Confesso Que Perdi

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juca kfouri

Confesso que perdi


Memórias

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Copyright © 2017 by Juca Kfouri

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990,


que entrou em vigor no Brasil em 2009.
Capa
Rodrigo Maroja
Foto de capa
© Renato Parada
Caderno de fotos
Claudia Espínola de Carvalho
Preparação
Márcia Copola
Checagem
Érico Melo

Revisão
Jane Pessoa
Márcia Moura

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)


(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Kfouri, Juca
Confesso que perdi : Memórias / Juca Kfouri. — 1a ed. — São
Paulo : Companhia das Letras, 2017.

isbn 978‑85‑359‑2973‑7

. Futebol – Brasil 2. Futebol – Brasil – História i. Título.

17‑06679 cdd‑796.3340981

Índice para catálogo sistemático:


1. Brasil : Futebol : História 796.3340981

[2017]
Todos os direi­tos desta edi­ção reser­va­dos à
editora schwarcz s.a.
Rua Ban­dei­ra Pau­lis­ta, 702, cj. 32
04532‑002 — São Paulo — sp
Tele­fo­ne: (11) 3707‑3500
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Para Luiza e Julia

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Sumário

Abreviaturas e siglas ................................................................... 9

1. A primeira Copa a gente nunca esquece ............................... 13


2. A Máfia da Loteria ................................................................. 33
3. Duas derrotas: Diretas Já e Democracia Corinthiana .......... 42
4. A vingança francesa e a de Montezuma ................................ 54
5. Fundamos a Premier League. Que afundou… ..................... 69
6. Castor de Andrade, Collor e Maluf ....................................... 76
7. O
 Brasil perde mais uma Copa, e a morte de
João Saldanha ......................................................................... 89
8. Minha vida de Playboy ........................................................... 96
9. Virada de Placar ..................................................................... 108
10. O Rei, escondido, vira ministro........................................... 122
11. Olha lá, na Placar .................................................................. 130
12. Não luto e luto ...................................................................... 142
13. Novo século, novos tempos, velhas lutas ............................. 158
14. A Copa desprezada de Zinedine Zidane .............................. 168
15. O Timão cai, sobe, e a Seleção desmorona .......................... 176

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16. A Fifa, seus chefões e chefinhos ........................................... 184
17. A Copa do Mundo não é nossa ............................................ 192
18. Santa Filomena ..................................................................... 206
19. Três Olimpíadas inesquecíveis ............................................. 214
20. Sócrates, um capítulo à parte .............................................. 227
21. Collor, fhc, Lula, Dilma e eu ............................................... 233

Epílogo: Confesso que perdi ..................................................... 243

Créditos das imagens .................................................................. 247

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Abreviaturas e siglas

abc Região dos municípios de Santo André, São Bernardo do


Campo e São Caetano do Sul, em São Paulo
Adin Ação Direta de Inconstitucionalidade
aln Ação Libertadora Nacional
Ambev Companhia de Bebidas das Américas S.A.
apca Associação Paulista dos Críticos de Arte
Arena Aliança Renovadora Nacional
bbc British Broadcasting Corporation
bndes Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
cbd Confederação Brasileira de Desportos
cbf Confederação Brasileira de Futebol
cbn Central Brasileira de Notícias
cef Caixa Econômica Federal
cip Congregação Israelita Paulista
cnd Conselho Nacional de Desportos
cnt Central Nacional de Televisão
cob Comitê Olímpico do Brasil
coi Comitê Olímpico Internacional

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Conar Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária
cpi Comissão Parlamentar de Inquérito
cpor Centro de Preparação de Oficiais da Reserva
dc Democracia Corinthiana
Dedoc Departamento de Documentação da Editora Abril
dem Democratas
doi‑Codi Destacamento de Operações de Informações — Cen‑
tro de Operações de Defesa Interna
Dops Departamento de Ordem Política e Social
espn Entertainment and Sports Programming Network
fbi Federal Bureau of Investigation
Fifa Federação Internacional de Futebol
fpf Federação Paulista de Futebol
gp Grande Prêmio
ibge Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
Incor Instituto do Coração da Universidade de São Paulo
isl International Sport and Leisure
JG Jornal da Globo
JN Jornal Nacional
mfs Movimento de Fortalecimento do Sindicato dos Jornalis‑
tas de São Paulo
mp Medida Provisória
nba National Basketball Association
onu Organização das Nações Unidas
pc Partido Comunista
pcb Partido Comunista Brasileiro
pcdob Partido Comunista do Brasil
pdt Partido Democrático Trabalhista
pfl Partido da Frente Liberal
pm Polícia Militar
pmdb Partido do Movimento Democrático Brasileiro



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Profut Programa de Modernização da Gestão e de Responsabili‑
dade Fiscal do Futebol Brasileiro
psb Partido Socialista Brasileiro
psdb Partido da Social Democracia Brasileira
pt Partido dos Trabalhadores
ptb Partido Trabalhista Brasileiro
puc Pontifícia Universidade Católica
qg Quartel‑General
rh Recursos Humanos
sbt Sistema Brasileiro de Televisão
stf Supremo Tribunal Federal
sus Sistema Único de Saúde
Tuca Teatro da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
tva Televisão Abril
Unicamp Universidade Estadual de Campinas
uol Universo Online
upi United Press International
usp Universidade de São Paulo
uti Unidade de Terapia Intensiva
Varig Viação Aérea Rio‑Grandense
vpr Vanguarda Popular Revolucionária



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1. A primeira Copa a gente nunca
esquece

Estou sentado numa confortável poltrona do avião da Iberia


com destino a Sevilha e escala em Madri.
A Copa do Mundo de 1982 é o objetivo, e uma sensação de
quase euforia me invade quando ouço o aviso da decolagem.
Quantas pessoas não gostariam de estar no meu lugar?
Quantas não pagariam para curtir uma Copa? Pois eu estava indo
com tudo pago, teria o salário religiosamente depositado no dia
1o e no dia 15 e outra vez no dia 1o, ficaria em hotéis decentes,
almoçaria e jantaria (nem sempre, nem sempre) à custa da Edito‑
ra Abril, que mais poderia querer?
Seria minha primeira Copa in loco, aos 32 anos, diretor de
redação, desde 1979, da Placar, então A (com maiúscula mesmo)
revista semanal de futebol do país. Só me beliscando para ver se
era verdade.
O futebol estava na minha vida desde sempre, tanto que mi‑
nha primeira memória nítida é a decisão do Campeonato Paulis‑
ta de 1954, o do iv Centenário de São Paulo, acontecida em feve‑
reiro de 1955, um mês antes de eu completar cinco anos.



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O Corinthians empatou 1 a 1 com o Palmeiras, tornou‑se o
Campeão dos Centenários, pois tinha vencido o campeonato dos
cem anos da Independência, em 1922, e meu pai nos levou, meus
dois irmãos mais velhos, Cacalo e Beto, e eu, para comemorar no
Parque do Ibirapuera, recentemente inaugurado.
Ah, sim, se você não sabe, sou corintiano, uma das melhores
heranças que o velho Carlos nos deixou, além da obsessão pela
retidão, promotor de justiça que era. Cresci ouvindo‑o contar his‑
tórias do Corinthians, a cujos jogos sempre ia levado pelo seu An‑
tônio, um português que era dono da mercearia vizinha à casa de
meu pai. Quando o juiz entrava em campo, seu Antônio gritava:
— Ladrão, ladrão!
As pessoas em volta estranhavam, o jogo nem havia começa‑
do. E ele:
— É pra sabeire, é pra sabeire!
Herdei do velho Carlos, também, a admiração pelo camisa 7,
meu número preferido, Cláudio Christóvam de Pinho, chamado
de Gerente porque comandava o time como se fosse um armador.
Conheci Cláudio por acaso, no Morumbi, no meio de um
jogo qualquer, dois anos antes de sua morte. Ao vê‑lo, fiz questão
de abordá‑lo e dizer o quanto gostava dele, acrescentando que
meu pai me aconselhava a comer agrião porque “o Cláudio leva
agrião no bolso do calção”.
Levei anos para me tocar que o calção dos jogadores não tem
bolso, mas, humilde, o Gerente olhou para mim e disse:
— Que bom, pra alguma coisa eu servi.
Cláudio é até hoje o maior artilheiro do Corinthians, com
305 gols.
Trocamos telefone, ele vivia em Santos, e nos falávamos de
vez em quando.
Cláudio era sinônimo do Corinthians vencedor, situação in‑
vertida depois do título de 1954 até 1977, período do longo jejum



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alvinegro, terminado num 13 de outubro, no Morumbi, gol de
Basílio, o Pé de Anjo, aos 37 minutos do segundo tempo.
Quando me perguntam quem eu gostaria de ser se não fosse
eu, corrijo a pergunta e respondo que gostaria de ser o Basílio,
não de ser eu. Explico por quê.
Pense num menino corintiano acostumado a ouvir histórias
sobre as façanhas de seu time, o qual, no entanto, nunca consegue
ser campeão, enquanto o São Paulo era, em 1957, e Santos e Pal‑
meiras se revezavam, mais a equipe praiana que a alviverde, com
timaços.
Imagine um adolescente corintiano que, entre 1957 e 1968,
nem sequer vira uma vitória contra o Santos.
Reflita sobre um adulto corintiano que, em 1974, com 24
anos, testemunhara o vigésimo ano sem títulos, na derrota para o
Palmeiras por 1 a 0 que, além de tudo, decretou a saída do melhor
jogador da história alvinegra, o injustiçado Roberto Rivellino,
campeão mundial pela Seleção em 1970.
Já chefe de reportagem da revista Placar, eu estava no meio
da torcida naquela noite de 1977. Vi o gol de Basílio e nada mais,
uma vez que os olhos embaçaram. Lembro de um jovem de uns
quinze, dezesseis anos, perguntar se eu estava me sentindo mal e
de responder que nunca tinha me sentido tão bem.
Não sei como, mesmo, fui parar no gramado do Morumbi,
com uma bandeira na mão, bandeira que não levara ao estádio e
não me recordo de ter comprado.
Lembrei, então, que havia prometido ir buscar minha mu‑
lher Ledinha, do segundo casamento, em casa se o Corinthians
fosse campeão, para irmos ver o trio elétrico Tapajós, que a Placar
trouxera da Bahia para a festa da vitória.
Liguei o rádio do carro e mudei de estação, porque Osmar
Santos declamava algo como “o que será que você me dá, Corin‑
thians”, apropriando‑se da letra de “À flor da terra”, de Chico



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Buarque, composta um ano antes para o filme Dona Flor e seus
dois maridos, o que me despertou uma enorme vontade de chorar.
Troquei para a Bandeirantes, onde Fiori Gigliotti chamava
Mauro Pinheiro, o Senador, para seus comentários. Melhor teria
sido desligar o rádio.
Mauro começou mais ou menos assim:
— Antes de falar do jogo, da festa, quero mandar um abraço
ao jovem jornalista, chefe de reportagem da revista Placar, Juca
Kfouri, que deve estar enlouquecido em algum lugar do estádio.
Eu passava em frente ao Hipódromo de Cidade Jardim; subi
na ilha que separa as duas mãos da avenida, e chorei de alegria
todos os prantos inconformados dos tempos de criança.
Quando, digamos, voltei a mim, era tarde para ir atrás do
trio elétrico, embora já pudesse morrer. Peguei minha mulher e
fomos à cantina Gigetto, que ficava aberta madrugada adentro e
era frequentada pela classe teatral.
A paixão pelo futebol pautou minha infância e adolescência,
a ponto de eu fazer um arquivo das coisas do Corinthians, do
Pelé, de basquete, que joguei à vera dos catorze aos dezoito anos
no Club Athletico Paulistano, dois anos como infantil, mais dois
como juvenil e uns poucos meses na categoria principal, abando‑
nada depois de uma derrota para o Corinthians de Amaury Pa‑
sos, Wlamir Marques, Ubiratan, Rosa Branca, todos bicampeões
mundiais em 1963.
Tenho recortes com fotos de Pelé atuando como goleiro pelo
Santos contra o Grêmio, numa tarde, no Pacaembu, em que Gyl‑
mar dos Santos Neves, melhor goleiro da história do nosso fute‑
bol, bicampeão mundial pela Seleção e pelo Santos, foi expulso de
campo.
Embora eu sempre tenha sido corintiano, o Santos teve
grande importância em minha adolescência, porque era impossí‑
vel gostar de futebol e não gostar do Santos. Devo àqueles jogado‑



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res vestidos de branco muitas alegrias e, ao menos, dois anos de
vida saudável.
Comecei a fumar muito cedo, aos doze anos. Surpreendido
com um cigarro na boca por meu pai, um fumante moderado
que apreciava, às vezes de olhos fechados, o prazer da nicotina,
ouvi dele um conselho, não uma bronca:
— Não posso impedir que você fume, porque também fu‑
mo. Mas não faz bem, ainda mais para quem quer ser jogador de
basquete. E prefiro que você fume na minha frente, porque, es‑
condido, você vai fumar mais.
Segui fumando longe dele, mas sem a irresistível sensação da
coisa proibida. Até que o Santos, em 1963, disputou o mundial de
clubes com o Milan, e perdia por 2 a 0 no intervalo do jogo, num
Maracanã lotado por 132 mil cariocas que, como eu, adoravam o
time. No banheiro de casa, aos treze anos, prometi, olhando para
o espelho, que, se o Santos virasse, pararia de fumar.
O Santos virou o placar para 4 a 2, ganhou o jogo no desem‑
pate, porque havia perdido em Milão pelo mesmo placar, e foi
cam­peão. Só voltei a fumar, aí já na frente de meu pai, aos quinze
anos.
A virada santista é um de meus jogos inesquecíveis, narrado,
na antiga tv Record, por Raul Tabajara, que antes do quarto gol,
em falta batida por Pepe, citou Camões:
— Cesse tudo que a Musa antiga canta que outro valor mais
alto se alevanta… goooooollll!
Havia caído uma tempestade colossal sobre o Rio de Janeiro,
muita, mas muita água, e muitos gols — o suficiente para forçar
o terceiro jogo, vencido pelo Santos por 1 a 0 —, mesmo sem o
machucado Rei Pelé nos dois jogos.
Do bicampeonato mundial de basquete, no Maracanãzinho,
tenho recortes dos quais fiz cópias e dei de presente para Amaury
Pasos e Wlamir Marques, a melhor dupla que vi jogar no Brasil.
Minha despedida do basquete se deu pela constatação de



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que o jogo jogado por eles era muito diferente daquele praticado
por mim, depois do aplastrante resultado de 135 a 60 no ginásio
do Jardim América.
Quando juvenil, perdi os dois lances livres decisivos que le‑
variam o Paulistano ao campeonato estadual em Franca, sonho
do time que disputava o quarto lugar (Corinthians, Palmeiras e
Sírio se revezavam entre os três primeiros) com o Floresta — que
virou Esperia mais tarde, ao readotar seu nome de origem, troca‑
do na Segunda Guerra como o do Palestra, que virou Palmeiras.
Frustração redobrada porque, depois de, na quadra, ser con‑
solado pelos companheiros, no chuveiro ouvi alguém dando
murros na parede do boxe ao lado e, ao sair para ver quem era,
encontrei um dos colegas, o Viana, que não sei que fim levou,
batendo no chão e na parede enquanto blasfemava:
— fdp do Kfouri, fdp do Kfouri.
Fiquei arrasado.
Nós perdíamos por um ponto quando, ao faltarem apenas
três segundos para terminar o jogo, sofri uma falta. Nosso técnico
pediu tempo e falou só comigo:
— Kfouri, nos treinos você quase não perde lances livres.
Nem precisa fazer os dois. Empata o jogo que a gente ganha na
prorrogação.
Acho que aquele minuto parado foi fatal. Esfriei e… tremi.
Por anos a fio não esqueci esse momento.
Como colecionava recortes de jornais e de revistas, acabei
indicado por um amigo para trabalhar no Dedoc da Abril, a fim
de atender à revista Placar, que nasceu em 1970, antes da Copa do
México, a do tricampeonato mundial de Pelé, Tostão, Rivellino,
Gérson, Jairzinho e cia.
O Departamento de Documentação e Pesquisa (hoje apenas
Departamento de Documentação) foi criado para servir à Veja,
em 1968. Tinha milhares de pastas de fotos e recortes alimentadas



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por seus funcionários, em regra gente que vinha dos cursos de
História, Economia, Geografia, Filosofia e Ciências Sociais.
Aprendi muito naquela “escola” frequentada pelos melhores
jornalistas do país em busca de informações para suas reporta‑
gens. Pense num grande nome da imprensa brasileira e tenha cer‑
teza: passou horas no Dedoc pesquisando.
Todos ali eram mais velhos que eu, como Celso Ming, até
hoje colunista de Economia do Estadão, e Irede Cardoso, uma
feminista militante que veio a se eleger vereadora pelo pt nos
anos 1980.
Antes de estrear de corpo presente numa Copa, portanto, eu
já tinha participado das Copas de 1970, 1974 e 1978, nas duas
últimas como chefe de reportagem da Placar.
Nunca havia pensado em ser jornalista, apesar de meu avô
materno, Luis Amaral, que era de direita, ter sido o primeiro
repórter a entrevistar Luís Carlos Prestes no comando de sua
Coluna.
Tive pouco contato com esse avô, porque o conheci já depois
de ele ter sofrido um derrame cerebral. Mas sei que não se tratava
de uma figura fácil. Viveu entre os índios, era ativista do coopera‑
tivismo, especialista em questões agrícolas. Antissemita e antis‑
sionista, escreveu, em 1948, Os servos do Talmud, livro em que
arrasava os judeus. Participou da fundação da Folha da Noite, ori‑
gem do Grupo Folha. Era profundamente orgulhoso, a ponto de
preferir passar por bêbado a admitir que estava sequelado pelo
derrame.
Uma vez, férias de julho no Rio, em Ipanema, na rua Viscon‑
de de Pirajá, quando minha mãe saía comigo e com meus irmãos
para a praia, ele pediu a ela que não fosse.
— Tenho de cuidar das crianças para que não se afoguem
— ela ponderou.
— Que morram — reagiu.



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Sim: não tenho uma boa lembrança dele.
Entrei na Faculdade de Ciências Sociais da usp com duas
ideias: seguir carreira universitária e escrever uma tese de douto‑
rado para demonstrar que o futebol, ao contrário do pensamento
vigente em nossa esquerda, era mobilizante, e não alienante. Du‑
ros tempos, aqueles. Tempos de ditadura.
Uma noite, nos barracões da Ciências Sociais na Cidade
Universitária, o professor de Sociologia 1, o grande Gabriel Cohn,
marcou prova no horário em que jogariam Brasil e Romênia, em
Guadalajara. Levantei a mão e lembrei que era dia de jogo de Co‑
pa do Mundo. A classe vaiou e o mestre submeteu à votação a
manutenção do dia da prova.
Foi então que eu soube que a classe tinha 21 alunos. Deu 20
a 1. Porque, diziam os colegas, que passaram a me tratar como
um reles alienado, “cada gol do Brasil atrasava em dez anos a re‑
volução brasileira”.
Pior ainda foi no ano seguinte, nos Jogos Pan‑Americanos
em Cali, na Colômbia, quando anunciei que torceria pelo time
brasileiro de basquete contra Cuba.
— Mas você vai torcer contra o time do Comandante [Fidel
Castro]? — perguntavam meus colegas.
— A Revolução é uma coisa, basquete é outra. Eu sou brasi‑
leiro, não sou cubano — eu respondia.
Nunca permiti que a ditadura roubasse até o que eu tinha de
mais íntimo. Seguia me comovendo ao ouvir, e sempre cantei, o
Hino Nacional, porque era o do meu país, não o da ditadura
usurpadora. Já bastava o medo que ela nos incutia.
O desfecho do episódio com Gabriel Cohn é saboroso.
Em 1982, sou convidado pelo professor e historiador da usp
José Sebastião Witter para participar de uma reunião em que se
discutiria a elaboração de uma enciclopédia brasileira do futebol.
Reunião em curso, entra na sala o mestre Gabriel. Não seguro
minha surpresa, há uns oito anos sem vê‑lo, e exclamo:



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— Mestre, você aqui?!
Incontinente, ele se dirige a mim de dedo em riste e sorriso
irônico:
— Você só está surpreso porque é tão preconceituoso como
os seus colegas que não me deixaram ver Brasil e Romênia na
Copa de 70.
— Peraí, professor. Foi você quem marcou a prova — retruco.
— Sim, foi, porque sou desligado. Mas, depois daquela noite,
você nunca mais falou de futebol comigo. E saiba que sou tão ou
mais corintiano que você e que não acredito em sociólogo no
Brasil que não tenha as calças puídas pelas arquibancadas. Mas
você também achava que a faculdade não era o locus apropriado
para falar de futebol.
Gabriel Cohn acabou por influenciar minha escolha pelo
jornalismo. Ao dar uma nota alta em meu trabalho final em So‑
ciologia 4, a respeito do sociólogo francês Émile Durkheim, sob o
pretensioso título “Durkheim, um conservador?”, o que só um
moleque de 23 anos poderia escrever, ele observou:
— Você tem certeza de que não quer ser jornalista?
Quando perguntei a razão da observação, numa nota tão
boa, ele foi ao ponto:
— Como trabalho acadêmico talvez eu devesse dar zero, mas
como resenha está muito divertida.
No ano seguinte, ao começar a fazer pós‑graduação, sempre
às terças‑feiras, em Política com o professor Francisco Weffort,
um dos fundadores do pt e depois ministro da Cultura de fhc,
surgiu o convite para assumir a chefia de reportagem da Placar e
tive de optar.
Não havia pós‑graduação à noite e a Abril me liberava para
fazer o curso, algo impossível com a Placar, porque a abertura da
revista se dava às terças, dia de expedir as pautas e cobrar as ante‑
riores, função do chefe de reportagem.



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Bem mais tarde soube que em minha classe a maioria fazia
parte, como eu, de grupos clandestinos. Já aos dezessete anos, eu
era do chamado “grupo de apoio” da Ação Libertadora Nacional,
a aln, organização de combate à ditadura comandada por Carlos
Marighella e Joaquim Câmara Ferreira.
Ajudava a fazer a documentação para quem tinha de sair do
Brasil e, depois da morte de Marighella, em 1969, servi como mo‑
torista de Câmara Ferreira, o Toledo, ou o Velho, a quem devo o
fato de estar vivo. Ajudei a fazer os documentos, por exemplo, do
publicitário Carlos Knapp, o Washington Olivetto dos anos 1960
em São Paulo, dono da badalada agência Oficina de Propaganda.
Knapp dirigia sua Mercedes‑Benz com Marighella para cima
e para baixo, além de esconder o guerrilheiro em sua residência,
no elegante bairro paulistano do Jardim Europa, a trezentos me‑
tros da casa do comandante do ii Exército. Ninguém desconfiaria
que dentro de um carrão raro como aquele na cidade pudesse
estar o “inimigo público número um” da ditadura.
Não foi fácil tirá‑lo do país, pois Knapp usa bota ortopédica
por causa de uma osteomielite sofrida na infância.
Relato apenas este caso porque o próprio publicitário já o
contou em suas memórias Minha vida de terrorista.
Mas não foi por nada disso que na noite de 7 para 8 de se‑
tembro de 1971 fui preso e levado para o doi‑Codi, na rua Tutoia,
o inferno chamado de Operação Bandeirantes.
Em plena Semana da Pátria na faculdade, fui estudar com
três colegas no apartamento de um deles no Guarujá. Na volta a
São Paulo, os convidei para tomar cerveja em minha casa. Dois
aceitaram o convite. O terceiro, Guido Mantega, não aceitou. Pas‑
samos a brincar com ele por ser um cara de sorte e com ele viajei,
no ano seguinte, até a região dos lagos quentes de Osorno, no
Chile, de automóvel.
Pouco antes da meia‑noite, quando nos preparávamos para



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