O Quinto Movimento - Unlocked

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ALDO REBELO

IRDEM E PROGRE

OM Quinto
ovimento
PROPOSTAS PARA UMA CONSTRUÇÃO INACABADA

JA
© Jornal JÁ Editora, 2021
FICHA TÉCNICA
Imagem de capa: Elifas Andreato

Ilustrações: Agélio Novaes e Elifas Andreato

Edição gráfica e digital: Andres Vince

Gestão e produção editorial: Anima Editora Ltda

APOIO
Instituto José Bonifácio
PORTO ALEGRE, 2021

Sumário
PREFÁCIO - A centralidade da Questão Nacional e o Quinto Movimento da
construção inacabada do Brasil

APRESENTAÇÕES
LUÍS ANTÔNIO PAULINO: A formação e a transformação do Brasil

AZELENE INÁCIO (KAINGÁNG): A construção da identidade nacional


brasileira

ELIZEU SOARES LOPES: Uma contribuição para o Brasil

JOSÉ ANTÔNIO SEVERO: Um projeto para o Brasil

DIOGO OLIVEIRA: Um farol para o destino do Brasil

PARTE 1 – A ORIGEM DAS IDEIAS


Capítulo 1: As primeirasvisões do Brasil

PARTE 2 – OS QUATRO MOVIMENTOS QUE CONSTRUÍRAM O


BRASIL
CAPÍTULO 2: PRIMEIRO MOVIMENTO – Formação da base física
CAPÍTULO 3: SEGUNDO MOVIMENTO – A epopeia da Independência

CAPÍTULO 4: TERCEIRO MOVIMENTO – Consolidação da Independência e da


unidade territorial do País

CAPÍTULO 5: QUARTO MOVIMENTO – A República e a Era Vargas: Deodoro,


Floriano e a Revolução de 1930

PARTE 3 – O QUINTO MOVIMENTO: PROPOSTAS PARA UMA


CONSTRUÇÃO INACABADA
CAPÍTULO 6: QUINTO MOVIMENTO – A economia

CAPÍTULO 7: QUINTO MOVIMENTO – A agricultura, a pecuária e a agroindústria

CAPÍTULO 8: QUINTO MOVIMENTO – A Amazônia

CAPÍTULO 9: QUINTO MOVIMENTO – As Forças Armadas como parte da


reconstrução do Brasil

CAPÍTULO 10: QUINTO MOVIMENTO – Ciência, Tecnologia e Inovação

CAPÍTULO 11: QUINTO MOVIMENTO – A educação

CAPÍTULO 12: QUINTO MOVIMENTO – A democracia e seus desafios

CAPÍTULO 13: QUINTO MOVIMENTO – O Brasil e o mundo

CAPÍTULO 14: QUINTO MOVIMENTO – A exaltação da mestiçagem

CAPÍTULO 15: QUINTO MOVIMENTO – Nossa herança africana

CAPÍTULO 16: QUINTO MOVIMENTO – A questão indígena

CAPÍTULO 17: QUINTO MOVIMENTO – A presença das mulheres

CAPÍTULO 18: QUINTO MOVIMENTO – O futebol

CAPÍTULO 19: QUINTO MOVIMENTO – O desafio da violência e da segurança

CAPÍTULO 20: QUINTO MOVIMENTO – O meio ambiente

CAPÍTULO 21: QUINTO MOVIMENTO – Desigualdade: tragédia e ameaça


PREFÁCIO

A centralidade da Questão
Nacional e o Quinto
Movimento da construção
inacabada do Brasil
Este livro é um depoimento sobre a Centralidade da Questão
Nacional, como principiei compreendê-la desde minha formação e
na história da formação social brasileira. É também uma reflexão
sobre o Quinto Movimento, como denomino as iniciativas
necessárias à retomada da construção material e espiritual de
nossa Pátria.
Centralidade da Questão Nacional é a ideia de que a Nação é o
eixo organizador da vida social na presente etapa da história da
civilização; a convicção segundo a qual o Estado Nacional é a
organização apta a proteger os valores da dignidade da pessoa
humana e a crença na certeza de que viver em um país livre de
qualquer submissão a outro país é o mais sagrado dos direitos do
homem depois do direito à vida.
O nacionalismo tem governado o mundo nos últimos dois séculos
nas suas duas vertentes: o nacionalismo tirânico e opressor das
nações imperiais, em confronto com o outro, o nacionalismo
libertário, defensivo e democrático das nações emergentes em luta
por sua emancipação.
Centralidade da Questão Nacional é a volta do desenvolvimento
econômico, científico, tecnológico, social, combinados com a
projeção de poder diplomático e militar em harmonia com nossas
legítimas aspirações nacionais.
Tal objetivo exige coesão nacional e social incompatíveis com a
desorientação de grupos de “direita” e de “esquerda” que
convertem o Brasil em arena de disputa de teses importadas sobre
comportamento, costumes e doutrinas geopolíticas alheias aos
problemas brasileiros.
A “direita” cosmopolita obcecada pelo “choque de civilizações”
sacrifica o interesse nacional no altar da aliança ideológica com os
Estados Unidos em defesa de uma civilização ocidental da qual nem
nos consideram integrantes, pois seríamos apenas latinos
excluídos do universo civilizatório do Ocidente.
Há ainda as correntes conservadoras que julgam ser o mercado e
não a Nação o ente escolhido para remover os obstáculos no
caminho da prosperidade e da felicidade, e não se dão conta de que
os êxitos alcançados pelas nações prósperas combinaram sempre a
cooperação entre Estado e mercado.
O identitarismo de “esquerda” é outra forma de submissão à
agenda importada dos Estados Unidos ao ceder o interesse
nacional aos antagonismos de raça e gênero. O objetivo final deste
identitarismo é a desconstrução da mestiçagem como expressão
étnica do Brasil, que adotaria o modelo norte-americano de
sociedade bicolor de pretos e brancos.
O problema é que a mestiçagem no Brasil é muito mais que a
promessa da raça cósmica na feliz expressão do filósofo mexicano
José Vasconcelos. A mestiçagem é a manifestação plena de nossa
identidade nacional, modelou a imagem que fazemos de nós
perante o mundo. Ao atacar a mestiçagem o identitarismo mira o
que há de mais profundo e permanente na identidade nacional
brasileira e nos conduz a uma capitulação retardatária, ideológica
e cultural à doutrina racista que separou negros e brancos nos
Estados Unidos.
Por esta razão, a Centralidade da Questão Nacional e o Quinto
Movimento se confrontam com o cosmopolitismo de “direita” e de
“esquerda” e a ele contrapõem a união das forças heterogêneas,
sociais, empresariais, intelectuais, políticas e culturais, da cidade e
do campo, como alternativa para a retomada da construção do
Brasil e do seu futuro.
Sítio Amazonas, Viçosa, Alagoas, fevereiro de 2021
APRESENTAÇÕES
A formação e a transformação do Brasil
LUÍS ANTÔNIO PAULINO*

Aldo Rebelo é daqueles raros homens públicos que reúnem


virtudes dificilmente encontradas em uma só pessoa. É, antes de
tudo, um grande intelectual, conhecedor como poucos da
literatura e da historiografia brasileira e universal, das quais tira
lições essenciais não apenas para entender o Brasil e seu processo
de desenvolvimento, mas também para situá-lo com precisão no
grande movimento universal da história humana.
Ao adotar uma perspectiva histórica, Rebelo consegue perceber o
Brasil em movimento, em processo contínuo de transformação,
quando as profundas contradições que marcam a história e a
trajetória de nosso País não são vistas como grilhões que o
imobilizam, vício tão comum em parte de nossa intelectualidade,
mas como aguilhões que o espicaçam e empurram em movimentos
contínuos de transformação. Tais movimentos, como as águas do
Amazonas, ora se apresentam mansos e profundos, ora explodem
em batalhas titânicas contra o que lhes obsta o caminho.
Não por acaso, a presente obra se denomina O Quinto Movimento.
Ao examinar a trajetória histórica de formação e transformação
social e política do Brasil, Rebelo percebe o Brasil como uma obra
magnífica, destinada a maravilhar o mundo, mas ainda incompleta,
inacabada. Como o artista, percebe sob esse bloco, com formas às
vezes assustadoras, uma obra-prima do gênio humano, a ser
revelada em sua plenitude pelo cinzel da atual e das futuras
gerações.
Ao apontar, nesse Quinto Movimento, as tarefas inacabadas que
impedem o Brasil, como diz o poeta, de “cumprir seu ideal”,
revela-se uma segunda face do autor. A do líder, do homem
público, que tendo ocupado as mais diversas funções na vida
pública, de líder estudantil, vereador, deputado, presidente da
Câmara dos Deputados e ministro de pastas chave do governo,
como a Coordenação Política, Ciência e Tecnologia, Defesa e
Esportes, conhece o Brasil e suas instituições como ninguém.
Nesta obra revela-se, assim, não apenas a análise precisa do
intelectual que ousou, com as ferramentas da crítica, analisar o
passado, sem cair na armadilha tão comum do anacronismo, que
transforma heróis em vilões e vilões em heróis, mas também o
descortino do homem público comprometido com seu tempo e seu
povo. Tal como muitos brasileiros que o precederam nos
movimentos anteriores, o que Aldo Rebelo propõe com este Quinto
Movimento é transformar o Brasil em uma nação poderosa,
respeitada, desenvolvida, democrática e igualitária.

* LUÍS ANTÔNIO PAULINO é professor associado da


Universidade Estadual Paulista (Unesp) e membro da
equipe de colaboradores do portal “Bonifácio”.
A construção da identidade nacional brasileira
AZELENE INÁCIO (KAINGÁNG) *
Ao deparar-me com o convite para ler a obra de Aldo Rebelo, O
Quinto Movimento, também fui convocada a escrever sobre a
mesma. Senti-me lisonjeada, pois o conteúdo do livro é de extrema
singularidade, uma vez que mostra com bastante clareza e riqueza
de detalhes como se deu a construção da identidade nacional
brasileira.
Desde os tempos mais remotos, o Brasil é um país continental
disputado por potências estrangeiras, dada sua imensurável
riqueza e variedade de recursos naturais, que despertavam e ainda
despertam a cobiça de outras nações envolvidas em uma feroz
disputa quase que sem fim.
Ocorre que na formação do Brasil aconteceu algo de fato
admirável para que aqui não fôssemos fraturados em nossa
soberania, o que inclusive vai além da resistência política ou
somente o emprego de armas. O livro de Aldo Rebelo destaca - com
certo grau de minúcia - o fenômeno da mestiçagem, que de fato é a
essência, a âncora para iniciar efetivamente uma verdadeira
identidade brasileira. Articulações envolvendo pessoas comuns,
autoridades medianas, autoridades máximas, dentre outras,
promovem o início capaz de eclodir movimentos que irão perdurar
ao longo da história, capazes de criar um firme alicerce brasiliano,
em que pese os inimigos do Brasil atentarem contra essa nova
formação.
O autor, com bastante habilidade, descreve a sua tenra idade no
interior de Alagoas, onde a partir da montada em um cavalo
consegue ter sua primeira visão de mundo, qual seja, a imagem do
Sertão, área ou sub-região geográfica do Nordeste que bem
caracteriza a força e a determinação do povo nordestino, nos
dizeres de Euclides da Cunha: “O sertanejo é, antes de tudo, um
forte”. A partir dessa primeira visão, Aldo Rebelo começa a
aprofundar a sua vida intelectual influenciado especialmente por
dois fatores: sua desmedida curiosidade por livros, almanaques e
publicações da época e também pela influência de familiares de sua
extensa parentela.
Diante de tal perspectiva, e com o andar dos tempos, o autor
começa a bem saber e descrever o que é o Brasil profundo e toda
sua configuração. Apaixonado pelo Brasil e sua história, permite
uma excelente linha do tempo que leva o leitor a ficar
impressionado com todos os acontecimentos que desembocaram
na formação do Brasil. A influência do Tratado de Tordesilhas e do
Tratado Madri, os atos das metrópoles portuguesa, espanhola,
inglesa, dos Estados Unidos e por incrível que possa parecer até
mesmo as guerras napoleônicas que direta ou indiretamente quase
precipitaram a fratura do Brasil por meio da Cabanagem, da
Balaiada, da Sabinada, dos Farrapos e outras revoltas. O intenso
trabalho que envolveu a formação do Exército Brasileiro contou
com mestiços, indígenas e negros como mentores das nossas
Forças Armadas junto com Duque de Caxias. Chamou-me muito a
atenção as passagens de um mestiço pernambucano, de pai
português e mãe indígena, que expulsou os franceses do Maranhão
e com igual peso o índio Poti Filipe Camarão, que muito ajudou na
vitória do Brasil contra as tropas holandesas, determinando assim
o fim das batalhas no Nordeste brasileiro.
A narrativa da história trazida no livro honra aos indígenas a sua
participação na história de construção do Brasil, em sua
nacionalidade, devolvendo os valores de sua cultura, costumes,
língua, culinária, memórias, como parte que somos dessa benigna
Civilização, e mais, propõe oferecer aos indígenas a possibilidade
de voltarem a participar, como brasileiros que são, do destino
nacional, oportunidade que há mais de duas décadas vem sendo
negada pela atuação das ONGs da Máfia Verde por meio do
indigenismo de mercado, usurpando o protagonismo dos índios de
maneira nem um pouco transparente.
Cabe considerar especialmente que durante todo esse tempo o
povo brasileiro já está em plena formação por meio da mais bela
mestiçagem, com passagem destacada para Diogo Álvares Correia,
o Caramuru, náufrago português casado com Catarina Álvares
Paraguaçu, índia da Bahia, possibilitando assim uma exuberante
genética mestiça e verdadeiramente brasileira.
O autor com bastante clareza não deixa esquecer a grande
contribuição de José Bonifácio, Patriarca da Independência, o papel
da maçonaria, a industrialização do Brasil, a conjuntura
internacional envolvendo os conflitos bélicos mundiais, o papel
sempre conciliador e mediador da diplomacia brasileira, o
getulismo, a construção de Brasília com Juscelino Kubitschek, os
presidentes militares e o momento contemporâneo, que para Aldo
Rebelo pode e deve ser modificado tendo como base os interesses
soberanos do Brasil, mantendo parcerias com potências
estrangeiras de primeiro mundo, mas jamais abrindo mão do que é
nosso para assim assegurar o futuro das gerações, com soberania,
autoestima e orgulho de sermos brasileiros.
O Quinto Movimento merece ser encarado como fonte de estudos
nos ramos da História, do Direito, da Ciência Política, da
Antropologia e da Sociologia, uma vez que vários elementos destes
campos estão condensados na presente obra. Certamente, o povo
brasileiro recebe uma base de conhecimentos da sua história,
contada e escrita por um brasileiro de raiz, que conhece o Brasil
por dentro da sua formação, por um brasileiro que resgata o
orgulho do nosso povo, da sua formação e sua trajetória.

*AZELENE KAINGÁNG, indígena nascida na terra indígena


Carreteiro (RS), é socióloga formada pela Pontifícia
Universidade Católica do Paraná.
Uma contribuição para o Brasil
ELIZEU SOARES LOPES *

Ex-ministro em quatro pastas diferentes, ex-presidente da Câmara


dos Deputados, ex-presidente da União Nacional dos Estudantes
(UNE), Aldo Rebelo é um dos raros brasileiros que, para além de
sua experiência política e profissional, tem uma enorme
capacidade de compreender e analisar o País. Este livro é mais uma
de suas contribuições.
Com uma contundente análise do passado e dos movimentos que
construíram nossa identidade nacional, Aldo Rebelo consegue
apontar um caminho para o desenvolvimento do País. O Brasil
precisa de contribuições desse tipo para superar a crise atual e
retomar o processo de construção de sua identidade nacional.
Somos um país jovem, com características muito peculiares, e
estamos ainda no meio do processo de construção de nossa
identidade nacional. Neste sentido, é necessária a centralidade do
debate em torno da questão nacional como caminho para a
preservação da dignidade da pessoa e para aprofundar a defesa dos
Direitos Humanos. É o que defende Aldo Rebelo neste livro.
É fundamental a coesão nacional, a superação da dicotomia
vivida por grupos que se autodefinem de direita ou de esquerda.
Destaca-se aqui a tese do autor de que a direita sacrifica os
objetivos nacionais para atender interesses externos, notadamente
dos Estados Unidos. São ainda estas correntes de direita que
acreditam no mercado como indutor do desenvolvimento da Nação
sem a presença do Estado.
Aldo também se posiciona quanto ao papel de grupos de
esquerda na divisão da sociedade, principalmente quando tais
grupos defendem teses identitárias, que fragmentam a população e
estão relacionadas com debates importados da Europa e dos
Estados Unidos. A solução apontada pelo ex-ministro, uma tese
difícil de ser contrariada, passa pela “união de forças
heterogêneas, sociais, empresariais, intelectuais, políticas e
culturais”.
Como é sua característica, Aldo Rebelo não peca pela fragilidade
de argumentos. O autor pontua cada um dos setores fundamentais
para se retomar a construção inacabada do Estado Nação e
direciona as políticas para as ações e propósitos do País. Para ele,
esses setores são a agricultura e a agroindústria; a questão da
Amazônia; o papel das Forças Armadas; a ciência, a tecnologia e a
educação como fatores fundamentais para a redução das
desigualdades; a exaltação da mestiçagem; a questão indígena; a
presença das mulheres no Brasil; o futebol e o meio ambiente.
Este livro é como um manual para que o Brasil volte aos trilhos
da construção nacional. Aldo Rebelo apresenta uma visão do povo
brasileiro que vai além das interpretações teóricas e se soma à sua
admiração pela Nação que, segundo ele, tem de ser saudada a
partir de sua história. Esta história que deve ser estudada, contada
e recontada para que possamos saber nossas origens e, dessa
forma, construir nosso futuro.

*ELIZEU SOARES LOPES é advogado criminalista e ouvidor da Polícia


do Estado de São Paulo. Foi consultor do PNUD (Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento) no Programa Cultura
Viva do Ministério da Cultura; secretário-adjunto da Igualdade
Racial na Prefeitura de São Paulo e integrou a Comissão de
Estudos da Presidência da República para a reforma do Código
de Processo Penal.
Um projeto para o Brasil
JOSÉ ANTÔNIO SEVERO*

A leitura deste O Quinto Movimento leva o leitor à proximidade de


Aldo Rebelo, uma das personalidades mais expressivas e
representativas de seu tempo, e permite um mergulho nos desafios
que se oferecem ao Brasil, assim como uma visão ajustada à
trajetória do País por meio de sua história.
Uma frase tão longa, com pretensão à abrangência completa da
obra, não basta para sugerir ao leitor todas as possibilidades
desenvolvidas pelo autor neste livro. Não é elogio de um
admirador e observador da carreira e da imagem pública do
escritor. Passando por suas páginas, será possível avaliar a
originalidade e a capacidade de síntese para, em tão pouco espaço,
expor um projeto completo para o Brasil, calcado,
fundamentalmente, no seu povo, ou seja, na raça mestiça que se
formou neste território, que está a oferecer ao mundo uma
civilização original, muito própria, onde as influências externas
esbarram na solidez cultural formada pela mestiçagem. O Brasil é
seu povo, seria o resumo.
Aldo Rebelo oferece ao leitor uma visão panorâmica sobre o País,
vindo desde seus primeiros momentos, ainda no útero da mãe
pátria portuguesa, nos tempos pré-cabralianos, quando, nos
tratados e arranjos, a possibilidade de existência do Brasil já
mobilizava as diplomacias ibéricas e dava conteúdo político às
terras incógnitas. Assim chega o Brasil ao século XXI. Continuar a
construção deste País é um legado que não pode ser ignorado.
Neste sentido, o autor alinha e oferece caminhos a serem seguidos.
Portanto, este Quinto Movimento é um indicador de futuro, uma
proposta à sociedade. É fascinante ler esta obra.
O livro transpira a Aldo Rebelo. Texto discreto, econômico,
elegante, seu conteúdo é abrangente, deixando entrever a cultura
maiúscula do escritor, encaixando com precisão a história na
atualidade e nos desafios às sucessivas gerações que construíram o
Brasil. O leitor percebe que suas ideias e propostas se formaram de
leituras e vivências abrangentes, que vêm desde a juventude como
líder estudantil até sua intensa e prolongada trajetória política e
administrativa. Aqui está, com muita modéstia, em pinceladas, o
vereador, o deputado dos plenários, presidindo comissões, tendo
de compor interesses, demandas, realidades conflitantes. Também
está o administrador, ocupando ministérios em momentos cruciais.
Poucas pessoas, em qualquer segmento da sociedade, estiveram no
centro dos acontecimentos e viveram tão profunda e
abrangentemente o País.
É isto que o leitor irá encontrar neste O Quinto Movimento, um
livro que contém todo esse conhecimento e oferece um feixe de
propostas para o Brasil retomar seu dinamismo histórico e se
mover à frente em meio à estagnação de décadas, seus impasses e
desorientações. Não é um livro datado, pois tanto o estudioso
quanto o historiador do futuro encontrarão aqui um retrato desta
época e a visão do que foi um político da primeira geração da
esquerda pós 1968, já distanciada das lutas armadas e dos
confrontos de peito aberto, operando em um ambiente
democrático e plural. É uma obra de referência.

*JOSÉ ANTÔNIO SEVERO é jornalista e autor, entre outros, dos


livros Os Senhores da Guerra (L&PM Editores) e Cem Anos
de Guerra no Continente Americano (Editora Record).
Um farol para o destino do Brasil
DIOGO OLIVEIRA*

Este livro de Aldo Rebelo é um manifesto de amor pelo Brasil. O


autor conta sua história de sertanejo, nascido na roça em Viçosa,
interior das Alagoas, local da última batalha de Palmares. Ali foi
selado o pacto entre paulistas, caciques indígenas e chefes
quilombolas para isolar Zumbi política e militarmente,
conquistando terras que produziram frutos da mais autêntica
brasilidade mestiça. As suas ideias vêm de um garoto órfão de pai
aos nove nos, que ajudou a criar os sete irmãos mais novos e
tornou-se um homem de Estado, sentado à mesa com os líderes
globais para discutir o futuro das nações no mundo
contemporâneo.
A obra apresenta uma leitura circunstanciada da história
nacional, com as vicissitudes e os imponderáveis de quatro
movimentos que deram existência ao Brasil, destacando a
resiliência, a obstinação e a genialidade de grandes personagens
que marcaram a formação de uma Nação mestiça, inovadora,
agigantada pelos esforços dessas pessoas. É a partir destas
particularidades que é proposto o ambicioso, patriótico e
irrecusável Quinto Movimento de construção do País, um projeto de
continuidade na construção inacabada da civilização brasileira,
jogando luz neste momento de desorientação política e ideológica
que atravessamos. A ideia essencial é trazer para o primeiro plano
a centralidade da questão nacional.
A abordagem de Aldo Rebelo descreve um Primeiro Movimento, no
qual vemos o surgimento do Brasil na história da civilização,
consolidado pela aliança entre portugueses, índios e africanos para
a formação de uma nacionalidade brasileira original que estabelece
a base física do País. O sentimento de nativismo amalgamado pela
língua portuguesa deu vazão a um Segundo Movimento, marcado
pela epopeia da Independência. A coesão de forças heterogêneas
entre republicanos e monarquistas, donos de terras e o povo
trabalhador, foi articulada pelo Patriarca José Bonifácio de
Andrada, visando à unificação do País em torno de um propósito
maior e sedimentou o Terceiro Movimento, que culminou na
Abolição e na Proclamação da República. A República recém
nascida trouxe ideais de desenvolvimento e industrialização no
século XX, produzindo o Quarto Movimento, no qual vemos em
minúcia como forças aparentemente antagônicas se uniram para
conter a guerra civil, produziram a Revolução de 1930,
atravessaram as guerras mundiais, dividiram artificialmente o País
na Guerra Fria e alcançaram ao final a abertura democrática.
O Quinto Movimento para a retomada da construção inacabada do
Brasil é proposto a partir dos marcos nacionais, reconhecendo o
papel fundamental das Forças Armadas em sua dupla função, tanto
de defesa quanto de edificação da Nação. Abre-se um debate franco
sobre a garantia da soberania na Amazônia, indicando o caminho
estratégico da Ciência, Tecnologia e Inovação para o avanço
civilizatório brasileiro. A guinada para uma nova fase de
desenvolvimento tem na educação de base a estrada para perseguir
os objetivos fundamentais da redução das desigualdades e da
proteção da democracia, recuperando a altivez diplomática de
mediação, que em diversos momentos projetou o Brasil como um
exemplo para o mundo.
Aldo Rebelo oferece um carinho especial às mulheres, nossas
avós matriarcas, exaltando a mestiçagem na identidade nacional. O
autor reconhece a herança africana na construção do Brasil, assim
como a necessidade de maior participação indígena no destino do
País. O futebol é apontado como marco simbólico, descrevendo a
mentalidade destrutiva que tomou conta do debate público a partir
da Copa de 2014, o que provocou outra ruptura artificial e deixou
consequências nos anos seguintes. Por fim, atento aos desafios
permanentes colocados no século XXI, reconhece a proteção ao
meio ambiente como aspecto fundamental para o desenvolvimento
do Brasil no terceiro milênio.
O Quinto Movimento propõe a valorização do passado que deu
origem à brasilidade, apontando as forças físicas e espirituais
necessárias para prosseguir a construção nacional, servindo como
um farol para iluminar o destino do Brasil e colocá-lo no lugar da
história ao qual ele pertence.

* DIOGO OLIVEIRA é antropólogo.


PARTE 1
A origem das ideias
Neste primeiro capítulo, eu conto como foram os passos
iniciais da minha formação e compreensão sobre o Brasil e o
mundo, descrevo as origens do meu apreço pelo Brasil, por sua
história, por sua formação social e pela biografia daqueles que
ajudaram a erguer a nossa Pátria.

Conto também como construí minha admiração pelo povo


brasileiro, por sua capacidade de criar soluções para
problemas e desafios aparentemente insuperáveis, por sua
tenacidade e resistência a todos os penares e sofrimentos
impostos pelas adversidades que teve que superar.

Finalmente, aparece também na alvorada da vida a


valorização da liberdade, liberdade para o Brasil, liberdade
para o povo, liberdade como condição para uma vida nacional
não submissa, conceito tão distinto do individualismo
narcisista em voga nos dias de hoje.
CAPÍTULO 1

As primeiras
visões do Brasil
A primeira vez que me dei conta do mundo, estava sobre um
cavalo. Meu pai trabalhava em uma fazenda. Lembro que ele
chegou a cavalo e me pôs montado. Eu devia ter uns três anos e vi
outra dimensão do mundo. O mundo visto de cima: o rio, o
horizonte, os campos. Data dessa época minha admiração, respeito
e paixão pelos cavalos.
Minha vida mudou ainda na infância. Meu pai faleceu jovem,
quando completei nove anos. Minha mãe ficou viúva aos 27 anos e
já com oito filhos, dos quais sete estavam se criando e eu era o mais
velho. Morávamos na casa da mãe de meu pai, enquanto não
conseguíamos uma casa própria. Fui morar com um parente, primo
do meu avô, um homem raro naqueles ermos. Tinha uma
curiosidade intelectual, e embora vivesse na zona rural, trazia da
capital, Maceió, publicações, revistas, e mantinha em casa uma
coleção do almanaque do Tico-Tico, voltada para as crianças e a
juventude.
Lembro-me bem de uma coleção da revista Realidade, muito boa,
com grandes reportagens. Ele trazia de tudo e eu, curioso, lia
aquelas publicações e os almanaques da época.
Esse primo em terceiro grau, Macário de Albuquerque Loureiro,
teve grande influência na minha formação. Ele acompanhava
detalhadamente a corrida espacial entre Estados Unidos e União
Soviética para ver quem chegava primeiro à lua. Guardava alguma
simpatia pelo socialismo e um parentesco com Otávio Brandão, um
viçosense, primeiro tradutor do Manifesto Comunista no Brasil e
primeiro vereador do Partido Comunista no Rio de Janeiro, parente
dele e de Fernando Henrique Cardoso. Ouvíamos o Repórter Esso e
os noticiários da Rádio Globo, além dos jogos do campeonato
carioca, e ele, torcedor do América, sempre falava de dois grandes
jogadores, Patesko, do Botafogo, e o americano Canário.
Terminei o curso primário (do primeiro ao quinto ano do ensino
fundamental) no grupo escolar de minha cidade natal, Viçosa,
Alagoas, depois de alfabetizado em uma escola rural, onde meu pai
trabalhava numa fazenda de gado. Bons tempos, uma época em que
as escolas não renegavam a história e a memória do País.
Aprendi no curso primário a admirar, respeitar a formação social
brasileira em seus múltiplos aspectos, os feitos dos seus
construtores, a saga de gigantes que contribuíram para nossa
criação.
Lembro-me que meninos olhávamos para o mapa-múndi da sala
do grupo escolar e nos comparávamos com os Estados Unidos, com
a União Soviética, que chamávamos de Rússia, com a Inglaterra,
com a França. Eram esses os grandes países que julgávamos
equivalentes ao Brasil, à sua grandeza.
E uma professora, dona Laurita Rodrigues de Moura, do curso
primário, exerceu uma profunda influência na minha formação.
Ela cultivava esse apreço pela história, pelas efemérides. Fazíamos
redações sobre o almirante Tamandaré; Ruy Barbosa; Duque de
Caxias; Floriano Peixoto; Castro Alves. Sempre que tinha uma
efeméride, ela pedia uma redação.
O município onde eu nasci fica numa área de transição entre a
Zona da Mata e o Agreste alagoano, local exato da morte de Zumbi
dos Palmares, segundo apontou, em livro inédito, o geógrafo
alagoano Ivan Fernandes Lima, a partir de informações dos
arquivos portugueses. Foi lá, no Quilombo do Sabalangá, que
Zumbi travou seu último combate, em 20 de novembro de 1695,
abatido pela tropa de André Furtado de Mendonça no sumidouro
do rio Paraíba. Aliás, essas circunstâncias concorreram para que já
na Câmara dos Deputados, em 1995, nos 300 anos da morte do
Zumbi, eu apresentasse projeto de lei tornando o 20 de novembro
Data Nacional e o ano de 1995 em Ano Zumbi dos Palmares, projeto
aprovado, sancionado e tornado lei.
Meu pai se chamava José Figueiredo Lima e minha mãe Maria
Cila de Almeida Rebelo, ambos de famílias antigas, há cerca de 200
anos na região. Algumas dessas famílias descendem de uma índia
avó de todos nós, que viveu com um português e foi mãe de muitas
gerações de viçosenses, que se casaram entre si e então quase todo
mundo é parente. Se um viçosense conversar dez minutos com
outro, vai descobrir parentesco. São descendentes de portugueses
antigos, Sousa, Martins, Pereira, Torres, Rebelo, Teixeira,
Albuquerque, Almeida, Vasconcelos, Soares, Santos, Loureiro,
Brandão, Silva, Ferreira, Barros, Falcão, Gracindo, entre outros.
Essas famílias antigas trabalhavam na agricultura. Meu trisavô,
Apolinário Rebelo Pereira Torres, tinha um engenho, foi senador
do Estado, foi intendente. Intendente era o prefeito, escolhido pela
Câmara, em uma espécie de parlamentarismo municipal. Outro
meu trisavô era o vigário da cidade, o padre Manuel, tido como
homem muito realizador. Construiu o cemitério dos coléricos,
construiu a igreja Matriz, trouxe as principais imagens de
Portugal, uma Divina Pastora e um São Francisco lindos, de
madeira. O padre era considerado um excelente pai de família e
todos os seus filhos foram educados, falavam latim, francês. Um
deles, meu bisavô, também foi intendente. Naquela época, os
padres não se casavam, mas podiam ter filhos. Acho que o Império
os estimulava, pois, como não havia uma rede escolar, os padres
educavam os filhos e cumpriam função auxiliar, na ausência do
Estado, de formar os quadros da burocracia pública e mesmo da
iniciativa privada.
Uma outra filha dele, irmã do meu bisavô, foi a inspiração de
Graciliano Ramos para a personagem Madalena do romance São
Bernardo. Quando Madalena propôs a construção de uma escola,
seu marido, o fazendeiro Paulo Honório, proferiu a sentença
lapidar sobre a ganância e acusou a esposa de pensar em coisas
certas que dão prejuízo, enquanto ele praticava as coisas erradas
que davam lucro.
Um historiador viçosense, Alfredo Brandão, escreveu um livro
sobre a história do município, chamado Viçosa de Alagoas. Era um
médico militar que esteve em Canudos e escreveu também um
livro sobre o episódio. Ele conta que a cidade começou a ser
povoada na época do Quilombo dos Palmares, quando os paulistas
fizeram um acordo com os índios e alguns chefes quilombolas.
Domingos Jorge Velho recrutou índios para combater os
quilombos, prometendo transformar uma parte das terras dos
quilombolas em assentamentos indígenas, o que foi feito em
Viçosa.
Os quilombos eram aldeamentos, unidades autônomas, como que
reproduzindo a organização tribal africana. Eles se juntavam,
organizavam-se e cediam homens para a luta em defesa do
conjunto e contra os paulistas. Domingos Jorge Velho prometeu a
alguns quilombos que eles ficariam com as terras desde que não
fornecessem homens e víveres a Zumbi. Então, ele estabeleceu um
cerco e isolou Zumbi política e militarmente. Essa é uma das
origens de Viçosa. Uma parte vem dos quilombos e outra dos
assentamentos dos índios Cambembes, remanescentes dos Caetés.
O ramo da minha família entrou em declínio econômico. Foi
dividindo terras, em um processo interminável de fracionamento,
até que meu pai ficou sem terra e foi ser soldado da borracha lá nos
anos 1940. Quando voltou, minha tia, sua irmã, dizia que nem o
reconheceu quando ele bateu na porta dela, estava desfigurado,
pois adquirira malária no Amazonas. Aí foi trabalhar nas fazendas
da região. Trabalhou na fazenda de Teotônio Vilela durante um
tempo, depois foi para outra fazenda em outro município, foi dono
de bar lá na cidade. E então adoeceu, desconfio de doença de
Chagas. Minha mãe dizia que o coração dele inchava, ficava
cansado. Morreu com cerca de 41 anos, deixou minha mãe viúva
muito jovem e isso era comum naquela época. Quando nasci, ela
tinha 17 anos e eu já era o segundo; o primeiro filho, que morreu
precocemente, teve com 16 anos.
Dessas recordações remotas, lembro-me bem do meu pai por
causa do cavalo e de sua permissão para que eu montasse, e da
Copa do Mundo de 1962. Para acompanhar os jogos, ele comprou
um rádio da marca Empire, que, depois, ficou muitos anos em
nossa casa. Ele ouvia rádio lá na roça, no sítio, e quando o Brasil
fazia um gol ele celebrava dando tiros de mosquetão. E me lembro
também que só atirava quando o Brasil fazia gol na Copa do Mundo
ou quando nasciam os irmãos mais novos. Eu sabia que tinha
ganhado um novo irmão porque ele saia para o terreiro e dava uns
tiros para anunciar.
Minha mãe era uma mulher do campo, da roça. Foi professora.
Quando viúva, teve que terminar o curso primário para começar a
trabalhar. Depois fez o curso pedagógico para lecionar. Ela foi dar
aula numa escola rural e eu a acompanhava em noites de chuva. Ia
com ela para aquelas escolas noturnas, de trabalhadores. Via-os
caindo de sono e de cansaço em cima dos cadernos. Passavam o dia
naquela jornada pesada e à noite ainda iam estudar.
Quando meu pai morreu, Teotônio Vilela, dono da fazenda,
passou um tempo pagando o salário dele. Ele manteve o ordenado
até que minha mãe fizesse o concurso na Prefeitura e começasse a
dar aula. Enquanto isso, ele ajudava e permaneceu comprando os
meus livros. Todo começo de ano, eu ia à casa dele e levava uma
lista de livros para continuar estudando. Quando cheguei à
diretoria da União Nacional dos Estudantes (UNE), ele me dava as
passagens para percorrer o Brasil. Manifestava orgulho de eu ter
chegado à presidência da UNE. Nós conversávamos muito. O Téo
Vilela, filho dele, conta que quando morávamos na roça e meu pai
ia falar com Teotônio, dizia: “ó, Teotônio, esse menino só pensa em
estudar, quer ir para cidade estudar”. E Teotônio estimulava, fazia
todo gosto por aquilo, tanto que seguia pagando os livros escolares
a cada ano.
Minha mãe tinha pouca renda, mas oferecia apoio afetivo,
emocional, que era uma coisa muito forte. Você olhava aquela
mulher com um monte de meninos, criando todos, esforçando-se e
cantando. Tudo o que ela fazia em casa era cantando. Cantava os
clássicos da época, as músicas do Noel Rosa, Jackson do Pandeiro,
Luiz Gonzaga e os sucessos de Jair Amorim e Evaldo Gouveia.
O Pelé eu conheci pela minha mãe cantando a música da Copa de
1958. E acho que minha mãe descobriu o Brasil pelo Pelé. Quando
Nelson Rodrigues diz que o Brasil foi redescoberto pelo Pelé e pelo
Garrincha, pelos heróis da Copa de 1958, isso é absolutamente
verdadeiro. Teve o Pedro Álvares Cabral e depois teve o Pelé. As
pessoas não fazem ideia do quanto Pelé elevou o orgulho nacional
das pessoas mais simples, ou seja, o menino brasileiro na Suécia,
impondo com sua arte, com seu talento e com sua força o respeito
pelo Brasil.
Minha trajetória escolar começou aos sete anos de idade. Fui
alfabetizado na escola rural. Depois fui para o Grupo Escolar 13 de
Outubro e em seguida para outro educandário básico, o Monsenhor
Machado. O nome “13 de Outubro” registra a data da emancipação
política da cidade. É a escola onde minha mãe já tinha estudado. O
“Monsenhor Machado” foi homenagem ao padre que me batizou, o
padre Machadinho. Quando faleceu, deram seu nome ao grupo.
Creio que pelo menos parte do meu nacionalismo nasceu desse
apego telúrico à terra, ao campo. Nas férias, visitava o sítio do meu
avô e convivia com a literatura de cordel. Fazíamos reuniões
noturnas, ou nas tardes dos fins de semana, para leitura das obras
clássicas da literatura de cordel. O Pavão Misterioso, Melancia e Coco
Verde, A Chegada de Lampião no Inferno, entre outros, eram livros de
sucesso, dos grandes cordelistas brasileiros, que comprávamos nas
feiras de Viçosa. Eram poucos os que sabiam ler na roça, então os
meninos da cidade, quando iam passar as férias no campo,
prestavam esse tipo de serviço.
Nas feiras de Viçosa, muitas vezes, passava horas apreciando os
desafios, os duelos dos repentistas, que eram uma viagem não só
pela poesia, pela criatividade, mas também pela História do Brasil.
Alguns desses repentistas conheciam e usavam episódios históricos
nas suas poesias. Isso também ajudou a formar a minha visão do
mundo. O conteúdo dessa literatura e o prazer estético dos
desafios, que essa poesia proporcionava, criavam também um
vínculo afetivo, além do intelectual, com expressões da cultura do
nosso povo. Mais adiante, quando me deparei com Gonçalves Dias,
Castro Alves ou os modernistas, é como se compusesse um
universo amplo da cultura e da memória do País.
Quando iniciei uma atividade política regular, militante, já tinha
consolidado esse apego, esse vínculo com as coisas do Brasil, com a
história, a memória aprendida nos bancos escolares, nos manuais
do curso primário, do ginásio e do ensino médio. Nada no Brasil me
era estranho, desde os descobridores, os Bandeirantes, até os
caudilhos que participaram dessas rebeliões do Império, como os
gaúchos David Canabarro e Bento Gonçalves; o pernambucano Frei
Caneca, ou os heróis da Guerra do Paraguai. Todos me eram
familiares e antes de serem identificados como protagonistas de tal
ou qual episódio representavam personagens da história, da
construção do Brasil. Eu via essas narrativas quase como se fossem
de gente da família, de parentes, de pessoas com as quais eu tinha
vínculo. E qual era esse vínculo? Era a gente do meu País. Isso os
tornava muito próximos. A eles eu dedicava admiração, respeito,
afeto, e cultivar a memória desses personagens era como se fosse
um dever, preservar a minha própria memória, de minha
comunidade e de meu País.
Fiz o exame de admissão e, em 1968, entrei no Colégio Agrícola
Floriano Peixoto, em Satuba. Era uma meninada na mesma faixa de
idade e convivíamos com estudantes do Ensino Médio, do Curso
Técnico. No colégio, havia uma influência de ideias, provavelmente
da Ação Popular Católica, uma certa militância progressista, uma
simpatia pelo movimento estudantil. O alagoano Vladimir Palmeira
era um dirigente destacado lá no Rio de Janeiro. Isso estabelecia
também uma certa ligação e admiração por um conterrâneo que
era líder estudantil importante. Tínhamos simpatia pelo Maio de
1968 na França e pelos Kennedy e suas ideias liberais nos Estados
Unidos. O assassinato do Robert Kennedy foi um choque para nós.
Embora permanecesse apenas um ano no internato do Colégio
Agrícola Floriano Peixoto, ele teve uma importância grande para
mim. Por quê? Porque havia poucos ginásios, muitos meninos
estudavam em escolas rurais; se o colégio agrícola não oferecesse
além do curso técnico o curso ginasial, a maioria não teria
oportunidade de frequentá-lo. Defendo a tese do retorno a esse
modelo de internato, não apenas para os colégios agrícolas, mas
também para os colégios técnicos. Neles você cuida não apenas da
educação formal, do ensino e da aprendizagem de matemática, de
português, de história, de todas as disciplinas, mas também cuida
da educação para a vida.
Havia um horário para dormir, impreterivelmente às 22 horas, e
despertar às 5h30 para o banho e o café, pois às 7h o professor
estava na sala de aula. Após o almoço, fazíamos atividades de
campo duas, três vezes por semana. E assim se mantinha a
disciplina dentro daquele ambiente com centenas de crianças e
adolescentes. Ao que tudo indica isso foi abandonado. O colégio
nem se chama mais Floriano Peixoto, acabaram com a homenagem
ao grande brasileiro e alagoano porque integraram essas escolas
técnicas em um sistema único que não tem nome. Em nome do
combate à herança da ditadura, varreram a hierarquia e a
disciplina das escolas, e o resultado é que não há nem disciplina,
nem hierarquia e nem aprendizagem.
Depois que saí do colégio agrícola, terminei o ginásio na minha
cidade. Lá, publicamos um jornalzinho. Alguns professores
cultivavam a curiosidade intelectual, política. O professor de
português, padre Severiano Pires Jatobá, era muito culto,
recomendava-nos ler Machado de Assis, Jorge Amado, Graciliano
Ramos, Júlio Verne. Ele nos dizia: “Tudo isso eu lia no seminário,
escondido dos meus superiores; vocês leiam aqui também”. O
professor de Educação Moral e Cívica era o tabelião Romildo
Monteiro, hoje juiz aposentado. Em 1971, o cineasta Leon Hirszman
filmou São Bernardo, baseado na obra de Graciliano Ramos, na
minha cidade. Estavam lá Mário Lago, Othon Bastos, Isabel Ribeiro;
e o professor Romildo formou equipes para entrevistar o diretor e
os artistas. Coube ao meu grupo entrevistar a Isabel Ribeiro.
Nessa época, uma prima minha e militante do Partido Comunista
Brasileiro Revolucionário, o PCBR, foi presa em Recife. Maria Ivone
era de uma família bem conhecida e também parente do meu avô.
A prisão dela repercutiu muito na cidade. Claro que tinha gente
que dizia “não, ela não queria fazer o bem, era terrorista”. Uma
irmã dela, a Sônia, estudava na nossa classe. Então, o Padre Jatobá
disse na sala de aula: “Vocês estão sabendo que a irmã da Sônia foi
presa? Ela é uma pessoa muito boa, generosa e humana”. E aquilo
me fez pensar: “Se essa moça é de uma organização de esquerda e é
muito boa e humana, então eu preciso conhecê-la”. Quando
libertada, fui visitá-la e devo-lhe minha primeira leitura de Jorge
Amado, uma indicação dela.
Em 1971, terminei o ginásio e fui para Maceió fazer o científico (o
ensino médio da época) e, em 1975, entrei para o curso de Direito
da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Morei na residência
universitária, um ambiente coletivo, do pessoal mais pobre, do
interior, onde um grupo de alunos cultivava uma forte curiosidade
intelectual e política.
A universidade é, de fato, um mundo que se descortina para um
jovem recém-chegado do interior. Você tem aula de filosofia, de
história do direito, de história da arte; abre-se um novo horizonte
intelectual. Há a presença de alunos de todas as carreiras ali na
residência, desde o pessoal do Direito, que era o meu pessoal, mas
também o da Engenharia, da Medicina, das Ciências Humanas.
Convivíamos com todos.
Minha primeira atividade de extensão não foi no meu curso. Um
amigo que estudava agronomia me convidou para assistir a um
seminário de entomologia. Então minha primeira experiência
extracurricular foi sobre o estudo dos insetos. Gravei na memória a
grande presença de especialistas indianos nesse seminário.
Frequentei a preparação dos encontros científicos dos
estudantes de medicina, quando líamos textos de Samuel Pessoa,
renomado médico sanitarista de esquerda e nacionalista.
A curiosidade intelectual era preenchida por um universo muito
amplo. Aqueles que tinham mais engajamento buscavam livros de
Celso Furtado, de Maria da Conceição Tavares, romances, não só de
autores brasileiros, contistas, além dos clássicos Graciliano Ramos,
Machado de Assis, Jorge Amado. Os latino-americanos também
eram apreciados, como Gabriel García Márquez e Mario Vargas
Llosa, todo mundo tinha que conhecer Batismo de Fogo, leituras
quase obrigatórias nessa época. Líamos contistas brasileiros como
o Domingos Pellegrini Júnior, o Wander Piroli, o João Antônio, os
jornais Movimento, O Pasquim e Opinião. Eram publicações influentes
no meio estudantil politizado.
Na universidade fui me ligando a grupos mais de esquerda e me
tornei monitor na disciplina de Ciências Sociais. Alguns estudavam
O Capital, de Karl Marx. História era uma disciplina importante
para nós. Discutíamos muito a obra de Nelson Werneck Sodré.
Presença dos Estados Unidos no Brasil, de Moniz Bandeira, também era
referência na época. Vários alunos da residência universitária
traziam livros não considerados de esquerda. Ariano Suassuna não
era autor visto como de esquerda e nem Gilberto Freyre. Ariano
tinha uma percepção mais neutra, já Gilberto Freyre era um
homem tido como conservador, politicamente de direita, mas o
líamos por curiosidade intelectual e também pela influência dos
outros que conheciam, gostavam e diziam ser muito bom e a gente
terminava lendo. Posso dizer que Gilberto Freyre me proporcionou
a leitura mais marcante de minha formação – Casa Grande & Senzala,
na mesma proporção dos textos de Marx e Engels.
O cinema também se fazia presente nos filmes de Ingmar
Bergman, do neorrealismo italiano e dos franceses. Esse era o
ambiente na época.
Então organizamos o movimento estudantil em Maceió. A UNE
estava renascendo e entrei para o centro acadêmico do curso de
Direito. Havia uma militância entusiasmada na universidade,
alunos e alunas de todos os cursos participavam. Nós
reconstruímos essas entidades, os centros acadêmicos e o Diretório
Central dos Estudantes (DCE).
O movimento estudantil era uma experiência multidisciplinar,
na qual você desenvolvia habilidades para planejamento,
organização, redação de textos, oratória e capacidade de mediar
opiniões políticas diferentes. Além disso era uma atividade
intelectualmente enriquecedora pelo número de debates,
seminários e conferências que realizávamos ou das quais
participávamos. Retomamos os festivais de música universitária,
organizamos atividades esportivas e reinauguramos o Teatro
Universitário de Alagoas com a peça Esperando Godot, de Samuel
Beckett.
A essa altura eu já militava no PCdoB desde 1977, o que
estimulava as leituras e o interesse pelas mais variadas disciplinas
ligadas à economia, política externa, sociologia, história. Sobre
Cuba havia um livro do jornalista norte-americano Herbert
Matthews, uma espécie de biografia de Fidel Castro; o também
americano Edgar Snow publicara outro que tratava da China de
Mao Tsé-Tung, traduzido para o português como Estrela vermelha
sobre a China, e finalmente os livros do jornalista australiano
Wilfred Burchett referentes aos feitos de Ho Chi Minh contra os
Estados Unidos na Guerra do Vietnã.
No interesse por política, além dos clássicos marxistas, pude
conhecer os livros dos economistas norte-americanos Paul Baran e
Paul Sweezy, além do inglês Maurice Dobb, marxistas muito
apreciados nos círculos de esquerda.
Em Alagoas tínhamos relações políticas amplas, inclusive nos
meios vistos como conservadores. Recordo que os ônibus que
transportaram os delegados de Alagoas para o congresso de
reconstrução da UNE em 1979, em Salvador, na Bahia, foram
cedidos pelo governo do estado. O governador nomeado pelo
Regime Militar era Guilherme Palmeira, irmão do líder estudantil
Vladimir Palmeira e filho do ex-senador da UDN Rui Palmeira. A
curiosidade é que Rui Palmeira fora amigo de Luís Carlos Prestes,
líder do Partido Comunista, e Guilherme, mesmo governador
nomeado da Arena, comportou-se dentro dos seus limites como um
democrata, respeitado por todos nós.
A UNE proporcionou momentos importantes de aprendizagem
pelas exigências dos compromissos políticos e intelectuais.
Entrevistas, debates, viagens internacionais faziam parte da
agenda de qualquer dirigente da UNE na época. Foi mais um
momento de conhecimento do Brasil, de interação com estudantes
de todo o País, do Acre ao Rio Grande do Sul, de encantamento com
essa combinação magistral de diversidade e unidade da nossa
Pátria, de como éramos ao mesmo tempo tão diferentes e tão
parecidos, tão distintos e tão iguais.
Eu já trabalhava como jornalista em Maceió, no Jornal de Alagoas,
e cheguei a escrever alguma coisa para o jornal Movimento.
Participei das atividades do Sindicato dos Jornalistas de Alagoas e
estive presente no Congresso dos Jornalistas pela Liberdade de
Imprensa, em São Paulo, como delegado do sindicato.
Aí creio que já tinha as ideias mais ou menos firmes e as
convicções formadas sobre o Brasil e o povo brasileiro.
PARTE 2
Os quatro movimentos que
construíram o Brasil
Os quatro capítulos seguintes descrevem o esforço de
construção do Brasil em quatro grandes movimentos:

O PRIMEIRO MOVIMENTO, da formação da base física, da


geografia, compreende do marco zero, em 1500, ao Tratado de
Madri, em 1750.

O SEGUNDO MOVIMENTO, da epopeia da Independência, vai de


1750, com o Tratado de Madri, até a data magna do 7 de
Setembro de 1822 e destaca as figuras iluminadas de
Tiradentes, D. Pedro I e José Bonifácio.

O TERCEIRO MOVIMENTO, do período compreendido entre 1822


até a Abolição da escravidão, em 1888, da consolidação da
Independência e da unidade e integridade territorial do Brasil.

O QUARTO MOVIMENTO situa-se entre a Proclamação da


República, com Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, até os
dias atuais, e tem como epicentro os dois períodos de Getúlio
Vargas, suas ideias e o seu projeto de Brasil. Em torno da Era
Vargas foi criado um conflito entre varguismo e
antivarguismo, que permanece atual na economia e na
política.
CAPÍTULO 2

PRIMEIRO MOVIMENTO
Formação da base física
O Brasil surge na História da Civilização como resultado do esforço
português para romper o bloqueio imposto pela tomada de
Constantinopla pelos turcos, em 1453, em busca de uma rota
alternativa para o comércio da Europa Ocidental com o Extremo
Oriente.
Caindo o último bastião romano no Oriente Médio, a capital do
Império Bizantino, interrompeu-se o fluxo de comércio de
produtos de alto valor que chegavam à Europa pelos navios de
Veneza, que carregavam naquele porto do Levante.
Os turcos estabeleceram uma barreira tarifária insuportável,
elevando os preços das importações que faziam entreposto na,
agora, Istambul. Isso viabilizou a procura de novos caminhos para
a fonte de suprimento das especiarias, as chamadas commodities e
as mercadorias de alto valor, como sedas e porcelanas vindas da
China. Os portugueses saíram à frente para ocupar esse espaço
vazio do comércio internacional.
Neste particular, para contornar a fronteira turca, Portugal
dispunha de uma Marinha adequada, com barcos a vela
autônomos, as caravelas, isto é, navios sem as numerosas
tripulações de remadores das galeras do Mediterrâneo, que lhes
davam longo alcance e uma capacidade muito maior de carga.
Esses barcos poderiam contornar os grandes obstáculos políticos e
geográficos impostos pelos turcos, dispensando as rotas das
caravanas vindas do Oriente, chegando pelo mar diretamente aos
produtores da Índia e do sudeste asiático, trazendo de volta aos
mercados os mesmos produtos a preços competitivos. Tal situação
deu a Portugal uma hegemonia de 200 anos. O Brasil foi resultado
desses impasses.
Isso também foi possível pelo desenvolvimento tecnológico na
chamada Escola de Sagres, uma combinação de instituição pública
de estudos náuticos e estaleiro no Sul de Portugal, criada e
desenvolvida por um membro da Família Real, isto é, do governo
do país, o infante (príncipe) Dom Henrique.
Os cientistas portugueses aperfeiçoaram os instrumentos de
orientação geográfica e seus capitães puderam navegar à distância
do litoral, na época a única referência ainda visual dos marinheiros
que adentravam o Oceano Atlântico, então chamado de Mar
Tenebroso. Portugal estava com a faca e o queijo na mão para
tomar esse fluxo comercial até então dominado pelos italianos.
Assim começaram as chamadas Grandes Navegações, aventuras
incomparáveis, ainda insuperáveis, nem mesmo pela conquista do
espaço, que moldaram o mundo contemporâneo.
A possibilidade de acesso alternativo às especiarias da Índia,
navegando pelo Atlântico, foi o motor econômico desse processo
histórico, embora a inspiração ideológica fosse o internacionalismo
da Igreja Católica, que iniciou ali um projeto de dominação
mundial, concretizado por meio das diversas formas de
colonialismo, chegando ao formato do mundo de nossos dias.
Entretanto, embora apoiadas pelos banqueiros e comerciantes da
Itália e de novos mercados emergentes, como a Holanda e os
principados alemães, as chamadas Grandes Navegações foram,
efetivamente, um empreendimento estatal financiado, dirigido e
controlado pela Coroa portuguesa. Assim nasceu o Brasil: um
projeto do Estado lusitano, com forte apoio da iniciativa privada,
uma espécie de PPP político-econômica, formato inédito até então
na economia medieval. Aí teve início a Renascença econômica.
As Grandes Navegações foram um empreendimento levado a
efeito por tripulações formadas com marinheiros desempregados,
egressos das falidas linhas do Mar Mediterrâneo, vindos para
Portugal da Itália e do Oriente Médio, liderados por capitães e
pilotos portugueses, que levaram as caravelas pelos mares nunca
d’antes navegados. O conhecimento dos oceanos, das técnicas de
navegação e do uso dos instrumentos eram segredos de Estado,
guardados a sete chaves e punição drástica para vazamentos. Pena
de morte era condenação inapelável. Por isto até hoje são raros os
documentos sobre essas aventuras. Boca fechada era a regra.
Portugal já vinha explorando a costa africana, primeiro por
destinação geográfica, depois por necessidade e espírito de
aventura de seus marinheiros. Paulatinamente, foram avançando
pela costa ocidental do Atlântico até contornarem o Cabo das
Tormentas (junção dos oceanos Atlântico e Índico), que só passou a
ser chamado de Cabo da Boa Esperança depois de ser contornado
pelo capitão Bartolomeu Dias, em 1488, abrindo caminho para
Vasco da Gama descobrir o “caminho das índias” e, logo em
seguida, Pedro Álvares Cabral chegar à costa sul-americana e
conquistar efetivamente a Índia a ferro e fogo.
Esse esforço português foi baseado em uma geração de pessoas
de alta qualidade, de construtores da nação portuguesa, os Afonsos
de Albuquerque, os Franciscos de Almeida, os Vascos da Gama.
Outro português notável, Fernão de Magalhães, fez a viagem de
circunavegação a serviço da Espanha. Além dos recursos
financeiros e materiais, a diferença era essa gente muito
qualificada, que reunia as virtudes de navegadores, militares,
diplomatas, administradores e fizeram de Portugal, um país
pequeno, de população reduzida, o protagonista principal do ciclo
das Grandes Navegações. Homens de ciência que montaram, no
promontório em Sagres, uma verdadeira escola de construção
naval para melhorar a qualidade das caravelas, aproveitar o
conhecimento dos chineses e dos árabes, a vela triangular, o
astrolábio, a bússola. Tudo isso foi reunido pelos portugueses. Um
serviço eficiente de inteligência do reino de Portugal que atuou
desde a busca de um lendário reino cristão nas profundezas da
África ou Ásia, um belo capítulo do reino de um santo denominado
Preste João. O sonho do rei de Portugal era encontrar essa
imaginária nação da cristandade perdida nos confins do mundo.
O Brasil surgiu desse supremo esforço e daí veio a chegada de
Pedro Álvares Cabral, ano zero da construção, da invenção do
Brasil. E isso em uma época em que os impérios coloniais
disputavam territórios, influência, poder. Os portugueses e os
espanhóis concorriam no mesmo nível, depois surgiram os
franceses, os holandeses, os ingleses, com seus piratas e bucaneiros
(apoiados pela rainha Isabel I). Consta que o rei francês Francisco I,
ao tomar conhecimento do Tratado de Tordesilhas, celebrado
entre os reis de Portugal e de Espanha, teria comentado não ter
conhecimento de constar no testamento de Adão a divisão do
mundo entre seus primos, os reis de Espanha e de Portugal. Os
franceses não se conformaram e logo em seguida montaram um
empreendimento para instalar no Brasil uma colônia denominada
de França Antártica, no atual Rio de Janeiro, e, no Maranhão, outra
base denominada França Equinocial.
Eles tentaram tomar conta do Nordeste brasileiro. Já
contrabandeavam pau-brasil. Vem desses tempos e há até hoje
uma Praia do Francês em Alagoas, herança dessas visitas de
contrabando de pau-brasil. São Luís é a única capital brasileira não
fundada pelos portugueses, mas pelos franceses para homenagear
Luís IX, um rei francês, herói das Cruzadas e santo, canonizado
pelo papa Bonifácio VIII. A França Equinocial, no Maranhão, foi
parte desse esforço, e a França Antártica foi também um
empreendimento de fôlego e até hoje remanesce a Ilha de
Villegagnon, na Baia da Guanabara, em homenagem ao governador
francês. Os franceses só foram vencidos porque Portugal
considerou a derrota deles uma coisa estratégica para a
manutenção de seus domínios nos trópicos.
Também os franceses traziam uma ideologia religiosa para
justificar suas conquistas. Os colonos faziam parte da reforma
calvinista. Com isso, Portugal mobilizou seus missionários jesuítas
para enfrentar os protestantes numa luta pelas almas dos
indígenas. Mobilizou dois estadistas, os padres Manuel da Nóbrega,
português, e José de Anchieta, hispânico da ilha de Tenerife, mas
agregado à fração portuguesa da Companhia de Jesus. Esses dois
sacerdotes construíram uma aliança com parte dos indígenas que
não se juntaram aos franceses.
Uma velha contenda entre povos nativos, vinda dos tempos pré
cabralinos, foi reavivada nessa disputa territorial e religiosa entre
os europeus: os tamoios se aliaram aos franceses. Já os portugueses
conseguiram a adesão de uma outra tribo, liderada pelo cacique
Arariboia, que organizou o apoio dos tupis contra os franceses.
Esses formaram a infantaria e ajudaram Mem de Sá, o governador
português, e seu sobrinho Estácio de Sá, a derrotar o
empreendimento francês. A ambição colonial francesa depois se
deslocou para a região Norte, e até hoje está lá a Guiana Francesa,
com seus 700 quilômetros de fronteira com o Brasil. A Guiana,
departamento do território metropolitano francês, é uma pedra no
sapato brasileiro, pois faz limite com o Brasil. Ao contrário dos
antigos domínios ingleses e holandeses na região, que ganharam
suas independências (Suriname e Guiana), a colônia francesa está
ali, com soberania e o nome da metrópole com todas as letras, a
olhar para dentro da Amazônia brasileira.
Houve também o empreendimento holandês, mais ambicioso e
ainda mais duradouro que o dos franceses. Foram quase 30 anos de
presença holandesa no Nordeste, de Salvador, na Bahia, a São Luís,
no Maranhão. Na expulsão dos franceses do Maranhão deve-se
destacar o papel de Jerônimo de Albuquerque Maranhão, filho da
índia Maria do Espírito Santo Arcoverde e de Jerônimo de
Albuquerque, irmão da donatária de Pernambuco, Beatriz de
Albuquerque, esposa de Duarte Coelho, que precisou assumir uma
tarefa na Índia e deixou a capitania sob a direção da esposa.
Em comparação com as tentativas francesas, o esforço holandês
foi mais consistente, mais persistente. Eles chegaram ao Brasil com
um projeto pronto. Ocuparam a cidade mais próspera da colônia,
Olinda, fundaram outra para eles, Recife, e fizeram um acordo com
as dissidências locais da economia, os usineiros inconformados
com a anexação de Portugal à corte espanhola. Isso significava que
seus mercados pré-Felipe II, nos Países Baixos, estariam fechados.
O efeito imediato da união das coroas foi uma queda vertiginosa do
preço interno do açúcar, com o fechamento do porto de Roterdã, o
entreposto europeu da produção pernambucana, uma grande crise
econômica, contornada pela chegada dos batavos e a volta aos
mercados tradicionais. A Espanha não tinha um sistema de
comercialização para o açúcar.
Problema: o antagonismo religioso entre os católicos de origem
lusitana e os holandeses calvinistas. Esta questão, no confronto
final, inviabilizou o projeto da Companhia das Índias Ocidentais, a
empresa gestora e os investidores e proprietários do
empreendimento, já com formato capitalista, mas com forte apoio
do governo de Amsterdã.
Os batavos, eram assim chamados, trouxeram não apenas
militares, um exército formal, treinado, profissional, mas também
administradores, pintores, contadores e comerciantes judeus.
Muitos vieram da Holanda para cá. Maurício de Nassau,
governador, foi um grande administrador, construiu o palácio
onde hoje funciona a prefeitura de Olinda e deixou ali essa
herança.
A derrota dos holandeses não foi coisa simples. Os batavos
conquistaram o Brasil passo a passo. Primeiro tomaram a Bahia,
inclusive a capital, Salvador, e a seguir ocuparam o Nordeste
inteiro. Estiveram em Natal, em Fortaleza, que tem origem em um
forte criado pelos holandeses. Em 1640, com a restauração da
soberania portuguesa, o fim da União Ibérica e a ascensão da
família Bragança, com seu rei Dom João IV, foram aos poucos se
restabelecendo os canais tradicionais de comercialização. Afastada
a hostilidade espanhola, os governos de Lisboa e Amsterdã
voltaram às boas e a Holanda retirou o estado de guerra,
enfraquecendo o apoio ao empreendimento brasileiro. O Nordeste
batavo teria de se resolver com as próprias pernas.
As coroas de Lisboa e Amsterdã entraram em entendimento e
trocaram a devolução do Nordeste do Brasil pelas feitorias
portuguesas na atual Indonésia, preservando um entreposto em
Timor para Portugal, o atual Timor-Leste, país de língua
portuguesa na Oceania.
Com isso, a Companhia das Índias ficou sem sua base
diplomática. Entretanto, decidiu se manter no território brasileiro
e também em Angola, tomada durante a guerra contra a Espanha.
Criou-se um embaraço com a administração portuguesa, que não
conseguia se restabelecer no Nordeste ocupado. Aí se formou uma
grande coalizão interna a culminar na organização de um exército
nativo para combater o invasor calvinista. Esse movimento
constituiu o surgimento da nacionalidade brasileira, num mesmo
momento em que, também na Europa, os povos se definiam nos
seus territórios e criavam seus estados nacionais e todo o conceito
de Nação se consolidava. O Brasil foi contemporâneo.
Passo relevante para enfrentar os holandeses, formou-se uma
grande frente, integrada por paulistas, baianos e nordestinos, com
populações de todas as etnias. Naqueles tempos, é um exemplo
raro de integração inter-racial e o primeiro caso de ação conjunta
das diversas regiões da Colônia, dando um importante passo para o
reconhecimento da unidade nacional configurada no País de
nossos dias.
A expulsão dos invasores deveu-se principalmente ao desgaste
de seu relacionamento com os produtores locais, em virtude de um
excessivo endividamento de proprietários de engenhos, e a uma
ação truculenta dos administradores batavos para cobrar as
dívidas dos agricultores e criadores. Aí se deu o rompimento da
Companhia com os locais. Para a guerra civil, foi um passo. A
questão religiosa pesou muito porque era crescente o choque entre
o catolicismo português e colonial e os hereges apontados pelo
padre Antônio Vieira em seu Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de
Portugal contra as de Holanda, um libelo a favor da guerra contra os
hereges.
Houve um apoio do estado português, depois de constatado que
os patriotas, como eram chamados os rebeldes, estavam vencendo
a guerra e terminariam por mandar os holandeses de volta para a
Europa. Então Lisboa resolveu agir para garantir sua soberania e
não perder o controle da situação. Já havia sinais de que o levante
dos pernambucanos poderia “degenerar” em algum movimento
autonomista com possível independência da metrópole, um tema
até então desconhecido no mundo colonial. O governo português
apoiou a luta armada, enviando equipamentos estratégicos, como
artilharia e marinha.
A coalizão brasileira se iniciou com os usineiros baianos
enviando recursos para armar uma força de combatentes,
comandada por um oficial crioulo, isso é, negro nascido no Brasil,
Henrique Dias. Esse terço, denominação de uma unidade militar
equivalente em nossos dias a um batalhão de infantaria, entrou em
choque com as tropas holandesas, fez guerra de guerrilha e
libertou alguns territórios. A esse se somaram “aventureiros”, os
chamados milicianos paulistas, na época conhecidos como
bandeirantes.
O comandante dessas tropas irregulares de São Paulo era um
cristão novo (judeu convertido), Antônio Raposo Tavares, filho de
uma judia convertida e perseguida pela inquisição em Portugal.
Saindo de São Paulo, ele subiu com uma tropa rumo a Pernambuco
e desceu até a Bahia combatendo os holandeses. Aliás, reconhecido
e elogiado pelo padre Antônio Vieira. O momento decisivo desse
episódio foi a aliança com os índios de Poti (nome de batismo de
Filipe Camarão), cavaleiro do Império, um aristocrata incorporado
à geopolítica de Portugal. Os mazombos (brasileiros de primeira
geração, filhos de estrangeiros, classe inferior aos reinóis, naturais
de Portugal metropolitano) André Vidal Negreiros e João
Fernandes Vieira, os próprios portugueses e Henrique Dias,
sargento-mor (coronel) dos negros, negociaram ali a libertação dos
cativos, organizaram um terço e bateram-se pela expulsão dos
holandeses.
Os holandeses, com uma tropa formal, soldados profissionais
europeus, oficiais de academia, militares de carreira, mas pouco
adaptados ao combate nos trópicos, naquela capoeira, enfrentando
uma espécie de guerrilha, não estavam preparados para aquele
tipo de combate. Embora o Estado holandês tivesse se
desinteressado em parte pela guerra na América do Sul, depois da
retirada de seus inimigos europeus espanhóis, havia uma
disposição de apoiar o empreendimento econômico da Companhia
das Índias. Assim, ficaram tropas metropolitanas e uma
considerável força de mercenários alemães, franceses e poloneses,
também soldados profissionais de primeira linha comandados por
oficiais holandeses, para afirmar o caráter oficial do Estado
holandês na participação desses militares no conflito. Foi, de fato,
uma guerra internacional.
Estive nos lugares das grandes batalhas, nos arredores de Recife,
visitei o sítio dos Guararapes e o Monte das Tabocas, em Vitória de
Santo Antão, com o meu saudoso amigo Eduardo Campos. Ficamos
contemplando aquele cenário, aquela paisagem, viajando no
tempo, imaginando o drama dos militares holandeses treinados em
academias militares para combates regulares europeus, entre
grandes formações, para guerras de posição, subitamente
envolvidos numa guerra de guerrilha contra grupos fragmentados,
em emboscadas, tipo morde e foge. Eles ali, os europeus, com
fardamento pesado feito para climas frios, enfrentando aquele
exército de guerrilheiros seminus, com grande mobilidade e
agilidade, negros, índios, caboclos, cafuzos, e, algo inimaginável,
mulheres (não eram vivandeiras, mas combatentes de armas nas
mãos). Eu dizia para o Eduardo Campos, olhando o horizonte: -
Você imagina aqui esses soldados holandeses, esses comandantes
europeus, contemplando o oceano, que dá para ver ali do Monte
das Tabocas, e a vida deles toda do outro lado, as famílias, as
esposas, tudo lá. E eles aqui nessa luta insólita. Que motivação
tinham esses soldados para enfrentar uma adversidade dessas?
Tanto não tinham que terminaram derrotados.
Foi grande o esforço dos holandeses para ocupar uma área
produtora da mais importante commoditie da época, o açúcar. O
porto de Recife era importantíssimo no mundo, talvez fosse o
segundo depois de Londres em movimento de valores. Era uma joia
que interessava aos holandeses.
Ainda havia a disputa colonial dos portugueses com o Império
espanhol. Os castelhanos estavam ali, nos Andes, mas esses
espanhóis ambicionavam ocupar toda a base física legada pelo
Tratado de Tordesilhas. Pelo tratado, se fosse traçado um fio entre
Belém do Pará e Laguna, em Santa Catarina, a leste era português,
a oeste era tudo espanhol. Então, no início, os portugueses
receavam ferir o acordo, porque a Espanha poderia em função
disso cobiçar outras áreas de Portugal pelo mundo. Portugal já
estava na África, na Ásia, na Oceania.
Mas os bandeirantes pouco ligavam para esses cuidados dos
punhos de renda de Lisboa. Antes mesmo da União Ibérica, em
1580 (foi até 1640), os paulistas já avançavam território a dentro,
ignorando as linhas políticas e tratados dos europeus. Eram esses
os primeiros brasileiros com sentimento de nacionalidade que
lideravam expedições pelos sertões. Filhos, netos, bisnetos e
descendentes de cristãos novos banidos para a América, aqui
chamados de degredados ou simplesmente de portugueses, casados
com índias nativas, batizados com nomes cristãos, mas conhecidos
por seus nomes em tupi-guarani. Na verdade, essas marchas eram
parte de uma geopolítica indígena anterior ao descobrimento,
lutas pela hegemonia entre as tribos da hinterlândia. Os tupis
guaranis do planalto, já contando com os conhecimentos militares,
com a logística e com as armas dos novos habitantes da terra,
conseguiram dessa forma se impor e anexar novos territórios
depois herdados pelo Brasil. Esse foi um episódio importante, que
antecedeu a União Ibérica.
Quando as coroas de Lisboa e Madri se uniram sob Felipe II, as
linhas imaginárias desapareceram. O que era uma estripulia de
mamelucos virou uma política de Estado, pois os portugueses se
aproveitaram para invadir os territórios hispânicos. A anexação de
Portugal pelos espanhóis, na América do Sul, foi uma desvantagem
que Portugal reverteu favoravelmente a si. Nesse processo também
os colonos brasileiros, ditos bandeirantes, assumindo-se para todos
os efeitos como súditos da Espanha, sentiram-se livres e
autorizados a passar dos limites de Tordesilhas e foram entrando
pelo continente, demarcando, criando e mapeando uma toponímia
na língua geral (tupi-guarani) que, se não era portuguesa,
tampouco era espanhola. Isso criava uma confusa soberania, pois
esses exploradores iam penetrando com as bandeiras lusitanas,
plantando marcos, criando bases de suprimento, enfim, deixando
as marcas da posse do território. Foi um momento
importantíssimo, tão grave que se pode desconfiar que constituísse
um processo espontâneo e inocente de aventureiros infatigáveis.
Havia dois processos geopolíticos paralelos: um deles, autóctone,
da expansão dos tupis-guaranis, submetendo seus rivais da
hinterlândia, tribos inimigas que puderam ser dominadas com a
adoção de técnicas guerreiras, de armas e de capacidade militar
incorporadas pelos colonos portugueses à expertise indígena de
andar e lutar nas matas e savanas. A outra mais sutil, pois em
Portugal havia um movimento de resistência à anexação à Coroa
espanhola, e, mais ainda, o temor de uma incorporação aos demais
reinos unidos pelas coroas de Castela e Leon, a chamada Espanha
contemporânea.
Portugal sempre foi um corpo estranho naquela península, desde
os tempos dos romanos até depois, na ocupação árabe, ali era um
emirado autônomo, independente, aquela parte não se misturava
com as demais províncias muçulmanas. Assim Dom Afonso
Henrique, fundador do país independente, assimilou as partes que
hoje compõem o Sul português sem muitas dificuldades. Por isso
acho que a elite portuguesa, organizada e conspirando pela
restauração da Independência, articulou aqui no Brasil, com esses
bandeirantes de ascendência lusitana, a criação de um status quo
que, um século depois, revelou-se decisivo na demarcação do
Tratado de Madri.
A situação no Nordeste era confusa, pois de um lado os colonos
rebelaram-se contra a ocupação holandesa, uma parte devido às
pressões econômicas da Companhia das Índias, e outra parte por
causa da então grave questão religiosa de católicos recusando a
conquista calvinista. Os colonos se acomodaram à conquista, na
medida em que a presença dos batavos se inseria no processo de
resistência à anexação espanhola. Este é um ponto que não pode
ser separado, pois vai desaguar na então nascente ideia de unidade
nacional de todos os territórios e dos povos de ascendência
lusitana, fundamental para a unidade nacional de nossos dias e não
um processo isolado de um momento de crise, como se deu nos
tempos da Independência. O papel dos bandeirantes paulistas na
conformação da base física do Brasil, da nossa geografia, foi
decisivo porque eles atacaram os domínios espanhóis ao Sul.
No Paraná o domínio da Espanha avançava até quase o litoral. No
Mato Grosso do Sul, o Itatim, aquelas vastas campinas, tudo era
Espanha. E o Rio Grande do Sul quase todo. Os bandeirantes foram
até lá. Há uma tese de suposta instrução portuguesa para essas
ações, que eles não agiam independentemente dos objetivos
portugueses. Uma respeitada historiadora de São Paulo, a
professora Anita Novinsky, tentou investigar, partindo de Jaime
Cortesão, um período da vida de Raposo Tavares no qual ele
desaparece do Brasil, estando provavelmente em Lisboa. Cortesão
escreveu a biografia desse conquistador, cuja frase final
dimensiona a opinião dele sobre Raposo Tavares: “A sensação de
haver levantado, com pesado esforço, a tampa de granito do
sepulcro, onde um gigante dormisse”.
Anita Novinsky procurava, ainda, motivações religiosas nessa
aventura do bandeirante, porque a mãe do Raposo Tavares foi
perseguida pela inquisição em Portugal. Ela acreditava haver
animosidade entre esses cristãos novos e os missionários jesuítas, o
que também justificaria as ações dos bandeirantes.
Mas essas entradas e bandeiras têm o epicentro numa grande
aventura, a chamada Bandeira dos Limites, empreendimento
decisivo para a conformação do atual território brasileiro. Esses
fatos se deram quando Raposo Tavares saiu de São Paulo, seguiu
pelo atual Mato Grosso do Sul, passou a Mato Grosso, entrou pela
Bolívia e subiu a Cordilheira dos Andes até o Peru. Sua chegada
espantou os espanhóis, que registraram em uma carta do vice-rei
de Lima a Madri, a presença dos “paulistas” nos domínios
espanhóis. Lima foi tomada de susto e horror pela presença
paulista. Os espanhóis do Pacífico se apavoravam porque os
jesuítas espanhóis tinham formado uma ideia muito ruim dos
bandeirantes, principalmente pelas cartas do padre Ruiz de
Montoya descrevendo os paulistas como facínoras.
Dessa marcha ousada do Atlântico até as possessões espanholas
no extremo Oeste da América do Sul, Raposo Tavares desceu e foi
até Belém e do Pará voltou para São Paulo em uma bandeira que
durou dois anos. Para se ter uma ideia do esforço físico dos
bandeirantes em tal marcha, basta lembrar que ao regressarem
Raposo Tavares e seus homens estavam irreconhecíveis. Ele chegou
a São Paulo em estado físico deplorável e foi tratado como
estranho pela família.
A questão geopolítica na epopeia de Raposo Tavares é decisiva
nesse processo. Anita Novinsky registra que esse homem só podia
ter uma causa, uma missão. Um indício, quase uma prova, é ter
morrido pobre. No seu testamento não deixou bens, não deixou
riqueza, ou seja, não andou atrás de ouro, de pedras, de posses
materiais. Devia cumprir uma missão de Estado, uma missão
oficial, porque terminou a vida sem nada. Jaime Cortesão cobra
esse reconhecimento e acho que o Brasil deve uma homenagem
condizente à grandeza histórica de Raposo Tavares. O nome de
uma rodovia é muito pouco para quem nos deu tanto chão, tanta
terra e tanto lastro.
Os feitos dos bandeirantes paulistas podem ser sintetizados na
bela sentença de Cortesão na mesma biografia sobre Raposo
Tavares: “Tempos houve em que São Paulo teve por arrabaldes o
Atlântico e os Andes e, por avenidas, o Prata e o Amazonas”.
Outro gigante da conquista do território brasileiro, Pedro
Teixeira, partiu de Gurupá, nas proximidades de Belém, subiu o rio
Amazonas com 1.200 índios canoeiros e flecheiros e teve que
desembarcar para seguir até Quito, no Equador. Foi um momento
de assombro dos espanhóis. Teixeira chegou numa expedição de
canoa, em 1637, pouco antes da restauração portuguesa, a Quito, e
os espanhóis fizeram-no voltar sob escolta, mas Teixeira já tinha
assentado os marcos do domínio português de Belém até
Tabatinga, no Amazonas.
Pedro Teixeira não era paulista típico, mas uma espécie de
bandeirante militar, cumpria função oficial. Os de São Paulo
fizeram toda essa jornada para o Sul, o Oeste e o Nordeste. Parece
ter sido uma ação coordenada, que se desdobrou por dois séculos.
Uma prova disso é que Raposo Tavares, quando montou uma
tropa para combater os holandeses, não estava numa missão de
bandeirante. Não foi ao Nordeste como preador de índio ou
caçador de pedras preciosas ou de ouro. Era uma missão de Estado,
uma missão oficial, não tinha nenhum sentido Raposo Tavares
organizar uma tropa, financiar, armar e se deslocar de São Paulo
para o Nordeste e se bater contra os holandeses se não fosse uma
questão geopolítica. Não era coisa do índio ou do caçador de
esmeralda, era outra coisa. Era essa a tarefa dos bandeirantes.
Por essa razão são inaceitáveis as agressões ao Monumento às
Bandeiras do grande escultor Victor Brecheret erguido no Parque
Ibirapuera em São Paulo. Nós tivemos, nesse esforço, lembrado
nessa obra de arte que é um orgulho cultural de São Paulo, uma das
maiores epopeias de conquista da História da Humanidade,
tamanho o território incorporado, maior que a Europa Ocidental
de nossos dias. Tratou-se de um projeto conjunto, de colonos e
nativos, foi decisivo o apoio dos índios no caso dos bandeirantes.
No Nordeste tivemos a participação dos potiguares, com Poti, o
Filipe Camarão. A mestiçagem, característica da “etnia” brasileira,
veio daí, inclusive entre a elite, o que diferencia a miscigenação
portuguesa naqueles tempos. Já tínhamos tido em Pernambuco o
casamento do Jerônimo de Albuquerque com a índia Tabajara, a
Maria do Espírito Santo Arcoverde e, na Bahia, a filha do cacique
Taparica, a índia Paraguaçu, com o também português Diogo
Álvares, o Caramuru. Essa aliança foi importante para os
portugueses garantirem a posse do território. Houve o episódio dos
tamoios em aliança com os franceses, a rebelião dos manaos no
Norte, mas teve uma aliança também que funcionou com os índios.
Ou seja, não foi só uma experiência de confronto, de conflito, entre
índios e portugueses. Eles se juntaram na guerra contra os
espanhóis e os jesuítas espanhóis nas áreas das chamadas Reduções
Jesuíticas ou Missões, no Rio Grande do Sul, no Paraná e no Mato
Grosso do Sul. A infantaria dos bandeirantes era toda de índios,
com poucos mestiços, caboclos e mamelucos e, em número menor
ainda, de portugueses.
Esse capítulo começou com o ano zero da chegada de Cabral,
percorreu toda essa trajetória de disputa com os espanhóis, com os
franceses, os holandeses, entre outros, e teve seu desfecho no
Tratado de Madri, em 1750, com a figura de Alexandre de Gusmão,
brasileiro de Santos, irmão do padre voador, Bartolomeu de
Gusmão, o diplomata estadista português na construção do tratado
de consolidação das fronteiras do Brasil.
Na negociação do Tratado de Madri valeram as peripécias
daqueles aventureiros dos séculos XVI e XVII. Os Raposos e os
Teixeiras deixaram marcas por onde passaram. O tratado adotou o
princípio do uti possidetis, seria o dono quem tivesse a posse. Mas
qual era o critério para se ter a posse? Passou a ser o idioma, a
língua, e como os portugueses estavam espalhados, porque
andaram muito e deixaram seus rastros, Alexandre de Gusmão se
aproveitou daquela jornada.
Certa vez eu estava no Chile e compareci a uma recepção em um
clube da aeronáutica, já nos Andes. Saí para caminhar no entorno e
vi um monumento dedicado a alguém chamado Almeida. Perguntei
ao oficial chileno que estava comigo quem era o Almeida. Ele
respondeu ser um português que atravessou a Amazônia inteira, os
Andes inteiros, queria chegar ao Pacífico, mas já estava
enfraquecido pela viagem e foi abatido ali pelos índios da região,
quando se encontrava a alguns quilômetros do Pacífico. Foi um
desses aventureiros que tentaram chegar do outro lado da América
do Sul marcando território.
O tratado celebrado por Alexandre de Gusmão nos dá também a
dimensão desse esforço português de combinar a capacidade
militar, administrativa, o serviço de inteligência com uma
diplomacia de alto nível. Era uma gente preparada para aquela
epopeia, capacitada para os grandes feitos, os momentos e os
episódios decisivos. Às vezes me questionam se não seria melhor o
Brasil ter sido colonizado pelos franceses, holandeses, espanhóis
ou ingleses. Eu fico com o Gilberto Freyre: talvez se colonizados
pelos holandeses seríamos hoje uma espécie de Java gigantesca,
que a Holanda trocou pelo Nordeste, dividida entre brancos e
pretos; ou talvez, acrescento, fôssemos uma grande Guiana Inglesa,
um grande Suriname, ou grande Guiana Francesa. E estaríamos
melhores assim?
Encerramos esse capítulo da formação do território com o
reconhecimento a Portugal, aos seus estadistas, diplomatas,
militares, intelectuais, aos índios brasileiros e seus chefes, aos
bandeirantes e a todos os que ajudaram a conformar a base física
herdada por nós como Nação independente.
CAPÍTULO 3

SEGUNDO MOVIMENTO
A epopeia da Independência
Fim do Século XVIII. Como em outras colônias americanas, foram
se esmaecendo os vínculos culturais com as metrópoles, foram se
definindo nacionalidades nas Américas. No Brasil o mundo
puramente lusitano foi sendo engolido por miscigenações
superpostas, com o consequente caldeamento de culturas, com a
expansão dos territórios, mas fortemente amalgamadas pela língua
comum. O Português se estabeleceu como denominador da
comunicação entre centenas de línguas e dialetos indígenas e
africanos, mais do que pela imposição do colonizador. O País
começou a nascer e a se expressar politicamente.
Um certo sentimento de nativismo foi criado a partir da riqueza
produzida pelo ciclo do ouro; do excedente financeiro originado
pelo açúcar; da consolidação da base física e da constituição de um
território comum, no sentido da comunhão do idioma do mesmo
império colonial, ou seja, era tudo Portugal. Em um primeiro
momento a identidade das pessoas que nasceram e construíram
sua vida na Colônia, somada à necessidade de um mercado comum
para reuni-las, fez surgir uma questão: como seria possível
integrar esse comércio tão amplo? Quando se integra, cria-se um
mercado nacional, e esse sentimento foi surgindo e o momento
estelar se expressou politicamente pela primeira vez num
movimento autonomista, em 1720, na cidade então mais próspera
do País, Vila Rica, atual Ouro Preto. Dependente da Capitania de
São Paulo, um grupo de nativos, educados, com ascendência
lusitana, rebelou-se contra a coroa. Essa rebelião ficou na História
com o nome de seu líder, a Revolta de Felipe dos Santos, também
denominada Revolta de Vila Rica, que terminou com violenta
repressão, execução de seus líderes e, politicamente, resultou na
separação administrativa de Minas Gerais da capitania de São
Paulo.
Meio século depois estourou na Bahia um outro levante,
conduzido por negros e mulatos. Os rebeldes eram mulatos livres,
pretos libertos e escravos de ganho, principalmente. Os quatro
líderes eram dois alfaiates e dois soldados das tropas coloniais. A
manifestação dessas populações, até então inermes na estrutura da
Colônia, mostrou-se uma novidade política. Ficou conhecida como
Conjuração Baiana ou Revolta dos Alfaiates. Seus líderes, os
soldados Luís Gonzaga das Virgens e Lucas Santos, e os alfaiates
Manuel Faustino dos Santos e João de Deus Nascimento tiveram o
destino trágico dos revolucionários daquela época: foram
enforcados em praça pública de Salvador. Outro líder da rebelião, o
jornalista Cipriano Barata, recebeu uma pena mais leve.
Desses primeiros movimentos, destacou-se a chamada
Conjuração Mineira, Inconfidência na linguagem de seus algozes,
também gestada no polígono aurífero, hoje região denominada
Cidades Históricas de Minas, ligadas à mineração de ouro, que
desenvolveram uma civilização sui-generis na América do Sul.
Ali brotaram ideias novas como a separação da metrópole
europeia. Essa conjuração não chegou a apresentar um movimento
armado ou expressão política antes de ser descoberta e reprimida
pelas autoridades portuguesas e já continha características mais
avançadas do que as conjurações de Vila Rica e da Bahia, tais como
alguma articulação internacional e um projeto autonomista, com a
separação ou federação da Capitania de Minas Gerais.
Não há uma documentação conclusiva sobre essas articulações,
principalmente com a maçonaria, que, nessa época, dava suporte a
movimentos contrários às monarquias absolutistas. Nos séculos
XVIII e XIX, a facção da maçonaria com base na Inglaterra apoiou
os principais movimentos antiabsolutistas, dentre os quais as
revoluções nos Estados Unidos e na América espanhola.
A maçonaria teve um papel muito importante nos processos de
independência, aliada parcial dos países da América espanhola,
pois articulou essas revoluções com fontes de apoio político e
econômico na Europa e nos Estados Unidos. O mesmo não ocorreu
no Brasil. Aqui o papel das lojas maçônicas do Rio de Janeiro foi
diferente das de Buenos Aires, Caracas e Bogotá, onde os líderes
das guerras de independência, Simon Bolívar e José San Martin,
foram praticamente produtos da maçonaria inglesa. Em apoio a
esses movimentos na América do Sul, Londres conseguiu isolar a
Espanha, inimiga secular da Inglaterra, e nesses episódios aliada
parcial dos franceses (sob o governo do rei fantoche Dom José,
irmão de Bonaparte). Os maçons deram aos rebeldes latinos a
conexão internacional, os recursos financeiros e uma base forte e
sólida no exterior para sustentar os esforços da guerra
revolucionária. Não ocorreu o mesmo no mundo português, aliado
dos ingleses, enquanto Napoleão Bonaparte ainda estava
dominando a Europa continental.
No Brasil a maçonaria somente se mostrou clara nos movimentos
da Independência, em 1821-1822. Sua atuação foi decisiva, mas
internamente, para soldar a coesão das forças políticas e
econômicas na direção da separação de Portugal. Nas lojas do Rio,
a partir de 1821, com a volta de Dom João VI a Lisboa, a maçonaria
foi o denominador comum para reunir as elites econômicas e
políticas, incluindo a Igreja Católica, e impedir o País de perder sua
autonomia, um projeto que não era apenas da Constituinte de
Lisboa, mas fortemente apoiado pelos monarcas absolutistas da
Santa Aliança, Áustria-Hungria, Prússia, Rússia, a monarquia
restaurada de Paris e as vistas grossas de Londres, que jogava com
dois bicos, um em apoio ao movimento constitucionalista de José
Bonifácio e D. Pedro I, e outro procurando reaproximação com os
reis continentais defensores da restauração completa de Portugal
como nação europeia, depois de passar mais de uma década
sediada no Rio de Janeiro, uma anomalia insuportável para
imperadores e czares.
A maçonaria inglesa pode ter apoiado a Conjuração Mineira
liderada por Tiradentes, de acordo com o relato do historiador
inglês Kenneth Maxwell, que diz ter conseguido informações
fidedignas sobre essa articulação. Segundo ele, Tiradentes, mesmo
sem ler o francês, não se separava de um volume do livro Recueil
des Loix Constitutives des Estats Unis de l’Amérique, um indício claro de
que os mineiros tinham um projeto de governo constitucional e,
mais ainda, de uma aproximação com os norte-americanos. O certo
é que um estudante brasileiro numa universidade francesa, de
nome José Joaquim da Maia, fez contatos com o embaixador norte
americano na França, em 1787, Thomaz Jefferson, futuro
presidente dos Estados Unidos, para obter apoio a um levante em
gestação em Minas Gerais, a Conjuração Mineira. A revolução
americana dessa época era estreitamente ligada à maçonaria
inglesa e isso permitiu supor que a Conjuração Mineira tivesse
alguma conexão com esses movimentos internacionais
revolucionários. Daí Maia procurar Jefferson.
A grandeza dessa conjuração foi a figura trágica e heroica de
Tiradentes, Joaquim José da Silva Xavier, sua renúncia a tudo em
função da causa e a frase célebre: “Dez vidas tivesse, dez vidas eu
daria”. A figura de Tiradentes, seu espírito de sacrifício,
dimensionou a causa e também o fato de ela integrar todos os
segmentos da elite mineira, políticos, militares, intelectuais e
empresários.
Tiradentes não foi o bode expiatório. Era o líder capaz de compor
as forças políticas heterogêneas das Minas Gerais daqueles tempos.
Mesmo o militar que depois traiu e denunciou a conspiração,
Joaquim Silvério dos Reis, durante um bom tempo esteve integrado
efetivamente ao movimento dos inconfidentes. Ele não era um
espião. Fazia parte do grupo formado pela elite da capitania, como
os juristas, os poetas, os intelectuais, e esse representante do setor
médio, o alferes Tiradentes, que da forma como se conduziu e foi
sacrificado deu proporção épica ao episódio da Conjuração
Mineira.
Reprimida com violência, ela deixou um sentimento de repulsa
contra a metrópole, não só pela riqueza que esta levava do País, já
em declínio, mas também pela brutalidade da execução de
Tiradentes. Então já estávamos muito próximos dos
acontecimentos que mudariam a Europa e o mundo, a figura de
Napoleão Bonaparte, da Revolução Francesa e do bonapartismo,
não apenas como política interna da França, mas como presença
em todo o Velho Mundo e a repercussão que isso teria na América
espanhola, na América do Norte e na América portuguesa.
O deslocamento da família real em 1808 elevou o Brasil de
Colônia a Reino Unido, reconhecido pela comunidade internacional
como sede e capital da Monarquia. A aristocracia, a elite
portuguesa, tanto a administrativa como a econômica, a
financeira, a intelectual, toda ela veio para o Brasil. Dom João VI
foi obrigado a revogar as medidas da própria mãe, a rainha Dona
Maria I, entre elas o alvará de proibição do funcionamento de
atividades industriais no Brasil. Ele criou a faculdade de medicina,
a escola de engenharia, o Jardim Botânico, deu ao País a
infraestrutura de sede de um império colonial. Abriu os portos do
País à navegação internacional e editou uma lei de propriedade
intelectual para estimular as invenções. Foram muitas as medidas
adotadas por Dom João VI que mudaram completamente o papel, o
perfil e o destino do Brasil.
A desintegração política da Europa, produzida pelo movimento
de Napoleão Bonaparte, chegou de forma alterada ao Brasil em
relação a seus vizinhos hispânicos e anglo-saxões. Na América do
Norte o turbilhão napoleônico foi muito bem recebido nas antigas
colônias inglesas, pois os franceses haviam sido aliados dos colonos
na luta pela independência e, mais ainda, cedido território aos
Estados Unidos, vendendo a posse da Luisiana, uma posição
estratégica na foz do maior sistema fluvial daquele continente, o
rio Mississipi, com seu afluente Missouri. Essa aliança provocou
uma reação armada da Inglaterra, que invadiu o país em 1812, mas
foi mais uma vez derrotada militarmente e com isso se consolidou
a hegemonia dos Estados Unidos no hemisfério.
Os hispânicos, fortemente apoiados pela maçonaria, tanto norte
americana como britânica, aderiram em massa à forma
republicana de governo, embora tenha havido alguns soluços
monarquistas no México e na Argentina. Os países de língua
espanhola viviam uma situação peculiar e tentavam a duras penas
manter um mínimo de coerência. Com a desintegração da Espanha
a parte rebelde lutava ao lado dos britânicos contra a ocupação
francesa e a parte sob o controle das tropas napoleônicas aceitava
o jugo do reinado absurdo do imperador Dom José I, irmão do
corso.
Na América do Sul os hispânicos buscaram preservar a unidade
dos grandes vice-reinados do Prata e do Peru, componentes da
administração colonial falida. Assim estava o entorno hispânico,
enquanto o Brasil vivia seus momentos finais de sede mundial do
Império Português, sem se dar conta de que o establishment
europeu jamais aceitaria esse formato, com um país sul-americano
controlando um território europeu, no caso, o Reino do Brasil
mandando no antigo Portugal metropolitano.
O Império espanhol dividia-se em duas grandes autonomias: ao
Norte, o vice-Reinado do Peru, composto de Nova Granada (atual
Colômbia) e ainda pelos atuais Venezuela, Panamá, Equador e Peru,
e, no Sul, pelo vice-Reinado do Prata, formado pelos territórios da
atual Bolívia (Alto Peru, na época), Paraguai, Argentina e a
reivindicação de duas autonomias, o Chile e o Uruguai.
Quando se deu a independência do Brasil, o Uruguai, então
chamado de Província Cisplatina pelos portugueses, e de Banda
Oriental del Uruguay pelos argentinos, era parte do Império
Português, uma colônia autônoma, similar à Índia, China (Macau),
África e Timor. O Uruguai respondia administrativamente para a
corte do Rio de Janeiro, como sede do mundo português, mas não
politicamente, sendo parte do então Reino do Brasil, que excluía os
territórios do Grão-Pará, uma autonomia com capital em Belém, na
foz do Amazonas. Assim eram as Américas, parte anglo-saxã, parte
hispânica, parte lusitana, entremeadas por populações indígenas e
africanas.
Na virada da década de 1810 para 1820, as Américas
testemunhavam esse momento: os norte-americanos tentando sua
expansão para o Oeste e consolidando sua república, única no
mundo; os hispânicos lutando pela independência, enquanto os
lusos viviam a ilusão de que o Brasil seria a sede de um império
mundial, com posses nos cinco continentes. De maneira geral, o
único território problemático era o Portugal europeu, sacudido por
uma revolução de contra-fluxo, constitucionalista e democrática,
mas sem abandonar a monarquia, pois essa confusão era um
desafio à restauração absolutista que se processava sob comando
da Santa Aliança. Esse era o sonho da elite luso-brasileira, logo
desfeito, com a volta do rei Dom João VI para Portugal e as
tentativas de fragmentar o Brasil pela Constituinte portuguesa,
com apoio dos demais reis.
Então chegou ao País um gigante político, o paulista José
Bonifácio de Andrada e Silva, destinado a impedir que o Brasil dos
bandeirantes se desfizesse em retalhos de pequenos países, como
seus vizinhos, numa verdadeira balcanização. Dom João VI
dimensionava essa consequência, porque a forma como aconselhou
o príncipe Pedro na saída não foi de quem tinha como perspectiva
uma ruptura com o filho. Primeiro ele o orientou a manter a
integridade e a unidade do País. Uma coisa decisiva. Só assim se
explica a repressão aos levantes independentistas de Pernambuco
em 1817 e depois em 1824. Era uma questão ligada à preservação
da integridade do território e da unidade nacional. E também o
célebre conselho ao príncipe herdeiro, antes de embarcar de volta
a Portugal: “Pedro, se o Brasil vier a se separar de Portugal, põe a
coroa na sua cabeça antes que algum aventureiro lance mão dela”.
Acredito que por parte de Dom João VI já havia a desconfiança do
caminho incontornável e irreversível da independência. Ele devia
pensar muito em como fazer isso.
Havia o movimento hostil dos liberais portugueses. Quando eles
convocaram as Cortes Gerais (assembleia constituinte de então) e
os brasileiros foram para Lisboa como deputados, delegados, eles
se mostraram assustados, espantados com a violência dos
portugueses para revogar as prerrogativas, as conquistas e o status
do Brasil, tanto é que temeram ser presos e saíram meio fugidos
para a Inglaterra. Foi outro momento decisivo para a
Independência, a percepção de que a convivência com Portugal
não tinha futuro.
Entre os deputados estava Antônio Carlos Ribeiro de Andrada.
Ele deve ter alertado o irmão José Bonifácio sobre a dificuldade da
situação e o Patriarca logo compreendeu a gravidade, pois era um
homem muito preparado, acima da média e à frente de seu tempo,
um homem quase completo por reunir as qualidades de cientista
respeitado e as experiências de acadêmico, administrador, militar
e diplomata.
Bonifácio era por doutrina republicano, mas percebeu que aqui
no Brasil a república iria significar o esfacelamento, a
fragmentação, a dispersão desse território. Os caudilhos regionais
estavam presentes também aqui, os românticos, como Frei Caneca,
os de boa-fé (os caudilhos das causas nobres), e os interessados no
poder político e econômico. Estavam todos por aí.
Ele já tinha visto a experiência dos nossos vizinhos, quando nem
toda a capacidade, o preparo, a dedicação, a determinação, o
heroísmo de Simon Bolívar e a habilidade de San Martin foram
suficientes para manter os vice-reinados do Peru e do Prata juntos.
Uma vez conquistada a independência, veio a fragmentação, cada
caudilho imaginou criar o seu próprio país e aí surgiu a América
espanhola. Bolívar terminou banido como o indesejável, ele que foi
o protagonista, a inteligência, o condutor, morreu nas margens do
rio Madalena, em Santa Marta, nos ermos colombianos, delirando,
na imagem poética e trágica de García Márquez em O General em seu
Labirinto.
Bonifácio entendeu naquele momento que não deveria levar a
uma ruptura tão profunda. A situação permitiria que a Colônia
portuguesa permanecesse unida. Seria uma monarquia
centralizada, com um imperador em condições de administrar as
aspirações dos caudilhos, dos chefes locais, e Bonifácio concebeu
esse caminho. A figura central era D. Pedro I, apoiado na esposa, a
imperatriz Maria Leopoldina de Áustria, figura importante, tomada
de simpatias pelo Brasil.
Dom Pedro conseguiu então construir um acordo com os
republicanos mais radicais, como Gonçalves Ledo e Evaristo da
Veiga e o resultado foi o inimaginável, o improvável, proclamar a
Independência, manter o País unido e preservar a integridade do
território.
Ao fazer a transição da regência portuguesa para a
Independência, o príncipe consolidou sua autoridade e alcançou
sua legitimidade. Com isso, obteve as condições políticas para
equilibrar, ainda que precariamente, as finanças do Reino, o que se
considerava impossível. Foi uma obra de engenharia financeira
conduzida pelo paulista Martin Francisco, ministro da Fazenda,
obter o apoio para financiar a guerra contra as forças
metropolitanas que ocupavam as principais praças do País, Rio de
Janeiro, Salvador e uma unidade militar poderosa no Norte,
naquele momento estacionada no Piauí, pronta a acorrer aonde
fosse chamada, além de Montevidéu.
O desafio militar era muito grande. Em terra, o príncipe poderia
contar com forças nacionais, formadas por milicianos ou militares
de primeira linha, brasileiros natos ou portugueses dissidentes.
Para contê-los havia um grupo de exércitos metropolitanos,
enviados pela Constituinte. No confronto das tropas das Cortes, os
diversos grupos de patriotas, originários de várias tendências,
compuseram um acordo político amplo, unindo as forças
heterogêneas que, se fosse hoje, poder-se-ia dizer que comporiam
todo o arco ideológico, desde os republicanos intransigentes até os
senhores escravistas, grupo mais reacionário. Esse “acordão” foi
uma surpresa para os portugueses metropolitanos, que apostavam
na fragmentação política interna no Brasil e nos interesses e
rivalidades regionais para anular os esforços do príncipe e de seu
grupo, liderados por Bonifácio, para assegurar a unidade do Reino.
O grande desafio estratégico estava no mar, pois não havia uma
Marinha de guerra brasileira. Os navios e tripulações que ainda
obedeciam à regência revelaram-se inúteis quando se recusaram a
atacar ou pressionar as naves da esquadra metropolitana que
protegiam Salvador, então em poder de uma força portuguesa, e
faziam a ligação com Montevidéu, também ocupada por tropas
metropolitanas, anulando os efeitos do bloqueio imposto pelas
forças terrestres apoiadoras da Independência.
O governo da regência conseguiu levantar os recursos
financeiros necessários à contratação de tripulações e de comando
para formar uma força naval que acabou por expulsar do Brasil a
esquadra metropolitana e, assim, consolidar a autonomia, declarar
rompidos os laços com Portugal e se colocar em condições de
buscar o reconhecimento internacional do novo país sul
americano, o Império do Brasil. Um país que reunia numa unidade
política todas as regiões daqueles territórios, que até então
compunham e eram reconhecidos pela comunidade internacional
como unidades independentes entre si. O Brasil surgiu como país
unificado, com quase as mesmas fronteiras que mantém até nossos
dias.
Bonifácio e Dom Pedro I montaram e financiaram a Guerra da
Independência por mar e por terra. Não foi uma coisa simples,
porque os portugueses podiam, no mínimo, dividir o País como
faziam os impérios coloniais. As ligações do Norte com Portugal
eram maiores, principalmente com o Maranhão e com o Pará. Na
Bahia, a guerra da independência foi um conflito muito duro,
difícil, encerrado com a expulsão do brigadeiro Madeira de Mello,
veterano das guerras napoleônicas.
No Maranhão e no Piauí as tropas portuguesas estavam sob o
comando de João José da Cunha Fidié, outro militar experiente. Ali
os brasileiros tiveram que se virar quase que sozinhos. Juntaram os
piauienses, os cearenses, organizaram-se, perderam a Batalha do
Jenipapo, mas sabotaram os armamentos dos portugueses até que
na cidade de Caxias, no Maranhão, conseguiram cercar e derrotar
Fidié e ele foi obrigado a se retirar.
A jornada da Independência destacou três grandes figuras: pela
simbologia, pelo heroísmo, Tiradentes; pela capacidade política,
José Bonifácio, não só como concebeu o caminho para tornar o
Brasil independente, mantendo sua unidade territorial, mas
também como projetou o Brasil no seu futuro; e D. Pedro I pela
energia e espírito de liderança.
O Patriarca concebeu para o Brasil uma Nação autônoma,
próspera, socialmente equilibrada, protetora das liberdades
essenciais e pacífica na relação com seus vizinhos e com o mundo,
ideais que permanecem plenos de necessidade e atualidade.
CAPÍTULO 4

TERCEIRO MOVIMENTO
Consolidação da
Independência e da unidade
territorial do País
Alcançada a Independência, sob a liderança de D. Pedro I, do
Patriarca e da imperatriz Leopoldina, as coisas não ficaram
resolvidas porque restavam contradições e desequilíbrios que
abalavam o espaço físico do Império colonial português recém
convertido em Império do Brasil.
O Império precisava conter as ambições dos caudilhos regionais.
Essa tensão era permanente e apareceu de forma avassaladora em
um episódio logo depois da Independência: a Confederação do
Equador, em 1824. Os revolucionários de 1817, que sobreviveram à
repressão brutal do Império português, entre eles Frei Caneca,
organizaram a Confederação do Equador.
Eles tinham como projeto fundar uma república e depois buscar
a adesão das demais províncias, o que configuraria
necessariamente a fragmentação do País recém-independente,
porque se perdesse o Nordeste a Monarquia tentaria impedir a
adesão de outras províncias aos rebeldes de Pernambuco.
O ano de 1824 foi difícil, ameaçou a unidade do País e a
integridade do território brasileiro. Houve a brutalidade da
repressão, os fuzilamentos de Frei Caneca e seus companheiros de
sacerdócio e suplício em Pernambuco e no Ceará e o conflito com
os Estados Unidos, que teve um cidadão, o comerciante James
Rodgers, fuzilado no Forte de Cinco Pontas, em Recife, ao lado de
Frei Caneca.
Os navios norte-americanos ancorados no porto de Recife
arriaram as bandeiras em sinal de luto e protesto e tropas do
Império os invadiram para repor as bandeiras na posição normal.
Foi um episódio ruim para o Brasil naquele momento. O imperador
agiu com rapidez, presteza e violência.
Frei Caneca achava que a Independência do Brasil não deveria
ser um projeto necessariamente unitário. Para o frade, depois da
separação de Portugal, cada província poderia escolher sua própria
forma de governo e seu próprio destino. Esse pensamento
justificava, inclusive, a separação e a proclamação da República. Os
historiadores são muito cuidadosos ao avaliar esse período. É certo
que figuras como Frei Caneca comovem pelo heroísmo,
determinação e coragem, tanto que os carrascos se negaram a
enforcá-lo, segundo a história ou a lenda. Apesar do heroísmo,
sabe-se que ali estava a semente do separatismo.
Essa situação se agravou com a abdicação de D. Pedro I, porque
com ela passamos a viver uma anomalia, uma Monarquia sem
monarca, um Império sem imperador. Qual era o símbolo da
monarquia? O que a coesionava e a expressava? Era o monarca. O
que traduzia a unidade e o poder do império? O imperador.
O Brasil era uma monarquia continental administrada por um
ajuntamento político, as regências trinas, de composições
efêmeras, instáveis, fruto do entendimento precário de correntes
políticas adversárias, carregadas das desconfianças entre
nordestinos, fluminenses, gaúchos e paulistas. E mesmo a
substituição da regência trina pela regência una, que antecipou um
quase espírito republicano na administração de Diogo Feijó, com a
eleição do regente, não resolveu a situação.
Essas insatisfações explodiram em conflitos armados, de tal
modo que, entre 1835 e 1845, o País conheceu quatro guerras civis
simultâneas. A dos gaúchos, Guerra dos Farrapos, a mais
duradoura, de 1835 a 1845, conduzida por gente de prestígio, por
cabos de guerra experientes, consagrados nos campos de batalha,
nas refregas do Prata, como Bento Gonçalves, Onofre Pires do
Canto, Antônio Neto, David Canabarro e Bento Manoel, entre
outros. Eram lutadores respeitáveis, temidos, homens de proezas
nos campos de batalha. Eles lideraram essa guerra civil que durou
dez anos. Foi difícil debelá-la.
A Sabinada, na Bahia, foi liderada por um médico, Francisco
Sabino. Esses eram os liberais, os republicanos baianos em
entendimento com os gaúchos, tanto que, quando o Império
prendeu Bento Gonçalves e o levou para o Forte da Laje, no Rio de
Janeiro, ele tentou fugir. Foi levado para o Forte do Mar, na Bahia,
e sua fuga foi organizada pelos sabinos. Então ele voltou e assumiu
o cargo de presidente da República Rio-grandense.
No Maranhão houve a Balaiada, sob a liderança de Manuel
Francisco dos Anjos Ferreira, apelidado Balaio, também de largas
proporções, que se espalhou pelo interior da província, reunindo
vaqueiros, escravos, mestiços e fazendeiros contra as oligarquias.
Mais ao Norte, no Pará, a Cabanagem, de grande violência, com
participação de índios e caboclos apoiados pelos caudilhos locais,
também deu muito trabalho ao Império e ocupou por um período a
cidade de Belém, capital da província.
Nem o pulso de um homem como Feijó foi suficiente para
enfrentar essas quatro rebeliões simultâneas. Em um determinado
momento ele renunciou, e disse que o País não tinha mais governo
porque ninguém obedecia ao governo.
O impasse foi resolvido com a maioridade de D. Pedro II (1840),
por sorte, aos 14 anos, um jovem e precoce imperador. Muito cedo
ele teve a dimensão do desafio do seu papel e quando foi decretada
a maioridade repôs uma referência para o País.
Em todos os momentos de conflito a repressão aos rebeldes foi
realizada pelo Exército e pela Marinha, instituições nacionais,
avessas às ambições de poder dos caudilhos locais e fiadoras da
unidade territorial do Brasil. Após a maioridade tivemos a
Revolução Praieira, que encerrou o ciclo de rebeliões do Império.
A América do Sul escapou de ser tomada como colônia pelas
potências europeias. Havia um avanço não só da Inglaterra, França
e Japão na África e na Ásia, mas também dos Estados Unidos, da
Itália e da Alemanha em busca de enclaves coloniais. O
colonialismo prometia levar a civilização.
O Brasil, território continental, seria alvo natural dessas
pretensões, com a pressão principalmente dos Estados Unidos para
a abertura do rio Amazonas à navegação estrangeira. Em carta a
sua amiga condessa de Barral, D. Pedro II demonstrou
contrariedade com essa pretensão, afirmando que o Brasil correria
o risco de se ver ocupado como foram os portos chineses.
Aí chegamos ao conflito com o Paraguai. O Brasil era uma
Monarquia pacifista. D. Pedro II não se mostrara um homem
preocupado com a guerra e nem havia por parte do Brasil
reinvindicações territoriais, como a dos americanos em relação às
áreas tomadas do México. Eram comuns rivalidades, disputas
geopolíticas como a do Prata, com a Argentina, que envolviam o
Brasil e também todas as potências coloniais da época em uma
região difícil para todos. Foi daí, exatamente, que surgiu a guerra
com o Paraguai. A historiografia revisionista afirma ter sido uma
agressão, uma ação do Brasil instrumentada pela Inglaterra, mas
essa tese não se sustenta. Um país agressor ou expansionista não
teria um exército tão pequeno. Dez mil homens era o efetivo do
Exército Brasileiro da época. Não era um exército que se preparava
para a guerra, D. Pedro II não tinha o perfil de um monarca
beligerante, pelo contrário, era um homem voltado para as letras,
para as ciências, para a administração do País.
A invasão do Brasil pelo Paraguai mobilizou o País. Hoje há livros
que degradam os Voluntários da Pátria, mas isso é um desserviço à
História. O recrutamento contou com grande apoio. Salvador, na
Bahia, enfrentou dificuldades para alojar a multidão de
voluntários, muitos deles da classe rica, não eram só os pobres e
escravos alforriados. Se houve quem fugisse para o mato para
escapar do recrutamento, ou oferecesse escravos em substituição
aos filhos ou ao próprio alistamento, isso foi exceção. Há poemas
de Castro Alves saudando a partida desses jovens voluntários,
exemplos como o de Ana Nery, com filhos na guerra; mulheres
como Jovita Feitosa e Maria Curupaiti; mães da Pátria, como Rosa
da Fonseca, secando as lágrimas da perda dos filhos para celebrar
as vitórias do Brasil no campo de batalha.
D. Pedro II, o imperador pacifista, paradoxalmente levou a
guerra às últimas consequências, mesmo quando Caxias renunciou
ao comando depois da tomada de Assunção por achar que
militarmente a guerra chegara ao fim. Ele prosseguiu na caçada ao
presidente Solano Lopez, provavelmente para fazer do episódio um
exemplo, de tal sorte que nenhum vizinho desejasse uma guerra
com o Brasil.
E o conflito converteu-se em um motor das grandes mudanças
que se avizinhavam, a Abolição e em seguida a República. A
Monarquia brasileira chegou ao seu crepúsculo após superar o
risco da fragmentação e se exaurir moralmente com a mancha da
escravidão.
A unidade territorial foi mantida, o gesto da princesa Isabel
recebeu dos escravos libertos mais de uma demonstração de
gratidão e lealdade. O movimento abolicionista teve entre seus
próceres negros amigos da Coroa como José do Patrocínio e André
Rebouças e aristocratas brancos como Joaquim Nabuco.
A Abolição encerra o terceiro movimento de construção do Brasil
e fecha o ciclo monárquico de dois imperadores, pai e filho, que, se
erros cometeram, deixaram um exemplo de amor ao Brasil.
CAPÍTULO 5

QUARTO MOVIMENTO
A República e a Era Vargas:
Deodoro, Floriano e a
Revolução de 1930
A República amadurecia desde os tempos coloniais. Estava no
projeto da Conjuração Mineira, como registra o historiador
Kenneth Maxwell ao citar o livro de cabeceira de Tiradentes, o
manual republicano Recueil des Loix Constitutives des Etats Unies de
l’Amérique, já mencionado no capítulo 3 deste livro. Embora não
lesse francês, nem fosse um intelectual, Joaquim José da Silva
Xavier mostrava aquele livro a seus interlocutores dizendo ali
estar um modelo. Na Independência, em 1822, houve republicanos,
liderados por Gonçalves Ledo; nos projetos dos rebeldes
pernambucanos de 1817; e chegou a ser formado um estado na
República Rio-grandense dos gaúchos em 1836, com respingos na
República Juliana de Santa Catarina; nos Sabinos da Bahia; nos
seguidores de Teófilo Otoni na Vila do Príncipe, em Minas Gerais;
e, por fim, na Revolta de Sorocaba, liderada pelo ancião e ex

regente uno (eleito pelo voto direto na primeira eleição nacional


brasileira), padre Diogo Feijó, estas últimas pacificadas pelo futuro
Duque de Caxias.
O 15 de Novembro não foi um acidente, um golpe mesquinho,
mas o resultado natural da crise política. Encontrou um Império
fragilizado por um impasse sucessório, pautado pela desconfiança,
pelo risco do mando de um príncipe francês, o Conde D’Eu,
consorte da princesa Isabel. O fim da escravidão, pela pena da
princesa, abalou a confiança de setores escravocratas. Havia apelo
popular nas convicções abolicionistas e republicanas do Exército,
cheio de prestígio dos feitos no Paraguai. Alguns dos oficiais eram
heróis admirados, respeitados, como Floriano Peixoto e Deodoro
da Fonseca, entre outros. Os militares estavam bem organizados e
articulados com setores da classe média urbana intelectualizada e
um proletariado incipiente. Defender a Monarquia não era uma
causa mobilizadora, enquanto a República empolgava.
Embora o imperador fosse um homem admirado, respeitado,
com prestígio interno e externo, isso não foi suficiente para
preservar a Monarquia. A República surgiu mirando o exemplo dos
Estados Unidos. Há um famoso poema do escritor norte-americano
Walt Whitman, de dezembro de 1889, saudando a República no
Brasil e o encontro das duas constelações, uso poético das estrelas
presentes nas bandeiras dos Estados Unidos e do Brasil.
Ruy Barbosa, primeiro ministro da Fazenda do governo
provisório de Deodoro, implantou seu plano econômico como uma
tentativa de alcançar o modelo dos Estados Unidos, de financiar
pesadamente o processo de industrialização. Só que não se cria
artificialmente uma classe de industriais. Os trapaceiros da época
usaram o dinheiro no que ficou conhecido como “encilhamento”,
houve um processo de desgaste pela especulação financeira
gerada. Ruy Barbosa fracassou pelos erros que cometeu, pela
ingenuidade de achar possível iniciar um processo industrial
simplesmente com a impressão de dinheiro, mas a crônica registra
manifestações operárias de apoio ao seu sonho de um Brasil
industrializado.
Quando veio o governo de Floriano Peixoto, a política econômica
perdeu a primazia. Logo na posse, já contestada pela oposição, o
novo presidente teve de enfrentar simultaneamente duas guerras
civis: no Rio Grande do Sul, frações do Exército e milicianos civis,
inclusive mercenários uruguaios, os maragatos, fizeram a chamada
Revolução Federalista, liderada pelo senador Gaspar Silveira
Martins e pelo caudilho Gumercindo Saraiva. No Rio de Janeiro, um
grupo expressivo da Marinha bombardeou a Capital e tentou
derrubar o governo, na Revolta da Armada. Por sua vez, o governo
republicano, a pretexto de haver uma ameaça de restauração
monárquica, varreu os resquícios da única monarquia do
hemisfério, com apoio ideológico e material dos Estados Unidos,
padrinhos da nova república sul-americana.
Floriano conseguiu restabelecer o equilíbrio estratégico com a
compra de navios de guerra e a contratação de tripulação treinada
nos Estados Unidos para enfrentar os rebeldes navais que estavam
bloqueando o Rio de Janeiro pelo mar. Mas foi a Marinha dos
Estados Unidos que rompeu o bloqueio e estabilizou o governo de
Floriano Peixoto. Por conta disso, o Senado mandou cunhar duas
medalhas, dois únicos exemplares com as efígies de Floriano de um
lado e do presidente Glover Cleveland do outro. Um dos
exemplares dessa medalha está no Museu Imperial, em Petrópolis.
A aliança com os Estados Unidos sofreu uma dura crítica da
intelectualidade monarquista e produziu um livro premonitório,
escrito por um aristocrata talentoso, Eduardo Prado, A Ilusão
Americana, uma antecipação visionária do imperialismo praticado
pelos Estados Unidos contra as nações no hemisfério americano.
Mas Floriano Peixoto mobilizou o espírito jacobino dos
republicanos e esmagou as rebeliões contra seu governo. Os
batalhões denominados Operário, Acadêmico, Patriótico e Francisco do
Nascimento, em alusão ao jangadeiro abolicionista do Ceará,
traduziam a mística da República e o compromisso com o povo.
Após o fim do governo militar e radicalmente ideológico, foi
eleito o ex-governador paulista Prudente de Morais, líder histórico
republicano de São Paulo, que tomou posse em 1894. Os jacobinos
também sofreram novo revés porque seu líder, o ex-presidente
Floriano Peixoto, faleceu logo em seguida, em 1895, e, com isso, o
jacobinismo perdeu força, esvaziou-se o núcleo duro e ideológico,
passando a bandeira para os liberais, espelhados na democracia
norte-americana. Chegou o que veio a se chamar de “café com
leite”, o predomínio de paulistas e mineiros. As outras oligarquias
retomaram o controle e serão vistos os espasmos desse florianismo
retardatário de forma trágica em Canudos.
Este foi um dos acontecimentos mais desastrados da História do
Brasil, um primeiro exemplo de manipulação rasteira, que, no
Império, dificilmente o imperador teria deixado chegar a tal
extremo. Entretanto, um grupo de militares jacobinos exaltados,
aliados a segmentos da política baiana, insuflaram a imprensa,
manipularam os republicanos temerosos da restauração
monárquica e conseguiram criar uma guerra civil inacreditável.
Hoje esses acontecimentos têm servido para todo tipo de
interpretação histórica anacrônica, mas na época foi um
descontrole político e, não fosse a incapacidade do Exército de
atuar num teatro hostil de operações, desconhecido até então,
muito distante de suas bases no litoral, o Sertão nordestino, teria
propiciado um golpe de Estado e a implantação de uma ditadura
militar nos moldes sul-americanos, tão em voga naqueles tempos.
Em Canudos, sertão da Bahia, surgiu uma comunidade
milenarista, liderada por um desajustado fanático, Antônio
Conselheiro, com discurso confuso sobre catolicismo, habilmente
usado pelo então vice-presidente da República, o médico baiano
Manoel Vitorino Pereira, que aproveitou o afastamento por
motivos de saúde do presidente Prudente de Morais para intervir
no seu Estado, usando como pretexto para o emprego de tropas
federais uma ameaça de restauração monarquista pelos “rebeldes”
de Canudos.
Vítimas da seca e do abandono do Estado, os bravos sertanejos
nem sabiam o que era uma monarquia, apenas se agarravam a uma
religiosidade profunda como última e única esperança diante da
hostilidade e indiferença da sociedade e dos governos. Antônio
Conselheiro encarnou a credulidade dos caboclos.
O resultado foi trágico, pois os sertanejos resistiram, o Exército
teve enormes dificuldades para operar naquela região longínqua, e
a crise só foi debelada com o envio de tropas numerosas e de uma
ação militar desproporcional, de grande porte. Virou uma
verdadeira guerra. No Rio de Janeiro a questão de Canudos foi
usada pelos moderados para eliminar os grupos florianistas
remanescentes e acabar de vez com a chamada “Política de
Espada”, pela forte influência dos militares. Canudos foi uma
tragédia, mas a derrota do grupo jacobino consolidou o governo
civil, estabilizando o que hoje se chama de República Velha.
A tragédia de Canudos se deu porque o governo Vitorino mandou
para lá um homem desequilibrado, o coronel Antônio Moreira
César, que terminou sua vida nessa campanha, vítima de suas
ambições e de seus próprios erros políticos e militares.
Esse oficial era um linha-dura, remanescente da repressão às
revoltas dos federalistas do Sul do País e foi o responsável pelas
execuções de Anhatomirim, em Santa Catarina, fuzilando os civis
apoiadores do movimento em represália ao fuzilamento de
partidários da República pelos rebeldes monarquistas.
A bem da justiça, diga-se que Floriano nunca promoveu Moreira
César a general, tampouco aceitou os fatos de Santa Catarina, mas
o coronel ficou com a fama de herói da repressão e ganhou uma
legião de admiradores desajustados como os que até hoje veneram
os acusados de tortura no mais recente período de nossa história.
Com a morte de Floriano, depois de cumprida com energia e zelo
patriótico a consolidação da República, essas oligarquias
controlaram o poder e foram enfrentando suas contradições. O
sucessor de Prudente de Moraes, o presidente Manuel Ferraz de
Campos Sales, também paulista, fez um governo de muita
austeridade, desmobilizou parte das Forças Armadas e vendeu
barcos da Marinha. Seu ministro da Fazenda, Joaquim Murtinho,
dizia que o Brasil não desenvolveria uma sociedade industrial, pois
nos faltariam as qualidades superiores das raças brancas da
América do Norte, no que foi mais tarde criticado por Gilberto
Freyre.
As contradições da República oligárquica desaguaram na
rebelião dos tenentes, guerra civil, se assim se pode denominar,
entre militares rebeldes e legalistas. A revolta terminou com a
derrota dos rebeldes, que retornaram vitoriosos em 1930 sob o
comando de um oficial legalista, Pedro Aurélio de Góes Monteiro,
para provar definitivamente que o Brasil é o País das alianças
heterogêneas e improváveis e não cabe nos limites da ciência
política acadêmica.
A Revolução de 1930 foi resultado da ação de dois caudilhos, o
civil Getúlio Vargas, comandante visível, e o outro militar, o
alagoano Góes Monteiro, conhecido como condestável do Estado
Novo. Getúlio e Góes Monteiro propiciaram, entre 1930 e 1945,
provavelmente, os anos mais criativos e transformadores da
História do Brasil.
Getúlio chegou ao poder liderando a Aliança Liberal para fazer o
governo mais antiliberal em economia e em política da história do
Brasil, em um paradoxo para os limites da ciência política
convencional.
Então veio a Segunda Guerra Mundial, aproveitada pela
habilidade geopolítica de Getúlio Vargas e Góes Monteiro para
iniciar o ambicioso processo de industrialização do Brasil.
Vargas sabia da posição estratégica do Nordeste como base de
operações no conflito mundial e desconfiava de que a visita que o
presidente Franklin Delano Roosevelt fizera ao País em 1936
antecipara a visão do mandatário norte-americano sobre o papel
crucial do Brasil na guerra que se aproximava.
O comandante da Força Aérea dos Estados Unidos, major Delos C.
Emmons, ao sobrevoar o litoral do Nordeste, escolheu
pessoalmente nas proximidades de Natal, Rio Grande do Norte, o
lugar no qual construiu a base aérea mais movimentada de todo o
conflito mundial. E junto veio o acordo da borracha, insumo sem o
qual era impossível fazer a guerra, construir navios, tanques,
aviões, caminhões de transporte e outros equipamentos bélicos.
As colônias britânicas da Ásia que ofereciam 90% da borracha do
mundo foram tomadas pelos japoneses, assim os aliados passaram
a depender totalmente da borracha da Amazônia brasileira, e isso
teve um custo. Os Estados Unidos abriram um crédito de 100
milhões de dólares para o Brasil, algo como 1,4 bilhão de dólares
aos valores de hoje, ou pouco mais de 7 bilhões de reais, recursos
que permitiram ao Brasil iniciar seu processo de industrialização.
Getúlio e seu ministro das Relações Exteriores, Oswaldo Aranha,
ex-embaixador nos Estados Unidos e amigo pessoal do presidente
Roosevelt, conseguiram dos americanos, de Roosevelt e de seu
vice-presidente Truman, o apoio para a construção da siderúrgica
de Volta Redonda, façanha diplomática inédita, já que os
americanos não costumavam financiar fábricas no exterior.
Para fornecer a borracha aos aliados, o governo recrutou 50 mil
sertanejos no Nordeste, dos quais 25 mil morreram vítimas da
hostilidade do clima na Amazônia. Eram os “soldados da
borracha”, mobilizados como combatentes, mas depois esquecidos
pelo Estado brasileiro. O episódio está ricamente descrito no
magistral livro Soldados da Borracha - O Exército Esquecido que Salvou
a Segunda Guerra Mundial, de Gary Neelman, ex-correspondente da
UPI (United Press Internacional) no Brasil, e de sua esposa, Rose
Neelman.
Roosevelt voltou ao Brasil em janeiro de 1943 e pediu a Vargas
uma Divisão do Exército Brasileiro para combater ao lado das
forças norte-americanas na Itália. Vargas não só enviou a Divisão
de Exército como um Grupo de Caça que marcou época nos céus da
Europa contra a aviação alemã.
Então a guerra terminou com os americanos vitoriosos. No
primeiro momento, tiveram uma atitude até generosa, tanto é que
ajudaram a restabelecer as relações diplomáticas do Brasil com a
União Soviética, porque durante a guerra essa aliança foi pra valer.
Há documentários americanos oficiais sobre o combate na União
Soviética, uma exaltação ao Exército Vermelho. No entanto, essa
conjuntura durou pouco. Logo a Guerra Fria estimulada mudou o
curso da História e, na América do Sul, terminou com a destituição
dos governos não abertamente pró-americanos.
Findo o conflito mundial, a situação regional voltou a se mexer.
Na Argentina, país que resistiu até os últimos momentos a romper
com a Alemanha, um grupo de militares, liderados por um coronel
do Exército, Juan Domingo Perón, criou um partido denominado
Movimento Nacional, organizado com o patrocínio do Estado, e
ganhou as eleições em 1946.
No Brasil houve uma certa arrumação, o afastamento de Getúlio,
que também flertava com esse movimento, aqui chamado de
trabalhismo. Foi um acordo imposto. Getúlio não foi cassado, não
foi preso, foi afastado. Ficou em São Borja, no Rio Grande do Sul, na
Fazenda Santos Reis, herdada de seu pai. Em 1946, elegeu-se
senador e deputado federal (naquela época permitia-se multi
candidaturas). Mesmo deposto, não perdeu seus direitos políticos e
quatro anos depois, em 1950, elegeu-se presidente da República.
Aí a aliança com os Estados Unidos já estava fragilizada. O Brasil
mergulhara de corpo e alma na Guerra Fria. Aquilo que dividia o
País e as Forças Armadas por razões internas, disputas, visões,
umas mais liberais, outras menos, umas mais democráticas outras
menos, passou a ter como referência a Guerra Fria.
Assim, o antagonismo entre Estados Unidos e União Soviética,
capitalismo e comunismo, chegou ao Brasil. No meio político a
esquerda foi derrotada com a cassação do Partido Comunista, em
1948, que tinha uma pequena, mas aguerrida bancada no
Congresso Nacional, chefiada por seu líder máximo, o senador Luís
Carlos Prestes, lendário comandante de guerrilhas na década de
1920, gaúcho eleito para a Câmara Alta pelo Rio de Janeiro. Do
outro lado, os militares, insuflados pela ameaça nuclear e perigo de
nova guerra mundial, alinhavam-se com a Europa e os Estados
Unidos.
Essa divisão abalou muitos líderes militares que participaram do
consenso da Revolução de 1930. Entre eles estava Góes Monteiro,
um dos próceres daquele movimento, que se revelou desgostoso
pelo envolvimento dos militares na luta pelo poder, na política
rasteira, e terminou a vida prestando um depoimento contra a
participação dos militares nas arengas partidárias e ideológicas.
Ele criticava o espírito miliciano e gendármico como uma grande
ameaça para as Forças Armadas e que os militares não deveriam
fazer política no Exército para fazer a política do Exército.
A Guerra Fria é o que explica os “pronunciamentos” militares de
1954 e 1964, o nacionalismo e o antinacionalismo. Enfim, o Brasil
esvaiu boa parte das suas energias espirituais, políticas e
intelectuais nessa guerra. O País se dividiu artificialmente. Aquela
era uma briga dos americanos e dos russos.
Ao comentar a obra de Gilberto Freyre, o sociólogo francês Roger
Bastide cogitou o Brasil como líder de um caminho alternativo ao
conflito entre o mundo anglo-saxão (Estados Unidos) e o eslavo
(Rússia soviética). Bastide via o Brasil representando a civilização
ibérica e nos olhava com muito mais otimismo e confiança do que
aqueles que nos mergulharam no pântano da Guerra Fria.
O varguismo e o antivarguismo estiveram presentes até nos
governos militares porque a vida pública de um dos generais
presidentes Ernesto Geisel teve origem no varguismo. Em 1931 ele
foi secretário da Fazenda na Paraíba, fez parte daquele grupo de
tenentes, capitães e interventores do começo da Revolução de
1930. Então não se pode dizer que Geisel fosse contra Vargas.
O próprio Lula, na redemocratização, quando eleito, também foi
um personagem até certo ponto ambíguo. No começo de sua
trajetória ele afirmava que o sindicalismo getulista, criado por
Lindolfo Collor, ideólogo do Partido Republicano Rio-Grandense e
autor do projeto de 1922, aperfeiçoado e implantado em 1930, teria
sido inspirado na Carta del Lavoro, do ditador italiano Benito
Mussolini. Lula queria tanta distância de Getúlio que, nas suas
andanças pelo Rio Grande do Sul, não passava em São Borja, onde o
velho caudilho está enterrado. O lugar mais próximo de São Borja
em que ele chegava ficava a 100 quilômetros da terra natal e
simbólica do getulismo.
Depois, já no poder, Lula aderiu a alguns postulados do
varguismo, como o desenvolvimentismo, o trabalhismo, a questão
social, isso tudo passou a estar presente no lulismo, com todas as
suas ambiguidades. Nas questões do desenvolvimento e do
trabalhismo, ele flertou abertamente com o varguismo.
Com Geisel, a doutrina da política externa, de não se aliar
abertamente a nenhum dos polos em disputa na Guerra Fria, ficou
evidente no caso da independência das colônias portuguesas na
África. Ele reconheceu os novos países, todos com governos
marxistas, de esquerda, aliados e alinhados com a União Soviética
nos campos ideológico e político-militar. Geisel foi mais longe:
rompeu o acordo militar com os Estados Unidos e fez o Programa
Nuclear Paralelo e o Programa Espacial.
Ao se confrontar com o choque dos preços do petróleo, Geisel
lançou o II PND (Plano Nacional de Desenvolvimento), concebido
por seus ministros João Paulo dos Reis Veloso, Mário Henrique
Simonsen e Severo Gomes, para enfrentar a crise com o incentivo à
produção de insumos básicos para a indústria, bens de capital e
energia.
Na diplomacia, o discurso do presidente Figueiredo na ONU, em
1982, quando Ramiro Saraiva Guerreiro era o chanceler, foi uma
declaração de diplomacia autônoma, de política externa
independente. Figueiredo condenou a Guerra Fria, a agressão dos
ingleses às Malvinas e reforçou a cooperação entre os países do
mundo em busca da paz e do desenvolvimento. No caso das
Malvinas, Figueiredo declarou diante de todas as delegações
reconhecer as ilhas como argentinas desde 1834, exatamente a
data da ocupação inglesa do arquipélago.
Ao tomar posse, o presidente Fernando Henrique Cardoso
declarou que acabaria com a Era Vargas, mas não acabou. Foi um
esforço de retórica porque a política externa de Fernando
Henrique, embora fosse muito próxima dos Estados Unidos,
também não rompeu com o padrão de Getúlio. Quando integrei
uma missão oficial à Venezuela, na primeira tentativa de golpe
contra o presidente Hugo Chávez, em 2002, ele nos disse: “Olha,
antes de ser preso aqui no palácio, a última ligação que fiz foi com
mi maestro”. Quem era “mi maestro”? Fernando Henrique
Cardoso.
Aliás, quem começou a comprar petróleo da Venezuela e da
Argentina foi Fernando Henrique. Até então todas nossas
importações de petróleo vinham do Oriente Médio e da África. No
governo de Fernando Henrique as relações com Cuba foram,
essencialmente, de cooperação, não houve nenhum tipo de
hostilidade a Cuba. Havia um padrão, uma herança. Em algumas
políticas de Estado pesam a memória, a tradição, a cultura. A
tentativa de revogação é agora com essa gente desavisada que está
no Itamaraty.
As presidências de Lula e Dilma pouco alteraram a orientação de
diplomacia independente traçada pelo Itamaraty. Lula era
admirado e tratado com aberta simpatia por Bush e Obama, e os
Estados Unidos confiavam na capacidade do Brasil de conter os
arroubos antiamericanos da Bolívia e da Venezuela, como pude
testemunhar algumas vezes.
A presidente Dilma nunca priorizou a agenda de política externa
e ainda enfrentou o dissabor de ter sido uma das autoridades
mundiais gravadas por um dos órgãos de inteligência dos Estados
Unidos, mesmo assim, na viagem que pude acompanhar aos
Estados Unidos e à Rússia, Obama e Putin dedicaram à presidente
brasileira deferências dignas de nota em protocolos internacionais.
A declaração que resultou da visita do presidente Michel Temer à
Rússia é outro exemplo de documento audacioso da diplomacia
independente do Brasil. É de se destacar, ainda na gestão Temer, a
visita do ministro da Defesa do Brasil, general Silva e Luna, ao
ministro da Defesa da Venezuela, general Vladimir Padrino, para
tratar amistosamente as relações dos dois países ao longo da
fronteira comum.
PARTE 3
O Quinto Movimento:
Propostas para uma
construção inacabada
Nos capítulos seguintes estão reunidas reflexões sobre as
iniciativas necessárias para a retomada da construção
inacabada do Brasil. São ideias temperadas pela vida, pelas
leituras e pela experiência acumulada em décadas de atividade
pública ininterrupta, desde o Centro Acadêmico de Direito da
Universidade Federal de Alagoas (UFAL), presidência da União
Nacional dos Estudantes (UNE), presidência da Câmara dos
Deputados e quatro diferentes ministérios - Secretaria de
Coordenação Política e Relações Institucionais; do Esporte;
Ciência, Tecnologia e Inovação; e Defesa -, além da relatoria de
matérias controversas, como a Lei de Biossegurança, que
autorizou a pesquisa com células-tronco e organismos
geneticamente modificados, e o Novo Código Florestal
Brasileiro.

Os capítulos estão distribuídos em torno de temas atuais e


importantes para a reunião das energias materiais e
espirituais que permitam ao Brasil o relançamento da jornada
histórica de construção de uma sociedade próspera, fraterna,
socialmente equilibrada e plena de compromisso com a paz e a
cooperação internacional.
CAPÍTULO 6

QUINTO MOVIMENTO
A economia
Nos últimos anos, a economia brasileira foi a combinação quase
perfeita de duas tragédias: a estagnação e a desindustrialização. As
consequências podem ser vistas nas crises orçamentária e fiscal
que atingem a União, os estados e os municípios; no drama social
cujas faces mais visíveis são o desemprego e o empobrecimento da
população; e na redução da participação industrial no PIB, que já
foi de 30% e hoje não alcança os 10%.
O processo de desindustrialização tem consequências no
conjunto da economia, na desaceleração do crescimento, na perda
de empregos de alta qualificação, na redução das exportações
industriais, das receitas tributárias e das divisas. Embora a crise
fiscal tenha sua origem na brutal transferência de riqueza da
sociedade e do Estado para o sistema financeiro, a estagnação da
economia agrava e torna crônico o mal.
Não há solução para nenhum dos problemas da economia se o
Brasil não voltar a crescer. Como resolver o drama orçamentário
que imobiliza o governo federal, os governos estaduais e as
prefeituras se o País não voltar a crescer? A experiência na
administração federal em quatro diferentes ministérios me
autoriza a resumir o dilema da seguinte forma: quando o país
cresce há dinheiro para tudo, ou quase tudo; quando o país não
cresce não há dinheiro para nada, e nada que substitua o
crescimento.
Há solução para a crise do desemprego sem a retomada do
crescimento da economia? E a mesma pergunta vale para a crise da
Previdência: como enfrentar o déficit da Previdência sem
empregos e como gerá-los sem crescimento?
Quando assumi o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação,
pedi um levantamento sobre o impacto das atividades relacionadas
com a ciência, a tecnologia e a inovação no mundo do trabalho e no
mundo da produção no Brasil. O resultado foi surpreendente tanto
pelos aspectos positivos quanto pelo que revelou de negativo no
nosso desempenho.
O que surpreendeu positivamente? O Brasil ter criado em 12 anos
de governos dos presidentes Lula e Dilma algo como 15 milhões de
empregos e perdido aproximadamente 5 milhões, conservando um
saldo de 10 milhões, enquanto a Europa perdia milhões de postos
de trabalho no mesmo período, números de fato alvissareiros. E
qual a revelação negativa? Dos postos de trabalho criados, quase
100% correspondiam a até 1,5 salário mínimo, enquanto os
empregos perdidos no mesmo período eram todos acima de dois
salários mínimos.
Criamos empregos de baixa remuneração, de baixa tecnologia,
no setor de serviços, aproveitando a expansão do boom das
commodities, e eliminamos empregos industriais qualificados, de
média e alta tecnologia. O mesmo fenômeno se repete nas
exportações industriais do Brasil quando fizemos desaparecer
quase que completamente as exportações de produtos de alta
tecnologia, substituídas pelas mercadorias de baixo valor
agregado.
O diagnóstico é incontornável: perdemos força industrial porque
perdemos competitividade e perdemos competitividade porque
perdemos capacidade de inovar, ou seja, estamos perdendo a
corrida tecnológica.
A retomada do crescimento do Brasil passa pela
reindustrialização para reconfigurar a produção do País nos novos
padrões tecnológicos da economia 4.0, a economia do presente e do
futuro.
A inovação está cada vez mais subordinada a investimentos
crescentes em pesquisa, e só o Estado se dispõe a empreender e
correr os riscos quando se trata de apoiar linhas de pesquisa e
apostas tecnológicas de resultados incertos. Em inovação não há
outro caminho que não o das tentativas sucessivas baseadas em
uma rede de pesquisadores capacitados, de equipamentos e
laboratórios de última geração, conforme defende em seu livro O
Estado Empreendedor a pesquisadora Mariana Mazzucato.
É o caminho incontornável para o Brasil: mais recursos para a
pesquisa, mais investimento em recursos humanos e equipamentos
para nossas universidades e institutos, e maior aproximação com o
mundo da produção para acolher as demandas que tornem nossas
empresas industriais e de serviços de fato inovadoras e
competitivas.
O Brasil deve lançar mão das potencialidades exclusivas em
setores nos quais acumulou condições excepcionais e únicas no
cenário econômico mundial:
O Brasil é a mais promissora fronteira agropecuária do
planeta. A ONU espera que o País responda por 40% da
oferta futura de alimentos para a população mundial.
Contamos ainda com 40% das terras agricultáveis
disponíveis no planeta, com abundância de água; uma
empresa pública criadora de tecnologia para a
agricultura tropical, a Embrapa, e uma classe de
produtores rurais e pecuaristas com quatro séculos de
experiência, de história e de cultura no campo.
Essa agricultura mobiliza uma vasta cadeia de
empregos, tributos e divisas nas próprias fazendas e em
setores como transporte, máquinas e equipamentos
agrícolas, fertilizantes e indústria farmacêutica
veterinária. Superados os gargalos de logística e a
sabotagem a pretexto de questões ambientais, o Brasil
será único no mundo a possuir a cadeia completa da
futura indústria de alimentos com alta tecnologia e
proteção ambiental.

O Brasil é a mais promissora fronteira mineral do


planeta, principalmente na Amazônia, onde se situam os
principais recursos minerais do mundo: petróleo, ouro,
ferro, níquel, cobre, manganês, alumínio, zinco, prata,
titânio, nióbio, potássio, paládio e diamante são alguns
dos tesouros encontrados no solo e no subsolo da
Amazônia brasileira.
O consumo de tais riquezas no mundo é inversamente
proporcional a sua oferta, com um grande número de
minas se esgotando e escassez de novas jazidas. A
Amazônia é um subsolo de grande fertilidade em
minérios e terras raras, e embora represente mais da
metade do território nacional (4.500.000 km²) detém
apenas 10% das minas em atividade, quase todas
concentradas em torno da província de ferro de Carajás.
Em qual país do mundo a segunda maior mina de
potássio do planeta estaria inviabilizada, aguardando
regulamentação de exploração mineral em terra
indígena, já que parte do minério se encontra em terras
dos índios Mura, no município de Autazes, no
Amazonas?
Em qual país do mundo uma província de diamantes
como a que temos na Terra Indígena Roosevelt, no
município de Espigão do Oeste, em Rondônia, estaria
imobilizada, saqueada por contrabandistas, sem render
um vintém para os índios, nem tributos para o
município, o estado, a União, ou divisas para o País,
porque não se regulamenta a mineração em terra
indígena?
Especula-se que os diamantes da Reserva Roosevelt
poderiam produzir para o Brasil algo como 10 milhões de
quilates por ano, o que a transformaria na maior mina
do planeta, superior às existentes em Angola e Botsuana,
na África.
Abandonada à própria sorte pela sociedade, pelo
Estado e pelos governos, a Amazônia e suas riquezas faz
nos lembrar o soneto Lamento das Coisas, de Augusto dos
Anjos, em que o poeta paraibano denuncia “o choro da
energia abandonada e a dor da força desaproveitada, que
podendo mover milhões de mundos jazem ainda na
estática do nada”.
A primeira providência é a regulamentação dos artigos
176 e 231 da Constituição Federal, que autorizam e
estabelecem as condições para o aproveitamento dos
minérios em terra indígena e áreas de fronteira,
pendente desde o governo do presidente José Sarney,
com tentativas fracassadas nos governos de Fernando
Henrique e de Lula.
Medidas urgentes devem ser adotadas para a
concessão em massa dos direitos sobre as províncias
minerais da Amazônia, sob regras rígidas de proteção
ambiental e de direitos sociais das populações locais,
atraindo investidores nacionais e estrangeiros para a
região, combinando as concessões com políticas fiscais e
de incentivo para que os minérios sejam processados
localmente e dirigidos para a indústria de joias e de
metais, biotecnologia farmacêutica e de alimentos.
Bioeconomia, economia baseada na biodiversidade, é
expressão que só faz sentido em países protetores do seu
patrimônio natural como o Brasil ou naquelas nações
que fizeram da biopirataria, legalizada ou não, o seu
caminho para a prosperidade.
O Brasil, na Amazônia, pode associar o conhecimento
tradicional dos caboclos e de suas populações indígenas
ao conhecimento científico mais avançado para
construir uma fabulosa indústria de alimentos, de
energia, de cosméticos e perfumes, de produtos
farmacêuticos em parceria com investidores nacionais e
estrangeiros, atraídos pelas mais diversas formas de
incentivos e vantagens que o Estado possa oferecer.

A quarta marcha para o Oeste seria a outra grande


fronteira do crescimento do Brasil com a missão de
integrar a economia do País, principalmente as
fronteiras mineral e agropecuária com a Ásia, via os
portos do Pacífico no Chile e no Peru, através de uma
rede de ferrovias, rodovias e hidrovias há muito
planejadas e nunca implantadas.
Esta quarta marcha sucederia as três anteriores. A
primeira, encetada pelos bandeirantes nos séculos XVI e
XVII, nos deixou como herança o território continental
demarcado no Tratado de Madri, preservado até os dias
atuais. A segunda, no final do século XIX, produziu o
ciclo da borracha e os sertanejos nordestinos que dela
participaram impediram um enclave norte-americano
em pleno coração da Amazônia, no atual estado do Acre,
conquistado por eles e incorporado ao Brasil. A terceira
marcha compreendeu o período Getúlio-Juscelino
governos militares, com o fluxo dos nordestinos para o
Mato Grosso com Getúlio, a construção de Brasília e da
rodovia Belém-Brasília
assentamentos agrícolas e ascom
rodovias
Juscelino,
na Amazônia
e nos
os

governos militares.

A América do Sul integrada por infraestruturas de transporte,


energia e comunicação reuniria diversas bacias de grãos, proteínas
e energia no propósito comum de desenvolver todos os países da
região e permitir a exportação dos excedentes.
A infraestrutura sul-americana existe desde os peabirus,
caminhos indígenas que ligavam São Paulo a Assunção e a Potosi
nos séculos XVI e XVII, apenas não foi atualizada. Euclides da
Cunha deixou ensaios primorosos sobre a edificação de malhas
ferroviárias na Amazônia e no Cone Sul. O esforço mais recente foi
a Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul
Americana (IIRSA), voltada para a modernização da rede de
transporte, energia e telecomunicações dos 12 países da região,
concertada em Brasília no ano 2000 em reunião dos presidentes da
América do Sul. O programa seria financiado pelo Banco Nacional
de Desenvolvimento Social (BNDES), Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID), Corporação Andina de Fomento (CAF) e
Financeiro para Desenvolvimento da Bacia do Prata (FONPLATA).
A ambição de tal projeto está em contradição com a doutrina
econômica arcaica que separa as razões de Estado dos interesses do
mercado em vez de integrá-las em benefício do desenvolvimento.
O Brasil não pode cavar um abismo entre o público e o privado,
entre o Estado e o mercado, mas procurar se apoiar nas virtudes e
vantagens que cada um pode oferecer.
Da mesma forma a integração sul-americana rejeita o sectarismo
ideológico que fabrica as divisões artificiais entre os países da
América do Sul em prejuízo de seus interesses e a serviço dos
objetivos geopolíticos de potências quase sempre indiferentes aos
problemas sul-americanos.
Outro enorme desafio é reduzir os entraves aos investimentos
públicos e privados na teia de normas e regulamentos que
bloqueiam o desenvolvimento.
O Brasil é um país programado para não crescer. Aqui, quem não
produz manda em quem produz, quem não emprega manda em
quem gera empregos, quem não paga imposto manda em quem
paga. Vivemos a esquizofrenia de um Estado que estimula e
fomenta o desenvolvimento e convive com outro que o bloqueia e
criminaliza. É claro que isso não pode dar certo e não pode
continuar. Essa situação fica evidente na dificuldade de se iniciar
uma obra pública ou privada e na facilidade de impedi-la ou
paralisá-la.
Quando fui ministro da Secretaria de Coordenação Política e
Relações Institucionais, sugeri ao presidente Lula a edição de uma
Emenda à Constituição criando uma via rápida para obras de
infraestrutura ou de interesse nacional, de tal sorte que apenas o
procurador-geral da República tivesse a prerrogativa de propor a
paralisação, com recurso diretamente ao Supremo Tribunal
Federal (STF) e prazo estabelecido para julgamento. Essa medida
contornaria a indústria de suspensões promovida por iniciativa do
Ministério Público, combinadas com decisões absurdas do
Judiciário de primeiro grau, geralmente com o patrocínio de
alguma ONG e ampla cobertura da mídia.
É uma verdadeira conspiração contra qualquer obra pública ou
privada, previamente condenada ou por ameaçar o meio ambiente
ou por alguma irregularidade, real ou fictícia. A cumplicidade dos
governos com o aparato ambientalista neomalthusiano contribuiu
para agravar a situação. O presidente Temer tentou fazer alguma
coisa em relação ao minério na Amazônia e a regularizar parte de
áreas agrícolas e foi obrigado a recuar por um tuíte de uma
celebridade do mundo da moda, evidenciando as fragilidades dos
governos diante dos interesses antinacionais alojados na
administração pública, na mídia e no aparato das ONGs
internacionais.
A retomada do desenvolvimento exige a reorientação do sistema
financeiro público e privado para o crédito ao empreendedorismo
que é a vocação pioneira do sistema bancário desde o
financiamento do ciclo das grandes navegações até o crédito
cooperativo para a agricultura e a pecuária. Era comum as casas
bancárias incorporarem a seus nomes expressões como produção,
lavoura, crédito agrícola, indústria, comércio, casos entre tantos
dos hoje extintos Banco Mineiro da Produção, Banco da Produção
do Estado de Alagoas, Banco da Lavoura de Minas Gerais, Banco do
Comércio e Indústria, ou da modesta Cooperativa Agrícola Banco
de Viçosa, de minha cidade.
O sistema financeiro organizado no ciclo cafeeiro financiou a
industrialização de São Paulo e do Brasil com os excedentes do
comércio da lavoura. O problema é o aparato financeiro ter se
voltado para objetivos alheios ao desenvolvimento e aos interesses
do bem comum e criado sua própria indústria de derivativos,
atividade parasitária para um grupo de rentistas concentradores
da riqueza produzida pela sociedade. O Estado pode fazer frente a
esse processo usando seus próprios bancos de crédito e fomento e
por meio de políticas públicas que pressionem a rede bancária a
vincular sua atividade ao interesse social.
Por fim, a retomada do desenvolvimento pressupõe o respeito à
democracia e a presença de um governo forte, com o vigor da
legitimidade conferida pela defesa da soberania nacional, do
desenvolvimento, da indústria e da agropecuária nacionais e da
redução das desigualdades que afrontam a dignidade do povo e do
Brasil.
CAPÍTULO 7

QUINTO MOVIMENTO
A agricultura, a pecuária e a
agroindústria
Em 2015, acompanhei a presidente Dilma Rousseff em uma reunião
dos BRICS (bloco de grandes economias emergentes, Brasil, Rússia,
Índia, China e África do Sul) na cidade de Ufá, nos Urais, na Rússia.
Certa noite, a presidente foi convidada para uma conversa
reservada com o presidente russo, Vladimir Putin. Eu a
acompanhei. Putin falou sobre os desafios dos BRICS, como ele os
via, mas também das dificuldades enfrentadas no governo em
áreas de conflito; a situação da Ucrânia, da Síria, do Irã, do
petróleo, da relação com a União Europeia, e lá pelas tantas, ele
informou à presidente a intenção de ampliar os contratos de
fornecimento de alimentos para a Rússia com o Brasil e a
Argentina, e ainda fez uma segunda observação. Ele disse: “Dilma,
você sabe que esses contratos são de longo prazo”. Eu percebi
haver nesse anúncio um receio de Putin em relação ao
fornecimento de alimentos à Rússia por parte da Europa e dos
Estados Unidos, que estavam impondo sanções ao país,
principalmente no setor de serviços.
Embora não seja uma tradição a adoção de sanções na área de
alimentos, os países sempre procuram uma posição defensiva em
relação ao tema. E ali vi a importância do Brasil na segurança
alimentar do mundo.
Em 2017, por ocasião dos 20 anos da devolução de Hong Kong aos
chineses, o embaixador da China organizou um jantar e eu
partilhei a mesa com o embaixador, o presidente da Câmara dos
Deputados, Rodrigo Maia, e o representante do presidente Michel
Temer, Hussein Kalout. Lá pelas tantas, o embaixador, com um
celular na mão, dirigiu-se a mim dizendo: ministro, a China
dependerá cada vez mais do Brasil. Compreendi imediatamente a
referência do embaixador, mas pedi que explicasse ao presidente
da Câmara o sentido de suas palavras e então ele visualizou no
celular uma cena de colheita de soja, provavelmente no Mato
Grosso, e esclareceu os integrantes da mesa sobre a qual
dependência se referia.
A mais importante batalha naval da Segunda Grande Guerra no
Atlântico Sul envolveu destróieres ingleses contra o cruzador
alemão Graf Spee, terror dos navios que transportavam carne e
grãos da Argentina e do Uruguai para a Inglaterra. Londres sabia
que resistiria a semanas, quem sabe meses, de bombardeios da
Luftwaffe, mas não aguentaria dias sequer sem o trigo e a carne
dos países do Prata. Depois de impor graves perdas à Marinha
britânica, finalmente o Graf Spee foi posto fora de combate em
uma batalha teatral na baia de Punta del Leste, no Uruguai.
A agricultura e a pecuária estão ligadas aos principais ciclos
econômicos da história do Brasil. Do extrativismo do pau-brasil
passamos à cana-de-açúcar que continuamos a plantar
ininterruptamente por quase cinco séculos e conhecemos o ciclo
do gado, responsável em parte pela expansão de nossas fronteiras
para além do Tratado de Tordesilhas. Alcançamos o ciclo do café e
do algodão, também o da borracha e chegamos hoje a uma
vitoriosa agricultura tropical de alta produtividade e alta
tecnologia, apoiada pelo conhecimento de uma experiência
vitoriosa chamada Embrapa.
A agricultura e a pecuária produzem para os brasileiros o
alimento mais barato e acessível do mundo e constroem a
avançada democracia social, a democracia da mesa, do mais
sagrado e elementar direito humano, o direito à refeição de cada
dia, o direito à vida.
No Brasil é mais correto falar das agriculturas desiguais,
convivendo a intensiva em capital e tecnologia, com escala e peso
nas exportações, e a de subsistência, de baixa tecnologia e quase
nenhum capital, mas de importância social insubstituível, não só
pelo alimento produzido, mas também por fixar na terra as
famílias que dela sobrevivem.
O mundo rural não é criador apenas da riqueza, do emprego, dos
tributos, das divisas a que me referi no capítulo 6, sobre a
retomada do crescimento. A agricultura, a pecuária e o mundo
rural estão na origem da construção do Brasil, construção material
e espiritual, construção de valores, da cultura, da música de Villa
Lobos, de Luiz Gonzaga, Tonico e Tinoco e nossos magistrais
repentistas, dos quais podemos citar Pinto do Monteiro, no
Nordeste e Jayme Caetano Braun, no Sul. Da literatura de José de
Alencar, Érico Veríssimo, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, João
Cabral de Melo Neto, Raduan Nassar e dos nossos geniais
cordelistas. A culinária mais simples e a mais sofisticada tiveram
como laboratório uma cozinha na roça.
É inaceitável que essa atividade esteja associada a mazelas como
trabalho escravo, crimes ambientais, ameaça às populações
indígenas, em difamação orquestrada por agentes da concorrência
internacional da agricultura brasileira.
Quando fui indicado relator do Código Florestal, sequer
integrava a Comissão de Agricultura e Pecuária da Câmara dos
Deputados. Eu participava da Comissão de Relações Exteriores e de
Defesa Nacional, de onde acompanhava os relatos das rodadas do
GATT (Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio) e a presença na
agenda das questões relacionadas à agricultura e meio ambiente.
A verdade é que a agricultura e a pecuária na Europa não são
propriamente atividades de mercado, o agricultor europeu é quase
um funcionário público de uma atividade quase estatal fortemente
subsidiada pelos tesouros de seus países. Nos Estados Unidos a
situação é parecida. E o que fazem esses agricultores e esses países
para enfrentar a dupla concorrência da agricultura brasileira em
preço e produtividade? Recorrem ao duplo subsídio, aquele que
recebem do Tesouro de seus países, e o outro destinado
indiretamente pelo mesmo Tesouro a organizações não
governamentais (ONGs) pagas para difamar a agricultura e a
pecuária do Brasil.
Ao longo de 30 anos de vida pública pude testemunhar dezenas
de vezes a ação deletéria de parte dessas organizações protegidas
pela cumplicidade da desinformação, da alienação da mídia e de
parcela da academia.
Há crimes ambientais na agricultura? Há e devem ser punidos
exemplarmente para não alcançar os agricultores sérios e
patriotas. O que precisa ser dito é que os criminosos são minoria e
escapam dos órgãos de fiscalização muitas vezes ocupados em
perseguir inocentes.
Há ONGs sérias e humanitárias, interessadas em proteger a
natureza e o bem comum? Há e são muitas, algumas empenhadas
em projetos de elevada criatividade e preocupação social. Mas as

que são mais ouvidas pela mídia são aquelas financiadas por
dinheiro e interesses internacionais contra a agricultura brasileira.
A pressão sobre a agropecuária nacional vai crescer não apenas
pela concorrência dos produtores norte-americanos e europeus.
Há um elemento novo e mobilizador de grandes interesses
internacionais e que se combina com os interesses comerciais da
agricultura e da pecuária dos Estados Unidos e da Europa: é a
agenda do clima. A meta do milênio de zerar a emissão de carbono
precisa ser compreendida para que se entenda a encruzilhada em
que o Brasil se encontra.
Carbono zero é a tradução de captação no mesmo volume de
emissão, ou seja, os países emissores de carbono não precisam
parar a emissão, basta capturar esse carbono de alguma forma e
em algum lugar do planeta. Sequestrar carbono custa caro, as
tecnologias não estão suficientemente desenvolvidas, restando o
caminho mais tradicional da retirada de carbono via florestas
nativas ou áreas reflorestadas. O problema é que para atingir tal
meta o mundo precisaria de cerca de 9 milhões de quilômetros
quadrados de florestas e reflorestamentos, algo como um Canadá
inteiro. Onde encontrar tais áreas? O Brasil cabe como uma luva
nesse mapa e daí se explica toda a campanha pelo desmatamento
zero (estou falando de desmatamento legal, permitido por lei), e
pela desantropização da Amazônia e quem sabe do Cerrado.
O Brasil terá que contar com uma diplomacia verde capaz de
explicar o esforço nacional de produzir alimentos com proteção
ambiental, mas também precisará de firmeza de convicções na
disputa de seus interesses nacionais legítimos e de seus
agricultores e criadores.
Um abismo cultural separa o homem urbano, litorâneo do
mundo rural. Mas é esse homem urbano o executivo, o legislador, o
juiz, o promotor, o fiscal e o jornalista que administra, legisla,
julga, investiga, fiscaliza e noticia tudo sobre um universo - o
campo - que ele ignora e sobre o qual se mantém desinformado,
munido apenas de preconceitos do senso comum.
A sociedade brasileira, principalmente as camadas médias
urbanas e litorâneas, tão distantes e alienadas do Brasil profundo e
rural, precisarão tomar consciência de que “O Brasil não é só
litoral”, como disse o poeta.
CAPÍTULO 8

QUINTO MOVIMENTO
A Amazônia
Tenho a ideia de que sobre a Amazônia pesa o que denominei
Maldição de Tordesilhas, a incapacidade nacional de incorporar de
fato ao Brasil o território que nossos antepassados nos legaram de
direito.
O Tratado de Tordesilhas, celebrado em 1494, já pressupunha a
disputa pela região compreendida por tudo o que é hoje Brasil a
oeste do meridiano imaginário, que cruza de Belém, no Pará, a
Laguna, em Santa Catarina, separando a faixa litorânea do Brasil
profundo.
Esse Tratado era a parte final de uma longa negociação de
fronteiras, o corolário de um processo de limites entre Portugal e
Espanha, mas que se projeta hoje como um dos principais
documentos da História Universal. Ele era elemento inicialmente
secundário de um processo histórico que se desenvolve até nossos
dias e procurou colocar ordem nas atribulações do início do avanço
dos europeus sobre o resto do mundo e disciplinar as disputas
entre Portugal e Espanha em busca da conquista do então chamado
Mar Oceano, o nosso atual Atlântico.
O Brasil e sua Amazônia aparecem então no centro das disputas
geopolíticas das grandes potências. Aí estavam as terras
desconhecidas ainda não descobertas, mas intuídas pelos geógrafos
e pelos estadistas. Isso em termos, pois a assimetria era gigantesca
entre a Espanha dos Habsburgos, no tempo dos descobrimentos, e
o minúsculo Portugal da Casa de Avis. Castela era a cabeça de uma
superpotência mundial, senhora não só de 4/5 da Península
Ibérica, como do Norte da Itália e dos restos do Império Romano
Germânico. Nesse contexto, o minúsculo Portugal procurava salvar
sua soberania e sobreviver cercado pelo abraço de urso dessa
Espanha gigantesca. Terminaram se impondo a audácia e a
habilidade de seus navegadores.
Voltemos a Tordesilhas, a pequena cidade onde os embaixadores
dos reis João II, de Portugal, e Fernando II, da Espanha, assinaram o
célebre Tratado que dividiu o planeta Terra entre os dois reinos
ibéricos e marcou, também, o final do período em que o Vaticano
era o mediador mundial das relações entre os estados. Daí em
diante as monarquias absolutas foram superando o poder dos
papas, e isso influiu no processo de colonização das Américas,
inclusive do Brasil, pois, assim como Tordesilhas assegurou um
espaço para a Espanha, seu colapso liberou os bandeirantes
brasileiros para conquistar 2/3 do território atual do Brasil,
incorporando também a Amazônia.
Aos poucos outros atores entraram no jogo, como Inglaterra,
França, Holanda, no final a Itália, a Alemanha e já os próprios
Estados Unidos, um marco do grande salto da Europa para o
domínio do mundo, num processo concluído com o
neocolonialismo do Século XIX e a construção do Império
Britânico, onde o Sol nunca se punha, no dizer da rainha Vitória.
Tordesilhas marcou o fim do estabelecimento de limites na
Península Ibérica e completou uma série de outros tratados que
entraram pelo Oceano Atlântico depois de Cristóvão Colombo ter
chegado à América, informando existir muito mais terras no
Hemisfério Ocidental.
O rei de Portugal já tinha ideia da existência dessas terras
quando propôs alterar o tratado então vigente, a Bula Inter Coetera
(nesta o meridiano ficava a apenas 100 léguas) para o Tratado de
Tordesilhas, definindo pertencerem a Portugal as terras a leste
deste meridiano, que estaria 360 léguas a oeste de Cabo Verde, a
partir da ilha de Santo Antão, e depois desse meridiano as terras
seriam da Espanha.
Esse acordo ensejou o comentário do rei francês, Francisco I,
primo dos reis de Espanha e Portugal, que dizia não ter
conhecimento da existência de um testamento de Adão dividindo o
mundo entre seus parentes, como já registrei no capítulo 2 deste
livro. Era um sinal do início da contestação do poder de arbitragem
dos papas.
O Brasil contemporâneo não correspondeu aos esforços e à visão
dos portugueses que promoveram aquela suprema luta para
incorporar ao Brasil essas terras que pertenceriam à Espanha, a
oeste de Tordesilhas. Foi um legado dos bandeirantes, de
conquistadores como Pedro Teixeira, que com os índios canoeiros
e flecheiros entrou pela América adentro junto aos missionários
jesuítas, com ideais de catequisar os pagãos. Eles incorporaram
esses habitantes autóctones à cultura dos colonizadores e os
converteram em brasileiros dos tempos atuais. Esse feito dos
nossos antepassados, dos portugueses, não teve correspondência
entre nós depois da Independência.
Quando digo integrar de fato quero dizer integrar demográfica,
econômica, científica e tecnologicamente. Boa parte da Amazônia
permanece como o “deserto ocidental” da crônica de Craveiro
Costa. Isso é ainda mais verdade quando se trata das terras do Arco
Norte, ou seja, ao Norte do rio Amazonas. A Amazônia Setentrional
e a Amazônia Ocidental permanecem como grandes vazios
demográficos. De tal sorte que quando fui ministro do Esporte
tivemos dificuldade para localizar uma das subsedes da Copa do
Mundo em Manaus exatamente pela inexistência de infovias na
região.
Há aproximadamente 20 mil milhas navegáveis nos rios da
Amazônia. Aparece quase que solitária a atribuição da Marinha de
fiscalizar aquelas águas; o sistema ferroviário é inexistente e o
sistema de rodovias vive abandonado ou bloqueado pelos órgãos
ambientais, como é o caso da rodovia Porto Velho-Manaus. Quando
fui ministro da Ciência e Tecnologia e, depois, ministro da Defesa,
tínhamos um projeto para usar os rios na construção de infovias
fluviais, e chegamos a inaugurar um trecho experimental, mas isso
tudo demandava dinheiro e os recursos eram poucos, quase
inexistentes.
Os grandes fundos que vão para a Amazônia não se destinam a
desenvolver a região, mas a bloquear seu desenvolvimento. Esse
déficit na área de infraestrutura é uma das razões que dificultam o
crescimento local. Quando não há infraestrutura, presença
demográfica, economia, a região fica mergulhada no atraso. Os
estados da região Norte não somam nem 5% do PIB brasileiro. Está
ali a mais elevada taxa de mortalidade infantil, de doenças
infecciosas, de analfabetismo, de abandono das populações,
principalmente das mais pobres, e entre as mais pobres, o
abandono das indígenas.
Dos três grandes troncos civilizatórios que formaram o Brasil, o
indígena é o menos protegido. Os brancos, os mestiços e os negros,
a partir das sociedades urbanas, buscaram seus espaços, suas
reivindicações, enquanto os índios permaneceram nos ermos,
relegados pela sociedade e pelo Estado, vivendo da assistência de
grupos filantrópicos, mas também submetidos à manipulação
interesseira de ONGs e governos estrangeiros.
Certa vez fui visitar uma aldeia yanomami perto da fronteira
com a Venezuela na companhia do então coronel Eduardo Villas
Bôas, chefe da assessoria parlamentar do Exército no Congresso
quando eu era presidente da Comissão de Relações Exteriores e de
Defesa Nacional, e do comandante da Brigada de Infantaria de
Selva de Boa Vista, o saudoso general Claudimar. Essa visita foi
provocada por uma denúncia publicada pelo jornal norte
americano The New York Times a partir de fontes da sociedade
brasileira, que sugeriram ao jornal a notícia de que estaria
havendo abuso sexual, estupros e outras violências por parte dos
soldados na região da Amazônia e na fronteira, e as vítimas seriam
mulheres indígenas. Decidi responder ao artigo do jornal, mas
depois de visitar alguns pelotões de fronteira na selva. As visitas
comprovaram que mais de 90% dos integrantes dos pelotões eram
índios que nas suas licenças, voltando às aldeias de origem,
naturalmente tinham relações com mulheres índias. Ali não há
mulheres alemãs, gaúchas ou argentinas. São mulheres das tribos.
Esses soldados tinham relações com as índias segundo as tradições
indígenas. Naturalmente, em razão de os militares receberemo
soldo, algumas dessas relações resultaram em ações judiciais, em
demandas de reconhecimento de paternidade ou pensão, que
foram transformadas, na judicialização, em denúncias de abusos,
com as índias instruídas pelos militantes dessas ONGs a pedir
reparações, vantagens financeiras e a reivindicar direitos que,
antes, não eram considerados pela cultura ancestral.
Ao chegarmos em uma aldeia perto de um pelotão de fronteira
nos deparamos com uma jovem representante de uma ONG que
impediu a entrada do coronel e do general, concordando com a
minha presença por ser deputado federal. Os dois militares
aquiesceram, provavelmente tentando evitar um incidente. O
estado da oca no seu interior era deplorável, com grande volume
de fuligem produzida pelos inúmeros fogos acesos. As mais de uma
dezena de famílias indígenas apresentavam evidente desnutrição
dos adultos, velhos e crianças, muitos deles portadores de doenças
infecciosas, segundo a própria moça da ONG.
A certa altura, perguntei por que não dotar a habitação de luz
elétrica e água encanada, que poderiam ser trazidas do pelotão de
fronteira, mas ela contestou, dizendo que tal medida alteraria a
cultura dos índios.
Ao sair da oca, encontrei algumas crianças indígenas correndo
atrás de uma bola e me movimentei para fazer companhia a elas,
quando comentei com a jovem integrante da ONG: “Pelo menos o
futebol é fator de integração, torcemos todos pela mesma seleção”,
ao que ela contestou: “não, senhor! O senhor torce pela sua seleção
e eles torcem pela seleção deles”. Voltei-me para o coronel e o
general e partimos.
A Amazônia é um rosário de carências, o menor IDH do Brasil, e o
maior índice de analfabetismo e de doenças infecciosas. É também
a região mais ignorada e menos conhecida dos brasileiros.
A mídia do Sul e do Sudeste nem sabe localizá-la no mapa e
quando publica matérias sobre os dramas da região busca sempre
opinião de uma ONG que tem um escritório em São Paulo e uma
sede na Europa ou nos Estados Unidos.
Em uma das operações conduzidas pelo Ministério da Defesa na
selva percebi uma jovem tenente da Aeronáutica escovando os
dentes de uma criança de quase 10 anos. Aproximei-me e perguntei
à tenente se o menino já não tinha idade para escovar os próprios
dentes e ela respondeu que ele nunca tinha visto uma escova de
dentes na vida. Em outra ocasião, ao visitar um pelotão na
fronteira com o Peru, recebi o prefeito do município com o pedido
para manter a tenente médica do Exército por ser a única
profissional a atender a população.
Certo dia descendo o rio Purus de canoa, vi um grupo de crianças
saindo de uma pequena embarcação e perguntei ao piloto do que
se tratava. Ele respondeu ser uma escola e então pedi para nos
dirigirmos à margem do rio pois eu queria visitar o
estabelecimento. Era uma casa simples, a aproximadamente 100
metros da margem do rio. Havia cartolinas pelas paredes com
apontamentos didáticos indicando que ali ministrava um professor
aplicado e orgulhoso de seu ofício. No chão, um colchão arrodeado
por tocos de velas. Perguntei ao professor do que se tratava e ele
respondeu serem velas usadas para preparar as aulas à noite. A
escola não tinha luz. Observei a ausência de torneiras pela casa e
comprovei a falta de água encanada na escola, mesmo a poucos
metros de um dos rios mais caudalosos do mundo. O professor
vivia ali e me disse que só ia à cidade uma vez por mês para
receber o seu salário. Quando voltei a Brasília fui informado pelo
MEC de que no Brasil havia milhares de escolas naquelas
condições, a maioria delas na Amazônia. Nunca vi uma ONG
ambientalista sequer citar a condição dessas crianças brasileiras. A
vida delas para o neomalthusiano importa menos que a vida de
uma árvore ou de um bicho da floresta.
A superação da Maldição de Tordesilhas pressupõe um grande
esforço da sociedade brasileira, do Estado e da população,
orientado pelas seguintes diretrizes:

Afirmação da plena soberania nacional sobre a Amazônia


brasileira, sem qualquer tipo de concessão ou de tutela
por parte de potências hegemônicas ou organismos
internacionais;

Reconhecimento do direito das populações da Amazônia,


indígenas, ribeirinhos, caboclos, agricultores e
pecuaristas ao pleno desenvolvimento em suas
atividades produtivas e de subsistência, com acesso a
infraestrutura de transporte, comunicação, assistência
técnica e serviços públicos de educação, saúde e
segurança;

Proteção do Estado às populações indígenas para


preservar a cultura, tradições e hábitos e promover sua
integração à sociedade nacional, segundo a doutrina
patriótica e humanista do marechal Cândido Mariano da
Silva Rondon, amigo dos índios e do Brasil;

Compromisso com a proteção da natureza, dos biomas


amazônicos, das florestas, da biodiversidade, da fauna,
da flora, com a repressão implacável aos crimes
ambientais;

Zoneamento socioeconômico e ecológico detalhado da


Amazônia para orientar as ações de desenvolvimento
combinadas com a elaboração de um inventário
completo e periodicamente atualizado do patrimônio
natural da região;

Aproveitamento do saber acumulado pelas universidades


e institutos federais da região, com destaque para o
Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia (INPA) e o
Museu Emílio Goeldi, do Pará, em cooperação com outras
universidades brasileiras e institutos e universidades
estrangeiras, desde que as pesquisas sejam voltadas para
o desenvolvimento das forças produtivas locais e
preservação do meio ambiente.

O Brasil deve ainda adotar medidas enérgicas e de grande


visibilidade em matéria de defesa, para dissuadir crimes
transfronteiriços, aventuras intervencionistas de qualquer
natureza e para demonstrar o zelo do Estado pela Amazônia:

Construção da Base Naval da Segunda Esquadra em local


já escolhido pela Marinha junto ao porto de águas
profundas de Itaqui, Maranhão, e cuja transferência dos
domínios do Exército para a Marinha foi iniciada em
minha gestão no Ministério da Defesa. Além da Segunda
Esquadra, o local deve também receber uma base de
submarinos para vigiar o Atlântico, ao Norte do Brasil,
mas principalmente as áreas adjacentes à entrada da
Bacia Amazônica.

Construção ou conversão de uma das bases aéreas (Boa


Vista e Tiriós seriam boas alternativas) da Amazônia em
base aeroespacial voltada para o Caribe e o Atlântico;

Ampliação dos Pelotões Especiais de Fronteira e criação


de Núcleos de Preparação de Oficiais da Reserva (NPORs)
em comunidades com grande presença indígena para
promover oficiais índios nos quadros do Exército, que já
conta com elevado número de praças dessa origem.
Atenção especial ao Sistema Integrado de
Monitoramento de Fronteiras (SISFRON) e intensificação
de operações ACISO (Ação Cívico Social), com a
participação das Forças Armadas, das prefeituras, dos
governos estaduais e das comunidades locais.

Fortalecimento da presença da Marinha nas águas


interiores da Amazônia em missão de vigilância e
prevenção de crimes locais e transnacionais, sempre que
possível em parceria com a Polícia Federal e as polícias
civis e militares dos estados da região.

O interesse pela Amazônia é antigo tanto quanto a desconfiança


de nossos estadistas em relação à cobiça estrangeira. O Marquês de
Pombal, ministro forte, déspota esclarecido do rei Dom José,
enviou o próprio irmão, Francisco Xavier de Mendonça Furtado,
para governar o Pará. D. Pedro II em carta à amiga condessa de
Barral manifestava contrariedade pela reivindicação dos Estados
Unidos para a abertura do rio Amazonas à navegação estrangeira.
O imperador temia que esse processo levasse o Brasil ao mesmo
destino da China, cujos portos estavam ocupados por potências
estrangeiras.
Euclides da Cunha, Josué de Castro, Leandro Tocantins, Arthur
Cesar Ferreira Reis e outros intelectuais patriotas escreveram
páginas memoráveis sobre a Amazônia e seus desafios.
Recentemente, o grande pesquisador brasileiro há pouco falecido,
Luiz Hildebrando Pereira da Silva, depois de se aposentar pelo
Instituto Pasteur na França, instalou em Porto Velho, com apoio da
Fiocruz e do governo de Rondônia, um centro de pesquisa voltado
para o combate à malária, demonstrando que sempre houve no
Brasil intelectuais e cientistas com profunda devoção ao interesse
nacional.
O ano de 2020 inaugurou uma nova era em Wall Street, marcada
pela presença da água na condição de uma das commodities
negociadas na Bolsa de Valores. Água e floresta, floresta e água,
perdição ou salvação da Amazônia e do Brasil. 350 mil quilômetros
quadrados de água doce na estação de cheia e mais de 200 mil
metros cúbicos de vazão de água doce por segundo,
correspondendo a 20% da vazão de todos os rios do mundo. Isso é a
Amazônia, isso é Brasil.
CAPÍTULO 9

QUINTO MOVIMENTO
As Forças Armadas como
parte da reconstrução do
Brasil
No final de 2015 acompanhei a presidente Dilma Rousseff em
viagem à Suécia e à Finlândia na condição de ministro da Defesa e a
missão tinha como objetivo ampliar a cooperação científica,
tecnológica e militar com a Suécia, país com o qual mantínhamos
um ambicioso projeto de fabricação do caça binacional Gripen. A
viagem foi estendida à Finlândia, que demonstrara algum interesse
na aquisição dos caças binacionais e na fabricação de lanchas
patrulhas para as marinhas finlandesa e brasileira.
Na saudação aos meus anfitriões elogiei a tradição militar e a
bravura do soldado finlandês, recordando o episódio da guerra
russo-finlandesa de 1940, quando o Exército da Finlândia, sob o
comando do general Gustaf Mannerheim, bateu-se com bravura
contra o poderoso Exército Vermelho. Notei que a reunião
acontecia em uma sala simples, austera, com uma mesa rústica de
madeira, relativamente pequena, e toda riscada, a demonstrar que
em algum momento fora bastante usada. Ao agradecer minha
referência elogiosa ao soldado de seu país e ao seu comandante, o
ministro finlandês disse: “Ministro, todas as operações da
resistência foram traçadas pelo general Mannerheim nesta mesa,
em torno da qual estamos reunidos”. Ao preservar aquela mesa, a
Finlândia venerava um momento singular da sua história, da sua
memória, dos seus heróis. A mesa rústica era parte do orgulho
nacional finlandês e a presença dela na sala principal do Ministério
da Defesa era mais do que o testemunho do passado, era o
chamamento presente, ao dever dos responsáveis pela defesa do
país.
Assim são as Forças Armadas em todo o mundo, cultuadas,
reverenciadas como instituições construtoras da emancipação
nacional na guerra e na paz. Estados Unidos, China, Rússia, França,
Vietnã dedicam generosos orçamentos para a defesa e estimulam
entre a população o respeito e a gratidão por suas organizações em
armas.
No Brasil, as Forças Armadas acumulam uma dupla missão:
defender e construir o País. A defesa como atividade fim, e a
construção como ação subsidiária nas lacunas e deficiências do
Estado nacional.
O Exército brasileiro, em decreto assinado pelo presidente
Itamar Franco e pelo ministro do Exército Zenildo Zoroastro de
Lucena, firmou a data de sua fundação no longínquo 19 de abril de
1648, nos campos dos Guararapes, em Pernambuco, quando um
exército de índios, negros, mestiços e brancos derrotou as tropas
holandesas selando o fim da ocupação batava no Nordeste do
Brasil. Os comandantes desta batalha, o negro Henrique Dias, o
índio Poti Filipe Camarão e os mestiços André Vidal de Negreiros e
João Fernandes Vieira foram desde então considerados fundadores
do Exército Brasileiro.
A Guerra da Independência deu ao Exército e à Marinha o
batismo de fogo e a estreia de dois futuros heróis, o jovem tenente
Luís Alves de Lima e Silva, futuro Duque de Caxias, comandante na
Guerra do Paraguai e patrono do Exército, e o voluntário Joaquim
Marques Lisboa, depois Marquês de Tamandaré, herói do Paraguai
e comandante da Marinha.
A Regência encontrou o Brasil mergulhado na anomalia de ser
uma monarquia sem monarca e um império sem imperador.
Campeava a anarquia e quatro guerras civis simultâneas, aqui
referidas no capítulo 4, ameaçavam a unidade do País e a
integridade do território: a Farroupilha no Rio Grande do Sul, a
Sabinada na Bahia, a Balaiada no Maranhão e a Cabanagem no
Pará. O regente Feijó, duro e austero, comunicou ao Parlamento
que o País era ingovernável e renunciou. Apenas duas instituições
estavam acima das aspirações dos caudilhos e dos regionalismos
radicalizados: o Exército e a Marinha, portadoras por vocação e por
natureza da única consciência nacional capaz de refrear o ânimo
incendiário dos interesses locais e impor pela força a razão
nacional. Até que a maioridade conferida ao jovem imperador
restabelecesse a referência da autoridade e da unidade do País.
A Guerra do Paraguai foi a declaração de maioridade das Forças
Armadas, senhoras do triunfo nos rios e nos campos de batalhas:
Tuiutí, Riachuelo, Passagem de Humaitá, Lomas Valentinas, Avaí e
Itororó cobriram de prestígio e glória os soldados e seus
comandantes.
A convivência entre soldados e oficiais no acampamento e no
convés do navio selou o companheirismo e a cumplicidade dos
combatentes em torno das causas da Abolição e da República. A
tropa retornou dos campos paraguaios abolicionista e republicana
e foi força decisiva para decretar a libertação dos escravos e o fim
da Monarquia no Brasil.
O marechal Deodoro, presidente do Clube Militar, anunciou a
sentença de morte da escravidão quando declarou que o Exército
não mais cumpriria o papel de capitão do mato na busca dos
escravos fugidos. No episódio da República, seu prestígio foi
suficiente para desencorajar qualquer reação a uma República que
destronou uma Monarquia desgastada, mas com um imperador
dotado de simpatia e respeito da população.
Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto governaram por um
período muito breve e no caso de Floriano, acossado por uma
rebelião no Rio Grande do Sul liderada por caudilhos gaúchos e
mercenários uruguaios, e outra no Rio de Janeiro, conduzida por
oficiais da Marinha simpatizantes da Monarquia ou insatisfeitos
com os rumos da República.
O protagonismo militar na política prolongou-se pela Revolta dos
Tenentes; conheceu um momento decisivo na Revolução de 1930,
liderada por Getúlio Vargas e Góes Monteiro, na deposição do
mesmo Vargas em 1945, e depois no suicídio dele em 1954, no
Golpe Militar de 1964, e desde então sofre um declínio importante
em matéria de intervencionismo em assuntos institucionais.
Capítulo decisivo foi a participação do Brasil na Segunda Grande
Guerra, assunto abordado no capítulo 5 deste livro.
Mas a presença das Forças Armadas é edificante nas realizações
ligadas à ciência, à tecnologia e às obras de caráter social. O
almirante Álvaro Alberto criou o Conselho Nacional de Pesquisa
(CNPq) e o Programa Nuclear Brasileiro. Seu pioneirismo deu à
Marinha a primazia na condução do Programa Nuclear Paralelo e
na fabricação da centrífuga que permitiu ao Brasil autonomia no
enriquecimento de urânio.
O brigadeiro Casimiro Montenegro Filho concebeu o Instituto
Tecnológico de Aeronáutica (ITA), que está na origem da indústria
aeronáutica nacional e do Programa Espacial Brasileiro.
Quando a seca assola o sertão, a Operação Pipa, comandada pelo
Exército, assegura a chegada da água aos sertanejos. Na Amazônia
muitas vezes é o socorro solitário do soldado a única esperança do
índio e do ribeirinho doente.
Política de defesa é a composição de dois elementos: escolha e
destino. Por escolha, as políticas traçadas pelos governos e pelos
caminhos determinados pelas próprias instituições armadas; por
destino, a geografia, a população, a economia e as imposições
incontornáveis da geopolítica.
A escassez de recursos limita a capacidade operacional e a
manutenção das nossas Forças Armadas no estado da arte das
organizações correlatas em todo o mundo.
Quando ocupei o Ministério da Defesa, houve um momento em
que no comando da Força Naval de Paz da ONU no Líbano (UNIFIL)
a Marinha não dispôs de uma fragata para substituir a que estava
na missão (passavam todas por manutenção ou reparo), o que nos
obrigou a enviar uma corveta. Em audiência com a presidente
Dilma e os comandantes militares, observei que o Brasil caminhava
para a situação de uma Marinha sem esquadra, e sugeri a retomada
do projeto da própria Marinha de construção das quatro corvetas
classe Tamandaré. A presidente autorizou o reinício da tramitação
do projeto e ainda no Ministério recebi o ministro das Relações
Exteriores da Itália, país considerado pela Marinha parceiro ideal
na revisão do projeto e na construção das quatro embarcações.
No Ministério da Defesa, propus ao Congresso a elaboração de
uma Emenda à Constituição fixando o mínimo de 2% para o
orçamento da Defesa e junto à presidente Dilma Rousseff defendi
uma nova repartição do Fundo do Pré-Sal para contemplar os
investimentos em defesa nacional. A relação orçamento de
defesa/PIB apontava a posição brasileira abaixo da média mundial
e sul-americana.
Como escrito nos documentos oficiais do Ministério da Defesa
(Políticanacional
defesa Nacional de Defesa
resulta do desenvolvimento
e Estratégia Nacional
nacional
de eDefesa),
serve aoa

desenvolvimento nacional, assim como a tecnologia de defesa e a


indústria nacional de defesa pressupõem a existência da tecnologia
nacional e da indústria nacional.
É conhecida a prática adotada pelos países detentores de
tecnologias sensíveis na área de defesa de proibir a sua
transferência para terceiros em qualquer circunstância. O Brasil só
dominou o enriquecimento do urânio quando qualificou cientistas
civis e oficiais da Marinha para o seu Programa Nuclear Paralelo. A
autonomia nacional em matéria de defesa só é possível com a
correspondente autonomia em ciência, em tecnologia e capacidade
industrial.
Como fatores de dissuasão em matéria de defesa, o Brasil precisa
aperfeiçoar permanentemente o seu Programa Nuclear e retomar a
Missão Espacial Completa Brasileira (MECB), cujo objetivo é levar
ao espaço um satélite construído no Brasil, lançado de um foguete
fabricado no Brasil e de uma base de lançamentos localizada
também no Brasil.
As Forças Armadas elegem como principais itens de seus projetos
estratégicos:

Na Força Aérea, o Projeto F-X2, dos caças Gripen NG, o


Cargueiro Militar KC-390 (já em operação) e o Programa
Estratégico de Sistemas Espaciais (PESE).

Na Marinha, o reaparelhamento da Esquadra, com a


construção das Corvetas Classe Tamandaré e do Navio
Aeródromo, e o Programa de Desenvolvimento de
Submarinos (PROSUB) convencionais e de propulsão
nuclear.

No Exército, o Sistema Integrado de Monitoramento de


Fronteiras (SISFRON), o Projeto Guarani (blindado) e o
Projeto de Defesa Cibernética.
No capítulo sobre a Amazônia, apontamos um
conjunto de providências na área de defesa voltadas
especificamente para a região.

O Brasil desfruta de enorme prestígio internacional decorrente


da tradição pacífica do País, da vocação de nossa diplomacia para a
mediação dos conflitos em um mundo pleno de confrontos, pela
qualidade humana do nosso soldado, provada nos campos da Itália
na Segunda Guerra e em quantas missões de paz da ONU fomos
convocados a realizar.
O Brasil deve proteger esse patrimônio, essa vocação pacífica,
essa diplomacia voltada para a mediação, e a melhor forma de
fazer isso é contar com forças armadas adestradas e equipadas
para defender a soberania da Pátria diante de um mundo
carregado de horizontes sombrios e ameaçadores.
As Forças Armadas têm a atribuição de aprofundar seus laços
com a Nação como um todo, com sua história, sua memória e
identidade, desviando-se das armadilhas ideológicas e políticas que
dividem a população e o País. Vincular-se com a centralidade da
Questão Nacional é seu destino, e se há uma reforma curricular a
ser promovida nas suas instituições de ensino não é para
introduzir o contrabando da agenda identitária infelizmente já
infiltrada em nossas escolas públicas e privadas, mas ao contrário,
é para valorizar o estudo da história e dos intérpretes da formação
social brasileira. Um oficial superior das Forças Armadas tem a
obrigação de conhecer a obra de Gilberto Freyre e Euclides da
Cunha, por exemplo, sem os quais é impossível compreender
verdadeira e profundamente o Brasil.
CAPÍTULO 10

QUINTO MOVIMENTO
Ciência, Tecnologia e
Inovação
O domínio da ciência, da tecnologia e da inovação foram cruciais
para determinar que países predominariam e quais ocupariam um
papel subordinado na divisão do trabalho em escala mundial. A
hegemonia econômica e militar está cada vez mais relacionada
com a capacidade científica e tecnológica de cada nação.
Apoiado nas tecnologias disponíveis para a navegação, Portugal,
um pequeno país europeu, na passagem do século XV para o XVI,
conduzido por navegadores intrépidos, transformou-se em um
poderoso império colonial usando a bússola, o astrolábio, a vela
triangular e a caravela. A Escola de Sagres reunia as condições de
uma escola formal e de um estaleiro onde se acumulou o
conhecimento necessário para a aventura das grandes navegações.
A máquina a vapor foi invenção de um filósofo e matemático
grego, Heron de Alexandria, a partir do uso da pressão resultante
da água aquecida para produzir energia mecânica. A criação ficou
esquecida durante séculos até que técnicos ingleses adaptaram o
princípio para movimentar teares na indústria têxtil britânica,
obtendo com isso a elevação exponencial da produtividade das
fábricas do país. O passo seguinte foi sua adoção para movimentar
as locomotivas para transportar mercadorias e passageiros em
larga escala, os navios a vapor singrando os mares em velocidade
muito superior à dos barcos a vela, e principalmente as
canhoneiras a vapor, que passaram a ditar a Pax Britannica e o
controle da Marinha Real sobre os mares do mundo.
Em 1793 o rei George III despachou Lord Macartney e uma
numerosa delegação à China com a intenção de abrir o mercado
oriental às novidades da indústria britânica. O imperador Qianlong
ofereceu mesuras e banquetes aos emissários britânicos, mas
desconheceu qualquer oferta de comércio e sequer aquiesceu ao
pedido britânico de abertura de uma embaixada no país.
Os britânicos enviaram outras delegações até que resolveram
abrir os portos chineses com suas canhoneiras a vapor. Para
encurtar a história, a China foi ocupada por várias potências
ocidentais e Hong Kong só foi devolvida pelos ingleses em 1997. A
máquina a vapor deu ao império britânico 150 anos de domínio
sobre o mundo.
A transformação da matéria em energia era um desafio que
mobilizava a ciência no princípio do século XX, quando o físico
alemão Albert Einstein revelou a equação E=m.c² (energia é igual a
massa vezes a velocidade da luz ao quadrado), capaz de
transformar uma pequena quantidade de matéria em uma enorme
quantidade de energia. A descoberta de Einstein gerou tecnologias
para fins pacíficos, inclusive medicinais, mas o uso mais
importante, mais conhecido, mais duradouro e mais terrível da
equação de Einstein foram as bombas atômicas lançadas pelos
Estados Unidos sobre as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki
ao final da Segunda Guerra Mundial. O domínio do átomo e o seu
uso militar permitem aos Estados Unidos a manutenção de uma
base nuclear no arquipélago japonês até os dias de hoje.
Atualmente, Estados Unidos e China escalam uma disputa
geopolítica mundial carregada de fortes acusações de parte a parte
envolvendo a tecnologia 5G, capaz de transportar dados em
velocidade superior às gerações anteriores, com impacto na
produtividade da indústria e dos serviços e nas atividades de
inteligência.
O Brasil deve muito de seu desenvolvimento ao espírito
científico e inovador de seus filhos nas diversas áreas do
conhecimento e do empreendedorismo. Foram inovadoras
pioneiras nossas populações indígenas no uso de plantas nativas
para o tratamento de padecimentos diversos como registra o
historiador Jorge Caldeira no livro História da Riqueza no Brasil.
Foram inovadores os bandeirantes, dilatadores de fronteiras,
revogando as convenções e os tratados da época. Empreendedores
foram Mauá, empresário no Império, Delmiro Gouveia no sertão de
Alagoas, Roberto Simonsen e José Ermírio de Moraes na indústria,
Celso Garcia Cid na pecuária, Alysson Paulinelli, criador da
Embrapa, e Johanna Dobereiner ao descobrir a fixação biológica do
nitrogênio das plantas.
Foram inovadores nas ciências da saúde Osvaldo Cruz, Carlos
Chagas, Vital Brasil, Nise da Silveira, Rocha Lima, Sérgio Ferreira e
Samuel Pessoa. Pioneiros e inovadores em física e química
aplicadas ao desenvolvimento foram Alberto da Mota e Silva,
Cassimiro Montenegro, Cesar Lattes, Mario Schenberg, José Leite
Lopes, Othon Pinheiro, Rex Nazaré e Rogério Cézar de Cerqueira
Leite. Nas ciências sociais, Oliveira Vianna, Gilberto Freyre, Sérgio
Buarque de Holanda, Anísio Teixeira, Arthur Ramos, Álvaro Vieira
Pinto, Darcy Ribeiro e tantos outros que descortinaram
interpretações críticas, mas otimistas da formação social
brasileira.
Quando assumi o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação,
convidei a professora Mariana Mazzucato, autora do instigante
livro O Estado Empreendedor, a que me referi no capítulo 6, e
autoridade em economia da inovação, para oferecer uma
apreciação sobre a rede de pesquisa formada pelos institutos do
País e pelas universidades. Ela observou que o Brasil possui uma
sofisticada estrutura de ciência e pesquisa, tem institutos e
universidades de bom nível e apontou defeitos passíveis de
correção, como a necessidade de renovação dos quadros de
pesquisadores e a aproximação da ciência e da pesquisa produzidas
pelo Estado com as demandas do setor produtivo via as
encomendas promotoras de inovação voltada para o
desenvolvimento.
Ainda no MCTI, descobri ser dos raros ministérios sem qualquer
recurso proveniente de órgãos internacionais de fomento. Viajei a
Washington e acertei com o presidente do Banco Interamericano
de Desenvolvimento (BID), Luis Alberto Moreno, o empréstimo de 2
bilhões de dólares para o MCTI. Posteriormente, o Ministério do
Planejamento autorizou o empréstimo de 1,4 bilhão de dólares do
BID para a pesquisa no Brasil.
Outra surpresa na minha passagem pelo MCTI foi não encontrar
ali nenhuma obra do Programa de Aceleração do Crescimento
(PAC), como se fosse possível crescer sem ciência, tecnologia e
inovação. Levei à presidente Dilma a proposta de incluir no PAC o
Sirius Acelerador de Partículas de Luz Síncronton, de Campinas,
São Paulo, e o Reator Multipropósito Brasileiro (RMB) para a
produção de radioisótopos e radiofármacos, em Iperó, São Paulo.
As duas sugestões foram acolhidas pela presidente. Em 2018, o
presidente Michel Temer lançou a pedra fundamental do reator no
Centro Experimental de Aramar, e em 2020 o presidente Jair
Bolsonaro inaugurou a primeira etapa do novo Acelerador de
Partículas.
Na partilha dos recursos do Fundo do Pré-Sal, 75% foram para a
Educação, 25% para a Saúde e zero para a Ciência, Tecnologia,
Inovação e Defesa. Em audiência com a presidente Dilma, observei
que Educação e Saúde se faziam com ciência e pesquisa, e eram
atividades relacionadas com a Defesa e que, portanto, a partilha
dos recursos do Pré-Sal deveria ser feita levando em conta a
proposta por mim apresentada. A presidente Dilma me autorizou a
redigir uma proposta de novo decreto para a partilha dos recursos,
mas em seguida o governo dela terminou.
Ainda assim tentei convencer o governo a elevar o orçamento do
MCTI para o mínimo de 2% do PIB, já que ciência e pesquisa são
atividades intensivas em recursos humanos qualificados,
equipamentos de última geração e custeio elevado para a produção
do conhecimento.
CAPÍTULO 11

QUINTO MOVIMENTO
A educação
A catequese dos jesuítas converteu-se na primeira ação
educacional de grande alcance no início da colonização. Os padres
Manuel da Nóbrega e José de Anchieta, sob a proteção do cacique
Tibiriçá, fundaram uma escola para crianças indígenas em São
Paulo de Piratininga e Anchieta escreveu a primeira gramática em
língua Tupi e sacramentou a adoção da língua do colonizado em
substituição ao idioma do colonizador.
Às populações indígenas que aqui habitavam reuniram-se
aventureiros e renegados brancos europeus, e depois os africanos
trazidos como escravos para construir uma etnia nova e uma
civilização inédita, mestiça, em constante busca de identidade, de
direitos e de futuro.
A mobilidade social permitida na sociedade é a exata medida do
seu caráter democrático. E a qualidade da educação oferecida aos
cidadãos é um instrumento que permitirá a maior ou menor
mobilidade entre eles.
É de se destacar o esforço recente de diversos governos em
prover o Estado de instrumentos de valorização da educação. O
Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental
e de Valorização do Magistério (Fundef) no governo Fernando
Henrique Cardoso foi seguido pelo Fundo de Manutenção e
Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) ampliado para
alcançar o ensino médio no segundo governo Lula.
O que choca é confrontar esse esforço com o desempenho
decepcionante do Brasil em exames como o Programa
Internacional de Avaliação de Alunos (PISA), sob responsabilidade
da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico
(OCDE). Entre 79 países avaliados, o Brasil ficou sempre abaixo da
50ª e mesmo da 60ª posição, atrás de países devastados pela guerra
como o Vietnã e de nações com o dever de educar centenas de
milhões de estudantes como a China. Nas três disciplinas avaliadas,
leitura, matemática e ciências, os resultados nos descrevem como
uma tragédia educacional.
É evidente que há fatores além dos recursos destinados à
educação e das escolhas pedagógicas para explicar nosso fracasso.
Quais seriam?
A redemocratização do País trouxe enormes benefícios para a
sociedade brasileira, mas falta sensibilidade e coragem para
reconhecer e abordar os efeitos colaterais indesejáveis da
incompreensão do que seja verdadeiramente uma democracia.
Liberais conservadores e progressistas que lideraram o processo
de redemocratização confundiram três categorias históricas e
jurídicas: governo, Estado e Nação, e na confusão, ao prevenir a
sociedade contra fenômenos autoritários como o Regime Militar,
terminaram por fragilizar o próprio Estado nacional e golpear a
ideia e o conceito de Nação, por associarem equivocadamente
Estado e Nação a governo militar.
A confusão produziu um paradoxo: ampliou as responsabilidades
do Estado na dotação de recursos para a educação, mas reduziu
suas atribuições na formulação do conteúdo e dos currículos da
aprendizagem, que passou a flutuar ao sabor das pressões dos mais
diferentes interesses de corporações quase sempre alheias ao
interesse nacional.
Hierarquia e disciplina, princípios fundamentais em qualquer
atividade de ensino e aprendizagem, por associação com o
militarismo, foram praticamente banidos das instituições
educacionais, com as exceções de sempre. Professoras e
professores, de sacerdotes encarregados da missão da transmissão
do conhecimento, cultuados pela sociedade, pelo Estado, pela
família e pelos alunos, acabaram despojados do elevado conceito
social de que desfrutavam.
Em resumo, educar uma criança para a vida e para o futuro
passou a não ter distinção nenhuma de trocar um curativo num
posto de saúde ou organizar o trânsito nas ruas da cidade. A
questão aqui é que toda prestação de serviços públicos pode
admitir falhas passíveis de correção, mas um curativo mal feito
pode ser trocado por outro sem maiores problemas, enquanto um
ensino fundamental defeituoso marcará a vida do aluno
definitivamente.
A educação já não é mais a geradora de promessa de futuro, a
esperança mobilizadora e disciplinadora das energias de mães, de
pais e das próprias crianças, a causa que justificava sacrifícios e
renúncias para ser alcançada. Não, a educação tratada como um
serviço a mais ofertado pelo Estado conformou-se finalmente como
direito de todos e obrigação de ninguém.
As eleições diretas para escolha de dirigentes nos três níveis de
ensino despiram-se da preocupação e do conteúdo coletivo e
nacional para assumir a dimensão de disputas de plataformas
sindicais, com as honrosas exceções de sempre.
O orçamento compatível com a função social da educação e as
condições adequadas para o exercício pleno do magistério são
providências que o Estado e a sociedade devem tomar para a
alteração da tragédia educacional que testemunhamos.
O Estado nacional precisa ser o protagonista central da educação,
o responsável por orientar seu conteúdo em benefício do interesse
geral, sem fragmentá-lo em concessões a interesses localizados,
corporativos ou da agenda identitária.
A educação crítica deve ser também patriótica e cabe à escola
estimular o saudável orgulho nacional nas crianças, fortalecendo
os laços de pertencimento e de solidariedade da comunidade pelo
ensino da história e comunhão dos símbolos e valores nacionais.
Por fim, restituída ao seu papel grandioso, a escola será a
plataforma de promoção social de todos os brasileiros,
independentemente de sua origem de classe, a promessa de
democracia profunda e duradoura.
Em educação, o Brasil deve inspirar-se no Manifesto dos
Pioneiros da Educação Nova de Anísio Teixeira e o grupo de
educadores que viam na igualdade entre os homens e no direito de
todos ao ensino público, livre e aberto o caminho de afirmação da
Nação e de combate às desigualdades sociais. Nada mais atual.
CAPÍTULO 12

QUINTO MOVIMENTO
A democracia e seus desafios
O Brasil nasceu democrático. Pode-se afirmar, sem o receio da
ingenuidade, essa verdade histórica confirmada pelos fatos. Os
primeiros vagidos da organização social do País foram a licença
popular para o controle do Estado e a necessidade de legitimidade
dos governos e do poder. A primeira instituição a funcionar na
recém-instalada colônia da Terra de Santa Cruz foi uma Câmara de
Vereadores, um Parlamento eleito de onde emanava a legitimidade
do poder e a autoridade conferida a um grupo de pessoas que hoje
seriam chamadas de cidadãos. A Câmara de Vereadores de São
Vicente, na Baixada Santista, hoje estado de São Paulo, foi a
primeira Casa legislativa das Américas instituída oficialmente em
1532.
Nessa época, Portugal, a potência metropolitana, assim como o
restante da Europa, vivia sob o tacão das monarquias absolutistas,
controladas por laços de sangue e aristocracias econômicas. A
outra ponta do relacionamento da colônia sul-americana, as
nações asiáticas alcançadas pelas caravelas dos navegadores que se
abasteciam por aqui para a grande travessia rumo ao Oceano
Índico, eram regimes autocráticos milenarmente estratificados no
Oriente.
Os primeiros habitantes europeus que se fixaram no Brasil,
muitos deles cristãos novos, judeus convertidos ao cristianismo
para escapar das fogueiras da Inquisição, constantemente
ameaçados por navegadores sem bandeira dedicados à pilhagem,
os ditos piratas, que infestavam o litoral brasileiro, foram
relegados ao abandono pela metrópole e criaram suas próprias
instituições para sobreviver naquela situação precária.
Enquanto nos territórios hispânicos eram instalados governos
militares, como o de Francisco Pizarro no Peru e Hernán Cortez no
México, no Brasil os degredados e os mamelucos, estes já filhos dos
europeus com as índias nativas, procuravam se organizar como
podiam.
As câmaras de vereadores foram o verdadeiro poder colonial
responsável pela administração civil, da Justiça, e até da defesa. A
metrópole intervinha, quase sempre brutalmente, somente em
casos esporádicos ou para cobrar tributos.
Estas câmaras funcionavam muitas vezes com vereadores
analfabetos, mas eram um poder de fato, por elas passaram a
aprovação da Independência, a Abolição e a República,
oficialmente proclamada pela Câmara de Vereadores do Rio de
Janeiro. Quando se observa hoje o panorama institucional, é difícil
uma leitura otimista do modelo criado pelos britânicos e que se
implantou com sucesso nos Estados Unidos e na Europa ocidental e
ficou conhecido pelo nome genérico de democracia.
Apoiada no sucesso do casamento da liberdade econômica com
as liberdades políticas, a democracia prosperou em sociedades que
combinaram a criação de riqueza com uma relativa equidade na
sua distribuição. Acontece que o sistema cessou de distribuir
riqueza e de crescer, passando a carrear o fruto do trabalho
comum para as mãos de poucas pessoas, usando mecanismos de
um sofisticado sistema financeiro para transferir e concentrar
renda.
Em comemoração aos seus 175 anos de vida, a influente revista
inglesa The Economist publicou, em 2018, um corajoso ensaio de
balanço do liberalismo, do qual é porta-voz desde o número zero,
com críticas às deformidades do sistema e traçando um panorama
sombrio para o futuro das democracias. O editorial da revista
acusava o liberalismo de ter se convertido em um modelo que só
produzia decepção e mágoa para a maioria das pessoas.
Ensaístas e acadêmicos ocupam-se cada vez mais em examinar as
causas da crise das democracias e todos apontam a concentração
de riquezas e o fim da esperança como dois traços comuns da
perda de prestígio do ideal liberal. A crise do modelo liberal de
democracia vem acompanhada do questionamento de suas
instituições centenárias: o Parlamento, os partidos políticos e a
liberdade de imprensa.
O filósofo alemão Hegel, em seu livro Filosofia da História, cita
uma conversa entre o poeta alemão Goethe e o imperador francês
Napoleão Bonaparte sobre a natureza da tragédia, na qual
Napoleão afirmou: “A nova tragédia se diferencia essencialmente
da antiga pelo fato de hoje não existir mais o destino ao qual os
homens estariam sujeitos e que no lugar dele teria surgido a
política”. O que há de atual na conversa do início do século XIX
entre Hegel e Napoleão? A relação entre tragédia, destino e
política.
Na antiguidade a tragédia e o destino eram atribuições dos
deuses que foram subtraídas pela política. Com a política a vontade
dos deuses e de seus oráculos foi substituída pela vontade dos
homens, que passaram a ser responsáveis pelo próprio destino e,
portanto, pela própria tragédia.
Na antiguidade os deuses podiam iludir os homens como conta o
historiador Heródoto no seu livro História o caso do rei da Lídia,
Creso, que preparou uma guerra contra a Pérsia e consultou os
oráculos de Delfos sobre o seu destino na empreitada militar e
recebeu como resposta que um grande império desapareceria ao
final da guerra. Creso foi derrotado por Ciro e perdeu o reino. Ao
cobrar dos deuses a sentença dada, recebeu como resposta que de
fato um império iria desaparecer, mas não disseram qual.
Hoje há novos deuses da modernidade, iludindo os homens da
mesma forma e pretendendo afastar da política o domínio do
destino humano: são as corporações públicas e privadas, o
Judiciário, o Ministério Público, a mídia, as instituições financeiras.
As corporações apontam os vícios da política, a corrupção, a
manipulação eleitoral e o despreparo dos políticos e exibem a
meritocracia do concurso e do êxito financeiro como trunfos
capazes de corrigir qualquer morbidez das instituições. Acontece
que as corporações não dispõem dos mecanismos das instituições
políticas nem de sua pluralidade para debater, absorver os
conflitos e mediar as decisões, além de não serem fiscalizadas nem
submetidas ao rigoroso escrutínio do voto popular. São instituições
profundamente narcisistas e autocentradas, com baixa noção do
interesse público e do interesse nacional, voltadas, com honrosas
exceções, para ampliar poderes e se multiplicar.
Outra tragédia da vida democrática nacional é o rompimento do
equilíbrio entre os poderes. Quando liberais conservadores e
progressistas selaram o pacto constitucional de 1988, o Brasil
recém tinha saído de um regime militar e o antídoto encontrado
por essa aliança liberal foi o empoderamento de corporações civis
como uma espécie de vacina contra a poderosa corporação militar.
Após a Constituinte, com os militares recolhidos às suas funções
profissionais, testemunhamos o processo de judicialização da
política, e por consequência a politização do Judiciário. Sempre
que a oposição perdia uma votação em uma casa legislativa
recorria ao Judiciário, muitas vezes em parceria com a imprensa e
com o Ministério Público.
Um parlamentar de oposição, um jornalista e um integrante do
Ministério Público formaram a tríade que organizou a oposição no
Brasil, fosse qual fosse a orientação política e ideológica do
governo do dia. É verdade que essa associação denunciou
irregularidades graves dos governos e dos governantes, mas criou
uma espécie de indústria da denúncia, e ao não separar as
instituições de seus ocupantes terminou por gerar o desgaste da
própria democracia, em vez de depurá-la e fortalecê-la.
A Questão Nacional foi quase descartada da atuação do
Judiciário. A operação Lava Jato, se serviu para punir corruptos,
destruiu empresas nacionais, engenharia nacional, patrimônio
nacional e acobertou manipulação para favorecer objetivos
políticos e ideológicos. O Supremo Tribunal Federal (STF)
desperdiça a inteligência e o conhecimento de seus ilustres
integrantes em torno de uma agenda universal, como se fosse a
suprema corte do mundo, das causas gerais, invariavelmente
ligadas aos costumes e ao comportamento, e não o tribunal
constitucional da Nação brasileira, instituído pelo Estado nacional
para cuidar em primeiro lugar e acima de tudo dos problemas e
dos dilemas do Brasil.
Não tem sido fácil a construção da vida democrática no Brasil.
Dois presidentes destituídos (Collor e Dilma) dos cinco últimos
eleitos, ameaças aos demais poderes por parte do atual chefe do
Poder Executivo, visível perda de prestígio das instituições
democráticas, produzindo frequentes tumultos na vida política
nacional. Poderia ser diferente? Não creio. As desordens apenas
revelam os conflitos naturais na democracia de um País marcado
por desigualdades, desajustes e desequilíbrios em busca de
soluções e alternativas. Aliás, a turbulência é antes a prova de que
a democracia existe e funciona do que apenas ameaça à sua
existência. O fator de risco à democracia é a sua superficialidade e
a incapacidade de corrigir as desigualdades ou absorver os choques
produzidos por elas.
A propósito, em magistral conferência lida na Sociedade dos
Amigos da América, no Rio de Janeiro, em 1947, a inteligência
superior de Gilberto Freyre foi capaz de perceber as fragilidades da
democracia em sua alma mater, os Estados Unidos da América. A
começar pelo título da conferência, O Camarada Whitman, quase
uma provocação, às vésperas da Guerra Fria, homenageando o
poeta transgressor. Nas palavras de Freyre, “se lhe faltava essa
virilidade ou essa capacidade de resistir às fúrias dos inimigos, é
que a democracia não merecia sobreviver”. Para Whitman, ainda
segundo Freyre, a antidemocracia não era só a monarquia
absoluta, mas também a plutocracia poderosa, o capitalismo
industrial com seus novos reis ou barões instalados no alto de
bancos e de empresas privilegiadas. Nada mais verdadeiro, nada
mais contemporâneo. Freyre ironizou a democracia americana
como uma espécie de democracia carnavalesca, reduzida a três
dias de festejos eleitorais e nada mais. Como Santo Antônio falando
aos peixes e o Padre Vieira aos fiéis do Maranhão nos idos de 1600,
Gilberto Freyre falou sobre democracia ao Brasil e aos brasileiros
na exaltação do grande poeta norte-americano do século XIX.
A democracia brasileira não haverá de ser cópia de modelos
prontos, importados de civilizações pretensamente superiores por
serem mais ricas e mais antigas. Nossa democracia é vocacionada
para combinar forças heterogêneas, em coalizões amplas que
façam as transições e as rupturas que fizemos na expulsão dos
holandeses, na Independência, na Abolição, na República e na
Revolução de 1930. As forças são heterogêneas porque o País é
heterogêneo, desigual, desajustado, desequilibrado, e reivindica
composições políticas, sociais, ideológicas, aptas a reunir as
energias necessárias para romper as cadeias do atraso. Atraso
econômico, atraso social, atraso científico, atraso tecnológico,
atrasos que amarram a criatividade e o progresso da Nação.
O Brasil não corrigirá as deficiências de sua democracia fiado no
messianismo de corporações imaturas e adolescentes. A
democracia no Brasil não será forte em um País frágil econômica e
socialmente. O Brasil precisa de uma economia forte em uma
Nação socialmente equilibrada para que o povo também seja forte.
E aprendendo a lição do poeta segundo a qual “rei fraco faz fraca a
forte gente”, o Brasil exige um governo forte. Democrático, mas
forte, para conduzir o País rumo ao futuro.
CAPÍTULO 13

QUINTO MOVIMENTO
O Brasil e o mundo
O Brasil nasceu no cenário internacional como uma grande
potência ao ganhar uma cadeira no Congresso de Viena, em 1815,
como interlocutor dos países vencedores da guerra contra
Napoleão Bonaparte. Ali seis reis europeus redividiam o mundo.
Na sua estreia diplomática, o processo político de criação do
Reino do Brasil devolveu a Portugal seu lugar na Europa antes do
desmonte político e territorial produzido pelos franceses, entre
1806 e 1815. Foi o território brasileiro, com seus 8,5 milhões de
quilômetros quadrados, e a economia da Colônia globalizada, com
mercados na África, Ásia e Oceania e, principalmente, pelo trono
de um dos mais resistentes absolutismos europeus no Rio de
Janeiro, que permitiram ao esfarrapado Portugal sentar-se à mesa
ao lado da Áustria, da Prússia e da Rússia para compor a Santa
Aliança (tendo a Inglaterra vitoriosa como observadora e a França
dos Bourbon restaurada na condição de interlocutora, mas
nenhuma das duas com status de delegadas), enquanto países ricos
e poderosos, como Espanha, Itália, nórdicos e centrais ficaram na
antessala sem direito de participar das reuniões.
Ali, sem as cartas de seus pares, o Brasil deu seus primeiros e
cautelosos passos na diplomacia mundial, no papel de algodão
entre os cristais, pois somente um delegado com o perfil do
representante português poderia operar a composição entre
aqueles orgulhosos monarcas que voltavam humilhados a seus
tronos. Essa é a posição até hoje desempenhada pelo Brasil na
comunidade internacional.
Portugal, a nação-mãe, estava em frangalhos, mas a participação
de seu Exército e Marinha foi decisiva para a derrota do imperador
francês no front ibérico, e um forte contingente lusitano combateu
em Waterloo, onde o corso sofreu sua última derrota antes de ser
preso e exilado na solitária ilha de Santa Helena, antiga possessão
portuguesa no meio do Oceano Atlântico sul.
Numa engenhosa negociação, criou-se um conceito depois
espalhado pelo mundo colonial da segunda leva do imperialismo
europeu: as comunidades de nações autônomas sob o comando de
uma metrópole mãe. O Reino de Portugal, Brasil e Algarves,
formado por estados independentes, reconhecidos pela
comunidade internacional,mas associados política e
economicamente, foi o modelo para, já no século XX, no desmonte
dos grandes impérios coloniais, constituírem-se o Commonwealth
britânico, a Communauté française, a Zona de Prosperidade Asiática
dos japoneses (depois da guerra cognominados Tigres Asiáticos) e
outros sistemas semelhantes liderados por Itália, Holanda, Bélgica,
Alemanha, que foram se desfazendo sob os embates da Guerra Fria
e da desagregação política desses estados precariamente criados na
África e na Ásia (sobrevivem Canadá, Austrália e Nova Zelândia). O
Brasil esteve na gestação desse sistema, até se separar do Reino
Unido e se converter de país europeu agregado em ator sul
americano e, depois, pan-americano.
Esse legado o Brasil independente manteve, tanto na Monarquia
quanto no período republicano. A Monarquia constitucional
brasileira foi um modelo para a liberalização da Europa no século
XIX, com a participação ativa de Dom Pedro II na abertura
democrática, compondo quadros importantes como o de ser o
primeiro chefe de estado estrangeiro e visitar a França após a
derrota para a Alemanha em 1872, ou de ter sido o primeiro rei de
sangue a visitar os Estados Unidos, constrangendo seus colegas
reis, que detestavam a América do Norte, então uma república que
apoiava a subversão anti-monarquista na Europa absolutista.
Sem esquecer que Dom Pedro I, voltando ao velho mundo como
Dom Pedro IV, liderou uma revolução armada em Portugal para
assegurar o trono à sua filha, Dona Maria II, mas com uma
proposta política de monarquia constitucional, o que provocou
reações ferozes dos reis absolutistas e, por pouco, não fosse a mão
forte da Inglaterra, também um país constitucionalizado, a
brasileirinha Maria da Glória não teria sentado no trono do Palácio
Real de Queluz.
Na República, para resumir a participação de nosso País no
primeiro plano da política internacional, basta lembrar as
participações de tropas brasileiras nos conflitos mais importantes
do século XX: na Primeira Guerra Mundial, a Marinha operou
ofensivamente no Atlântico, até os limites do Canal da Mancha, e
uma missão médica militar atuou no front francês. Na Segunda
Guerra é para lá de conhecida a presença física de tropas de
infantaria e da Força Aérea no front italiano, decisivo no
rompimento da Linha Gótica, sistema defensivo alemão atacado
simultaneamente por forças dos Estados Unidos, Inglaterra, Brasil,
Nova Zelândia e do governo dissidente da Itália livre.
No mais sério conflito do período da Guerra Fria, o interminável
enfrentamento entre árabes e israelenses, o Brasil atuou uma vez
mais como pacificador e enviou tropas para o Oriente Médio para
compor a primeira força de paz das Nações Unidas, o histórico
Batalhão Suez, que permaneceu anos entre as tropas hostis de
Egito e Israel assegurando a paz por mais de uma década.
Portanto, o estereótipo recente de o Brasil ser um pária na cena
mundial é falso, pois não corresponde à nossa História nem à
presença contemporânea do Brasil no mundo, entre as 10 maiores
economias, o quinto maior território e a maior potência militar do
subcontinente sul-americano. Não é pouco.
Entretanto, o papel mais destacado no sentido de rearrumação
do mundo não se dá nas disputas de força entre as potências, mas
como mediador e formulador da cooperação internacional. Não
esquecer que o Brasil deu o primeiro presidente da Organização
das Nações Unidas (ONU), o chanceler Oswaldo Aranha, e daí em
diante esteve à frente de todos os esforços para a organização de
sistemas de arbitragem e composição de interesses, como a
Organização Mundial de Comércio (OMC), a Organização Mundial
da Saúde (OMS), e assim contribuiu para gerar mais de uma
centena de entidades, organizações e agências que, bem ou mal,
vêm garantindo a paz e reduzindo atritos às mesas de negociações,
onde antes se disputavam diferenças a bala.
A memória diplomática nacional guarda um lugar de honra para
a delegação brasileira na Conferência de Haia, em 1907, quando
Ruy Barbosa projetou-se como o “Águia de Haia” ao defender a
igualdade jurídica entre estados soberanos e ter a força de seus
argumentos reconhecida na conferência e na imprensa
internacional.
Conforme já recordei no capítulo 5, o sociólogo francês e ex
professor da USP na década de 1930, Roger Bastide, grande
conhecedor do Brasil, invocou a obra de Gilberto Freyre para
propor o Brasil como líder de uma civilização alternativa, baseada
na herança latina e ibérica, ao conflito entre os mundos anglo
saxão (Estados Unidos) e eslavo (Rússia soviética). A premissa de
Bastide permanece atual, é que o profeta francês não contou entre
nós com missionários à altura de sua profecia.
Há diplomacias que operam para afirmar o domínio dos impérios
como instrumento auxiliar do poder armado. A nossa é a
diplomacia vocacionada para a mediação, na concepção de Gilberto
Freyre. Resolvemos conflitos pré-nacionais, como foi o caso de
Alexandre de Gusmão no Tratado de Madri, extinguindo as
demandas do Tratado de Tordesilhas e alargando as fronteiras do
Brasil.
Decidimos nas mesas de negociações, mais do que nos campos de
batalha, todas as disputas do Prata, exceção feita à Guerra do
Paraguai e outros conflitos de menor repercussão. Mais
recentemente, quando Peru e Equador pegaram em armas por um
litígio de fronteira, confiaram ao Brasil a pacificação de suas
reivindicações.
O Brasil e sua diplomacia foram sempre parte da solução dos
problemas, mas hoje (2021), fruto da desorientação e sectarismo do
governo e de sua política externa, vamos nos transformando em
parte do problema, dissolvendo em arroubos de ignorância e de
alianças espúrias o interesse nacional legítimo e a reputação
respeitável conquistada.
Ocupamos o mesmo hemisfério da maior potência financeira,
econômica, militar e cultural do mundo, os Estados Unidos, em
uma relação marcada por disputas, alianças, desconfianças
recíprocas e identidade comum em valores importantes para a
humanidade. Somos os filhos de marinheiros intrépidos das
grandes navegações e nossos portos abriram-se para os
perseguidos religiosos, os renegados políticos, os famintos, os sem
terra, os sem-esperança e os sem-futuro.
Quando a fome varria os campos da Europa e a espada do
sectarismo religioso e político ameaçava os vencidos, era um porto
nas Américas, no Sul ou no Norte, o refúgio seguro. É verdade que
esses mesmos portos testemunharam por séculos a infâmia do
tráfico negreiro dos africanos aprisionados por seus próprios
irmãos em África e vendidos nas Américas por comerciantes de
vidas humanas.
Se no passado monárquico os Estados Unidos estimularam
rebeliões de inspiração separatista, na proclamação da República
foram decisivos aliados do Marechal de Ferro para pacificar o País
e na Segunda Guerra parceiros do presidente Vargas no esforço de
industrialização do Brasil. Na Guerra Fria a geopolítica foi o crivo
que conduziu os Estados Unidos à participação no golpe de 1964 e
ao acobertamento de sinistros professores de tortura, sob a
proteção de missão oficial. O Brasil conheceu a sabotagem contra
seus programas nuclear e espacial, o que levou o presidente
Ernesto Geisel a romper o acordo militar com os Estados Unidos e a
montar o Programa Nuclear Paralelo.
Geisel contrariou as expectativas geopolíticas norte-americanas
e reconheceu os governos de esquerda surgidos da desintegração
do projeto colonial português na África, gesto seguido de maior
valorização da agenda africana por seu sucessor João Figueiredo.
Na América do Sul, marchamos para quase dois séculos de paz
com 10 diferentes vizinhos e 17 mil quilômetros de fronteiras
comuns em regime de cooperação e amizade, agora ameaçado pela
truculência da diplomacia “ideológica” dos atuais governantes. A
integração sul-americana é o primeiro dos círculos concêntricos de
nossa política externa.
O mundo lusófono e a África ocidental integram o valioso
patrimônio de nossa herança cultural e do nosso entorno
estratégico e por isso mesmo são itens obrigatórios de nossa
agenda diplomática.
O presidente Geisel reatou as relações diplomáticas com a China,
o presidente José Sarney celebrou com os chineses o importante
acordo para a fabricação do satélite binacional CIBERS, o
presidente Fernando Henrique ampliou os laços comerciais e o
presidente Lula deu contornos definitivos à aproximação dos
objetivos estratégicos entre Brasil e China.
Diante da escalada nas relações entre Estados Unidos e China, o
Brasil deve proteger em primeiro lugar seus objetivos nacionais
próprios e manter a equidistância que consagrou sua diplomacia
independente. Na América do Sul, liderar para não permitir a
militarização da região, nem a dividir em alianças caóticas como as
do período da Guerra Fria. Nem afrontar nem aceitar afronta, esse
precisa ser o princípio norteador de nossa relação com os Estados
Unidos. Devemos estar sempre prontos a negociar os conflitos
naturais surgidos de objetivos nacionais distintos e a não ceder
quando a soberania nacional estiver em jogo.
O mundo que se avizinha, carregado das tensões resultantes da
disputa geopolítica entre Estados Unidos e China, desafiará todos
os recursos de nossa diplomacia. Caberá a ela defender com
intransigência os interesses nacionais e ser suficientemente
flexível para compor alianças conjunturais e contornar os riscos de
isolamento para assegurar protagonismo nas grandes questões do
instável cenário internacional.
CAPÍTULO 14

QUINTO MOVIMENTO
A exaltação da mestiçagem
No final do inverno de 1944-1945, no front italiano, conta o
primeiro sargento, Nilton Vasco Gondin, que um pelotão da
Companhia de Comunicações da Força Expedicionária Brasileira
(FEB), comandada pelo major comunista Henrique Oest, foi
subitamente convocado e embarcado em caminhões para uma
missão secreta, tamanha a desinformação, até dos oficiais.
Viajaram algumas horas, cada vez mais distantes da linha de
fogo e chegando a Florença desembarcaram em meio a um
agrupamento de soldados de várias nacionalidades, quando, sob o
olhar severo de um típico primeiro-sargento, foram colocados em
forma, como tropa de revista. Foi só o que deu para entender:
algum figurão estaria chegando. E ali estavam representados, por
nacionalidades, todos os exércitos que compunham a frente dos
Apeninos.
Ele notou a disposição das frações: bem à direita, onde o
homenageado começaria sua revista, ingleses, escoceses, norte
americanos brancos, negros americanos, brasileiros,
neozelandeses, italianos livres, indianos, árabes. Essa a ordem
racial. Entretanto, chamou a atenção que o grupamento brasileiro
era a única tropa multirracial, com brancos, loiros, morenos,
mulatos, pretos, índios e até um nissei, o segundo-tenente (CPOR)
Massaki Udihara. Aquilo deixou todos abismados, perguntando
como conseguiam manter um exército com aquela mistura, ao que
o sargento Nilton Vasco Gondin, com forte sotaque alemão da
cidadezinha de Selbach, no Rio Grande do Sul, respondeu: “nós
somos assim”. Isso já era o Brasil há quase um século. Em tempo: o
visitante recebido com tantas honras militares era o primeiro
ministro britânico Winston Churchill, inspecionando os
preparativos para a grande ofensiva aliada contra a Linha Gótica, a
grande fortaleza do Eixo no Norte italiano, rompida pelo Brasil
dias depois com a tomada de Monte Castelo. Ali nos campos da
Itália o Brasil deixava marcada a sua imagem de caldeirão das raças
mestiças.
A formação do Brasil é, na verdade, a celebração da mestiçagem
desde suas origens. O fenômeno é descrito de forma poética por
Darcy Ribeiro em O Povo Brasileiro, no qual ele descreve como o
português e a índia geraram os primeiros brasileiros nascidos de
pai português e de mãe nativa, criados pela mãe e falando o idioma
materno.
A mãe índia e o pai português sabiam que aquela criança não era
indígena nem portuguesa, era mestiça. Esse primeiro brasileiro foi
obrigado, portanto, a encontrar uma nova identidade, a identidade
de brasileiro, embora não tivesse nesses tempos esse nome.
Mameluco, chamavam, copiando erradamente o gentílico dos
mestiços não árabes do Oriente Médio. Era, entretanto, um
espécime humano diferente dos demais, novo na natureza, um
brasileiro, podemos dizer hoje com segurança.
Sem renegar a ascendência materna, mas buscando também com
ela a sua semelhança, e sem negar a origem paterna portuguesa,
mas colhendo dela a outra parte da sua identidade, foi o tipo
predominante na primeira geração de filhos da terra. Aí nasce o
mestiço, mesclado no sangue, na psicologia, na sua cosmogonia, o
mestiço completo, na alma, na cultura, na visão de mundo.
É esse o brasileiro de origem, apelidado de Mameluco; é esse o
brasileiro de raiz; é esse o brasileiro que, em São Paulo, dá origem
aos bandeirantes, aos povoadores, é esse brasileiro formador das
mais antigas famílias paulistas, baianas e pernambucanas.
A aliança do indígena com o português, consumada em
casamentos promovidos na maioria das vezes pelos chefes tribais,
deu ao colonizador o chamado mameluco, que reuniu as qualidades
humanas do índio e do português. O conhecimento da geografia do
índio e o senso de organização do colonizador foram assimilados
pelo mameluco, que liderou a penetração nas profundezas do
continente e deu ao indígena nativo a autonomia para marchas de
milhares de quilômetros, com a gestão e os produtos duráveis
introduzidos pelos portugueses, como os cereais, as aves
domésticas, os instrumentos de metal, como facões e machados, e
principalmente as armas de fogo.
Nem os pioneiros americanos nem os aventureiros hispânicos
iniciaram sua penetração no território unindo tantas etnias num
esforço solidário: europeus, indígenas e africanos numa
empreitada comum. A experiência brasileira é única.
A união da mulher indígena com o português gerou o fenômeno
do cunhadismo, pelo qual o português adquiria laços de parentesco
e aceitação na tribo pelo casamento. Reza a lenda que João
Ramalho podia mobilizar cinco mil “parentes”, os cunhados, em
arco e flecha. Quando o primeiro governador geral do Brasil, Tomé
de Souza, chegou à Bahia encontrou o náufrago português Diogo
Álvares, o Caramuru, casado com a índia Paraguaçu e pai de muitas
filhas, uma das quais ofereceu em casamento a Tomé de Souza na
mais pura configuração da cultura indígena, como sendo um
nativo.
Constrangido, afinal era o governador e casado, Tomé de Souza
achou um jeito ali de casar, um casamento meio paralelo, com a
filha de Caramuru, que deu origem a uma dessas famílias baianas
tradicionais, depois povoadoras dos sertões, das fazendas, os Dias
D’Ávila.
A verdade é que o Brasil nasceu sob o signo da mestiçagem e o
fenômeno se aprofundou com a presença africana no Brasil. Os
laços entre a mulher africana e o português criaram gerações de
mulatos, alguns dos quais chegaram a ter destaque na vida política,
econômica e cultural da época. Também houve a miscigenação de
homens africanos com mulheres indígenas, uma das principais
bases de cruzamento de mestiçagem, gerando o cafuzo,
principalmente no Nordeste.
A mestiçagem marcou definitivamente a formação social
brasileira no sangue, nos traços fisionômicos, na psicologia, nos
hábitos de higiene, na religiosidade, nas artes e na ideia que o
brasileiro faz de si na resposta simples e direta do sargento de
sotaque alemão em Florença: “Nós somos assim”. Esse “Nós” é a
dissipação definitiva das diferenças raciais e a afirmação completa
da identidade nova, da identidade de brasileiro.
Machado de Assis, ele próprio mulato, trata os conflitos humanos
com certo distanciamento dos conflitos raciais, embora estes
apareçam em um ou outro conto do grande escritor brasileiro. Já
os personagens de Euclides da Cunha, Graciliano Ramos e
Guimarães Rosa são os brasileiros mestiços puros, os sertanejos, os
vaqueiros, os jagunços de Os Sertões, Vidas Secas, São Bernardo,
Grande Sertão: Veredas, A Hora e a Vez de Augusto Matraga.
A mestiçagem religiosa adotou o sincretismo de distintos credos,
fundindo em liturgias novas, em deuses e santos novos a
religiosidade do católico europeu, do indígena e do africano, com o
culto de Nossa Senhora e de Iemanjá, de São Jorge e Ogun, e a
lavagem da Igreja do Bonfim com água de cheiro espargida pelas
baianas ao som da percussão e dos cânticos de origem africana.
A mestiçagem é ainda mais exaltada na música, na fusão dos
ritmos e dos instrumentos de tradição europeia, indígena e
africana. A percussão mais africana dos ritmos baianos ou mais
indígena nos ritmos do Pará e do Norte do Brasil como observou
certa vez em interessante depoimento a cantora Fafá de Belém, ela
própria magistral intérprete dos dois ritmos. A escultura do
mulato Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, é o ponto
culminante do Barroco brasileiro e do sincretismo nas artes
plásticas.
A inspiração de Carlos Gomes em O Guarani e de Villa Lobos em
Trenzinho Caipira não deixa de ser homenagem à mestiçagem,
desdobrada no samba, na Bossa Nova, no Tropicalismo, no Baião,
no Xote e no Xaxado, em Donga, Noel Rosa, Ângela Maria, Caetano
Veloso, Chico Buarque, Marinês, Gilberto Gil, Beth Carvalho,
Cartola, Paulinho da Viola, Elis Regina, Luiz Gonzaga, Jackson do
Pandeiro, João Do Vale, Jorge Mautner, João Donato, e tantos
quantos geniais criadores de ritmos da rica música popular
brasileira.
A culinária é outro reino da mestiçagem no Brasil e espaço de
afirmação de nossa identidade. No despertar do nacionalismo,
famílias brasileiras de origem portuguesa abandonavam os
sobrenomes lusitanos; os Pereira e os Ferreira trocados por
Araripe, Tupinambá, Tibiriçá, Sinimbu e outros que permanecem
até hoje. Mas também substituíram a farinha de trigo pela farinha
de mandioca, o vinho do porto pela aguardente de cana. A fusão
das culinárias portuguesa, indígena e africana edificou as
maravilhosas cozinhas regionais brasileiras, a mineira, a paraense,
a baiana, a pernambucana, que podem ser consideradas sem
qualquer favor entre as mais sofisticadas do mundo.
A língua portuguesa é outro terreno em que a mestiçagem deitou
raízes na fonética, no sotaque e no vernáculo. O africano ditou o
ritmo do português falado no Brasil e o indígena nos deu a
denominação de quase tudo de nossa geografia, fauna e flora.
É essa riqueza, essa diversidade que o identitarismo financiado e
imposto de fora para dentro trabalha para destruir no Brasil,
substituindo a nação mestiça de 500 anos por uma entidade nova,
formada por pretos e brancos, sem se reconhecer no seu passado,
na sua história e na sua memória. É como se nos dissessem: vocês
permaneceram 500 anos em pecado, no erro da ideia da
miscigenação, façam autocrítica, reconheçam o engano e se mirem
na América, dividida em duas raças.
Diante da ofensiva contra a mestiçagem por parte do mercado,
da mídia e da academia cabe ao Estado a tarefa de defendê-la
difundindo-a e valorizando-a no sistema educacional, nas Forças
Armadas e nos espaços públicos ainda não dominados pelo
identitarismo.
Anders Breivik, o jovem supremacista branco norueguês que
matou dezenas de seus compatriotas em um acampamento perto
de Oslo, escreveu um manifesto para justificar seus crimes no qual
o Brasil é várias vezes citado como exemplo de sociedade
degenerada pelo processo de miscigenação. Em 2019, o atirador
Brenton Tarrant, que atacou uma mesquita na Nova Zelândia,
definiu o Brasil como mau exemplo pelas concessões feitas à
mestiçagem.
A onda negacionista contra a história e a memória no Brasil
mobiliza grupos críticos da mestiçagem tanto brancos quanto
negros. Por essas teorias, o Brasil não teria um povo novo, mestiço,
mas seria apenas o espaço de uma disputa entre brancos e negros,
transplantada de solo europeu e africano para os trópicos da
América do Sul. “Mestiço é que é bom”, proclamou Darcy Ribeiro
sem exclusividade e sem renegar negros, brancos e indígenas
formadores do povo brasileiro.
CAPÍTULO 15

QUINTO MOVIMENTO
Nossa herança africana
Vamos falar das profundezas de nossas origens. Vou recapitular
um pedacinho deste livro para que as coisas fiquem muito
claramente situadas: Sou um filho do sertão, da zona rural da
Viçosa das Alagoas, cujo povoamento deveu-se aos remanescentes
dos índios caetés, da tribo dos cambembes, dos negros quilombolas
de Palmares e de agricultores portugueses que por lá se
estabeleceram. E antes que me cobrem chamar de sertão um
município localizado na transição da Zona da Mata para o Agreste
alagoano, esclareço sempre me referir ao sertão ou sertões a partir
do conceito antigo e não ao Sertão como semiárido do Nordeste.
Sertão como tudo o que não é litoral, não é urbano e não havia sido
tocado pela ocupação demográfica do europeu e de seus
descendentes nos primórdios da colonização, sertão como Brasil
profundo, Brasil rural.
O Quilombo dos Palmares estendeu-se da Zona da Mata de
Alagoas até Pernambuco, durante quase todo o século XVII, durou
90 anos, até o seu extermínio em 1695. Ocupava os vales dos rios
Mundaú e Paraíba, que cruza o meu município. Os nomes dos
antigos quilombos foram conservados em Viçosa nas fazendas e
povoados como Caçamba, Mata Escura e Sabalangá, provavelmente
o mais organizado de todos por ter sido o último refúgio de Zumbi
dos Palmares, onde foi morto em uma emboscada organizada pelos
cabos de guerra de Domingos Jorge Velho. Zumbi foi atraído para
uma cilada às margens do riacho Gurugumba, afluente do Paraíba.
É de se destacar que os homens de Domingos Jorge Velho eram
poucos, mas foram apoiados por uma infantaria indígena, que de
fato fez a guerra contra os quilombolas sob a promessa da
concessão de terras para o assentamento das aldeias, o que
terminou acontecendo. A morte do comandante da resistência
negra foi detalhada em ata pelos responsáveis por sua execução e
isso permitiu a posterior localização exata do lugar do último
combate depois da descoberta dos documentos nos arquivos
portugueses pelos historiadores.
Alagoas ficou marcada pela presença do que um cronista
apelidou de “Tróia negra”. Em Maceió há um palácio chamado
Zumbi; uma comenda oferecida pelo governo de Alagoas recebe o
nome de Zumbi; o aeroporto é Zumbi dos Palmares; há o município
de União dos Palmares, cujo time de futebol se chama Zumbi, de tal
forma que Zumbi figura na galeria de grandes alagoanos ao lado de
nomes como Deodoro, Floriano, Góes Monteiro, Graciliano Ramos,
Ledo Ivo, Jorge de Lima, Nise da Silveira, Teotônio Vilela e Zagalo.
Recentemente o geógrafo alagoano Ivan Fernandes Lima deixou
um livro póstumo, Geografia do Quilombo dos Palmares, descrevendo
a saga em seus aspectos geográficos, econômicos, religiosos e
políticos. Antes, em 1914, outro historiador alagoano, Alfredo
Brandão, ao narrar a história do município de Viçosa, fez
indicações sobre os vários quilombos e refúgios construídos pelos
rebeldes na região. Nos 300 anos da morte de Zumbi, em 1995,
propus a lei, aprovada e sancionada, oficializando 1995 como Ano
Zumbi dos Palmares e o 20 de Novembro como Data Nacional. Mais
tarde, no Ministério do Esporte, com apoio do Ministério da Defesa
e do governo de Alagoas, criei a Cavalgada da Liberdade, cobrindo a
rota de 50 quilômetros entre a Serra da Barriga, a maior cidadela
dos Palmares, e a Serra dos Dois Irmãos, cenário do último
combate de Zumbi.
A resistência contra as condições desumanas de trabalho, os
levantes em engenhos e lavouras, as revoltas de cunho religioso e
cultural, como a dos Malês, em Salvador, mas também a luta
política dos escravos, dos mulatos, dos mestiços de origem africana
que ascenderam social ou politicamente, como Teodoro Sampaio,
André Rebouças, José do Patrocínio e Luiz Gama, expõem todas as
formas utilizadas no combate contra a escravidão.
Aos negros e mulatos se somaram intelectuais e militares
mestiços e brancos como Ruy Barbosa, Joaquim Nabuco, Floriano
Peixoto, Deodoro da Fonseca e integrantes da própria Família Real
brasileira. Uma parte significativa da Monarquia era abolicionista,
a partir da própria princesa Isabel. É bom lembrar que o Conde
D’Eu, apontado como indesejável por grande parte da elite do
Partido Conservador, devia essa reserva não ao fato de ser
estrangeiro, pois havia muitos deles nas Forças Armadas, mas por
ter obrigado a Constituinte paraguaia, em 1870, a proibir a
escravidão naquele país, o que foi um escândalo quando a notícia
chegou no Rio de Janeiro.
O grande poeta brasileiro do século XIX, Castro Alves, ao lado de
Gonçalves Dias, foi a maior expressão da poesia abolicionista. Os
dois poemas que constituem o momento superior de sua obra,
Vozes d’África e Navio Negreiro são denúncias contundentes da
escravidão. O ensaio de Joaquim Nabuco O abolicionismo e a peça de
teatro A mãe, de José de Alencar, são exemplos da intensa atividade
intelectual antiescravista.
Em 1934, Gilberto Freyre publica Casa Grande & Senzala, obra
definitiva destinada a demolir as teorias racistas e a erguer uma
interpretação otimista e científica da mestiçagem e do povo
brasileiro. Ainda em 1934, Freyre organiza o Primeiro Congresso
Afro-brasileiro, iniciativa que contou com o apoio do diretor do
Museu Nacional, Roquette-Pinto, do influente psiquiatra Ulisses
Pernambucano e do poeta Solano Trindade.
Digno de registro é ainda o livro de Mário Filho, O negro no futebol
brasileiro, prefaciado por Freyre, de que trato no capítulo sobre o
futebol, e a obra clássica de Arthur Ramos, A mestiçagem no Brasil,
na mesma linha de exaltação da influência negra na formação
social brasileira.
Da literatura surgem ainda personagens como o de Simões Lopes
Neto, O Negrinho do Pastoreio, uma espécie de santo adorado no Rio
Grande do Sul e no Brasil inteiro. O Saci-Pererê, de Monteiro
Lobato, negrinho de hábitos indígenas, tem uma legião de
admiradores preservada até os dias de hoje.
O jangadeiro cearense Francisco do Nascimento, que se rebelara
contra o transporte de escravos no Porto de Fortaleza, fez o
percurso em jangada da capital do Ceará ao Rio de Janeiro, onde foi
recebido como herói em uma unidade militar comandada pelo
tenente
recebeu acoronel
solidariedade
Sena de
Madureira.
Deodoro, presidente
Madureira do
foiClube
punido,
Militar,
mase

de Floriano, responsável pela segurança do Palácio de São


Cristóvão. A nota de Deodoro excluindo os militares da missão de
caçadores de escravos fugidos foi outro gesto definitivo contra a
escravidão no Brasil.
O abolicionismo no Exército e na Marinha, herança da Guerra do
Paraguai, produziu episódios dignos de registro. A força naval
promoveu como seu maior herói o marinheiro negro Marcílio Dias,
duas vezes herói, em Paissandú e em Riachuelo, quando tombou
em luta desigual contra combatentes paraguaios. Em carta
testamento, o Marquês de Tamandaré ordenava que o caixão com
seus restos mortais fosse conduzido à sepultura por escravos
libertos pela lei assinada pela princesa Isabel.
Em livro de memórias, o ex-ministro Serzedelo Corrêa conta que
certa vez, ao buscar assinatura do presidente Floriano Peixoto no
Palácio do Itamaraty, durante o horário do almoço, encontrou o
marechal à mesa na companhia de um negro velho que Floriano
apresentou como seu companheiro dos campos de batalha no
Paraguai.
No Brasil a abolição foi antes uma batalha social e não racial. Em
função do elevado grau de miscigenação, não tinha como adotar a
segregação institucionalizada nos Estados Unidos para “proteger”
a ideia de “pureza da raça branca”, imposição dos ideólogos da Klu
Klux Klan. Nos Estados Unidos, o cruzamento de raças foi
reprimido, inclusive com a proibição de casamentos inter-raciais.
Mesmo Abrahan Lincoln, o humanista que liderou uma guerra para
acabar com a escravidão, não via um futuro para os negros nos
Estados Unidos, e sua opinião era de que, livres, os negros norte
americanos deveriam voltar para a África, para um país criado
especialmente para recebê-los, a república da Libéria. A segregação
alcançou toda a vida social norte-americana, e negros e brancos
eram “iguais, mas separados” como determinou a Suprema Corte
no país, separados na escola, nas Forças Armadas, nos
restaurantes, nas igrejas até meados dos anos 60.
No Brasil a luta contra o racismo tem de partir da valorização e
do reconhecimento da decisiva influência negra na formação
brasileira e de sua presença em grandes personalidades nacionais,
nas artes, na cultura e no esporte, com destaque para o brasileiro
mais admirado no Brasil e no mundo em todos os tempos, Pelé, o
rei do futebol.
A outra forma de enfrentar o racismo é a promoção social dos
negros e mestiços via políticas de redução das desigualdades,
principalmente com a educação pública e universal para todos os
brasileiros, independentemente da cor da pele e da condição social.
CAPÍTULO 16

QUINTO MOVIMENTO
A questão indígena
Viçosa, minha cidade natal, costumava celebrar o 13 de Outubro,
data de sua emancipação política, com um desfile de fanfarras das
escolas locais e dos municípios vizinhos. Os alunos participavam
em uniforme de gala ou trajes em homenagem a episódios da
história e da cultura, e sempre havia um pelotão representando os
índios brasileiros, o qual integrei em mais de uma oportunidade
como voluntário. Aliás, é quase impossível encontrar uma família
viçosense que não tenha uma avó indígena entre seus
antepassados, e todos exibem a ascendência indígena como uma
espécie de atestado de brasilidade legítima e autêntica.
Nos tempos coloniais, os jesuítas tinham escravos negros, mas
lutavam pela emancipação, pela proteção e pela não escravização
dos índios. Portugal chegou inclusive a apoiar uma certa
aristocracia cabocla, indígena, no Brasil. Muitos caciques tinham
patentes militares e títulos dados pelos portugueses. Portugal
apostava na miscigenação para suprir a deficiência demográfica,
impossível de superar só com reinóis em um país pouco populoso.
Por essa razão, tivemos as nossas matriarcas indígenas na base
da história da povoação e ocupação do território brasileiro logo
após o descobrimento: Bartira em São Paulo; Catarina Paraguaçu
na Bahia e Maria do Espírito Santo Arcoverde em Pernambuco, que
são os casos mais conhecidos. Maria do Espírito Santo Arcoverde,
como já registrei, é a mãe de Jerônimo de Albuquerque Maranhão,
comandante militar da expulsão dos franceses do Rio Grande do
Norte e do Maranhão, estados onde é venerado como herói.
Havia a compreensão por parte das lideranças indígenas de que o
casamento de aristocratas índias com portugueses brancos
configurava uma aliança vantajosa para os índios, interessados em
absorver dos portugueses conhecimento e técnicas de que não
dispunham. Assim pensavam os caciques Tibiriçá, em São Paulo,
Taparica, na Bahia, e Arcoverde em Pernambuco, que casaram suas
filhas com os portugueses João Ramalho, Diogo Álvares e Jerônimo
de Albuquerque.
Os missionários jesuítas assumiram o tupi como língua oficial da
catequese e o padre José de Anchieta, hoje santo, organizou uma
gramática para aquele que passou a ser o idioma corrente no Brasil
até a metade do século XVIII, quando foi proibido pelo Marquês de
Pombal para que o português indicasse a soberania sobre o
território conquistado com o Tratado de Madri.
Ainda no século XIX, o poeta Gonçalves Dias, e no início do
século XX, o engenheiro Teodoro Sampaio deram a conhecer ao
País seus dois dicionários de tupi. No mesmo período Gonçalves
Dias elaborava a sua poesia de exaltação ao índio e José de Alencar
publicava seus romances com o índio retratado na condição de
mítico herói nacional.
Nas jornadas da Independência, como já destaquei, brasileiros
trocavam seus sobrenomes portugueses pelos de origem tupi e o
marechal Floriano Peixoto, de notórias feições indígenas, tinha
orgulho de se autodenominar e de ser chamado de caboclo.
Na epopeia da construção do Brasil estadistas indígenas se
destacaram por atos de bravura em defesa de suas terras, em
intricadas alianças ora contra ora a favor dos portugueses, mas
exibindo sempre argúcia e inteligência na relação com o homem
branco. Tibiriçá, tuxaua Guaianá, fundador de São Paulo; Aimberê,
chefe dos Tamoios; Arariboia, herói da expulsão dos franceses do
Rio de Janeiro; Ajuricaba, cacique dos Manaos na resistência contra
os portugueses; Sepé Tiaraju, bravo da luta contra portugueses e
espanhóis, e os valentes Guaicurus e Terenas nas refregas contra os
paraguaios, ilustram as páginas da história escrita pela presença
indígena no Brasil.
Nas funções que ocupei na vida pública procurei sempre visitar o
Paraguai como primeira missão internacional e uma vez pedi ao
embaixador do Paraguai em Brasília a indicação de alguém da
Embaixada para ministrar aulas de guarani, já que nas próximas
visitas pretendia homenagear meus anfitriões com algumas
expressões em guarani. Por coincidência havia uma professora
bilíngue (guarani e espanhol), esposa do adido militar paraguaio,
disposta a me atender. Com a ajuda de minha professora, dos
dicionários paraguaios de guarani e espanhol e dos dicionários de
tupi de Gonçalves Dias, Teodoro Sampaio, Silveira Bueno e Eduardo
de Almeida Navarro pude observar as profundas semelhanças
entre o tupi dicionarizado no Brasil e o guarani dos dicionários
espanhóis, de tal forma que fiquei com a viva impressão de que as
diferenças entre o nosso tupi e o guarani paraguaio são muito mais
resultado das variações fonéticas entre o português e o espanhol
do que das supostamente existentes entre dois idiomas indígenas.
Em apenas um exemplo, “morubixaba”, “chefe” nos nossos
dicionários, é “mboruvixa”, “chefe” no dicionário guarani,
indicando muito mais a distinção no uso do “b” e “v” no português
e no espanhol do que propriamente uma diferença nas línguas
indígenas.
O Paraguai é o único caso com duas línguas francas e oficiais, e
uma delas indígena. Há outros casos de línguas oficiais indígenas,
como na Bolívia e no Peru, mas que não são línguas francas. O
guarani é língua culta e tem gramática há cinco séculos.
Em um debate sobre história do Paraguai ouvi a professora Mary
Monte de López Moreira afirmar que o guarani é a terceira língua
do mundo em nomenclatura de botânica, atrás apenas do latim e
do grego.
Nas aulas, minha professora não só exaltava a importância do
guarani na afirmação da identidade nacional paraguaia, como dizia
que o Paraguai devia sua existência ao guarani. Não fosse uma
língua que distinguisse os paraguaios dos demais países
emancipados do vice-Reinado do Prata, dificilmente resistiriam a
uma investida argentina, ali lutando para atrair todas aquelas
partes da antiga colônia para um país único (Bolívia e Paraguai não
se filiaram ao conjunto das províncias unidas, depois Confederação
argentina e hoje República argentina). Ela citava um prócer
argentino que dizia “ou se tirava o guarani dos paraguaios ou seria
impossível dominá-los”.
O nheengatu, “língua geral” ou “língua boa”, foi o idioma
corrente do Brasil durante dois séculos e meio e até hoje pode ser
ouvido, como pude constatar nos pelotões de fronteira, falado
pelos soldados indígenas, juntamente com o baníua, o tucano e o
português e é idioma oficial no município de São Miguel da
Cachoeira, no Amazonas.
O português era a língua dos reinóis e das repartições oficiais. O
idioma da rua era o nheengatu. A lenda diz que Domingos Jorge
Velho precisou de um tradutor para se entender com as
autoridades portuguesas em Pernambuco, na empreitada de
combate aos quilombos, porque não falava o português, mas
apenas o dialeto indígena.
Morumbi, Tietê, Ibirapuera, Itaquera, Anhangabaú,
Tamanduateí, Ipiranga, Guaianazes, Jaçanã, Itaim, M’boi Mirim,
Itapecerica, Bartira, Caiubi, Tibiriçá, Cayowwá, Mooca, Mandaqui,
Pacaembu, Tucuruvi, Aricanduva, Pirituba, Pari, Butantã,
Jabaquara, Tatuapé, Jaraguá, Sapopemba, são expressões que
indicam ser a nossa maior metrópole, a mais importante da
América Latina, São Paulo de Piratininga, na verdade uma grande
cidade indígena. A sua toponímia avaliza a forte influência de
nossos antepassados sobre o colonizador português e a formação
do Brasil.
Caso exemplar de brasileiro de origem indígena é o de Cândido
Mariano da Silva Rondon, filho de uma índia Bororo do Mato
Grosso, oficial do Exército na rebelião republicana de 1889,
pioneiro no trabalho de apoio aos índios, autor do lema “morrer se
preciso, matar nunca” na relação com seus irmãos de sangue.
Apontado por Albert Einstein para o Prêmio Nobel da Paz, sua
vida foi uma doutrina de respeito à cultura e às tradições das
populações indígenas e de defesa intransigente de sua integração à
sociedade nacional na qualidade de brasileiros plenos e não como
uma parte em confronto com o todo. O que se vê hoje é a
encruzilhada indesejável de dois fenômenos nocivos ao bem-estar
dos índios e ao interesse nacional: o abandono das populações
indígenas por parte da sociedade e do Estado e o aproveitamento
desse estado de coisas por um aparato nacional e internacional de
interesses que veem na indigência dos silvícolas a chance de
erguer uma muralha para separar os brasileiros.
A manipulação é antiga. Logo depois da Independência do Brasil
os ingleses recrutaram dois agentes alemães pagos por uma de suas
ONGs para percorrer as cabeceiras dos rios que descem do maciço
das Guianas em direção à Bacia Amazônica, já que os rios da dita
Guiana inglesa seguem todos no rumo do Caribe e era intenção do
império britânico acessar a Bacia Amazônica via o rio Negro.
Concluído o serviço dos geógrafos, outra missão foi enviada,
dessa vez uma ONG religiosa, para convencer os índios a pedir
proteção ao Império britânico, o que se efetivou em Georgetown. A
operação foi concluída com a chegada de uma tropa britânica que
ocupou parte do território brasileiro no atual estado de Roraima e
declarou ali uma zona de litígio. O Brasil nada pôde fazer, a não
ser, já em pleno século XX, apelar à arbitragem viciada de um rei
italiano que dividiu a área sabidamente brasileira em duas partes
das quais a maior foi entregue ao Império britânico.
O episódio está contado em detalhes no livro A Questão do Rio
Pirara, do consultor da Câmara dos Deputados José Theodoro
Mascarenhas Menck, publicado pela Fundação Alexandre de
Gusmão, do Itamaraty.
Durante a Segunda Guerra Mundial os alemães tentaram sabotar
o esforço de guerra dos Estados Unidos mobilizando a insatisfação
interna dos índios americanos contra o tratamento odioso herdado
do período de ocupação nas marchas dos colonos para o Oeste. Não
é mera coincidência que os argumentos nazistas fossem na época
tão semelhantes aos hoje usados no Brasil na questão indígena. Um
detalhe surpreendente foi a tentativa da Alemanha de obter a
simpatia dos nossos índios declarando-os oficialmente arianos para
dessa forma legitimar qualquer ajuda e solidariedade a ser
oferecida.
O drama de minorias oprimidas é tão antigo quanto a sua
manipulação por interesses hegemônicos. Há o caso da Liga das
Nações nos anos de 1920, relatado pelo representante do Brasil
Afrânio de Melo Franco sobre a opressão de minorias alemãs na
Tchecoslováquia e na Polônia. O caso está relatado no livro de seu
filho Afonso Arinos de Melo Franco, O Estadista da República. Arinos
foi relator de um grupo de trabalho sobre o tema e chegou à
conclusão de haver interesse da Alemanha em violar direitos de
maiorias nacionais a pretexto de defender minorias.
O Brasil deve considerar seriamente a questão indígena porque,
além de tudo, ela se combina com outro elemento geopolítico
explosivo que é a Amazônia brasileira. O Estado precisa assumir
integralmente a assistência aos irmãos índios, com a promoção de
serviços públicos que permitam sua integração plena à sociedade
nacional. Já me referi ao caso das Forças Armadas e da necessidade
de se criar vias de acesso do índio ao oficialato e arrisco dizer que
se há na sociedade brasileira um caso que justifique políticas
públicas afirmativas especiais é o da ascensão educacional,
profissional e social de nossos irmãos indígenas.
O Estado brasileiro deve aceitar o trabalho voluntário das
organizações humanitárias, desde que exercido sob o escrutínio e a
fiscalização dos órgãos públicos, vedada qualquer ação de
manipulação em prejuízo do sentimento de comunhão dos índios
com os demais brasileiros.
CAPÍTULO 17

QUINTO MOVIMENTO
A presença das mulheres
O Brasil foi fundado por mulheres, pode-se dizer. Quatro das
principais capitanias hereditárias tiveram mulheres como suas
verdadeiras donatárias: Dona Beatriz de Albuquerque, em
Pernambuco; Dona Ana Pimentel, em São Vicente, hoje São Paulo;
Dona Luisa Grimaldi (princesa do Principado de Mônaco, casada
com Vasco Coutinho, que morreu jovem), no Espírito Santo; e a
princesa Paraguaçu, mulher de Caramuru, os verdadeiros
fundadores da Bahia, donatários de fato da capitania.
Assim começa o Brasil colonial, sob a tutela de um matriarcado
que inclui as importantes presenças das índias Bartira, em São
Paulo, e Maria do Espírito Santo Arcoverde em Pernambuco. No
caso de Beatriz, Ana e Luisa por afastamento dos maridos da tarefa,
ou por missão dada pelo rei, nos dois primeiros casos, ou de morte,
no terceiro.
O Brasil deve a origem de sua etnia nacional, a sua
nacionalidade, a sua identidade, às nossas matriarcas indígenas.
Foram as mulheres indígenas, em casamentos e em uniões com os
portugueses e africanos, que criaram as primeiras famílias
brasileiras, em São Paulo, na Bahia e em Pernambuco. Os núcleos
iniciais da brasilidade tiveram como mães e avós mulheres
indígenas.
Quando Portugal criou o sistema de concessão das capitanias, as
duas que mais prosperaram e se aproximaram do objetivo inicial
da criação do modelo – era um sistema misto, em parte público e
em parte privado, quase como uma concessão, com muitos direitos
aos donatários, inclusive o de cunhar moeda –, estavam sob a
administração de mulheres, a de São Vicente e a de Pernambuco.
Na de São Vicente, com a convocação de Martim Afonso de Souza
para serviços da Coroa na Índia, a procuração foi passada para
Dona Ana Pimentel, da nobreza espanhola, mas casada com o
capitão português, ainda vivendo em Portugal. A então donatária
mudou-se para a Baixada Santista e foi responsável por decisões
muito importantes, com grande repercussão na vida e no futuro do
Brasil, a partir de São Vicente.
Entre as providências que tomou, permitiu a fundação de vilas
no planalto paulista, pois os portugueses não subiam a Serra do
Mar para não ultrapassar os limites do Tratado de Tordesilhas e
não criar conflitos com os espanhóis. Mas ela autorizou a subida da
Serra do Mar e a criação das vilas de Santo André da Borda do
Campo e depois São Paulo de Piratininga. Trouxe consigo, na frota
que viajou da Europa para a América do Sul, o primeiro rebanho
bovino deste continente, embarcado nas ilhas de Cabo Verde. Esse
gado depois multiplicou-se pela Colônia e foi levado para o
Paraguai; fugitivo (alçado, se diz no campo), desceu para os
pampas da Argentina, do Uruguai e do Rio Grande do Sul. Esse gado
primitivo é chamado de “vicentino” no Sul, e nos países hispânicos
de “ganado vicentino”, por sua origem em São Vicente.
O papel mais importante dessa matriarca foi dar autorização e
apoio estatal para as entradas e bandeiras, o primeiro passo para a
expansão territorial do País, hoje a quinta maior nação em
extensão do planeta.
Em Pernambuco, também por razões parecidas, com a
convocação do donatário Duarte Coelho para serviços da Coroa no
Oriente, assumiu a capitania Dona Beatriz de Albuquerque, que já
estava no Brasil e aqui permaneceu, com a ajuda do irmão
Jerônimo de Albuquerque, que veio a se casar com a índia Tabira,
princesa Tabajara, filha do cacique Arcoverde, depois batizada com
o nome católico de Maria do Espírito Santo Arcoverde, porque os
jesuítas sempre procuravam fazer esses casamentos.
Dona Beatriz de Albuquerque administrou por um período longo,
expandiu a cultura da cana-de-açúcar em Pernambuco, com as
mudas trazidas de São Tomé, tomou medidas administrativas para
garantir o desenvolvimento da capitania, ajudada pelo irmão, e
deu a Pernambuco o início da prosperidade que marcou durante
séculos a cultura da cana-de-açúcar e todo o processo de inovação
dessa atividade econômica.
Luisa Grimaldi Coutinho, mais conhecida na época por “Dona
Grimalda”, atuou na capitania do Espírito Santo e é reconhecida no
estado como personalidade importante, mãe do bandeirante
Fradique Coutinho, nome de rua no bairro de Pinheiros, em São
Paulo. Embora o Espírito Santo não tenha alcançado os êxitos de
São Vicente e Pernambuco, foi marcado pela presença dessa
mulher enérgica, que consolidou aquela posição para a coroa
portuguesa. O Brasil deve a estas mulheres biografias à altura de
seus feitos.
Na guerra contra os Holandeses, eleva-se a figura de Clara Filipa
Camarão, índia potiguara, líder de um pelotão de combate formado
por mulheres indígenas, companheira inseparável de seu marido
Filipe Camarão, o índio Poti.
Em 2013, no Ministério do Esporte, recebi o senador Garibaldi
Alves e o ex-reitor da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, Diógenes da Cunha Lima, que trazia uma ópera escrita por
ele sobre a vida de Clara Camarão para ser montada como parte da
celebração da Copa do Mundo de 2014. Levei o projeto à presidente
Dilma e sugeri seu encaminhamento a alguma empresa estatal
disposta a financiar a justa homenagem a uma das fundadoras do
Brasil.
Sobre a guerra contra os holandeses guardei na memória um
episódio descrito nos livros didáticos de minha infância sobre as
mulheres de Tejucupapo, povoado do município de Goiana,
Pernambuco, cenário de um combate entre as mulheres
pernambucanas e um destacamento do invasor batavo. Em uma de
minhas visitas a Pernambuco, pedi ao meu saudoso amigo Eduardo
Campos para visitar o local onde ocorreu essa batalha e pudemos
observar com viva emoção o solo sagrado em que aquelas bravas
mulheres exibiram toda a sua coragem.
Uma mulher foi o estopim da guerra da independência do Brasil.
É preciso lembrar que o levante de Salvador, em fevereiro de 1822
(antes do 7 de Setembro), iniciou-se efetivamente com o
assassinato da madre Joana Angélica, na Bahia, por um soldado
português que invadira o convento. A brutalidade gerou uma
revolta popular só encerrada com a expulsão das tropas
portuguesas, em 2 de julho de 1923, que em Salvador até hoje é
festejada como a verdadeira data da Independência do Brasil.
Quando o Brasil foi lutar pela independência, uma mulher
destacou-se como voluntária, a soldado Maria Quitéria,
condecorada por D. Pedro I. Ela é a patrona do Quadro
Complementar de Oficiais do Exército Brasileiro, foi nome de uma
taça disputada em final de Palmeiras x Flamengo, conquistada pelo
clube paulista, e batiza a Comenda conferida pela Câmara
Municipal de Salvador.
Na Bahia, destacou-se na mesma guerra da independência a
negra Maria Filipa, guerrilheira naval. A famosa Marisqueira lutou
nos mangues de Itaparica, teve um papel de liderança importante
no enfrentamento da força naval portuguesa que sustentava as
tropas coloniais e liderou choques e confrontos com as
embarcações da metrópole.
A princesa Leopoldina exerceu sobre D. Pedro I e José Bonifácio a
reconhecida influência política em favor da causa da
Independência. A posição de Leopoldina constituiu importante
trunfo para a aspiração do Brasil à independência, em razão do
jogo diplomático entre as potências europeias e por ser ela
integrante da casa real mais ilustre da Europa, a dos Habsburgo, e
filha do imperador Francisco I da Áustria.
A guerra com o Paraguai revelou mulheres heroínas, cujos
nomes permanecem como referência de renúncia e sacrifício em
defesa da Pátria. A pernambucana Maria Francisca da Conceição, a
Maria Curupaiti, célebre por participar dos mais sangrentos
combates, ferida na Batalha de Curupaiti. Seu nome batiza uma rua
na cidade de São Paulo e está imortalizado nas crônicas e nas
memórias da Guerra do Paraguai. Ana Neri, baiana, acompanhou
três filhos ao Paraguai, um dos quais morto em combate, e
engajou-se como enfermeira, desdobrando-se no atendimento aos
feridos nos hospitais de sangue. A piauiense Jovita Alves Feitosa
percorreu uma longa trajetória até ser aceita na condição de
voluntária e, segundo uma das versões sobre seu destino, caiu em
uma das batalhas em solo paraguaio. A gaúcha Florisbela
participou da Guerra sem que seu nome completo viesse a ser
conhecido, mas ficou imortalizada a sua valentia. A matriarca Rosa
da Fonseca recebia a notícia da morte dos filhos em batalha
secando as lágrimas para celebrar a vitória brasileira em combate.
A mãe do proclamador da República, Deodoro da Fonseca, é a
patrona da família militar do Exército Brasileiro e nome de praça
em Maceió, capital de seu estado de origem.
Entre as mulheres brasileiras realça o papel da princesa Isabel, a
redentora, abolicionista, defensora da promoção social dos negros.
Ainda no século XIX, há a potiguar Nísia Floresta, autora de artigos
e ensaios de denúncia da opressão da mulher, defensora da
educação e das escolas femininas. Nísia Floresta, por sua coragem
em uma época marcada por discriminações e preconceitos, deve
ser reverenciada por todos os brasileiros. Seu nome batiza um
município no seu estado natal, o Rio Grande do Norte, hoje
governado pela terceira vez por uma mulher.
No Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, verifiquei que a
participação de meninas nas feiras de ciências era inversamente
proporcional ao avanço dos anos de escolaridade, sendo apontada
como causa a ideia equivocada de que a ciência não é atividade
própria para mulheres. Discuti com assessores próximos o
lançamento de uma campanha de estímulo ao engajamento de
meninas na ciência, promovendo exemplos de mulheres como
Bertha Lutz, Nise da Silveira e Johanna Dobereiner, de quem
planejava construir um busto para assentar na praça vizinha ao
Ministério que Eduardo Campos quando ministro batizara com seu
nome.
No Ministério da Defesa, estimulei o grupo de trabalho voltado
para a valorização da mulher nas Forças Armadas a adotar como
ponto de partida o levantamento da memória das mulheres que
participaram do esforço da construção da nossa Pátria. Esse
levantamento criaria uma dívida a ser reconhecida pelos
contemporâneos ao patriotismo e ao espírito público das mulheres
do Brasil.
No Ministério do Esporte, criei a diretoria de futebol feminino na
Secretaria de Futebol e organizei um grupo de trabalho voltado
para estimular o futebol feminino em todas as suas dimensões. A
partir dessas ações, o Ministério apoiou as edições da Copa
Libertadores da América de Futebol Feminino e os campeonatos
nacionais com patrocínio da Caixa Econômica Federal. Na
preparação das Olimpíadas ressaltei que o melhor caminho para
aumentar as chances de medalhas nos jogos era a incorporação de
mais mulheres em todas as modalidades em disputa.
A presença feminina se faz notar como significativa na vida
social contemporânea do Brasil, destacadamente no número de
matrículas nas universidades, indício de maior presença futura nas
atividades profissionais. Trabalhadoras, empreendedoras,
profissionais liberais, artistas, militares, cientistas, produtoras
rurais, não há domínio da vida nacional que não registre a boa
notícia da crescente participação feminina.
O Estado e a sociedade devem exaltar a participação das
mulheres no esforço patriótico de retomada da construção
interrompida do Brasil, combatendo a agenda identitária de
fragmentação e divisão artificial da sociedade e da Nação.
Em uma das madrugadas de visitas às garagens de São Paulo nas
minhas jornadas políticas, conversava com uma cobradora de
ônibus e perguntei se tinha filhos e o semblante alegre daquela
trabalhadora contraiu-se em uma fisionomia de tristeza e dor. Não,
disse ela, - tentei muitas vezes engravidar, mas o tratamento era
muito caro e eu não consegui. Contei esse episódio à presidente
Dilma, com a informação de que infelizmente o Estado brasileiro
prioriza as medidas para a contracepção e negligencia o apoio às
mulheres pobres para a concepção. Vem daí minha ideia de que o
Estado e a sociedade devem promover campanhas de valorização
da maternidade e prover os meios necessários para que todas as
mulheres possam alcançar o direito sagrado à maternidade.
CAPÍTULO 18

QUINTO MOVIMENTO
O futebol
Muito mais do que um esporte, o futebol conformou-se no Brasil
como elemento de nossa identidade nacional, instituição abraçada
pelo povo, mobilizadora de afetos e paixões. É provável que a
explicação deva ser buscada no seu processo de adaptação ao meio
e como foi absorvido entre nós.
Embora tenha aportado no Brasil trazido por estudantes e
viajantes europeus de classe média, principalmente britânicos, a
verdade é que o futebol se transformou na generosa plataforma de
promoção social dos jovens pobres, mestiços, negros e mulatos,
quando todas as chances lhes eram vedadas. Bloqueados desde a
escola no caminho da ascensão social, os jovens pobres
converteram o futebol na chave capaz de abrir as portas para uma
vida melhor.
E a primeira vez que um jovem, negro, mestiço ou mesmo branco
pobre se viu admirado, querido e respeitado, ele era um jogador de
futebol. A partir desse fenômeno operou-se na alma do povo a
adesão a este esporte que permitia aos pobres e humildes, muitas
vezes analfabetos, a admiração e o reconhecimento até então
apenas concedidos aos ricos e letrados.
Entre os mulatos, Arthur Friendenreich foi o ídolo pioneiro,
autor do gol do primeiro título internacional da Seleção Brasileira,
o Sul-Americano de 1919, jogando ao lado de Heitor, um filho de
imigrantes espanhóis, estrela do Palestra Itália (hoje Palmeiras),
clube dos italianinhos pobres de São Paulo, discriminados pela
elite quatrocentona.
Em 1930, brilhou na primeira Copa do Mundo do Uruguai Fausto
dos Santos, que jogou no Vasco da Gama e no Flamengo e mereceu
da imprensa uruguaia o apelido de “Maravilha Negra”, apesar da
eliminação precoce do Brasil. Vasco e Flamengo devem ao
maranhense de Codó um busto a ser fixado em uma praça de sua
cidade natal, da mesma forma que o São Paulo Futebol Clube deve
o mesmo busto a Canhoteiro, outro maranhense negro de Coroatá,
consagrado pela magia de seus dribles.
E no panteão da “Pátria de chuteiras”, na feliz expressão de
Nelson Rodrigues, estão próceres negros e mestiços como Leônidas
da Silva, o Diamante Negro; Domingos da Guia, o Divino, ídolo no
Flamengo, no Nacional de Montevideo, no Boca Juniors e no
Corinthians; Garrincha, Ademir da Guia e o gênio completo de
inteligência superior e talento inigualável: Pelé, digno da
reverência de Robert Kennedy, que desceu aos vestiários do
Maracanã para abraçá-lo em pleno banho, e da Rainha Elizabeth,
que se levantou de sua cadeira imperial para cumprimentá-lo.
Negros, mulatos e mestiços que a força, a magia e a generosidade
do futebol arrancaram do anonimato e da indiferença para a
consagração e para a glória.
Nem todos perceberam o futebol no Brasil da mesma forma.
Graciliano Ramos, tão grande em sua literatura, fracassou como
profeta, em crônica de 1921, quando escreveu que não haveria
futuro para um esporte reunindo 11 homens de cada lado do
campo correndo atrás de uma bola.
Outros, como o jornalista Mário Filho, o sociólogo Gilberto
Freyre e o cronista Nelson Rodrigues, intérpretes sensíveis da alma
popular, compreenderam o óbvio, o povo havia transformado o
futebol em sua causa. Mário Filho escreveu o clássico O negro no
futebol brasileiro, prefaciado por Gilberto Freyre e que mandei
traduzir para o inglês no Ministério do Esporte. Mário Filho e Ary
Barroso verteram para o português, ou aportuguesaram a
nomenclatura futebolística de origem inglesa, quando goalkeeper
virou goleiro, back, zagueiro e corner, escanteio.
Mas esse esporte dos pobres sofreu muito preconceito de parte
de segmentos importantes da crônica esportiva de classe média,
descrente do povo e do País, que não via como capazes de
transformar para melhor um esporte inventado pelos ingleses.
Nelson Rodrigues disse em um de seus textos imortais que o
jornalista inglês desembarca na lua e logo declara a lua parte do
Império britânico, enquanto o cronista brasileiro desembarca na
Europa e proclama aos quatro ventos ser uma colônia. “Idiota da
objetividade”, “vira-lata”, “quadrúpede de 28 patas” (o próprio
Nelson Rodrigues dizia que seus quadrúpedes tinham 28 patas)
foram algumas das expressões criadas pelo genial dramaturgo para
travar sua guerra particular contra a subserviência e o complexo
de inferioridade de boa parte do jornalismo esportivo.
Os grandes clubes brasileiros são instituições nacionais, distintas
de seus congêneres espanhóis e ingleses, identificados como
fenômenos municipais de Barcelona, de Madri, de Manchester ou
de Liverpool. Vasco da Gama, Flamengo e Palmeiras, por exemplo,
têm mais torcedores espalhados pelo Brasil do que no Rio de
Janeiro e em São Paulo. É quase impossível conceber um
madrilenho torcendo pelo Barcelona ou vice-versa, mas ninguém
estranhará uma torcida organizada do Corinthians em Maringá, no
Paraná; do Flamengo no Amazonas, ou do Palmeiras no Acre ou no
Maranhão.
Eu sempre fui muito atento desde criança às músicas cantadas
por minha mãe nos seus afazeres caseiros. Certa vez, quando
recebia Pelé em casa para um almoço e minha mãe estava presente
ouvi-a cantarolar baixinho uma música por mim desconhecida e
que falava sobre o rei do futebol. Pedi que cantasse um pouco mais
alto e perguntei ao Pelé se identificava a música e ele disse que era
uma canção composta para a campanha por sua permanência no
Santos e no Brasil quando da investida do Milan para levá-lo à
Itália.
Minha mãe não acompanhava o futebol, salvo os jogos da Seleção
Brasileira na Copa do Mundo, mas cantava: “Didi, Pelé,
Vavá/Zagalo lá na Europa e a Copa vem pra cá/Zagalo, Zito,
Garrincha, Nilton Santos e Orlando/são os campeões do mundo que
o Brasil está saudando 5 a 2”, composta para a celebração da
vitória na Suécia em 1958. Nelson Rodrigues estava coberto de
razão, a Seleção de 1958 e seus heróis redescobriram o Brasil para
os brasileiros e para o mundo, refazendo a façanha de Pedro
Álvares Cabral quase 500 anos depois.
Ao dominar o mundo o futebol construiu um império com um
domínio sem fronteiras e sem limites como nenhuma nação jamais
alcançou na história, na feliz observação do especialista francês em
geopolítica Pascal Boniface, em seu livro La Terre est ronde comme an
Ballon – Géopolitique du football. Na visita a Angola, em 2006, pouco
antes da Copa do Mundo da Alemanha, recordo-me de uma
publicidade na TV de Luanda: “Somos um país, Angola está na Copa
do Mundo”, a confirmar a importância do futebol na identidade
nacional dos povos.
O problema é que a mídia colonizada não só persistiu como foi
tomada de fúria e arrogância contra o Brasil e o futebol brasileiro e
cumpriu um triste papel na copa mais sabotada da história,
sabotada dentro do próprio País, a Copa de 2014.
Durante a Copa das Confederações, em 2013, a Copa de 2014
quase foi cancelada. Em um dos jogos, em Salvador, os
manifestantes ameaçaram invadir o estádio onde se realizava o
jogo e em seguida o hotel que alojava uma das delegações. Naquela
noite o então presidente da FIFA, Joseph Blatter, havia decidido
suspender a competição e despachar as seleções de volta aos seus
países. Teria sido o fim da Copa do Mundo no Brasil. As medidas
adotadas para reverter a situação são tema para um outro livro.
Enquanto a professora da Cornell University Lourdes Casanova
publicava com Julian Kassum o livro A economia política de uma
potência global emergente: em busca do sonho brasileiro, exaltando os
grandes eventos no País (Copa do Mundo e Olimpíadas) e o respeito
alcançado pelo Brasil em seu caminho de crescimento com
inclusão social, por aqui parte considerável da imprensa promovia
a campanha de destruição da Copa, em sintonia com grupelhos de
“esquerda” e de “direita”, vandalizando monumentos públicos e
patrimônio privado no movimento desorientado “Não vai ter
Copa”. E quem ousasse enfrentar a horda de malfeitores recebia de
imediato o epíteto de fascista. Um cinegrafista foi morto pelos
manifestantes e um policial transformado em tocha humana por
outros; patrimônio público e privado depredado, mas quando o
delinquente era detido, antes que chegasse na delegacia já
encontrava a postos uma comissão de advogados da OAB para
defendê-lo. O acordo tácito entre “direita” e “esquerda” nesta
jornada de infâmia era desautorizar o governo da presidente Dilma
como gestor dos grandes eventos e abrir caminho para a volta dos
conservadores ao poder, enquanto a “esquerda” receberia como
espólio o PT desgastado e pronto para ceder o proscênio aos
aventureiros das ruas. Não me perguntem por que setores do
próprio PT apoiaram e estimularam tais manifestações.
No dia da abertura da Copa, a manchete do jornal Folha de S.Paulo
estampava que o evento começava com a confiança na Seleção e a
desconfiança na organização. Os fatos provaram exatamente o
contrário. A Seleção sofreu a tragédia do Mineirão e a Copa do
Mundo do Brasil foi considerada a “Copa das Copas”, a melhor da
história, a ponto de os organizadores do evento em 2018
comentarem ser necessário engarrafar a Copa do Mundo do Brasil
e entregá-la ao próximo anfitrião.
Tocado pela cobiça e pela ganância do mercado, o futebol pode
perder muito de seu encanto e de sua inocência. É verdade que o
mercado contribuiu para o futebol, incorporou modernas
infraestruturas para sua prática e melhorou os ganhos de seus
atletas, mas o preço dos ingressos afastou os pobres dos estádios. O
Estado deve limitar os exageros do mercado para que não se erga
uma Muralha da China entre o esporte do povo e o povo que o
tomou como parte de sua alma.
CAPÍTULO 19

QUINTO MOVIMENTO
O desafio da violência e da
segurança
Certa manhã, no exercício da Presidência da Câmara dos
Deputados, recebi a visita de um grupo de parlamentares de
orientação conservadora que queriam discutir a tramitação, em
uma das comissões da Casa, de uma matéria bastante polêmica: o
aborto. Eles traziam consigo o livro Freaknomics: o lado oculto e
inesperado de tudo que nos afeta, do economista Steven Levitt e do
jornalista Stephen Dubner, um estudo acerca de causas
inesperadas para fenômenos que atingem a sociedade no seu dia a
dia.
Um dos deputados abriu o livro e mostrou-me um dos capítulos
mais controversos da obra, que atribui à legalização do aborto a
causa da redução das taxas de criminalidade, e, portanto, da
violência nos Estados Unidos. Segundo o raciocínio dos autores,
pobreza, filhos rejeitados e proibição do aborto estariam na raiz da
elevada taxa de criminalidade. O grupo queria a aprovação do
aborto. A visita foi suficiente para arrefecer de minha parte
qualquer iniciativa para pôr em andamento tal matéria na Câmara
dos Deputados.
O aborto divide famílias, partidos, religiões e a sociedade. Tentei
argumentar com grupos católicos e feministas a proposta de votar
a matéria e submetê-la a um referendo posterior, mas tal
providência foi rejeitada pelos católicos sob o argumento de a vida
não poder ser submetida a referendo e da mesma forma os grupos
feministas disseram que o corpo da mulher não está à disposição
de referendo.
Mas recordei esse episódio a propósito de abordar as possíveis
causas da violência que ameaça direitos individuais e coletivos no
Brasil. Sempre desconfiei do erro e da injustiça do diagnóstico que
atribui a violência à pobreza, aliás, partilhado tanto por segmentos
da chamada “esquerda” quanto por grupos conservadores. Tal
argumento não leva em consideração o caso de sociedades ricas
como a norte-americana produzirem violência média muito maior
do que as mais pobres, como Cuba e Vietnã. Mas não é preciso ir
tão longe; o Brasil mais pobre e mais desigual do passado era muito
menos violento do que o Brasil de maiores conquistas sociais dos
nossos dias. Portanto, é preciso um esforço maior de investigação
para encontrarmos as causas da violência muito além das
estatísticas e do senso comum.
É possível que sociedades capazes de oferecer esperança sejam
mais bem-sucedidas no controle dos impulsos violentos de seus
integrantes do que aquelas que abandonaram valores coletivos de
que são portadoras instituições como a família, a religião e a
comunidade nacional. Testemunhei muitas vezes, em lugares bem
pobres, mães abdicando de tudo na esperança de educar um filho,
mães que substituíam o estado de bem-estar ausente entre nós, na
atenta observação de um poeta amigo.
Despojado de todas as convicções em torno da solidariedade, da
fraternidade e do bem comum, o indivíduo está só, é apenas um
consumidor à mercê de um senhor absoluto, o mercado. E diante
do altar desse novo deus, ele se realiza ou consumindo ou se
rebelando, e a rebeldia pode se manifestar na luta social ou no
crime.
A esperança se materializa em valores e convicções partilhadas,
mas também em serviços públicos e sociais como educação,
esporte, lazer, saúde e cultura. No Ministério da Defesa
mantínhamos um programa, o “Força no Esporte”, com apoio do
Ministério do Esporte e do Ministério da Ação Social para atender
crianças das escolas públicas nos equipamentos das unidades da
Marinha, do Exército e da Aeronáutica. Ao visitar uma unidade do
Exército em Teresina e assistir a um exercício de natação do “Força
no Esporte”, ouvi do sargento instrutor que aquelas crianças nunca
tinham entrado antes em uma piscina.
Ainda no Ministério da Defesa planejei acolher crianças para
aulas de música nas unidades militares, aproveitando a
disponibilidade do grande número de músicos que compõem as
Forças Armadas. Atenderíamos crianças das escolas públicas sem
que o governo precisasse construir escolas e contratar professores
para essa finalidade.
Viver em segurança e receber proteção do Estado contra a
violência é um direito sagrado do cidadão. Quem rouba a roupa do
varal de uma família operária na periferia de São Paulo não está
cometendo um ato de rebeldia contra a desigualdade e a pobreza,
está apenas agravando-a ao despojar um pobre dos seus já escassos
bens.
Por esta razão, a repressão contra o crime organizado e a
criminalidade em geral constitui uma necessidade para reatar na
população a confiança no Estado e para fazer da segurança
individual e coletiva um direito dos cidadãos. O Estado deve impor
o monopólio da violência para proteger o direito dos cidadãos à
segurança individual e coletiva ou marcharemos para o retorno da
época da violência privada dos coronéis, do cangaço e dos jagunços
na sua forma contemporânea das milícias urbanas e do crime
organizado.
Os entes federativos estaduais já não dispõem dos meios
adequados, principalmente na área de inteligência, para fazer face
à sofisticação alcançada pelo crime. Os órgãos de inteligência
policial, financeira e tributária do governo federal, tão eficientes
no combate aos delitos tributários e de colarinho branco, precisam
ser engajados com a mesma eficiência na investigação das
atividades do crime organizado. Da mesma forma os órgãos
policiais do governo federal devem ser empregados em estreita
cooperação com seus congêneres estaduais na repressão às
organizações criminosas.
CAPÍTULO 20

QUINTO MOVIMENTO
O meio ambiente
A questão ambiental elevou-se definitivamente ao primeiro plano
da agenda internacional, e o Brasil à condição de protagonista
decisivo no assunto. A Amazônia brasileira está no centro do
debate mundial junto com sua exuberante floresta tropical,
biodiversidade e recursos hídricos.
A proteção da natureza é uma causa nobre e antiga, mobiliza
uma militância generosa contra o uso predatório dos recursos
finitos e os abusos dos governos e do capital contra o meio
ambiente. O problema é que, como todas as causas justas, o
ambientalismo se dispõe a manipulações para atingir os mais
diferentes objetivos. Vistas as coisas desta forma, o Brasil deve
integrar a vanguarda do esforço internacional na adoção de
medidas de proteção da natureza e de combate a todas as formas
de crimes contra ela, mas estar atento para se defender da
manipulação da agenda ambiental contra o interesse nacional.
A mais importante manipulação é o uso geopolítico,
preenchendo a lacuna deixada pelo “fim” do comunismo como
pretexto para interferência dos países imperiais sobre as nações
mais fracas. Em A Terra em Balanço, livro-manifesto em defesa do
meio ambiente, o ex-vice-presidente dos Estados Unidos Al Gore
argumenta que com o colapso do comunismo o ambientalismo
converte-se na bandeira capaz de substituir a luta pela
“democracia” e contra o “totalitarismo” como motivo para a ação
dos Estados Unidos em todo o mundo.
Na disputa comercial pelo mercado mundial de produtos
agrícolas e proteína animal, é mais uma vez o meio ambiente o
terreno em que europeus e norte-americanos procuram encurralar
a concorrência brasileira, criando uma espécie de tributação verde
sobre os produtores nacionais.
A intenção fica evidente no relatório produzido no passado pela
National Farmers Union (Associação Nacional dos Fazendeiros), dos
Estados Unidos, sob o título Farms here, forest there (Fazendas aqui,
florestas lá) e sobre o qual escrevi na época um artigo-denúncia
para o jornal O Estado de S. Paulo.
A importância do relatório reside na sua natureza de manifesto e
síntese do pensamento dos fazendeiros dos Estados Unidos diante
da queda na competitividade da agroindústria local vis a vis a
concorrência da agricultura tropical do Brasil. O estudo defende
que a única forma de conter essa perda de competitividade é
reduzir a oferta mundial de produtos agropecuários, isso mesmo,
reduzir a produção mundial de alimentos para proteger os ganhos
dos produtores dos Estados Unidos. E a forma mais eficaz para
alcançar esse objetivo é a imposição de custos ambientais aos
produtores brasileiros. A proposta não podia ser mais clara e está
no documento já citado e disponível nas redes sociais.
A “Europa é sempre Europa, a gloriosa! ... A mulher
deslumbrante e caprichosa, Rainha e cortesã”, no belo verso de
Castro Alves. Nenhum continente foi mais longe no uso predatório
dos recursos naturais, nenhum derrubou mais cedo suas florestas a
coice de machado, mas ninguém reivindica com mais força a glória
da defesa do meio ambiente e da natureza.
Como se não bastassem as razões geopolíticas e comerciais, a
agenda ambiental incorporou a celebridade do momento: o
aquecimento global e seu inseparável mercado de crédito de
carbono e mais uma vez o Brasil e a Amazônia são arrastados para
o centro das discussões.
Na encruzilhada mundial do debate sobre o meio ambiente, o
Brasil paga tanto por seus erros e pecados quanto por seus acertos
e virtudes. É cobrado pelo desmatamento ilegal e criminoso, mas
ao mesmo tempo não se pode esquecer que só existe Amazônia
porque ela foi preservada e protegida ao longo de séculos por
Portugal na Colônia e pelo Brasil depois da Independência. Nos
capítulos sobre a Amazônia e a agricultura já apresentei as linhas
gerais dos compromissos que o Brasil deve firmar em relação à
proteção da natureza.
Em dezembro de 2020, estreou na Bolsa de Nova Iorque uma
nova mercadoria: a água. Sim, a água é a mais nova commodity na
principal bolsa de valores do mundo. O detalhe relacionado ao
respeito ao Brasil é o rio Amazonas ser responsável por 20% da
vazão de toda a água doce mundial, que chega ao mar depois de
cruzar a maior floresta tropical do planeta, onde se acumulam na
estação chuvosa 350 mil quilômetros quadrados de água doce, as
áreas somadas da Itália e da Suíça cobrindo a Amazônia brasileira.
O esforço legislativo brasileiro em defesa do meio ambiente
produziu as normas mais rigorosas do mundo impostas aos
produtores e criadores nacionais. O Código Florestal Brasileiro é
certamente e de longe a lei mais generosa para a natureza e mais
dura para o homem do campo de que se tem conhecimento. Não há
no mundo quem obrigue o produtor rural a renunciar a 80% da
área de sua propriedade em benefício do meio ambiente. Só o
Brasil, no bioma Amazônia.
O problema está na aplicação das normas. O Estado brasileiro
optou pelo sistema de comando e controle dos órgãos ambientais
em lugar de outra prática, a da extensão e educação. No comando e
controle há uma combinação de fiscalização, autuação e aplicação
de multas, na crença equivocada de ser boa a lei geradora de
multas e não a respeitada e obedecida. No sistema que privilegia a
extensão e a educação, o talão de multa é substituído pelo esforço
de educar, orientar e executar práticas e manejos como
revitalização de nascentes e matas ciliares, e proteção do solo e de
outras medidas de conservação.
Parte de nossas escolas alimentam falsas notícias e reforçam
difamações contra a agricultura, a pecuária e a Amazônia
brasileira. Vão além da educação crítica e desinformam as futuras
gerações sobre o que acontece no campo. O sistema educacional
deve desenvolver a consciência crítica, inclusive das teorias
interesseiras geradas por doutrinas neocoloniais sobre o dilema
ambiental.
CAPÍTULO 21

QUINTO MOVIMENTO
Desigualdade: tragédia e
ameaça
A construção de uma comunidade socialmente equilibrada esteve
entre os desafios permanentes que mobilizaram as energias dos
brasileiros ao longo da jornada de 500 anos de esforço de
construção nacional.
Ao eleger o fim da escravidão como um dos temas centrais do
Programa da Independência do Brasil, José Bonifácio de Andrada e
Silva tinha em conta, além do drama social dos escravos, a sensível
questão da segurança nacional, representada pelo regime servil.
Argumentava o Patriarca que sob a escravidão qualquer potência
estrangeira dividiria o País ao simples aceno da liberdade à sua
população cativa.
Ao selecionar os integrantes da Força Expedicionária Brasileira
(FEB) que combateria na Itália durante a Segunda Guerra Mundial,
o Ministério da Guerra reuniu um contingente de 600 mil jovens
dos quais recrutou 60 mil para finalmente escolher os 25 mil que
integraram a Divisão de Exército que embarcou para o Teatro de
Operações na Europa. A tragédia desses números fica evidente nas
causas que obrigaram a uma dispensa de 540 mil jovens abaixo do
peso e da altura recomendadas para a atividade militar. Eles eram
o fruto da pobreza imensa formadora de gerações de brasileiros
subnutridos e subproteicos, incapacitados para a defesa da Pátria.
Em todos os domínios da vida nacional a indigência de vastas
parcelas de nossa população projetava sua sombra de iniquidade.
Quando a Seleção Brasileira foi convocada para a Copa do Mundo
de 1958 na Suécia e seus astros submetidos a uma revisão de saúde
bucal o resultado foi mais de uma centena de extrações e outras
centenas de procedimentos odontológicos. Didi, Pelé, Garrincha,
Zagalo, Djalma Santos, Belini, Nilton Santos, futuros campeões
mundiais, todos ídolos nos principais clubes brasileiros, sequer
desfrutavam das condições de saúde adequadas para a prática do
esporte de alto rendimento.
A profunda desigualdade fere a dignidade de milhões de
brasileiros na extrema pobreza, abala a coesão social e a união
necessárias à segurança nacional e ao processo de
desenvolvimento equilibrado de nossa sociedade.
Segundo o governo, 66 milhões de pessoas receberam em 2020 o
Auxílio Emergencial em razão da crise da Covid-19, benefício que
alcançou 126 milhões de pessoas (quando incluídos os familiares e
agregados) ou 60% da população. Os números saltam como uma
denúncia eloquente do inaceitável desajuste que separa os
brasileiros pela renda e requerem a urgência de medidas para
enfrentá-lo sob pena da desigualdade minar a confiança e as
energias da sociedade nacional no esforço de construção do País.
AGÉLIO NOVAES

ELIFAS ANDREATO

ELIFAS ANDREATO
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