era fundamental para merecê-la um dia.
PARTE 20
Advogado do diabo

Maria Luísa

Eu estava no meio de uma crise de choro quando ouvi ruídos


perto da cela. Reconheci algumas vozes e me coloquei em alerta,
ansiosa pela possibilidade de ver o Benício mais uma vez. Sua
presença foi um alívio imediato ao meu espírito. Abraçá-lo me trouxe
calma, uma energia incrível e até certa fé de que tudo daria certo,
mas quando se foi, meu mundo voltou a ruir e me encontrei perdida
de novo, num labirinto.
Levantei-me e andei até as grades, a fimde conferirquem se
aproximava. Simplesmente congelei ao visualizar o Luís caminhado
lado a lado com o delegado Moura, falando baixo coisas que não
consegui ouvir, mas que tinha certeza de que não podiam ser boas.
Além de ser amiguinho do prefeito, o delegado estava
mancomunado com o meu vizinho? Fiquei espantada, mas não
surpresa e, sobretudo, ciente de que eu tinha me fodido de vez.
Jamais sairia dali.
Delegado Moura chacoalhou a chave da cela na minha
direção, abrindo um sorrisinho que me deu vontade de esganá-lo.
— Boas notícias, seu advogado chegou.
O choque foiampliado consideravelmente. Como assim, meu
advogado?
Olhei para o lado e percebi meu vizinho com um sorriso
aberto. Fiquei confusapor longos instantes, até rememorar algumas
conversas que tivemos no passado. Sim, Luís era formado em
Direito, só não exercia a profissão porque tomava conta de uma
antiga fábrica pertencente ao seu pai. Ele tinha esperanças de
herdar a empresa.
— Você... — murmurei, atônita, dando vários passos para
trás. O delegado abriu a cela, mas nem assim fui capaz de sair. Eu
não sabia o que pensar, as informações se enroscavam na minha
mente. — Eu... N-Não. Não quero esse homem perto de mim.
Olhei para o delegado Moura, que estava tão sério como
nunca.
— Luísa... — Meu vizinho maluco começou, porém o
delegado o interrompeu.
— Só vou conseguir outro amanhã — resmungou,
impaciente, com a expressão bastante afetada. Não ver resquício de
malícia ou deboche em seu semblante me deixava confusa demais.
— Quer dormir aqui?
— Prefiro. — Ergui o nariz, mantendo um orgulho fora de
hora. Contudo, não me via sendo defendida por alguém
completamente suspeito.
— Posso falar com ela a sós, delegado? — Luís questionou,
amansando o semblante como se sentisse pena de mim. Como se
eu fosse uma coitadinha. Bom, eu era, porém nunca mais seria
burra a ponto de confiar nele.
— Só se ela quiser.
— Não quero.
— Luísa... Prometo não te importunar após essa conversa.
Ao fim dela, se não quiser que eu seja seu advogado, irei entender.
— Luís deu um passo para frente, olhando-me no fundo dos olhos,
com uma firmeza de impressionar. — Só me dê uma chance de te
ajudar. Você não tem motivo para ficar aqui por mais tempo.
Prendi os lábios e olhei para o delegado. Ele estava na minha
frente e de costas para Luís, por isso estranhei quando fez um leve
aceno com a cabeça, como se dissesse para que eu escutasse o
vizinho, para que não objetasse. Seu comportamento estava muito
esquisito, tanto que me vi aceitando aquela merda. Eu não tinha
para onde ir ou o que fazer, portanto ouvir a ladainha de Luís ao
menos me ajudaria a passar o tempo.
— Tudo bem, mas não crie esperança alguma.
— Vou colocar os dois numa sala privativa. — Delegado
Moura puxou minhas mãos e voltou a me algemar. Olhou para mim
atentamente, como se tentasse ler meus pensamentos, depois se
virou e nos guiou para a tal sala.
Era um espaço pequeno, feito para interrogatórios, ao menos
foi o que supus. Havia apenas uma mesa metálica no centro e duas
cadeiras, frente a frente. Fui colocada sentada em uma delas e Luís
ocupou a outra.
— Aguardarei lá fora— delegado Moura informoue saiu sem
olhar para trás, visivelmente irritado com algo que eu desconhecia.
Pulei de susto quando a porta se fechou com certo impacto.
Parecia um animal amedrontado, à mercê de caçadores
implacáveis. Fiquei olhando para o lado por muito tempo, evitando
encarar o homem por quem já nutri respeito, mas que naquele
instante não passava de ódio e muito, muito medo. Após anos de
amizade, sentia que não o conhecia de forma alguma.
— Vou ser muito claro, Luísa — ele começou, sério, e
continuei com o olhar virado para o outro lado. Depositei as mãos
algemadas sobre a mesa e suspirei, cansada de toda aquela merda.
— Sua situação não é boa. Consigo te tirar daqui usando o habeas
corpus, para que responda por esse crime em liberdade, mas o juiz
não vai aceitar isso sem um preço. Haverá uma fiança cara a ser
paga.
Meu coração apertou tanto que ofeguei, buscando um ar que
faltava ao meu redor.
— Você sabe que não tenho dinheiro — afirmei de um jeito
duro, ainda sem o encarar. Luís tinha me emprestado um cartão de
crédito que não tive coragem de usar até o momento, e agradecia
por isso. Não ter qualquer vínculo com ele era um alívio enorme.
A decisão de não montar meu negócio com a ajuda do
vizinho veio do tanto de fofoca que corria pela cidade. Eu conhecia a
maldade daquelas pessoas, dificilmentefrequentariammeu salão de
unhas enquanto meu nome rolasse na boca do povo. Eram um
bando de hipócritas e rejeitavam os outros sem nenhuma piedade.
— É claro que sei. — Luís abriu um sorriso leve. — Por isso
que vou pagar.
Olhei para ele de imediato, sem acreditar naquilo. A confusão
se intensificou ainda mais. Eu já não sabia o que pensar a respeito
do Luís. Estava disposto a me ajudar novamente? Por quê? Para
quê? O vizinho sabia que era mais fácil um elefante passar pela
cabeça de uma agulha do que nos relacionarmos amorosamente, do
jeito que ele tanto queria. O pensamento me fez, enfim, perceber
suas intenções.
— E o que você quer em troca? Presumo que não está se
esforçando tanto a troco de nada. Não sou estúpida para acreditar
nisso.
Ele ofegou, encostando-se na cadeira, com o olhar vidrado
sobre mim. Desviei o rosto novamente, porque me senti muito
incomodada. Não podia confiar em sua repentina benevolência, não
depois da discussão que tivemos na frente da casa do prefeito.
Havia alguma coisa muito errada em Luís. O fatode ter me roubado
uma calcinha e ficado à minha espreita não me deixava negar.
— É claro que você é estúpida, Luísa. Está dormindo com um
padre. Existe maior estupidez que essa?
Encarei-o novamente, estupefata com tanta rudeza,
percebendo seu semblante começando a mudar. Luís ficou corado
de raiva. Não conseguia mais controlar, esconder a realidade numa
máscara gentil e prestativa. Diante de mim, sua crueldade se
revelava. Eu já podia prever suas próximas palavras, e sabia que
não gostaria delas.
— Eu te ofereci minha amizade durante anos, tive a maior
paciência do mundo, te ajudei a suportar o desprezo do Samuel, te
fiz companhia, te fiz rir... — resmungava cada sílaba, que vinha
carregada de muito ódio. — E foi assim que você me tratou, depois
que, finalmente, se livrou dele. Correu para os braços de um padre.
— Eu não me livrei dele — murmurei, mantendo o olhar fixo
naquele ser odioso. — Sejamos realistas, você que se livrou do
Samuel para ficar comigo e se deu mal.
Luís soltou uma risada afetada, fingindo surpresa.
— Não fiz nada. Então é isso o que pensa de mim?
— Conta outra! — Bufei, irritada e com os olhos marejando.
Aquela conversa estava terminando de me destruir. Eu não
aguentava lidar com aquele homem, precisava me esforçar muito
para permanecer ali.
— Meu amor, todas as provas estão contra você. — Tentou
segurar minhas mãos sobre o tampo, porém recuei depressa,
colocando-as embaixo da mesa. — Mas eu entendo... Vi o quanto
Samuel te machucou. Sinceramente, achei bem feito. Só que a lei
não tem a mesma opinião, ela vai te buscar e será implacável. Você
será condenada, Luísa. Ainda que saia daqui hoje, uma hora eles
vão te pegar.
As lágrimas escorreram sem dó. Não dava para conceber o
nível de cinismo daquele homem. Não era possível que existisse
alguém tão cruel e maldoso. Estava fingindo não saber de nada e
ainda jogando tudo contra mim? Era demais para que alguém tão
destroçada suportasse.
— Pare. Não matei o Samuel, nós sabemos que foi você.
Pare com essa merda.
Ele prendeu os punhos, aproximando o rosto. Fechei os olhos
com força, derrubando mais lágrimas, porém fui incapaz de conferir
aquela cara cínica.
— Entendo que esteja em negação, meu amor. É tudo muito
cruel, frio... E você é doce, meiga... linda. — Suas palavras me
causaram nojo e ainda mais medo. Sufoquei um soluço. —
Infelizmente, você deixou muitas pontas soltas. Há mais provas
contra você, e que reuni para te proteger, antes que esse delegado
imbecil as encontrasse.
Não consegui conter um soluço profundo, muito dolorido.
Morta de raiva, finalmente o encarei. Ele continuava com o olhar
vidrado, transformado.
— Provas que você calculou e implantou — rosnei. —
Pensou em tudo para o caso desse momento chegar.
Ele balançou a cabeça em negativa e estalou a língua.
— Ele pode as encontrar a qualquer instante, Luísa, depende
de você. E então, de fato, nada mais poderá ser feito. Vai passar a
vida toda presa.
— O que você quer? — questionei num tom mais elevado,
apavorada, começando a perder todo o controle. — Fale logo,
cacete.
— Calma, amor.
— PARE DE ME CHAMAR ASSIM, PORRA! FALA LOGO O
QUE CARALHO VOCÊ QUER! — Levantei da cadeira, pronta para
me atirar contra ele, porém fui paralisada com sua atitude.
Luís tirou o celular do bolso e o colocou sobre a mesa. A tela
já estava aberta num vídeo bastante sugestivo. Padre Benício e eu
nos beijando na minha sala, na noite do spray de pimenta. Na
verdade, havia quase toda a cena erótica com ele, do princípio ao
fim, e então me dei conta de que o vizinho era mais doente do que
imaginei. Ele tinha implantado uma câmera escondida na minha
residência.
Encarei a tela quase tendo um infarto,de tanto que o coração
estava acelerado.
Por fim, Luís recolheu o aparelho, guardando-o de volta no
bolso.
— Não é de meu interesse que seja presa, meu amor. Não é
o que quero para você. — Ele se endireitou na cadeira e me olhou
com a cara lisa, cheia de cinismo e uma seriedade doentia. Perdi
toda a capacidade de respirar. Mantive-me de pé por um tempo, até
finalmente as pernas bambearem e precisar me sentar de novo. —
Posso fazer com que tudo pareça articulado por esse sujeito que se
diz padre. Além de espalhar esse vídeo pela cidade, obviamente, e
então as consequências podem ser várias. Seja criativa e imagine
só. Linchamento público, excomungação, enfim.
O meu pranto iniciou sem que pudesse contê-lo. Já sabia que
em algum momento Luís mencionaria o Benício, mas conseguiu ser
ainda pior do que na minha mente. Ele claramente estava nos
ameaçando, e de uma forma grotesca, imunda.
— O que você quer? — sussurrei a pergunta, sufocada,
quase me debatendo de tanto desespero. Tudo doía tanto que eu
tinha a certeza de que desmaiaria a qualquer instante.
Aquele homem podia foder com a minha vida, mas eu jamais
permitiria que machucasse o Benício. Nunca. E ele sabia disso. Veio
preparado para me coagir até o limite, usando todas as armas que
possuía.
— Veja como é simples... — Luís voltou a aproximar o rosto,
falando em um tom mais baixo, quase como se fosse uma conversa
simples, corriqueira. — Termine tudo com esse padre pervertido. Dê
um basta em tanto sacrilégio. — Prendi as mãos com força, uma
contra a outra, e senti as algemas me ferindo de verdade. A dor
física, ainda assim, não se sobressaiu à que apertava o meu peito.
— Pelo bem dos dois. Eu vou te tirar daqui, sumir com todas as
provas e te levar para bem longe. Vamos recomeçar, Luísa. Não te
sobrou nada em Paraíso além de sofrimento.
— E acha que alguma coisa vai me aguardar ao fugir
contigo? — choraminguei, descontrolada. — Passar a vida sendo
ameaçada, ao lado de um doido psicopata? Prefiro a morte. Pode
sumir comigo, como fez com o Samuel.
Ele sorriu de leve, o que me deu ainda mais ranço.
— Nunca te obrigarei a nada e menos ainda te machucarei.
Eu te amo muito, Luísa, jamais vou te forçar a me querer. Já falei
que sou bastante paciente. — Fiz uma careta de nojo completo. Ele
só podia ter pirado de vez, se achava que algum dia me
conquistaria. — Apenas quero te tirar daqui e te afastar desse
homem que fez a sua cabeça, uma lavagem cerebral. Ele é do mal,
do diabo, não de Deus.
— Cala a boca.
Luís fechou a expressão e se levantou.
— Você decide. Ou aceita os termos de bom grado, ou juro
pelo que é mais sagrado que esse padre vai penar no mármore do
inferno. E, infelizmente, minha querida, você vai junto com ele, se
continuar assim.
Aquele odioso andou até a porta e a abriu antes que eu
pudesse me recuperar. Estava tão chocada que me mantive inerte,
aérea, implorando para sumir do mundo sem ser obrigada a lidar
com um homem feito aquele. Era perigoso e, infelizmente, sabia
demais. Eu não duvidava de sua capacidade de ferrar com Benício.
E não me restava mais nada além de evitar isso, ainda que eu
precisasse sofrer todas as consequências.
Delegado Moura entrou na sala em seguida. Parou por
alguns instantes e ficou me olhando. Já não tinha mais lágrimas,
haviam secado diante de tanta maldade. Não o olhei, não fui capaz
de encarar ninguém, apenas me mantive quieta, muda.
— E então? — o delegado perguntou com a voz grave, como
se soubesse que aquele momento seria crucial. — Posso dar
andamento ao processo?
Continuei imóvel. Imaginei toda a qualidade de péssimas
consequências que poderiam recair sobre Benício, a fim de reunir
forças para me levantar. Só assim consegui. Pensar nele me deu
energia para seguir até o fim, para cavar o fundo do poço e me
enfiar mais naquele inferno, sem qualquer esperança de retorno.
De qualquer jeito, sabia que teria que dar um basta, cedo ou
tarde. Não existia futuro entre mim e Benício. Eu estava ciente,
ainda que não suportasse lidar com a ideia, de que não deveria tirá-
lo de um caminho de fé para se unir ao meu sofrimento.
Ergui o rosto na direção do delegado e, com a cabeça
erguida, afirmei:
— Sim, pode dar andamento.
Delegado Moura assentiu com seriedade e se retirou da
pequena sala. Acenou para que um policial me levasse e se
direcionou ao Luís. Olhou-o com a mesma atenção que utilizou para
analisar meu rosto.
— O senhor não vai interrogá-la? Estou aqui para isso —
aquele verme perguntou, colocando as mãos nos bolsos como se
fosse um advogado comum, preocupado com a cliente. Eu sentia
tanto nojo do meu vizinho que mal podia respirar.
Não sabia o que me aguardaria ao fugir com ele, mas daria
um jeito de nunca mais olhar para aquela cara cínica de novo. Nem
que eu precisasse acabar com minha própria vida – que já não
estava valendo merda nenhuma mesmo.
— Hoje, não. É meu dia de folga.— Delegado Moura virou as
costas para Luís e se colocou na minha frente. — Quando sua
liberação chegar, daqui a algumas horas, não saia da cidade.
E sumiu das minhas vistas, atravessando o corredor com
passos pesados, enquanto o policial me levava praticamente
arrastada de volta para a cela.
PARTE 21
Dor, pecado e sofrimento

Padre Benício

Eu não via a hora de me livrar daquelas pessoas. O pátio da


igreja demorou demais a ser evacuado, pois os fiéis gostavam de
conversar aos arredores depois da missa, mesmo sendo a última do
dia e estando tarde. O assunto que rondava era apenas um: a
prisão de Maria Luísa. Alguns diziam que já sabiam que ela era a
assassina, outros se mostravam surpresos, pois acreditavam na sua
inocência. De uma forma ou de outra, fui obrigado a ouvir cada
palavra e sentir a pressa me dominar.
Precisava estar com ela, não ali. Os meus pais já estavam
cientes a respeito da venda do imóvel, porém só conseguiriam
avançar o trâmite legalmente na segunda-feira. Soube que o
possível comprador aceitou a proposta no mesmo instante, pois
ainda se mantinha interessado no terreno que me pertencia. Se
Deus permitisse, logo conseguiria dinheiro para refazera minha vida
e ajudar Luísa.
Encontrei forças não sabia de onde para realizar cada uma
das tarefas e celebrações, sentindo que Deus me abandonava a
cada segundo. Encontrava-me perdido, desesperado e aflito,
temendo que o Luís fizesse alguma coisa com Luísa antes que eu
retornasse à delegacia. Não tive paz e nem tempo de juntar as
coisas para levar para ela; precisei me virar com roupas e itens
doados para a igreja, colocando-os em algumas sacolas e rezando
para que ajudasse, para que fosse o suficiente.
Quando todos os funcionários se foram e precisei fechar a
paróquia – sozinho, porque infelizmente Toninho não retornou –,
visualizei uma única pessoa se aproximando, caminhando
lentamente pelo pátio na direção da entrada da igreja. Semicerrei os
olhos, tentando identificar quem era, pois eu havia desligado os
refletores. Só consegui enxergar Maria Luísa quando ela já estava
quase na minha frente.
Sua presença me deixou aliviado, contente, porque
significavaque tinha dado certo. Aquele homem a havia libertado da
prisão e ela, apesar de ter que responder em liberdade, não
precisaria mais permanecer naquele lugar. Eu a protegeria até o fim,
ajudaria a encontrar o assassino, daria todo o suporte e a tomaria
para mim pelo resto dos meus dias. Tudo ficaria bem, afinal.
Emocionado e trêmulo, esperei que se aproximasse mais e,
só então, puxei seu braço e a coloquei dentro da igreja. Fechei a
porta grande, de madeira pesada, logo em seguida, dando-nos certa
privacidade. Não hesitei em puxá-la para os meus braços,
envolvendo-os ao seu redor com alegria, espanto e êxtase. Uma
exasperação que me fez derrubar algumas lágrimas e implorar a
Deus para que a protegesse nos momentos em que eu não fosse
capaz.
— Graças a Deus — murmurei, tentando conter a emoção.
Maria Luísa apertou os braços ao meu redor com muita força,
afundando o rosto no meu peito. — Eu já estava indo para a
delegacia. — Afastei-a apenas para conferir seu rosto. Contudo, o
que vi me deixou imediatamente em alerta. A mulher estava com os
olhos muito vermelhos e a expressão tão dolorida que me comoveu
de verdade. Ela não se sentia bem. Alguma coisa estava muito
errada. — O que aconteceu? O que aquele homem fez?
Meu resmungo ecoou pela igreja, e meu desespero foi tanto
que me afastei em direção à saída, porém Luísa me segurou pela
mão. Eu não sabia que faria, não ainda, só tinha certeza de que
encontraria o Luís e ele pagaria pelo que quer que tivesse feito à
Luísa. Um segundo depois, achei tudo aquilo muito estranho.
Não haveria uma fiança? Como ela tinha saído tão
rapidamente, se deveria pagar uma quantia alta para ter sua
liberdade? Meus pensamentos não se encaixavam e meu
nervosismo aumentava diante de seu silêncio.
Olhei para ela, confuso e aflito. Luísa estava séria, com ar
derrotado, e me analisou por alguns segundos antes de dar as
costas e seguir pelo centro da igreja, rumo ao altar. Caminhou
vagarosamente, pé ante pé, como uma noiva que fazia o percurso
até seu noivo sob o olhar dos convidados. Fiquei imóvel,
observando sua retaguarda, impressionado com o cenário sombrio.
— Luísa... — Dei um passo para frentee parei. Ela continuou
o trajeto, decidida, e tudo me incomodava tanto que só queria sair
dali. A gente não se encaixava naquele ambiente, ao mesmo tempo,
era como se tivéssemos sido feitos para aquele instante. — O que
houve?
Segui seus passos de forma mais acelerada, porém só a
alcancei quando já estava perante o altar. A mulher paralisou e ficou
olhando a grande imagem de Jesus Cristo, rodeada de adornos
dourados. Era um belo altar, sempre achei. Trazia uma tranquilidade
que, naquele momento, não consegui sentir.
Eu olhava seu perfil fixamente, sem entender aquela atitude,
esperando por alguma resposta, qualquer que fosse. Luísa, por
outro lado, manteve o foco na imagem e lá ficou, paralisada,
parecendo sofrer num nível inimaginável. Aquilo me espantou. Tive
vontade de puxá-la para mim novamente, porém o assombro me
deixou tão petrificado quanto ela. Até parei de respirar, para não
fazer nada errado e de repente colocar tudo a perder. Eu não sabia
o que se passava na mente dela.
— Farei isso aqui, diante Dele — murmurou, olhando para a
escultura realista, muito benfeita.
— Do que está falando? — questionei baixo, erguendo uma
mão para colocar uma mexa de seu cabelo para trás da orelha.
Luísa fechou os olhos por um tempo, sob o meu pequeno toque,
depois os reabriu e continuou focada em Jesus Cristo. Ela estava
me enervando num nível absurdo. — O que está acontecendo,
Luísa? Como saiu tão depressa da delegacia? Achei que demoraria
mais.
— Luís pagou uma fiança. — Sua resposta saiu apática, sem
qualquer emoção.
Tive vontade de soltar um palavrão medronho, mas me
contive por puro respeito ao local onde estávamos. Fiz o possível
para não ser tragado pela raiva, para deixar o ciúme de lado, mas
se tornou tarefa difícil.
Eu me virei e olhei para a mesma imagem, ficando do lado
daquela mulher. Senti que também precisava de uma luz, de um
alívio, de qualquer coisa que arrancasse aquele ódio de dentro de
mim. Só Deus para aliviar tanta tensão circulando pelo meu corpo.
— Padre Benício, preste bem atenção — Luísa começou, e
ter me chamado daquele jeito me fez segurar os punhos com força.
Não era possível que me trataria daquela forma. Tudo bem que
estávamos na igreja, diante de Jesus, e que eu ainda vestia a
batina, mas o padre havia desaparecido de dentro de mim e ela
sabia disso.
— Não me chame assim. Não façaisso, Luísa. Você, mais do
que ninguém, sabe quem está aqui contigo agora.
Num impulso, removi os botões daquelas vestes sagradas. A
mulher apenas esperou, sem ousar me ver, mas deixou uma lágrima
cair enquanto aguardava. Eu estava usando uma camisa branca e
uma calça jeans por baixo das vestes, por isso me livrei da batina
sem pudor, deixando-a sobre a mesa de mármore que compunha o
altar à nossa frente. Luísa precisava ter clareza de quem eu era
naquele momento, sem confusões.
— Vou confessardiante do senhor e diante Dele. Confessarei
meus pecados — ela prosseguiu, sem se abalar, ignorando todo o
meu desespero. — Mas não busco perdão. Não vou me ajoelhar e
rezar por redenção, porque não mereço.
— Luísa... — Estava pronto para tocá-la, porém a mulher deu
mais um passo para frente, afastando-se de mim.
— Eu o matei, padre. Matei o meu marido. — Vi quando mais
lágrimas escorreram pelas suas bochechas. Luísa desviou o rosto
da imagem e analisou o chão extremamente encerado e limpo. —
Sou culpada. Chegará o dia em que pagarei pelo que fiz, e tudo
bem. É um crime grave e um pecado fatal.
Não consegui demonstrar qualquer reação. Sequer acreditei
naquelas palavras. Continuei congelado, imóvel, e até minha
circulação pareceu ter pausado. Não elaborei nenhum pensamento,
nem fiz absolutamente nada além de acompanhar a expressão
destroçada da mulher que dizia ter cometido uma atrocidade.
Dezessete facadas, pelo que soube.
Enfim, Luísa ergueu o olhar na minha direção. Havia tanto
sofrimento enraizado que, imediatamente, mais lágrimas me
acometeram. Pisquei os olhos na tentativa de me conter, porém foi
impossível. Eu tinha realmente acreditado nela, na sua inocência,
ainda que a princípio tivesse desconfiado.
Como era possível que...? Como? Não podia ser verdade.
— O senhor já disse uma vez, nesta mesma igreja, e
reafirmo: não há futuro para nós dois que seja diferente da tragédia.
Ela segurou os lábios, mas ainda assim não conteve o
tremor. Parecia que a face doce e perfeita daquela mulher tremia,
abalada. Os olhos se mantiveram fixos, sequer piscavam, mas as
lágrimas escorriam de toda forma, sem impedimentos.
Eu estava desmoronando ali, na frente dela, e sequer
consegui demonstrar o pavor. Continuei de pé, firme, ainda que em
lágrimas. Apenas depois de um minuto completo foi que balancei a
cabeça em negativa, lentamente. Soltei um ofego ruidoso.
— Eu entendo — sussurrei, sem acreditar em mim mesmo.
No tamanho daquela sinceridade. — Entendo que precisou fazer
isso. Samuel foi mal com você, te machucou.
— Não. O senhor não vai relativizar esse crime.
— Luísa... — Novamente, tentei me aproximar, porém ela se
afastou, não permitiu o meu toque. — Não quero saber. Se é crime
ou pecado, não ligo. Quem sou eu para atirar a primeira pedra?
Você rompeu com o quinto mandamento e eu, com o sexto. Que
diferençafazagora? Confioem você, confiona sua bondade. Se fez
isso, foi porque não aguentava mais a situação, chegou a um limite
insuportável.
— Pare. Por favor, pare. — Ela parecia sofrer tanto que mal
conseguia falar. Prendeu os lábios com força e se virou, evitando-
me, afastando-se mais até quase alcançar a imagem. Olhou para
cima por longos instantes. — O fato é que... — Parou, clareando a
garganta. A voz quase não tinha saído. — Sairei de cena. Vou
embora e serei dada como fugitiva. Uma hora vão me encontrar...
Ou não.
— Então eu vou com você.
— Não! — praticamente gritou, e foi tão alto que reverberou
pela igreja, fazendo um eco que me desnorteou. Luísa amenizou o
tom duro, frio, e prosseguiu: — Não, padre Benício. O senhor ficará
aqui, atendendo aos fiés, sendo bom e gentil, cumprindo suas
promessas e votos, do mesmo jeito que faziaantes de me conhecer.
Chacoalhei a cabeça com tanta força, negando aqueles
absurdos, que me senti tonto. Eu não estava acreditando no rumo
daquela conversa. Era irreal demais para que acreditasse. Parecia
que eu vivenciava um pesadelo terrível, que me trazia a completa
desestabilização. Não havia uma parte do meu corpo que não
estivesse tremendo.
— Eu digo que não.
Luísa me encarou de novo, espantada, e paralisou ao conferir
a certeza no meu olhar sobre ela. Eu me aproximei devagar,
sentindo o ar sendo tragado ao nosso redor a cada passo. Coloquei-
me na sua frente, sem desviar aquela conexão tão nossa, e que
funcionava com a mesma força de antes. Nada tinha mudado entre
nós. Eu sabia. Eu sentia. Nada do que Luísa dissesse me tiraria a
certeza que inundava o meu peito.
— Nada será como antes de te conhecer — afirmei,convicto,
chegando tão perto que nossos corpos quase se encostavam. —
Nunca mais.
Um ímpeto muito mais forte do que eu invadiu cada um dos
meus sentidos e a puxei para mim de uma só vez. Preferia morrer a
passar mais um segundo longe dela. Juntei nossas bocas com
desenvoltura, num beijo cru e proibido, como sempre fomos até
aquele momento. Eu daria um jeito de corrigir cada um de nossos
erros, mas não seria naquela noite. Não... Naquele instante,
continuaríamos pecadores, mas intensos e verdadeiros, porque
éramos assim.
Depositei-a sobre a mesa de mármore, sem me importar com
o mundo a nossa volta, cego na totalidade, com o discernimento
afetado e um sentimento profundo reverberando no meu peito. Luísa
se deixou beijar, permitiu que eu a tocasse em suas carnes com
selvageria e posse. Fiquei inebriado com seu cheiro, enroscando os
dedos em seus cabelos e tornando o beijo mais veloz.
Estava pronto para ser dela de novo, sobre aquele altar
sagrado – ciente de que poderia ser qualquer canto do mundo,
porque o que importava não era o lugar, mas a pessoa –, porém
Luísa se afastou com calma, libertando meus lábios sem
consentimento de minha parte. Encarou-me em lágrimas, segurando
meu rosto com ambas as mãos.
— Não... — murmurou, apenas. — Não posso mais.
Algo se quebrou dentro de mim, e eu tive certeza de que era
uma peça irreparável.
— Não me deixe — implorei, suplicando de verdade. Todas
as minhas forças já haviam se esgotado. — Eu te amo, Luísa. —
Segurei seus cabelos e juntei nossas testas. — Um amor improvável
e que me arrebatou de uma hora para outra, mas, ainda assim, um
amor puro no meio do caos. — Ouvi seu soluço e me afastei para a
encarar. A mulher chorava copiosamente, em plena angústia. — Já
falei que vou contigo para o inferno.
— Ben... — arquejou, desesperada.
— Não me deixe.
Mas Luísa me empurrou com certa força, soltando um grito
apavorado, e desceu do altar rapidamente. Nós nos encaramos em
plena agonia.
— Isso nunca foi amor, não de minha parte — murmurou,
voltando a encarar Jesus Cristo. Arquejei, incrédulo do que ela
estava dizendo. — Foi só sexo. Um erro. Preciso reparar isso antes
de ir, por isso estou aqui, padre. Não se iluda. Continue no seu
caminho e me perdoe por ter te desvirtuado. — Enfim,olhou-me, e a
expressão estava tão dura e fria como nunca antes. — Fique em
paz. Fique com Deus. — Deu vários passos para trás, com os olhos
sobre mim. Eu já não sabia mais o que sentir diante de tudo aquilo.
— Ele vai te proteger e te guiar. Ele que te ama de verdade. —
Prendeu os lábios e assentiu na direção da imagem, como se
tivesse concluído uma oração. — Deus vai te trazer conforto e paz,
não eu. Só trago dor, pecado e sofrimento.
— Não é verdade. Isso não é verdade, Luísa...
— Adeus, padre Benício.
Ela virou as costas e saiu em disparada até a porta da igreja.
Abriu e a fechou num gesto barulhento, fazendo-mepular de susto e
de desespero. Passei um minuto completo olhando para a igreja
vazia, silenciosa, com todos os bancos de madeira desocupados.
Nunca aquele ambiente trouxe tanta aflição.Nem mesmo me virar e
contemplar a imagem de Cristo me trouxe tranquilidade.
Pelo contrário.
Eu me ajoelhei, sentindo que tinha sido aniquilado de uma só
vez. Deixei meu corpo pender para frente e iniciei um pranto
incontido, ruidoso, enquanto o coração sangrava livremente. Não
dava para acreditar que eu não tinha significado absolutamente
nada para Luísa. Que tudo que sabia sobre ela era disfarce,
mentira, falsidade.
Como pude me enganar tanto?
Meu choro ecoou pela igreja e a sensação que tive foi a de
que estava sozinho no purgatório, desamparado e com o coração
rasgado ao meio. Não havia Maria Luísa, nem Sofia, nem Deus,
ninguém. Só uma alma perdida e vazia imersa na escuridão.
PARTE 23
No coração da igreja matriz

Maria Luísa

Era a terceira vez que eu saía correndo da igreja naquela


semana, e saber que seria a última me enchia de uma tristeza tão
grande que chegava a ser palpável. A dor me corroía, acabava
comigo, de maneira que eu tinha certeza absoluta de que fazia a
coisa mais difícil da minha vida. Mentir para Benício não foi algo
despropositado, ainda assim, senti-me uma estúpida, uma pessoa
asquerosa e dissimulada.
Não esperava receber uma declaração como aquela. Achava
que aquele homem maravilhoso fosse compreender e se afastar
assim que eu confessasse um pecado que não cometi, mas meu
intento não teve êxito. Ele me perdoou. Mesmo sofrendo, buscou
uma compreensão para continuar comigo, ao meu lado,
evidenciando um amor que eu sequer entendia, apenas sentia com
toda força do meu ser, com tudo o que tinha sobrado de mim.
Como eu o amava, meu Deus. E como o queria bem, com
toda sua bondade e gentileza, com seu sorriso lindo e voz amável,
com a fé cirúrgica, que se sobrepunha a tudo na hora certa, nos
momentos mais sombrios. Nunca que seria capaz de machucá-lo,
embora tivesse feito sem dó, agarrando-me à Cristo para ter forças
e fazer o que era certo. Ao menos, o que era justo para Benício.
Não dava para salvar nós dois, então que ele fosse deixado em sua
paz. Afinal, eu que a removi desde que surgi na sua vida.
Corri ao longo de dois quarteirões, sem conseguir enxergar
um palmo à minha frente, até me deparar com o veículo do Luís,
estacionado perto de um terreno baldio.
O local combinado.
Assim que saí da delegacia, o cínico do meu vizinho alertou
que nossa fugateria que ser depressa, antes que o delegado Moura
desconfiassee arrumasse outra formade me prender. A minha casa
ainda estava interditada, sequer consegui pegar roupas ou
pertences. Não pude fazer nada além de seguir as ordens de Luís,
tal como ele queria. Estava com tudo arquitetado. Já tinha me
comprado roupas novinhas, que couberam perfeitamente, e jogou
fora a sacola que eu trouxera comigo pela manhã, sem sequer
conferir o que havia dentro dela. Disse que eu não precisaria de
nada que fizesse parte do meu passado.
Entrei no carro dele em prantos, acomodando-me do banco
do carona. A dor era imensa, mas não me permiti esmorecer na
frente dele. Engoli o choro, enxuguei o rosto e mantive o queixo
erguido, focadonaquela rua deserta, ciente de que, não importava o
que aquele homem fizessepara me agradar, em algum momento eu
fugiria dele.
— E então, como foi a despedida? — Luís perguntou, já
dando partida no carro. Pelo que entendi, estava disposto a deixar
tudo o que possuía para trás, só para fugir comigo. Era um doido
varrido. — Aposto que o pervertido tentou te convencer a ficar.
— Cala a boca e dirige.
Luís arquejou, meio irritado com minha frieza. Precisei
apertar as unhas contra o meu braço para não o atacar naquele
momento. Se eu não era uma assassina, sentia que a qualquer
instante mudaria minha condição. Todos já me culpavam, mesmo.
Livrar-me daquele sujeito cruel não me pareceu uma má ideia de
jeito nenhum.
Benício me ama. Ele me ama, meu Deus.
Não conseguia parar de pensar naquilo. Aliás, não dava para
estacionar meus pensamentos a respeito de cada palavra trocada
na igreja. Ainda sentia seus lábios nos meus, as mãos me
agarrando sem hesitação. Aquele último beijo acabou com a minha
raça, mas eu sabia, sentia que tinha sido necessário. Ir embora sem
juntar nossos lábios de novo não era uma opção. Precisava daquele
fim como necessitava do ar que respirava, e que parecia me faltar
naquele momento.
— Você vai aprender a ser mais mansa — Luís murmurou,
muito baixo, mas escutei e um medo terrível se apossou da minha
alma. Eu estava certa de que só havia duas saídas: ou matava
aquele homem ou me matava. Os dois caminhos me eram bastante
atraentes. Talvez eu fizesse os dois, só precisava descobrir como.
— Parece que não entendeu ainda o favor que estou te fazendo,
Luísa.
— Favor? Vê se me erra — resmunguei, afundando-me no
banco. Pegamos a estrada principal, vazia àquela hora, sobretudo
por ser uma noite de domingo. — Você me fariaum enorme favorse
entrasse em combustão instantânea e desaparecesse.
Ele bufou, indignado.
— Preciso ter mais cuidado contigo. — Avançou na minha
direção, mas desviou para o porta-luvas, retirando de lá umas
algemas muito parecidas com as da delegacia. — Coloque isso.
Afinal, você já matou um homem. Não posso me esquecer.
Soltei um rosnado alto, indignado.
— Pare com isso, porra! Sabemos que foi você quem matou
o Samuel!
— PONHA ESSA MERDA, LUÍSA! — pela primeira vez, ele
gritou comigo, e foi tão alto que paralisei. Meus ouvidos doeram com
tão odioso som. Temerosa, fiz o que exigiu, circulei as algemas nos
meus próprios punhos e aguardei, olhando para baixo.
Ele não aliviaria para mim. Eu teria que ser mais esperta.
Como todo psicopata maníaco, Luís não era nenhum bobo.
Contudo, se eu fingisse amolecer, talvez abaixasse a guarda e
então eu deveria estar pronta para tudo.
— Essa sua negação está me fazendo perder a paciência,
meu amor — ele prosseguiu, em um tom mais leve, quase como se
fosse gentil. Chegamos rapidamente à rodovia e, então, Luís
apertou o pé no acelerador. A estrada estava muito escura e,
diferente de quando estive com Benício, assustava-me. Eu estava
apavorada. — Tenho um vídeo seu enterrando a arma. Vamos parar
com isso e agir conforme a realidade?
Meus olhos se abriram ao máximo e virei o rosto para encarar
seu perfil. Luís mantinha foco na pista, pois havia aumentado a
velocidade consideravelmente, assim que chegamos à estrada livre.
— Como é? Não enterrei arma alguma, Luís. Que porra de
vídeo é esse?
— Luísa, deixe disso. Vamos mudar de assunto. Quero falar
do nosso futuro. — Abriu um sorriso largo, doentio. — Tenho muitos
planos para nós.
— Eu quero ver esse vídeo. Agora.
— Você não exige nada, mocinha. — Olhou-me de relance,
num resmungo chateado. Fiquei em silêncio, abalada, mas então o
homem puxou o celular do bolso e demorou alguns instantes para
selecionar o que desejava na tela.
Virou a mão, permitindo que eu olhasse, e então conferi uma
cena impressionante. Alguém, e de fatoparecia uma mulher, porque
usava um vestido, estava no meu quintal, provavelmente enterrando
a faca da minha cozinha. Não dava para ver seu rosto, apenas
contornos, e o ângulo não era dos melhores. Não consegui
identificá-la de modo algum. Obviamente, apenas sabia que não
tinha sido eu.
— Luís... — ofeguei, relutante. — Essa mulher não sou eu.
Ele fez uma careta, olhando-me de um jeito confuso.
— Claro que é. Quem mais seria?
— Eu não sei, mas estou dizendo que não sou eu.
— Meu amor, tentei clarear a imagem e usei todos os
programas possíveis para identificaressa pessoa. Sinceramente, só
pode ser você — cuspiu as palavras, jogando o celular por sobre o
painel do carro, sem muita delicadeza. — Está no seu quintal, tem a
cor de seu cabelo, o mesmo porte físico.Você pode enganar aquele
padre capenga, mas não a mim, linda. Esqueça isso.
Fiquei em silêncio porque era óbvio que aquele idiota não
sabia de tudo. E então me coloquei em dúvida: Luís tinha mesmo
matado o Samuel? Aquela imagem doida feita no meu quintal abriu
muitas possibilidades. Uma mulher desconhecida havia enterrado a
arma do crime e, embora não soubesse quem era, podia imaginar
algumas possibilidades.
Recordei-me dos objetos encontrados, da ligação com o
prefeito, da primeira-dama e da mulher da fotografiaindecente. O
buraco era muito mais embaixo. O meu vizinho era um doido
mexeriqueiro, um maníaco psicopata, mas talvez, somente talvez,
não fosse o assassino daquele caso. Mas, então, quem poderia ser?
Recostei-me no banco e assim permaneci, porque sabia que
não adiantaria objetar, e não era burra ao ponto de contar àquele
homem todas as informações que eu tinha. Àquela altura, o
verdadeiro assassino de Samuel era irrelevante. Eu estava sendo
levada por um maluco contra a minha vontade, para um destino
desconhecido e horripilante, depois de ter perdido tudo, inclusive o
homem que havia se tornado o dono dos meus sentimentos mais
profundos.
Sentia, a cada quilômetro percorrido, que o meu fim estava
próximo.
Observei uma placa que indicava um posto de gasolina
adiante e tive uma ideia imediatamente. Precisava de tempo para
raciocinar, encontrar uma forma de me livrar de Luís. Sendo assim,
apontei para frente.
— Estou com fome. Vamos parar naquele posto para comer?
Luís resmungou, dando de ombros.
— Tenho lanche aqui. — Esgueirou-se para trás, buscando
uma sacola contendo alguns petiscos. Jogou-a sobre o meu colo de
uma forma brusca.
Dei de ombros.
— Quero ir ao banheiro — insisti. — Lá deve ter um.
— Não vamos parar até estarmos bem longe, Luísa — definiu
com a voz tomada pela frieza. — Não adianta tentar me enrolar.
A próxima ideia surgiu de canto algum, mas me fez congelar,
estremecer por dentro. Analisei o volante diante dele, imaginando o
que aconteceria se eu avançasse num ataque preciso, se
provocasse um acidente no meio da estrada. Teria que ser rápido e
eficaz, de maneira tal que não desse para remediar. Eu iria para o
inferno, mas levaria aquele imundo junto comigo.
Era apenas a questão de aguardar uma curva mais fechada
e, eu sabia, não teria jeito. Naquela velocidade, o veículo facilmente
capotaria e as consequências seriam gravíssimas. Eu estava com
tanto medo que o de morrer era o último da lista. Literalmente, não
havia mais nada que eu pudesse perder além da vida. E já não me
importava fazia um tempo.
Deixei alguns minutos passarem, raciocinando sobre cada
um dos meus atos. Precisava garantir que ele não freasse, então
teria que imobilizar suas pernas por alguns segundos. Teria que
travar a direção ou virá-la para algum lado, rapidamente. Precisava
impedi-lo de alcançar a marcha ou o freio de mão. Seria um belo
ataque, com força e cálculo, aproveitando-me totalmente do
elemento surpresa.
Uma curva fechada se aproximava, como indicado numa
placa bem localizada. Era o meu momento de agir. Parei por um
instante, buscando fôlego e fazendo uma pequena oração que
envolvia apenas o Benício. Como na igreja, diante de Cristo, reiterei
minha prece: que ele ficasse com Deus, que superasse a dor, que
seguisse em frente e reencontrasse a paz. Era apenas aquilo o que
eu queria.
Estava pronta para me jogar por cima do Luís quando, mais
do que de repente, uma viatura se acendeu atrás de nós. Começou
a soltar um barulho doido, girando as luzes caleidoscópicas no meio
daquele nada, onde só havia mato dos dois lados da estrada. Meu
algoz tentou acelerar, assustado, porém outra viatura surgiu na
nossa frente, quase provocando um acidente, porém localizada de
um jeito que parecia bem calculado.
Luís não teve opção além de parar bruscamente.
Seu olhar apavorado me atingiu, e não evitei soltar um risinho
carregado de desdém. Pouco importava se eu estava fodida do
mesmo jeito, afinal, não podia sair da cidade e era suspeita, não
teria como explicar direito o motivo da fuga. Todo o meu corpo
tremia, porém, o alívio se achegava.
Melhor ficar presa do que na companhia daquele doido sem
noção.
— Saiam do veículo e coloquem as mãos para cima! Agora!
— Ouvimos alguém berrar num megafone.
Luís apertou o volante com bastante força. Fiz menção de
que sairia do carro, bastante obediente à polícia, mas ele me puxou
para si. Tomou-me tão depressa que mal deu tempo de
compreender o que faria. O homem me agarrou com força, abriu a
porta e me tirou de lá aos trancos, de qualquer jeito, fazendo-me
chocar na parte interna do carro até ser praticamente arremessada
para fora junto com ele.
Parecia que eu estava fora da realidade, mas do nada Luís
tinha um canivete apontado bem no meu pescoço. Afastou-se do
veículo e encarou a polícia comigo a tiracolo, deixando a ameaça
contra a minha vida muito evidente. Apesar de ter demorado a
entender, e a tremer mais do que tudo, sinceramente, não dei a
menor importância ao seu último ato desesperado. Em vez de
chorar e implorar, comecei a rir.
Soltei uma risada tão forte e prolongada que deu tempo de
vários policiais nos cercarem. Tive consciência de que mais algo
estava sendo dito, alguma barganha, recomendação ou ordem, mas
não ouvi nada. Só pensei em como minha vida tinha se tornado
engraçada. E gargalhei cada vez mais alto, em pleno desequilíbrio,
até perder a força das pernas.
Quando aconteceu, meu corpo pendeu com força na direção
do chão, e aquilo desestabilizou o Luís de uma vez. Os policiais se
aproveitaram e o agarraram com força, levando-o para sei lá onde.
Não conseguia ver nada. Só sabia rir e rir, até começar a chorar e
continuar gargalhando feito uma condenada.
— Luísa? — Alguém me chamou, mas não pude identificar
quem era. Sentia a aspereza da pista sob minhas mãos, apenas
isso. — Luísa, você está bem? — Busquei o fôlego como pude. A
risada parou, mas o choro prosseguiu forte, embaçando tudo e
todos ao meu redor. — Venha, vou te levar agora. Calma.
A pessoa me levantou do chão e praticamente me carregou,
depositando-me sobre uma superfície macia e aconchegante. As
algemas de Luís foram removidas, mas logo outras ocuparam o
mesmo lugar. De nada adiantou. Eu me deixei permanecer, aos
prantos, descontrolada. Não entendia o que estava acontecendo,
mas também não queria. Preferia ficar naquela escuridão
proporcionada pelas lágrimas infinitas.
Alguns minutos depois, encontrei algum discernimento ao
menos para entender que eu estava dentro de uma viatura. Seria
levada de volta à prisão e agradeci por isso. Parecia loucura, mas
me sentia segura sendo levada pela polícia.
Mais algum tempo se passou até um homem, enfim, adentrar
e se colocar no banco do motorista. Era o delegado Moura, que me
olhou pelo retrovisor como se sentisse muita pena.
— Vai ficar tudo bem, Luísa. Se acalme.
Ele deu partida no veículo, deixando a sirene desligada,
porém as luzes ainda piscavam acima de nós, o que me deixou
distraída por alguns instantes. Seguimos pela estrada em silêncio,
até que o delegado comentou:
— Não se preocupe, ele terá o que merece. Meus parceiros
dão um tratamento bem especial a abusador de mulher. — E sorriu
um pouco, relanceando-me pelo retrovisor.
Travei um soluço e, fazendo muito esforço, perguntei:
— Como soube? — A voz quase não saiu.
— Padre Benício me alertou sobre esse sujeito. Mobilizei dois
detetives e descobrimos, a duras penas, quem ele realmente é. —
Ofegou, fazendo uma careta cheia de raiva. — Um estelionatário
maníaco, nem Luís se chama de verdade. Roubou a identidade de
um coitado. Ainda não sabemos tudo, mas ele não é nada do que
diz, menos ainda advogado. Havia fotos e filmagens suas na casa
dele, parecia coisa de filme. Ele te perseguia por toda parte, Luísa.
Te filmava até no banho.
Fechei os olhos com força, diante da confirmação de minhas
suspeitas. Aquele homem me espreitava alucinadamente, de forma
doentia, durante anos a fio.
— Por que permitiu que ele me tirasse da prisão?
Delegado Moura se endireitou e me olhou novamente, de
soslaio.
— Não podia perder a chance de pegar esse cara em
flagrante. Sabia que ele faria algo assim e minha equipe já estava a
postos.
— Por que não me falou?
Ele soltou todo o ar dos pulmões.
— Fiz o que pude, Luísa. O que consegui fazer dentro de
minhas possibilidades. Até este momento, tudo não passava de
instintos e desconfiança.Não acha melhor me agradecer? Estou me
arriscando muito aqui.
Ofeguei, emburrada.
— Não fez mais que sua obrigação.
— Ô, mulher difícil. Porra... — resmungou, mas não objetou
mais, apenas ficou em silêncio.
Percorremos ao longo da rodovia, no entanto, percebi que
não estávamos nos encaminhando para São João do Paraíso. Pelo
contrário, nós nos distanciávamos ainda mais da cidade. Delegado
Moura pareceu notar o meu pavor, mas ignorou completamente.
Comecei a aceitar o meu destino: um descarte rápido e simples. Ele
se livraria de mim, certamente para limpar a barra da família do
prefeito ou algo da espécie.
Só podia ser. Não tinha outra explicação.
Exausta, deixei que me levasse. Mantive-me resignada, em
silêncio. Delegado Moura dirigiu com paciência até estacionarmos
na frente do enorme terminal rodoviário interestadual, que se
localizava na cidade vizinha.
— O que...? — Endireitei-me, sem entender o que estava
acontecendo.
— Desapareça, Luísa.
— Hã?
Delegado Moura suspirou profundamente. Saiu do veículo e
abriu a porta, tirando-me dali enquanto olhava de um lado para o
outro, tentando não ser visto. Removeu minhas algemas sem nada
falar, em seguida me encarou com uma seriedade impressionante.
— Por algum motivo, não tinha qualquer vídeo seu do dia da
morte do Samuel. Luís gravou tudo, menos essa noite. — Sua
expressão foi de extremo desconforto. — Não há provas ao seu
favor. Eu não tenho como te ajudar, você continua sem álibi.
Balancei a cabeça em negativa, absolutamente sem forças.
Nada mais me surpreendia. Era claro que não existia modo de me
livrar daquele inferno.
— E não tenho prova alguma contra o Luís quanto ao
assassinato. Nada que possa usar para te inocentar. — Ele se
aproximou mais, encarando-me atentamente. — Entende o que
quero dizer, Luísa? Você ainda é a principal suspeita. Será fácil
demais te condenar.
— Por que está fazendo isso? — perguntei num fio de voz.
— Porque não foi você — resmungou, parecendo muito
irritado. — Quem fez isso articulou perfeitamente. E é alguém mais
forte do que você e do que eu, Luísa. Desapareça da cidade, ao
menos até eu juntar todos os fatose encontrar quem matou Samuel.
Uma lágrima escorreu pelo meu rosto, e quase não a senti.
Delegado Moura pegou a carteira do bolso e, rapidamente,
entregou-me notas fartas de dinheiro, como se tivesse acabado de
retirar suas economias de um caixa eletrônico só para que eu não
fosse embora sem nada. Aquela atitude me comoveu tanto que
simplesmente segurei a quantia, sem objetar, tomada por lágrimas
doloridas.
— Vá para bem longe. Seja discreta. Suma daqui. — Usou da
sua costumeira voz impassível, como se fosse indiferente a tudo e
todos, mas naquele momento eu soube que, no fundo, delegado
Moura se importava.
— Por que... — Meus lábios tremiam tanto que não consegui
concluir a frase. Puxei todo o ar dos pulmões. Soltei-os devagar,
exalando: — Diga a ele que eu o amo. Que sempre foi amor. Diga
que tudo que falei na igreja foi mentira, mas que não me procure.
Que seja feliz.
O homem na minha frente fez uma expressão amarga. Em
seguida, abriu um sorriso afetado, balançando a cabeça em
negativa.
— É sério, mulher?
— Por favor, diga a ele. Por favor.
Delegado Moura assentiu, enfim compreendendo meu
desespero.
— Tudo bem. Eu direi, prometo.
— Obrigada — choraminguei. — Muito obrigada.
Não contive a emoção e, mesmo detestando aquele sujeito –
quer dizer, nem sabia mais se detestava –, agarrei-o para um
abraço forte. Delegado Moura me envolveu com precisão, mas logo
soltou um resmungo, clareou a garganta e me soltou. Percebi seus
olhos brilhantes, mas se segurava, mantendo o semblante muito
sério.
Puxei suas mãos num gesto estranhamente íntimo.
— Vá atrás dela. Foda-se tudo, delegado. Se a ama, vá atrás
dela. Não deixe seu amor ser impossível, como o meu. — Senti
mais lágrimas escorrendo. — Não seja esse idiota frio.Você tem um
coração aí dentro, escute logo as merdas que ele diz.
O homem assentiu devagar, verdadeiramente tocado pelas
minhas palavras. Eu o larguei e andei, disposta a me afastar e pegar
o primeiro ônibus para bem longe, mas ele me segurou pela mão
antes que me afastasse.
— Obrigado por dizer isso.
Sorri um pouco.
— Não perca um só minuto do seu tempo pensando no que
os outros vão dizer — reafirmei de um jeito seguro, firme.
Ele sorriu de volta e, enfim, me largou.
Virei-me na direção do terminal, sem saber para onde ir, mas
com a certeza absoluta de que nunca mais poderia voltar. Não fazia
ideia de como recomeçaria a vida. Nem mesmo se tinha essa
vontade. Havia apenas uma mulher dilacerada com uma quantia de
dinheiro aceitável em mãos. Milhões de possibilidades, porém
nenhuma fazia parte do meu real desejo.
Minha alma, meus pensamentos e meu coração
prosseguiriam em Paraíso, permaneceriam ali para sempre.
Especificamente, no coração da igreja matriz.
PARTE 24
Quatro meses depois...

Padre Benício

Era manhã de quarta-feirae a igreja estava meio vazia para a


primeira missa do dia. Como de costume, despertei, fiz algumas
orações, carreguei bastante peso até a exaustão, tomei um banho
ligeiro, vesti a batina e me preparei para mais um dia repleto de
compromissos. Todas as manhãs pareciam iguais, bem como as
tardes e as noites.
Quatro meses, dezesseis semanas, cento e vinte e dois dias
e em nenhum deles eu reencontrei a vontade de permanecer ali. A
arquidiocese já sabia, o pedido fora feito ao vaticano e a resposta
veio: pediram-me seis meses de paciência até efetivarem meu
afastamento definitivo e a troca de pároco.
Sabia perfeitamente de onde encontrava forças: do amor de
Deus. Eu O havia reencontrado dentro de mim por pura
necessidade, e mais uma vez Sua luz me salvou da desolação. Eu
era muito grato. Rezava todo o tempo, pedia perdão, porém
deixando claro cada um dos arrependimentos, que não envolviam
Luísa, mas a forma como conduzi aquela paixão avassaladora.
Chorava em silêncio quando precisava e, muitas vezes,
percebia minha distração pelos cantos da igreja. As missas foramse
tornando mornas naturalmente. Não dava mais conta de conduzir as
confissões, portanto estavam suspensas. Os fiéis percebiam minha
postura apática, já não frequentavam as celebrações como antes, o
que me deixava triste, de certa forma. Tentava me animar pelo
simples fato de ninguém ter me associado a Luísa.
Continuei com resignação, ainda que aos tropeços, prossegui
na intenção de fazer as coisas certas, de aguardar o momento
oportuno, sem pressa. A espera, às vezes, me dilacerava. O tique-
taque do relógio me enchia de angústia, no entanto, ainda que
saísse dali, não saberia o que fazerou para onde ir de fato. Não me
mantive quieto em vão, minha calmaria não significava passividade.
Contratei um detetive especializado, usando o dinheiro da
venda da casa – que se mantinha intacto, muito bem guardado –,
para localizar Luísa. Não havia sinal dela em parte alguma. A
mulher desapareceu feito fumaça, sem deixar qualquer rastro, e o
delegado Moura alegou que não tinha condições de me ajudar
nisso, que já fizera demais e se arriscou muito. Eu o compreendia e
agradecia seus esforços.Ele fezo que pôde para manter Luís preso
e Luísa, distante.
Quando recebi o recado dela, dois dias após nossa
despedida, desmoronei novamente e fiquei longe durante uma
semana inteira, procurando-a por toda parte, mas em algum
momento precisei retornar. Não podia simplesmente dar as costas
para a igreja e para as pessoas que precisavam de mim. Eu tinha
muita fé. A cada dia ela aumentava, evoluía de estágio, e eu sabia,
tinha certeza de que toda aquela dor se esvairia.
Eu reencontraria Luísa numa sublime esquina da vida. A
qualquer dúvida que se achegava, não dava espaço. Não deixava
que entrasse em meu espírito, que poluísse minhas convicções. A
minha garota saberia se cuidar, ficaria bem, possuía forças
suficientes para se reerguer em qualquer lugar. Rogava proteção a
Deus e sabia que ela estava sendo iluminada, guiada pelos
melhores caminhos.
A cantoria teve início com o Jeremias e seu notável violão,
embalando uma sintonia que trazia muita paz aos corações de
todos. Entrei pelo centro da igreja sendo acompanhado pelos novos
coroinhas, rapazes prestativos. Comecei a organizar os objetos no
altar, preparando-me. Sorri ao erguer o rosto e visualizar o Toninho
na primeira fileira, ao lado do seu grande amor, Dimas.
Meses atrás, eu o procurei para uma conversa franca. Falei
que a igreja continuaria de braços abertos, seja qual fosse sua
escolha, e o rapaz ficou muito feliz de retornar às atividades,
daquela vez como um voluntário fiel. Ele desistiu do curso de
Teologia e de ser seminarista; estava estudando com afinco para
cursar Engenharia Civil no ano seguinte. Dimas era um rapaz do
bem e ajudava sempre que podia.
Eu estava muito feliz pelos dois, certo de que nosso
desentendimento tinha ficado no passado e, no fim das contas, há
males que vêm para o bem. Meus pecados fizeram Toninho entrar
em contato com seu verdadeiro eu e seguir seus desejos com
coragem. A igreja podia não aprovar, mas eu sabia que Deus amava
e protegia gente corajosa.
Abri a bíblia sagrada no sermão do dia, colocando-a sobre
uma banqueta dourada. Puxei bastante ar aos pulmões, pedindo a
Deus para conseguir. Um dia de cada vez. Afinal, o amor era
paciente e suave como uma brisa de fim de tarde. Podia ser
tempestade, eu bem sabia, mas também era bonança. Aquele
sentimento intenso se tornara a minha força, minha coragem.
Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta (Coríntios
13:7).
Abri um largo e sincero sorriso, pronto para dar bom-dia
àquelas pessoas atentas, quando visualizei uma pessoa sozinha
adentrado a igreja. Era uma mulher. Calmamente, caminhou ao
longo do tapete até se sentar num banco mais atrás, distante dos
fiéis que costumavam ocupar os primeiros lugares, mais perto do
altar.
Embora estivesse com cabelos curtos e óculos de sol
enormes, na clara intenção de se manter oculta, eu era capaz de
reconhecê-la de toda forma. Ela podia mudar de cor, de jeito, de
cabelo, de corpo. Minha alma reconheceria a dela em qualquer lugar
do mundo, porque eram feitas da mesma matéria.
Naquele momento eu soube: Luísa estava presente.
Minhas mãos tremeram sobre a bíblia, o coração quase
escapuliu pela garganta, e já não soube mais o que fazer naquele
altar. Eu me mantive vidrado, impactado, e mesmo tendo esperado
por ela durante muitos meses, imaginando toda a divergência de
cenários daquele reencontro, simplesmente continuei paralisado,
porque nem nos meus melhores surtos de criatividade poderia ter
pensado naquela cena.
Possuía um grande motivo para o tremendo choque, além do
óbvio.
A mulher que adentrara a igreja usava um vestido preto
discreto, porém colado o suficiente para que fosse possível notar as
curvas de seu corpo. Sentia saudade de cada partícula dele,
sonhava e implorava para tê-lo de novo a cada minuto que passava,
no entanto, não pude deixar de notar que estava diferente.
Havia uma protuberância visível no ventre que beijei e me
esbaldei. Um volume que não podia ser escondido, que se mostrava
absoluto e que deixava tão claro quanto a luz que adentrava entre
as portas abertas da igreja.
Prendi os lábios com forçae ofeguei,dando-me conta do que
estava acontecendo. Do que tinha acontecido. Do que, de fato,
havia entrado ali para me alertar, clamar por mim. Era um aviso, um
alerta, um pedido. Era uma ordem, um fim e um começo. Era a
minha vida. A que me aguardava e a que Deus tinha preparado com
uma perfeição absurda. Tornou-se meu mundo naquele instante,
tudo o que eu era e precisava.
Sequer pude suportar a força daquele amor, de tão grande
que era, de tão forte e veloz que se alastrava. Jamais experimentei
nada igual. Era tão definitivo e me chamava com tanta força, aos
gritos, que não fui capaz de me manter parado por muito tempo. A
reação veio e exigiu de mim uma certeza que jamais se romperia.
Fechei a bíblia, provocando um ruído que chocou alguns fiés.
Depositei-a sobre o altar e removi uma peça das vestes sagradas.
Não tive como me conter. Não couberam ressalvas. A ânsia era
demais, consumia meu espírito. Deixei mais um ou outro item para
trás enquanto corria na direção daquela mulher sentada. Pareci um
louco que se despia na frente de todo mundo, peça por peça, até
por fim me livrar da batina por cima da cabeça.
Quando me aproximei o suficientepara discernir aquele rosto
perfeitoe saudoso, já nem sabia mais o que tinha deixado para trás.
Não me importava. Eu não era mais um homem comum, era outro,
um que reconhecia somente naquele momento. Um pai cheio de
amor e ansioso para oferecer o mundo àquele presente divino.
Luísa olhava para cima, para o meu rosto, mantendo as mãos
na barriga avantajada. Enxerguei lágrimas escorrendo por baixo dos
óculos e molhando seu queixo. Um resquício de juízo me fez
compreender que as atenções não podiam ser colocadas em cima
dela. A mulher precisava se manter invisível, porque a verdade
ainda não havia surgido, logo, eu não poderia revelar sua
identidade, provocar as pessoas e gerar comentários que poderiam
nos prejudicar.
Sendo assim, ainda que quisesse puxá-la e abraçá-la, passei
direto por ela, fingindo outro foco, outro motivo para o afastamento
repentino. Alcancei o pátio, olhei para um lado e para o outro, até
avistar a velha motocicleta da igreja. Deixava a chave nela mesmo,
certo de ninguém a tiraria dali. Enfiei as mãos nos bolsos,
encontrando apenas minha carteira, o que seria mais do que
suficiente.
Corri até o veículo estacionado na extrema esquerda do
pátio, mas antes que o alcançasse, olhei para trás. Ela tinha me
seguido, do jeito que eu precisava. Vinha a passos acelerados na
minha direção, o que fez com que me preocupasse. Luísa podia
correr assim, estando naquela condição?
Quando se aproximou, subi na moto e murmurei, urgente:
— Consegue subir?
Não tínhamos tempo para discussão. Eu queria dar um
abraço e beijar aquele corpo redondinho da cabeça aos pés, mas
faria isso assim que tivesse a chance. Meu foco era sair dali sem ser
visto por ninguém, tarefa praticamente impossível.
— Benício... — Luísa ofegou em hesitação, olhando ao redor
para não ser reconhecida. Percebi que sentia muito medo. Estava
se arriscando muito aparecendo de repente na cidade que a tinha
injustiçado.
— Sobe.
— Eu só vim te mostrar — choramingou, dando um passo
para trás, imprimindo uma distância que me revoltava. — Você...
Pensei muito nisso, em vir ou não até aqui. Mas você precisava
saber. Era o mínimo.
— Vamos embora.
— Você não po...
— Não, Luísa, você não vai mais me obrigar a ficar longe.
Não vai sofrer para me proteger, nem mentir a fim de me parar, não
vai me impedir — resmunguei, descendo da moto e me
aproximando perigosamente. Puxei-a para mim, tomando cuidado.
Agarrei seu rosto, em seguida segurei seu ventre.
Lágrimas encharcavam o meu rosto e o dela. Sentir aquela
parte de seu corpo me carregou ainda mais de uma força gritante.
— Escolho você — sussurrei sobre seus lábios, sem chegar a
beijá-la, mas muito perto disso. — Vocês — corrigi, rindo enquanto
chorava. — Sempre. Para sempre, Luísa.
— Eu menti, Ben. Naquela noite, eu menti.
— Eu sei... — Assenti, mas Luísa parecia desesperada.
— Eu te amo — acrescentou, aos prantos. Parecia que fogos
de artifício explodiam dentro de mim, numa espécie de ano novo
interno que demarcava uma passagem importante. — Meu Deus,
quantas vezes quis te dizer isso ao vivo. Não deixei de te amar nem
um só dia que passei longe.
— Nem eu, meu amor. — Envolvi-a em meus braços, sem
conseguir parar de chorar. O movimento me fez perceber que as
pessoas começavam a sair da igreja à minha procura. Não
podíamos nos demorar.
— Carregar a nossa filha foi o que me manteve firme até
agora — Luísa choramingou, emocionada, tremendo-se toda.
Expirei todo o ar, soltando uma risada involuntária.
— Meu Deus, é uma menina? — Envolvi sua cintura, olhando
para baixo e me sentindo um bobo completo. — Vocês nunca mais
vão ficar sozinhas. Eu juro. — Voltei a olhar seu rosto. Queria
remover aqueles óculos, mas preservá-la era fundamental. —
Vamos. Consegue subir?
— C-Consigo.
Depressa, eu me coloquei sobre a moto e Luísa veio, mas
antes de subir de fato, murmurou:
— E a igreja? — Ela estava visivelmente preocupada.
— Verdade. Quase ia esquecendo.
Eu saí dali e dei alguns passos na direção da paróquia.
Coloquei-me de joelhos, erguendo a cabeça para o céu. Não me
sentia devedor de nada, menos ainda de explicações. Deus sabia
que eu já tinha pagado tudo com bastante penitência.
— Obrigado, meu Deus — desabafei, sentindo o meu corpo
ser dominado pelo mais completo alívio e pela mais forte gratidão.
— Muito obrigado. — Coloquei-me de pé em seguida e puxei a mão
dela para mim. — Agora, sim. Vamos.
Ajudei Maria Luísa a se colocar atrás de mim, o que não foi
tão fácil. Enfim, ela enrolou os braços ao redor da minha cintura e
dei a partida de uma vez. Tirei-nos da igreja enquanto as pessoas
se aglomeravam no pátio, embasbacadas, já que não consegui ser
rápido o suficiente para não levantar comentários.
Fomos vistos e estava tudo bem. Eu estava em paz, alegre e
realizado.
Sentir as mãos dela ao meu redor de novo me trazia tanta
alegria que eu sentia que era capaz de explodir.
— Para onde vamos? — Luísa perguntou com a voz alta, já
que percorríamos em velocidade elevada.
Eu sabia que, se aquela história chegasse ao delegado
Moura, ele continuaria fazendo vistas grossas, fingindo que estava
procurando, mas sem mexer nem uma palha. Não partiria atrás de
nosso encalço. Contudo, não queria dar sorte ao azar, por isso me
mantive ligeiro, concentrado para não machucar minhas meninas.
— Para a felicidade, Luísa! — respondi num berro, soltando
uma risada divertida. — Para a nossa família!
Ela apertou as mãos com mais força.
Sim, eu tinha acabado de abandonar a igreja no meio de uma
missa para fugir com a principal suspeita de um assassinato.
Nunca me senti tão feliz e completo em toda minha vida.
BÔNUS
Foi você, caralho?

Delegado Vitor Moura

Enquanto Luísa conversava com aquele doido que se dizia


advogado – para quem já estava arquitetando um ataque –, na
saleta de interrogatório, eu andava de um lado para o outro na
minha sala, empertigado com o rumo dos acontecimentos e
tentando encontrar algum sentido naquela porra. O que padre
Benício me mostrou foi o suficiente para compreender que nada
daquilo tinha a ver com a viúva, como imaginei desde o princípio.
Parecia um caso simples de esposa amargurada, mas não era.
Muito pelo contrário.
Disquei aquele número num impulso maluco, dominado pela
necessidade de descobrir a verdade antes que ela tragasse pessoas
inocentes. Eu poderia ser o maior filho de uma puta do mundo, mas
nunca na vida pensei em enjaular as pessoas erradas. Não era
possível que estivesse tão cego. Aquela menina estava tirando meu
juízo, mexendo no meu discernimento e me mostrando todos os
caminhos na direção da insanidade. Nem trabalhar direito eu
conseguia mais.
Como ela podia ser assim? E por que exigia tanto de mim,
mesmo eu deixando claro que nossas fodas não passavam de
momentos intensos, que só significavam prazer e nada mais? Ela
que quis assim. Pediu por isso. Na verdade, implorou. Eu me
apaixonei porque sou um IMBECIL completo, não significava que
ela deveria ser assim também.
Maldito dia em que me deixei seduzir pela fedelha. Puta que
me pariu!
A pessoa atendeu no segundo toque, com a voz mansa,
tranquila, quase como se, de fato, não tivesse a ver com aquela
lambança. Mas eu tinha que ficar esperto. Apesar de os pontos não
estarem fechados, havia um forte indício bem na minha frente,
piscando em alerta na porra do meu nariz. Como fui idiota!
— Foi você, caralho? — resmunguei, indignado com toda
aquela merda. Sentia-me um fodido incompetente, um
grandessíssimo otário.
Tinha sido feito de tonto aquele tempo inteiro.
— Eu? Eu o quê?
— Foi você quem matou o maldito Samuel?

O ser humano do outro lado da linha ficou mudo.


CONTINUA EM...
O DELEGADO
PARTE 1 – O DELEGADO
Uma virgem na sauna

1 mês antes da morte de Samuel

Delegado Vitor Moura

Estava sentado numa espreguiçadeira, no quintal da mansão


de Anthony, empunhando uma cerveja gelada e sentindo o sol
escaldante relaxar o meu corpo. Precisava de uma folga como
aquela, andava trabalhando demais. Sentia uma estafa fodida por
quase sempre dobrar meus plantões, por isso, quando fuiconvidado
para aquele aniversário, aceitei rapidamente.
Eu não tinha nada a ver com aquele bando de adolescentes,
inclusive, alguns deles já me deram trabalho em vários momentos.
Bebiam demais, pichavam muros, uns usavam drogas e agiam feito
animais que me deixavam impaciente.
O fato de eu estar presente funcionava para amansá-los, ao
menos um pouco, porque se mantinham comportados, embora
dançassem, curtissem e tomassem banho de piscina de maneira
barulhenta. De qualquer forma, faltar ao aniversário de Aisha,
primogênita do meu melhor amigo, pegaria mal.
— E aí, cara, tudo certo? — Anthony Teixeira, prefeito da
cidade de São João do Paraíso e pior jogador de futebol que essa
terra já viu, encostou nossas cervejas num brinde rápido e se sentou
na espreguiçadeira ao meu lado.
— Tudo certo, mano. Tomando um solzinho para espairecer.
— Respirei fundo, soltando todo o ar de uma vez. Eu vestia apenas
uma bermuda solta, afinal, aquela era uma festa na piscina e pedia
trajes de banho. — Minha cabeça está uma merda.
Ele fez uma expressão curiosa, interessada. Meu amigo era
muito gente boa, a melhor pessoa que eu conhecia e meu brother
desde os tempos de escola. Eu nunca o enxergava como prefeito,
político ou engomadinho filho da puta, mas como alguém em quem
confiar, cujas intimidades compartilhava sem o menor pudor.
Sabia de toda a vida fodida que ele levava, apesar da
aparência feliz e perfeita, da família típica de comercial de
margarina. Ele enganava a cidade toda, menos a mim.
— Muito trabalho na delegacia? Algo que deva me
preocupar? — Soltou um suspiro assim que seu corpo
aparentemente exausto relaxou mais. Meu amigo estava ficando
velho. Um ou outro cabelo branco já surgia na sua cabeça meio
loira.
Tomei um gole farto da cerveja.
— Não, nada sério. Você sabe que sou perfeccionista —
argumentei, observando os amigos de Aisha circulando para lá e
para cá. Além deles, alguns familiares e amigos caminhavam com
seus drinks, preenchendo o jardim num clima animado,
comemorativo.
— Tem que relaxar mais, cara! A vida é curta. Você precisava
sabe do quê? De uma esposa e filhos. Ser solteirão nesse fim de
mundo não dá em nada.
Bufei, soltando uma gargalhada. Estava mais fácil Paraíso
virar uma grande metrópole do que eu me deixar levar por uma
mulher. Não fazia o meu estilo. O negócio era sexo sem
compromisso, e não qualquer um. Tinha que ser do meu jeito.
— Você sabe como eu sou.
Ele riu junto comigo, dando tapas no meu ombro.
— Se apaixonar é bom demais, meu amigo. Amansa esse
coração e deixa alguém entrar, não vai se arrepender.
Eu o olhei com mais seriedade, ciente de que a maior
besteira que aquele cara já fez na vida foi se apaixonar. Seus
problemas acabariam se fosse igual a mim. Poderia ter soltado uma
piada, mas me contive. O assunto era muito delicado para Anthony.
Sem mais nada falar, o homem se levantou, deixou mais um
toque na minha cerveja e se afastou na direção de outro grupinho.
Ele era assim, bem social, gostava de se comunicar e faziaamizade
com facilidade, diferente de mim, um turrão solitário que guardava
rancor de metade do mundo.
Nossas vidas eram muito diferentes, como o sol e a lua. As
realidades tinham tudo para se chocar – enquanto ele tinha berço de
ouro, o meu era de palha –, mas nos gostávamos, era o que
importava.
Dei mais um gole na minha cerveja e, assim que abaixei a
garrafa long neck, avistei Aisha se aproximando, desfilando um
biquíni cor-de-rosa muito pequeno para quem tinha acabado de
completar dezoito anos. Se eu fosseo pai dela, teria um pouco mais
de cuidado. A cidade estava enchendo de estudantes com a
chegada do campus, todos com hormônios aflorados e merda na
cabeça, e os casos de assédio e abuso aumentavam todo dia.
Por um instante, temi pela integridade dela, mas por outro,
fiquei analisando o quanto estava desenvolvida. Peitos crescidos,
cintura fina, quadris largos...
Chacoalhei a cabeça em negativa e desviei o rosto, ciente de
que meus pensamentos não me levariam para nenhum lugar
aceitável. Deus me livre ver aquela menina com outros olhos. Era
uma criança, isso, sim. Ser meio escroto fazia parte de minha
índole, mas jamais chegaria tão longe.
— Oi, tio Vitor. Tudo bem? — Ela parou na minha frente e
sorriu de orelha a orelha. Parecia uma bonequinha: cabelos loiros
até a cintura, olhos verdes como os do pai e um sorriso amável. —
Que bom que veio.
Ainda não tínhamos nos falado, pois Aisha estava envolvida
em conversas com grupos diferentes de amigos. Deixei que ficasse
à vontade.
— Oi, querida, tudo bem. — Educadamente, levantei-me da
espreguiçadeira e plantei um beijo no topo de sua cabeça. Não
éramos muito íntimos, mas eu sempre estava perambulando pela
sua casa. Nossa relação era de um respeito afastado, algo mais
formal. — Feliz aniversário! Eu sei que você tem tudo, mas te
comprei um colar. Nada caro, só achei que combinava. — Aisha
abriu um sorriso enorme. — Está lá na entrada, a mulher disse que
eu tinha que deixar o presente numa caixa.
Festa na casa do Anthony era sempre um acontecimento.
Uma simples comemoração ao redor da piscina exigia cerimonial,
garçons, buffet e a porra toda. Acho que devia ter uns dois mil
balões decorando o jardim. Normalidade não combinava com aquela
família. Tudo era uma frescura só, ainda bem que já estava
acostumado.
— Obrigada, mas quero um presente diferente esse ano. —
Ela piscou os olhos várias vezes, parando de sorrir um pouco e
parecendo nervosa. Desviou o rosto para o lado, e percebi que a
pele muito branca corou.
— Que presente? Já sei, seu pai disse que você queria
aprender a dirigir com alguém confiável e não tem tempo de te
ensinar. Posso ajudar, mas...
— Não, não é isso. Vem comigo, posso te explicar.
Aisha Teixeira olhou de um lado para o outro e andou sem
comentar mais nada, dando vários passos à frente. Fiquei parado
por um instante, sem saber o que ela queria comigo. Olhá-la por trás
me deixou meio desnorteado, pois a garota usava um fio dental
muito cavado, deixando pouco espaço para a imaginação. Senti
que, daquela vez, quem ficou corado fui eu, por pensar merda da
filha do meu amigo.
Mas que porcaria. Quando aquela menina tinha crescido
tanto?
Como não sabia o que fazer e ela tinha me chamado, deixei
minha cerveja para trás e simplesmente a segui, mas bem
constrangido. Ela adentrou o jardim de repente, afastando-se do
focoda festa.Eu conhecia aquela trilha, dava para a área da sauna,
que era um pouco mais afastada porque Anthony gostava de usá-la
em paz, e sempre tinha gente na piscina perturbando seu silêncio.
A garota não parou por um só momento, seguiu a trilha sem
olhar para trás, rebolando os quadris que eu evitava encarar por
puro respeito. O que porra ela queria? Estava tão intrigado que não
ousei fazer perguntas, apenas a segui, curioso.
Ela adentrou a sauna que, pelo ruído que fazia, estava ligada.
Era um espaço grande, com uma jacuzzi no meio, nada mequetrefe
ou barato. Anthony era exigente e gostava de tudo de bom e do
melhor. O cheiro de eucalipto pairava e estava bem quente, com um
pouco de fumaça embaçando aqui e ali. Aisha estacionou perto de
uns batentes que serviam como bancos e, enfim, virou-se na minha
direção.
Ergui os ombros, sem entender nada. Havia um ponto de
interrogação imenso na minha cara, eu tinha certeza disso. A garota
soltou o ar dos pulmões, ainda mais avermelhada do que antes,
como se tomasse coragem. Não falou nada, ficou me olhando
fixamente com aqueles olhos de dar inveja a qualquer um.
A coitada era adorada pelos deuses, porque não se via um só
defeitofísico.Na personalidade, talvez. Era mimadinha, tinha tudo o
que queria. Meio estragada.
— Estou curioso, o que estamos fazendo aqui? — perguntei,
já que ela não dizia nada, apenas me olhava de um jeito paralisado.
Piscou algumas vezes. Novamente, suspirou.
— Acontece... — Parou e deu um passo à frente,
aproximando-se. — Acontece que, de você, eu quero um presente
especial. — Deu mais um passo.
Fiz uma careta, meio abobalhado. Não estava entendendo
nada do que aquela garota queria. Havia ficado alguma informação
para trás? O que tudo aquilo tinha a ver com a sauna?
Aisha andou mais um pouco, até se aproximar demais.
Quando seu corpo pequeno ficou perigosamente perto, foi reação
involuntária dar um passo para trás, desnorteado com sua
proximidade. Eu estava entendendo direito ou...?
Encarei-a com o mais profundo espanto. Meu juízo não
estava perfeito, era a única explicação. Contudo, ela não desistiu de
seu intento, aproximou-se novamente e murmurou, assim que
diminuiu a distância o suficiente para repousar uma mão sobre o
meu peito desnudo:
— Eu quero você.
Não faziaideia do quanto uma pessoa poderia abrir os olhos,
mas os meus passaram do limite com certeza. O espanto foi tanto
que cambaleei para trás, em pleno choque, sem acreditar na
ousadia da criatura. Que merda era aquela, porra?
— Você só pode estar de zoeira com a minha cara. — Soltei
uma risada desconcertada, conferindo se não tinha uma câmera
gravando a pegadinha. Porém, a menina continuou muito séria, com
a expressão profundamente sexy e decidida.
De súbito, colocou uma mão para trás e puxou a corda do
biquíni. Enquanto eu piscava os olhos mais do que o normal, a peça
rosa foi removida até cair no chão, e logo um par de seios perfeitos,
durinhos e arrebitados, com auréolas rosadas, surgiram entre nós.
Olhei para o cenário sem respirar, com o fôlego tragado de uma só
vez.
— Não faz ideia do quanto esperei por esse momento — ela
disse num fio de voz. Avançou e, quando recuei, meu corpo se
chocou contra uma parede. Estacionei, sem saber o que fazer ou
para onde ir. Estava embasbacado demais para encontrar qualquer
racionalidade. — Tem razão, eu tenho tudo, menos o que mais
quero.
— Aisha — ofeguei.
Ela ergueu as duas mãos e as depositou, de novo, sobre o
meu peito. Seus seios perfeitos encostaram na minha pele. Sem
que eu pudesse prever ou controlar, meu pau chacoalhou dentro
daquele short, fino o suficiente para sentir sua quentura próxima.
Fodeu para o meu lado. A filha de uma puta me pegou feito um
patinho.
— Você é o meu desejo platônico desde mais nova, tio Vitor.
Esperei a maioridade e me guardei, porque a minha virgindade será
sua. De ninguém mais.
— Porra, menina, não fala uma merda dessa. — Segurei
seus punhos, encontrando discernimento apenas porque ouvi a
palavra “virgindade”. Se não fosse isso, talvez eu tivesse me
deixado levar depressa, ainda que tudo aquilo fossemuita loucura e
um nível de sacanagem elevado demais até para mim. — Você nem
saiu das fraldas. Ainda vem me chamando de tio. Eu não sou um
doente pedófilo, e ainda tem seu pai. Vista-se, eu não vou te comer,
caralho.
Empurrei-a com certa delicadeza, só para não a magoar
muito, mas mesmo assim seu olhar se enfezou consideravelmente.
Num impulso, a garota que parecia inocente voltou a se aproximar
com rumo certo. Sabia bem o que fazer. Agarrou o meu pau por
sobre o short em cheio, prendendo a circunferência.
Eu ofeguei, relutante, mas não me movi ou a afastei.
— Acha que não sou mulher para você? Pois isso aqui... —
Chacoalhou, fazendo-me arquejar. — Pensa diferente.
— Isso aí não tem a cabeça boa, nunca teve — resmunguei,
rindo de leve e a empurrando mais.
Seu afastamento tornou possível que eu saísse dali e
recuasse de vez, aumentando a distância. Aisha continuou me
olhando e exibindo aquele corpo que, puta que pariu, eu comeria
muito. Comeria demais. Comeria até não aguentar, se...
Se ela não fosse vinte anos mais nova.
Se ela não fosse filha do meu melhor amigo.
— Aposto que é uma cabeça deliciosa. — Aisha circulou uma
língua obscena pelos lábios carnudos, naturalmente rosados.
Manteve o olhar hipnotizante sobre mim, e eu me vi preso numa
armadilha ordinária. — Deixa eu te chupar... Quero você todo.
Ela tentou outra aproximação, por isso logo cortei:
— Você nem sabe fazer isso. Duvido que me dê prazer.
— Vamos ver, então. — Ergueu a cabeça, peitando-me.
Quando essa abusada se tornou uma mulher sedutora daquele
jeito? Quando aprendeu a desafiar com uma língua afiada? Eu havia
me perdido em algum canto, não era possível.
O que porra o tempo fez com ela?
— Aisha — murmurei, e saiu mais como uma súplica. Eu me
sentia por um fio, andando numa corda bamba, com risco de cair a
qualquer minuto. — Não quero te machucar, mas isso aqui não vai
acontecer. Esqueça. Você não tinha um namoradinho?
— Não o quero, é só um passatempo. — Riu suavemente,
depois prendeu os lábios. — Meu interesse sempre foi você. Eu te
terei de qualquer jeito. Sei que me quer, também. Que já percebeu
que cresci.
— Percebi — murmurei, encarando as tetas que eu mamaria
forte, enquanto a estivesse fodendo. Tudo hipótese maluca. Jamais
aconteceria. Eu não podia fazer aquilo com Anthony.
Que porra de amigo seria eu, se fizesse?
Enquanto eu raciocinava e me contorcia por dentro, sentindo
meu corpo todo enfraquecendo a cada segundo, Aisha usou as
duas mãos para puxar as cordas laterais da parte de baixo do
biquíni. Soltei um xingamento baixo, acompanhado de vários
resmungos que sequer compreendi. Não era possível. Eu devia
estar no meio de um sonho muito do cretino. Não tinha explicação
para aquilo.
De uma forma ou de outra, a peça caiu e ela se mostrou
totalmente. Uma bocetinha pequena e com um filete de pelo muito
do ordinário. Um caminho que levaria à felicidade e, também, à
ruína. Aquela abusadinha mimada de uma figa. Como podia,
caralho?
Eu precisava sair dali urgentemente.
— Diga que não quer me comer todinha... — ela sussurrou, e
daquela vez conseguiu se aproximar o suficiente para envolver os
braços ao redor do meu pescoço. — Minta, diga que não está louco
por isso.
Eu sentia meu coração batendo nas têmporas, de tão
ensandecido, excitado, com o cacete latejando forte, doido dentro
do short. Aisha segurou a minha nuca e me puxou para si. Os lábios
se encostaram, mas prendi os meus, fechando os olhos para me
segurar. Ela cheirava a morango. Algo doce e que instigava uma
chupada completa. Puta merda... A minha vontade era de gritar bem
alto.
— Me beija... — pediu, aos sussurros. — Me beija, por favor.
Quero saber como é te beijar.
— Porra... — respondi, no limite de minhas possibilidades.
Eu não aguentava mais.
Num ímpeto muito absurdo, puxei-a pela bunda desnuda e
avancei com sofreguidão,afundandoa boca na dela e pressionando
a língua para iniciar o movimento com ferocidade.Aisha me apertou
mais, e seu corpo nu grudou totalmente no meu. Estava ciente da
minha ereção depravada pedindo alívio, o que me incitou a beijá-la
como se quisesse me fundir a ela.
Nunca pensei. Jamais imaginei. Eu me via fazendo algo que
considerava proibido tanto quanto perigoso, e que precisava ter fim,
mas ainda assim beijei aqueles lábios singelos com toda a minha
aspereza. Com a minha costumeira brutalidade e selvageria. Aisha
soube que me beijar não era calmo. Era cruel e obsceno, porque
naquele ato eu entregava toda a minha raiva.
Um resquício de lucidez penetrou a mente, por isso a afastei
segurando pelo queixo, sem gentileza. Empurrei-a até a parede e a
imprensei ali, arrastando a ereção por ela enquanto respirava forte
em seu rosto.
— Você não aguentaria uma fodida minha, garota —
resmunguei, deixando-a visivelmente surpresa. — Eu não gosto de
sexo como você vê nas suas novelas e romances. — A voz saía
como se fossem xingamentos, duras e frias. — O que eu gosto te
deixaria assustada. Então dê essa bocetinha linda para um cara
mais gentil. — Tentei me controlar, mas afundei um dedo afoito entre
suas carnes macias, extremamente molhadas, e resmunguei de
agonia. Aisha soltou um gemido que quase me fez ficar. — Não sou
para você, esqueça essa porra.
Saltei para trás, ciente de que era a hora de ir. Porém, antes
de me afastar, coloquei o dedo melado na boca e senti seu gosto
virginal me inebriando. Uma boceta deliciosa. Porra. Foi um grande
erro. Não devia ter feito isso. Precisei usar ainda mais força de
vontade para dar as costas e deixar a sauna depressa, antes que
uma merda maior acontecesse.
O que eu tinha feito já era perigoso o bastante para me foder
com o Anthony.
AGRADECIMENTOS

Escrever essa história foi um grande desafio. Precisei


desafiar a mim mesma, as minhas crenças e capacidade de
escrever tantas páginas em pouco tempo. Só Deus sabe o quanto
foi complicado, e sei que Ele me deu forças para prosseguir, ainda
que parecesse esquisito que me abençoasse neste caso. Mas foi
assim que me senti o tempo todo, acolhida e iluminada, porque
sabia que a trama de padre Benício e Maria Luísa ia muito além do
desejo, é uma história de coragem e de fé. A minha nunca esteve
tão forte.
Por isso, agradeço a Ele pela benção, pelos momentos em que
caí e chorei, que fraquejei e quase desisti, mas que me ergui até o
final. Venci.
Agradeço às minhas leitoras betas, as queridas que sempre
estão comigo, que nunca me deixam desamparada. Vocês são as
melhores, amo vocês! À todas as Miláticas espalhadas pelo mundo:
o meu profundo agradecimento.
Ao meu novo “milático”, que me ajudou tanto que nem sei
explicar: Leo, te amo muito, você foi incrível e eleito ao cargo de
melhor namorado do planeta. O que fez por mim nesse último mês
foi a coisa mais maravilhosa que alguém poderia fazer
.
Um enorme muito obrigada a todos que chegaram até o fim.
Espero que tenham gostado. Prometo sempre entregar o meu
melhor a vocês.
Obrigada, sempre, de todo o meu coração!
Beijos,
Mila
SOBRE A AUTORA

Mila Wander nasceu e mora no Recife, onde se dedica


integralmente ao mundo dos livros. Pedagoga e estudante de
Psicologia, é apaixonada por criar romances diferentes, mesclando-
os a outros gêneros. Dentre mais de quarenta títulos publicados,
Mila é autora da duologia de sucesso O Safadodo 105 e O Canalha
do 610, além da trilogia Despedida de Solteira, Dominados, Meu
Maior Presente e Ninguém Aguenta mais CEO.
Instagram: @milawanderoficial
E-mail: autoramilawander@gmail.com
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