Mascaras de Persefone A Imagem Da Morte em o Sofa
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Mascaras de Persefone A Imagem Da Morte em o Sofa
net/publication/250397238
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Marta Ando
Universidade Estadual de Maringá
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RESUMO
ABSTRACT
The research intends to verify the aesthetics effects on the implied reader, by
analyzing the representation of death in Brazilian works for young people O Sofá
Estampado (The Patterned Sofa) and O Abraço (The Embrace), both written by
Lygia Bojunga Nunes. For this purpose, we will take as critic perspective the Aesthetic
Response Theory of Hans Robert Jauss and the Effect Theory of Wolfgang Iser.
This study verified that death not just configures a theme but also a character in both
works, and it incites on the reader a mix of pleasure and strangeness.
1
Doutoranda em Letras pela UNESP / São José do Rio Preto / Bolsista CNPq. andomayumi@gmail.com
Publ. UEPG Ci. Hum., Ci. Soc. Apl., Ling., Letras e Artes, Ponta Grossa, 16 (1) 105-113, jun. 2008
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1 Introdução 2 A Mulher sem rosto
Desde tempos imemoriais, o ser humano se in- Tendo em vista as sucessivas reedições e as di-
daga a respeito dos mistérios que envolvem a morte. versas pesquisas realizadas acerca de O Sofá Estam-
Suscita-se, assim, uma aguçada curiosidade que incita pado2, é possível afirmar que se de um lado, é uma
a fantasia e a imaginação, as quais, por sua vez, são obra que tem logrado sucesso perante o público infan-
levadas a personificar esse mistério. Foi assim que os til, constitui, ao mesmo tempo, fonte de prazer e co-
gregos, por exemplo, criaram toda uma mitologia em nhecimento para leitores jovens e adultos, em função
torno dessa incógnita e surgiram seres como Hades, do nível de criação e de consciência crítica que a ca-
Tânatos, Perséfone, Caronte, Cérbero. Desde então, racterizam. Portanto, o leitor implícito3 configurado em
inúmeros escritores têm conferido espaço à morte em sua estrutura textual prevê um leitor atemporal, que
suas produções, comumente revestindo-a de atributos abarca leitores de todas as idades.
humanos, embora lhe concedam poderes sobre-huma- A narrativa segue estrutura similar à da maioria
nos. Isso pode ser constatado em textos das mais di- dos outros livros da autora, com capítulos curtos que
versas etnias, dos mais diversos povos e direcionados se sucedem sem preocupação com a ordem
às mais diversas faixas etárias. cronológica, nos quais o leitor se familiariza com a
No que concerne à produção literária endere- personagem central, um tatu chamado Vítor, e
çada a crianças e jovens, o tema da morte está pre- personagens como a gata Dalva, a hipopótama Popô,
sente desde os mais remotos contos de fadas. Nota- Ipo, a Vó de Vítor e o Inventor. Nesses capítulos,
damente na linha de tendência verista, constata-se que apresenta-se a narrativa principal (situada no tempo
temas muitas vezes considerados inadequados ou im- da enunciação), cujo fluxo é interrompido por narrativas
próprios para crianças, como o sexo, a violência e a intercaladas (situadas no tempo do enunciado), que
morte, possuem reiterada presença. Contudo, tais te- acrescentam novos dados à narrativa principal,
mas aparecem não somente em textos veristas, mas complementando-a.
também naqueles que, ultrapassando os liames do Em ambos os tempos, a morte surge com
verismo, possibilitam a imersão na fantasia, como é o destaque. Sua aparição inicial, ou melhor, a aparição
caso de O Sofá Estampado e O Abraço de Lygia de seus domínios, ocorre quando em um dos episódios
Bojunga Nunes. Vítor retorna ao “tempo que era tatu-criança”. Ele se
Em tais narrativas, observa-se, todavia, que a encontra em uma aula de português, na qual é obrigado
morte não surge apenas como um de seus temas. Per- a declamar um poema. Devido à sua timidez, começa
cebe-se que Lygia realmente inova, ao inserir a morte a tossir e engasgar, como ocorria sempre quando lhe
como personagem da trama, de modo a surpreender e “batia um nervoso”. Como seus engasgos e sua tosse
instigar o leitor. É tendo em vista a construção da ima- deixavam todos aflitos, ele reflete: “se ninguém vê o
gem da morte e os movimentos do leitor implícito, que meu engasgo, ninguém fica aflito” (p. 35). É assim que
procederemos a uma leitura das referidas obras, a fim “resolve” seu problema, cavando um túnel que o leva a
de verificar os efeitos estéticos gerados mediante os uma escada de onde vinha luz e, do alto, via-se “um
atos de apreensão do leitor. Para tanto, adotaremos, pedaço de céu cinzento”. A referida escada dava acesso
como perspectiva crítica, a Estética da Recepção for- a uma rua silenciosa e deserta:
mulada por Hans Robert Jauss e a Teoria do Efeito
propugnada por Wolfgang Iser.
2
Utilizamos a edição de 1983, publicada pela editora Civilização Brasileira. No decorrer do trabalho, mencionaremos somente o número das páginas
nas citações.
3
Na concepção de Iser, o leitor implícito, enquanto estrutura embutida nos textos, “materializa o conjunto das preorientações que um texto ficcional
oferece, como condições de recepção, a seus leitores possíveis” (ISER, 1996, p. 73).
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Era uma rua meio estreita que vinha descendo de lon- que mesmo quando o vento parava ele ficava brincan-
ge; de vez em quando uma árvore. Não tinha carro; não do no ar. Amarelo bem clarinho, todo salpicado de flor;
tinha ninguém na janela; só muito de vez em quando ora era violeta, ora era margarida, e lá uma vez que
passava uma folha que o vento ia arrancando. outra também tinha um monsenhor. (p. 64)
Não tinha edifício alto; não tinha barulho nas casas.
Mas a hera subia em tudo que é muro; o limo de muita A descrição do lenço não parecerá estranha ao
chuva tinha ficado nos telhados; e às vezes, juntinho leitor: através da releitura4, constatará que se trata da
da porta, alguém tinha plantado um jasmim.
Não tinha porta nem janela aberta. Mas tinha na rua
mesma descrição da estampa do sofá, feita no primei-
toda uma impressão de que lá no fim – de repente – ro capítulo. Deslocada, entretanto, de seu contexto
alguém ia aparecer. (p. 39) original, a estampa, no lenço da Mulher, adquire
conotações mais sombrias. Se não notara antes quan-
Essa “cavação”, motivo recorrente na narrativa, do do episódio do sofá, o leitor talvez note agora que
associa-se a momentos de crise na vida da persona- o ritmo estranhamente suave que permeia a descrição
gem. Pela descrição, o leitor, a partir do seu pré-en- e, sobretudo, a rima flor/monsenhor, com suas vogais
tendimento, poderá associar a rua à paisagem, igual- fechadas, corroboram para acentuar uma possível carga
mente silenciosa e deserta, de um cemitério. Para Vítor, negativa associada ao lenço e, por extensão, à dona
ao mesmo tempo em que essa paisagem lhe causa deste.
medo, é motivo de fascinação. A voz do colega o reti- Nessa passagem, o leitor é induzido a estabele-
ra do seu mundo interior e Vítor não consegue mais cer, por meio da duplicação da imagem da estampa, o
encontrar a rua cuja busca persiste por um mês. Dessa elo entre duas situações dolorosas vivenciadas por
forma, o leitor é incitado a perguntar se Vítor tornaria Vítor: a sua problemática relação afetiva com a gata
a encontrar a rua e, no caso de encontrá-la, se o seu Dalva e a morte da Vó, ambas responsáveis por deixá-
pressentimento de que “alguém ia aparecer” concreti- lo em um estado de luto interior.
zar-se-ia ou não. Em função da interrupção no fluxo A misteriosa Mulher, assim como a rua deserta
da narrativa, as expectativas do leitor são ampliadas, em que surge, tem o poder de provocar um misto de
levando-o a imaginar aquilo que por ora ainda não foi medo e fascinação em Vítor:
explicitado.
Estrategicamente, apenas 23 páginas depois do A Mulher veio vindo. A saia que ela vestia arrastava
primeiro acesso à rua, quando, ao voltar da escola, no chão, e a blusa tinha manga comprida e tinha gola
bem alta que ia dobrando no fim. A ponta do sapato
Vítor se depara com Dona Rosa que lhe comunica fri- aparecia quando Ela andava. Fechado. E Ela andava
amente a morte de sua Vó, é que ele, após novo ata- bonito, muito firme, muito calma, o cabelo bem pentea-
que de tosse, reencontra a rua perdida: “Tomou o mai- do meio enrolado pra trás. O Vítor olhava – fascinado
or susto: na frente dele tinha a escada. O buraco em (e morto de medo) – a Mulher descer a rua (Ela e o
cima. A luz estranha, o céu cinzento. Mas era mesmo? lenço amarelo). (p. 65)
era a rua que ele tinha perdido?” (p. 63-64). Como
Nesse momento, o ritmo da narrativa decresce,
Vítor, o leitor imagina tratar-se da mesma rua, o que
em função da abundância de detalhes, da lentidão das
faz com que sua curiosidade retorne aguçada: será que,
ações e dos verbos no gerúndio, instaurando o efeito
lá no fim da rua, apareceria alguém? Desta vez, apare-
de suspense e o conseqüente aumento da tensão em
ce. Primeiro um lenço, depois a dona deste:
Vítor e no leitor. Em razão disso, a gradação do medo
Aí apareceu uma coisa de cor voando no fim da rua. na personagem gera uma gradação equivalente na ex-
Voou. Parou. Voou de novo feito coisa que estava se pectativa do leitor. A descrição prossegue e prossegue
mostrando, voou pra trás, sumiu, apareceu logo outra a indeterminação; paralelamente, o texto conduz o lei-
vez na mão da Mulher. Era um lenço. De seda tão fina
4
Tomamos o termo “releitura” no sentido empregado por João Alexandre Barbosa, em A biblioteca imaginária (1996). De acordo com Barbosa, é pela
releitura que as pistas disseminadas pelo narrador são percebidas como tais, o que não significa que o leitor deva ler, novamente, toda a obra; significa,
antes, que, a partir das combinações entre as diferentes perspectivas textuais, o leitor tem condições de construir os sentidos potenciais.
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tor a acompanhar de perto o estado de nervos do pro- Mais adiante, no flash-back em que se coloca
tagonista: em cena o momento em que Vítor se apaixona pela
Dalva e vai à sua casa para lhe entregar a medalha que
O medo do Vítor virou desespero quando a Mulher ela perdera, Vítor se depara, pela primeira vez, com o
veio chegando; ele nem agüentou olhar ela passando:
baixou a cara. Ela passou. A ponta do lenço voou pra
sofá cuja estampa não lhe era estranha: “Onde é que
trás. E aí o Vítor juntou um resto de coragem, se agar- ele tinha visto aquele estampado, onde? [...] Fez força
rou no lenço (ai! que frio que ele era) e emparelhou com pra lembrar. Mas em vez da lembrança entrar na ca-
a Mulher. Ela pareceu que não tinha visto, e os dois fo- beça feito um desenho, entrou no coração feito um
ram descendo a rua juntos, de pata e mão dada no medo, e o Vítor sentiu uma dor.” (p. 87).
lenço. (p. 65)
Nesse momento, o leitor, através da releitura, é
Mas então – poderá perguntar o leitor – o Vítor estimulado a estabelecer conexões entre outros seg-
vai embora com a Mulher? Mas para onde? O que vai mentos do texto em que surge a descrição da estam-
acontecer? Acontece, porém, que o interesse de Vítor pa. Tal caracterização teve lugar, inicialmente, no pri-
em seguir a Mulher não obtém reciprocidade por par- meiro capítulo, quando se descreve o sofá estampado
te desta, o que é marcado, na narrativa, pela adver- e apresentam-se as personagens centrais. Depois, re-
sativa “mas”, ao que se segue a atitude de rejeição da aparece no momento em que se descreve o lenço da
Mulher: Mulher. Em sua aparição inicial, a descrição não apre-
senta conotação alguma ao leitor. Entretanto, no mo-
Mas perto da esquina Ela parou. Baixou a cabeça pro mento em que a estampa é associada à Mulher, as
Vítor; andou pra trás. Ele foi junto. Ela sacudiu a cabe- conotações sombrias que esta incorpora fazem com
ça com força; puxou o lenço. O Vítor não quis largar. que o leitor releia a descrição, sob outro ponto de vis-
Ela então tirou a mão do bolso e empurrou o Vítor de
um jeito que ele teve que largar o lenço, e largou tam-
ta. Por conseguinte, no momento em que a estampa
bém a vontade de seguir com a Mulher. (p. 65) reaparece, o leitor é condicionado a vê-la não de for-
ma neutra como da primeira vez, mas associando-a
Diante da reação da Mulher, o leitor poderá se aos signos disfóricos, presentes na relação de Vítor
perguntar quanto aos motivos que a levaram a rejeitar com Dalva ambientada no sofá, e, sobretudo, no lenço
Vítor. Como, no entanto, o texto não deixa isso explí- da Mulher que metaforiza a morte.
cito, cabe-lhe imaginar os motivos possíveis, a partir Ao inter-relacionar os episódios que compõem
da conexão das perspectivas textuais. O narrador diz a trama, o leitor percebe que é em decorrência das
que Vítor ainda quis chamar e correr, “mas parecia peripécias todas que tiveram lugar após o destino de
que o empurrão ainda estava empurrando ele” (p. 66). Vítor ter se cruzado com os destinos de Dalva e de
Imobilizado, ficou apenas se lembrando do lenço, da Popô que o tatu decide, finalmente, deixar a cidade e
mão da Mulher o empurrando e imaginando o seu ros- voltar para casa. Nesse retorno, “sonha cinzento” e,
to, pois “a Mulher que não quis levar o Vítor com ela ao acordar, sente o impulso de rever a rua misteriosa:
tinha descido a rua sem rosto nenhum.” (p. 66). “A vontade de encontrar de novo a rua foi tão forte
No tocante à caracterização da Mulher, ao atu- que ele saiu correndo. [...] E cavou.” (p. 141). Na rua,
alizar a obra, o leitor poderá inferir que se trata da o mesmo céu cinzento, o mesmo silêncio e a mesma
própria alegoria da Morte. A rua é descrita como um impressão de que alguém ia aparecer. Desta vez, po-
lugar solitário e sem vida, em que prevalece o silêncio, rém, Vítor sabia que esse alguém era “a Mulher que
o cheiro de jasmim e o céu cinzento; e é nesse espaço não tinha rosto, e dessa vez Ela ia levar ele junto, ah!
que surge a figura, silenciosa e amedrontadora, da isso ia” (p. 143). Mas, contrariando as expectativas
Mulher, cuja imagem está associada à frieza e à intimi- de Vítor e as do leitor, quem aparece é o Inventor, um
dação. A partir desta inferência, o leitor poderá des- sujeito que Vítor vira, pela primeira vez, na agência de
vendar o motivo pelo qual ela rejeitou a companhia de Popô e que trazia a mala que pertencera à Vó. Os dois
Vítor: embora desiludido no amor e arruinado com a começam a conversar sobre a mala, mas, no momento
morte da Vó, ainda não havia chegado a sua hora de em que o Inventor começa a explicar o funcionamento
morrer. de sua banheira, o ritmo da narrativa decresce e o vento
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se intensifica, anunciando a chegada da Mulher5: de uma experiência sexual amarga vivida na infância: o
estupro sofrido pelo “Homem da Água”. Certo dia, ao
[Vítor] tinha sentido o vento aumentando e um amare- deparar-se com um palhaço que lhe desperta o trauma
lo aparecendo no fim da rua. [...] Viu o lenço feito cum-
primentando, feito anunciando que alguém ia chegar.
até então adormecido, Cristina sente-se cada vez mais
O lenço sumiu. Apareceu logo de novo na mão da obcecada pelo homem que supostamente a estuprara.
Mulher. Os dois vieram vindo, e a Mulher era igualzi- É justamente essa obsessão – não apenas por esse
nha como o Vítor lembrava dela [...]. Mas dessa vez o homem, como também pela Mulher mascarada que
lenço de seda estava mais agitado, subia, descia, voa- conhecera em uma festa – que marca o início do enre-
va na frente, tapando a Mulher. (p. 146)
do. O telefone toca e quem está na linha é essa estra-
Atraídos pelo lenço, Vítor e o Inventor tentam nha mulher que a convida para outra festa na qual, como
agarrá-lo, mas, no momento em que o Inventor alcan- na anterior, haveria encenação de contos. Contudo,
ça a ponta do lenço, este, subitamente, como que ad- ao chegar à suposta festa, Cristina participa não de
quirindo vida própria, o enlaça e o leva: “O lenço pu- uma encenação e sim de uma cena real que a conduz
xou o Inventor. O Inventor quis voltar; o lenço aper- ao reencontro com o palhaço, que a estupra e a enfor-
tou, foi puxando. O Inventor se virou. O Vítor viu medo ca com uma gravata.
na cara dele: correu pra ajudar. Mas a Mulher já ia Em vista da apresentação da fábula, podemos
dobrando a esquina – Ela, o lenço, o Inventor.” (p. deduzir que, devido ao tratamento temático que rece-
147). be, a obra não se destina ao leitor infantil. Além disso,
O Inventor parte, mas a mala da Vó fica. Vítor, recursos responsáveis por promover a mediação com
aproximando-se dela, “apalpou, alisou, abriu. E aí o o leitor-mirim, como o ludismo, o maravilhoso, ani-
olho riu contente da fazenda franzidinha” e “foi vendo mais e objetos antropomorfizados, também não se fa-
de novo o diário de viagem, a lente, o álbum de fotos zem presentes em O Abraço. Este fato, somado ao da
da Vó” (p. 147-148) e foi sentindo vontade de deixar alta complexidade estrutural, nos permitem supor que
a rua, que naquele momento pareceu-lhe horrível: “Atra- a obra encontra eco maior não em leitores em forma-
vessou o túnel correndo. Pra poder sair logo lá fora” ção, mas em leitores mais maduros, os quais, espera-
(p. 148). Ao sair, viu a floresta, a terra, o cheiro de fo- se, estejam mais preparados para lidar com temas tão
lha, o sol, “se espantando de ter esquecido que lá fora pesados e com uma estrutura narrativa tão complexa.
era tão bom. E quando olhou pra unha viu que ela es- Nessa ordem de idéias, o leitor implícito aí configura-
tava quieta, feito coisa que agora ia dormir muito tem- do é um leitor jovem ou adulto cujo horizonte de ex-
po” (p. 148). Desse modo, o leitor poderá inferir que pectativas8 traga internalizado um considerável conhe-
o resgate da mala da Vó traz Vítor de volta à vida, cimento vivencial, para que seja possível atualizar, com
ainda que esse resgate tenha ocorrido no espaço do- eficácia, os sentidos potenciais do texto.
minado pela morte. Justamente por ser uma obra complexa, O Abra-
ço exige intensa participação do leitor no preenchimento
dos espaços vazios, disseminados por toda a narrati-
3 A Mulher mascarada6 va. A interação texto-leitor tem início a partir do pró-
prio título. Ao deparar-se com o mesmo, o leitor pode
Em O Abraço7, a angústia de Cristina decorre supor que se trate de uma história em que predomine o
5
O vento enquanto símbolo é ambivalente, pois tanto pode infundir a vida como anunciar a morte. Como na descrição anterior em que aparece a
Mulher, aqui o vento é reiterado, privilegiando o aspecto negativo, relacionado à morte.
6
Uma análise mais detalhada da Mulher mascarada, assim como das demais personagens de O Abraço, podem ser encontradas na dissertação de
mestrado Do texto ao leitor, do leitor ao texto: um estudo sobre Angélica e O Abraço de Lygia Bojunga Nunes, apresentada por Marta Yumi Ando à
Universidade Estadual de Maringá, em 2006.
7
Utilizamos a 4.ª edição, publicada em 2004 pela editora Agir. Todas as citações, nas quais são indicadas apenas o número das páginas, provêm desta
edição.
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De acordo com Jauss (1994), o “horizonte de expectativas” consiste em um conjunto de normas estéticas, sociais, filosóficas e ideológicas em vigor
numa certa época e que orienta a produção e recepção das obras.
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afeto e a amizade, já que a palavra “abraço” vincula- diferenciadas através dos pontos de vista nele conti-
se a um campo semântico que remete a tais conotações. dos. Nessa combinação de perspectivas, o leitor po-
Todavia, examinando a capa produzida por Rubem derá perceber que a morte de Cristina é, em vários
Grilo, a impressão inicial se desfaz, uma vez que tal momentos, sentenciada pela Mulher mascarada. Só
capa coloca em destaque a estranha figura da Mulher perceberá, porém, essa particularidade, ao estabele-
mascarada, personagem que na obra pode ser inter- cer relações entre o episódio final e os episódios em
pretada como alegoria da morte. Grilo acertadamente que estão inscritos tais prenúncios. O referido convite
a retratou como uma figura cuja palidez é acentuada que a Mulher mascarada faz à Cristina para encenar
pelo contraste com os lábios e trajes negros. Seu cor- um conto é, assim, um sinistro convite que a conduz à
po, que lembra um quadro cubista, encontra-se todo morte. Também não é por acaso que a Mulher masca-
retorcido, e os olhos encontram-se ocultos pelo cha- rada faz o papel da Morte no conto encenado na pri-
péu, também negro. Ao seu redor, visualizam-se mar- meira festa, pois ela é a própria alegoria da morte. Fi-
cas de mãos, sugerindo um movimento de embate, de gura enigmática e misteriosa, ao mesmo tempo em que
luta. O título aparece grafado em preto, contrastando personifica todas as Clarices que foram ou que seriam
com o nome da autora em roxo, o que é interessante, violentadas, tem a função de punir Cristina por ter per-
visto que tais cores são geralmente associadas à mor- doado um crime sem perdão, por ter se sentido tão
te. atraída pelo homem que mais deveria odiar: “[...] você
O desenrolar do fio narrativo corrobora para que vai e transforma o abraço do não-perdão num abraço
o leitor refute a possível hipótese relacionada ao cam- de tesão: você é mesmo uma infeliz, você merece o
po semântico tradicional da palavra “abraço”, pois na pior” (p. 43).
obra essa palavra adquire outras conotações, muito Percebemos, portanto, que a Mulher mascara-
mais sombrias: o abraço do estuprador – “eu te pro- da amaldiçoa Cristina e essa maldição se concretiza na
meto, Clarice [...] que, dessa vez, você não vai morrer cena final, fato que o leitor apreende mediante a com-
no meu abraço” (p. 23); o angustiado abraço da mãe, binação desses segmentos textuais com o segmento
ao reencontrar a Cristina-menina após o estupro – que encerra o livro. No entanto, a sentença de morte
“minha mãe veio correndo, nós duas assim, correndo proferida pela Mulher mascarada se faz mais contun-
uma pra outra, de braço estendido, pra gente se pegar dente (uma vez que marcada lingüisticamente) na se-
mais depressa, se abraçar mais depressa, e como a guinte passagem: “mas que diferença faz se eu sou a
gente se abraçou!” (p. 23); os vários abraços de Clarice Clarice-tua-amiga-de-infância-que-um-dia-saiu-de-
nos sonhos de Cristina, em que se ressaltam o abraço casa-e-nunca-mais-voltou, ou se eu sou a Clarice-que-
da morte e o do não-perdão: “é esse o abraço que eu se-fingiu-de-morta, ou se a Clarice-que-botou-a-boca-
deixo pra ti, Cristina. Pra você nunca esquecer, pra no-mundo, ou se a Clarice-que-morreu-numa-grava-
você nunca perdoar o que te aconteceu” (p. 29-30). ta-cinzenta, ou as mil outras Clarices que eu posso te
Como em O Sofá Estampado, apresenta-se a contar, o que que isso importa, me diz!” (p. 47).
narrativa principal situada no tempo da enunciação, cu- O leitor a princípio estranha, pois se as outras
jo fluxo é interrompido por narrativas intercaladas si- Clarices – a “Clarice-tua-amiga-de-infância-que-um-
tuadas no tempo do enunciado, responsáveis por for- dia-saiu-de-casa-e-nunca-mais-voltou”, a “Clarice-
necer novos dados à narrativa principal, comple- que-se-fingiu-de-morta” e a “Clarice-que-botou-a-
mentando-a. Em O Abraço, porém, a construção tem- boca-no-mundo” – haviam sido mencionadas, nenhu-
poral se torna bem mais complexa, na medida em que ma menção havia sido feita sobre a “Clarice-que-mor-
os fluxos temporais entre passado e presente apresen- reu-numa-gravata-cinzenta”. O leitor há de franzir a
tam-se dispostos mais fragmentariamente; assim, o que testa e questionar: mas quem será essa Clarice? Con-
nos é apresentado são pedaços de discurso, um mo- tudo, o texto deliberadamente não fornece a resposta
saico cuja reconstituição é delegada ao leitor. de imediato; a resposta é estrategicamente adiada para
Entretanto, nessa reconstituição, as perspecti- que um vazio se instaure e o leitor tenha vez na narra-
vas textuais não se separam nem se atualizam paralela- tiva, podendo exercer seu papel de construtor de sen-
mente, mas se entrelaçam no texto e oferecem visões tidos. Várias páginas se sucedem para que a resposta
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seja obtida, pois é somente nas últimas linhas que o narrativa, pois o leitor não poderá, evidentemente,
leitor poderá constatar que Cristina é a “Clarice-que- relacioná-la ainda à morte. Essa relação só se torna
morreu-numa-gravata-cinzenta”. Percebemos, contu- possível a partir da correlação dos diferentes segmen-
do, que apesar de o texto não deixar claro a identida- tos e das perspectivas textuais que o texto, em sua
de desta Clarice, a expressão “Clarice-que-morreu- totalidade, oferece ao leitor.
numa-gravata-cinzenta” funciona como uma pista ao Quando Cristina puxa conversa com a Mulher
leitor, visto que se tal Clarice não havia sido menciona- mascarada, falando de seu fascínio por Veneza, a res-
da, a gravata cinzenta aparecera reiteradamente. posta que a Mulher fornece acentua a sensação de
Em relação à Mulher mascarada, uma série de desfamiliarização no leitor:
vazios é instaurada, na medida em que esta persona-
gem é não apenas enigmática e misteriosa, mas, mais – [...] o engraçado é que essa fascinação toda [por
Veneza] começou quando eu ainda era garotinha. Fo-
que isso: é uma figura fantástica. Personificando todas lheando um livro de Veneza que tinha lá na casa de
as Clarices vitimadas por estupradores, surge como minha vó.
um anjo vingador para punir Cristina por ter perdoado – Eu sei.
o próprio carrasco. Por aí já se percebe que não era – Sabe??
uma figura propriamente humana. Além de deter o po- Ela fez que sim.
– Mas sabe como?
der sobrenatural de invadir o espaço onírico, o fato de – Você já me contou isso antes.
a morte de Cristina ter sido profetizada por ela lhe con- Fiquei superespantada:
fere poderes demiúrgicos, uma vez que, como um deus – Mas a gente já tinha se encontrado antes?
inclemente, é capaz de tirar a vida daqueles que julga [...] A Mulher se levantou e foi indo pra porta da sala.
não merecer perdão. Fui junto: eu estava morta de curiosidade.
– Mas, hem? a gente já tinha se encontrado antes? (p.
De modo semelhante à Mulher sem rosto, a 12-13)
Mulher mascarada provoca o efeito de estranhamen-
to no leitor, a começar pela própria descrição física: As perguntas formuladas por Cristina também o
“Ela estava disfarçada que nem as mulheres da Vene- são pelo leitor, e quando a Mulher a abraça, Cristina
za antiga se disfarçavam quando iam a certas festas: parece reconhecer o abraço da amiga Clarice, que
aquela máscara branca muito estranha, aquele chapéu desaparecera após ter sido vista conversando com um
preto de três pontas, o véu de renda, tudo igualzinho.” homem. Paira, entretanto, a dúvida não apenas em
(p. 9). E, da mesma forma que as mulheres da Veneza Cristina, como no leitor:
antiga se disfarçavam, a Mulher mascarada afirma que
a Morte também se disfarça: “O guarda-roupa da Mor- – [...] A gente brincou junta quando era criança. – Dis-
te é vastíssimo; ela usa as vestimentas mais inespera- se isso e me abraçou.
Justo quando ela estava me abraçando anunciaram que
das, se disfarça de tudo que a imaginação pode inven- o conto [...] começava no escuro.
tar.” (p. 10). Esse dizer relacionado com o fato de ela As luzes se apagaram.
insistir em fazer o papel da Morte e ao fato de ela sen- E eu fiquei paralisada: [...] o abraço era o mesmo que a
tenciar a morte de Cristina leva o leitor a supor que a Clarice tinha me dado. (p. 13)
Mulher mascarada era, de fato, a própria Morte.
Se a caracterização dos trajes causa estranha- Com a interrupção do conto que seria encena-
mento por seu aspecto sinistro, a caracterização do do, gera-se um vazio na narrativa, o que faz com que a
comportamento concorre para provocar um estranha- expectativa, em Cristina e no leitor, se amplie. Quando
mento ainda maior no leitor: “Ela não conversava com as luzes retornam, Cristina espera reencontrar a Mu-
ninguém; escondida naquela máscara, ela deslizava de lher, mas ela some, o que colabora para acentuar a
sala pra sala, numa solidão que só vendo” (p. 11). expectativa inicial.
O fascínio que a Mulher provoca em Cristina se Embora a Mulher retorne à narrativa, isso só
reflete no leitor, que se pergunta: quem é, afinal de con- ocorre várias páginas depois. Antes do seu retorno, há
tas, essa Mulher mascarada? E a pergunta é pertinente uma série de histórias intercaladas sob a forma de flash-
no momento em que ela aparece pela primeira vez na backs e, mediante essa estratégia, em que a persona-
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gem fica suspensa no momento de maior tensão, con- em conseqüência, apenas na consciência imaginativa
figuram-se pontos de indeterminação cujo preenchi- do receptor se atualizará”.
mento só se torna possível pela intervenção do leitor.
Após a interposição de tais flash-backs,
retorna-se ao relato da festa na qual a Mulher reapa- Considerações finais
rece: “Lá pelas tantas eu escuto uma voz perguntando:
posso te ajudar? A Mulher estava do meu lado. Disfar- Na literatura endereçada a crianças e jovens,
çada do mesmo jeito (ah, que vontade de olhar pra situações marcadas pela dor e pela morte não são
cara dela, em vez de olhar pr’aquela máscara)” (p. incomuns, mas em O Sofá Estampado e O Abraço a
31). Como Cristina, o leitor também deseja que a representação da morte enquanto personagem cons-
Mulher retire a máscara, para que a dúvida se dissipe. titutiva da trama mostra-se realmente inovadora. Nas
É, pois, nessa medida que a Mulher afigura-se ao lei- obras estudadas, as personagens que simbolizam a
tor como uma mulher sem rosto, ou melhor, o seu ros- morte são construídas com tal esmero pela autora, que
to surge como um vazio, já que é preciso imaginar o provocam no leitor um fascínio que parece espelhar
rosto existente por trás da máscara. àquele sentido por Vítor e Cristina.
Como em nenhum momento a máscara é retira- Conservando certo parentesco, mas descritas e
da, o vazio em relação ao rosto da Mulher permanece construídas de modos diferentes, a Mulher sem rosto
até o final, sendo que o momento de maior estranha- e a Mulher mascarada logram provocar no leitor um
mento ocorre quando, no episódio final, Cristina tenta, misto de prazer e estranhamento, que, por seu turno,
em vão, retirar a máscara: surge como efeito estético decorrente do próprio ato
da leitura. Embora diferentes nos trajes e na atitude, a
– Você disse que ia tirar a máscara pra gente ensaiar. Mulher sem rosto e a Mulher mascarada se asseme-
Sem dizer uma palavra, a Mulher chegou bem pra perto
de Cristina e esticou o pescoço.
lham, em virtude do mistério que as reveste, da postu-
Cristina ficou ainda mais nervosa, por que que era ela ra intimidadora, da ausência de rosto, sendo ambas
que tinha que tirar a máscara? retratadas como figuras fantásticas, envoltas em uma
A Mulher esperando. aura de estranheza.
De coração meio disparado, Cristina pegou o gesso No entanto, a Mulher mascarada parece-nos
branco; puxou a máscara.
A máscara não se mexeu.
mais bem construída, como se consistisse em uma ver-
Cristina puxou com mais força. são aprimorada da Mulher sem rosto. Isto porque en-
Nada. quanto esta apenas tira a vida de um indivíduo no mo-
– Me ajuda, Clarice. mento em que é chegada a hora natural de morrer,
Mas a Mulher também não se mexeu. aquela possui um senso moral, revelando-se um anjo
– Clarice, eu não tô conseguindo, me ajuda.
A Mulher imóvel. (p. 53-54)
justiceiro, que surge para punir Cristina por ter perdo-
ado o próprio estuprador. A par disso, a Mulher mas-
O leitor poderá indagar: Por que essa máscara carada, muitas vezes, confunde-se e mescla-se com as
não saía? Por que nem sequer se mexia? E uma das várias Clarices mencionadas, exigindo do leitor um maior
impressões mais estranhas que o texto poderia susci- trabalho cooperativo, ao deslindar a trama narrativa.
tar é a de que a Mulher mascarada não tinha mesmo Como lembra Eco (1986), é justamente através dessa
rosto algum, de que a máscara era o seu rosto. Sendo cooperação interpretativa que se retira do texto o que
a Mulher uma figura fantástica, não-humana, dotada ele não diz (mas pressupõe) e se preenchem os espa-
de estranhos poderes, sendo, enfim, a própria Morte ços vazios, relacionando-o à trama de intertextualidade
disfarçada, os elementos textuais não invalidam essa da qual esse texto se origina e para a qual conflui.
leitura, mas trata-se, evidentemente, apenas de uma Em vista da leitura empreendida, podemos afir-
leitura possível, já que outros leitores poderiam atuali- mar, portanto, que ambas as obras, em virtude da re-
zar o vazio aí configurado de outras formas. Afinal, presentação inusitada da morte, são textos que logram
como afirma Iser (1996, p. 75), “o sentido do texto é prender seu leitor em um abraço. Trata-se, porém, não
apenas imaginável, pois ele não é dado explicitamente; de um abraço de morte como o do estuprador ou o
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do lenço esvoaçante da Mulher sem rosto, mas de um
abraço de vida, uma vez que conduz o leitor a novas
visões do mundo e do ser, a partir da visão que a auto-
ra transplanta em sua diegese.
REFERÊNCIAS
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sobre Angélica e O Abraço de Lygia Bojunga Nunes. Disser-
tação (Mestrado em Letras). Universidade Estadual de Ma-
ringá, 2006.
BARBOSA, J. A. A biblioteca imaginária. São Paulo: Ateliê
Editorial, 1996.
BOJUNGA, L. O Abraço. Il. Rubem Grilo. 4. ed. Rio de Janeiro:
Agir, 2004.
ECO, U. Lector in fabula. Trad. Attílio Cancian. São Paulo:
Perspectiva, 1986.
ISER, W. O ato da leitura. Trad. Johannes Kretschmer. São
Paulo: Ed. 34, 1996, v. 1.
JAUSS, H. R. A história da literatura como provocação à teoria
literária. Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática, 1994.
NUNES, L. B. O Sofá Estampado. Il. Elvira Vigna. 4. ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1983.
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