Dissertação Reinilda Corrigida1
Dissertação Reinilda Corrigida1
Dissertação Reinilda Corrigida1
SÃO LUÍS
2018
REINILDA DE OLIVEIRA SANTOS
SÃO LUÍS
2018
Dedico esse trabalho à direção, professores
e alunos do Centro de Ensino Sotero dos
Reis por me fazerem entender os reais
motivos de se pesquisar algo e por me
motivarem cotidianamente a continuar.
AGRADECIMENTOS
Ô luar, ô luar
Deixa a gira girar, crioula
Hoje tem canjerê, feitiçaria, ô
Jêje-nagô, kaô meu pai Xangô
Ê, tem cantoria! Eita povo festeiro!
Teu folclore é tradição
Ê, chora viola
Preta velha conta história
E lendas desse chão
Ô, quebra o coco Iá Iá
Matracas vão embalar
Bumba-meu-boi, meu cazumbá
Ouvindo reggae do bom
É carnaval vem curtir esse som
É emoção, o meu pavilhão vai girar
Na terra da encantaria
Os tambores vão ecoar
Nesse trabalho o objetivo foi analisar o processo através do qual, no Ensino Fundamental
maior da escola Centro de Ensino Sotero dos Reis, se consolidam certas formas de representar
o universo material, simbólico e humano das manifestações religiosas de matriz africana,
consubstanciando-se determinados tipos de consciência histórica na qual esses repertórios ou
estão ausentes ou são estereotipados. Bem como pensar em como os alunos constroem
consciência histórica sobre essas cosmologias. Partindo desse pressuposto, elaborei seções
didáticas sobre esse assunto, vinculadas ao site do Museu Afrodigital do Maranhão,
direcionadas aos professores. Para tanto, parto da hipótese de que há uma incoerência entre a
realidade na qual alguns alunos estão inseridos e a ausência de discussão sobre essa realidade
nas salas de aula. Para o desenvolvimento dessa pesquisa, utilizo como fontes os dados
coletados em observações do cotidiano, documentos oficiais, currículo, manuais didáticos,
resultados de questionários aplicados, Projeto Político Pedagógico e projetos internos da
escola em diálogo com teóricos de diferentes áreas do conhecimento, especialmente da
história, da antropologia e do campo dos estudos étnicos raciais. E como materialização da
pesquisa trago uma galeria online, composta de 5 seções, construídas a partir de textos e
fotografias, na maior parte capturadas por mim. Esse produto está vinculado ao site do Museu
AfroDigital, com o tema “Como trabalhar com religiões afro-brasileiras em sala-de-aula”,
destinadas aos professores da educação básica. Os temas trabalhados nas seções são:
Diversidade religiosa no Maranhão, Intolerância religiosa e racismo, José Negreiros: A
trajetória de um pai de santo, Religião afro e catolicismo, Religiosidades afro-brasileira e
resistência.
In this work the objective was to analyze the process through which, in the main Fundamental
Education of the Center of Education Sotero dos Reis, certain forms of representing the
material, symbolic and human universe of the religious manifestations of African matrix are
consolidated, unifying certain types of historical consciousness in which these repertories are
either absent or stereotyped. As well as thinking about how students build historical
consciousness about these cosmologies. Based on this assumption, I elaborated didactic
sections on this subject, linked to the website of the Maranhão Afro-Digital Museum, aimed
at teachers. To do so, I assume the hypothesis that there is an inconsistency between the
reality in which some students are inserted and the absence of discussion about this reality in
classrooms. For the materialization of this research, I use as sources the collected data in daily
observations, official documents, curriculum, didactic manuals, results of applied
questionnaires, Political Pedagogical Project and internal school projects in dialogue with
theorists of different knowledge areas, especially history, anthropology and the field of ethnic
racial studies. And as the final step of the research I created an online gallery, composed of 5
sections, built from texts and photographs captured by me. This product will be linked to the
AfroDigital Museum website, with the theme "How to work with Afro-Brazilian religions in a
classroom", aimed at teachers of basic education. . The themes worked on in the sections are:
Religious diversity in Maranhão, Religious intolerance and racism, José Negreiros: The
trajectory of a father of santo, African religion and Catholicism, Afro-Brazilian religions and
resistance.
1
Dirigido por Renata Amaral. Esse trabalho faz um diálogo estético entre as tradições populares do Brasil e do
Benin (África Ocidental), em uma aproximação poética conduzida pela memória do babalorixá
maranhense,Euclides Talabyan da Casa Fanti Ashanti.
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documental e elaboração de projeto, lá conheci Vicente Junior, pessoa que viria me apresentar
uma nova forma de ver o mundo, a fotografia. Durante a elaboração de um projeto
precisaríamos adentrar no bairro do desterro e lá fomos nós com a câmera no pescoço e com
um pouco de medo no peito. Perambulamos pelo bairro por várias tardes, conversando com
pessoas e fotografando. Resultado disso, fiquei apaixonada pela fotografia e comprei sua
câmera e logo me interessei em fotografar elementos de cultura popular.
No começo de 2015 fui convidada por Jandir Gonçalves, ex-diretor do museu e
atual Superintendente de Cultura Popular, para assumir o museu Casa de Nhozinho na
condição de diretora. Durante esse ano convivi mais de perto com o universo da encantaria,
comecei a viajar para os municípios com ele para conhecer e registrar essas vivências.
Como demanda do cargo, entrei para o Comitê Gestor de Salvaguarda do Tambor
de Crioula –CGSTC, como representante da Secretaria de Cultura do Estado, com isso, pude
me aproximar do assunto e entender as inúmeras fragilidades na relação entre fazedores de
cultura e gestão pública, além de entender que existe uma linha muito tênue entre Tambor de
Crioula, Bumba Meu Boi e encantaria. Paralelo a isso, fui convivendo com mais pessoas
desse universo. Devido a condição de gestora, fiz um grupo de estudo nessa instituição, em
que discutíamos com pesquisadores temas referentes aos saberes e fazeres do povo e a
religião afro sempre foi foco de discussão.
Além disso, ainda neste ano fiz uma viagem, com uma equipe, para a baixada
maranhense na qual visitei nove municípios (Mirinzal, Central, Cedral, Porto Rico, Curucupu,
Serrano do Maranhão, Bacuri, Apicum-açu) fazendo prospecção para a execução do projeto
Mais Cultura e Turismo da Secretaria de Cultura do Estado, na ocasião pude conhecer e
fotografar muitas especificidades culturais e religiosas. Ter contato mais de perto com os
rituais de cura/ pajelança e umbanda, comuns nessa região.
Outra experiência significativa no âmbito do mesmo projeto foi visita a casas de
culto de Santa Inês e Pindaré-Mirim, conheci duas mães de santo que muito me
impressionaram pela dedicação e histórico de vida. Dona Maria em Pindaré-Mirim, que
mesmo doente e com certas limitações passa ano após ano se preparando para fazer suas
festas de santo, além disso faz uma festa grande para a comunidade no dia das crianças. E mãe
Dilma de Santa Inês, que nasceu com os dois sexos, foi morar na Europa, lá “fez de tudo”
para sobreviver até voltar por chamado dos encantados para se fazer no santo e acabou
engravidando, hoje ela constitui família e mantém uma das casas de culto mais conhecidas da
região.
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determinado caboclo, encantado ou orixá ou sobre como ele era bravo ou brincalhão e até
mesmo sobre seus gostos.
Enfim, meu caminho foi tocado várias vezes pela encantaria e atualmente, além
de desenvolver pesquisa no abito acadêmico, faço parte de alguns projetos, sobretudo
explorando a fotografia. Devo destacar que registrar aspectos dessas comunidades religiosas
através da fotografia e áudio visual possibilita adentrar nesse universo captando informações
que permitem criações de novas perspectivas de estudo sobre o tema, desfocando com isso, as
lentes dos estudos sobre religiões de matrizes africanas. Acredito que o estudo dessa temática
se configura como um campo fértil de exploração no âmbito acadêmico, sobretudo, se o
objetivo é aproximar a academia com a prática nas salas de aula.
Considero importante evidenciar a experiência de ser pesquisadora/fotografa em
casas de culto. É interessante como olham aquele que tem uma câmera, primeiro recebi
muitos “não” quando comecei a fotografar, sobretudo, na cidade de São Luís. Para muitos a
câmera representa uma invasão, uma profanação do sagrado. Algumas vezes chegava
empolgada, já ia tirando a câmera da bolsa quando ouvia um ou outro me olhando ou dizendo
que em tal lugar não se podia fotografar, ou que teria que pedir para a entidade dona da casa.
E quando enfim podia fotografar, havia lugares e coisas que eu não podia registrar nem ao
menos me aproximar. Com o tempo fui arrumando meios de pedir para fotografar e na medida
do possível, sobretudo no interior do estado, funcionava.
Mas acredito que esse receio de ser fotografado e de abrir seus espaços para
pesquisadores se justifica pelas inúmeras situações de preconceito e discriminação pelos quais
muitas casas de culto veem passando, através de imagens e vídeos, que vazam e acabam
sendo interpretados de forma desrespeitosa, sem o menor conhecimento da religião. Lembro-
me da emoção de olhar pela primeira vez uma incorporação pela lente da câmera, a priori me
impressionei com aquela indumentária estonteante e depois me encantei com os movimentos
que seguiam o ritmo dos abatazeiros.
A partir de então me sinto pertencente àquela energia cada vez que frequento uma
festa de santo. Não me vejo pesquisando algo que não tenha essa energia vibrante e
contagiante que as religiões afro-brasileiras têm, e que fique claro, sou apenas uma curiosa,
não tenho nenhuma relação a não ser de pura admiração e vontade de conhecer cada vez mais
as práticas religiosas de matrizes africanas.
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2
Encantados são os seres sobrenaturais com os quais interage cotidianamente o pajé. Eles se apossam dos
médiuns, chamados de ‘cavalos’, para se presentificar. Embora se possa fazer uma ligação imediata com a ideia
de espíritos de falecidos, a análise das doutrinas cantadas nos terreiros, através das quais eles são convocados e
homenageados, desautoriza essa comparação. Nos cantos rituais, estes seres são definidos como vivos, habitantes
de um espaço alternativo, nem sempre imediatamente visível, nos lugares de encantaria. (FERRETTI, M, 2000,
p. 104)
3
SANTOS, Reinilda de Oliveira. José Negreiros: “pulava e brincava, rufava o pandeiro”. In: Boletim da
Comissão Maranhense de Folclore. Número 56, junho de 2014, p. 14-15.
4
FERRETI, Sergio. Andressa e Dudu – os Jeje e os Nagô: apogeu e declínio de duas casas fundadoras do
tambor de mina maranhense. In.: SILVA, Vagner Gonçalves da. (Org.) Caminhos da Alma. São Paulo: Summus,
2002.
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No Maranhão, o repertório caracterizado como afro-religioso é marcado por elementos africanos e indígenas.
Embora não seja foco deste trabalho aprofundar esse problema, cabe destacar uma significativa observação do
antropólogo Luís Nicolau Parès, ao tratar das conexões entre africanos, afrodescendentes e indígenas na história
do Maranhão. Parès mostra que a população africana, particularmente a de origem Congo-Angola, que
predominara no Maranhão, e seus descendentes, acabou se apropriando das práticas da pajelança indígena e
contribuiu, marcantemente, para a sua constituição e evolução. Havia vários paralelismos significativos, ao nível
dos rituais e das crenças, entre as tradições bantu e as práticas dos pajés maranhenses (por exemplo, uma
ideologia de cura expressa simbolicamente numa luta contra a feitiçaria; processos rituais de exorcismo, nos
quais o agente patogênico deveria ser extraído do corpo do doente; a ação individual dos curadores). Teriam sido
esses os elementos comuns que forneceram uma base de convergência da qual se produziu a ação comunicativa e
criadora de diversas gerações de agentes históricos. (PARÈS, 2004) Assim, a formação dessa “pajelança
maranhense” está historicamente associada ao encontro de povos indígenas com pouco contato com a sociedade
colonial com os escravos aquilombados nas florestas do norte do Maranhão, o encontro desses mesmos escravos
africanos com povos indígenas em contato com a sociedade colonial, e também com colonos no meio rural
maranhense vindos de outras áreas do nordeste brasileiro (LAVELEYE, 1996), e ainda a ação de agentes
intermediários, a exemplo de caboclos ou cafuzos, pois à medida que a população foi se misturando racialmente,
foi acrescentando-se a facilidade de interpenetração cultural (PARÈS, 2004). Além de elementos indígenas,
saliente-se que várias entidades afro-religiosas são nobres europeus, chamados de gentis, como por exemplo,
Reis Sebastião e Dom Luís Rei de França. Em O Pantheon Encantado, Antonio Evaldo Almeida Barros (2007)
sugere que vários símbolos de matriz europeia foram submetidos ou “encantados” pelo panteão religioso afro-
indígena maranhense: os nobres europeus, como tantos nobres africanos e líderes indígenas, foram
transformados em entidades espirituais presentes nos terreiros da região.
6
Afro, pois tinham traços africanos. Brasileiras, pois apresentavam traços católicos, espíritas e indígenas. [...]
Assim, os traços de origens africanas foram colocados no vértice mais baixo da evolução, seguidos de traços
indígenas e dos traços católicos assimilados de forma primitiva. No vértice mais elevando dessa evolução
colocavam-se os traços espíritas. (MAGGIE, 1975, p. 13-14)
7
A BNCC é um documento plural, contemporâneo, e estabelece com clareza o conjunto de aprendizagens
essenciais e indispensáveis a que todos os estudantes, crianças, jovens e adultos, têm direito. Com ela, redes de
ensino e instituições escolares públicas e particulares passam a ter uma referência nacional obrigatória para a
elaboração ou adequação de seus currículos e propostas pedagó- gicas. Essa referência é o ponto ao qual se quer
chegar em cada etapa da Educação Básica, enquanto os currículos traçam o caminho até lá. (BNC,2017, p.7)
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conquista do povo negro, perdeu ainda mais espaço nas salas de aulas do país. Após anos de
luta, grupos que tiveram envolvidos na criação e implementação da referida lei lamentam a
não obrigatoriedade de discussões sobre o conteúdo, excluindo discussões que poderiam
contribuir para a superação de uma trajetória de reprodução do preconceito e desigualdade
racial.
Esse trabalho foi pensado antes dessas mudanças, portanto procuro observar a
realidade da escola-campo tendo em vista a obrigatoriedade da lei, mesmo porque as
mudanças ocorrem de forma lenta e a escola no começo de 2018 ainda não aplicou essas
mudanças em seu cotidiano. De acordo com o documento, municípios e estados terão um
prazo de até dois anos para implementar a base em seus currículos, portanto, adaptar e rever
seus currículos em 2018 para iniciar a implementação da base em 2019. O documento destaca
que o ensino fundamental deve ser pautado em cinco áreas do conhecimento: A área de
Linguagens, de Matemática, de Ciências da Natureza, de Ciências Humanas e de Ensino
Religioso.
O ensino religioso foi um dos temas que mais causaram polêmica no
desenvolvimento e implementação desse dispositivo legal. Na versão final do documento no
tópico 4.5. A área de Ensino Religioso trata de competências específicas de Ensino Religioso
para o Ensino Fundamental anos iniciais e anos finais com unidades temáticas, objetos de
conhecimento e habilidades. O documento coloca o Ensino Religioso como uma das cinco
áreas de conhecimento do Ensino Fundamental, estabelecido como componente curricular de
oferta obrigatória nas escolas públicas, com matrícula facultativa. Embora traga um texto
coerente sobre a necessidade de se trabalhar os conhecimentos religiosos a partir de
pressupostos éticos e científicos, sem privilégio de nenhuma crença ou convicção, o texto não
abre espaço para religiões especificas, o que culminará na vontade e/ou crença do professor
ou da escola.
No Ensino Fundamental, o Ensino Religioso adota a pesquisa e o diálogo
como princípios mediadores e articuladores dos processos de observação,
identificação, análise, apropriação e ressignificação de saberes, visando o
desenvolvimento de competências específicas. Dessa maneira, busca
problematizar representações sociais preconceituosas sobre o outro, com o
intuito de combater a intolerância, a discriminação e a exclusão. (BNCC.
2017, p. 434)
Assim, o que se percebe é que estudantes que vivem em ambientes sociais marcados por
religiões afro-brasileiras, e mesmo aqueles que participam e frequentam essas expressões
religiosas, tem negada a possibilidade de afirmação dessa identidade ou se tornam objeto de
preconceito e de toda forma de discriminação.
Esta proposta de trabalho se materializou através de observação e descrição
analítica do cotidiano escolar, e ainda análise de representações sobre as chamadas religiões
afro disseminadas em materiais didáticos, paradidáticos e em outras mídias usadas na escola-
campo. Ao final foi desenvolvida uma proposta de intervenção escolar, composta das
seguintes etapas: a) montagem de uma galeria intitulada como trabalhar as religiões afro-
maranhenses vinculada ao Museu Afro Digital do Maranhão
(http://www.museuafro.ufma.br/site/); b) realização de oficina destinada aos professores da
escola-campo para apresentar o produto.
Em um país que, segundo José Ricardo O. Fernandes (2005), o mais adequado
seria se falar em “culturas brasileiras” ao invés de “cultura brasileira”, ainda é comumente
perceptível um desconhecimento e despreparo em se trabalhar essa diversidade cultural nas
escolas. Constantemente, são observadas na sociedade e nas escolas manifestações de
incompreensão e preconceito em relação às religiões afro-brasileiras. No universo escolar,
crianças e adolescentes oriundos de casas de culto afro geralmente passam por situações no
mínimo constrangedoras, quando não psicologicamente violentas. Na realidade, é nesse
ambiente que elas se sentem mais reprimidas em assumir determinadas identidades.
Antes de tudo, deve-se destacar que em vários estados do Brasil é possível
perceber a disseminação dos cultos afros. Esta proliferação pode ser vista, de certa forma,
como a vitória de saberes e fazeres que, através de homens e mulheres africanos que
atravessaram o oceano, se arraigaram à sociedade brasileira. Assim, variando de acordo com a
origem territorial africana e o contato com práticas e saberes nativos, foi se configurando um
campo múltiplo, diversificado e rico de expressões culturais e religiosas de marca popular,
negro e negro-mestiça.
No caso do Maranhão, tornou-se muito comum o Tambor de Mina e pajelança,
mas é extremamente complexa a tarefa de pensar nessas especificidades, uma vez que há
inúmeras variações no país inteiro. Vale frisar que muitos terreiros se denominam de
Umbanda, isso se deve a Federação de Umbanda que foi criada na década de 1960, em que
todas as casas de culto precisam se filiar para poder se legalizar. Com isso, Sergio Ferretti
(2001) a ver como uma das religiões afro-brasileiras mais difundidas no Brasil, no Maranhão,
a Umbanda se diz ‘cruzada’, ou misturada com outras religiões afro-brasileiras. De acordo
22
com Volney Berkenbrock (1998), do ponto de vista histórico, a África é o campo de origem e
o Brasil, é o campo de desenvolvimento dessas religiões.
Em vista disso, é inquestionável a necessidade de se explorar esses temas em sala
de aula levando em conta sua diversidade e peculiaridade. No Maranhão, a partir da análise da
literatura existente sobre a temática e da minha inserção no universo do que é frequentemente
denominando de macumba8, pode-se aferir que em São Luís é mais comum a Pajelança e o
Tambor de Mina, mas no interior do Estado essas expressões recebem classificações diversas,
como Badé, Berequete, Pajelança, Jirumga, Panguará, Iemanjá, Baía, Terecô, Cura,
Brinquedo de Cura ou simplesmente Brinquedo, dentre outras, mas a linha que divide essa
diversidade pode ser muito tênue.
No estado, sobretudo a partir da segunda metade do século XX, as práticas
religiosas passam a ser vistas como elementos dinamizadores na sociedade, tendo em vista
que uma identidade maranhense estava sendo moldada em cima do povo-de-santo e suas
práticas, quebrando com a ideia que se tinha até então de Atenas Brasileira. “O povo-de-santo
se perceberá num terreno constituído por um arsenal de olhares e práticas seletivas, com
interesses os mais variados, participando diretamente da construção desses processos
seletivos, barganhando espaços e negociando posições nesse cenário”. (BARROS, 2007,
p.190)
No entanto, não se deve ignorar que essas manifestações possuem um histórico de
perseguição e resistência. Identificadas geralmente como rituais de macumba, práticas
diabólicas, espaço da criminalidade e da ausência do bem, algumas, especialmente aquelas
que têm forte caráter religioso, são fortemente perseguidas. Atualmente, o que
convencionalmente se denomina de religião afro-brasileira consiste, em grande medida, no
sincretismo entre elementos e costumes africanos e brasileiros9.
E a partir do contanto com o catolicismo, as casas de culto de matriz africana
acabam construindo uma comunicação dinâmica com os festejos populares. Hoje, a maior
parte do calendário religioso afro-maranhense está atrelada ao vasto ciclo de festas associadas
ao calendário litúrgico católico. Fortemente influenciada por essa religião, suas entidades
8
De acordo com Berkenbrock (1998) o termo está associado à vertente religiosa de origem afro originaria no Rio
de Janeiro, e embora seja utilizada de forma pejorativa por não membros das religiões afro brasileiras é uma
referência comumente utilizada por membros de terreiros, sobretudo, no interior do estado, para designar a as
festas, além de ser um instrumento musical. É interessante destacar que na maioria das vezes os membros
desconhecem os termos “acadêmicos”, “cientificizados” e em vista disso, o termo acaba abarcando as diversas
vertentes.
9
FERRETTI, Sérgio F. Repensando o Sincretismo. São Paulo: Editora USP / São Luís: FAPEMA, 1995.
23
espirituais são devotas dos santos e suas cerimônias de origem africana aliam-se às práticas
católicas.
Barros (2007) destaca que é, sobretudo, como denúncia e com a exigência de que
medidas policiais e corretivas sejam tomadas que a maioria dos relatos disponíveis nos jornais
maranhenses e brasileiros até meados do século XX tendem a se referir às práticas referentes à
religiosidade afro-brasileira e de caráter indígena: estas práticas seriam como fios que
contaminariam o tecido social, urgindo sua devida remoção.
Geralmente, inscreve-se o vasto panteão religioso e cultural negro-mestiço como
constituído de rituais de magia negra, de adoradores do demônio e lócus de sacrifícios
humanos; entendia-se que tudo isso ia contra a tranquilidade e moral das chamadas pessoas da
sociedade, ainda que, ao mesmo tempo, nos próprios jornais, se reconhecesse que pessoas de
diferentes classes recorressem aos poderes de pajés, pais e mães-de-santo.
Um tema não se descola do lugar de fala e é interessante pensar São Luís nessa
pesquisa, ainda que eu traga no último capítulo elaborações referentes à trajetória sócio
histórica das religiões afro-brasileiras é válido destacar que os participantes, praticantes ou
apenas curiosos sempre foram tratados de forma desrespeitosa no processo histórico da
cidade, embora muitas dessas casas fossem conhecidas e bem frequentadas sempre sofriam
retaliações por parte da sociedade e da polícia, realidade que ainda perdura. E as crianças e
adolescentes pertencentes a essas vertentes religiosas geralmente se passam por católicos nas
salas de aula por não se sentir à vontade para admitir suas crenças.
Desta forma, a escola, que deveria ser um ambiente que subsidiasse uma leitura
crítica da diversidade religiosa existente no país, muitas vezes se posiciona de forma
inadequada, trazendo elaborações equivocadas que acabam por desqualificar e demonizar
essas expressões religiosas. A escola se torna assim um ambiente desencarnado,
descontextualizado, que nega, ao invés de incluir, o universo social, cultural e religioso no
qual está inserido.
Diante disso, é válido frisar que, além das ações afirmativas de grupos específicos
como o Movimento Negro e do advento da Lei 10.63910, um passo importante e demasiado
necessário que precisa ser trilhado é o da mudança no processo educacional, sobretudo, no
ensino fundamental. Nesse contexto, a disciplina de História, como também outros campos
10
O advento da Lei nº 10.639/2003 se deu em meio a um intenso debate social amplificado pela mídia, que
expressava os primeiros impactos da implantação de programas de ação afirmativa em algumas universidades
brasileiras. O texto das "Diretrizes" apresenta dimensões normativas relativamente flexíveis, sugerindo
referências, conteúdos e valores para a ação docente, em consonância com o pressuposto formativo e educativo
da valorização da pluralidade cultural - mote, aliás, já presente nos Temas Transversais dos Parâmetros
Curriculares Nacionais, de 1998. (PEREIRA, p.01, 2010)
24
Com isso, acredita-se que o Ensino de História é um campo fértil para a formação
de “consciência histórica”, noção desenvolvida por Jörn Rüsen (2007), que defende a
reaproximação da teoria e pesquisa histórica com o ensino e a didática da História. Vale
lembrar que seus postulados são de fundamental importância nas áreas de teoria e ensino de
história, com isso, para problematizar o conteúdo referente às religiões de matrizes africanas,
os educadores precisam explanar acerca do passado religioso, o que pode ajudar os alunos a
valorizarem e respeitarem tais práticas.
Com isso, na visão de Rüsen (2008), “o professor deve ser preparado para
priorizar a autocrítica e trocar experiências, pois os alunos precisam ter consciência de si na
25
história”. Desta forma, torna-se necessário fazer esse diálogo envolvendo os diferentes tempos
históricos, e essa ação não pode ser realizada como uma iniciativa isolada, mas como fruto de
um esforço coletivo em prol de um aprimoramento do sistema educacional.
Nos dias atuais, “considera-se necessário ao público escolar das mais diferentes
faixas etárias [...] partir do conhecimento do vivido (senso comum) para que se possa situar as
problemáticas enfrentadas na vida em sociedade” (BITENCOURT, 2004, p.190). Como
salienta Helenice Rocha, “a história ensinada está entre a história do senso comum, a vida
prática e o que é produzido na corte acadêmica. Assim, não há como desvincular a vivência
do aluno dos conteúdos ministrados em sala de aula no processo de construção da consciência
histórica e do próprio aprendizado.” E “a consciência histórica será algo que ocorre quando a
informação inerente, progressivamente interiorizada, torna-se parte da ferramenta mental do
sujeito e é utilizada, com alguma consciência, como orientação no cotidiano.” (RUSEN, 2011,
p.16)
De acordo com o argumento de Martins, “a tessitura dos processos reflexivos do
pensamento e da consciência histórica se dá em diferentes círculos da vida pessoal e social.”
(MARTINS, 2001, p. 45) Desta maneira, pensar o ensino de história e seus desdobramentos
implica compreender a complexa maquinaria que circunda a realidade escolar. Com isso, é
interessante repensar, por exemplo, a forma de organização curricular e também incentivar
ações pedagógicas. Esse é um dos passos mais importantes nesse processo. A partir daí os
professores reformulariam meios de implantação do que está posto no currículo. Partindo
disso, no âmbito da sala de aula é primordial inicialmente trabalhar a sensibilização dos
alunos, fazendo com que estes entendam as diferenças religiosas no âmbito da história da
nação, contextualizando com o ambiente no qual estão inseridos, para, a partir desse ponto,
trabalhar a questão da intolerância e preconceito.
Assim, em diálogo com Rüsen (2008), é a partir da vivência do alunado que o
professor precisa considerar o processo de problematização de determinados assuntos. Esta
informação torna-se pertinente uma vez que inclui a história científica como uma das
possibilidades de orientação e constituição de identidades na vida prática. Ou seja, dentre os
26
escola-campo. Neste caso, será dada muita atenção a trechos, sabidamente poucos, nos quais o
tema é destacado, direta ou indiretamente nos livros didáticos. Além disso, será realizada
observação do cotidiano no Centro de Ensino Sotero dos Reis e aplicação de questionários.
Com isso, almejo contextualizar dados empíricos da pesquisa etnográfica com o conteúdo das
religiões afro-brasileiras, levando em consideração tanto termos históricos como sociais.
No contexto escolar, intenta-se observar aspectos das relações entre as pessoas
que permeiam esse recinto, bem como compreender o local em que ela está inserida e as suas
dinâmicas. Tendo em vista que “o pesquisador entra em campo considerando que tudo o que
vai encontrar serve para confirmar o que ele considera já saber, ao invés de compreender o
campo como possibilidade de novas revelações” (CRUZ NETO, 2006, p. 55-56), este é
também o momento desta pesquisadora tentar se despir das concepções e adentrar no
cotidiano escolar com o mínimo de preconceitos ou ideias pré-concebidas para assim, escutar
os sujeitos envolvidos.
Certamente, é difícil abrir mão de concepções que se tem sobre a realidade da
escola, tais como: “os professores estão desmotivados para ensinar”, “os alunos são
desinteressados e só querem saber de notas”, “a educação está perdida”, “esses estudantes não
são capazes de aprender”, “não há boas expectativas sobre a educação”, “a educação e as
escolas estão sucateadas” e várias outras imagens que permeiam o imaginário social como
forma de justificar as ausências características desse local. Logo, a partir dessa observação e
análise da escola, pretende-se aqui analisar o processo através do qual se consolidam certas
formas de representar o universo da encantaria, consubstanciando-se determinados tipos de
consciência histórica na qual esses repertórios ou estão ausentes ou são estereotipados.
A pretensão foi pensar como os alunos constroem a consciência histórica sobre
as religiões afro maranhenses, evidenciando os espaços e lugares simbólicos destinados a
esse universo. A escola em destaque se localiza no centro da cidade, os alunos de modo
geral são oriundos do bairro e adjacências e é direcionada ao ensino fundamental e médio. A
ideia é observar diferentes ocasiões, não somente em sala de aula, mas também eventos e
datas comemorativas como a Semana da Consciência Negra e projetos internos e externos,
nas quais tais temas podem vir à tona de modo mais frequente.
Devo frisar que o primeiro contato com o corpo docente e discente da referida
escola foi extremamente amigável e senti grande interesse da direção em conhecer o projeto
de pesquisa e ajudar no seu desenvolvimento. De imediato fui informada que a escola
possuía um paradidático sobre o conteúdo de África, o livro A África está em nós: História e
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cultura afro-brasileira11. Contudo, a diretora deixou claro que o material havia saído de
circulação devido a inúmeros erros e imprecisões sobre o assunto. Também destacou a
importância de ter alguém no sentido de despertar o interesse dos professores em
trabalharem o tema, sobretudo, por ser o mês de novembro e está próximo da semana de
Consciência Negra.
Vale evidenciar também que a intolerância e falta de conhecimentos sobre as
religiões afro-brasileiras estão entranhados no imaginário das pessoas, sejam da academia
ou da sociedade como um todo. Geralmente quando falo do tema de pesquisa que
desenvolvo sou vítima de atitudes jocosas e permeadas de preconceito, tais como, “ela
estuda macumba, é feiticeira”, “essas roupas aí são de macumba”, “é fácil pra ela, deve ter
tomado uns banhos nos terreiros que vai”, “e aí, a macumba como vai?”, “tu não tem medo
de mexer com isso?”, “quando vai me levar para ver uma macumba?”.
Contudo, confesso que fiquei impressionada com a reação dos alunos quando eu
dizia que estudava o tema. Alguns questionavam: “a senhora é da macumba?”, “ah quase
todo mundo aqui tem um pé nessas coisas”, “que interessante”, “conheço um monte de
gente que vai”, “deve ser bom estudar essas coisas”. Percebi que geralmente eles se
comportavam de forma mais natural e poucos demostravam espanto, enquanto que os
professores questionavam de forma curiosa e um tanto intolerante.
A proposta dos temas e questões a serem desenvolvidas nos capítulos considera
o enfoque no modo como a religiosidade africana e afro-brasileira aparece nos marcos legais
federais e estaduais, nos documentos que embasam o ensino e nos planos e projetos
produzidos no ambiente escolar. Também visa refletir sobre como esse tema é trabalhado na
escola-campo e, sobretudo, a receptividade da comunidade escolar e os desafios enfrentados
no cotidiano.
Além dessa perspectiva analítica, realizei pesquisa de campo, de novembro de
2016 a dezembro de 2017. Nesse intervalo de tempo observei as professoras de história,
assisti às aulas e convivi com os demais docentes na sala dos professores e reuniões, mas o
foco era o alunado, passei muito tempo nas salas e nos intervalos observando as
brincadeiras, conversas e ações. A ideia era entendê-los melhor e perceber os espaços que o
meu tema de pesquisa ocupava naquela realidade.
Esta dissertação é dividida em quatro capítulos, formulados e materializados a
partir de discussão historiográfica sobre o tema bem como observação e análise de cotidiano
11
Livro que compõe uma coleção, sendo esse o volume três, organizado por Roberto Benjamin.
29
escolar. Além de elaborações sobre as religiões afro no Maranhão e o produto final, repertório
pedagógico, destinado aos professores.
e social que está sendo produzida e disseminada no que tange a pluralidade religiosa no
Brasil.
A educação pública do Brasil foi e ainda é marcada pela catequese, e por isso é
preciso pensar nos impactos dessa educação que subtraiu um continente inteiro da História. E
para entender o histórico da educação brasileira, deve-se compreender primeiramente a
chegada dos portugueses, com seus métodos educacionais oriundos da Igreja Católica, que
estavam muito mais atrelados à conversão religiosa do que à escolarização. No período
colonial os jesuítas fundaram o colégio da Companhia de Jesus, com isso se percebe a
imposição de um modelo educacional, em que os próprios habitantes da colônia eram
completamente excluídos, sendo obrigados a apreender uma história que em nada lhe
identificavam.
Anos mais tarde, quando os jesuítas foram expulsos, o ensino público passou para
as mãos de outros setores da Igreja Católica. Quase meio século depois e, apesar de, em 1891,
a primeira Constituição republicana ter separado o Estado da Igreja, o papel da escola pública,
muitas vezes, ainda se configura em práticas de catequização e conversão, em que se
evidenciou um perfil de educação europeia, branca e católica no país. Com reflexo desse
processo, a história e cultura das populações indígenas e dos africanos foram ignoradas.
Deu-se início às primeiras formas de escolarização e ensino sob responsabilidade
do Estado no país na primeira metade do século XX, e essa ideia se materializa, por exemplo,
na fundação do Colégio Dom Pedro II. A criação desta escola é contemporânea a escola
francesa pós-revolução, que serviu de base para a formação curricular através dos programas
e manuais didáticos. Na primeira metade do século XX, houve uma expansão das escolas
secundárias do Brasil. Nesse período foram criadas as primeiras universidades responsáveis
pelas produções da história brasileira.
Apesar de terem o encargo da pesquisa cientifica e da formação de professores
secundários, a primeira foi assumida como função primordial seguindo o modelo das
universidades da Europa. O desenvolvimento do ensino de história na formação de
professores não ocorreu de forma paralela a dos cursos universitários que trouxeram para a
pesquisa as inovações dos grupos dos historiadores europeus.
Como assegura Silva e Fonseca (2010), nas primeiras décadas do século XX, os
professores, pesquisadores e gestores possuíam uma clara compreensão de que a escola é um
espaço complexo de disputas políticas, debates intelectuais, fontes históricas e diferentes
propostas de saber. Além disso, poderia se consolidar como espaço democrático onde as
possibilidades de estudar e aprender estão presentes. Diante disso, o Ensino da História se
organiza como uma disciplina formativa, apontando para a construção de novas práticas e
possibilidades metodológicas que potencializam e indicam outras relações educativas.
Magalhães (2006) aponta que as décadas de 1980 e 1990 foram marcadas por
muitas mudanças no ensino devido à transição do período da ditadura civil- militar na qual
33
havia necessidade de uma reformulação nas práticas docentes. Essas reformulações tentavam
romper com a ideia de impor um pacote diretivo à escola. Pela primeira vez a União abria a
possibilidade de rever nos currículos a reconstrução de parâmetros básicos para a educação.
Com isso, as Leis de Diretrizes e Bases da Educação de 1996, juntamente com os
Parâmetros Curriculares Nacionais de 1997, alteraram a organização curricular em todos os
seus sentidos, criando e eliminando conteúdos e disciplinas, a exemplo da incorporação das
Leis 10.639/03 e 11.645/08. Novas metodologias e correntes possibilitaram a utilização de
novas linguagens em sala de aula, tal como a utilização de materiais iconográficos,
fotografias, periódicos impressos, literatura entre outros.
Segundo os PCNs divulgou-se, então, uma concepção de cultura uniforme,
depreciando as diversas contribuições que compuseram e compõem a identidade nacional. Por
outro lado, a perspectiva de um Brasil “de braços abertos” compôs-se no “mito da democracia
racial”. Nos anos 30, Gilberto Freyre amenizou as crenças sobre a suposta degeneração racial,
criada no século XIX, construindo uma imagem positiva da mestiçagem. Com isso o Brasil
passou a ser visto como um país onde não havia diferença social entre negros e brancos, o que
levou à negação dos efeitos sociais cultivados como herança da instituição escravista.
Assim, na sociedade em geral, discriminações praticadas com base em diferenças
ficam ocultas sob o manto de uma igualdade que não se efetiva, empurrando para uma zona
de sombra a vivência do sofrimento e da exclusão. Essas influências marcaram
profundamente a história da escola no Brasil, consolidando mentalidades e atitudes das quais
frequentemente o educador não se dá conta em seu cotidiano. Encontram-se manifestações
discriminatórias entre alunos, educadores e funcionários administrativos.
Portanto, uma educação que possibilite melhor entendimento do racismo e
inserção social igualitária independentemente de cor/raça, gênero, renda, religião, entre outras
distinções é necessário para o combate de ideias como inferioridade/superioridade de
indivíduos ou de grupos raciais e étnicos. Nesse contexto é válido pensar na necessidade de
refletirmos sobre o significado de uma escola laica.
Na educação brasileira, a ausência de uma reflexão sobre as relações raciais
no planejamento escolar tem impedido a promoção de relações interpessoais
respeitáveis e igualitárias entre os agentes sociais que integram o cotidiano
da escola. O silêncio sobre o racismo, o preconceito e a discriminação raciais
nas diversas instituições educacionais contribui para que as diferenças de
fenótipo entre negros e brancos sejam entendidas como desigualdades
naturais. Mais do que isso, reproduzem ou constroem os negros como
sinônimos de seres inferiores. O silêncio escolar sobre o racismo cotidiano
não só impede o florescimento do potencial intelectual de milhares de
mentes brilhantes nas escolas brasileiras, 12 tanto de alunos negros quanto
de brancos, como também nos embrutece ao longo de nossas vidas,
34
impedindo-nos de sermos seres realmente livres “para ser o que for e ser
tudo” – livres dos preconceitos, dos estereótipos, dos estigmas, entre outros
males. Portanto, como professores(as) ou cidadãos(ãs) comuns, não podemos
mais nos silenciar diante do crime de racismo no cotidiano escolar, em
especial se desejamos realmente ser considerados educadores e ser sujeitos
de nossa própria história. (SECAD, 2005 p.11-12)
12
Engajado a estes propósitos, surgiu, em 1944, no Rio de Janeiro, o Teatro Experimental do Negro, ou TEN,
que se propunha a resgatar, no Brasil, os valores da pessoa humana e da cultura negro-africana, degradados e
negados por uma sociedade dominante que, desde os tempos da colônia, portava a bagagem mental de sua
formação metropolitana europeia, imbuída de conceitos pseudo-científicos sobre a inferioridade da raça negra.
Propunha-se o TEN a trabalhar pela valorização social do negro no Brasil, através da educação, da cultura e da
arte. (NASCIMENTO, 2004, p.01)
36
13
O tema Pluralidade Cultural oferece aos alunos oportunidades de conhecimento de suas origens como
brasileiros e como participantes de grupos culturais específicos. Ao valorizar as diversas culturas presentes no
Brasil, propicia ao aluno a compreensão de seu próprio valor, promovendo sua auto-estima como ser humano
pleno de dignidade, cooperando na formação de autodefesas a expectativas indevidas que lhe poderiam ser
prejudiciais. Por meio do convívio escolar, possibilita conhecimentos e vivências que cooperam para que se
apure sua percepção de injustiças e manifestações de preconceito e discriminação que recaiam sobre si mesmo,
ou que venha a testemunhar — e para que desenvolva atitudes de repúdio a essas práticas. (PCNs, 1998, p.137)
37
durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, que “se distinguiu pelo fato de se
fundamentar num diagnóstico prévio e compreensivo da situação e dos principais problemas
do sistema educacional. O diagnóstico permitiu o estabelecimento de prioridades e a definição
dos instrumentos de atuação a serem utilizados”. (DURHAM, 1999, p.01)
Os PCNs possibilitaram, em tese, com os temas transversais, levar o educando a
certa autonomia intelectual e consciência histórica de ser e estar no mundo, reforçando desta
forma uma cidadania responsável, que será desenvolvida com competências e habilidades
(ensino e pesquisa) e contextualização dos conteúdos com as disciplinas através de diferentes
linguagens, portanto colaborar para que os alunos sejam sujeitos ativos. (PCNs, 1998, p.37)
Esse guia destaca cinco eixos em que os manuais didáticos precisam se encaixar e
um deles é referente à temática africana e afro-brasileira. Esses eixos se referem “a grandes
41
14
O advento da Lei nº 10.639/2003 se deu em meio a um intenso debate social amplificado pela mídia, que
expressava os primeiros impactos da implantação de programas de ação afirmativa em algumas universidades
brasileiras. O texto das "Diretrizes" apresenta dimensões normativas relativamente flexíveis, sugerindo
referências, conteúdos e valores para a ação docente, em consonância com o pressuposto formativo e educativo
da valorização da pluralidade cultural - mote, aliás, já presente nos Temas Transversais dos Parâmetros
Curriculares Nacionais, de 1998. (PEREIRA, p.01, 2001)
15
O ano de 2008 demarcou a promulgação da Lei 11.645, que dispõe sobre a obrigatoriedade do tratamento da
temática afro-brasileira e indígena em todo o sistema escolar brasileiro. Tal lei viria ampliar o sentido
previamente constituído pela lei 10.639, do ano de 2003, que pela primeira vez na história do país tornava
obrigatório o enfrentamento escolar da questão das relações étnico-raciais em todas as suas implicações
curriculares e cotidianas. As duas leis representam um ponto importante de mudança numa estrutura de
silenciamento e produção de muitos estereótipos que, ao longo de mais de um século, vem demarcando práticas e
discursos escolares. (PNLD, 2016, p. 31)
42
Essa lei modificou a Lei de Diretrizes de Base da Educação (LDB), de 1996, pois
introduziu no artigo 26 a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira e
africana nas escolas de ensino básico do país. Neste mesmo ano foi introduzido outro artigo,
que determinava que fosse celebrado o mês da Consciência Negra nas escolas, pois em
discussão com o movimento negro, se havia concluído que, para reeducar as relações étnico-
raciais de forma a diminuir o racismo, seria necessário conhecer, estudar, aprender sobre a
história e cultura dos povos africanos que foram trazidos para o Brasil e sobre a história e
cultura que produzem seus descendentes.
43
Neste contexto é válido esboçar reflexões sobre os impactos dessa lei nas escolas.
Até os anos 2000, segundo De Paula e Guimarães (2014) as pesquisas apontam para uma
invisibilidade da história e cultura africana e afro brasileira. O tema não é visível até década
de 1990 para as instituições de educação e pesquisa, em especial aquelas votadas para a
formação dos professores para a educação básica e para o ensino superior; na década de 2000,
torna-se um dos temas com crescente demanda e inserção no campo da pesquisa, do ensino e
da extensão, isso devido a implementação da lei.
A lei federal 10.639/2003 tornou-se um marco periodizador político, legal e
histórico. A formação continuada, que até então era considerada uma
panacéia para resolver os problemas do ensino e da aprendizagem na
educação escolar básica de um modo geral, torna-se basilar para a
implementação da obrigatoriedade do estudo da história e da Cultura
Africana e Afro-brasileira, tendo em vista a formação inicial considerada
lacunar ou mesmo insatisfatória neste campo. (DE PAULA; GUIMARÃES,
2014, p.7)
Diante disso é válido refletir acerca da relação das formas pelas quais a relação
entre religião e escola vem se definindo. Além de problematizar acerca das fissuras que a Lei
10.639/03 abriu para discussões sobre Religiões Afro-brasileiras, na disciplina de religião do
Ensino Fundamental. Esse ainda é um tema extremamente frágil de ser discutido em sala de
aula, geralmente os professores dessa disciplina não dialogam sobre a diversidade religiosa,
antes pelo contrário se fixam em suas crenças, no geral católicos e protestantes.
Não restam dúvidas de que, desde que a LDB estabeleceu o ensino religioso
como elemento a ser introduzido na construção dos currículos das escolas do
ensino fundamental, muitas discussões e reflexões vêm sendo realizadas com
vistas a elucidar o modo como aquele texto legal deve ser interpretado e
viabilizado no contexto cotidiano das escolas, dentro da dinâmica que
caracteriza os sistemas estaduais de educação. Com isto, novas perspectivas
foram abertas para a justificativa e organização do ensino religioso dentro do
currículo, não apenas como um tema transversal, mas como um esforço
sistemático de entendê-lo como parte integrante da “formação” do cidadão.
(GIUMBELLI, CARNEIRO, 2006, p.5)
16
JUNQUEIRA, Sérgio Rogério Azevedo.História, Legislação e fundamentos do Ensino Religioso. Curitiba:
Ibepex, 2008.
44
embora o ensino de História no Brasil tenha sido alvo de profundas transformações nos
últimos anos, em decorrência desses processos, o mesmo parece não ter atingindo de forma
significativa o ensino da temática em destaque.
O Plano Nacional de Educação (2014-2024) através da meta 7 que diz respeito a
melhoria da qualidade da educação básica em todas as etapas e modalidades, apresenta
estratégias que tangenciam a Lei 10.639/03, tendo em vista a realidade atual do país e o ano
de 2024 como término. O PNE começa na década de 1930 com o recém-instituído Conselho
Nacional de Educação.
Nesse momento inicia-se um debate acerca da redação de um plano nacional de
educação, a ideia cresceu no seio do movimento dos Pioneiros da Educação Nova, que,
reunido em torno da Associação Brasileira de Educação (ABE), lançou um manifesto, em
março de 1932, propugnando pela adoção de um plano geral de educação, de estrutura
orgânica, que tornasse a escola acessível. O ponto de partida desse manifesto foi o diagnóstico
de uma realidade educacional “sem unidade de plano e sem espírito de continuidade”, enfim,
“tudo fragmentário e desarticulado”.
O texto do Plano assegura que, em 1934, a Constituição Federal deste atribuiu à
União a competência para “fixar o plano nacional de educação, compreensivo do ensino de
todos os graus e ramos, comuns e especializados; e coordenar e fiscalizar a sua execução, em
todo o território do país” (art. 150, a). O art. 152 estabelecia que o Conselho Nacional de
Educação deveria elaborar o Plano Nacional de Educação para aprovação do Poder
Legislativo. As duas constituições posteriores à de 1934 (1937 e 1946) não previram o Plano
Nacional de Educação, mas a Lei nº 4.024/1961, antiga Lei de Diretrizes e Bases, incumbiu o
então Conselho Federal de Educação de elaborá-lo.
Assim, em 1962, surgiu o primeiro PNE, não sob a forma de lei, mas como uma
iniciativa do Ministério da Educação e Cultura, aprovada pelo Conselho Federal de Educação.
Nessa versão, o plano, em vez de código que a tudo engloba, passou a ser um esquema
distributivo de fundos e, com isso, foi objeto de revisões, conforme assinalaria mais tarde a
Lei nº 10.172/2001, primeiro PNE aprovado por lei, que vigorou de 2001 a 2010. Após esse,
tramitou no Congresso Federal o PNE do decênio 2011-2020, que seria aprovado para o
período 2014-2024.
documentação legal que subsidia essa discussão e utilizar materiais que possam contribuir de
forma positiva nesse processo.
Está sob intensas discussões a atual conjuntura do ensino de História e das
propostas dos PCNs e Plano Nacional e Estaduais de Educação e da própria LDB, tendo em
vista as dificuldades de execução dessas ideias nas escolas do país. Entre essas discussões o
debate acerca do combate à discriminação racial e do ensino da História da África e suas
culturas ganha bastante notoriedade. De fato, mesmo que esses documentos oficiais almejem
desconstruir a tríade negro/africano/escravo no ensino da história do Brasil, essa ainda
representa o discurso predominante.
Dessa maneira, o papel do docente é fundamental, ele deve fazer do seu trabalho
no cotidiano escolar um espaço de transformação epistemológica, trata-se aqui não apenas de
reproduzir, mas de fazer emergir uma produção de novos conhecimentos através de uma
reflexão crítica dos alunos. Ora, a prática educativa é percebida como um traço cultural
compartilhado que estabelece uma relação com outros contextos da sociedade, o que dificulta
ainda mais o papel do professor no âmbito escolar para o êxito em trabalhar com esses temas.
No ano de 2017 entra em vigência a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) 17,
citada anteriormente, que irá modificar todo o sistema de Educação Infantil e o Ensino
Fundamental do país, e terá até 2019 para ser implantado nas escolas. Segundo o próprio
documento “essa reforma foi prevista na Constituição de 1988, na LDB de 1996 e no Plano
Nacional de Educação de 2014 e foi preparada por especialistas de cada área do
conhecimento, com a valiosa participação crítica e propositiva de profissionais de ensino e da
sociedade civil.” (BNCC, 2017, p.1)
O texto inicial assegura que a BNCC é um documento de caráter normativo que
define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos
17
A BNCC expressa o compromisso do Estado Brasileiro com a promoção de uma educação integral voltada ao
acolhimento, reconhecimento e desenvolvimento pleno de todos os estudantes, com respeito às diferenças e
enfrentamento à discriminação e ao preconceito. Assim, para cada uma das redes de ensino e das instituições
escolares, este será um documento valioso tanto para adequar ou construir seus currículos como para reafirmar o
compromisso de todos com a redução das desigualdades educacionais no Brasil e a promoção da equidade e da
qualidade das aprendizagens dos estudantes brasileiros. (BNCC, 2017, p.7)
50
devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica, de modo que
tenham assegurados seus direitos de aprendizagem e desenvolvimento, em conformidade com
o que preceitua o Plano Nacional de Educação (PNE).
Referência nacional para a formulação dos currículos dos sistemas e das redes
escolares dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e das propostas pedagógicas das
instituições escolares, a BNCC integra a política nacional da Educação Básica e vai contribuir
para o alinhamento de outras políticas e ações, em âmbito federal, estadual e municipal,
referentes à formação de professores, à avaliação, à elaboração de conteúdos educacionais e
aos critérios para a oferta de infraestrutura adequada para o pleno desenvolvimento da
educação.
Na introdução o documento destaca a diversidade cultural e profundas
desigualdades sociais do país e assegura que os sistemas e redes de ensino devem construir
currículos capazes de lidar com essa realidade, e as escolas precisam elaborar propostas
pedagógicas que considerem as necessidades, as possibilidades e os interesses dos estudantes,
assim como suas identidades linguísticas, étnicas e culturais diversificadas. Frisa ainda que o
Brasil, ao longo de sua história, naturalizou desigualdades educacionais em relação ao acesso
à escola, à permanência dos estudantes e ao seu aprendizado. São amplamente conhecidas as
enormes desigualdades entre os grupos de estudantes definidos por raça, sexo e condição
socioeconômica de suas famílias.
Com isso, as decisões curriculares e didático-pedagógicas das Secretarias de
Educação, o planejamento do trabalho anual das instituições escolares e as rotinas e os
eventos do cotidiano escolar devem levar em consideração a necessidade de superação dessas
desigualdades. Para isso, os sistemas e redes de ensino e as instituições escolares devem se
planejar com um claro foco na equidade, que pressupõe reconhecer que as necessidades dos
estudantes são diferentes.
Na parte destinada ao ensino de história o documento assegura a importância da
disciplina para a formação dos alunos e apresenta formas de se trabalhar os diferentes
conteúdos com base na ideia de ligação entre passado e presente e do professor para mediar
esse conhecimento, “a relação passado/presente não se processa de forma automática, pois
exige o conhecimento de referências teóricas capazes de trazer inteligibilidade aos objetos
históricos selecionados. Um objeto só se torna documento quando apropriado por um narrador
que a ele confere sentido.” (BNCC, 2017, p.398)
Assegura que docentes e discentes poderão desempenhar o papel de agentes do
processo de ensino e aprendizagem, assumindo, ambos, uma “atitude historiadora” diante dos
51
econômico pobre ou de classe média baixa. Primeiramente, é relevante frisar que a educação
reforça a desigualdade entre negros e brancos, os alunos negros são os que mais reprovam, os
índices de evasão são exorbitantes, sobretudo, no Ensino Médio, alguns não sabem ler no
Ensino Fundamental maior, além de serem os que mais sofrem atitudes de intolerância.
Geralmente são tratados de forma jocosa e preconceituosa pelos alunos brancos,
isso fica evidente, por exemplo, nas brincadeiras cotidianas e até em ações de alguns
professores. Além do mais, muitos não se reconhecem como negros e a escola não procura
mecanismo para ajudar a inserir esse aluno na história, poucas são as iniciativas a nível
governamental para reparar essa realidade e os indicadores só comprovam esse fato.
Embora seja um dos estados com maior número de negros, o Maranhão está
engatinhando no sentido de políticas de afirmação para a população afro descendente. O
Plano Estadual de Educação (PEE), que é uma exigência federal, é pouco conhecido pelos
professores da rede estadual e embora traga um diagnóstico realista, com base nesses
indicadores educacionais e destaque nas metas e estratégias formas de reparar essa realidade,
não é utilizado na prática. Esse plano foi construído pelo Fórum Estadual de Educação,
através de vinte e oito conferências intermunicipais e aprovado no governo de Roseana
Sarney, através da Lei nº 10.099, de 11 de junho de 2014.
Dentre as preocupações do Plano, está a discussão da Lei 10.639/03 dialogando
com a proposta do Plano Nacional. Na Meta 7: “garantir 100% das escolas da Educação
Básica, níveis e modalidades, condições de transversalidade para o desenvolvimento de
práticas pedagógicas voltadas para as diversidades e temas sociais (direitos sócio
educacionais).” Apresenta duas estratégias pertinentes ao tema: “Implementar as Leis
10.639/03 e 11.645/08 em todas as escolas da rede estadual” e “Fortalecer o Fórum Estadual
de Diversidade Étnico-racial do Maranhão” (PEE, 2014, p. 20).
A meta 8 consiste em “atingir as metas do Índice de Desenvolvimento da
Educação Básica IDEB para a Educação Básica do Estado do Maranhão.” Também destaca
duas estratégias almejando formas de se trabalhar o conteúdo da história da África e Cultura
africana e afro-brasileira.
18
http://ccnma.org.br/index.php/about/historico-ccn
55
para a formação de um grupo de estudos sobre o negro. Enquanto no sul do país, denunciava-
se a discriminação em atos públicos, a realidade no Maranhão, em 1979, era bem outra: com
uma população majoritariamente negra – “aqui não havia negros” – explica-se, negros que se
assumissem com tais. Ao pensar em Movimento Negro no Maranhão, sentia-se de antemão as
dificuldades a serem enfrentadas em uma sociedade onde então a palavra negro era tabu,
vivia-se em um estado onde a ideologia de branqueamento estava incorporada nos negros de
uma tal forma que a maioria deles se auto denominava “morenos” e “moreninhos”,
“roxinhos”, etc., como preferiam ser chamados.
Por outro lado, observava-se que no Maranhão o preconceito racial apesar de
acentuado era, como no resto do Brasil, bastante dissimulado, contribuindo para que dessa
forma os negros se negassem a discutir a questão. De acordo com a escritora, pesquisadora e
militante do movimento negro, Maria Raimunda Araújo (Mundinha Araújo), em conversa
durante reunião da Comissão Maranhense de Folclore, não há uma data certa para a criação
do Movimento Negro maranhense, ele surgiu paralelo aos movimentos dos outros estados,
todavia no seio do CCN.
O projeto pedagógico não modificava seus atendimentos, sendo o mesmo em
todos os municípios, para o Movimento Negro maranhense, era necessário modificar a
política educacional e os padrões de funcionamento das escolas. “Em resposta a essas
reinvindicações, a Secretaria de Estado de Educação encaminhou um oficio a todas as escolas
da rede, informando sobre a obrigatoriedade de comprimento da Lei de nº 10.639/2003, não
havendo, entretanto, uma outra maior divulgação.” (VIANA, 2015, p.98)
Em 2005, a Secretaria de Estado da Educação realizou o Fórum Estadual de
Educação e Diversidade Étnico-Racial, ação vinculada ao MEC/SECARD, em articulação
com o Movimento Negro e a sociedade civil, com objetivo de divulgar a referida Lei.
Contudo, São Luís já possuía uma legislação para a temática negra, anterior a Lei 10. 639/03,
era a Lei nº 3505 de 07 de maio de 1996, que “dispõe sobre a inclusão no currículo escolar
da rede municipal de ensino de 1º grau, menor e maior, de conteúdos programáticos sobre
"estudo da raça negra" na formação sócio-cultural e política brasileira.” (MARANHÃO,
1996).
Foi criada também em 2003 a Coordenação de Promoção de Igualdade Racial
(POPIR) ligada à Superintendência de Modalidades e Diversidades Educacionais
(SUPEMDE) e em 2007 passou a chamar-se Coordenação de Promoção de Igualdade e
Diversidades Educacionais (COPIDE). Viana (2015) frisa que a COPIDE é responsável pela
56
uma pedagogia diferenciada, assim como garantir o direito à educação nas áreas quilombolas.
Além disso, em 2006, chegou ao Maranhão o programa “A Cor da Cultura” 19, parceria entre a
SEMED e a TV Futura, bem como cursos de formação continuada para os professores e kits
com materiais sobre a temática étnico-racial, para melhor trabalhar com a Lei.
A cor da cultura criou a série Mojubá, especificamente para tratar das religiões
afro brasileiras, a série foi dividida em doze episódios. O primeiro, intitulado ‘Origens’,
apresenta as diferenças entre as tradições religiosas de origem africana e a luta de seus
seguidores contra a perseguição até a conquista da livre expressão religiosa. São apresentadas
também as relações e influências europeias e indígenas nos cultos afro-brasileiros. Fica
evidente como o Ayê, assim é chamado o mundo na língua iorubá, pode ser o lugar do
encontro e da celebração das diferenças. Os outros tratam de temas variados: Fé, Meio
Ambiente e Saúde, Influências, Literatura e Oralidade, Quilombos, Comunidades e Festas,
História e Geografia, Beleza, Ciência e Tecnologia, Tradição Oral, Famílias.
A duração de cada episódio é em torno de 30 minutos e conta com entrevistas de
vários pesquisadores do tema, como Renato Silveira – pesquisador baiano, Júlio Tavares –
antropólogo carioca, Maria de Lurdes Siqueira – antropóloga maranhense, Valdina Oliveira
Pinto – Pesquisadora baiana, Adailton da Costa – babalorixá, Nei Lopes – pesquisador e
compositor, Muniz Sodré – escritor, Jocélio dos Santos – antropólogo baiano e muitos outros.
De várias mães a pais de santo e outras pessoas envolvidas com essa cultura e religiosidade
como músicos, artistas plásticos e estudantes. Todos os doze vídeos estão disponíveis no
Youtube e com resumos na página20 do programa na internet e algumas falas dos
pesquisadores citados acima com uma galeria de fotos. Portanto, um excelente material para
uso em sala de aula.
Diante do exposto, acredito que diagnosticar a realidade educacional e somente
criar documentos e propostas não resolve por si só os inúmeros problemas enfrentados pela
população negra no sistema educacional ou pela sociedade em geral ao não ter acesso a
conteúdos relativos à história e cultura africana e afro-brasileira ou estratégias de
enfrentamento do racismo. Assim, é necessário elaborar estratégias para que a desigualdade
19
A Cor da Cultura é um projeto educativo de valorização da cultura afro-brasileira, fruto de uma parceria
entre o Canal Futura, a Petrobras, o Cidan - Centro de Informação e Documentação do Artista Negro, o MEC, a
Fundação Palmares, a TV Globo e a Seppir - Secretaria de políticas de promoção da igualdade racial. O projeto
teve seu início em 2004 e, desde então, tem realizado produtos audiovisuais, ações culturais e coletivas que
visam práticas positivas, valorizando a história deste segmento sob um ponto de vista afirmativo. Disponível em:
http://www.acordacultura.org.br/sites/default/files/documentos/Marco%20Conceitual.pdf acessado em: 23 de
Junho.
20
http://antigo.acordacultura.org.br/mojuba/
58
seja superada e os alunos negros tenham mais chances de mudarem a realidade, na qual estão
inseridos.
Na verdade, essa dívida histórica com a população negra só poderá ser paga
quando forem criadas e efetivadas políticas específicas na educação básica, com base nas
deficiências apontadas pelos inúmeros indicadores sociais e as problemáticas detectadas no
cotidiano escolar. Uma primeira ação poderia ser a elaboração de manuais didáticos que
incluíssem a história dos africanos e afro-descendentes, e que sua história e cultura fossem
valorizadas e trabalhadas como igual à cultura branca europeia predominante, não como
inferior. Ou ainda sugestões de inclusão das temáticas do campo dos estudos africanos e afro-
brasileiros e da educação para as relações étnico-raciais em diferentes espaço-tempo
escolares.
É comprovar que a existência do racismo, do preconceito e da discriminação
raciais na sociedade brasileira e, em especial, no cotidiano escolar acarretam
aos indivíduos negros: auto-rejeição, desenvolvimento de baixa auto-estima
com ausência de reconhecimento de capacidade pessoal; rejeição ao seu
outro igual racialmente; timidez, pouca ou nenhuma participação em sala de
aula; ausência de reconhecimento positivo de seu pertencimento racial;
dificuldades no processo de aprendizagem; recusa em ir à escola e,
conseqüentemente, evasão escolar. Para o aluno branco, ao contrário
acarretam: a cristalização de um sentimento irreal de superioridade,
proporcionando a criação de um círculo vicioso que reforça a discriminação
racial no cotidiano escolar, bem como em outros espaços da esfera pública.
(SECAD, 2005, p.12)
Tendo em vista que a escola tem o papel social de trabalhar nos alunos a
apropriação dos elementos culturais essenciais à compreensão mais elaborada da realidade
que os cerca, ela cumpre esse papel quando assegura aos estudantes um currículo
comprometido com a cidadania, levando em consideração valores fundamentais para a sua
formação. Para tal, os documentos citados outrora apontam caminhos diversos para que se
trabalhe com o conteúdo das religiões afro-brasileiras como parte da construção histórica do
país.
De acordo com as Diretrizes Curriculares Maranhenses (2014), a escola tem
como seu objeto específico o conhecimento elaborado e sistematizado historicamente pela
humanidade, o qual deve ser trabalhado de forma a propiciar a ampliação da visão de mundo
dos sujeitos. Assim, esse ambiente precisa criar e organizar os meios e as condições
adequados para que as aprendizagens se efetivem na perspectiva do cumprimento de sua
função social.
Posto isto, é indispensável fazer uma reflexão acerca do modo como a escola se
relaciona com alunos oriundos ou envolvidos com as religiões afro-brasileiras e, sobretudo,
como os professores se posicionam diante de tal temática. Levando em consideração que a
LDB estabelece, no seu inciso III, do art. 3° que o ensino deverá respeitar o “pluralismo de
ideias e de concepções pedagógicas”, o docente precisa estar atento em não transmitir em sala
de aula suas concepções religiosas e, sim, problematizar acerca das múltiplas especificidades
que marcam o cotidiano escolar. Ou seja, deve inserir a vivência dos alunos nas aulas, como
forma de aproximá-los do conteúdo, além de instigá-los a valorizar sua história, o que
culmina em alunos mais críticos e tolerantes.
Além disso, a Lei 10.639/03, bem como os outros aparatos já explicitados, muitas
vezes são desconhecidos pelos professores, ou simplesmente alguns não sabem como
materializá-los. E vale frisar que, para discutir tal temática, os diretores, a equipe pedagógica
21
Frase retirada do capitulo “O candomblé e a escola” do livro de CAPUTO, Stela Guedes. Educação nos
terreiros: e como a escola se relaciona com crianças de candomblé. – 1ª Ed. – Rio de Janeiro: Pallas, 2012.
60
medo de repressão, sobretudo, na escola e optam pelo silêncio de sua fé. “Continuaremos
vendo que a escola, ao discriminar o candomblé, contribui ainda mais para aumentar a
dificuldade de identificação positiva de alunos (as) negros (as) com a escola”. (CAPUTO,
2012, p. 208)
Na Sotero dos Reis, identifiquei poucos alunos oriundos de terreiro, contudo,
muitos possuem experiências envolvendo encantaria e alegam não ter espaço em sala de aula
para discutir a temática. Os professores optam por não tocar no assunto e os estudantes
acabam reproduzindo ideias racistas e preconceituosas, como explicitado nas respostas aos
questionários que serão explanados posteriormente, além de excluir aqueles que possuem
envolvimento mais direto. Uma das professoras alegou que “os alunos têm vergonha de
admitir que seguem essa religião, pode até ter aluno de candomblé, mas são poucos e esses
poucos não admitem.”
Diante disso, o tema precisa ser problematizado e “não basta acrescentar temas,
autores, celebrações etc. É necessário que se faça uma releitura da própria visão de educação.
É indispensável desenvolver um novo olhar, uma nova ótica, uma sensibilidade diferente.”
(CANDAU, MOREIRA 2003, p.164) Essa necessidade fica em demasia evidência diante dos
discursos predominantes no cotidiano escolar. Tem sido possível perceber que as práticas que
permeiam esse ambiente estão impregnadas de discriminação, sobretudo, as brincadeiras e
xingamentos que aparentemente podem parecer aleatórios e inofensivas, mas tem extremo
poder social.
A partir da pesquisa de campo, foi possível perceber que a escola Sotero dos Reis
é marcada por uma realidade social extremamente diversificada mas promove uma educação
monocultural. As culturas que coexistem nesse ambiente entram em choque com frequência, e
estes encontros são desiguais, na medida em que determinadas expressões culturais são
discriminadas e lhes são negadas as possibilidade de serem vistas como tais, como culturas
outras. Na realidade, como assegura Candau e Moreira (2003), estamos imersos em uma
cultura na qual a demarcação entre ‘nós’ e os ‘outros’ é uma prática social permanente que se
manifesta pelo não reconhecimento dos que consideramos não somente diferentes mas em
muitos casos, ‘inferiores’, por diferentes características identitárias e de comportamentos.
Com isso, a partir da vivência com os professores foi possível perceber certa angústia diante
das dificuldades de se trabalhar as peculiaridades presentes no cotidiano.
22
CANDAU sublinha que “a perspectiva intercultural que defendo quer promover uma educação para o
reconhecimento do “outro”, para o diálogo entre os diferentes grupos sociais e culturais. Uma educação para a
negociação cultural que enfrenta os conflitos provocados pela assimetria de poder entre os diferentes grupos
64
A escola não é só um lugar que recebe sujeitos com saberes, mas é uma
instituição que induz a relações especificas com esses saberes, já que quando
o indivíduo aprende no seio de uma instituição, ele só poderá ser “bom
aluno” caso se adapte à relação com o saber definida pela instituição.
(PENTEADO; CARDOSO JUNIOR, 2014, p. 223-224)
socioculturais nas nossas sociedades e é capaz de favorecer a construção de um projeto comum, pelo qual as
diferenças sejam dialeticamente incluídas.” (CANDAU, 2008, p.23)
65
pergunta enseja é feita, tendo em vista que os diferentes estudos não contemplaram
adequadamente os africanos e afro-brasileiros como sujeitos durante o período escravista,
nem no período republicano, mesmo considerando a sua reconhecida importância na
construção da sociedade brasileira de ontem e de hoje, como apontam diversos estudiosos.
Essa pergunta inicial é respondida quando se pensa em quem elabora os currículos
que estão presentes nas escolas do país. A África permanece, a despeito de todos estes livros,
um continente desconhecido para a maioria da população docente e discente das escolas
brasileiras. A disciplina de história, nas séries finais dos ensinos fundamental, médio e
superior, não contempla o passado e o presente africano tão importante no nosso cotidiano. Os
professores geralmente dizem: “não deu tempo de chegarmos a esse conteúdo.”
O PPP da Escola Sotero dos Reis está em processo de construção e tem como
tema “Um novo estilo de educar”. Com base nele fica evidente que a escola tem avançado ao
promover, através da gestão democrática, a socialização, reflexão, pesquisa e construção do
conhecimento, visando à formação de todos os segmentos que compõem a comunidade
escolar. E preza pelos seguintes princípios: inclusão de todos os educandos no processo
67
racismo e espalharam pelas paredes da escola, com frases como: “não seja racista, meu cabelo
não é de pixain”, “ amar sem preconceito, cores atraem tudo o que há de bom”, “uma vida por
amor, contra a violência e racismo”, “enquanto a cor da pele for mais importante que o brilho
dos olhos, haverá guerra.”, “tire o seu racismo do caminho, que eu quero passar com a minha
cor”, “no céu não haverá racismo...muito menos os que o possuem” e outros. Na sexta-feira,
dia 18 fizeram apresentações de danças e desfile de beleza negra com as meninas. Nessa
ocasião algumas usaram acessórios e roupas coloridas, fazendo menção à África.
No turno da tarde as professoras de história e português se reuniram uma semana
antes para pensar em algo, fizeram o convite para outros professores, mas alguns alegaram
que o tempo era curto e por isso não daria para preparar alguma ação. Então, ficou acordado
que teria exibição de filmes, apresentação de seminários sobre o tema na disciplina de
história, e oficinas de tranças e turbante, mas as oficinas não aconteceram, porque as pessoas
que foram acionadas já estavam em outras atividades, devido ao dia. Então fizeram exibição
da animação francesa “Kiriku e a feiticeira”24 e apresentações de seminários, visando discutir
a importância do 20 de novembro para a população negra.
As turmas de 7º e 8º ano se organizaram em equipes para apresentarem trabalhos
com o tema: A África está em nós: a importância do dia da Consciência Negra dentro da
escola, tema elaborado pela professora Lúcia Pinheiro, de história. Ela pediu que nas
apresentações os alunos usassem acessórios, turbantes e penteados como forma de reforçar
uma identidade negra, tendo em vista que a escola é predominantemente negra, o que não
aconteceu. Assisti às apresentações dos seminários e todas as equipes fizeram quase a mesma
pesquisa, exaltando a importância de Zumbi dos Palmares para a Semana de Consciência
Negra. Aparentemente, as falas eram copiadas da internet, decoradas e apenas lidas. É
interessante destacar que embora alguns dos grupos fossem compostos apenas por alunos
negros, eles não se colocavam nas falas apresentadas.
Em uma das equipes a professora perguntou o que aquele momento significava
para eles, um disse que não tinha nenhuma importância, todavia, para nossa surpresa, um
levantou a mão e disse; “serve para nos vermos como negros que somos, por isso é
importante.” A última equipe apresentou um cartaz escrito: “Meu cabelo não é ruim, ruim é o
24
Na África Ocidental nasce um menino minúsculo, cujo tamanho não alcança nem o joelho de um adulto, que
tem um destino: enfrentar a poderosa e malvada feiticeira Karabá, que secou a fonte d'água da aldeia de Kirikou,
engoliu todos os homens que foram enfrentá-la e ainda pegou todo o ouro que tinham. Para isso, Kirikou
enfrenta muitos perigos e se aventura por lugares onde somente pessoas pequeninas poderiam entrar. Data de
lançamento: 1999. Direção: Michel Ocelot. Gênero: Animação. Nacionalidade: França.
http://www.adorocinema.com/filmes/filme-18446/ acessado em 22 de abril de 2017.
69
seu preconceito” e quando a professora questionou sobre o que era preconceito na opinião da
equipe, a resposta de uma das alunas foi: “é quando dizem que cabelo, por ser de negra,
parece cabelo de pixain e me chama de tribufu ou de macaca.”
Alguns alunos colaram figuras nos cartazes e quase todas eram atreladas ao
processo de escravidão, o que materializa a concepção da tríade negro/africano/escravo.
Portanto, as comemorações da Semana de Consciência Negra se constituem como uma
ocasião que apresenta potencial para a construção de consciência história sobre história e
cultura africana e afro-brasileira, e sobre as religiões afro-brasileiras. Embora essa não seja
uma preocupação recorrente dos professores.
Os alunos participaram de forma efetiva, muitos conversaram com os ministrante das oficinas,
demostrando entusiasmo e interesse nos conteúdos, sobretudo os de religião afro e capoeira.
No dia da Consciência Negra foi realizado ação do Museu afrodigital do MA. Na
realidade, essa intervenção começou no começo do mês de novembro e foi pensada em três
momentos: prospecção, ação e retorno para diálogo com os professores. Primeiramente houve
uma reunião com a direção e professores (prospecção) em que a equipe apresentou o projeto e
em seguida houve diálogo, sobretudo almejando ouvir mais os professores. Embora o tempo
tenha sido pouco alguns deixaram valiosas colaborações sobre a ação e frisaram a importância
de atividade como essas para melhor esclarecimento de temas que eles geralmente não
dominam, além de ser uma boa atividade para o dia da Consciência Negra.
A reunião contou com a presença de membros da equipe do MAD, começou com
observações sobre a história da escola, envolvendo espiritualidade e o cemitério dos Ingleses.
Apresentação com fotos do site do museu, pelo professor Sergio Ferretti, sobre cultura e
religiosidade popular e sobre o projeto com explanações sobre objetivos, metodologia e
dinâmica das ações. Na ocasião 15 professores da escola, as duas diretoras e supervisora
estiveram presentes.
Alguns falaram sobre como trabalham educação étnico-racial em suas turmas,
outros trouxeram as dificuldades em discutir tal temática. A professora de artes demonstrou
muito interesse em colaborar com o projeto e usar como ferramenta na sala de aula, deixou
claro que tentou trabalhar com o tema e os alunos geralmente acham que é macumba e não
colaboram muito.
A diretora Maria Aparecida destacou que a escola é intolerante e os alunos
apresentam resistência e que é preciso ter cuidado ao tratar de temas como religiosidade afro.
Ao final dessa reunião alguns professores se apresentaram e falaram da relação com o tema,
os professores mais envolvidos foram os de biologia, geografia, história, artes e literatura.
Alguns apresentam as dificuldades de trabalhar o tema o que fica claro certo receio e
desconhecimento dos temas.
No dia 20/11 os pesquisadores vinculados ao MAD realizaram seis oficinas com
os alunos, envolvendo temas como religiões afro-brasileiras, intolerância religiosa, questões
legais envolvendo o MAD, as práticas de pajelança no Maranhão, Museu afrodigital nas
disciplinas de literatura e arte, dentre outros.
Cada turma recebeu uma oficinas com duração de 50 minutos. Os alunos
participaram com dúvidas e questionamentos, eu e o professor Sergio Ferretti ficamos em
uma turma de 9° ano e a receptividade foi muito satisfatória, ao final foram feitas perguntas,
71
tais como: as entidades afro existem mesmo? alguém já viu Iemanjá? qual a relação entre
essas religiões e a igreja católica? O que é macumba? Dentre outras. O que denota interesse
dos alunos em conhecerem tais questões. A seguir irei escancara as portas da escola e trazer
aspectos do seu cotidiano a fim de evidenciar os lugares e não lugares das religiões afro-
brasileiras
2.1 Alunos protestantes e “povo de santo”: dialogando com a diversidade religiosa na escola
Esta é a incrível história de uma baiana, cuja marca de faca, em seu braço
direito, predestina-a desde o nascimento a ser mãe-de-santo, servindo os
orixás e sacrificando aos exus a partir dos nove anos de idade. Nesta quarta
edição, reestruturada, você vai sentir a repugnância experimentada por
Georgina Aragão dos Santos Franco, ao ser enclausurada num quarto fétido,
cheirando a sangue seco, sangue este com que lhe cobriram o corpo inteiro,
ao ‘fazer o santo’. Adivinhará depois toda sua alegria e euforia, quando
72
finalmente descobriu não mais pertencer sua alma ao diabo, pois o sangue de
Jesus Cristo passou a ser em sua vida mais forte e poderoso que quaisquer
oferendas, vôos ou obrigações. Estou convencido de que você voltará muitas
vezes a ler esse livro, como também o passará às mãos de amigos, parentes
ou conhecidos que seguem as seitas afro-brasileiras. Aliás, este é um livro
que todo brasileiro deve ler. (MCALISTER, 1978, p. 02)
Há muito tempo venho orando por pessoas as quais na sua grande maioria
tiveram ligações com o espiritismo nas suas diversas facetas. Milhares de
pais-de-santo e mães-de-santo se transformaram em cristãos sinceros e
tementes a Deus, após participarem de reuniões em nossas igrejas. [...]
Sentir-me-ei realizado se este livro for uma verdadeira mensagem
transformadora. Espero que a sua vida, amigo, mude após a leitura sem
preconceitos desta mensagem. Quero ver milhares de pessoas, que antes
eram escravas ou "cavalos" dos demônios, por intermédio dessas palavras e
da ação do Espírito Santo em suas vidas, se tornarem verdadeiros servos do
Deus Altíssimo, adorando Jesus em Espírito e em Verdade, juntamente
conosco, em nossas abençoadas reuniões. Que Deus abençoe
abundantemente o meu amado leitor. (MACEDO, 1993, p. 01)
25
SANTOS, valdelice conceição dos. O discurso de Edir Macedo no livro Orixás, Caboclos e Guias. Deuses ou
demônios?: Impactos e impasses no cenário religioso brasileiro. Dissertação de mestrado. São Bernardo do
Campo. 2010.
73
A partir da pesquisa de campo na Sotero dos Reis, pude perceber de forma clara a
ausência de espaços para que as religiões de matrizes africanas possam ser problematizadas de
forma positiva, uma vez que na escola há a predominância de católicos e protestantes. E essa
última se manifesta de forma radical, demonizando, desqualificando e “convertendo” alunos
que apresentam alguma aproximação com as religiões afro-brasileiras, ao
neopentecostalismo26 e outras vertentes protestantes. Vale destacar que “a expansão das
igrejas neopentecostais, com expressiva adesão das classes C e D, tem feito uma pressão e
uma vigilância diante dos conteúdos que são selecionados para serem ministrados pela
escola.” (SANTOS, 2015, p.153) Assim, fica cada vez mais restrito os espaços destinados às
diversas cosmovisões religiosas no ambiente escolar.
A escola é permeada por diferentes identidades religiosas, contudo há muita
resistência em reconhecer essa diversidade. Segundo Vianna (2011), ao pensar no perfil dos
jovens hoje, não se pode negligenciar a importância de abrir espaço para conhecer, discutir,
narrar e refletir nas escolas acerca das diferentes religiões e religiosidades presentes na vida
dos jovens do nosso país. Portanto, o aluno deve expressar sua religião no ambiente escolar e,
para que suas crenças não sejam violadas é necessário pensar em ações educativas para que
sejam criadas atitudes de respeito. Com isso, o ideal é abrir espaços para as narrativas de
diferentes formas de religiosidade presentes no cotidiano escolar.
Diante da exigência da Lei 10.639/03, os educadores de todas as crenças são
colocados diante do desafio de trabalhar em sala de aula as experiências dos alunos e as
cosmologias religiosas entram nesse leque de possibilidades. Para tanto, é preciso que os
professores e demais funcionários da escola se comprometam em repensar suas posturas e
discutir tal temática, posto que, como descrito acima, é comum atitude de desrespeito em
relação as religiões afro-brasileiras nesse ambiente. Nesse contexto, é interessante frisar que o
enfrentamento da intolerância religiosa contra pessoas oriundas de terreiros tem sido travado
há algum tempo em alguns setores da sociedade, todavia, essas discussões possuem poucos
impactos nas salas de aula.
Com isso, a escola por ser um espaço de múltiplas identidades acaba sendo
também um lugar permeado por reprodução e enfrentamento de preconceitos e intolerâncias e
as religiões de matrizes africanas sofrem atitudes de desrespeito e preconceito em vários
26
O neopentecostalismo -em consequência significa a crença de que é preciso eliminar a presença e a ação do
demônio no mundo, tem como característica classificar as outras denominações religiosas como pouco engajadas
nessa batalha, ou até mesmo como espaços privilegiados da ação dos demônios, os quais se "disfarçariam" em
divindades cultuadas nesses sistemas. É o caso, sobretudo, das religiões afro-brasileiras, cujos deuses,
principalmente os exus e as pombagiras, são vistos como manifestações dos demônios. (SILVA, 2007, p.01)
74
grupo estava orando na cabeça de quatro alunos que supostamente estariam incorporados com
entidades oriundas das religiões afro-brasileiras, “inimigo” para eles.
Passado o ocorrido, fui conversar com alguns deles e um aluno me disse que a
meninas estavam incorporadas com entidade afro-brasileiras: “Deus me disse que ela estava
com uma pombagira, eu e outros aqui temos o poder de ver os monstros que estavam
incorporados, isso é coisa do inimigo, e Deus está castigando eles por se desviarem do
caminho.” Depois alegou que outra menina pertencia à família de santo e atribuiu à família “a
culpa” pelo que lhe ocorrera. Outra aluna do grupo disse: “fomos abençoados hoje com essa
cura, só nós podemos ajudar eles a se curarem desse mal”.
A mesma aluna, que é a idealizadora do grupo, comentou com uma das diretoras,
que estava comigo sobre a importância do grupo para resolver problemas como aqueles, que
poderiam tirar a paz da escola, mas eles, portadores de um dom, e com a ajuda de Deus
resolveram o “problema”. Os quatro alunos que supostamente estavam incorporados saíram
agradecidos e com lágrimas nos olhos. Pude conversar com uma delas e a mesma afirmou que
se sentia bem melhor e que a partir daquele momento não iria mais desviar o caminho do
Senhor, não iria se deixar levar pelas pessoas, que ela era do Senhor.
Passei um tempo a observar as conversas paralelas do grupo após o encontro e
ficou muito claro que o preconceito está impregnado, enraizado nos discursos desses alunos.
Falas como “a escola está sob o poder do inimigo”, “os pais vão para a macumba e os filhos
que sofrem com esse mal”, “essa religião do mal”, “magia negra”, “isso só traz coisas ruins”,
“isso tá acontecendo porque a família é da macumba”, “eu não frequento esses espaços do
inimigo”, “graças a deus tiramos o inimigo (pombagira) agora ela é do senhor” e tantas outras,
delineiam os contornos dessa intolerância e falta de respeito com a religião e pessoas oriundas
delas, o que culmina em uma série de atitudes preconceituosas e desrespeitosas no âmbito
escolar.
A diretora que estava comigo nesse momento não sabia o que fazer diante da
situação, pois, não pode impedir que os alunos se reúnam e não sabe como mudar essas
concepções equivocadas e radicais que permeiam o imaginário deles. Nesse momento ela
ressaltou a importância da minha pesquisa e a necessidade de algo que possa a auxiliar no
processo de desconstrução dessas ideologias. E assegurou ainda que os pais não gostam que
toquem nesse assunto, nem os pais dos alunos evangélicos, nem dos alunos pertencentes às
religiões afro-brasileiras. Sobre isso, Cruz (2008) destaca que um dos grandes desafios da Lei
10.639/03 é lidar com professores, alunos e pais de alunos evangélicos que podem,
76
eventualmente, se sentirem desconfortáveis ao lidar com questões que para eles são
usualmente colocadas sob a chancela demoníaca.
O fato é que as práticas discursivas que desvalorizam as heranças africanas e
desqualificam o sentido de sagrado das religiões afro-brasileiras nem sempre foram
enfrentadas como problemas sérios no espaço do cotidiano escolar. Isso porque, durante
muito tempo predominaram atitudes de silêncio marcado pelo esforço de tornar invisível esse
conteúdo na escola. Além do sentimento de impotência da direção e educadores que
consideram a possibilidade de problematizar esses conteúdos, mas não sabem como, pois se
sentem reprimidos com a forte presença dos adeptos das igrejas neopentecostais o que acaba
potencializando esse silenciamento. Posto isso, é preciso criar meios de inserir esse conteúdo
nessa escola e em tantas outras que devem compartilhar da mesma realidade.
Santos (2015) tenta compreender os motivos da intolerância e preconceito tão
recorrentes na sociedade brasileira e destaca duas indagações, a primeira relacionada ao
fundamento e a organização, tentando pensar no que “há de tão absurdo na organização e
fundamentos das religiões de matrizes africanas”, que poderia explicar tal pensamento a outra
e “por que será que, no mercado concorrencial das religiões, as vertentes afro-brasileiras
enfrentam tanto problema de aceitação e legitimidade?”
Para responder explica o que entende por religiões de matrizes africanas no
27
Brasil e destaca que alguns dos elementos citados, como a comunidade, oráculo, exercício
do sacerdócio, os rituais públicos e privados, o transe ou incorporação das divindades como
um dos focos da intolerância. E alega que embora a experiência de transe religioso ou
incorporação de divindades/ancestral não seja prerrogativa exclusiva das religiões de matrizes
africanas, ainda assim, para os intolerantes, tais práticas são inadmissíveis por um motivo
básico: várias entidades são invocadas e cultuadas como expressão de religiosidade, em
detrimento de um culto exclusivo a um deus transcendente.
Assim, ainda de acordo com esse autor, sobre o fenômeno do transe ou da
possessão recai parte da explicação da intolerância e do preconceito. E assegura que
compreender os elementos dessa religiosidade como códigos socioculturais e educativos,
referentes a outra forma de sociabilidade, pode ser um dos caminhos para afastar atitudes
como a indiferença e o preconceito na educação escolar.
27
Entendo como religiões de matrizes africanas, no Brasil, todas as expressões religiosas em que existe algum
tipo de transe ou possessão mediúnica (de orixá, inquice, vodum, ou ancestral) e rituais de iniciação, público ou
privado, envolvendo a comunidade com cânticos e danças ao som de instrumentos de percussão comandados por
um ou mais de um sacerdote ou sacerdotisa amparado/a por um tipo de oraculo africano, bem como mitos e
histórias africanas. (SANTOS, 2015, p.72-73)
77
decorrência do sincretismo que houve entre os elementos africanos com os locais, sejam católicos
ou indígenas, além do mais muitos seguidores e membros de religiões afro-brasileiras são católicos
também.
Com isso, acredito que a educação é a saída contra esse preconceito, e para tal é
preciso investir em meios para desconstruir essa visão de que religião não se discute e
permitir que os alunos de santo falem na escola a partir da sua experiência e que os outros
respeitem. Caputo (2012) assegura que as crianças e jovens de candomblé são unânimes
quando afirmam que todos os espaços da sociedade são cruéis, mas nenhum lugar é tão
cruel quanto a escola quando se trata de humilhar e excluir alunos e alunas de candomblé
ou umbanda.
A má interpretação das especificidades das práticas religiosas de segmento afro-
brasileiro acaba tendo reverberações negativas e com isso se perpetuam ideias errôneas que
perpassam todos os segmentos da sociedade e a escola tem papel fundamental nessa mudança
de concepção. O que se deve fazer é comparar criticamente e interpretar a trajetória histórica
das diferentes cosmologias religiosas. Assim, religião não se ensina propriamente, mas se
deve refletir sobre esse fenômeno na escola, tendo em vista que “um dos grandes desafios
para a educação é promover o respeito pelo outro como legítimo outro, sem o intento de
homogeneizar as culturas, mas sim de celebrar a diversidade cultural.” (VIANNA, 2011, p.
05)
2.2 Etnografia
Por meio desse método, “a escola passou a ser estudada por dentro, isto é, a partir
das relações sociais que acontecem no seu interior” (FERREIRA, 2002, p.20). É através dele
que foi possível desvelar os encontros e desencontros que permeiam o dia a dia da práxis
escolar, descrever as ações e representações dos seus sujeitos envolvidos, através de
reconstrução de sua linguagem, de suas formas de comunicação e os significados que são
criados e recriados no cotidiano com reverberações na construção da consciência histórica.
(ANDRÉ, 1995, p. 135)
81
Esse tipo de pesquisa permite, pois, que se chegue bem perto da escola para
tentar entender como operam no seu dia a dia os mecanismos de dominação
e de resistência, de opressão e de contestação ao mesmo tempo em que são
veiculados e reelaborados conhecimentos, atitudes, valores, crenças, modos
de ver e de sentir a realidade e o mundo.[...] Nesse sentido, o estudo da
prática escolar não pode se restringir a um mero retrato do que se passa no
seu cotidiano, mas deve envolver um processo de reconstrução dessa prática,
desvelando suas múltiplas dimensões, refazendo seu movimento, apontando
suas contradições, recuperando a força viva que nela está presente.
(ANDRÉ, 1995, p 34)
considerar a situação concreta dos alunos, do professor e sua inter-relação com o ambiente em
que se processa o ensino.
Por outro lado, significa analisar os conteúdos e as formas de trabalho em sala de
aula, pois só assim se poderá compreender como a escola vem concretizando a sua função
socializadora. “O estudo das interações sociais na escola colocava em evidência tanto os
problemas sob ponto de vista da relação professor-aluno em sala de aula, como da relação
destes com o conhecimento.” (FERREIRA, 2002, p.20)
conviver com o alunado e em menor grau com os professores e minha presença era sempre
questionada, alguns professores me chamavam de “estagiaria de história”, outros
perguntavam se eu era jornalista ou repórter (por andar com uma câmera na mão
fotografando a escola) e assim fui adentrando naquele recinto e conhecendo um pouco dos
professores, contudo, devo destacar que poucos deram abertura para minhas perguntas e se
importaram com meu trabalho.
Quando chegava para observações as diretoras geralmente me recebia com
narrativas dos últimos acontecimentos envolvendo os alunos e os fatos inusitados de
incorporação ou algo do tipo, mesmo quando estavam ocupadas elas arrumavam um tempo
de conversar comigo. Além de abrir as portas para possíveis intervenções envolvendo os
grupos de pesquisa e estudo dos quais eu fazia parte.
Os alunos ficavam curiosos sobre a minha função na escola e como eu
constantemente questionava sobre acontecimentos envolvendo religião eles me
perguntavam se eu era “da macumba” ou da igreja. Uma aluna certa vez perguntou se eu era
exorcista, porque se fosse a escola estava realmente precisando. Eles geralmente parava para
conversar comigo, as vezes passavam até o horário do intervalo todo falando do que
acontecia na escola, dos alunos incorporados, alunos de santo e evangélicos. Enfim, estavam
sempre falando, foi assim que soube quem era de santo e escondia, quem tinha se
convertido, quem era bom ou ruim em tais disciplinas ou quem tinha orientação sexual x ou
y.
No começo observava as aulas das professoras de história e os alunos ficavam
mais eufóricos do que de costume com a minha presença, as professoras brincavam dizendo
que eu estava fazendo uma avaliação do comportamento deles, mas não era levado a sério.
Os alunos do 7º ano, primeiras turmas que acompanhei, eram muito barulhentos e pouco
prestavam atenção nas aulas. Geralmente a professora trabalhava com o conteúdo do livro,
mas poucos participavam, alguns não levavam os livros pra escola. Na hora das atividades
um número ínfimo demostrava interesse, era comum ficarem se ofendendo e falando alto.
As outras turmas eram parecidas, o número de alunos por sala fica em torno de
30 a 40 e eles são muito agitados e demostravam pouco interesse em história, embora as
professoras tentassem de formas diferentes prender a atenção deles. Comecei no turno da
tarde e depois fui para o turno da manhã também, pois nesse horário ficavam as duas turmas
de 9º ano, acompanhei a professora Lúcia Alves, com quem também tive ótimas
experiências.
84
Ela sempre com muita gentileza me apontava alguns problemas das turmas,
alunos problemáticos outros com potencial. Ela me apresentou no primeiro dia que fui e
logo depois eu já estava de conversa com os alunos, em uma das turmas tinha um número
grande de evangélicos, e durante uma aula falamos sobre religião afro e alguns alunos
deixaram claro suas opiniões, umas desrespeitosas e muitas outras de dúvida e curiosidades,
além de relatos vividos ou presenciados.
Depois de algum tempo na escola, foi conhecer um famoso túmulo que ficava
nos fundos da escola, essa unidade foi construída em cima de um cemitério, no primeiro dia
em que fui a escola a diretora narrou inúmeros fatos envolvendo “a pedra”, como é
comumente chamada, disseram que ela rolava sozinha, que já causara acidentes e fazia parte
do histórico da escola. Alunos e professores tinham receio de ir para os fundos e narravam
muitas histórias.
Com o tempo fui me familiarizando com a escola, os alunos, corpo docente, e a
partir desse contato fui construído meu texto baseado nessas experiências que deixo claro,
foram completamente diferentes do que imaginei. Fui com uma ideia de como seria e a
realidade acabou me mostrando um universo de elementos que não sabia como usar no texto
a priori e muitos ficaram de fora por não saber onde, tampouco como colocar.
Depois de alguns meses convivendo com certa frequência naquele ambiente,
próximo ao meu exame de qualificação, fui surpreendida com a notícia de que a escola ia
fechar para reforma e os alunos iria ser remanejados para outros espaços. Depois de mais ou
menos um mês sem retornar, a direto me avisou que as obras não tinham sido iniciadas e
que iria voltar a ter aula pelo menos com o ensino fundamental até as férias. Passando as
férias e quase um mês depois de voltarem às aulas retornei e para minha surpresa a escola
ainda estava com a parte de cima interditada, praticamente destruída, o teto desabou e os
pombos ocuparam o espaço.
Diante dessa situação os alunos estavam tendo aula somente no térreo e mesmo
ocupando todos os lugares, como sala de informática e auditório, ainda foi preciso fazer
revezamento de aulas porque os espaços não eram suficientes para todas as turmas. Com
isso um problema foi intensificado, o auditório que fora construído em cima do antigo
cemitério, passou a ser protagonista de inúmeros fatos e mais alunos passaram a aparecer
incorporados.
No mês de outubro houve pelo menos quatro casos, sendo que as vezes eram
dois ou três alunos incorporados de uma única vez. Diante dos fatos alguns professores
mostraram preocupação, medo, angustia, desespero por não saber como lidar com a
85
situação. Uma professora destacou “graças a deus tenho corpo fechado”, enquanto narrava
uma história. Os casos tinham diminuído desde que o grupo feito por alunos evangélicos
tinha sido suspenso.
Um fato curioso é que ultimamente somente as meninas foram afetadas,
algumas muito calmas e que durante o transe ficavam fortes e ríspidas, certa vez uma dela
saiu correndo, depois de lutar com alguns meninos que tentavam segura-la. Pulou o muro e
passou alguns dias sumida da escola. Uma colega de turma afirmou que “do nada ela
começou a correr e querer brigar com todo mundo, estava com uma cara e voz diferente, o
rosto dela mudou, ela tinha dito que isso já acontecia antes, mas que ela tinha procurado a
igreja evangélica e tinha melhorado.” Outra colega destacou que “parecia que ela estava
com uma criança incorporada, era igualzinho” depois ela ficou agressiva e saiu correndo.
Outro caso foi de uma aluna que, segundo relatos teria incorporado uma legião e disse que
uma das entidades era chamada de cobra coral, referência afro-religiosa.
No mês de novembro, a situação continuou e uma menina incorporou durante
uma prova, segundo a família ela era evangélica e apresentava histórico de transe, depois de
muito tempo com manifestações de incorporação o pastor da igreja que frequentava foi
chamado e ela foi levada para a igreja, juntamente com os pais. Segundo a diretora, “a
menina é calma e ficou transtornada, foram quatro homens, incluído o irmão, rezando na
cabeça dela e a entidade não saia. Ela estava agressiva e irreconhecível”. Cheguei a
questionar se ela era de santo, mas a família negou qualquer relação. Diante dessa realidade,
a diretora já colocou até um banco na sala da direção porque esses casos já estão se tornando
parte da rotina da escola.
As diretoras narraram uma história envolvendo uma supervisora de estágio da
área de nutrição que foi visitar a escola com alguns estagiários e ao terminar a visita
procurou a direção e disse que era sensitiva e que aquele espaço estava permeado por
espíritos, ela os via por toda parte, contudo alegou que eles, embora agitados, eram
brincalhões e tinha boas energias no espaço.
Uma professora alegou que “o auditório é insuportável para dar aula, os alunos
não se aquietam, há uma presença lá, eles sentem coisas, arrepios, o clima é ruim e não sei o
que fazer. Isso é no auditório só, não sinto nada nas outras salas.” Conversei com os alunos
sobre os fatos curiosos que estavam acontecendo, para um número elevado é normal
conviver naquele ambiente, uma menina destacou que “os professores que tem medo, nós
não temos, só tem uma professora de português que faz é provocar mesmo, ela não tem
medo.” Outra aluna argumentou, “não é muito normal estudar nessa escola, porque toda
86
hora tem alguém caindo com espirito, um porteiro viu um espirito de uma menina aqui, já
viram uma senhora varrendo a escola, crianças correndo e brincando, mas eu já acostumei
até.”
Na realidade a etnografia na escola foi pautada, em grande medida, em
conversas e boas risadas com os alunos. Foram muitas as suposições do que eu era e estava
fazendo na escola e as histórias que ouvi, infelizmente não posso relatar nem metade delas.
A experiência me possibilitou ter um olhar mais amplo, a partir dos relatos dos alunos sobre
a escola, as disciplinas, a relação com os professores, diretores e equipe pedagógica e com
as histórias que rondam aquele recinto. Embasado nisso continuo a discutir e trazer à tona
aspectos envolvendo o espaço/tempo escolar e essas histórias são recorrentes desde a
construção da escola em cima de um cemitério.
A Escola Centro de Ensino Sotero dos Reis28 pertence à Rede Estadual de Ensino
do Maranhão e tem sua trajetória permeada por inúmeras histórias envolvendo espiritualidade
e encantaria. Localiza-se na Rua de São Pantaleão, em frente à Igreja de São Pantaleão, no
centro da cidade e está situada em um emaranhado de referências religiosas, ficando próxima
às duas casas de culto mais antigas do estado, a Casa das Minas e Casa de Nagô. Foi
construída no lugar do antigo Cemitério dos Ingleses 29, o mais luxuoso Cemitério do século
XIX em São Luís. Segundo relatos orais, até meados de 1970 os túmulos ainda estavam
expostos nos fundos, onde foi construído o anexo em fins dessa década.
Próximo à quadra de esporte da escola ainda existe parte de uma lápide, com um
nome masculino escrito em inglês (willian willians), que já causou muita euforia na
comunidade escolar de todas as gerações. Várias pessoas envolvidas com a pesquisa
destacaram fatos inusitados e curiosos envolvendo essa lápide. Narra-se, por exemplo, que ela
mudava de lugar com frequência, só se viam os rastros pelo chão e para resolver o problema a
gestão do momento providenciou um revestimento de cimento em todo o espaço, prendendo a
pedra.
Em poucos dias, eventos estranhos começaram a acontecer, a quadra, que fica
próximo, rachou ao meio, um segurança do turno da noite foi brutalmente assassinado por um
aluno nas escadas, um guarda teria chutado a pedra e proferido ofensas e depois apareceu com
o pé inchado e com muitas dores, os médicos não sabiam diagnosticar e ele melhorou somente
após pedir perdão e acender umas velas no túmulo. Além de vários outros acontecimentos
envolvendo os alunos, professores e demais membros da escola. Abaixo segue foto recente da
pedra/túmulo.
28
O nome da escola foi escolhido como homenagem a Francisco Sotero dos Reis, filósofo, crítico, jornalista e
professor autodidata que teve envolvimento com a educação.
29
Onde hoje é o Grupo Escolar Sotero dos Reis era antes ambientado o Cemitério dos Ingleses. Fundado entre os
anos de 1816 e 1825, era o cemitério mais luxuoso existente em São Luís. Logo na entrada havia um portal de
cantaria, que veio de Lisboa, capital de Portugal, e no local outros portões e gradeados de ferro também
chamavam a atenção pela pompa. No cemitério, foram enterrados apenas 242 corpos, entre eles, diplomatas,
comerciantes, comandantes de navio, e marinheiros. Retirado do blog Maranhãomaravilha, disponível
em:http://maranhaomaravilha.blogspot.com.br/2011/07/misterios-pairam-sobre-o.html. Acessado em 30 de
junho de 2017.
88
Certo dia, a mãe de um aluno, que era envolvida com encantaria, chegou à escola
para conversar com a direção alegando que tivera um sonho e nele recebeu a missão de ajudar
a resolver o problema. Contou que o túmulo precisava ser liberado com urgência, pois, caso
contrário, coisas piores iriam acontecer. No sonho ela recebeu orientações de como a ação
deveria ser feita e assim se fez, no dia e hora marcada, seguindo as instruções a pedra foi
liberada e com isso, amenizando bruscamente os problemas que a escola vinha passando.
Paralelo a isso, outros fatos estranhos são recorrentemente narrados pelo corpo
docente e discente, como funcionários e alunos incorporados com encantados, visões de
pessoas, sobretudo crianças, espaços sinistros, partes do teto que cai no aniversário de morte
do vigia assassinado e também alguns funcionários alegam receber ajuda de uma colega de
trabalho que faleceu há alguns anos; uma das diretoras alegou que sempre que precisa pede
ajuda. “Ela sempre ajuda a achar as coisas, ela era pajé, recebia uma entidade cabocla que
tinha mania de limpeza e organização, nós convivíamos muito bem com ela aqui.”
Vários acontecimentos marcam a história desta unidade, como uma professora
que achou ter visto uma alma penada e saiu correndo da escola, pedindo demissão em
seguida, alunos que nunca vão para ao fundo da escola onde fica a quadra e a lápide do
túmulo, professores que rezam quando vão para lá, alunos que viram crianças jogando bola na
quadra e pessoas conversando, alguns alegam que sentem energias negativas. Enfim,
89
30
Informações colhidas através de conversas informais com funcionários e alunos.
90
31
A técnica da observação participativa se realiza através do contato direto do pesquisador com o fenômeno
observado para obter informações sobre a realidade dos atores sociais em seus próprios contextos. O observador,
enquanto parte do contexto observado, estabelece uma relação face a face com os observados. (CRUZ NETO,
2002, p. 59)
92
Ela destaca que a admiração e vontade de ser professora veio desde pequena.
“Meu amor pela educação é antigo, desde criança eu sonhava em ser professora.” E admite
que desde que tem muito apreço pela escola, “não conhecia, mas me apeguei ao prédio e às
pessoas daqui, a escola é antiga e tradicional, cheia de histórias e calor humano.” Sobre os
espaços destinados à religião afro na escola ela frisa que tenta na medida do possível realizar
atividades que contemplem tal discussão, uma vez que a escola está inserida em um contexto
misto de religiões.
Uma coisa que me chamou atenção quando vim para o Maranhão é que aqui
o sincretismo religioso, diferente do Piauí, é muito forte aqui e não tinha
visto, nem quando estudava e pesquisava essa força da religiosidade e no
começo fiquei um pouco assustada e sem saber como interferir e agir diante
das diversas situações que ocorrem na escola. Mas eu busquei estudar e
conhecer melhor para lidar com essa situações aqui na escola. (SOUSA,
2018)
Ela destaca que a escola leva o nome do poeta maranhense Sotero dos Reis e que
ele tinha a preocupação em discutir questões envolvendo o papel do negro na história e nesses
termos acha válido tentar desenvolver essa consciência não só no dia da Consciência Negra.
94
“Acho que é preciso fazer um trabalho envolvendo a comunidade escolar como um todo,
trabalhando a interdisciplinaridade nas salas de aula”.
Quanto aos professores, no geral têm mais de 35 anos, alguns possuem
especialização, mas nenhum tem mestrado ou doutorado. No geral são católicos e
evangélicos, não há aparentemente nenhum ligados ás religiões de matrizes africanas.
Acompanhei com mais frequência duas professoras de história, Lúcia Pinheiro e Lúcia Alves,
ambas negras, católicas e em vias de se aposentarem. Ministram aulas nos dois turnos e em
várias disciplinas, como matemática, física, sociologia, filosofia e geografia. Há outra
professora de história, mas ela não me deu abertura para observações. Tive contato próximo
também com as professoras de religião, português e artes. Apliquei questionário com ambas
para melhor conhecê-las.
Lúcia Maria Pinheiro, católica, de meia idade, estudou na escola na década de
1980 quando ainda havia parte do cemitério exposta. Formou-se em pedagogia pela
Universidade Estadual do Vale do Acaraú (UVA), possui especialização em gestão e ministra
aula há 20 anos, em diferentes escolas no estado. Já lecionou disciplinas de história, filosofia,
geografia, sociologia e ensino religioso. Está há cinco anos nessa instituição. É natural do
município de Pinheiro, Baixada Maranhense e veio para a cidade para estudar, prática comum
ainda no estado. Diante das situações adversas ela tem muito apresso pelo ensino de história,
disciplina que ministra a muitos anos, mas também tem afinidade com filosofia, ensino
religioso e geografia.
95
Durante as aulas que assisti ficou evidente seu esforço em ensinar e também o
cansaço diante da dura realidade da sala de aula. Embora calma, em alguns momentos ela se
exaltava e buscava a todo custo prender a atenção dos alunos, o que geralmente não acontecia
de modo efetivo. De acordo com as respostas do questionário, Lúcia destacou que já tinha
pensado e executado alguns projetos na escola, como palestras sobre cultura afro-brasileira,
sobre as diferentes religiões, com participação de pesquisadores. E assegurou que a proposta
curricular inclui a Lei 10.639/03 na sala de aula, inclusive neste ano uma iniciativa dela na
semana de consciência negra foi “apresentação de seminário fazendo uma visita ao passado
para poder entender o presente.”
E quando questionada sobre a necessidade de se discutir religião na sala ela
destacou que era necessário, “para que haja um melhor entendimento e aceitação por parte de
todos”. Quando perguntado sobre as dificuldades em se discutir as religiões afro-brasileiras
em sala de aula ela destacou a falta de informação como fator crucial nesse processo. “A falta
de informação a respeito da nossa própria cultura que é uma das mais interessantes dentro de
um contexto social.” E sobre as formas de lidar com a intolerância ela respondeu que trabalha
mostrando que devemos respeitar a escolha de cada um.
Ela afirma que tem afinidade com o conteúdo de cultura africana e afro-brasileira
e realiza atividades com os alunos visando descortinar elementos referentes a esse universo.
Destaca que mesmo com pouco material de artes, aproveita o que tem para problematizar o
tema em suas aulas, levando os alunos a refletirem sobre a importância dessa cultura no
cotidiano. Durante a execução dos dois projetos que levei para a escola ela fez intervenções
válidas e destacou a importância deles naquele ambiente, além de colaborar com a execução.
Eu sempre tentei desmistificar a religiosidade através da arte, aproveitando a
parte que fala disso na disciplina, mas quando a gente começa a colocar
assuntos ligados à religião na sala de aula a gente nota que tem resistência,
principalmente quando é religião afro o alunos já falam que isso é coisa do
demônio. E o fato de ter muitos alunos evangélicos influencia. Todos os
anos tento focar na questão da diversidade religiosidade para que eles
comecem a ter o respeito pelas religiões afro-brasileiras e entender como ela
foi trazida e como ela é vista hoje. A minha preocupação educar os alunos
para que eles possam respeitar e entender as diferenças. E além das aulas,
geralmente a escola tenta fazer atividade na Semana de Consciência Negra,
em gincanas e outros projetos paralelos. Inclusive fomos contemplados com
um projeto da FAPEMA que envolve a memória do entorno da escola,
resgatando a história da casa das minas e outros elementos culturais.
(MENDONÇA, 2018)
98
Outra disciplina que, de acordo com a Lei 10.639, deveria inserir a discussão da
história e cultura afro-brasileira é Literatura e como assegura a professora Francisca Araújo
dos Santos, mesmo em meio a inúmeros problemas e dificuldades, “tento inserir o tema nas
minhas aulas por considerar importante para a formação dos alunos, afinal temos que
conhecer para poder respeitar”. Francisca dos Santos tem formação em letras, trabalha na
escola há 12 anos e ministra aulas de português, literatura, geografia, ciências, química, física,
inglês, “só não ensino matemática mesmo”.
preciso trazer para a sala de aula de forma simples, mesmo porque sempre tem alunos de
religiões diferentes. “As vezes eu não gosto muito de entrar nesse assunto porque como eu
não tenho muito conhecimento, não sei muito a respeito, eu tenho medo de no momento não
saber me sobressair, mas tenho muito interesse porque essa cultura religiosa e riquíssima,
ampla e bem diversificada”. (SANTOS, 2018)
Dentro de suas limitações ela busca trabalhar o conteúdo nas aulas, no momento.
Como ministra aula de literatura, tenta inserir essa discussão quando tem possibilidade. E
assegura que não encontra muita resistência por parte dos alunos evangélicos, que
dependendo da abordagem eles dão abertura e até interagem. “Eles participam, fazem debates
e sempre procuro saber quais as religiões deles e trabalho as diferenças da forma que sei.”
(SANTOS, 2018).
Posto isso, fica perceptível que os professores, embora diante de inúmeras
problemáticas, apontadas por eles e percebidas na observação, tentam na medida do possível
lidar com as situações de intolerância na sala de aula. Contudo, a falta de material de fácil
compreensão é um dos problemas mais citados. O que legitima minha suspeita e faz
necessário uma intervenção nesse sentido.
Quanto aos alunos, no geral são residentes de bairros vizinhos à escola como,
Itaqui- Bacanga, Lira, Belira, Madre de Deus, Codozinho, Coréia, Vila Passos Centro, Fabril,
Fumacê, Gapara, Anil e Monte Castelo. São na maioria negros, de classe média baixa, alguns
repetentes com problemas de aprendizagem e como explicitado nos questionários que serão
problematizados no próximo tópico, são predominantemente católicos ou evangélicos, com
predominância das igrejas neopentecostais.
Com base nos questionários aplicados mais da metade dos alunos são evangélicos,
eles foram aplicados com alunos do 7° ao 9° ano, contudo, poucos devolveram respondido.
Deixo claro que essa metodologia foi usada no começo da pesquisa e que de fato ela não
representa a maioria da escola, mas a maioria que respondeu aos questionários.
101
Com expresso nos mapas acima o entorno da escola está permeado por igrejas
católicas e protestantes, além dessas expostas ainda há algumas menores que não aparecem
nos mapas, o que justifica o elevado número de alunos cristãos. Paralelo a isso há também um
número elevado de casas de culto afro, contudo não aparecem no mapa, apenas a Casa das
Minas é destaque.
Luís do Maranhão alcançou a cifra de 160,1 mortes por cem mil habitantes em 2012, uma
taxa comparável a San Pedro Sula (“a cidade mais violenta do mundo”).
Nota-se que nesta amostra se considera toda a ilha de São Luís. A área Itaqui-
Bacanga, por exemplo, é uma das mais violentas da Ilha, e seus números devem ser ainda
mais alarmantes. Em termos proporcionais, para cada jovem branco morto na capital, foram
mortos 6,5 jovens negros. De acordo com a SMDH, no quadro geral do Maranhão, temos um
amplo predomínio de homens negros e jovens (92,9%), dentre as vítimas de mortes matadas
no período 2000-2012. Apesar de representarem 29,4% do conjunto da população, os jovens
foram o alvo prioritário da violência, constituindo 54,1% do total de vítimas, das quais 87%
eram jovens negros.
Os dados da Grande São Luís acompanham e aprofundam as características
perversas apontadas para o Maranhão. Em 2012, São Luís detinha a 6ª maior taxa de
homicídios da população jovem dentre as capitais brasileiras, com 119,9 mortes por cem mil
habitantes jovens. No decênio 2002-2012, a capital maranhense teve o 2º maior crescimento
da taxa de homicídios dentre as capitais, com um aumento de 239,7%, abaixo apenas de Natal
(RN), onde a taxa cresceu 316,4%.
Estes dados têm a intenção de constituir um panorama mais amplo para
compreensão da relação escola-comunidade, e sobretudo para entender de onde vêm as
crianças e adolescentes que a frequentam. Salta a vista, que em sua esmagadora maioria, esses
estudantes, na maior parte negros, provém de territórios marcados por diferentes tipos de
intolerância e pelo extermínio da juventude negra. Certamente, é necessário conhecer estes
espaços da vida dos estudantes, afinal, como lembra Rüsen (2012), “as operações da
consciência histórica são reconhecidas como produtos da vida prática concreta”.
32
O Relatório Anual das Desigualdades Raciais no Brasil é uma publicação organizada pelo Laboratório de
Análises Econômicas, Históricas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais (LAESER), nucleado no Instituto
de Economia da Universidade do Rio de Janeiro (IE-UFRJ). Tem por objetivo analisar a evolução das
assimetrias de cor ou raça e grupos de sexo no Brasil, mormente através dos indicadores sociais presentes nas
bases de dados que contenham informações estatísticas sobre a população residente no país. (RADRB, 2011,
p.15)
104
Este documento expõe as vísceras da situação dos negros no Brasil entre os anos
de 1998 e 2008 e mostra o agravamento das desigualdades entre brancos e negros no Brasil.
Entre os dados apresentados pelo relatório, está um diagnóstico das principais causas de
mortalidade entre a população negra. E destaca que a Lei 10.639 é um importante caminho
para “enfrentar o tema das relações raciais dentro do espaço escolar”.
claras, nas entrevistas eles ficavam tímidos e pouco falavam. Estas questões tem relação com
diversos fatores, inclusive com a geração dos sujeitos enfocados.
O texto inicial que compõe o PNLD de História do Ensino Fundamental (2017-
2019) destaca que se vive em um presente hipertrofiado, em que o futuro não é mais orientado
pelo passado. Isso não quer dizer que o passado não exista, mas esse passado, para toda uma
geração de jovens acaba sendo depósito de eventos exóticos, estranhos. “Quase todos os
jovens de hoje crescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica
com o passado público da época em que vivem” (HOBSBAWN, 1995, p. 13).
Esse passado é relevante e atrativo como conteúdo de filmes, novelas, romances,
mas não como orientação temporal para um futuro coletivo. Posto isso, é um desafio despertar
a ideia de consciência histórica33 nos alunos tendo em vista essa não valorização do que ficou
para traz. Com isso, procuro pensar neste momento do texto, em como essa consciência sobre
as religiões afro-brasileiras está sendo criada, ou melhor, se está sendo criada no alunado.
33
A consciência histórica é a constituição de sentido sobre a experiência do tempo, no modo de uma memória
que vai além dos limites da própria vida prática. A capacidade de constituir sentido necessita ser aprendida, e o é
no próprio processo de constituição de sentido. (RÜSEN, 2010, p. 104)
106
Diante disso, mecanismos precisam ser criados com o intuito de permitir que os
alunos compreendam as religiões para que assim, possam respeitar as multiplicidades de
crenças existentes no País. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação determina no artigo 33 34
que o ensino de religião deve integrar os currículos das escolas de ensino fundamental do
Brasil. Contudo, esclarece que esse ensino não pode ser vinculado a religiões específicas.
A referida lei esclarece que os sistemas de ensino estaduais e municipais têm de
criar procedimentos para definir conteúdos e habilitar os professores para trabalharem tal
temática, desde que não sejam obrigatórias para os alunos e a escolas assegure o respeito à
diversidade de crenças e evite o proselitismo. Vale ressaltar que, na prática, essas disciplinas
geralmente são pautadas nos credos dos professores que as ministram. No caso da Sotero dos
Reis, a professora de religião é católica e me assegurou que tenta trabalhar a variedade
religiosa.
Como resposta a esta falta de cultura sobre o mundo das religiões, aliada
ainda a uma nova necessidade cívica de equacionar o novo mundo do
34
Art. 33. O ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão e
constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à
diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo. § 1º Os sistemas de ensino
regulamentarão os procedimentos para a definição dos conteúdos do ensino religioso e estabelecerão as normas
para a habilitação e admissão dos professores. (Incluído pela Lei nº 9.475, de 22.7.1997) § 2º Os sistemas de
ensino ouvirão entidade civil, constituída pelas diferentes denominações religiosas, para a definição dos
conteúdos do ensino religioso. (Redação dada pela Lei nº 9.475, de 22.7.1997)
108
Segundo Caputo (2012), a escola pode ser comparada com uma grande árvore do
esquecimento36 ao reproduzir uma visão hegemônica da sociedade, e mostrar uma história que
35
Ver D’ADESKY, Jaques. Racismo e anti-racismo no Brasil. Rio de Janeiro. Pallas Editora, 2001.
36
Em, Wuidá, onde ficava um dos grandes portos de embarque de escravos, na África, os negos escravizados
percorriam um caminho de cinco quilômetros da cidade até o porto. Neste percurso, todo escravo que ia
embarcar era obrigado a dar voltas em torno de uma arvore, a árvore do esquecimento. Em um depoimento de
um dos líderes nagôs daquela região ouvimos o seguinte: “Brasil! Brasil! Os escravos destinados às Américas
eram trocados por bugingangas! Os escravos homens davam nove voltas em torno da árvore e as escravas sete.
109
em nada identifica os alunos negros, deixando suas raízes de lado. Na realidade a educação
que se tem frequentemente reforça a desigualdade entre negros e brancos, além das vulnerabilidades
sociais, a discriminação racial e falta de diálogo com o repertório da cultura negra. Isso tem
reverberações, por exemplo, na evasão de alunos negros e no processo de aprendizagem.
Depois disso, supunha-se que os escravos perdiam a memória. Esqueciam seu passado, suas origens, sua
identidade cultural, para se tornarem seres sem nenhuma vontade de reagir ou de se rebelar. Que aberração! Que
contradição! Na história humana alguém já viu um nagô esquecer suas origens? Sua identidade cultural? Se ela
está tão marcada em seu rosto e tão incrustrada em seu coração? (CAPUTO, 2012, p.42)
110
9% 0%
Evangelicos
28% Catolicos
57% Sem Religião
0%
11%
SIM
NÂO
89%
Gráfico 2: Você acha que as religiões deveriam ser explicadas nas aulas, por quê?
Dentre os alunos evangélicos, apenas 8,5% responderam que o tema não deve ser
discutido na escola, 91,5% defenderam essa hipótese, contudo, a maioria deixa claro nas
respostas que religião se restringe à sua, e poucos mostram uma visão diferente. Isso fica
evidente em respostas como: “podemos aprender com oração nas aulas”, “para conhecermos
os ensinamentos da Bíblia”, “para os alunos que não acreditam se converterem”.
Algumas respostas são coerentes e nos fazem pensar que eles entendem religião
como um conjunto de crenças diversas, portanto desarticulam dos seus credos, tais como:
“apenas para quem quer ouvir, até porque ninguém é forçado a nada, mas todos devem saber
o que é religião”, “como são muitas deveria ser explicado um pouco de cada”, “porque os
alunos saberiam mais da história”, “porque assim iríamos conhecer outras religiões.”
Contudo, muitos fazem referência a Deus, limitando-O às religiões cristãs:
“porque todos deveriam conhecer mais de Deus”, “para que as pessoas saibam mais sobre
Deus”, “porque muitas pessoas não sabem de deus e se os professores explicarem vai ser
menos”, “para que adultos e crianças aprendam mais sobre a palavra de deus”, “porque as
vezes as pessoas esquecem de Deus por causa da correria e não só nas aulas mas no trabalho
em casa e etc.”, “porque vários jovens não sabem da palavra de deus”, “porque nós
precisamos nos aproximar do senhor e conhecendo mais sobre ele facilita.”
100% dos católicos responderam que o conteúdo deveria ser discutido em sala,
todavia, assim como os evangélicos alguns dão justificativas atreladas às suas crenças, alguns
poucos deram respostas que me fizeram pensar que eles têm uma visão mais ampla. Por
exemplo, “porque precisamos saber mais sobre as religiões, tipo como elas são, o que elas
fazem”, “porque as vezes muitas crianças acabam interpretando mal a palavra “religião”, por
112
isso precisamos de pessoas mais velhas para explicar seu conceito”, “para aprender mais”,
“porque tem gente que não conhece e também nem sabe no que crê”, “porque são muitas,
então deveriam nos explicar um pouco de cada.”
Alguns dos evangélicos fazem apologia a suas cosmologias, por exemplo, ao
responder: “encorajar as pessoas a praticar algumas delas”, “para as pessoas aprenderem que
precisam irem para a igreja”, “devemos saber o que é religião de verdade”, “para mostrar que
nossa religião é boa”, “para mostrar para os que não acreditam em deus”.
Posto isto, fica ainda mais evidente a necessidade de se trabalhar a diversidade de
crenças, já que, diante das respostas, as cosmologias afro-brasileiras não são vistas como
religiões, pois é completamente excluída dessa categoria. Na realidade, a educação religiosa
que se tem nas escolas se pauta na leitura da Bíblia, o que reforça umas e exclui outras tantas.
O ideal é explanar acerca da importância cultural, social e política das diferentes vertentes,
pois, colocar essas questões em debate implica repensar o conceito vigente e, sobretudo,
chamar para discussão outras práticas, a exemplo das práticas afro e os caminhos que devem
ser construídos para diminuir atitudes de preconceitos que permeiam as salas de aula do
estado.
Deve-se explorar assuntos que aparentemente são banais, mas que permeiam o
cotidiano deles, explicar o porquê de se ter imagens católicas em algumas escolas, de rezar o
Pai Nosso quando as aulas retornam, ou de se ter tantos feriados de santo católico durante o
ano, e porquê que santa tal é padroeira da cidade tal.
Bem como problematizar acerca da trajetória histórica, pelo menos, das religiões
que permeiam aquele recinto. Tirando o protagonismo da Bíblia ou “a palavra do dia” e trazer
à tona elementos históricos, afinal “a escola não é igreja” como asseguram alguns dos alunos.
Posto isto, o primeiro passo, ao se tratar das religiões de matrizes africanas é situá-las
historicamente, mostrando importância na construção do país e sua trajetória carregada de
estigmas de preconceito e intolerância, além da forte ligação histórica com o catolicismo.
Como se sabe, “o Brasil é um país movido por um sentimento religioso que
mescla manifestações herdadas, ressignificadas e recriadas no ir e vir das práticas, saberes e
fazeres dos mais variados grupos sociais”. Neste contexto, “misturam-se as heranças
113
africanas, indígenas, europeias e tantas outras, que postas em um imenso caldeirão cultural,
revitalizam o sentido das práticas da religiosidade popular brasileira”. E é “essa miscelânea
que deveria estar presente nas diversas formas de ensinar a diversidade na escola, ainda é
vista com o olhar da desconfiança e da negatividade” (KATRIB, TEIXEIRA, 2014, p. 13).
Nessa perspectiva,
Embasado na observação na escola ficou claro que quase não há alunos que se
identificam com a religião afro-brasileira, a maioria é católica ou protestante. Como destacado
na introdução, na escola há lugares que não posso adentrar, assim como nas casas de culto.
Contudo a ideia é trabalhar com o que me foi dado, correndo risco de ter avançado em algum
momento. Mesmo porque a tarefa desse trabalho é em demasia delicada de ser materializada,
tendo em vista os aspectos que já foram explicitados outrora. Nesse momento irei lidar com as
fragilidades encontradas na escola e com pensamentos e opiniões cheias de desprezos e
desrespeito para com a temática.
Agora revisitando meus inscritos me deparo com várias anotações de espanto
diante da realidade da escola. Nos primeiros dias em que fui observar, segunda semana de
novembro de 2016, eu dizia: “o que fazer com esses alunos”, “estou perdida, eles não irão me
ajudar”. Três meses depois, fins de março as preocupações eram as mesmas, “como tirar as
informações que preciso, não conseguirei executar os objetivos”, não vai dar tempo, nada
disso é útil.” Contudo, fui melhor conhecendo aquele ambiente, anotando tudo e extraindo o
máximo que pude para o desenvolvimento do texto.
Durante o período de observação conversei com vários alunos sobre religiões
afro-brasileiras e nas primeiras vezes que perguntava algo eles sempre negavam
envolvimento, todavia depois de alguns dias foram falando mais de suas vivências. As
informações que seguem foram colhidas de conversas informais, o que difere muito das
respostas dos questionários. Alguns alegavam que tinham familiares de santo, que já tinha
frequentado terreiros, geralmente em época de festas, que moravam próximo ou eram amigos
de alguém que frequentava. Uma aluna comentou que tinha uma colega de turma que era de
santo e inclusive já tinha manifestado em sala de aula e na ocasião o professor de inglês,
114
evangélico, tinha tentado tirar o caboclo dela e que por isso tinha até ficado doente, porque
“não teve força para conter o inimigo”.
Em uma turma de 9º ano, tive uma experiência interessante porque, embora
tivessem muitos alunos evangélicos, em conversas com alguns tive a impressão de que eles
conheciam muitos elementos das religiões de matriz africana. Uma aluna disse certa vez:
“todos aqui têm experiências com macumba, sendo por um parente que frequenta ou é de
santo, por morar perto ou só ver o que acontece nas casas.”
E assegurou que mesmo sendo evangélica gostaria muito de conhecer mais sobre
tal assunto, uma vez que era rodeada de referências dessas religiões. Outra destacou que a
escola tinha muito energia, espiritualidade, e que sabia que tinha a ver com os terreiros que
ficam nas redondezas, disse que já tinha frequentado uma vez uma casa de candomblé, mas a
mãe não gostava que ela fosse, outra aluna queria conhecer mais já que só ouvia que lá se
fazia o mal.
Diante do episódio narrado anteriormente, referente ao grupo formado por alunos
evangélicos e a caça aos “tocados pelo inimigo”, como ressaltou um estudante, posso destacar
que enquanto alguns poucos demostram o mínimo de respeito por essas vertentes religiosas, a
maioria demoniza e faz questão de externar suas opiniões carregadas de preconceitos. Um
membro do referido grupo comentou que eles estavam em missão do senhor para limpar a
escola daquele mal que era oriundo da macumbaria, que “o inimigo estava atuando nas
cabeças que se desviaram do senhor” e que eles iriam “caçar e levar para a igreja para tirar
isso.”
O mais impressionante foi a fala de um aluno que se considera de santo e a família
nega tal ligação. A direção havia me informado que em vários momentos ele disse que era
filho de santo e ficava a cantarolar algumas cantigas de terreiro até que um dia manifestou
incorporação e a escola chamou a família que negou de forma ferrenha qualquer
envolvimento do menino com encantaria. Contudo, depois, em conversa informal ele me
confirmou o fato, e disse que as duas avós eram mães de santo, mas os pais não gostavam
muito da ideia.
Na mesma ocasião ele comentou sobre sua relação com os outros alunos, que
geralmente o chamavam de macumbeiro, pai de santo ou se benziam quando passavam perto
dele e o mandavam procurar uma igreja. Mas ele não se importava, sabia que aquilo não era
errado e que um dia iriam entender. E relatou que já teve que orar em sala, durante algumas
aulas por ser exigência de professores e que certa vez lhe disseram que ele era muito novo
para estar envolvido com isso.
115
espirituais da humanidade”, “é um modo de vida que algumas pessoas escolhem”, “tem a ver
com a história”.
Os estudantes que não seguem nenhuma religião foram os responsáveis pela
maioria das respostas confusas ou negativas: “não sei não quero saber”, “sou “nasista”, não
posso responder”, “é algo que não deveria existir”, “conjuntos de coisas chatas”.
7%0%
COMPREENDEM
NÃO COMPREENDEM
93%
0%
3% Outras
46%
Respostas Negativas
51% Respostas Positivas
Gráfico 4: Os padres rezam, os pastores oram e os pais e mães de santo o que fazem?
Dentre os alunos que não seguem nenhuma religião 22,5% responderam de forma
positiva, enquanto que, dentre os católicos e protestantes as respostas foram negativas ou não
claras. 44,5% dos católicos deram resposta negativa e 55,5 não claras. Dentre os alunos
evangélicos, 61% apresentaram respostas não claras e outras e 39% se posicionaram,
claramente, de forma negativa.
118
Dos alunos que não possuem religião, 55% deram resposta negativa, a exemplo
de: “macumba e rituais diabólicos”, “eles fazem macumba esse bando de desgraça”, “não tem
o que fazer e querem fazer mal para as pessoas, por isso vou virar terrorista
#partiuestadoislamico, e iniciar essa porra da 3 guerra mundial, [...] nosso país é
democrasiata, cada um pode seguir a religião que quer e então tudo ficara bem!”. Dentre as
respostas positivas, “apoiam, dão conselhos espirituais”, “rezas e conselhos”, “ajudam os que
precisam”, “seguem seus deuses”.
Os alunos católicos copiaram as respostas um dos outros e no geral foram
ofensivas em falas como: “tipo de rezas, trabalhos e rituais ruins”, “rituais”, “macumbas, ritos
e ceitas”, “macumba e rituais malignos”, “coisas ruins”, “mal para as pessoas”, “perseguem os
outros”, “fazem oferendas”, “dançam para os espíritos ruins”.
Os alunos protestantes foram os mais ofensivos nas respostas; “sacrificam
crianças e fazem macumba”, “macumbas, rituais e ceitas”, “eles fazem macumba, vários
rituais, oferecem aos demônios, pois eles acham que eles são poderosos”, “matam animais e
dão para os demônios deles”, “recebem os demônios que não tem corpo e se apodera deles
para fazer o mal”, “fazem mal as pessoas”, “ coisas ruins e feias”, “os pais e mães de santo
fazem macumba, uns que fais o bem outros o mal, mais cada um com suas coisas, não me
interesso”.
Retomo a discussão levantada no início desse capítulo, de que o protagonismo da
discriminação atualmente é dos protestantes, eles geralmente atrelam as práticas religiosas a
elementos diabólicos e demoníacos. Na realidade, essas respostas nos fazem levantar algumas
situações que elucidar o que já estava sendo dito anteriormente.
No geral os alunos não reconhecem como religião as práticas afro-brasileiras e
além disso o uso do termo “macumba” por quase todos, denota desrespeito e falta de
conhecimento. No geral, são explicações que nos incitam a questionar qual a noção de
religião que permeia o entendimento dos alunos e como se pode interferir nessa realidade,
criando mecanismos de mudanças de concepção.
Dentre as nuances apresentadas nas respostas, fica claro que, no geral os alunos
são evangélicos e defendem que se deve discutir religião em sala de aula, contudo a percepção
de religião não abarca as cosmologias afro-brasileiras, todavia se restringe às crenças cristãs.
Tendo em vista que para eles, não se pode considerar religião, aquela que não usa a Bíblia
Sagrada ou que acredita em mais de um deus.
Fundamentado nisso, tenciono, pois a pensar que há um descompasso entre a
realidade na qual alguns alunos estão inseridos e as discussões que permeiam tanto o livro
119
didático quanto a concepções que circulam na escola. Pois, o referencial de religião que se
aprende na escola é o cristão e não há consciência histórica sobre as religiões de matrizes
africanas. Além do mais, essas respostas mostram que é urgente a necessidade de inserir esses
saberes nas salas de aulas, para superar estereótipos e preconceitos, pois é evidente o
desrespeito e menosprezo por parte dos estudantes de todos os credos.
A escola, que é o lugar do diferente por natureza, deveria ser mais preparada
não só para lidar, mas também aprender profundamente com essas diferenças, o que não
acontece na prática. Diante disso, fica nítido que boa parte do que é produzido pelo negro
brasileiro é desumanizado, desvalorizado ou considerado feio, exótico, e o discurso de alguns
só reforça a ideia da religião africana como ligada ao culto ao demônio, rituais satânicos e
macumbaria.
Ao pensar em no produto final que coloca as práticas afro-maranhenses como
religião, proponho, antes de tudo desmistificar essas concepções arraigadas e negativas
dos saberes e fazeres afro-brasileiros e fazer reflexões sobre os constantes movimentos
de desrespeito nesse ambiente. E também para romper a associação das religiões afro
descendentes com rituais satânicos tão recorrente nas falas dessas crianças e adolescentes. Se
trabalharmos a religião como um fenômeno social e cultural isso pode contribuir no processo
de respeito e valorização dessas vertentes religiosas, bem como incentivar os alunos
pertencentes a esses credos a assumirem suas crenças e terem orgulho do que é produzido
pelos negros.
120
37
A expressão “encantaria brasileira” indica uma realidade mágico-religiosa formada de múltiplas modalidades
que, embora mantenham cada uma sua autonomia ritual e mística, participam, cada vez mais, como elementos
dinâmicos, de um quadro geral que reúne numa única e grande religião brasileira: a religião dos encantados.
(PRANDI, 2001, p. 9)
121
38
Refere-se a uma categoria de seres espirituais recebidos em transe mediúnico, que não podem ser observados
diretamente ou que se acredita poderem ser vistos, ouvidos ou sentidos em sonho, ou em vigília por pessoas
dotadas de vidência, mediunidade ou de percepção extrasensorial, como alguns preferem denominar. São
voduns, gentis (nobres) caboclos e índios que moram em encantarias africanas ou brasileiras e que incorporam
em filhos-de-santo. (FERRETTI, M. 2008, p.2)
122
novos e sincréticos, e nos salões de curadores ou pajés das religiões de matrizes africanas. E
várias localidades são conhecidas como moradas desses muitos encantados, isso pode ser
visto, por exemplo, através das músicas que são cantadas nesses ambientes.
Na ilha de São Luís, o porto do Itaqui, as praias de Olho d´Água, Ponta
d´Areia, São José de Ribamar são apresentadas naquelas músicas como
moradas da Princesa Ína, da Rã Preta, da Menina da Ponta d´Areia e de
outros encantados. No meio do mar, entre a ilha de São Luís e Alcântara, no
tão temido Boqueirão – passagem entre duas pedras -, onde o mar é mais
agitado, provocando naufrágios, e onde se acredita que muitas pessoas se
encantaram. Existe também no meio do mar a pedra de Itacolomi, que
pertence ao encantado João da Mata, ou Rei da Bandeira, onde vive a
Princesa Doralice, encantada numa troirinha (lagartixa). São também
conhecidos no Maranhão como lugares de encantarias: a Praia dos Lençóis,
de Rei Sebastião, e as pontas de Mangunça e de Caçacueira, onde moram as
Mães d´Água de mesmo nome. (FERRETTI. M, 2008)
39
As denominações religiosas mais encontradas em terreiros maranhenses são: tambor de mina, a mais antiga e
conhecida na capital; o terecô, a mais antiga no interior; a cura (pajelança de negros), bastante antiga na capital e
no litoral do estado, especialmente na região de Cururupu; a umbanda, mais difundida no Maranhão após 1960,
com a fundação em São Luís da “Federação de Umbanda e Cultos Afro-brasileiros”; e o candomblé, de
penetração mais recente. Fora da capital maranhense alguns terreiros se apresentam ainda como de macumba
(denominação muito usada no passado, no Rio de Janeiro), apesar desse termo ter se tornado pejorativo e hoje
ser mais usado como sinônimo de feitiçaria. (FERRETTI, 2002, p.13).
124
Acredita-se que a Casa de nagô tenha sido erguida “[...] na mesma época que a
casa das Minas, mas não se sabe ao certo qual das duas foi fundada primeiro. A tradição diz
que as fundadoras da casa foram duas africanas, Josefa e Joana.” (FERRETTI, 2002, p. 14). O
que se sabe é que foram abertas em meados do século XIX por africanas. Na realidade, “essas
casas constituem a matriz cultural do tambor-de-mina, que permaneceu restrito à cidade de
São Luís até a virada do século XX, quando começou a se espalhar para outros estados e para
o interior.” (PACHECO, 2004, p. 47-8) Atualmente, é comum se encontrar fortes traços
dessas manifestações nos municípios no Maranhão.
O termo tambor de mina deriva de denominação dada no Brasil a escravos
sudaneses de diversas etnias, embarcados no forte português de São Jorge Del Mina, na Costa
do Ouro, atual Gana (RODRIGUES, 1935, p.164-5; FERRETTI, S. 1996, p.11). Embora não
se possa afirmar com segurança quando a mina (tambor de mina) surgiu na capital
maranhense, sabe-se, com base em documentos encontrados na Casa das Minas e no Arquivo
Público do Estado, que, na 2ª metade do século XIX, tanto aquele terreiro como a Casa de
Nagô já funcionavam no lugar em que se encontram hoje e pediam licença para fazer festa
(FERRETTI, M. 2001, p. 191-192).
O termo tambor de mina é considerado, na visão de Ferretti40 (1996) uma
maçonaria de negros, pois é uma religião que preserva histórias, lendas, mistérios e tem
muitos aspectos de sociedade secreta. Esses mistérios e lendas fazem parte dos encantamentos
que povoam o imaginário, a arte popular, a poesia e a música maranhense.
Lembramos que as religiões afro-maranhenses são também locais privilegiados de
difusão de outras manifestações da cultura popular, como o bumba-meu-boi, o tambor de
40
FERRETTI, Sérgio F. Querebentâ de Zomadônu: Etnografia da Casa das Minas do Maranhão. 3ª ed. Rio de
Janeiro: Pallas, 2009. Original: 1983, 1ª ed. UFMA: 1986, 2ª ed. EDUFMA: 1996.
125
Outra variante é o Terecô, “tal prática é conhecida como festa do tambor da mata,
brincadeira, brinquedo de Barba, encantaria de Barba Soeiro, verequete ou berequete. Apesar
de exibir elementos jeje e alguns nagô, a identidade do terecô é mais afirmada em relação à
cultura banto (angola, cambinda).” (FERRETTI, M. 2003, p.1). Tradicional do munícipio de
Codó-Ma, que acabou se difundindo, para as regiões centrais do Maranhão, comum em
Caxias, Bacabal, São Mateus, Pedreiras, São Luís Gonzaga, Coroatá, Alto Alegre do
Maranhão e em outros estados da Federação do Brasil como Pará e Amazonas.
A origem africana do terecô tem sido objeto de especulações e de
controvérsias entre pesquisadores e pais-de-santo (EDUARDO, O 1948;
127
na Casa Fanti-Ashanti desde a década de 1950, e tenha certa influência em alguns outros
terreiros do interior do estado.
Assim, embora se tenha uma variedade considerável de denominações, as
religiões afro maranhenses são interpretadas pela literatura do tema como tambor de mina.
“Cada terreiro pode ser pensado como um mundo à parte, mas todos eles estão referidos à
unidade maior que é o tambor de mina como religião, unidade a que se chega ou pelo próprio
sentimento de pertença do conjunto dos devotos ou pelo trabalho de abstração do cientista.”
(FERRETTI.M. 2000, p. 07)
De acordo com a antropóloga Yvonne Maggie essas religiões sempre foram vistas
como inferiores no processo de evolução cultural e eram seguida pelas camadas mais pobres
da população e assegura ainda que chama-las de afro “escondia um medo de chama-las de
religiões negras, as origens africanas lhes davam um caráter mais “limpo e aristocrático”. A
África está longe, os africanos são estrangeiros e isso lhe confere outro status.” (MAGGIE,
1975, p.16)
Sendo seus membros negros, suas crenças deveriam ser condizentes com o
estágio “primitivo” e porque não “inferior” dessa raça. Mais tarde, com o
aprimoramento das abordagens cientificas, o primitivismo foi associado às
camadas baixas da população brasileira que, com forte contingente negro,
adotavam essas religiões por não terem ainda alcançado estágios mais altos
da evolução cultural, a “civilização”. (MAGGIE, 1975, p.14)
Contudo, deve-se reconhecer que existiram muitos obstáculos para que as crenças
dos negros africanos sobrevivessem em meio ao catolicismo dominante no novo mundo e se
estruturassem enquanto religião. Os negros estavam geralmente relacionados à infantilidade,
atavismo, aos desregramentos lascivos, ao fetichismo e essas ideias foram propagadas por
muito tempo. Na virada do século XIX para o XX, Nina Rodrigues, por exemplo, corrobora
com esse imaginário, quando, escrevendo a obra “O animismo fetichista dos negros baianos”,
reforçando a inferioridade da raça negra do ponto de vista intelectual, físico, moral e religioso.
As religiões afro- brasileiras foram por muito tempo vistas apenas como cultura
popular ou folguedos e muitos relatos desde o início da colonização acabam atribuindo
características negativas aos negros e suas crenças, e os cultos de matriz africana estariam
atrelados a coisas diabólicas. Eram vistos geralmente como rituais de magia negra e
adoradores do demônio. Seus rituais eram espaços nos quais ocorriam até sacrifícios
129
humanos, seus membros eram chamados de feiticeiros ou macumbeiros. Por muito tempo
essas ideias foram propagadas, fortalecendo um imaginário depreciativo sobre as vertentes
afro e seus praticantes.
Na realidade há um debate significativo sobre as relações entre os africanos e seus
descendentes e práticas culturais correlatas e as práticas europeias, especialmente católicas.
Reconhece-se hoje que dos encontros e desencontros orquestrados desde o período colonial
surgiram práticas sincréticas, umas com mais ou menos marcadores identitários étnico-
religiosos.
Reginaldo Prandi (1999) preocupado em entender o histórico afro-religioso no
Brasil, divide a história das religiões afro-brasileiras em três etapas: sincretização,
branqueamento e africanização. Na primeira delas, sincretização, que coincide com o início
do processo de colonização, se teriam formado as modalidades tradicionais, como candomblé
(Bahia), xangô (Pernambuco e Alagoas), tambor de mina (Maranhão e Pará) e batuque (Rio
Grande do Sul). Essas religiões teriam se materializado em sincretismo com o catolicismo e
em grau menor com as religiões indígenas. A religião africana só parcialmente teria se
reproduzido no Novo Mundo, pois, na escravidão, a família se perdeu, o grupo étnico se
perdeu.
O catolicismo, com o fim da escravidão, na formação da sociedade nacional,
estruturada em classes, tornou-se a cultura de inclusão, hegemônica; permitia ao negro manter
uma dupla ligação religiosa. Em virtude do rico patrimônio cultural que lograram conservar,
as religiões negras, especialmente a partir dos anos 1960, reencontraram-se com a sociedade
brasileira no campo das artes, fornecendo à cultura popular muito de seu repertório, que é
convertido em arte profana para o consumo das massas, ganhando, em troca, reconhecimento
e prestígio. Mas antes disso houve um longo percurso em que a religião dos orixás foi
deixando de lado seus aspectos africanos para incorporar uma face mais europeia, mas branca.
Assim, na segunda fase, que seria característica dos anos 1920-30, teria ocorrido o
branqueamento, na formação da umbanda. No fim do século XIX, chega o espiritismo de
Alan Kardec ao Brasil. No início, era religião de classe média, depois também frequentada
por pobres e negros. O primeiro centro de umbanda teria sido fundado em 1920 no Rio de
Janeiro como dissidência de um kardecismo que rejeitava a presença de guias negros e
caboclos, considerados pelos espíritas mais ortodoxos como espíritos inferiores.
Com a umbanda, iniciou-se vigoroso processo de valorização de elementos
nacionais, como o caboclo e o preto-velho, que são espíritos de índios e escravos. Mesmo
quando proletária, essa religião era culturalmente europeia: premiava o conhecimento pelo
130
aprendizado escolar e não pela tradição oral. Limpava-se a religião de seus elementos da
tradição iniciática secreta e sacrificial. Mas a umbanda rompeu de certo modo com a
concepção kardecista de mundo, que vê esta terra mais como um lugar de sofrimento.
A umbanda também era herdeira do candomblé: a vida neste mundo implica a
obrigação de gozá-lo. A umbanda incentiva a mobilidade social. Mobilidade que está aberta a
todos. A umbanda pode ajudar pela manipulação do mundo pela via ritual, como o despacho a
Exu nas encruzilhadas. Assim, para Prandi (1999), até o final dos anos de 1950, a história das
religiões afro-brasileiras é uma história de apagamento de características de origem africana e
sistemático ajustamento à cultura nacional de preponderância europeia, que é branca. Mas, no
processo de branqueamento, muitas práticas rituais e concepções religiosas negras
impuseram-se na sociedade branca.
Assim, chega-se à terceira fase, a africanização, a partir dos anos 1960. A
africanização corresponde à transformação do candomblé em religião universal. O candomblé
torna-se aberto a todos, sem barreiras de cor ou origem racial. O processo de africanização
implica a negação do sincretismo, adoção de aprendizado não oral e mudança ritual e
doutrinária. Faz-se uma reflexão a respeito das condições sociais que o candomblé renovado
enfrenta em sua expressão no mercado religioso.
Durante os anos de 1960, muitos nordestinos migram para o sudeste em
industrialização, levando consigo o candomblé, que começou a se infiltrar na umbanda. A
umbanda foi remetida ao candomblé, sua velha e “verdadeira” raiz original. Nos anos 1960,
muda a mentalidade mundial, a racionalidade é posta em suspenção, os modelos do
conhecimento universitário de explicação do mundo são duvidados. Chega o pós-moderno,
sobretudo no sudeste. A juventude começa a valorizar a cultura do outro (do ocultismo, do
oriental, e também a cultura do negro).
As tradições de origem africana centradas na Bahia e em outros pontos do país
encontram suporte para se multiplicar no sul. O candomblé se instala como religião para
todos. Num primeiro momento, membros do sudeste e do sul para buscar legitimidade vão à
Bahia, pensada como lugar da tradição. Num segundo momento, começa o processo de
africanização propriamente dito: não é mais a Bahia, mas a própria África o lugar da língua,
dos ritos e mitos “verdadeiros”. Ao negar o sincretismo, deixando para trás a religião da
Igreja, seus ritos e santos, o novo candomblé se põe em pé de igualdade com o catolicismo,
deixa de ser religião subalterna, já não se vê a si mesmo como a religião do escravo.
Portanto, observa-se nesta visão de Prandi a ideia de que, em última instância, o
sincretismo resultou basicamente do fato de o Brasil ser uma sociedade profundamente
131
desigual e os africanos e seus descendentes serem obrigados a cultuar seus deuses e entidades
espirituais imbricando-os com as divindades católicas. Evidentemente, alguns outros autores,
embora pudessem concordar com esta visão de Prandi, que se pode denominar de um tanto
quanto teleológica, poderiam ver o sincretismo como algo que embora tenha sido gerado por
um mundo desigual, produziu um mundo cultural e religioso autêntico.
Sérgio Ferretti, por exemplo, faz uma interpretação que se poderia chamar de
positiva do sincretismo41, ele está preocupado em descrever como realmente as coisas se dão
na prática, no cotidiano da vida do povo-de-santo. Em última instância, talvez, para esse
pesquisador, o povo-de-santo do Maranhão não vê nenhum problema em ser católico e ser do
tambor de mina, ao mesmo tempo. Ferretti não veria necessidade na africanização pensada
como afastamento total do catolicismo, nem interpretaria esses sujeitos como seres que
estariam subsumidos na ideologia dominante.
Não se pode negar de fato, como destaca Prandi (1999), que houve violência
simbólica, quando a crença dos povos africanos e descendentes no Brasil foi proibida de ser
manifestada, e estes tiveram que criar mecanismos a fim de manobrar o sistema católico. Para
alguns pesquisadores as religiões de origem africana são consideradas subalternas, o que
implica dizer que foram submetidas a rígido controle social e jurídico ao longo de sua
trajetória histórica. Tendo em vista que foram impedidas de se manifestarem como livre
expressão da cultura brasileira.
A partir deste contato com o catolicismo, as casas de culto de matriz africana
acabam construindo uma comunicação dinâmica com os festejos populares. Hoje, a maior
parte do calendário religioso afro-maranhense está atrelada ao vasto ciclo de festas associadas
ao calendário litúrgico católico. Fortemente influenciada por essa religião, suas entidades
espirituais são devotas dos santos e suas cerimônias de origem africana aliam-se às práticas
católicas.
Assim, não há como desvincular essas duas vertentes religiosas. Com isso, é
interessante pensar em como essas casas de culto afro-maranhense, conseguiram manter-se
estruturadas em uma cidade com forte domínio católico. De fato, isso leva a criação de um
laço profundo entre religião afro-maranhense e catolicismo, sobretudo o catolicismo popular.
O fato é que o sincretismo certamente tem relação direta com os tempos da escravidão.
Segundo Reis,
41
FERRETI, Sergio. Repensando o Sincretismo. São Paulo: Editora USP / São Luís: FAPEMA, 1995.
132
percebida como religião propriamente dita, todavia como manifestações do povo, ou símbolo
de resistência, ou ainda elemento de diversão de pobres e pretos.
O fato é que ao longo dos anos foram sendo repensadas e ganharam espaço na
sociedade, mesmo que este nunca tenha sido um espaço amplo, mas socialmente restrito.
Contudo, é interessante que se pense no histórico de perseguição a que esses rituais e seus
agentes foram submetidos. Na verdade, um primeiro momento na história do Maranhão em
que se passaria a valorizar, de maneira ainda tímida, elementos da religião afro-brasileira,
seria no Estado Novo, sobretudo, através da figura do folclorista Antonio Lopes, que era
diretor do principal jornal da época, o Diário do Norte, através do qual anunciava algumas
festas de tambor de mina (BARROS, 2007). Isto não significou o fim das perseguições. Na
realidade “a intolerância a terreiros continuou muito forte na primeira metade do XX, além de
ser exigidos dos terreiros alvarás de funcionamento e a obtenção de licença para fazer festas
foram criados órgãos públicos que passaram a fiscalizar terreiros”, (FERRETTI, M. 2004, p.
21).
Na segunda metade do século XX, a repressão diminuiu consideravelmente,
porém o preconceito e a discriminação continuaram. Já na década de 1950 a igreja católica
romana ameaçou de excomunhão os fiéis envolvidos com espiritismo, macumba, feitiçaria,
bruxaria ou qualquer outro ritual que fosse diferente do que ela adotava. Deflagrando assim,
uma grande campanha contra o espiritismo e a umbanda no Maranhão. Além disso, havia um
rígido controle policial nos terreiros, com liberação só mediante uma taxa que vigorou,
segundo Vivaldo da Costa Lima (1977), até 1988, ou seja, cem anos após a abolição. Diante
disso é interessante pensar nesse processo como algo que se dá de forma lenta e gradual.
Na década de 1960, período agitado pela ditadura civil- militar, emerge em São
Luís a Federação da Umbanda e Cultos Afro-Brasileiros, implantada pelo pai de santo José
Cupertino. Em viagem ao Rio de Janeiro, Cupertino conheceu essa federação, trazendo-o para
o Estado do Maranhão, com o objetivo de oferecer maior segurança ao povo-de-santo, aos
membros da religião afro-brasileira, especialmente os curadores. Isto teria possibilidade maior
tranquilidade especialmente no que concerne à realização dos cultos.
Com a institucionalização da Umbanda e a criação das federações, a religião
desenvolve um processo de maior respeito diante das autoridades policiais,
uma vez que o objetivo principal das federações dentre vários aspectos e
fornecer assistência jurídica aos terreiros que a ela estiverem cadastrados,
isto é, respalda-los legalmente perante as perseguições policiais, além de
realizar patrocínio de cerimônias coletivas, fiscalizando os terreiros filiados
e até mesmo impor algumas regulamentações aos rituais. (SILVA. 2008,
p.39)
134
A partir dos anos 1970 percebe-se uma maior visibilidade e valorização das
religiões de matriz africana no Maranhão. Na década de 1980 ou, mais precisamente, em 1983
alguns membros de grandes terreiros da Bahia decidiram definir sua religião através da
ruptura com o sincretismo buscando uma forma própria de se caracterizar. Com isso,
assumindo uma identidade, marcando uma posição clara diante de si, dos outros e do estado.
Nos anos seguintes se percebe a mudança de concepção em diferentes níveis da sociedade. No
Maranhão, um sinal de mudança de mentalidade foi o tombamento a nível federal em 2002 da
Casa das Minas42, além da participação de pais e mães de santo em conselhos de cultura e
eventos promovidos pelo governo.
Contudo, o processo através do qual as religiões afro-brasileiras vão ganhando
visibilidade positiva é lento e descontínuo. Barros (2007) aponta que ao longo do século XX
alguns movimentos a nível regional e nacional impactaram em mudanças nas formas como o
Estado e mesmo a sociedade lida com a cultura popular e, especialmente, com elementos das
religiões afro.
O historiador destaca que se deve considerar, em primeiro lugar, “o Estado Novo,
que institui uma política ao mesmo tempo paternalista e repressiva em relação à cultura
popular”, de “louvação” à “raça negra”, tida como modelo de trabalhadores, “mas também
período de forte disciplinamento e perseguição a elementos das manifestações de cultura
popular e negra”; a institucionalização da ação do Estado brasileiro no campo da cultura,
quando, entre 1937 e 1966, “a preservação dos bens de valor cultural visava desenvolver
atividades como estudar, documentar, consolidar e divulgar os bens culturais isolados,
promovendo um mapeamento cujo objetivo era não deixar que esses bens desaparecessem em
ruínas”.
A representação da nação como democracia racial e como positivamente mestiça a
partir dos anos 1920 e de modo mais intenso a partir da década de 30, no Brasil e em outros
países da América Latina, como México e Cuba; e o debate em torno da questão nacional
retomado no pós-guerra (1946-1964), em que se apresenta a necessidade de uma vanguarda
para ajudar a produzir uma autêntica cultura nacional para o povo, categoria vaga e
policlassista”; também o modernismo, “um projeto comprometido com a tradição que buscava
nas classes populares os motivos da cultura nacional, ocupando a atenção de seus intelectuais
a apreciação de questões nas quais se imbricavam modernidade, brasilidade, tradição e
42
O IPHAN já tombou em outros lugares também 3 terreiros na Bahia, a Casa Branca (em 1982) o Opô Afonjá
(em 1999) e o Gantois (em 2003). Temos também várias notícias de tombamento a nível nacional. (FERRETI.
M. 2004. p. 24)
135
A casa das Minas era “uma sociedade africana transplantada para o Brasil”,
comenta inúmeros aspectos da organização da casa e do culto, enfatizando a
coesão familiar, o regime matriarcal, a terminologia de parentesco
relacionada aos voduns. Para ele, “aquele centro foi desde sua origem casa
para reunião social política e religiosa”. Além disso destacando o papel da
mãe Andressa na conservação das tradições africanas. (FERRETTI, 2009,
p.17)
Outra pesquisa relevante foi produzida por Octavio da Costa Eduardo, antigo
professor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Seu trabalho de 1948 faz
comparações entre as comunidades urbanas e rurais, discutindo conceitos de aculturação,
mudança cultural, dinâmica e foco cultural, dedicando grande parte da obra ao estudo da
religião afro. Este, assim como o primeiro, tomou como referência principal a Casa das Minas
de São Luís.
Na realidade, por muito tempo essa casa foi referência para os pesquisadores. Em
1952, o fotógrafo e etnólogo francês, Pierre Verger, também publicara um artigo sobre esse
terreiro mina, que foi fundamental para a elevação da já anunciada nobreza desta casa. Verger
sugeria que esse terreiro fora fundado por uma rainha do Daomé vendida como escrava, pois,
segundo ele, alguns voduns daquela casa se identificavam com membros da família real de
Abomey. Em sua versão, hoje muito aceita, a Casa das Minas fora fundada por Na Agontimé.
Em contrapartida a imprensa escrita diária maranhense manteve certa distância da
Casa das Minas. Uma distância que talvez fosse inspirada pelo respeito que aquela casa
impunha e pela discrição com que seus membros costumavam se apresentar. Esse olhar
lançado apenas para as casas mais tradicionais criou certo padrão que se perpetuou por muito
tempo no Maranhão, colocando a Casa das Minas como referência religiosa no estado sem
levar em consideração as variantes regionais que tangenciam o âmbito religioso.
Alguns outros autores deixaram valiosas contribuições sobre o culto afro-
maranhense, a exemplo do espírita maranhense Waldemiro Reis em trabalho publicado na
década de 1950. Ele trata de fatos relacionados a macumbeiros e curandeiros do Maranhão.
Além desse, outro destaque foi o sociólogo Roger Bastide, que publicou sua obra
originalmente na década de 1960, contudo só teve divulgação em português na década de
1970. Esse pesquisador usando como referência também a casa das Minas, o que ele chama de
“vodum em conserva”, e os escritos dos estudiosos anteriores, acaba perpetuando o
imaginário desta como referência no Maranhão. Após essas publicações só a partir da década
de 1970, outros olhares vão ser lançados para as manifestações religiosas afro-maranhenses.
137
Esse trabalho está embasado na Lei 10.639/03 e embora o foco seja apenas as
religiões afro-brasileiras, acho válido trazer elementos relacionados a trajetória do conteúdo
de África e afro-Brasil para situar o leitor. Neste caso será dada atenção especial à trajetória
desse assunto nos livros didáticos, para que, em um segundo momento, eu possa apresentar as
religiões que aparecem nos livros didáticos e fazer uma reflexão acerca dos espaços e porque
não dizer não espaços que as religiões afro-brasileiras ocupam nos livros didáticos da escola-
campo. Além de legitimar a necessidade das seções didáticas apresentadas no próximo
capítulo.
Para tanto é interessante ressaltar que o conteúdo referente à história e cultura
africana e afro-brasileiras geralmente é visto sob as lentes eurocêntricas nos materiais
didáticos43, o que acaba perpetuando interpretações racistas e discriminatórias. Essas
concepções se incorporam nos discursos dos alunos, criando, com isso, representações
deturpadas sobre o continente africano e sua cultura. Geralmente, a África aparece em
pequenas passagens da História do Brasil ou Geral, atrelada à escravidão, ao domínio colonial
no século XIX, ao processo de independência e às graves crises em que estava imbuída
43
O didático é construído com um objetivo muito específico que é instruir o aluno, fornecendo informações e
fixando-as por meio de exercícios, eles são frequentemente utilizados nas atividades escolares, tanto em sala de
aula como fora, e caracterizam-se por uma linguagem direta e objetiva. Já o livro paradidático, além de ensinar,
também cumpre a função de divertir, nesse sentido explora, com mais frequência, a linguagem lúdica, usando as
dimensões da razão, das sensações e das emoções para instruir. (BAKKE, 2011, p. 95-96)
138
grande parte dos países africanos formados no século XX, o que fica evidente que esse
conteúdo torna-se, geralmente, um complemento nos manuais didáticos.
deve abarcar a realidade na qual os alunos estão inseridos, dialogando a história geral com
elementos específicos da realidade deles, como as cosmologias religiosas, trajetória histórica
das populações que construíram a história do país, bem como os rastros culturais que esses
grupos deixaram.
De acordo com o proposto no Plano Nacional do Livro Didático, do triênio 2017-
2019, “há uma necessidade de se problematizar em sala de aula a pluralidade cultural na qual
nós estamos inseridos”, problemática muito enfatizada nos temas transversais dos PCNs,
quebrando assim com a ideia harmonizadora de igualdade entre as raças e nações. A proposta,
nesse contexto, é mostrar a trajetória de desigualdade que marca a história dos negros nesse
país e isso só é possível desnudando esse conteúdo no ambiente escolar e para tal é
necessário, dentre outros movimentos, que os professores disponham de materiais de apoio
que corroborem com tal proposta.
Sobre a questão étnico-racial, de acordo com Bakke, (2011), pode-se dizer que é
possível identificar dois momentos distintos dessa produção didática e paradidática já visando
a implantação da Lei 10.639. No primeiro momento, há uma maior produção e reedição de
livros paradidáticos, principalmente na área de literatura infanto-juvenil, ou então de livros
didáticos temáticos, que abordavam exclusivamente a história da África e da cultura afro-
brasileira, para, num segundo momento, ter-se a inclusão deste conteúdo no livro didático
regular.
Cabe destacar que entre as produções desse primeiro momento, uma que ganhou
notório destaque foi a coleção A África está em nós de Walter Benjamin produzida em 2004,
que está disponibilizado na escola-campo, contudo devido a imprecisões foi retirado de
circulação. Essa coleção faz algumas recomendações sobre como problematizar o conteúdo
da História da África em sala de aula, por exemplo, exaltando o papel dos anciões e dos
griots como memória histórica desses povos, a história da ancestralidade e da religiosidade
africana, a importância das civilizações núbia e egípcia no desenvolvimento da humanidade,
o estudo de civilizações pré-coloniais, o florescimento de universidades africanas no século
XVI como de Tambkotu, Gao e Djene. Contudo apresenta equívocos em várias passagens.
Com relação à cultura afro-brasileira, esse paradidático defende que deverá ser
pautada nas cosmologias próprias do afrodescendente presente tanto no cotidiano quanto em
celebrações como congadas, moçambiques, maracatus, rodas de samba, candomblé. Assim
como trabalhar com grandes personalidades negras, como Zumbi, Aleijadinho, Luiz Gama,
Cruz e Souza, João Cândido, André Rebouças, Teodoro Sampaio, Solano Trindade, Milton
140
Santos, Abdias do Nascimento, Martin Luther King, Malcon X, Leopold Senghor, Cheick
Anta Diop, Nelson Mandela.
Contudo, acredito que não é necessariamente preciso mudar todo o currículo, mas
abrir fissuras para olhar com outros olhos o existente e inserir as discussões de História e
cultura africana e sobretudo afro-brasileira. O conteúdo de África acaba sendo inserido pelo
fato de se encaixar na cronologia europeia, e a história e cultura afro-brasileira geralmente
aparece como curiosidade ou informação extra, quando aparece.
44
Doutor em educação (área de concentração: História da Educação) pela pontifícia universidade católica de São
Paulo. Mestre em ciências (área de concentração História social) pela universidade de São Paulo. Lecionou na
rede pública e particular e em cursinhos de pré-vestibulares. É autor de coleções paradidáticas. (Trecho retirado
De um livro didático analisado)
141
De acordo com a resenha o PNLD essa coleção aborda de forma significativa tal
temática, apontando que, “merecem destaque as orientações sobre as possibilidades de
abordagem significativa e pertinente do ensino de História e cultura africana, afro-brasileira e
dos povos indígenas, em consonância com as leis 10.639/03 e 11.645/08”. (PNLD, 2016, p.
107)
Vale alertar que ensinar história da África é um caminho fundamental para romper
com a estrutura eurocêntrica que caracterizou a formação escolar brasileira e um passo
significativo é ter materiais didáticos com abordagens significativas e que desmistifiquem as
concepções há tempos arraigadas. Contudo, embora as leis e outros documentos estejam em
vigência, a prática escolar ainda é bastante deficitária e pautada, sobretudo, no uso desse
manual didático como apoio.
para o professor, que dialoga com o proposto pela Lei 10.639/03 e os PCNs com a sugestão
dos temas transversais:
45
[...] Portanto, desde 1981, o mais destacado dos movimentos sócias de defesa dos direitos das populações
negras no Brasil já reivindicava a inserção da História da África e dos afro-brasileiros nos currículos escolares, o
que, por si só, evidencia sua importância nas conquistas posteriores envolvendo legislação e Estado. Nas décadas
seguintes, o movimento negro manteve-se ativo e, juntamente com seus aliados da sociedade civil conseguiu
uma grande conquista em 2003 quando coroada uma luta de décadas, foi promulgada a Lei de número
10.639/2003, que tornou obrigatório o estudo de história e cultura afro-brasileira. (BOULOS JÚNIOR, 2015,
p.348)
144
Vale ressaltar que, em meio a diversos desafios que permeiam o âmbito escolar,
um, particularmente, mobiliza muitos atores, a proposição de um ensino que conecte,
efetivamente, os alunos a um saber contextualizado e que promova o protagonismo juvenil, ou
seja, a construção da compreensão de sujeito histórico. Diante do exposto, podemos aferir que
discutir a história da África é fundamental.
Além de ser um dos momentos propícios para se trabalhar temáticas como a
origem da desigualdade social, do racismo e preconceito, tratar das relações étnicas e raciais,
das questões envolvendo intolerância religiosa, etc. Para tanto, é preciso que a escola
instrumentalize-se a fim de fornecer subsídios para tratar dessas questões.
De acordo com os PCNS (1998), o que se busca é a construção de um repertório
básico referente à pluralidade étnica e cultural, suficiente tanto para identificar o que é
relevante para a situação escolar como para buscar outras informações que se façam
necessárias. Esta deverá também contribuir na constituição da memória coletiva do estudante,
bem como na identidade nacional que se reconstrói a cada dia.
Assim, evidencia-se que é no interior desse amálgama que se pode articular
discussões e levar os alunos a reflexão através do diálogo do tema em questão com suas
vivências. Contudo, para isso, é necessário ocorrer mudanças significativas no âmbito da sala
de aula, principalmente, voltada para a desconstrução da imagem negativa do continente
africano na literatura didática vigente e na formação dos professores.
Neste contexto, Oliva (2003) destaca que, a partir da década de 1990, houve
mudanças significativas nos currículos escolares de história saindo-se de uma história
positivista e incorporando estudos tais como os marxistas e a Nova História. Com isso,
podemos perceber um esforço na introdução de novos eixos temáticos envolvendo abordagens
diferentes, associadas a escrita de manuais e que informavam os rumos distintos que o ensino
da disciplina História tomava. Entretanto, é necessário pensar que mesmo com a maior
abrangência do ensino de história baseado na Nova História percebem-se muitas lacunas.
145
Por exemplo, os primeiros trabalhos que lançam olhar sobre o conteúdo de África
nos livros didáticos partiam de uma visão eurocêntrica e muitas vezes causando visões
imprecisas e distorcidas sobre essas questões. O que pode ser reflexo de formações
deficientes, de poucas bibliografias, e até concepções pessoais de quem está elaborando esses
materiais didáticos. E isso nos faz refletir sobre o que se sabe sobre a África e cultura afro-
brasileira, e como se pode ensinar esse conteúdo de forma livre de estereótipos.
em que se dá uma explicação e uma argumentação dos pontos e dos critérios de análises
adequados à especificidade do livro de história e, naturalmente, o empírico, em que se tratará
dos conhecimentos, ordenados sistematicamente, que deverão ser aprofundados e das
configurações que lhe serão dados. E destaca também que “[...] a investigação ainda possui
outro déficit muito mais grave, que reside em outro âmbito: quase não existe investigação
empírica sobre qual o uso e o papel que os livros didáticos desempenham verdadeiramente no
processo de aprendizagem em sala de aula.” (RÜSEN, 2011, p.111)
Os três volumes aqui discutidos possuem as capas abaixo e estão organizados da
seguinte forma:
LIVRO DO 7º ANO
148
conceitos.
LIVRO DO 8º ANO
Capítulo 12: Abolição Constituição da República, dentre elas a separação entre a Igreja
e República Católica e o Estado.
A Igreja Católica foi separada do Estado e os
brasileiros passaram a ter liberdade de culto.
Até aquela época havia apenas o casamento
religioso, e o principal documento era a
certidão de batismo. Com a separação entre
Igreja e Estado, criou-se o registro civil para
nascimento, casamento e óbito. (BOULOS
JUNIOR, 2015, p. 222)
LIVRO DO 9º ANO
Capítulo 16: O Brasil Toca no assunto no tópico sobre os Povos indígenas hoje, quando
na Nova Ordem destaca a luta dos indígenas e a colaboração de algumas
Mundial organizações como o Conselho Indigenista Missionário (CIMI)
ligado à Igreja Católica.
Em linhas gerais, pode-se concluir que a religião que permeia de forma incisiva o
material didático é a católica, aparecendo em quase todos os conteúdos de forma direta ou
indireta. O capítulo em que fala do processo de colonização do Brasil, o primeiro contato dos
alunos com o que viria a se chamar Brasil, já começa destacando o papel dos jesuítas e do ato
de “fincar a cruz no chão” e “rezar a primeira missa para os nativos". Isso nos diz muito sobre
o que é realmente é ensinado e aprendido nas escolas do país.
Assim, como os alunos podem criar consciência histórica sobre as religiões
africanas e afro-brasileiras se esse conteúdo não aparece durante o processo de formatação
básica deles? Além do mais, religiões como o judaísmo, hinduísmo e protestantismo
aparecem, mesmo que de forma tímida, geralmente atrelada a outros processos históricos,
então por que é tão difícil incluir o conteúdo das religiões afro-brasileiras?
O fato é que, além da ausência desse conteúdo os professores deixam de lado a
discussão mesmo em momentos oportunos, como em algumas passagens da história do Brasil.
Por exemplo, as religiões poderiam aparecer como uma forma de resistência dos negros
durante o processo de escravidão ou como herança cultural, poderiam ser entendidos sobre o
prisma da importância dos movimentos religiosos para os processos de independência de
diferentes religiões do continente africano, e tantas outras possibilidades.
Portanto, o que se busca é a construção de um repertório básico referente à
pluralidade étnica/cultural, suficiente tanto para identificar o que é relevante para a situação
escolar como para buscar outras informações que se façam necessárias. Essa informação
160
4. SEÇÕES DIDÁTICAS
Até aqui foi discutido como as religiões afro-brasileiras aparecem nos documentos
oficiais, nos currículos, livros didáticos, plano político pedagógico e no cotidiano escolar,
além de frisar como se pode abrir fissuras no currículo para discuti-las. Posto isso, é chegada
a hora de materializar a discussão com as seções didáticas, almejando, com isso, diminuir as
ausências que permeiam os manuais didáticos e auxiliar nas discussões dos docentes. Esse
material pedagógico será direcionado aos professores, sobretudo do Ensino Fundamental
maior.
MARANHÃO
As pessoas geralmente não falam muito sobre o universo da fé, mas é difícil
pensar o Maranhão ou mesmo o Brasil sem levar em consideração suas referências espirituais.
Sejam deuses, anjos, demônios, santos, almas penadas, almas milagrosas ou encantados.
O Maranhão está inserido em um universo de misticismos e encantarias de origens
africanas ou afro-brasileiras, que podem se materializar de diferentes formas. A antropóloga
maranhense Mundicarmo Ferretti (2008) aponta que o termo religião afro-brasileira designa
uma pluralidade de manifestações religiosas organizadas geralmente bem antes da abolição,
por africanos e seus descendentes, onde são cultuados e entram em transe com entidades
espirituais das etnias jeje, nagô e bantos, com os voduns, orixás ou inquices respectivamente.
O transe com essas entidades ocorre normalmente em rituais realizados com tambores e
cânticos nos terreiros, também chamados de casas de culto.
Em São Luís é mais comum a Pajelança e o Tambor de Mina, mas no interior do
Estado essas expressões recebem classificações diversas, como Badé, Berequete, Pajelança,
Jirumga, Panguará, Iemanjá, Baía, Terecô, Cura, Brinquedo de Cura ou simplesmente
Brinquedo, dentre outras, mas a linha que divide essa diversidade pode ser muito tênue.
O estado é conhecido como principal centro de preservação da cultura dita Mina
do Brasil, sendo dividida em duas linhas principais, Jejê e Nagô, sendo a maioria dos terreiros
de mina praticante do modelo da Casa de Nagô- Nagô, embora a vertente vista como mais
tradicional e “pura” seja o modelo da Casa das Minas – Jêje. Segundo consta as pesquisas,
elas são as mais antigas do estado, ambas localizadas no centro da cidade, Rua São Pantaleão
e Cândido Ribeiro ou das Crioula respectivamente.
A Casa das Minas pertence à entidade Zomadonu
(que é um vodum, entidade vinda da África) e a Casa de Nagô A Casa das Minas é o
terceiro do Livro de Tombo
pertencente ao orixá Xangô. “Acredita-se que a Casa de nagô do Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico
tenha sido erguida na mesma época que a casa das Minas, mas Nacional (IPHAN) sendo
não se sabe ao certo qual das duas foi fundada primeiro. A tombada em 2002 ao lado
do Terreiro da Casa Branca
tradição diz que as fundadoras da casa foram duas africanas, do Engenho Velho Ilê Axé
Iyá Nassô Oká, tombado em
Josefa e Joana.” (FERRETTI, 2002, p. 14). O que se sabe é que 1987, e do Terreiro Ilê Axé
Opô Afonjá, em 1999,
foram abertas em meados do século XIX por africanas. ambos de Salvador (BA).
164
estratégias usadas pelos pajés indígenas. A imagem acima mostra um maracá, muito utilizado
pelos pajés nos rituais de cura. A imagem foi capturada em um terreiro de pajelança no
município de Bacuri do Maranhão e compõe a decoração do espaço.
Uma entidade muito conhecida na pajelança é o Rei Sebastião, que habita em
várias praias de ilhas existentes ao longo do litoral entre Belém e São Luís, é entidade comum
em cultos de pajelança e de origem africana tanto no Pará como no Maranhão.
Outra variante é o
Terecô, “tal prática é
conhecida como festa do
tambor da mata, brincadeira,
brinquedo de Barba,
encantaria de Barba Soeiro,
verequete ou berequete.
Apesar de exibir elementos
jeje e alguns nagô, a
identidade do terecô é mais
afirmada em relação à cultura
banto (angola, cambinda).”
(FERRETTI, M. 2003, p.1).
Imagem: Filha de santo- festa da Roupa Nova- Bacabal/MA
Fonte: Arquivo pessoal
INDICAÇÃO DE MÚSICA
Ponto br – na eira
Rita benedito
Maria Bethânia
170
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FERRETI, Sergio. Andressa e Dudu – os Jeje e os Nagô: apogeu e declínio de duas casas
fundadoras do tambor de mina maranhense. In.: SILVA, Vagner Gonçalves da. (Org.)
Caminhos da Alma. São Paulo: Summus, 2002.
FERRETTI, S. F. Querehentã de Zomadônu: etnografia da Casa das Minas. 2. ed. São Luís:
Edufma, 1996.
Há muito tempo venho orando por pessoas as quais na sua grande maioria
tiveram ligações com o espiritismo nas suas diversas facetas. Milhares de
pais-de-santo e mães-de-santo se transformaram em cristãos sinceros e
tementes a Deus, após participarem de reuniões em nossas igrejas. [...]
Sentir-me-ei realizado se este livro for uma verdadeira mensagem
transformadora. Espero que a sua vida, amigo, mude após a leitura sem
preconceitos desta mensagem. Quero ver milhares de pessoas, que antes
eram escravas ou "cavalos" dos demônios, por intermédio dessas palavras e
da ação do Espírito Santo em suas vidas, se tornarem verdadeiros servos do
Deus Altíssimo, adorando Jesus em Espírito e em Verdade, juntamente
conosco, em nossas abençoadas reuniões. Que Deus abençoe
abundantemente o meu amado leitor. (MACEDO, 1993, p. 01)
46
SANTOS, valdelice conceição dos. O discurso de Edir Macedo no livro Orixás, Caboclos e Guias. Deuses ou
demônios?: Impactos e impasses no cenário religioso brasileiro. Dissertação de mestrado. São Bernardo do
Campo. 2010.
172
47
Entendo como religiões de matrizes africanas, no Brasil, todas as expressões religiosas em que existe algum
tipo de transe ou possessão mediúnica (de orixá, inquice, vodum, ou ancestral) e rituais de iniciação, público ou
privado, envolvendo a comunidade com cânticos e danças ao som de instrumentos de percussão comandados por
um ou mais de um sacerdote ou sacerdotisa amparado/a por um tipo de oraculo africano, bem como mitos e
histórias africanas. (SANTOS, 2015, p.72-73)
173
A imagem ao lado
representa uma criança, pertencente à
religião afro, fotografia capturada no
terreiro de seu folha seca, município de
Bacabal. Agora imaginemos como é o
cotidiano desse garotinho na escola,
será que ele pode expor sua religião
como se fosse o catolicismo? Será que
pode usar suas guias sem sofrer críticas
e passar por situações constrangedoras e
de represália pelos colegas? Vamos
refletir!
Imagem: festa dos erês/ Terreiro de seu Folha Seca -Bacabal-MA
Fonte: arquivo pessoal
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
MACEDO, Edir. Orixás, Caboclos e Guias Deuses ou Demônios. Rio de Janeiro: Universal,
16ª edição, 1993.
48
“Tambor de mina é a designação popular no Maranhão para a religião de origem africana que, em outras
regiões do país, recebe denominações como candomblé, xangô, batuque, macumba e etc.; é o nome de uma
religião afro-brasileira desenvolvida por antigos escravos africanos e seus descendentes” (FERRETI, 2009)
177
referir às diversas companheiras do seu genitor, destacou: “meu pai era um homem vaidoso”.
Nasceu em 1897, vivenciou grande parte do Século XX, até ser vitimado por um acidente
vascular cerebral no ano de 1983.
Filho do carpinteiro Jose Alexandre Coelho e da lavadeira Maria Joana Coelho
que, segundo seu filho, “lavava roupas, como se dizia na época, para casa de branco”.
Negreiros nasceu e cresceu no Lira, um bairro ludovicense de operários que, no início do
século XX, era considerado bairro periférico, longe do centro comercial da cidade. Seus
poderes mediúnicos afloraram desde cedo, tendo em vista o contato com terreiros da
vizinhança, como a Casa das Minas e Casa de Nagô.
No início teve dificuldades para aceitar a sua espiritualidade, tendo por isso, em
fins dos anos 1930, fugido com um circo para o Rio de Janeiro. Entretanto na sua volta
descobriu ser inevitável, passando então a incorporar o caboclo Légua Bogi Bua e, a partir da
proximidade com essa entidade, adentrou a vida espiritual, com terreiro funcionando
inicialmente na rua da Palha e depois na rua da Cruz, centro de São Luís.
Em meados do século XX, período marcado por constantes perseguições,
sobretudo da polícia aos terreiros de mina da cidade, seu filho explica a permanência da casa
de culto do pai no centro em razão das “boas relações”: “Meu pai era amigo de gente
importante, existia um respeito com ele, a polícia era amiga dele e o sistema fazia parte do
terreiro.” Depois se mudou para o bairro do Turu, onde fundou o terreiro destinado ao seu
Légua, em 1945 com sua então cônjuge. Após o término dessa relação, em fins dos anos
1970, mudou-se, juntamente com seu terreiro, para o bairro da Jordoa, no qual dava sessão e
consultas e fundou outro no bairro do Tirirical, destinado ao Índio Canela, outra entidade
presentificada nas práticas do terreiro.
Negreiros era devoto ferrenho de São Judas Tadeu e São Raimundo Nonato,
típicas figuras do catolicismo romano, tanto que dedicou o seu terreiro do Turu a proteção do
último. Carregava consigo somente entidades masculinas como seu Légua Bogi Bua, caboclo
Itabajara, João de Una, Boço Jara, dentre outros. Entretanto, fazia obrigações para entidades
femininas e também caboclas, que incorporavam apenas nos seus filhos de santo: como
Jurema, Janaina, Iemanjá, Zé Pilintra, Exu caveira, Tranca rua, Pomba Gira e Pretos Velhos.
“No terreiro do meu pai frequentavam todos os tipos de pessoas, do alto ao baixo
escalão da sociedade, ele atendia todos de forma igual”, destaca seu filho José. E continua:
“ele recebia muitas pessoas de fora, especialmente do Rio de Janeiro e Belém, (cidade para
qual preparou muitos filhos de santo), desde políticos a figuras afamadas da TV, como a atriz
global Elizabeth Savala, com quem manteve uma boa amizade”. Na verdade, é interessante
178
Maranhão a gravar um vinil49. Foi um homem de grandes amizades com importantes figuras
do ramo da música como é o caso do cantor e compositor Ary Lobo, que fez algumas músicas
dedicadas a ele, sendo a mais conhecida o “Coco da Juliana”:
49
JOSÉ NEGREIROS (vinil).[1979/1982?], São Luis-MA.
180
Imagem: Zé Negreiros
Fonte: Pacotilha O Globo (3/8/1954, p. 2)
O terreiro grande de Zé
Negreiros alcunhado de Terreiro de Legua
Bogi Búa da trindade, em homenagem ao
seu santo de cabeça, foi aberto em 1945 no
bairro do Turú, atual Posto Natureza, na
época zona rural de São Luís. Essa casa
permanece viva na memória de muitas
pessoas com mais de 60 anos, que
frequentavam ou conheciam sua fama, que
hora ou outra aparecia nos jornais na
resolução de casos ou envolvendo políticos
famosos.
Imagem: terreiro Terreiro de Zé Negreiros/ Legua Boji Búa
da Trindade
Fonte: Pacotilha O Globo (3/8/1954, p. 2)
181
Referências
BARROS, A. Evaldo A. O Pantheon: Culturas e Heranças Étnicas na Formação de
Identidade Maranhense (1937-65). Salvador: PÓS-AFRO/FFCH-UFBA/CEAO, Dissertação
de mestrado, 2007.
COELHO, José Itabajara. 2017. Entrevista concedidas a Reinilda Santos.
SANTOS, Reinilda de Oliveira. José Negreiros: “pulava e brincava, rufava o pandeiro”. In:
Boletim da Comissão Maranhense de Folclore. Número 56, junho de 2014, p. 14-15.
R
183
Com isso constituíram espaços de fé, simulando sua devoção às entidades africana
e afro-brasileiras venerando “santos” com características similares. Naquele contexto era
comum esconder as entidades afros nos santo católicos. Por exemplo, quando rezavam em sua
língua para Santa Bárbara, estavam cultuando Iansã ou quando se dirigiam a Nossa Senhora
da Conceição, estavam falando com Iemanjá.
Dentre os africanos escravizados no Brasil se destacavam dois grupos: os bantos,
oriundos de regiões como o Congo, Angola e Moçambique) e os sudaneses, advindos da
Nigéria e do Benin, que são os iorubas, ou nagôs, e os jejes. Mas, a religião oficial no Brasil
era o catolicismo, trazido pelo branco europeu e as religiões afro-brasileiras estavam atreladas
a feitiçaria e seus membros eram mal vistos pela sociedade.
Além do mais as festas ou comemorações para essas entidades não eram
permitidas. Só com o tempo essas vertentes religiosas foram ganhando espaço e conquistando
mais fiéis. Contudo, ainda é a religião que mais sofre atitudes de intolerância, além de ser a
mais perseguida no país.
184
de mina (Maranhão e Pará) e batuque (Rio Grande do Sul). Essas religiões teriam se
materializado em sincretismo, mistura com o catolicismo e em grau menor com as religiões
indígenas. A religião africana só parcialmente teria se reproduzido no Novo Mundo, pois, na
escravidão, a família se perdeu, o grupo étnico se perdeu.
Assim, na segunda fase, que seria característica dos anos 1920-30, teria ocorrido o
branqueamento, na formação da umbanda. No fim do século XIX, chega o espiritismo de
Alan Kardec ao Brasil. No início, era religião de classe média, depois também frequentada
por pobres e negros. O primeiro centro de umbanda teria sido fundado em 1920 no Rio de
Janeiro como dissidência de um kardecismo que rejeitava a presença de guias negros e
caboclos, considerados pelos espíritas mais ortodoxos como espíritos inferiores.
Com a umbanda, iniciou-se vigoroso processo de valorização de elementos
nacionais, como o caboclo e o preto-velho, que são espíritos de índios e escravos. Mesmo
quando proletária, essa religião era culturalmente europeia: premiava o conhecimento pelo
aprendizado escolar e não pela tradição oral. Limpava-se a religião de seus elementos da
tradição iniciática secreta e sacrificial. Mas a umbanda rompeu de certo modo com a
concepção kardecista de mundo, que vê esta terra mais como um lugar de sofrimento.
Assim, chega-se à terceira fase, a africanização, a partir dos anos 1960. A
africanização corresponde à transformação do candomblé em religião universal. O candomblé
torna-se aberto a todos, sem barreiras de cor ou origem racial. O processo de africanização
implica a negação do sincretismo, adoção de aprendizado não oral e mudança ritual e
doutrinária. Faz-se uma reflexão a respeito das condições sociais que o candomblé renovado
enfrenta em sua expressão no mercado religioso.
Durante os anos de 1960, muitos nordestinos migram para o sudeste em
industrialização, levando consigo o candomblé, que começou a se infiltrar na umbanda. A
umbanda foi remetida ao candomblé, sua velha e “verdadeira” raiz original. Nos anos 1960,
muda a mentalidade mundial, os modelos do conhecimento universitário de explicação do
mundo são duvidados. Chega o pós-moderno, sobretudo no sudeste. A juventude começa a
valorizar a cultura do outro (do ocultismo, do oriental, e também a cultura do negro).
As tradições de origem africana centradas na Bahia e em outros pontos do país
encontram suporte para se multiplicar no sul. O candomblé se instala como religião para
todos. Num primeiro momento, membros do sudeste e do sul para buscar legitimidade vão à
Bahia, pensada como lugar da tradição.
Num segundo momento, começa o processo de africanização propriamente dito:
não é mais a Bahia, mas a própria África o lugar da língua, dos ritos e mitos “verdadeiros”.
186
Ao negar o sincretismo, deixando para trás a religião da Igreja, seus ritos e santos, o novo
candomblé se põe em pé de igualdade com o catolicismo, deixa de ser religião subalterna, já
não se vê a si mesmo como a religião do escravo.
Portanto, observa-se nesta visão de Prandi a ideia de que, em última instância, o
sincretismo resultou basicamente do fato de o Brasil ser uma sociedade profundamente
desigual e os africanos e seus descendentes serem obrigados a cultuar seus deuses e entidades
espirituais imbricando-os com as divindades católicas.
Não se pode negar de fato, como destaca Prandi (1999), que houve violência
simbólica, quando a crença dos povos africanos e descendentes no Brasil foi proibida de ser
manifestada, e estes tiveram que criar mecanismos a fim de manobrar o sistema católico. Para
alguns pesquisadores as religiões de origem africana são consideradas subalternas, o que
implica dizer que foram submetidas a rígido controle social e jurídico ao longo de sua
trajetória histórica. Tendo em vista que foram impedidas de se manifestarem como livre
expressão da cultura brasileira.
Assim, não há como desvincular essas duas vertentes religiosas. Com isso, é
válido pensar em como essas casas de culto afro-maranhense, conseguiram manter-se
estruturadas em uma cidade com forte domínio católico. De fato, isso leva a criação de um
laço profundo entre religião afro-maranhense e catolicismo, sobretudo o catolicismo popular.
Nas imagens abaixo, capturadas pelo fotografo Márcio Vasconcelos, é possível
perceber inúmeras referências católicas nas paredes dessa casa de culto. Essa prática é comum
nos terreiros das variadas vertentes de religiões de matrizes africanas.
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R
188
eligiosidade afro-brasileira e
resistência
Peça importante na
"Damos o nosso coração, alegria e composição de nosso
amor a todos sem distinção de cor repertório sacro, as
Mas depois da ilusão, coitado diferentes modalidades e
Negro volta ao humilde barracão". expressões do tambor de
Candeia - Dia de Graça (1978) mina, religião maranhense
por excelência, contribuem
A trajetória do negro no Brasil sempre foi de com riquíssimo panteão de
divindades e entidades, com
luta, resistência e sobrevivência. Durante o processo da música e dança, com
mitologia e crenças, com
escravidão uma das formas de resistência ao colonialismo e práticas mágicas e rituais
religiosos, mas sobretudo
ao catolicismo dominante foi a religião. Os sujeitos com uma particular maneira
escravizados trouxeram consigo suas cresças e cosmologias de encarar a vida, de se pôr
no mundo, de conceber a
que misturadas com o catolicismo e elementos de origem realidade, na qual ocupam
lugar fundamental, para os
indígenas deram origens às religiões afro-brasileiras, crentes, os próprios
encantados. Para essa
difundidas em quase todo o país hoje. Essas manifestações concepção, a prática
mágica, além do serviço
se constituíram em meio a muitas dificuldades e ainda sofre religioso, representa o meio
para ganhar espaço e se efetivar enquanto religião na pelo qual se torna possível
interferir decisivamente no
sociedade. desenrolar do cotidiano,
para dotar os fatos da vida
Podemos pensar que religiões de matrizes de qualidades que
favoreçam a boa sorte, o
africanas como o Candomblé, a Umbanda e Tambor de sucesso e a felicidade que
cada um almeja alcançar e
Mina, podem ser vistas como uma espécie de instituição de compartilhar no dia-a-dia
resistência cultural. Primeiramente dos africanos, e depois sofrido e incerto que se
experimenta neste mundo.
dos afro-descendentes, diante de um sincretismo forjado (FERRETTI. M, 2000, p.07)
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir da experiência no Centro de Ensino Sotero dos Reis pude observar não só
a ausência das religiões praticadas pelos negros africanos escravizados no Brasil, mas também
de temas que abordem suas contribuições para formação e desenvolvimento do nosso país,
bem como seus elementos culturais e isso culmina na não identificação dos alunos negros
enquanto sujeitos históricos. E essa dificuldade de identificação pode ser percebida, por
exemplo, no currículo, que se apresenta como um campo de disputa, e em geral é engessado e
excludente, o que indica uma predominância de concepções tradicionais sobre as religiões.
Portanto, ocorre um silenciamento e ausência de reflexões dessas referências em sala de aula
por quase todas as partes desse conjunto.
Então, diante disso, coloco-me a pensar na consciência histórica das religiões afro
brasileiras na perspectiva de investigação das narrativas de alunos, professores e outros
sujeitos envolvidos na pesquisa, tendo em vista que a consciência histórica de religião que
aparece nos livros didáticos e na escola é predominantemente católica e protestante. Isso
dificulta as potencialidades de desenvolvimento de outros temas no âmbito da educação
escolar. Com isso, narrativas a partir da perspectiva negra e negro-mestiça são necessárias
para ajudar na desconstrução da inferioridade pela qual passaram os alunos negros, sobretudo,
oriundos de religiões de matrizes africana.
A proposta aqui foi delinear dificuldades e identificar aspectos que permitam
oferecer aos educadores contribuições para trabalhar este tema na cultura escolar pautado na
ideia de respeito à diversidade religiosa e diálogo entre elas, tendo em vista que a escola tem
um papel importante no processo de reconhecimento e valorização e deve contribuir para o
empoderamento dos sujeitos socioculturais, sobretudo, os subalternizados e negados. E esta
tarefa passa por processos de diálogo entre diferentes conhecimentos e saberes presentes na
194
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