Teoria Do Conhecimento
Teoria Do Conhecimento
Teoria Do Conhecimento
SUMÁRIO
| 7
Capítulo 1
Que conhecimento venho buscar na
universidade? | 9
Capítulo 2
Que caminhos possíveis existem para se chegar ao
conhecimento? | 27
Capítulo 3
Há outros caminhos? | 55
Capítulo 4
E agora, que caminho vou escolher?
| 73
Considerações Finais | 89
Capítulo 1
Textos
Texto 1: Concepções e formas de conhecimento
Texto 2: Sobre o exercício da abstração na ciência
Texto 1
Contextualização prévia
Ao se perguntar “Que conhecimento venho buscar na universidade?”, você pode
pensar: “Ora, venho buscar conhecimento simplesmente!” Ou ainda: “Existem
diferentes formas de conhecimento?” Em resposta a essas prováveis indagações,
este primeiro texto faz uma introdução à origem do conhecimento enquanto
uma atividade humana por defnição e aos tipos elementares de conhecimento
que surgiram com o desenvolvimento da humanidade: o senso comum, o
conhecimento flosófco, o conhecimento religioso, o conhecimento artístico e,
fnalmente, o conhecimento científco.
9
Capítulo 1
Seção 1
A origem do conhecimento
A palavra conhecimento tem sua origem no latim, cognitio, e pressupõe,
necessariamente, a existência de uma relação entre dois polos: de um lado o
sujeito e de outro o objeto.
1 Texto originalmente publicado em: Teoria do conhecimento : livro didático / conteudistas, Alexandre de
Medeiros Motta, Gabriel Henrique Collaço, Marciel Evangelista Cataneo, ; design instrucional
Eliete de Oliveira Costa. – Palhoça : , 2013.
10
Teoria do Conhecimento
Todas as pessoas julgam conhecer algo e, de fato, podemos dizer que o ser
humano naturalmente busca conhecer o mundo a sua volta, pois essa é uma
condição para manter-se vivo.
Num sentido geral, podemos dizer que conhecimento é o que permite aos seres
vivos manterem-se vivos. Nesse caso, uma planta sabe que deve virar sua
folhagem em direção à luz, assim como um cavalo sabe que determinado solo
não é seguro para caminhar, e um homem sabe que, se jogar um objeto acima de
sua cabeça, poderá, quando em queda, atingi-lo. Porém, num sentido exato, não
seríamos capazes de defnir, tão brevemente, o que é o conhecimento.
11
Capítulo 1
Nesse sentido, é difundida a tese de que existe certa correspondência entre a linguagem
e a complexidade das operações mentais que um ser humano é capaz de executar.
12
Teoria do Conhecimento
Ora, tais papéis não são tão bem defníveis assim. Os sujeitos interagem no processo
de construção do conhecimento e sofrem “passivamente” a interferência do ambiente
cultural, do mundo do trabalho, do cotidiano etc. A própria linguagem envolvida nas
informações e na socialização do conhecimento se torna relevante para esse processo.
Além disso, o sujeito apreende o objeto e lhe atribui um signifcado, mas é inegável que
esse conhecimento também modifca o próprio sujeito.
13
Capítulo 1
Para a fenomenologia, o sujeito que conhece tem uma intencionalidade que interfere
na apreensão e no entendimento do objeto. Esse entendimento, por sua vez, pode
modifcar-se e adquirir outro signifcado em relação a outros objetos do contexto.
Sendo assim, para fnalizar esta seção, segundo Costa (2001, p. 4), “conhecer
é apropriar-se mentalmente de algo”. Um resultado de uma busca de
conhecimento, que não basta acumular informações e experiências, mas o
mais importante é saber a maneira como essas serão aplicadas. A seguir você
conhecerá os tipos de conhecimento, cada qual com suas características.
14
Teoria do Conhecimento
Seção 2
Tipos de conhecimento
No cotidiano, é comum ouvir as pessoas afrmarem que conhecem coisas. O
mecânico diz que conhece o carro. A mãe diz que conhece o flho. O advogado
conhece a questão. O mendigo conhece a praça. O treinador conhece o time. O
matemático conhece a fórmula etc. Nas situações citadas, o conhecimento tem
signifcado diverso e, ao mesmo tempo, mantém algo em comum, visto que todos
os sujeitos afrmam conhecer.
15
Capítulo 1
Consiste na ação pela ação, sem ideias comprovadas, que não permitem
o estudo ou a investigação sobre um determinado fenômeno. Então, o seu
conteúdo se forma a partir da experiência que se vivencia no dia a dia.
16
Teoria do Conhecimento
azul? Pois bem, para entender que a Terra não está parada e que o azul do céu é
apenas uma ilusão de ótica, é necessário muito mais do que os órgãos sensoriais
(visão, audição). Nesse caso, precisamos do uso da razão.
A ideia de sabedoria, em muitas culturas, está ligada à fgura do ancião pelo fato
de ele ter vivido muito tempo e ter acumulado muito conhecimento.
Assim, “essas verdades são em geral tidas como defnitivas, e não permitem
revisão mediante a refexão ou a experiência. Nesse sentido, podemos classifcar
sob este título os conhecimentos ditos místicos ou espirituais”. (MÁTTAR NETO,
2002, p. 3).
17
Capítulo 1
Sua “matéria de estudo é Deus, como ser que existe independente e o qual
detém não as potencialidades, mas a ação do perfeito”. Portanto, neste tipo de
conhecimento há a necessidade da “[...] refexão sobre a essência e a existência
naquilo que elas têm como causa primeira e última de toda a vida”. (BARROS;
LEHFELD, 1986, p. 52).
Você refetiu sobre a situação anterior? Observe ao seu redor. Será importante
para compreender melhor o assunto tratado neste capítulo. Continue seu estudo,
passando a conhecer sobre o conhecimento artístico.
18
Teoria do Conhecimento
A origem da palavra razão está em duas fontes: ratio (latim) e logos (grego).
Ambas apresentam o mesmo signifcado: contar, calcular, juntar, separar.
19
Capítulo 1
Por isso, um dos papéis mais signifcativos desse tipo de conhecimento para o
homem é o de desestabilizar o que está posto, no sentido de demonstrar que
as coisas não estão prontas e acabadas, tornando o nosso pensamento falível e
superável à medida que vamos conhecendo novos horizontes. O conhecimento
flosófco não é verifcável, daí não se pautar na experiência sensorial e por isso a
utilização da razão é uma forma de bloquear a interferência dos sentimentos no
ato de conhecer determinada coisa.
Sendo assim, a prática do conhecimento flosófco torna-se cada vez mais necessária
em nosso cotidiano e meio acadêmico, pois nos estimula e motiva à refexão mais
crítica sobre a nossa vida, a sociedade e o mundo em que vivemos.
Enfm, como a Filosofa aborda a questão da justiça? Não é difícil pressupor que
se a Filosofa faz uma refexão radical, rigorosa e de conjunto sobre os problemas
da realidade fará também a mesma refexão (radical, rigorosa e de conjunto) sobre
o problema da justiça. O flósofo, ou qualquer pessoa que se propõe a pensar
sobre o assunto, fará especulações racionais, procurando apontar os seguintes
questionamentos: a justiça é justa? A quem serve a justiça? Por que a justiça é
mais severa para uns e mais branda para outros?
Será um bom exercício para que você compreenda melhor sobre o conhecimento
flosófco. E agora, para encerrar este capítulo de estudo, conheça mais detalhes
sobre o conhecimento científco, tão enfatizado em nossa realidade acadêmica.
20
Teoria do Conhecimento
Observe que, “[...] o conhecimento científco é real – no sentido que se prende aos
fatos – e contingente – porque se pauta, além da racionalidade, pela experiência
e pela verifcabilidade [das coisas]”. (RAUEN, 2002, p. 22). Geralmente, ele se
verifca na prática, pela demonstração ou pela experimentação, dependendo da
área de estudo em que esteja inserido: seja nas áreas sociais e humanas ou nas
“exatas” e biológicas, por exemplo.
E então, você está lembrado do problema apresentado no início desta seção de estudo
para exemplifcar os tipos de conhecimento? Pois bem, com base nas informações
apresentadas sobre o conhecimento científco, como você analisa o problema da
justiça? Quais são as bases conceituais, no âmbito do conhecimento científco, para
fundamentar de forma metódica, racional e sistemática essa questão?
21
Capítulo 1
Se você ainda não formalizou uma ideia consistente ou convincente sobre a visão
da justiça sob o prisma do conhecimento científco, não seja impaciente, pois no
decorrer do próximo capítulo serão apresentadas outras características desse
tipo de conhecimento, além de estabelecer uma relação entre ciência, tecnologia
e arte, e de resgatar elementos de defnição e classifcação das ciências.
Assim, como você pode observar, cada tipo de conhecimento apresenta uma
forma bem peculiar de interpretar os fenômenos produzidos pela natureza ou pelo
homem. O problema da justiça, que foi o exemplo utilizado no decorrer de todo
o capítulo, ou qualquer outro problema, pode ser concebido ou interpretado à luz
dos diversos tipos de conhecimento.
22
Teoria do Conhecimento
Referências
ABBAGNANO, N. Dicionário de filosofia. 4. ed. São Paulo: Mestre Jou, 2000.
CHAUÍ, Marilena de Sousa. Convite a filosofia. 12. ed. São Paulo: Ática, 2002.
FERRATER MORA, José. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
SILVA, Mary Aparecida Ferreira da. Métodos e técnicas de pesquisa. 2. ed. rev.
atual. Curitiba: Ibpex, 2005.
23
Capítulo 1
Texto 2
Contextualização prévia
Diante da retórica pergunta que intitula este capítulo – “Que conhecimento
venho buscar na universidade? – este texto, indiretamente, sugere a resposta
esperada, indicando que o conhecimento científco é, por excelência, o
tipo de conhecimento a ser praticado em um ambiente universitário. Mais
especifcamente, o texto compara ciência e senso comum ao discutir um
exercício importante no processo cognitivo e indispensável no pensamento
científco: o exercício da abstração.
Como observa Borges Neto (2004, p. 20), “É preciso escolher alguns aspectos do
objeto, que vão ser considerados importantes, e ignorar o resto.”
Saber ignorar é uma arte; ou melhor, uma ciência. Abstrair é justamente esse ato
de selecionar determinados aspectos de um objeto e ignorar todos os demais.
Qualquer tentativa de estudar algo cientifcamente implica realizar abstrações,
isto é, isolar certas propriedades e certas relações consideradas pertinentes. O
que sobrar daquele objeto, ou será reservado para estudos posteriores, ou serão
considerados aspectos “marginais”, que não devem ser estudados naquela área
científca, mas em outra.
24
Teoria do Conhecimento
O escritor argentino Jorge Luis Borges (1982 [1960], p. 117) tem um pequeno
conto que expõe bem esse ponto:
O que a ironia fna de Borges quer mostrar é que um mapa como esse que esgote
seu objeto completamente será inútil. Para usar outra metáfora, podemos dizer
que a realidade se assemelha a uma foresta impenetrável: para que alguém
percorra uma foresta sem se perder, é necessário um mapa. Eis o que a ciência
faz: abstrai certos caminhos para que você possa conhecer algo sem se perder
na confusão da realidade.
Referências
BORGES, Jorge Luis. História Universal da Infâmia. Trad. de José Bento.
Lisboa: Assírio e Alvim, 1982 [1960].
25
Capítulo 2
Textos
Texto 1: Caminhos possíveis para o conhecimento
Texto 2: Racionalismo - fragmentos de Descartes
Texto 3: Criticismo - fragmentos de Kant
Texto 4: Empirismo - fragmentos de Locke
Texto 1
Contextualização prévia
Até aqui, esperamos que você tenha compreendido por que o conhecimento
científco é o conhecimento que se busca na universidade. No entanto, ainda
não falamos propriamente sobre como se chega a um conhecimento científco.
Afnal, que caminho devemos percorrer para chegar a um conhecimento que pode
ser considerado científco? Será que existe apenas um caminho? Se eu tenho
uma inquietação em relação a algum assunto, a algum problema, se eu tenho
uma curiosidade, como resolvê-la de maneira científca? Este primeiro texto do
Capítulo 2 mostrará três caminhos para se chegar a um conhecimento científco
conhecido como racionalismo, empirismo e criticismo. Leia com atenção,
procurando conectar essas três abordagens a problemas reais que afetam a sua
vida, ou que estejam relacionados à área de conhecimento do seu curso.
27
Capítulo 2
Seção 1
Descartes e o Racionalismo
Uma das principais características do pensamento moderno é a consideração
do sujeito racional como fundamento para o conhecimento e o reconhecimento
da atividade cognoscente, como o princípio que constitui e ordena o mundo
objetivo. O flósofo René Descartes (1596-1650), conhecido como fundador do
racionalismo moderno, considera que apesar da possibilidade inegável de se
obter informações dos corpos por meio dos órgãos dos sentidos, a essência dos
corpos é acessível somente pela razão.
Veja o exemplo:
Observe que o ramalhete de fores tem sua extensão alterada a cada dia, mas a
extensão não desaparece. Pensa Descartes que a extensão dos corpos não decorre
da percepção sensorial, mas somente pode ser captada pelo entendimento.
1 Texto originalmente publicado em: Teoria do conhecimento : livro didático / conteudistas, Alexandre de
Medeiros Motta, Gabriel Henrique Collaço, Marciel Evangelista Cataneo, ; design instrucional
Eliete de Oliveira Costa. – Palhoça : , 2013.
28
Teoria do Conhecimento
A res extensa refere-se à extensão do corpo e nisso os seres humanos são como
as coisas em geral. A res cogitans refere-se à alma, que é a parte pensante do ser
humano, diferindo, então, das coisas e dos outros animais.
Esse pensador defende que os dados obtidos pelos sentidos são imprecisos
demais para serem tomados como base do conhecimento científco. os Já́
conhecimentos obtidos pela via do raciocínio lógico, sobretudo o matemático, são
racionalmente demonstráveis, precisos, universais e seguros para sustentar a Ciência.
Os aspectos próprios dos objetos, como forma, textura, cor etc., são retirados
diretamente dos objetos ou das ações humanas sobre esses, mas eles não são
sufcientes para explicar as relações que estabelecemos quando conhecemos. Os
conceitos dos quais não temos referência sensível, como é o caso dos princípios da
Física e da Matemática, as ideias de extensão, infnitude, unidade, número, espaço,
tempo, causalidade etc., somente são alcançados com a atividade racional.
Qual é a origem do erro? Por que algumas pessoas erram e outras acertam? Por que
uma mesma pessoa ora acerta, ora erra? Seria possível acertarmos sempre?
29
Capítulo 2
Porém, uma vez que seja aplicado corretamente o método perfeito, é possível
confar na veracidade do conhecimento obtido por meio dele.
A dúvida cartesiana é a dúvida metódica, isto é, utilizada como meio para testar o
conhecimento e separar o válido do inválido, o verdadeiro do falso.
30
Teoria do Conhecimento
Imagine que você̂ e seus colegas de curso estão conversando a respeito das aulas
e o tema é a relação entre o desempenho dos professores e a aprendizagem dos
alunos. O diálogo poderia ser mais ou menos o que segue:
Aluno 1 – Quando o professor explica bem a matéria, a gente não fica com
dúvidas e consegue se sair bem na prova. Quando o professor fica em dúvida, a
gente não confia no que ele está́ ensinando.
Aluno 2 – Mas tem professor que explica bem a matéria e nem sempre responde
às perguntas que a gente faz, às vezes ele também não sabe a resposta. Assim, a
gente tem que perguntar para os colegas, pesquisar e tentar responder sozinha.
Aluno 1 – Isso é muito chato, a gente pensa, pensa e fica sem saber qual é a
resposta certa. Ora, professor bom é aquele que não deixa a gente com dúvidas.
Você̂ pensa que a dúvida do aluno deve ser sempre sanada e a dúvida do
professor sempre ocultada?
O racionalismo cartesiano teve críticos de valor, como o flósofo John Locke (1632
1704), considerado o maior representante do empirismo inglês. Para Locke, o
conhecimento é a percepção da ligação, do acordo e do contraste entre a ideia
e a coisa. Essa conformidade entre ideia e coisa, para o Empirismo, somente é
possível por meio da experiência empírica.
O Empirismo afrma que os seres humanos nascem com a mente vazia. A partir
das primeiras experiências que temos é que surgem as primeiras ideias, que nada
mais são do que representações das coisas concretas, percebidas por meio dos
órgãos dos sentidos e acumuladas desde o nascimento.
31
Capítulo 2
combinadas pela própria atividade racional e vão formando outras que são
denominadas complexas. Assim é sucessivamente, até que se possa chegar a
ideias com alto grau de complexidade lógica. Mas, por fm, tudo o que habita a
mente humana, de alguma forma, tem sua origem na experiência concreta.
Seção 2
Hume e o Empirismo
Outro conhecido empirista é David Hume (1711-1776). Para esse flósofo, a fonte do
conhecimento é a percepção e a associação mental das ideias que dela decorrem.
• as impressões ou sensações;
• as ideias.
Essas são impressões ou sensações que se dão ao sujeito sem que ele pense
nelas, elas não obedecem a qualquer lógica, e toda conclusão que decorre delas
são suposições, probabilidades.
Já́ as ideias nada mais são do que cópias das impressões, pois são
consideradas as percepções mais fracas da mente.
32
Teoria do Conhecimento
Estando na sauna, podemos lembrar das sensações que nos causou quando
estávamos em casa, podemos antecipá-las pela imaginação, ou podemosexplicar
até́ a
sauna como um fenômeno físico-químico, porém, essas lembranças ou representações
mentais jamais terão a força da sensação original, do fenômeno vivenciado.
• relações de ideias;
• relações ou questões de fato.
Essas relações ou associações não são aleatórias, mas seguem alguns princípios
universais de associação. As primeiras, as relações de ideias, englobam as
proposições cujas relações acontecem unicamente entre ideias, sem existirem de
fato na natureza (são números, formas geométricas, fórmulas matemáticas etc.).
33
Capítulo 2
• semelhança;
• contrariedade;
• graus de qualidade;
• quantidade ou número.
É possível realizar longos raciocínios a partir delas sem se alterarem, porque não
dependem dos fenômenos concretos. São proposições consideradas certas por
demonstração lógica e por intuição, independentemente do nível de complexidade
a que são levadas, conservam sempre sua exatidão, produzindo um conhecimento
universal e logicamente necessário, e, por isso mesmo, não podem ser obtidas por
meio de experiência concreta, que
já́ toda experiência é particular. Portanto, essas
relações entre ideias não tratam do conteúdo do mundo.
34
Teoria do Conhecimento
Todas as vezes que uma pedra é jogada para cima, ela cai, o homem já se
acostumou a ver esse fenômeno em toda sua vida, mas disso não decorre que
este fenômeno ocorrerá sempre. Pode ser, quem sabe, que um dia ela não caia.
Avisa Hume (1992) que o hábito pode nos levar a conclusões precipitadas sobre
as coisas e suas relações.
Reflita!
Agora imagine que lhe fosse apresentada uma escala de diversos matizes de
vermelho, do mais fraco para o mais forte, porém, faltando um dos matizes.
O que vai ocorrer é uma distância maior entre aqueles dois matizes contíguos, em
que falta um mais do que entre os outros matizes da escala.
Você pensa, mesmo sem conhecer a cor vermelha, seria possível identifcar a falta
de um matiz na escala de vermelho? Refita a respeito.
35
Capítulo 2
Seção 3
Kant e o Criticismo
Kant (1724-1804) é conhecido como um dos mais rigorosos flósofos de todos
os tempos. No que se refere à Teoria do Conhecimento, pode-se dizer que a sua
flosofa ao mesmo tempo em que critica as teorias anteriores (Empirismo inglês e
Racionalismo cartesiano), de certa forma, aglutina os seus aspectos mais importantes.
36
Teoria do Conhecimento
• sensibilidade/intuição;
• imaginação;
• entendimento;
• razão.
Nesse sentido, Kant afrma que os objetos aparecem para nós em função de
como esses afetam nossos sentidos.
Conforme Morente (1970, p. 229), conceito para Kant é uma unidade mental
dentro da qual estão compreendidos um número indefnido de seres e de coisas.
Portanto, é universal e não pode ser atingido pela sensação que somente nos
mostra a multiplicidade de coisas. Por exemplo, os diversos homens concretos e
o conceito único de homem.
37
Capítulo 2
regras que dão unidade a essas representações e aos conceitos. É a razão que
dá unidade às regras do entendimento. Por meio de sínteses internas, a razão
pode chegar aos seus próprios princípios, que são ideias puras.
• analíticos ou
• sintéticos.
Veja o exemplo:
Quando pronuncio a frase: “Nos dias em que neva faz frio”, o predicado, que é
o “faz frio”, já́ está contido em “Nos dias em que neva”, que é sujeito da oração.
Observe que o atributo “frio” já́ está contido, implícito, no conceito “neve”.
38
Teoria do Conhecimento
Há, também, os juízos sintéticos a priori. Ocorrem porque os juízos sintéticos que
dependem da experiência, que são a posteriori (como foi explicado no parágrafo
anterior), são universalizados e tomados como leis da natureza. Kant considera
que os juízos sintéticos a priori, apesar de ligados aos conceitos e às sensações
não estão limitados à experiência, por isso, são universais e necessários. Esses
são os juízos mais adequados às proposições científcas. Pode-se dizer que, com
esses juízos, Kant junta razão e experiência.
Em todo juízo analítico, o predicado é tal que esse “pertence” ao sujeito, está
contido no sujeito em função da própria constituição do sujeito. Ex:. Todo ser
humano é mortal. Veja que o predicado ‘mortal’ faz parte do sujeito ‘ser humano’.
Outro exemplo: Todo triângulo tem três lados. Veja que no sujeito ‘triângulo’ já́
está presente a ideia do que é dito no predicado ‘ter três ângulos’. Nesse tipo de
juízo, podemos reconhecer a verdade ou falsidade do juízo, independentemente
da experiência e fundamentalmente a partir da análise do próprio juízo. Todo
juízo analítico é considerado uma tautologia porque, de certo modo, repete
no predicado o que já́ foi dito no sujeito. Nesse sentido, todo juízo analítico é
considerado sempre verdadeiro, necessário e universal. Contudo, eles não nos
proporcionam um conhecimento ‘novo’ sobre a realidade.
Nos juízos sintéticos, o predicado é tal que não “pertence” ao sujeito, isto é, o
predicado não está́ contido no sujeito. Porém, o predicado pode ser dito sobre
o sujeito, isto é, podemos atribuir tal predicado ao sujeito. Veja um exemplo:
Sócrates está sentado. Veja que o predicado ‘sentado’ não faz parte da
constituição do sujeito ‘Sócrates’, mas é algo que podemos expressar sobre a
condição do sujeito. Esse é um juízo sintético a posteriori, porque a verdade
desse juízo depende de certa ‘experiência’, depende da nossa experiência para
podermos dizer se ele é verdadeiro ou falso. Observe o caráter cambiante de
veracidade desse juízo, da possibilidade, pois uma hora Sócrates pode estar
sentado e em outra não.
39
Capítulo 2
entre dois pontos”. Nesse tipo de juízo o sujeito (reta) e o predicado (pontos) se
referem a duas entidades distintas, o predicado não está́ contido no conceito do
sujeito, mas podemos ‘intuir’ essa lei de modo racional, independentemente da
experiência. Esse juízo sintético a priori acima expressa uma lei (matemática),
verdadeira em todas as localidades, lugares e épocas, independentemente da
experiência de alguém.
Referências
DESCARTES, René. Discurso do método. [Os pensadores], São Paulo: Nova
Cultural, 1996.
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. [Os pensadores], São Paulo: Nova
Cultural, 1996.
40
Teoria do Conhecimento
Texto 2
Contextualização prévia
Você já ouviu falar em Descartes ou em pensamento cartesiano? Provavelmente
já ouviu a máxima “penso, logo existo”, certo? Mas, para você o que isso signifca
de fato? Sabe qual é a importância dessa afrmação aparentemente simples?
Sabe por que Descartes chegou a afrmar isso?
No texto que você lerá a seguir, verá que Descartes chega a dizer isso depois de
levar às últimas consequências a dúvida sobre sua própria existência. Em outras
palavras, Descartes se pergunta: o que me garante que eu existo? O que me
garante que eu e todas as coisas à minha volta não são uma ilusão, um delírio
causado pelos meus sentidos? O que me garante que eu não estou em um
sonho? O que me garante que eu não fui criado por um Deus enganador, o qual
me faz crer que eu e esse mundo à minha volta existem, embora tudo não passe
de uma ilusão? (Isso não lembra aquele flme Matrix?) Tirando Deus de lado, o
que me garante que eu e esse mundo à minha volta não sejam uma enganação
provocada por meu próprio gênio malicioso?
Esse exercício que pode parecer maluco à primeira vista teve um valor muito
importante para a humanidade e para o mundo em que vivemos hoje. Com
esse exercício, Descartes mostrou que para conhecer alguma coisa temos que
colocá-la em dúvida até as últimas consequências, num exercício metódico e
racional. Isso mudou a ordem das coisas de uma tal maneira que passou a ser
considerado um marco inicial da modernidade.
3 Na dedução, primeiro eu formulo uma tese racionalmente, à maneira cartesiana, e depois eu verifco a
realidade.
4 Na indução, primeiro olho para a realidade, para depois encontrar padrões e formular teses. Lembre-se que a
indução é o tipo de pensamento usado no empirismo.
41
Capítulo 2
2. Agora, pois, que meu espírito está livre de todos os cuidados, e consegui
um repouso assegurado numa pacífca solidão, aplicar-me-ei seriamente e com
liberdade em destruir em geral todas as minhas antigas opiniões. Ora, não será
necessário, para alcançar esse desígnio, provar que todas elas são falsas, talvez
nunca levasse a cabo; mas, uma vez que a razão já me persuade de que não
devo menos cuidadosamente impedir-me de dar crédito às coisas que não são
inteiramente certas e indubitáveis do que às que nos parecem manifestamente ser
falsas, o menor motivo de dúvida que eu nelas encontrar bastará para me levar
a rejeitar todas. E, para isso, não é necessário examinar cada uma em particular,
isso seria um trabalho infnito; mas, visto que a ruína dos alicerces carrega
necessariamente consigo todo o resto do edifício, dedicar-me-ei inicialmente aos
princípios sobre os quais todas as minhas antigas opiniões estavam apoiadas.
4. Mas, ainda que os sentidos nos enganem às vezes, no que se refere às coisas
pouco sensíveis e muito distantes, encontramos talvez muitas outras, das quais
não se pode razoavelmente duvidar, embora as conhecêssemos por intermédio
deles: por exemplo, que eu esteja aqui, sentado junto ao fogo, vestido com um
chambre, tendo este papel entre as mãos e outras coisas dessa natureza. E como
poderia eu negar que estas mãos e este corpo sejam meus? A não ser talvez que
eu me compare a esses insensatos, cujo cérebro está de tal modo perturbado e
ofuscado pelos negros vapores da bile que constantemente asseguram que são
reis quando são muito pobres: estão vestidos de ouro e de púrpura quando estão
inteiramente nus: ou imaginam ser cântaros ou ter um corpo de vidro. Mas quê?
São loucos e eu não seria menos extravagante se me guiasse por seus exemplos.
5. Todavia, devo aqui considerar que sou homem e, por conseguinte, que tenho
o costume de dormir e de representar, em meus sonhos, as mesmas coisas, ou
algumas vezes menos verossímeis, que esses insensatos em vigília. Quantas
42
Teoria do Conhecimento
vezes ocorreu-me sonhar, durante a noite, que estava neste lugar, que estava
vestido, que estava junto ao fogo, embora estivesse inteiramente nu dentro de meu
leito? Parece-me agora que não é com olhos adormecidos que contemplo este
papel; esta cabeça que eu mexo não está dormente: é com desígnio e propósito
deliberado que estendo esta mão e a sinto: o que ocorre no sono não parece ser
tão claro nem tão distinto quanto tudo isso. Mas, pensando cuidadosamente nisso,
lembro-me de ter sido muitas vezes enganado, quando dormia, por semelhantes
ilusões. E detendo-me neste pensamento, vejo tão manifestamente que não há
quaisquer indícios concludentes, nem marcas assaz certas, por onde se possa
distinguir nitidamente a vigília do sono, que me sinto inteiramente pasmado: e meu
pasmo é tal que é quase capaz de me persuadir de que estou dormindo.
9. Todavia, há muito que tenho no meu espírito certa opinião de que há um Deus
que tudo pode e por quem fui criado e produzido tal como sou. Ora, quem me
poderá assegurar que esse Deus não tenha feito com que não haja nenhuma
terra, nenhum céu, nenhum corpo extenso, nenhuma fgura, nenhuma grandeza,
nenhum lugar e que, não obstante, eu tenha os sentimentos de todas essas
coisas e tudo isso não me pareça existir de maneira diferente daquela que eu
vejo? E, mesmo, como julgo que alguma vezes os outros se enganam até nas
coisas que eles acreditam saber com maior certeza, pode ocorrer que Deus
tenha desejado que eu me engane todas as vezes nas quais faço a adição de
dois mais três, enumero os lados de um quadrado, ou julgo alguma coisa ainda
mais fácil, se é que se pode imaginar algo mais fácil do que isso. Mas pode ser
que Deus não tenha querido que eu seja decepcionado desta maneira, pois ele
é considerado soberanamente bom. Todavia, se repugnasse à sua bondade
fazer-me de tal modo que eu me enganasse sempre, pareceria também ser-lhe
contrário permitir que eu me engane algumas vezes e, no entanto, não posso
duvidar de que ele me permita.
43
Capítulo 2
10. Haverá talvez aqui pessoas que preferirão negar a existência de um Deus
tão poderoso a acreditar que todas as outras coisas são incertas. Mas não
lhes resistamos no momento e suponhamos, em favor delas, que tudo quanto
aqui é dito de um Deus seja uma fábula. Todavia, de qualquer maneira que
suponham ter eu chegado ao estado e ao ser que possuo, quer o atribuam a
algum destino ou fatalidade, quer o refram ao acaso, quer queiram que isto
ocorra por uma contínua série e conexão das coisas, é certo que, já que falhar e
enganar-se é uma espécie de imperfeição, quanto menos poderoso for o autor a
que atribuírem minha origem, tanto mais será provável que eu seja de tal modo
imperfeito que me engane sempre. Razões às quais nada tenho a responder,
mas sou obrigado a confessar que, de todas as opiniões que recebi outrora em
minha crença como verdadeiras, não há nenhuma da qual não possa duvidar
atualmente, não por alguma inconsideração ou leviandade, mas por razões muito
fortes e maduramente consideradas: de sorte que é necessário que interrompa
e suspenda doravante meu juízo sobre tais pensamentos, e que não mais lhes
dê crédito, como faria com as coisas que me parecem evidentemente falsas, se
desejo encontrar algo de constante e de seguro nas ciências. [...]
12. Suporei, pois, que há não um verdadeiro Deus, que é a soberana fonte da
verdade, mas certo gênio maligno, não menos ardiloso e enganador do que
poderoso, que empregou toda a sua indústria em enganar-me. Pensarei que o
céu, o ar, a terra, as cores, as fguras, os sons e todas as coisas exteriores que
vemos são apenas ilusões e enganos de que ele se serve para surpreender minha
credulidade. Considerar-me-ei a mim mesmo absolutamente desprovido de mãos,
de olhos, de carne, de sangue, desprovido de quaisquer sentidos, mas dotado da
falsa crença de ter todas essas coisas. Permanecerei obstinadamente apegado
a esse pensamento; e se, por esse meio, não está em meu poder chegar ao
conhecimento de qualquer verdade, ao menos está ao meu alcance suspender meu
juízo. Eis por que cuidarei zelosamente de não receber em minha crença nenhuma
falsidade, e prepararei tão bem meu espírito a todos os ardis desse grande
enganador que, por poderoso e ardiloso que seja, nunca poderá impor-me algo.
44
Teoria do Conhecimento
2. Arquimedes, para tirar o globo terrestre de seu lugar e transportá-lo para outra
parte, não pedia nada mais exceto um ponto que fosse fxo e seguro. Assim,
terei o direito de conceber altas esperanças, se for bastante feliz para encontrar
somente uma coisa que seja certa e indubitável.
3. Suponho, portanto, que todas as coisas que vejo são falsas; persuado-me
de que nada jamais existiu de tudo quanto minha memória repleta de mentiras
me representa; penso não possuir nenhum sentido; creio que o corpo, a fgura,
a extensão, o movimento e o lugar são apenas fcções de meu espírito. O que
poderá, pois, ser considerado verdadeiro? Talvez nenhuma outra coisa a não ser
que nada há no mundo de certo.
4. Mas que sei eu, se não há nenhuma outra coisa diferente das que acabo de
julgar incertas, da qual não se possa ter a menor dúvida? Não haverá algum Deus,
ou alguma outra potência, que me ponha no espírito tais pensamentos? Isso não
é necessário; pois talvez seja eu capaz de produzi-los por mim mesmo. Eu então,
pelo menos, não serei alguma coisa? Mas já neguei que tivesse qualquer sentido
ou qualquer corpo. Hesito no entanto, pois que se segue daí? Serei de tal modo
dependente do corpo e dos sentidos que não possa existir sem eles? Mas eu me
persuadi de que nada existia no mundo, que não havia nenhum céu, nenhuma terra,
espíritos alguns, nem corpos alguns; não me persuadi também, portanto, de que eu
não existia? Certamente não, eu existia sem dúvida, se é que eu me persuadi, ou,
apenas, pensei alguma coisa. Mas há algum, não sei qual, enganador mui poderoso
e mui ardiloso que emprega toda a sua indústria em enganar-me sempre. Não há
pois dúvida alguma de que sou, se ele me engana; e, por mais que me engane, não
poderá jamais fazer com que eu nada seja, enquanto eu pensar ser alguma coisa.
De sorte que, após ter pensado bastante nisto e de ter examinado cuidadosamente
todas as coisas, cumpre, enfm, concluir e ter por constante que esta proposição,
eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira, todas as vezes que a enuncio ou
que a concebo em meu espírito.
Referências
DESCARTES, René. Meditações metafísicas. In: MARCONDES, Danilo. Textos
básicos de filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999 [1641].
45
Capítulo 2
Texto 3
Contextualização prévia
Diante do sucesso do racionalismo cartesiano, diversos homens da ciência
manifestaram uma postura cautelosa em relação a esse apelo extremo à razão.
Com suas palavras, eles disseram: espere aí, não podemos desprezar o valor
dos sentidos, não podemos menosprezar a experiência, pois é a partir dela
que criamos nossos entendimentos e conceitos sobre o mundo, sem os quais
não poderíamos sequer pensar ao modo cartesiano, não poderíamos sequer
desenvolver nossas faculdades racionais.
Como dirá Locke, nossos sentidos e as experiências que eles nos permitem são
a porta de entrada para o “quarto escuro” da nossa mente. Nossos sentidos
são nosso acesso ao mundo, por isso não podemos jamais fcar distantes da
experiência, confando cegamente nas presunções que nossa mente elabora.
Em seus termos, a mente apreende seus primeiros objetos e progride com base
na provisão e armazenamento das ideias proporcionadas pela experiência,
a partir das quais todo conhecimento é modelado. Por isso, devo recorrer à
experiência e observação para verifcar se estou correto: “a melhor maneira para
atingir a verdade consiste em examinar de que modo as coisas realmente são,
e não concluir o que são segundo imaginamos ou fomos ensinado por outrem a
imaginar.” (LOCKE, 1999 [1690], p. 88).
46
Teoria do Conhecimento
47
Capítulo 2
48
Teoria do Conhecimento
14. Método utilizado nesta explicação das faculdades. Penso que são estas as
primeiras faculdades e operações da mente utilizadas pelo entendimento. Embora
sejam exercidas com respeito a todas as ideias, os exemplos que empreguei
acima referem-se principalmente às ideias simples, acrescidos da explicação
destas faculdades da mente acerca das ideias simples. Abordei-as antes das
complexas pelas seguintes razões: Primeiro, sendo várias destas faculdades
exercidas principalmente no início com respeito às ideias simples, poderíamos,
segundo a natureza deste método ordinário, traçá-las e descobri-las em seu
nascimento, progresso e gradual aperfeiçoamento. Segundo, observando como
as faculdades da mente operam em relação às ideias simples, usualmente bem
mais claras para a maioria das mentes humanas, devemos antes examinar e
entender como a mente extrai, denomina, compara e exercita em suas outras
operações com as complexas, em que nos encontramos mais expostos ao erro.
Terceiro, porque as próprias operações da mente acerca das ideias recebidas
das sensações formam por si mesmas, quando refetem sobre elas, outra série
de ideias devidas a outra fonte do conhecimento que denomino de refexão,
portanto, adequada para ser examinada depois das ideias simples da sensação.
Os atos de compor, comparar, abstrair etc., aos quais me referi há pouco, serão
amplamente discutidos em outras passagens.
16. Apelo à experiência. Esta é, na verdade, a única via que pude descobrir como
adequada para levar as ideias das coisas ao entendimento. Se outros homens
possuem ideias inatas, ou princípios incutidos, têm motivos para usufruírem
deles; se estiverem certos disso, não será possível a outrem negar-lhes a
vantagem que têm sobre seus semelhantes. Apenas posso me manifestar acerca
do que desvendo em mim mesmo, que está de acordo com aquelas noções, pois,
examinando o desenvolvimento completo dos homens em suas várias idades,
países e educação, parece que dependem das bases por mim colocadas e
correspondem ao método em todos os seus aspectos e graus.
49
Capítulo 2
17. Quarto escuro. Não me cabe ensinar, mas investigar; portanto, posso
apenas de novo admitir que as sensações externas e internas são as únicas
passagens descobertas do conhecimento para chegar ao entendimento. Somente
essas, no que foi dado descobrir, são janelas pelas quais a luz é introduzida no
quarto escuro. Parece-me que o entendimento não difere muito de um armário
totalmente vedado contra a luz, com apenas algumas pequenas aberturas que
permitem a entrada de imagens visíveis externa, ou ideias de coisas externas.
Se as imagens introduzidas fcassem neste quarto escuro e permanecessem de
tal forma ordenadas para serem ocasionalmente descobertas, seria bastante
semelhante ao entendimento do homem em relação a todos os objetos visíveis e
a suas ideias. São estas as minhas conjecturas acerca dos meios pelos quais o
entendimento apreende e retém ideias simples, assim como seus modos e outras
operações a respeito delas. Examinarei algumas dessas ideias simples e seus
modos com mais pormenores.
Referências
LOCKE, John. Ensaio acerca do entendimento humano. São Paulo: Abril, 1999
[1690].
50
Teoria do Conhecimento
Texto 4
Contextualização prévia
Mas e então? Devo desconfar dos meus sentidos e me guiar apenas pela razão,
por meio da dúvida metódica, como sugere Descartes; ou devo evitar as falácias
racionalistas e admitir que só posso ter algum conhecimento do mundo por meio
dos meus sentidos?
Mais importante ainda é o fato de que Kant alertou para as limitações do nosso
conhecimento, mostrando que não podemos conhecer as coisas de fato, senão
as expressões do fenômeno em que ela se materializa: sensações dos objetos
do mundo, como cor, cheiro, calor, textura etc. Isto é, conhecemos aquilo que
a nossa mente (ou a nossa estrutura cognitiva) nos permite conhecer. Isso é
muito importante, pois em última instância exige uma postura de humildade por
parte do cientista: eu só posso conhecer aquilo que as minhas capacidades me
permitem conhecer, e isso é só uma pequena parcela do mundo real.
51
Capítulo 2
52
Teoria do Conhecimento
intuição sensível não alcança, são denominadas noumena, para com isso indicar
que aqueles conhecimentos não podem estender a sua região a tudo o que
o entendimento pensa). Em conclusão, porém, não se pode absolutamente
entrever a possibilidade de tais noumena, e o âmbito além da esfera dos
fenômenos é (para nós) vazio, isto é, nós possuímos um entendimento que se
estende problematicamente para além daquela esfera, mas não possuímos
nenhuma intuição, antes, nem sequer o conceito de uma tal intuição, pela qual
nos sejam dados objetos fora do campo da sensibilidade e o entendimento
possa ser utilizado assertoricamente para além dessa. Portanto, o conceito de
um noumenon simplesmente um conceito limite para restringir a pretensão da
sensibilidade, sendo, portanto, de uso meramente negativo. Tal conceito não
é, entretanto, inventado arbitrariamente, mas se conecta com a restrição da
sensibilidade, sem, contudo, colocar algo positivo fora do âmbito dela.
Referências
KANT, Immanuel. Introdução à lógica transcendental. In: FIGUEIREDO, Vinicius
Berlendis de. Kant & a Crítica da razão pura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005 [1781].
53
Capítulo 3
Há outros caminhos?
Textos
Texto 1: Questões da teoria do conhecimento na contemporaneidade
Texto 2: Falsifcabilismo: fragmentos de Popper
Texto 3: Teoria dos paradigmas: fragmentos de Kuhn
Texto 1
Contextualização prévia
Mas e então? Será que o desenvolvimento das abordagens científcas modernas
para no criticismo kantiano? Do século XVIII para cá, não surge nenhuma
outra teoria inovadora que nos ofereça caminhos alternativos para chegar ao
conhecimento científco? Que nos lance alguma luz sobre o modo como se pode
conhecer algo?
No texto a seguir você verá que, muito pelo contrário, depois do surgimento
do criticismo, diversas outras abordagens se propuseram a revolver os dilemas
do método científco, inclusive a clássica controvérsia entre racionalismo
e empirismo. Entre elas, estão o positivismo, a teoria dos paradigmas, e o
anarquismo epistemológico. Boa leitura!
55
Capítulo 3
Descartes (1596-1650), em sua época – e não se pode esquecer que era uma
época de crença no poder da razão – estava preocupado em construir um
método assentado na Matemática, que garantisse um conhecimento verdadeiro.
Hume (1711-1776), por seu lado, estava preocupado em frear a confança na
razão como fonte única de conhecimento, questionando a relevância do método
dedutivo e do conhecimento puramente abstrato, questionando, também, a
possibilidade do conhecimento das coisas em si e apontando as falhas da
aplicação do método indutivo.
1 Texto originalmente publicado em: Teoria do conhecimento : livro didático / conteudistas, Alexandre de
Medeiros Motta, Gabriel Henrique Collaço, Marciel Evangelista Cataneo, ; design instrucional
Eliete de Oliveira Costa. – Palhoça : , 2013.
56
Teoria do Conhecimento
57
Capítulo 3
58
Teoria do Conhecimento
59
Capítulo 3
Referências
FEYERABEND, Paul. Contra o método; tradução de Octanny S. da Mota e
Leonidas Hegenberg. Rio de Janeiro: F. Alves, 1977.
60
Teoria do Conhecimento
Texto 2
Contextualização prévia
No início do século XX, Karl Popper revolucionou a maneira de conceber o
conhecimento científco ao mostrar que qualquer teoria científca será sempre
provisória, e que mais cedo ou mais tarde ela será derrubada. Ele argumentou
que não é possível confrmar a veracidade de uma teoria simplesmente porque
os resultados previstos por ela se confrmaram. Essa confrmação prova
simplesmente que essa teoria pode ser considerada científca, nada mais.
Entretanto, se ela realmente for uma teoria científica, mais cedo ou mais
tarde, a experiência e as observações do mundo real podem e devem
encontrar provas da falsidade daquela teoria.
Isso mudou a defnição da ciência, pois “científco” passou a ser apenas aquilo
que se submete a esse confronto com os fatos. Ou seja, só é científca aquela
teoria que possa ser falseável (refutável). Popper mostrou que a verdade é, em
última instância, inalcançável, mas mesmo assim devemos nos aproximar dela
por tentativas, e isso é fazer ciência. Portanto, se houver uma teoria ainda não
refutada pelos fatos e pelas observações, temos a obrigação de questionar: será
que é mesmo assim? Ou será que isso pode ser refutado? O exemplo de Einstein,
que rompeu com a física newtoniana (que parecia irrefutável), é um ótimo exemplo
do falsifcabilismo popperiano.
Falsifcabilidade signifca que uma teoria pode ser examinada e, no caso de não
passar no exame, ser declarada falsa. Mas isso não signifca que essa teoria
deva ser enterrada. Podemos, de fato, corrigir a nossa teoria, modifcá-la. E, por
vezes, as correções, mesmo limitadas, podem fazer uma enorme diferença, pode
acontecer que uma pequena correção reforce de tal modo a teoria que ela acabe
61
Capítulo 3
Rai – Isso é verdade no que respeita a uma refutação conseguida. Mas e quando
não conseguimos refutar ou provar a falsidade de uma teoria?
Popper – Se o teste não refutar a teoria, só podemos dizer que a teoria passou
no exame. Não podemos dizer muito mais. Não tem grande signifcado o fato de
a teoria passar numa certa prova. Signifca simplesmente que nada nos obriga
a abandonar a teoria e que, se até agora não a tínhamos levado muito a sério, é
altura de o fazer. Mas isto não nos leva a muito. E muito menos a afrmar que a
teoria seja verdadeira. O que podemos dizer é que a teoria foi controlada sem ser
refutada e nada mais. Não podemos chamar “verifcação” a passagem no exame
ou teste a que a teoria foi submetida. Literalmente, o termo verifcação signifca
tornar verdadeira uma teoria, “verifcá-la” (verifcar vem do latim verum facere). Na
realidade, não podemos “fazer verdadeira” nenhuma teoria, nem mesmo mostrar
que é verdadeira. O único objetivo dos testes a que submetemos as teorias é o de
falsifcá-las, não o de verifcá-las. (POPPER, 1989).
Ora bem, de um ponto de vista lógico, está longe de ser óbvio que a inferência
de enunciados universais a partir de enunciados particulares, por mais elevado
que seja o seu número, esteja por si mesma justifcada; pois qualquer conclusão
a que cheguemos por esta via corre sempre o risco de um dia se tornar falsa:
assim, seja qual for o número de exemplares de cisnes brancos que tenhamos
observado, isso não justifca a conclusão de que todos os cisnes sejam brancos.
A obra de Hume devia ter mostrado claramente que o princípio da indução pode
facilmente gerar incoerências que só poderemos evitar, se é que podemos — com
muita difculdade. […]
62
Teoria do Conhecimento
63
Capítulo 3
Nunca podemos ter a certeza absoluta de que a nossa teoria não esteja perdida.
A única coisa que podemos fazer é procurar o conteúdo de falsidade da nossa
melhor teoria, o que realizamos tentando refutá-la, isto é, tentando contrastá-la de
um modo vigoroso à luz de todos os nossos conhecimentos objetivos e de toda
a nossa inteligência. Há sempre, naturalmente, a possibilidade de que a teoria
seja falsa ainda que saia airosamente de todos esses contrastes. Se sai airosa de
todos estes contrastes, podemos ter boas razões para supor que a nossa teoria
possui um conteúdo de verdade superior ao da sua predecessora, possa não
possuir um conteúdo de falsidade maior. Porém, se não conseguirmos refutar as
novas teorias, especialmente nos domínios em que a sua antecessora tenha sido
refutada, então, podemos considerar isso como uma das razões objetivas a favor
da hipótese de que a nova teoria constitua uma aproximação da verdade maior
do que a anterior. [...] Em conclusão: nunca podemos justifcar racionalmente uma
teoria, isto é, a pretensão de que conhecemos a sua verdade, mas, se tivermos
sorte, podemos justifcar racionalmente a preferência provisória por uma teoria
sobre todo um conjunto de teorias rivais. [...] Ainda que não possamos justifcar a
pretensão de que uma teoria seja verdadeira, podemos justifcar que tudo parece
indicar que a teoria constitui uma aproximação da verdade maior do que qualquer
das teorias rivais propostas até ao momento. (POPPER, 1999 [1966], p. 83-84).
64
Teoria do Conhecimento
Ainda que deva ser criticado, o senso comum tem de ser sempre o nosso ponto
de partida. [...] A teoria do senso comum é muito simples. Se qualquer um de nós
desejar conhecer algo que desconhece sobre o mundo, não terá mais que abrir os
olhos e olhar em volta. Temos de dirigir as orelhas e ouvir os ruídos, [...] Os diversos
sentidos são pois as nossas fontes de conhecimento - as fontes ou os acessos à
nossa mente. Referi-me muitas vezes a esta teoria, designando-a teoria da mente,
como um balde.
65
Capítulo 3
Tudo isto pode ser expresso dizendo que o crescimento do nosso conhecimento
é o resultado de um processo semelhante ao que Darwin chamou ‘seleção
natural’, isto é, a seleção natural de hipóteses: o nosso conhecimento consiste, a
cada momento, daquelas hipóteses que mostraram a sua aptidão (comparativa)
para sobreviver até agora na sua luta pela existência, uma luta de competição que
elimina aquelas hipóteses que são incapazes. (POPPER, 1999 [1966], p. 237-238).
Referências
POPPER, Karl R. A lógica da pesquisa científica. São Paulo: Cultrix, 1993 [1934].
66
Teoria do Conhecimento
Texto 3
Contextualização prévia
Popper mostrou que, via de regra, toda teoria realmente científca é provisória:
mais cedo ou mais tarde ela deve ser refutada, e é isso o que a faz ser científca.
No entanto, por que algumas teorias demoram tanto para serem refutadas? Por
que a física newtoniana demorou tanto para ser desconstruída por Einstein? O
que sustenta uma teoria, ou um modo de fazer ciência, por tanto tempo?
Thomas Kuhn nos alertou para o fato de que, de tempos em tempos, uma teoria
de alta capacidade heurística (de alto poder de explicação) instaura um modelo
para se fazer ciência em determinada área. O sucesso de uma teoria extraordinária
faz com que por muito tempo os demais cientistas daquela área ajam conforme
os mesmos parâmetros daquela teoria modelar (paradigmática), olhem para os
mesmos objetos que ela olhou, sob o mesmo ponto de vista, com as mesmas
ferramentas. Isto é, uma teoria extraordinária que revoluciona determinada área de
conhecimento dita por certo tempo como a ciência deve ser feita naquela área, até
que uma nova teoria extraordinária revolucione esse paradigma.
67
Capítulo 3
68
Teoria do Conhecimento
A minha posição fcará ainda mais clara se eu agora perguntar o que é que fca
para a comunidade científca fazer quando existe um paradigma. A resposta
- tendo em vista a resistência a inovações que existe e que é frequentemente
escondida debaixo do tapete - é que, dado um paradigma, os cientistas
esforçam-se, usando todas as suas capacidades e todos os seus conhecimentos,
para opor cada vez mais de acordo com a natureza. Muito do seu esforço,
principalmente nas fases iniciais de desenvolvimento do paradigma, procura
torná-lo preciso em áreas em que a formulação original fora, como não podia
deixar de ser, vaga. Por exemplo, sendo já conhecido que a eletricidade era um
fuido com partículas em interação mútua a distância, os teóricos da eletricidade
após Franklin podiam tentar determinar a lei quantitativa da força entre partículas
69
Capítulo 3
elétricas. [...] Este tipo de problemas não constitui o único campo a conquistar
que um paradigma propõe à comunidade que o aceita. Há sempre muitos outros
campos onde o paradigma supostamente pode funcionar, mas em que não foi,
de fato, ainda aplicado. O ajustamento do paradigma à natureza em tais casos
ocupa com frequência os melhores talentos de uma geração. As tentativas no
século XVIII de desenvolver a teoria de Newton das cordas vibrantes constituem
um exemplo signifcativo [...]. Além disso, existe sempre um trabalho imenso,
fascinante, para melhorar o acordo num campo onde se demonstrou já existir
um certo acordo aproximado. Trabalho teórico em problemas desse tipo é
ilustrado no século XVIII, com a investigação das perturbações que fazem desviar
os planetas das suas órbitas keplerianas [...] E acompanhando todos esses
problemas e muitos outros coloca-se toda uma série ininterrupta de barreiras
experimentais. Teve de ser inventada e construída uma aparelhagem especial
para permitir a determinação por Coulomb da lei da força eléctrica. (KUHN, 2012
[1961], p. 62-63).
Mas é claro que a ciência normal nem sempre tem êxito e ao reconhecer esse
fato deparamos com a segunda grande vantagem da investigação de base
paradigmática. Ao contrário de muitos dos antigos teóricos da eletricidade,
o praticante de uma ciência madura sabe com precisão razoável a que tipo
de resultado pode chegar com a sua investigação. Está, pois, numa posição
especialmente favorável para detectar um problema de investigação que saia
fora do esperado. Por exemplo, como Galvani ou Roentgen, ele pode deparar
com um efeito que sabe não ter razão para ocorrer. [...] Como se vê por estes
exemplos e por muitos outros, a prática científca normal de solucionar puzzles
pode levar, e leva de fato, ao reconhecimento e isolamento de uma anomalia.
Um reconhecimento dessa natureza é, penso eu, pré-condição para quase
todas as descobertas de novos tipos de fenômenos e para todas as inovações
fundamentais da teoria científca. Depois de um primeiro paradigma ter sido
alcançado, uma quebra nas regras do jogo preestabelecido é o prelúdio habitual
para uma inovação científca importante. [...]. O processo para [os fatos] ajustar-
se melhor dá origem a muitos dos problemas standard da ciência normal. E há,
quase sempre, cientistas convictos que conseguem resolvê-los. Porém, nem
sempre conseguem, e quando falham repetidas vezes e cada vez mais, então,
o seu setor da comunidade científca depara com o que algures chamei de
‘crise’. Ao reconhecer que algo está fundamentalmente errado na teoria com que
trabalham, os cientistas tentarão articulações mais fundamentais da teoria do que
as que eram admitidas antes. [...] Ao mesmo tempo, irão começar mais ou menos
ao acaso experiências na zona da difculdade, na esperança de descobrir algum
efeito que sugira a maneira de pôr a situação a claro. É só em situações desse
gênero que, penso eu, uma inovação fundamental na teoria científca é, não só
inventada, mas aceite. (KUHN, 2012 [1961], p. 67-71).
70
Teoria do Conhecimento
Para Kuhn, uma revolução científca defne-se como uma mudança do paradigma
de uma comunidade. De fato, não se pode imaginar transformação mais total,
mais profunda, se nos lembrarmos do carácter da dominação paradigmática, da
sua infuência sobre os membros da comunidade e do seu papel primordial na
investigação que conduzem. Kuhn descreve as revoluções científcas a dois níveis
que importa não confundir: a atividade e as concepções do membro individual
da comunidade e a atividade da comunidade como tal. Enquanto que, durante
os períodos normais, uma comunidade se caracteriza justamente pela estreita
semelhança desses dois níveis de descrição, em período de ‘crise’ é necessário
recorrer ao estudo das relações que ligam e opõem o comportamento do membro
ao da sua comunidade para compreender os traços mais característicos das
revoluções científcas. [...] É durante o período de indecisão entre um (paradigma)
e outro (paradigma) que a comunidade se entrega ao que Kuhn chama uma
investigação ‘extraordinária’. Desde que a existência de um paradigma rival,
adotado por um certo número de membros da sua comunidade, coloque ao
homem de ciência o problema da legitimidade do seu próprio paradigma, este
já não pode servir de ‘regra do jogo’ e a investigação normal torna-se, em
virtude desse fato, impossível. [...] Em época de crise, os problemas já não são
estudados enquanto puzzles, mas para provar o valor do tipo de solução baseado
num paradigma e refutar o rival. Em cada campo, as experiências têm por
objetivo demonstrar o poder e a fecundidade dum paradigma e apanhar em falso
o adversário. É no fm desse período, o único em que o valor de um paradigma
é realmente confrontado com a prova dos fatos, que a decisão é tomada, com a
eventual conversão da maioria dos membros da comunidade. Nesse momento,
o paradigma vencido será radicalmente suprimido da memória da comunidade.
(KUHN, 2012 [1961], p. 109-113).
Referências
KUHN, Thomas. A função do dogma na investigação científica. Trad. Jorge
Dias de Deus. Curitiba: UFPR/SCHLA, 2012 [1961].
71
Capítulo 4
Textos
Texto 1: Ética e outras questões contemporâneas: fragmento de A. F. Chalmers
Texto 2: O nascimento da bioética: fragmento de Diniz & Guilhem
Texto 1
Contextualização prévia
Até aqui você conheceu diversas abordagens científcas, desde as mais clássicas,
como o racionalismo, o empirismo e o criticismo, até as mais recentes, como o
falsifcabilismo e a teoria dos paradigmas. Uma vez que você, como acadêmico,
venha a tentar resolver um problema, uma inquietação, de modo científco, é natural
que assuma alguma dessas abordagens para encaminhar o seu problema. E então
você pode se perguntar: acabou? Isso é tudo? Basta eu ter um problema, assumir
uma abordagem científca, escolher um método e partir para a investigação?
73
Capítulo 4
Ora, a ciência, na concepção “clássica” que ainda reina em nossos dias, separa por
princípio fato e valor, ou seja, elimina do seu meio toda a competência ética e baseia
seu postulado de objetividade na eliminação do sujeito do conhecimento científco.
Não fornece nenhum meio de conhecimento para saber o que é um “sujeito”.
Por outro lado, o caso de Einstein implica questão sociológica mais geral, a da
ecologia dos atos cujo princípio podemos formular do seguinte modo: o ato de um
indivíduo ou de um grupo entra num complexo de inter-retroações que o fazem
74
Teoria do Conhecimento
derivar, desviar e, por vezes, inverter seu sentido; assim, uma ação destinada à
paz pode, eventualmente, reforçar as probabilidades da guerra; inversamente, uma
ação que reforce os riscos de guerra pode, eventualmente, proporcionar a paz
(intimidação). Portanto, não basta ter boas intenções para ser verdadeiramente
responsável. A responsabilidade deve enfrentar uma terrível incerteza.
75
Capítulo 4
sua ação no mundo, mas é produzido para ser armazenado em bancos de dados
e manipulado por poderes anônimos. Geralmente, a tomada de consciência dessa
situação chega partida ao espírito do investigador científco, que a reconhece e,
ao mesmo tempo, dela se protege em tríptica visão que dissocia e não permite a
comunicação de: ciência (pura, nobre, bela, desinteressada), técnica (que, como a
língua de Esopo, pode servir para o melhor e para o pior) e política (má e nociva,
que perverte a técnica, isto é, os resultados da ciência).
Mas seria inteiramente ilusório crer que se pode encontrar uma solução mágica.
Pelo contrário, há que insistir no contra- efeito de duas ilusões: 1) a ilusão de que
existe uma consciência política de base científca que possa guiar o pesquisador
toda teoria política que se pretende científca tende a monopolizar a qualidade
de ciência, revelando, assim, sua anticientifcidade; 2) a ilusão de que uma
consciência moral é sufciente para que a ação que desencadeia tome o sentido
de seu objetivo. A ecologia da ação mostra que nossas ações, uma vez entradas
76
Teoria do Conhecimento
Pode parecer que lhes apresento um quadro desesperado, que introduzo a dúvida
generalizada que, destruindo a rocha sólida das convicções, deve provocar
pessimismo desmoralizador e devastador. Mas isso seria esquecer que é
necessário desintegrar as falsas certezas e as pseudo-respostas, quando se quer
encontrar as respostas adequadas. Seria esquecer que a descoberta de um limite
ou de uma carência em nossa consciência já constitui progresso fundamental e
necessário para essa consciência.
77
Capítulo 4
Ainda (?) não temos uma solução. Entretanto, devemos viver e assumir um
politeísmo de valores. Mas, ao contrário do politeísmo inconsciente (no qual
o pesquisador que obedece no seu laboratório a ética do conhecimento
se transforma bruscamente, fora do laboratório, em amante ciumento,
marido egoísta, pai brutal, motorista histérico, cidadão limitado e se satisfaz
politicamente com afrmações que rejeitaria com desprezo, se dissessem respeito
a seu campo profssional), o politeísmo deve tornar-se consciente.
Há, certamente, um limite para a ética do conhecimento; mas era invisível e nós
o transpusemos sem saber o limite no qual o conhecimento traz consigo a morte
generalizada.
Então, só nos resta, atualmente, uma coisa: resistir aos poderes que não
conhecem limites e que já, em grande parte da terra, amordaçam e controlam
todos os conhecimentos, salvo o conhecimento científco tecnicamente utilizável
por eles, porque esse, precisamente, está cego para suas atividades e para seu
papel na sociedade, está cego para suas responsabilidades humanas.
Referências
MORIN, Edgard. A responsabilidade do pesquisador perante a sociedade e o
homem. In: MORIN, Edgard. Ciência com consciência. Trad. Maria D. Alexandre
e Maria Alice Sampaio Dória. 8 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005 [1982].
78
Teoria do Conhecimento
Texto 2
Contextualização prévia
Enquanto que o texto anterior, de Morin, traz questões conceituais mais
amplas para pensar a ética na pesquisa científca, o texto a seguir, de Debora
Diniz e Dirce Guilhem, duas autoridades na área de bioética, traz uma série de
casos concretos de violação de princípios éticos na prática científca ao longo
da história, pelo mundo e no Brasil. Além disso, Diniz e Guilhem discutem
a Resolução 196/96, que defne, no contexto brasileiro, os aspectos éticos
considerados importantes para a eticidade das pesquisas envolvendo seres
humanos. Por fm, as autoras exploram recentes exemplos positivos de casos em
que as regulamentações existentes impuseram uma postura ética a investigações
envolvendo seres humanos.
Esperamos que este texto possa ser elucidativo para que você visualize, com
casos práticos, a importância da ética na pesquisa científca.
A história das pesquisas envolvendo seres humanos está marcada por situações
consideradas abusivas para com as pessoas envolvidas nos estudos realizados.
Inicialmente, os pesquisadores utilizavam como sujeitos dos experimentos não
somente eles próprios, mas também seus familiares e vizinhos. No entanto, a
partir do momento que se tornou necessária a obtenção de resultados mais
abrangentes e estatisticamente confáveis, outros atores passaram a ser
incluídos neste contexto. Um exemplo clássico e muito difundido é o do médico
inglês Edmund Jenner que, no século XVII, realizou investigação para testar
uma vacina contra a varíola. Em uma primeira etapa, realizou o estudo com
seus flhos e as crianças vizinhas. No segundo momento, incluiu prisioneiros
e crianças abandonadas como sujeitos da pesquisa. Fica evidente que essas
pessoas pertenciam a grupos vulneráveis e sem a menor possibilidade de se
contrapor às determinações de Jenner. Mas, já naquela época, estava latente
a preocupação com a segurança e proteção dos sujeitos de pesquisa, sendo a
pesquisa de Jenner considerada arriscada. Claude Bernard, na França, no século
XIX, argumentava que o progresso científco não se justifcaria se violasse o
bem-estar do indivíduo. Embora o seu enfoque estivesse voltado para o exercício
da benefcência, Bernard demonstrava uma visão ampliada e inclusiva, que
proporcionava um senso de proteção aos participantes.
79
Capítulo 4
80
Teoria do Conhecimento
81
Capítulo 4
82
Teoria do Conhecimento
O Brasil é um entre os países que fazem parte do circuito de países utilizados pela
indústria farmacêutica para a realização de estudos multicêntricos internacionais.
Estes países, predominantemente em desenvolvimento, são utilizados seja pela
disponibilidade de sujeitos potenciais, seja pela crescente capacitação de seus
pesquisadores cada vez mais vinculados a universidades, instituições de pesquisa
ou hospitais conceituados. E foi justamente o aumento de pesquisas biomédicas
no Brasil que contribuiu para a introdução, no Código de Ética Médica, em
vigor desde 1988, de sete artigos (127-133) relacionados à pesquisa médica,
focalizando a necessidade da proteção de valores humanitários neste contexto.
Neste mesmo ano, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) publicou a Resolução
1/88, denominada Normas de Pesquisa em Saúde, que propunha a criação de
Comitês de Ética em Pesquisa em todas as instituições que realizassem pesquisa
na área da saúde. No entanto, esta resolução teve pouca repercussão entre a
comunidade científca e as instituições de pesquisa. A constatação deste fato
levou o CNS a designar um grupo de trabalho para reavaliar os critérios nacionais
para a condução de pesquisas envolvendo seres humanos.
Lições aprendidas
Em março de 2005, o periódico Developing World Bioethics, um dos mais
importantes na comunicação científca em bioética internacionalmente, publicou
um número temático dedicado ao tema da ética em pesquisa propondo um
programa de treinamento para comitês de ética na pesquisa – “Programa
83
Capítulo 4
84
Teoria do Conhecimento
O tema da ética na pesquisa com seres humanos é uma das questões centrais
da bioética brasileira. A história da Resolução 196/96 é também a história da
consolidação da bioética no Brasil com a formação e consolidação de centenas
de Comitês de Ética em Pesquisa por todo o país.
85
Capítulo 4
Este livro foi traduzido e editado em menos de três meses a contar de sua publicação
em língua inglesa. Para esta tarefa, foi imprescindível a parceria bem sucedida entre
a Universidade de Brasília, a Anis: Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero
e o Programa Especial para a Pesquisa e Treinamento em Doenças Tropicais da
Organização Mundial de Saúde, quem fnanciou todas as etapas do trabalho. Esta
conjunção de forças garantiu a agilidade e a seriedade necessárias para que o livro
estivesse pronto por ocasião da “I Ofcina de Ética em Pesquisa para os Programas
de Pós-Graduação na Área da Saúde da Região Centro-Oeste”, promovida pelos
Programas de Pós-Graduação em Ciências da Saúde e Medicina Tropical, da
Universidade de Brasília, em junho de 2005. Este evento, cujo objetivo principal era
discutir as questões relacionadas aos princípios éticos que norteiam a prática de
pesquisa no contexto dos programas de pós-graduação na Área da Saúde da Região
Centro-Oeste, é uma iniciativa pioneira no país, que busca formar multiplicadores
com potencial para atuar na formação de novos pesquisadores.
86
Teoria do Conhecimento
Mas todo este esforço não seria possível se os editores do periódico Developing
World Bioethics e a editora Blackwell, detentora dos direitos autorais, não
estivessem convencidos e comprometidos com a democratização deste debate.
A cessão dos direitos autorais e o incondicional apoio do editor-responsável
e autor do programa de treinamento, Udo Schüklenk, foram decisivos para o
sucesso desta iniciativa. A Developing World Bioethics assume como prerrogativa
divulgar pesquisas e discussões, estudos de caso e materiais educativos relativos
aos temas bioéticos que emergem da realidade dos países em desenvolvimento.
Justamente por esse caráter educativo do periódico, a proposta de tradução foi
imediatamente acolhida pelo conselho editorial.
Notas:
1Lurie, P.; Greco, D. U.S. Excepcionalism Comes to Medical Research. The Laucet, 26 March,
2005: 1117-1119.
2O Consentimento Informado é a denominação utilizada internacionalmente para o processo
de permissão fornecido pelo sujeito, o que lhe permite ser incluído na pesquisa. No entanto, a
terminologia correspondente utilizada no Brasil é Consentimento Livre e Esclarecido, tal como
prevista pela Resolução 196/96. Essa designação será utilizada no decorrer deste livro, por
representar a tradição brasileira de apropriação do conceito.
3Os documentos internacionais são diretrizes que norteiam a prática de pesquisa envolvendo
seres humanos. Em um contexto de internacionalização da pesquisa, onde a mesma é realizada
em vários países ao mesmo tempo, torna-se fundamental respeitar a legislação local. Isso signifca
que algumas vezes o protocolo deverá ser reordenado para fazer face às exigências apresentadas.
4Embora a Resolução 196/96 não tenha força de lei, ela assume munus público pela importância
que representa para a proteção das pessoas que assumem o papel de sujeitos de pesquisa.
5Developing World Bioethics, v. 5, n. 1, March, 2005. Special Issues: Southern African
Research Ethics Training Program. 118 p.
6No contexto das pesquisas internacionais, consideram-se países anftriões aqueles que
recebem o protocolo já delineado, recrutam os sujeitos e realizam a pesquisa. São denominados
países patrocinadores, aqueles países que delimitam o estudo, fornecem o fnanciamento para a
realização da pesquisa e detêm a propriedade sobre o conhecimento advindo de sua realização.
7Duplo Standard em pesquisa confgura-se como uma situação em que padrões diferenciados
para a realização dos estudos são utilizados em função do local onde é realizado: países
desenvolvidos ou em desenvolvimento. Seguramente esta é uma situação inaceitável quando
se considera os sujeitos envolvidos no processo.
87