Pch9llabi Enforcado

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Auto da Barca do Inferno à lupa

Enforcado Enforcado

PCH9LLABID © Porto Editora


Vem um homem que morreo enforcado, e, che- Enforcado (E.) – condenado à morte, personagem-
gando ao batel dos mal-aventurados, disse o Ar- -tipo que representa o povo. Esta personagem
rais, tanto que chegou: traz, pendurado no pescoço, um “baraço”, mais
especificamente a corda com que foi enforcado
depois da sua condenação à morte. Este adereço
Venhais embora,1 enforcado!
DIABO cénico representa os crimes e a sua cumplicidade
755 Que diz lá Garcia Moniz2? em atos criminosos.
ENF. Eu te direi que ele diz:
que fui bem-aventurado
em morrer dependurado3 Percurso da personagem:
como o tordo na buiz4,
760 e diz que os feitos que eu fiz v. 755 – cómico de situação: o D. já estava à
me fazem canonizado. espera do Enforcado e, de forma jocosa, faz
referência a Garcia Moniz, figura conhecida da
altura. Provavelmente, foi tesoureiro da Casa da
Entra cá, governarás
DIABO Moeda de Lisboa e, de 1513 a 1517, superior de G. V.
atá as portas do Inferno. que ali parece ter desempenhado o cargo de
Mestre da Balança. Perdeu o lugar, segundo se
ENF. Nom é’ssa a nao que eu governo.
supõe, por irregularidades praticadas2.
765 DIABO Mando-t’eu que aqui irás. G. V. pretende expor a corrupção entre criminosos
5
ENF. Oh! Nom praza a Barrabás ! e altos funcionários da Corte.
Se Garcia Moniz diz v. 758 – eufemismo
v. 759 – comparação
que os que morrem como eu fiz
v. 760 – pleonasmo
são livres de Satanás... vv. 756-761 – cómico de carácter: o E. narra a
interação que teve com Garcia Moniz e a
forma como este o convenceu de que seria
“bem-aventurado” por morrer na forca e como
desejava ser ele o condenado… Na verdade,
Garcia Moniz convenceu o E. de que era um dos
eleitos e, no momento final, explicou-lhe que o
caminho para o Céu passava por um Purgatório na
terra, mais concretamente, a forca e a prisão do
Limoeiro. Na prisão estava só “santa gente”.
vv. 762-763 – ironia
vv. 765-766 – cómico de linguagem e de carácter:
o D. instiga o E. a entrar e este fica indignado e
usa uma fórmula de juramento com a figura de
Barrabás. Segundo a doutrina do E., o Barrabás
seria, tal como ele próprio, um santo. Barrabás:
“Criminoso famigerado, que beneficiou da
amnistia pascal quando a população de
Jerusalém reclamou do governador romano,
a seu favor e contra Jesus, a aplicação de um
costume, tornado privilégio”.2
1. Venhais embora: Vindes em boa hora. 2. Garcia Moniz:
vv. 767-769 – cómico de carácter: Garcia Moniz
foi, provavelmente, tesoureiro da Casa da Moeda de convenceu o E. de que, morrendo pela forca, iria
Lisboa e superior de Gil Vicente. 3. dependurado: para o Céu
enforcado. 4. buiz: armadilha para caçar pássaros e
coelhos. 5. Barrabás: criminoso da época de Jesus Cristo.

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Enforcado

770 E disse-me que a Deos prouvera


que fora ele o enforcado;
e que fosse Deos louvado
que em bo’hora eu cá nacera;
e que o Senhor m’escolhera
775 e por bem vi beleguins;6 v. 775 – e por meu bem fui preso por beleguins
E com isto mil latins7 (antigos oficiais de justiça)
v. 776 – hipérbole (= termos incompreensíveis)
mui lindos, feitos de cera8.

E no passo derradeiro9
me disse nos meus ouvidos
780 que o lugar dos escolhidos
era a forca e o Limoeiro10;
nem guardião do moesteiro
nom tinha tão santa gente
como Afonso Valente11, v. 784 – Afonso Valente era carcereiro da cadeia
785 que é agora carcereiro. da cidade de Lisboa (Limoeiro)

DIABO
Dava-te consolação
isso, ou algum esforço12?
13
ENF. Com o baraço no pescoço vv. 788-793 – cómico de carácter: o E. mostra-se
mui mal presta a pregação… contrariado, no sentido em que, ao contrário de si,
Garcia Moniz continuará vivo e a apreciar a vida
790 E ele leva a devação,
que há de tornar a jentar...14
Mas quem há de estar no ar15 v. 792 – eufemismo
avorrece-lh’o sermão.

DIABO Entra, entra no batel, vv. 794-795 – Apesar de o E. ter já recebido um


795 que ao Inferno hás de ir! castigo terreno pelos seus crimes, não poderá
evitar o castigo no Além
ENF. O Moniz há de mentir?
v. 796 – cómico de carácter: o E. continua a não
Disse-me que com São Miguel16 acreditar que Garcia Moniz o enganou
jentaria pão e mel vv. 797-801 – S. Miguel comemora-se no dia 29 de
tanto que fosse enforcado. setembro; assim, estes versos significam que,
caso se deixasse, sem altercações, enforcar, nos
800 Ora, já passei meu fado, fins de setembro, o E. jantaria pão e mel no Céu
e já feito é o burel17.

6. v. 775: e para meu bem fui preso por beleguins. 7. mil


latins: termos incompreensíveis. 8. feitos de cera:
estereotipados. 9. v. 781: E no momento do enforcamento.
10. Limoeiro: prisão de Lisboa. 11. Afonso Valente:
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carcereiro da cadeia de Lisboa. 12. esforço: coragem,


alento. 13. baraço: corda para enforcar. 14. v. 791: que há
de continuar a viver. 15. estar no ar: ser enforcado. 16. São
Miguel: a festa litúrgica do anjo São Miguel celebra-se no
dia 29 de setembro. O sentido deste verso é o seguinte:
“disse-me que nos fins de setembro”. 17. burel: luto.

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Auto da Barca do Inferno à lupa

Agora não sei que é isso.

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vv. 800-809 – cómico de carácter: agora que já
Não me falou em ribeira, passou pela forca, o E. mostra-se baralhado com o
que encontrou no cais, que não correspondia à
nem barqueiro, nem barqueira,
descrição que lhe tinha sido feita por Garcia
805 senão – logo ò Paraíso. Moniz
Isto muito em seu siso.
E era santo o meu baraço... v. 807 – Estas duas palavras excluem-se
Eu não sei que aqui faço: mutuamente, já que o baraço, que representa os
crimes, não é de todo santo
que é desta glória emproviso?18 vv. 810-817 – cómico de carácter: o D. continua a
questionar o E. relativamente ao que Garcia
810 DIABO Falou-te no Purgatório? Moniz lhe tinha contado. O E. afirma que o
Purgatório seria a sua passagem pela prisão do
ENF. Disse que era o Limoeiro,
Limoeiro e que iria rezar por ele os sete salmos
e ora por ele o salteiro19 penitenciais do livro dos Salmos de David, o
e o pregão vitatório20; responso e ordenar missas pela sua alma.
e que era mui notório
815 que aqueles deciprinados21
eram horas dos finados
e missas de São Gregório.22 v. 817 – São Gregório era considerado protetor e
advogado especial das almas detidas no Purgatório,
por causa da grande devoção que por elas tinha
DIABO
Quero-te desenganar:
e revela nas suas obras. Entre as práticas
se o que disse tomaras, supersticiosas que se ligaram a esse santo Papa,
820 certo é que te salvaras. há fórmulas de missas em que se pede o
Não o quiseste tomar… livramento das almas.2
vv. 819-820 – Se tivesses tomado o que eu te
– Alto! Todos a tirar, disse, é certo que te tinhas salvado; condenação
que está em seco o batel! final pelo D.
– Saí vós, Frei Babriel! v. 821 – referência ao livre-arbítrio do E.
vv. 822-825 – cómico de situação: o D. coloca
825 Ajudai ali a botar23!
todos a fazer manobras, de forma a colocar outra
vez o barco na água (deduz-se que estaria com
tanta ocupação que atolara)
18. v. 809: Como desapareceu de repente esta glória que v. 824 – referência ao nome do Frade, Frei Babriel
eu tanto desejava? 19. o salteiro: o livro dos Salmos de (Gabriel)
David; os sete salmos penitenciais. 20. pregão vitatório:
responso pela alma dos mortos. 21. deciprinados:
castigados, torturados. 22. v. 817: e missas por alma dos
defuntos. 23. botar: afastar o barco da margem.

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