Envio - Revista Dos Tribunais10
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Palavras-chave: Mediação familiar judicial - Mediação familiar extrajudicial - Comunicação - Modelos de prática
Abstract: This article approaches family mediation as a new social practice in expansion in many countries. In
particular, it questions the specific models of family mediation in countries with different traditions and cultures as well
as Canada, France and Brazil. This study highlights the dominant models and their influence on the practices of
mediators. It identifies the main characteristics and practices of mediation that are recognized in Brazil and France, and
their effects on couples. The results indicate that extrajudicial mediation is more appropriate to the interviewed couples
for the following reasons: lies before court proceedings, even for those couples already undergoing a judicial mediation
or for those who were subject for a determination by the judge; develops a better communication between the couple;
obtains higher satisfaction rate from those who were benefited by it; is most recommended to other people; is not
imposed but rather perceived as an advantage for the management of conflicts.
Keywords: Family mediation - Legal family mediation - Extrajudicial family - Mediation - Models of practice -
Communication
Sumário:
1. INTRODUÇÃO
Nos últimos 10 anos a mediação familiar se estabeleceu em diversas sociedades como novo modo de gestão de
conflitos interpessoais, eficaz e humanizador, para solucionar conflitos familiares. Diversos países já inseriram esse
novel dispositivo em seus ordenamentos jurídicos, sobretudo no direito de família contemporâneo. O amplo
crescimento e a disseminação dessa prática em países com tradições e culturas diferentes, como Canadá, França e
Brasil, levaram-nos a examinar o seu desenvolvimento e as condições de sua aplicabilidade.
O escopo deste trabalho consiste em identificar os modelos de prática de mediação em matéria familiar e as
modalidades de sua inserção nos textos legais, bem como a efetividade da mediação extrajudicial. Na primeira parte
trataremos das formas existentes de mediação: judicial e extrajudicial.
Num segundo momento, abordaremos os modelos de mediação familiar na legislação canadense e na francesa e a
importância da mediação anterior a um procedimento judicial. Por fim, examinaremos, por meio dos resultados de uma
pesquisa exploratória, os efeitos da mediação familiar sob a óptica dos mediadores familiares franceses e brasileiros e
dos casais que se beneficiaram dessa prática social.
2. MODALIDADES DA MEDIAÇÃO
De maneira geral, coexistem duas formas de inserir a mediação nos ordenamentos jurídicos: a mediação denominada
judicial ou legal, e a mediação dita extrajudicial ou paraprocessual. Dependendo das tradições jurídicas e culturais de
cada país, privilegia-se uma ou outra modalidade. Segundo Mattei (2007), cada país tem suas próprias características,
e os sistemas socioeconômicos e culturais influenciam a escolha das modalidades de aplicação desse novo modo de
gestão de conflitos interpessoais emergente nas sociedades contemporâneas.
A mediação extrajudicial acontece anterior a um procedimento judicial, ou seja, antes de entrar com processo judicial
as pessoas se dirigem a um mediador, o qual atua como facilitador da comunicação, numa perspectiva de cooperação
e comunicação direta. O objetivo maior é a prevenção do contencioso, preparando, se possível um acordo. No caso
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de composição, a intervenção judicial acontece para efeitos de homologação e segurança jurídica. É importante
ressaltar que muitos conflitos ocorrem por falta de comunicação apropriada, tornando a intervenção judicial
desnecessária, pois a dissensão termina quando se restabelece a comunicação.
Por outro lado, a mediação judicial incide no processo já instaurado e em andamento. Diante de um litígio, o juiz
propõe que as partes envolvidas resolvam amigavelmente suas controvérsias com o auxílio de uma terceira pessoa,
imparcial e qualificada, denominada mediador. Mesmo dentro do espaço legal, a mediação é procedimento voluntário,
que não deve ser imposta, preservando-se a confidencialidade nos assuntos tratados. Habitualmente, as legislações
vigentes que tratam da mediação de conflitos levam em conta a vontade das partes de prosseguir ou não a mediação.
Nessa modalidade, o magistrado determina a mediação com o acordo das partes e designa um mediador que tem a
responsabilidade de controlar o desenvolvimento da mediação. O processo judicial é suspenso temporariamente por
prazo estabelecido em lei. Os acordos firmados por meio da mediação judicial são homologados por petição conjunta.
Caso não haja a composição, procedem-se os trâmites legais.
3. LEGISLAÇÕES RELATIVAS À MEDIAÇÃO DE CONFLITOS
3.1 O modelo canadense
No Canadá, especialmente na província de Quebec, em setembro de 1997, entrou em vigor uma lei instituindo no
Código de Procedimento Civil a mediação preliminar em matéria familiar (L.Q. 1997, c. 42). A lei prevê que os casais
com filhos, casados ou não, em instância de separação, de divórcio ou de revisão de julgamento e divergindo sobre
guarda de filhos, pensão alimentícia ou divisão de bens, inicialmente são obrigados a assistir a pelo menos uma
sessão de informação sobre o que é a mediação familiar. Apenas essa primeira sessão é obrigatória, respeitando um
dos princípios éticos desse novo modo de gestão de conflitos interpessoais, que é a voluntariedade (ÁVILA; Anaut,
2008). Após a primeira sessão de informação, caso haja concordância entre o casal, a mediação é subvencionada
pelo Estado, garantindo seis sessões gratuitas. Todavia, o tribunal pode igualmente exigir ou recomendar a mediação
às partes, durante ou depois do processo em trâmite.
Observa-se que o modelo de Quebec privilegiou esse modo de resolução de conflitos anterior à entrada de um
processo judicial, denominada “mediation préalable”, que acontece antes dos procedimentos ordinários, ou da audição
do juiz da demanda (Ávila, 2008). Trata-se de um modelo incitativo para que as pessoas usem essa nova prática
social.
Embora a legislação canadense favoreça a mediação extrajudicial, a legalização dos acordos é de responsabilidade
do magistrado, que assegura a sua conformidade com as normas jurídicas em vigor.
Em matéria de separação e de divórcio, a mediação de Quebec atua na perspectiva de humanizá-los, numa mudança
de paradigma de formas não contestatórias e adversárias de resolução de conflitos. Privilegia o princípio do agir
comunicativo (Habermas, 1987) e da responsabilização dos conflitantes na tomada de decisões. As pessoas são
levadas a inicialmente trabalhar a contenda por meio do diálogo, considerando primeiro as dimensões emocionais,
sociais e relacionais do conflito familiar e num segundo momento os aspectos jurídicos da separação conjugal.
3.2 O modelo francês
Na França, a Lei 95-125, de 08.02.1995, e o Dec.-lei de 23.07.1996, relativo à organização das jurisdições e
procedimento civil, penal e administrativo, determinam as condições de exercício das modalidades de prática da
conciliação e da mediação judicial. Por meio dessa legislação, o juiz pode recorrer legalmente a um mediador e prever
a mediação de modo geral, sem especificar o domínio de atuação. O art. 21 estabelece que o magistrado pode,
depois de obter o consentimento das partes, designar uma terceira pessoa para tentar compor o acordo e a mediação
pode ser proposta em todas as etapas do processo.
Essa lei prevê a remuneração do mediador e a confidencialidade do procedimento de mediação, e um decreto
especifica as modalidades de sua aplicação. De maneira geral, esse decreto diferencia a conciliação da mediação. No
que tange à mediação, o decreto indica a missão e a formação do mediador, o prazo e as condições de homologação
do acordo. A mediação pode ser confiada a pessoa física ou a uma associação que atua neste domínio.
Embora essa lei admita a possibilidade de o magistrado confiar a mediação a uma pessoa exterior ao Judiciário para
resolver conflito, ela apresenta limitações específicas em matéria familiar. Foi então, por meio das leis sobre a
autoridade parental em 2002 e da reforma do divórcio em 2004, que esse novo modo de gestão de conflitos foi
efetivamente legalizado e institucionalizado. Essas medidas legais introduziram o recurso à mediação familiar com o
objetivo não apenas de auxiliar a administrar as relações familiares no momento de separação, mas especialmente
como tentativa de apaziguar os conflitos relativos à educação dos filhos (Anaut, 2005).
Essas novas normas jurídicas privilegiam os acordos consensuais, e a mediação é prevista em lei sujeita a decisão do
magistrado. A obrigação de passar pelo mediador familiar só existe após a demanda judicial, com o processo já em
andamento.
Fazendo uma analogia entre o modelo canadense e o francês relativo à inserção da mediação familiar em seus
ordenamentos jurídicos, podemos observar que, contrariamente ao modelo canadense, a legislação francesa
privilegiou a mediação quando o litígio já foi instaurado e o juiz detém certo controle da situação. Por outro lado, o
legislador canadense acentuou preponderantemente a desjudicialização dos conflitos familiares. Essa constatação
corrobora as análises de Mattei (2007), quando o autor afirma que o sistema civil law, a exemplo da França, privilegia
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um modelo mais centralizado e controlado pelo Judiciário, enquanto o sistema de common law, como na Inglaterra e
no Canadá, prioriza um modelo menos centralizado.
Na Inglaterra, por exemplo, a Family Law Act (1996) optou pela mediação paraprocessual, mas apenas em caso de
assistência judiciária. Uma pessoa não pode ingressar com ação em juízo em matéria familiar sem ter tido inicialmente
um encontro com um mediador. A lei se aplica aos conflitos familiares em geral, não se restringindo a casos de
separação e de divórcio. No entanto, essa lei não se aplica a casos de violência familiar, proteção da infância, e
quando a outra parte já entrou com processo na justiça (Parkinson, 2004).
Observa-se que os modelos canadense e inglês optaram pela descentralização e pela não judicialização dos conflitos
privados. Contudo, se no Canadá a prática da mediação é subvencionada pelo Estado, contemplando todos os
cidadãos, na Inglaterra ela é disponível gratuitamente apenas para aqueles com direito a assistência judiciária.
Embora louvável, essa medida pode conduzir ao entendimento errôneo de que a mediação de conflitos é privativa das
classes menos favorecidas.
Em suma, as escolhas de inserção da mediação nos textos legais variam de um país para outro e dependem
notadamente dos objetivos estabelecidos pelo legislador. De um lado, numa perspectiva de desjudicialização dos
conflitos, é priorizada a mediação extrajudicial; de outro, exaltando a mediação judicial, é deixada ao magistrado a
decisão e a pertinência ou não de determinar mediação.
4. A EFETIVIDADE DA MEDIAÇÃO EXTRAJUDICIAL
Relatório sobre a modernização da justiça francesa de 20081 acentua sistematicamente o uso da prática da mediação,
recomendando, entre outras práticas, a obrigação de recorrer ao mediador familiar nas situações de alteração do
exercício de autoridade parental, anterior a uma decisão do tribunal, até então não prevista na lei de autoridade
parental. Essa medida é justificada pelo número exorbitante, mais de 70.000 por ano, entre as medidas de
modificação das modalidades de guarda e visitas ou de contribuição para educação e lazer das crianças. A comissão
propõe que essas demandas devem passar, inicialmente, pela via do diálogo com a ajuda do mediador familiar, antes
da apreciação do magistrado.
Ademais, o relatório recomendou que em todo o território francês fosse criado um dispositivo público e gratuito de
mediação familiar. Ainda que as Caisses d’Allocations Familiales disponham, dentro de certos estabelecimentos, de
tais serviços, a comissão sugeriu sua disseminação de forma extrajudicial, com apoio político e financeiro. O
documento oficial inspirou-se na experiência de Quebec, priorizando a mediação anterior à entrada em juízo. O
documento expressa que o exemplo de Quebec demonstra que, por meio de uma organização estruturada, esse novo
modo de gestão de conflitos pode existir de forma eficaz fora dos sistemas de justiça. A comissão recomenda,
enfaticamente, incentivar e desenvolver na França a mediação de forma extrajudicial.
Segundo o relatório, no Quebec, depois da instituição da lei preliminar da mediação em matéria familiar,
aproximadamente 11.500 casais recorreram aos serviços de mediação gratuita, e dois terços deles de maneira
extrajudicial. O número de processos familiares apresentados ao Tribunal Superior de Quebec, de que a mediação
familiar fazia parte, vem caindo desde que a lei entrou em vigor, passando de 38.758 em 1997 para 30.254 em 2007.
Ademais, a taxa de satisfação das pessoas que passaram pelo serviço de mediação atingiu expressivos 82%.
Por outro lado, o relatório revelou que a mediação judicial na França não resultou medida efetivamente eficaz. No que
tange à parte processual, a mediação não reduziu substancialmente as atividades jurisdicionais, como pretendiam os
juristas. Pelo contrário, houve acréscimo nos serviços cartorários. No mais, a mediação civil apenas foi determinada
pelos magistrados em 1,5% dos casos tratados nas instâncias superiores e 1,1% nas jurisdições de primeiro grau
(Guinchard, 2008). Esses resultados revelaram que a mediação judicial é geralmente subutilizada pelos juízes
franceses e não serve para preencher as lacunas do sistema judiciário, como haviam previsto legisladores e juristas.
Foi constatado que, para ter efeito real e eficaz, a mediação deve ocorrer antes de ajuizada a demanda.
As proposições do relatório tiveram o intuito de estimular o desenvolvimento da mediação paraprocessual na França,
permitindo sua maior visibilidade para o público e a otimização dos serviços de mediação.
Assim, como ressalta Highton e Alvarez (1999), a possibilidade de ter um procedimento eficaz e não necessariamente
judicial permite a diversificação das formas de resolução de conflitos e maior desjudicialização dos litígios.
Além da inserção da mediação familiar nos ordenamentos jurídicos contemporâneos, não podemos deixar de
mencionar o incentivo à mediação nas convenções internacionais, particularmente em matéria de conflitos familiares.
Dentre elas, destacamos a Convenção de Haia, que trata do procedimento civil do sequestro internacional de crianças
e, igualmente, da Convenção de Nova York no que se refere aos direitos da criança onde o Brasil é signatário de
ambos.
Ressaltamos, igualmente, a Recomendação n. R (98) do Conselho da Europa que estimula o uso da mediação
familiar para administrar os conflitos interpessoais nos litígios familiares. A recomendação é baseada nos seguintes
termos:
• o aumento crescente dos litígios familiares, notadamente no domínio da separação e do divórcio, as consequências
prejudiciais para as famílias e os custos sociais e econômicos para o Estado;
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• a necessidade de desenvolver vias de resolução consensuais dos litígios, no interesse de todos os membros da
família, especificamente das crianças;
• a necessidade de favorecer que as relações entre os membros da família se mantenham após uma ruptura conjugal.
Nesse mesmo sentido, a União Europeia publicou um livro sobre os modos alternativos de resolver conflitos [COM/
196, abril (2002)], no qual indica a mediação familiar como importante dispositivo de pacificação e de gestão de
conflitos, estimulando a mediação extrajudicial e a mediação em caso de revisão de julgamento a todos os Estados
membros.
5. OS EFEITOS DA MEDIAÇÃO FAMILIAR
Pesquisa exploratória e comparativa2 possibilitou avaliar os efeitos da mediação familiar sob dois aspectos: do ponto
de vista dos mediadores familiares e dos casais que passaram pelo serviço de mediação familiar.
5.1 Quanto aos mediadores familiares
Quase por unanimidade, os mediadores entrevistados acreditam que a mediação paraprocessual é mais eficaz e
conveniente para as pessoas com divergências e conflitos familiares do que a mediação judicial.
Dentre as inúmeras vantagens, foram enfatizadas: maior comunicação e colaboração entre os envolvidos, flexibilidade
no método e poder de decisão.
Os mediadores, particularmente os franceses, associaram essa modalidade de mediação aos princípios fundamentais
da democracia, tais como autonomia, liberdade e possibilidade de dialogarem de forma direta, sem representantes.
Essas ideias seguem as análises de Faget (2005), Guillaume-Hofnung (2005) e Spielvogel e Noreau (2002), os quais
consideram que esse novo modo de gestão de conflitos é a base da transformação das relações sociais, por exigir
participação e responsabilidade nas decisões tomadas, não delegando necessariamente seus conflitos, sobretudo
privados, a um profissional que a priori tem o poder decisório. O mediador atua como facilitador da comunicação entre
o casal, privilegiando, sobretudo, a qualidade da relação interpessoal e o bem-estar dos filhos. Esse entendimento é
também compartilhado por Enriquez (2008), sociólogo e professor da Universidade de Paris VII, ao mencionar que a
possibilidade de falar em seu próprio nome, e tornar-se cada vez mais autônomo, é imperativo numa sociedade de
fortes contradições, num mundo cada vez mais fluido.
Para os mediadores brasileiros, a mediação extrajudicial foi ligada particularmente a maior prevenção do conflito,
agilidade nos procedimentos, informalidade e satisfação dos usuários.
Por outro lado, a mediação judicial ou legal, foi associada nos dois países a ideia de imposição, lei e conflito acirrado.
Convém salientar que os mediadores utilizaram a diferença conceitual entre a palavra conflito e litígio. Conflito designa
a mediação extrajudicial, enquanto litígio designa mediação judicial.
Dion (2007) distingue esses dois termos abordando que o litígio se refere a lei, contestação, disputa e é
frequentemente associado a processo judicial. Por outro lado, o conflito guarda conotação mais ampla, considerando
os aspectos psicológicos e relacionais do conflito familiar, além dos jurídicos e patrimoniais. Ou seja, o conflito é
analisado em todas as suas dimensões, sem se limitar aos objetos do litígio definidos pelo juiz.
Com efeito, na mediação judicial há certa noção de obrigação de chegar a um acordo, associando-se à autoridade do
magistrado e ao lugar que ocupa o direito na sociedade, ou seja, trata-se do efeito de judicialização das relações
sociais questionado por Habermas (1987). Mesmo existindo nessa prática, o princípio de autonomia é parcial, pois o
poder do juiz e a interferência dos atores jurídicos estão presentes. A questão de um tempo limitado também foi
indicada, uma vez que na mediação paraprocessual o tempo é determinando pelas pessoas, e na mediação judicial é
prerrogativa do magistrado. Nessa modalidade, sob a forma de litígio judicial, o conflito foi considerado mais difícil de
solucionar e de desenvolver um espaço de colaboração. As pessoas já foram levadas ao modelo contraditório,
havendo referências e parâmetros que contribuem para o acirramento da situação.
Em suma, a mediação extrajudicial teve conotação mais positiva e foi trabalhada sob a óptica da prevenção, enquanto
na mediação judicial atua-se sob o efeito de um desacordo já existente. Na mediação legal, existe uma lógica que se
integra à demanda processual, e na mediação extrajudicial, uma lógica relacional. Faget (1997), Bonafé-Schmitt e
Robert (2001) e Guillaume-Hofnung (2005) já haviam constatado essa tendência relativa às mediações judiciais. Para
esses autores, nessa modalidade de prática existe uma racionalidade legal, uma cultura profissional sedimentada
sobre a normatividade.
Por outro lado, nos dois países, um terço dos mediadores acredita que não há maiores dificuldades quanto à
efetividade da mediação legal. Esses mediadores consideram que tal modalidade se adapta mais à realidade das
pessoas, que necessitam, inicialmente, da intervenção do juiz para se sentirem mais seguras e confiantes na
resolução de seus problemas. Faz parte da cultura predominante que apenas a justiça deve tutelar os casos de
disputas familiares. Um dos mediadores franceses aludiu que a mediação extrajudicial demanda uma evolução das
mentalidades, enquanto a mediação legal pode favorecer essa evolução por impulsão do Estado.
Contudo, mesmo que certos profissionais e mediadores considerem que a mediação paraprocessual demanda certa
evolução, acredita-se que o incentivo a essa prática favoreça a mudança de paradigma na forma de abordar e tratar
os conflitos. A mediação legal contribui para modernizar os sistemas de justiça, embora não deva ser considerada a
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modalidade predominante. O estímulo a essas duas práticas e, principalmente, à mediação extrajudicial contribuirá
para maior pluralidade nas formas de resolução de conflitos, bem como desburocratização e descongestionamento
dos sistemas de justiça. No entanto, cabe ressaltar que no tocante ao direito da família, o objetivo principal da
mediação não é a desobstrução em si do Judiciário, mas, sobretudo, dar atendimento mais individualizado e
apropriado aos conflitos.
De acordo com Théry (1998), os problemas que se manifestam no momento de ruptura familiar não se limitam
exclusivamente às questões jurídicas. Essa socióloga da família salienta a necessidade de encorajar a mediação
anterior a um processo judicial pelos seguintes motivos: contribui para evitar o aumento dos afrontamentos próprios do
sistema judiciário; estimula a comunicação entre os envolvidos no momento de separação e divórcio e ainda contribui
para limitar o recurso injustificado ao magistrado por questões que não são de sua competência.
No que tange aos modelos de prática de mediação familiar, observou-se que suas finalidades diferem de um país para
outro. O modelo francês atua para fortalecer os vínculos sociais e familiares, tendência que reflete a preocupação com
o número alarmante de divórcios no país, como já acontece nos países norte-americanos. Segundo dados
estatísticos, na França, cerca de 50% dos casamentos terminam em divórcio. A ausência da figura paterna nos casos
de separação é preocupante, e esse novo modo de gestão de conflitos interpessoais atua com o intuito de amenizar
esses efeitos. A construção ou a reconstrução de laços parentais e familiares constituem o alicerce dessa prática na
visão da maioria dos mediadores franceses. Segundo Bastard (2001), nos últimos dez anos a tomada de consciência
das dificuldades de cooperação entre os cônjuges depois da separação levou à emergência progressiva de novas
intervenções sociais para acompanhar os divorciantes e ajudá-los a se separar de maneira menos traumática,
mantendo vínculos entre pais e filhos. De modo geral, a mediação familiar atua com o propósito de resguardar a
coparentalidade, num espaço de encontro e de reconhecimento entre as pessoas e no sentido de elaborar soluções
por meio da comunicação direta e da escuta.
Para o sociólogo jurídico Faget (2008), esse novo modo de gestão de conflitos é fundado sobre duas linhas de
raciocínio: a promoção de uma política de reconhecimento e a outra de individualismo relacional. O reconhecimento é
a identificação da diferença pela qual as pessoas são identificadas em sua individualidade. Sob esse prisma, a
mediação permite articular as identidades individuais e coletivas. Por individualismo relacional, a mediação pode
igualmente ajudar as pessoas a passar do individualismo narcisista ao individualismo relacional, permitindo que vivam
uns com os outros e não uns ao lado dos outros. Essas duas lógicas não dispensam o diálogo.
Outra tendência observada no discurso dos mediadores franceses é que a mediação exige trabalho mais terapêutico
visando à transformação pessoal, em detrimento de resultados mais imediatos.
No que se refere ao Brasil, observou-se uma tendência mais instrumental da utilidade dessa prática. Ou seja, a
mediação serve prioritariamente para alcançar acordo e consenso. No discurso dos profissionais brasileiros
despontam duas grandes intenções: uma relacionada à humanização das relações, e outra que trata da celeridade e
da eficiência de um método de resolução de conflitos que requer uma resposta à lentidão dos tribunais brasileiros. Tal
tendência se afina com os discursos oficiais dos tribunais do país, onde “a mediação tem por objetivo primordial
promover a celeridade na resolução dos litígios e o acesso à Justiça” (Delgado et al, 2003).3
Em resumo, constatou-se que embora os dois países tenham associado a prática da mediação ao fortalecimento da
comunicação entre os conflitantes, as finalidades são diferentes de um país para outro: enquanto na França a
mediação é vista na perspectiva de transformações sociais e de relações interpessoais, tratando-se de uma lógica de
vínculos, alteridade, autonomia e participação, no Brasil observou-se uma visão mais estreita da mediação. Conceber
essa novel prática social dentro de um movimento mais abrangente que demanda uma reflexão sobre o casal, a
família e a parentalidade (Sellenet, David e Thomère, 2007) é ainda distante do imaginário coletivo dos profissionais
brasileiros.
5.2 Quanto ao casal
Os dados da pesquisa indicaram que, tanto no Brasil como na França, as duas modalidades de mediação constituem
modos de gestão de conflitos eficazes em caso de separação conjugal. Todavia, a modalidade extrajudicial revelou-se
mais eficaz, tanto para os mediadores entrevistados como para os casais.
Os resultados revelaram que a mediação paraprocessual é mais conveniente aos casais entrevistados pelos
seguintes motivos:
• é anterior ao processo judicial;
• favorece melhor comunicação entre os envolvidos;
• apresenta maior índice de satisfação daqueles que se beneficiaram em comparação a mediação judicial;
• é mais recomendada a outras pessoas, principalmente no Brasil;
• não é imposta, mas, sobretudo, percebida como vantagem para resolver conflitos.
O estudo corroborou ainda constatações obtidas por outras pesquisas desse gênero, como: otimização da
comunicação entre os ex-cônjuges; diminuição de conflitos; negociação das questões parentais e, enfim, respeito e
maior reconhecimento do outro.
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Um dos indicadores mais expressivos sobre o resultado da mediação perante os casais concerne ao aspecto
comunicativo. Assim, quando se tratou de avaliar a comunicação durante o período da separação, esta foi
considerada pouco frequente para a grande maioria dos casais entrevistados. Após um ano de separação, tal situação
mudou. A maioria sinalizou que a comunicação entre eles é excelente ou aceitável, sobretudo nos casos de mediação
paraprocessual.
No que tange à diminuição dos conflitos, foi constado que a mediação contribuiu para evitar a escalada do
desentendimento e reduzir o impacto do conflito entre o casal. Igualmente ajudou na sua pacificação no momento da
separação, contrariamente ao modelo adversarial que tem por efeito, na maioria das vezes, a deterioração das
relações interpessoais, conforme já constatado em estudos anteriores de Bonafé-Schmitt, Charrier e Robert (2006);
Irving e Benjamin (1987); Richardson (1987).
Esses resultados sugerem a necessidade de encorajar o desenvolvimento dessa prática e a promoção de meios
pacíficos de resolução de conflitos, suscitando a colaboração entre as pessoas, especialmente quando precisam
manter diálogo no futuro sobre a educação dos filhos.
Outro fator importante é que para a maioria dos entrevistados a mediação serviu para atender as necessidades dos
filhos e tornar a separação menos traumática nesse momento difícil na vida das crianças. Ademais, observou-se que
são frequentes nos dois países os contatos com os filhos dos casais que passaram pela mediação, mesmo nos casos
de separação litigiosa. O estudo canadense de Benjamin e Irving (1995), Richardson (1987) já tinha observado essa
tendência, revelando que a mediação permite maior participação do pai não guardião na vida dos filhos.
Quanto ao índice de acordos realizados na mediação, houve resultados significativos, chegando a uma taxa de 50% a
70% de acordos nos dois países, e, na maioria dos casos, esses entendimentos são respeitados. Atribui-se tal
resultado a três principais fatores: comunicação direta, efetivo espaço de trocas interacionais e reconhecimento do
outro.
Nessa mesma linha de pesquisa, avaliando os efeitos da mediação, comparando os acordos efetuados por serviço de
mediação familiar e os realizados por meio da justiça tradicional, estudo americano realizado por Kelly (1996) verificou
que o índice de respeitabilidade dos acordos de mediação é mais elevado que aqueles realizados por decisões
judiciais. Outros estudos, como os de Irving e Benjamin (2002), chegaram às mesmas conclusões, observando que o
número de revisão dos acordos requeridos na justiça, realizados por meio da mediação, é relativamente pequeno,
atingindo aproximadamente 30% dos casos.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A mediação de conflitos familiares já é consolidada nas sociedades mais desenvolvidas, apresentando-se como
alternativa ao modelo adversarial de resolução de conflitos. Seguindo a tendência dos países que já adotaram tais
mecanismos, em especial dos consensuais, o Brasil vem estimulando a sua utilização, como demonstra a Res. CNJ
125/2010, que dispõe sobre a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos no âmbito do Poder
Judiciário.
Entendemos que para maximizar o desenvolvimento da mediação familiar no Brasil, deve-se ampliar o investimento
na formação dos mediadores e promover a cultura da mediação em nossa sociedade. Priorizar a formação
interdisciplinar do mediador familiar, a exemplo dos programas de qualificação do modelo europeu e do norte-
americano é imprescindível para que o Brasil avance nessa questão. Com uma formação legítima, distanciaremos a
lógica de instrumentalização dessa prática e a hegemonia dos interesses jurídicos, resguardando-se a gênese e os
princípios da mediação, sob pena de reproduzir o status quo.
Mesmo que a mediação judicial tenha efeitos positivos e contribua para modernizar os sistemas de justiça, é
modalidade mais instrumental, que se integra à cultura jurídica e à normatividade. Jürgen Habermas esclarece a
questão, ao dizer que existe nas sociedades o efeito dos processos de juridificação. Trata-se de formas de proceder
pelas quais o direito se apropria das recentes demandas sociais, que até então eram solucionadas de maneira
informal, e tenta juridicializá-las. Nessa mesma linha de raciocínio estão os estudos de Foucault (2004) e Bordieu
(1986), ao mencionarem as formas de dominação e de poder do direito e dos sistemas de justiça. Assim, privilegiando
a mediação judicial em detrimento da mediação anterior a um processo judicial, estaremos contribuindo para
cristalizar essa cultura judicial.
Convém salientar a necessidade de pensar a mediação extrajudicial para estimular uma verdadeira mudança de
paradigma no trato dos conflitos familiares, prevalecendo as relações sociais e o princípio do agir comunicativo. A
mediação não se restringe a um meio mais célere e eficaz de solucionar conflitos. É, acima de tudo, uma resposta às
transformações sociais ocorridas nos últimos tempos para incentivar a desjudicialização dos conflitos familiares.
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1 Rapport au garde des Sceaux. Guinchard, 2008 (A pedido da Ministra da Justiça, na época Madame Rachida Dati,
foi constituída uma comissão de especialistas na matéria, sob a coordenação do Professor Serge Guinchard, para
elaborar relatório sobre a reforma da justiça francesa).
2 Pesquisa de Doutorado que trata de uma análise comparativa do modelo francês e brasileiro da prática de mediação
familiar e os efeitos sobre os casais em instância de separação. Tese de Doutorado em Ciências da Educação-
Universidade de Lyon/França de autoria de Eliedite Mattos Ávila.
https://www.revistadostribunais.com.br/maf/app/delivery/document 7/8
10/05/2024, 10:04 Envio | Revista dos Tribunais
3 Delgado, José et al. Apresentação. Cadernos do CEJ. vol. 22 – Mediação: um projeto inovador. Brasília: CJF, 2003.
https://www.revistadostribunais.com.br/maf/app/delivery/document 8/8