Cada Homem É Uma Raça

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Cada Homem é uma Raça (Mia Couto)

1. A Rosa Caramela
Acendemos as paixões no rastilho do próprio coração. O que amamos é sempre chuva, entre
voo da nuvem e a prisão do charco. Afinal, somos caçadores que a si mesmo azagaiam. No
arremesso certeiro vai sempre um pouco de quem dispara.(p.13)
Um conto triste, lírico. A história é de uma mulher misteriosa que enlouquece por ter sido
abandonada na porta da igreja. Ela tem o rosto lindo, mas o corpo é disforme, corcunda,
motivo de burla desde criança. A falta de amor mata sim, se não matar o corpo (que às vezes
acontece), faz morrer a alma ou o que for, mas mata. O final não é tão surpreendente, mas
nem por isso o conto deixa de ser bom.
2. O apocalipse privado do tio Guegê
– Pai, ensina- se a existência.
-Não posso. Eu só conheço um conselho.
– E qual é?
– É o medo, meu filho. (p. 27)
Um homem recorda a sua infância, ele foi abandonado pelos pais ainda recém- nascido e o
seu tio Fabião Guegê o toma para criar. O tio nega os valores tradicionais de família, mas
ainda assim acolhe uma outra sobrinha, Zabelani, da idade do menino. O tio é cheio de
mistérios, soldado da milícia, sempre ausente.
A melhor família qual é? São os desconhecidos parentes de estranhos. Só esses valem. Com
os outros, intrafamiliares, nascemos já com dívidas. (p.36)
O jovem casalzinho apaixona-se, têm relações sexuais e o tio manda a menina embora. O
homem mesmo sendo soldado, ensina e ordena que o menino a roube. O sobrinho faz muitas
maldades, aprende. Cresce, vira também soldado e ladrão, como o tio. “Os amores
enfraquecem o homem”, diz o tio. Esse é um conto triste, trágico, que faz pensar no drama
das relações familiares. Às vezes é melhor estar sozinho.
3. Rosalinda, a nenhuma
É preciso que compreendam: nós não temos competência para arrumarmos os mortos no
lugar eterno (p. 49)
Esse conto é sobre a viúva Rosalinda, que engordou por desleixo, esqueceu de si mesma
depois da morte do marido e fica mascando “mulala” (uma raíz que deixa a boca alaranjada).
Eu não gostei de uma comparação que Mia colocou na boca do seu narrador sobre a
obesidade feminina, compara essas mulheres com a calma bovina, como se fossem obesas
por gosto, como se não as incomodasse, nem mesmo a vida as incomoda, como se a
obesidade também tirasse a capacidade de desacordo com as coisas da vida, a gordura traz o
comodismo, o que é muito distante da verdade. Se ele falasse só de Rosalinda, tudo bem, mas
generalizou:
As mulheres gordas não zangam a vida: fazem lembrar os bois que nunca esperam tragédias.
(p.51)
Literatura serve para muita coisa e para isso também, para indignar. Quanta gente deve
pensar assim como esse narrador, não é? Não confundam o narrador da história com o Mia
Couto, a voz do narrador é fictícia, não é o escritor.
Rosalinda carrega infinitas tristezas, a morte de todos os parentes, está sozinha, faz visitas ao
cemitério num clima de muita tristeza. O marido falecido era alcoólatra, mulherengo e batia
na mulher. Jacinto nem a chamava pelo nome certo, ela era Lauridinha, Laurinda, a outra, que
apareceu no dia da morte do homem e ainda teve que disputar o túmulo de jacinto com a
outra, a Dorinha. O marido dizia:
– Teu nome, Rosalinda, são duas mentiras. Afinal, nem rosa, nem linda. (p.54)
A submissão e o desejo de ser amada de Rosalinda a fez aguentar tudo. O amor que não é
amor, é outra coisa nem menos saudável. Rosalinda encontrou uma forma inusitada de
vingança e foi aí que passou a ser nada mesmo.
4. O embondeiro que sonhava pássaros
Pássaros, todos os que no chão desconhecem morada. (p. 61)
O vendedor de pássaros não tem nome, é só o “passarinheiro”. Os colonos do lugar colocam
medo nos filhos, plantando desconfiança em relação à alegre presença do vendedor, o
chamam de “preto” despectivamente, dizem que ele “suja o bairro”. Tiago, um menino
sonhador, desobedece às ordens do pai e vai ver o passarinheiro, que traz aves de infinita
beleza. Os portugueses incomodados com a presença feliz do negro, como ele se atreve a
existir?! O homem mora num tronco de árvore, um embondeiro, dizem, tem poderes
sobrenaturais; gaita do homem, também. O velho passarinheiro é espancado e preso. Seu
crime? Ser negro, simples e feliz. O final de Tiago é um poético triste final.
5. A princesa russa (p.73)
Um conto racial sobre a desigualdade entre negros e brancos. Essa história começa com uma
confissão sobre o passado numa igreja. Uma russa chamada Nádia chega na vila de Manica,
uma princesa que chega com o marido Iuri. O marido compra umas minas de ouro, esperando
ficar rico. O confessor é um empregado coxo e negro do casal, Duarte Fortin. A princesa
sempre reclusa na sua casa cheia de luxos e o marido nas minas. Um dia ela visita as
instalações onde dormem os empregados e fica horrorizada com a pobreza. A mina desaba,
Fortin e os outros empregados da casa foram ajudar no resgate. Fortin desiste, não aguenta
assistir aos corpos mutilados. A princesa deixou seu verdadeiro amor, Anton, na Rússia e
adoece. Delirando, a russa pede a Fortim que a leve à estação para buscar Anton. Fortin
deseja a princesa, sonha com ela, desvia o caminho para a beira do rio, quer se fazer passar
por Anton e a deixa ali, deitada, na beira do rio. O conto é fantástico, um dos mais
impressionantes.
6. O pescador cego
O barco de cada um está no seu próprio peito. (Provérbio macua) (p.95)
Eu tenho que reproduzir o primeiro parágrafo que dá o tom do texto inteiro, veja a beleza da
escritura existencialista de Mia Couto:
Vivemos longe de nós, em distante fingimento. Desaparecemo- nos. Porque nos preferimos
nessa escuridão interior? Talvez porque o escuro junta as coisas, costura os fios do
disperso.No aconchego da noite, o impossível ganha a suposição do visível. Nessa ilusão
descansam os nossos fantasmas. (p. 97)
Esse conto é todo bonito e triste, daqueles que encolher o coração. É a história de um
pescador, Maneca Mazembe, que ficou cego de uma maneira escabrosa, arrancou o próprio
olho com uma faca e o espetou num anzol para poder pescar em alto- mar e poder comer. A
fome enlouquece. Um olho por um peixe! A normalidade na família de Maneca era o
machismo com a mulher Salima, que sentiu até falta do marido quando deixou de surrá- la.
Maneca não admitia que Salima saísse para pescar agora que ele já não enxergava.
Muitas vozes, afinal, só produzem silêncio. (p. 97)
7. O ex- futuro padre e sua pré- viúva
A vida é uma teia tecendo a aranha. Que o bicho se acredite caçador em casa legítima pouco
importa. No inverso instante, ele se torna cativo em alheia armadilha. Confirma- se nesta
estória sucedida em virtuais e miúdas paragens. (p.107)
O menino Benjamim Katikeze vivia na igreja, nem queria brincar, era um aprendiz dedicado,
queria ser padre. Cresceu e aparece Anabela, “anabelíssima”. Ela não queria nenhum outro,
só o recatado Benjamim. Ela dava em cima do moço, mas ele resistia sob os olhos incrédulos
dos homens da cidade. O pai da moça, Juvenal, foi remediar a situação e bateu na porta de
Benjamim para marcar a data do casamento. Casaram. “Ele maridou- lhe, mas não exerce a
soberania.” Xiiiiiii! Será feitiço?
8. Mulher de mim
O Homem é o machado; a mulher é a enxada. (Provérbio moçambicano)
Esse é o conto mais hermético e místico, acontece num mundo paralelo, onírico, o mundo dos
mortos e dos vivos que formam “uma só tela”. Um homem que sonha e encontra- se uma
mulher que quer nascer nele. A reencarnação?
9. A lenda da noivo e do forasteiro
Eis o meu segredo: eu já morri. Nem essa é a minha tristeza. Me custa é haver só uns que me
acreditam: os mortos. (p. 131)
Um forasteiro chega com seu cachorro numa terra distante e provoca muita desconfiança nos
locais, o intruso passa a estar na boca de todos. O cão não late, pia e dizem solta uma baba
verde, ácida. Começaram a desaparecer coisas no lugar e os moradores acharam uma solução
inusitada para resolver o problema com o estrangeiro. Jauharia serviu de oferenda ao
forasteiro, só uma mulher bela poderia acalmar o forasteiro, pensaram. Ela era noiva de
Nyambi. O conto possui um tom de lenda, sobrenatural, a noiva sumiu e, dizem, foi o
estrangeiro que a sorveu, quando ela transformou- se em água.
10. Sidney Poitier na barbearia de Firipe Beruberu
Império: em pé, rio a bandeiras despregadas. (p.147)
A barbearia de Firipe fica debaixo de uma árvore. O barbeiro é boa praça, adora distribuir
“dákámaus” (apertos de mãos), sempre sorridente e se gaba de já ter cortado cabelo fino de
branco. E os amigos não acreditam que ele é um barbeiro de elite. Firipe mostra um postal de
Sidney Poitier e diz que foi cliente seu. E os amigos continuam sem acreditar, como é que um
moço americano e rico iria numa barbearia dessas? O conto inteiro passei sorrindo, mas no
final, um murro no estômago.
11. Os mastros do Paralém
Só um mundo novo nós queremos: o que tenha tudo de novo e nada de mundo. (p. 165)
Constante Bene e seus filhos, Chiquinha e João Respectivo, estão presos na cabana em casa
há dezessete dias por causa da chuva. São caseiros de um sítio nas montanhas, Paralém,
chamam assim o lugar, pois têm medo de ultrapassar o outro lado da montanha. Passa um
mulato, só passou, não pediu abrigo. O homem é um guerrilheiro. O pai (Contante Bene) teve
um mau presságio que mais tarde se confirmou. O pre- julgamento que causa injustiças.

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