O Lugar Da Favela Narrativas Hegemônicas e
O Lugar Da Favela Narrativas Hegemônicas e
O Lugar Da Favela Narrativas Hegemônicas e
_______________________________________________
Dr. Paulo Roberto Gibaldi Vaz - UFRJ
(Presidente/Orientador)
_______________________________________________
Dra. Beatriz Jaguaribe - UFRJ
_______________________________________________
Dra. Mariana Cavalcanti – FGV
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, pelo amor, pelo carinho, pelo apoio, pela dedicação e por me ensinar,
desde pequena, a ser sensível e atenta aos outros. À minha mãe Terezinha, por
mostrar, não só a mim como a tantos alunos que passaram por suas salas de aula, que
educar é construir e que o aprendizado não é a preparação para a vida, mas sim a
própria vida. Ao meu pai Regner, por me instruir a persistir e, ao mesmo tempo,
buscar o que me faz feliz.
Ao meu orientador Paulo Vaz, pela confiança, pela amizade, pela disponibilidade e,
sobretudo, por acreditar, desde aquela Jornada de Iniciação Científica em 2006, em
mim, me convidando a participar do universo da pesquisa acadêmica, sempre com
proposições e reflexões novas e instigantes.
Aos meus irmãos Tamara e Mateus, pelo companheirismo, pelas conversas e pelas
lições de que é possível viver de formas diferentes e aprender coisas novas
diariamente.
À minha família, especialmente minha tia avó Leny, por ter despertado, desde os
meus primeiros anos de vida, o meu interesse pelos livros com aquela biblioteca
enorme e encantadora.
Aos melhores amigos que a ECO me deu, ainda na graduação, e que tornam a minha
vida melhor todos os dias, pela presença, pela alegria, pelas palavras de apoio, pela
disponibilidade, pelo afeto e pela amizade: Alice Volpi, Arthur Tibau, Fernando
Velasco, Guilherme Tomaz, João Paulo Quintella, Pedro Lerner, Pedro Simões,
Renata Lestro, Tainá Vital e Tatiana Teitelroit.
Aos amigos que a vida me deu e que acompanharam o processo dessa dissertação
diariamente, pelo apoio, pela paciência, pelo carinho e pelo incentivo acadêmico:
Carolina Grottera, Felipe Abdala, Fernanda Salem, Francisco Costa Gabriel
Domingues, Guilherme Marcondes, Janaína Castro Alves, Laura Shalders, Luana
Manuel, Talita Arruda e Silvia Sobral. Agradeço ainda à Fernanda pela
disponibilidade e pronto auxílio nas traduções necessárias.
Aos amigos Flavia Leone, Marcello La Rovere e Renata Lestro, com quem escolhi
partilhar o período de construção do capítulo de qualificação em Paris, pela excelente
e agradável companhia nos estudos e nos momentos de diversão. Agradeço à Renata
por, mesmo à distância, dividir diariamente comigo as angústias e as alegrias do
processo de pesquisa e escrita dos respectivos mestrados.
Às amigas Clara Medeiros e Camila De’ Carli, com quem divido o dia-a-dia da nossa
casa, pelo companheirismo, pelo cuidado, pela paciência, pelo incentivo e,
principalmente, por estarem sempre por perto. Agradeço ainda à Camila pela revisão
atenta e carinhosa do texto dessa dissertação.
Aos amigos Fernando Velasco, Pedro Lerner e Pedro Simões, que, para além das
salas de aula da ECO, dividiram comigo momentos intensos de trabalho, pelas
conversas, pelas ideias, pelas provocações, pelas sugestões e pelo apoio quando
necessário.
Aos amigos Adriano Belisário, André Duchiade, Bruno Correia, Camila De’ Carli,
Ciro Oiticica, Clara Medeiros, Diogo Cunha, Felipe Coelho, Isabela Fraga, Janaína
Castro Alves, Lucas Canavarro, Manuela Oiticica, Marcela Canavarro, Philippe
Baptiste, Rodrigo Daniel, Tainá Vital, Talita Arruda e Victor Paschoal, pelas vívidas
e estimulantes discussões, surgidas em 2013 e que permanecem até hoje.
The research analyzes the urban transformation processes of Rio de Janeiro and the
way the favela (shanty town) is inserted at this juncture. From the analysis of public
policies, ideals of good city and urban plans of the city between the years 1930 and
1970, we reached the planning defined for Rio de Janeiro today as it prepares to host
the Olympic Games in 2016. In this context, the representations of the favela are
analyzed and the adoption of removal as public policy is the central element of
research, being the object of study the removal processes of the Esqueleto favela
(1960) and the Metrô Mangueira, Providência and Vila Autódromo favelas (today).
Based on published newspaper articles about these cases, the research aims to
understand how the government creates, within each historical context, narratives that
are able to justify the suffering caused by these public policies - construction of the
Radial Oeste Avenue in the Esqueleto favela, works for the 2016 Olympic Games,
respectively.
Figuras
Frames
Tabelas
INTRODUÇÃO……………………………………………………………….…..13
CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................135
REFERÊNCIAS.......................................................................................................138
INTRODUÇÃO
O Rio de Janeiro, antiga capital federal, passou por uma série de transformações
estruturais ao longo dos últimos séculos. Desde as intervenções, quando ainda era
colônia portuguesa, até os planos e mudanças implementadas pelo prefeito Pereira
Passos, a cidade foi mudando, ainda que sem a existência de um planejamento maior,
como foi o caso de Brasília – uma cidade inteiramente planificada – ou Paris. O Rio,
mesmo com a abertura de grandes avenidas, desmontes de morros, construção de
praças e largos, nunca passou por uma estruturação integral, o que afeta ainda hoje o
dia a dia da cidade.
A falta de planejamento urbano não é um fato isolado, está diretamente conectada
com o que se pensava e o que se esperava que o poder público iria fazer. E, mais, com
qual seria o ideário de boa cidade em cada momento.
Para esse capítulo, defini um recorte temporal que vai de 1930 até 1970, com o
intuito de analisar o modelo de cidade, os planos existentes, a urbanização e a relação
com a favela que, eventualmente, levou a processos de remoção. O período escolhido
compreende uma sequência de governos de formatos e enfoques diferentes: Estado
Novo, nacional-desenvolvimentismo e ditadura civil-militar.
Como visto, o ideário de boa cidade atendia critérios geopolíticos, mas também
socioeconômicos, capazes de alterar totalmente cidades sem infraestrutura. É o caso,
por exemplo, de Arraial do Cabo que, com a instalação da Companhia Nacional de
Álcalis, viu o progresso chegar de sopetão, tornando a cidade um dos símbolos da
modernidade nacional. O então presidente Juscelino Kubistchek transformou Arraial
do Cabo em um dos pilares da industrialização do país, mudando o cenário
econômico, social e político da pacata vila de pescadores. Três eixos da modernidade
estiveram presentes nessa transformação de Arraial do Cabo: industrialização,
desenvolvimento e ação do Estado (Pereira, 2010).
Para explicar a motivação do governo federal em assumir uma questão que deveria ser
da alçada estadual dos governos da Guanabara e do Rio de Janeiro, Coufal declarou:
O problema das favelas havia atingido um nível tal que jamais poderia ser
solucionado isoladamente, pelos governos dos estados; as soluções ao
problema indicam atuação na região metropolitana, no estado do Rio de
Janeiro; parte da população das favelas se origina de migrantes de outros
estados, e o controle destes fluxos migratórios só pode ser feito pelo
governo federal. 5
A Fundação Leão XIII, fundada pela Igreja Católica, apresentava a mesma posição
contrária à urbanização e em defesa da remoção. Délio Santos, presidente da
instituição, explica:
Se por um lado a favela é uma solução, por outro, entretanto, traz
problemas para a comunidade, problemas para o homem da própria favela.
Maior para a comunidade, porque a existência destes aglomerados
habitacionais subnormais implica uma série de investimentos por parte do
governo nas próprias favelas: a necessidade do aumento da rede d‟água, a
criação de novas escolas e determinados equipamentos comunitários,
trazendo também problemas de saúde. Em muitas favelas, principalmente
as localizadas em terreno plano, as condições de salubridade são as piores
possíveis.8
7 CHISAM: Origem – Objetivos – Programas – Metas. BNH / Ministério do Interior. Rio de Janeiro,
1969.
8 “Fundação explica o crescimento das favelas no Rio” in Revista Agente, ano 3, fev. de 1969.
Embora a lei seja igual para todos, sempre vence o mais forte, e surgem as
remoções para lugares longínquos, trazendo vários transtornos para o
homem que vive de salário. O que será do trabalhador quando a cidade
chegar em Vila Aliança, Vila Kennedy e Cidade de Deus? Para onde você
vai?9
9 “Faveladosse preparam para lutar contra a sua remoção” Jornal do Brasil, 31/11/1968.
10 COHAB-GB, 1969, p.45.
Entretanto, o programa de remoções da CHISAM acabou mostrando-se
inviável. Os moradores removidos apresentavam uma enorme dificuldade de
adaptação às novas condições de moradia, o que levou muitos a abandonar os
conjuntos habitacionais. A remoção para a periferia da cidade significava uma
diminuição da renda familiar, pois, por se encontrarem mais distantes dos locais de
trabalho, muitos perderam emprego, e houve um aumento dos gastos – custos de
transporte, prestações da casa, impostos, entre outros. Segundo Valladares (1978), já
em 1974, cerca de 94% dos mutuários encontravam-se inadimplentes.
No final dos anos 70, com a política de remoções do governo federal já
extinta, houve uma retomada dos movimentos de moradores de favelas, seguindo uma
tendência que se verificava em boa parte do país, de intensificação da vida
associativa. Em 1979, surgiu na Rocinha o Movimento de Reorganização da
Associação de Moradores (Mora). De acordo com um dos articuladores, para
conseguir reativar a associação e afastar o interventor, “nós fizemos tudo: pichamos
parede, soltamos folhetos, fizemos reuniões... e jogamos fundo naquela coisa que a
gente achava errado que era a Associação de Moradores ser administrada por uma
pessoa que não morava na Rocinha.” (PANDOLFI e GRYNSZPAN, 2002).
No mesmo período, a Faferj – variação da Fafeg, após a fusão entre os estados
da Guanabara e do Rio de Janeiro – retomou as atividades, e também foi fundada a
Federação das Associações de Moradores e Entidades Afins do Rio de Janeiro
(Famerj), que reunia associações de moradores da classe média. No entanto, enquanto
as reivindicações da classe média versavam em torno de questões ecológicas, de
impostos e outras taxas urbanas, a questão central dos moradores de favelas era a
mesma de sempre: a luta pela implantação dos serviços públicos básicos no território
da favela.
Com o fim da ditadura e o início do processo de redemocratização do país,
voltou-se a discutir alternativas para o “problema favela”. Embora as favelas tenham
continuado a ser estigmatizadas como áreas “marginais” e redutos da violência
urbana, diversos fatores fizeram com que a erradicação em massa deixasse de ser
vista como a “solução final” (MACHADO DA SILVA, 2002). O fracasso do projeto
remocionista, a favelização das grandes e médias cidades, atingindo, inclusive, os
próprios conjuntos habitacionais, e as mudanças na cultura política decorrentes de
pressões dos movimentos sociais foram a tônica dessa transformação (GONDIM,
2012).
O governo Brizola (1983-1986) tornou-se um marco dessa mudança de
inflexão, que será melhor analisada no próximo capítulo. Não à toa, muitos moradores
de favelas ainda hoje lembram de Brizola em uma relação de admiração e
agradecimento. A gestão do trabalhista procurou estabelecer um novo padrão na
relação da polícia com os moradores, criou diversos programas cujo objetivo era a
urbanização das favelas, além de ter estabelecido diálogo com as associações de
moradores.
11“Uma solução correta para o problema das favelas” in Revista Agente, ano 3, fev. de 1969. (pp 18-
20)
Um outro eixo frequente no discurso pró-remoção era a defesa de um local de
moradia limpo, sadio, correto, alinhado com os padrões higiênicos vigentes. Cabia ao
Estado realizar essa intervenção e prover um espaço adequado e redentor aos
moradores das favelas. Foucault em “A História da Sexualidade – A vontade de
saber” discorre sobre o momento em que o poder se incumbiu da vida e não mais da
morte dos indivíduos; ou seja, do momento em que o poder passa a compreender toda
a superfície que se estende do corpo à população, mediante o jogo das tecnologias da
disciplina e da regulamentação.
Foucault (1988) aponta que a partir da época clássica, o Ocidente conheceu uma
transformação profunda dos mecanismos de poder, tornando-se um poder destinado a
produzir forças, a fazê-las crescer e a ordená-las mais do que barrá-las, dobrá-las ou
destruí-las. Ou seja, a função do poder passa a ser a de gerir a vida e a ordenar-se em
função de seus reclamos.
Essa forma de poder – de gerir a vida - desenvolveu-se em duas formas
principais, de acordo com Foucault: 1) o corpo como máquina – “no seu
adestramento, na ampliação de suas aptidões, na extorsão de suas forças, no
crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, na sua integração em sistemas de
controle eficazes e econômicos” (FOUCAULT, 1988, p. 151), em resumo, um poder
disciplinar; e 2) corpo-espécie – “transpassados pela mecânica do ser vivo e como
suporte dos processos biológicos: a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o
nível de saúde, a duração da vida, a longevidade” (FOUCAULT, 1988, p. 152), ou
seja, uma biopolítica da população. Enquanto o primeiro polo desenvolve-se em torno
das disciplinas do corpo, o segundo versa sobre as regulações da população.
A função mais elevada do poder agora é investir sobre a vida, de cima a baixo, e
não mais matar. Todavia, esse poder terá a necessidade de mecanismos contínuos,
reguladores e corretivos. Foucault (1988) indica que para isso é necessário distribuir
os vivos em um domínio de valor e utilidade. Cabe ao poder dessa natureza a
qualificação, a medição, a avaliação, a hierarquização; não se faz mais necessário
traçar uma linha para separar os súditos obedientes dos inimigos do soberano, a nova
forma de poder que administra a vida opera distribuições em torno da norma. Ou,
ainda, “não quero dizer que a lei se apague ou que as instituições de justiça tendem a
desaparecer; mas que a lei funciona cada vez mais como norma e que a instituição
judiciária se integra cada vez mais num contínuo de aparelhos (médicos,
administrativos, etc) cujas funções são sobretudo reguladoras” (FOUCAULT, 1988,
p.157).
Foucault retoma a máxima de Aristóteles, que permaneceu durante milênios,
que diz que o homem é um animal vivo, capaz de existência política; já o homem
moderno é um animal, em cuja política, sua vida de ser vivo está em questão.
Traçando um paralelo com as políticas remocionistas, podemos enxergar o
poder público exercendo uma função parecida com essa de administrar a vida: seja
pela condição de risco – como veremos mais a frente, várias favelas localizam-se em
área de risco -, ou pela precariedade da moradia, cabe ao poder garantir a vida
daqueles indivíduos. A vida, enquanto o modelo conhecido como o correto, nas
condições consideradas adequadas de higiene, de empregabilidade, de relação com os
outros. Ou seja, o poder legitima a intervenção no espaço e nos corpos dos indivíduos
que moram nas favelas por meio da remoção, já que a sua função primordial é a
gestão da vida.
O prefeito Henrique Dodsworth desejava com a instalação dos Parques
Proletários, por exemplo, recuperar o indivíduo, deformado pela promiscuidade
macabra da favela. Em paralelo, o poder público criou uma comissão coordenada por
um médico, o Dr. Victor Tavares Moura, que em 1941 entregou um relatório com
sugestões de ações de ordem preventiva e de cunho realizador. As preventivas seriam:
a) controle da entrada no Rio de Janeiro de indivíduos de baixa condição social; b)
recambio de indivíduos de tal condição para os estados de origem; c) fiscalização
severa quanto às leis que proíbem a construção e reconstrução de casebres; d)
promoção de forte campanha de reeducação social entre os moradores das favelas,
para corrigir hábitos pessoais de uns e incentivar a escolha de melhor moradia. As
ações de cunho realizador seriam: “casas provisórias, pelo menos do tipo mínimo
permitido pela lei, serão imediatamente construídas e para elas transferidos os
moradores dos casebres, tendo em vista as suas condições de saúde, de trabalho e, de
defesa contra a varíola, difteria, doenças do grupo colitrífico, além de inspeção
torácica e apurações de conduta social”. (NASCIMENTO, 2008).
Outra iniciativa do poder público foi a realização de concursos com entrega de
prêmios para a casa mais higiênica e agradável, dentro dos Parques Proletários, com
votação feita pelos próprios moradores, onde a casa premiada recebia uma placa com
a letra E, significando eficiência. As visitadoras sociais seguiam promovendo
inquéritos individuais e familiares que visavam conhecer de perto a realidade e a
demanda dos moradores, para propor um plano de transformação:
(...) esse Serviço conseguiu junto às famílias e seus filhos resultados
extraordinários quanto à educação higiênica; frequência escolar, espírito de
cooperação e disciplina. As visitadoras sociais, penetrando nos lares,
conseguiram modificar, de um modo geral, o ambiente doméstico. 12
Nos conjuntos habitacionais construídos pela DHP havia, por exemplo, uma
preocupação com o controle, com o intuito de que nada escapasse das linhas gerais
dos planos previamente organizados. Essa questão refletia diretamente no tema da
propriedade dos apartamentos, assunto que dominou boa parte das discussões sobre
habitação popular construída pelo poder público. Os partidários da compra defendiam
que a propriedade significaria a consolidação das riquezas geradas pelo trabalho. Os
defensores do aluguel, como o grupo diretor do DHP, acreditavam que esta seria uma
forma verdadeiramente viável de garantir o acesso da população à moradia Além
disso, havia um aspecto, ainda que velado, fundamental: o da possibilidade de que as
casas permanecessem sob a administração pública, ou seja, sob o controle daqueles
que idealizaram os planos habitacionais e urbanísticos. Dessa forma, o indivíduo
deveria submeter-se e seguir as regras e normas impostas pelo poder público
(NASCIMENTO, 2008).
Esse mesmo bio-poder, ainda segundo Foucault (1988), foi elemento
indispensável para o desenvolvimento do capitalismo, que foi viabilizado e garantido
às custas “da inserção controlada dos corpos no aparelho de produção e por meio de
um ajustamento dos fenômenos de população aos processos econômicos”
(FOUCAULT, 1988, p.153).
Entretanto, ao realizar a remoção desses indivíduos, mesmo que justificada
pelas questões de higiene e controle sobre a vida, o poder público acabou por
marginalizá-los, ao os colocar em espaços distantes do centro, como vimos na questão
dos mitos da marginalidade. Ou seja, ainda que para uma parcela da sociedade e,
sobretudo, para o poder público a remoção esteja justificada como um exercício de
administração da vida, ela gera uma exclusão desses indivíduos dos círculos
produtivos e do sistema em pleno funcionamento da cidade.
Foucault (1988) nos lembra que:
foi a vida, muito mais que o direito, que se tornou o objeto das lutas
políticas, ainda que estas últimas se formulem através de afirmações de
direito. O “direito” à vida, ao corpo, à saúde, à felicidade, à satisfação das
necessidades, o “direito, acima de todas as opressões ou “alienações”, de
encontrar o que se é e tudo o que se pode ser, esse “direito” tão
A remoção era defendida pelo governo como a melhor “solução” para todos. A
nova moradia seria um espaço devidamente ajustado às regras morais e higiênicas que
a sociedade ditava, sendo assim, uma medida em prol do bem comum. Tal discurso
também aparece em diversas das matérias analisadas, como essa do Correio da
Manhã de 13 de maio de 1961 – que, aliás, apresenta uma outra justificativa para a
remoção da favela do Esqueleto:
Visando melhorar as condições higiênicas do Maracanã, bem como
permitir maior escoamento das águas e evitar enchentes, a favela do
Esqueleto será transferida para Vigário Geral. A determinação é do
governador do estado, depois de ter mantido entendimentos a respeito com
o presidente Jânio Quadros.
14 Diário da Manhã, Favela do Esqueleto vai desaparecer: Vila Kennedy espera os novos donos,
26/06/1965
conhecimento das condições de vida no local, que possui posto médico,
núcleo escolar e quatro linhas de ônibus. Em breve será construída também
uma praça de esportes.
Nos três jornais – Correio da Manhã, Última Hora e Diário Carioca – nota-se
que a fala do morador da favela aparece em poucas matérias. Na maioria delas, leva-
se em consideração o discurso oficial do governo, seja por meio da fala de
engenheiros, técnicos ou da declaração de algum político. Em mais de um caso, o
jornal abre espaço para um representante do poder público demonstrar tristeza com a
remoção da comunidade. É o caso da matéria de 26 de junho de 1965 do Diário
Carioca em que é ouvido o delegado do posto policial da comunidade:
Segundo o delegado Valdir Veríssimo, o pessoal da favela é leal e amigo.
(...) O delegado Valdir Veríssimo, que está no lugar do falecido Perpétuo,
fundador da delegacia local, também é muito querido pelos favelados,
especialmente por distribuir balas, roupas e sapatos, às crianças que sempre
o cercam. Está triste com a remoção dos favelados, pois assim a delegacia
não terá razão de ser. Outro problema o aflige. Poderia ser transferido e já
está com saudades das crianças.
15 Diário Carioca, Favelado do Esqueleto vai morar longe sem discussão, 18/10/1964
16 O presidente da FAFEG, Etevaldo Justino de Oliveira, foi detido por três dias no DOPS, após a
tentativa de organizar um plebiscito para que a população da Favela do Esqueleto se posicionasse sobre
a remoção. Depois da detenção, o movimento de resistência cessou na comunidade, terminando com a
remoção para Vila Kennedy - daqueles que poderiam pagar as prestações -, e para o Parque Proletário
Nova Holanda – os que não tinham renda nem condições financeiras de arcar com a compra de um
imóvel popular.
da Associação dos Amigos da Vila São Jorge – forma como a favela do Esqueleto
também era conhecida – declarou:
Sinceramente vejo muito mal essa mudança, pois a maioria dos
trabalhadores da favela têm seus empregos próximos a ela e sofrerão
profundas mudanças em suas vidas. Não podemos esquecer que a Vila
Kennedy fica em Bangu, distante da cidade, e que a nossa ida para lá
representará grande ônus financeiro devido ao elevado preço das
passagens.
18 “Apinhado em obras, Eduardo Paes diz que até Dilma o inveja”, Folha de S. Paulo, 14/10/2012.
19 Lançado em abril de 2011, o site registra as mudanças em curso na cidade por meio de vídeos,
fotografias, animações 3D, documentários e reportagens. De acordo com Paes, “o projeto mostra o
legado da transformação urbana que o Rio de Janeiro constrói”.
20 “Eduardo Paes diz que rua rejeita políticos, não partidos”, Folha de S. Paulo, 29/06/2013.
Para justificar a necessidade e a urgência das transformações em curso, a atual
gestão evoca a ideia de abandono da cidade nos governos anteriores. É comum no
discurso do prefeito Eduardo Paes e dos seus secretários a imagem de uma Cidade
que foi Maravilhosa e desencontrou-se no meio do caminho. A construção narrativa
dessa cidade “perdida” é marcada por três eixos, que teriam configurado o
esvaziamento da cidade: econômico, de oportunidades e, principalmente, da sua
imagem. Além disso, o Rio de Janeiro abandonado pode ser caracterizado por dois
acontecimentos principais: a “favelização” e a expansão da violência
(MAGALHÃES, 2013). Dessa forma, como afirmado pelo próprio prefeito Eduardo
Paes, as Olimpíadas aparecem como uma grande oportunidade para o poder público
vencer esse período de abandono e deixar um legado – físico e moral – para a cidade.
23 Lançado em 2007 pelo governo federal, o Programa de Aceleração do Crescimento tem como
objetivo promover o planejamento e a execução de grandes obras de infraestrutura social, urbana,
logística e energética. O PAC das Comunidades seria responsável pelas ações de urbanização e
infraestrutura em comunidades carentes, como a construção de unidades habitacionais, escolas, sistema
de água e esgoto, alargamento de vias, etc.
24 A candidatura foi entregue em setembro de 2007, e a primeira avaliação do Comitê Olímpico
25 Os projetos elaborados por 22 escritórios e vencedores de um concurso não foram postos em prática
e até hoje aguardam a assinatura do contrato com a prefeitura. Diante disso, o IAB abandonou o
convênio
do programa “Cada Família, um Lote” de regularização fundiária marcou a ruptura
com o paradigma das remoções, inaugurando outro: o da integração à cidade dita
“formal” (CUNHA, 2012).
No mesmo período, mais de 245 mil moradores de favelas passaram a ter
acesso a inéditas redes de esgoto, cerca de cem comunidades receberam eletrificação
pública, por intermédio do programa de “Eletrificação de Favelas” da Light, a coleta
de lixo passou a ser organizada, no âmbito do programa “Gari Comunitário”, por uma
série de iniciativas que articularam diversas secretarias de governo em nível estadual
e municipal (CAVALCANTI, M., 2009).
A prefeitura também implementou programas de urbanização das favelas:
Mutirão e Mutirão Remunerado. Na prática, o projeto significava o repasse de verba
pública para um processo que os próprios moradores de favela já desenvolviam: o de
melhorias em conjunto das suas casas e dos espaços públicos (CAVALCANTI, M.,
2013).
No entanto, a opção de Brizola pela não remoção foi alvo de críticas de parte
da sociedade. Em fevereiro de 1988, após fortes chuvas que causaram grandes
estragos, deslizamentos e mortes pela cidade, o tema voltou aos jornais, como se vê
no Jornal do Brasil, onde o nome de Carlos Lacerda é lembrado como o único político
que deu um legítimo tratamento à questão (BRUM, 2013):
As últimas medidas concretas tomadas para conter a inundação das favelas
estão ligadas aos nomes de Sandra Cavalcanti e Carlos Lacerda, no início
dos anos 60. Ambos pagaram um preço alto por isso. A mais mesquinha
exploração eleitoreira transformou-os em “inimigos do povo”, em
defensores de uma postura “elitista”. Vê se agora quem são os inimigos do
povo: os que se limitam a pastorear as favelas enquanto elas não vêm
abaixo – currais eleitorais agora sujos de sangue e soterrados pela lama. A
favela é o retrato do absoluto desinteresse em criar novas possibilidades
urbanísticas por parte dos políticos que querem a remuneração imediata e
popularidade demagógica. A favela não tem lei, não tem escola, não paga
imposto (...) Onde estão os projetos de remanejamento, de criação de
novas zonas urbanizadas? Onde está o mínimo de fiscalização que impeça
a contínua expansão desse câncer que vai estrangulando o Rio?26
Quando Eduardo Paes, atual prefeito do Rio de Janeiro, assumiu em 2009, ele
declarou que enfrentaria o “tabu” da favela28. Magalhães (2013) afirma que o assunto
remoção passou por três momentos distintos na gestão de Eduardo Paes. O primeiro
seria a reintrodução do termo no campo de debate constituído em torno do “problema
favela”. Nesse sentido, no começo do primeiro mandato, tanto o prefeito quanto
secretários utilizavam a expressão, associando à ideia de “tabu” para justificar o caos
e a desordem da cidade. Era, ainda, uma tentativa de legitimar o assunto, que tinha
sido alvo de diversas críticas negativas, especialmente a partir da redemocratização.
No começo de 2010, a prefeitura chegou a estabelecer um plano de remoção integral
de 119 favelas até o final de 2012, por estarem em locais de risco de deslizamento ou
de inundação, de proteção ambiental ou destinados a logradouros públicos. A lista
incluía as comunidades do Horto (Jardim Botânico), Indiana (Tijuca), CCPL
(Benfica), Metrô (Maracanã), Vila Autódromo (Barra) e Vila Taboinha (Vargem
Grande).29 A meta fazia parte do primeiro plano estratégico da prefeitura, que previa a
redução em 3,5% do total da área de favelas do Rio de Janeiro até 2012. 30
28 “Nas camadas mais pobres da população, a desordem se manifesta ainda mais intensamente, até
porque é justificada pela demagogia geral. A favela tornou-se, assim, um símbolo desse jogo de
conivência, do "tudo pode" no Rio.” Eduardo Paes in “Chega de demagogia”, Veja, 20/05/2009.
29 “Prefeitura removerá 119 favelas até o fim de 2012”, O Globo, 07/01/2010.
30 “Plano estratégico: Paes quer reduzir em 3,5% total da área de favelas até 2012”, O Globo,
05/12/2009.
31 Tribunal de Contas do Município do Rio de Janeiro, 2009, p.6 e 34.
O segundo momento foi marcado pelas chuvas de janeiro e abril de 2010,
permitindo que tanto a expressão, quanto a ação, fossem novamente acionadas para
justificar a intervenção da Prefeitura nesses territórios. A remoção apareceria
ressignificada como uma agenda positiva, sendo defendida por editoriais e matérias
de diversos jornais. Uma reportagem da revista Veja questionou, inclusive, as obras
de urbanização realizadas pelo poder público nas favelas:
A tempestade que se abateu sobre o Rio de Janeiro na madrugada da
última terça-feira, com fúria e persistência recordes, escancarou a
gravidade de um problema há décadas negligenciado: o incentivo oficial
para a ocupação de encostas. Não fosse o risco de vida embutido, a
“indústria da favelização” poderia até ser vista como um programa social.
Não é (...) Em nenhum outro lugar do país o populismo foi tão decisivo
para que as favelas tomassem as dimensões de hoje. Nos anos 80, o
governador Leonel Brizola chegou a incentivar abertamente a ocupação
dos morros. 32
32 “Rio... do descaso, da demagogia, do populismo e das vítimas de suas águas”, Revista Veja, ed 2160,
14/04/2010.
33 Foram registradas mais de 250 mortes no estado. No município do Rio, foram 65 vítimas, sendo 30
Globo, 22/04/2011.
distribuídas”. Esse conceito tornou-se a linha-mestre de comunicação da prefeitura –
um dos slogans atuais é “uma cidade mais justa, desenvolvida e integrada” - e
também está presente em veículos jornalísticos, por meio de discursos como o do
“beneficiado”.
No escopo do programa estavam as comunidades consideradas “passíveis de
urbanização”, e as que não se encaixassem nessa categoria estariam nos planos de
remoção para conjuntos habitacionais do Minha Casa, Minha Vida ou de compra
assistida. As intervenções do Morar Carioca, como dito anteriormente, buscavam, em
alguns casos, alterar a morfologia local, com obras de impacto e do campo da
mobilidade como um teleférico ou uma grande via.
A construção narrativa da atual administração municipal para justificar as
intervenções, e as consequentes remoções, passa pela combinação dos argumentos de
integração e legado. Entretanto, essa forma de atuação nas favelas vem suscitando
uma série de críticas de atores sociais diretamente envolvidos nas situações de
remoção, como os moradores, setores do Ministério Público e da Defensoria Pública,
além de ONGs, órgãos internacionais como a Anistia Internacional e coletivos como o
Comitê Popular Rio Copa e Olimpíadas.
O Comitê Popular Rio Copa e Olimpíadas é formado por pesquisadores de
diversas instituições acadêmicas como o IPPUR/UFRJ, NEPHU/UFF, membros da
sociedade e lideranças populares. Desde o Fórum Social Urbano, em março de 2010,
esse grupo se reúne para: “discutir estratégias para enfrentar o modelo excludente de
política urbana implementada no Rio de Janeiro, motivada pela construção da imagem
de cidade global a partir da realização de megaeventos esportivos” 35.
Uma das atividades do Comitê foi, seguindo a iniciativa da Articulação
Nacional dos Comitês Populares da Copa e das Olimpíadas, o lançamento do “Dossiê
Megaeventos e Violações dos Direitos Humanos no Rio de Janeiro” em março de
2012. O documento incorporou também os resultados da missão realizada em maio de
2011, pela relatoria do direito à cidade da plataforma Dhesca36, centrada nos mesmos
temas. Segundo o grupo:
O objetivo do dossiê é chamar a atenção das autoridades públicas da
sociedade brasileira, das organizações de defesa dos direitos humanos, no
Brasil e no exterior, para o verdadeiro legado do projeto olímpico no Rio
de Janeiro: uma cidade mais desigual, com a exclusão de milhares de
35 Dossiê Megaeventos e Violações dos Direitos Humanos no Rio de Janeiro, maio de 2013, p. 113.
36 Plataforma brasileira de direitos humanos, econômicos, sociais, culturais e ambientais.
famílias e a destruição de comunidades inteiras, além da apropriação da
maior parte dos benefícios por poucos agentes econômicos e sociais. 37
37 Ibidem, p. 8.
De acordo com a prefeitura, 662 famílias foram reassentadas, sendo 108 no
condomínio do Minha Casa, Minha Vida, em Cosmos, 246 no Mangueira I e 216 no
Mangueira II. As 70 famílias que tiveram atraso na aprovação dos documentos pela
Caixa Econômica Federal foram reassentadas em um último estágio em apartamentos
do Bairro Carioca, em Triagem. Uma das principais acusações do dossiê é a de que a
prefeitura realizou demolições das casas dos primeiros moradores a saírem do Metrô
Mangueira, enquanto os outros seguiam na comunidade, vivendo durante um ano em
meio aos escombros, no aguardo do Mangueira II. A prefeitura diz que não realizou
demolições, mas, sim, descaracterizações para impedir novas ocupações.
O dossiê afirma que as primeiras famílias que aceitaram a ida para Cosmos –
bairro localizado a cerca de 70 quilômetros da favela – tomaram a decisão sob pressão
de ficarem sem moradia. Os demais começaram um movimento de resistência e, por
meio dele, conquistaram a construção do Mangueira I e II. A prefeitura confirma que
os prédios ao lado da comunidade não estavam previstos inicialmente.
É interessante notar que a administração municipal alega uma preocupação
com novas ocupações para justificar a descaracterização das casas. Porém, esses
lugares vazios foram novamente ocupados por um grupo de sem-teto. De acordo com
o dossiê, o prefeito Eduardo Paes chegou a visitar a comunidade no final de 2013,
prometendo que os novos ocupantes receberiam atendimento e seriam incluídos no
aluguel social. No começo de janeiro de 2014, entretanto, a prefeitura iniciou uma
operação de demolição total da comunidade, para dar lugar ao polo automotivo.
Segundo o dossiê, a ação foi realizada sem aviso prévio e foram demolidos 12
barracos. Os “invasores” realizaram uma série de protestos, reivindicando assistência
da Prefeitura e direito à uma nova moradia. No fim do conflito, um acordo
estabelecido entre a subprefeitura da zona Norte, a SMH, a Defensoria Pública e a
OAB garantiu o cadastramento de 39 famílias que provaram viver de aluguel no local
antes das demolições. No momento, as famílias recebem o aluguel social e aguardam
imóveis do Minha Casa, Minha Vida.
Mariana Cavalcanti (2013) argumenta que a política das ocupações é uma
complexa junção de diferentes lógicas organizativas que tornam visíveis as estruturas
de informalidade historicamente constituídas na cidade, conectadas, nas últimas
décadas, com o controle territorial exercido pelo tráfico de drogas. Em São Paulo, as
ocupações de prédios abandonados são realizadas por movimentos sociais, amparadas
por elementos jurídicos, como o Estatuto da Cidade. No Rio de Janeiro, as ocupações
são apresentadas por seus próprios ocupantes como “invasões”, sendo muitas vezes
realizadas ou organizadas com a ajuda de traficantes.
No Morro da Providência, considerada a favela mais antiga do Brasil, as
remoções aconteceriam por dois motivos: intervenções do programa Morar Carioca e
moradias em áreas de risco. Segundo o dossiê, “o problema central, conforme relato
dos moradores, é a ausência de informação e do envolvimento da comunidade na
discussão do projeto, que ninguém conhece direito, e que implica em diversas
remoções ou reassentamentos”.38 A prefeitura repetiu na favela a prática de marcação
das casas com tinta spray, com a inscrição da sigla SMH seguida de uma numeração.
A previsão inicial da prefeitura era de remover 832 famílias (438 por risco e
317 por obras), o que equivaleria a mais da metade da comunidade. Os números
foram revistos e, no momento da produção do dossiê de 2013, a prefeitura previa a
remoção de 671 famílias (380 por risco e 291 por obras). Desse total, 28 famílias já
haviam sido removidas por conta do teleférico, algumas foram reassentadas em
imóveis do Minha Casa, Minha Vida, na Zona Oeste, e outras foram indenizadas.
O dossiê também questiona a área de risco determinada pela prefeitura, pois
“foi descaracterizado por contra-laudo geotécnico, que conclui um número muito
inferior de casas vulneráveis e que a maioria dos problemas seria facilmente
solucionável com simples obras de contenção”. 39
Em outubro de 2012, foi expedida a decisão de paralisação das obras do
teleférico, baseada em uma ação cautelar da defensoria pública, em função da
ausência do estudo prévio de impacto Ambiental (eiA), do relatório de impacto
Ambiental (rima) e do Estudo de Impacto de Vizinhança, bem como da não
informação aos moradores do projeto, do cronograma e das remoções previstas. De
acordo com o dossiê, a ação também visava paralisar a demolição de casas de famílias
já removidas, em função dos problemas gerados pela não retirada dos entulhos. A
prefeitura afirma que a decisão da juíza proibia qualquer movimentação nos canteiros,
impossibilitando o fim das demolições e dos entulhos.
Segundo o dossiê, após as manifestações contra a remoção, intensificadas
pelos protestos de junho de 2013, e em decorrência da impossibilidade das
demolições pela decisão liminar da defensoria pública, a prefeitura anunciou uma
38 Dossiê Megaeventos e Violações dos Direitos Humanos no Rio de Janeiro, 2013, p. 27.
39 Idem.
abertura de diálogo com os moradores, e a redução das remoções a cerca de 60 casas
em situação de risco.
Atualmente, a administração municipal declara que “após uma série de críticas
e reclamações dos moradores ao Morar Carioca, o prefeito decidiu reapresentar o
projeto à comunidade e discutir com ela o que será feito”. 40 O dossiê afirma que a
prefeitura ainda não disponibilizou dados oficiais e que o órgão público vem
exercendo grande pressão para que os moradores façam acordos, por meio da
assinatura de termo de ajustamento de conduta, aceitando a demolição de suas casas.
Já a prefeitura diz que o número final de remoções ainda não foi definido e depende
de um acordo que está em andamento entre prefeitura, defensoria pública e
moradores.
A ocupação da área da Vila Autódromo, na zona Oeste do Rio, foi iniciada em
meados da década de 80 e parte dos moradores possui título de posse expedido pelo
programa “Cada Família, Um Lote”. A Vila Autódromo tem um histórico de
resistência popular contra tentativas de remoção desde a década de 1990, incluindo a
preparação para os Jogos Panamericanos de 2007.
Em 2011, o secretário de Habitação do município esteve na comunidade
informando a necessidade de remoção por exigência do Comitê Olímpico
Internacional, para viabilizar a construção das instalações do Parque Olímpico. Em
novembro do mesmo ano, a prefeitura iniciou a marcação das casas com a sigla SMH
e o cadastramento dos moradores, com a oferta de pagamento do aluguel social até
que o imóvel do Minha Casa, Minha Vida ficasse pronto. De acordo com a prefeitura,
no dossiê de candidatura, o projeto do parque prevê que, até 2030,
equipamentos esportivos e novos empreendimentos formarão um novo
bairro residencial – de tamanho equivalente ao bairro do Leme. Será um
bairro aberto, ao contrário da maioria dos condomínios da Barra da Tijuca,
e atendido com duas novas linhas de BRT, a Transolímpica e Transcarioca.
Após os Jogos, 40,48% da área será destinada a empreendimentos privados
(consórcio vencedor da licitação da Parceria Público-Privada, PPP),
36,14% serão de áreas públicas e 23,6% de lotes públicos edificáveis. 41
40
Email recebido da assessoria de imprensa da Secretaria Municipal de Habitação em 9/09/2013.
41 Email recebido da assessoria de imprensa da Secretaria Municipal de Habitação em 30/10/2013.
concessionária. O Comitê afirma que “assim, a retirada de uma comunidade de baixa
renda, consolidada, tem sido colocada como prioridade pela Prefeitura Municipal do
Rio de Janeiro para viabilizar mais um projeto de mercantilização da cidade”. 42
A Defensoria Pública do Estado entrou com uma liminar pedindo a suspensão
do processo de licitação do Parque Olímpico, até que a prefeitura esclarecesse que o
direito à moradia das famílias estaria garantido. No processo, a prefeitura afirmou que
a comunidade não precisaria ser removida em função do Parque Olímpico, mas para
as obras dos BRTs Transcarioca e Transolímpica. De acordo com o dossiê do Comitê
“o relatório ambiental simplificado do BRT Transcarioca mostra que a via não passa
pelas mediações da Vila Autódromo. Na audiência pública do EI A-RIMA da
Transolímpica, a Prefeitura afirmou que não há projeto para a área da comunidade”.
43
A prefeitura declara que inicialmente o plano era retirar as 600 famílias que
moram na área e admite, ainda que internamente 44 , que o processo foi, de fato,
bastante confuso. As justificativas para a retirada da comunidade foram diversas:
recuo do BRT, faixa lagunar, Parque Olímpico, entre outras.
Um grupo de moradores da comunidade chegou a elaborar o Plano Popular da
Vila Autódromo, em conjunto com pesquisadores universitários (ETTERN/IPPUR e
NEPHU/UFF), para demonstrar que a urbanização integrada ao Parque Olímpico seria
possível, com qualidade urbana e habitacional superior ao MCMV e com um custo
muito inferior à remoção. O prefeito Eduardo Paes, em audiência com moradores, em
agosto de 2012, se comprometeu a realizar uma avaliação do plano e responder em 45
dias. Nenhum retorno foi dado. 45
Segundo o dossiê, em decorrência das manifestações de junho de 2013, em
agosto do mesmo ano, o prefeito Eduardo Paes reconheceu que houve equívocos no
tratamento dado à Vila Autódromo e afirmou estar disposto a abrir uma rodada de
negociações baseada na permanência da comunidade e sua consequente urbanização.
Ainda de acordo com o dossiê, foram realizadas nove reuniões, envolvendo
secretários municipais de habitação, meio ambiente, urbanismo, procuradoria geral do
município e empresa olímpica municipal. As negociações, no entanto, “foram
42 Dossiê Megaeventos e Violações dos Direitos Humanos no Rio de Janeiro, 2013, p. 25.
43 Dossiê Megaeventos e Violações dos Direitos Humanos no Rio de Janeiro, 2013, p. 25.
44 Diferente do caso da Providência, não houve declarações públicas de Paes assumindo problemas na
condução do processo.
45 Dossiê Megaeventos e Violações dos Direitos Humanos no Rio de Janeiro, 2013, p. 25.
marcadas pela intransigência por parte dos representantes da prefeitura, que não
reconheceram e não deram resposta às propostas apresentadas pela comunidade com
assessoria das duas universidades (UFF e UFRJ)”. 46
O dossiê segue afirmando que, em setembro de 2013, a prefeitura interrompeu
unilateralmente as negociações, apresentando um projeto que mantinha a remoção de,
pelo menos, 70% dos domicílios, e sem deixar claro qual seria o destino das 150 casas
que não seriam atingidas diretamente pelas obras. Durante o processo de negociação,
o dossiê diz que “a prefeitura não forneceu nenhuma informação solicitada pelos
moradores, nem sequer o estudo de impacto ambiental relativo à implantação do
parque olímpico e, interrompidas as negociações, passou a assediar os moradores
diariamente com ameaças e informações desencontradas”. 47
Em outubro de 2013, o prefeito organizou uma reunião com os moradores da
Vila Autódromo no Riocentro e informou que 285 famílias precisariam deixar a
comunidade, para obras de canalização dos rios e de duplicação das Avenidas
Salvador Allende e Abelardo Bueno, em área ao lado do Parque Olímpico. De acordo
com nota divulgada pela assessoria de imprensa da prefeitura:
Os moradores seriam reassentados em apartamentos do programa Minha
Casa, Minha Vida no Parque Carioca, condomínio localizado a 1,3 km da
favela, que terá apartamentos de dois e três quartos, área verde, clube com
piscina, espaço gourmet, creche e espaço comercial. 48
46 Dossiê Megaeventos e Violações dos Direitos Humanos no Rio de Janeiro, 2014, p. 27.
47 Dossiê Megaeventos e Violações dos Direitos Humanos no Rio de Janeiro, 2014, p. 28.
48 Nota da assessoria de imprensa da prefeitura em 19/03/2014.
49 Reunião com subprefeitos em novembro de 2013.
A mudança para o Parque Carioca, prevista para março de 2014, foi turbulenta
e envolveu uma liminar do NUTH em favor dos moradores que defendiam a
permanência na comunidade, impedindo a demolição das casas até que fosse
apresentado o projeto de urbanização e a lista dos moradores que aceitaram sair. O
dossiê afirma que o defensor público geral, em atitude ilegal, solicitou a derrubada da
liminar, permitindo, assim, o início das demolições, alegando a defesa dos moradores
que desejavam sair. Com as demolições e a derrubada das árvores da comunidade,
aumentou a pressão psicológica sobre os que estavam dispostos a permanecer na
comunidade.
2.4.1. Análise da cobertura midiática dos casos de remoção por meio de frames
Para analisar os casos de remoção das comunidades Metrô Mangueira,
Providência e Vila Autódromo, este trabalho parte de análises qualitativas e
quantitativas de três formatos diferentes: telejornalismo tradicional, vídeos produzidos
por ONGs e mídia alternativa, vídeos produzidos pelo canal oficial do prefeito
Eduardo Paes. O recorte temporal escolhido foi de 2009 a 2014, período em que Paes
está à frente da prefeitura do Rio.
50 O site está disponível para todos aqueles que trabalham na comunicação da prefeitura.
(Globo); SBT Rio, (SBT); RJ Notícias (RedeTV!); Jornal da Globonews, Jornal das
Dez, Cidades e Soluções (Globonews); Repórter Rio (TV Brasil); CNT Jornal (CNT).
Na seleção da mídia alternativa e ONGs foi adotado o seguinte critério: os
vídeos listados pela curadoria do Comitê51 e os com o maior número de views no
Youtube. A busca foi orientada pelas mesmas palavras-chave do telejornalismo.
Foram selecionados vídeos dos seguintes veículos: Witness, Jornal A Nova
Democracia, RioOnWatch, FIP RJ, Justiça Global, Linha de Frente Audiovisual,
Coletivo Mariachi, Entre o céu e a favela, Espocc, Comcatrj, Anistia Internacional,
Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM), TV Tatuzaroio e Favela Não Se
Cala.
A análise dos vídeos oficiais foi feita a partir do material disponibilizado no
canal do prefeito Eduardo Paes no Youtube.
A escolha desse objeto de análise se justifica, pois, entre outras questões
discutidas mais a frente, a mídia cumpre uma importante função de agenda-setting: “a
imprensa pode não ser bem-sucedida em dizer o que as pessoas devem pensar, mas
tem um sucesso surpreendente em dizer no que devem pensar” (McCombs and Shaw
– The Agenda-Setting Function of the Mass Media, p.177 in Katherine Beckett).
A análise dos vídeos foi inspirada na metodologia utilizada por Katherine
Beckett em “Making Crime Pay” (1999). Os elementos discursivos que compõem
diferentes frames são organizados em o que Gamson chama de “pacotes (packages)
interpretativos”, que dão sentido e significado a problemas sociais, tais como crime,
no caso de Beckett. No centro de cada “pacote” está o argumento central, que dá
sentido a uma série de eventos e fenômenos relativos ao assunto em questão. Os
“pacotes” também são caracterizados por um conjunto de “elementos-chave” que
embasam o argumento central e servem de símbolo para o “pacote” inteiro. Beckett
sinaliza que os “pacotes” são descrições “ pure types”, eles não aparecem
exatamente assim nos produtos midiáticos, são “frames” conceituais para analisar o
conteúdo e o significado de produtos midiáticos (BECKETT, 1999, p. 65-66).
51Integrantes do Comitê Popular Rio Copa e Olimpíadas realizaram, durante 18 meses, uma pesquisa
em busca de denúncias feitas em vídeos sobre remoções no Rio de Janeiro, em decorrência da Copa e
dos Jogos Olímpicos. Foram analisados 114 vídeos de 21 comunidades. O resultado está disponível
em: http://rio.portalpopulardacopa.org.br/wp-content/uploads/Dossie_Curadoria-
Comite_Popular_RJ.pdf
Para a análise, assistiram-se e decuparam-se todos os vídeos produzidos pelos
telejornais, pelas mídias alternativas-ONGs e pelo canal oficial do prefeito Eduardo
Paes. Em seguida, foram identificados os “elementos-chave” presentes nas histórias e
estabelecidos quais seriam os elementos discursivos centrais para, finalmente, definir
os “pacotes”. A partir dessa definição, foram classificados os objetos pelos “pacotes”
disponíveis – a maioria dos vídeos possui “elementos-chave” associados a mais de um
“pacote”. Seguindo a metodologia de Beckett, separei os vídeos entre aqueles que
possuíam depoimento de agente do governo, conteúdo cedido pelo governo – nota ou
material gráfico -, depoimento de morador e depoimento de representante jurídico.
A divisão dos vídeos com depoimento ou conteúdo cedido pelo governo é
importante, pois, como aponta Beckett, as assessorias de imprensa oficiais estão cada
vez mais sofisticadas e servem de base para muitas histórias. O conteúdo cedido é,
muitas vezes, publicado apenas com checagens primárias sobre a veracidade.
No entanto, as versões oficiais não são as únicas capazes de influenciar as
representações midiáticas. Movimentos sociais e a mídia alternativa produzem
conteúdo que desafia as perspectivas dominantes e criam frames alternativos.
A análise desse material está associada à uma investigação sobre a forma
como o sofrimento aparece nas narrativas em questão. Em Distant Suffering,
Boltanski diz que a esfera pública é o espaço onde se discute causas e nada promove
mais a formação de uma causa do que o espetáculo do sofrimento. É por meio desse
sofrimento dos infelizes que pessoas, antes indiferentes, se relacionam com uma
causa. Boltanski relembra que na literatura sobre a constituição da esfera pública,
particularmente quando vista em relação à formação da concepção moderna do
jornalismo, é geralmente aceito que deve existir uma conexão entre presença de um
observador externo e afastado, assim como uma demanda por neutralidade,
objetividade, no sentido de imparcialidade (BOLTANSKI, 1999, p.30).
A emergência das causas altera essa lógica da esfera pública, de não ser
apenas voltada para o ideal de uma objetividade imparcial, e as considerações sobre o
sofrimento modificam as condições de um debate, gerando uma urgência, que implica
o comprometimento das pessoas com a causa (BOLTANSKI, 1999, p.30). E é a partir
dessa premissa, da utilização do sofrimento no debate de uma causa – no caso, a
remoção – que se orientará a análise desse trabalho.
Partindo da análise dos vídeos, serão discutidas quais são as diferenças de
frames e “pacotes” entre a imprensa tradicional e a alternativa e de que forma a causa
e, por vezes, o sofrimento são representados. Foram identificados 9 “pacotes” e, em
seguida, descreveremos o argumento central de cada um deles. A descrição contará
com exemplos de histórias, palavras-chave e quem é o “emissor” responsável pelo
“pacote”.
Perda – centrado na figura da vítima e dos depoimentos concedidos, esse
“pacote” estrutura-se na ideia de perda de algum elemento quando se determina a
remoção. Esse elemento aparece ora como os bens físicos – casa, móveis -, ora como
relação com o espaço e a relação com os outros moradores. Esse argumento foi
encontrado em quase todas as narrativas da mídia alternativa-ONGs e também figura
na imprensa tradicional.
A ideia de perda também incorpora o conceito de “luta”, uma vez que a
narrativa dos moradores enfoca as “batalhas” e o “trabalho” necessário para
conquistar aquilo que estão ameaçados de perder. Zaluar afirma que esses termos
expressam uma distância e diferenciação deliberada com relação ao modo de vida dos
“bandidos”, cuja vida é fácil, pois “não trabalham” (Zaluar, 1985, pp.132-172).
Cavalcanti (2009) apresenta a ideia de “luta” como um efeito teleológico, que produz
os moradores como sujeitos de sua própria história, e é constitutiva de uma ética que
valoriza o trabalho duro e a perseverança. Mesmo com as batalhas diárias, cria-se uma
ideia de que o futuro será melhor do que o passado, já que é possível alcançar
pequenas vitórias (Cavalcanti, 2009, p. 74). Com a remoção, os moradores sentem
uma perda dupla: do que foi construído no passado e desse futuro possível.
Histórias de indivíduos que construíram a própria casa, que nasceram na
comunidade e não querem sair por conta da relação com o espaço, e que evocam
vizinhos e parentes são exemplos desse “pacote”. Nas palavras-chave, encontramos a
já citada “luta”, a “ perda”, o tempo em que estão na comunidade – “cheguei aqui e
era só mato”, “nasci e fui criado aqui” -, “minha família inteira mora aqui”,
“pedacinho de chão”, “raízes”. O principal responsável por esse “pacote” é o morador
ameaçado de remoção. Seguem alguns exemplos de falas de moradores:
Moradora - “Ninguém é contra melhorias para a favela, apenas os moradores não querem abandonar
suas casas, por valor nenhum. Quer dizer, eles criaram raízes aqui, têm filhos, escola, tudo. Como é que
vão embora agora?”52 (Morro da Providência).
Morador - “Há 22 anos. Pago IPTU desde 87. A gente não quer sair, a gente quer ficar aqui. Porque
aqui é nosso pé de chão, aqui é nossa vida, uma vida inteira que a gente tem aqui” 53 (Vila Autódromo).
(Vila Autódromo).
62 Witness, 20/06/2011.
63 Anistia Internacional, 20/04/2011.
64 Jornal do Rio, Band, 16/11/2012.
65 RJ TV, TV Globo, 21/12/2012.
66 RJ TV, TV Globo, 08/10/2013.
moradores afirmam que o poder público não apresenta motivos que justifiquem a
remoção, não esclarece as dúvidas e não faz ofertas claras. O argumento desse frame
está em mais da metade dos vídeos da imprensa alternativa e também aparece, com
menos força, nos da imprensa tradicional.
Na narrativa construída, a prefeitura aparece como um órgão isolado e
distante, que se recusa a negociar com os moradores. É interessante notar uma
mudança de discurso do prefeito Eduardo Paes e de outros agentes da prefeitura –
secretários e subprefeitos – a partir do segundo semestre de 2013. O termo “diálogo”
surge em boa parte das falas desses personagens e, no canal oficial da administração
pública no Youtube, encontra-se uma série de vídeos de reuniões com moradores a
partir desse período. O principal emissor é o morador, por meio dos vídeos-denúncia
da mídia alternativa. As palavras-chave são: “diálogo”, “projeto”, “conhecer”, “ligar”,
“informar”. Exemplos:
Francisco Horta (defensor público) – “A única coisa que o morador quer, na verdade, é conhecer o
projeto, é poder conversar com o poder público, um diálogo no mesmo patamar, sobre como esse
projeto vai impactar sobre sua vida”67 (Providência).
Morador – “A gente fica nessa incerteza, nesse sofrimento e não chega uma autoridade para dizer
assim: isso vai acontecer de uma forma legal, assim assim”68 (Vila Autódromo).
Moradora – “Ele (Eduardo Paes) não teve coragem nem de vir aqui avisar a gente que ia sair da favela.
A favela a gente sabe que já vai sair, que ia derrubar. Ele tinha que, pelo menos, ter avisado antes: olha,
tal dia, tal hora, isso vai ser derrubado”69 (Metrô Mangueira).
Moradora – “Olha, nunca procuraram ouvir a palavra do morador. Nós tivemos diretamente com a
visita do prefeito fazendo inauguração em praça pública do Morar Carioca. Então eles mostraram um
filminho, olha aqui vai ter um plano inclinado, aqui vai ter um teleférico, aqui vai ter isso e aquilo, mas
não perguntaram a nossa opinião. (...) Não nos mostraram nenhuma maquete, nenhum projeto desse
desenvolvimento que eles dizem ser e ponto final” 70 (Providência).
Pierre Batiste (secretario de Habitação) - Esse processo foi feito todo com muito diálogo, muito
respeito por parte da prefeitura. A partir de hoje as mudanças serão feitas de forma escalonada e
podemos verificar a alegria deles”71 (Vila Autódromo).
METRÔ VILA
MANGUEIRA AUTÓDROMO PROVIDÊNCIA TOTAL
Imprensa tradicional 12 20 14 46
Imprensa alternativa 10 9 8 27
Eduardo Paes 1 3 1 5
TOTAL 23 32 23
METRÔ VILA
MANGUEIRA AUTÓDROMO PROVIDÊNCIA TOTAL
Imprensa tradicional 8 7 2 17
Imprensa alternativa 1 4 2 7
Eduardo Paes 0 1 0 1
TOTAL 9 12 4
METRÔ VILA
MANGUEIRA AUTÓDROMO PROVIDÊNCIA TOTAL %
Perda 9 10 6 25 40%
Reparação 12 11 3 26 42%
Megaeventos/especulação 3 7 3 13 21%
Progresso 7 13 12 32 52%
Falta de diálogo 8 3 5 16 26%
Poder público omisso 2 8 11 21 34%
Trauma / sofrimento 5 3 1 9 14%
Violação Direitos Humanos 2 2 3%
Trânsito 8 8 13%
METRÔ VILA
MANGUEIRA AUTÓDROMO PROVIDÊNCIA TOTAL %
Perda 7 7 8 22 78%
Reparação 8 6 4 18 64%
Megaeventos/especulação 6 6 6 18 64%
Progresso 2 2 7%
Falta de diálogo 3 5 7 15 53%
Poder público omisso 2 4 3 9 32%
Trauma / sofrimento 7 5 2 14 50%
Violação Direitos Humanos 7 5 3 15 53%
Trânsito 0 0 0 0 0%
Divisão dos vídeos pelo “pacote” predominante – imprensa tradicional:
METRÔ VILA
MANGUEIRA AUTÓDROMO PROVIDÊNCIA
Perda 3 4 5
Reparação 4 9 0
Megaeventos/especulação 2 1 0
Progresso 2 4 6
Falta de diálogo 3 2 1
Poder público omisso 0 2 4
Trauma / sofrimento 0 1 0
Violação Direitos Humanos 0 0 0
Trânsito 3 0 0
METRÔ VILA
MANGUEIRA AUTÓDROMO PROVIDÊNCIA
Perda 4 4 3
Reparação 2 2 1
Megaeventos/especulação 0 2 0
Progresso 0 0 0
Falta de diálogo 0 1 4
Poder público omisso 0 0 0
Trauma / sofrimento 0 0 0
Violação Direitos Humanos 4 1 0
Trânsito 0 0 0
86
Realização do congresso dos atingidos pela Copa e Olimpíadas em maio de 2014.
sujeito, mas a revelação íntima é capaz de deixar claro o impacto do evento (FASSIN,
2007, p. 73). Como personagem central da narrativa da imprensa alternativa-ONGs, o
removido pode ser o vencido, mas o relato da experiência em questão acaba por se
impor contra a versão dos vencedores, pois diz melhor sobre a verdade do que a
“experiência da história” (KOSELLECK apud FASSIN, 2007).
Ainda que a vítima seja a mesma – o morador ameaçado de remoção -, o
frame realizado pela imprensa alternativa-ONGs é diferente da imprensa tradicional.
A análise dos “pacotes” fornece diversas pistas nesse sentido, mas é válido avaliar de
que maneira essas histórias são contadas. Boltanski sugere que é impossível descrever
cenas de sofrimento com imparcialidade e objetividade, mesmo que atualmente essa
seja a melhor forma de garantir a seriedade de uma descrição que aspira ao status de
verdade (BOLTANSKI, 1999, pp.23-24).
Para Boltanski (1999) existem dois diferentes estados em que o sujeito pode
existir na esfera pública: o do não comprometimento e o do comprometimento. Para o
comprometimento ser válido ele deve ser puramente moral, ou seja, deve estar livre
de qualquer outro interesse e, consequentemente, de quaisquer laços comunitários
anteriores. Como o ator é uma figura qualificada, ao menos pelo o que faz, e
envolvido com ações anteriores em curso, somente o espectador, por definição um
observador inativo, pode assumir atos de comprometimento. O compromisso só é
realmente autêntico quando marca um momento em que os indivíduos incertos
assumem uma posição.
Dessa forma, o momento crucial é o do comprometimento entendido como a
passagem do espectador para o ator (BOLTANSKI, 1999, p.31). Nos vídeos da
imprensa alternativa-ONGs, é possível notar esse engajamento ativo daquele que,
inicialmente, era um observador do sofrimento dos ameaçados de remoção, e se torna
um engajado da causa, um ator na defesa daqueles sofredores.
O formato da esfera pública, que pressupõe a imparcialidade e a objetividade,
apresenta um problema para o comprometimento: o sofrimento é particular, portanto
não é possível apenas descrever a “cena como ela é”. Segundo Boltanski (1999), essa
tensão surge de exigências contraditórias. Por um lado, há uma exigência de
imparcialidade e uma distinção entre o momento da observação, isto é, do
conhecimento, e o momento da ação. Essa exigência aponta para uma possibilidade
de generalização. Por outro, há uma exigência de investimento afetivo, sentimental ou
emocional, que é necessário para despertar o comprometimento político
(BOLTANSKI, 1999, pp.32-33).
A melhor maneira para despertar a piedade, envolver o espectador e chamá-lo
a agir é enfocando o sofrimento de casos particulares. A imprensa alternativa-ONGs e
até mesmo a imprensa tradicional utilizam desse recurso constantemente, ao optarem
por histórias individuais de sofrimento, gerando pena e, por vezes, convencendo o
espectador a se engajar na causa. No entanto, Boltanski (1999) questiona até que
ponto essa narrativa em detalhes é apropriada, uma vez que o desejo de despertar
piedade entra em conflito com a demanda contrária de respeito pelo sofredor. Ou seja,
uma descrição “carregada em tintas” pode ser compreendida como redutora, já que o
sujeito está totalmente definido pelo seu sofrimento, e ainda serve de exibição para
aqueles que não sofrem (BOLTANSKI, 1999, p.33).
A denúncia, de acordo com Boltanski (1999), pode ser criticada por ser um
substituto vazio da ação. O comprometimento não é genuíno, está expresso somente
em palavras, o que não custa nada e só serve para apaziguar as questões morais do
espectador, sem diminuir o sofrimento da vítima em questão. Dois argumentos
compõem essa crítica: o sacrifício de quem faz a denúncia e a efetividade dela para
quem sofre.
A denúncia é considerada mais respeitável se ela representa algum risco ou
custo para a pessoa que a faz, caso de regimes totalitários, por exemplo. Em uma
sociedade democrática, a denúncia é frequentemente denegrida, ao mesmo tempo em
que a chance de ser eficaz é maior, já que a difusão é mais fácil e as autoridades
políticas deveriam ser mais sensíveis à opinião pública.
A outra forma de criticar a denúncia é bastante usada pelo prefeito Eduardo
Paes, por exemplo, que considera hipócrita a “fala vazia” dos denunciantes, uma vez
que a indignação não pode ser autêntica, já que ele não é realmente afetado pelo
sofrimento da vítima. Ou seja, o denunciante não vivencia, efetivamente, a mesma
vida do sofredor, não possui as mesmas experiências. Por não ter nada em comum
com o objeto da denúncia, o denunciante pode ainda ser acusado de
“irresponsabilidade”, no sentido de que suas acusações não custaram nada, mas
podem provocar represálias e reflexos na vida do sofredor que ele pretendia defender.
Eduardo Paes, ressaltando as origens burguesas dos denunciantes, frequentemente usa
esse argumento ao afirmar que a cobertura e influência de ONGs atrapalha, por vezes,
a possibilidade de melhoria de vida dos removidos, como no caso atual da Vila
Autódromo.
Assim, cabe ao poder público construir narrativas que legitimem o sofrimento
causado pelas políticas públicas atuais. Como pudemos ver, a gestão atual tem
trabalhado nesse sentido de forma dupla: na inserção da favela como trademark do
Rio de Janeiro dos Jogos Olímpicos de 2016, assim como, nas justificativas e ações
que procuram legitimar e corroborar a nova onda remocionista. No próximo capítulo,
veremos um comparativo dessas construções narrativas dos anos 60 – favela do
Esqueleto – e a atualidade – Metrô Mangueira, Providência e Vila Autódromo.
3. O SOFRIMENTO NAS NARRATIVAS SOBRE AS REMOÇÕES DOS
ANOS 60 E DA ATUALIDADE
Dentre os diversos desafios vividos pelo Rio de Janeiro ao postular a vaga para
sediar as Olimpíadas de 2016, está a busca pela forma correta de lidar com as favelas
da cidade. Há um consenso entre os governos municipais, federais e setores
empresariais de que é preciso domesticar esse espaço, tornando-a um trademark da
própria cidade, como afirma Beatriz Jaguaribe (2010). Contudo, como visto nos
capítulos anteriores, há o que podemos chamar de conflito de orientação, uma vez que
processos de remoção seguem acontecendo por todo o Rio de Janeiro.
No dossiê entregue aos órgãos responsáveis pela seleção, o tópico “Riscos
naturais em potencial” abordava a histórica ocupação desordenada dos morros e das
encostas do Rio de Janeiro: “A expansão urbana em muitos casos invadiu o
ecossistema das planícies e das encostas, aumentando os riscos de deslizamentos, de
assoreamento dos sistemas de água, e de inundações causadas pelas chuvas de verão
(de dezembro a março).” (BRASIL, 2009 a, p.86 apud LIMA, 2013). Essa
preocupação, motivou remoções na cidade, antes mesmo do resultado final da escolha
do Rio de Janeiro. Em outro momento do dossiê, a defesa da construção do Centro
Olímpico de Treinamento expõe que a “região se beneficiará de ganhos consideráveis
durante o desenvolvimento do Parque Olímpico do Rio. A transferência das
acomodações ilegais nas margens da Lagoa de Jacarepaguá para um novo local e a
integração de um parque ajudarão a renovação e o acesso do público nessa região
protegida” (BRASIL, 2009 a, p.100 apud LIMA, 2013). Por fim, há uma defesa mais
explícita do dossiê em prol das remoções, indicando um possível posicionamento do
poder público e das entidades organizadoras frente à questão favela e o transcurso dos
Jogos Olímpicos:
Quando for necessário o assentamento de famílias, especialmente daquelas
provenientes de comunidades carentes sujeitas aos projetos de
regeneração, serão oferecidas casas populares, o que irá melhorar
consideravelmente a sua qualidade de vida (...) Os Jogos Rio 2016 darão a
oportunidade de revitalizar regiões da cidade e melhorar a estrutura de
comunidades específicas ao redor da cidade (BRASIL, 2009 a, p.144 apud
LIMA, 2013).
Com a escolha do Rio de Janeiro para sediar as Olimpíadas de 2016, o poder
público e o comitê organizador viram-se diante de um impasse: como ressignificar as
representações negativas da favela. Como observado no capítulo anterior, tanto
Estado quanto Prefeitura vêm se empenhando para legitimar, perante toda a
população, a realização dos Jogos e para executar mudanças estruturais nas favelas –
como, por exemplo, com as UPPs e o programa Morar Carioca. Todavia, aqui
estamos abordando uma questão de imagem, ou, como convencionou-se nomear, de
branding. Jaguaribe (2011) questiona quando e como as cidades reinventam seus
repertórios culturais e seu patrimônio simbólico. De acordo com a autora, o acúmulo
de capital simbólico de uma cidade depende, de uma gama de fatores distintos tais
como expressões culturais sedimentadas pelo legado histórico, a força econômica e
política da cidade, o investimento e a presença do estado, a dimensão global que a
metrópole em questão possui, assim como a atuação e o investimento do capital,
capaz de reinventar as cidades como arenas de consumo e espetáculo. Jaguaribe
(2011) aponta, ainda, para a relevância de megaeventos como as Olimpíadas como
propulsores da implementação de uma agenda de remodelações urbanas.
O branding, segundo Jaguaribe (2011), seria constituído por uma série de
intensos investimentos publicitários, capazes de transformar uma cidade em cidade
competitiva, tornando-a visível e identificável no imaginário global. O branding
urbano baseia-se na invenção e ação conjunta entre autoridades administrativas e
públicas, empresários do setor privado, arquitetos, urbanistas e agências de
publicidade, que fazem uso de uma variedade de repertórios e representações, cujo
objetivo final é a maximização de lucros e recursos. Dessa forma, o ponto mais
importante do processo de branding é vender uma imagem da cidade para que ela
possa receber recursos, investimentos, turismo e ganhos econômicos.
Heinrich (2008, p.95 apud CAMARGO, 2011, p.38) afirma que:
Cidades estão competindo na “liga” regional, nacional, continental ou
mundial. Cidades pequenas competem na região, ou, às vezes, no país. Rio
de Janeiro, São Paulo, Cidade do México, Nova York, Paris, Londres, todas
jogam na “liga mundial” (...) Cidades estão competindo para atrair turistas
globais, o investimento global e a classe criativa global. Para enfrentar essa
competição, as cidades grandes e pequenas investem numa identidade
coerente e numa política de imagem.
88Além dos já conhecidos passeios de jipe em locais como a Rocinha e o Vidigal, as favelas hoje
abrigam festas de classe media, possuem concursos próprios como o Comer & Beber da Paz,
promovido pela revista Veja Rio, além dos bares que integram o Guia di Boteco, por exemplo, o Bar
do Davi, no Chapéu Mangueira.
turistas que vêm ao Rio de Janeiro, em busca do cenário tropical, da praia, do samba,
do sexo e, agora, pela experiência e aventura representada pelos favela tours
(JAGUARIBE, 2007).
Bentes (2014), em artigo na Revista Carbono, também discorre sobre esse
processo de turistificação pelo qual as favelas passam hoje. De acordo com a autora,
as favelas vivem situação semelhante a da cidades globais, que combinam elementos
da “urbanização turística” e a “urbanização para o turismo”, políticas urbanas de
intervenções territoriais em locais potencialmente turísticos. No caso do Rio de
Janeiro, como analisado no capítulo 2, essas intervenções do poder público são
precedidas e acompanhadas por intervenções da alçada da segurança pública, como a
instalação das UPPs.
O sucesso ou fracasso das ações de marketing urbano dependem da aprovação
popular em relação às estratégias econômico-territoriais adotadas pelo poder público.
No caso carioca, trabalha-se na difusão da ideia de que todos os benefícios gerados
pelos Jogos Olímpicos serão usufruídos pela sociedade, já que o custo dessa
preparação é alto e dividido por todos. Assim, o branding – envolvendo tanto a
comunicação social quanto a produção de imagens – tem sido peça fundamental nesse
processo de intervenções e transformações da cidade. A inserção da favela no
branding do Rio de Janeiro faz parte da estratégia cuja ideia principal é a de
universalização dos benefícios que, no fundo, sabe-se que é impossível de ser
vivenciado por todos. Eduardo Paes, em entrevista à BBC (CARNEIRO, 2012, apud
LIMA, 2013, p.106), adota esse discurso:
Quando chegarmos a 2016, as mudanças farão do Rio uma melhor cidade
para se morar e trabalhar, mais igualitária e mais gentil com sua população.
Você vê as favelas. Qual é a razão de alguém ir parar no alto de um morro,
em um lugar perigoso, em uma casa horrível e pequena? Isso acontece
porque se ele for viver em uma casa melhor um pouco mais afastada, ele
vai precisar de três ou quatro horas (de transporte) para chegar lá. Então
seriam seis horas de ônibus todo dia. Melhor viver mais perto de onde você
trabalha. Quando falamos que vamos aumentar (a capacidade do transporte
e massa) de 15% da população para 60%, o que estamos dizendo é que
haverá uma boa alternativa para que pessoas pobres não precisem morar ao
lado do trabalho, eles podem morar um pouco mais longe, em lugares
melhores e mais seguros, e chegar rapidamente ao trabalho. É assim que a
cidade vai melhorar [...] O que está sendo feito na cidade é principalmente
para o carioca médio, o carioca mais pobre”. (PAES apud CARNEIRO,
2012).
Vaz (2015) defende ser necessária a universalização da regra moral para que o
sofrimento de estranhos seja entendido com uma questão política. É importante
também que essa regra moral não seja concebida como uma prova prévia, ou seja, que
não haja uma distinção entre não-sofredores e sofredores nos moldes de grandes e
pequenos ou morais e imorais. Por fim, é preciso que o sofrimento seja compreendido
como algo evitável.
Para refletirmos sobre a política da piedade, Vaz (2015) retoma a análise de
Hannah Arendt, em que a autora afirma que foi a Revolução Francesa quem iniciou
tal política, por meio do espetáculo do sofrimento de estranhos movendo à ação
política todo aquele que não partilha da condição de sofredor (Arendt, p. 75 apud
VAZ). A partir disso, passou-se a demandar da política o reconhecimento do
sofrimento de outros e a incitação à ação coletiva para mudar as estruturas sociais
causadoras daquele sofrimento.
De acordo com Vaz (2015), a Revolução Francesa proporcionou o surgimento
desse tipo de política, pois, desde o começo, na própria declaração dos direitos
humanos, a regra moral está universalizada. O sofrimento de estranhos também é
entendido como uma questão de política, uma vez que está diretamente conectado
89O artigo analisa dois eventos importantes na história da cidade: a Batalha do Rio, em 1948,
empreendida por Carlos Lacerda, defendendo a remoção das comunidades; a Guerra do Rio,
em 2007, processo de invasão e uma sequência de conflitos entre a polícia e o tráfico de
drogas no Complexo do Alemão.
com as características da sociedade. O sofrimento que o indivíduo vivencia não é
conferido pelas suas dotações intelectuais e morais, mas sim as suas posições na
estrutura social orientam, desde o nascimento, o grau de felicidade ou infelicidade do
sujeito. Dessa forma, apenas a Revolução, com a capacidade de alterar a configuração
da sociedade, poderia inferir e minimizar o sofrimento dos indivíduos. Vaz (2015)
relembra, ainda, que ao longo dos séculos XIX e XX, filósofos e cientistas sociais
questionaram incessantemente toda tentativa de fundar uma dominação social na
ordem do ser, do que é imutável e natural.
Vaz (2015), por fim, analisa a forma como o modelo de compaixão na pós-
modernidade se insere na política da vítima virtual, que tende a substituir a política da
piedade. Segundo o autor, quatro características macro podem ser extraídas. A
primeira, os indivíduos não são mais constituídos pelos meios de comunicação como
os felizes que têm a obrigação de, enquanto observadores, mobilizarem-se
politicamente para acabar com o sofrimento dos sofredores; a nova estratégia de
identificação entre vítima e audiência, faz com que os indivíduos sejam constituídos
como aqueles que também poderiam e podem se tornar vítimas de um evento
semelhante ao narrado. A segunda linha, coloca o direito à felicidade do indivíduo
como principal ideal, e a partir de onde pode ser aferido e julgado qualquer tipo de
injustiça que lhe acometa. A terceira diz respeito a uma escolha de certos tipos de
sofrimento, ou seja, privilegia-se aqueles que melhor expressam as falhas desse novo
ideal de justiça. Por fim, a quarta característica tem como função explicar por que os
sofrimentos acontecem, cabendo a culpa aos agentes que teriam a capacidade e o
poder de evitar tais sofrimentos, mas não o fazem por imoralidade ou incompetência.
A partir desses conceitos brevemente expostos, pretende-se analisar como o
poder público justificou e legitimou o sofrimento provocado pelos processos de
remoção – tanto nos anos 60 com a remoção da favela do Esqueleto, quanto nas
remoções atuais das favelas Vila Autódromo, Metrô Mangueira e Providência. Tendo
por base a análise das construções narrativas midiáticas, a pesquisa procura investigar
quais foram as diferentes legitimações históricas para políticas públicas causadoras de
sofrimento.
3.4 METODOLOGIA
Tendo por base as matérias de jornal impresso e televisivo veiculadas nos anos
60 e na atualidade, a respeito das remoções da favela do Esqueleto, Vila Autódromo,
Metrô Mangueira e Providência, pretende-se analisar de forma comparativa as
narrativas de sofrimento presentes nos textos e imagens. Assim, procura-se entender
de que maneira o governo legitima o sofrimento causado pelas políticas públicas
implementadas – sejam elas um viaduto ou as transformações para sediar um
megaevento, como as Olimpíadas.
Partindo do pressuposto exposto por Vaz (2015), de que, ainda que seja
comum, ao analisar a subjetividade presente nos meios de comunicação, creditar um
caráter natural às emoções - ou seja, essas seriam dotadas de forma e sentido
independente da cultura -, é interessante pensar na possibilidade das emoções
implicarem crenças que as definem e as suscitam. Dessa forma, para a análise
comparativa, seguiremos pelo caminho que aponta que “não existe raciocínio sem
emoção que lhe esteja atrelada, imiscuída; inversamente, não existe emoção sem
raciocínio” (VAZ, 2015, p.?).
Foram analisadas 64 matérias dos jornais Diário Carioca, Correio da Manhã e
Última Hora, publicadas no período entre 1960 e 1969, cobrindo a remoção da favela
do Esqueleto, localizada no local da atual Radial Oeste; 62 matérias dos telejornais
tradicionais e 28 da mídia alternativa no período entre 2009 e 2014, cobrindo a
remoção das favelas Metrô Mangueira, Providência e Vila Autódromo. Para a análise,
foram identificados possíveis lugares de comparação entre essas experiências,
baseados no sofrimento dos indivíduos e a representação da favela, no contexto das
remoções.
90O Dicionário Stanford de Filosofia apresenta uma breve análise do conceito de progresso ao longo
dos séculos, desde Aristóteles e Platão, passando por Hegel, Comte, até autores contemporâneos, como
Diamond e Wright. Segundo o dicionário, as doutrinas de progresso surgiram no século XVIII, na
forma, a remoção da favela do Esqueleto estava legitimada por essa busca pelo
progresso. A matéria do Diário Carioca de 13 de julho de 1962, aborda a chegada dos
tratores na favela:
Progresso cortando a favela – o progresso do Estado, atormentando o
tráfego de veículos, obrigou a construção de novas estradas. A Radial-
Oeste corta, bem pelo centro, a favela do Esqueleto.
Europa, sintetizando o otimismo da época. A crença no progresso floresceu no século XIX, enquanto
no século XX, muitos pensadores passaram a recusar a ideia de progresso, após eventos traumáticos
como a Segunda Guerra Mundial e as bombas atômicas. O dicionário aponta, ainda, que a noção de
progresso está intimamente ligada às condições históricas em que ela está sendo analisada, o que altera
o conceito de bem-estar e, consequentemente, o que representaria o progresso.
92 RJ TV 1a edição, 21/01/2014
93 SBT Rio, 21/01/2014
época, podemos dizer que as narrativas dos anos 60 são marcadas pelo conceito
marxista de “luta de classes”, havendo, em diversos momentos, referências ao embate
entre os mais pobres e os mais ricos, e uma demanda de que o governo reparasse essas
distorções socioeconômicas. Um exemplo está na matéria de 21 de dezembro de 1960
do jornal Última Hora:
FAVELADOS EM PÉ DE GUERRA CONTRA AMEAÇA DE
REMOÇÃO – (..) Alguns operários, em conversa com a reportagem de
UH, declararam que seus barracos „são frutos de anos e anos de trabalho,
de suor‟.
- A grande maioria de nossos casebres custa mais de 80 mil cruzeiros e,
constantemente, realizamos melhorias, empregando nossas economias.
Fique certo o sr. Governador que com operário não se brinca e muito
menos com famílias de operários.
(...) Ontem, alguns emissários do palácio Guanabara compareceram à
favela com o objetivo de “doutrinar” os moradores para que aceitem a
expulsão sem lutar. Os argumentos usados pelos funcionários do governo
eram de que aquele local estava reservado para industrialização. “Onde
iremos morar? O governo nos dará casas?” essas perguntas dos favelados
ficaram sem resposta por parte dos emissários de Lacerda.
(...) Outros, revoltados, concluíam “somos trabalhadores honestos e temos
direito ao menos a um teto. Precisamos é de um posto médico, policial e
escolas. Não admitiremos a invasão dos nossos lares”.
Em outra matéria do mesmo veículo, cujo título era “Favelados do Esqueleto vão ser
todos removidos”94 , há uma foto de crianças vestidas e sorrindo para câmera, em
volta de caixotes de feira. A legenda diz: “Bem nutridos no Esqueleto – crianças bem-
nutridas em um meio de miséria deixarão seus berços de caixotes „Valle do Oro‟ para
morar nos parques proletários”. O Diário Carioca também retrata e enfatiza o
Um vídeo realizado pela ONG Justiça Global, aborda a remoção da favela do Metrô
Mangueira, no começo de 2014, e os moradores denunciam:
- Foi desumano o que eles fizeram. A moça acabou de sair de dentro de
casa, a máquina vem e derrubou. Nosso dinheiro é lixo. Porque a gente
pode ser pobre, mas a gente contribui com as coisas.
- Ele (prefeito Eduardo Paes) não teve coragem nem de vir aqui avisar a
gente que ia sair da favela. A favela, a gente já sabe que vai sair, que ia
derrubar. Ele tinha que pelo menos ter avisado antes, olha, tal dia, tal hora,
isso aqui vai ser derrubado.
1) Diário Carioca de 14/08/1965 – “Esqueleto ainda tem um mês de saudade” / legenda: “Adeus
à favela – a menina olha a favela em que nasceu, um mês antes da partida”
2) Correio da Manhã de 24/01/1962 – “Iniciada transferência dos favelados do Esqueleto” /
legenda: “mudança do Esqueleto – favelados satisfeitos”
3) Diário Carioca de 7/01/1961 – “Esqueleto será cortado” / legenda: “Esqueleto será cortado – a favela
do Esqueleto vai ser cortada pela Avenida Radial-Oeste conforme mostra a foto. Mas os favelados não
querem sair. Mesmo com indenização. A avenida parou”
4) Diário Carioca de 13/07/1961 – “Ameaçam desmontar o Esqueleto: apreensão” / legenda: “Barracos
na reta – para que possam prosseguir as obras da Radial-Oeste, centenas de barracos do Esqueleto irão
ao chão. A foto mostra onde passará a nova avenida”
5) Diário Carioca de 3/09/1962 – “Trecho da Radial vai ser inaugurado dia 4” / legenda: “Esqueleto é
moldura – os operários trabalharam ativamente, durante seis meses, a fim de concluir o novo trecho da
Radial Oeste, o qual passará pela favela do Esqueleto, contrastando, assim, com o cenário futurista,
enquanto, ao fundo, aparecerá o estádio do Maracanã.”
A foto que ilustra a matéria apresenta crianças brincando no chão de terra, com a
legenda: “Crianças, curiosas ou não – as crianças, como é natural, demonstram grande
curiosidade pelo novo ambiente em que passarão a viver, na Vila Kennedy. Existem,
também, as que, pela tenra idade (como o menino da foto) não tomam conhecimento
da alteração que a mudança trará àquela coletividade marginalizada.”
Enquanto isso, as matérias atuais, como observado no capítulo 2, dão grande
ênfase aos eixos de “perda” e “ reparação” – perda material e emocional; desejo de
reparação material e imaterial. Assim, faz sentido que os personagens escolhidos
primordialmente sejam aqueles que têm maior envolvimento com a comunidade, que
participaram da fundação da mesma, ou seja, aqueles que encarnam o discurso de
perda e direito de reparação. Podemos destacar algumas falas de moradores da Vila
Autódromo, Metrô Mangueira e Providência, respectivamente:
a) moradora: Muita preocupação, porque na idade que eu tou, ne (83
anos). Eu acho uma pena tirar a gente daqui. Vão botar a gente num lugar
que a gente não conhece, porque eu não conheço o Rio de Janeiro. Só vejo
na televisão. A comunidade daqui é tão maravilhosa que eu sou avó desse
povo todo. 99
b) moradora: Já faz quase 30 anos que moro aqui. Agora eles
tomaram minha casa, dizem que eu não tenho direito a nada, que o chão é
deles, a casa que é minha. Eu não posso levar a casa nas costas, então vou-
me embora. Vou ficar esperando o que der. 100
98 Diário Carioca, Favela do Esqueleto vai desaparecer: Vila Kennedy espera os novos donos,
26/06/1965
99 SBT Rio (SBT), 06/10/2009
100 Balanço Geral (Record), 2/11/2010
c) morador: Querem que a gente saia, mas a gente não pediu para sair
daqui. Aqui foi toda minha vida construída aqui. É suor, trabalho, estudo,
meus filhos que criei aqui. Sair se for prum local melhor pra criar meus
filhos, tudo bem, mas assim, não. 101
3.5.7 Estrutura social causa sofrimento dos removidos x Estrutura social motiva
a remoção, mas o agente causador do sofrimento é o Estado
Em ambos os casos de remoção – favela do Esqueleto nos anos 60 e as favelas
analisadas na atualidade – a estrutura social, no caso, o capitalismo, integra as
narrativas de sofrimento. Entretanto, enquanto na política de piedade, a estrutura
social é a causadora do sofrimento dos removidos; na sociedade atual, o capitalismo
motiva a remoção, mas quem causa sofrimento é o Estado.
Vaz (2015) aponta que, na política da piedade, ao construírem o sofrimento de
forma despersonalizada e generalizada, com o capitalismo como causa, limita-se a
capacidade de indignação, pois ela estaria endereçada tanto a entes abstratos, quanto
ao próprio indivíduo que experimenta a compaixão, através da responsabilidade
indireta.
No contemporâneo, há diversas referências à estrutura social nas críticas
endereçadas ao processo de remoção como gentrificação, remoção branca, os próprios
megaeventos; contudo, o responsável pelos moradores das favelas sofrerem é o
Estado, pois acredita-se que ele poderia intervir e evitar essas situações, enquanto, na
realidade, nada é feito e os indivíduos sofrem ao terem que sair de suas casas.
102 Essa mesma frase foi utilizada pelo prefeito Eduardo Paes em novembro de 2011, ao comentar os
transtornos causados pelas obras na região portuária da cidade. Contudo, na ocasião Paes foi bastante
criticado, pois, as intervenções vêm afetando diariamente a felicidade dos cidadãos, situação mais
importante do que o bem comum. (Eduardo Paes compara transtorno de obras na cidade com marido
que espera mulher se arrumar, Extra, 8/11/2011).
“políticos” tornados quase classe na retórica política brasileira, são os responsáveis
pelos sofrimentos coletivos, uma vez que são incompetentes, corruptos e só pensam
no próprio bem.
No Rio de Janeiro dos dias atuais, as mudanças urbanísticas têm sido pautadas
– ou, senão, motivadas - pelos megaeventos que acontecerão na cidade. A diferença
de dimensão temporal é que um evento tem, necessariamente, começo, meio e fim;
isto quer dizer, ele atravessa a cidade e passa. A Prefeitura tem procurado construir
um discurso que legitime essa dimensão temporal, uma vez que está dado que o
evento acontecerá, mas a legitimidade dessas transformações não está garantida. Essa
BECKETT, Katherine. Making crime pay: law and order in contemporary American
politics. New York: Oxford University Press, 2007.
CARVALHO, Bruno. A favela e sua hora. Piauí, Rio de Janeiro, v.67, abr/2012.
GEIGER, Pedro; ARUEIRA, Luís Roberto; ALEM, Adriano. Mapa social da cidade
do Rio de Janeiro. Coleção Estudos Cariocas, Rio de Janeiro, n. 20010801,
agosto/2001.
KAMINSKI, Rosane. O Brasil urbano no cinema dos anos 1960: Curitiba melancólica
em Lance Maior, de Sylvio Back (1968). Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v.25,
n.49, p. 88-111, janeiro-junho/2012.
LAFETÁ, João Luiz. 1930 - A crítica e o modernismo. São Paulo: Duas Cidades,
1974.
NETO, Simplício. Rocinha 77 vs Vida Nova sem Favela: uma leitura axiográfica dos
“documentários de favela”. Revista Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual,
Rio de Janeiro, ano 3, ed.5, junho/2014.
OLIVEIRA, Lucia Lippi de. (org.). Cidade: história e desafios. Rio de Janeiro: Ed.
Fundação Getúlio Vargas, 2002, 295 p.
PINTO, Carlos Eduardo. Governo Lacerda versus Cinema Novo: a grande cidade
como arena de debates simbólicos. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 26, n.51,
p.154-172, janeiro-junho/2013.
SANTOS, Mayra. Vozes ativas das favelas 2.0 – Autorepresentações midiáticas numa
rede de comunicadores periféricos. 2014. 225 f. Dissertação (Mestrado eProfissional
em Bens Culturais e Projetos Sociais) – CPDOC, Fundação Getúlio Vargas, Rio de
Janeiro, 2014.
SIMON, Jonathan. Governing through crime: how the war on crime transformed
American democracy and created a culture of fear. New York: Oxford University
Press, 2007.
SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.,
107 p.