Trabalho 1000006525
Trabalho 1000006525
CATEGORIA: CONCLUÍDO
Introdução
A antropologia da saúde no Brasil tem sua origem na década de 1940 com a
abordagem antropológica das práticas populares de saúde em contraste com a
biomedicina. Desde então, a antropologia da saúde brasileira contribui com os
desafios do campo da saúde ao possibilitar o diálogo do sistema oficial com os
sistemas populares e tradicionais favorecendo a criação de políticas publicas mais
eficazes (LANGDON et al1).
Identificar, compreender e refletir sobre a prática das medicinas indígena e
afro-brasileiras tem muito a contribuir na promoção de saúde no Brasil, em
consonância com o princípio da integralidade do SUS. A análise e interpretação dos
processos de saúde/doença dentro dos contextos socioculturais específicos em que
as populações e grupos estão inseridos permite valorizar a diversidade de cuidados
de saúde, compreender as razões para baixas adesões às políticas e promover
trabalhos em conjunto com outros agentes sociais.
Faz-se necessário o fomento e realização de mais pesquisas a fim de
fortalecer o reconhecimento do sistema cultural de saúde afro-brasileiro, como
coloca Mandarino et al2, para que possamos subsidiar adequadamente a formação
de profissionais de saúde capacitados e sensibilizados a dialogar e construir elos de
complementaridade com estes saberes e práticas. Silva3 afirma que as práticas e
relações estabelecidas nas comunidades de terreiro possibilitam a promoção da
saúde, prevenção de agravos e a renovação de práticas de cuidado milenares.
Objetivos
Este artigo relata o estudo de campo exploratório e de inspiração etnográfica,
realizado na comunidade de terreiro Ilé Alákétu Asè Ifá Omo Oyá, localizada na
região metropolitana de São Paulo. O estudo objetivou descrever o sistema cultural
de saúde desta comunidade e explorar as interações e interfaces dos seus membros
com o sistema biomédico.
Metodologia
Este estudo caracterizou-se como pesquisa de campo de cunho qualitativo
de inspiração etnográfica1 e foi desenvolvido em duas etapas, sendo a primeira o
levantamento e estudo bibliográfico referentes ao campo da antropologia da saúde e
tradições afro-brasileiras; bem como o estudo do método etnográfico para a
estruturação metodológica. Na segunda etapa foi desenvolvido o estudo de campo
no qual foram realizadas observações participantes registradas em caderno de
campo e entrevistas com os dirigentes e praticantes da casa.
Posteriormente a fundamentação da pesquisa, foi desenvolvido o estudo de
campo entre os meses de Junho a Dezembro de 2019, com 6 visitas ao terreiro
Alákétu Asè Ifá Omo Oyá, nas quais foram realizadas observações participantes em
festas rituais, além de duas entrevistas em profundidade com a dirigente da casa
1
A partir dos referenciais teóricos, salientamos que, devido ao curto período de trabalho de campo que foi
possível desenvolver, este estudo não consiste em uma etnografia propriamente, mas sua estrutura metodológica
e de escrita inspira-se nos procedimentos e disposições metodológicos da antropologia e da etnografia.
Mãe Cláudia de Oyá e duas entrevistas em grupo com mais 7 membros da
comunidade, filhos de santo2.
Para a retenção das informações obtidas em campo foi utilizado o recurso
antropológico do caderno de campo, onde todas as primeiras impressões e falas
mais importantes das vivências foram registradas. Também foi utilizado o recurso de
gravação de áudio para retenção das entrevistas e suas posteriores transcrições.
Desenvolvimento
O terreiro de Candomblé Ilé Alákétu Asè Ifá Omo Oyá, está localizado em um
bairro residencial periférico da cidade metropolitana de Guarulhos, o Jardim
Angélica, na própria casa da dirigente do terreiro: a Iyalorisa Cláudia Ty’ Oyá, mais
conhecida como Mãe Cláudia de Oyá. O terreiro segue a linhagem das tradições das
nações Ketu, que são ligadas aos povos Yorubás. Além das atividades religiosas, o
terreiro também realiza ações afirmativas de cunho cultural com atividades para toda
a comunidade, através da Associação Cultural Ilé Omo Oyá, que se tornou
referência na busca por diálogo com esferas governamentais desde 1999.
A sede da Casa de Asè Ilé Alákétu Asè Ifà Omo Oyá possui três andares que
abarcam o salão de beleza, a residência da família e, no último andar, o espaço
destinado ao trabalho do Candomblé. Mãe Cláudia de Oyá sempre quis ter um
espaço próprio e separado para as atividades com Candomblé, porém as condições
financeiras nunca foram favoráveis a isso.
O local foi visitado pela primeira vez apenas com o intuito de uma primeira
apresentação para a Mãe Cláudia em uma conversa aberta e livre, apresentando
minha trajetória e as intenções do trabalho. As três visitas subsequentes
aconteceram nas datas. A segunda visita aconteceu no mês de julho para participar
das festas públicas mensais que o terreiro oferece a toda comunidade. Essas festas
são chamadas de Xirê e acontecem tradicionalmente no Candomblé todo mês,
homenageando um Orixá. No Ilé Alaketu Asè Ifà, acontecem sempre no último
sábado do mês.
2
O projeto de pesquisa foi previamente aprovado pelo comitê de ética da Universidade Anhembi Morumbi,
conforme parecer 23131019.6.0000.5492. Dessa forma, todos os procedimentos de pesquisa foram informados e
autorizados pela Mãe Cláudia de Oyá, antes de sua execução, todas as entrevistas foram precedidas da leitura e
assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido, bem como da autorização da gravação para fins de
pesquisa. O manuscrito deste artigo foi aprovado pela Mãe Cláudia de Oyá anteriormente ao seu envio para
publicação.
A festa se inicia sempre com saudação a todos os Orixás, seguindo uma
ordem específica. Depois, os filhos do Orixá homenageado vão ao quarto se
preparar com vestimentas adequadas para receber o Santo. Após o momento em
que são recebidos os Orixás no recinto, com danças que contam histórias
mitológicas, é comum que seja servida a comida sagrada representativa dele. A
comida de Santo contém Asè com poder de curar questões físicas, mentais,
emocionais e reestabelecer o equilíbrio daqueles que vão usufruir do alimento. O
momento de comer é o tempo de socialização entre os presentes na festividade e
alguns dos participantes já começam a ir embora. Depois, prossegue o ritual até o
fechamento da cerimônia e o encerramento da festa.
A festa deste segundo dia de visita era de Olubajé. Festa que reverencia
Omulu e Obaluaiê, ritual imprescindível para os terreiros de Candomblé, o momento
especial para rogar por saúde e longevidade a todos os que estão presentes. O
terceiro momento de visita aconteceu no dia da festa dos Ibejis, a festa das crianças,
também conhecida como festa de Cosme e Damião. O quarto momento aconteceu
na festa dos Guardiões (Exu e as Damas) que não é original da tradição Ketu,
entretanto a zeladora da casa incorporou essa festa ritual em seus trabalhos por
respeito e gratidão às entidades da noite e sua história no Candomblé de Angola.
No mês seguinte fui ao terreiro fora da data comemorativa ao público para
realizar a primeira entrevista em profundidade com Mãe Cláudia. A utilização da
analogia da Casa de Asè como hospital foi muito presente, assim como a
importância da especialização de Mãe Cláudia em psicologia, já que diversas
correntes da psicologia dialogam com as suas vivências dentro do terreiro e trazem
algumas semelhanças com os ensinamentos dos Itãns.
Por último, houve observação participante na festa de encerramento do ano, a
festa de Ifá, comandada pelo Awô Ifá da casa, Pai João3. Esta é uma cerimônia
africanista da linha seguida pelo Pai João, então Mãe Cláudia assume o lugar de
mantenedora da ordem. Após o momento do café, o pai-de-santo vai à um quarto
superior com alguns dos filhos-de-santo realizar rezas e oferendas a portas
fechadas, enquanto os demais ficam no salão concentrados e orando em conjunto.
3
Yalorixá e Babalorixá são definições referentes ao mesmo cargo chefe do terreiro, só que Baba significa pai e
Ya a mãe. Mãe Cláudia é a Yalorisá da casa e no terreiro não é possível existir duas pessoas neste mesmo posto.
Dessa forma, Pai João assume a designação de Awô Ifá, o pertencente das coisas de Ifá, do culto diretamente da
África que teve sua renovação trazida com Ifá, no Brasil.
Durante toda a manhã de reza aconteceu a formação de dois grupos de
filhas-de-santo, um com 4 mulheres e outro com 3 mulheres, nos quais eu utilizei as
mesmas perguntas norteadoras para fomentar a conversa: desde quando está no
Candomblé? O que significa saúde para você? Existe alguma história de cura de
doenças com intermédio do terreiro? Dessa maneira foram coletados mais dados
para aprofundar esse ensaio de base etnográfica4.
Após a reza e oferenda para Ifá, Pai João convoca a todos que peguem suas
sementes de Ifá (foram entregues a todos) e, em fila, subam ao quarto para bater
cabeça na esteira, pedir proteção e saúde para Ifá, receber banho de pipoca 5
consagrada e um bilhete, recebido aleatoriamente, com ensinamentos que dizem
respeito a caminhada evolutiva de cada um para o momento atual e para o ano que
se aproxima. Finalizados todos os processos desse ritual de Ifá e consagração para
o novo ano, um almoço preparado comunitariamente é posto a mesa para encerrar o
dia de atividades com confraternização entre a família-de-santo.
Tradicionalmente, o jogo de búzios movimenta a Casa durante a semana com
Pai João, responsável pelos rituais e magias de Ifá e pela maioria das consultas.
Essa é a única atividade do terreiro que é paga. Os búzios são o grande oráculo de
Ifá, importantes para todo o processo de busca e cura dentro das atividades do
Candomblé. São os búzios que comunicam os Orixás da Casa com os Orixás da
cabeça de cada um que senta para jogar. É ele também que determina se e quando
deve-se passar pela feitura de santo, o cultivo de Iawô.
Os jogos são de minha total importância, mas como você viu a minha vida tem
um monte de coisas e como eu fui presenteada com esse apoio do João
quando ele se tornou um Awô Ifá, quando ele entrou para essa liturgia, ele
vem me apoiando nisso. (Mãe Cláudia)
Em sábados alternados, não conflitando com o último sábado do mês
reservado para o Xirê, a mãe-de-santo da casa recebe seu caboclo, que faz sessões
de passe e conversas individuais com àqueles que estão necessitando dessa forma
de atendimento. Não é habitual da nação Ketu esse tipo de trabalho, entretanto,
assim como a festa homenageando os Guardiões, Mão Cláudia trouxe esse tipo de
4
Os dados colhidos nestas entrevistas em grupo serão trabalhados na próxima seção.
5
O banho de pipoca não faz parte do ritual da festa de Ifá no final do ano. Esse movimento atípico se deu, pois
nas previsões de Ifá para o ano de 2020 foi abordado um enorme número de mortes, o que atualmente é
interpretado pela Mãe Cláudia como uma previsão da grande pandemia de COVID-19 que enfrentamos. O banho
de pipoca foi realizado para que aqueles que passaram a pipoca fiquem protegidos dessas grandes mortes.
assistência, pois ao longo de sua trajetória recebeu tratamentos fundamentais em
sessões de passe e conversas com entidades, benefício que ela gosta de passar
para outras pessoas também.
Outros segredos, as magias dispostas para o auxílio e resolução das
angústias e problemas trazidos pelos que buscam os terreiros, são reservados aos
membros da comunidade, descobertas que são reveladas aos que aceitam a vida do
Candomblé, se iniciam e permanecem no trabalho dessa espiritualidade. Ao longo
das observações participantes pude notar a importância do Ifá, da cozinha, das
ervas, da reverência aos ancestrais e do próprio existir junto a uma comunidade.
Resultados
Na Casa de Asè foi possível observar que o processo terapêutico proposto
compreende muitas dimensões do processo de saúde-adoecimento que vão além do
nível físico-biológico e seus sintomas. As filhas-de-santo da Mãe Cláudia, ao serem
questionadas sobre o significado da saúde em suas vidas, ofereceram respostas
claras e contundentes:
Para mim a saúde é primordial, mas não só a saúde física... Então, a saúde
vem de dentro para fora, porque a gente tem que estar bem espiritualmente,
pessoalmente, em todos os aspectos e todos os âmbitos para que a saúde no
seu corpo reflita. (Iara)6
Olha, saúde para mim é fundamental. [...] Se a gente não tem saúde a gente
não tem nada. Sem saúde a gente não consegue progredir em nenhum
aspecto. Sem uma cabeça boa, uma mente boa... Acho que é toda uma
junção. (Veronica)
6
Os nomes das filhas-de-santo são fictícios a fim de proteger suas informações pessoais. Apenas o nome da
dirigente do terreiro se mantém, visto que foi autorizado pela mesma, que apresenta-se como uma figura pública.
Pilar importante e central na vida destas filhas-de-santo é a saúde como uma
dinâmica complexa onde não somente a dimensão física importa, mas a relação de
equilíbrio e fluidez dentre diversas dimensões da existência humana. Os níveis
físico, psicológico e espiritual estão sempre se desenvolvendo mutuamente e se
influenciam de maneira dialógica na narrativa de saúde afro-brasileira.
Porque a casa de Axé ela é um hospital, ela é um lugar de cura, ela é um
hospital da alma. Ela [a cura] tem que ser de dentro para fora (Veronica)
Na comunidade de terreiro, a cura compreende um processo de
transformação geral na vida da pessoa que ali procura cuidado. A família-de-santo
compreende uma rede coesa de apoio que proporciona acolhimento e diferentes
influências. Os ensinamentos do terreiro suscitam novas maneiras de compreender
os acontecimentos da vida, os cuidados com o próprio corpo e a tomada de
responsabilidade.
Ela era assim uma menina bem louca, não parava em emprego, já tinha sido
casada, se separou e era assim... Noitada, racha, bebidas, rock n' roll, mas era
uma menina muito carinhosa, perdida aí nesse mundão... Ela foi se
espiritualizando, foi se transformando, conseguiu parar num emprego, deixou
mais de gandaia, dos vícios, e foi se transformando.” (Mãe Cláudia sobre uma
de suas filhas de santo)
Tal transformação geral do modo de vida se mostra gradual conforme o filho-
de-santo se vincula à comunidade e compartilha suas experiências, visões e
significados. É possível observar a importância do vínculo, da afetividade e do
pertencimento à comunidade como agentes transformadores dos padrões de saúde-
adoecimento nos diversos níveis de existência.
Esse achado também corrobora com os levantamentos de Rabelo7 que
salienta a ideia da cura enquanto uma realidade processual continuamente
negociada e reafirmada no interior dos cultos. É no convívio cotidiano permeado
pelas festas públicas, rituais fechados, rezas, banhos, iniciações, consultas etc., que
são proporcionadas narrativas bem estruturadas para dar sentido aos processos de
saúde e doença, trazendo novas possibilidades de rotina e hábitos mais
satisfatórios.
Quanto aos processos de adoecimento específicos, as filhas-de-santo
relataram diversas situações de saúde física, mental e espiritual para as quais
obtiveram a cura nas práticas do terreiro, tais como dificuldades na gravidez e pós-
parto, depressão, complicações cirúrgicas, desequilíbrios econômicos, sociais e
outros adoecimentos inicialmente não diagnosticáveis que, pela perspectiva usual do
campo da saúde, não seriam considerados uma doença especifica, mas que na
comunidade de terreiro obtiveram resultados positivos.
A cultura afro-brasileira, intrínseca ao Candomblé, permite uma nova relação
com os alimentos e plantas que nessa cosmologia são considerados sagrados e
dotados de poderes curativos a partir da energia vital existente, o Asè. O Asè está
impregnado nas comidas de santo, nos banhos e bebidas de ervas preparadas
dentro do terreiro com a magia da fé daqueles que os cultivam.
Essa cultura de cura é apreendida e compartilhada junto às atividades físicas
e mentais, organizando o mundo desse grupo social, integrando e trazendo a
sensação de pertencimento à comunidade, o que corrobora as teses de Jean
Langdon e Wiik4 ao descrever os sistemas de saúde como sistemas culturais de
saúde, abarcando seus símbolos e práticas especificas guiadas pela construção
cultural de cada grupo.
O terreiro de Candomblé que mantém seus rituais, festas e rezas em Yorubá,
mantém viva uma tradição secular advinda da diáspora. Todo terreiro é um
quilombo, que luta contra preconceitos e adversidades que a minoria social negra
vivencia. Mandarino et al2 ressalta esta característica, apontando para a
multifuncionalidade das casas de Asè, que visam desenvolver um modelo de
atenção à saúde com bases nos valores tradicionais afro-brasileiros. Atuando como
resistência, o terreiro mantém-se conectado primordialmente com os princípios do
respeito e igualdade, praticando acolhimento de outras minorias. Desta forma,
observamos que a comunidade de terreiro de Mãe Cláudia abraça as lutas LGBT e
feminista, e desenvolve a religião do candomblé de forma matrifocal.
O terreiro, se você observar bem, é o lugar que encampa todas as lutas
necessárias para gente mudar a humanidade, porque é a luta contra o
racismo, é a luta LGBT, é a luta feminista e a luta pela grande matriz africana e
pela saúde matriarcal.” (Tatiana)
Considerações finais
Os adeptos do Candomblé não excluem do seu itinerário terapêutico a
biomedicina. Observou-se que, apesar de assumirem o sistema cultural de saúde do
Candomblé como referência explicativa e de tratamento dos desequilíbrios, recorrem
também aos recursos biomédicos como referência para a constatação da melhora.
Ainda, observamos nas falas das filhas de santo que a sua explicação sobre os
próprios processos de adoecimento, apesar de vinculadas ao Candomblé, misturam
noções advindas da biomedicina com noções Yorubás, com a do Asè, por exemplo.
A saúde mental, expressão atrelada ao sistema biomédico, por exemplo, é
recorrentemente utilizada pelos adeptos da casa Ilé Alákétu Asè Ifá Omo Oyá para
elucidar a importância de cuidar dos pensamentos e emoções.
O remédio espiritual para qualquer angústia permeia o desenvolvimento e
fortalecimento da saúde mental de todos que estão no terreiro. Neste achado
encontramos consonância com os escritos de Mandarino et al2, Rabelo5 e Rabelo6,
que salientam o processo terapêutico no Candomblé como o fortalecimento do
indivíduo frente as adversidades, ambiguidades e incertezas da vida.
A presente pesquisa tende a demonstrar que, para a parcela da população
adepta ao candomblé, o itinerário terapêutico dos que recorrem a biomedicina nos
dispositivos do sistema de saúde oficial, transita por práticas e concepções não-
biomédicas, as quais devem ser integradas de forma complementar, se não
integrativa, as proposições de tratamentos e avaliações biomédicos.
No entanto, do ponto de vista da comunidade de terreiro e de seus adeptos, a
noção de complementaridade da medicina tradicional com relação a biomedicina se
inverte, visto que as concepções e práticas advindas do sistema cultural biomédico
são associadas às concepções e práticas da comunidade de terreiro, sem tirar
destas ultimas a primazia explicativa sobre as causas do adoecimento e a proposta
primeira de caminho terapêutico a ser seguido. Para a comunidade do terreiro
Alákétu Asè Ifá Omo Oya as práticas biomédicas são complementares à medicina
tradicional afro-brasileira.
Os achados da pesquisa nos colocam uma discussão de grande valor:
parece-nos que o sistema cultural de saúde afro-brasileiro, na sua manifestação no
Alákétu Asè Ifá Omo Oya, executa uma dialogia transversal e integrativa de saberes
de saúde, ao associar-se de forma não autoritária, colonialista ou excludente, ao
saberes biomédicos e a saberes de outras tradições, como os cultos dos guardiões
e de caboclos da nação Angola. Essa composição de práticas e saberes operam, na
comunidade de terreiro, de forma a potencializar e complexificar suas práticas,
tornando-as mais efetivas na resolução de problemáticas de saúde. Atestamos que
na casa de Asè os saberes e diagnósticos biomédicos caminham lado a lado aos
saberes e diagnósticos afro-brasileiros, servindo como ferramentas que, em última
instância, ajudam a comprovar a própria eficácia da terapêutica afro-brasileira.
Este estudo é uma contribuição para que seja reafirmada a importância de
voltarmos nossos olhos enquanto profissionais da saúde para práticas que vão além
da biomedicina e, com isso, suscitar debates dentro da Saúde Coletiva que
abranjam a importância da cultura afro-brasileira e como ela pode auxiliar no
desenvolvimento de políticas públicas mais humanas e coerentes com as realidades
vividas no Brasil.
REFERÊNCIAS
1 Langdon, et al. Um balanço da antropologia da saúde no Brasil e seus diálogos
com as antropologias mundiais. Anuário Antropológico, [s. l.], n. I, p. 51-89, jun 2012.
DOI https://doi.org/10.4000/aa.254. Disponível em:
https://journals.openedition.org/aa/. Acesso em: 24 ago. 2020.
2 Mandarino, ACS et al. Percursos e significados terapêuticos na religião afro-
brasileira Candomblé. Fórum sociologico, [s. l.], ed. 22, p. 43-51, 2012. DOI
https://doi.org/10.4000/sociologico.562. Disponível em:
https://journals.openedition.org/sociologico/537. Acesso em: 25 ago. 202
3 Silva JM. Religiões e Saúde: a experiência da Rede Nacional de Religiões Afro-
brasileiras e Saúde. Saúde Soc 2007, 16 (2): 171-177.
4 Langdon EJ, Wiik,FB. Antropologia, saúde e doença: uma introdução ao conceito
cultura aplicado às ciências da saúde. Revista Latino-Americana de Enfermagem
2010; 18 (3): 173-181.
5 Rabelo, MC. Religião e Cura: Algumas reflexões sobre a experiência religiosa das
classes populares urbanas. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 9, ed. 3,
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Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S0102-
311X1993000300019&lng=en&nrm=iso&tlng=pt. Acesso em: 24 ago. 2020.
6 Rabelo, M. A construção do sentido nos tratamentos religiosos. Revista Eletrônica
de Comunicação Informação & Inovação em Saúde, [s. l.], v. 4, ed. 3, p. 3-11, 2010.
DOI DOI: 10.3395/reciis.v4i3.380pt. Disponível em:
https://www.reciis.icict.fiocruz.br/index.php/reciis/article/view/658. Acesso em: 29
ago. 2020.