Prolegc3b4menos para Um Possc3advel Tecnoxamanismo
Prolegc3b4menos para Um Possc3advel Tecnoxamanismo
Prolegc3b4menos para Um Possc3advel Tecnoxamanismo
Muita gente tem ideia do que tecnoxamanismo significa. Essas ideias são genéricas e apontam para
alguma coisa entre ciência e religião, ou tecnologia e êxtase. Eu prefiro apresentar isso como uma
questão em processo de construção. Um desafio ao qual todos estamos lançados hoje em dia, e para
o qual precisamos encontrar possibilidades.
Esse texto abarca um pequeno número de conceitos ecológicos, antropológicos e filosóficos, que
vou tentar elencar de forma clara, apesar disso tudo estar imerso em um nevoeiro. Trago como
referência pensadores como Viveiros de Castro, Bruno Latour, Fabián Ludueña, entre outros. É
importante salientar que o conceito é aberto, que tem muita gente pensando isso em vários outros
sentidos, e que esse texto é somente um esforço de trazer alguns subsídios para colaborar nesse
grande entrave entre duas forças aparentemente antagônicas.
* Fabiane M. Borges é Doutora em Psicologia pela PUC/SP, atua como psicóloga, artista, ensaísta, organiza eventos
relativos a arte e tecnologia, arte e movimentos sociais, é produtora cultural, escreveu dois livros Domínios do
Demasiado (Hucitec/2010) e Breviário de Pornografia Esquizotrans (ExLibres 2010), organizadora de dois livros
com a rede de mídia, arte e tecnologia Submidialogia (Ideias Perigozas 2010) e Peixe Morto 2011). Tem uma
coluna esporádica na revista Outras Palavras: http://outraspalavras.net/author/fabianeborges/ Blog:
http://catahistorias.wordpress.com - e-mail: catadores@gmail.com
1- TRAGÉDIA GUARANI KAIOWA
Começo pela apresentação de uma tragédia atual. Falo aqui de uma comunidade de 12 mil
índios Guarani Kaiowa, da aldeia Bororo situada no Mato Grosso do sul, na cidade de Dourados. As
terras dadas aos guaranis kaiowas por parte do governo brasileiro durante as décadas anteriores,
virou terra de disputa durante a ditadura militar, essas áreas indígenas começaram ser negociadas
entre Estado e empresários do campo, invadidas pelo agronegócio, destruídas pela monocultura,
cercadas de arame enfarpado, e eles começaram a perder Terra significativamente, ou serem
realocados.
Entre os kaiowas é contabilizado enorme índice de mortalidade que ocorre nas lutas entre
índios e brancos, com a desnutrição, o alcoolismo, a drogadição em excesso, mas o que assusta
indígenas e indigenistas ainda é o número alarmante de suicídios. Não sei se a palavra epidemia é a
melhor para qualificar práticas de suicídios em grande número (no final da década dos 2000 a base
era de cerca de 50 a 60 suicídios por ano). A maioria dos praticantes do jejuvy (morte por
enforcamento ou sufocamento) são adolescentes - eles representam uma porcentagem grande
dentro da comunidade.
Vou continuar chamando de epidemia de suicídios essas mortes, numa tentativa de deixar
bem claro que a mesma Xawara que afeta as terras yanomamis, é a que mata os Guaranis Kaiowas,
já que xawara quer dizer epidemia, doença produzida pela fumaça do ouro, o metal do
desenvolvimento.
Quando estávamos lá em 2008, o diretor chileno criado na Itália Marco Bechis estava
dirigindo o filme “Terra Vermelha”. No filme ele colocou pessoas da própria aldeia como atores,
inclusive as lideranças políticas. Recomendo todos a verem, porque é um filme interessante, roteiro,
imagens, é uma ficção documental, um dos grandes filmes sobre índios no Brasil. O filme explora a
questão da luta pela Terra e os suicídios, a complexidade da vida Guarani que hoje em dia habita
entre a cultura indígena e a cidade dos brancos, acompanha a iniciação de um jovem no xamanismo,
trabalha bem as crenças que permeiam os suicídios entre outras coisas. O filme tem malícia, e
apresenta diversas estratégias Guaranis, de sobrevivência, relação com o mercado, sexualidade entre
índios e não índios, é um filme importante dentro da filmografia dirigida ao assunto indígena.
1 Texto sobre esse assunto de Verenilde Pereira e Fabiane Borges: Guaranis: do jejuvy à palavra recuperada
https://www.diplomatique.org.br/acervo.php?id=2473
Um dos principais protagonistas do filme, Ambrósio Kaiowa, morreu assassinado em
dezembro de 2013. Seria por que o filme aos poucos foi ganhando popularidade? Porque Ambrósio
se tornou conhecido como ator e por isso com maior poder de convencimento e barganha na luta
pela terra? Mais empoderado? Não se sabe se foi essa a razão definitiva da sua morte. As razões não
são muito claras, mas isso representou uma perda enorme para os Guarani Kaiowa e seus
apoiadores.
2- ALDEIA MARACANÃ
Conjuntamente a esta grande comoção nacional em apoio a tragédia Guarani, que fez todos
trocarem seus nomes, ainda em 2013, a Aldeia Maracanã no Rio de Janeiro começou sofrer ordens
de despejo, por ser alvo do interesse do governo e empresários. A copa do mundo para acontecer
precisa obedecer os padrões da Fifa e isso se junta a uma onda de gentrificação dos grandes centros
urbanos no mundo todo, cidades voltadas para os interesses do mercado e não das pessoas. Se
estabeleceu então um grande conflito entre estado e ativistas pela posse da Aldeia Maracanã.
A aldeia tem 150 anos de história, foi doada primeiramente pelo Duque de Saxe para ser um local
de estudos das sociedades indígenas e sementes. Logo se tornou a primeira sede do SPI (Serviço de
Proteção aos índios), e em 1953 se tornou o primeiro museu do índio. Em 1978 o museu foi
transferido para Botafogo no Rio de Janeiro, e aos poucos o antigo museu desativado começou a ser
ocupado por índios de várias etnias do Brasil e América Latina, e se tornou a Aldeia Maracanã. Em
2013 foram contabilizadas 17 diferentes etnias vivendo na aldeia.
Ao invés do Estado apostar na diferença cultural, na diferença do Brasil em relação aos outros
países, e investir dinheiro e produzir valor sobre o fato de possuir “ainda” povos indígenas em seu
território, alimentando com isso um outro turismo, uma visão mais ecológica e mais democrática,
ele prefere apostar nos padrões da FIFA, oferecendo aos índios dinheiro para saírem da Aldeia, ou
um sítio longínquo, fora da cidade, que não tem história pregressa nem outra relação qualquer com
esses índios, nem permite sua sobrevivência.
Para muitos dos índios e apoiadores da Aldeia Maracanã, ter um espaço multi-étnico indígena, num
grande centro como Rio de Janeiro, fortalece as bases culturais do próprio povo brasileiro, assim
como aproxima a sociedade civil, os jovens, os estudantes, da história do Brasil a partir de um outro
prisma, para além do prisma da colonização. Muitos jovens frequentadores da aldeia mudaram
radicalmente seus modos de pensar o mundo e atuar na vida, a partir dos rituais, das danças, das
músicas que conheceram na Aldeia, experimentaram processos de trabalho coletivo, colaboração
inter-étnica, um outro significado de tempo e conexão com a magia3.
Eu trago esses dois exemplos, dos Kaiowas Guaranis e da Aldeia Maracanã, para evidenciar duas
3 Um vídeo interessante que trabalha bem a ideia da luta pela Aldeia Maracanã e o envolvimento dos jovens urbanos
com a questão indígena é o “História da Aldeia Maracanã, de Cabral a Cabral: http://www.youtube.com/watch?
v=0W5BVt2N6uo
tragédias. De um lado, supostamente, os índios que querem continuar no campo, dentro da sua
etnia fechada, preservando costumes e ritos, investindo na manutenção da terra e da natureza,
lutando pela terra dos seus antepassados (como uma parte considerável dos Guaranis Kaiowas), do
outro os que querem se misturar com o urbano, mas para fazer um local de valorização e
aprofundamento das culturas indígenas no Brasil, abrir um espaço de referência entre campo e
cidade, construindo formas de sustentabilidade a partir dos ensinamentos ancestrais, produção de
artesanato, conhecimento das sementes, alimentação, vestuários, entre outros4.
Bruno Latour5 fala dessa guerra de valores entre os terrenos e humanos, dos comprometidos com a
Terra e dos comprometidos com a modernidade. É uma guerra de valores sobre qual mundo se quer
viver. Uma minoria ecológica considerada fanática e catastrofista de um lado e do outro lado os
adoradores de Xawara, os amantes do metal, os que garantem nossa atual idade geológica que é o
antropoceno, o fim da biodiversidade, das florestas, dos rios, que promovem a tatuagem humana por
toda a superfície da Terra.
A tragédia Guarani e a tragédia da Aldeia Maracanã é a tragédia dos terrenos. É tragédia porque se
configura como uma morte heróica, devido os anos de luta e resistência, mas que perde
constantemente essa luta. São os amantes da Terra que perdem para os adoradores do
desenvolvimento a qualquer custo. Tanto na história dos Guaranis Kaiowas, quanto na da Aldeia
Maracanã existe um traço dessa guerra que Latour fala. De um lado esses pobres, sujos,
vagabundos, preguiçosos, demorados, subjetivistas, infantis, hippies, loosers, perdedores,
fracassados, espiritualistas, bárbaros. De outro os urbanos, comprometidos com a modernidade,
com o crescimento, desenvolvimento, enriquecimento, segurança, produtividade, objetividade,
expansionismo. Esses lados opostos apesar de não serem muito claros ou específicos, disputam
modos de existência e formas de relação com a Terra e com a Vida. Um é a antítese do outro, e não
precisamos ampliar essa imagem demasiadamente, para vermos a desproporção entre ambos os
lados.
4 Vale aqui pensar em outros exemplos de espaços indigenas em centros urbanos como o caso do Santuário dos Pajés
em Brasília. http://santuariodospajes.blogspot.com.br/
5 Cfe. Bruno Latour - War and peace in an age of
ecological conflicts
Paris
- Lecture prepared for the Peter Wall Institute
Vancouver
-2013 http://www.bruno-latour.fr/sites/default/files/130-VANCOUVER-WARandPEACE_0.pdf
4- XAWARA E A QUEDA DO CÉU
Agora vou para outro grupo indígena, os Yanomamis. O xamã Yanomami Davi Kopenawa fez o
livro “ A Queda do Céu” (The Falling Sky/2013 6). Nesse livro ele mostra o que tem sido falado
entre os xamãs yanomamis, quando se reúnem para conversar sobre o que vai acontecer com o
mundo. Ele fala no livro da Xawara (doença ou epidemia). Aqui aparece a palavra epidemia de
novo, e por isso eu disse acima que era uma palavra importante. A epidemia de suicídios guarani é
provocada também pela Xawara. Ela é uma espécie de coisa viva, de entidade, de força de
destruição. A Xawara7 é a fumaça que sai do ouro quando esse é retirado da Terra. Ela é a fumaça
que sai dos metais em geral. Para os Yanomamis o ouro e outros metais são o esqueleto da Terra. Se
isso é retirado de dentro da Terra, ela perde sua sustentação estrutural e por isso pode vir a afundar.
Os Yanomamis apesar de terem uma condição mais privilegiada do que a dos guaranis kaiowas, ou
dos índios urbanos da Aldeia Maracanã, pois vivem em uma grande reserva entre Roraima,
Amazonas e Venezuela, que é maior que a Holanda, eles não conseguem conter a Xawara. Aquela
região é rica em minérios e tem muito ouro. Lá é proibido o garimpo, mas não existe maneira de
6 Davi Kopenawa and Bruce Albert – The Falling Sky – Ed. Harvard University Press. USA/2013
http://www.survivalinternational.org/ultimas-noticias/9706
7 Ver livro de Laymert Garcia dos Santos - “Amazônia transcultural – xamanismo e tecnociência na ópera”. Ed. N-1,
SP/2013
controlar toda a fronteira da reserva. Se o governo tira a estrutura da mineração de um local, logo
em seguida ela se restabelece em outro canto, pois geralmente não entra na contabilização do
Estado, o futuro dos garimpeiros, sina ou sorte, o que é muito importante, a vida no risco e com
possibilidade de ganhos, se não é no ouro, onde a cultura que envolve o garimpo pode sobreviver?
A questão é complexa, mas do ponto de vista da saúde da floresta e dos povos da floresta, o
garimpo é tão prejudicial quanto a monocultura e os negócios agropecuários. Seus estragos vão
muito mais longe do que os locais onde são produzidos, sujam rios, matam peixes, derrubam
floresta e produzem contágio de doenças através da fumaça invisível que continua se espalhando e
atacando o peito dos índios, dos brancos, dos elementos e do céu.
Davi diz que Xawara, a epidemia, está na aldeia e está levando seu povo ao fim. Hekurabe são os
espíritos auxiliares dos pajés. Eles são quem sustentam o peito do céu, mas até o peito do céu já está
infectado pela Xawara. Quando um pajé morre os Hekurabe ficam muito bravos, e tem morrido
muitos pajés. Os pajés sustentam o céu para brancos e índios. Quando a última árvore cair e não
existir mais pajé, não vai haver Hekurabe pra sustentar o céu, ele vai partir ao meio e vai começar
cair coisas sobre a Terra, a Terra que já não tem mais sua antiga estrutura também vai partir abrindo
enormes buracos onde vão cair brancos e índios. A humanidade vai acabar, como já aconteceu
outras vezes.
Eu quero insistir nessa profecia, não como palavras de um xamã exótico que não sabe se expressar
filosoficamente, mas como uma sabedoria que aponta para uma situação concreta.
Ver para os yanomamis significa sonhar, e Davi diz, os brancos só sonham consigo mesmo. Não
conseguem sonhar com outra coisa. Ou seja, não conseguem ver o que os outros elementos da
natureza veem, só estão preocupados consigo mesmos. Viveiros chama isso de espécie narcisista,
tão auto-centrada que não consegue nem sonhar com outra coisa que não seja consigo mesma. Os
brancos só conseguem sonhar consigo mesmos. Dormem mas não veem nada. Por isso acham que o
que os índios falam é falso ou é mentira, pois não enxergam nada.
Existem dois pontos fundamentais nessa profecia: 1) A humanidade vai acabar, como já aconteceu
outras vezes e 2) Os brancos só sabem sonhar consigo mesmos.
Viveiros nos conta que o ameríndio tem um pensamento predatório, ele sabe-se predador de alguns
animais, e sabe-se caça de outros animais, então ele faz parte de um circuito, não é o dominador
universal. Afora isso existe uma perspectiva de horizontalidade em relação a outros elementos, a
outras matérias. O pensamento ameríndio nômade tem um pensamento ecológico, não suporta a
escravização dos elementos, o que é determinante na construção de civilização, ao invés de
escravizar os elementos em formatos categóricos (prédios, templos, cidades), eles utilizam os
elementos para suas necessidades e depois partem, para que a natureza se reaproprie deles. A
matéria serve por um tempo e depois ela volta para a natureza, por isso as constantes mudanças de
lugares, as diásporas, quando voltam a natureza já tomou conta do local novamente. É uma
metodologia ecológica, uma tecnologia de co-existência com a biodiversidade. Os mortos estão
entre nós, assim como outros elementos invisíveis. A mãe morta pode ser a pedra ou o peixe. Não
existe superioridade em relação a morte nem à matéria.
8 Cfe. Eduardo Viveiros de Castro. Metafisica Canibales. Ed. Kats. Espanha. 2010
Continuando com Viveiros, a diferença entre a perspectiva desenvolvimentista e a perspectiva
ameríndia é que a primeira pensa que existe uma natureza e várias culturas, enquanto a segunda
pensa em várias naturezas e uma cultura. A única cultura que existe pro índio é a humana. Tudo que
existe é humano. A pedra, a lua, o rio, a onça, os mortos, isso tudo é humano mas usa uma
roupagem diferente, se comportam diferente e tem pontos de vista diferentes sobre a realidade. Um
encontro xamânico para os índios pode significar a mesma coisa para o encontro na lama das antas.
Elas estão concentradas sonhando e aprendendo, como os índios estão quando estão em ritual, cada
bando faz seus próprios rituais.
Logicamente se vamos aprofundar as diferenças de cada bando, vamos encontrar pesos diferentes
para cada espécie e uma cosmogonia própria para cada uma delas, mas o que importa aqui é
entender que essa base humana que todos os seres compartilham, também os conectam, e os
mantêm em uma zona de comunicação constante. Essa compreensão é muito importante: que por
traz de uma natureza Pedra, jaz uma cultura humana, uma base de comunicação inter-espécies.
O xamã é uma espécie de diplomata que tem a habilidade de frequentar diversos desses pontos de
vista, entrar em contato com todas essas roupagens, atravessar as roupagens e frequentar o ponto de
vista dos mais variados seres. Entre ele e esses variados seres pode haver um pacto, uma conivência
mas também repelência. Ele é capaz de sair do seu ponto de vista, ver-se de fora, ver os índios da
sua tribo do ponto de vista da árvore, do ponto de vista dos pássaros, da lua, das estrelas, de uma
matéria ou um objeto. Essa habilidade faz com que o xamã tenha um conhecimento mais profundo
sobre a existência das coisas do que a maioria dos índios, porque aprimorou essa técnica, treinou
para isso, e é por isso que sua loucura, sua esquizofrenia, sua variação perceptiva é considerada uma
sabedoria. Ele volta para contar das coisas que viu e ouviu a qualquer momento. Conforme a
potencia do seu treinamento pode estar em mais de um ponto de vista ao mesmo tempo. Ele pode
vir a encarnar em outros seres. É uma habilidade que ele tem porque trabalhou muito para
desenvolver. São técnicas de êxtase, de sensibilidade, de comunicação inter-espécies, que o faz
perceber o que está por traz das coisas, das aparências, reatar sua base humana com a base humana
de qualquer outro elemento. Mas também os xamãs de cada bando tem o poder de fazer isso com
ele, por isso sofre encarnações, é possuído. Nessa imagem abaixo dá para ver como os pintores
indígenas representam a encarnação do pajé: deitado, de costas, como se estivesse sendo levado no
corpo dos animais.
(Desenho de Feliciano Dessana, publicada no livro de Luiz Lana (Antes o Mundo não
existia – 1980, doada por Larissa Menendez, antropóloga pesquisadora da cosmogonia Desâna)
Depois de percebermos com mais profundidade o xamanismo como tecnologia, pode ser que
consigamos achar indícios para pensar o tecnoxamanismo:
1- Xamanismo é uma tecnologia que permite ao xamã sair de si mesmo e frequentar pontos de
vistas diferentes do seu.
Jeremy Narby, o antropólogo canadense que cresceu na Suíça e pesquisou muito os conhecimentos
medicinais indígenas do Peru, explorou bastante a ideia da alucinação como conhecimento. Ele
conta no seu livro Cosmic Serpente 9 que foi para o Peru estudar plantas com os Ashaninkas, ele
sempre perguntava como eles sabiam tudo aquilo sobre plantas, eles respondiam sempre a mesma
coisa, a planta que ensina. E foi preciso ele tomar muita ayahuasca para perceber que os professores
da floresta era a própria floresta, que existia uma inteligencia viva em tudo que existia ali, coisas
que coexistiam, conviviam, que tinham subjetividade e inteligência. A floresta e a vida tinham um
networking próprio, negociavam, faziam gambiarras, se estruturavam e reestruturavam. O índio em
meio a tudo isso é mais um participante da tremenda interação de seres vivos.
9 Cfe. Jeremy Narby. “The Cosmic Serpent: DNA and the Origins of Knowledge”. Ed. Georg. França/1998
10 Palestra de Eduardo Viveiros de Castro onde ele desenvolve a ideia de que os índios foram brancos no passado, mas
fugiram para não serem mais. “Filosofia, Antropologia e o Fim do Mundo” - https://vimeo.com/78892524
11 Cfe. Fabian Ludueña Romandini. Comunidade dos Espectros; I Antropotecnia. Ed. Cultura e Barbárie.
Florianópolis SC/2012-2013
pressupõe uma zoopolítica, que é o controle e a domesticação da animalidade, que no pensamento
branco, seria o lugar de onde o humano teria surgido.
Se a gente insistir nesse conceito de Ludueña, podermos dizer que na visão dos ameríndios, a
separação entre eles e os brancos tenha surgido exatamente aí nesse momento, quando os humanos
começam a inventar suas antropotécnicas de civilidade e eles então se afastam, pois isso significava
aquilo que a natureza não queria ser. Alguns grupos indígenas pensam que seus antepassados
fugiram dessas esteiras de fabricação de humano, se afastaram e as negaram, porque elas
representavam o fim do mundo. E ainda dizem, já aconteceu antes, acontecerá de novo.
Quando então vem a tona a profecia dos pajés yanomamis, proferida pela boca de Davi Kopenawa,
que diz que a humanidade vai acabar, como já aconteceu antes, e vai acontecer de novo eu me
pergunto, de quantos mundos estamos falando, e quem são os nossos ancestrais? Esses índios dizem
que os ancestrais deles são os homens dos quais eles se afastaram, junto com a natureza. Existe uma
inimizade ontológica dos índios com os brancos, que a princípio não tem a ver com a evolução das
espécies, é quase o contrário disso, já que, e agora eu estou especulando livremente, o que os
brancos chamariam de evolução eles chamariam de uma tendência de certos grupos a se sobrepor
sobre todos os outros seres. Ou seja, não é evolução, é outra coisa, talvez uma perspectiva
exploratória.
Mas para efeito de conversa, eu pergunto: Como os ameríndios relatam tão bem o fim do mundo?
Porque dizem com tanta certeza que isso já aconteceu antes? Do que exatamente eles tiveram que se
afastar e fugir? Dos colonizadores, ou foi antes disso? Para além da especulação não temos muito o
que fazer, já que se trata de sociedades sem escrita na sua maioria. Os yanomamis ainda dizem, os
brancos escrevem sobre as copas das árvores seu pensamento. Nós escrevemos sonhando. Os
brancos precisam escrever porque não sabem sonhar, só sonham consigo mesmo e com suas
mercadorias.
Mas os brancos só sabem sonhar consigo mesmos. É exatamente por não conseguirem ver o fundo
humano em tudo que existe, que pensam só em si mesmos. São narcisistas, egocêntricos, arrogantes
e inconsequentes. Incapazes de ouvir outras vozes que não sejam a sua própria. Do ponto de vista
ameríndio as palavras ver e sonhar são facilmente trocadas. É no sonho que se aprende coisas, se
conhece mistérios. Essa base comum humana possibilita a compreensão geral, mas é preciso sonhar
para ver, sonhar dormindo, sonhar com os enteógenos e sonhar acordado. O sonho é uma tecnologia
fundamental para os ameríndios, deve ser pensada com uma técnica de emancipação, muito
diferente das antropotécnicas civilizatórias.
Para pensarmos o tecnoxamanismo, é indispensável compreender sua associação com o lixo, com a
sujeira, com o excedente, com o que sobra. Xamanismo sujo12 então surge como um conceito
complexo, que a princípio pode parecer ofensivo para os que pensam xamanismo como algo
sagrado, mas que faço um esforço aqui para mudar essa ideia.
No livro Metafísicas Canibales, Viveiros fala da relação entre profecia e xamanismo horizontal,
assim como sacerdócio e xamanismo vertical. Ele tenta criar uma aproximação entre o xamanismo
ameríndio e a religião judaico-cristã. A grosso modo o xamanismo horizontal (profecia) é um estado
de presença e pertencimento a natureza e ao mistério das coisas, acontecia antes da chegada dos
colonizadores, onde os índios e evidentemente os xamãs teriam uma relação equilibrada com o
conhecimento, pois este seria promovido e expresso ao mesmo tempo, de forma intuitiva, aberta,
sem contenção e sem promoção de poder, como era o caso dos profetas, que guiavam os povos
mediante suas conversas com deus, anjos, intuições, vidências. O xamanismo transversal, começa
acontecer com a chegada do homem branco, que reconfigura o poder do pajé, constrói a ideia de
identidade pessoal, produz hierarquia entre sujeitos, e sobrepõe os conceitos imperiais e
monoteístas sobre as crenças indígenas, verticalizando o papel do humano sobre todas as coisas, e
constituindo um lugar de vigilância, de lei sobre o conhecimento e a moral. Assim como é o caso do
sacerdócio, que também teve esse papel nas religiões judaico-cristãs, de estabelecer o controle sobre
o povo, as leis, as hierarquias dentro da religião.
Segundo esse raciocínio, o xamanismo transversal seria uma mistura disso tudo, entre profecia e
sacerdócio, xamanismo e sacerdócio, politeísmo e liturgias católicas, políticas de humanização e
rituais com ervas de poder, entre o politeísmo e os 10 mandamentos, entre os padres e os cultos
africanos, entre essas crenças que ficam pelo meio do caminho e as dissidências cristãs. A pajelança
ameríndia, atravessada por tudo isso criou um estado sincrético, onde crenças ancestrais se
misturam às categorias teológicas.
Isto tudo mistura-se aos modos de vida transversalizados e sincretizados dos próprios brancos, as
festas pagãs, as orgias, os embriagamentos, os assassinatos, as armas de fogo, a construção de
cidades, a produção de lixo, as doenças, a miséria, as traições do império, a devastação da Terra, o
7- TECNOXAMANISMO
1) O tecnoxamanismo provém de uma lixeira de excessos, sobras, restos, sujeiras, misturas, ruídos,
processos descontínuos, xamanismos transversalizados, sincréticos, incorporações de ideias, de
culturas, antropofagias sociais, culturais, gambiarras, ideologias políticas atravessadas, garimpos
eletrônicos.
3) O tecnoxamanismo é sujo porque parte das lixeiras materiais e subjetivas dos humanos, mas isso
não significa subestimar a força do xamanismo, muito pelo contrário, significa atribuir poderes ao
lixo, para além da reciclagem industrial, que o organiza, separa, retém, explora o catador de lixo.
Mas atribuir poderes ao lixo exatamente porque é a partir dessas confluências miseráveis que nos é
possível perceber que tipo de espécie somos e daí dessa condição explícita, podemos então ampliar
alguns campos de convergência para nos transformarmos em algo mais interessante.
Referências Bibliográficas:
Eduardo Viveiros de Castro – A Inconstância da Alma Selvagem. Ed. Cosac & Naify – São Paulo/
2002
Fabian Ludueña Romandini. Comunidade dos Espectros; I Antropotecnia. Ed. Cultura e Barbárie.
Florianópolis SC/2012-2013
Jeremy Narby. “The Cosmic Serpent: DNA and the Origins of Knowledge”. Ed. Georg.
França/1998
Laymert Garcia dos Santos - “Amazônia transcultural – xamanismo e tecnociência na ópera”. Ed.
N-1, SP/2013
Luis Lana – Antes o Mundo não Existia: A mitologia Heróica dos índios Desâna Ed. Livraria
Cultura, SP/1980
Links:
Guaranis: do jejuvy à palavra recuperada, Fabiane Borges e Verenilde Pereira - Dourados MS/2008
https://www.diplomatique.org.br/acervo.php?id=2473
Fabiane Borges – Xamanismo Transversal, Sujo ou dos Ruídos – SEU (Semana Experimental
Urbana) Porto Alegre – 2012
http://www.youtube.com/watch?v=Hj3TOIesxPw
Filmes: