Antropolítica Ilegalismos Privilegiados

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ANTROPOLÍTICA Nºº- 16 1º- semestre 2004

ISSN 1414-7378
Antropolítica Niterói n. 16 p. 1-253 1. sem. 2004
© 2005 Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Ciência Política da UFF
Direitos desta edição reservados à EdUFF - Editora da Universidade Federal Fluminense -
Rua Miguel de Frias, 9 - anexo - sobreloja - Icaraí - CEP 24220-000 - Niterói, RJ - Brasil -
Tel.: (21) 2629-5287 - Telefax: (21) 22629-5288 - http://www.uff.br/eduff -E-mail: eduff@vm.uff.br
É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da Editora.
Normalização: Surama Aline Velasco Paiva
Edição de texto: Icléia Freixinho
Projeto gráfico, capa e editoração eletrônica: José Luiz Stalleiken Martins
Revisão: Rosely Barrôco
Diagramação e supervisão gráfica: Káthia M. P. Macedo
Coordenação editorial: Ricardo B. Borges
Sumário em inglês: Ana Amélia Cañez Xavier
Tiragem: 500 exemplares

Catalogação-na-fonte (CIP)

A636 Antropolítica : Revista Contemporânea de Antropologia e Ciência


Política. — n. 1 (2. sem. 95). — Niterói : EdUFF, 1995.
v. : il. ; 23 cm.
Semestral.
Publicação do Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Ciência Política da
Universidade Federal Fluminense.
ISSN 1414-7378
1. Antropologia Social. 2. Ciência Política. I. Universidade Federal Fluminense.
Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Ciência Política.
CDD 300

UNIVERSIDADE Conselho Editorial da Antropolítica


FEDERAL FLUMINENSE Alberto Carlos de Almeida (PPGACP / UFF) Otávio Velho (PPGAS / UFRJ)
Argelina Figueiredo (Unicamp / Cebrap) Raymundo Heraldo Maués (UFPA)
Reitor Ari de Abreu Silva (PPGACP / UFF) Renato Boschi (UFMG)
Cícero Mauro Fialho Rodrigues Ary Minella (UFSC) Renato Lessa (PPGACP / UFF - IUPERJ)
Vice-Reitor Charles Pessanha (IFCS / UFRJ) Renée Armand Dreifus (PPGACP/UFF)
Antônio José dos Santos Peçanha Cláudia Fonseca (UFRGS) Roberto Da Matta (PPGACP/UFF-
Delma Pessanha Neves (PPGACP / UFF) University of Notre Dame)
Pró-Reitor/PROPP Eduardo Diatahy B. de Meneses (UFCE) Roberto Kant de Lima (PPGACP / UFF)
Sidney Luiz de Matos Mello Eduardo R. Gomes (PPGACP / UFF) Roberto Mota (UFPE)
Diretora da EdUFF Eduardo Viola (UnB) Simoni Lahud Guedes (PPGACP / UFF)
Laura Garziela Gomes Eliane Cantarino O’Dwyer (PPGACP / UFF) Tânia Stolze Lima (PPGACP / UFF)
Gisálio Cerqueira Filho (PPGACP / UFF) Zairo Cheibub (PPGACP / UFF)
Diretor da Divisão de Editoração Gláucia Oliveira da Silva (PPGACP / UFF)
e Produção: Ricardo Borges Isabel Assis Ribeiro de Oliveira (IFCS / UFRJ)
Diretora da Divisão de Desenvolvimento José Augusto Drummond (PPGACP / UFF)
e Mercado: Luciene Pereira de Moraes José Carlos Rodrigues (PPGACP / UFF)
Josefa Salete Barbosa Cavalcanti (UFPE)
Laura Graziela F. F. Gomes (PPGACP / UFF)
COMITÊ EDITORIAL DA ANTROPOLÍTICA Lívia Barbosa (PPGACP / UFF)
Delma Pessanha Neves (PPGACP / UFF) Lourdes Sola (USP)
Eduardo R. Gomes (PPGACP / UFF) Lúcia Lippi de Oliveira (CPDOC)
Simoni Lahud Guedes (PPGACP / UFF) Luiz Castro Faria (PPGACP / UFF)
Gisálio Cerqueira Filho (PPGACP / UFF) Luis Manuel Fernandes (PPGACP/UFF)
Secretária: Marcos André Melo (UFPE)
Solange Pinheiro Lisboa Marco Antônio da S. Mello (PPGACP/UFF)
Maria Antonieta P. Leopoldi (PPGACP/UFF)
Maria Celina S. d’Araújo (PPGACP/UFF-
CPDOC)
Marisa Peirano (UnB)
SUMÁRIO
NOTA DOS EDITORES, 7
HOMENAGEM
LUIZ DE CASTRO FARIA: O PROFESSOR EMÉRITO, 11
POR: FELIPE BEROCAN DA VEIGA
DOSSIÊ: POLÍTICAS PÚBLICAS, DIREITO(S) E JUSTIÇA(S) –
PERSPECTIVAS COMPARATIVAS
APRESENTAÇÃO: ROBERTO KANT DE LIMA, 17
DROGAS, GLOBALIZAÇÃO E DIREITOS HUMANOS, 21
DANIEL DOS SANTOS
DETENCIONES POLICIALES Y MUERTES ADMINISTRATIVAS, 55
SOFÍA TISCORNIA
OS ILEGALISMOS PRIVILEGIADOS, 65
FERNANDO ACOSTA

ARTIGOS
ESTADO E EMPRESÁRIOS NA AMÉRICA LATINA (1980-2000), 101
ÁLVARO BIANCHI
O DESAMPARO DO INDIVÍDUO MODERNO NA SOCIOLOGIA DE MAX WEBER, 123
LUIS CARLOS FRIDMAN
A CONSTRUÇÃO SOCIAL DOS ASSALARIADOS NA CITRICULTURA PAULISTA, 137
MARIE ANNE NAJM CHALITA
AS ARENAS MARINGÁ: REFLEXÕES
ILUMINADAS DE
SOBRE A CONSTITUIÇÃO DE UMA CIDADE MÉDIA, 161
SIMONE PEREIRA DA COSTA
RESENHAS
LIVRO: ÉTICA E RESPONSABILIDADE SOCIAL NOS NEGÓCIOS, 191
PATRÍCIA ALMEIDA ASHLEY
AUTORA DA RESENHA: PRISCILA ERMÍNIA RISCADO
LIVRO: NOVAS EXPERIÊNCIAS DE GESTÃO PÚBLICA E CIDADANIA, 195
MARTA FERREIRA SANTOS FARAH E HÉLIO BATISTA BARBOZA
AUTORA DA RESENHA: DANIELA DA SILVA LIMA
LIVRO: UMA CIÊNCIA DA DIFERENÇA: SEXO E GÊNERO
NA MEDICINA DA MULHER, 199
FABÍOLA ROHDEN
AUTOR DA RESENHA: FERNANDO CESAR COELHO DA COSTA

NOTÍCIAS DO PPGACP
NÚCLEO DE ESTUDOS DO ORIENTE MÉDIO – NEOM, 209
RELAÇÃO DE DISSERTAÇÕES DEFENDIDAS NO PPGACP, 211
REVISTA ANTROPOLÍTICA: NÚMEROS E ARTIGOS PUBLICADOS, 239
COLEÇÃO ANTROPOLOGIA E CIÊNCIA POLÍTICA (LIVROS PUBLICADOS), 248

NORMAS DE APRESENTAÇÃO DE TRABALHOS, 251


SUMMARY
EDITORS’ NOTE, 7
TRIBUTE
LUIZ DE CASTRO FARIA: THE EMERITUS PROFESSOR
BY: FELIPE BEROCAN DA VEIGA,11
DOSSIER: PUBLIC POLICIES, LAW(S) AND JUSTICE(S) –
COMPARATIVE PERSPECTIVES
PRESENTATION: ROBERTO KANT DE LIMA, 17
DRUGS, GLOBALIZATION AND HUMAN RIGHTS, 21
DANIEL DOS SANTOS
POLICE DETENTIONS AND ADMINISTRATIVE DEATHS, 55
SOFÍA TISCORNIA
PRIVILEGED ILLEGALITIES, 65
FERNANDO ACOSTA

ARTICLES
STATE AND ENTREPRENEURS IN LATIN AMERICA (1980-2000), 101
ÁLVARO BIANCHI
THE LONELINESS OF THE MODERN INDIVIDUAL IN MAX WEBER’S SOCIOLOGY, 123
LUIS CARLOS FRIDMAN
THE SOCIAL CONSTRUCTION OF WORKERS’ LABOR HAND IN ORANGE PLANTATIONS
IN SÃO PAULO, 137
MARIE ANNE NAJM CHALITA
THE LIGHTENING ARENAS OF MARINGÁ: SOME THOUGHTS ON THE CONSTITUTION
OF A BRAZILIAN MIDDLE-SIZED CITY, 161
SIMONE PEREIRA DA COSTA
REVIEWS
BOOK: ÉTICA E RESPONSABILIDADE SOCIAL NOS NEGÓCIOS, 191
PATRÍCIA ALMEIDA ASHLEY
AUTHOR OF THE REVIEW: PRISCILA ERMÍNIA RISCADO
BOOK: NOVAS EXPERIÊNCIAS DE GESTÃO PÚBLICA E CIDADANIA, 195
MARTA FERREIRA SANTOS FARAH E HÉLIO BATISTA BARBOZA
AUTHOR OF THE REVIEW: DANIELA DA SILVA LIMA
BOOK: UMA CIÊNCIA DA DIFERENÇA: SEXO E GÊNERO
NA MEDICINA DA MULHER, 199
FABÍOLA ROHDEN
AUTHOR OF THE REVIEW: FERNANDO CESAR COELHO DA COSTA

PPGACP NEWS
NÚCLEO DE ESTUDOS DO ORIENTE MÉDIO – NEOM, 209
THESES, 211
PUBLISHED ARTICLES (REVISTA ANTROPOLÍTICA), 239
PUBLISHED BOOKS AND SERIES
(COLEÇÃO ANTROPOLOGIA E CIÊNCIA POLÍTICA), 248

RULES ON PAPER PUBLICATION, 251


NOTA DOS EDITORES
Prosseguindo na política editorial iniciada há dois números atrás, apresentamos
ao público este número 16 de Antropolítica contendo um dossiê denominado “Po-
líticas públicas, direito(s) e justiça(s) – perspectivas comparativas”, organizado e
apresentado pelo professor Roberto Kant de Lima, do nosso colegiado. Trata-se
de uma das linhas de pesquisa mais produtivas do nosso programa. Com a pu-
blicação deste dossiê, estamos certos de estar contribuindo para o debate sobre
essas temáticas.

A revista contém ainda quatro artigos sobre temas variados (o empresariado


latino-americano, a subjetividade moderna, assalariados na citricultura paulista
e reflexões sobre cidades médias) sustentanto nosso objetivo de fazer uma revis-
ta diversificada e que aborde diferentes questões das ciências sociais.

Devemos registrar, com extremo pesar, o falecimento do professor Luiz de Cas-


tro Faria, a grande figura mestra da antropologia brasileira. Nós, da Universida-
de Federal Fluminense, gostamos de orgulhosamente pensar que somos
testamenteiros de parte de seu enorme legado para as ciências sociais no Brasil.
Expressamos nossa homenagem no belíssimo cordel de Felipe Berocan da Veiga.
Trata-se de um trabalho extremamente significativo para nós, pois, além do
belíssimo texto, registra a fortíssima presença do professor Castro Faria na gera-
ção de nossos alunos da pós-graduação. Felipe conheceu o professor, há apenas
alguns anos atrás, quando era aluno do nosso Mestrado em Antropologia, como
tantos de nós.

Esta edição de Antropolítica é dedicada ao grande professor, esperando que pos-


samos, mesmo modestamente, praticar suas lições.

A Comissão Editorial
Homenagem:
Luiz de Castro Faria:
o professor emérito
11

O PROFESSOR EMÉRITO
Vou abrir essa toada
Cantando com alegria
A vida do professor
Luiz de Castro Faria
Um pensador incansável
De nossa antropologia
Mil novecentos e treze
Em São João da Barra nasceu
Foi aluno do São Bento
E um diploma mereceu
Depois na Praia Vermelha
Num concurso se inscreveu
Edgar Roquette-Pinto
Foi quem fez a argüição
Podia ter dado zero
Pela resposta à questão
Sobre o que não estava escrito
Na prova de seleção

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Assim que Castro Faria


Muito bem se defendeu
Roquette-Pinto gostou
E um dez logo concedeu
Aprovando sua entrada
Para estágio no Museu
Museu Nacional que fora
Imperial moradia
Na Quinta da Boa Vista
Área de Antropologia
Heloísa Alberto Torres
Era quem lhe dirigia
Foi então que em 37
Partiu para a expedição
De Claude Lévi-Strauss
Por estradas do sertão
Chegando à Serra do Norte
No meio da imensidão
Cruzaram de todo jeito
Floresta, cerrado e rio
Seringal, garimpo, aldeia
Nessa viagem febril
Nambiquaras e tupis
Encontraram no Brasil
Faz Castro etnografia
Da habitação popular
Do embarque em pescaria
E da vida em alto-mar
Dos mercados na Bahia
E cerâmica karajá
Fez Castro arqueologia
Explorando nas areias
Das praias catarinenses
Os vestígios das aldeias
Nas jazidas de Laguna
De sambaquis sempre cheias
Pensando Euclides da Cunha
Um sertanejo valente
Seu cérebro sobre a mesa
Do professor nunca mente
Que é conhecedor profundo
Do que pensava essa gente
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De Oliveira Viana
Obra e metodologia
De Edgar Roquette-Pinto
A nacional pedagogia
E de Augusto dos Anjos
As moneras da poesia
Foi a Cambridge, Inglaterra
E Musée de l’Homme em Paris
Lá na França foi bolsista
Da Unesco mas não quis
Curvar-se ao colonialismo
Cultural desse país
Voltou e em 53
Participou da primeira
Reunião dos antropólogos
Da nação brasileira
Com Heloísa, Egon Schaden,
Bastide e Oracy Nogueira
Baldus, Thales de Azevedo,
Galvão e Darcy Ribeiro,
Bastos d’Ávila, Altenfelder,
René e Édison Carneiro
Cardoso e Mattoso Câmara
Zés Bonifácio e Loureiro
Depois disso, eles fundaram
A Associação Brasileira
De Antropologia, a ABA,
Na qual ocupou primeira
Gestão o professor Castro
Orgulho em sua carreira
Foi diretor do Museu
Escute você agora
Castro foi quem fez o laudo
Que pedia sem demora
O enterro das cabeças
De Lampião e senhora
Professor da Fluminense
É mentor à revelia
Da Escola Galo-
Fluminense de Antropologia

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Onde o índio Araribóia


Teve a sua sesmaria

Da etnologia até
O estudo regional
O Brasil da teoria
E pensamento social
O emérito professor
Sabe ensinar sem igual
Casado com a prima Elza
Também da terra campista
Ambos contrariam o adágio
“Nem a prazo nem à vista”
Tanto à vista quanto a prazo
Castro é grande cientista
Luiz de Castro Faria
Não é homem que se esqueça
O seu pensamento vivo
Todo dia recomeça
Castro é oito e oitenta
E deu tigre na cabeça
Seu aluno,
Felipe Berocan da Veiga,
5/7/2001

ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p.11-14, 1. sem. 2004


DOSSIÊ:
Políticas públicas,
direito(s) e justiça(s) –
perspectivas comparativas
R O B E R TO K A N T DE L I M A
PPGACP – UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

A PRESENTAÇÃO

O conteúdo deste dossiê pretende explicitar relações


profissionais e institucionais entre o Programa de Pós-
Graduação em Antropologia da UFF, o Departamento
de Criminologia da Universidade de Ottawa e a Equi-
pe de Antropologia Política e Jurídica da Universidade
de Buenos Aires, em torno de uma temática comum,
aquela voltada para os aspectos sociológicos da justiça
criminal e da segurança pública.
Como se sabe, as ciências sociais e o direito, em especial
nos países adeptos da chamada civil law tradition, apre-
sentam, no próprio processo de construção do conhe-
cimento das disciplinas, características que contribuem
para dificuldades imensas, evidentes, sempre que se
tenta operar um diálogo entre elas: enquanto as disci-
plinas jurídicas validam e legitimam o conhecimento
por elas produzido por meio da submissão de suas teses
aos desafios do contraditório, apoiando a vencedora,
as disciplinas sociológicas o fazem pela construção
gradativa de um consenso sobe os fatos, antes de apro-
var variações sobre suas interpretações.
No caso do Brasil, a essas dificuldades de ordem epis-
temológica juntaram-se outras de política acadêmica,
uma vez que as ciências sociais consideravam o estudo
do direito um assunto menor, pois ele era ora um ins-
trumento garantidor dos privilégios de classe que se
queria denunciar e destruir, ora meio de expressão de
uma normatividade que nada devia à empiria, ao con-
trário da disciplina sociológica; o que fazia o estudo
etnográfico das práticas e “doutrinas” do direito, da
justiça criminal e da segurança pública, em ambos os
casos, irrelevante.
18

O desenvolvimento acadêmico dessa problemática, portanto, do ponto


de vista antropológico, sempre esteve duplamente minado: seu objeto
não tinha legitimidade político-acadêmica para as ciências sociais e não
fazia nenhum sentido para as disciplinas jurídico-normativas.
Foi a partir de minha tese de doutorado, defendida em 1986, que me
encontrei, de forma legitimamente acadêmica, vinculado a tal proble-
mática. Entretanto, encontrava muito poucos interlocutores na época,
em especial no que dizia respeito á utilização do método comparativo e
da realização de etnografias das instituições estatais envolvidas com
essa área de atividades. Basta dizer que foi apenas em 1994, na Reu-
nião Brasileira de Antropologia, realizada em Salvador, Bahia, que
organizamos um primeiro fórum, batizado por nosso saudoso decano,
Castro Faria, de “O Ofício da Justiça”. Mesmo nessa ocasião, seus inte-
grantes estavam, em sua maioria esmagadora, ligados de uma forma
ou de outra aos cursos de graduação ou de pós-graduação da UFF.
Assim, foi com grande satisfação que pude, nesse mesmo ano, tomar
contato – por sugestão de minha amiga e colega Neusa Gusmão – com
Daniel dos Santos, sociólogo angolano-luso-canadense, chefe do de-
partamento de Criminologia da Universidade de Ottawa, cem um Con-
gresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais que se realizou em Lis-
boa. Deste encontro nasceu um convite para ir à Universidade de Otta-
wa, em 1996, para ministrar um curso em sua pós-graduação e partici-
par de seminários em que outras afinidades foram-se explicitando, in-
clusive aquela com nosso colega brasileiro-canadense Fernando Acos-
ta, do mesmo Departamento.
Com Sofía Tiscornia, antropóloga da Universidade de Buenos Aires,
essa relação se estabeleceu, também nessa época, após a publicação de
minha tese de doutorado, em seminário realizado no Centro de Ciên-
cias Humanas da UFRJ. Também daí sucederam-se convites, que inicial-
mente me levaram a participar de seminários na Argentina e, posterior-
mente envolveram-na em atividades no Brasil.
Essas relações foram-se reproduzindo, desde então, institucionalmente,
de maneira ampliada, tendo-se consolidado inicialmente em convênios
com a Universidade de Buenos Aires e Universidade de Ottawa e,
concomitantemente, na participação sistemática desses pesquisadores
nos encontros bianuais da Associação Brasileira de Antroplogia, do
Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais, da Associação Na-
cional de História (ANPUH) e na reunião de Antropologia do Mercosul,
ocasiões em que temos co-organizado fóruns, mesas, grupos de traba-

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lho, oficinas e outras modalidades de interlocução acadêmica


institucionalizada.
A problemática também ganhou maior visibilidade na academia, e do
pouco interesse registrado em 1994, passamos a uma posição inversa,
em que temos de selecionar com cuidado e recusar com pesar traba-
lhos de colegas que nos são enviados tendo em vista sua excelente qua-
lidade e extenso número. Aqui no Brasil, de maneira sistemática e
institucional, temos também nos vinculado a vários centros de excelên-
cia no estudo de nossa temática, sobressaindo-se as figuras de Sergio
Adorno, do Núcleo de Estudos da Violência da USP; de Michel Misse,
do Núcleo de Estudos sobre a Cidadania e a Violência, no IFCS/UFRJ;
de Lana Lage, Sergio Azevedo e Arno Vogel, do LESCE da Uenf; de
Luís Roberto Cardoso de Oliveira, do Departamento de Antropologia
da UnB; de Pedro Bodê de Moraes, do Núcleo de Estudos da Violência
da UFPR. Fora do Brasil, note-se, além dos autores aqui publicados, as
importantes contribuições de nosso saudoso e pranteado amigo e cole-
ga Isaac Joseph, do Departamento de Sociologia da Univesidade de
Paris X, e de René Lévy, do CESDIP/CNRS, entre outros.
Não é de menor importância o engajamento dos alunos dessas institui-
ções nessa discussão, havendo já casos de alunos argentinos em nossos
programas, assim como de nossos alunos que foram procurar no Ca-
nadá e na Argentina essas referências para desenvolverem sua forma-
ção nessa área de estudos.
Esta discussão também tomou aspectos práticos, na área de formação
universitária pós-graduada de quadros profissionais, que resultaram
em um curso de especialização em Políticas Públicas de Justiça Crimi-
nal e Segurança Pública, iniciado na UFF em 2000, com recursos da
Fundação Ford, por iniciativa de Elizabeth Leeds e solicitação da Esco-
la Superior de Polícia Militar do Rio de Janeiro. O curso recebeu, em
seguida, apoio do governo do estado do Rio de Janeiro e hoje é finan-
ciado com recursos do Instituto de Segurança Pública, vinculado à Se-
cretaria de Segurança Pública do estado do Rio de Janeiro, dirigido
também por quadros que, de uma forma ou de outra, devem parte de
sua formação profissional a essas instituições acadêmicas, como Jorge
da Silva e Ana Paula Mendes de Miranda. Outra fonte de recursos é a
Academia de Polícia do Rio de Janeiro, pois os delegados também es-
tão fazendo o curso este ano. Além desses policiais militares e civis,
inscrevem-se no curso profissionais de diversas formações, notando-
se, como relevante, alunos de cursos de mestrado em direito, sociolo-
gia e antropologia, da UFF e de outras instituições do Rio, que dese-
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jam especializar-se nesta área. Os professores brasileiros deste curso de


especialização são, em sua grande maioria, pesquisadores oriundos das
instituições que mencionamos como nossas parceiras institucionais e
temos contado, também, anualmente, com a participação de Sofía
Tiscornia, Daniel dos Santos e Fernando Acosta, além de outros confe-
rencistas nacionais e estrangeiros.
Finalmente, os textos aqui reunidos são oriundos, no caso de Daniel
dos Santos e de Sofía Tiscornia, de conferências proferidas em eventos
organizados por nós e, no caso de Fernando Acosta, de tradução de
artigo já publicado, representando importantes contribuições em nos-
sa área de estudos. Além de divulgá-los para o público mais amplo da
Antropolítica, pretende-se que possam, traduzidos, ser também úteis aos
alunos dos cursos de graduação e de especialização interessados nessas
questões.
É com grande orgulho que os edito, como exemplos do resultado fru-
tífero de nossas relações profissionais e institucionais nestes últimos
dez anos, que emprestaram alta visibilidade acadêmica ao nosso Pro-
grama de Pós-Graduação, o qual é um dos poucos, em nossa área, a ter
uma linha de pesquisa voltada para o estudo dessa problemática. É
também com afeto, pois, por que não dizer, nossas relações acabaram-
se estendendo ao domínio pessoal, expressando o respeito e o carinho
todo especial que mantemos uns pelos outros, como colegas e amigos.
Esperamos que outros colegas, interessados em discutir aspectos dessa
problemática, sejam também, no futuro, publicados nesta revista, cola-
borando para adensar criticamente nossa área de atuação acadêmica.

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D A N I E L D O S S A N T O S *

D ROGAS , GLOBALIZAÇÃO E DIREITOS HUMANOS 1

O objecto deste trabalho é de compreender, no contexto


da globalização, o que é uma política pública como a
“guerra contra a droga”. Quais os actores que nela
intervêm, seus interesses e valores; que alianças se for-
mam e com que objectivos? O caso das drogas pemite-
nos identificar a construção de uma associação entre o
poder económico, lícito e ilícito, e o poder político que
põe em causa a cidadania e a democracia. Os direitos
civis e humanos e a questão da droga, assim conjuga-
dos, tornam-se um espaço de oposição, resistência e de
negociação. Tais espaços são essenciais à redefinição
da cidadania, e à redescoberta dos meios para o exercí-
cio de uma democratização da democracia. A guerra
contra as drogas não visa, local e globalmente, os di-
reitos dos grandes traficantes “organizados”, razão por
que preferimos analisar o ataque violento que é feito a
duas figuras emblemáticas do discurso sobre a droga:
o consumidor e o traficante.
Palavras-chave: globalização; drogas; política públi-
ca; direitos humanos; cidadania; democracia.

*
Professor do Departamen-
to de Criminologia, Univer-
sidade de Ottawa (Canadá).
22

Diotima – Julgas que quem não é sábio é ignorante, e desconheces que existe
um meio-termo entre a sabedoria e a ignorância?
Sócrates – Que meio-termo é esse?
Diotima – Não sabes que a opinião acertada sem conveniente justificação
não é sabedoria – pois como poderia uma coisa ser sabedoria se não sabemos
fundamentá-la? E também não é ignorância, porque o que atinge a verdade
não pode ser ignorância? A opinião verdadeira é, por conseguinte, como
que um meio-termo entre a sabedoria e a ignorância.
Sócrates – Sinto que falas a verdade!
(PLATÃO).
Comecemos por esclarecer um certo número de ideias equivocadas, o
que faremos com a ajuda do psiquiatra Thomas Szasz (1998). A toxico-
mania refere-se ao uso de certas substâncias que os seres humanos
absorbem ou se injectam, e que são consideradas “perigosas” pelos
possíveis danos que podem causar tanto aos cidadãos que as utilizam
como aos outros. É a partir destas últimas consequências que eles são
catalogados e classificados como “toxicómanos”, ou seja, seres huma-
nos dependentes dessas substâncias.
A toxicomania é pois definida como uma delinquência (infracção, delito
ou crime) e como uma doença (dependência química) que “compete” ao
Estado e à medicina “eliminar e tratar”. Tal definição levanta um pro-
blema considerável, pois a sua referência é uma decisão que diz respei-
to a uma escolha e a uma selecção:
• quais substâncias e quais seres humanos podem e devem ser aceites,
isto é, cujo uso e dependência são vistos, principalmente pelo Esta-
do, como um modo ou um estilo de vida, de estar e viver em socie-
dade ou ainda como uma forma de prazer ou lazer;
• e quais substâncias e quais seres humanos são inaceitáveis, cujo
uso e dependência são vistos pelo mesmo Estado como um abuso,
isto é, uma infracção às suas normas jurídicas, uma forma de
delinquência que implica a sua qualificação como um delito ou um
crime.
Quando tais comportamentos são definidos da última maneira, a re-
pressão como política pública do Estado, implicando o recurso à justi-
ça penal (polícia, tribunais e prisão), constitui a regra geral. Para além
dessa atitude, acrescenta-se um maior constrangimento pela ineficácia
da política pública de saúde e pela privatização e mercantilismo da
medicina privada. Mas também pela atitude moralista e disciplinar de
uma boa parte das práticas médica e terapêutica: das atitudes individuais

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dos médicos, dos psiquiatras, dos psicólogos e de outros terapeutas da


toxicomania, ao funcionamento burocrático e institucional dos apare-
lhos que se ocupam de toxicomania. Tais atitudes são frequentemente
justificadas pela “ciência neutra e objectiva” e pelos discursos, acções e
exigências repressivas de certos segmentos das sociedades civis, por
exemplo, os moral entrepreneurs, as igrejas, as empresas, as instituições
escolares, os grupos associativos, de pressão política e profissionais,
entre outros.
“A criminalização e a medicalização do uso das drogas transformaram
a automedicalização em toxicomania” (SZASZ, 1998, p. 7), uma tragédia
e uma epidemia sociopolítica que ameaça as sociedades modernas, mi-
nando sua estrutura política e corrompendo seus valores morais e
institucionais, dirão alguns. Mas uma tragédia na qual intervêm diver-
sos actores sociais cuja função meramente repressiva, e por isso mesmo
miópica, é fundamentalmente violenta. Trata-se de definir problemas
sociais como “ameaças e perigos”, cuja solução será o resultado de uma
luta entre o bem e o mal, conceitos filosóficos e morais singulares, acrescen-
tam outros.

DA GLOBALIZAÇÃO AOS DIREITOS

Assim representado, o “problema da droga” assume a forma de uma


guerra. Mas essa guerra contra a droga não é um fenómeno contemporâ-
neo isolado. Ela é uma política pública, entre outras, que os Estados,
em particular do “norte”, definem em termos de governação e de ad-
ministração das sociedades da segunda modernidade, num espaço dito
globalizado (GIDDENS, 1998; BECK, 1999, 2000). A guerra contra a
droga faz parte de um todo articulado à volta da questão social, da acumu-
lação do capital e dos modos de exercício do poder político, que caracteriza a
democracia neoliberal flexível como regime-modelo à escala mundial.
Desde que a “globalização” virou uma panaceia à moda, e que a vonta-
de política do Estado norte-americano se confunde amiúde com o de-
sejo das empresas transnacionais americanas, o modelo particular
económico, financeiro, político e cultural veiculado por elas se apre-
senta como o modelo ou o ideal universal que se deverá instaurar num
mundo globalizado. Segundo essa vontade hegemónica, o Estado-na-
cional – aonde ele existir – verá as suas funções da primeira modernidade
serem transformadas, em termos de prioridades, em suporte desse
modelo. Isso significaria reduzir ao máximo a importância do Estado
moderno como um dos mecanismos importantes de regulação não só

ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 21–53, 1. sem. 2004


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das sociedades, mas sobretudo do mercado e da distribuição da rique-


za. Trata-se de uma questão constitutiva fundamental, que até o pró-
prio capital aceitou no período que seguiu o fim da Segunda Guerra
Mundial.
A acumulação pública da riqueza serve cada vez menos para resolver
os desequilíbrios que o capital cria, e que se transformam em problemas
sociais (assistência social, saúde, educação, discriminação, velhice, po-
breza, delinquência etc.), e cada vez mais para apoiar a transna-
cionalização das empresas nacionais; a torná-las mais competitivas no
mercado global de forma a criar as condições ideais e propícias à reali-
zação de taxas de acumulação de riqueza inéditas na história da huma-
nidade. Para tal, tanto o Estado-nacional como as empresas
transnacionais acreditam que os fins justificam os meios, pelo que a acu-
mulação fraudulenta e ilegal de riqueza, o abuso da força e o não-
respeito tanto das normas jurídicas privadas como públicas, locais, na-
cionais e internacionais conduzem a situações tais que os conselhos de
administração das empresas e os escalões superiores da administração
pública, bem como as esferas dirigentes dos orgãos do exercício do
poder político poderiam facilmente ser caracterizados como crime orga-
nizado ou como associação de malfeitores, e acusados diante de um tribu-
nal criminal.
Os últimos anos têm sido prolíficos na produção de casos ou “escânda-
los” desse tipo, que “aparecem” agora a uma escala planetária. Tradicio-
nalmente conotado com o “terceiro mundo”, eram tidos como uma
normalidade, um modo informal de fazer negócios em regimes
“estúpidamente” burocráticos e lentos, e sobretudo ignorantes dos be-
nefícios de um regime de Estado de direito. Mas para que exista um
corrupto tem que existir um corruptor, um indivíduo, um grupo de indi-
víduos, uma instituição ou uma empresa com meios e capacidade para
corromper. A corrupção do poder político nos países do terceiro mun-
do está assim intimamente ligada ao poder financeiro e político dos
países do “norte” (PÉAN, 1988; ETCHEGOYEN, 1995; LEVI;
NELKEN, 1996; HEYWOOD, 1997; MISSER; VALLÉE, 1997;
MOORE, 1997; LASCOUMES, 1999; COIGNARD; WICKHAM, 1999;
RYNARD; SHUGARMAN, 2000; UNICRI, 2000).
Até ao último quartel do século XX, a visibilidade de tal fenómeno
estava mais ligada à figura do corrupto. Pouco a pouco, as transforma-
ções técnológicas e a relação ao tempo aumentaram a vulnerabilidade
do segredo, característica primordial do mundo da política e das finan-
ças da primeira modernidade. Mas a isso se junta o desejo de enrique-

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cer rápida e desmedidamente, como valor fundamental de uma nova


moral económica e social. O conjunto desses factores criou uma cultu-
ra das elites, um modo de estar e fazer impregnado de agressividade,
de competição, de egoísmo, de cupidez e de individualismo, exacerba-
dos pela realização imediata do maior lucro. O exibicionismo e a vaida-
de do “novo-riquismo” compelem a uma maior visibilidade do compor-
tamento dessas elites, em particular dos seus “escândalos”: comporta-
mento desviante, delinquente e criminoso.
A consequência dessa mudança está patente na promiscuidade que ca-
racteriza a relação entre o Estado e as instituições das elites da “nova
economia”. Os exemplos mais recentes tiveram lugar nos Estados Uni-
dos: Enron, WorldCom, AOL-Time Warner, Tyco, Xerox, Adelphia,
Halliburton, entre outros (KAHN, 2002; COHEN; LÉVY, 2002; A
FRAUDE..., 2002; BOULET-GERCOURT, 2002; KADLEC, 2002;
FERREIRA, 2002; NEVES, 2002; INCHAUSPÉ, 2002; DWYER;
DUNHAM, 2002). Os próprios presidente e vice-presidente dos Esta-
dos Unidos da América foram postos em causa (LESER, 2002; RIBEI-
RO, 2002; THE UNLIKELIEST..., 2002). Mas também um presiden-
te, um ex-ministro das relações internacionais e um ex-primeiro mi-
nistro da républica francesa; um primeiro ministro alemão, um juiz e
um presidente do senado brasileiros. Os exemplos são tantos – não
dizem respeito a uma zona geográfica ou a um país em particular – e
tão generalizados que poderíamos encher páginas sem fim!
Outro aspecto crucial desse modelo diz respeito ao papel que é atribuí-
do ao mercado. Enquanto o Estado redefine suas funções de suporte
nacional da globalização, o mercado se libera das “mãos” desse Estado
e de outros obstáculos (sindicatos, consumidores, associações civis) de
forma a tornar-se mais “livre”. Segundo a “bíblia neoliberal”, o merca-
do se define como o mecanismo regulador da economia, cujo objeto é o
aumento dos lucros e a acumulação da riqueza, e das sociedades, com o
intuito de avançar a mercantilização da vida social.
O efeito perverso do movimento de emancipação do mercado – que
não deve ser confundido com a emancipação dos seres humanos – é
devastador: a eliminação dos concurrentes incapazes e a liquidação dos cida-
dãos inúteis; a acumulação inédita de riqueza por uma minoria planetária e a
sobrevivência – o que parece um eufemismo – da maioria da população
mundial em condições de miséria jamais observadas. Segundo a Organização
das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura existem hoje
mais de 800 milhões de cidadãos no mundo em tal situação.

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Na medida em que o Estado da segunda modernidade vê os problemas


sociais como guerras, as consequências de tais políticas públicas tornam-
se também mais visíveis e mais significativas, tendo como seu limite
outro eufemismo, a catástrofe, vista como um risco imparável. Do ponto
de vista material, assiste-se a uma destruição de infra-estruturas, de re-
cursos naturais, de bens culturais e patrimoniais, e de vidas humanas
quase sem interrupção – massacres de populações, genocídios, crimes
contra a humanidade, crimes de guerra, e... “danos colaterais”. Tudo
definido como necessidades ou fatalismos. Do ponto de vista moral, faze-
mos face a uma situação de anomia social caracterizada por uma crise
grave que põe em causa valores, normas, identidades e mesmo a noção
do bem comum.
Mas a entropia social que ressalta dessa situação tem como mérito de
obrigar a repensar a vida em comum e a repor a questão fundamental
da democratização da democracia. Esta não pode de modo algum ser colo-
cada no nível de uma equação em que a segurança de uma sociedade
iguala ou significa menos cidadania e menos liberdade dos cidadãos,
como o fazem a maior parte dos Estados da segunda modernidade.
Também não quer dizer que o Estado-nação está em vias de desapare-
cer ou que entrou numa fase de declínio. Ao contrário, as funções tra-
dicionais desse Estado na primeira modernidade são alvo de numero-
sas pressões e de lutas políticas que visam a sua transformação.
Actualmente, o resultado desse confronto não vai no sentido da demo-
cratização da democracia, pois esta retrocede favorecendo a lógica do
capital e não a emancipação da cidadania. O carácter despótico das
relações económicas invade hoje o terreno das relações jurídicas, polí-
ticas e mesmo sociais. O espaço de liberdade e os direitos dos cidadãos,
que não são privilégios que o Estado moderno nos concede, reduzem-
se de forma significativa. Ao mesmo tempo, o retrocesso da democra-
cia desnuda um absolutismo político e ideológico intolerante e alienante,
como forma de exercício do poder político e económico. Trata-se de
um movimento histórico que tem por base a cumplicidade da “classe”
política, do poder económico e financeiro e do “crime organizado”
(MAILLARD et al., 1998; MAILLARD, 2001; NAYLOR, 2002;
MERLEN; PLOQUIN, 2002), e por fundamento a racionalidade
hegemónica do capital (MÉSZÁROS, 1995). Enquadrada por uma nova
forma de soberania, “composta por uma série de organismos nacionais
e supranacionais unidos segundo uma lógica única de governo”, essa
racionalidade se exerce através de uma nova definição do Império:

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(o Império) não estabelece um centro territorial do poder e não se apoia


sobre fronteiras ou barreiras fixas. É um aparelho descentralizado e
desterritorializado de governo, que integra progressivamente o espaço
do mundo inteiro no interior das suas fronteiras, abertas e em expan-
são perpétua. O Império gere as identidades híbridas, as hierarquias
flexíveis e as trocas plurais modulando as suas redes de comando
(HARDT; NEGRI, 2000, p. 16-17, tradução nossa).
A função reguladora do Estado da primeira modernidade, no que diz
respeito à distribuição da riqueza, tinha por objecto a diminuição da
distância entre ricos e pobres. Ainda que haja um debate e uma luta em
torno dessa questão, na segunda modernidade, essa distância aumenta
contínuamente, tanto no nível local quanto global (BOURDIEU, 1993;
CHOSSUDOVSKY, 1997; PAUVRETÉ, 1999; BALES, 1999), assina-
lando uma mudança radical das funções do Estado. Por um lado, ela
confirma a fraqueza da vontade dos poderes políticos local, nacional e
mundial em combater realmente a pobreza, e, por outro, reforça a
constituição de um apartheid social global (ALEXANDER, 1996).
No contexto da racionalidade do capital e do Império como forma de
governação da globalização, ao Estado-nação, além da função de apoio
à acumulação do capital das élites locais e nacionais, compete acentuar
o seu papel de controlo das populações que se encontram no “seu
território”, em particular, a repressão dos cidadãos excluídos pelo pro-
cesso de marginalização económica e social originado por tal
racionalidade nos últimos 25 anos, em especial os pobres, minorias
étnicas e raciais e os imigrantes (BAUMAN, 1998; SILVERMAN, 1992;
CASTEL, 1995; PAUGAM, 1996; PALIDDA, 1996; GORZ, 1997;
MAUER, 1999; NOUVELLES..., 1998, 1999, 2001; SENNETT, 2001;
GATEKEEPER’S, 2001; WACQUANT, 2002a; NEVINS, 2002;
HISTOIRE(S), 2002).
Não se trata de uma nova função do Estado moderno, mas de uma
viragem em termos de prioridades, como já mencionamos anterior-
mente. Sob a pressão das exigências do capital, o papel do Estado,
como um dos mecanismos importantes de regulação da distribuição da
riqueza, diminui. Ao mesmo tempo, aumenta a sua capacidade e a sua
potência de vigiar e controlar o comportamento dos cidadãos, o que
significa a multiplicação e diversificação dos meios e objectivos, entre
outros, a privatização, a militarização e a tecnologização do controlo social
(DEVOST, 1995; VIRILIO, 1996, 1998; Solliciteur général du Canada,
1999; WHITAKER, 1999; CAMPBELL, 2001; KRASKA, 2001;

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SERFATI, 2001; OLSHANSKY, 2002); o desrespeito pelas suas pró-


prias leis e regras de procedimento – sobretudo no caso da defesa dos
direitos civis e humanos –; a ignorância arrogante das leis e das con-
venções internacionais, e mesmo a intervenção brutal e armada nou-
tros espaços do Império.
A transformação de tudo o que o capital “toca” em uma mercadoria de
consumo, capaz de originar a criação e a expansão de um mercado
cada vez mais “livre”, se refere idealmente ao estabelecimento de “um
modo de controlo do metabolismo social”, isto é, das relações sociais
(MÉSZÁROS, 1995). Para além do seu poder legislativo e judiciário,
nomeadamente a justiça penal, do seu discutível “monopólio da vio-
lência legítima”, o Estado da segunda modernidade incentiva a eman-
cipação do mercado em geral, e participa no desenvolvimento do mer-
cado privado da segurança em particular. Esse Estado se constituiu
como um actor activo da proliferação “de instituições, de mecanismos e
de dispositivos de controlo da sociedade”, tendo em vista afastar os
possíveis obstáculos à libertação do mercado. Mesmo se para tal tiver
de, paradoxalmente, “criar”, reproduzir e proteger a delinquência e o
crime.
As exigências do capital veículadas pelo Império e articuladas com as
políticas públicas nacionais e locais – definidas quer como guerras lo-
cais quer como globais – estão longe de atingir os resultados prometi-
dos. O que é confirmado pelas estatísticas oficiais da Organização das
Nações Unidas referentes aos problemas da pobreza, da assistência so-
cial, da saúde, da educação e das delinquências e pelos relatórios, como
o Human Development do PNUD. Aos quais deveremos acrescentar as
consequências dos “riscos” de toda espécie, que aumentam de forma
vertiginosa, e se acumulam como banalidades: guerras, desastres eco-
lógicos, “escândalos” (outro eufemismo) políticos e financeiros.
Os partidos políticos constituem hoje uma fraca alternativa como ex-
pressão da vontade dos cidadãos e como mediadores da sua acção. Eles
existem para o Estado e em função dele. Na esfera política pública, tais
organizações se revelam, de um modo geral, como mecanismos
reprodutores da reestruturação global imposta pelo Império. Os parti-
dos políticos são, portanto, na maior parte dos casos, inúteis quando se
trata da luta política pela mudança social ou pela defesa dos direitos
dos cidadãos (SPOONER, 1870/1991; SPENCER, 1923/1993;
JOFFRIN, 2001). Parece-nos evidente a necessidade de formular e cons-
tituir novas formas de organização e de intervenção cidadã que permi-
tam uma maior defesa dos direitos e um alargamento da democracia.

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Ao invés da “destruição criadora” de que tanto falam os arautos da


globalização, torna-se, pois, necessário o recurso a uma imaginação cria-
dora e inventiva, a uma “utopia” da esperança como reivindicavam
Bloch (1976, 1982, 1991, 1977) e Castoriadis (1975/1999), capaz de
produzir novos meios que garantam a participação plena da cidadania
na tomada de decisões e na sua aplicação concreta. O que exige a “re-
conciliação da economia e dos direitos humanos”, a articulação das di-
ferenças com o bem comum e o respeito do pluralismo, sobretudo jurí-
dico (DELMAS-MARTY, 1996 e 1998). Essa atitude visa também uma
redefinição das relações entre a economia e o poder e da noção de
responsabilidade, exigindo a uma maior transparência dos actos públi-
cos.
Os direitos e os deveres do cidadão são exigências e obrigatoriedades
que emanam das colectividades sociais – importância do pluralismo
jurídico – e não são propriedade de um Estado local ou do Império –
hegemonia de um monoteísmo jurídico falso que se apresenta com duas
faces: uma visível, para os dominados, e outra secreta, para os domi-
nantes. De toda a evidência, a via penal enveredada pelo Estado nos
níveis local e nacional ilustra o que se passa no nível do Império, isto é,
a tentativa do Estado norte-americano de impor sua posição como
hegemónica e global:

Existe um laço estreito entre, de um lado, a subida do neoliberalismo como


ideologia e prática governamental ordenando a submissão ao mercado e a
celebração da “responsabilidade individual” em todos os domínios e, do outro,
o alargamento e a difusão de políticas de segurança, activas e ultrapunitivas,
primeiro nos Estados Unidos, e na Europa em seguida, evolução que resumi-
ria da seguinte maneira: desvanecimento do Estado económico, redução do
Estado social, reforço e glorificação do Estado penal (WACQUANT, 2000,
p. 145, tradução nossa).
A contenção e o controlo dos “indivíduos e das populações” como es-
tratégias penais de administração dos “conflitos” comportam técnicas e
tácticas diversas com objectivos múltiplos. No entanto, e ainda que se-
jam actualmente as mais visíveis, a sua finalidade principal não é solu-
cionar e resolver os problemas que a “globalização” cria à cidadania. O
Império deve conter, circunscrever, vigiar e afastar tais problemas, pois
eles são definidos como secundários, constituindo apenas obstáculos à
libertação do mercado. Esta é entendida como o problema prioritário,
a condição essencial da racionalização do capital. É esse o verdadeiro
objectivo de tais políticas.

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Ao investir na diversificação das vias de contenção e de controlo das


sociedades, de forma a cobrir e alargar ao máximo o seu espaço de
intervenção jurídico-política, o Estado-nação não pode escapar, num
regime democrático, às suas próprias contradições: a sua vontade de
tudo controlar é impossível de se realizar num sentido único. Ficou
bem claro na crise do capital no mercado do sudoeste asiático, nos es-
cândalos político-financeiros dos últimos anos na Europa e nos Esta-
dos Unidos, bem como nos países do terceiro mundo, e mais recente-
mente, no caso das grandes empresas americanas e francesas e do Tri-
bunal Penal Internacional.
A glorificação de uma estratégia centrada sobre o penal produz efeitos
perversos, quer dizer “consequências não desejadas das acções dos indi-
víduos” que nela participam (GOSSELIN, 1998). Tais efeitos perversos
criam, entre outras coisas, momentos e espaços nos quais a força é ine-
ficaz e a legitimidade da autoridade é posta em causa, em particular
pela ausência de respeito das normas jurídicas (locais, nacionais e in-
ternacionais) e/ou pelo recurso abusivo à elaboração de normas e de
procedimentos ao sabor das conjunturas e segundo a vontade do capi-
tal e do poder político. As desigualdades sociais aumentam sem serem
tomadas em conta, e originam uma maior desconfiança e descrédito
em relação a tudo o que é poder. Nessa altura, os espaços do contrôle
tornam-se espaços de resistência, de oposição e de negociação.
Com todos “os defeitos” e contradições que elas possam ter, as tentati-
vas das sociedades civis de propor e aplicar soluções alternativas aos
problemas da cidadania que se vão acumulando correspondem à ne-
cessidade concreta de reorganização da esfera política pública, de en-
contrar novas formas de afirmação e de expressão da cidadania e de
seus direitos. Em suma: redifinir as lutas políticas no contexto da
globalização e da democratização. O individualismo, o egocentrismo, o
etnocentrismo e a cupidez – valores que caracterizam nossas socieda-
des contemporâneas e o Império em geral – e nossas classes dirigentes
e dominantes em particular são realidades bem visíveis que atravessam
tanto o capital como as sociedades civis.
De um lado, uma “governação” arrogante, mentirosa e cega. E acima de
tudo surda e secreta, orientada por uma racionalidade antidemocrática
de transnacionalização do capital e do lucro a todo custo. Trata-se de
uma governação que nega o debate e a negociação transparentes, o
alargamento da democracia (em particular económica) e a possibilida-
de de transformações sociais urgentes ligadas aos direitos fundamen-

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tais do cidadão: direitos e liberdades civis, mas também distribuição da


riqueza, saúde, assistência social, alimentação, alojamento, educação.
De outro lado, uma necessidade também urgente de redefinir o bem co-
mum global, os interesses dos seres humanos como comunidades locais
e como colectividades nacionais; de estabelecer os valores fundamen-
tais: morais, políticos, económicos, sociais e culturais do espaço público
mundial, isto é, que permitem a consolidação de uma verdadeira co-
munidade humana para além das diferenças singulares e particulares
que nos separam actualmente. Mas também a obrigação de articular
democráticamente as partes com o todo e de não aceitar – resistindo se
for preciso – um modelo hegemónico.
Uma perspectiva prossegue ainda, de certa maneira, num monoteísmo
jurídico, e continua a apostar na força alienatória de formas retóricas e
discursivas abstratas, como o Estado de direito e os direitos humanos
institucionalizados e formais. A outra procura insistir no pluralismo ju-
rídico como base de uma democratização da democracia, em oposição
à estatização (lato sensu) da sociedade. A luta por uma sociedade mais
justa e solidária (VAN PARIJS, 1991, 1995) implica que as sociedades
civis sejam mais exigentes na concretização de um Estado de direito
democrático e dos direitos civis e humanos, para além das normas.
Face ao Estado, ao capital e ao Império, as sociedades civis não se po-
dem demitir ou se ausentar desse espaço de luta pela mudança social,
cujos temas essenciais se referem a questões de extrema importância
para o bem comum. A título de exemplo, referimo-nos aos critérios de
distribuição da riqueza, à acessibilidade ao bem comum, à participação
e à transparência das decisões, à prestação de contas da aplicação das
decisões e das políticas públicas, à partilha das responsabilidades e à
(re)definição de uma imunidade compatível com o Estado de direito de-
mocrático e com o respeito dos direitos civis e humanos.
Não nos surpreende, pois, que os pilares da globalização sejam definidos,
no discurso da primeira perspectiva, como sendo o Estado de direito,
os direitos humanos e o mercado livre. Tamanha hipocrisia resume o
Estado de direito, como condição do reconhecimento de um regime
democrático, a uma aparente submissão do Estado ao seu próprio di-
reito. Nas democracias formais representativas, que caracterizam a maior
parte dos regimes políticos dominantes, o direito do Estado assume-se
a si mesmo como a ordem jurídica única, verdadeira e ideal.

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D OS DIREITOS AINDA

O debate académico, longo e polémico, que marcou a antropologia e a


sociologia jurídicas do século XX, teve uma importância crucial na
reafirmação da pluralidade de ordems jurídicas. O que contradiz a teimosia
da posição do direito positivo dos Estados. Essa atitude é posta em causa
pelo direito internacional, e também, silenciosamente, pela constitui-
ção de formas de direito privado paralelo, que evitam cruzar-se com a or-
dem jurídica desses Estados. O contrato é substituído pelo deal; as em-
presas transnacionais, o “crime organizado” e certos círculos políticos e
institucionais estabelecem regras, acordos e operações conjuntas e se-
cretas, passando por cima ou por baixo ou através dos Estados e do seu
direito. Mas também não devemos esquecer a importância crescente,
segundo as sociedades, do desenvovimento de um direito comunitário, o
recurso frequente ao direito costumeiro, e um pouco mais complicado, à
ordem jurídica religiosa.
No caso dos direitos humanos, sempre foi mais fácil a sua exigência e
aplicação no campo dos direitos chamados de primeira geração, o que
não significa ausência de abusos e de obstáculos. Mas também o acesso
e o exercício da liberdade de expressão e de pensamento, de associa-
ção e de movimento sempre foram mais fáceis e concretos para quem
domina do que para quem é dominado, local e globalmente. Os direi-
tos políticos são hoje, como ontem, aplicados de modo selectivo e
discriminatório, reforçando a desigualdade. Actualmente, os direitos
humanos, incluindo os direitos e liberdades civis, surgem como objectos
abstractos, como condição formal do regime democrático, da abertura
e da expansão do mercado.
No centro do sistema mundial, os Estados e o capital exigem-no às
populações da periferia do sistema, e no melhor dos casos, como atitu-
de paternalista. O que significa constranger e obrigar os Estados e as
sociedades locais a garantir a circulação do capital; a exploração das
matérias primas; a produção de mercadorias, de bens e de seviços; o
movimento dos recursos humanos e do consumo sem entraves, isto é,
sem a intervenção do Estado. O mercado livre e suas forças se
autoregulam e se autocontrolam. Eles são a expressão formal dos di-
reitos humanos e a garantia da democracia flexível. O que significa re-
duzir os direitos humanos a uma relação de forças e determinar a cida-
dania exclusivamente pelo campo da economia. Só assim poderemos
compreender por que os mercados e as sociedades do centro do siste-
ma mundial se fecham cada vez mais às empresas, aos produtos e aos

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cidadãos da periferia: proteccionismo agrícola, comercial, industrial,


mas também em termos de contrôle dos recursos humanos.
A criação de mercados livres ilegais e a sua expansão através de actividades
económicas ilícitas (os tráficos) fomentam um nível de acumulação de
capital e de recursos (materiais e humanos) no centro do sistema sem
precedentes na história da humanidade. As políticas públicas pensadas
como guerras, e para tal utilizando os aparelhos armados e militarizados
do Estado – em especial a justiça penal e a força militar – constituem
elementos essenciais da instrumentalização de tais objectivos.
Ainda que nesses Estados as diferentes gerações de direitos humanos
estejam bem documentadas através da história das lutas política,
económica e social de suas populações, a insatisfação em relação ao
carácter normativo e processual da questão aumenta. Afinal o mercado
não é tão livre e democrático como apregoado pelos poderes económico
e político. E os direitos humanos e o Estado de direito devem subme-
ter-se às exigências de flexibilidade da acumulação do capital, que trans-
formou uma matéria viva em algo de morto e formal. Assim, os mercados
local e global transformam-se no palco de uma concorrência feroz e
fraudulenta. A mentira reina como meio de governação e a corrupção
como forma de obtenção de privilégios e de acumulação de riqueza
improdutiva.
A ausência de valores morais e éticos, que não sejam meros formalismos
normativos, orientadores da acção individual e colectiva, origina uma
definição selectiva e enviesada dos problemas sociais: uns são patologias
perigosas que devem ser tratadas por meios repressivos e militares, ou-
tros são riscos e, por fim, acidentes. Nestes casos, a dificuldade de prever
e de prevenir é uma ocasião para desenvolver uma rede de “técnicos”
ou de gestores do risco e da segurança, e criar um mercado privado marca-
do pela gestão actuarial de algo que cessa de ser um problema de socie-
dade para ser um problema técnico e de gestão económica. No nível
global, o exemplo da SIDA é significativo. Duas lógicas se afrontam neste
caso. De um lado, Estados e populações do sul se aliam com a Organi-
zação Mundial da Saúde adoptando uma perspectiva que define a SIDA
como problema social de saúde pública e como defesa dos direitos hu-
manos da cidadania. Do outro, Estados do norte (em particular os Etados
Unidos da América e a Suíça), uma associação privada das maiores
empresas farmacêuticas do mundo, e a Organização Mundial do Co-
mércio defendem uma perspectiva pura de gestão comercial baseada
no lucro e nos direitos de propriedade.

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Em termos da gestão financeira do Estado local, e dos custos que tal


visão acarreta – na qual devemos situar o debate sobre os direitos hu-
manos –, torna-se necessário criar as condições de imergência de um
espaço democrático, no qual as sociedades civis possam aderir e parti-
cipar à definição das políticas públicas. Como espaço contraditório de
debate, ele é também um espaço de negociação que se refere à identificação
dos problemas a resolver; ao conteúdo e aos meios; à aplicação e à avaliação das
políticas públicas. O espaço de negociação será importante na medida
em que se transforme num instrumento pedagógico democrático, para
todos os actores sociais que nele participam, sem ceder às relações de força
que existem na sociedade.
Tal espaço é normalemente negado às populações menos organizadas,
sobretudo na periferia do sistema (por exemplo: África) e no caso das
políticas públicas globais. Nos casos em que essa fraqueza é evidente,
em que o discurso e a acção dos dirigentes políticos, económicos e civis
reforçam a hegemonia do Estado e do capital, a negociação deixa de
existir. Ela transforma-se num processo social de justificação, confun-
dida com a legitimação de uma política pública, pensada únicamente
pelo Estado e pelo capital de forma a servir seus interesses. Os exem-
plos actuais são numerosos: guerras contra a imigração ilegal, contra o ter-
rorismo e contra a droga.
As políticas públicas assim definidas denotam não só a linguagem do
poder e da dominação, mas também a militarização desse poder, isto é, a
penetração da ideologia militar na resolução dos conflitos sociais. Par-
tir da ideia de que os problemas da sociedade são questões exclusiva-
mente de segurança, que se solucionam pela força armada e violenta,
implica elaborar estratégias e tácticas com objectivos de “eliminar ini-
migos”. A (re)estruturação actual das sociedades contemporâneas, que
inclui uma maior emancipação do capital e uma maior instrumen-
talização do Estado, poderá constituir um momento-chave da história
de nossas sociedades. A formação do Império, tanto no nível local como
global, aponta para um “deslize” hegemónico do capital e um recuo da
democracia e da cidadania. Os sintomas de tal movimento encontramo-
los essencialmente na consagração e aumento da desigualdade
económica e social, no absolutismo arrogante dos Estados, e na intole-
rância e desrespeito dos direitos civis e humanos da cidadania.
Evidentemente que não existe conspiração nenhuma. Existe sim, uma con-
vergência de interesses e uma conjugação de meios que colocam os
actores sociais, sejam eles indivíduos, grupos, instituições ou classes

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sociais, diante de escolhas que os obrigarão cada vez mais ao confron-


to. E neste terreno não se devem ignorar os discursos dos actores, a sua
retórica e a sua narração, as diferentes formas que os discursos, públi-
cos e privados, podem tomar para se apresentarem diante das socieda-
des e se transformarem em formas culturais, ideológicas e normativas.
Face aos discursos dominantes que opõem eu e o outro, nós e eles para
finalmente chegarem ao ou estão comigo ou estão contra mim, torna-se ne-
cessário estudar as estratégias, as tácticas e os discursos desses eles e
outros. É, pois, urgente escutar e compreender (no sentido weberiano)
os actores que estão contra os interesses, os meios e os discursos que
conduzem fatalmente ao absolutismo e à ditadura, mesmo quando ela
se disfarça sob o manto da flexibilidade e da segurança de todos, exi-
gindo como “sacrifício” os direitos e as liberdades civis.
A forma de raciocínio e de racionalidade, aparentemente simplista, dos
discursos e das acções do Estado e do capital, também não é nova.
Desde há muito tempo que os estudos de socioantropologia das
identidades referenciou tal modo de pensar e de articular as culturas e
as relações sociais. No entanto, continua circulando na contramão! Nas
sociedades actuais, a consciência colectiva não é a soma das consciên-
cias e dos interesses individuais. Ela é o resultado de processos múlti-
plos e plurais feitos de confrontos, de negociações e de compromissos,
raramente de consensos. Para que tais processos sejam efectivos e dig-
nos, é necessário manter um esforço democrático de articulação dos
interesses fragmentados que povoam nosso mundo. O objecto é o bem
comum e os meios são a riqueza social (solidariedade) e os direitos humanos
(dignidade e pluralidade). Negar tal possibilidade equivale a aceitar como
fatalismo a imposição antidemocrática de uma vontade única, ou de
um interesse particular. Mais grave ainda, essa imposição se realiza em
nome de uma universalidade falsa, e em detrimento da pluralidade
que constitui a imagem mesmo do que é uma sociedade hoje.
O interesse ou bem comum é uma realidade reflexiva, um dado sempre
em construção e nunca acabado, e o resultado de um movimento con-
traditório em que se afrontam duas lógicas: a desigualdade e a igualda-
de. Enquanto uma se apresenta como soberana e legal, confirmada pelo
acto eleitoral formal, mas contestada como ilegítima e, por vezes, ile-
gal, a outra reivindica a legitimidade, pois ela se apresenta como o local
dos direitos humanos concretos, direitos de todos e não de alguns. Ao
mesmo tempo, suas acções e exigências são vistas com desconfiança
pelos defensores da lógica da desigualdade, quando não são classifica-
das como ameaçadoras e perigosas pelos detentores do poder. E vice-

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versa. Eis porque é tão importante e urgente estabelecer os espaços de


negociação, genuinamente democráticos e iguais, isto é, livres das rela-
ções de dominação que ferem nossas vidas e deformam nossas socieda-
des.

DA GUERRA ÀS DROGAS

Entre outras políticas públicas, “a guerra contra as drogas” é um indi-


cador essencial do estado actual das nossas sociedades e da democracia
em geral:

[...] a luta contra a droga coloca face a face os apoiantes de duas concep-
ções diametralmente opostas sobre o que é o ser humano: uma conside-
ra o cidadão adulto como agente moral livre e responsável; a outra
considera-o como vítima infantil, prisioneira das circunstâncias, “que
necessita de ser orientada, dirigida, tratada, sancionada e punida”
(SZASZ, 1998, p. 8, tradução nossa)
Enquanto a droga for uma substância inactiva e inerte, isto é, não for
consumida, ela não constitui nem perigo nem ameaça para ninguém.
Ela se torna perigosa, social e jurídicamente, a partir do momento em
que é consumida. Portanto, declarar a guerra a uma substância, nomean-
do-a criminosa em tais circunstâncias, é ridículo. Só mesmo os artifícios
da linguística, como o excesso de linguagem, permitem tal gesto. A
“guerra contra a droga” não é outra coisa senão uma declaração de guer-
ra de um Estado contra sua própria população. Um acto deliberado contra
a cidadania local e contra os cidadãos “outros”; os que produzem, trans-
portam, vendem e consomem local e globalmente as ditas substâncias.
As drogas têm uma história tão velha quanto a humanidade. A sua
proibição, discriminada e selectiva, e a sua criminalização acompanham
a história das sociedades e dos Estados modernos, da qual sobressai a
liderança do Estado norte-americano à cabeça de tal política pública. A
proibição e a criminalização, em particular das drogas psicoestimulantes,
parecem assumir uma função dupla e, em certa medida, ambígua.
Em primeiro lugar, pela identificação do mal, procura-se estabelecer as
condições de contrôle das mentes e das mentalidades. Aqui, “esculpin-
do” e identificando a figura do bode expiatório, a sua proibição cria a
possibilidade de uma válvula de escape aos numerosos problemas que
afligem as sociedades da segunda modernidade. Esse mecanismo e iden-
tificação originam, por sua vez, os espaços de adesão, de pelo menos
uma parte das sociedades civis, aos valores que são representados como

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fundamentais e universais. Pouco importa se na realidade tais valores


são falsos ou deveras contestados. Estão assim criadas as condições pro-
pícias à selecção e discriminação das drogas: ameaçadoras, perigosas e
criminosas.
Em segundo lugar, a proibição e consequente criminalização, da produ-
ção ao consumo, contribui concretamente à formação e fomento de um
mercado bem particular. Trata-se de um mercado “imensamente livre”
porque não sofre a regulamentação do Estado. Esta instituição só con-
trola certas drogas, sobretudo químicas, e que não são utilizadas na
primeira função. A criminalização da droga origina e “alimenta” um
mercado, que “produz” o criminoso e as suas variantes, e fornece as
fontes para a construção das representações sociais do mal. Esse “pro-
cesso de produção” inclui todos os excessos que são permitidos aos
actores que agem dentro desse espaço público ilegal, com suas condi-
ções e circonstâncias próprias. O mercado refere-se a uma realidade
que vai muito além das actividades económicas. Ele é realmente um
espaço público que, entre outras coisas, alimenta a retórica, a narração
e o simbolismo da primeira função. La boucle est bouclée!
Pela sua ineficácia, a guerra contra a droga representa um custo elevado
para as sociedades civis, não só em termos materiais e sociais, mas tam-
bém morais. Estes últimos dizem respeito aos danos causados ao “con-
junto das faculdades mentais” que caracterizam o bem-estar intelectual
de uma população determinada, e às ordens normativas exteriores ao
Estado que solidificam e unem a estrutura mental colectiva. De uma
certa maneira estaremos diante de uma usurpação de facto dos direitos
humanos.
Com tudo o que comportam de rituais, a construção de mitos e a pro-
dução de símbolos, à volta da questão da droga, são postas em causa
tanto pelo pesquisador como pelo cidadão. As ligações mais visíveis e
mais evidentes entre o mundo do bem e do mal conduzem-nos a per-
guntar aonde fica a fronteira entre os dois. As práticas sociais e a arti-
culação de interesses económicos e políticos das instituições do capital,
do Estado e do chamado “crime organizado” levam-nos a interrogar a
validade das normas do Estado e da sua justiça (MERLEN; PLOQUIN,
2002; GRIMAL, 2000; PREVAILING WINDS, 2000; MAILLARD et
al., 1998). Pelo menos a procurar compreender para que servem e a quem ser-
vem.
A cada passo da guerra contra a droga, numerosos sectores das socie-
dades civis se dão conta de algo importante. Que essa guerra transfor-

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ma as populações em inimigo e em vítima ao mesmo tempo! Mais ainda:


que todo o aparato montado pelo Estado e pelo criminoso-traficante tem
como objectivo a reprodução dos símbolos e das condições sociais, polí-
ticas e económicas que sustentam o mito da eficácia da guerra contra a dro-
ga. O Estado, o capital (sobretudo financeiro) e o traficante passam
a ser os vencedores dessa situação. Ao cidadão cativo só lhe restam três pos-
sibilidades: ser vítima, ser drogado-criminoso ou drogado-doente, e fi-
nalmente traficante. Venha o diabo e escolha!
Cercados por um contexto desta natureza, somos obrigados a pergun-
tar-nos o que acontece aos direitos humanos do cidadão numa política
pública de “gerra contra a droga” (CABALLERO, 1992; COLLE, 2000;
GRAY, 2000; HUSAK, 2002; ROSENZWEIG, 2001). A título de exem-
plo, e baseados no trabalho de Francis Caballero, referimo-nos a duas
“figuras simbólicas” da questão das drogas, que constituem o principal
alvo dessa política: os casos do cidadão consumidor de drogas e do cidadão
traficante de drogas.
A repressão do consumidor, variando segundo os países aonde ele é apreen-
dido a consumir, consiste, de uma forma geral, na pena de prisão e/ou
de multa. Ora, essa repressão não respeita evidentemente as liberda-
des fundamentais de qualquer democracia formal e representativa, de-
finidas constitucionalmente, mas também enunciadas pela Carta Uni-
versal dos Direitos Humanos e por outras convenções internacionais: o
direito de fazer tudo o que não causa dano ou prejuízo a outrem, o direito de cada
ser humano de dispor do seu próprio corpo e o direito à vida privada. No seu
ensaio sobre a liberdade publicado em 1859, John Stuart Mill afirmava
que

impedir que alguém possa causar dano aos outros constitui o único
objectivo pelo qual a força pode ser exercida sobre um membro de uma
sociedade civilizada. Sobre ele mesmo, o seu próprio corpo e o seu es-
pírito, o indivíduo é soberano. Cada um de nós permanece o único
guardião da sua saúde física, moral e intelectual (MILL, 1978, p. 13,
tradução nossa).
No melhor dos casos, as leis da guerra contra a droga, a proibição e a
criminalização são leis “paternalistas” que pretendem proteger os indi-
víduos deles mesmos, com a desvantagem de punir todos pelos exces-
sos de alguns. Acrescentemos que, do ponto de vista jurídico, as leis de
proibição das drogas, tendo como alvo a criminalização e a punição do
consumidor, são geralmente anticonstitucionais. Elas não podem proíbir as
acções de um cidadão que causem danos sómente a ele próprio, ou à

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sua integridade. Enquanto o consumidor se mantiver solitário no seu


consumo, e não “forçar” ninguém a fazer o mesmo que ele, esse ser
humano não causa dano senão a ele próprio. A sua condenação à prisão
ou a uma multa (coima) constitui uma violação dos direitos humanos.
Ora, o poder judiciário do Estado ignora tal violação sob o pretexto de
que mesmo se o consumo de drogas não é uma doença contagiosa, a
sua “prática” tornou-se “epidêmica”. Outro argumento, utilizado fre-
quentemente nos tribunais pelos juízes e pelos procuradores (promo-
tores), parte da ideia que, ao tornar-se dependente da droga, o
toxicómano abdica do seu direito à liberdade, pois ele “prefere um
paraíso artificial”. Tendo em vista o papel dos tribunais do Estado, e o
reforço da política pública de criminalização da droga, poderemos sin-
tetizar os argumentos utilizados nessa instância da justiça penal da se-
guinte maneira:
• o proselitismo do consumidor significa que ele é alguém que incita, ofe-
rece ou facilita a outrem o uso de estupefacientes, caso que as leis
do Estado normalmente reprimem com violência, independente-
mente do uso que se faz de tais substâncias. Convém notar que o
consumo solitário é diferente do consumo social;
• o consumidor abdica da sua liberdade é um argumento no qual se torna
necessário distinguir o facto de que as drogas leves criam uma depen-
dência psíquica e não física, significando que o consumidor conser-
va toda a sua faculdade de se abster. Em outros termos, ele não
abdica da sua liberdade. Neste momento é importante não esque-
cer que a maioria dos consumidores de drogas, em nível mundial, consome
sobretudo cannabis/haschich. A outra distinção refere-se ao facto de o
consumidor de cocaína se encontrar numa situação idêntica, o que
já não é o caso do consumidor de heroína (drogas duras).
Tudo isso permite-nos afirmar que a guerra contra a droga é
anticonstitucional porque viola os direitos e as liberdades fundamen-
tais da cidadania, mas também que a política pública parte de premis-
sas e postulados falsos. Mesmo no caso da dependência (toxicomania),
a impossibilidade de a quebrar é relativa. Basta pensar no trabalho da
medicina, apesar da sua mercantilização, e das políticas sociais centradas
na dignidade e liberdade do cidadão cujo objecto é o tratamento do
toxicómano.
O Estado e a sua justiça penal criam o mito de que o tratamento e a punição
são medidas de apaziguamento face à impossibilidade de curar, um gesto que
constitui o prolongamento de outro mito da modernidade: a igualdade

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jurídica de todos os cidadãos. O que está em jogo – os direitos da cidadania


– é fundamental para o funcionamento concreto de um regime demo-
crático. O direito de absorver voluntáriamente uma substância, tóxica,
tendo em vista a procura de sensações para si próprio, refere-se a um
espaço privado da cidadania no qual o Estado não se deve aventurar. No
mesmo registro, podemos situar o direito de cada cidadão a se
autodestruir. Mesmo que não seja considerado um direito fundamen-
tal, ele é reconhecido pela ordem jurídica do Estado: tentativa de suicí-
dio, automutilação, comportamentos a risco almejando a procura de
sensações, como a corrida de automóveis, o bungee-jumping, o alpinis-
mo, beber álcool, fumar tabaco, tomar tranquilizantes etc. Nos países
industrializados do “norte”, a farmácodependência é responsável pela
morte de dezenas de milhares de cidadãos por ano, por vezes, mesmo
de centenas de milhares, como é o caso da França.
A proibição e a criminalização podem ser compreendidas como a nega-
ção dos direitos civis dos cidadãos que são tratados, no caso das drogas,
de forma discriminatória. Nesta perspectiva, elas formam outro meca-
nismo de reprodução das desigualdades, contradizendo o discurso ju-
rídico do Estado. Também podem ser vistas como uma forma de gestão
ou de contabilidade de um problema social, por exemplo, a avaliação
dos custos sociais da droga para a saúde pública e para a sociedade em
geral (KOPP; FENOGLIO, 2000; BEAUCHESNE, 2003). Ambas as
perspectivas devem ser articuladas com o exercício da democracia pois
têm implicações sérias: em nome de que critérios os direitos humanos,
inscritos nas leis fundamentais, são recusados a determinados cidadãos?
O que fazer com outros tipos de dependências que também conduzem
à ausência de um papel produtivo? A negação dos direitos da cidada-
nia a certas categorias sociais, e a exclusão da sociedade de um número
cada vez maior de seres humanos não datam de hoje. No entanto, são
problemas que os “efeitos perversos” da globalização acentuaram e que
a guerra à droga acelerou. Sendo o consumo de drogas um comporta-
mento a risco, a política pública distingue-o de outros comportamentos
do mesmo tipo. Seleccionando e discriminando, o direito do Estado desig-
na-os como simples infracções cuja punição é necessáriamente mais
ligeira.
No domínio da saúde pública, o bem comum significa o bem-estar e o
tratamento ao alcance de todos os cidadãos. O que não pode, de modo
algum, ser traduzido como a possibilidade de destruição da liberdade
individual de certas categorias sociais em proveito de outras. Se assim
for, essa abordagem da questão põe em causa a liberdade de todos, e

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obriga-nos, em termos de contabilidade, a analisar os custos sociais de


todas as drogas, ilícitas e lícitas. Mesmo do ponto de vista sanitário, a
proibição e a criminalização das drogas ditas duras são encaradas como
fonte das overdoses. A ausência de contrôle da qualidade do produto/
substância e das condições de consumo não é devidamente contempla-
da pela política pública de proibição e criminalização. No caso da trans-
missão de doenças graves, sobretudo a hepatite e a SIDA, a saúde pú-
blica não age sobre elas de forma decisiva, ela reage a elas.
Mais do que o consumidor, o traficante constitui a figura simbólica da perso-
nificação do mal. Através do direito e do procedimento penal, o trafican-
te é representado como o comerciante da morte, o corruptor da juventude e
dos valores fundamentais, morais como políticos. Ele é o pior dos crimi-
nosos, o mais duro, o mais bárbaro e selvagem. O direito penal do Estado
reserva-lhe pois um lugar muito especial na construção ideal de dois
mundos em aparência separados: a ordem que se identifica com o bem e
que o Estado e a sua lei representam, e a desordem identificada com o
mal e representada pelo traficante. Mas por que razão falaremos dos
direitos humanos do traficante se ele é o mal? Ele nem sequer é defini-
do pela lei como um ser humano, quanto mais como cidadão!
Se o Estado democrático afirma a igualdade jurídica de todos os cida-
dãos, então não podemos evitar de examinar como ela se aplica ao caso
do cidadão-traficante, de forma a compreendermos o seu estatuto
sociojurídico. Regra geral, os direitos do traficante são reduzidos, e
por vezes suprimidos, se os comparamos com os direitos de outras ca-
tegorias de criminosos. Não de forma específica, mas total, pois todos
os aspectos e todas as etapas do processo penal reproduzem a repre-
sentação social do traficante que acabamos de descrever. Da competên-
cia dos tribunais à sanção, passando pelo procedimento e a incriminação.
Hoje em dia, o traficante é julgado por um tribunal criminal, e as pe-
nas previstas para o tráfico de drogas compreendem sobretudo penas
de prisão bastante severas, com agravantes para a reincidência. Os jul-
gamentos de cidadãos-traficantes são particularmente mais rápidos,
amiúde, com regras de procedimento excepcionais que permitem aos
tribunais evitar certos entraves processuais, em particular, quando dizem
respeito aos direitos do acusado. Segundo o discurso jurídico – a pala-
vra pública dos elementos do judiciário, a expressão do direito, o con-
teúdo e a interpretação das leis –, todo cidadão tem direito a um míni-
mo de garantias processuais, sobretudo quando as penas podem ser
longas e severas. É uma questão crucial para a democracia reflexiva.

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A justiça não se pode resumir a um trabalho técnico, de especialistas que


procuram a coerência e a coesão dos factos na narração de eventos
acontecidos, para em seguida os medir a partir de critérios puramente
normativos (exclusivamente definidos pelo Estado). A justiça, como
a democracia, não é uma instituição imutável. Se assim fosse, ela ces-
saria de existir. Ela tem de criar os espaços de mudança que lhe permitam
não de piorar, mas melhorar. Esses espaços, que definimos anteriormente
por espaços de negociação (também de resistência e de oposição), são
locais e momentos nos quais os actores da justiça devem agir no sentido
da defesa dos direitos e liberdades civis e do justo. Eles constituem ocasiões
cruciais para que se passe da aparência de uma justiça justa a uma
realidade concreta de uma justa justiça (RICOEUR, 1995; VAN PARIJS,
1991; HAARSCHER, 1988).
Quando os traficantes são julgados por instâncias inferiores, estas trans-
formam-se em tribunais criminais, seguindo as exigências do poder
legislativo. Assim, certos países produzem legislações excepcionais que
permitem a fusão ou acumulação de penas, particularmente quando se
trata da punição do traficante, de forma a manter um determinado
padrão: penas mais longas e mais severas. As acrobacias do Estado –
abuso do poder legislativo, manipulação do direito e dos direitos da
cidadania – têm por objectivo de suprimir a diferença entre a infracção,
o delito e o crime, no caso específico do tráfico de drogas.
Em relação ao procedimento, sobretudo policial, numerosos são os
países que criaram formas ou disposições processuais que escapam ao
direito penal comum. Elas dizem respeito a questões como as
perquisições (domiciliárias, locais de trabalho, de recreio etc), a deten-
ção provisória ou preventiva prolongada (por vezes, mesmo indefini-
da), a escuta e as intrusões na vida privada, para além do que é normal-
mente previsto pelas leis. Também devemos acrescentar o tráfico e a
venda de toda espécie de drogas pela polícia e outras agências do Esta-
do aos traficantes, oficialmente no intuito de os apanhar em flagrante
delito. E por que não considerar um actor ausente da política pública,
o Estado-traficante? (MERLEN; PLOQUIN, 2002).
Da mesma maneira que o Estado age com o consumidor de drogas
solitário, também o faz com o traficante ao tratar este último como se
tratasse sempre de crime organizado. Ora, em nível mundial, uma parte
significativa dos indivíduos que praticam o tráfico de drogas são cida-
dãos comuns. Esta volta que o Estado e o seu direito dão à realidade
social e que contamina o funcionamento do judiciário (juízes e procu-

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radores/promotores) ficou conhecida como a síndroma de Medellín


(CABALLERO, 1992, p. 27). No caso da liberdade provisória, essa atitude
do Estado conduz a práticas judiciárias estranhas. Elas contradizem o
princípio da liberdade para o qual a detenção deve permanecer como uma
excepção. O poder judiciário trata a liberdade provisória como se a
regra fosse a detenção e coloca a liberdade como excepção. É fácil com-
preender a razão por que, em média, perto de metade da população
prisional dos países ditos ocidentais é constituída por cidadãos conde-
nados em virtude de infracções à legislação sobre as drogas ou de
infracções derivadas (traficantes, consumidores etc).
No que diz respeito às incriminações de tráfico de drogas, também
parece ser generalizado o não-respeito do princípio da legalidade. Trata-
se de uma referência constitutiva da racionalidade moderna dos siste-
mas de justiça penal ocidentais, desde a Revolução Francesa, o movi-
mento iluminista e Cesare B. Beccaria, e circonscrito tanto nas leis fun-
damentais como nas cartas de direitos humanos. Segundo este princí-
pio, as leis do Estado devem definir as incriminações de forma clara e
precisa, com o objectivo evidente de eliminar o arbitrário. O mesmo acon-
tece com as sanções/punições. A tendência a atribuir sanções pesadas e
severas aos cidadãos-traficantes não respeita o princípio da propor-
cionalidade. Mas lembremos que, nos últimos anos, de novo sob a lide-
rança dos Estados Unidos da América, a maior parte dos Estados deci-
diu acrescentar outras medidas penais, como a confiscação de bens, que
penalizam, frequentemente, mais a família do traficante do que este
último. Dir-se-ia um recuo de vários séculos em termos de penalidade.

C ONCLUINDO
As atitudes e as acções dos Estados locais, em relação à produção, dis-
tribuição, venda e consumo de drogas, não são coerentes com os prin-
cípios e os valores morais e políticos fundadores da democracia. Pela
razão simples que elas são selectivas, discriminatórias e desiguais. No
sistema de relações de forças (indivíduos, grupos, instituições e Esta-
dos) que caracterizam o movimento da globalização, os Estados que
assumen um papel predominante encaminham-se para a definição de
uma política pública global em relação às drogas. Ainda que possamos
afirmar que existem diferenças entre as políticas públicas locais, um só
quadro geral as orienta cada vez mais. O modelo norte-americano apre-
senta-se e impõe-se como modelo universal, pela montagem ideológi-
ca, pelo constrangimento e, se necessário, pela força armada.

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O tráfico de drogas é uma actividade comercial ilícita e transnational, que


cobre vários sectores da economia de diferentes países. Ele constitui a
segunda actividade comercial do mundo, depois do comércio de armas.
Em termos do volume de negócios e do lucro, o tráfico de drogas origi-
na valores da ordem de centenas de milhões de dólares. Países do cha-
mado terceiro mundo as produzem, certos outros países, intermediários,
se posicionam como centros de distribuição e de venda, e os países do
norte, as grandes vítimas do complot da droga, consomem. A definição
da guerra contra a droga procede da premissa ideológica de que o mal
vem sempre do exterior, um algures que é definido segundo as conveniên-
cias, e que, evidentemente, está situado geográfica e mentalmente, aos
antípodas do nosso mundo. A identificação individual desse algures, o
inimigo do ponto de vista interno, assume então a forma do outro, que
deve ser marginalizado e excluído porque sem direitos, e, ao mesmo
tempo, sem direitos porque marginalizado e excluído. A soberania do
povo e a cidadania, elementos essenciais da democratização da democracia,
são substituídas pela soberania do Estado e a cidadania do poder
económico e financeiro.
A guerra contra a droga, no seu enunciado oficial e sobretudo na sua
aplicação concreta, é ridículamente falsa e dolorosamente trágica. Os países
que a lideram iniciam ao mesmo tempo uma outra guerra, desta vez
contra a liberdade de movimento dos povos do sul e do leste (deslocação
da produção industrial e contrôle barato da mão-de-obra), enquanto
estabelecem acordos e associações entre eles, garantindo assim a livre cir-
culação não só dos quadros que necessitam, mas dos grupos e dos indivíduos
que chamam de crime organizado, que por sua vez controla o tráfico, per-
dão, o comércio das drogas e um volume de capital demasiado impor-
tante.
A actividade comercial e financeira do produto droga só é viável e efectiva
com a colaboração, a cooperação e a associação de uma série de insti-
tuições políticas e económico-financeiras. Do Estado e do seu direito,
para reproduzir e alargar o mercado ilícito capitalista mais livre da
modernidade, e assim garantir uma taxa de lucro considerável. Das
empresas legais e de diferentes sectores das economias nacionais, para
investir o capital originado pelo comércio das drogas. Dos bancos, das
empresas de seguros e de gestão financeira como primeiro passo para
branquear seus lucros e, em seguida, para investir na economia legal.
Dos paraísos fiscais e bancários, protegidos pelos Estados locais, para a
mesma coisa. E da corrupção política, administrativa e policial, em par-
ticular, para se assegurar que a guerra contra a droga continua. A

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globalização não acabou com as fronteiras entre os Estados, mas tornou


certamente a associação do lícito e ilícito mais integrada, visível e complementar!
Em 1995, a França gastava cerca de 78% do orçamento para a sua po-
lítica pública das drogas com a polícia e a justiça. No mesmo ano, os
Estados Unidos da América consagravam 93% do seu orçamento para
a repressão das drogas, e sómente 7% para o tratamento sanitário
(GRIMAL, 2000, p. 191). Do ponto de vista dos objectivos oficiais, a
guerra contra a droga é um fracasso enorme. Primeiro, o casamento da justiça
penal com a política pública proibicionista gerou uma maior instabili-
dade social, pois aumentou os constrangimentos, as restrições, as veri-
ficações e a repressão. Segundo, essa guerra não permitiu um contrôle
effectivo sobre as actividades ilícitas do tráfico, nem encontrar soluções
socialmente aceitáveis para os consumidores. Terceiro, ela contribuiu a
reforçar a ideia da segurança como uma actividade económica lucrati-
va e, quarto, gerou rectroactivamente, no plano financeiro, um merca-
do com um potencial de expansão e de reprodução inédito para o co-
mércio clandestino, uma fonte de acumulação da riqueza ilegal. Isto é,
exactamente o oposto dos objectivos da política pública.
Quais as finalidades últimas e não declaradas da guerra contra as drogas?
A partir da análise que aqui apresentámos, diríamos que a construção
da representação social da figura do traficante constitui uma imagem
suficientemente cruel para domesticar os espíritos e as liberdades fundamentais, e
assim esquecer que a tolerância é um valor democrático essencial à paci-
ficação dos espíritos e dos comportamentos. Raros serão os países que
não possuem hoje uma lei fundamental (constituição) que declare sole-
nemente os direitos e as liberdades dos cidadãos, ou cujos Estados não
terão assinado a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Ambos os
documentos constituem verdades normativas fundadoras da existên-
cia de povos, nações e de Estados, mas também de algo que chamamos
de comunidade mundial.
No meio universitário e científico, numerosos autores afirmam que as
sociedades da segunda modernidade são mais abertas, menos secretas,
mais transparentes e realmente mais ricas. Portanto, mais democráti-
cas. Apesar de tudo, através das políticas públicas guerreiras, os proble-
mas sociais, os conflitos, as divergências ou dissidências são vistos de
forma selectiva, discriminatória e antidemocrática como desvios, deli-
tos ou crimes que convêm marginalizar e excluir, quando não, elimi-
nar. No contexto da globalização, os avanços registrados no campo dos
direitos civis e humanos, e o papel regulador do Estado durante a pri-

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meira modernidade são postos em causa e atacados. A tecnologia e o


saber são instrumentalizados, e por vezes monopolizados, ao serviço de
uma acumulação de riqueza e de capital sem precedentes na história da
humanidade. A democracia formal e representativa como regime políti-
co, e o capitalismo neoliberal como regime económico se resumem tris-
temente a uma formula doravante clássica: os fins justificam os meios.
Nunca, na história curta da modernidade, mas afinal já tão longa, a
proximidade entre o poder económico, legal e ilegal, e o poder político
foi tão grande.
A proibição e a criminalização das drogas, como política pública, são
recentes; elas datam do início do século XX (ESCOHOTADO, 1999;
DAVENPORT-HINES, 2001). Mas elas constituem o quadro no qual,
quanto mais se afirmam normativamente os direitos dos cidadãos, mais
eles se tornam abstractos e formais, e menos eles existem concretamen-
te. A democracia e os direitos da cidadania (à parte o direito de voto, neces-
sário a uma certa forma de legitimidade) são reservados e não universais. A
guerra contra as drogas, notávelmente marcada pelas exigências da única
superpotência global, trata o problema da droga como um não-direito, uma
não-liberdade também reservados e não universais.
A guerra contra as drogas é geralmente definida e decidida sem a presen-
ça e a participação dos cidadãos, que, no entanto, constituem o objecto
dessas políticas. A droga e a sua legalização, da produção ao consumo, defi-
nem, pois, um espaço de negociação e de luta pela democratização da democracia,
pela universalidade e concretização dos direitos humanos e da cidadania para
todos.

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ABSTRACT
The purpose of this paper is to understand what a public policy such as the
“ war on drugs” is, in the context of globalization. Which main actors are
at play, which interests and values do they put forward and how; what
sort of alliances do they build and what real purposes do they seek? In the
case of drugs, locally and globally, one may identify the bridging of an
association between both legal and illegal economic power and the political
power that questions the extension of citizenship and the enlargement of
democracy. Both are seen as obstacles to the movement of capital accumula-
tion. Drugs and civil and human rights combined become a public space of
opposition, resistance and negotiation, essential to redefine citizenship and
to rediscover the means for the exercise of the democratization of democracy.
The war on drugs does not target, globally and locally, the rights of big
organized traffickers. That is why we are more interested in analyzing the
violent attack this policy makes against two meaningful figures of the dis-
course on drugs: the consumer and the single trafficker.
Keywords: globalization; drugs; public policy; human rights; citizenship;
democracy.

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N OTA
1
Este artigo foi redigido de acordo com as normas ortográficas e de sintaxe utilizadas em Portugal.

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S O F Í A T I S C O R N I A *

D ETENCIONES POLICIALES Y MUERTES ADMINISTRATIVAS

En el artículo se desarrolla el trabajo de perito


antropóloga realizado ante la Corte Interamericana
de Derechos Humanos, en el tratamiento de un caso
de violencia policial. Se analizan procedimientos
policiales tales como las detenciones por averiguación
de identidad, los edictos contravencionales de policía y
las razzias, cuyo origen, expansión y legitimación
proviene tanto del derecho administrativo y por ende,
del control de las costumbres y la moralidad, como de
antiguas tácticas de guerra – tales como incursiones
rápidas y saqueos. La extensión de estas tácticas
policiales plantea problemas singulares – y con
frecuencia, olvidados – en los debates sobre la
“seguridad ciudadana”.
Palabras-clave: laudos antropológicos; derechos hu-
manos; policía.

*
Doutora em Antropologia,
Universidade de Buenos
Aires.
56

En el mes de marzo del 2003, fui convocada como perito antropóloga


ante la Corte Interamericana de Derechos Humanos. Se trataba de la
etapa final de un larguísimo proceso en el que se juzgaba un caso de
violencia policial, ocurrido en Buenos Aires, en el año 1991.
Es la primera vez que la Corte hace lugar, por recomendación de la
Comisión Interamericana, al tratamiento de un caso de violencia poli-
cial, en el que se juzga no solo la responsabilidad policial por la muerte
de un joven, a consecuencia de los golpes sufridos en una comisaría,
sino también, en los que se solicita a la Corte se expida sobre la legali-
dad de una serie de procedimientos policiales tales como las detencio-
nes para establecer identidad, las detenciones por edictos contravencio-
nales y las detenciones realizadas a través de razzias (batidas, en Brasil).
Ello me parece particularmente interesante. Hasta ahora la Corte ha-
bía entendido en casos de violaciones a los derechos humanos cometi-
dos por los estados, durante dictaduras militares o, en aquellos casos en
los que la acción de fuerzas paramilitares o parapoliciales secuestran,
torturan o matan con el consentimiento tácito de gobiernos democráti-
cos. Honduras, Guatemala, Colombia y Perú son por ellos los países
que más casos presentan ante la Comisión.
La Corte aún no ha producido sentencia.1 Pero hay una cuestión que
me parece importante para discutir aquí, en dónde nos estamos pre-
guntando acerca de la libertad, la igualdad y los derechos humanos.
Porque de alguna forma, lo que se diga en la sentencia de la Corte,
respecto a las facultades policiales de detener personas sin orden judi-
cial – aún cuando lo hace en uso de facultades administrativas específi-
cas –, supone pasar por la criba de los derechos humanos, los pilares
modernos de la libertad y la igualdad.
Como el tiempo de exposición es breve para resumir el problema y
exponer el caso, voy solo a puntualizar algunas cuestiones, ordenadas
de la siguiente forma: en primer lugar, de qué se trata el caso y porqué
es diferente a otros, tratados por la comisión. En segundo lugar, qué
son en mi país, las detenciones policiales masivas y, en tercer lugar, y
esto hace más específicamente a la pericia que realicé, como afectan la
libertad y la igualdad de las personas.
El caso: el 19 de abril de 1991, la policía federal detiene, durante una
razzia, a varios jóvenes, en las inmediaciones de un estadio en el que
tenía lugar un recital de un conocido grupo de rock nacional. La policía
había programado el operativo, y en la zona había patrulleros y perso-
nal uniformado. Los jóvenes son obligados a subir a colectivos y lleva-

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dos a la comisaría de la zona. Ahí se los aloja en celdas y son golpeados.


La policía inscribe la detención de los mayores de 18 años, en los libros
de la comisaría, como detención por averiguación de antecedentes –
figura que habilitaba a detener personas hasta 24 horas en sede policial
– y, la de los menores, la registra en un libro llamada memorando 40.
Este tipo de registro de detención de menores de edad era el resultado
de un acuerdo entre jueces de menores y policías. Ello así porque le-
galmente la policía debe dar aviso inmediato al juez de turno, cada vez
que detiene a un menor. Pero, habida cuenta que el mayor número de
detenciones de jóvenes menores de edad, la policía la hace los fines
de semana, los jueces, para no ser molestados, acuerdan a través de un
memorando secreto, de cuya existencia hay registro en el Código
Contravencional de Policía, que se podía detener a los chicos y dejarlos
mas tarde en libertad, sin intervención inmediata de los tribunales.
Walter Bulacio, quien es la víctima de la causa que llegará a la Corte, es
detenido por este procedimiento.
A consecuencia de los golpes debe ser trasladado, al día siguiente de la
detención, a un hospital. Ello se hace sin comunicarlo a los padres, ni al
juez de turno. En el libro de entradas del hospital, se registran los golpes
que recibió el joven. A los cinco días de haber sido detenido, y luego de
ser trasladado a otro centro médico, Walter Bulacio muere.
Su muerte aparece en los principales diarios. Los titulares dicen: “Mu-
rió el joven estudiante que detuvo la policía”. Walter era un chico de
clase media, estudiante secundario, que trabajaba para pagarse el viaje
de fin de curso. Quiero decir, la primera distinción, es que no se trataba
de un “sospechoso” típico, aunque si, habitual.2
El caso judicial es patrocinado por una organización de abogados y
familiares de víctimas de violencia policial: la Comisión contra la Re-
presión Policial e Institucional (Correpi). Un importante movimiento
social se afirma en la demanda de justicia e impone en la agenda públi-
ca una consigna: “a Bulacio lo mató la policía”. La consigna se canta en
recitales de rock, en partidos de fútbol, en actos de las escuelas secun-
darias y universidades.
Es el movimiento social el que sostiene la memoria y la impugnación
del hecho. Por la presión del movimiento, el parlamento reforma la ley
que habilita a la policía federal a detener personas durante 24 horas,
reduciendo éstas a 10 y agregando una serie de garantías, tales como
permitir una llamada telefónica. Se deroga el memorando 40. Y, años
después, se derogan también los edictos contravencionales de policía –
en 1996 –, en la ciudad de Buenos Aires.
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La causa en la que se investiga la muerte de Bulacio, tramitó durante


nueve años en los tribunales, sin que haya sido posible obtener alguna
condena. El comisario a cargo de la comisaría en que Bulacio fue gol-
peado, continuó ascendiendo en la fuerza, pese a estar procesado y
solicitó su jubilación luego de haberse desempeñado como profesor en
la escuela de policía. Más de treinta jueces estuvieron a cargo del proce-
so, en diferentes etapas. Unos pocos tomaron la decisión de procesar a
policías responsables del hecho, pero inmediatamente los tribunales
superiores revocaban la medida o concedían la excarcelación de los
imputados.
Por todo ello, la Corte Interamericana entendió que había denegación
de justicia y que los trámites internos se habían agotado. Habilitó, en-
tonces, la instancia internacional contra el Estado argentino.
Quienes presentan la causa ante la Comisión Interamericana de Dere-
chos Humanos son los abogados de la Correpi y los abogados del Cen-
tro de Estudios Legales y Sociales (CELS). El primero, una organiza-
ción contra la violencia policial, el segundo es un organismo de dere-
chos humanos, creado durante la dictadura militar, que en democracia,
se ha especializado en la presentación de casos ante los tribunales
internacionales.
Los abogados y los familiares de Bulacio, solicitan: 1) La derogación de
la ley que faculta a la policía federal a detener personas por un lapso
de 10 horas; 2) el reconocimiento público de la responsabilidad por la
detención arbitraria y muerte de Walter Bulacio, por parte del Estado
argentino, y 3) el pago de una indemnización a la familia de Walter
Bulacio. El Estado acepta discutir las dos últimas cuestiones, pero no
accedería a la primera petición argumentando que “no hay quejas por
la aplicación de la ley 23.950” (la ley que habilita a detener personas
por averiguación de identidad).
Como antropóloga fui convocada para testimoniar pericialmente sobre
la primera y la segunda cuestión. Esto es, acerca de porqué debía
derogarse la ley y toda facultad que habilite a las policías argentinas a
detener personas sin orden del juez o, cuando las circunstancias no son
las de un delito flagrante y, acerca de la forma en que el Estado debe
reconocer públicamente su responsabilidad.
Que la policía pueda detener personas y llevarlas a la comisaría duran-
te unas horas, solo por “sospecha”, es posiblemente una de las cuestio-
nes más naturalizadas en la vida cotidiana de mi país. Y no dudo que
también de la región y de la mayor parte de los países de occidente. La

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sospecha enlaza con la virtual peligrosidad. No con la consumación de


un delito. Por eso, no es una forma de castigo penal, sino que es una
forma de prevención que la policía realiza como parte de su misión
preventiva, esto es, de administración de la “paz social”, o más acorde
con el lenguaje contemporáneo, de la “seguridad urbana”.
Muchos juristas, en mi país, consideran que estas atribuciones policiales
– sea un su forma de edictos o de detenciones por averiguación de
identidad o antecedentes – resultan de un procedimiento más “directo
y simplificado” de ejercicio del poder de castigo estatal. En tanto, expli-
can, corresponde a

la actividad de la Administración para que nosotros pudiéramos ejer-


cer en la práctica esos derechos [los derechos individuales, colectivos,
de los ciudadanos] en un ambiente ordenado y de bienestar común.
La contravención representaba así, la falta de cooperación del admi-
nistrado en la tarea de la Administración para crear las condiciones de
ejercicio práctico de nuestros derechos, en el marco del bien común.
Por lo tanto la contravención pertenecía al ámbito del Derecho
administrativo (MAIER, 2000, p. 4).
Y también, y recordando el autor a Ricardo C. Nuñez:

el delito se refiere a los derechos tanto individuales como sociales de


los miembros de la sociedad civil; la contravención está ligada a la
Administración pública como creadora de un ámbito de orden para
la realización práctica de nuestros derechos en la vida cotidiana. En
forma más tangible, el delito lesiona lo que es nuestro; la contravención
lo que es del gobierno (MAIER, 2000, p. 5).
Por eso, al delito le corresponde el castigo del derecho penal, y a la
contravención, el castigo – la corrección – administrativa. Los tribuna-
les responsables de la revisión – siempre tardía – de este tipo de pena,
son los tribunales “correccionales”.
Pero la cuestión no es tan sencilla, porque la utopía iluminista del buen
gobierno (que no otra cosa parecen las consideraciones de los juristas
citados), puede cimentar las bases legales e incluso, ideológicas de un
estado de derecho, pero lejos está de realizarlo.
La policía ejerce el poder de control administrativo del “desorden” y
de la “moralidad” deteniendo personas por beber en la calle, por va-
gancia, por merodear, por actitud sospechosa, por lo que comúnmente
se llama “portación de cara”.

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60

Esa indefinición, la labilidad de los límites de las figuras contraven-


cionales, las equívocas y multifacéticas formas de intervención policial
sobre los cuerpos, la imposibilidad – en definitiva – de precisar la zona
de acción correccional, complicará a lo largo de los años la discusión
jurídica sobre la “naturaleza” de las contravenciones, preguntándose si
habitan el espacio de la administración del estado o, el espacio del castigo
y la pena. Y, por otra parte, y paralelamente al debate en el estricto
campo profesional de los juristas, irá expandiendo “el derecho” de la
policía, en el sentido que Walter Benjamín daba al concepto, como
expansión de una zona gris en la que el Estado es incapaz de garantizar
por medio del orden legal, sus propios fines (BENJAMIN, 1991, p. 32).
Porque, también el control de las manifestaciones públicas, de las mul-
titudes, de las masas humanas en el espacio público, es control adminis-
trativo policial. En estos casos, el control se hace según antiguas técnicas
de guerra: las razzias. Es esta una técnica policial que supone rodear un
predio, una población, una calle, un barrio, impedir los movimientos
de las personas que quedan atrapadas en el rodeo; obligarlas a subir a
móviles policiales o vehículos de transporte colectivo y conducirlas a
territorio policial: en general, la comisaría. Comienza entonces un
proceso de deshumanización en el que se exige obediencia,
cumplimiento irrestricto de las órdenes y gritos policiales, sumisión,
servilismo.
Es interesante recordar la etimología de la palabra porque ello ilustra
sobre la ideología de este dispositivo/práctica policial. La palabra razzia
– usada en español – está tomada del francés. Se incorporó a esta len-
gua durante la ocupación colonial de Argelia (en 1840). Proviene del
árabe argelino. Y fue esta táctica guerrera el núcleo de la política mili-
tar del mariscal Bugeaud y sus oficiales. Consistía en la expedición
punitiva contra los poblados argelinos, sus casas, sus cosechas y sus
mujeres y niños. A los árabes, decía este mariscal, debe impedírseles
sembrar, cosechar, pastorear sus tierras. Muchos son los testimonios de
época en la que los oficiales franceses celebran la oportunidad de poder
librar, por fin, una guerra a ultranza, esto es, más allá de toda moral o
necesidad.
Esta ideología de saqueo por sorpresa, de “cercar y arrear” personas,
de reducirlas a la condición de prisioneros, es la ideología que se pro-
longa en las actuales razzias policiales para el control de manifestacio-
nes públicas, de multitudes, de disconformes o de diferentes.

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Es interesante señalar – aunque no lo desarrollaremos acá – que la


incorporación del término al idioma castellano coincide históricamente
con los comienzos de la expansión del “estado de policía”, esto es aquella
técnica de gobierno propia del estado cuyo objeto es velar por las
relaciones sociales a través del control microfísica de las actividades
cotidianas (FOUCAULT, 1998).
Quiero decir, desde su origen, el poder de policía – que repito, no es en
este caso poder penal ni es auxiliar de la justicia, sino puro poder poli-
cial, ejercido por la institución o no –, tiene una cara moralizante y una
cara de bandido. En su constitución misma el poder de policía es poder
correctivo, disciplinante – conservador de derecho, diría Benjamín –, y
al mismo tiempo, es guerrero, pero a través de tácticas ligeras,
sorpresivas, amedrentadoras – un poder ejercido a través de la violen-
cia fundadora de un derecho de edictos, por un lado, y de estados de
excepción: las razzias, por el otro.
Esta cara del poder de policía es la que enfrentó Walter Bulacio: una
redada, un trasladado, en un lugar donde cesan los derechos por un
tiempo – por veinticuatro horas, por unos días, por diez horas, es casi
aleatorio –, en la redada se golpea y se maltrata a quienes están dentro,
más a unos que a otros, con más saña a los más rebeldes o a los más
débiles. Pero nada más, luego de pasada la razzia, vuelve la tranquili-
dad del desierto.
La muerte de Bulacio no fue la típica muerte producto del estado abso-
lutista, de los cancerberos de los estados totalitarios, de los escuadrones
de la muerte, de las patotas policiales, bandas que se ensañan brutal-
mente con sus víctimas, que las destrozan, les hacen lenta la muerte, los
despedazan, en campos clandestinos de detención, en campos de
concentración, en oscuros tugurios. Fue una muerte administrativa.
Demostrar que fue una muerte resultado de procedimientos policiales
administrativos, fue el objetivo de mi pericia ante la Corte. Mi argu-
mentación, para fundarla, consistió en el relato de la investigación rea-
lizada sobre 7.500 expedientes que la policía eleva a los juzgados
correccionales, en los que se inscriben las detenciones por averiguación
de identidad, así como el análisis de las entrevistas realizadas a jueces,
policías y víctimas. Miles y, a veces, cientos de miles de detenciones no
aseguran, obvio es decirlo, la seguridad urbana o la paz social –
argumento base de legitimación de la ley. Pero no sencillo demostrarlo
(TISCORNIA; EILBAUM; LEKERMAN, 2000).

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Por eso, la pericia estuvo destinada a despojar de su poderoso carácter


instrumentalista, la relación encarcelamiento preventivo/disminución
del delito. Y a demostrar así que no hay relación de causalidad alguna
entre esas dos variables. Resumiendo, lo que me propuse demostrar a
los jueces de la Corte es que las detenciones masivas o por sospecha
tienen tanta efectividad para conjurar la inseguridad urbana, como
lanzar redes en el mar sobre un cardumen, para intentar pescar un pez
de río. Los argumentos, que no puede desarrollar acá, pero que están
publicados en revistas de nuestra especialidad, son convincentes. Pero,
claro, ello no asegura demasiado.
Es mi hipótesis que limitar el poder de policía a la policía – quiero decir,
limitarlo para hacerlo imposible, prohibirlo – es mucho más serio que
una simple – o compleja – cuestión de derecho. Que la policía no puede
detener por sospecha, por olfato, por rutina, por prevención, mina la
base misma de la constitución del poder policial. Entendido este, vuelvo
a repetirlo, no como el poder de castigo penal, no como el poder de
castigo del Soberano, sino como el ejercicio de un poder más cercano –
por su carácter administrativo – al poder bio – político, sobre el que
tematizara Foucault y Agamben. Ese poder fundado sobre el estado de
excepción y que no se ejerce sobre cuerpos individuales, sino sobre
grupos humanos.
Esas batallas legales contra el poder de policía, fortalecen sin duda, los
pilares de la libertad y de la igualdad, porque restituyen la cualidad de
persona a quienes habitan un territorio en el que el poder de policía no
podrá más ejercerse.

ABSTRACT
The article analyzes work performed for the Interamerican Court on Hu-
man Rights in connection as expert anthropologist on a case of police vio-
lence. Various police procedures are analyzed, such as detentions for identity
verification, police infraction edicts, and razzias. The origin, expansion
and legitimacy of these procedures originate in administrative law – and
therefore in the control of public habits and morality – as much as in old
war tactics, such as quick incursions and pillaging. The expanse of these
police tactics poses particular – and often forgotten – problems in debates
about “public security”.
Keywords: anthropological expertise; human rights; police.

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R EFERENCIAS
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: el poder soberano y la nuda vida.
Valencia: Pre-Textos, 1998.
______. Lo que queda de Auschwitz: el Archivo y el testigo. Valencia: Pre-
Textos, 2000.
BENJAMIN, Walter: Para una crítica de la violencia y otros ensayos. Madrid:
Taurus Humanidades, 1991.
FOUCAULT, Michel. Del poder de soberanía al poder sobre la vida.
Undécima lección. 17 de marzo de 1976. In: ______. Genealogía del racismo.
Buenos Aires: Ed. Altamira, 1998.
MAIER, Julio. Sistema penal y sistema contravencional. Documento de
Trabajo del Jornada sobre Derecho penal, Derecho contravencional y
Derecho administrativo sancionador. Encuentro organizado por el
Instituto de Derecho público provincial, municipal y urbanismo de la
Universidad Notarial Argentina y la Asociación Argentina de Derecho
Administrativo, el día 23 de agosto de 2000, en el Colegio de Escribanos
de la Ciudad de Buenos Aires, Buenos Aires, 2000.
TISCORNIA, Sofía; EILBAUM, Lucía; LEKERMAN, Vanina. Detenciones
por averiguación de identidad. Argumentos para la discusión sobre sus usos
y abusos. 1999. Documento de trabajo del Seminario “Las detenciones,
facultades y prácticas policiales en la Ciudad de Buenos”, Buenos Aires,
2000.

N OTA S
1
La sentencia de la Corte fue dada a conocer el 18 de septiembre de 2003, pocos días después de la intervención
que dio lugar a este trabajo. La Corte ordenó al Estado argentino – entre otras medidas reparatorias – la
adopción de medidas legislativas o de cualquier otra índole que sean necesarias para adecuar el ordenamiento
jurídico interno a las normas internacionales de derechos humanos y darles plena efectividad.
2
Los “sospechosos típicos” son personas jóvenes de las clases populares y bajas. Pero, los jóvenes de clase
media son también blanco de las detenciones policiales.

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F E R N A N D O A C O S T A *

OS ILEGALISMOS PRIVILEGIADOS

A resolução de conflitos em sociedades modernas pode


ser vista como uma rede complexa de interações entre
vários sistemas oficiais de controle, relativamente au-
tônomos. O lugar ocupado pelo direito penal, assim
como seu papel dentro desta rede são em grande parte
determinados pela natureza de suas relações com ou-
tros sistemas de controle social. Baseado nessas premis-
sas teóricas, este artigo propõe uma discussão sobre
“ilegalismos privilegiados”, conceito que é usado para
explicar como fatos empíricos semelhantes são apreen-
didos de forma diferente pelo campo do direito, de acor-
do com os contextos com os quais estão relacionados. A
principal característica desses ilegalismos reside no fato
de que eles dispõem de um extenso leque de formas de
controle (procedimentos cíveis, administrativos e, so-
bretudo, acordos amigáveis). As conseqüências disso
são particularmente relevantes quando alguns desses
fatos são criminalizados e outros não.
Palavras-chave: ilegalismos privilegiados; teoria da
reação social; sociologia jurídica (penal); criminologia.

*
Professor do Departamen-
to de Criminologia da Uni-
versidade de Ottawa, Ontá-
rio, K1N 6N5.
66

A problemática teórica da gestão diferencial dos ilegalismos1 por esse


conjunto (heterogêneo e complexo) de discursos e práticas institucionais
de controle que se convencionou chamar de sistema penal2 foi conside-
ravelmente enriquecida, a partir da década de 1970, pela emergência
de um novo setor de pesquisa construído em torno de duas grandes
preocupações: procura-se identificar, por um lado, o lugar que ele ocu-
pa no conjunto dos sistemas normativos ou de regulação formais e, por
outro, as relações mantidas entre esses diferentes sistemas de regulação
no âmbito de uma sociedade. Vários trabalhos dessa época, particular-
mente os de Pierre Lascoumes,3 testemunham a importância e a ur-
gência de investir nesse campo complexo de relações jurídicas que se
tecem dentro de um conjunto mais amplo (e seguramente mais com-
plexo) de relações econômicas, sociais e políticas. Dito de outra forma,
o que se busca é, entre outras coisas, ultrapassar uma certa tendência
“penalocentrista”4 marcante em alguns trabalhos que abriram o cami-
nho para essa problemática, ou seja, a tendência que consiste em con-
centrar a tal ponto o esforço de análise sobre a atividade do sistema
penal que se acaba por perder de vista: a) os mecanismos que permiti-
ram a um número dificilmente avaliável de conflitos, análogos àqueles
que desencadeiam a repressão penal, evitar essa forma de intervenção
e assim conhecer outra modalidade de resolução (reparações resultan-
tes de ações cíveis, sanções administrativas, acordos amigáveis etc., e b)
o fato de que a exclusão de um certo número de conflitos da via penal,
mesmo quando já se encontram nela (ex.: o abandono ou a anulação por
vício processual das ações criminais em andamento), pode muitas ve-
zes ser atribuído ao deslocamento das questões em litígio para outras
vias possíveis de resolução. A tentativa de preencher as lacunas teóricas
e empíricas deixadas no caminho por essa abordagem constitui, para
essa nova corrente de pesquisa, o ponto de partida de uma nova pro-
blemática na qual o sistema penal, apesar de suas peculiaridades e,
sobretudo, das conseqüências específicas que engendra, é visto como
um sistema de regulação, um sistema normativo entre outros (como, por
exemplo, os sistemas civil, administrativo, comercial, disciplinar etc.).
O problema de pesquisa que assim se coloca é o de compreender de
que modo esses diferentes sistemas normativos, assim como as diferen-
tes práticas de intervenção que deles resultam, operam a partilha e a
gestão do conjunto amplo e difuso de relações sociais conflituosas. A
despeito dos conhecimentos geralmente embrionários de que se dis-
põe sobre esse assunto, uma constatação importante parece impor-se
sem grande dificuldade: que o direito penal está longe de poder rei-
vindicar um controle hegemônico sobre o campo de conflitos que se

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poderia logicamente atribuir-lhe com base nos próprios enunciados que cons-
tituem sua armadura discursiva. Ora, se é verdade que essa afirmação tem
amplo apoio empírico no domínio dos ilegalismos populares,5 parece-
me que ela adquire uma importância e um interesse crescentes quando
a situamos no domínio daquilo que chamo de ilegalismos privilegiados.
É isso que tentarei mostrar nas páginas seguintes, utilizando sumaria-
mente, num primeiro momento, duas diferentes maneiras – propostas
na literatura criminológica – de abordar a questão da exclusão, parcial
ou total, de certas formas de ilegalismo do campo da intervenção pe-
nal. Essas primeiras observações me permitirão explicitar o quadro teó-
rico em que situo minha proposta.
Em segundo lugar, vou propor os elementos essenciais de definição do
que entendo por ilegalismos privilegiados e tentar, mediante um exer-
cício de contextualização, confrontar esses elementos com um certo
número de conhecimentos, muito desiguais, que existem atualmente
sobre o tema. Com essas proposições, que constituem o núcleo deste
artigo, procuro reunir sob um mesmo abrigo conceitual um certo nú-
mero de resultados de pesquisas produzidos seja no interior, seja à
margem, ou até mesmo totalmente fora do campo de investigação da
criminologia e da sociologia jurídica.
Em terceiro lugar, vou examinar brevemente os principais fatores que
intervêm no processo de construção social, política e jurídica da impu-
nidade penal relativa dos ilegalismos aqui tratados. À guisa de conclu-
são, apresentarei alguns argumentos que buscam indicar os sérios pro-
blemas (práticos, jurídicos e éticos) apresentados por qualquer projeto
de criminalização6 das condutas que se destacam nos contextos exami-
nados na segunda parte deste texto.

D UAS TESES SOBRE A IMPUNIDADE PENAL

Sem haver merecido uma atenção constante da parte dos autores das
áreas de criminologia e sociologia jurídica, a questão da impunidade
em matéria penal foi abordada de maneiras diversas na literatura cien-
tífica dessas disciplinas. Limitando-se às contribuições que datam das
quatro últimas décadas, é possível identificar duas grandes teses pelas
quais tentou-se apreender seus traços essenciais.
A primeira, muito em voga nos anos 60/70, via a impunidade penal
como um atributo de classe, uma condição permanentemente associa-
da ao lugar ocupado pelo infrator na hierarquia social. Em outras pala-

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vras, o fato de os conflitos envolvendo membros das frações dominan-


tes raramente chegarem às instâncias penais atestaria, antes de mais
nada, a existência de um “preconceito de classe” de que seriam vítimas,
em parte, os legisladores, mas sobretudo os operadores das agências
encarregadas da aplicação da lei penal. Nisso vemos, sem grandes difi-
culdades, o reflexo, no plano da concepção do direito penal e de sua
aplicação, da teoria instrumental do Estado que dominou amplamente
as proposições das correntes radicais norte-americanas, durante os anos
60/70.7 Tese de combate por excelência, e possuidora de alguns (pou-
cos) méritos freqüentemente ignorados, deve-se, contudo, admitir que
ela esconde mal sua tendência funcionalista na medida em que reduz a
problemática da impunidade penal a uma simples questão de distorções
(aparentemente corrigíveis) no plano da aplicação da norma penal. A
ênfase resolutamente voluntarista dessa tese ainda permanece visível
nas raras incursões feitas por seus partidários no domínio da
criminalização primária, ou seja, da construção político-jurídica das
infrações penais. Com efeito, a produção da norma penal é aí
freqüentemente apresentada como um processo de sentido único por
meio do qual a classe burguesa asseguraria, de maneira maciça e per-
manente, sua dominação sem falhas sobre a classe trabalhadora. Ob-
servemos, por sinal, que o fato de a armadura conceitual empregada
pelos defensores dessa tese ter sido tomada de empréstimo à teoria
marxista levou mais de um crítico apressado a ver nela o arquétipo
mal-acabado de uma teoria marxista do crime e de seu controle. Não é
objetivo deste artigo demonstrar o caráter altamente abusivo de tal
assimilação. É importante sublinhar, porém, que essa tese efetivamente
teve seu momento de glória no âmbito dos intensos debates – de alto
teor ideológico – que marcaram a criminologia dos anos 60/70, e que
justamente por esse motivo, ela contribuiu sem dúvida para manter a
problematização teórica da impunidade penal no interior de limites
demasiado estreitos.
A segunda tese, cujo embrião se encontra com certeza nos estudos pio-
neiros do final dos anos 30 sobre a “criminalidade do colarinho bran-
co”,8 propõe uma representação tipológica dos modos de resolução dos
conflitos ao distribuí-los por um continuum de práticas e medidas diver-
sas que vão do acordo amigável à pena de reclusão,9 passando pelas
sanções administrativas e pelas reparações cíveis, entre outras. Em tal
esquema, a impunidade penal assume a forma de qualquer recurso a
um modo de resolução do conflito que não seja de natureza penal,
desde que seja, ao menos em princípio, juridicamente plausível. Os

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primeiros trabalhos de Lascoumes sobre a delinqüência no mundo dos


negócios (délinquance d’affaires) na França propunham, de cada vez, di-
ferentes versões mais sofisticadas desse modelo básico.10 O principal
problema colocado por essa forma de representação da impunidade
penal – e o próprio Lascoumes foi o primeiro a se dar conta disso – está
essencialmente ligado ao fato de que, ao estender os diversos modos de
resolução dos conflitos sobre um continuum de práticas e medidas, su-
gere-se a idéia de que eles estariam submetidos a uma gradação lógica
e, por conseguinte, a uma racionalidade que presidiria a escolha, em
cada caso concreto, do modo mais adequado e eficaz de intervenção.
Ora, o pouco que se sabe atualmente sobre a gestão extremamente
complexa dos contenciosos penalmente atípicos (como é o caso, por
exemplo, dos ilegalismos próprios ao mundo dos negócios) é suficiente
para nos convencer da extrema dificuldade de se identificar ali uma
lógica gestionária global. Constatam-se, sim, relações tópicas de colabo-
ração ou de exclusão entre diferentes lógicas institucionais.
As sucessivas reformulações dessa tese levam ao que se poderia consi-
derar, por sua vez, como uma variante da tese original e, sobretudo, o
núcleo de uma nova problemática que alargou consideravelmente as
possibilidades de abordagem da questão da impunidade penal na me-
dida em que ela se inscreve numa ampla reflexão sobre a organização e
o funcionamento da gestão diferencial dos ilegalismos numa socieda-
de. É no interior dessa problemática que tento orientar minhas atuais
pesquisas sobre esse tema e, bem entendido, as proposições conceituais
que seguem. Antes de chegar a esse ponto, convém, no entanto, apre-
sentar, em seus traços essenciais, a maneira como a concebo.
A gestão dos conflitos numa sociedade pode ser representada sob a for-
ma de uma rede de interações entre diversos sistemas normativos rela-
tivamente autônomos. Essa representação permite-nos identificar, no
conjunto de relações conflituosas geridas pelos diversos sistemas de di-
reito, duas zonas claramente distintas. Servindo-nos da Figura 1 abai-
xo, que ilustra, em seus traços essenciais, uma situação de interação
relativamente banal, podemos identificar a primeira zona (constituída
pelas subzonas A, B e C) como representativa do que poderíamos cha-
mar de ilegalismos típicos de um sistema normativo, ou seja, aqueles que,
ao menos em princípio, são relevantes exclusivamente num dado siste-
ma normativo e somente nele. Na ausência de um acordo amigável que
pusesse fim ao conflito, a anulação de um contrato de venda, por vício
redibitório, só pode assumir a forma de uma ação judicial no âmbito
das normas relevantes do campo do direito civil. Da mesma forma,

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tomando um segundo exemplo, a falsificação de moeda não poderia


ser objeto de uma ação judicial senão à luz dos preceitos relativos ao
direito penal. Num caso como no outro, diríamos que o evento de ori-
gem de cada uma das situações conflituosas só é (potencialmente) sig-
nificativo do ponto de vista jurídico no interior dos limites do código
de leitura da realidade que propõe um sistema normativo em particu-
lar, e unicamente esse sistema. No plano da norma substantiva, ele cons-
titui, então, aquilo que chamo de ilegalismo típico de um dado sistema
normativo.
A segunda zona da Figura 1 é constituída por três subzonas distintas:
penal/civil (1), penal/administrativo (2) e penal/civil/administrativo (3).
É a esta (e, sobretudo, à subzona 3) que eu gostaria de dirigir a atenção
do leitor, pois, diferentemente daquela que examinamos anteriormen-
te, encontra-se aqui um número importante de situações de conflito
cuja significação jurídica particular não é evidente à primeira vista. Em
outras palavras, sua eventual qualificação no plano jurídico pode, ao
menos em princípio, ser feita à luz dos enunciados de mais de um siste-
ma normativo (incluindo o direito penal), o que significa que tais con-
flitos são polissêmicos à luz do direito. É com o objetivo, entre outros, de
captar o caráter equívoco (no sentido pleno do termo) dessas situações
e, mais precisamente, de sua qualificação jurídica e da eventual forma
de resolução de conflitos (judicial ou outra) que será efetivamente ado-
tada, que proponho o termo ilegalismos privilegiados. Embora estejam
fortemente (mas não exclusivamente) associados às práticas a que têm,
prioritariamente, acesso os membros das frações dominantes da socie-
dade, seria, contudo, apressado concluir que é em razão de tal fatalida-
de que eu aplico o epíteto de privilegiados a esses ilegalismos. O que não
significa que eu não veja certa utilidade nessa coincidência.
F IGURA 1

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OS ILEGALISMOS PRIVILEGIADOS : OBSERVAÇÕES CONCEITUAIS

Chamo de ilegalismos privilegiados ao conjunto de qualificações jurídi-


cas aplicáveis às situações conflituosas, por vezes muito diversas, que
apresentam as três características seguintes:
a) no plano jurídico: a apreensão dos conflitos pode ser feita à luz de
diferentes sistemas normativos, notadamente o direito civil e, muito
particularmente, o direito administrativo,11 além do direito penal.
É, portanto, da natureza desses ilegalismos, como já sugeri em ou-
tros termos, poderem inserir-se em mais de um registro jurídico de
cada vez, sendo assim passíveis de mais de um tipo de qualificação à
luz do direito positivo.
b) no plano dos eventos: os eventos constitutivos dessas situações
conflituosas guardam uma indiscutível homologia em relação àque-
les cuja qualificação jurídica e eventual resolução são de competên-
cia exclusiva do direito penal. Faço aqui referência tanto a conflitos
de natureza pecuniária de importância considerável quanto a atos
(diretos ou indiretos) atentatórios à vida humana cujas conseqüên-
cias são, freqüentemente, extremamente graves.
c) no plano das práticas de resolução dos conflitos: as situações conflituosas
dispõem, em princípio, de um amplo leque de modos de resolução
(acordos amigáveis, advertências, sanções disciplinares, multas ad-
ministrativas, reparações cíveis, sanções penais de caráter simbólico
etc.). A utilização efetiva de um modo de resolução e não de outro
depende de diversos fatores que variam consideravelmente em fun-
ção do tipo de situação em jogo e do contexto no qual elas se produ-
zem, como, por exemplo: oportunidade da intervenção, natureza
das relações entre o infrator e aqueles que são encarregados da apli-
cação de uma lei ou regulamento particular, conhecimentos e re-
presentações, por parte das eventuais vítimas, da natureza dos con-
flitos em que elas estão implicadas, recursos materiais e humanos
dos organismos de controle, natureza das relações (colaboração
mútua? concorrência? conflito aberto?) entre os organismos de con-
trole relevantes das diferentes esferas da administração pública, e
assim por diante. É essencialmente em razão dessa ampla disponi-
bilidade de modos de resolução e, igualmente, da extrema comple-
xidade que parece caracterizar a dinâmica de sua operação que
qualifico de privilegiados os ilegalismos em questão. Estamos muito
longe, parece-me evidente, dos limites acanhados em que se acha
confinada, na maior parte do tempo, a resolução tão freqüentemente
simplista e autoritária dos ilegalismos populares.12
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72

A essas observações conceituais seria oportuno acrescentar algumas ilus-


trações que procuram, na medida do possível, trazer a contribuição
dos conhecimentos (por sinal altamente desiguais) de que se dispõe
atualmente sobre o assunto. É o que propõe o Quadro 1, a seguir,
construído a partir das três características enunciadas anteriormente.
Ao examiná-lo, o leitor deve ser advertido de que, se é verdade que
esse exercício de ilustração foi pensado tendo-se em conta, o mais pos-
sível, os contextos do Canadá e, particularmente, do Quebec, também
se deve levar em conta que algumas lacunas empíricas foram preenchi-
das com a ajuda de dados provenientes de pesquisas realizadas em
outros países. Isso não parece, contudo, causar um prejuízo grave à
principal utilização que se pode fazer desse quadro, no contexto deste
artigo, que é o de ser um meio de representação/visualização, mediante formas
concretas, das três dimensões que me parecem determinantes na conceituação da-
quilo que entendo por ilegalismos privilegiados. No entanto, não se exclui,
pelo contrário, que as proposições que ele apresenta possam ser igual-
mente consideradas, em conjunto, como hipóteses de trabalho das pes-
quisas a serem realizadas.
Na primeira seção horizontal, o campo dos eventos, encontram-se cinco
“domínios” da vida social (e, em certos casos, da vida quotidiana) capa-
zes de gerar conflitos na origem desses ilegalismos. Trata-se, sem dúvi-
da alguma, de uma enumeração que não pretende ser de forma algu-
ma exclusiva.13 É o caso, no que concerne aos dois primeiros domínios
(o mundo dos negócios, no sentido estrito das atividades econômicas e
financeiras, e o da administração pública), dos conflitos de natureza
estritamente patrimonial. Sem dúvida reconhecemos aqui os pontos de
ancoragem de dois setores bem estabelecidos da pesquisa no campo
das ciências sociais. As investigações em matéria de delinqüência no
mundo dos negócios14 e de corrupção político-administrativa15 forne-
cem, por sinal, um amplo testemunho disso. Em contraste, os litígios
em causa nos três outros domínios tratam dos atos atentatórios à vida
humana, ou seja, tanto dos danos causados à integridade física dos indi-
víduos quanto às condições necessárias à sua existência. Estão incluí-
dos aí os seguintes domínios: a) saúde pública (essencialmente, erros
médicos e produção e distribuição de medicamentos), b) meio ambien-
te (visando-se aqui – bem entendido – às atividades de poluição indus-
trial) e, finalmente, c) saúde e segurança no trabalho (ou seja, a impor-
tância atribuída à salubridade e à segurança física nas condições mate-
riais de trabalho oferecidas pelos patrões aos empregados). Na segun-
da seção do quadro, o campo dos sistemas normativos, encontramos as cate-

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73

gorias do direito positivo que podem contribuir para uma qualificação


jurídica dos conflitos oriundos de cada domínio em particular. Levan-
do em conta o uso a que se destina esse quadro, foram incluídas nessa
seção apenas três categorias clássicas do direito positivo, o que implica,
por conseqüência, a omissão de toda uma série de textos menores, de
caráter normativo (códigos de deontologia, regulamentos internos ou
práticas formalizadas de resolução de conflitos de diferentes institui-
ções, linhas diretrizes governamentais em matéria de conflito de inte-
resses etc.), cuja verdadeira função reguladora, em certas circunstâncias
precisas, é determinante, como de resto veremos na próxima seção do
quadro.
Na terceira e última seção, o campo das resoluções dos conflitos, o Quadro 1
apresenta, de modo sumário, as modalidades dominantes de resolução
dos litígios próprios a cada um dos domínios considerados. Essas mo-
dalidades, como se pode facilmente constatar, ultrapassam
freqüentemente os limites do espaço normativo a partir do qual é pos-
sível qualificar juridicamente os conflitos, como acontece com as san-
ções disciplinares, os pedidos (na verdade, forçados) de demissão, as
exonerações, os acordos amigáveis, entre outros, pelo esclarecimento
feito no fim do parágrafo precedente. Note-se, igualmente, que é com
o único objetivo de simplificar a tarefa, em matéria de apresentação
gráfica, que disponho essas diferentes modalidades de resolução em
escalas. Não se deveria ver aí a sugestão de alguma gradação real da
severidade dos modos de resolução dos conflitos e, menos ainda, de
algum paralelismo com uma escala de gravidade dos ilegalismos pró-
prios de cada domínio. Essas “escalas” podem servir para indicar, no
máximo, aquilo que se poderia chamar provisoriamente de “modalida-
des extremas”, em termos de complexidade de procedimentos, das
resoluções de conflitos que prevalecem em cada domínio. Um exem-
plo: a resolução de um litígio, face a face, por meio de um acordo em
que cada uma das partes admite, ao menos parcialmente, a boa funda-
mentação dos interesses da outra, parece a todos menos ritualista e
estigmatizante do que a resolução, imposta de maneira autoritária, do
mesmo litígio numa corte penal. Um contra-exemplo: um inquérito
público16 pode revelar-se quase tão estigmatizante quanto, e, com cer-
teza, mais ritualista do que um procedimento sumário diante de uma
instância penal. Entre esses dois extremos, numerosas combinações são
possíveis. Nas quatro próximas subseções proporei alguns comentários
sobre cada um dos domínios que figuram no Quadro 1.

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Q UADRO 1

M UNDO DOS NEGÓCIOS

São incontáveis, desde as pesquisas pioneiras de Sutherland no domí-


nio do “crime de colarinho branco”,17 as demonstrações empíricas da
tese da exclusão sistemática dos ilegalismos nos negócios da vertente
da regulação penal. Com poucas diferenças, numerosas pesquisas que
estudaram o funcionamento dos mecanismos de controle nesse domínio
(americanas, na maior parte, e algumas francesas) convergem notavel-
mente numa mesma constatação: que os ilegalismos são definidos e
tratados, na imensa maioria dos casos, segundo os ritos próprios
aos acordos amigáveis ou no âmbito das regras que se aplicam aos
contenciosos de finalidade essencialmente restitutiva. Ninguém está,
contudo, autorizado a tirar desse fato a conclusão apressada de que
todos os ilegalismos assim geridos poderiam necessariamente resultar
em uma ação penal. A importância dos resultados produzidos por es-
sas pesquisas reside essencialmente no fato de colocarem em relevo
uma realidade que é comum a todas as formas de ilegalismos privilegiados
aqui tratadas, ou seja, que eles dispõem de um leque de modalidades de
regulações fundado no princípio de orientação minimalista, segundo o
qual o melhor modo de resolução de um conflito, em cada caso preci-
so, deveria ser sempre o menos coercivo possível. O resultado prático
desse princípio é o de tornar inviável ou racionalmente pouco justificá-
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vel a utilização das modalidades mais repressivas de resolução de con-


flitos e, de modo particular, o recurso à justiça penal. Mas, evidente-
mente, como se trata de um princípio de orientação, e não de uma
regra absoluta, as prática efetivas que dele decorrem são relativamente
diversificadas. As duas possibilidades seguintes não estão, portanto,
descartadas, muito pelo contrário:
a) que ações penais sejam efetivamente instauradas (muitas delas, en-
tretanto, sendo trancadas a meio caminho) contra os ilegalismos aqui
analisados, como aliás o comprovam alguns estudos, incluindo pes-
quisas quebequenses que se dedicaram a essa questão.18
b) que vários modos de resolução de conflitos sejam acionados simulta-
neamente; quando isso acontece, dois cenários são possíveis: no pri-
meiro, todas as instâncias acionadas permanecem ativas durante um
certo tempo e retiram-se em seguida,19 uma após a outra, para dei-
xar a efetiva resolução do conflito entre as mãos daquela que é reco-
nhecida como sendo a mais habilitada para tratar do tipo de ques-
tão em litígio (ex.: um conselho disciplinar num caso de fraude co-
metida por um profissional contra um cliente); no segundo, uma
delas (o sistema penal, por exemplo) mantém-se ativa, ou em via de
ser ativada, tanto tempo quanto for necessário para deixar claro
que uma sanção mais severa poderá ser aplicada se, por acaso, a
pessoa ou companhia implicada resistir em aceitar o acordo ou com-
promisso que a “instância adequada” lhe propõe (ex.: a receita fe-
deral que negocia, brandindo a ameaça do prosseguimento de uma
ação penal já instaurada ou da entrega do caso ao Ministério Público,
o pagamento de uma dívida decorrente de uma declaração de im-
posto fraudulenta). As racionalidades em jogo aqui são evidentes:
no primeiro cenário, o conselho disciplinar é o modo de resolução
mais adequado porque o que conta, verdadeiramente, não é encar-
cerar o profissional desonesto, nem mesmo ressarcir o dano do
cliente lesado, mas preservar, através da ação do conselho discipli-
nar (que nem prende nem indeniza), a respeitabilidade da profissão
diante da sociedade; no segundo cenário, a receita federal é a agência
de controle apropriada, nas circunstâncias, porque mais vale recu-
perar o dinheiro devido ao Estado do que mandar um fraudador
fiscal para a cadeia. Moral da estória: é provável que se possa dizer
que só se é punido severa e verdadeiramente – como acontece
aos que só têm acesso aos ilegalismos populares – quando não se
tem nada ou quase nada a dar em troca.

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No que toca especificamente à conduta dos homens de negócios


(especuladores sem escrúpulos, na maioria dos casos), se é verdade
que ela pode ser efetivamente sancionada por meio de multas adminis-
trativas ou penais e, até mesmo, penas (simbólicas ou de curta duração)
de prisão, ao mesmo tempo se pode afirmar que: a) a parte das ações
penais implicando homens de negócios, à entrada do contencioso pe-
nal, é insignificante; essa parte se reduz ainda mais na medida em que
se avança no processo judicial,20 b) numerosas modalidades de contes-
tação ou de neutralização da ação penal – com o intuito de impor limi-
tes à sua severidade – podem intervir no início ou no curso do processo
e, em certos casos, durante a execução da pena (sem dúvida dever-se-ia
falar, nesses casos, de “lenitivos penais”)21 e, finalmente, c) os meios de
que dispõe um homem de negócios para neutralizar os efeitos de sua
passagem pelo aparelho penal (a “folha de antecedentes penais” sendo,
sem dúvida, o mais negativo deles) são consideravelmente mais eficazes
do que os oferecidos ao infrator comum, como de resto já demonstra-
ram muito bem Landreville, Pires e Blankevoort.22 Diferentemente do
que se poderia pensar à primeira vista, não é absolutamente insensato
falar de impunidade penal (relativa) mesmo quando tenha acontecido
a intervenção penal.

A DMINISTRAÇÃO PÚBLICA

A maior parte das observações feitas acima sobre os ilegalismos próprios


do mundo dos negócios parece transpor-se sem dificuldades para o
domínio da administração pública, e de modo muito particular para as
esferas desta, ocupadas por altos funcionários, membros do staff políti-
co e detentores de mandatos populares. O fato de não haver, para to-
dos os fins práticos, corrupção política (para imaginarmos um caso de
figura clássico nesse tema) sem atividade ilegal ou operação duvidosa
nos negócios, ou pelo menos a presença discreta de um empresário nos
bastidores, merece sem dúvida ser levado em consideração durante
uma eventual reflexão sobre tal simetria. Dando livre curso à imagina-
ção, seria indubitavelmente razoável presumir que a semelhança cada
vez mais estreita entre o modo de gestão dos negócios, no setor priva-
do, e o da coisa pública, nos diferentes setores do aparelho governa-
mental, teria provavelmente gerado práticas de resolução de conflitos,
em cada um desses setores, que acabariam por se assemelhar. Embora
toda tentativa de encontrar paralelismos nesse assunto deva, em prin-
cípio, ser feita com prudência, convém sublinhar ao menos duas dife-
renças importantes entre esses dois domínios, que a realidade jurídica

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canadense e certas pesquisas no Quebec ilustram bem, no que se refere


à organização e ao funcionamento de seus respectivos mecanismos de
controle.
A primeira dessas diferenças encontra-se no plano da lei penal, que
define os ilegalismos na esfera da administração pública de maneira
sensivelmente menos equívoca do que em relação aos que ocorrem no
mundo dos negócios. Lembremo-nos, com efeito, que o Código Penal
canadense, na parte III, consagra seis de seus artigos à instituição de
infrações cujo modus operandi supõe necessariamente a participação
de um funcionário público (arts. 108, 109, 110 e 112), ou que não
possam ser cometidas senão por funcionários públicos (arts. 111 e 117).
Os ilegalismos do mundo dos negócios, quando levados perante a jus-
tiça penal (o que já é de certo modo um prodígio), não assumem uma
forma juridicamente reconhecível e receptível, na maioria dos casos,
senão com a ajuda de verdadeiras acrobacias hermenêuticas em torno
do enunciado legal da fraude, consignado no artigo 338 do mesmo
Código.
Segunda diferença, que vem relativizar o que acaba de ser dito: o re-
curso efetivo à lei penal, no domínio dos ilegalismos cometidos por altos
funcionários da administração pública, parece pouco provável, ao me-
nos no Quebec, graças, em boa medida, ao papel desempenhado pelas
comissões de inquérito público sobre o assunto. É o que explica o fato
de termos decidido – correndo o risco de sobressaltar o leitor – incluir
esse procedimento entre as modalidades de resolução de conflitos próprias
a esse domínio. Algumas pesquisas a respeito do funcionamento dos
inquéritos públicos realizadas no Quebec nos últimos anos23 mostram,
com efeito, que os resultados por estes produzidos podem: a) prestar-
se a objetivos eminentemente políticos e ideológicos, sem grande
repercussão (ou muitas vezes nenhuma) no plano jurídico-penal, ou b)
ser utilizados como condições de possibilidade de ações penais cujo
verdadeiro alcance é mais que relativo. Ora, constata-se facilmente que,
num caso como no outro, o simples fato de desencadear e manter ativo
um inquérito público (o que nem sempre é fácil quando se considera a
contestação judiciária que ele sofre por parte dos indiciados) já constitui,
para aqueles cujas ações são, por meio desse processo, expostas à luz:
a) uma punição suficientemente severa para que pareça justa a decisão
de não submetê-las ao escrutínio de uma ação penal,24 ou b) mesmo
que essas ações venham a ser instauradas, uma punição já sofrida cuja
importância será objeto de consideração, na hipótese de uma condena-
ção, com vistas a reduzir o mais possível as penas a serem impostas.

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S AÚDE PÚBLICA

Tudo indica que o domínio do controle dos atos atentatórios contra a


vida cometidos por profissionais da área médica ou as práticas inte-
grantes do processo de produção e comercialização de produtos far-
macêuticos constituem um terreno mais do que propício a hipóteses e
avaliações impressionistas. É, assim, com muita prudência que se deve
considerar aquilo que propõe o Quadro 1 no que se refere às princi-
pais modalidades de resolução de conflitos no campo da saúde pública.
Apesar desse estado de coisas, que a flagrante penúria de estudos
criminológicos sobre o tema seguramente ajudou a edificar, parece
possível afirmar que o recurso às ações penais ou mesmo às penas pri-
vativas de liberdade previstas em legislações administrativas, em razão
de prejuízos causados por uma intervenção médica ou pela ingestão de
um produto farmacêutico, é, para todos os fins, praticamente
inexistente.
Embora não tenhamos à disposição resultados de pesquisas canaden-
ses sobre esse tema, provavelmente seria instrutivo recordar o que nos
diz Braithwaite a propósito das ações criminais impetradas contra os
dirigentes da companhia alemã responsável pela descoberta e
comercialização da talidomida. Essa droga, lembra-nos Braithwaite,
causou deformações severas a cerca de oito mil crianças em 46 países
do mundo e talvez tenha originado um número duas vezes maior de
natimortos. Segundo o autor australiano, essas ações constituem “uma
exceção à tendência assinalada de recorrer à resolução cível em vez de
instaurar ações criminais” que prevalece em matéria de litígios oriun-
dos de danos causados por drogas cujos efeitos nefastos foram
sabidamente ocultos pelos fabricantes.25 Autor da obra dotada, sem
dúvida, de melhor documentação sobre as práticas ilegais que ocorrem
na indústria farmacêutica (sua investigação abrange Estados Unidos,
Grã-Bretanha, Austrália e, igualmente, diversos países do Terceiro
Mundo), Braithwaite sustenta também que, nos Estados Unidos, ne-
nhum dirigente de companhia farmacêutica importante jamais foi pre-
so por violação do Food, Drug and Cosmetic Act, uma lei que, não obstante,
goza de uma sólida reputação de severidade em quase todo o mundo.
Ao contrário, as ações cíveis (cujo total de indenizações – assim como o
conjunto das custas judiciais e dos honorários de advogados e peritos –
costuma ser, em alguns casos, integralmente assumido pelas compa-
nhias de seguros), as multas (cujos montantes, por vezes muito subs-
tanciais, de fato correspondem somente a uma porcentagem insignifi-

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cante dos prejuízos causados), e sobretudo, talvez, os acordos (entre as


agências de controle e as indústrias) parecem constituir os principais
pilares da gestão “racional e eficaz” dos conflitos que predominam nes-
se domínio.
No que concerne aos erros no domínio da prática médica, cujas moda-
lidades de controle parecem polarizar-se em torno das reparações cíveis
e das sanções disciplinares, convido o leitor a tomar conhecimento da
entrevista com o doutor Bernard Lambert, perito canadense em medi-
cina, publicada nesta edição.26 Em pelo menos dois pontos, suas decla-
rações confirmam as afirmações de Braithwaite: por um lado, as ações
cíveis contra médicos constituem um terreno de luta desigual, entre
simples pacientes e poderosas companhias de seguro, em que o objeto
do litígio (o dano alegado pelo paciente) se transforma progressiva-
mente num duelo, entre peritos e advogados especializados, de uma
complexidade inapreensível pelo comum dos mortais; por outro, as
ações penais contra médicos, por erros profissionais, são – segundo os
termos que ele próprio emprega – “inconcebíveis”, no Canadá. No que
diz respeito à função reguladora que deveria exercer a Ordem dos
médicos, por intermédio de seu conselho disciplinar, seu parecer, com-
preensivelmente discreto nas circunstâncias, é contudo revelador: como
perito, ele interveio em várias causas cíveis em que, anteriormente, a
Ordem julgou que tudo tinha se passado segundo as regras admitidas
da prática da arte médica. Cumpre esclarecer, contudo, que é possível
que uma análise setorial do conjunto das diversas categorias profissio-
nais da área da saúde pública possa identificar outras modalidades de
resolução de conflitos nesse domínio, como, por exemplo, no caso dos
erros cometidos por técnicos, enfermeiros e enfermeiras. Seria sem
dúvida interessante poder comparar as sanções que são aplicadas a
esses profissionais com as que são efetivamente utilizadas em matéria
de controle dos erros médicos.

M EIO AMBIENTE E SAÚDE E SEGURANÇA NO TRABALHO

A questão da resolução de conflitos nos domínios do meio ambiente –


assim como da segurança e saúde no trabalho – foi abordada por
Grandbois e Lippel, respectivamente, neste número de Criminologie.27
Por isso, limitar-me-ei a fazer aqui algumas observações sobre as pro-
postas contidas no Quadro 1, com referência a cada um desses domínios,
sublinhando de passagem certas peculiaridades que considero impor-
tantes.

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O campo da resolução de contenciosos referentes a questões ambientais


apresenta uma configuração muito semelhante àquela que examina-
mos no item precedente. Com poucas diferenças, encontramos aí as
mesmas modalidades predominantes e, em particular, as mesmas mo-
dalidades extremas (acordos e reparações cíveis) que predominam no
horizonte da resolução de conflitos em matéria de saúde pública. Essa
constatação imediata exige, porém, alguns esclarecimentos.
Observe-se, em primeiro lugar, que existem boas razões para acreditar
que as ações cíveis ocupam, no conjunto dos contenciosos ambientais,
um lugar menos importante do que ocupam no domínio da saúde pú-
blica. A principal razão reside na dificuldade – em particular para o
simples indivíduo – de identificar a atividade poluente que se encontra
na origem do problema com o qual ele se confronta. Ou pior ainda: a
dificuldade pura e simples de saber se é a uma fonte poluidora que ele
poderia, em princípio, atribuir o problema que o aflige. Note-se, en-
tretanto, que não estou aqui me referindo à questão espinhosa do esta-
belecimento de um nexo de causa e efeito entre os dois termos da situa-
ção acima indicada (a poluição e o dano), mas, antes, a uma dimensão
estritamente cognitiva na ausência da qual não existe sequer consciên-
cia do litígio. Essa constatação enuncia, aliás, aquele que é um dos tra-
ços mais insidiosos dos atos predatórios contra o meio ambiente: o fato
de poderem freqüentemente constituir-se fora do campo da experiên-
cia quotidiana dos que sofrem seus efeitos, escapando, assim, a qual-
quer representação sob forma conflituosa. Admito que essa caracterís-
tica não é exclusiva dos atos de destruição do meio ambiente: é igual-
mente encontrada no domínio da saúde pública, o que não surpreen-
de, levando-se em conta as simetrias que se podem estabelecer entre as
práticas nocivas próprias a cada um desses domínios. Considero, con-
tudo, que esse traço marca de modo consideravelmente mais amplo o
conjunto de formas possíveis de poluição ambiental.
Segundo esclarecimento. No Canadá, de modo geral, tudo indica que
os acordos constituem o modo a que freqüentemente se recorre para
resolver os litígios em matéria de meio ambiente. Bem mais do que um
simples modo de resolução de conflitos, os acordos amigáveis
constituem, na verdade, um princípio a partir do qual os litígios serão
eventualmente definidos e resolvidos.28 Dito em outras palavras, os fa-
tos litigiosos são juridicamente construídos de maneira que se crie (ou,
pelo menos, não se impeça) a possibilidade da solução conciliatória que
o acordo amigável concretiza. O termo que melhor descreve esse pro-
cesso é, sem dúvida alguma, o de negociação, ou seja, aquele procedi-

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mento que constitui, segundo Thompson (citado por Schrecker),29 “a


própria essência do processo de regulamentação30 no Canadá”. É assim
o mesmo autor quem nos explica que, no que se refere ao meio ambien-
te,

Os princípios da regulamentação jamais são enunciados de maneira


clara e precisa, senão num sentido puramente simbólico. As normas
tornam-se objeto de negociações intermináveis entre as autoridades e
as empresas visadas até o momento em que estas últimas decidem se
vão conformar-se a elas... Os mecanismos coercitivos são usados apenas
no caso de um desacordo final, e mesmo assim, ainda pode tratar-se de
uma simples etapa no curso de infindáveis negociações.31
Encontram-se, entre outros, no artigo de Grandbois sobre o direito
penal do meio ambiente,32 excelentes exemplos de resultados do pro-
cesso de negociação descrito por Thompson.
As propostas do Quadro 1, no domínio da saúde e da segurança no
trabalho, permanecem em princípio circunscritas à realidade do Quebec.
Não obstante, a acreditar nas afirmações contidas num documento da
Comissão de Reforma do Direito no Canadá a respeito da poluição no
ambiente de trabalho,33 há consideráveis chances de que as propostas
do quadro sejam aplicáveis, mutatis mutandis, ao conjunto do país. É o
caso, por exemplo, da regra geral segundo a qual não é possível instau-
rar ações com base no direito civil para regular um conflito nesse do-
mínio. No caso do Quebec, como bem enfatiza Lippel,34 não há mais
como recorrer a essa forma de resolução de litígios desde a aprovação,
em 1909, da lei que introduziu nos costumes da província a teoria do
risco profissional.35 É o que explica por que encontramos apenas as
categorias do direito penal e do direito administrativo no campo dos
sistemas normativos que gerem os conflitos em matéria de saúde e se-
gurança no trabalho, comumente chamados de “acidentes de traba-
lho” (ver Quadro 1).
Essa diferença essencial entre esse domínio e os quatro outros que figu-
ram no Quadro 1 explica, por sua vez, a configuração particular que
assume a seção reservada às modalidades predominantes de resolução
de litígios nessa área. Lá encontramos, com efeito, em posições extre-
mas, as ações penais e as reparações a que têm direito todos os traba-
lhadores cobertos pela legislação referente aos acidentes de trabalho.
Cumpre enfatizar, contudo, que – excluídas aqui as ações penais, teori-
camente possíveis, mas praticamente inexistentes nesse setor – essas
formas de resolução de conflitos respondem a duas lógicas de inter-

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venção bem distintas. No primeiro caso (as multas administrativas e,


igualmente, as ordens de suspensão de atividades, os avisos de infra-
ção, os acordos amigáveis e outros, menos importantes), refiro-me ao
campo das violações das normas relativas à prevenção de acidentes de
trabalho, normas de controle administrativo que estão enunciadas numa
legislação particular (a legislação da “saúde e segurança”) fundada em
uma lógica (moderadamente) repressiva. No segundo caso (reparações),
faz-se referência às normas de indenização que são fixadas em outro
tipo de legislação (a dos “acidentes de trabalho”), que se apóia, por sua
vez, em uma lógica atuarial e restitutiva. Sem dúvida, distinções dessa
ordem podem e devem ser feitas em relação a qualquer dos domínios
que figuram no Quadro 1. Considero, no entanto, que elas assumem
aqui uma conotação muito particular em razão do fato de essas duas
lógicas serem postas em operação por uma única instituição, a Commission
de la santé et de la sécurité au travail (CSST) do Quebec.
No que diz respeito às infrações relativas ao primeiro bloco acima (con-
trole dos acidentes de trabalho), convém enfatizar que, tanto no plano
de sua constatação oficial (ou seja, a consignação por um inspetor do
trabalho, num aviso de infração, de uma derrogação às normas aplicá-
veis numa situação concreta) quanto no de sua eventual (para não di-
zer improvável) judiciarização diante de um tribunal competente, tudo
parece indicar que o controle dos atos atentatórios à saúde e à seguran-
ça no trabalho aparenta-se cada vez mais com uma enorme farsa buro-
crática sem nenhuma função verdadeiramente reguladora. Os traba-
lhos de Cyr-Haythornthwaite e Girard,36 assim como certos dados apre-
sentados por Lippel,37 apóiam de maneira inequívoca essa afirmação.
No que se refere às reparações que um trabalhador acidentado – ou,
em caso de falecimento, sua família – pode exigir do Fundo de seguros
de acidentes de trabalho da CSST, é importante esclarecer que, contra-
riamente a uma crença muito difundida, elas não são automaticamente
concedidas depois da primeira constatação (por um médico) da exis-
tência de prejuízos corporais ou de uma doença profissional. Essa
constatação pode, com efeito, ser apenas o começo de uma interminá-
vel batalha no campo médico em que a entrada em cena dos especialis-
tas do lado patronal pode muitas vezes desequilibrar as relações de
força. Segunda ilusão a ser desfeita: a afirmação que sustenta ser esse
fundo de reparação totalmente financiado pelo conjunto dos empre-
gadores, como efetivamente prescreve a lei, não passa na verdade de
uma figura de estilo do gênero que agrada aos especialistas em ciências
contábeis. Em termos econômicos, é mais justo afirmar que o conjunto

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dos consumidores assume uma parte considerável desse financiamento


em razão da transferência (total ou parcial) das despesas de cotização,
pelo empregador, aos custos de produção.

AS DIMENSÕES IDEOLÓGICA , MATERIAL E JURÍDICA DOS


ILEGALISMOS PRIVILEGIADOS

O objetivo desta terceira e última parte do artigo é apresentar, de ma-


neira forçosamente esquemática, algumas dimensões integrantes da-
quilo que se poderia chamar de processo de construção social, política
e jurídica da exclusão, total ou parcial, dos ilegalismos privilegiados da
órbita de controle do sistema penal. Algumas dessas dimensões já fo-
ram objeto de exames muito apurados em pesquisas realizadas nos
últimos anos. Outras apenas afloraram em estudos mais recentes, o
que significa que a compreensão do papel a elas atribuído ainda é, em
alguns casos, muito embrionária. De qualquer forma, parece cada vez
mais evidente que qualquer reflexão que pretenda apreender, em toda
a sua complexidade, a questão da impunidade penal relativa dos
ilegalismos aqui estudados deverá não apenas dedicar-se a examinar o
conjunto dessas dimensões, mas também, e sobretudo, buscar com-
preender a natureza das relações que elas mantêm entre si. Em outras
palavras, essas dimensões são os elementos constitutivos de um objeto
particular de investigação de nossa disciplina que, infelizmente, nem
sempre recebeu a atenção que é exigida, dada a sua importância.
Trata-se das dimensões ideológica, material e jurídica que serão exa-
minadas a seguir.

D IMENSÃO IDEOLÓGICA

Trata-se aqui de um terreno que já foi objeto de um bom número de


pesquisas criminológicas, qual seja o das representações sociais em tor-
no do crime, do criminoso e da repressão penal.38 É permitido, contu-
do, afirmar que as questões aqui examinadas ocupam um lugar relati-
vamente modesto no interior desse esforço de investigação.39 No en-
tanto, é relativamente fácil admitir, ao menos em princípio, que as re-
presentações sociais (veiculadas nos diversos meios de comunicação,
nos contatos da vida quotidiana etc.) desempenham um papel que sem
dúvida está longe de ser negligenciável na gênese do processo de reso-
lução dos conflitos que ocorrem em matéria de ilegalismos privilegia-
dos. Dito de outra forma, as relações que estabelecemos com os even-

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tos relativos aos diferentes domínios que acabamos de examinar ten-


dem, com muita freqüência, a confiná-los numa categoria de represen-
tação da realidade conflituosa que é bem distinta daquela em que se
encontram as chamadas “ocorrências criminais”, e isso apesar do fato
de se tratar de eventos passíveis de adequação típica à luz do direito
penal, ou mesmo de eventos que já se encontram sob exame das insti-
tuições que agem em nome desse direito. Sem querer entrar nas nu-
merosas considerações que essa questão suscita, é possível, contudo,
indicar duas de suas principais vias de abordagem.
A primeira, encontrada em certas pesquisas sobre os ilegalismos do
mundo dos negócios, coloca uma ênfase especial sobre o fato de que é
com pessoas morais e não apenas pessoas físicas que os indivíduos
freqüentemente se confrontam na trama desses eventos. Ora, sendo
dado que a representação clássica (mesmo no sentido teatral do termo)
do ato criminoso opõe, com obstinada tenacidade, dois indivíduos, dois
papéis singulares que não temos como confundir (agressor versus víti-
ma), compreende-se a dificuldade da transposição desse cenário para
um evento que coloca face a face o indivíduo e uma corporação. E
dizer que o indivíduo faz face a uma corporação já é, acrescente-se logo,
fazer um julgamento apressado. Na maior parte do tempo, com efeito,
o simples fato de que um indivíduo se represente em oposição à reali-
dade corporativa já é altamente problemático, tendo em vista o núme-
ro considerável de realidades infinitamente mais simples e imediatas,
da vida quotidiana, que medeiam essa relação. Quando tomamos um
medicamento que se revela mais tarde inapropriado ou nocivo ao nos-
so organismo é o medicamento e seus efeitos que ocupam a totalidade
do campo de nossa experiência, e não a prática médica que autoriza a
prescrição dessa substância e, muito menos, as inumeráveis e nada trans-
parentes etapas de sua concepção, produção, autorização de venda e
efetiva distribuição. Da mesma forma, é o comerciante que o consumi-
dor considera responsável pelo aumento dos preços de um determina-
do produto, e não, se for o caso, as práticas de concorrência desleal das
grandes companhias multinacionais e, ainda menos, porque situadas
em um horizonte bastante remoto, as próprias regras ou condições
relativas à concorrência ou a política monetária estabelecida pelo Estado.
Segunda via de abordagem. A dificuldade de apreensão dos eventos
que envolvem práticas corporativas, a partir de um código apriorístico
de representação das transgressões da lei penal, pode ser igualmente
visualizada no plano da linguagem corrente e, freqüentemente, técni-
ca. Um dos termos sem dúvida mais utilizados para designar os even-

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tos, de conseqüências por vezes extremamente graves, que se destacam


em alguns dos domínios que examinamos é “acidente”. Os acidentes
de trabalho, os derrames acidentais de produtos tóxicos, os acidentes
nucleares, sem esquecer os “acidentes de percurso” que interrompem,
por vezes bruscamente, a ascensão demasiadamente rápida de certos
homens de negócios, constituem exemplos, entre muitos outros, de
uma lista de eventos no mínimo heterogêneos cujo único ponto em
comum é terem ocorrido em razão dos insondáveis meandros do des-
tino. É que, por força de banalizar o significado desse termo, como
fazemos na linguagem quotidiana, e como talvez nos tenham ensinado
a fazer os veículos de informação, acaba-se por esquecer que, ao utilizá-
lo, já estamos de certa forma nos pronunciando sobre o caráter
imprevisível do evento em questão. Na mesma ordem de idéias, e isso
é particularmente visível na imprensa escrita, não se fala quase nunca
de culpa nem de responsabilidades, mas de inabilidade, de erro técni-
co ou de infortúnio. De vez em quando é até possível que se leia que
algum personagem importante cometeu uma “fraude”, o que não é
propriamente uma grande ousadia no plano lingüístico, visto ser co-
mum dizer “fraude escolar”, “fraude eleitoral” etc., enquanto as fór-
mulas “abuso do poder econômico” e “lucros excessivos” parecem go-
zar de maior favor entre os formadores de opinião. E ante a alegação
de que os órgãos de informação devem evitar pronunciar-se sobre a
natureza jurídica dos eventos que relatam, basta lembrar que é muito
raro que o façam, por exemplo, quando se trata dos atos atentatórios à
vida cujas formas já estão cristalizadas nas representações coletivas. A
prática dos jornais cotidianos (freqüente na América do Norte) de man-
ter uma contabilidade dos homicídios qualificados do ano, enquanto o
eventual homicida, na pior das hipóteses, não foi nem mesmo identifi-
cado, ou, na melhor delas, está comparecendo pela primeira vez diante
de um juiz no momento em que o jornal está circulando, ilustra bem o
pouco fundamento de tal alegação.

D IMENSÃO MATERIAL

Os obstáculos à tipificação penal dos ilegalismos privilegiados devem


ser igualmente examinados sob o ângulo de algumas de suas caracte-
rísticas materiais. Em outras palavras, o fato de se mostrarem refratários
à adequação típica necessária à ação penal deve-se, em parte, às carac-
terísticas ou condições dos contextos em que eles se produzem. Isso
pode ser constatado em pelo menos três níveis.

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a) Ocultação material – A complexidade técnica das operações em curso


nos diferentes domínios aqui examinados, e as redes de cumplici-
dade em que inumeráveis intervenientes se enredam uns após os
outros constituem provavelmente os fatores mais freqüentemente
invocados para dar conta das dificuldades de criminalização dos
ilegalismos privilegiados. Mas se há um fator que assegura, indepen-
dentemente de qualquer outro, a precária visibilidade de que go-
zam esses ilegalismos, trata-se do fato de que os eventos de que eles
resultam se constituem, invariavelmente, em espaços sociais relati-
vamente bem protegidos, ou totalmente subtraídos, dos olhares in-
discretos. Os escritórios (das empresas ou agências governamentais),
as instalações das usinas, os laboratórios, os grandes canteiros de
obras constituem alguns exemplos de espaços da vida social cuja ocu-
pação e uso estão submetidos a regras bem estabelecidas, por sinal
reconhecidas, seja pelo silêncio, seja pela letra das leis. Diga-se de
passagem que a referência ao grau de proteção do espaço social nos
parece mais apropriada que o recurso à distinção, cada vez menos
sustentável, entre espaço público (campo dos ilegalismos populares)
e espaço privado (campo dos ilegalismos burgueses) de que se ser-
vem certos autores 40 para explicar a difícil visibilidade desses
ilegalismos.
b) Nexo de causalidade – A dificuldade ou impossibilidade total de esta-
belecer, em termos científicos, um nexo de causa e efeito entre um
prejuízo constatado e um número significativo de práticas caracte-
rísticas dos domínios que consideramos é ao mesmo tempo um as-
pecto particular da questão acima enfatizada e um fator em si de
exclusão dessas práticas do campo da responsabilidade penal e até
civil. Certos trabalhos recentes da Comissão de Reforma do Direito
do Canadá não apenas ilustram bem a importância dessa questão
como propõem excelentes elementos de reflexão sobre a natureza
das relações que alguns setores do mundo científico mantêm com as
grandes corporações.41
c) Rede de controle – O fato de os ilegalismos privilegiados disporem
permanentemente de uma rede de controle constituída de múlti-
plas modalidades de intervenção é – bem entendido – um fator que
assegura a reprodução constante das condições de possibilidade de sua
exclusão do campo penal. A questão de saber se a exclusão que se
constata pode ser explicada, em parte, pela existência de tal rede
ou se o que se verifica é antes o inverso ainda está longe de poder
ser convenientemente esclarecida. O pouco que se sabe milita em

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favor da primeira hipótese, ou seja, que a disponibilidade perma-


nente de formas alternativas e concorrentes de apreensão desses
ilegalismos engendra o que eu chamaria, de maneira aproximativa,
de “automatismos” no plano de seu controle efetivo. A queda mor-
tal de um operário, num canteiro de obras, não acionará, salvo em
casos excepcionalíssimos, a abertura de um inquérito policial, mas,
com toda certeza, um processo institucional que poderá (se os crité-
rios relativos à definição de um acidente de trabalho forem aplicáveis
nas circunstâncias) resultar em concessão de uma indenização à sua
família e, eventualmente, em inquérito administrativo a cargo dos
inspetores responsáveis pela aplicação das leis e regulamentos em
matéria de saúde e segurança dos trabalhadores. O “automatismo”
a que me refiro consiste, nesse exemplo banal, no fato de que a
prática institucionalmente redundante de definir e tratar tais even-
tos da maneira descrita, por um lado, cristaliza a representação de
que essa é a única maneira de defini-los e tratá-los, por outro, e por
conseqüência, inviabiliza ou torna pouco provável qualquer outra
forma possível de definição e tratamento.42

D IMENSÃO JURÍDICA

Criar leis é criar, ao mesmo tempo, a possibilidade de desobedecê-las,


dizia Sartre em Saint Genet, comédien et martyre..., e de escapar a elas,
poderíamos sem dúvida acrescentar. O que equivale a dizer que as con-
dições de possibilidade da impunidade penal estão dadas, antes de mais
nada, na própria lei penal, e não em fatores que lhe sejam exteriores.
Constatação banal, com certeza, sob a condição de que se abstenha de
relembrar, por tal proposição, que a lei penal apresenta importantes
“lacunas” no plano substantivo. Ora, essa concepção da impunidade
penal, em termos de pura negatividade, concepção por sinal corrente,
talvez nos impeça de ver que não é no que ela silencia, porém mais no que ela
enuncia, que a lei penal restringe verdadeiramente seu campo efetivo de interven-
ção. Com efeito, se aceitarmos que, na sua expressão mais simples, esse
termo (lei penal) designa um conjunto de prescrições relativas a algu-
mas condutas e um conjunto de regras referentes à operação dessas
prescrições, poderemos identificar os fatores que inibem a intervenção
penal não somente no plano substantivo da lei (suas lacunas, seus silên-
cios, suas omissões), mas igualmente, e de maneira positiva: a) no pla-
no das regras de procedimento (as possibilidades, tão mais freqüentes
quanto pouco típicos forem os comportamentos submetidos ao escrutí-
nio penal, de se obter sucessivos adiamentos de audiências, impugnações

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de denúncias, interrupções de procedimentos, decisões interlocutórias,


trancamento de processos etc.); b) no plano das regras relativas ao es-
tabelecimento das provas (os incontáveis obstáculos à admissibilidade
das provas relativas aos atos ditos astuciosos ou com alto grau de com-
plexidade técnica); e c) no nível dos princípios que orientam a confor-
mação das infrações criminais (mise en forme pénale) pelos diversos ope-
radores situados em diferentes etapas do processo judicial (ou seja, os
princípios que orientam, em cada etapa do procedimento penal, a par-
tir do inquérito policial, as escolhas que se mostrarão decisivas para a
continuidade do processo) – por meio dessas escolhas, os operadores
podem dar diferentes configurações a um mesmo evento à luz da lei
penal, incluindo, é claro, aquelas que excluem toda possibilidade de
alegação de adequação típica.43

C ONCLUSÃO
Se há uma finalidade que, mais que qualquer outra, orientou meus
propósitos neste artigo foi a de provar a importância e a necessidade,
para as ciências sociais, de investir (ou reinvestir, conforme o caso) nos
domínios que resumidamente aponto. E sugiro que a relativa urgência
de fazê-lo se justifica, entre outros, pelo fato de que a chama que ani-
mou as tentativas inovadoras de investigação nessa matéria, desde o
fim dos anos 70, parece ter se apagado ao longo dos últimos anos. Por
outro lado, também me empenhei em demonstrar que as questões aqui
apreciadas se mostram suficientemente importantes, no plano teórico,
para justificar que se reflita sobre elas com uma finalidade totalmente
diferente daquela de simplesmente denunciar a realidade que elas cir-
cunscrevem. Com efeito, o tom moralizante de denúncia que marcou,
e continua marcando, alguns trabalhos engajados nessa vertente con-
tribuiu para escamotear o fato de que por trás da realidade de exclusão
de um conflito do campo da intervenção penal se tece uma trama com-
plexa de relações (de colaboração, de confronto) entre diferentes siste-
mas normativos. Ou, em outras palavras, que esse objeto realmente
não levanta importantes questões teóricas senão na medida em que é
construído e problematizado tendo em conta a sua positividade. Talvez
nos contentemos com demasiada freqüência em conceber o penal, seu
discurso e as práticas institucionais que ele constitui como um objeto
estanque. Sem que seja necessário, ao contrário, colocar em questão
sua especificidade, parece cada vez mais evidente que se ganha ao ins-
crever esse objeto particular dentro de uma problemática mais ampla

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que leva em conta a multiplicidade das formas de resolução de confli-


tos e, sobretudo, as relações complexas que se estabelecem entre elas.
Não obstante, sou forçado a admitir que não é armado de boas inten-
ções teóricas que se chega a aceitar a idéia de que é perfeitamente pos-
sível debruçar-se sobre essas questões sem, contudo, fazer-se advogado
de um programa de intensificação e ampliação da repressão penal. E
ainda mais quando se leva em consideração que o fantasma da
criminalização assombra certas práticas relativas aos domínios aqui
examinados. E por criminalização, nesse contexto preciso, deve-se en-
tender, isolada ou simultaneamente, as quatro operações seguintes: a)
a clarificação das normas penais já existentes que podem ser aplicadas
aos ilegalismos privilegiados; b) a criação de novas normas penais; c) o
aumento da severidade das penas já previstas; d) a aplicação efetiva,
em eventos concretos, dessas normas. A proposição da Comissão de
Reforma do Direito do Canadá de incluir no Código Penal uma nova
infração chamada de “crime contra o meio ambiente” ilustra bem tanto
as dificuldades quanto as possibilidades reais de empreender algumas
dessas operações.44 Proposições semelhantes, que não se beneficiam
certamente da mesma autoridade daquelas apresentadas pela Comis-
são canadense, são aliás cada vez mais freqüentes no campo dos
ilegalismos aqui estudados. Tudo parece portanto indicar que estamos
diante de uma conjuntura que impõe a todos os que se interessam nas
questões aqui discutidas uma tomada de posição inequívoca. Com a fi-
nalidade de contribuir para um debate de cuja necessidade não tenho a
menor dúvida, enumero aqui quatro argumentos que me parecem de-
monstrar o caráter profundamente ilusório de qualquer esforço de
criminalização – tal como está aqui entendida – nessa área.
a) O penal como reserva de poder – Seria necessária alguma ingenuidade
para pensar que o fato de criminalizar, no plano formal, uma ou
várias condutas que se destacam nos domínios aqui examinados possa
eliminar o recurso a outras formas de resolução de conflitos. Pelo
contrário, não é irrazoável acreditar que, em certos casos específi-
cos, o espectro da sanção penal possa ser utilizado como forma de
impor e, por conseguinte, consolidar nos usos uma outra vertente
de resolução. Manifestações dessa tendência já puderam ser obser-
vadas no domínio daquilo que os meios policiais chamam de “con-
trole da criminalidade econômica”.45
b) Os focos de resistência – Em certos setores específicos (como, por exem-
plo, os da saúde pública, meio ambiente e saúde e segurança no
trabalho), uma política de criminalização arrisca-se principalmente

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a enfrentar a feroz resistência dos operadores das agências “preferen-


ciais” de controle (ou seja, aquelas que são consideradas como as
mais adequadas para controlar esses setores) e produzir, assim, um
efeito de certa forma contrário ao que acabamos de descrever.
Com efeito, certas pesquisas já demonstraram amplamente que um
bom número desses operadores mantém relações de colaboração
com os setores que eles próprios devem controlar; bem mais do que
isso, é possível afirmar que, em certos casos, o desempenho efetivo
da função de controle não é possível sem a colaboração explícita
dos setores sob controle.46 Tal situação se explica, como é evidente,
pela força (política e/ou econômica) extraordinária da posição em
que se encontram as corporações que operam nos setores que de-
vem ser controlados por esses operadores. Nesse contexto, é pos-
sível admitir que a entrada em cena da lei penal possa ser recebida
como um obstáculo suficientemente forte à atividade de controle
para poder, em certos casos, dar lugar a medidas visando reduzir
consideravelmente ou mesmo paralisar essas atividades, em outros,
confirmar os bons fundamentos das práticas gestionárias dos
ilegalismos47 que eles já controlam e assim justificar o fato de não se
referirem à justiça penal senão a um número restrito de casos atípicos
e bem selecionados (em outras palavras, os mais simples).
c) As transferências difíceis – A segunda hipótese acima exige uma expli-
cação importante. Com efeito, é pelo menos duvidosa a possibilida-
de de que uma eventual política de criminalização em matéria de
ilegalismos privilegiados se faça acompanhar de medidas efetivas,
particularmente materiais, que assegurem sua implementação. Não
se transforma, do dia para a noite, um policial em expert financeiro
nem um membro do Ministério Público em especialista em
ecossistema, o que explica, pelo menos em parte, o mal-estar fla-
grante que se constata entre os operadores do sistema penal cada
vez que entram em terreno desconhecido e são obrigados a lidar
com pessoas que não fazem parte de sua clientela habitual. O que
vale dizer que o aparelho administrativo que hoje em dia assume as
tarefas de constatação, registro e conformação desses ilegalismos
deverá claramente manter seu lugar. Uma situação semelhante de
dependência do aparelho penal diante de sua contrapartida admi-
nistrativa poderá traduzir-se na prática pela seguinte situação: as
instâncias judiciais penais não serão chamadas a julgar senão os as-
suntos ocasionalmente encaminhados pelas agências administrati-
vas de controle. Ora, nada nos assegura, como Lascoumes48 obser-

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vou muito bem, que um evento (re)construído segundo os


parâmetros de uma lógica administrativa de intervenção responda
necessariamente aos critérios de aceitabilidade jurídica que orien-
tam a abertura de uma ação penal. E com mais forte razão, quando
o evento em questão possui dimensões técnicas relativamente im-
portantes, como é a regra nos ilegalismos que aqui tratamos.
d) A eqüidade perversa – A última razão, mas não a menor, muito pelo
contrário, é que seria certamente pouco recomendável enxergar
nessas tentativas de alargamento da rede de repressão penal um
meio de atingir um “certo equilíbrio punitivo” – ou seja, o suposto
equilíbrio que resultaria de uma política simétrica de punição de
pobres e ricos – e me parece completamente inútil dedicar-me aqui
a uma longa demonstração do caráter irremediavelmente perverso
dessa concepção de eqüidade. Em função disso, vou contentar-me
apenas em afirmar que, até prova em contrário, vejo somente
dois efeitos a esperar de toda iniciativa de criminalização nessa área:
o efeito de legitimação das práticas repressivas atualmente em vigor
no campo dos ilegalismos populares, de um lado, e o efeito de am-
pliação do campo já ocupado por essas práticas, de outro.
No que se refere ao segundo efeito, devo sublinhar que, apesar de
todos os obstáculos que, de bom grado, constato à implementação
de uma política de criminalização dos ilegalismos privilegiados, exis-
tem possíveis exceções a esse cenário. E é provavelmente lá que se de-
senvolve o que de fato está em jogo nessa perigosa aposta de política
criminal. Pois me parece haver grandes riscos em esquecer que o mun-
do dos negócios é também o das pequenas empresas familiares,
freqüentemente ameaçadas pelo risco de insolvência, se não pela ten-
tação da falência, em razão das práticas ilegais dos gigantes corporativos.
Que a administração pública é também, e acima de tudo, o mundo de
milhares de modestos funcionários. E também que a saúde pública é
igualmente uma área de profissionais de baixo escalão; o meio ambien-
te, o ganha-pão de caminhoneiros mais ou menos conscientes da
toxicidade dos produtos que transportam; os canteiros de obras, um
terreno ocupado por grande número de pequenos empresários da cons-
trução. Ou dito em outros termos, os alvos historicamente designados
de um vasto programa de controle de condutas, como é o caso do siste-
ma penal, que, certamente mais por definição do que por
“desnaturamento”, é totalmente avesso a tudo o que é complexo.

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ABSTRACT
The resolution of conflicts in modern societies can be seen as a complex
network of interactions between various relatively autonomous official con-
trol systems. The place occupied by the criminal law as well as its role within
this network are largely determined by the nature of its relations with the
other control systems. Based on these theoretical premises, this article pro-
poses a discussion on “privileged illegalities”, concept which is used to ex-
plain how similar empirical facts are differently classified by the legal do-
main, according to the contexts they are related. The principal characteris-
tic of these illegalities lies in the fact that they have a broad range of forms
of control (civil, administrative proceedings and, above all, amicable ar-
rangements). Consequences are specially relevant when some of these facts
are criminalized, and others are not.
Keywords: “privileged illegalities”; societal reaction theory; critical theory;
sociology of (penal) law; criminology.

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N OTA S
1
Devemos a Michel Foucault (FOUCAULT, 1975) a introdução do termo illégalisme, nos textos criminológicos
e da sociologia jurídica. Contrariamente a uma crença bem difundida, não se trata de um neologismo de
autoria do filósofo francês, mas de um termo que caiu em desuso após ter sido utilizado com uma certa
freqüência em textos anarquistas (da vertente individualista, particularmente), do início do século, na Fran-
ça, para designar diferentes formas de violação da lei, sobretudo penal, com o objetivo expresso de contestar
a ordem imposta pelo Estado. É num sentido que não coincide exatamente com esse, mas que lhe é próximo,
que Foucault utilizará – tudo indica – pela primeira vez esse termo em seu curso do Collège de France, do ano
1972-1973, sobre a sociedade punitiva (FOUCAULT, 1989). Já em Surveiller et punir as coisas são bem menos
claras. Tem-se ali a impressão – sobretudo quando se pensa na famosa distinção entre illégalismes de biens e
illégalismes des droits – que o termo designa diferentes formas de transgressões, sem nomes próprios, que concor-
rem todas a um estado permanente de desobediência generalizada. Em outras palavras, illégalisme (que Foucault
separa claramente do crime) é a ilegalidade sem nome, que não tem um só e único nome pelo simples fato de
que pode ter vários, tantas são as ordens normativas que ela pode transgredir. Se essa interpretação, da qual
sou o único responsável, está correta, é relativamente fácil concluir que a utilidade do emprego desse termo
se justificaria não pelo sentido que ele propõe (que não é nada transparente), mas, justamente, pela
multiplicidade de sentidos que ele possibilita. É para este uso que emprego aqui esse termo. O que explica, ao
mesmo tempo, por que não tenho outra escolha do que a de traduzi-lo por “ilegalismo”, em vez de “ilegali-
dade”, como consta na tradução brasileira de Surveiller et punir (FOUCAULT, 1977). E aos puristas que
eventualmente objetassem o emprego de uma palavra não acolhida pelos dicionários da língua portuguesa
(que, aliás, na sua forma original tampouco foi aceita pelos dicionários franceses) eu lembraria apenas que
pelo menos duas outras línguas neolatinas já adotaram o termo: o espanhol (ilegalismo) e o italiano (illegalismo).
2
Na literatura de expressão francesa, o termo “sistema penal” é empregado em dois sentidos: um estrito,
outro amplo. No primeiro, ele designa a soma (mais do que o conjunto) das instituições que têm por missão
o que se convencionou chamar de “aplicação da lei penal” (essencialmente, a polícia, o poder judiciário e as
instituições carcerárias). No sentido amplo – que é o que adoto neste artigo –, ele inclui, além dessa aparelha-
gem, o processo jurídico-político de produção da lei penal.
3
Ver, em particular, Lascoumes (1983, 1984, 1986).
4
Ver Lascoumes (1984, p. 233-238). Note-se, porém, que emprego esse termo num sentido que não coincide
exatamente com aquele que lhe atribui Lascoumes.
5
Não me parece de todo necessário que se discuta aqui o fato óbvio de que um número inimaginável de
conflitos que se produzem freqüentemente na esfera pública – e para os quais reservamos, tanto na lingua-
gem popular, quanto jurídica e mesmo sociológica, o epíteto de “crime” – escapam ao controle penal, por
razões aliás muito diversas: os “culpados” não puderam ser identificados, as agências de controle ignoraram
o fato, os atores da situação de conflito chegaram a um acordo entre eles etc. Refiro-me aqui, é claro, a esse
universo mágico, ou no mínimo virtual, que os pioneiros da criminologia, na segunda metade do século XIX,

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identificaram como estando localizado na diferença entre a “criminalidade real” e a “criminalidade registra-
da” e a que mais tarde se deu o nome de “cifra negra” ou “cifra oculta” (dark number). Como o leitor já pôde
certamente constatar, não é desse tipo de conflito que eu trato no presente artigo.
6
Sigo aqui o uso que tem sido feito desse termo nos trabalhos sociojurídicos de expressão francesa que distin-
guem dois níveis de criminalização: a primária, que diz respeito à atividade de produção da lei penal, e a
secundária, que designa as práticas das instituições encarregadas de aplicar os preceitos dessa lei.
7
O leitor encontrará diversos exemplos dessa tendência nos textos publicados, particularmente nos anos 70,
na revista Crime and Social Justice, porta-voz do grupo de criminólogos radicais de Berkeley.
8
Penso aqui nos trabalhos pioneiros de Sutherland e não necessariamente de seus discípulos, freqüentemente
orientados na linha do que chamam de “criminalidade ocupacional”. Ver, entre outros, Sutherland (1949).
9
A referência, nesse continuum, à “pena de reclusão” é puramente teórica. Na prática, o máximo que se conse-
gue efetivamente observar são condenações (raras) a penas simbólicas de privação de liberdade, ou seja,
penas de curtíssima duração (alguns dias ou semanas) ou, como se passa por exemplo no Canadá, a penas
que devem ser cumpridas em fins de semana, durante um período determinado pelo juiz. É, entretanto,
importante lembrar que essas penas simbólicas não constituem, de modo algum, um modo privilegiado de
sanção penal aplicável apenas aos infratores de que tratamos neste artigo. No Canadá, elas são regularmente
utilizadas para sancionar as condutas de acusados primários em ações penais envolvendo crimes de pouca
gravidade.
10
A melhor versão desse modelo provavelmente se encontra em Lascoumes e Weinberger (1978, p. 63-97).
11
Sobre o lugar, cada vez mais importante, ocupado pelo direito administrativo na resolução dos conflitos, ver
Lascoumes (1984).
12
De forma alguma pretendo, com essa afirmação, que a compreensão da organização e funcionamento da
repressão penal constitua uma tarefa banal, o que de resto seria uma formidável heresia. Afirmo apenas que
os mecanismos de resolução de conflitos impostos pela lei penal sofrem, quando comparados àqueles de
que dispõem outras formas de conflito, de uma falta de imaginação por vezes espantosa.
13
Há pelo menos um outro domínio, o da manutenção da ordem, que pode ser incluído no contexto dessas
considerações. Algumas de suas particularidades, cujo exame ultrapassa em muito o propósito deste artigo,
me impedem, contudo, de fazê-lo neste momento. Os ilegalismos a serem considerados aqui são, natural-
mente, as transgressões de conduta dos policiais e, particularmente, aquelas que dizem respeito aos atos de
violência praticados pelos representantes da ordem. Algumas pesquisas empíricas, feitas ou atualmente em
andamento na Universidade de Ottawa, demonstraram a adequação do modelo aqui tratado para o estudo
desses ilegalismos. Ver Sauvageau (1992) e Dumont (2001).
14
Para uma excelente avaliação dos estudos empreendidos nesse campo, ver Lascoumes (1986).
15
Ver Acosta (1985, p. 333-354).
16
No Canadá, o inquérito público (enquête publique ou public inquiry) é um procedimento administrativo de
investigação instituído pelo poder executivo (federal ou provincial) nos casos em que ele julga que um evento
ou uma situação, aparentemente ilegal, exige esclarecimentos públicos que um inquérito policial não estaria,
por diferentes razões, em condições de produzir. As denúncias de corrupção política ou administrativa cons-
tituem um terreno fértil para esse tipo de inquérito. Deve-se entretanto notar que nada – nenhuma regra de
direito, nenhum princípio jurídico, nem mesmo um precedente – obriga os detentores do poder executivo a
instituir esse procedimento. A racionalidade que comanda a decisão de criar uma comissão (tradicionalmente
presidida por um juiz de direito) encarregada de um inquérito público é essencialmente política. E, justamen-
te, por ser uma criatura política, nada obriga tampouco aqueles que a criam a agir em função dos resultados
que ela eventualmente produz (sob a forma de recomendações do presidente da comissão consignadas em
um relatório público). Não obstante esse traço marcante de sua natureza, o inquérito público aplica, durante
o período de existência que lhe foi fixado no momento de sua criação, muitas das regras jurídicas a que estão
submetidas as cortes de direito (em matéria de convocação de testemunhas, de interrogatórios, de produção
de provas, de outorga de imunidades e, até mesmo, aquelas que autorizam qualquer juiz a sancionar com
pena de prisão uma testemunha recalcitrante).
17
Ver, entre outros, Sutherland (1949).
18
Ver Rico et al. (1981), Parent (1982), Lascoumes e Moreau-Capdeville (1983), Acosta (1987), Cyr-
Haythornthwaite (1989), Vachon (1995) e Dumont (2001).

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97
19
Uma instância “retira-se” de diferentes maneiras da rede de controle que se forma em uma situação dada.
Dois exemplos clássicos: um acordo extrajudiciário (sempre secreto), entre as partes, que põe automatica-
mente fim a uma ação cível (é dessa maneira, aliás, que se termina a maior parte das ações cíveis contra
médicos, no Quebec, por erros profissionais); a decisão do Ministério Público de não dar continuidade ao
processo de apresentação das provas contra o acusado, situação que obriga o juiz a decretar o trancamento
imediato da ação penal.
20
Ver Lascoumes e Moreau-Capdeville (1983).
21
Alguns dos processos criminais abertos contra administradores e homens de negócios, implicados em um
escândalo de corrupção política em Ville d’Anjou, no Quebec, constituem exemplos perfeitos daquilo que
entendo por “lenitivos penais”. Um desses administradores – para dar um exemplo –, que foi condenado a
18 meses de prisão, não cumpriu mais do que alguns meses da pena. Libertado por motivos de saúde,
aguardou por alguns meses sua libertação condicional definitiva numa casa de convalescença dirigida por sua
esposa. Ver Acosta (1987).
22
Ver Landrevile, Acosta, Blankevoort (1982) e Pires (1983).
23
Ver, entre outros, Brodeur (1984) e Acosta (1987).
24
No Canadá, as ações penais são iniciadas pelo procurador-geral da Coroa (federal ou provincial) que é, ao
mesmo tempo, ministro da Justiça (e, portanto, membro do “gabinete ministerial”, a mais alta instância do
poder executivo) e membro do poder legislativo (condição sem a qual não poderia exercer nenhuma das
funções anteriores). Como se trata de um privilégio da Coroa, o poder de instaurar uma ação penal não se
acha submetido a nenhum imperativo legal. O único princípio que se aplica nessa matéria é o da oportunida-
de da ação à luz do que o procurador-geral entenda ser necessário à salvaguarda do interesse público.
25
Ver Braithwaite (1984).
26
Ver Acosta (1988). Ver, igualmente, Guindon (1997).
27
Ver Grandbois (1988) e Lippel (1988).
28
Sobre esse tema, ver o excelente trabalho de Schrecker (1984).
29
Schrecker (1984).
30
Os regulamentos administrativos (oriundos de leis provinciais ou federais) constituem o instrumento normativo
por excelência no processo de controle dos ilegalismos próprios aos três campos de conflitos atentatórios à
vida humana que figuram no Quadro 1.
31
Schrecker (1984, p. 9).
32
Grandbois (1988).
33
Ver Commission de réforme du droit du Canada (1985).
34
Lippel (1988).
35
Trata-se da Loi concernant les responsabilités des accidents dont les travailleurs sont victimes dans leur travail et la
réparation des dommages qui en résultent, S.Q., 1909, c. 66. No que concerne à teoria do risco profissional, ver
MATTEI ano apud LIPPEL, 1988, p.
36
Ver Cyr-Haythornthwaite (1989) e Girard (1996). Ver nota 48.
37
Lippel (1988).
38
Ver, entre outros, Faugeron e outros (1975), Faugeron (1978) e Robert e Faugeron (1978).
39
Sobre as representações da delinqüência nos negócios na imprensa escrita, ver, por exemplo, Armand e
Lascoumes (1977).
40
Ver, por exemplo, Robert (1985).
41
Trata-se aqui do papel da ciência na fixação de normas técnicas de conformidade aplicáveis tanto aos produ-
tos industrializados (ex.: normas em matéria de segurança de veículos) quanto à própria atividade de produ-
ção (ex.: normas relativas aos níveis aceitáveis de ruído no interior de uma usina). Vários trabalhos mostram,
com efeito, que essas normas subestimam de maneira tendenciosa os danos que, por definição, elas deveriam
limitar ao extremo e, idealmente, eliminar. Em outros termos, o que essas normas exprimem não é de forma
alguma o critério que, se não respeitado, criaria uma situação de perigo real (e, portanto, de dano provável),
porém, bem mais, um compromisso entre esse perigo real (que é tecnicamente possível de ser avaliado) e o

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custo financeiro que representaria para a atividade industrial erradicá-lo completamente. Ver Scherecker
(1984), Commission De Réforme Du Droit Du Canada (1987a), Commission de Réforme du Droit du Canada
(1987b) e Braithwaite (1984).
42
Enquanto as mortes no trabalho seguem o traçado da curva normal e os eventos específicos correspondem,
em suas configurações, ao que já se acha tipificado como “acidente mortal” pelas instituições de proteção da
saúde e da segurança dos trabalhadores, os “automatismos” de controle se instalam e asseguram a gestão
cotidiana dos incidentes que alteram a rotina dos locais de trabalho. Se os indicadores estatísticos dessas
mortes aumentam bruscamente ou, sobretudo, se as configurações típicas dos eventos (ou mesmo de um só
evento, mas de proporções trágicas) fugirem à regra, é possível que o sistema penal seja acionado. Foi o que
aconteceu quando oito operários morreram soterrados no fundo de uma mina, em maio de 1980, no Quebec.
Segundo a comissão de inquérito público que investigou a “tragédia da mina Belmoral”, como ficou conhe-
cida nos anais da província, o desmoronamento da mina deveu-se a atos flagrantes de negligência por parte
de seus proprietários. A companhia – e não seus dirigentes – foi processada... e absolvida. Ver Cyr-
Haythornthwaite (1989) e Commission D’enquête Sur La Tragédie De La Mine Belmoral Et Les Conditions
De Sécurité Dans Les Mines Souterraines (1981).
43
A esse respeito, ver Acosta (1987).
44
Ver Commission De Réforme Du Droit Du Canada (1985).
45
Certos dossiês da divisão de crimes econômicos da Sûreté du Québec (polícia provincial), examinados duran-
te uma pesquisa sobre o controle da criminalidade nos negócios no Quebec (RICO et al., 1981), mostram
traços evidentes dessa prática. Os dossiês em questão foram o resultado de inquéritos a respeito das alegações
de atos de corrupção por funcionários de organismos governamentais aos quais os superiores hierárquicos
haviam oferecido garantias de impunidade em troca, seja de suas demissões, seja do reembolso das somas
indevidamente recebidas, seja de ambos. É evidente, justamente porque os fatos alegados acabaram entre as
mãos da polícia, que os acordos propostos não se concretizaram, por motivos que os dossiês em questão não
deixaram entrever claramente.
46
É o que demonstram, entre outros, Schrecker (1984) e Braithwaite (1984).
47
Uma bela ilustração do que entendo por “práticas gestionárias dos ilegalismos” é o que se passa no Quebec
em matéria de controle dos “acidentes de trabalho”. Vários inspetores entrevistados por Girard (1996) afir-
maram, sem o menor constrangimento, que a última coisa que lhe passaria pela cabeça seria aplicar a lei, nos
termos em que ela está enunciada, cada vez que constatam infrações em suas rondas de inspeção. A missão
que lhes foi confiada, tal como eles a interpretam, é essencialmente preventiva e de modo algum repressiva.
O que significa, em termos práticos, que cada infração constatada não é mais do que o ponto de partida de
intermináveis negociações com os representantes patronais e sindicais, que visam corrigir a situação ilegal. A
aplicação estrita da lei fica assim reservada – e ainda aqui, como último recurso – aos infratores de comprova-
da má-fé, claramente recalcitrantes. O não-respeito dessa condição pode ser interpretado como resultado da
incapacidade do inspetor de conduzir a bom termo um processo de negociação.
48
Ver Lascoumes (1983) e Lascoumes e Verneuil (1981).

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ARTIGOS
Á L V A R O B I A N C H I *

E STADO E EMPRESÁRIOS NA AMÉRICA LATINA


(1980-2000)

Este trabalho pretende discutir o impulso associativo


vivenciado pelo empresariado latino-americano nas
décadas de 1980 a 1990 e suas complexas relações
com a ação estatal. Apoiando-se em um enfoque
relacional do associativismo empresarial que se contra-
põe às teorias que remetem a pressupostos essencialistas,
serão destacadas as relações de forças existentes entre
as diferentes frações do empresariado, a ação das clas-
ses subalternas e as formas estatais destas. O as-
sociativismo empresarial surge, assim, como uma das
respostas capitalistas possíveis à crise do capitalismo
latino-americano, forma institucional de projetos em-
presariais que se desenham no contexto da crise econô-
mica e política do continente. É nesse contexto que a
alternativa neoliberal ganhará corpo no empresariado
latino-americano. Este desempenhou um papel decisi-
vo para a transformação do ambiente ideológico e
a difusão de uma concepção de mundo liberal e para a
mudança da agenda política e econômica, colocando
no seu centro o recuo do Estado das posições por ele
ocupadas até então, ao mesmo tempo em que procura-
va ajustar ritmos e diminuir as possíveis perdas decor-
rentes dessa alternativa.
Palavras-chave: empresários; ação coletiva; neoli-
beralismo; América Latina.

*
Doutor em Ciências Sociais
pela Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp) e
professor doutor do Depar-
tamento de Ciência Políti-
ca do Instituto de Filosofia
e Ciências Humanas da
Universidade Estadual de
Campinas (IFCH/Unicamp).
102

Quando Jorge Schvarzer planejou realizar seu estudo sobre a Unión


Industrial Argentina (UIA), não esperava encontrar tanta dificuldade
para acessar as fontes documentais da entidade. Encontrou. Em 1981,
a UIA havia suprimido sua biblioteca, transferindo-a para um órgão
estatal, o Instituto Nacional de Tecnologia Industrial, que evidente-
mente não teve condições de organizá-la e mantê-la aberta ao público.
Schvarzer protestou, na ocasião da transferência, apontando a incon-
gruência existente entre a defesa do livre mercado feita pela entidade
empresarial e o repasse de parte de suas atividades para um órgão
estatal.1
Impossível deixar de comparar o destino da biblioteca da UIA com
aquele similar da Biblioteca Roberto Simonsen, da Federação das In-
dústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). Em meio a um “ajuste estru-
tural” da entidade, que resultou em profundos cortes orçamentários,
a biblioteca foi transferida, no final dos anos 90, para a Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp). O mesmo destino: encaixotada, à
espera de recursos que permitam sua classificação, organização e
disponibilização ao público. A mesma incongruência, apimentada por
uma dessas ironias históricas próprias dos trópicos: a Biblioteca Roberto
Simonsen localiza-se ao lado do Arquivo Edgard Leuenroth. Os espó-
lios do industrial e do anarquista reconciliados sob os auspícios do
Estado.
Para vários pesquisadores, a trajetória dessas bibliotecas não deixará
de ser emblemática do associativismo empresarial em nosso continen-
te. Um empresariado economicamente frágil, dependente dos favores
estatais, incapaz de constituir-se como direção política e intelectual da
sociedade, reduzido a uma subalternidade passiva intransponível. Den-
tre as razões dessa subalternidade encontrar-se-ia sua debilidade econô-
mica. Imerso em sociedades nas quais ainda predominavam interesses
agroexportadores ou transnacionais, o empresariado latino-america-
no não teria condições de impor sua vontade a quem quer que fosse.
Restariam, assim, aos homens de negócios de nosso continente, estra-
tégias meramente adaptativas: adaptar-se ao poder das oligarquias
fundiárias; adaptar-se à força econômica das multinacionais; adaptar-
se ao Estado... e remeter-lhe as bibliotecas.2
Tais apreciações não foram desprovidas de méritos. Dentre seus maio-
res, está o fato de terem jogado por terra uma visão, alimentada por
intelectuais vinculados aos partidos comunistas e nacionalistas, que
apostava na atividade hegemônica do empresariado, antagônica aos inte-
resses oligárquicos e multinacionais, em suma, o motor do desenvolvi-
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103

mento econômico e político autônomo na América Latina, ou pelo me-


nos naqueles países com um grau maior de desenvolvimento industrial,
entre os quais o Brasil certamente estava incluído.3
Como já foi salientado por vários autores, tanto aqueles que apostavam
na capacidade hegemônica do empresariado como os que ressaltavam
sua passividade partilhavam os mesmos pressupostos. Inspirados em
um burguês típico-ideal, que teria sua certidão de nascimento na Euro-
pa do século XIX, apresentavam o empresariado latino-americano não
como aquilo que ele era, e sim como o que deveria ser. Oscilando entre o
lamento e a esperança, as análises inspiradas por tais visões deixavam
escapar a particularidade do desenvolvimento capitalista latino-ameri-
cano e de seus atores sociais.
Para a perspectiva que norteia o presente trabalho é importante acres-
centar que essas visões são fortemente essencialistas. Elas remetem a
atributos inatos, específicos dos próprios sujeitos, tal qual uma teoria
da predestinação que indicaria os indivíduos fadados a queimar no
inferno do subdesenvolvimento ou usufruir o paraíso do progresso
econômico e político. O resultado do acontecer histórico é, dessa ma-
neira, logicamente deduzido a partir desses pressupostos essencialistas.
As determinações estruturais cedem lugar a determinismos de vários
tipos – econômicos, culturais, psicológicos etc. – que não fazem senão
ocultar o próprio fazer-se das classes sociais.
As pesquisas levadas a cabo no continente latino-americano nas últimas
décadas colocaram em xeque essas apreciações.4 Elas revelam que um
novo ativismo político teria sido protagonizado pelo empresariado no
último terço do século XX. Mobilizando seus pares, homens de negócios
teriam saído de seus gabinetes e dos corredores palacianos para em-
preender inéditas ações de agregação de interesses. Associações
setoriais, centros de pesquisas e difusão de idéias, e até mesmo
abrangentes organizações multisetoriais de cúpula surgiram durante
os últimos 30 anos, dando um registro vivo de uma nova atitude em-
presarial.
Esse ativismo, entretanto, não o teria colocado em oposição aos inte-
resses tradicionais ou transnacionais existentes nas sociedades latino-
americanas, como fazia crer a tese da atividade hegemônica. Pelo contrá-
rio, uma grande capacidade de participar de novos arranjos políticos e
econômicos foi demonstrada pelo empresariado trazendo à tona uma
capacidade de negociação e articulação política até então não manifes-
tada plenamente.

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104

T ENDÊNCIAS RECENTES DO ASSOCIATIVISMO EMPRESARIAL

Não se pretende, aqui, analisar todos os aspectos dessa nova atitude.


Mas para registrar sua dimensão serão destacados seus aspectos
organizacionais. De fato, um de seus traços mais fortes é justamente a
criação de um grande número de associações empresariais cujos obje-
tivos são a distribuição de benefícios para seus associados, sob a forma
de serviços técnicos e de consultoria, repasse de subsídios, e/ou a re-
presentação dos interesses empresariais perante o Estado e os sindica-
tos de trabalhadores.
Há, em primeiro lugar, uma expansão de organizações formadas para
representar interesses setoriais novos ou até então marginalizados. É o
caso do grande crescimento das associações de pequenas e médias em-
presas que ocorreu na América Latina durante a década de 1980. As-
sumindo as mais variadas formas, tais associações procuravam aglutinar
interesses que até então eram colocados à margem pela estrutura tradi-
cional de representação em nosso continente. A título de exemplo, é
possível citar o Consejo de la Producción, el Transporte y el Comércio,
fundado em 1983 no Chile, para aglutinar organizações nacionais de
médios e pequenos empresários; a Asemblea de Pequeños y Medianos
Empresários (Apyme), criada em 1987, na Argentina; o Sindicato da
Micro e Pequena Indústria (Simpi), em 1988, no Brasil; e a Asociación
Nacional de Micro y Pequeños Empresários (Anmype), fundada em
1988, no Uruguai.
Às organizações de pequenos e médios empresários somam-se associa-
ções empresariais formadas para representar os interesses do setor
exportador, como a Coordinadora de Organizaciones Empresariales
de Comercio Exterior (Coece), criada no México, em 1990; a Corpora-
ción de Exportadores de la Empresa Privada (Coexport), de El Salva-
dor; e o Centro de Exportaciones e Inversiones (CEI), que deu início
às suas atividades em 1992, na Nicarágua. Não se trata, aqui, de de-
mandas que tenham ficado à margem da estrutura tradicional. Tais
associações costumam aglutinar grandes grupos empresariais ou fortes
organizações patronais. O que a criação de entidades para representar
o setor exportador traz de novidade é uma reconfiguração associativa
que incorpora indústria, comércio e sistema financeiro com o obje-
tivo de participar dos novos arranjos institucionais decorrentes da
criação de acordos de livre-comércio.5
Em segundo lugar, tem ocorrido a difusão de centros de estudos e di-
vulgação da ideologia empresarial. Os exemplos são inúmeros, mas

ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 101–122, 1. sem. 2004


105

vale ressaltar, no Brasil, a criação do Instituto Liberal (1983), do Insti-


tuto de Estudos Empresariais (1984) e do Instituto de Estudos para o
Desenvolvimento Industrial (1989). O mesmo fenômeno pode, ainda,
ser encontrado na América Central e no Caribe, onde foram criados
centros de pesquisa com o objetivo de promover o ideário liberal e
realizar estudos detalhados de políticas públicas, como o Instituto Ni-
caragüense de Desarrollo (Inde), que, fundado em 1963, ganhou pro-
jeção a partir de 1974, com a crise do governo de Anastásio Somoza;6 a
Fundación Salvadoreña para el Desarrollo Económico y Social (Fusades),
criada em 1983;7 e o Centro de Investigaciones Económicas Nacionales
(Cien), da Guatemala, nascido em 1983. Tais centros têm contado com
o apoio financeiro de agências estatais e não-governamentais norte-
americanas e européias, do Banco Mundial e, em alguns casos, de gru-
pos econômicos locais (DURAND, 1997, p. 81-82).
Em terceiro lugar, vale ressaltar a criação de novas associações empre-
sariais de cúpula e a renovação de entidades já existentes. Desde a
década de 1970, um impulso de aglutinação dos interesses empresariais
e de renovação associativa teve lugar, alterando profundamente a ação
coletiva deste grupo social. Tal impulso concretizou-se na formação/
renovação de associações multisetoriais de cúpula (encompassing business
associations). Pelo menos sete países criaram organizações abrangentes
de cúpula a partir da década de 1970: Nicarágua, Costa Rica, México,
Uruguai, Equador, Peru e Colômbia (ver Tabela 1). À criação de as-
sociações nacionais é interessante acrescentar o surgimento de organis-
mos de cúpula internacionais, como a Federación de Entidades Priva-
das de Centroamérica e Panamá (Fedepricap), o Consejo de Empresarios
Andinos e o Consejo Empresario de América Latina (Ceal), todos fun-
dados a partir do final dos anos 80.8

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106

T ABEL A 1 – O RGANISMOS E MPRESARIAIS DE C ÚPUL A DA A MÉRICA L ATINA


País/Região Nome e sigla Criação
Confederación Patronal de la República Mexicana
México 1929
– Coparmex
Confederación de la Producción y el Comercio –
Chile 1935
CPC
Federación Venezolana de Cámaras y
Venezuela Asociaciones de Comercio y Producción – 1944
Fedecámaras
República Confederación Patronal de la Rep. Dominicana –
1946
Dominicana CPRD
Federación de la Producción, la Indústria y el
Paraguai 1951
Comercio – Feprinco
Confederación Económica Argentina – CGE
Argentina (dissolvida em 1955, reativada em 1958; dissolvida 1952
em 1976, reativada em 1983)
Comité de Asociaciones Agrícolas, Comerciales,
Guatemala 1957
Industriales y Financieras – Cacif
Jamaica Jamaica’s Employers Confederation 1958
Bolívia Confederación de Empresarios Privados de Bolívia 1962
Panamá Consejo Nacional de la Empresa Privada – Conep 1964
El Salvador Asociación Nacional de la Empresa Privada – Anep 1966
Honduras Consejo Hondureño de la Empresa Privada 1967
Nicarágua Consejo Superior de la Empresa Privada – Cosep 1972
Unión Costarricense de Cámaras y Asociaciones
Costa Rica 1973
de la Empresa Privada – Uccaep
México Consejo Coordinador Empresarial – CCE 1975
Uruguai Consejo Superior Empresarial – Consupem 1978
Consejo de Cámaras y Asociaciones de la
Equador 1980
Producción
Confederación de Empresarios Privados del Perú –
Peru 1984
Confiep
América Federación de Entidades Privadas de
1987
Central Centroamérica e Panamá – Fedepricap
Andes Consejo de Empresarios Andinos 1991
América
Consejo Empresario de América Latina – Ceal 1990
Latina
Colômbia Consejo Gremial Nacional 1993
Fonte: adaptado de Durant (1997).

Estas três tendências do associativismo empresarial encontram-se com-


binadas horizontal e verticalmente por meio de vínculos institucionais
ou informais. No México, por exemplo, a Coece nasce por meio da
iniciativa do Consejo Nacional Empresarial, logo que o governo mexi-
cano anunciou o objetivo de acelerar as negociações referentes ao Tra-
tado de Livre-Comércio. Criada com o objetivo de participar das nego-

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107

ciações do TLC, a Coece aglutinou os grandes grupos econômicos na-


cionais por meio das associações de comércio exterior. Gradativamente
a Coordenadora ampliou suas funções e passou a ocupar muito do
espaço que até então era exclusividade do CNE, mas com um grau de
conflito muito menor, devido à homogeneidade dos interesses represen-
tados (SCHNEIDER, 1997, p. 205-207; TIRADO; LUNA, 1995, p. 57).
O caso mexicano é bastante elucidativo de tendências presentes na
América Latina, uma vez que revela uma estrutura interassociativa que
super-representa os grandes grupos econômicos que ocupariam os prin-
cipais postos, tanto no CCE como na Coece. Tal sobre-representação é
reforçada, ainda, pela existência na mesa diretiva do CCE de represen-
tante do Consejo Mexicano de Hombres de Negócios, entidade que
organiza cerca de 30 proprietários de grandes grupos econômicos que
controlam, de acordo com algumas estimativas, cerca de 30% do Pro-
duto Interno Bruto (SCHNEIDER, 1997, p. 201). A impermeabilidade
das associações de cúpula às novas associações de pequenos e médios
empresários também reforça o poder dos grupos econômicos.
Arranjos de tipo horizontal também são possíveis. Na maioria dos casos,
os centros de estudo e divulgação da ideologia empresarial têm ficado à
margem das tradicionais federações e confederações patronais, coexis-
tindo com elas de maneira nem sempre pacífica. Desenvolvem, assim,
uma atividade paralela e própria que não pode ser confundida com a
representação de interesses que tradicionalmente cabe às associações.
O quadro das tendências acima apresentado é necessariamente
esquemático e coloca lado a lado processos organizativos de dimensões
muito variadas. Nesse esquema, merece destaque a emergência de asso-
ciações multisetoriais de cúpula por sua importância e magnitude. Re-
presentando o conjunto dos interesses empresariais, unificando inte-
resses regionais e setoriais, tais organismos tendem a se constituir como
parte essencial de um complexo associativo empresarial. Uma vez
consolidadas, as associações de cúpula articulam a participação do
empresariado na esfera estatal, ao lado dos partidos políticos e de outros
grupos sociais. Representam, assim, uma força social que se caracteriza
pelo controle privado sobre importantes recursos econômicos. Para
alguns autores, a agregação dos interesses e a unificação da representação
poderiam, até mesmo, compensar a relativa debilidade econômica das
empresas privadas em nosso continente (DURAND, 1995, p. 142-143).

ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 101–122, 1. sem. 2004


108

O QUE FEZ COM QUE OS EMPRESÁRIOS SE ASSOCIASSEM ?

Constatado o grande desenvolvimento da ação coletiva do empresariado


latino-americano nas últimas décadas do século XX, naturalmente co-
loca-se a pergunta: quais as razões deste impulso associativo? Apresen-
tada de maneira abrupta tal interrogação não deixa de ser problemáti-
ca. Afinal, o associativismo empresarial é um fenômeno que se processa
em escala nacional, excetuando-se as incipientes e até então insignifi-
cantes organizações regionais e continentais. Os contextos econômico-
sociais e políticos nos quais esse processo se desenvolve são, portanto,
muito variados. São múltiplos, também, os tempos, os ritmos, nos quais
ele ocorre, bem como as formas que assume e seus resultados finais,
como foi possível perceber na enumeração das várias tendências a ele
associadas.
Faz sentido, então, unificar essas diferentes realidades sob uma etique-
ta continental? Faz se ela não apagar as particularidades nacionais exis-
tentes. Daí a necessidade de trabalhar com uma escala temporal que
permita dar conta dos diferentes ritmos nacionais existentes e perce-
ber os traços distintivos comuns daquilo que nos permite falar de uma
situação latino-americana.
A compreensão das profundas transformações que vêm se processan-
do na organização dos interesses empresariais exige que sejam
contextualizadas nas mudanças estruturais e conjunturais pelas quais
passou o continente. Segundo Durand, essas transformações no
associativismo empresarial

coincidem com outras profundas mudanças que tiveram lugar na re-


gião: a transição para a democracia e a adoção de políticas econômicas
liberais. Os dois fenômenos estão intimamente vinculados. Associações
de cúpula emergem como reações empresariais coletivas às profundas
alterações na economia e nas regras políticas do jogo. Essa reação, por
sua vez, foi possível porque uma nova geração de líderes empresariais
agarrou a oportunidade de ação coletiva e procurou desenvolver e
fortalecer organizações guarda-chuva (DURAND, 1995, p. 141).
Bartell e Payne têm destacado que, ao contrário do afirmado no velho
estereótipo, empresas e empresários têm desempenhado um papel ati-
vo, pressionando os governos em vez de simplesmente adaptarem-se
passivamente a seus desígnios (BARTELL; PAYNE, 1995, p. 260). Se-
gundo os autores, não há dúvidas de que as lideranças empresariais
incrementaram seu poder político e organizacional nas últimas déca-

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das. A nova força política do empresariado seria o resultado, em parte,


de profundas mudanças econômicas que fortaleceram o poder econô-
mico do setor privado. Ao longo dos anos 90, o setor privado latino-
americano teria se transformado no motor principal do crescimento
econômico, como resultado da convergência histórica da falência das
estratégias de substituição de importações dirigidas pelo Estado, do
sucesso relativo das estratégias de livre-mercado, da ausência de mo-
delos alternativos e da pressão internacional pela abertura dos merca-
dos (BARTELL; PAYNE, 1995).9
Considerando, dessa maneira, a liberalização da economia como inevi-
tável, os empresários teriam desenvolvido como reação estratégias ati-
vas de adaptação.10 As condições para essas novas estratégias eram da-
das pelo fim dos regimes autoritários e a conseqüente abertura política
que criaram um ambiente politicamente favorável à organização de
interesses, retirando muitos dos entraves legais à criação de novas enti-
dades. Os empresários “agarraram as novas oportunidades políticas e
as exploraram para defender seus interesses” (BARTELL; PAYNE,
1995, p. 268). O resultado foi a criação de novas associações empresa-
riais, a mobilização de lobbies para pressionar legislativos, o apoio explí-
cito a candidatos ou, até mesmo, o lançamento de candidaturas próprias.
As oportunidades abertas para a organização empresarial pelo renova-
do poder econômico e pelo fim dos regimes autoritários foram
catalisadas, segundo Bartell e Payne, pela percepção de ameaças coleti-
vas. A exclusão das esferas estatais de decisão, a ação arbitrária do Esta-
do e as freqüentes e drásticas alterações nas políticas econômicas pro-
moveram reativamente uma maior unidade dos interesses empresariais.
Restaria saber, entretanto, quais as razões que levariam elites empresa-
riais a investirem em dispendiosas organizações do tipo citado. Para
Bartell e Payne, elites investem na ação coletiva quando se sentem
ameaçadas.11 Tais ameaças podem ser econômicas, como a vulnera-
bilidade à competição internacional, fortemente sentida pelos empre-
sários latino-americanos nas décadas de 1980 e 1990, ou políticas, como
o poder discricionário do Estado.
Analisando o surgimento das associações empresariais no México, Luna
e Tirado chegam a afirmar que o surgimento das organizações empre-
sariais encontra-se vinculado de maneira estreita à percepção da ação
estatal como uma ameaça:

Tais são os casos de Concanaco e Concamin (Confederación de Cámaras


Nacionales de Comércio e Confederación de Cámaras Industriales),

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respectivamente, criadas em 1917 e 1918 contra o radicalismo revolu-


cionário; da Asociación de Banqueros de México, fundada em 1928,
perante a criação do Banco de México; de Coparmex (Confederación
Patronal de la República Mexicana), criada em 1929, frente à iniciativa
da Lei Federal do Trabalho; da Concanacomin (Confederación de
Cámaras Nacionales de Comércio e Industria), nascida em 1936, pe-
rante o reformismo cardenista; do Consejo Mexicano de Hombres de
Negócios, surgido em 1962 para opor-se ao reformismo do presidente
López Mateos; e do Consejo Coordinador Empresarial, criado em 1975
como reação às políticas do presidente Echeverría (LUNA; TIRADO,
1984, p. 7).
Mas se a vulnerabilidade e a ameaça da ação estatal fornecem um im-
portante impulso à ação empresarial, não garantem sua manutenção a
longo prazo. Luna e Tirado verificam isso para a extensa trajetória de
organização do empresariado mexicano: “Estas organizações, uma vez
que cessa a tensão, tendem a desativar-se” (LUNA; TIRADO, 1984, p.
7). Assim, muito embora a percepção de ameaças seja um importante
incentivo para a ação coletiva empresarial, raramente esta se auto-re-
produz espontaneamente. Caberia à ação estatal, geralmente, o forne-
cimento de incentivos externos para a associabilidade (SCHNEIDER;
MAXFIELD, 1997, p. 28). O Estado pode reduzir os obstáculos para a
ação coletiva providenciando uma variedade de benefícios, positivos e
negativos, seletivamente distribuídos. Dentre esses benefícios, cabe des-
tacar o acesso institucionalizado ou informal às esferas de decisão
(SCHNEIDER, 1998).
Os estudos que destacam a relação existente entre certas formas de
corporativismo e modalidades de associativismo empresarial levados a
cabo em nosso continente têm contribuído de modo significativo para
destacar a complexidade das relações Estado-empresários-sociedade.12
Segundo Schneider, seria preciso distinguir uma lógica política de uma
lógica de políticas. A primeira é mais comum em situações de crise e de
mudança de estratégias de desenvolvimento. Em uma lógica política,
atores estatais incentivariam a organização empresarial com a finalida-
de de administrar a crise e gerar apoio político para a nova estratégia.
Em tempos mais normais, os atores estatais seguiriam uma lógica de
políticas e organizariam empresas e empresários para promover formas
particulares de administração da economia (SCHNEIDER, 1998, p. 8).
Associações empresariais abrangentes ou associações setoriais
“desenvolvimentistas” 13 poderiam ser capazes de inibir interesses

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particularistas e promover um comportamento econômico orientado


para um crescimento sustentável, daí o interesse estatal no seu
surgimento e consolidação (SCHNEIDER; MAXFIELD, 1997). Dessa
forma, muito embora o surgimento de associações possa ser o resulta-
do não intencional da ação estatal ou da percepção de ameaças por
parte do empresariado, a estabilização de sistemas associativos requer
o apoio estatal.
As interpretações de Payne, Bartell, Schneider, Maxfield, Luna e Tira-
do colocam seu foco nas relações que os empresários estabeleceriam
com o Estado. Este, por sua vez, é concebido de maneira estrita como o
conjunto de instituições encarregadas das funções governativas. Ao
procederem dessa maneira, tais autores acabam, em grande medida,
expulsando para fora do Estado as classes sociais. Daí a relação de
exterioridade que é estabelecida entre Estado e sociedade e, para pre-
cisar ainda mais, entre Estado e burguesia (classes dominantes).
Cindida a unidade existente entre Estado e sociedade, o primeiro dei-
xa de ter seu campo de ação marcado por uma relação de forças sociais
historicamente constituída e adquire uma plena independência peran-
te o conjunto das classes, monopolizando a política e reduzindo as clas-
ses a sua dimensão meramente econômica. Em face destas, o Estado
aparece como o demiurgo diante do qual restaria apenas a adaptação,
reduzindo ao Estado a capacidade de iniciativa política. O resultado da
análise não deixa de ser paradoxal. O protagonismo do Estado permi-
te falar apenas de uma autonomia relativa das classes perante um po-
der que manifesta sua completa independência diante das forças sociais
presentes. Mas, aquém dos paradoxos teóricos aos quais tais enfoques
conduzem, é importante apontar alguns problemas empíricos que eles
deixam sem explicação.
Em primeiro lugar, é de se destacar que a ação do empresariado latino-
americano e o desenvolvimento de suas associações anteciparam-se,
muitas vezes, seja à mudança de regime político, seja à aplicação de
políticas neoliberais por parte dos governos dos países latino-america-
nos. Estudos realizados na década de 1990 têm destacado o papel deci-
sivo do empresariado, tanto na formatação de uma agenda de mudan-
ças políticas e econômicas, como no processo de aplicação das políticas.
Para Eduardo Silva (1996), por exemplo, existiu no Chile uma interação
estreita entre capitalistas e Estado nos processos de mudança econômi-
ca e política, tanto durante o governo do general Pinochet, quanto
durante a presidência de Patricio Aylwin. Silva destaca que o

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empresariado chileno teria contribuído de maneira importante nos pro-


cessos de formatação da agenda, definição e implementação de políti-
cas, ao contrário do comumente indicado pela literatura. Processos se-
melhantes puderam ser constatados no Equador, Peru e Bolívia, por
Conaghan, Malloy e Abugattas (1990). Nesses países dos Andes cen-
trais, as associações empresariais teriam desempenhado um papel deci-
sivo para a transformação do ambiente ideológico e a difusão de uma
concepção de mundo liberal e, ao mesmo tempo, para a mudança da
agenda política e econômica, colocando no seu centro o recuo do Esta-
do das posições por ele ocupadas até então.
Em segundo lugar, nos enfoques acima apresentados, são enfatizadas
as relações de forças dos empresários com o Estado, deixando de lado
aquelas que os empresários estabeleceriam entre si no ato da concor-
rência, bem como aquelas que existiriam entre estas e as classes subal-
ternas. Durand e Silva alertaram que a definição de ameaças utilizadas
por autores como Bartell e Payne, dentre outros, é muito estreita e não
consegue explicar o surgimento e a expansão das associações de cúpu-
la desde a década de 1930. Para Durand e Silva:

o desenvolvimento organizativo de grupos sociais antagonistas e seus


vínculos com um Estado mais autônomo dos grupos privados são tão
importantes para explicar a emergência de associações empresariais
abrangentes na América Latina quanto o foco mais recente na exclusão
do processo de formulação de políticas e a adoção de políticas arbitrárias
por um Estado altamente autônomo de todos os grupos sociais
(DURAND; SILVA, 1998a, p. 7.)
São identificadas, assim, ameaças políticas que emanam tanto do Esta-
do como também de grupos sociais subalternos. Dentre as ameaças
provenientes desses grupos, caberia destacar movimentos de massa,
rebeliões nacionais e movimentos guerrilheiros que reivindicam refor-
mas sociais e trabalhistas.14 Às ameaças dos grupos subalternos somam-
se aquelas provenientes do Estado: ataques à propriedade privada,
programas radicais de redistribuição de riquezas, difusão de controles
governamentais e exclusão dos processos de formulação de políticas.
Caberia ainda acrescentar a existência de ameaças econômicas, tais como
hiperinflação, recessão ou depressão, para ter um quadro mais preciso
das situações que podem dar o impulso inicial à organização empresa-
rial (DURAND; SILVA, 1998a, p. 8).
Em terceiro lugar, assim como é possível apontar ameaças não-estatais
atuando como agentes de catalisação da ação coletiva empresarial, tam-

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bém é possível encontrar impulsos para o fortalecimento das associa-


ções empresariais que se localizaram fora da ação estatal. Separando os
processos de gênese e consolidação do associativismo empresarial,
Durand e Silva sugerem, além do tipo de relações governo-empresas,
outras três explicações para o fortalecimento das associações empresa-
riais: organização interna, nível de conflito intersetorial e característi-
cas das lideranças (DURAND; SILVA, 1998b).
Heterogeneidade interna, ausência de canais institucionalizados de
negociação com o governo e elevado nível de conflitos intersetoriais,
principalmente entre pequenos e grandes proprietários, enfraquece-
ram as associações multisetoriais de cúpula do México, principalmente
o CCE.15 Sem enfrentar os mesmos problemas organizativos, com uma
composição mais homogênea que no caso mexicano e com canais de
comunicação com as esferas estatais de decisão, as associações de cúpu-
la de El Salvador e Nicarágua também enfrentaram obstáculos a seu
fortalecimento.16 Divisões referentes à abertura comercial e a políticas
tarifárias minaram a capacidade de a Anep salvadorenha e de a Cosep
nicaragüense atuarem como uma voz unitária do setor privado. Por
outro lado, os casos de Chile e Peru mostram de que forma um elevado
grau de homogeneidade interna e um reduzido nível de conflitos, alia-
dos à existência de canais permanentes de negociação com o governo e
lideranças capazes de construir consenso, têm levado a um fortaleci-
mento das entidades de cúpula.17

C OMENTÁRIOS FINAIS : UM ENFOQUE RELACIONAL


DO ASSOCIATIVISMO EMPRESARIAL

Os problemas teóricos e empíricos acima sumariados indicam a neces-


sidade de um novo enfoque para o estudo do associativismo empresa-
rial e de suas relações com o Estado. Esse enfoque é apenas esboçado
aqui, indicando um programa de pesquisa a ser desenvolvido. Apontar
para uma pluralidade de causas para a gênese e consolidação da ação
coletiva empresarial, abre a porta para pensar essas causas de um pon-
to de vista relacional, enfatizando a relação de forças que se estabelece
em uma situação determinada a partir de linhas verticais, abarcando as
relações existentes entre as classes sociais e suas formas institucionais –
incluído aí o Estado –, e horizontais entre as diferentes frações de uma
mesma classe.
Neste enfoque relacional, o processo de constituição do projeto em-
presarial deixaria de ser o resultado de uma reação à ação estatal ex-

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terna e passaria a ser analisado a partir das relações de forças acima


mencionadas. Tais relações têm lugar em uma situação marcada pela
convergência, nos anos 80 e 90, de uma profunda crise econômica e
uma crise política de grande intensidade na América Latina, que abala-
ram tanto os modelos de desenvolvimento baseados na substituição de
importações, como os regimes autoritários que lhes serviam de suporte
político. A própria situação de crise colocou para os diferentes grupos
sociais a necessidade de procurarem alternativas. Para Gourevitch:

A crise econômica conduz ao debate político e à controvérsia política;


e do conflito surgem medidas políticas. Estas medidas, sejam inovado-
ras ou tradicionais, necessitam da política: quer dizer, as respostas à
crise econômica exigem um apoio político. Por conseguinte, para com-
preender as escolhas políticas temos que compreender a política que
as produz (GOUREVITCH, 1986, p. 19).
Situações de crise criam as condições para a emergência de impulsos
hegemônicos, para a criação e recriação de projetos. A convergência
histórica das últimas décadas teria beneficiado as forças internas e ex-
ternas favoráveis a resolver a crise por meio “da privatização de em-
presas públicas e por meio do desmantelamento progressivo dos con-
troles estatais e da política populista de subsídios massivos e legislação
trabalhista pró-sindicalista” (DURAND, 1996, p. 44). É, portanto, em
um contexto de crise que o empresariado latino-americano participa
da definição da agenda de um programa de reformas neoliberal e se
organiza para tal.
Os casos apresentados na obra coordenada por Bartell e Payne permi-
tem perceber que, muito embora tal convergência histórica tenha afe-
tado o conjunto dos países latino-americanos, a percepção do momen-
to vivido e o apoio às políticas neoliberais variavam de país para país.18
Mas, mesmo no interior de cada país, coexistiam apreciações diferen-
tes sobre as políticas neoliberais e os discursos contraditórios exigiam,
ao mesmo tempo, a abertura comercial e a proteção de setores nacio-
nais da economia.
Tais discursos podem ser explicados pela existência de uma divisão
entre os empresários que são favorecidos positivamente pelo fim do
modelo de substituição de importações e aqueles que são negativamen-
te afetados. Situações de crise fazem emergir uma pluralidade de res-
postas. Mas nem todos os projetos nascidos no interior da crise têm
uma vocação hegemônica. É possível perceber uma gama de respostas
à crise que não transcendem o nível econômico-corporativo, ou seja,

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que em vez de procurar uma solução global para a crise global apre-
sentem projetos pontuais que têm como objetivo diminuir as perdas de
um determinado setor ou grupo social. Assim, os setores exportado-
res, apoiados pelos organismos financeiros internacionais e pelos
tecnocratas liberais, tendem a apoiar as mudanças. Os industriais, cons-
trutores e comerciantes vinculados ao mercado interno geralmente
opõem resistências, embora pouco eficazes (DURAND, 1996, p. 44).
Em um estudo comparativo sobre a reação de entidades empresariais
da Venezuela (Fedecámaras) e da Colômbia (Andi) às propostas de
integração regional, Rita Giacalone chegou a conclusões semelhantes.
Segundo a autora, seu estudo concluiu que “essas posições se caracteri-
zaram por uma aceitação geral da integração, em nível ideológico, e
uma rejeição setorial em nível prático” (GIACALONE, 1997, p. 159).
A interpretação de Durand a essas contradições do discurso empresarial
é bem mais moderada, identificando um apoio condicional às políticas
neoliberais:

Os organismos de cúpula (que servem para expressar a correlação de


forças internas) giraram gradualmente em favor do neoliberalismo.
Esse apoio é de tipo condicional, matizado com referências a um ne-
cessário gradualismo e um certo mal-estar porque tem sido uma mo-
dernização um tanto forçada (“uma abertura dirigida”, como afirma
bem um documento da Concamin mexicana) (DURAND, 1997, p. 83).
Mas é sabido que compromissos abstratos com concepções de mundo
não são traduzidos, necessariamente, em políticas específicas coerentes
com tais visões. Assim, muito embora houvesse um elevado grau de
consenso a respeito da preponderância do mercado sobre o Estado e as
associações empresariais dos Andes centrais estivessem engajadas na
defesa dessa concepção, os desacordos dos empresários com os
formuladores de políticas e das diferentes frações do empresariado entre
si vieram à tona logo que tais princípios abstratos começaram a assumir
a forma de programas e políticas econômicas.
Concentrando sua análise nos grandes grupos de poder econômico
(GPE), Durand identificou uma estratégia cautelosa:

Tentam frear ou desacelerar as mudanças se os afetam diretamente,


com a finalidade de moderar sua aplicação e ganhar tempo para adap-
tar-se às novas regras do jogo [...] Os GPE não são, pois, a vanguarda
dessa modernização nem tampouco se pode dizer que tenham tentado

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bloquear as mudanças. Adaptaram-se a elas com certa resistência, silen-


ciosa, porém, efetiva (DURAND, 1996, p. 45).
De qualquer forma, a existência de diferenças no interior do
empresariado não impediu que estes sentissem “a necessidade de orga-
nizar e mobilizar a si mesmos para rejeitar as mudanças ou, eventual-
mente, ajustar o ritmo e as condições sob as quais as políticas liberais
eram adotadas” (DURAND, 1995, p. 145). Mas a existência de tal ne-
cessidade não implica necessariamente sua organização. O estudo da
ação coletiva empresarial deveria integrar, portanto, as condições de
emergência do associativismo empresarial, sua gênese, com a consoli-
dação da ação coletiva, sua institucionalização. O foco desse estudo,
entretanto, não pode ser o Estado compreendido no sentido estrito
como aparelho governativo, e na sua alegada capacidade de fornecer
os impulsos para a ação coletiva empresarial e sua consolidação. Ele
deve ser colocado no fazer-se dessa ação e na complexa articulação das
forças sociais que se encontram presentes no ato e com as formas
institucionais destas.
O enfoque alternativo cujos contornos – e apenas estes – foram apre-
sentados aqui é um enfoque relacional. Nele o Estado é concebido como
condensação institucional das relações de forças sociais, ao mesmo tem-
po, um campo de conflito e o resultado desse conflito. Nessa perspecti-
va, a ação coletiva das classes sociais em presença é incorporada a uma
esfera estatal ampliada impregnando-a. A ação estatal deixa, então, de
ser considerada plenamente independente das classes sociais e passa a
ser considerada como o resultado de uma autonomia relativa exercida
em uma situação definida por uma relação de forças determinada.
Parte constitutiva de uma esfera estatal ampliada, a ação coletiva em-
presarial é, ao mesmo tempo, resultado e condição de uma relação de
forças. Resultado, na medida em que é em determinados contextos
que o empresariado identifica seus interesses comuns e a necessidade
de dar-lhes uma expressão institucional. Condição, na medida em que
a capacidade organizativa demonstrada no processo de institucio-
nalização e a unidade por ela gerada produzem uma força social supe-
rior à soma das forças particulares, alternando o contexto no qual ela
se faz presente.
Pensar o associativismo empresarial latino-americano sob esse enfoque
permitiria afastar-se das concepções da subalternidade passiva e do
ativismo hegemônico predominantes até há alguns anos. A rejeição dos
pressupostos essencialistas e a-históricos dessas concepções é possível,

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do ponto de vista metodológico, se houver uma revalorização das aná-


lises de situações concretas. Felizmente, os estudos sobre o empresariado
latino-americano, levados a cabo na última década, têm apontado nes-
sa direção.

ABSTRACT
This paper intends to discuss the Latin American entrepreneurial associa-
tive impulse experienced in the 1980’s and the 1990’s and its complex
relationships with the action of the State. Based on a relational approach of
the entrepreneurial associativism which is opposed to theories supported by
essencialist pressuppositions, there will be detached the relationship of forces
between the different fractions of the entrepreneurs, the action of the subal-
tern classes and the State form of both. The entrepreneurs’ associativism
arises therefore as one of the possible capitalist answers to the crisis of Latin
American capitalism, the institutional form of entrepreneurial projects within
the context of the Continent’s economic and political crisis. It is in this
context that the neoliberal alternative will consistently grow among Latin
American entrepreneurs. These played a decisive role for the transforma-
tion of the ideological environment, the diffusion of a conception of world
based on liberalism and the change in the economic and political agenda,
placing in its center the withdrawal of the State from its previous positions,
at the same time in which they attempted to adjust rhythms and to minimize
the possible losses stemming from this alternative.
Keywords: entrepreneurs; collective action; neoliberalism; Latin America.

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N OTA S
1
Ver a descrição do episódio na “Nota metodológica y bibliográfica” de SCHVARZER (1991).
2
Uma versão dessa visão do empresariado pode ser encontrada na obra clássica de Fernando Henrique Car-
doso, Empresário industrial e desenvolvimento econômico no Brasil (CARDOSO, 1972).
3
Ver, por exemplo, JAGUARIBE (1972).
4
No Brasil, poderíamos apontar como precursores os estudos históricos realizados por Eli Diniz e Maria
Antonieta Leopoldi identificando uma atividade política empresarial, na primeira metade do século XX,
muito maior do que se supunha (DINIZ, 1978; LEOPOLDI, 2000).

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122
5
Em alguns casos o governo encontra-se representado. No CIE nicaragüense, a Junta Diretiva é formada por
representantes do Consejo Superior de la Empresa Privada (Cosep), Ministerio de Economía y Desarrollo,
Fondo Nicaragüense de Inversiones (FNI), Cámara de Comercio Americana de Nicaragua (Amcham),
Asociación Nicaragüense de Productores y Exportadores de Productos No-Tradicionales (Apenn) e da
Asociación de Bancos Privados (Asobanp).
6
Entre 1974 e 1976 o número de membros do Inde pulou de 89 para 523 associados (SPALDING, 1998, p.
152).
7
A Fusades contribui decisivamente para a renovação da liderança empresarial salvadorenha (JOHNSON,
1998).
8
Muito embora tenha crescido significativamente a bibliografia existente sobre as organizações empresariais,
ainda inexistem estudos sobre estes organismos de cúpula internacionais.
9
Um estudo abrangente do novo papel desempenhado pelos grupos econômicos na América Latina pode ser
encontrado em Durand (1996).
10
Payne (1994) desenvolve teoricamente o enfoque adaptativo em sua obra sobre os industriais brasileiros.
11
Schneider; Maxfield (1997) referem-se às ameaças percebidas não apenas pelas elites empresariais como
também pelas estatais.
12
Ver, por exemplo, a análise comparativa levada a cabo por Boschi (1994).
13
As associações setoriais desenvolvimentistas como aquelas que não se encontram envolvidas em atividades
“directly unproductive profit seeking” (DUP) (SCHNEIDER; MAXFIELD, 1997, p. 21).
14
Ver, por exemplo, as diferentes reações do empresariado argentino perante essas ameaças e na ausência
delas. Cf. Acuña (1995; 1998).
15
Para o caso do CCE, ver Tirado (1998); Tirado e Luna (1995); Luna e Tirado (1993, LISTA 1984); e Thacker
(2000).
16
Para o caso de El Salvador, ver Johnson (1998); para Nicarágua, Spalding (1998).
17
A recente criação da Confinep no Peru e sua consolidação é analisada por Durand (1995; 1998) e Thorp e
Durand (1997). A trajetória do empresariado chileno pode ser acompanhada em Bartell (1995); Montero
(1997); Silva (1995); Silva (1997; 1998 a ou b).
18
Ver, por exemplo, a comparação entre Chile e Brasil em Bartell (1995).

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L U I S C A R L O S F R I D M A N *

O DESAMPARO DO INDIVÍDUO MODERNO


NA SOCIOLOGIA DE MAX WEBER

O artigo traz uma investigação sobre os contornos da


subjetividade moderna na obra de Max Weber, seguindo
os aspectos abordados pelo pensador alemão em torno
do “mundo desencantado” e da “gaiola de ferro” do
processo de racionalização ocidental. Discute as rever-
berações da ética mundana derivada da expansão do
protestantismo e, a partir do tema do adiamento da
satisfação, atualiza algumas das idéias de Weber para
a caracterização da subjetividade pós-moderna.
Palavras-chave: subjetividade; modernidade; pós-
modernidade; Max Weber.

*
Professor do Departamen-
to de Sociologia e do Pro-
grama de Pós-Graduação
em Sociologia e Direito da
Universidade Federal Flu-
minense.
124

A idéia do mundo desencantado da modernidade (cuja origem está


em Friedrich Schiller) gerou na obra de Max Weber a imagem de indi-
víduos submetidos a grandes organizações e presos a uma “solidão
polar”. Kulturpessimismus que também alimentou o prognóstico de que
a ditadura do proletariado cederia lugar à ditadura dos burocratas –
formulação apresentada em conferência para 300 oficiais superiores
do estado-maior do exército austríaco em 1918.
Weber apontou as conseqüências da fixidez dos poderes impessoais
das burocracias sobre a vida individual e seus danos sobre os valores
que sustentavam a subjetividade. Ressaltou os limites à liberdade na
sociedade supervisionada por grandes agências, circunstâncias que
diferem da dinâmica social contemporânea marcada pelo desmante-
lamento e sucessiva reconstrução das instituições ocasionada pela
volatilidade do capital, que impõe o modelo de desengajamento e de
fuga. No entanto, o desamparo permanece. Se anteriormente a liber-
dade de ação e a democracia estiveram ameaçadas pela expansão de
dispositivos racionalizadores e organizadores da vida, hoje, os indiví-
duos, grupos e classes tateiam à deriva em busca dos “senhores ausen-
tes”, para supostamente enfrentá-los nas arenas públicas onde se me-
dem forças. Ou ainda, de acordo com as análises de Zygmunt Bauman,
a extraterritorialidade das elites constitui um novo padrão de domina-
ção, segundo capacidades de movimento no tempo e no espaço.
Acompanhar as sugestões de Weber em sua investigação do “mundo
sob controle” das burocracias e suas conseqüências sobre a subjetivida-
de permite uma compreensão mais ampla das flutuações individuais
no atual “mundo fora de controle”, como figura no título de um dos
livros recentes de Anthony Giddens.
Expressões correlatas, o mundo desencantado ou a “gaiola de ferro”
do processo de racionalização dizem respeito a uma era de rotinas
opressivas, despersonalizadas e despersonalizadoras, que Weber per-
cebeu como ameaça às liberdades individuais. No reinado de especia-
listas e das grandes burocracias, seria difícil contestar as agências e sua
extensão na administração de grandes áreas da vida coletiva. Essas
organizações poderiam, ao final, sobrepassar as funções de serem meios
de satisfação das necessidades humanas e, na planificação do cotidiano
das multidões, consagrar a supremacia de um modelo disciplinar de
condução da sociedade.
No mundo desencantado, o perito substitui o humanista. O processo
de racionalização limita o aparecimento de “personalidades univer-
sais” como o foram, em diversas épocas da história, os literatos refina-

ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 123–136, 1. sem. 2004


125

dos da China (mandarins), os homens atléticos e cultos da Antigüida-


de, o moderno cavalheiro inglês, o cortegiano italiano e tantos outros. O
cientista, suposto correspondente atualizado desses tipos humanos, está,
queira ou não, circunscrito à sua especialidade pela amplitude dos pro-
blemas da vida moderna a serem investigados.
Se Weber foi prudente com relação a anúncios do contorno futuro da
economia, da política e das instituições em geral, contudo não se pou-
pou no diagnóstico do panorama social moderno e de uma certa “con-
dição humana” de sinal negativo, Kulturpessimismus. Especialmente atento
às personalidades carismáticas, Weber concebeu esses tipos para a
modernidade segundo a capacidade de despertar sentimentos e vonta-
de para a ação em homens igualados a “zeros em uma máquina”. Nas
palavras de Raymond Aron, a capacidade de reavivar valores vincula-
dos ao sublime nesse mundo sem excepcionalidade. O retrato do indi-
víduo moderno nos escritos de Weber deriva das conseqüências do
processo de racionalização do Ocidente e é marcado pelo abandono
dos deuses, isto é, pela ausência do conforto oferecido pelas cosmologias
em suas abrangentes atribuições de sentido ao mundo.

UM TANTO DE METODOLOGIA

Os estudos de Max Weber sobre o processo de racionalização que afe-


tou o Ocidente moderno são pautados pela crítica às concepções que
priorizavam as determinações regulares no decurso histórico. Weber
debateu com as filosofias da história e modalidades de interpretação
que se fundavam na idéia do “desenvolvimento unilinear” e, assim,
com os diversos tipos de determinismo econômico (não exclusivamen-
te o materialismo histórico) ou cultural (freqüente em várias escolas
históricas e filosóficas). Marx e Hegel, por exemplo, citados como ex-
poentes do pensamento, foram criticados pelo mesmo motivo: a
“unilinearidade” e a teleologia. A caracterização de um Weber “idealis-
ta”, que sugere a “inversão das determinações” (muitos comentadores
se apegam ao exemplo de A ética protestante e o espírito do capitalismo), é
inexata. Seu foco de discussão é a existência ou não de leis que produ-
zem o desenrolar da história, quaisquer que sejam as vertentes onde
tal idéia se manifesta.
Weber é um antideterminista, não apenas um antideterminista econô-
mico. Para ele, a ótica da causalidade econômica, que persegue um
elemento específico dos fenômenos, oferece uma imagem parcial e não
capta a complexidade dos fatos históricos. O mesmo pode ser dito com

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126

relação às “determinações do espírito” ou à “realização da Razão”. Para


Weber, mesmo fenômenos “socioeconômicos” não têm um caráter que
lhes seja “objetivamente” inerente. Isso depende do interesse ou do
ponto de vista daquele que quer conhecer ou do “significado cultural
que atribuímos ao evento em questão em cada caso particular” (WEBER,
1979a, p. 79). O Estado, por exemplo, é tomado como fenômeno “eco-
nômico”, quando se investigam as finanças públicas ou o papel da ad-
ministração pública na configuração da luta material pela existência,
expressa na “limitação quantitativa e a insuficiência qualitativa dos meios
externos, que demandam a previsão planejada e o trabalho, a luta com
a natureza e a associação com homens” (WEBER, 1979a, p. 79). O
Estado ainda pode ser pesquisado sob outros pontos de vista, de acor-
do com o interesse de conhecimento acerca da multiplicidade de
interações que nele se processam.
Ao salientar que o conhecimento dos objetos depende do ponto de
vista pelo qual se quer apreciar um dado fenômeno, Weber destaca o
ângulo de interesse do pesquisador e a constelação de valores de um
tempo do qual este faz parte. Nos termos de Weber, “o domínio do
trabalho científico não tem por base as conexões “objetivas” entre “coi-
sas”, mas as conexões conceituais entre os problemas” (WEBER, 1979, p.
83; grifos dele) ou ainda “a construção de conceitos depende do modo
de propor os problemas, e de que este último varia de acordo com o
conteúdo da cultura” (WEBER, 1979a, p. 121).
No campo dos fenômenos humanos e sociais, das “ciências da cultura”
(WEBER, 1979a, p. 90), o conhecimento resulta da significação e da
atribuição de sentido. Weber acredita que o cientista deve tomar cons-
ciência desses ideais de valor para superá-los na análise. Essas ressalvas
dizem respeito a relações pensadas e não ao próprio real. Assim, do
ponto de vista das ciências da cultura, a intenção de se capturar regula-
ridades objetivas na história, descortinadas em seu movimento e em
suas determinações, é irrealizável. A expressão “fluxo do devir inco-
mensurável” (WEBER, 1979a, p. 100) – a sucessão dos fatos e das épo-
cas, a marcha ininterrupta dos episódios, o livre jogo das forças huma-
nas, a expressão grandiosa ou medíocre das potências civilizatórias e as
modalidades de intelectualização próprias de cada tempo – revela a
entonação antideterminista de Weber:

O fluxo do devir incomensurável flui incessantemente ao encontro da


eternidade. Os problemas culturais que fazem mover a humanidade
renascem a cada instante e sob um aspecto diferente e permanece variá-

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127

vel o âmbito daquilo que, no fluxo eternamente infinito do individual,


adquire para nós importância e significação, e se converte em “indivi-
dualidade histórica”. Mudam também as relações intelectuais sob as
quais são estudados e cientificamente compreendidos. Por conseguin-
te, os pontos de partida das ciências da cultura continuarão a ser variá-
veis no imenso futuro, enquanto uma espécie de imobilidade chinesa
da vida espiritual não desacostumar a humanidade de fazer perguntas
à sempre inesgotável vida (WEBER, 1979a, p. 100).
Não se cancela a possibilidade de conhecimento dos grandes processos
históricos a partir de um determinado foco ou interesse. Por exemplo,
o largo processo de aparecimento e expansão do capitalismo no Oci-
dente a partir das mentalidades e dos estilos de vida suscitados pela
ética protestante não foi a conseqüência “necessária” do que o prece-
deu, assim como, em outros casos, circunstâncias propícias não
deflagraram resultados esperados ou previsíveis segundo “leis de mo-
vimento”. A postura epistemológica que se ampara na significação e no
interesse compreende a idéia da inesgotabilidade do real e dos próprios
objetos singulares. A formulação de Weber é a seguinte:

Ocorre que, tão logo tentamos tomar consciência do modo como se nos
apresenta imediatamente a vida, verificamos que se nos manifesta, “den-
tro” e “fora” de nós, sob uma quase infinita diversidade de eventos que
aparecem e desaparecem sucessiva e simultaneamente. E a absoluta in-
finidade dessa diversidade subsiste, sem qualquer atenuante de seu ca-
ráter intensivo, mesmo quando prestamos a nossa atenção, isoladamente,
a um único “objeto” — por exemplo, uma transação concreta —; e isso
tão logo tentamos sequer descrever de forma exaustiva essa “singulari-
dade” em todos os seus componentes individuais, e muito mais ainda
quando tentamos captá-la naquilo que tem de causalmente determinado.
Assim, todo o conhecimento reflexivo da realidade infinita realizado
pelo espírito humano finito baseia-se na premissa tácita de que apenas
um fragmento limitado dessa realidade poderá constituir de cada vez o
objeto da compreensão científica, e de que só ele será “essencial” no
sentido de “digno de ser conhecido” (WEBER, 1979a, p. 88, grifo do
autor).
O real é infinitude e caos ao qual o homem atribui sentido, ou seja, em-
presta significado ao mundo e à “objetividade”. Esse pressuposto filo-
sófico fundamenta a “objetividade possível de ser alcançada”. A mesma
idéia pode ser encontrada na definição do conceito de “cultura”:

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A “cultura” é um segmento finito do decurso infinito e destituído de


sentido próprio do mundo, a que o pensamento conferiu — do ponto
de vista do homem — um sentido e uma significação (WEBER, 1979a,
p. 96, grifo do autor).
Weber recusa, assim, a idéia de um “real estruturado” que contém re-
gularidades e cujas “leis de desenvolvimento” cabe ao pensamento per-
ceber. A pesquisa científica busca, ao contrário, “o significado cultural
geral da estrutura socioeconômica da vida social humana e das suas formas de
organização históricas” (WEBER, 1979a, p. 82-83, grifo do autor). A
captura de relações históricas depende da maneira de se propor pro-
blemas, o que abrange uma multiplicidade de pontos de vista sobre o
real (e, na imensidão do tempo, das relações intelectuais sob as quais
são estudados e cientificamente compreendidos) e sobre os cuidados
do cientista prevenido quanto a isso. As múltiplas causas não estão “ali”,
na “realidade”, oferecendo-se como desmentido ao marxismo ou ao
hegelianismo; o real é caos, não há nenhum sentido que lhe seja ine-
rente. O conhecimento possível, parcial, não é menor do que aquele
proporcionado pelas “concepções de mundo” que abarcam toda a his-
tória:

Pois o número e a natureza das causas que determinaram qualquer


acontecimento individual são sempre infinitos, e não existe nas próprias
coisas critério algum que permita escolher dentre elas uma fração que
possa entrar isoladamente em linha de conta [...] Este caos só pode ser
ordenado pela circunstância de que, em qualquer caso, unicamente
um segmento da realidade individual possui interesse e significado para
nós, posto que só ele se encontra em relação com as idéias de valor
culturais com que abordamos a realidade (WEBER, 1979a, p. 94; grifo
do autor).
Com base nessas observações, Weber considera que a dimensão econô-
mica não abarca todo o horizonte dos processos característicos da vida
moderna e as análises norteadas pelas supostas determinações econô-
micas alcançarão apenas o nível de “concepções do mundo” como, por
exemplo, o “antigo sentido genial-primitivo” presente no Manifesto co-
munista (WEBER, 1979, p. 84). Se a economia tem uma decisiva influên-
cia sobre as demais esferas da vida social, a cultura, por seu lado, influi
sobre a configuração das necessidades materiais. Esse procedimento
analítico se estende à descrição genérica dos “interesses agrários”, aos
“interesses da classe operária” ou mesmo aos “interesses do Estado”,
nos quais Weber sugere que os interesses “egoístas” (utilitários) dos

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indivíduos aí envolvidos estão misturados com os “mais diversos valo-


res puramente ideais”. Não há, assim, um “ponto de vista especial” que
ilumine a história nem uma “objetividade” econômica no real. A histó-
ria é vista sob a marca da pluricausalidade e a motivação de origem
econômica é uma delas. Ela não é a “causa das causas” ou o fundamen-
to de toda a vida social.
No estudo sobre a ética protestante, Weber acentuou que os fiéis busca-
vam repouso espiritual e acabaram por favorecer a acumulação primiti-
va de capital, efeito não-pretendido das ações de homens impulsionados
por valores religiosos e pela angústia de não terem acesso a sinais claros
de salvação. O protestantismo impulsionou o processo de racionaliza-
ção; outras religiões não produziram os mesmos efeitos.
O prisma da racionalização informou a análise dos processos
civilizatórios oriundos do judaísmo antigo, do cristianismo, do protes-
tantismo e das religiões orientais. Weber observou as religiões asiáticas
sob o ponto de vista da ética ou do desenvolvimento de uma conduta
de vida intramundana e sua relação com a racionalização das ativida-
des correntes envolvendo classes, estamentos e os cultos diferenciados
das elites e da massa de fiéis. Para Weber, o capitalismo e o modo bur-
guês de vida não proliferaram no Oriente, especialmente na China,
devido ao não-surgimento de uma profecia missionária ética que organi-
zasse racionalmente o cotidiano daqueles povos (WEBER, 1979b).
A sociologia das religiões de Weber salienta o papel preponderante, no
Ocidente, “do estamento político burguês da cidade” (WEBER, 1979b,
p. 148) para o advento do judaísmo, do cristianismo e do pensamento
grego, enquanto na Ásia a expansão das cidades foi bloqueada “em
parte pela manutenção do poder de parentela e em parte pela separa-
ção entre as castas” (WEBER, 1979b, p. 148). Tais circunstâncias histó-
ricas produziram conseqüências particulares e diferenciadas. No Oci-
dente, as condições da vida urbana favoreceram o aparecimento de
mentalidades destinadas à inserção na vida cotidiana, isto é, na políti-
ca, na economia, nas artes e no domínio sobre a natureza para a satis-
fação de necessidades. Isto significou o controle racional sobre o mun-
do através da ação e de “empresas”. No Oriente, o sistema de castas,
que dividia a sociedade em uma camada de sábios e letrados e nas
massas destituídas de formação, permitiu que as elites cultivadas ficas-
sem à margem do mundo real e se dedicassem ao extracotidiano, ao
“vazio”, ao “encanto mágico” (WEBER, 1979b, p. 148), o que difun-
diu, na massa dos fiéis, uma conduta indiferente ao que acontecia no

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130

mundo e, portanto, uma mentalidade que não impelia ao domínio ra-


cional sobre a realidade.
O fenômeno civilizatório do capitalismo (e o conjunto das atividades
econômicas, políticas, jurídicas, artísticas etc. que o acompanharam) foi
associado ao desenvolvimento de um certo tipo de mentalização. Se-
gundo José Guilherme Merquior,

[Weber] na verdade preferia enfatizar a racionalidade dos procedimen-


tos técnicos e contábeis do capitalismo, antes que suas características
como um sistema de relações de produção. O capitalismo era a tendên-
cia decisivamente racionalizadora entre as várias tendências da histó-
ria, e a racionalização permanecia como o destino geral da civilização,
legado pelo Ocidente ao mundo moderno como um todo (MERQUIOR,
1990, p. 204).
O capitalismo foi, para Weber, conseqüência da emergência e difusão
da mentalidade racional — maneira de pensar que busca a adequação
de meios a determinados fins avaliados e perseguidos — que proporcio-
nou um desenvolvimento inusitado em comparação com o Oriente. Tal
mentalidade atravessou vários campos da atividade humana, como a
ciência, a arte, a jurisprudência, e o Estado e, sobretudo, deu origem a
uma ordem econômica baseada na acumulação material de bens: A éti-
ca protestante e o espírito do capitalismo traz esta demonstração. A mudança
teve traços inicialmente religiosos através do protestantismo, mas pro-
gressivamente os valores deste ganharam um caráter laico e se expan-
diram para as demais esferas da vida social. Karl Loewith, com muita
propriedade, adiciona que “racionalização significa o caráter funda-
mental do estilo de vida ocidental”, ou ainda, uma “atitude frente à
vida” (LOEWITH, 1978, p. 151).
O “fato econômico” do capitalismo foi assim apreciado como resultado
de atos humanos carregados de significado “interior”, em vez de um
desenrolar “natural” e “objetivo” da satisfação das necessidades huma-
nas. Realizou-se, então, uma adequação de meios a fins de espantosa
expressão material, cuja motivação inicial foi a elevação do espírito, a
salvação da alma e a busca de uma moral virtuosa. O processo de ra-
cionalização proporcionou a “ampliação dos setores sociais submetidos
a padrões de decisão racional” (HABERMAS, 1980, p. 313) e trouxe o
“desencantamento do mundo” através da institucionalização do avan-
ço científico e técnico. Wolfgang Schluchter (1979, p. 14) permite uma
boa discriminação desse material histórico e teórico ao definir três usos
para os conceitos de racionalismo e de racionalização, que são o racionalismo

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científico-tecnológico, referido à capacidade de controlar o mundo atra-


vés do cálculo; o racionalismo ético-metafísico, que diz respeito à sistemati-
zação de padrões de sentido e que atende à “compulsão interior” dos
indivíduos a atribuírem sentido às coisas e, finalmente, o racionalismo
prático, que é associado à consolidação de um modo de vida como con-
seqüência de configurações de sentidos e de interesses, isto é, como
resultado das dimensões material e espiritual da vida social.
Ao cálculo, à previsão e à busca dos meios adequados à consecução de
fins avaliados e perseguidos — a atitude mental própria do processo
de racionalização — deve-se creditar o recuo dos valores supremos e
sublimes na vida pública, como está dito em A ciência como vocação. O
processo de racionalização resultara também em sacrifício de apelos
muito caros à espiritualidade humana. Weber acreditava, em certa
medida, na utilização da ciência (“fragmento mais importante do pro-
cesso de intelectualização”) para ajudar os homens a terem clareza do
sentido último de seus atos. Esta, porém, não poderia fornecer o senti-
do do mundo nem se constituir em campo privilegiado da conservação
dos valores mais altos. No mundo desencantado, essa possibilidade se
reduziria ao esforço (“heróico”) de indivíduos auto-responsáveis, de-
tentores enfraquecidos do balaio do sublime e da liberdade e de valo-
res refugiados na “transcendência da vida mística ou na fraternidade
das relações diretas e recíprocas entre indivíduos isolados”.

D ESAMPARO
O homem moderno torna-se servil ao se submeter aos poderes impes-
soais das grandes organizações, que zelam pela administração e pela
manutenção da ordem. Ele se transforma em order addict quando an-
seia pela “subsistência” segura e tradicional oferecida institucionalmente
pela centralização das decisões nas grandes burocracias. Essa centrali-
zação carrega as ameaças à liberdade pela expansão de poderes
disciplinadores e ameniza o mal-estar decorrente da ausência do con-
forto religioso pelo desenvolvimento da razão e da ciência. Isso fez de
Weber um reformista liberal pessimista, cético quanto ao “progresso”.
Bendix procura descer a detalhes nessas imagens:

É horrível pensar que o mundo pudesse um dia estar repleto de nada


mais que pequenas engrenagens, homúnculos apegando-se a peque-
nos trabalhos e lutando por outros maiores — um estado de coisas que
ainda há de ser visto, tal como nos registros egípcios, a desempenhar
um papel cada vez mais amplo no espírito de nosso sistema administra-

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tivo atual e, especialmente, no de seus herdeiros, os estudantes. Esta


paixão pela burocracia [...] é suficiente para levar ao desespero. É como
se na política [...] estivéssemos por nos transformar deliberadamente
em homens que necessitam de “ordem”, e nada mais que ordem, que
se tornam nervosos e covardes se, por um momento, essa ordem titu-
beia, e impotentes se colocados fora de uma tal incorporação a ela.
Um mundo habitado só por esse tipo de homens: é no sentido de tal
evolução que já nos estamos movendo, e a grande pergunta, portanto,
não é a de como podemos promovê-la e acelerá-la, mas a de o que
podemos opor a essa maquinaria de maneira a manter uma parte da
humanidade livre desta destruição da alma, deste controle supremo
do estilo de vida burocrático (BENDIX, 1986, p. 355).
Max Weber acreditava que esse mundo centralizado e burocrático en-
contraria o totalitarismo por meio do controle governamental sobre
cada fábrica, repartição ou organismo militar. Loewith completa a in-
terpretação quando afirma que “a difundida organização racional das
condições de vida resulta na regra irracional e autocrática da organiza-
ção”. Outros traços da iron cage foram definidos por Loewith:

Este oposto, entretanto, marca toda a cultura moderna: seus


establishments, instituições e empreendimentos são racionalizados de tal
maneira que essas estruturas, originalmente preparadas pelo homem,
o envolvem e determinam como uma “prisão” (LOEWITH, 1978,
p. 155).
No sentido oposto, a liberdade poderia ser preservada pelo esforço de
homens que não se deixariam comandar como carneiros. Frente aos
infortúnios gerados pela onipresença da organização, Max Weber crê
em um indivíduo virtuoso sem o recurso aos atributos de transcendência.
Seria um “herói solitário” que transitaria armado apenas de sua auto-
responsabilidade, que lhe restituiria a “alma” na terra estranha do cál-
culo e dos order addicts. A auto-responsabilidade é definida por Weber
como subjetividade racional que se nutre da paixão na própria ativida-
de temporal e de uma certa confiança nesse destino, que tem no seu
horizonte a derrubada sucessiva de convicções estabelecidas. Weber deu
o nome de “individualismo situado” a essa condição, à qual Loewith
atribui a possibilidade de liberdade através de “descrenças positivas”
(LOEWITH, 1978, p. 159).
Apesar da inevitável “compartimentalização da alma”, o indivíduo auto-
responsável procura preservar-se como ser inteiro por atos isolados

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nas instituições, establishments e empreendimentos: caminho difícil, tan-


to pela necessidade psicológica e existencial de salvação e de união com
o divino (ALEXANDER, 1985, p. 126) quanto pela destruição
ininterrupta das convicções tradicionais. Deixado à própria sorte, esse
indivíduo buscará a liberdade em um ambiente que favorece a insegu-
rança — um “pessimismo heróico” cuja formulação Arthur Mitzman
credita ao conflito destrutivo de Max Weber com seu pai e aos dilemas
culturais da nova geração de intelectuais na Alemanha fin de siècle.
No plano institucional, o mesmo poderia ser observado na tensão en-
tre os parlamentos e as grandes burocracias ou, dito de outra maneira,
na defesa das “instituições democráticas” (GERTH; MILLS, 1974, p.
91) perante as “constelações materiais”. No mesmo sentido, Raymond
Aron é particularmente atento ao “existencialismo” de Max Weber e
enfatiza, na análise da política, o conflito entre as emoções associadas
ao carisma e ao dom da graça contra a sublimação racional atribuída ao
reinado anônimo dos burocratas (ARON, 1987, p. 525).
A solidão, o isolamento e a compartimentalização de alma do homem
moderno não são rompidos ou atenuados pela suposta unificação dos
indivíduos por condições de inserção comum na economia e na divisão
do trabalho. À subjetividade oprimida no mundo desencantado e bu-
rocrático não restaria o consolo da consciência de classe como passo
inicial da superação da alienação e do mal-estar; trata-se de uma fragi-
lidade que não conta com o manto de regularidades históricas que ga-
rantiriam a distensão dos espíritos e a emancipação. O fogo interior do
desamparo de alma que arde em cada indivíduo responsável não se
dissipa na participação em movimentos coletivos ou na socialização dos
meios de produção. O real, supostamente “estruturado”, não contém
em germe, por força de regularidades históricas, as benéficas e apazi-
guadoras formas futuras de vida. Portanto, a liberdade humana signi-
fica uma errância sem garantias e um desafio permanente à ação e à
invenção.
Não se devem entender esses argumentos como uma desistência da
política e das lutas sociais. Weber quis enfatizar os obstáculos derivados
do processo de racionalização ocidental, que preferiu denominar de
“culturais”, como limite às projeções de um mundo finalmente serena-
do pelo inevitável movimento da História.
Weber analisou as possibilidades e perigos de uma modernidade lançada
impetuosamente na direção de uma sociedade racionalmente planeja-
da. A solidão polar de heróis solitários foi apreciada como conseqüên-

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cia do desencantamento do mundo e da erosão de valores remetidos à


transcendência, pois esse era um mundo que dissipava a salvação e
quiçá a revolução. Alguma distinção merece ser feita quanto a esse pon-
to: os protestantes pautavam-se pelo adiamento da satisfação em vista
da recompensa maior através da salvação; posteriormente, com o ad-
vento do industrialismo, os proletários agregaram-se em busca da eman-
cipação. No entanto, seus efeitos não-pretendidos como o ascetismo lei-
go (que consolidou uma ética do trabalho no capitalismo) e a ditadura
dos burocratas (que conferiu certos rumos à construção do socialismo)
estabeleceram, independentemente da intencionalidade dos atores, con-
figurações institucionais que escapavam às motivações dos fins últimos
mentalizados e perseguidos. Pela observação desses fenômenos, Weber
duvidava que a solidão e a trabalhosa auto-responsabilidade dos indi-
víduos poderiam ser sanadas por uma transferência necessária e posi-
tiva das agruras a instituições auto-atribuídas como promotoras do bem-
estar social.
Por esses antecedentes, a reflexão de Weber fornece alguns esclareci-
mentos para a caracterização da subjetividade pós-moderna. O mundo
fluido da pós-modernidade, ou a “modernidade líquida” (na expres-
são de Bauman), não favorece a agregação em torno de demandas co-
letivas, porque as instituições são sucessivamente reconstruídas e as
tarefas de auto-identificação são concentradas, sem quaisquer fatores
atenuantes, nos indivíduos. E mais: o espaço público é invadido por
narrativas em que os indivíduos arcam inteiramente pelos seus desti-
nos e, por conseqüência, sentem-se culpados por precariedades cuja
origem não está no conjunto de escolhas ou possibilidades meramente
pessoais. No esgarçamento dos laços com o outro, as pessoas passivas
são tomadas pela culpa e pela sensação de fracasso em uma sociedade
que se quer altamente dinâmica. As experiências mais profundas de
confiança mútua – que só se consolidam com o tempo – são quebradas
quando as instituições se desfazem com extraordinária rapidez ou es-
tão sendo continuamente reprojetadas. Richard Sennett, em A corrosão
do caráter, aponta que as redes institucionais do capitalismo contempo-
râneo se caracterizam pela “força dos laços fracos”.
A vivência do “eterno presente” como Zeitgeist (espírito do tempo), fe-
nômeno que desperta boa parte da argumentação de Fredric Jameson
em Pós-modernismo – a lógica cultural do capitalismo tardio, atesta a derroca-
da de narrativas que encadeiam o passado, o presente e o futuro. Em
decorrência, quem se orienta pelo “agora já” não se vê motivado a
projetar o futuro a partir de causas comuns. No “vir a ser” permanen-

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te, o presente já nasce obsoleto (carecendo de sentido e de valor), o que


contribui para que os indivíduos não se agreguem coletivamente.
No ascetismo leigo, a abstinência robustecia o espírito na espera do su-
posto gozo futuro (que evidentemente nunca se realizava) e fornecia
referências duradouras para a auto-identificação. Sem qualquer nos-
talgia do passado – porque, afinal, o custo da repressão ao prazer era
altíssimo e voltaríamos à “velha mixórdia”, como dizia Karl Marx –, o
“agora, já” é uma derivação das incertezas, do desaparecimento dos
empregos e da vivência da falta de garantias institucionais pelo
desmantelamento das redes de proteção social. Assim, os indivíduos
sentem que todo esforço dirigido ao futuro pode ser vão; não há por
que esperar. Não atribuem virtude moral no adiamento da satisfação e
a disposição íntima acaba por se pautar pela imediatidade.

ABSTRACT
The article encloses an investigation on the contours of modern subjectivity
in Max Weber’s work, following some aspects approached by this German
thinker around the “disenchanted world” and the “iron cage” of the wes-
tern’s rationalization process. It discusses the reverberations of the mundane
ethics derived from the protestantism expansion and, according to the satis-
faction postponement theme, it updates some of Weber’s ideas on the cha-
racterization of the post-modern subjectivity.
Keywords: subjectivity; modernity; post-modernity; Max Weber.

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M A R I E A N N E N A J M C H A L I T A *

A CONSTRUÇÃO SOCIAL DOS ASSALARIADOS


NA CITRICULTURA PAULISTA **

A origem e as transformações sociais do trabalhador


temporário na citricultura no estado de São Paulo –
força de trabalho mobilizada para a produção final de
suco de laranja – são analisadas como processos suces-
sivos de classificação e reclassificação pelos produtores
familiares de laranja em torno da definição de traba-
lhador rural. Estes processos são parte de suas
representações sociais, indicando lutas setoriais
e orientações institucionais de defesa dos inte-
resses.
Palavras-chave: citricultura; trabalhadores assalaria-
dos; lutas setoriais; instituições de defesa dos interes-
ses.

*
Doutora pelo Programa de
Pós-Graduação em Sociolo-
gia da Universidade Fede-
ral do Rio Grande do Sul.
**
Parte dessas reflexões está
presente em CHALITA,
Marie Anne Najm. Cultura,
política e agricultura familiar:
a produção do empresário
rural como referencial das
estratégias de desenvolvi-
mento da citricultura
paulista. 2002. Tese (Dou-
torado em Sociologia) –
Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, Porto
Alegre, 2004. Agradeço os
comentários à versão origi-
nal realizados por Delma
Pessanha Neves.
138

A análise da origem das transformações de um determinado grupo so-


cial pode ser empreendida a partir dos processos de classificação e
reclassificação que se instauram na produção de identidades, as quais
referenciam e estruturam um determinado campo social. Os conjuntos
de aproximações, oposições ou antagonismos nas lutas existentes no
campo e a institucionalização dos diversos interesses presentes revelam
de que forma aqueles processos, para além da materialidade das rela-
ções sociais, delimitam a posição reivindicada por um grupo social
diante da posição relativamente ocupada por outro grupo
(BOLTANSKI, 1982; BOURDIEU, 2000).
O objetivo deste artigo é traçar algumas considerações sobre a origem
e as transformações dos trabalhadores assalariados na citricultura
paulista, a partir do processo de classificação e reclassificação do traba-
lhador rural, principalmente pelos produtores familiares de laranja, que
se integram à agroindústria processadora. Estas categorias se expri-
mem nas trajetórias sociais e nas formas institucionais de representa-
ção política.

E MERGÊNCIA DOS PRODUTORES FAMILIARES E


DO TRABALHADOR TEMPORÁRIO

A desorganização progressiva da economia cafeeira paulista, nos anos


30-50, caracterizou-se: a) pela saída da mão-de-obra agrícola discipli-
nada das regiões produtoras; b) pela contestação do poder pessoal e
burocratizado da oligarquia cafeeira pela classe média, pelos trabalha-
dores industriais urbanos e pelo trabalhador agrícola (colono do café);
c) pela acentuada queda do valor das terras; e d) pelo endividamento
dos produtores junto ao sistema financeiro, devido às dificuldades de
comercialização da produção de café.
Alguns fazendeiros reuniram o capital necessário para saldar as dívi-
das junto aos Bancos e ao Estado, vendendo parte de suas fazendas
hipotecadas em lotes ou cedendo-as aos credores (HOLLOWAY, 1984).
A alteração significativa na estrutura fundiária das regiões produtoras
de café fez emergir a pequena propriedade familiar, seja pela divisão
das propriedades e partilhas de heranças das grandes propriedades,
seja pela venda de parcelas de terra ou pelo reembolso ou troca de
dívidas salariais para com os colonos por lotes de terra, que, dessa
forma, tornam-se proprietários (PRADO, 1983).
Na região nordeste do Estado, aqueles que sobreviveram à crise apro-
veitaram a conjuntura para aumentar seu patrimônio, comprando ter-
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ras diretamente dos Bancos. Normalmente associadas à ampliação da


criação de gado, ao longo do Programa de Erradicação do Café, as gran-
des propriedades diversificaram-se na direção de culturas temporárias
(cereais, mandioca ou algodão), principalmente através da implantação
da parceria e do arrendamento (ex-colonos), imobilizando a força de
trabalho de forma mais rentável (uma vez que dispensava o pagamento
de salários) e revalorizando suas terras. Não raro, o movimento posteri-
or seria a reconversão da totalidade das terras à pecuária, e, conseqüen-
temente, a expulsão dos meeiros e dos arrendatários (BRAY, 1974, p.
21-22).
A citricultura possibilitou a valorização definitiva da atividade rural na
década de 1960, porém, o sistema de produção adotado anteriormente
expressava seu caráter especulativo inicial: ao lado da manutenção da
pecuária, os grandes proprietários permitiam aos meeiros cultivar al-
gumas culturas sazonais entre as fileiras remanescentes de café ou en-
tre as fileiras das jovens laranjeiras, atenuando, assim, antes da fase
plenamente produtiva das plantações de laranja, os riscos de um mer-
cado ainda muito instável. Esta imobilização fundiária (reforçada pela
retenção temporária da mão-de-obra na propriedade) permitiu-lhes
ter acesso aos créditos subsidiados das novas políticas agrícolas fede-
rais, a partir de 1965.
A reconversão da cultura do café para a da laranja foi mais lenta no
caso da agricultura familiar, uma vez que esta enfrentava restrições na
sua base material e financeira de produção, sob o peso de dívidas com
Bancos ou diretamente com antigos grandes proprietários, dívidas
advindas recorrentemente da compra da terra, o que dificultava a ado-
ção plena da nova organização de trabalho, baseada no trabalho assala-
riado que a citricultura ia impondo. As terras adquiridas encontravam-
se normalmente plantadas com cafeeiros ou eram de qualidade ruim.
Priorizando a sobrevivência e a estabilidade financeira mínima para a
família, os produtores familiares continuaram a priorizar o plantio de
gêneros alimentícios entre os pés de café ou de laranja.
Após a implantação do sistema de comercialização, baseado na compra
das frutas durante a floração e os altos ganhos que esta compra possibi-
litava, que foi adotado por grandes comerciantes de frutas frescas e
amplamente pelas agroindústrias plenamente estabelecidas nos anos
70, os produtores familiares aderiram mais rapidamente à nova cultu-
ra e substituíram mais rapidamente o cafezal, as florestas e os pastos
por laranjeiras. A seleção social afetou, então, principalmente os pe-
quenos proprietários e os não-proprietários, a partir do momento em
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140

que a citricultura tornou-se dominante. Os primeiros pomares levavam


quatro anos para entrar em fase produtiva, demandavam procedimen-
tos técnicos e, portanto, capital de investimento.
Os trabalhadores temporários na citricultura (meeiros e moradores
expulsos das propriedades) deslocaram-se para a periferia das cidades
mais próximas ou emigraram para as novas regiões de café do oeste ou
para os grandes centros urbanos. Estes trabalhadores têm também, como
origem social, a imigração dos camaradas de outros municípios ou mes-
mo de outros estados (principalmente Bahia e Minas Gerais), que se
incorporam ao mercado de trabalho como bóias-frias, durante os anos
50-70. Nos anos 80 ainda havia um pequeno fluxo de imigração de
chefes de famílias na fase da colheita da laranja, em busca de uma ren-
da complementar à sua agricultura de subsistência, chegando de cami-
nhão de regiões cafeeiras em declínio ou de agricultura muito pobre.

AS ALTERAÇÕES NA ORGANIZAÇÃO E
NA DIVISÃO DO TRABALHO

A atual organização e divisão do trabalho na citricultura caracterizam-


se pela sazonalidade determinada pelas flutuações no ritmo e na inten-
sidade da demanda de trabalho, durante o período da safra e da
entressafra. O período da entressafra ampliou-se com a maior
homogeneização das variedades plantadas, possibilitando, em grande
escala, o limpa pé (colheita do conjunto do pomar em uma única vez, ao
longo do ano-safra); e também com as mudanças nas demandas pontuais
de mão-de-obra, durante o ciclo produtivo e de acordo com as
especificidades operacionais dos tratamentos culturais.
Nesta dinâmica, convém também considerar tanto as mudanças nas
relações entre as pequenas/médias propriedades (base social principal
da produção citrícola) e a agroindústria processadora quanto as mu-
danças na divisão do trabalho estabelecida entre produtores e traba-
lhadores assalariados, com efeitos nos modos de produção agrícola,
conforme as exigências de internacionalização do mercado de suco
concentrado e congelado.

OS ASSALARIADOS DA COLHEITA DA LARANJA

A colheita das variedades principais (pêra, valência e natal) se estende


de março a dezembro. A duração da entressafra pode ser superior a
cinco meses (BACCARIN; GEBARA, 1986, p. 88), de acordo com as

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141

condições meteorológicas. Em média, quando os contratos de safra com


os trabalhadores terminam, apenas 30% da força de trabalho é mantida
para a colheita da temporona. As irregularidades na demanda das fru-
tas pela agroindústria e o baixo rendimento dos pomares agravam a
situação de desemprego e a remuneração dos colhedores, que recebem
por tarefa e por produtividade.
A incorporação do trabalhador “livre” no mercado de trabalho, entre
os anos 60 e 70, foi feita por intermédio dos empreiteiros (chamados
gatos ou turmeiros), agentes autônomos de intermediação entre os pro-
dutores (ou grandes comerciantes de frutas frescas ou proprietários de
terra) e trabalhadores. Eles realizavam o recrutamento e o transporte
dos trabalhadores, o controle da execução da colheita, o gerenciamento
e o pagamento dos trabalhadores sem contrato, portanto, sem o ônus
dos encargos trabalhistas, possibilitando uma maior redução dos cus-
tos financeiros diretos com a força de trabalho.
Como o empreiteiro precisava manter uma remuneração “razoável”
para seus trabalhadores, sob o risco de perder a capacidade de forma-
ção e controle de sua turma, apesar daquele apropriar-se de uma gran-
de comissão sobre os salários (10 a 30%), em tempos de urgência na
colheita ou de grande demanda de frutas pela agroindústria, procura-
va aumentar os ganhos dos trabalhadores junto aos produtores. Em
algumas situações, a rapidez da colheita em várias propriedades, ao
mesmo tempo, era a garantia de uma venda de frutas de boa qualida-
de, sem perdas na produção, provocadas por chuvas ou pela saturação
da indústria, rapidez muitas vezes assegurada através do pagamento
de “propina” dos produtores aos empreiteiros.
A grande autonomia do empreiteiro em relação à organização do mer-
cado de trabalho contribuiu com a indústria, em um momento em que
esta estava estruturando seu mercado cativo de fornecedores da maté-
ria-prima, pois a necessidade de manter uma entrada fixa e regular de
laranjas não era ainda uma questão de relevância ante a grande oferta
de frutas e poucas agroindústrias.
As Empreiteiras de Mão-de-Obra criadas nos anos 80 representaram a
institucionalização da intermediação feita anteriormente pelo gato. Es-
sas empreiteiras tinham três funções principais: a seleção de empreitei-
ros autônomos (que deveriam dispor de caminhão para o transporte
da turma e assegurar o pagamento semanal dos colhedores), a seleção
inicial dos trabalhadores e o controle do processo de trabalho nos po-
mares. O trabalhador continuou sem ter vínculo empregatício direto,

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142

seja com os produtores, seja com a indústria. Estas empreiteiras, no


entanto, representavam uma extensão informal da agroindústria na
organização do trabalho (os recursos financeiros e o pessoal adminis-
trativo pertenciam à indústria), ao mesmo tempo em que resguarda-
vam esta última da responsabilidade em casos de acidentes de trans-
porte e de trabalho. As empreiteiras repassavam aos produtores e às
indústrias os encargos sociais pagos por elas a título da determinação
de um preço pelo “serviço prestado”. Esta constatação conduz Borba
(1984, p. 70) a afirmar que elas aumentaram os custos da força de
trabalho para os clientes. Normalmente, na entressafra, os empreitei-
ros eram liberados para que trabalhassem autonomamente, organizan-
do frentes de trabalho para serviços pontuais de outra natureza (cultu-
ras temporárias ou construção civil). Estas alternativas estavam, po-
rém, longe de absorver toda a força de trabalho dispensada pela indús-
tria, ao término da colheita.
No final dos anos 80, surgem as Empreiteiras Agrícolas, juridicamente
dissociadas da indústria, o que possibilita a redução do pagamento de
vários impostos e encargos sociais, uma vez que declaradas empresas
rurais. Elas assumem formalmente os custos globais da colheita. O re-
crutamento dos trabalhadores era feito por empreiteiros, que passam a
ser funcionários da indústria, atenuando a intensa e a personalizada
exploração do empreiteiro autônomo em relação ao trabalhador, bem
como as relações de favor que se estabeleciam entre trabalhadores e
empreiteiros. Contratos de trabalho são assinados diretamente entre
os trabalhadores e as indústrias, substituindo a informalidade do vín-
culo empregatício por vínculo de direito. A remuneração dos colhedores
depende de sua produtividade de trabalho, isto é, número de
“caixinhas” de laranjas colhidas na semana, cada uma correspondendo
a aproximadamente 27kg de laranjas, permitindo a extensão e a inten-
sificação da jornada de trabalho.
Alguns empreiteiros autônomos continuaram ativos, tanto para res-
ponder às eventuais necessidades da indústria, de aceleração no ritmo
e velocidade da colheita da fruta, quanto para o recrutamento de tra-
balhadores por tarefa, diretamente sob a demanda dos produtores (neste
último caso, sem contratos de trabalho).
Independentemente da conquista dos direitos mínimos garantidos pe-
los contratos de trabalho, sua formalização permitiu tanto a alocação
da força de trabalho para cada indústria, quanto a redução dos custos
de transporte do trabalhador, uma vez que estabilizou as turmas de
colheita e, progressivamente, a possibilidade de intervir na formação e

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seleção de turmas mais produtivas na colheita. Permitiu ainda a fiscali-


zação da colheita das frutas, do ritmo e da intensidade de trabalho; a
adoção de critérios homogêneos de remuneração para empreiteiros e
trabalhadores e, portanto, o controle dos níveis salariais destinados ao
conjunto da força de trabalho e de seu impacto econômico no custo da
produção de suco; a definição das necessidades reais de mão-de-obra
em cada safra, estabilizando a entrega de frutas para as operações de
transformação de acordo com a cotação de suco no mercado internacio-
nal (a fruta paga é hoje apenas aquela efetivamente pesada nas balan-
ças da indústria). A introdução do caráter contratual do trabalho entre
os colhedores e as indústrias (e o método de remuneração do colhedor
pela produtividade de trabalho) certamente marcou uma evolução muito
importante nas relações entre o capital industrial e o agrícola. Isto por-
que estas mudanças ocorreram em um momento em que a indústria
passou a primar pela organização e regularização da oferta das frutas.
O alcance deste patamar se deu através de um equilíbrio entre sua
própria produção de laranjas e as cotas de laranja compradas dos pro-
dutores. Assim, controlavam o ritmo da colheita obtendo um equilíbrio
maior entre o custo global de produção do suco e a participação relati-
va do custo de mão-de-obra. Eles também obtiveram correspondência
no mercado internacional entre a compra das frutas e os preços do
suco. A ameaça aos níveis históricos de remuneração alcançada por
esses agentes produtivos validou a racionalidade das estratégias
descritas.
Dessa forma, a organização do trabalho, no tempo, vai modificar-se,
não apenas como resultado das reivindicações econômicas e das lutas
por direitos sociais e políticos empreendidas pelos trabalhadores, mas
também como resultado dos rearranjos estruturais e dinâmicos na or-
ganização da produção e da comercialização considerados pela
agroindústria como fundamentais para sua reprodução e expansão no
mercado internacional de suco de laranja e para seu crescente controle
da taxa de lucro global do setor e dos agentes que o integram: de uma
situação em que o produtor controlava totalmente a etapa da colheita,
contratando os serviços de um empreiteiro autônomo e levando pessoal-
mente as frutas para a indústria, esta passa a impor cotas de colheita ou
de entrega das frutas.
Com a eliminação do contrato-padrão de participação (comercialização
das frutas),1 em 1995, os produtores tiveram que reassumir as ativida-
des de organização do trabalho da colheita, utilizando-se da prestação
de serviços de Cooperativas de Mão-de-Obra. Para não haver uma grande

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144

elevação dos custos da colheita e do transporte das frutas, os gestores


das indústrias estimularam a contratação de mão-de-obra nos poma-
res, colocando pessoas de confiança de suas administrações na gerên-
cia de algumas destas cooperativas. Esta terceirização trouxe efetiva
redução de custos, devido à eliminação da fiscalização e de problemas
trabalhistas; à supressão de vínculo empregatício com o tomador de
mão-de-obra; à desobrigação das responsabilidades trabalhistas e sociais;
à maior tranqüilidade na execução de trabalhos agrícolas (PAULILLO,
2000). Não apenas a figura do gato retornou, como eliminou o contrato
safrista e muitos dos direitos trabalhistas já conquistados.2 Paralelamente
às Cooperativas de Mão-de-Obra, os denominados sindicatos dos trabalhado-
res avulsos surgiram mais recentemente como outra forma alternativa
de arregimentação e organização da maioria dos trabalhadores (não
legalizada), porém sem garantia real de qualquer vínculo contratual,
acabou favorecendo a crescente precarização das relações de trabalho
na citricultura e um retrocesso dos direitos trabalhistas implantados na
década de 1980.
Inúmeras ações trabalhistas tiveram causa ganha (PAULILLO, 2000,
p. 14), o que acabou cerceando a atividade das cooperativas e influen-
ciando, a partir de 1999, a formação de condomínios de propriedades
citrícolas (forma associativa comercial entre produtores). O objetivo dos
condomínios é a organização e a constituição de uma figura jurídica
nova, que contrata de forma coletiva, e em seu nome, os trabalhadores
pelo contrato de safra ou contrato permanente de trabalho (confir-
mando a tendência de estabilização de turmas mais produtivas ou qua-
lificadas). Estes trabalhadores são alocados aos produtores de acordo
com suas necessidades (plantio, tratos culturais e colheita).
Através dessas modificações nas formas de contratação e pagamento da
força de trabalho, o processo de seleção social dos trabalhadores vai
depender da capacidade de o produtor isolado mobilizar fatores pes-
soais de ordem cultural, baseados na proximidade local, na parceria,
no clientelismo e na reciprocidade de interesses e necessidades de ou-
tros produtores.

G ESTÃO DO PROCESSO PRODUTIVO E COMERCIAL

Ao longo dos anos 60 e 80 os produtores familiares vão incorporar os


ditames da organização e divisão de trabalho, diminuindo seu
envolvimento direto e de membros da família no labor agrícola, com
deslocamentos importantes na sua posição em relação ao sistema pro-

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dutivo, que tende a se concentrar nas atividades de gestão do processo


produtivo e comercial. A composição feita entre trabalho familiar, tra-
balho assalariado por tarefa (ou por diária) e trabalho assalariado per-
manente depende principalmente do tamanho das propriedades, da
destinação das frutas (industrial e mercado interno ou externo de fru-
tas frescas), do rendimento dos pomares e do período necessário à co-
lheita das frutas.
A organização e a divisão do trabalho adotadas nas propriedades de-
terminam a importância das atividades relativas à gestão administrati-
va e operacional do sistema produtivo e comercial, ao encargo do pro-
dutor. Elas eram fundamentais devido à complexidade comercial, às
características agronômicas da cultura (perecibilidade das frutas) e ao
ambiente altamente competitivo. As seguintes situações podem ser en-
contradas:
a) propriedades estatutariamente reconhecidas pela lei como Empre-
sas Agropecuárias, as quais podem ter atribuídos créditos especiais e
taxas preferenciais para o pagamento de impostos. Normalmente
são grandes propriedades com infra-estrutura administrativa
informatizada, com serviços privados de extensão rural (cooperati-
vas de trabalho para agrônomos) e com uma divisão interna de fun-
ções administrativas, técnicas, financeiras, contábeis e operacionais
da propriedade, constituindo complexas organizações de trabalho.
Com relação à mão-de-obra, dispõem de trabalhadores residentes
(funcionários da empresa), qualificando-os e enquadrando-os pro-
fissionalmente, ao criarem novas malhas salariais (administradores
por seção, tratorista, motorista, contador de pragas, enxertador,
mecânico, contador, auxiliar de escritório, mecânico, agrônomo,
digitador etc.) (SILVA; PINTO, 1990, p. 102-103). Algumas dispõem
de uma organização administrativa, financeira e de transporte que
lhes permite, inclusive, contratar equipes de colheita para comple-
mentar a parte da atividade administrada pela indústria. Com esses
recursos, garantem o escoamento mais rápido da totalidade da pro-
dução, evitando a perda de frutas e a contaminação dos pomares
pela troca constante de turmas e caminhões. Habitualmente, os pro-
prietários são absenteístas, morando fora do município, podendo
manter outras atividades profissionais e outras opções de investi-
mento, apenas supervisionando a gestão da produção;
b) propriedades correspondentes principalmente às pequenas e médi-
as unidades produtivas. O produtor tem origem urbana. A gestão é
exercida de forma terceirizada, por escritórios privados de contabi-

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lidade, incidindo sobre toda a movimentação financeira, como o


pagamento de salários e encargos sociais dos trabalhadores residen-
tes e por tarefa, acompanhamentos dos pagamentos da produção
pela agroindústria, ao longo do ano-safra. Os proprietários são ab-
senteístas, e moram no centro urbano das cidades onde se localiza a
propriedade. Podem exercer outras atividades (profissionais libe-
rais ou comerciantes);
c) propriedade familiar: de trajetória rural, a família exerce pessoal-
mente a gestão e a execução de todo o trabalho que demanda uso
de equipamentos mais caros ou certa qualificação. Garante-se assim
a economia geral da propriedade, havendo uma maior intensidade
e extensão da jornada de trabalho. Os tratamentos culturais, ao longo
do ciclo produtivo, são assumidos pela família. Porém, essa partici-
pação pode diminuir, ao longo do tempo, em favor dos trabalhado-
res temporários ou residentes.
A composição feita entre a quantidade de trabalho dos residentes, ou
mesmo dos trabalhadores por tarefa, e a mão-de-obra familiar guarda
uma relação direta com as possibilidades concretas de permanência
dos membros da família na propriedade (principalmente a presença
de filhos em fase inicial de escolarização). Depende também do paga-
mento e oferta de trabalhadores (disciplinados e com certa especializa-
ção), da presença de um trabalhador de confiança (caseiro), de filho
mais velho que resida na propriedade, da formação universitária dos
filhos em administração rural ou agronomia e, por fim, das escolhas
profissionais dos mesmos fora da agricultura. Guarda ainda uma rela-
ção direta com a combinação das atividades produtivas e o tipo de ope-
rações realizadas, com a relação entre o preço dos produtos químicos e
do maquinário e com o valor do trabalho necessário, mas, principal-
mente, com o porte econômico da propriedade, incluído aí o grau de
modernização da base técnica de produção.
As atividades de preparação do solo e os tratamentos culturais são, em
geral, mecanizados. A carpa (limpeza do pomar com a enxada, de três
a quatro vezes por ano, para a retirada das ervas daninhas), a remoção
dos galhos mortos ou velhos, o plantio de mudas, a coroação do pé, a
execução das covas, a borbulha (ou enxertia), a desbrota ou poda (reti-
rada dos brotos dos porta-enxertos, de quatro em quatro meses, para
que os ramos nasçam apenas do enxerto) e a manutenção das fileiras e
dos pomares são totalmente dependentes do trabalho manual (para
não haver danos às raízes das árvores e quebra de galhos), mas princi-

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palmente em função dos altos investimentos feitos antes da fase produ-


tiva das árvores, o que demora, em média, quatro anos para ocorrer.
O trabalho familiar concentra-se na operação de máquinas e equipa-
mentos agrícolas, assim como aplicações de adubo ou de substâncias
químicas. Os trabalhadores temporários cobrem outras necessidades
pontuais. A produtividade do trabalho é central para que estes traba-
lhadores aumentem seus ganhos semanais e possam oferecer-se rapi-
damente em outras propriedades. Normalmente sem contratos de tra-
balho, com o aumento do grau de tecnologia das propriedades, a eles
são destinados serviços que não exigem especialização (capina manual
ou poda), principalmente quando os produtores podem contar ainda
com o trabalho dos membros de sua família ou de trabalhadores resi-
dentes (visando também à integridade dos equipamentos e à maior
economia). Contratados por empreiteiros autônomos ou diretamente
pelos produtores, os quais são responsáveis pela organização, controle
e remuneração desta atividade, realizada preferencialmente por tare-
fa, eles são necessários especialmente para os produtores que não têm
condições financeiras para dispor de membros da família ou trabalhado-
res residentes. Os encargos trabalhistas com estes últimos chegam a
alcançar de 24 a 50% das despesas totais das propriedades, dada
a obrigatoriedade do registro em carteira de trabalho e do pagamento
dos encargos sociais (BORBA, 1984, p. 124).
A formalização dos contratos com os trabalhadores temporários vai
depender da qualificação e da produtividade das equipes (ou mesmo
do trabalhador individual). Com as novas requisições tecnológicas no
sistema produtivo, a disputa em torno do trabalhador especializado
parece estar favorecendo a retenção de residentes nas propriedades
dos produtores, que podem oferecer salários mais atraentes e investir,
a longo prazo, na sua formação. Trabalhadores antes registrados
como braçais, isto é, prestadores de “serviços gerais”, hoje o são por
outras categorizações profissionais (tratoristas, administradores,
aplicadores de produtos químicos e motoristas). A formação desses tra-
balhadores especializados e residentes é assegurada pelas Casas da
Agricultura, Estações Experimentais, pela CATI (Coordenação de As-
sistência Técnica) ou pelas concessionárias de máquinas agrícolas. Uni-
versidades, cooperativas, indústrias e outras instituições promovem
cursos não apenas para proprietários, mas também para os trabalha-
dores que já tenham alguma formação técnica. O aspecto estratégico
da utilização de mão-de-obra mais qualificada é evidente: ela represen-

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ta uma garantia da produtividade e longevidade dos pomares, além de


responder mais rapidamente às novas requisições tecnológicas. Além
disso, as turmas menos qualificadas estão sujeitas à grande rotatividade
– é o caso da maioria delas.

C LASSIFICAÇÃO E DIFERENCIAÇÃO DOS TRABALHADORES


ASSALARIADOS

A problemática relativa à mão-de-obra agrícola, que constitui um dos


elementos centrais do funcionamento das unidades produtivas, está
diretamente ligada à noção de trabalho, que mudou muito ao longo da
trajetória social dos produtores. Em outras palavras, a compreensão
das alterações na organização do trabalho na citricultura supõe tam-
bém a análise das representações sociais dos produtores familiares so-
bre a origem e as transformações do trabalho. Elas traduzem a impor-
tância acordada nos processos de expropriação e aquisição da proprie-
dade da terra e de integração ao mercado, isto é, a gênese das diferen-
ciações sociais atuais, no que tange às relações de trabalho. Para os
produtores que dispõem de organização de gestão empresarial quanto
à administração da propriedade e que não apresentam trajetória fami-
liar como produtores diretos (como parceiros e colonos), o trabalho
assume uma dimensão exclusivamente utilitarista no sentido da acu-
mulação capitalista.
A presença, nesse campo de relações, da oposição entre proprietários/
não-trabalhadores e não-proprietários/trabalhadores, desde o período
do colonato, parceria e arrendamento, potencializada pelos parâmetros
de seleção ocorridos neste contexto de grande diferenciação social,
orienta as atuais representações sociais do produtor familiar. Ela tam-
bém referenda os critérios atribuídos à sua posição no campo econômi-
co, fundamentalmente na contramão das imagens elaboradas sobre o
trabalhador assalariado.
Alguns elementos estruturantes da noção de trabalho adotada pelos
produtores familiares são a idealização do passado, mistificação do es-
forço pessoal como “trabalhadores rurais sem-terra” e a incorporação
progressiva da ética capitalista de produção, através da qual o sacrifí-
cio, a economia e o trabalho garantiram o acesso à propriedade da
terra e, posteriormente, a integração ao mercado, através da valoriza-
da vocação para a agricultura. Esta noção de trabalho se molda forte-
mente a partir da representação de que “o empregado é diferente do proprie-
tário da terra”. A produção desta noção relaciona-se com a valorização

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progressiva do labor agrícola pelo produtor, com a leitura do processo


de seleção social e de concentração de terras, com a conotação étnica e
cultural contida na imagem elaborada do imigrante italiano (origem
étnica dos colonos do café), que chegou ao país sem nada, e com a
responsabilidade dividida entre indústria e produtores quanto à orga-
nização, ao controle e à remuneração deste trabalho.
Dessa forma, as classificações que proferem em torno do trabalhador
rural definem, de um lado, atributos do agricultor, cujo marco, no pas-
sado, foi o acesso à propriedade da terra (o que confere atualmente ao
“produtor competente” a imunidade contra processos atuais de seleção
social); e, de outro, atributos ao assalariado, como aquele que não con-
seguiu a terra por “falta de empenho pessoal” e outras séries de qualifica-
tivos muito pejorativos.
Para os produtores que são ex-meeiros ou ex-colonos (origem princi-
pal dos produtores familiares hoje), esta noção se prende a
determinantes que, na sua trajetória familiar e pessoal de acesso à pro-
priedade da terra e de conquista de sua atual posição socioeconômica,
são interpretados como fundamentos de sua seleção social: o “trabalho
competente, duro e sem complacência: de sol a sol!”. Em outras palavras, esta
conotação foi assim revelada: “os empregados e nossos filhos fazem a mesma
coisa, com exceção do empregado, porque ele pára de trabalhar quando chega a
hora acertada e os filhos, eles continuam [...]”. Suas representações sobre os
trabalhadores repousam na afirmação da clivagem social que os separa
“desta outra classe”, segundo as palavras de um produtor.
A noção do trabalho assalariado na colheita não é mais assimilável aos
produtores, pelo fato do deslocamento da força do trabalho para o
meio urbano e por sua contratação pela agroindústria, apesar das mar-
gens salariais dos colhedores influenciarem o orçamento das proprie-
dades. As possibilidades de controlar o custo direto dessa mão-de-obra
e também a garantia da manutenção dos trabalhadores fixos nas pro-
priedades a baixos custos dependem do custo global no setor, repre-
sentado pelos salários dos colhedores.
O fato de que o piso salarial seja assegurado pela agroindústria, atra-
vés da diária, coloca nas mãos do colhedor – pela sua capacidade e
esforço individuais em responder a uma determinada produtividade
de trabalho – a responsabilidade de ganhos suplementares. Por isso, a
ação política dos colhedores é menosprezada pelos produtores, uma
vez que, segundo eles, seus ganhos dependeriam apenas de seus de-
sempenhos, esforços e dedicação pessoais, conforme sua própria traje-

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tória de ascensão social, a partir de sua outrora posição de colonos do


café.
Portanto, a noção de trabalho é construída comparativamente, consi-
derando principalmente a convivência com os trabalhadores que eles
contratam ao longo do ciclo produtivo. A valorização do trabalho fami-
liar e a desvalorização do trabalho assalariado justificam o forte anta-
gonismo com o trabalhador temporário (devido à familiaridade com o
labor agrícola no passado, ou se comparados com as grandes empresas
agrícolas no presente). A força desta noção depende também da divi-
são de tarefas, seja o produtor “patrão real” – pequenos proprietários
que se encarregam diretamente da gestão da propriedade, incluindo o
controle direto da força de trabalho – ou “patrão indireto” – habitual-
mente médios e grandes proprietários que contratam os serviços de
administradores. Quando existe dissociação entre os procedimentos
operacionais exigidos pelo sistema produtivo e a gestão administrativa
da propriedade, o produtor pode consagrar seu tempo ao trabalho
não-produtivo, às atividades de direção e de supervisão do processo do
labor social executado sobre suas terras, a acompanhar as novidades
mercadológicas, técnicas e científicas e a tornar rentáveis seus fundos
de acumulação.
O produtor familiar – mesmo que não assuma centralmente a execu-
ção do labor agrícola – considera sua tarefa de gestão indissociada do
trabalho agrícola, valorizando seu envolvimento pessoal na supervisão
da força de trabalho, durante as operações de manutenção do pomar,
ou durante a colheita. Por isso, ele acredita que seu envolvimento dire-
to na supervisão das tarefas, ao longo do ciclo de produção, assegura a
qualidade da fruta, a “limpeza” de seus pomares (eliminação das ervas
ruins), a integridade geral do pomar, a lucratividade da exploração e a
valorização financeira da propriedade. Eles se distinguem daqueles
produtores que “abandonam a propriedade, que não são atentos, que não pas-
sam pelo menos uma vez por dia para examinar seus pomares”.
Desta maneira, o controle direto mais rigoroso do trabalho, principal-
mente no caso dos produtores familiares, atende tanto às exigências
contratuais, colocadas pela agroindústria para facilitar a operação de
colheita (exemplo, limpeza das fileiras entre as árvores), quanto à sua
própria preocupação em não perder nenhuma fruta e manter a inte-
gridade das árvores.
O conjunto destas representações mostra como se definiram fissuras
históricas intransponíveis nos interesses e desenhos institucionais de

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organização política, a partir de elementos identitários. Desses fatores,


autoriza-se a presença de dois tipos socioeconômicos e culturais de tra-
balhadores rurais, que não se encontravam nas tipologias utilizadas,
por longo tempo, pela legislação trabalhista e pela estrutura sindical
tradicional. Atualmente, estas representações dificultam passagens co-
municativas entre formas associativas (corporativista), que aprisionam
os produtores familiares em interesses que não lhes são próprios e a
sindical (classista), dos trabalhadores. A desregulamentação do funcio-
namento contratual das relações de trabalho deve alterar significativa-
mente estes alinhamentos.

A RECLASSIFICAÇÃO DOS TRABALHADORES RURAIS :


TRABALHADORES ASSALARIADOS E PRODUTORES FAMILIARES

Pelo fato de a produção das frutas concentrar-se principalmente nas


pequenas e médias propriedades, as conseqüências sobre as transfor-
mações na significação das categorias, pelo movimento sindical,
associativo e social regional, causaram uma série de debates sobre as
afiliações políticas das classes e dos grupos sociais presentes na
citricultura.
As mobilizações de trabalhadores assalariados, desde as grandes greves
de 1984, momento em que eles se manifestaram mais acentuadamente
no cenário político da agricultura regional e nacional, têm contribuído
para a produção da identidade de empregados rurais assalariados como
negação de sua filiação à categoria generalizante de trabalhadores rurais.
Nesse sentido, soma-se ao movimento de distanciamento dos produto-
res a mesma categoria de trabalhadores rurais, pontuando um período
de classificações e reclassificações identitárias, as quais revelaram e
aprofundaram as diferenciações culturais entre os trabalhadores e le-
varam ao surgimento de instituições de representação de natureza dis-
tinta.
A participação dos trabalhadores fixos ou permanentes (que residem
nas propriedades) no movimento sindical é muito dificultada pela sub-
missão direta aos produtores que se confunde com relações pessoais e
paternalistas, expressas na ascendência dos proprietários de terra so-
bre a organização política dos trabalhadores. Nos anos 40 e 50, as as-
sociações de representação fundadas, agrupando tanto os proprietários
quanto os trabalhadores sob a denominação genérica de “profissionais
rurais da agricultura”, retratam a natureza corporativista da ação polí-

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tica a qual se estenderia quando da criação dos sindicatos de trabalha-


dores rurais (BARROS, 1987).
Além das questões envolvendo uma nova concepção, prática e dinâmi-
ca da ação política setorial, traduzindo-se em mudanças nos sindicatos
e associações de representação, efeitos originários das categorias da
estruturação de representação política mostraram-se presentes. Elas são
também resultantes de processos identitários e de determinação de in-
teresses que não encontravam expressão nas instituições de repre-
sentação tradicionais.
Os produtores familiares modernos na citricultura apresentam filiações
político-institucionais distintas daquelas dos pequenos agricultores, si-
tuados no campo de classe da produção familiar. Os produtores foram
historicamente incorporados no sindicalismo sob a categoria de traba-
lhadores rurais, para demarcar a luta por uma política agrícola, agrá-
ria e tecnológica diferenciadas. A ação política dos trabalhadores agrí-
colas assalariados se refere à reprodução social (remuneração e condi-
ções de segurança do transporte e trabalho), à cidadania (direitos sociais
e políticos) e ao “projeto político maior” (controle do processo de produ-
ção, isto é, dos fundamentos e da direção do progresso técnico, com
conseqüências no ritmo e intensidade do trabalho e com a participação
e a gestão nos processos decisórios relativos às estratégias de desenvol-
vimento setoriais). Longe também daqueles englobados na categoria
trabalhadores rurais.
O Estatuto do Trabalhador Rural (Lei no 4.914 de 2/3/1963) determi-
nava a extensão dos direitos sociais do trabalhador urbano ao rural,
sem considerar a multiplicidade de relações de trabalho na agricultu-
ra, agrupando na categoria “trabalhador rural” aqueles que recebiam
tanto em espécie quanto em produto, apesar da regulamentação dos
sindicatos rurais. Seu enquadramento institucional de 1962 (Portaria
no 355 A) reconhece a existência de várias categorias de trabalhadores
rurais (pequenos proprietários, arrendatários, meeiros e empregados
assalariados).
O aprofundamento da adequação do corpo legal de proteção aos tra-
balhadores rurais e de regulamentação das relações de trabalho à rea-
lidade da diversidade social sofreu um revés em seguida ao golpe mili-
tar de 1964. Em 1965, o governo definiu como trabalhador rural “toda
pessoa física que exerça uma atividade profissional rural como forma de emprego
ou como empreendedor autônomo, neste caso em regime de economia individual,
familiar ou coletiva e sem empregados” (Portaria no 71 de fevereiro de 1965).

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E instituiu o sindicato único, por base municipal. Em termos de


enquadramento sindical, a lei (Decreto-Lei do Enquadramento e Con-
tribuição Sindical, no 1.666 de 15/04/1971) previa que, no Sindicato
dos Trabalhadores Rurais, por município, se afiliariam os pequenos
proprietários que detivessem de um a três módulos rurais, desde que
os proprietários não empregassem trabalhadores permanentes. Isto é,
a lei não consideraria, com respeito ao enquadramento sindical, o em-
prego de trabalhadores eventuais, de assalariados volantes e bóias-frias.
A partir deste momento, o conjunto dos considerados trabalhadores
rurais – assalariados e pequenos proprietários que apresentassem estas
características – foram obrigados a se filiar institucionalmente ao mes-
mo sindicato de base municipal. A legislação só observa o emprego de
trabalhadores permanentes e o tamanho da propriedade, o que, em
última instância, interessa para a isenção do imposto territorial de que
o pequeno proprietário goza, ao ser enquadrado como trabalhador
rural (ALVES, 1991, p. 268).
Pelos elementos que atestam a transformação dos pequenos proprietá-
rios como trabalhadores rurais (envolvidos no labor agrícola) em pro-
prietários de terras e pelo modo como progressivamente o conjunto
dos produtores vai se filiar à ação política das associações na defesa dos
interesses específicos à produção e à comercialização na citricultura –
Associação dos Citricultores do Estado de São Paulo (Aciesp), Associa-
ção Paulista dos Citricultores (Associtrus) e Associação Brasileira dos
Citricultores (Abracitrus) –, podem-se compreender as dificuldades que
enfrentavam os trabalhadores assalariados na condução de suas reivin-
dicações específicas, dentro da mesma estrutura sindical.
As limitações neste sentido se estendiam inclusive para além das ques-
tões setoriais, dadas as condições de encaminhamento da ação política
pela Fetaesp (Federação de Trabalhadores Agrícolas do Estado de São
Paulo), muitas vezes conciliatória com o patronato rural, e pela política
da Contag (Confederação Nacional de Trabalhadores Agrícolas). A di-
reção política da maioria das federações e da confederação referenda-
va os interesses dos que compunham-na: os pequenos produtores. Essa
composição afetava ainda o avanço da organização política e das reivin-
dicações dos assalariados da cana e da laranja em São Paulo, uma vez
que as reivindicações pela reforma agrária predominavam na orienta-
ção da prática dos porta-vozes. Antes de meados da década de 1980, a
visão predominante, tanto de parte da diretoria do MSTR (Movimento
Sindical Trabalhadores Rurais) quanto da Igreja (CPT através de Gru-
pos de Jovens e Pastoral da Terra), que começou a empreender um

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trabalho de organização dos assalariados, era a de que estes constituíam


o lado mais perverso do capitalismo na agricultura. O princípio da
reforma agrária originou-se, em âmbito local, também da posição e do
não-envolvimento dos migrantes (normalmente trabalhadores origi-
nários vinculados à colheita da laranja, do Estado de Minas Gerais), e
do impacto dos aumentos salariais na reprodução social dos pequenos
produtores. Considerados mais disciplinados para o trabalho e, muitas
vezes, aceitando salários muito baixos, tais trabalhadores pouco se en-
volviam nas mobilizações sociais na região, diferentemente dos assala-
riados “locais”.
Em face das dificuldades de condução das reivindicações dos trabalha-
dores assalariados, emerge uma oposição à prática sindical tradicional,
expressa na ação de resistência lenta e árdua nos locais de trabalho
(pomares), cujo avanço dependia da demanda de frutas pela
agroindústria e das transformações no mercado de trabalho. As formas
de manifestação ocorridas durante os anos 70 e 80 constituíam-se em
paralisações totais ou em operações tartaruga na colheita (redução da
velocidade e do ritmo de coleta das frutas). As reivindicações pauta-
vam-se no acesso às informações relativas ao valor de sua remuneração
e ao custo industrial de produção do suco; e nos aumentos salariais, na
alteração das formas de organização de trabalho e no protesto contra a
baixa quantidade de frutas nas árvores. Os colhedores não sabiam quem
era efetivamente responsável pela sua remuneração, devido à
inexistência de contratos de trabalho.
Apenas após as greves de 1984, foram adotados os pirulitos (compro-
vantes da produção diária de cada trabalhador), a distribuição gratuita
de caixinhas pelo produtor, em igual número para todos os trabalhado-
res e uma certa atenção às normas de segurança no transporte de tra-
balhadores em caminhões até as propriedades. Da mesma forma, os
primeiros acordos entre sindicatos de trabalhadores e empregadores
começaram a ser assinados.
Com a vitória paulatina da oposição nas eleições sindicais (começando
no município de Bebedouro, em 1987), a reação dos representantes
dos produtores não tardou: em 1988, foi fundada a Aciesp, fortemente
vinculada à UDR (União Democrática Ruralista), com o claro propósi-
to de ser também – à parte os problemas institucionais da representa-
ção dos interesses mais prático-econômicos dos produtores integrados
ao mercado – uma reação à escalada da oposição de esquerda nos sin-
dicatos de trabalhadores assalariados (filiados à CUT). Na época, os
porta-vozes do campo sindical da CUT apregoavam a tese da “unidade

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na diversidade”, isto é, da união de todos os trabalhadores rurais, tanto


pequenos proprietários quanto assalariados. Logo, impôs-se também
para esta central a necessidade de haver uma acomodação político-
institucional à realidade que surgia no campo.
A supressão da política assistencialista originária do Funrural pelas novas
direções sindicais levou à desfiliação dos produtores, institucionalizando
os interesses mais imediatos dos trabalhadores assalariados. Pioneiro
na região citrícola, o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Bebedou-
ro, transformado em Sindicato dos Empregados Agrícolas Assalaria-
dos de Bebedouro, agrupava os empregados assalariados agrícolas, os
tratoristas, os condutores de veículos e os operadores de máquinas. A
diretoria retirou-se da Fetaesp (Federação dos Trabalhadores Agríco-
las do Estado de São Paulo) e liderou a fundação da Feraesp (Federa-
ção dos Empregados Rurais Assalariados do Estado de São Paulo), re-
gistrada em cartório em 1989. Sem reconhecimento oficial, apesar da
forte representatividade real, sem poder recolher as taxas confederativas
e o imposto sindical recolhido diretamente do salário de cada trabalha-
dor pela agroindústria (direcionados à Fetaesp), sem poder contar, em
tempo integral, com a atuação dos membros da direção e sem poder
negociar oficialmente o dissídio coletivo anual dos assalariados, a dire-
toria devia remeter anualmente à Justiça do Trabalho de São Paulo ou
de Brasília as reivindicações de sua base sindical. Em face deste impos-
to itinerário de encaminhamento das reivindicações, deveria aguardar
entre dois e três anos para o julgamento. Os acordos salariais oficiais
eram assim negociados em reuniões a portas fechadas, em gabinetes na
cidade de São Paulo, com a presença dos representantes da Fetaesp, da
Faesp (Federação da Agricultura do Estado de São Paulo) e das associa-
ções agroindustriais, que não têm qualquer ação política real, nem re-
presentação formal junto aos assalariados.
Nos anos 90, com a crise de competitividade que abateu o setor e a
eliminação dos contratos assinados entre agroindústria e produtores,
as instituições de representação entram em crise, enfraquecendo a or-
ganização dos assalariados. Muitos trabalhadores assalariados voltaram-
se para os programas de assentamentos de reforma agrária, como ten-
tativa de ampliar suas alternativas de reprodução social. A direção da
Feraesp procurou, nesta direção, ampliar as possibilidades de atuação
política, disputando espaços de representação política com o Movimento
dos Sem-Terra e apoiando a participação de direções sindicais nas elei-
ções municipais.

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C ONCLUSÃO
No campo da produção da citricultura, as transformações dos agricul-
tores familiares levaram à definição do trabalhador assalariado, atra-
vés de um conjunto de oposições originário da trajetória social funda-
da em torno da propriedade da terra, da gestão do trabalho e,
crescentemente, através de um conjunto de antagonismos de interes-
ses de “classe”. O perfil da citricultura, baseada em pequenas proprie-
dades e na presença maciça dos assalariados, consolidou um processo
de diferenciação entre proprietários e trabalhadores, principalmente a
partir do confronto entre agricultores familiares e assalariados, até então
englobados na categoria trabalhador rural.
O surgimento do trabalhador assalariado na citricultura culmina com
o avanço da integração com a indústria, entre os anos 60-70, quando
os grupos sociais transformaram-se e outros emergiram, definindo novas
formas de organização e dominação nas relações sociais. Porém, a aná-
lise dos conflitos históricos expressa a origem das clivagens a partir do
processo de diferenciação social e de representação política. Portanto,
seu surgimento ocorre através de um processo de lutas em torno das
bases materiais de apropriação da terra e da instrumentalização do
trabalho, mas também através de classificações e reclassificações dos
grupos sociais, que vão incorporar questões de representação político-
ideológica.
As mudanças nas formas e organização do trabalho na citricultura, da-
das as características desagregadoras dos direitos e as condições de re-
produção precárias dos assalariados, orientaram os processos culturais
de formulação identitária. Estes processos apoiados em oposições e
antagonismos que só se radicalizaram em posições e disposições de in-
teresses, conferiram a direção das mudanças institucionais ocorridas,
que, por sua vez, reforçaram as diferenças.
A competitividade do suco brasileiro no mercado internacional, basea-
da inclusive na relativa estabilização da estrutura fundiária, passou a
depender não apenas das novas formas de produção técnico-agronô-
mica e do baixo valor da terra, mas também da desestruturação da or-
ganização e da divisão do trabalho anteriormente consolidada. Tais fa-
tores influenciaram o desenho institucional da representação dos inte-
resses. Uma dupla estratégia de desenvolvimento e de seleção social
começa a se desenhar no setor, visando o rebaixamento dos custos e a
atenuação da queda da remuneração dos produtores: a verticalização
agrícola efetuada pelas indústrias e a composição mais eficiente de pa-

ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 137–159, 1. sem. 2004


157

cotes tecnológicos. Todas visavam o aumento da produtividade ou do


rendimento dos pomares e a elevação do teor de açúcar nas frutas. Após
a adoção dos contratos plurianuais, ocorreu a eliminação do preço mí-
nimo de referência e do contrato-padrão, além da isenção de responsa-
bilidade pela indústria na organização e pagamento dos trabalhadores
assalariados. Em outros termos, após a desregulamentação das regras
padronizadas de funcionamento comercial do setor, para priorizar prin-
cipalmente os arranjos tecnológicos (redução dos custos de produção
agrícola) e de mercado (redução dos custos operacionais na
comercialização das frutas e da gestão da força de trabalho), acentuadas
pela crise de representação política, as possibilidades de reprodução e
acumulação na citricultura se tornaram mais restritas para os produto-
res familiares e para os trabalhadores assalariados. Com o recrudesci-
mento da organização institucional e contratual dos produtores e a im-
possibilidade de coletivização das reivindicações dos assalariados, mui-
tas das conquistas históricas destes trabalhadores estão em grande re-
trocesso.

ABSTRACT
The social origin and transformations of the agricultural labor hand in the
orange plantations in São Paulo State mobilized for the final industrial
production of orange juice production for the international market are
analysed as a classification and reclassification process by the orange fa-
miliar producteurs upon the definition of rural workers. These processes
are part of their social representations indicating sectorial struggles and
institution orientations of interests defense.
Keywords: orange plantations; workers labor hand; sectorial struggles;
institutions of interests defense.

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N OTA S
1
O contrato padrão de participação considerava, fundamentalmente, a variação das cotações de suco na Bolsa de
Mercadorias e Valores de Nova Iorque, durante um período de 12 meses, chamado “ano-exportação”, a
remuneração ou o custo da produção e comercialização do suco e uma taxa de rendimento industrial das
frutas estabelecida no início da safra. Deste modo, havia, teoricamente, um preço único a ser pago por caixa
de laranjas, sua determinação final ocorrendo ao término de cada ano-safra e em dólar.
2
O contrato de safra obrigava o empregador à retenção do trabalhador durante o ano-safra, o pagamento do
13o salário, férias anuais e indenização proporcional ao tempo trabalhado e ao número de caixinhas colhidas
pelo trabalhador.

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S I M O N E P E R E I R A D A C O S T A *

AS ARENAS ILUMINADAS DE MARINGÁ : REFLEXÕES


SOBRE A CONSTITUIÇÃO DE UMA CIDADE MÉDIA

O presente artigo tem por objetivo descrever e analisar


os diferentes projetos de constituição de uma cidade de
médio porte, situada na região sul do Brasil. Com apro-
ximadamente 300 mil habitantes, localizada no norte
do estado do Paraná, Maringá tem apenas 57 anos,
entretanto, alcançou o posto de terceiro maior municí-
pio desse estado e é conhecida como uma das cidades
brasileiras que oferecem uma boa qualidade de vida
para sua população. Ganhou projeção nacional ao ser
apresentada como a Dallas brasileira, uma vez que
abrigaria uma “civilização” interiorana que valoriza
os aspectos do mundo dos rodeios e tudo que gira em
torno da cultura country/caipira/sertaneja.
Palavras-chave: cidades médias; antropologia urba-
na; rodeios.

*
Doutora em Ciências So-
ciais pela Universidade do
Estado do Rio de Janeiro e
professora do Departamen-
to de Ciências Sociais da
Universidade Estadual de
Maringá/PR.
162

M ARINGÁ E A TEMÁTICA DAS CIDADES MÉDIAS

Na década de 1970, alguns setores do Estado brasileiro já vinham pen-


sando estratégias de desenvolvimento nacional que consideravam o
papel a ser desempenhado pelas cidades médias. Criado em 1976, por
meio de financiamentos para ampliação da infra-estrutura social e pro-
dutiva, o Programa Nacional de Cidades de Porte Médio visava forta-
lecer os municípios que apresentassem esse perfil. Subjacente a esse
interesse do Executivo federal pelas cidades médias estava a idéia de
que elas poderiam funcionar como “diques” que conteriam os fluxos
migratórios que se dirigiam às metrópoles. No Paraná, cidades como
Londrina, Maringá, Cascavel e Ponta Grossa foram tomadas como uma
alternativa espacial para o crescimento da capital. Curitiba vinha rece-
bendo imigrantes de várias regiões do estado do Paraná e também de
outros lugares, principalmente da própria região sul do país.
Na década de 1970, no Brasil, existiam nove regiões metropolitanas,
sendo elas: São Paulo, Rio de Janeiro, Belém, Curitiba, Fortaleza, Sal-
vador, Recife, Porto Alegre e Belo Horizonte. Criadas por iniciativa
federal, durante o regime militar, elas tinham a função de ser o eixo da
geopolítica de integração e modernização do território nacional por-
que representavam a base industrial de uma sociedade que se tornava
cada vez mais “urbana”. Faziam parte do projeto de desenvolvimento
que pretendia amenizar os efeitos negativos das desigualdades regio-
nais. Desde então, cerca de 17 novas regiões foram criadas, não mais
pela ação do governo federal, mas por iniciativa dos estados. Na re-
gião sul do país, as mais recentes são: Maringá, Londrina, Florianópolis,
Vale do Itajaí e Norte de Santa Catarina.
Konin e Moura (2002) ponderam que a criação dessas novas regiões
metropolitanas vem ocorrendo sem o devido desenvolvimento de uma
cultura regional e sem que as desigualdades econômicas e de infra-
estrutura dos municípios que as compõem sejam consideradas. A cons-
tituição dessas áreas também não tem sido o suficiente para despertar
as responsabilidades dos municípios-pólos na implantação de “políti-
cas compensatórias”. Em relação à região metropolitana de Maringá,
esse comportamento é claramente observável: os outros nove municí-
pios que ela agrega têm perfis populacionais e “vocações” econômicas
bem distintas. Pelo menos dois deles, Sarandi e Paiçandu, servem como
receptores da população mais carente que não consegue se instalar em
Maringá ou é forçada a deixar a cidade e fixar residência nesses luga-
res onde o valor dos aluguéis, dos terrenos urbanos e dos imóveis é
mais baixo. Sarandi, por exemplo, vive uma situação bem delicada: é o
ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 161–187, 1. sem. 2004
163

município que mais cresce no Paraná, 5% ao ano; no entanto, tem uma


arrecadação anual baixíssima, pouco mais de 26 milhões, em 2003, e,
também, um dos menores índices de repasse de ICMS. Maringá
e Sarandi protagonizam, ainda, uma situação bastante peculiar em re-
lação à dinâmica nacional: a primeira, uma cidade de médio porte e
com apenas 57 anos, satelitizou a segunda, com quase 100 mil habitan-
tes e de apenas 23 anos.1
Várias cidades médias tornaram-se, portanto, cidades-pólos dessas novas
regiões metropolitanas. Sobre o interesse do estado nacional na conso-
lidação dessas cidades como novos centros integrados à economia nacio-
nal, observe-se o que dizem Andrade e Serra (2001, p. VI):

Era plural o interesse por essa alternativa espacial de crescimento, va-


lorizando as cidades médias: vislumbrava-se a minimização da pobreza
urbana; a garantia da capacidade gerencial e financeira do estado em
prover equipamentos e serviços urbanos; evitar a queda da produtivi-
dade das atividades econômicas; a preservação do meio ambiente; o
avanço do projeto de integração do território nacional; a ocupação das
fronteiras nacionais.

O foco nas cidades médias, e não nos pequenos centros urbanos, justi-
ficava-se pela preocupação em atingir o menos possível o processo de
crescimento econômico no país, ou seja, evitar uma pulverização espa-
cial excessiva de capitais públicos e privados. Portanto, para que um
determinado centro urbano se apresentasse como alternativa locacional
às metrópoles, era preciso, além de certo nível de complexidade da
divisão do trabalho, uma oferta suficiente de infra-estrutura produtiva.
Simultaneamente, esses autores destacam que as cidades médias foram
pensadas por planejadores urbanos e regionais e por técnicos que tra-
balhavam nos aparelhos do Estado como uma alternativa para o
ordenamento urbano das metrópoles brasileiras. Um ordenamento que
estava sendo ameaçado, segundo a visão governamental, principalmente
pelos fluxos de migrantes que deixavam as regiões mais pobres do país.
O debate sobre a criação dessas cidades médias teria, portanto, obscu-
recido o problema da concentração fundiária no Brasil. Assim, os
migrantes vindos de regiões pobres, freqüentemente dominadas pelo
latifúndio improdutivo ou pela grande propriedade, para as grandes
metrópoles, eram tratados como um “problema social” e não como um
grupo de excluídos do processo produtivo ou como trabalhadores que
poderiam continuar nas suas regiões vinculados ao desempenho de

ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 161–187, 1. sem. 2004


164

alguma atividade econômica, desde que o executivo federal organizasse


ações de intervenção que culminassem, por exemplo, na (re)distribuição
de terras. Ou seja, na percepção do Estado e de alguns dos seus
tecnocratas, a promoção das cidades de porte médio poderia ajudar a
resolver a falta de projetos de reforma agrária no país. Como destacam
Andrade e Serra (2001, p. VI):

É também preciso reconhecer que a opção pelas cidades médias como


solução do problema da macrocefalia urbana deixava de lado a questão
da concentração fundiária. Em suma, a reforma agrária seria uma ou-
tra opção, ou uma opção complementar, que acabaria por valorizar os
pequenos centros urbanos na medida em que contribuía para fixar as
populações rurais em seu território de origem, contendo o crescimento
das metrópoles via redução do êxodo rural.
Entretanto, a preocupação do executivo federal com o tema das cida-
des médias teria se enfraquecido na década de 1980 e início dos anos
90, voltando a ser objeto de atenção governamental apenas nos últi-
mos anos da década de 1990. Andrade e Serra (2001, p. VII) argumen-
tam que a retomada do interesse pelas cidades médias está relacionada
ao processo de reconcentração espacial das atividades econômicas e da
população. Volta-se a pensar que, talvez, as cidades médias pudessem
ter um papel estratégico nos necessários processos de desconcentração
populacional e econômica do país. Entretanto, o problema da concen-
tração fundiária continuaria em suspenso e, conseqüentemente, a so-
lução para os conflitos e disputas pela posse de terras também.
É importante lembrar que não há um consenso entre as definições aca-
dêmicas sobre o que é uma cidade média, recebendo elas classificações
diferentes por parte de economistas, geógrafos, demógrafos, sociólo-
gos, antropólogos e outros profissionais. Da mesma forma, elas são
interpretadas de maneira distinta pelos diversos grupos sociais que nelas
convivem ou que com elas se relacionam ou, ainda, que as observam de
longe. Como apontaram Amorim e Serra (2001 p. 1-2):
Estudos e reportagens têm freqüentemente divulgado a melhor quali-
dade de vida desfrutada pelos moradores das chamadas cidades médias.
O morador dos grandes centros urbanos, principalmente nos países
subdesenvolvidos, quando “capturado” por essa informação, pode en-
cantar-se com alguns dos atributos divulgados dessas cidades, tais como:
menores índices de criminalidade; reduzido tempo despendido para se
ir ao trabalho; menores níveis de poluição atmosférica, aluguéis geral-
mente mais acessíveis; e maior e mais próxima oferta de áreas verdes.

ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 161–187, 1. sem. 2004


165

Sob o ângulo de grande parte da população interiorana, rural ou


semirural, as cidades médias podem ser valorizadas pela oferta de em-
prego, ou mesmo de subemprego, pela existência de infra-estrutura
básica, pelas oportunidades de acesso à informação, pelos melhores
recursos educacionais. Enfim, pela existência de bens e serviços essen-
ciais à ascensão material e intelectual de seus moradores [...]. Essa
inexistência de consenso também ocorre no meio técnico-científico,
onde, literalmente, não há uma definição cristalizada de cidade média,
uma classificação que pudesse ser utilizada indistintamente pelos soció-
logos, economistas, arquitetos, geógrafos, demógrafos, embora dentro
de cada especialidade seja possível encontrar algum acordo sobre a
matéria.

Diferentemente do fenômeno metropolitano, cujas especificidades bem


demarcadas ensejam a própria institucionalização desses territórios em
muitos países, as definições de cidades médias sujeitam-se muito mais
aos objetivos de seus pesquisadores ou dos promotores de políticas pú-
blicas.
Assim, o entendimento da dinâmica de organização e consolidação dos
núcleos urbanos das chamadas “cidades médias” exige ponderações
sobre o processo de urbanização das cidades brasileiras, nas últimas
décadas. Os recentes trabalhos realizados pelo IPEA (Instituto de Pes-
quisa Econômica Aplicada), IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística) e UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas) mos-
tram que há, no Brasil, um processo de “interiorização” do crescimen-
to e a formação de novas aglomerações urbanas.2 A urbanização das
cidades brasileiras adquiriu, portanto, características diferenciadas: o
crescimento populacional não está mais concentrado nas metrópoles
tradicionais e é mais acelerado nas pequenas e médias cidades. A alte-
ração no padrão de urbanização fez com que esses institutos de pesqui-
sa precisassem construir uma nova classificação para a rede urbana
brasileira, seguindo alguns critérios: diversidade da economia, concen-
tração de centros decisórios e escala de urbanização.
O quadro hoje é o seguinte: foram identificados 111 centros urbanos,
classificados em quatro grupos, segundo a sua importância. No comando
da rede estão 13 metrópoles, que podem ter três níveis de influência:
global (São Paulo e Rio de Janeiro), nacional (Brasília, Fortaleza, Reci-
fe, Salvador, Belo Horizonte, Curitiba e Porto Alegre), ou regional
(Belém, Goiânia, Jundiaí e Campinas). Depois, surgem 16 centros na-
cionais e 31 centros sub-regionais de nível 1, no qual está Maringá

ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 161–187, 1. sem. 2004


166

(atualmente, com 288.653 habitantes),3 e 51 de nível 2. Segundo essa


pesquisa, as cidades de médio porte, aqui definidas como aquelas que
têm população entre 100 e 500 mil habitantes – situação de Maringá –
foram as que tiveram maior crescimento populacional: 4,8%. Índice
muito alto se comparado aos 0,9% das metrópoles com mais de 1 mi-
lhão de habitantes.4
As indicações de que Maringá cumpriria o caminho que conjuga cresci-
mento populacional e intenso ritmo de urbanização estavam dadas desde
os anos 50, como mostra France Luz (1997): em 1950, apenas 18,8%
da população de Maringá residia na área urbana do município e 81,2%
na área rural. Em 1960, o quadro era bastante diferente: 45,7%
vivia na área urbana e 54,3% na área rural. Ou seja, observa-se que o
aumento ocorrido na população urbana, em dez anos, foi três vezes
maior que na rural. Dados do Ipardes (Instituto Paranaense de Desen-
volvimento Econômico e Social) previam que, para 1995, apenas 2,17%
da população estaria na área rural e, os outros 97,83%, na área urbana.
O censo 2000 apresenta a seguinte distribuição: 283.792 habitantes,
ou seja, 98,31% da população de Maringá reside na área urbana e ape-
nas 4.673, menos de 2%, na área rural.
Sobre as condições favoráveis para implantação de uma cidade de mé-
dio ou grande porte onde está localizada Maringá, Luz (1999, p. 123)
faz a seguinte observação:

O local onde está situada Maringá, a 127Km de Londrina, é bastante


adequado para a ereção de uma cidade de médio ou grande porte. Fica
no centro geométrico da zona colonizada pela Companhia Melhora-
mentos Norte do Paraná e conta com vias de comunicação que a põem
em contato com outras regiões do Estado e com São Paulo. Por suas
condições naturais, tais como localização geográfica, topografia e clima
favorável, esse terreno foi escolhido para a construção de um dos mais
importantes centros urbanos do Norte do Paraná.

Em virtude de sua privilegiada situação geográfica, Maringá tornou-se


desde logo um dos principais núcleos urbanos fundados pela Compa-
nhia Melhoramentos Norte do Paraná. É circundada por terras férteis
e próprias para o cultivo do café, com uma área agrícola de influência
de mais de 300.000 alqueires.
Maringá estava integrada ao projeto, promovido pelo Executivo fede-
ral, de ocupação capitalista de áreas consideradas de fronteira agrícola.
Aqui os Executivos federal e estadual se associaram a uma companhia

ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 161–187, 1. sem. 2004


167

de terras inglesa que auxiliaria na incorporação daquelas “novas” áreas


do território à dinâmica produtiva.
Também são constantes as matérias jornalísticas cujas análises contri-
buem para compreender o peso relativo das cidades de médio porte
nas atividades produtivas no Brasil. Entre os meses de abril e maio,
quando costumam sair os resultados das safras agrícolas, principalmente
os resultados sobre o volume de soja comercializado no mercado inter-
nacional de grãos, são rotineiras as matérias em jornais e revistas de
circulação nacional que têm por objetivo mostrar que a “riqueza” bra-
sileira, mesmo nos tempos bicudos de recessão, está no interior. No
domingo, 16 de maio de 2000, a manchete de primeira página do jor-
nal O Estado de São Paulo era: “Interior Lidera a Reação da Economia”.
A extensa reportagem fornecia uma série de dados sobre a safra agrí-
cola recorde e a maturação de investimentos que se deslocaram dos
centros urbanos para o interior, principalmente dos estados de São
Paulo e Paraná, reoxigenando a economia brasileira naquele ano. Em
abril desse mesmo ano, a Folha de São Paulo já tinha publicado matéria
semelhante, falando da safra de soja no Paraná e, também em maio, a
revista Veja teve como matéria de capa a reportagem “A força vem do
Interior”, revelando a existência de uma “civilização” que, mesmo cria-
da longe dos grandes centros, é rica e orgulhosa dos seus valores – o
que gerou muita polêmica em Maringá, cidade paranaense apresenta-
da como o berço dessa nova “civilização”.
É interessante destacar que o dinamismo econômico dessas cidades
médias está vinculado às atividades agropecuárias, o que não significa
uma contradição com o acelerado processo de urbanização que elas
experimentam. Há, sim, harmonia entre uma economia regional vol-
tada para a produção agropecuária, agroindustrial e a consolidação de
Maringá como uma cidade-pólo, assentada no comércio. É nesse mu-
nicípio que ocorre o encontro dos diversos grupos sociais que se esfor-
çam para tornar toda essa região e, particularmente, o município-pólo,
um lugar de pujança, tranqüilidade e excelente qualidade de vida.
Uma parcela influente da opinião pública local mostra grande satisfa-
ção em ver a cidade ser rotineiramente apontada como um dos melho-
res municípios do Brasil. Para eles, isso foi conseguido porque Maringá
se tornou a Dallas brasileira, como mostrou a emblemática e polêmica
matéria da revista Veja, em 1999, ao referir-se a uma foto aérea da
região central, tirada à noite, e que é um dos cartões postais do muni-
cípio:

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Poucas pessoas que olhem para a constelação de arranha-céus ilumi-


nados da foto no alto desta página imaginariam que ela apresenta uma
cidade com pouco mais de cinqüenta anos de existência. Afinal, a imagem
sugere semelhança com Curitiba, Belo Horizonte e até com São Paulo.
Pegue essa mesma foto e peça a opinião da empresária Carmem Panza,
uma maringaense de 41 anos de idade. Orgulhosa e espontânea ela
dirá: “Não é igualzinha a Dallas?” Carmem é a porta-voz de um desejo
mal disfarçado dos moradores dessa espécie de capital do noroeste do
Paraná: ser uma capital do Texas ou da Califórnia no Brasil [...] São
285.000 habitantes e renda per capita de 7.000 dólares. As taxas de ho-
micídio e analfabetismo estão entre as mais baixas do Brasil. Toda popu-
lação tem acesso a água encanada e coleta de lixo (LIMA, 1999, p. 19).
Especificamente sobre essa matéria, há de se considerar que ela talvez
tenha sido paga por alguns empresários locais e por um eminente po-
lítico, liderança do governo federal, nos anos 2001 e 2002, na Câ-
mara dos Deputados. Com matérias ufanistas como essa, pintando uma
cidade que não é nem tão rica e nem tão parecida com Dallas, os repre-
sentantes de determinados grupos políticos pretendiam promover um
projeto de cidade que legitimava as suas ações, em um momento em
que o comando político local poderia ser, como de fato foi, alterado. As
eleições municipais de 2000 levaram ao poder, na cidade de Maringá, o
Partido do Trabalhadores (PT). O processo eleitoral se deu em dois
turnos e poucas pessoas acreditavam que o candidato do PT, José
Claúdio Pereira Neto, poderia chegar ao segundo turno, uma vez que
a cidade nunca havia escolhido um prefeito do campo da esquerda.
Nesse período, Maringá vivia os traumas de um escândalo político que
envolvia o então prefeito Jairo Gianotto, candidato à reeleição, em frau-
des e desvios de verba. Contudo, José Claúdio não só foi conduzido ao
segundo turno, como venceu as eleições com um percentual que ultra-
passou os 70% dos votos válidos. O então prefeito não chegou a dispu-
tar o segundo turno. A cidade vizinha, Sarandi, também elegeu um
prefeito petista. No estado do Paraná, nas eleições municipais de 2000,
o Partido dos Trabalhadores chegou ao poder, também, em Londrina,
Ponta Grossa, Medianeira e, na capital, Curitiba, o seu candidato foi
para o segundo turno, perdendo por menos de 40 mil votos. A vitória
do PT na cidade de Maringá e o seu considerável desempenho eleito-
ral no estado, naquelas eleições municipais, ainda carecem de análise
mais cuidadosa. Mas é possível afirmar que, em Maringá, o projeto da
cidade empresarial, sintetizado no rótulo Dallas brasileira, saiu enfra-
quecido.

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169

Percebendo o tom da disputa que a matéria anunciava, alguns


munícipes, comprometidos com o projeto petista, firmaram posição
contrária à identificação da cidade como uma capital country no Brasil.
Um deles, em artigo para um jornal da cidade, observou que a reinci-
dência de alusões a Maringá como símbolo de prosperidade e qualida-
de de vida não causa mais espanto e não é de todo indevida. Embora
reconheça que as constantes reafirmações da “pujança” encobrem al-
guns indicadores sociais não tão favoráveis para a própria cidade e
demais municípios que compõem a sua região metropolitana. Entre-
tanto, a maior discordância em relação à matéria da revista Veja se dá
quando ela estabelece aproximações entre Maringá e Dallas, como apon-
tou Dias, em 1999, no artigo “Dallas-Maringá: o Texas não é aqui”:

A minha bronca, de fato, é com outro lado da comparação com Dallas.A


reportagem, num tom excessivamente genérico, sugere que o sonho
do maringaense é ser cowboy. Afirma, por exemplo, que não se deve
esperar encontrar “cinemas e teatros por todo o lado. Na hora da di-
versão, são outras as atrações que fazem a festa dos habitantes. Existem
três grandes eventos na agenda anual da cidade: um rodeio, uma feira
agrícola e a escolha da Garota Country, um misto de concurso de miss
com bailes de debutante. É lá que as meninas da elite maringaense dis-
putam a honra de ser representante da cidade em meio a uma platéia
típica de jogo de futebol”. Ora, é imperdoável essa generalização. O
que pensa a maioria das – usando a expressão da revista – “meninas
da elite” da cidade canção? (DIAS, 2003, p. 45-46).
Nesse mesmo artigo, Dias lembra que não é possível desconsiderar o
impacto das festas citadas, mas que o calendário de eventos da cidade é
bem mais amplo e variado. Argumenta que o número de salas de cine-
ma em Maringá é compatível com o seu tamanho, que ela tem, ainda,
espaços físicos para teatro e tradição teatral, uma programação musical
que ultrapassa os limites da country music e da música sertaneja, promo-
vendo, há mais de 20 anos, um importante festival de música – o Festi-
val de Música da Cidade Canção (Femucic) – além de numerosos shows
de jazz, rock e MPB e o Festival de Música de Câmara. Por tudo isso,
Dias leva os seus leitores a concluírem que:

Maringá é uma cidade suficientemente grande para abrigar, democra-


ticamente, todos os registros. Nada autoriza, entretanto, a afirmação
de que nosso município é o grande emblema, no dizer da revista Veja,
do “Brasil de botinas e chapéu de couro que se expande pelas capitais

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regionais”. Há inúmeros maringaenses, provavelmente a maioria da


população, que não se reconhecem em tal classificação.

Infelizmente, Maringá não está tão desprovida de contradições sociais


quanto sugere a revista. Felizmente, sua identidade cultural é
diversificada e complexa. Enfim, não somos nem tão ricos e nem tão
cowboys (DIAS, p. 2003, p. 46).
As observações de Dias revelam o sentimento de recusa ao projeto de
Maringá como a Dallas brasileira, e é expressivo do que pensa uma sig-
nificativa parcela da sociedade maringaense, que transita nos meios
acadêmicos e intelectualizados da cidade.

A ORGANIZAÇÃO DO MUNDO DOS RODEIOS


NO B RASIL E EM M ARINGÁ
É inegável que os rodeios se consolidaram como uma expressiva alter-
nativa de entretenimento, prioritariamente, para os jovens de cidades
de pequeno e médio porte do interior do país. O mundo estruturado
pelos participantes desses eventos expressa a lógica de uma “rede ela-
borada de cooperação”5 que agrega componentes de “hostilidade” ge-
rados durante décadas, por uma “roça” que se “iluminou” e passava a
servir como referência de estilo, moda, padrões de comportamento e
diversão para vários núcleos urbanos do interior do país, alcançando
ainda um relativo sucesso nas grandes capitais.
No final dos anos 80, os rodeios se tornaram eventos de massa, atrain-
do milhares de pessoas e movimentando um volume razoável de di-
nheiro. Viraram uma “mania”, se não nacional, pelo menos no chama-
do “cinturão country”,6 que engloba municípios do interior dos estados
de São Paulo, Paraná, Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso
do Sul e Distrito Federal. Até mesmo grandes capitais (SP, RJ e BH)
“aderem”, em certa medida, ao mundo dos rodeios, existindo bares
com o motivo country/caipira/sertanejo7 nas cidades de São Paulo, Belo
Horizonte, Curitiba e Rio de Janeiro.
Em meados dos anos 90, a “indústria de produção” dos rodeios estava
plenamente estruturada. O sucesso de festas como as de Barretos (SP),
Uberaba (MG), Presidente Prudente (SP), Colorado (PR) e Jaguariúna
(SP) e o fato de serem realizados mais de 1.500 rodeios por ano, em
todo o país, tornaram a produção desses eventos um negócio milioná-
rio.

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Os rodeios, realizados dentro de feiras e exposições agropecuárias ou


durante as famosas festas do peão, passaram a ter alto grau de autono-
mia. Ganharam independência dos esquemas mais convencionais de
organização desses eventos, sendo promovidos por grandes empresas,
que contratam profissionais especializados, sob a forma de presta-
ção de serviços: tropeiros; locutores; equipes de som e luz; proprietá-
rios de estruturas metálicas para montagem de arquibancadas e bretes,
quando não há estrutura fixa; salva-vidas; seguranças; auxiliares de
bretes e muitos outros. Encontrava-se, portanto, constituído um “mer-
cado” de profissionais e empresas para execução das tarefas necessárias
à existência dos rodeios. Também é no final da década de 1990 que os
rodeios passam a expressar, de forma clara, a associação entre esporte
e festa, exigindo uma maior profissionalização nesses dois níveis: na
organização da festa e na consolidação da prática esportiva.
A profissionalização dos rodeios como festa e como esporte veio acom-
panhada de um certo conjunto de formas de interação que remetiam
às tradições da prática do rodeio como algo que tem relação com o
ambiente rural, mas que ganhou independência desse ambiente e um
novo formato, associando-se aos padrões de comportamento urbano,
em cidades de pequeno e médio porte do interior do país. É importan-
te destacar que, no Brasil, eles foram se tornando um movimento sig-
nificativo para a compreensão de fenômenos mais amplos, particular-
mente aqueles relacionados à constituição dos espaços urbanos em ci-
dades de médio porte.
Contudo, é de domínio comum que atividades de competição envol-
vendo homens e animais bravos, como touros e cavalos, são praticadas
em diversas regiões do território brasileiro, desde o início de sua ocu-
pação, no período colonial. No entanto, nos anos 50, com a criação da
Festa do Peão de Boiadeiro da cidade de Barretos tem início a “fase
empresarial” dos rodeios, que perdura até os dias de hoje.
Os empresários do mundo dos rodeios agem como se precisassem pro-
var que os traços rurais da atividade que promovem não podem ser
identificados com o atraso e a letargia sempre tributados ao campo e
aos seus moradores. A crença de que os padrões rurais são um impedi-
mento ao desenvolvimento do Brasil foi constantemente reiterada pelo
pensamento social brasileiro, pela literatura, pelo cinema, pelas artes
plásticas e acabou estimulando as distinções entre o que seria próprio
do rural e do urbano, como se essas separações fossem realmente pos-
síveis de serem feitas.8

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172

A análise da organização do mundo dos rodeios, na atualidade, precisa


considerar que as mega-festas dos anos 90 não se explicam por si. Há
um processo de elaboração dos rodeios, no Brasil, como esporte/festa/
folclore que tem referência nas práticas lúdicas e laboriosas existentes
nas fazendas de gado brasileiras espalhadas por diversos “sertões”,
urbanizados ou em via de urbanização, no período que antecede à con-
solidação do chamado “movimento country”.9 Esse movimento, segun-
do Pimentel (1997, p. 30), ganhou fôlego, por aqui, no final dos anos
80, com a explosão das festas do peão e da música sertaneja.
A emergência do rodeio universitário, em Maringá, é um exemplo de
que a prática dos rodeios, no Brasil, hoje, está relacionada a questões
amplas, indicando que a realização desses eventos pode ter múltiplas
causalidades: a cidade não tem forte tradição na pecuária, mas teve a
sua história vinculada à cultura do café, que cresceu ao largo da cultura
caipira.10 O trânsito de cantores caipiras e sertanejos pela cidade e a
descrição da região norte do Paraná nos versos de algumas modas de
viola indicam a relação de Maringá com os padrões desse universo.
Padrões esses que encontram-se difusos e que foram reelaborados no
processo de organização do rodeio universitário na cidade, no final dos
anos 80.
Além disso, nos últimos anos, uma das imagens que se têm construído
de Maringá é a de que o seu “destino” é ser um pólo universitário. A
valorização e o investimento da burguesia empresarial local no “proje-
to” do rodeio universitário estaria, portanto, em consonância com a
divulgação dessa imagem de cidade.
É importante destacar que o mundo dos rodeios vive uma fase recente,
em que se busca a transformação efetiva desses eventos de jogos popu-
lares e competições amadoras em atividade esportiva e oficial. O movi-
mento de oficialização dos rodeios como esporte ganhou força em mea-
dos da década de 1990, com a explosão do número de festas. Mas,
apenas em 1996, com a criação da Federação Nacional do Rodeio Com-
pleto (FNRC), as pressões dos grupos interessados no reconhecimento
dos rodeios como esporte começam a ser apresentadas de forma mais
sistemática. Em 1999 é criada a Confederação Nacional de Rodeio
(CNR), que auxiliaria nas pressões e nas campanhas para o reconheci-
mento dessa nova modalidade esportiva, que aconteceria, de fato, em
abril de 2001.11
Quando a idéia de organizar um circuito de rodeios universitários foi
apresentada, em 1989, na Universidade Estadual de Maringá (UEM),

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alguns estudantes e professores a consideraram ridícula. Para eles, o


rodeio não combinava com o ambiente do campus. Portanto, a rejeição
em transformar os traços do cowboy/caipira no padrão identitário
hegemônico da cidade esteve presente desde as primeiras tentativas de
organização desse mundo em Maringá. Reações como essa e também
aquela apresentada por Dias em relação à associação de Maringá à Dallas
não são imprevistas. Denotam uma das contradições próprias das cida-
des que estão vendo os seus espaços urbanos se tornarem lugares mais
plurais. Para algumas pessoas, o projeto Dallas-Maringá contraria o en-
tendimento que elas têm do que seria uma cidade moderna, cosmopo-
lita, urbana e do futuro. Elas consideram que a presença dos cowboys,
que ouvem música caipira e sertaneja, andam pela cidade com as suas
picapes e caminhonetes e gostam de ir aos rodeios é a negação da con-
cepção de cidade que vêm elaborando. Entretanto, para o grupo de
organizadores e adeptos do mundo dos rodeios e, ainda, para uma
parcela da elite política local, não há nenhuma contradição entre se
promover um rodeio dentro da Universidade e ela continuar sendo
um dos maiores símbolos da modernidade na cidade. Aliás, para eles
não há nada que expresse mais a vocação para o progresso e a
modernidade do que os rodeios, que, entre outras coisas, poderiam su-
gerir uma aproximação de Maringá com aquela importante, rica e de-
senvolvida cidade norte-americana, que muitos deles não conhecem.
Há, portanto, em Maringá, um complexo jogo de classificações que
ajudam alguns grupos a criarem as suas próprias configurações dentro
de um espaço geográfico, que é também palco de disputas de diferen-
tes projetos políticos e culturais. Perceber a existência desse jogo é com-
preender que, de fato, nem todo jovem de Maringá sonha em ser cowboy,
nem toda “garota da elite” quer ganhar o concurso da garota country e
um passeio pelas ruas da cidade não sugere que ela seja a imagem do
“Brasil de botinas e chapéu de couro”. Entretanto, todas essas coisas
também existem em Maringá.
A organização do mundo dos rodeios nessa cidade do norte do Paraná
partiu de segmentos sociais que têm demostrado muito poder e, por-
tanto, concordo com as avaliações de Dias (2003) quando ele argumen-
ta que a divulgação dessa imagem de Maringá como uma cidade muito
próxima a Dallas conduz a um perigoso erro: pensar que os rumos
políticos e econômicos do município encontram-se definidos.
Contudo, é preciso considerar que, em dissonância com os indicadores
positivos, constantemente relembrados quando fala-se de Maringá,
existem os dados do Mapa da Pobreza do Paraná.12 Eu mesma e Dias, em
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artigos de divulgação escritos para uma revista de circulação local, in-


terferimos nesse debate, apresentando algumas informações que servi-
ram para ponderar a situação sempre muito favorável de Maringá. A
Dallas brasileira propicia também as seguintes estatísticas: apenas 37,82%
de residências ligadas à rede de esgoto; 10,31% de repetência escolar e
5% de abandono, e um crítico quadro de mortalidade infantil que che-
gava ao índice de 20,54%. Observávamos também que, como cidade-
pólo de uma região metropolitana que tem municípios em situação
sempre muito mais precária, Maringá não poderia ser pensada de for-
ma isolada.
Além disso, Maringá está inscrita em uma região onde as notícias de
violência e atrocidades contra os pobres do campo são constantes. Em
1999, uma matéria da revista Caros Amigos denunciava uma outra fase
de recrudecimento contra os movimentos que lutam pela democratiza-
ção do acesso à terra no Paraná:

Madrugada fria, por volta das 3h. A escuridão é total, e no descampado


em volta há muito silêncio, a sensação é de quietude e paz. De repente,
eclode o inferno. Centenas de pontos de luz invadem o negrume da
noite, tiros, cães ferozes ladram, bombas explodem na escuridão [...].
Com as mãos na nuca, os homens são obrigados a deitar de bruços
sobre o chão lamacento. As mulheres e as crianças, amedrontadas e
vigiadas por cães, são levadas para outro canto, sem direito sequer a
um copo de água. Suas moradias são destruídas e incendiadas, seus
pertences são roubados, sua dignidade aviltada [...]. Tudo isso aconte-
ceu no Brasil, mais precisamente no noroeste do Paraná, durante a
madrugada de 21 de maio de 1999. As vítimas são camponeses do MST
acampados em fazendas de Querência do Norte e região (ARBEX, 1999,
p. 10).
Notícias como essas, infelizmente, são rotineiras quando se trata da
situação das áreas rurais do Paraná, particularmente dessa região nor-
te do estado. A conhecida fertilidade das terras roxas, os razoáveis ca-
nais para escoamento da produção e a integração de toda essa região à
lógica da produção de grãos para o mercado externo ajudaram a valo-
rizar ainda mais as suas já valiosas terras. A luta pela posse da terra em
regiões agricultáveis que circundam cidades de médio porte, como
Maringá, endossam o argumento de que a criação desses novos e com-
plexos núcleos urbanos se deu sem solucionar o problema da tensão
pela posse da terra. Um dos motivos é o seguinte: essas cidades foram
criadas em espaços já ocupados por grupos sociais que mantinham re-

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lações produtivas com a terra, mas que não foram considerados aptos a
participar da grande empreitada capitalista que associou o estado e
uma companhia de terras.

M ARINGÁ E A CRIAÇÃO DA IDEOLOGIA


DO VAZIO DEMOGRÁFICO

Maringá e a região norte do Paraná, de uma maneira geral, foram


consideradas um imenso do “vazio demográfico” até o início da década
de 1930, do século XX. O termo “vazio demográfico” tem sido utiliza-
do em documentos oficiais do estado para avaliar a situação das áreas
escolhidas para o desenvolvimento de projetos de “colonização” que
visavam movimentar as atividades agropecuárias em determinadas re-
giões do país, anteriormente à instalação desses projetos. A implanta-
ção dos programas de dinamização das atividades produtivas também
tinha o objetivo de resolver o problema de assentamento de uma par-
cela significativa da população rural sem-terra, aliviando a tensão em
várias áreas de conflito. Esses projetos foram implantados pelo estado
que, às vezes, associava-se à iniciativa privada, principalmente às
cooperativas agrícolas e às companhias de terra. Entretanto, essas estraté-
gias governamentais acabaram gerando novos problemas para as co-
munidades que já ocupavam as áreas destinadas à implantação desses
planos, e que, ou foram expulsas, ou remanejadas para outras áreas. São
exemplos desse tipo de ação projetos como os Planos de Assentamento
Dirigido do Alto Paranaíba (PAD-AP), desenvolvidos nas regiões de
cerrado de Minas Gerais e os Programas de Colonização Canarana e
Terranova, implantados na chamada Amazônia legal.13
Mota (1994) destaca que a construção da “ideologia” de um território
vazio, desabitado, na região conhecida como o “terceiro planalto
paranaense” teve projeção através do discurso de vários agentes: os
que produziam a história oficial das companhias colonizadoras, os re-
presentantes governamentais, os geógrafos, os historiadores, os auto-
res de livros didáticos etc. Ele apresenta uma série de fragmentos de
textos elaborados por alguns desses agentes, que transformaram-se em
documentos para análise do processo de ocupação.
No meu entender, das versões apresentadas por Mota para a ideologia
dos espaços vazios, a mais forte pode ser encontrada nos livros didáti-
cos e nas obras que fazem apologia ao processo de formação das cida-
des dessa região paranaense. Com o decorrer dos anos, são essas as
“fontes” que deixam as marcas mais profundas: a primeira porque tem

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um alcance inimaginável entre um público que está formando a sua


própria opinião sobre o mundo, os alunos de escolas públicas e parti-
culares do Paraná, e a segunda porque é regularmente acionada para
reavivar a memória de determinados grupos que se consolidaram como
os responsáveis pela ação colonizadora em uma região extremamente
rica, mas ainda inexplorada. Cito um trecho do livro didático Pequena
História do Paraná, do início da década de 1950, reproduzido por Mota,
e que apresenta um quadro da forma como se articulou o discurso do
“vazio demográfico”:

No começo do século, remotamente se cogitava da exploração e apro-


veitamento econômico da imensa e fértil região do norte do Paraná.
Ela estava como que abandonada e esquecida pela nossa gente. Foi re-
velada ao Paraná quando chegou a cultura do café e a cada safra cres-
ceu o Norte do Estado. Primeiro, ao Norte Velho, chegaram mineiros e
surgiram cidades, Jacarezinho, Ribeirão Claro, Santo Antonio da Plati-
na. Depois vieram os homens da Companhia de Terras Colonizadora
do Norte do Paraná que, em acordo com o governo de Caetano Munhoz
da Rocha, realizaram o desbravamento do verdadeiro sertão, levando
consigo o povoamento efetivo. O sertão foi recuando e apareceram novas
plantações, fazendas e vilas. Vilas que depressa cresciam e eram cida-
des. Cidades de intenso movimento, logo por outras suplantadas. É o
desenvolver vertiginoso do chamado Norte Novo (WESTPHALEN, 1953
apud MOTA, 1994, p. 45-46).
Essa idéia do sertão que recua para dar lugar às fazendas e vilas que
rapidamente se tornariam cidades explicita – como afirma Mota – o
vigor da idéia de que essa região era um imenso vazio que, aos poucos,
foi sendo preenchido. Assim como é evidente o papel desempenhado
pela Companhia de Terras Norte do Paraná (mais tarde, Companhia
Melhoramentos Norte do Paraná) na divisão, loteamento, colonização
das “terras roxas” e fundação das cidades. Em outro momento, Mota
cita um trecho muito significativo que ajuda a entender de que modo a
ideologia do vazio demográfico foi formadora do imaginário da cidade
feita por pioneiros. Trata-se de um fragmento de Maringá: Ontem, Hoje
e Amanhã, de Arthur Andrade:

Tal qual soldados dispostos a vencer a árdua luta, começaram a utilizar-


se das armas que dispunham. E com manobras rápidas e certeiras, as
foices, os machados, as enxadas, os enxadões vibravam no ar. E lenta-
mente, a floresta tão exuberante e impenetrável cedia lugar àqueles
homens intrépidos e valentes.

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Eram os cedros, jacarandás, perobas, marfins, pau-d’alhos, que tom-


bavam sob o vigor do machado pioneiro. Quando a noite chegava,
fogueiras eram acesas para iluminar os toscos acampamentos observa-
dos por animais selvagens assustados com tanto barulho (ANDRADE,
1979 apud MOTA, 1994, p. 56).
Logo, os espaços vazios, os sertões ocupados pela ação “intrépida” e
“valente” dos pioneiros dispostos a criar aqui uma “civilização” organi-
zada em torno da cultura do café são algumas das imagens mais fortes
da história que culminaram na constituição de cidades como Maringá.14
Seguindo a linha das obras apologéticas sobre a ocupação dessa região,
observo que o livro Jacus e Picaretas – A história de uma colonização, regis-
trado na categoria de “romance histórico”, pretende “passar a limpo” a
história da colonização do norte do Paraná, mas termina por reiterar
a ideologia do vazio demográfico como suporte à ação legítima dos
pioneiros. Nesse livro, Ildeu Manso Vieira apresenta a necessidade de
mostrar o perfil de um determinado grupo (pioneiros), personagens
principais de um cenário “vigoroso”, o da “colonização recentíssima”
das terras vermelhas do Paraná.
Uma das principais preocupações de Vieira é retratar a diferenciação
interna do grupo de pioneiros que se dividiria em dois: os jacus e os
picaretas. Os primeiros seriam muito parecidos com os “caipiras”, aque-
les habitantes do campo, com pouca ou nenhuma escolaridade e de
modos rústicos e canhestros. Teriam vivido no meio das matas der-
rubando árvores, limpando o terreno, fazendo queimadas e plantando
café, transformando, portanto, a fisionomia da região. Os segundos,
foram considerados por Vieira os “verdadeiros bandeirantes do século
XX”, ocupando as funções de corretores das empresas colonizadoras.
São conhecidos dessa forma porque ao intermediar os processos de
compra e venda de terras das companhias loteadoras, às vezes, mentiam,
falseavam a localização dos lotes e até documentos.
Sobre o desempenho desses dois grupos, no desenrolar do processo de
colonização do norte do Paraná, Vieira faz a seguinte afirmação:

Londrina, Maringá, Cianorte, Umuarama e outras urbes são exemplos


dos mais eloqüentes do poderio econômico que o café gerou, chegando
a criar a época de ouro do Estado de Todas as Gentes. Os jacus deixa-
ram de ser bobalhões e vítimas das malandragens. Eles aprenderam o
jogo do comércio e formaram, no decorrer dos tempos, a casta dos
“novos ricos”.

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Os picaretas, os vivaldinos, para quem a lei de Gerson era o primeiro


e único mandamento da lei de Deus, preferiam os embustes, o logro, a
manta, para ludibriar os incautos, de forma a ganhar mais dinheiro,
mais rapidamente e com mais facilidade. E gastavam grande parte dele
nos bordéis de Bauru e Londrina, nas casas da Eny ou da Isolda, da
Diana ou da Stela e de tantas outras que montaram “rendez-vous” por
aqueles lados para captar recursos dos aventureiros que ganhavam di-
nheiro fácil e logo (VIEIRA, 1999, p. 13).
Desse recorte do livro de Vieira percebe-se uma representação das novas
cidades criadas pela Companhia de Terras Norte do Paraná: centros
formados pela expansão da cultura do café, povoados por vários gru-
pos sociais e ligados às atividades de comércio. Eram espaços propícios
para a emergência de “novos ricos” e também para a ação de aventu-
reiros, que terminariam por não encontrar muito espaço nessas novas
“urbes”.
A história que se conta sobre a ocupação dessa região é, então, aquela
do território vazio que se foi transformando pela a ação de pessoas
imbuídas da vontade de vencer pelo trabalho e de construir aqui nú-
cleos urbanos bem organizados, articulados à economia do café, sendo
que tudo deveria ser gerenciado pelo estado em parceria com uma
companhia de terras inglesa.
Entretanto, no bojo dessas histórias sobre a fundação da cidade de
Maringá, é importante destacar que uma apreciação crítica dos proces-
sos de ocupação capitalista de áreas consideradas, pelos programas ofi-
ciais do Estado, como “fronteira agrícola”, “frente pioneira” e “coloni-
zação recente”, como foi o caso da região em questão, tem, portanto,
que partir da problematização da idéia de “vazio demográfico”, que se
encontra subjacente a todas essas terminologias definidoras dos espa-
ços destinados ao desenvolvimento agrícola em formato moderno. A
análise de situações como as que ocorreram no norte do Paraná, na
década de 1930, mostra que há elementos no processo de constituição
dessa região que evidenciam a inconsistência da afirmação que gran-
des extensões de terra continuariam completamente ociosas e impro-
dutivas até as primeiras décadas do século passado.
No caso da região denominada norte novo do Paraná,15 o mito da re-
gião desocupada, porém de terras muito férteis e prontas para compor
o quadro das regiões produtivas do país, estava em desacordo com a
realidade e serve para mostrar como, diante de uma obviedade, cria-se
um discurso forte o suficiente para negá-la. A produção historiográfica

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e sociológica mais recente tem argumentado que, diante da presença


de tribos indígenas inteiras, elaborou-se uma justificativa para a ocu-
pação das suas terras que negava a sua existência.16
Mota (1994), em livro que discute a história de luta dos índios Kaingang
no norte do Paraná, mostrou que a construção da ideologia do “vazio
demográfico” teve como principal objetivo firmar a idéia de que a che-
gada de uma “frente capitalista competitiva”, no norte do Paraná, teria
sido pacífica e harmoniosa. O loteamento da região realizado pela com-
panhia de terras teria se dado com o objetivo de levar a região ao pro-
gresso, uma vez que estariam loteando áreas vazias, desocupadas e muito
férteis. Essa ocupação, segundo a linguagem oficial, ainda estaria se
dando de maneira profundamente democrática, posto que a terra seria
praticamente “distribuída” por essa “caridosa” companhia aos traba-
lhadores rurais. Entretanto, é de domínio público que o Paraná, parti-
cularmente a região norte do Estado, é um “campo minado”, um dos
lugares do país em que os conflitos pela posse da terra são mais agudos
e violentos, indicando que a democratização do acesso à terra ainda
não é uma realidade, como apontei na primeira parte desse artigo.
Vale destacar, ainda, que a ação colonizadora, no norte do Paraná, nas
primeiras décadas desse século, foi, desde os primeiros momentos,
extremamente ecocida17 e segregadora, porque devastou indiscri-
minadamente as florestas para o cultivo, principalmente de café,
o “ouro verde”, e excluiu a maioria da população que já vivia nessas
áreas. Discute-se a necessidade de falar não exatamente de uma ocupa-
ção, mas de uma (re)ocupação, que teria seguido a lógica da explora-
ção capitalista da terra e se pautado na violência e na exclusão, uma
vez que a presença de índios e caboclos era percebida como impedi-
mento ao progresso e ao desenvolvimento produtivo da região. Como
observou Tomazi (1999, p. 64):

Enfim, o que se pretende mostrar com essa fantasmagoria é que há


uma especificidade no processo de (re)ocupação, que é falado como
apenas “ocupação”. Essa especificidade foi designada inicialmente ten-
do por base a “floresta exuberante” e a fertilidade da terra, bem como
a presença da terra roxa, sendo designada como “Terra da Promissão”,
o “Novo Eldorado”, a “Nova Canaã” [...], expressões que estarão pre-
sentes nas diversas narrativas desde o início deste século até os dias de
hoje.
Essa visão fantasmagórica da história da região norte do Paraná obliterou
não só a existência física dessas populações, mas também elementos da

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sua cultura. Aquela dimensão da cultura rústica dos caipiras, contada


por Candido (1987) para São Paulo, aqui ficou por ser analisada. A
“ideologia do vazio demográfico” ocultou não só pessoas e grupos, mas
também as suas práticas culturais.
A imagem de pioneiros construindo uma região tornou-se a mais forte
e com maior poder explicativo no processo de constituição dessas cida-
des do norte do Paraná, esquecendo-se, por exemplo, a dimensão da
cultura cabocla e caipira que havia se consolidado por aqui. Ao resga-
tar aspectos da cultura dos pioneiros, o que prepondera é a postura
valente e destemida que é lida sob a ótica da visão empreendedora. Os
elementos da sociabilidade de grupos que se organizaram em torno da
cultura do café são secundarizados ou apagados mesmo. No entanto,
eles permaneceram difusos na constituição de cidades como Maringá.
A ideologia do “vazio demográfico” foi, portanto, divulgada e aperfei-
çoada pelo Estado, pelas suas agências, pelos seus tecnocratas e, tam-
bém, por boa parte da produção histórica, geográfica e sociológica que
foi produzida sobre a região até o final dos anos 80. Ela sobreviveu por
décadas e, ainda que comece a ser questionada, continua presente en-
tre aqueles que chegaram com os planos de colonização e fazem parte
da constituição da memória de gerações futuras.

C ONCLUSÃO
Penso que a construção da ideologia do “vazio demográfico” foi funda-
mental para o Estado brasileiro, em diversos momentos, consolidar os
seus programas de colonização. O norte do Paraná, na década de 1930,
seria apenas mais um exemplo. Essa ideologia foi e é eficiente, em gran-
de parte, porque vem sendo construída por pessoas autorizadas a falar
sobre a organização do espaço social agrário brasileiro: geógrafos, his-
toriadores, sociólogos, agrônomos, representantes de cooperativas agrí-
colas etc. Estes agentes contam com o auxílio dos meios de divulgação
acadêmicos (publicações científicas, relatórios técnicos de empresas) ou
de massa (jornais locais ou de circulação nacional, revistas técnicas
especializadas).
A construção da ideologia do “vazio demográfico” ocultou, durante anos,
personagens e situações nessa região. Como observa Tomazi (2000),
pensar que a história do norte do Paraná começa com a chegada dos
pioneiros trazidos pela companhia de terras, ou seja, a partir do mo-
mento em que começa a ocupação capitalista, é deixar de fora os índios;
os ribeirinhos; os trabalhadores nordestinos, que vieram trabalhar nas
ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 161–187, 1. sem. 2004
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lavouras de café e nunca foram considerados “pioneiros”; os trabalha-


dores rurais sem terra; os caboclos; enfim, os que não foram incorpora-
dos pelo projeto de expansão capitalista e que, portanto, não podem
compor a “história fundante” dessa região.18
Nesse sentido, a constituição do mundo dos rodeios em Maringá segue
uma lógica muito diferente daquela identificada, por exemplo, por Paula
(1999) em Presidente Prudente, no interior de São Paulo. Lá, ela pre-
cisou elaborar a história de três gerações de pecuaristas do município,
adotando a idéia de que nessa região teriam existido “pioneiros”. Esse
tipo de abordagem é impossível de ser adotada para pensar a emer-
gência do mundo dos rodeios em Maringá. Caso adotasse essa pers-
pectiva, teria que desconsiderar todas as ponderações que vêm sendo
feitas – algumas delas expostas acima – sobre os problemas de refletir
sobre as cidades e os seus fenômenos sociais a partir dos marcos da
“história fundacional”. No caso de Maringá, pensar que, com a chega-
da dos pioneiros, teriam sido criadas as bases para a formação do mun-
do dos rodeios seria omitir uma parte da história, seria, em última
instância, aceitar o “discurso do vazio demográfico” que diz que a his-
tória dessa região começa com a chegada do capital, nesse caso, perso-
nificado pelos “pioneiros”, sendo praticamente uma conseqüência na-
tural pensar que deles teriam partido a criação e a estruturação do
mundo dos rodeios, em Maringá, o que não se verifica. Aqui, o projeto
de organização dessa atividade não tem referência na história dos pio-
neiros que chegaram à região e, sim, nas ações das novas elites empre-
sariais da cidade, “conectadas” aos ideais empreendedores mais mo-
dernos.
Desde o início da exploração capitalista das terras dessa região do esta-
do do Paraná, alguns “valores” foram amplamente difundidos: cidades
como Maringá e Londrina foram “formadas” com a idéia de que seriam
cidades do “futuro”, voltadas para as atividades comerciais, privile-
giando o dinamismo econômico e empresarial. A disposição para o tra-
balho em condições adversas e o “espírito pioneiro” que consolidaria
uma “civilização” moderna, futurista e equilibrada, além de pacífica e
em harmonia com o meio ambiente são ideais insistentemente reitera-
dos quando é o caso de destacar o “sucesso” dessas regiões. Esse espaço
modernamente planejado e conectado com as “melhores” ações de cons-
tituição de núcleos urbanos teria ainda propiciado a formação de lide-
ranças políticas e empresariais que combinam com tanta modernidade.
Nesse percurso, a ideologia dos pioneiros é acionada com alguma fre-
qüência, embora tenha-se o entendimento de que ela não conseguiu

ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 161–187, 1. sem. 2004


182

manter-se como um padrão hegemônico: resgata-se dos pioneiros a


vontade de fazer, o dinamismo, mas acrescenta-se a isso a exigência da
mudança e da transformação que sobrepõem os pioneiros e tudo que
faz parte do passado.
O imperativo do presente e a vocação para um futuro (que é visto sem-
pre como uma fase onde tudo será melhor) são marcas muito fortes na
cidade de Maringá: em menos de 60 anos, a ideologia da ação de pio-
neiros construindo um espaço, se não foi esquecida, ao menos, diluiu-
se na criação de uma outra perspectiva que “soluciona” e “controla” os
problemas e que tira Maringá do passado de “região pioneira” e a colo-
ca no futuro de “cidade com qualidade de vida”. Atraente por esse
motivo e porque oferece condições para novas ações empreendedoras.
Entretanto, a ideologia da qualidade de vida deixa de fora tudo que
fica nas franjas da cidade: os pobres e os bairros periféricos. Enfim, a
pobreza e a miséria precisam ser apagados. Assim como o padrão ante-
rior excluiu da história de Maringá e da região grupos sociais inteiros
(índios, catadores de café, ribeirinhos e caboclos), a ideologia da cidade
verde e com “qualidade de vida” resolve que os seus pobres não exis-
tem, ou que não são tão pobres assim. Nessas cidades médias e bem
planejadas, a miséria e a violência, parceiras inseparáveis, são apresen-
tadas como problemas sob controle ou passam a não existir na hora em
que a cidade é apresentada como um produto a ser vendido.

ABSTRACT
The aim of this article is to describe and analyze some of the various projects
of constitution of a middle-sized city, Maringá, located at Northern Paraná,
Southern Brazil. The city, with its 57 years of existence and a population of
approximately 300.000, is the third município of Paraná and is widely
known as one of the Brazilian cities that offer a good quality of life to their
inhabitants. Some years ago, Maringá became nationally famous as the
“Brazilian Dallas”. This city was presented as a progressive “hinterland
civilization” that values positively the rodeo world and anything related to
the country/caipira/sertaneja culture.
Keywords: middle-sized cities; urban anthropology; rodeos.

ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 161–187, 1. sem. 2004


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186

N OTAS
1
Para uma discussão mais detalhada do processo de constituição das regiões metropolitanas no Brasil, ver
Andrade e Serra (2001). Para uma abordagem específica da região metropolitana de Maringá, ver Rodrigues
e Tonella (2003).
2
O estudo realizado por essas instituições chama-se “Caracterização e Tendência da Rede Urbana do Brasil” e
foi publicado no número 3 da Coleção Pesquisas, da UNICAMP, em 1999. Resumo comentado de alguns
dados pode ser encontrado em matéria na Folha de São Paulo . São Paulo, 2 maio 1999. Caderno C, p. 1-10.
3
Dados do Censo 2000, do IBGE.
4
Considerando a importância geoeconômica da cidade de Maringá para a região norte do Paraná, Milton
Santos (1989) afirma que o município funciona como uma “metrópole do interior”, categoria que serve para
enfatizar o rápido processo de urbanização dessa cidade.
5
Esse termo é usado por Becker (1977) para referir-se à forma como os integrantes do “mundo artístico” agem
para produzir uma “obra de arte”. A apropriação dessa idéia para pensar o mundo dos rodeios pode parecer,
para aqueles que os percebem como lugar da produção do “lixo cultural”, indevida; mas considero ser
possível pensar que os idealizadores dos circuitos criam uma “rede de cooperação” que permite a produção
de um espetáculo que eles e os demais apaixonados por esse mundo consideram extremamente bonito,
empolgante e comovente. Vianna (1997) utiliza o mesmo conceito para pensar a atuação dos DJ’s no mundo
funk carioca.
6
Expressão utilizada por Priolli (1999) em artigo publicado no jornal Gazeta Mercantil, que falava da impor-
tância econômica dos rodeios e das estratégias adotadas por emissoras de TV que trabalham por assinatura,
como a CMT (Country Music Television), para abocanhar o mercado brasileiro.
7
Alem (1996, p. 55) argumenta que, no Brasil, esses três termos tornaram-se quase sinônimos, muito embora
as práticas e as representações que lhes deram origem sejam muito diferentes. Para esse analista, o movimen-
to seria o seguinte: o caipira e o sertanejo teriam se diluído no country, podendo estar no campo ou nas
cidades, por força de um novo “modo de vida”.
8
Para a improdutividade de trabalhar com o binarismo entre rural e urbano ver, numa perspectiva mais geral,
Williams (1990) e, no Brasil, o conjunto de artigos de Veiga (2002).
9
Pimentel (1997, p. 31) argumenta que esse movimento representa a fase atual e mais moderna do processo
cultural em que se colocou a tarefa de reinterpretar e requalificar o sertão.
10
Não é por acaso que um famoso programa de música caipira feito no rádio, no final dos anos 60, pela dupla
Tonico e Tinoco, chamava-se Na Beira da Tuia. Tulha é o nome dado aos reservatórios de grãos de café. Tal
programa ficou no ar por 30 anos e era ouvido em várias cidades do interior de São Paulo, Paraná e Minas
Gerais. Ver Nepomuceno (1999, p. 91-92).
11
Diz o artigo primeiro da lei: “Considera-se atleta profissional o peão de rodeio cuja atividade consiste na
participação, mediante remuneração pactuada em contrato próprio, em provas de destreza no dorso de
animais eqüinos ou bovinos, em torneios patrocinados por entidades públicas ou privadas. Parágrafo único:
Entendem-se como provas de rodeios as montarias em bovinos e eqüinos, as vaquejadas e provas de laço,
promovidas por entidades públicas ou privadas, além de outras atividades profissionais da modalidade orga-
nizadas pelos atletas e entidades dessa prática esportiva”. Percebe-se que, com essa lei, as vaquejadas são
englobadas pelos rodeios. Pensar o significado disso é tema para outra discussão, mas ressalto que, talvez,
essa seja a primeira vez que as diferenças entre os dois foram esquecidas. Há ainda uma outra regulamenta-
ção importante no artigo quinto, dessa mesma lei, que considera o “peão de rodeio” um segurado equipara-
do aos demais trabalhadores autônomos, para fins de filiação ao Regime Geral de Previdência Social.
12
Para uma análise preliminar desses dados, ver Costa e Dias (1998a; 1998b).
13
Para uma análise mais detalhada desses projetos de colonização, ver Costa (1996) e Santos (1993).
14
O argumento que o cultivo do café possibilitou a ocupação, urbanização e a industrialização de várias regiões
do Brasil, particularmente, no estado de São Paulo e seus “prolongamentos”, é desenvolvido, entre outros,
por José de Souza Martins. Ver especialmente Martins (1990).
15
Para uma discussão aprofundada da carga ideológica presente na caracterização dos chamados três nortes
(Velho ou Pioneiro, Novo e Novíssimo), ver Tomazi (1995).

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187
16
Em relação à questão indígena, ver, particularmente, Mota (1994) e Mota e Noeli (1999).
17
Segundo Dean (1997), em livro que discute o grau de devastação da mata atlântica no Brasil, é significativo o
que aconteceu nas regiões destinadas à cafeicultura no interior de São Paulo e do Paraná. Uma projeção da
velocidade com que, nessa área, as florestas foram incorporadas à dinâmica produtiva é apresentada por esse
autor com os dados sobre o crescimento da população: entre 1900 e 1950 a população do Brasil teria triplicado,
a de São Paulo quadruplicado e a do Paraná crescido quase seis vezes e meia.
18
A crítica pós-colonialista, principalmente aquela realizada por Edward Said (1996) e Homi Bhabha (1998),
tem mostrado os limites dos grandes esquemas teóricos instituídos pela tradição do pensamento ocidental.
Eles realizam um trabalho de apropriação, revisão e ampliação de algumas abordagens já consagradas pela
teoria social. Empreendem uma “reconstrução teórica” que tem como ponto de partida a investigação do que
ficou de fora das grandes narrativas criadas para “explicar” o mundo. Outra questão muito importante para
esses autores é o repúdio a uma “historiografia fundacional” que quase sempre está assentada no poder do
capital ou na sua capacidade de criar sistemas de dominação, opressão, fases e marcos definidores do que
seria a “História da Humanidade”.

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RESENHAS
ASHLEY, Patrícia Almeida (Org.). Ética e responsabi-
lidade social nos negócios. São Paulo: Saraiva, 2002.

R ESPONSABILIDADE SOCIAL EMPRESARIAL : UM BALANÇO


PRISCILA ERMINIA RISCADO*

O texto organizado por Patrícia Ashley tem por objeti-


vo central reunir a produção acadêmica recente, de sig-
nificado mais relevante, para discutir o tema da res-
ponsabilidade social e sua aplicação aos negócios. Para
isso, a autora divide o livro de onze capítulos em duas
partes, sendo que na primeira parte é feito um balanço
teórico sobre o conceito de responsabilidade social e
um balanço da literatura nacional e internacional liga-
da ao tema e, na segunda, são apresentados estudos de
caso de responsabilidade social no Brasil.
Trata-se de um livro realizado por vários autores, sob a
supervisão de Patrícia Ashley. Adele Queiroz é respon-
sável pelo Capítulo 8, que é fruto de sua tese de
mestrado; Alexandre Jorge Gaia Cardoso é autor, con-
juntamente com Patrícia Ashley, dos Capítulos 1 e 2;
Andréa Alcione de Souza e Armindo dos Santos de Sou-
za Teodósio, realizaram a pesquisa apresentada no Ca-
pítulo 5; Elvira Cruvinel Ferreira Ventura apresenta no
Capítulo 11 os resultados da pesquisa de sua tese de
mestrado; Jorge Bezerra Lopes Chaves é o autor do
Capítulo 10; Letícia Helena Medeiros Veloso é respon-
sável pelo Capítulo 4; Lilian Mara Aligleri elaborou o
Capítulo 8, baseado em sua dissertação de mestrado,
que teve pesquisa complementar de seu orientador,
Benilson Borinelli; Paulo Rogério dos Santos Lima é
responsável pela elaboração do Capítulo 6 e, finalmen-
te, é de autoria de Roberto do Nascimento Ferreira a
dissertação de mestrado que compõe o Capítulo 9.
No início da primeira parte deste primeiro capítulo,
intitulado “A responsabilidade social nos negócios: um
conceito em construção”, é abordado o tema da res-
*
Mestranda em Ciência Po-
lítica, PPGCP/UFF. ponsabilidade social, destacando-se o fato desta ser pro-
192

duto de estudos recentes e, por isso, apresentando conceitos que podem


ser considerados ainda em construção. A autora, então, utiliza-se de
algumas definições existentes para apresentar o tema. Contudo, antes
de falar especificamente sobre responsabilidade social, faz um breve
histórico para contextualizar o tema dentro da atual conjuntura econô-
mico-social mundial (ocidental, em especial), em que a crise do welfare
state e o fenômeno da globalização produziram grandes transformações.
A seguir, em “Uma revisão da literatura sobre responsabilidade social
corporativa”, é apresentada uma ampla revisão da literatura contem-
porânea sobre o tema da responsabilidade social, produzida academi-
camente a partir da década de 1970 até os dias atuais. Destaca-se a
evolução das definições sobre o tema ao longo dos anos, pois estas tor-
naram-se mais completas passando a apontar mais fatores, como as
questões ligadas ao meio ambiente, à cultura da sociedade a qual per-
tencem as empresas etc. Ao final do capítulo, apresentam-se as tendên-
cias e os desafios para a responsabilidade social nos negócios na contem-
poraneidade.
Em “Orientação estratégica para a responsabilidade social nos negócios:
um modelo para análise, decisão e implementação” é apresentada uma
proposta metodológica para a incorporação da responsabilidade social
nos negócios. Para isso, a empresa é considerada uma rede de relacio-
namento entre stakeholders1 associados ao negócio, organizações e insti-
tuições que afetam a existência e operação da empresa e são afetados
por ela. Conjuntamente com esta metodologia, é apresentada a tentati-
va de construção de um modelo conceitual denominado “mandala da
empresa socialmente responsável”, que tem por objetivo demostrar a
inserção relacional da empresa na sociedade e no ambiente em que se
encontra inserida.
Já “Ética, valores e cultura: especificidades do conceito de responsabili-
dade social corporativa” busca discutir essas três dimenções, relacio-
nando-as com o tema da responsabilidade social. Os autores tentam
mostrar como é possível pensar a idéia de responsabilidade social to-
mando a ética como ponto de partida, já que esta é uma discussão ex-
tremamente relevante no cenário empresarial atual, em que ser social-
mente responsável vem-se tornando exigência para a sobrevivência de
uma empresa. Ao final, coloca-se em pauta a importância dos aspectos
1
Em CHEIBUB, Zairo; LOCKE, Richard. Valores ou interesses? Reflexões sobre a responsabilidade social
das empresas. In: KIRSCHNER, A. M.; GOMES, E. R.; CAPPELLIN, P. (Org.). Empresas, empresários e
globalização. Rio de Janeiro, 2000, os autores definem stakeholders como grupos que têm algum tipo de relação
com a empresa e que se podem beneficiar, mediata ou imediatamente, de suas ações.

ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 191–194, 2. sem. 2003


193

culturais, tratando-se em especial do caso brasileiro, e a inserção desses


aspectos no desenvolvimento de uma empresa socialmente responsável.
Em outro capítulo, reflete-se sobre a preocupação que emergiu nas úl-
timas décadas sobre a temática ambiental entre as empresas, destacan-
do o contexto atual de internacionalização das economias e
reestruturação dos processos produtivos na indústria etc. Observa-se
também o interesse da sociedade por empresas que se utilizam de mo-
delos de produção com gestão ambiental, que resultam em produtos
finais que não degradam o ambiente.
Finalizando a fundamentação teórica, “Inserindo a responsabilidade
social das empresas no contexto brasileiro” concentra-se em uma leitu-
ra crítica das práticas de responsabilidade social existentes no Brasil.
Os autores ressaltam a necessidade de contextualizar-se o tema da res-
ponsabilidade social para que se possam entender todas as variáveis em
questão. O outro objetivo é o de tornar o tema responsabilidade social
um conceito, afastando-o de tentativas de redução deste a um tipo es-
pecífico de prática empresarial voltada para a responsabilidade social.
Encerrada a reflexão teórica da primeira parte, a segunda analisa os
estudos de casos que ilustram essa reflexão. Com “Aplicação de mode-
los de responsabilidade social à realidade brasileira”, verifica-se a
aplicabilidade de indicadores de responsabilidade social das empresas
por meio de um estudo de quatro empresas selecionadas. Elas foram
medidas de acordo com os indicadores de Michael Hopkins, que, em
1997, sugere uma base para efetuar a auditoria social de uma empresa,
contribuindo para a constituição de um sistema geral de ranking que
permita comparar as empresas entre si no que diz respeito a seu grau
de responsabilidade social.
Em “Responsabilidade social nas grandes empresas de Londrina e re-
gião”, o foco central é um estudo de caso sobre o nível de envolvimento
de empresas existentes na região de Londrina, no Paraná, com a prática
da responsabilidade social. Para tanto, o estudo aborda a percepção do
empresariado regional, a forma de atuação social, as práticas de filiais
de grandes empresas com matriz instalada em outros centros e algu-
mas dificuldades e limites encontrados na atuação social empresarial.
Já em “Cooperativas agropecuárias: uma análise sociopolítica”, a pro-
posta é analisar a situação sociopolítica de cooperativas agropecuárias,
as quais diferem dos demais tipos de organizações econômicas porque
combinam associação e empresa, fins econômicos e sociais. Ao longo do
capítulo, são apresentadas sugestões propondo a contabilização e apre-

ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 191–194, 2. sem. 2003


194

sentação das demonstrações financeiras dessas organizações para que


os aspectos financeiros sejam evidenciados. As cooperativas escolhidas
são as de café e leite da região sul do estado de Minas Gerais.
Com “A reinclusão da terceira idade: uma abordagem para a responsa-
bilidade social”, é apresentado um estudo de caso sobre uma empresa
de recursos humanos do Rio de Janeiro que vem recrutando e selecio-
nando pessoas com idade acima de 55 anos, por meio de um projeto
denominado “A terceira idade dá o troco”, para retornarem ao merca-
do de trabalho. Este projeto tem como principal cliente uma rede de
supermercados, localizada na mesma cidade, que antes do mesmo não
incorporava a responsabilidade social entre suas prioridades.
Encerrando o livro, o estudo de caso intitulado “O Banco Central do
Brasil” debate a responsabilidade social nas organizações do setor pú-
blico, tratando especificamente do Banco Central. A responsabilidade
social dessas organizações é veiculada por meio tanto da transparência
na atividade de prestação de contas, quanto por diretrizes referentes
ao efetivo desempenho da sua responsabilidade social. Utiliza-se para a
confecção do estudo a apresentação dos resultados da pesquisa realiza-
da pela autora junto ao Banco Central (Bacen) em 1999, sobre sua res-
ponsabilidade social.
A importância do trabalho em questão está não só em seu pioneirismo,
mas na seleção de estudos muito interessantes e bastante diversos sobre
o tema da responsabilidade social produzidos no Brasil, constituindo-
se em importante fonte de consulta para os interessados em estudar.

ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 191–194, 2. sem. 2003


FARAH, Marta Ferreira Santos; BARBOZA, Hélio
Batista (Org.). Novas experiências de gestão pública e
cidadania. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 2001.
O MOSAICO POLÍTICO - ADMINISTRATIVO BRASILEIRO
DANIELA DA SILVA LIMA*

O livro organizado por Marta Ferreira Santos Farah e


Hélio Batista Barboza não é importante somente por
divulgar um relevante projeto de incentivos à produ-
ção de experiências inovadoras implementadas no país
visando estimular o debate e a reflexão crítica sobre
processos de transformação na gestão pública subna-
cional no Brasil.
Trata-se, pois, de uma nova forma de se pensar a exe-
cução de políticas públicas, que mesmo sob novos desa-
fios, como, por exemplo, minimizar práticas clientelís-
ticas nas relações sociais e conseguir a adesão da socie-
dade aos projetos propostos, segue rumo ao fortaleci-
mento da capacidade de intervenção local, resultante
da articulação entre governo e sociedade civil.
Neste sentido, a constante busca por parcerias, a
democratização do acesso às informações e o resgate
de valores éticos respeitando a diversidade cultural de
cada comunidade visariam, segundo os organizadores
do livro e os autores dos projetos apresentados, garan-
tir ao cidadão seus direitos fundamentais, sobretudo, o
direito de participar das tomadas de decisões funda-
mentais para o desenvolvimento do país.
Este livro é uma obra importante, sendo o quarto livro
de uma série do Programa Gestão Pública e Cidadania,
iniciativa da Fundação Getúlio Vargas e da Fundação
Ford, com o apoio do Banco Nacional de Desenvolvi-
mento Econômico e Social (BNDES). As 20 experiên-
cias relatadas nesta obra foram selecionadas como
finalistas do ciclo de premiação de 1999 deste progra-
ma. Foram consideradas as mais bem-sucedidas e cir-
cularam num universo de centenas de projetos que
*
Cientista social, mestranda enfocavam, principalmente, alguns caminhos possíveis
em Ciência Política na UFF. e encontrados pelos governos locais para solucionar ou,
196

pelo menos, amenizar bastante os problemas vivenciados em suas co-


munidades.
Dividido em duas partes, o livro procura enfatizar a crescente impor-
tância dos governos subnacionais no Brasil dos anos 90, nos quais per-
cebe-se um contínuo e complexo processo de descentralização, uma
vez que não se trata de simples deslocamento de políticas da esfera
federal para as outras esferas de poder, mas, sobretudo, da articulação
entre as iniciativas da esfera federal e aquelas sugeridas pelas esferas
municipais (locais) e estaduais.
Dessa maneira, em sua primeira parte, o livro sugere que os governos
municipais e estaduais assumiriam, gradualmente, novas funções e atri-
buições que não apenas a execução de políticas formuladas e controla-
das financeiramente pelo governo federal – eles passariam de executo-
res a formuladores e implementadores de políticas públicas em dife-
rentes áreas nos últimos anos. Tal fenômeno seria decorrente de uma
série de fatores que impulsionaram esse deslocamento, entre eles: a
crise fiscal, pressões por descentralização, novos desafios gerados pela
globalização etc.
A segunda parte foi subdividida nos projetos propriamente ditos, con-
tendo uma análise de cada projeto finalista. É interessante observar
que embora haja um entusiasmo em mostrar as iniciativas inovadoras
dos governos subnacionais, muitas delas são consideradas “marginais”
no contexto de determinada política pública, “caracterizando-se como
periféricas na ação de uma secretaria ou um órgão público” (FARAH;
BARBOZA, 2001, p. 17). O reconhecimento do potencial das iniciati-
vas não deve obscurecer os limites e as dificuldades que os projetos
ainda enfrentam, o que poderia restringir, em alguns casos, o caráter
inovador dessas experiências.
Muitos dos programas referem-se à preocupação dos governos muni-
cipais e estaduais com o campo, incentivando o desenvolvimento da
pequena produção rural, que pode ser uma alternativa para a geração
de empregos e renda em vários municípios brasileiros. Outra preocu-
pação apresentada em alguns programas articula os objetivos de recu-
peração e preservação ambiental ao de desenvolvimento sustentável da
agricultura. Há, também, entre outros, os programas que destacam a
ação governamental em relação às crianças e adolescentes, tanto quan-
to aos que se encontram em situação de risco por causa da extrema
pobreza em que suas famílias vivem como aqueles que vivem em ambien-
te de extrema violência.

ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 195–198, 1. sem. 2004


197

Dentre os autores dos projetos, encontram-se professores de universi-


dades públicas, pesquisadores e especialistas em administração muni-
cipal, cientistas sociais, jornalistas, cientistas políticos, todos interes-
sados em propor e discutir melhorias das condições de vida da nossa
sociedade.
A questão central do livro é destacar que ações inovadoras que buscam,
principalmente, parcerias para realização e execução de projetos, po-
dem mobilizar vários órgãos governamentais, diversas entidades da
sociedade civil e organizações próprias dos povos indígenas para en-
frentarem problemas, que outrora, poderiam ser vistos sem solução,
definindo em conjunto políticas e programas. Segundo os organizadores
do livro, à medida que a sociedade civil participa dos programas em
sua implementação, os beneficiários das políticas poderiam ser tam-
bém o “sujeito” delas e tomariam consciência, também, das inúmeras
dificuldades que uma ação pode sofrer (o que poderia restringir o po-
tencial transformador das experiências e iniciativas), uma vez que o
caráter inovador das propostas interfere em estruturas institucionais e
práticas de gestão bastante consolidadas.
Para Marta Farah e Hélio B. Barboza a participação da sociedade civil
nesses programas poderia ser avaliada num duplo movimento, pois,
de um lado, as iniciativas governamentais tentam atender às necessida-
des e reivindicações das comunidades a que se dirigem e, de outro,
essas iniciativas funcionam como elementos de mobilização de tais co-
munidades, fortalecendo seus potenciais de manifestação no espaço
público e de organização.
Deste modo, estes autores procuraram demonstrar o enorme potencial
dos 20 programas selecionados, entretanto, lembram que limites e di-
ficuldades precisam ser superados, principalmente aqueles relativos à
confiança no resultado das iniciativas, à abrangência das experiências e
à consolidação de parcerias entre diferentes entidades da sociedade
civil, que ajudariam, entre outros, no financiamento dos projetos.
Na verdade, a apresentação das iniciativas pretende fornecer subsídios
para uma reflexão sobre a contribuição dos governos subnacionais à
construção de uma nova gestão pública no Brasil. E, para que, de fato,
haja esta contribuição dos governos subnacionais, os organizadores deste
livro enfatizam a necessidade de se perceber uma mudança de atitude
– uma gestão cidadã, co-participativa –, baseada em parcerias sólidas e
eficazes, intersetoriais, ainda que muitas vezes limitadas, mas que po-
dem ser o início de um aumento significativo de inclusão social,
melhoria dos serviços prestados e recuperação da credibilidade da pró-

ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 195–198, 1. sem. 2004


198

pria administração num constante processo de aprendizado com os er-


ros e avanços daqueles que, em algum momento, ousaram mudar, além
do reconhecimento de novos problemas inerentes a qualquer processo
de transformação e mudança.
É importante salientar que apesar da realização de todas essas experiên-
cias, o planejamento dessas ações ainda não é suficiente para se garan-
tir eficácia e eficiência aos processos de descentralização experimenta-
dos pelo país, uma vez que entre os desafios enfrentados estão a ruptu-
ra com imediatismo e interação entre os diferentes interesses como
elementos definidores da concepção dos programas propostos.
Todos esses projetos, em algum momento, conseguiram alcançar êxito,
entretanto, alguns ainda sofrem com as práticas clientelísticas, perden-
do gradativamente a sua orientação inicial, que poderia fazer das ex-
periências um passo importante para a conquista da cidadania e para a
melhoria das condições de vida das pessoas.
Em síntese, as experiências aqui examinadas parecem sugerir que par-
cerias entre o público e o privado podem ser articuladas com responsa-
bilidade e criatividade nas decisões estratégicas, de preferência sob re-
gras estabelecidas pelo Estado, criando oportunidades para que ocor-
ram transformações em relação às práticas anteriores e tradicionais de
gestão pública, observando-se uma variedade de formas de relação do
público com o privado. Entretanto, é necessário que atividades lobistas
ou práticas “predatórias” não inviabilizem as iniciativas propostas e
corrompam as parcerias.
Dessa forma, os espaços para as práticas clientelistas tornar-se-iam bas-
tante reduzidos, uma vez que as ações pensadas ou implementadas ten-
deriam para uma prática emancipatória, informada pela noção de acesso
a direitos básicos (à educação, à saúde, à moradia, ao emprego, trans-
porte coletivo de qualidade etc.), instituindo um modelo baseado na
prestação de serviços à comunidade e participação responsável numa
tentativa de romper o modelo de exclusão ainda vigente no Brasil.

R EFERÊNCIAS
SILVA, Ari de Abreu. A Predação do Social. Niterói: EDUFF, 1997.
VIANNA, Maria Lucia W. A Americanização (Perversa) da Seguridade Social
no Brasil. Rio de Janeiro: REVAN/UCAM/IUPERJ, 1998.

ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 195–198, 1. sem. 2004


ROHDEN, Fabíola. Uma ciência da diferença: sexo e
gênero na medicina da mulher. Rio de Janeiro: Ed. da
Fiocruz, 2001.

UM DISCURSO SOBRE A DIFERENÇA SEXUAL :


GINECOLOGIA E TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS
NO SÉCULO XIX
FERNANDO CÉSAR COELHO DA COSTA*

A antropologia brasileira das últimas décadas vem acom-


panhando o crescimento de estudos sociológicos que
abordam a temática “corpo, corporalidade e práticas
curativas”. Em torno de uma “antropologia da saúde e
da doença” ou mesmo de uma “antropologia médica”,
várias pesquisas têm sido desenvolvidas no sentido de
perceber a dimensão simbólica das diferentes concep-
ções e terapias atuantes sobre os corpos humanos. A
pressuposição desses trabalhos, referendada na teoria
antropológica contemporânea, é de que os saberes hu-
manos são socialmente construídos – e entre eles, os
referentes ao organismo humano. Portanto, os diver-
sos dizeres sobre os corpos de homens e mulheres, seja
sobre seu funcionamento, seja sobre as medidas
profiláticas e curativas que poderiam ser utilizadas para
combater seus “males”, são percebidos através da sua
articulação com as redes de significados elaborados no
interior de um sistema simbólico particular.
Parte dos esforços de compreensão dos saberes empre-
gados para curar indivíduos, com seu inevitável supor-
te simbólico, concentrou-se na busca das práticas e re-
presentações de grupos específicos da sociedade brasi-
leira, como a classe trabalhadora, pequenas comunida-
des rurais, grupos religiosos etc. Uma parte menor, mas
não menos significativa, buscou empreender estudos
que dêem conta de apontar os mecanismos de
*
Doutorando do Programa
legitimação das práticas médicas modernas, que, em-
de Pós-Graduação em An- bora hoje mais matizadas que em outros períodos his-
tropologia da Universidade tóricos, continuam, ao menos no Ocidente, constituin-
Federal Fluminense.
200

do-se como o principal foco de “resolução” das “aflições corporais”


humanas. É nessa linha, a de leitura das conexões culturais entre as
práticas e as interpretações médicas oficiais, que se insere este impor-
tante trabalho de Fabíola Rohden.
Pertencente à Coleção Antropologia e Saúde, editada pela Fundação
Oswaldo Cruz (Fiocruz), que inclui outros trabalhos fundamentais para
a discussão das muitas representações coletivas sobre os corpos huma-
nos, o estudo de Rohden analisa a construção de uma determinada
concepção da diferença entre os sexos e os gêneros no contexto do
Brasil do século XIX. Trata-se, especificamente, de um estudo sobre a
medicina ginecológica brasileira desse século, suas representações so-
bre as características femininas e a melhor forma de preservá-las. As-
sim, busca discutir a maneira pela qual a ginecologia aborda suas par-
ticularidades, apresentando-se claramente como uma ciência da dife-
rença, dada a insistente preocupação em destacar as muitas
dessemelhanças anatômicas, fisiológicas, psíquicas e, “conseqüentemen-
te”, sociais das mulheres em relação aos homens.
Essa era a visão dominante entre os médicos, principalmente “gineco-
logistas”, do século XIX. As mulheres e homens eram concebidos como
inteiramente diferentes uns dos outros, desde os ossos ao cérebro pas-
sando pelos tecidos, o que permitiu a construção de uma nova especia-
lidade médica. Se a diferença entre os “gêneros” era considerada “bio-
lógica”, dada pela “natureza”, nenhum outro profissional poderia res-
ponder melhor às indagações sobre que papéis seriam mais apropria-
dos às mulheres que o médico responsável pelo tratamento feminino.
Contudo, há, segundo Rohden, uma preocupação especial em relação
ao “perigo” representado pela “questão da mulher”, uma vez que não
há especialidade médica equivalente, em generalidade e constância, à
ginecologia para os homens.
A autora demonstra o quanto houve uma mudança de direção no sécu-
lo XVIII no que diz respeito à interpretação médica das diferenças
entre homens e mulheres. Herdeira de uma concepção grega, a visão
dominante anterior ao final desse século – não por acaso momento de
transformações sociais marcantes – era de que as diferenças entre os
“sexos” eram apenas de grau. Os homens eram entendidos como supe-
riores às mulheres, mas não como dotados de constituição (qualidade)
física diferente. Para os médicos do período, como “homens imperfei-
tos”, as mulheres possuiriam também seus testículos, ainda que inter-
nos, e seus pênis, ainda que em miniatura (o clitóris) – versão atrofiada
do símbolo maior de virilidade – que materializava, em certa medida, o
ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 199–205, 1. sem. 2004
201

entendimento da “inferioridade feminina”. Ao contrário, firma-se, no


século XIX, a idéia de que homens e mulheres são, guardadas as devi-
das proporções, diferentes em qualidade.
Segundo Rohden, nem mesmo as “evidências orgânicas” resultantes
do desenvolvimento da anatomia no Renascimento, período em que os
clérigos perdem espaço para médicos profissionais e laicos, foram ca-
pazes de destruir a noção de que os seres humanos são iguais, variando
apenas em grau de perfeição. O contexto histórico direcionava a visão
dos médicos para outras problemáticas. Foi preciso a chegada do sécu-
lo XVIII para que adviesse uma teoria médica que enfatizasse a pro-
funda e imaculável diferença entre os “sexos”. Certamente, a nova con-
cepção responde aos preceitos culturais de normalização de indivíduos,
próprios da modernidade em ascensão. Daí, segue a preocupação com
as novas condições de existência dadas pelas instituições e valores mo-
dernos, como a inserção da mulher no mercado de trabalho, as reivin-
dicações por igualdade jurídica e social, os movimentos e discussões
feministas ou assim considerados. Era necessária uma justificativa “cien-
tífica” que fosse capaz, de uma vez por todas, de minimizar as “dúvi-
das” em relação às “impossibilidades orgânicas” das mulheres.
Um ponto a ser destacado é que, segundo a autora, no Brasil do século
XIX, destacadamente após a aliança das autoridades médicas com as
do Estado tencionando criar “seres fortes e saudáveis para o bem da
nação” por intermédio de intervenções higienistas, os médicos pas-
saram a ter grande inserção no mundo cultural e político, sendo cha-
mados à explicação de uma série de fenômenos sociais. Deles, era exigida
uma rígida moralidade para que fossem capazes de indicar as melhores
formas de desenvolvimento para a nação, sem desvios morais. Essa preo-
cupação dava a dimensão do quanto os médicos deveriam ser os pri-
meiros a dar o exemplo de como os indivíduos deveriam se comportar.
No âmbito da ginecologia, demonstra o quanto ela se estabelece tam-
bém como uma ciência moral.
O desenvolvimento da medicina brasileira acompanha as transforma-
ções ocorridas pela vinda da família real portuguesa para o Brasil em
1808, quando se destaca uma nova visão sobre o cuidado médico da
colônia, até então carente de incentivos reais. A partir desse momento,
várias instituições são criadas ou reformadas. Em 1813, na Bahia, e em
1815, no Rio de Janeiro, escolas médicas foram transformadas em aca-
demias médico-cirúrgicas. Por fim, em 1832, foram instituídas oficial-
mente as Faculdades de Medicina do Rio de Janeiro e da Bahia, legiti-
mando o novo papel dos médicos na sociedade brasileira.

ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 199–205, 1. sem. 2004


202

Segundo a autora, o interesse médico pelo corpo feminino vai crescen-


do no Brasil ao longo do século XIX. Logo que as Faculdades de Medi-
cina são criadas, a única cadeira destinada especificamente aos “pro-
blemas femininos” é a de Partos. No momento de estabelecimento des-
sas Faculdades, várias parteiras estrangeiras, especialmente oriundas
da França, chegam ao Brasil modificando parte dos conhecimentos lo-
cais. No que tange ainda à obstetrícia, crescem as preocupações em
relação à prática das parteiras, que são, a partir de então, obrigadas a
possuírem diploma para exercerem seu ofício, se aprovadas em exa-
mes elaborados por médicos. A autora não apresenta uma data especí-
fica para a instituição da ginecologia no Brasil nem um quadro geral
das especialidades médicas do período, o que dificulta uma compreen-
são ainda mais acurada das condições de surgimento da ginecologia.
Sugere, apenas, que o interesse por ela e sua especificidade foram ma-
nifestando-se mais claramente ao longo do século, constituindo-se como
uma ciência da mulher.
A importância da análise histórica para a antropologia já é conhecida
desde, pelo menos, Gilberto Freyre. Em torno de uma visão diacrônica,
nem sempre comum na tradição antropológica, Fabíola Rohden, orien-
tada também pelo método genealógico de Michel Foucault, busca tra-
zer ao conhecimento público as condições sociais do nascimento
institucional e simbólico tanto da medicina brasileira quanto da gine-
cologia, especialidade destinada ao tratamento dos corpos femininos,
por intermédio da interpretação das teses para a obtenção do título
médico apresentadas à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro entre
1833 e 1940, ano em que deixaram de ser obrigatórias à formação
médica, sendo necessárias apenas para a obtenção do grau de livre-
docente. Entre as teses, privilegiou as que tratavam direta ou indireta-
mente dos “males femininos”.
O ponto central das teses analisadas por Rohden é a vinculação dos
mais diversos “problemas da mulher” com seus órgãos reprodutivos.
De distúrbios venéreos à loucura, tudo pode ser explicado pelo condi-
cionamento orgânico fornecido pelo funcionamento de seu aparelho
reprodutor. Dúvida não há do quanto essa concepção está embebida
na noção de que a principal função da mulher é a concepção. Muitas
teses estabelecem relação direta entre o funcionamento do útero, dos
ovários, das trompas de Falópio etc. e os papéis desempenhados pelas
mulheres na sociedade. A capacidade reprodutora deve ser protegida
de “inovações” que possam distorcer a “verdadeira natureza” da mu-
lher, trazendo “óbvios” prejuízos a toda sociedade.

ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 199–205, 1. sem. 2004


203

Muitos impedimentos à inserção da mulher em alguns campos sociais


são explicados por sua “natureza”. Os homens eram considerados “na-
turalmente” superiores às mulheres em intelecto e força física. Portan-
to, as tarefas produtivas de uma sociedade devem estar a seu encargo,
restando à mulher apenas a geração e criação dos filhos, além do cui-
dado com o marido – tarefas condizentes com seu equipamento orgâ-
nico. Segundo alguns médicos, estava “cientificamente comprovado”,
por exemplo, que o estudo prejudicaria o funcionamento dos órgãos
reprodutivos. Na puberdade, fase da vida em que os corpos femininos
estavam sendo preparados para sua maior tarefa, a concepção, as ener-
gias originalmente destinadas ao desenvolvimento de uma futura mãe
não poderiam ser desviadas indevidamente para atividades cerebrais
sem comprometimento das funções reprodutivas. A “natureza” não
deixaria impune aquelas mulheres que se recusassem a seguir sua de-
terminação. Loucuras, problemas reprodutivos e masculinização eram
algumas conseqüências aventadas. De forma talvez dialética, o “mau
comportamento” feminino poderia também distorcer suas característi-
cas “orgânicas”; por isso, a necessidade de “cuidado” e “informação”
sobre a origem desses males e suas conseqüências.
Entre os vários distúrbios da mulher descritos pelos futuros médicos
brasileiros na apresentação de suas teses, estavam a masturbação e a
ninfomania. Partindo da premissa de que as mulheres possuem menor
desejo sexual que os homens e de que sua “entrega sexual” deve-se
ao desejo da maternidade, as duas “práticas” são condenadas. Segun-
do alguns, a masturbação feminina compromete as funções repro-
dutivas, podendo levar à morte. A ninfomania era a nomenclatura uti-
lizada para designar muitas atitudes e sensações sexuais consideradas
desviantes, como o excesso de libido ou a prática do adultério. Poderia
ser confundida ainda com a masturbação, indicando o quanto era
inapropriada a busca pelo prazer por parte das mulheres.
Como dissemos, ainda que determinadas biologicamente, pensa-se que
as mulheres podem vir a distorcer sua natureza por algumas atitudes e
através do pertencimento a algumas instituições sociais; por isso, a ne-
cessidade de vigia, o que demonstra a força “moral” das concepções
nascidas da ginecologia ou por elas manifestadas. Alguns médicos preo-
cupam-se com a reunião de meninas em colégios, o que poderia favo-
recer a prática da masturbação, e com o excesso de fervor religioso que
as distanciariam dos futuros maridos e filhos. Nesse sentido, propõem
que devem ser orientadas para que cumpram melhor suas “tarefas na-
turais”. Por intermédio de citações de trechos de algumas das teses

ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 199–205, 1. sem. 2004


204

analisadas, Rohden demonstra que as mulheres eram postas ao lado


de crianças e primitivos. E, como eles, precisariam ser tuteladas.
Outro aspecto bastante ilustrativo da conexão do discurso médico com
a moralidade predominante (ou mesmo hegemônica) na época é o que
eu chamaria de “dubiedade da sexualidade feminina”. Considerada
menos “necessitada” de sexo que o homem, a mulher é, contudo, sexual-
mente mais instável; qualquer palavra bem utilizada por um sedutor
ou qualquer “má influência” poderiam fazê-la “cair em desgraça”. Sua
condição ingênua poderia levá-la à loucura – muitas vezes “detectada”
pela perda de interesse por aquilo que caracterizava seu “sexo” ou por
desejo sexual não acompanhado de vontade de procriação, entendida
à época como interesse natural e, portanto, determinante da mulher
pelo sexo. A loucura e sanidade femininas são medidas pelo cumpri-
mento ou não das normas sexuais impostas naquele contexto.
Para tornar claras as possibilidades de entendimento da “questão da
mulher” naquele contexto, a autora analisa algumas interpretações mé-
dicas acerca de um acontecimento de grande repercussão à época: o
caso Abel Parente. Médico italiano radicado no Brasil, Abel Parente de-
senvolveu uma técnica contraceptiva que constava da raspagem das pa-
redes do útero e da aplicação de injeções, anunciando-a em jornais
cariocas. Sua atividade foi considerada imoral. Vários discursos faziam
ligação direta entre sua atividade e aquilo que era considerado “prosti-
tuição clandestina” – a prática de relação sexual buscando prazer. Se-
gundo alguns, sem o temor da gravidez, as mulheres se lançariam à
imoralidade. Sem falar que seus métodos eram considerados
“antinaturais” (apontados como capazes, por exemplo, de levar mulhe-
res à loucura pelo distúrbio que causavam em seus aparelhos
reprodutivos, alterando a “verdadeira natureza” dos órgãos genitais
femininos e seu único destino: a reprodução) e “interesseiros”, uma vez
que não era vista com bons olhos a busca de vantagens financeiras como
um mote da atividade clínica, anunciando-a na imprensa.
Abel Parente teve de responder a diferentes processos judiciais e à con-
testação de associações médicas, seja pela “invenção” do método
esterilizador ou pela suposta responsabilidade na loucura que tinha
acometido uma senhora que havia procurado seus préstimos. Por essa
acusação foi inocentado e condenado por instâncias jurídicas diferen-
tes. Em decisão judicial definitiva, livrou-se da condenação à prisão.
Contudo, para os propósitos de Rohden, vale menos o debate jurídico
em si do que as “razões” apresentadas por opositores ou defensores de
Abel Parente, amplamente analisadas pela autora.

ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 199–205, 1. sem. 2004


205

Entre outros argumentos, evocava-se o “conhecimento médico” de que


a mente feminina, ao contrário da masculina, está condicionada pelo
seu aparelho reprodutor. Cessada a capacidade de procriar, a mulher
sofreria uma série de distúrbios psíquicos não contornáveis. Teria sido
o caso de Dona Maria Antonieta, supostamente enlouquecida pela apli-
cação do método de Abel Parente. Através desse episódio, a autora re-
ferenda sua demonstração do quanto, para grande parte dos médicos
da época, os organismos sexuais femininos determinam fortemente seu
comportamento e sanidade, necessitando ser regulados pela “tutela”
médica e pelo “cuidado” familiar. Essa interpretação não era válida
para os homens; suas possíveis distorções psíquicas eram explicadas
por outras causas. Não havia na literatura médica da época exposição
sobre o funcionamento dos órgãos sexuais masculinos e condiciona-
mentos comportamentais de nenhuma espécie dele oriundos.
Não apenas pelo emprego do método histórico-documental na antro-
pologia, mas também pela forma que consegue interpretar os discursos
médicos brasileiros ao longo do século XIX, utilizando-se, inclusive, de
um debate expressivo em torno da “questão da mulher”, Fabíola Rohden
consegue recolocar um ponto importante para o debate acerca do sa-
ber médico: a conexão entre as análises médicas e um contexto históri-
co singular. Acredito que essa iniciativa traz à baila a necessidade de se
enfatizar o quanto o saber médico está embebido nas relações sociais
correntes. É, em certa medida, mais um alerta para quem, imerso tam-
bém na crença de que “o que é” pode ser dissociado do “que deve ser”
– uma das características da ideologia moderna (ao menos sob a visão
de Louis Dumont) – fecha os olhos para o caráter “moral” do discurso
médico, pois é exatamente nessa ideologia que a medicina ancora seu
trabalho e seus dizeres sobre os corpos dos seres humanos.
Pela qualidade na demonstração de valores sociais imbricados em uma
especialidade médica, a ginecologia, o livro de Fabíola Rohden merece
destaque na bibliografia que se debruça sobre a maneira pela qual, em
sociedades modernas, a medicina aborda os corpos humanos. Certa-
mente, por intermédio de sua colaboração, outros trabalhos buscarão
desenvolver interpretações relevantes sobre a prática médica em nosso
país e sua conexão com uma realidade social específica, expressa em
suas teorias e recomendações profiláticas ou curativas.

ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 199–205, 1. sem. 2004


NOTÍCIAS
DO PPGACP
209

N ÚCLEO DE E STUDOS DO O RIENTE M ÉDIO – NEOM

COORDENADORES:
PROF. DR. PAULO GABRIEL HILU DA ROCHA PINTO
PROF. DR. PAUL EDOUARD AMAR
A criação do Núcleo de Estudos do Oriente Médio visa criar uma estru-
tura acadêmica ligada ao PPGACP/UFF que possa atender a crescente
demanda de informação e análises acadêmicas sobre temas relaciona-
dos a essa região e às comunidades diaspóricas de populações originá-
rias desta região ou a ela ligadas. Uma vez que o Oriente Médio ocupa
um lugar central no discurso político e mediático e no imaginário cul-
tural, que se impõem como instâncias de legitimação de políticas e prá-
ticas que estabelecem relações de poder em termos globais, é funda-
mental que se criem as condições para a produção de um conhecimen-
to empírico e teórico sobre a região no campo acadêmico brasileiro.
Somente a título de exemplo da importância deste tema para o Brasil,
gostaríamos de lembrar da recente visita do presidente Luiz Inácio Lula
da Silva a diversos países do Oriente Médio, que colocou na agenda das
relações internacionais do Brasil as importantes conexões culturais e
comerciais entre o Brasil e vários desses países. Além disso, o Brasil
conta com a presença de cerca de quatro milhões de árabes e seus des-
cendentes, dos quais cerca de um milhão é de muçulmanos, que consti-
tuem um importante grupo imigrante integrado à sociedade nacional,
juntamente com outros grupos originários da região, como os armênios
ou os judeus orientais.
Além da importância política e social do tema, a criação de uma massa
crítica de saberes sobre o Oriente Médio e suas diásporas traria novos
horizontes comparativos e novas áreas de diálogo teórico para as ciên-
cias sociais no Brasil. Uma abordagem comparativa com as sociedades
do Oriente Médio permitiria pensar criticamente semelhanças e dife-
renças culturais e sociais com o Brasil, abrindo o caminho para uma
abordagem mais pluralista nas ciências sociais brasileiras. Ademais, o
estudo das sociedades do Oriente Médio permitiria o surgimento de
novas abordagens e questões teóricas, assim como a abertura de novos
canais de diálogo com a produção acadêmica internacional.
Para tanto, o que será enfatizado no NEOM é a criação de condições
para viabilizar a pesquisa empírica nas sociedades do Oriente Médio e
suas diásporas. Assim, o primeiro passo será a criação de redes de
cooperação entre pesquisadores e instituições nacionais e estrangeiras
ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 209–210, 1. sem. 2004
210

de modo a dar visibilidade e apoio aos alunos e professores interessa-


dos em realizar pesquisas nessa área. O NEOM tem um caráter de for-
mação e informação junto aos alunos de graduação e de pós-graduação
em Antropologia, Ciência Política, Sociologia e História (dada a abor-
dagem multidisciplinar proposta), oferecendo cursos através do
PPGCAP e promovendo palestras, conferências e seminários com os
professores da UFF e convidados de fora. Atualmente existe um grupo
de estudo reunindo alunos de História e de Ciências Sociais interes-
sados na leitura de textos teóricos e etnográficos sobre o Oriente Mé-
dio. O NEOM também pretende ser um canal institucional através do
qual se buscará ajuda junto às agências financiadoras e às embaixadas
dos países interessados para que alunos e pesquisadores do PPGACP/
UFF possam fazer cursos de língua (árabe, turco, curdo, armênio,
hebraico, persa etc.) e/ou trabalho de campo no Oriente Médio. A pri-
meira atividade do núcleo foi a realização do seminário “O Brasil no
Oriente Médio e o Oriente Médio no Brasil: perspectivas transnacionais
e comparativas”, em 29 e 30 de outubro de 2003, no ICHF/UFF, o qual
reuniu pesquisadores do Brasil e dos Estados Unidos em torno de
temáticas centradas no Oriente Médio e nas suas comunidades
diaspóricas na América Latina, em particular no Brasil. A seqüência
deste seminário inclui a organização e publicação de um volume edita-
do sobre o tema. Assim, o NEOM pretende, através de suas atividades
acadêmicas, consolidar na UFF um campo de estudos sobre o Oriente
Médio e suas comunidades diaspóricas.

ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 209–210, 1. sem. 2004


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RELAÇÃO DE DISSERTAÇÕES DEFENDIDAS


NO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
EM ANTROPOLOGIA

CURSO DE MESTRADO EM ANTROPOLOGIA

1 TÍTULO: U M ABRAÇO PARA TODOS OS AMIGOS

Autor: Antonio Carlos Rafael Barbosa


Orientador: Prof. Dr. José Carlos Rodrigues
Data da defesa: 16/1/1997

2 TÍTULO: A PRODUÇÃO SOCIAL DA MORTE E MORTE


SIMBÓLICA EM PACIENTES HANSENIANOS

Autor: Cristina Reis Maia


Orientador: Prof. Dr. José Carlos Rodrigues
Data da defesa: 2/4/1997

3 TÍTULO: P RÁTICAS ACADÊMICAS E O ENSINO


UNIVERSITÁRIO : UMA ETNOGRAFIA DAS FORMAS
DE CONSAGRAÇÃO E TRANSMISSÃO DO SABER
NA UNIVERSIDADE

Autor: Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto


Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima
Data da defesa:16/6/1997

ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 211–236, 1. sem. 2004


212

4 TÍTULO: “D OM ”, “ ILUMINADOS ” E “ FIGURÕES ”: UM


ESTUDO SOBRE A REPRESENTAÇÃO DA ORATÓRIA
NO T RIBUNAL DO JÚRI DO R IO DE J ANEIRO .
Autor: Alessandra de Andrade Rinaldi
Orientador: Prof. Dr. Luiz de Castro Faria
Data da defesa: 3/1/1997

5 TÍTULO: M UDANÇA IDEOLÓGICA PARA A QUALIDADE

Autor: Miguel Pedro Alves Cardoso


Orientador: Profª Drª Lívia Neves Barbosa
Data da defesa: 7/10/1997

6 TÍTULO: C ULTO ROCK A R AUL S EIXAS : SOCIEDADE


ALTERNATIVA ENTRE REBELDIA E NEGOCIAÇÃO

Autor: Monica Buarque


Orientador: Prof. Dr. José Carlos Rodrigues
Data da defesa: 19/12/1997

7 TÍTULO: A CAVALGADA DO SANTO GUERREIRO : DUAS


FESTAS DE S ÃO J ORGE EM S ÃO G ONÇALO /
R IO DE J ANEIRO
Autor: Ricardo Maciel da Costa
Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima
Data da defesa: 23/12/1997

8 TÍTULO: A LOUCURA NO MANICÔMIO JUDICIÁRIO :


A PRISÃO COMO TERAPIA , O CRIME COMO
SINTOMA , O PERIGO COMO VERDADE

Autor: Rosane Oliveira Carreteiro


Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima
Data da defesa: 6/2/1998

ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 211–236, 1. sem. 2004


213

9 TÍTULO: A RTICULAÇÃO CASA E TRABALHO : MIGRANTES


“ NORDESTINOS ” NAS OCUPAÇÕES DE
EMPREGADA DOMÉSTICA E EMPREGADOS DE
EDIFÍCIO

Autor: Fernando Cordeiro Barbosa


Orientador: Profª Drª Delma Pessanha Neves
Data da defesa: 4/3/1998

10 TÍTULO: E NTRE “ MODERNIDADE ” E “ TRADIÇÃO ”:


A COMUNIDADE ISLÂMICA DE M APUTO

Autor: Fátima Nordine Mussa


Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Mello
Data da defesa: 11/3/1998

11 TÍTULO: O S INTERESSES SOCIAIS E A SECTARIZAÇÃO DA


DOENÇA MENTAL

Autor: Cláudio Lyra Bastos


Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Mello
Data da defesa: 21/5/1998

12 TÍTULO: P ROGRAMA MÉDICO DE FAMÍLIA : MEDIAÇÃO E


RECIPROCIDADE

Autor: Gláucia Maria Pontes Mouzinho


Orientador: Profª Drª Simoni Lahud Guedes
Data da defesa: 24/5/1999

13 TÍTULO: O IMPÉRIO E A ROSA : ESTUDO SOBRE A


DEVOÇÃO DO E SPÍRITO S ANTO
Autor: Margareth da Luz Coelho
Orientador: Prof. Dr. Arno Vogel
Data da defesa: 13/7/1998

ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 211–236, 1. sem. 2004


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14 TÍTULO: D O MALANDRO AO MARGINAL :


REPRESENTAÇÕES DOS PERSONAGENS HERÓIS
NO CINEMA BRASILEIRO

Autor: Marcos Roberto Mazaro


Orientador: Profª Drª Lívia Neves Barbosa
Data da defesa: 30/10/1998

15 TÍTULO: P ROMETER CUMPRIR : PRINCÍPIOS MORAIS DA


POLÍTICA : UM ESTUDO DE REPRESENTAÇÕES
SOBRE A POLÍTICA CONSTRUÍDAS POR ELEITORES
E POLÍTICOS

Autor: Andréa Bayerl Mongim


Orientador: Profª Drª Delma Pessanha Neves
Data da defesa: 21/1/1999

16 TÍTULO: O SIMBÓLICO E O IRRACIONAL : ESTUDO SOBRE


SISTEMAS DE PENSAMENTO E SEPARAÇÃO
JUDICIAL

Autor: César Ramos Barreto


Orientador: Prof. Dr. José Carlos Rodrigues
Data da defesa: 10/5/1999

17 TÍTULO: E M TEMPO DE CONCILIAÇÃO

Autor: Angela Maria Fernandes Moreira Leite


Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima
Data da defesa: 15/7/1999

18 TÍTULO: N EGROS , PARENTES E HERDEIROS : UM ESTUDO


DA REELABORAÇÃO DA IDENTIDADE ÉTNICA NA
COMUNIDADE DE R ETIRO , S ANTA L EOPOLDINA
– ES
Autor: Osvaldo Marins de Oliveira
Orientador: Profª Drª Eliane Cantarino O’Dwyer
Data da defesa: 13/8/1999
ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 211–236, 1. sem. 2004
215

19 TÍTULO: S ISTEMA DA SUCESSÃO E HERANÇA DA POSSE


HABITACIONAL EM FAVELA

Autor: Alexandre de Vasconcellos Weber


Orientador: Profª Drª Delma Pessanha Neves
Data da defesa: 25/10/1999

20 TÍTULO: E NO SAMBA FEZ ESCOLA : UM ESTUDO DE


CONSTRUÇÃO SOCIAL DE TRABALHADORES EM
ESCOLA DE SAMBA

Autor: Cristina Chatel Vasconcellos


Orientador: Profª Drª Simoni Lahud Guedes
Data da defesa: 5/11/1999

21 TÍTULO: C IDADÃOS E FAVELADOS : OS PARADOXOS DOS


PROJETOS DE ( RE ) INTEGRAÇÃO SOCIAL

Autor: André Luiz Videira de Figueiredo


Orientador: Profª Drª Delma Pessanha Neves
Data da defesa: 19/11/1999

22 TÍTULO: D A ANCHOVA AO SALÁRIO MÍNIMO : UMA


ETNOGRAFIA SOBRE INJUNÇÕES DE MUDANÇA
SOCIAL EM A RRAIAL DO C ABO /RJ
Autor: Simone Moutinho Prado
Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima
Data da defesa: 25/2/2000

23 TÍTULO: P ESCADORES E SURFISTAS : UMA DISPUTA PELO


USO DO ESPAÇO DA P RAIA G RANDE
Autor: Delgado Goulart da Cunha
Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima
Data da defesa: 28/2/2000

ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 211–236, 1. sem. 2004


216

24 TÍTULO: P RODUÇÃO CORPORAL


DA MULHER QUE DANÇA

Autor: Sigrid Hoppe


Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Mello
Data da defesa: 27/4/2000

25 TÍTULO: A PRODUÇÃO DA VERDADE NAS PRÁTICAS


JUDICIÁRIAS CRIMINAIS BRASILEIRAS : UMA
PERSPECTIVA ANTROPOLÓGICA DE UM
PROCESSO CRIMINAL

Autor: Luiz Eduardo de Vasconcellos Figueira


Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima
Data da defesa: 21/9/2000

26 TÍTULO: C AMPO DE FORÇA : SOCIABILIDADE NUMA


TORCIDA ORGANIZADA DE FUTEBOL

Autor: Fernando Manuel Bessa Fernandes


Orientador: Profª Drª Simoni Lahud Guedes
Data da defesa: 22/9/2000

27 TÍTULO: R ESERVAS EXTRATIVISTAS MARINHAS : UMA


REFORMA AGRÁRIA NO MAR ? U MA DISCUSSÃO
SOBRE O PROCESSO DE CONSOLIDAÇÃO DA
RESERVA EXTRATIVISTA MARINHA DE A RRAIAL DO
C ABO /RJ
Autor: Ronaldo Joaquim da Silveira Lobão
Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima
Data da defesa: 29/11/2000

ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 211–236, 1. sem. 2004


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28 TÍTULO: P ATRULHANDO A CIDADE : O VALOR DO


TRABALHO E A CONSTRUÇÃO DE ESTEREÓTIPOS
EM UM PROGRAMA RADIOFÔNICO

Autor: : Edilson Márcio Almeida da Silva


Orientador: Profª Drª Simoni Lahud Guedes
Data da defesa: 8/12/2000

29 TÍTULO: L OUCOS DE RUA : INSTITUCIONALIZAÇÃO X


DESINSTITUCIONALIZAÇÃO

Autor: Ernesto Aranha Andrade


Orientador: Profª Drª Delma Pessanha Neves
Data da defesa: 8/3/2001

30 TÍTULO: F ESTA DO R OSÁRIO : ICONOGRAFIA E POÉTICA


DE UM RITO

Autor: Patrícia de Araújo Brandão Couto


Orientador: Profª Drª Tania Stolze Lima
Data da defesa: 8/5/2001

31 TÍTULO: O S CAMINHOS DO LEÃO : UMA ETNOGRAFIA


DO PROCESSO DE COBRANÇA DO I MPOSTO DE
R ENDA
Autor: Gabriela Maria Hilu da Rocha Pinto
Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima
Data da defesa: 7/8/2001

32 TÍTULO: R EPRESENTAÇÕES POLÍTICAS : ALTERNATIVAS E


CONTRADIÇÕES – DAS MÚLTIPLAS
POSSIBILIDADES DE PARTICIPAÇÃO POPULAR NA
C ÂMARA M UNICIPAL DO R IO DE J ANEIRO
Autor: Delaine Martins Costa
Orientador: Profª Drª Delma Pessanha Neves
Data da defesa: 27/9/2001

ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 211–236, 1. sem. 2004


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33 TÍTULO: C APOEIRAS E MESTRES : UM ESTUDO DE


CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES

Autor: Mariana Costa Aderaldo


Orientador: Profª Drª Simoni Lahud Guedes
Data da defesa: 29/10/2001

34 TÍTULO: Í NDIOS MISTURADOS : IDENTIDADES E


DESTERRITORIALIZAÇÃO NO SÉCULO XIX
Autor: Márcia Fernanda Malheiros
Orientador: Profª Drª Tania Stolze Lima
Data da defesa: 17/12/2001

35 TÍTULO: T RABALHO E EXPOSIÇÃO : UM ESTUDO DA


PERCEPÇÃO AMBIENTAL NAS INDÚSTRIAS
CIMENTEIRAS DE C ANTAGALO / RJ – B RASIL
Autor: Maria Luiza Erthal Melo
Orientador: Profª Drª Gláucia Oliveira da Silva, Prof. Dr. Carlos Ma-
chado de Freitas (co-orientador)
Data da defesa: 4/5/2001

36 TÍTULO: R EPRESENTAÇÕES POLÍTICAS : ALTERNATIVAS E


CONTRADIÇÕES – DAS MÚLTIPLAS
POSSIBILIDADES DE PARTICIPAÇÃO POPULAR NA
CÂMARA MUNICIPAL DO R IO DE J ANEIRO
Autor: Delaine Martins Costa
Orientador: Profª Drª Delma Pessanha Neves
Data da Defesa: 27/9/2001

ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 211–236, 1. sem. 2004


219

37 TÍTULO: S AMBA , JOGO DO BICHO E NARCOTRÁFICO :


A REDE DE RELAÇÕES QUE SE FORMA NA
QUADRA DE UMA ESCOLA DE SAMBA EM UMA
FAVELA DO R IO DE J ANEIRO
Autor: Alcyr Mesquita Cavalcanti
Orientador: Profª Drª Simoni Lahud Guedes
Data da Defesa: 20/12/2001

38 TÍTULO: M ÃOS DE ARTE E O SABER - FAZER DOS


ARTESÃOS DE I TACOARECI : UM ESTUDO
ANTROPOLÓGICO SOBRE SOCIALIDADE ,
IDENTIDADES E IDENTIFICAÇÕES LOCAIS

Autor: Marzane Pinto de Souza


Orientador: Profª Drª Gláucia Oliveira da Silva
Data da Defesa: 6/2/2002

39 TÍTULO: D O ALTO DO RIO E REPECURU À CIDADE DE


O RIXIMINÁ : A CONSTRUÇÃO DE UM ESPAÇO
SOCIAL EM UM NÚCLEO URBANO DA A MAZÔNIA

Autor: Andréia Franco Luz


Orientador: Profª Drª Eliane Cantarino O’Dwyer
Data da Defesa: 27/3/2002

40 TÍTULO: O FIO DO DESENCANTO : TRAJETÓRIA ESPACIAL


E SOCIAL DE ÍNDIOS URBANOS EM B OA V ISTA
(RR)
Autor: Lana Araújo Rodrigues
Orientador: Prof. Dr. José Carlos Rodrigues
Data da Defesa: 27/3/2002

ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 211–236, 1. sem. 2004


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41 TÍTULO: D EUS É PAI : PROSPERIDADE OU SACRIFÍCIO ?


C ONVERSÃO , RELIGIOSIDADE E CONSUMO NA
I GREJA U NIVERSAL DO R EINO DE D EUS
Autor: Maria José Soares
Orientador: Profª Drª Lívia Neves Barbosa
Data da Defesa: 1º/4/2002

42 TÍTULO: N EGROS EM ASCENSÃO SOCIAL : PODER DE


CONSUMO E VISIBILIDADE

Autor: Lidia Celestino Meireles


Orientador: Profª Drª Lívia Neves Barbosa
Data da Defesa: 1º/4/2002

43 TÍTULO: A CULTURA MATERIAL DA NOVA ERA E O SEU


PROCESSO DE COTIDIANIZAÇÃO

Autor: Juliana Alves Magaldi


Orientador: Profª Drª Lívia Neves Barbosa
Data da Defesa: 20/7/2002

44 TÍTULO: A F ESTA DO D IVINO E SPÍRITO S ANTO EM


P IRENÓPOLIS , G OIÁS : POLARIDADES
SIMBÓLICAS EM TORNO DE UM RITO

Autor: Felipe Berocan Veiga


Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Mello
Data da Defesa: 1º/7/2002

45 TÍTULO: P RIVATIZAÇÃO E RECIPROCIDADE PARA


TRABALHADORES DA CERJ EM A LBERTO
T ORRES /RJ
Autor: Cátia Inês Salgado de Oliveira
Orientador: Profª Drª Gláucia Oliveira da Silva
Data da Defesa: 4/7/2002

ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 211–236, 1. sem. 2004


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46 TÍTULO: C ADA LOUCO COM A SUA MANIA , CADA


MANIA DE CURA COM A SUA LOUCURA

Autor: Patricia Pereira Pavesi


Orientador: Profª Drª Lívia Neves Barbosa
Data da Defesa: 7/1/2003

47 TÍTULO: L INGUAGEM DE PARENTESCO E IDENTIDADE


SOCIAL , UM ESTUDO DE CASO : OS
MORADORES DE C AMPO R EDONDO
Autor: Cátia Regina de Oliveira Motta
Orientador: Profª Drª Gláucia Oliveira da Silva
Data da Defesa: 7/1/2003

48 TÍTULO: V ILA M IMOSA II: A C ONSTRUÇÃO DO N OVO


C ONCEITO DA Z ONA
Autor: Soraya Silveira Simões
Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Mello
Data da Defesa: 20/1/2003

49 TÍTULO: T ÃO PERTO , TÃO LONGE : ETNOGRAFIA SOBRE


RELAÇÕES DE AMIZADE NA FAVELA DA
M ANGUEIRA NO R IO DE J ANEIRO
Autor: Geovana Tabachi Silva
Orientador: Profª Drª Lívia Neves Barbosa
Data da Defesa: 20/1/2003

50 TÍTULO: O MERCADO DOS ORIXÁS : UMA ETNOGRAFIA


DO M ERCADÃO DE M ADUREIRA NO R IO DE
J ANEIRO
Autor: Carlos Eduardo Martins Costa Medawar
Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Mello
Data da Defesa: 20/1/2003

ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 211–236, 1. sem. 2004


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51 TÍTULO: P ARA ALÉM DA “ PORTA DE ENTRADA ”: USOS E


REPRESENTAÇÕES SOBRE O CONSUMO DA
CANABIS ENTRE UNIVERSITÁRIOS

Autor: Jóvirson José Milagres


Orientador: Profª Drª Simoni Lahud Guedes
Data da Defesa: 10/6/2003

52 TÍTULO: E O VERBO ( RE ) FEZ O HOMEM : ESTUDO DO


PROCESSO DE CONVERSÃO DO ALCOÓLICO
ATIVO EM ALCOÓLICO PASSIVO

Autor: Angela Maria Garcia


Orientador: Profª Drª Delma Pessanha Neves
Data da Defesa: 12/6/2003

53 TÍTULO: L E SOUFFLE AU COEUR & DAMAGE : QUANDO


O MESMO TOCA O MESMO EM 24 QUADROS
POR SEGUNDO (L OUIS M ALLE E A TEMÁTICA DO
INCESTO )

Autor: Débora Breder Barreto


Orientador: Profª Drª Lygia Baptista Pereira Segala Pauletto
Data da Defesa: 24/6/2003

54 TÍTULO: O FACCIONALISMO XAVANTE NA TERRA


INDÍGENA S ÃO M ARCOS E A CIDADE DE
B ARRA DAS G ARÇAS

Autor: Paulo Sérgio Delgado


Orientador: Profª Drª Eliane Cantarino O’Dwyer
Data da Defesa: 24/6/2003

ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 211–236, 1. sem. 2004


223

55 TÍTULO: C ARTOGRAFIA NATIVA : A REPRESENTAÇÃO DO


TERRITÓRIO , PELOS GUARANI KAIOWÁ , PARA O
PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO DE
VERIFICAÇÃO DA F UNAI
Autor: Ruth Henrique da Silva
Orientador: Profª Drª Eliane Cantarino O’Dwyer
Data da Defesa: 27/6/2003

56 TÍTULO: N EM MUITO MAR , NEM MUITA TERRA . N EM


TANTO NEGRO , NEM TANTO BRANCO : UMA
DISCUSSÃO SOBRE O PROCESSO DE
CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DA COMUNIDADE
REMANESCENTE DE Q UILOMBOS NA I LHA DA
M ARAMBAIA /RJ
Autor: Fábio Reis Mota
Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima
Data da Defesa: 27/6/2003

57 TÍTULO: P ENDURA ESSA : A COMPLEXA ETIQUETA DE


RECIPROCIDADE EM UM BOTEQUIM DO R IO DE
J ANEIRO
Autor: Pedro Paulo Thiago de Mello
Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Mello
Data da Defesa: 30/6/2003

58 TÍTULO: J USTIÇA DESPORTIVA : UMA COEXISTÊNCIA


ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO

Autor: Wanderson Antonio Jardim


Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima, Profª Drª Simoni
Lahud Guedes (co-orientadora)
Data da Defesa: 30/6/2003

ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 211–236, 1. sem. 2004


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59 TÍTULO: O TEU CABELO NÃO NEGA ? UM ESTUDO DE


PRÁTICAS E REPRESENTAÇÕES SOBRE O CABELO

Autor: Patrícia Gino Bouzón


Orientador: Prof. Dr. José Sávio Leopoldi
Data da Defesa: 5/2/2004

60 TÍTULO: U SOS E SIGNIFICADOS DO VESTUÁRIO


ENTRE ADOLESCENTES

Autor: Joana Macintosh


Orientador: Profª Drª Laura Graziela Figueiredo Fernandes Gomes
Data da Defesa: 16/2/2004

61 TÍTULO: A CIENTIFIZAÇÃO DA ACUPUNTURA MÉDICA NO


B RASIL : UMA PERSPECTIVA ANTROPOLÓGICA
Autor: Durval Dionísio Souza Mota
Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant Lima; Profª Drª Simoni Lahud
Guedes (co-orientadores)
Data da Defesa: 19/2/2004

62 TÍTULO: D AS PRÁTICAS E DOS SEUS SABERES :


A CONSTRUÇÃO DO “ FAZER POLICIAL ” ENTRE AS
PRAÇAS DA PMERJ
Autor: Haydée Glória Cruz Caruso
Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant Lima
Data da Defesa: 19/2/2004

63 TÍTULO: O PROCESSO DENUNCIADOR – RETÓRICAS ,


FOBIAS E JOCOSIDADES NA CONSTRUÇÃO
SOCIAL DO DENGUE EM 2002
Autor: Anamaria de Souza Fagundes
Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Mello
Data da Defesa: 29/3/2004

ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 211–236, 1. sem. 2004


225

64 TÍTULO: R UA DOS I NVÁLIDOS , 124 –


A VILA É A CASA DELES

Autor: Marcia Cörner


Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Mello
Data da Defesa: 29/3/2004

65 TÍTULO: S ANTA T ECLA , G RAÇA E L ARANJAL : REGRAS


DE SUCESSÃO NAS CASAS DE ESTÂNCIA DO
B RASIL M ERIDIONAL
Autor: Ana Amélia Cañez Xavier
Orientador: Profª Drª Eliane Catarino O’Dwyer
Data da Defesa: 25/5/2004

66 TÍTULO: D ESEMPREGO E MALABARISMOS CULTURAIS

Autor: Valena Ribeiro Garcia Ramos


Orientador: Profª Drª Delma Pessanha Neves
Data da Defesa: 31/5/2004

67 TÍTULO: D IMENSÕES DA SEXUALIDADE NA VELHICE :


ESTUDOS COM IDOSOS EM UMA AGÊNCIA
GERONTOLÓGICA

Autor: Rosangela dos Santos Bauer


Orientador: Profª Drª Simoni Lahud Guedes
Data da Defesa: 9/6/2004

68 TÍTULO: L AVRADORES DE SONHOS : ESTRUTURAS


ELEMENTARES DO VALOR CULTURAL NA
CONFORMAÇÃO DO VALOR ECONÔMICO . UM
ESTUDO SOBRE A PROPRIEDADE CAPIXABA NO
MUNICÍPIO DE VITÓRIA

Autor: Alexandre Silva Rampazzo


Orientador: Profª Drª Lívia Martins Pinheiro Neves
Data da Defesa: 26/7/2004

ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 211–236, 1. sem. 2004


226

RELAÇÃO DE DISSERTAÇÕES DEFENDIDAS


NO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
EM CIÊNCIA POLÍTICA

CURSO DE MESTRADO EM CIÊNCIA POLÍTICA

1 TÍTULO: G ESTÃO DA EDUCAÇÃO MUNICIPAL :


A ADMINISTRAÇÃO DO P ARTIDO DOS
T RABALHADORES NO MUNICÍPIO DE
A NGRA DOS R EIS
Autor: Claudio Batista
Orientador: Prof. Dr. José Ribas Vieira
Data da defesa: 17/10/1997

2 TÍTULO: U TOPIA REVOLUCIONÁRIA VERSUS REALISMO


POLÍTICO : O DILEMA DOS PARTIDOS SOCIALISTAS
NA ÓTICA DOS DIRIGENTES DO PT FLUMINENSE

Autor: Gisele dos Reis Cruz


Orientador: Profª Drª Maria Celina Soares D’Araujo
Data da defesa: 7/11/1997

3 TÍTULO: R ELAÇÃO ONG–E STADO : O CASO ABIA


Autor: Jacob Augusto Santos Portela
Orientador: Profª Drª Maria Celina Soares D’Araujo
Data da defesa:18/11/1997

ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 211–236, 1. sem. 2004


227

4 TÍTULO: R EFORMA E STADO E POLÍTICA DE


DO
TELECOMUNICAÇÕES : O IMPACTO DAS
MUDANÇAS RECENTES SOBRE A EMBRATEL

Autor: José Eduardo Pereira Filho


Orientador: Profª Drª Lívia Neves Barbosa
Data da defesa: 18/12/1997

5 TÍTULO: E NTRE A DISCIPLINA E A POLÍTICA : C LUBE


M ILITAR (1890 – 1897)
Autor: Claudia Torres de Carvalho
Orientador: Prof. Dr. Celso Castro
Data da defesa: 19/12/1997

6 TÍTULO: A SSOCIATIVISMO M ILITAR NO B RASIL : 1890/


1940
Autor: Tito Henrique Silva Queiroz
Orientador: Prof. Dr. Ari de Abreu Silva
Data da defesa: 22/12/1997

7 TÍTULO: E SCOLA DE G UERRA N AVAL NA FORMAÇÃO


DOS OFICIAIS SUPERIORES DA M ARINHA DE
G UERRA DO B RASIL
Autor: Sylvio dos Santos Val
Orientador: Profª Drª Maria Antonieta Parahyba Leopoldi
Data da defesa: 6/2/1998

8 TÍTULO: O P ODER L EGISLATIVO REAGE : A


IMPORTÂNCIA DAS COMISSÕES PERMANENTES
NO PROCESSO LEGISLATIVO BRASILEIRO

Autor: Ygor Cervásio Gouvea da Silva


Orientador: Prof. Dr. Fabiano Guilherme Mendes dos Santos
Data da defesa: 13/8/1998

ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 211–236, 1. sem. 2004


228

9 TÍTULO: A EXPERIÊNCIA DO I TAMARATY DE 84 A 96:


ENTRE A TRADIÇÃO E A MUDANÇA

Autor: Joana D’Arc Fernandes Ferraz


Orientador: Prof. Dr. Ari de Abreu Silva
Data da defesa: 15/9/1998

10 TÍTULO: C ENTRAIS SINDICAIS E SINDICATOS

Autor: Fernando Cesar Coelho da Costa


Orientador: Profª Drª Maria Celina Soares D’Araujo
Data da defesa: 16/11/1998

11 TÍTULO: A DIMENSÃO POLÍTICA DA FAMÍLIA NA


SOCIEDADE BRASILEIRA : O CONFLITO DE
REPRESENTAÇÕES

Autor: Guiomar de Lemos Ferreira


Orientador: Prof. Dr. Gisálio Cerqueira Filho
Data da defesa: 15/12/1998

12 TÍTULO: A OMS, O E STADO E A LEGISLAÇÃO


CONTRÁRIA AO TABAGISMO : OS PARADOXOS
DE UMA AÇÃO

Autor: Mauro Alves de Almeida


Orientador: Prof. Dr. Ari de Abreu Silva
Data da defesa: 21/12/1998

13 TÍTULO: V IOLÊNCIA E RACISMO NO R IO DE J ANEIRO


Autor: Jorge da Silva
Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima
Data da defesa: 23/12/1998

ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 211–236, 1. sem. 2004


229

14 TÍTULO: N OVAS DEMOCRACIAS : AS VISÕES DE R OBERT


D AHL , G UILLERMO O’D ONNEL E A DAM
P RZEWORSKI
Autor: Jaime Baron
Orientador: Profª Drª Maria Antonieta Parahyba Leopoldi
Data da defesa: 16/7/1999

15 TÍTULO: C ONSELHO T UTEL AR : A PARTICIPAÇÃO POPULAR


NA CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA DA CRIANÇA E
DO ADOLESCENTE EM N ITERÓI – RJ
Autor: Maria das Graças Silva Raphael
Orientador: Prof. Dr. Ari de Abreu Silva
Data da defesa: 13/12/1999

16 TÍTULO:O L EGISLATIVO M UNICIPAL NO CONTEXTO


DEMOCRÁTICO BRASILEIRO : UM ESTUDO SOBRE
A DINÂMICA LEGISLATIVA DA C ÂMARA
M UNICIPAL DE N OVA I GUAÇU
Autor: Otair Fernandes de Oliveira
Orientador: Prof. Dr. Ari de Abreu Silva
Data da defesa: 20/12/1999

17 TÍTULO: A GERÊNCIA DO PENSAMENTO

Autor: Cláudio Roberto Marques Gurgel


Orientador: Prof. Dr. Gisálio Cerqueira Filho
Data da defesa: 8/2/2000

18 TÍTULO: V IOLÊNCIA NO R IO DE J ANEIRO : A


PRODUÇÃO RACIONAL DO MAL – A PRODUÇÃO
LEGAL SOBRE SEGURANÇA PÚBLICA NA
A SSEMBLÉIA L EGISLATIVA DO R IO DE J ANEIRO
Autor: Fabiano Costa Souza
Orientador: Prof. Dr. Gisálio Cerqueira Filho
Data da defesa: 9/2/2000
ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 211–236, 1. sem. 2004
230

19 TÍTULO: A S IDÉIAS DE DIREITO NO B RASIL SEISCENTISTA


E SUAS REPERCUSSÕES NO EXERCÍCIO E NA
JUSTIFICATIVA DO PODER POLÍTICO

Autor: Ana Patrícia Thedin Corrêa


Orientador: Prof. Dr. Gisálio Cerqueira Filho
Data da defesa: 8/6/2000

20 TÍTULO: A GÊNCIA BRASILEIRA DE INTELIGÊNCIA :


GÊNESE E ANTECEDENTES HISTÓRICOS

Autor: Priscila Carlos Brandão Antunes


Orientador: Profª Drª Maria Celina Soares D’Araújo
Data da defesa: 25/8/2000

21 TÍTULO: D ILEMAS DA REFORMA DA SAÚDE NO B RASIL


FRENTE À GLOBALIZAÇÃO FINANCEIRA :
IMPLEMENTANDO A DESCENTRALIZAÇÃO DO
SISTEMA PÚBLICO E A REGULAÇÃO DO SISTEMA
PRIVADO DE SAÚDE

Autor: Ricardo Cesar Rocha da Costa


Orientador: Profª Drª Maria Antonieta Parahyba Leopoldi
Data da defesa: 22/9/2000

22 TÍTULO: E NTRE O BEM - ESTAR E O LUCRO : HISTÓRICO E


ANÁLISE DA RESPONSABILIDADE SOCIAL DAS
EMPRESAS ATRAVÉS DE ALGUMAS EXPERIÊNCIAS
SELECIONADAS DE BALANÇO SOCIAL

Autor: Ciro Valério Torres da Silva


Orientador: Prof. Dr. Eduardo Rodrigues Gomes
Data da defesa: 23/10/2000

ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 211–236, 1. sem. 2004


231

23 TÍTULO: O S EMPRESÁRIOS DA EDUCAÇÃO E O


SINDICALISMO PATRONAL : OS SINDICATOS DOS
ESTABELECIMENTOS PRIVADOS DE ENSINO NO
ESTADO DO R IO DE J ANEIRO
Autor: Marcos Marques de Oliveira
Orientador: Profª Drª Maria Celina Soares D’Araujo
Data da defesa: 14/12/2000

24 TÍTULO: C OMPORTAMENTO ELEITORAL : ABERTURA E


MUDANÇA POLÍTICA EM C ABO V ERDE
Autor: João Silvestre Tavares Alvarenga Varela
Orientador: Prof. Dr. Gisálio Cerqueira Filho
Data da defesa: 16/2/2001

25 TÍTULO: A POLÍTICA COMO BOATO : UMA ANÁLISE DO


PROGRAMA DE DESPOLUIÇÃO DA BAÍA DE
G UANABARA
Autor: Paulo Rogério dos Santos Baía
Orientador: Prof. Dr. Luis Manuel Rebelo Fernandes, Prof. Dr.
Gisálio Cerqueira Filho (co-orientador)
Data da defesa: 26/3/2001

26 TÍTULO: D A POLÍTICA DE BASTIDORES À FESTA DAS


DIRETAS : RAZÃO , EMOÇÃO E TRANSAÇÃO NA
TRANSIÇÃO DEMOCRÁTICA BRASILEIRA

Autor: Alessandro Câmara de Souza


Orientador: Prof. Dr. Gisálio Cerqueira Filho
Data da defesa: 20/6/2001

ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 211–236, 1. sem. 2004


232

27 TÍTULO: E NTRE A NATUREZA E A CONVENÇÃO – A


CRÍTICA DA C IÊNCIA P OLÍTICA E DA MORAL
MODERNA E SUA REORIENTAÇÃO NA
PERSPECTIVA DE M ORELLY
Autor: William de Andrade Pujol Pastor
Orientador: Profª Drª Maria Antonieta Parahyba Leopoldi
Data da defesa: 20/12/2001

28 TÍTULO: S AMBA E SOLIDARIEDADE : CAPITAL SOCIAL E


PARCERIAS COORDENANDO AS POLÍTICAS
SOCIAIS DA M ANGUEIRA , RJ
Autor: Maria Alice Chaves Nunes Costa
Orientador: Profª Drª Maria Antonieta Parahyba Leopoldi
Data da Defesa: 14/3/2002

29 TÍTULO: C APITAL SOCIAL OU FAMILISMO AMORAL ? UM


BALANÇO DO CAPITAL SOCIAL ACUMULADO EM
COMUNIDADES DA B AÍA DE G UANABARA
Autor: Carlos Artur Felippe
Orientador: Prof. Dr. José Augusto Drummond
Data da Defesa: 26/3/2002

30 TÍTULO: O B ANCO M UNDIAL E O CAPITAL SOCIAL :


NOVAS CONCEPÇÕES SOBRE O PAPEL DO
ESTADO E DA SOCIEDADE CIVIL NO PROCESSO
DE DESENVOLVIMENTO

Autor: Débora Cardoso Pulcina


Orientador: Profª Drª Maria Antonieta Parahyba Leopoldi
Data da Defesa: 14/6/2002

ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 211–236, 1. sem. 2004


233

31 TÍTULO A REFORMA DO E STADO B RASIL :


NO
REESTRUTURAÇÃO BUROCRÁTICA , DEMOCRACIA
E GOVERNABILIDADE

Autor: Ledilson Lopes Santos Junior


Orientador: Prof. Dr. Ari de Abreu Silva
Data da Defesa: 30/9/2002

32 TÍTULO: A ESCOLHA DO MAGNÍFICO : UMA ANÁLISE DO


SISTEMA DE ESCOLHA DOS DIRIGENTES DAS
UNIVERSIDADES PÚBLICAS FEDERAIS BRASILEIRAS

Autor: Reinaldo Carlos de Oliveira


Orientador: Prof. Dr. Ari de Abreu Silva
Data da defesa: 17/12/2002

33 TÍTULO: G LOBALIZAÇÃO E PODER : F ÓRUM


E CONÔMICO M UNDIAL E A
SUPRANACIONALIDADE POLÍTICA

Autor: Alessandro Carvalho Silva


Orientador: Prof. Dr. René Armand Dreifuss
Data da defesa: 18/12/2002

34 TÍTULO: O AGUDO ACORDE DO VIOLINO :


GOVERNABILIDADE E ESTABILIDADE NA GESTÃO
F ERNANDO H ENRIQUE C ARDOSO .
Autor: Eliane Almeida Martins
Orientador: Prof. Dr. Gisálio Cerqueira Filho
Data da Defesa: 18/12/2002

35 TÍTULO: O PENSAMENTO POLÍTICO DE A LBERTO


T ORRES EM O LIVEIRA V IANA
Autor: Anderson da Silva Nogueira
Orientador: Prof. Dr. Gisálio Cerqueira Filho
Data da Defesa: 19/12/2002

ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 211–236, 1. sem. 2004


234

36 TÍTULO: R ELIGIÃO DE ELITE ?: A DOUTRINAÇÃO LIBERAL


POR MEIO DO PROTESTANTISMO MISSIONÁRIO
( OS REFLEXOS NAS DÉCADAS DE 1950 E
1960)
Autor: Plínio Moreira Alves
Orientador: Prof. Dr. Ari de Abreu Silva
Data da Defesa: 14/1/2003

37 TÍTULO: A ESCALADA EM BUSCA DO PAU - DE - SEBO DO


OPERÁRIO EM BUSCA DO PRÊMIO BURGUÊS .
A NTONIO E VARISTO DE M ORAES E A
LEGISLAÇÃO TRABALHISTA

Autor: Célia Regina do Nascimento de Paula


Orientador: Prof. Dr. Gisálio Cerqueira Filho
Data da Defesa: 26/2/2003

38 TÍTULO: I DEOLOGIA VERSUS ESTÉTICA : AS CRÍTICAS À


I B IENAL DE A RTES DE S ÃO P AULO
Autor: Ana Paula Conde Gomes
Orientador: Profª Drª Maria Celina Soares D’Araújo
Data da Defesa: 26/6/2003

39 TÍTULO: A INDA SOMOS PROTECIONISTAS ? AS


POLÍTICAS GOVERNAMENTAIS DE PROTEÇÃO E
LIBERAÇÃO DO MERCADO NO ÂMBITO DA
INDÚSTRIA AUTOMOBILÍSTICA BRASILEIRA

Autor: Jean Pierre Machado Santiago


Orientador: Profª Drª Maria Antonieta Parahyba Leopoldi
Data da Defesa: 27/6/2003

ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 211–236, 1. sem. 2004


235

40 TÍTULO: O GRUPO CÉSAR MAIA: LÍDERES, PARTIDOS E


POLÍTICA NO RIO DE JANEIRO

Autor: Francisco Moraes da Costa Marques


Orientador: Profa Dra Maria Celina D’Araujo
Data da Defesa: 16/12/2003

41 TÍTULO: É POSSÍVEL O CONTROLE SOCIAL CONTROLAR


O E STADO ?
Autor: Sônia Nogueira Leitão
Orientador: Profa Dra Maria Celina Soares D’Araújo
Data da Defesa: 10/2/2004

42 TÍTULO: D EMOCRATIZAÇÃO , ATIVISMO INTERNACIONAL


E LUTA CONTRA A CORRUPÇÃO . E STUDO DE
CASO SOBRE A TRANSPARÊNCIA BRASIL E A
TRANSPARENCY INTERNATIONAL

Autor: Aline Bruno Soares


Orientador: Profa Dra Maria Antonieta Parahyba Leopoldi
Data da Defesa: 18/2/2004

43 TÍTULO: C RIME E POLÍTICA NO E SPÍRITO S ANTO


Autor: Célia Maria Vilela Tavares
Orientador: Profa Dra Maria Celina Soares D’Araújo
Data da Defesa: 19/2/2004

44 TÍTULO: O SETOR DE PETRÓLEO E GÁS NATURAL NO


BRASIL APÓS 1990 – REGULAÇÃO E
DESENVOLVIMENTO

Autor: Marcello de Mello Corrêa


Orientador: Profa Dra Maria Antonieta Parahyba Leopoldi
Data da Defesa: 4/4/2004

ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 211–236, 1. sem. 2004


236

45 TÍTULO: T EORIAS SOCIAIS E PESQUISAS DE OPINIÃO –


PESQUISA SOCIAL BRASILEIRA – 2002
Autor: Dalva da Costa Sartini
Orientador: Prof. Dr. Alberto Carlos Almeida
Data da Defesa: 16/4/2004

46 TÍTULO: G UERRA , GUERRILHA E TERRORISMO :


CONTRIBUIÇÃO A UMA DISCUSSÃO CONCEITUAL
FACE AOS ATAQUES DE 11 DE SETEMBRO DE
2001 AOS EUA
Autor: Friederick Brum Vieira
Orientador: Prof. Dr. Gisálio Cerqueira Filho
Data da Defesa: 22/4/2004

47 TÍTULO: P REPARADOS PARA O FRACASSO ?


P OLÍCIA E POLÍTICA NO R IO DE JANEIRO
(1999 – 2002)
Autor: Wilson de Araújo Filho
Orientador: Prof. Dr. Ari de Abreu Silva
Data da Defesa: 23/4/2004

48 TÍTULO: C ONTROLE SOCIAL NO CONSELHO MUNICIPAL


DE SAÚDE DE N ITERÓI
Autor: Gláucia Marize Amaral
Orientador: Prof. Dr. Ari de Abreu Silva
Data da Defesa: 30/4/2004

49 TÍTULO: E LEIÇÕES EM TEMPOS DIFÍCEIS : A VITÓRIA DE


F ERNANDO H ENRIQUE C ARDOSO EM 1998 E
A GESTÃO DA CRISE ECONÔMICA

Autor: Ricardo Basílio Weber


Orientador: Profa Dra Maria Antonieta Parahyba Leopoldi
Data da Defesa: 18/6/2004

ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 211–236, 1. sem. 2004


Revista Antropolítica
ARTIGOS PUBLICADOS
R EVISTA NO 1– 2 O SEMESTRE DE 1996

Artigos
Brasil: nações imaginadas
José Murilo de Carvalho
Brasileiros e argentinos em Kibbutz: a diferença continua
Sonia Bloomfield Ramagem
Mudança social: exorcizando fantasmas
Delma Pessanha Neves
Ostras e pastas de papel: meio ambiente e a mão invisível do mercado
José Drummond

Conferências
Algumas considerações sobre o estado atual da antropologia no Brasil
Otávio Velho
That deadly pyhrronic poison a tradição cética e seu legado para a teoria política
moderna
Renato Lessa

Resenha
Uma antropologia no plural: três experiências contemporâneas. Marisa G. Peirano
Laura Graziela F. F. Gomes

R EVISTA NO 2 – 1O SEMESTRE DE 1997

Artigos
Entre a escravidão e o trabalho livre: um estudo comparado de Brasil e Cuba no
século XIX
Maria Lúcia Lamounier
O arco do universo moral
Joshua Cohen
A posse de Goulart: emergência da esquerda e solução de compromisso
Alberto Carlos de Almeida
240

In córpore sano: os militares e a introdução da educação física no Brasil


Celso Castro
Neoliberalismo, racionalidade e subjetividade coletiva
José Maurício Domingues
Do “retorno do sagrado” às “religiões de resultado”: para uma caracterização
das seitas neopentecostais
Muniz Gonçalves Ferreira

Resenhas
As noites das grandes fogueiras – uma história da coluna Prestes, Domingos Meireles
José Augusto Drummond
Os sertões: da campanha de Canudos, Euclides da Cunha; o sertão prometido: massacre de
Canudos no nordeste brasileiro, Robert M. Levine
Terezinha Maria Scher Pereira

R EVISTA NO 3 – 2O SEMESTRE DE 1997

Artigos
Cultura, educação popular e escola pública
Alba Zaluar e Maria Cristina Leal
A política estratégica de integração econômica nas Américas
Gamaliel Perruci
O direito do trabalho e a proteção dos fracos
Miguel Pedro Cardoso
Elites profissionais: produzindo a escassez no mercado
Marli Diniz
A “Casa do Islã”: igualitarismo e holismo nas sociedades muçulmanas
Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto
Quando o amor vira ficção
Wilson Poliero

Resenha
Nós, cidadãos, aprendendo e ensinando a democracia, de Maria Conceição
D’Incao e Gerard Roy, a narrativa de uma experiência de pesquisa
Angela Maria Fernandes Moreira Leite
ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 239–250, 1. sem. 2004
241

R EVISTA NO 4 – 1O SEMESTRE DE 1998

Artigos
Comunicação de massa, cultura e poder
José Carlos Rodrigues
A sociologia diante da globalização: possibilidades e perspectivas da sociologia
da empresa
Ana Maria Kirschner
Tempo e conflito: um esboço das relações entre as cronosofias de Maquiavel e
Aristóteles
Raul Francisco Magalhães
O embate das interpretações: o conflito de 1858 e a lei de terras
Márcia Maria Menendes Motta
Os terapeutas alternativos nos anos 90: uma nova profissão?
Fátima Regina Gomes Tavares

Resenha
Auto-subversão
Gisálio Cerqueira Filho

R EVISTA NO 5 – 2O SEMESTRE DE 1998

Artigos
Jornalistas: de românticos a profissionais
Alzira Alves de Abreu
Mudanças recentes no campo religioso brasileiro
Cecília Loreto Mariz e Maria das Dores Campos Machado
Pesquisa antropológica e comunicação intercultural: novas discussões sobre
antigos problemas.
José Sávio Leopoldi
Três pressupostos da facticidade dos problemas públicos ambientais
Marcelo Pereira de Mello
Duas visões acerca da obediência política: racionalidade e conservadorismo
Maria Celina D’Araújo

ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 239–250, 1. sem. 2004


242

R EVISTA NO 6 – 1O SEMESTRE DE 1999

Artigos
Palimpsestos estéticos y espacios urbanos: de la razón práctica a la razón sensible
Jairo Montoya Gómez
Trajetórias e vulnerabilidade masculina
Ceres Víctora e Daniela Riva Knauth
O sujeito da “psiquiatria biológica” e a concepção moderna de pessoa
Jane Araújo Russo, Marta F. Henning
Os guardiães da história: a utilização da história na construção de uma identidade
batista brasileira
Fernando Costa
A escritura das relações sociais: o valor cultural dos “documentos” para os
trabalhadores
Simoni Lahud Guedes
A Interdisciplinaridade e suas (im)pertinências
Marcos Marques de Oliveira

R EVISTA NO 7 – 2O SEMESTRE DE 1999

Artigos
Le geste pragmatique de la sociologie française. Autour des travaux de Luc
Boltanski et Laurent Thévenot
Marc Breviglieri e Joan Stavo-Debauge
Economia e política na historiografia brasileira
Sonia Regina de Mendonça
Os paradoxos das políticas de sustentabilidade
Luciana F. Florit
Risco tecnológico e tradição: notas para uma antropologia do sofrimento
Glaucia Oliveira da Silva
Trabalho agrícola: gênero e saúde
Delma Pessanha Neves

ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 239–250, 1. sem. 2004


243

R EVISTA NO 8 – 1O SEMESTRE DE 2000

Artigos
Prolegômenos sobre a violência, a polícia e o Estado na era da globalização
Daniel dos Santos
Gabriel Tarde: Le monde comme feerie
Isaac Joseph
Estratégias coletivas e lógicas de construção das organizações de agricultores no
Nordeste
Eric Sabourin
Cartórios: onde a tradição tem registro público
Ana Paula Mendes de Miranda
Do pequi à soja: expansão da agricultura e incorporação do Brasil central
Antônio José Escobar Brussi

Resenha
Terra sob água – sociedade e natureza nas várzeas amazônicas
José Augusto Drummond

R EVISTA NO 9 – 2O SEMESTRE DE 2000

Artigos
Desenvolvimento económico, cultural e complexidade
Adelino Torres
The field training project: a pioneer experiment in field work methods: Everett
C. Hughes, Buford H. Junker and Raymond Gold’s re-invention of Chicago
field studies in the 1950’s
Daniel Cefaï
Cristianismos amazônicos e liberdade religiosa: uma abordagem
histórico-antropológica
Raymundo Heraldo Maués
Poder de policía, costumbres locales y derechos humanos en Buenos Aires
de los 90
Sofía Tiscornia

ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 239–250, 1. sem. 2004


244

A visão da mulher no imaginário pentecostal


Marion Aubrée

Resenha
Reflexões antropológicas em tópicos filosóficos
Eliane Cantarino O’Dwyer

R EVISTA NO 10/11 – 1 O /2 O SEMESTRES DE 2001

Artigos
Profissionalismo e mediação da ação policial
Dominique Monjardet
The plaintiff – a sense of injustice
Laura Nader
Religião e política: evangélicos na disputa eleitoral do Rio de Janeiro
Maria das Dores Campos Machado
Um modelo para morrer: última etapa na construção social contemporânea da
pessoa?
Rachel Aisengart Menezes
Torcidas jovens: entre a festa e a briga
Rosana da Câmara Teixeira
O debate sobre desenvolvimento entre o Brasil e os EUA na década de cinqüenta
W. Michael Weis
El individuo fragmentado y su experiencia del tiempo
Carlos Rafael Rea Rodríguez
Igreja do Rosário: espaço de negros no Rio Colonial
Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros
In nomine pater: a ciência política e o teatro intimista de A. Strindberg
Gisálio Cerqueira Filho
Terra: dádiva divina e herança dos ancestrais
Osvaldo Martins de Oliveira

Resenha
Estado e reestruturação produtiva
Maria Alice Nunes Costa
ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 239–250, 1. sem. 2004
245

R EVISTA NO 12/13 – 1 O /2 O SEMESTRES DE 2002

Artigos
Transição democrática e forças armadas na América Latina
Maria Celina D’Araújo
Mercado, coesão social e cidadania
Flávio Saliba Cunha
Cultura local y la globalización del beber. De las taberneras en Juchitan, Oaxaca
(México)
Sergio Lerin Piñón
Romaria e missão: movimentos sociorreligiosos no sul do Pará
Maria Antonieta da Costa Vieira
“O estrangeiro” em “campo”: atritos e deslocamentos no trabalho antropológico
Patrice Schuch
A transmissão patrimonial em favelas
Alexandre de Vasconcelos Weber
A sociabilidade dos trabalhadores da fruticultura irrigada do platô de Neópolis/
SE
Dalva Maria da Mota
A beleza traída: percepção da usina nuclear pela população de Angra dos Reis
Rosane M. Prado
Povos indígenas e ambientalismo – as demandas ecológicas de índios do rio
Solimões
Deborah de Magalhães Lima
Raízes antropológicas da filosofia de Montesquieu
José Sávio Leopoldi

Resenhas
A invenção de uma qualidade ou Os índios que se inventa(ra)m
Mercia Rejane Rangel Batista
China’s peasants: the anthropology of a revolution
João Roberto Correia e José Gabriel Silveira Corrêa

ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 239–250, 1. sem. 2004


246

R EVISTA NO 14 – 1 O SEMESTRE DE 2003


Dossiê
Esporte e modernidade
Apresentação: Simoni Lahud Guedes
Em torno da dialética entre igualdade e hierarquia: notas sobre as imagens
e representações dos Jogos Olímpicos e do futebol no Brasil
Roberto DaMatta
Transforming Argentina: sport, modernity and national building
in the periphery
Eduardo P. Archetti
Futebol e mídia: a retórica televisiva e suas implicações na identidade nacional,
de gênero e religiosa
Carmem Sílvia Moraes Rial

Artigos
As concertações sociais na Europa dos anos 90: possibilidades e limites
Jorge Ruben Biton Tapia
A (re)construção de identidade e tradições: o rural como tema e cenário
José Marcos Froehlich
A pílula azul: uma análise de representações sobre masculinidade em face
do viagra
Rogério Lopes Azize e Emanuelle Silva Araújo

Homenagem
René Armand Dreifuss
por Eurico de Lima Figueiredo

ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 239–250, 1. sem. 2004


247

R EVISTA NO 15 – 2 O SEMESTRE DE 2003

Dossiê
Maneiras de beber: proscrições sociais
Apresentação: Delma Pessanha Neves
Entre práticas simbólicas e recursos terapêuticos: as problemáticas de um
itinerário de pesquisa
Sylvie Fainzang
Alcoólicos anônimos: conversão e abstinência terapêutica
Angela Maria Garcia
“Embriagados no Espírito Santo”: reflexões sobre a experiência pentecostal e
o alcoolismo
Cecília L. Mariz

Artigos
Visões de mundo e projetos de trabalhadores qualificados de nível médio em
seu diálogo com a modernidade tardia
Suzana Burnier
O povo, a cidade e sua festa: a invenção da festa junina no espaço urbano
Elizabeth Christina de Andrade Lima
Antropologia e clínica – o tratamento da diferença
Jaqueline Teresinha Ferreira
Mares e marés: o masculino e o feminino no cultivo do mar
Maria Ignez S. Paulilo

Resenhas
Antropologia e comunicação: princípios radicais
José Sávio Leopoldi
Politizar as novas tecnologias: o impacto sócio-técnico da informação digital e
genética
Fátima Portilho
Criminologia e subjetividade no Brasil
Wilson Couto Borges

ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 239–250, 1. sem. 2004


248

COLEÇÃO ANTROPOLOGIA E CIÊNCIA POLÍTICA


1. Os fornecedores de cana e o Estado intervencionista
Delma Pessanha Neves
2. Devastação e preservação ambiental no Rio de Janeiro
José Augusto Drummond
3. A predação do social
Ari de Abreu Silva
4. Assentamento rural: reforma agrária em migalhas
Delma Pessanha Neves
5. A antropologia da academia: quando os índios somos nós
Roberto Kant de Lima
6. Jogo de corpo: um estudo de construção social de trabalhadores
Simoni Lahud Guedes
7. A qualidade de vida no Estado do Rio de Janeiro
Alberto Carlos Almeida
8. Pescadores de Itaipu (Série Pesca no estado do Rio de Janeiro)
Roberto Kant de Lima
9. Sendas da transição
Sylvia França Schiavo
10. O pastor peregrino
Arno Vogel
11. Presidencialismo, parlamentarismo e crise política no Brasil
Alberto Carlos Almeida
12. Um abraço para todos os amigos: algumas considerações sobre o
tráfico de drogas no Rio de Janeiro
Antônio Carlos Rafael Barbosa
13. Escritos exumados – 1: espaços circunscritos – tempos soltos
L. de Castro Faria
14. Violência e racismo no Rio de Janeiro
Jorge da Silva
15. Novela e sociedade no Brasil
Laura Graziela Figueiredo Fernandes Gomes
16. O Brasil no campo de futebol: estudos antropológicos sobre os
significados do futebol brasileiro
Simoni Lahud Guedes

ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 239–250, 1. sem. 2004


249

17. Modernidade e tradição: construção da identidade


social dos pescadores de Arraial do Cabo (RJ)
(Série Pesca no estado do Rio de Janeiro)
Rosyan Campos de Caldas Britto
18. As redes do suor – a reprodução social dos trabalhadores da
pesca em Jurujuba (Série Pesca no estado do Rio de Janeiro)
Luiz Fernando Dias Duarte
19. Escritos exumados – 2: dimensões do conhecimento
antropológico
L. de Castro Faria
20. Seringueiros da Amazônia: dramas sociais e o olhar
antropológico (Série Amazônia)
Eliane Cantarino O’Dwyer
21. Práticas acadêmicas e o ensino universitário
Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto
22. “Dom”, “Iluminados” e “Figurões”: um estudo sobre a
representação da oratória no Tribunal do Júri do Rio de Janeiro
Alessandra de Andrade Rinaldi
23. Angra I e a melancolia de uma era
Gláucia Oliveira da Silva
24. Mudança ideológica para a qualidade
Miguel Pedro Alves Cardoso
25. Trabalho e residência: estudo das ocupações de empregada
doméstica e empregado de edifício a partir de migrantes
“nordestinos”
Fernando Cordeiro Barbosa
26. Um percurso da pintura: a produção de identidades de artista
Lígia Dabul
27. A sociologia de Talcott Parsons
José Maurício Domingues
28. Da anchova ao salário mínimo: uma etnografia
sobre injunções de mudança social em Arraial do Cabo/RJ (Série
Pesca no estado do Rio de Janeiro)
Simone Moutinho Prado
29. Centrais sindicais e sindicatos no Brasil dos anos 90:
o caso Niterói
Fernando Costa

ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 239–250, 1. sem. 2004


250

30. Antropologia e direitos humanos (Série Direitos Humanos)


Regina Reyes Novaes e Roberto Kant de Lima
31. Os companheiros – trabalho e sociabilidade na pesca de Itaipu/
RJ (Série Pesca no estado do Rio de Janeiro)
Elina Gonçalves da Fonte Pessanha
32. Festa do Rosário: iconografia e poética de um rito
Patrícia de Araújo Brandão Couto
33. Antropologia e direitos humanos 2 (Série Direitos Humanos)
Roberto Kant de Lima
34. Em tempo de conciliação
Angela Moreira-Leite

ANTROPOLÍTICA Niterói, n. 16, p. 239–250, 1. sem. 2004


251

NORMAS DE APRESENTAÇÃO DE TRABALHOS

1. A Revista Antropolítica, do Programa de Pós-Graduação em


Antropologia e Ciência Política da UFF, aceita originais de ar-
tigos e resenhas de interesse das Ciências Sociais e de Antro-
pologia e Ciência Política em particular.
2. Os textos serão submetidos aos membros do Conselho Edito-
rial e/ou a pareceristas externos, que poderão sugerir ao au-
tor modificações de estutura ou conteúdo.
3. Os textos não deverão exceder 25 páginas, no caso dos arti-
gos, e oito páginas, no caso das resenhas. Eles devem ser apre-
sentados em uma cópia impressa em papel A4 (210 x 297mm),
espaço duplo, em uma só face do papel, bem como em disquete
no programa Word for Windows 6.0, em fontes Times New
Roman (corpo 12), sem qualquer tipo de formatação, a não
ser:
• indicação de caracteres (negrito e itálico);
• uso de itálico para termos estrangeiros e títulos de livros e
periódicos.
4. As citações bibliográficas serão indicadas no corpo do texto,
entre parênteses, com as seguintes informações: sobrenome
do autor em caixa alta; vírgula; data da publicação; vírgula;
abreviatura de página (p.) e o número desta.
(Ex.: PEREIRA, 1996, p. 12-26).
5. As notas explicativas, restritas ao mínimo indispensável, deve-
rão ser apresentadas no final do texto.
6. As referências bibliográficas deverão ser apresentadas no fi-
nal do texto, obedecendo às normas da ABNT (NBR-6023).
Livro:
MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhi-
dos. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978. 208 p. (Os pensa-
dores, 6).

Antropolítica Niterói, n. 6, p. 119–121, 1. sem. 1999


252
LÜDIKE, Menga, ANDRÉ, Marli E. D. A. Pesquisa em educação:
abordagens qualitativas. São Paulo: EPU, 1986.
FRANÇA, Junia Lessa et al. Manual para normalização de publica-
ções técnico-científicas. 3. ed. rev. e aum. Belo Horizonte: Ed.
da UFMG, 1996. 191 p.
Artigo:
ARRUDA, Mauro. Brasil : é essencial reverter o atraso. Panorama
da Tecnologia, Rio de Janeiro, v. 3, n. 8, p. 4-9, 1989.

Trabalhos apresentados em eventos:


AGUIAR, C. S. A. L. et al. Curso de técnica da pesquisa biblio-
gráfica: programa-padrão para a Universidade de São Paulo.
In: CONGRESSO BRASILEIRO DE BIBLIOTECONOMIA
E DOCUMENTAÇÃO, 9. 1977, Porto Alegre. Anais... Porto
Alegre: Associação Rio-Grandense de Bibliotecários, 1977.
p. 367-385.
7. As ilustrações deverão ter a qualidade necessária para uma
boa reprodução gráfica. Elas deverão ser identificadas com
título ou legenda e designadas, no texto, como figura (Figura
1, Figura 2 etc.).
8. Os textos deverão ser acompanhados de título e resumo (má-
ximo de 250 palavras), bem como de três a cinco palavras-
chave. Título, resumo e palavras-chave também devem ser
apresentados em inglês.
9. Os textos deverão ser precedidos de identificação do autor
(nome, instituição de vínculo, cargo, título, últimas publica-
ções etc.), que não ultrapasse cinco linhas e endereços para
contato (endereço eletrônico e telefones).
10. Os colaboradores terão direito a cinco exemplares da revista.
11. Os originais não aprovados não serão devolvidos.
12. Os artigos, as resenhas e a correspondência editorial deverão
ser enviados para:
Comitê Editorial da Antropolítica
Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Ciência Política
Campus do Gragoatá, Bloco “O”
24210-350 – Niterói, RJ
Tels.: (21) 2629-2862 e (21) 2629-2863

Antropolítica Niterói, n. 6, p. 119–121 , 1. sem. 1999


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____________________________________________________________ Envie-nos o comprovante de depósito,
Bairro: ______________________________ CEP: _____________-___ através de carta ou fax, juntamente com
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Niterói, n. 6, p. 119–121, 1. sem. 1999

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