Áustria - Rainer Maria Rilke - A Canção de Amor e de Morte
Áustria - Rainer Maria Rilke - A Canção de Amor e de Morte
Áustria - Rainer Maria Rilke - A Canção de Amor e de Morte
Horroriza-se.
E já está a cavalo.
e galopa na noite. Elos sangrentos apertados
no punho.
O de Languenau escreve uma carta, completamente absorto. Lentamente
desenha com grandes, sérias, eretas letras:
Depois, mete a carta na túnica, no mais secreto lugar, junto à pétala de rosa.
E pensa: daqui a pouco estará perfumada. E pensa: talvez um dia alguém a
encontre...
E pensa:...
Porque o inimigo está perto.
Passam a cavalo por cima de um camponês trucidado. Tem os olhos
arregalados e alguma coisa se espelha dentro deles: não céu. Mais tarde,
uivam cães. Aproxima-se, pois, finalmente, uma aldeia. E acima das
cabanas se eleva, pétreo, um castelo. Larga se estende para eles a ponte.
Grande se torna o portão, Alto a buzina soa as boas-vindas. Escuta:
alvoroto, tinidos e ladrar de cães: Relinchos no pátio, bater de patas e grito.
Repouso! Ser hóspede, um dia. Nem sempre ser o próprio a oferecer a seus
desejos mesquinha ração. Nem sempre hostilmente agarrar todas as coisas.
Deixar um dia tudo acontecer, e saber: o que acontece é bom. Também a
coragem deve um dia distender-se e à beira das cobertas de seda sobre si
mesma dobrar-se. Nem sempre ser soldado. Trazer um dia os anéis dos
cabelos descobertos, e o cabeção largamente aberto, e sentar-se em assentos
de seda e até as pontas dos dedos assim: ter tomado o seu banho. E tornar a
aprender o que são as mulheres. E como as brancas fazem, e como são as
azuis; para que possuem mãos, e como fazem gorjear seus risos quando
louros rapazes trazem as belas salvas pesadas de sumarentos frutos.
Principiou como banquete. E converteu-se em festim, mal se sabe como. As
altas chamas tremulavam, as vozes estrugiam, confusas canções jorravam
dos cristais e das luzes; e finalmente dos ritmos amadurecidos brotou a
dança. E a todos arrastou. Era um bater de vagas pela sala — um encontrar-
se e um escolher-se, um despedir-se e um reencontrar-se, um embriagar-se
de brilho e um cegar-se de luz, e um embalar-se no vento estivai que mora
nas roupagens das cálidas mulheres.
Do escuro vinho e de mil rosas, a hora sussurrante se escoa no sonho da
noite.
E alguém está de pé e deslumbrado naquela pompa. E de tal modo que
aguarda o despertar. Pois só dormindo se contempla tal magnificência e tal
festim com tais mulheres: o menor de seus gestos é uma prega caindo em
brocado. Constroem horas com suas argentinas práticas e de vez em quando
levantam as mãos assim — e pensarás que colhem num lugar que não
atinges, suaves rosas que não vês. E então sonhas: adornar-te com elas, ser
feliz de outro modo, e merecer uma coroa para a tua fronte, que está nua.
Alguém, trajado de seda branca, percebe que não pode despertar; pois está
desperto e perturbado pela realidade. Assim se refugia medrosamente no
sonho, e permanece de pé no parque, sozinho no negro parque. E a festa é
longe. E a luz mente. E a noite o envolve, fresca. E pergunta a uma mulher
que para ele se inclina:
“És tu a noite?”
Ela sorri.
Então, ele se envergonha de seu traje branco.
E quereria estar longe, sozinho, armado.
Completamente armado.
“Esqueceste que por hoje és meu pajem? Queres abandonar-me? Para onde
vais? Teu trajo branco dá-me direito a ti”.
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“Suspirar pela tua grosseira roupa?”
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“Sentes frio? Tens saudades de teus pais?”
A condessa sorri.
Não. É somente porque a infância lhe caiu dos ombros, — esse suave trajo
nubloso. Quem lho arrebatou? “Tu?” pergunta com uma voz que nunca
tinha ouvido. “Tu!”
E agora não há nada por cima dele. E está despido como um santo. Claro e
esguio.
Lentamente se apaga o castelo. Todos estão pesados: de fadiga, de amor ou
de vinho. Depois de tantas vazias, longas noites de acampamento: leitos.
Largos leitos de carvalho. Aí se reza de outro modo que no mísero rego do
caminho, que é como um túmulo, quando se quer dormir. “Senhor, Deus,
seja feita a vossa vontade!”
No leito, as rezas são mais curtas.
Mais entranháveis, porém.
A câmara da torre está apagada.
Mas eles iluminam seus rostos com sorrisos. Tateiam diante de si como
cegos e encontram o outro como uma porta. Quase como crianças
assustadas diante da noite, apertam-se um ao outro. No entanto nada
temem. Não há nada contra eles: nenhum ontem e nenhum amanhã, pois o
tempo se desmoronou. E eles florescem das suas próprias ruínas. Ele não
pergunta: “Teu marido?”
Ela não pergunta: “Teu nome?”
Encontram-se, na verdade, para serem um para o outro, uma nova estirpe.
Darão um ao outro cem nomes novos, e tornarão a tirá-los todos, um do
outro, de leve, como se tira um brinco de uma orelha.
No vestíbulo, pendem de um assento a loriga, a bandoleira e o manto do de
Languenau. Suas luvas, no chão. Seu estandarte, rígido, apoiado à travessa
da janela. É negro e esguio. Fora, uma tempestade corre pelo céu, cortando
a noite em pedaços brancos e pretos. O luar passa como um longo
relâmpago, e o estandarte imóvel tem sombras inquietas: sonha.
Estava uma janela aberta? Está dentro de casa a tempestade? Quem bate
com as portas? Quem atravessa as salas? — Deixa. Seja quem for. Na
câmara da torre não o encontrará. Como detrás de cem portas, está este
grande sono que duas criaturas dormem em comum. Numa comunhão de
Mãe ou de Morte.
Isto é o amanhecer? Que sol se eleva? Como é grande o sol. São pássaros?
Suas vozes estão por toda parte.
Tudo está claro, mas não é dia.
Tudo é ruidoso, mas não são vozes de pássaros. São as trevas que brilham.
São as janelas que gritam. E gritam, vermelhas, dirigindo-se para o inimigo
que está lá fora, no campo chamejante, gritam: Incêndio.
E com o sono rasgado no rosto todos se precipitam, meio recobertos de
ferro, meio despidos, de sala em sala, de refúgio em refúgio, e procuram a
escada.
E com estrangulado alento as buzinas gaguejam no pátio:
A reunir! a reunir!
E trêmulos tambores.
Mas o estandarte não está ali.
Chamados: Porta-estandarte!
Cavalos enraivecidos, preces, gritos,
imprecações: Porta-estandarte!
Ferro contra ferro, comando e senha;
silêncio: Porta-estandarte!
E arremeter com a escumante cavalaria.
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Mas o estandarte não está ali.
Corre à porfia com os corredores flamejantes, pelas portas que o cercam,
ardentes, pelas escadas que o queimam, e evade-se do edifício em fúria.
Nos braços leva o estandarte como uma branca mulher desfalecida. E
encontra um cavalo, e é como um grito, por cima de tudo e antepondo-se a
todos, até os seus. E então o estandarte também torna a si, e nunca teve
tanta realeza, e agora todos o vêem, na frente, e reconhecem o homem claro
e sem elmo, e reconhecem o estandarte... Mas nisto ele começa a brilhar,
desprega-se, amplia-se, purpuriza-se.
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Ali arde o seu estandarte, no meio do inimigo. E perseguem-no a galope.
O de Languenau está no meio do inimigo, mas completamente só. O medo
abriu em torno um círculo vazio, e ele resiste no centro, sob o estandarte
que lentamente se consome.
Lentamente, quase pensativamente, olha em redor de si. Há muitas coisas
estranhas e multi-cores na sua frente. Jardins... pensa; e sorri. Mas então
sente olhos que o observam, e reconhece homens, e sabe que são os perros
infiéis: e atira o seu cavalo em cheio.
Mas quando agora atrás dele tudo se fecha, são jardins outra vez, e os
dezesseis sabres redondos que sobre ele saltam, raio sobre raio, são uma
festa.
Uma ridente cascata.
A loriga ardeu no castelo, com a carta e a pétala de rosa de uma mulher
estrangeira.
Na primavera seguinte (que chegou triste e fria), um correio a cavalo, do
Barão de Pirovano, entrou lentamente em Languenau. Lá viu uma velhinha
chorar.