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Jogados em um mundo de garras e chamas, Lyana e Rafe devem
trabalhar juntos para sobreviver. Dragões são abundantes. O perigo espreita.
E os híbridos estão em busca de sangue. Mas talvez mais aterrorizantes sejam as questões em seus corações. Eles estão prontos para liderar? Eles já estiveram verdadeiramente apaixonados? Ou com a profecia cumprida, tudo o que eles pensavam que tinha desmoronaria?
Com as ilhas agora devolvidas ao mar, dois mundos tornaram-se um. As
aves farão de tudo para proteger suas casas. Os magos farão qualquer coisa para pegá-los. E sem um rei ou rainha da profecia para os guiar, a paz já não é uma opção. Xander deve decidir onde está sua lealdade: com os corvos que ele jurou servir ou com a mulher que ele não consegue evitar de amar.
Nas profundezas dos sonhos do skryr, Cassi testemunha a visão final da
profetisa. Uma maga da fenda vive e Cassi é a única com o poder de encontrá- la. Ela sacrificará qualquer coisa para salvar o mundo, incluindo seu futuro com Xander, mas mesmo a rainha dos segredos nunca previu os mistérios que a esperavam na névoa. O mundo era pouco mais que um zumbido monótono enquanto Solvei caminhava ao longo da costa, recolhendo conchas sob o sol quente. Às vezes, ela se perguntava que som seus dedos dos pés faziam ao pisar na areia. Às vezes, ela imaginava o barulho calmante das ondas. Às vezes, como hoje, ela ficava feliz por não saber – feliz por seu mundo estar em silêncio. Isso permitia que ela se retirasse para seus pensamentos, sua mente girando freneticamente o suficiente sem o peso adicional da barulhenta vila atrás dela ou das ondas estrondosas. O senhor da guerra estava chegando. Ele tinha estado na aldeia antes, mas não em anos, e não desde que tudo em sua vida mudou. Mesmo agora, a magia escondida sob seus dedos chiava, fazendo cócegas em suas palmas. Era tudo o que ela podia fazer para não abrir e fechar os punhos, revelando que ela estava no limite. Talvez fosse por isso que ela veio à praia, para encher as mãos com bugigangas frágeis, para forçar a inquietação a parar. Na maioria dos dias, os outros aldeões não prestavam atenção nela. Ela era surda e quase muda, e isso foi o suficiente para descartá- la. Isso costumava incomodá-la. Agora, com esse poder fluindo em suas veias, ela deu as boas-vindas ao indulto. Recentemente, porém, alguém estava observando. Ela não sabia quem ou por quê, mas havia uma coceira na nuca que nenhum arranhão poderia apagar – a consciência de olhos constantemente seguindo cada movimento dela. E havia apenas uma razão que ela poderia imaginar para isso. Alguém a tinha visto. Alguém sabia o que ela era. Alguém contou ao senhor da guerra. Claro, ela pode estar errada. A paranoia pode estar levando a melhor sobre ela. Mas se ela estava certa, ela precisava correr. Em breve. Porque ela nunca o deixaria levá-la. A única razão pela qual ela ficou foi sua família. A ideia de deixar a mãe e a irmã a cortava como uma lança no coração. Com um suspiro, Solvei parou para inspecionar um denso bolsão de conchas. Seu cabelo loiro balançava com a brisa forte, suas tranças volumosas se desfaziam lentamente com o vento. Ela se ajoelhou para passar os dedos pelos pedaços quebrados, procurando por conchas inteiras que sua mãe pudesse costurar em suas roupas formais – e foi quando ela sentiu. Um formigamento deslizou por sua espinha. Seus ombros se contorceram. Algo estava errado. Algo estava terrível, terrivelmente errado. Com mãe dela? Sua irmã? Solvei se levantou de um salto e girou em direção à aldeia, com um suspiro nos lábios. De onde ela estava ao longo da extremidade da enseada, uma profunda poça de água deveria tê-la separado das estruturas de madeira grosseiramente talhadas espalhadas diante da floresta. Em vez disso, havia apenas areia. Barcos de pesca jaziam como cadáveres na baía deserta. À distância, as pessoas corriam para as árvores, olhando por cima dos ombros. Bocas escancaradas, soltando gritos que ela não podia ouvir. Com o medo coagulando como leite azedo em seu estômago, Solvei se virou. Uma parede de água corria em sua direção, como se o deus do mar tivesse engolido o oceano e depois cuspido de volta. O som, ela imaginou, deve ser estrondoso, alto o suficiente para alertar todos, menos ela. Não havia tempo para correr. Não havia tempo para gritar. Quando a água espirrou em seu rosto, ela jogou as mãos para cima. Magia branca irrompeu de suas palmas e ela saltou pela fenda. A água a seguiu, encharcando suas panturrilhas nuas e espirrando no piso de cerâmica de sua casa. Com um movimento de sua mão, a magia se dissipou. — Mamãe! Sissa! — Ela tentou desesperadamente gritar, mas engasgou com as palavras. Que ruído retorcido saiu de seus lábios, ela nunca saberia. A sala principal estava vazia. Ambos os quartos estavam vagos. Enquanto Solvei corria pela porta da frente, a água corria pela aldeia. Edifícios desmoronaram sob a força da onda. Uma a uma, as pessoas que corriam em sua direção desapareceram na torrente. Mamãe! Sissa! Ela pensou, sua magia se contorcendo. A corda para seus espíritos tremeluziu, instável, enquanto ela tentava ancorar seu poder em sua localização. Leve-me até elas. Leve-me onde elas estão. Um portal se abriu e a água bateu em seu peito, derrubando-a no chão. Não! Ela forçou a abertura enquanto rolava, derrubada pelo mais leve toque da onda. Encharcada, ela levantou a cabeça para olhar para a água jorrando em sua direção. Era onde estava sua mãe, onde estava sua irmã, bem no coração da destruição. Com a magia na ponta dos dedos, ela alcançou seus espíritos novamente. Desta vez, seu poder não conseguiu se firmar. Elas se foram. Uma dor diferente de qualquer outra que ela sentiu antes rasgou seu peito, como o corte das garras de um grande urso, arrancando seu coração de seu corpo. Levem-me com vocês, ela implorou silenciosamente. Não me deixem. A água se aproximava implacavelmente, mas ela não conseguia encontrar forças para se mover. Os aldeões passaram correndo, desesperados para escapar. Finalmente, uma mão a levantou. Solvei encontrou os olhos verdes assustados de Ivar. Ele gritou para ela, mas é claro que ela não podia ouvir. Ele a puxou, forçando-a a correr com ele. Mas não seria o suficiente. Todas essas pessoas estariam mortas em instantes. Você pode salvá-los. Disse a voz em sua cabeça que ela sempre imaginou ser a de sua mãe. Não desista. Você foi feita para coisas maiores. Você pode salvá-los. Se o fizesse, o senhor da guerra viria buscá-la. Que viesse. Solvei estendeu as mãos e fez uma costura no tecido do mundo, depois puxou Ivar. Eles tropeçaram em pedras e grama, não mais na floresta, mas no topo dos penhascos. Ela abriu mais a fenda, pegando o máximo que podia de pessoas que ainda fugiam para salvar suas vidas. A água chegava cada vez mais perto. Quando estava perto o suficiente para sentir gotas frias nas palmas das mãos, ela cortou seu poder. Uma brisa morna acariciou sua bochecha. Ela fechou os olhos e imaginou que fosse a mão de sua mãe. Na escuridão, ela imaginou o rosto risonho de sua irmã, os cachos loiros balançando em torno de suas bochechas rosadas e sardentas. O momento passou. Ivar deixou cair a mão dela como se fosse veneno e recuou em estado de choque. Por cima do ombro dele, todas as pessoas que ela salvou a observavam com cautela. Eles contariam ao senhor da guerra o que ela tinha feito. E, por essa magia, ele a acorrentaria. Ele roubaria sua liberdade. Ele iria quebrá-la, assim como tinha feito com todas as outras mulheres presas ao seu lado. Mas ele tinha que encontrá-la primeiro. Solvei desviou o olhar para as montanhas ao longe, tão altas que nunca haviam sido ultrapassadas. A névoa se derramava sobre os picos e descia pelo vale, estendendo-se até o mar, sugando a luz do sol. Ninguém navegou ali. Ninguém ousava. Havia histórias de criaturas que viviam na névoa, assustadoras o suficiente que até mesmo seu pai nunca se aventurou nessas águas quando estava vivo, assustadoras o suficiente que até mesmo o senhor da guerra poderia fazer uma pausa. Desde que sua magia chegou, ela sentiu uma atração por aquelas terras desconhecidas, como se alguém tivesse usado sua alma como uma corda e gentilmente puxado os fios. Durante anos, ela resistiu ao chamado. Finalmente chegou a hora de responder. Antes que qualquer um dos aldeões pudesse se mover para contê-la, Solvei caiu em uma fenda aberta e desapareceu, deixando seu poder levá-la adiante. Aqui não era em cima. Ou em baixo. Não tinha céu. Nem chão. Havia apenas um vórtice giratório de luz branca ofuscante. Rafe agarrou as mãos de Lyana quando os dedos dela começaram a escorregar de seu aperto. Sua pele estava úmida de suor. Seu grito soava em seus ouvidos. No fundo de seus pensamentos, cinco outras mentes permaneciam, furiosas e lutando, mas ele não as deixaria ir. Para onde quer que ele e Lyana estivessem viajando, as criaturas iam com eles, querendo ou não. De repente, o brilho piscou. Sua visão foi manchada e ele bateu contra uma superfície dura. Quando ele rolou, pontas afiadas cravaram em sua pele e Lyana se soltou de seu aperto. Ela não fez nenhum som. O silêncio o aterrorizou mais do que os gritos dela. — Ana! — Ele gritou, levantando-se com dificuldade enquanto sua visão voltava em manchas borradas de laranja e preto. Fumaça queimava seu nariz. Ele tropeçou no terreno irregular, caindo com as palmas das mãos enquanto tropeçava para a frente. Um céu cor de ferrugem apareceu, o ar nebuloso. Em nítido contraste, a terra era de carvão profundo, composta de rochas irregulares. E, brilhantes contra aquelas rochas, estavam seis corpos, um imóvel. — Ana! Ela não respondeu. As criaturas, sim. Como uma, cinco cabeças viraram em sua direção. As amarras no fundo de sua mente ardiam. Elas seriam mais fáceis de lutar sem a criatura das sombras para mantê-lo distraído, todas suscetíveis ao seu grito de corvo e mais lentas em uma luta, mas ainda eram cinco contra um. Rafe ficou tenso quando o híbrido aethi’kine deu um passo à frente. Suas escamas brilharam com um brilho dourado e suas asas brilhantes se abriram. Aqueles estranhos olhos citrinos caíram sobre o corpo esparramado entre eles. Rafe mergulhou. A magia atingiu suas asas enquanto ele envolvia os comprimentos flamejantes de couro sobre o corpo de Lyana. O poder se dissolveu em sua pele, a força avassaladora mesmo quando o dragão em sua alma o bebeu avidamente, faminto por mais. Dor e prazer atravessaram seus ossos. Ele caiu para frente, colocando uma mão em cada lado do rosto dela para evitar esmagá-la. E foi então que ele viu. Bolhas enrugando sua pele anteriormente suave e avermelhada, agora elevada e em carne viva. O dano serpenteava acima da bainha de sua roupa, estendendo-se pelo pescoço e até a borda de suas bochechas quase como dedos. Linhas retorcidas desciam por seus braços como veias ardentes. Ele só podia imaginar as marcas escondidas sob o tecido. Ele pensou que se ajudasse, diminuiria a carga, mas não foi o suficiente. A jornada pela fenda não durou mais do que um minuto, mas foi o minuto mais longo de sua vida. — Ana — ele resmungou, pressionando a palma da mão em sua bochecha. Ela se encolheu com seu toque, um gemido saindo de seus lábios. Viva, ele pensou, o ar saindo de seus pulmões com alívio. Ela está viva. Por agora. Garras o agarraram pelo pescoço. Rafe imediatamente percebeu seu erro. A magia aethi’kine não podia controlá-lo, mas ao contrário de suas lutas com Malek, o híbrido não queimou ao tocar a alma ligada ao dragão de Rafe. Ele também era uma criatura de cinzas e fogo. Felizmente, Rafe ainda tinha um truque na manga. Quando a criatura o puxou para trás, sangue quente escorrendo por sua garganta das feridas perfurantes, ele soltou seu grito de corvo. A besta o soltou. Rafe se lançou para a frente e caiu de joelhos. Alcançando sob sua forma imóvel, ele pegou Lyana das rochas e bombeou suas asas. Ele não foi rápido o suficiente. Vento misturado com magia amarela bateu em seu peito, chicoteando as tranças de Lyana de modo que elas o atingiram no rosto. Ao redor dele, as rochas se ergueram no ar, depois dispararam pelo céu. Ele circulou suas asas em torno de ambos e caiu, rangendo os dentes quando atingiram o chão. Pedras cortaram suas costas, a dor aguda, mas ele não soltou Lyana. Ainda não. Não até que ele sentisse o fogo sempre fervilhando ao longo de suas asas se intensificar, a queimadura quente contra suas bochechas. Um cobertor escaldante de chamas o envolveu e, em seus braços, Lyana choramingou. Ele a colocou no chão o mais gentilmente que pôde, mas o tempo extra lhe custou. Um corpo o atingiu de lado e juntos eles rolaram, escamas douradas e pele de marfim, caindo sobre as rochas. A mão da criatura cobriu sua boca enquanto a outra apertava sua garganta mais uma vez, cortando o ar. Os outros quatro híbridos mergulharam em Lyana e agarraram seus membros. O prazer deles irradiava em sua mente enquanto eles se banqueteavam com sua magia, atraindo seu poder e sua força vital para sua pele. Ele lutou contra a criatura aethi’kine, um grito de corvo queimando no fundo de sua garganta. As garras seguravam como um torno ao redor de seu pescoço. A criatura bateu as asas, usando a força para segurá-lo firmemente contra as rochas. Rafe atraiu a magia da besta sob sua pele, ganhando força e coragem, mas não conseguiu desalojá-la, não importava o quanto lutasse. Rafe estava preso. Lyana estava morrendo. Ele tinha que… Um rugido trovejou pelo céu. Um novo vínculo surgiu no fundo de seus pensamentos. Ataque, Rafe comandou silenciosamente. Ataque! A criatura aethi’kine virou seu rosto para o céu assim que uma sombra caiu sobre eles. Outro rugido explodiu no ar. Depois outro, e outro. Conexão após conexão vibrava no fundo da mente de Rafe, muitos para controlar de uma vez – e ele não era o único a pensar assim. A criatura aethi’kine o soltou e cambaleou para trás enquanto os dragões circulavam acima. O poder que fluía de seu corpo zumbia como o som mais doce, atraindo-os. O ar que Rafe respirava estava misturado com o cheiro sedutor de sua magia espiritual e, se ele estava com fome, as bestas acima estavam famintas. Elas mergulharam, revezando-se para atacar o híbrido aethi’kine. Ele levantou-se para o céu, desviando para evitar suas garras. Comandos silenciosos inundaram o vínculo mental enquanto ele lutava para manter os dragões afastados, mas sua magia era muito potente, muito inebriante. As feras enlouqueceram, ignorando a razão, ignorando o comando. Tão inflamadas, elas atacaram os outros híbridos também, incapazes de sentir qualquer coisa além da magia que escoava de suas escamas, não tão atraente quanto o espírito, mas ainda pulsando com poder. A criatura da água fugiu, depois a de ar, depois a de terra, depois a de fogo, os dragões beliscando seus calcanhares. Rafe aproveitou a abertura. Ele correu para Lyana e a envolveu em seus braços. A dez metros de distância, uma lasca branca de magia da fenda pairava sobre as rochas. Ele correu em direção ao local e saltou para a linha brilhante. Nada aconteceu. Rafe se virou. Mais uma vez, ele voou para o centro do poder fervente. Nada. Um arco dourado disparou pelo céu e se agarrou a Lyana. Se a criatura aethi’kine pretendia usá-la como uma distração, estava funcionando. Mesmo inconsciente, ela respondeu ao chamado. Sua pele assumiu um sutil brilho dourado enquanto sua magia sangrava. No fundo de sua mente, os dragões ficaram mais famintos. Olhando uma última vez para a fenda, Rafe levantou voo. Aquela pequena partícula de magia branca era o único caminho para casa, mas eles não podiam ficar aqui. Lyana gemeu de dor, tremendo contra ele, mas ele não conseguia parar. Ao longo das rochas abaixo, corpos de carvão se moviam como se despertassem do sono, não mais camuflados pela paisagem como escamas em chamas acesas. Eles estavam em grande desvantagem numérica e precisavam encontrar um lugar para se esconder rapidamente. — Espere, Ana — Rafe murmurou em seu cabelo, sua voz áspera. — Por favor, espere. O tempo deixou de existir. O mundo passou em pequenas vinhetas de consciência, fluindo de uma para a outra, sem noção de quanto tempo ela estava no escuro antes de seus olhos se abrirem novamente. O mundo estava incrivelmente branco, então os céus foram pintados de laranja, e então as sombras o inundaram. Ela estava quente, depois fria, depois quente novamente. A dor explodia em estrelas piscando na escuridão, indo e vindo. Os ventos uivavam, depois a água pingava, depois um silêncio perdurava, quebrado apenas por ganidos suaves. Dela. Desta vez, quando ela abriu os olhos, chamas dançavam ao longo das paredes de uma caverna escura, iluminando pontos pontiagudos e pedras reluzentes. A luz do fogo captava gotas de água, fazendo o teto brilhar. Mas estava tranquilo. Nenhuma madeira se retorcendo. Sem calor crepitante. Ela virou a cabeça, procurando a fonte da luz. Do outro lado dela, Rafe estava sentado, as bordas de suas asas fervendo. Elas se espalhavam ao redor dela como um escudo, emitindo calor. Olhos azuis brilhantes a observavam com preocupação. — Rafe? — Como você está se sentindo? — Eu não… Lyana se interrompeu, com a garganta seca. Ele imediatamente entrou em ação, oferecendo-lhe um punhado de água fria. Ela pressionou os lábios contra os dedos dele, o coração palpitando com o toque dele enquanto ele inclinava o líquido para baixo em sua garganta. — Encontrei um rio subaquático, mas não havia frutas nem nada para usar como copos, apenas esta pedra com um núcleo oco. — Onde estamos? — Ela resmungou, sua voz fraca. Lyana tentou se sentar, mas seus músculos não obedeciam. Cada centímetro dela doía. — Shhh. Não se mexa. — Ele pegou a cabeça dela em sua mão e gentilmente a colocou em seu colo para que pudesse passar os dedos por suas mechas finamente trançadas. — Estamos do outro lado da fenda. Você se lembra de alguma coisa? — Apenas lampejos. Lembro-me de estar no ninho sagrado. Lembro-me da eclosão dos ovos. Lembro-me de segurar o espírito da criatura aethi’kine… a queimadura diferente de tudo que senti antes, e depois nada. Apenas momentos borrados que não consigo juntar — ela franziu a testa, um gosto amargo na língua. — Eu disse para você me deixar, Rafe. Eu disse para você ir para algum lugar seguro. — E eu te ignorei. Ele sorriu, um sorriso suave cheio de humor e metade de preocupação. — Você não deveria estar aqui. — Nem você. Ele segurou sua bochecha. Tudo o que ela queria fazer era estender a mão e enfiar os dedos nos dele, mas seu braço não obedecia. Até dobrar os dedos parecia demais. — Vou dar um jeito de sair daqui, Ana. Eu prometo. — Eu sei — ela suspirou e desviou o olhar para as estalactites acima. Por um momento, ela quase se enganou pensando que estava em casa, e eles estavam de volta no tempo, começando de novo na caverna onde ela o levou pela primeira vez depois que o dragão atacou. Mas desta vez, era ela quem jazia inutilmente sobre as rochas, e ele não tinha a magia para curá-la. — O que aconteceu? — A fenda nos engoliu e nos cuspiu. Todos os cinco híbridos vieram conosco. Nós lutamos, mas a magia atraiu dragões, e havia muitos neste mundo para controlar. Os híbridos fugiram para um lado e eu fui para o outro. Levei algumas horas para encontrar um lugar para nos esconder e ainda mais tempo para localizar a água. Ainda não tenho certeza do que fazer sobre a comida, mas não queria deixá-la de novo até que você acordasse. — Há quanto tempo? — Dois dias, talvez três. Ela engoliu em seco, mas não de sede. — E o que aconteceu comigo? Um pedido de desculpas brilhou em seus olhos. Ao invés de responder, ele gentilmente deslizou seus dedos por sua bochecha e ao longo de sua mandíbula, roçando lentamente sua pele até chegar à palma da mão. Então ele ergueu o braço dela apenas o suficiente para que ela pudesse ver. Seu suspiro encheu a caverna, parecendo ecoar nas paredes enquanto ela olhava para as bolhas e queimaduras que estragavam sua pele anteriormente imaculada. Ele colocou seu membro suavemente de volta para baixo antes que ela pudesse olhar por muito tempo, mas o dano era claro, e a julgar pelas dores quentes queimando cada centímetro de seu corpo, era extenso. Segurar o espírito da criatura aethi’kine cobrou seu preço. Mas estou viva. Eu estou viva. O que é mais do que Malek pode dizer. Mais do que muitos outros. E vou me curar. Com o tempo vai sarar. Não totalmente, uma voz pequena e vaidosa acrescentou, uma que ela instantaneamente detestou, mas não conseguiu silenciar. Haverá cicatrizes. Muitas cicatrizes. Cicatrizes feias, retorcidas e horríveis. — Ana — Rafe sussurrou, implorando para que ela olhasse para ele. — Você… — Meu rosto — ela sussurrou suavemente, odiando o quão fraca ela parecia. Odiando mais que ela se importasse tanto com algo que, no grande esquema das coisas, não importava. Seus olhos lacrimejaram. Ela olhou fixamente para a luz bruxuleante do fogo. — É… Há… Onde… — Elas param logo acima de sua mandíbula, estendendo-se ligeiramente em suas bochechas. Ela fechou os olhos com força. — E com ou sem elas, você é linda. As palavras pretendiam ajudar, mas ela desviou o rosto de Rafe, incapaz de acreditar que ele pudesse estar falando sério. — Ana — ele disse com mais firmeza, uma ordem real. Era uma voz que ela tão raramente o ouvia usar que ela não teve escolha a não ser finalmente encontrar seu olhar. Ele deslizou o polegar ao longo de sua bochecha, seus olhos se tornando suaves, cheios de uma profunda e tumultuada poça de emoção. — Você é perfeita. Você sempre foi perfeita e, para mim, sempre será. Um nó se formou na base de sua garganta. Era demais. Ela piscou e desviou o olhar. — Precisamos comer alguma coisa ou não sobreviveremos. A dor em seu estômago, pelo menos, era familiar. — Eu sei. Eu vou encontrar comida. Você vai descansar. E então, juntos, encontraremos o caminho de casa. Ela assentiu. As probabilidades estavam contra eles, mas isso nunca os havia parado antes. Por Rafe, ela tentaria acreditar. Com ele, tudo era possível. — Você acha… — Ela parou, o medo roubando sua voz. Ele não precisava de esclarecimentos. — Você conseguiu, Ana. Eu sei que sim. Você salvou o mundo. — Eu não consegui — ela disse, pegando seu olhar, querendo mais do que qualquer coisa que fosse verdade, que seu sacrifício tivesse significado alguma coisa. — Nós conseguimos. Seus amigos estavam seguros. O mundo deles estava seguro. Ele era o Rei Nascido no Fogo. Ela era a Rainha Nascida no Inverno. E, juntos, eles salvaram a todos. — Durma — ele murmurou, ainda passando os dedos por suas tranças, a pressão suave em seu couro cabeludo acalmando. — Você precisa de sua força. E preciso de tempo para ver que comida posso arranjar neste lugar esquecido pelos deuses. Seu lábio se curvou com o fantasma de um sorriso em seu tom. Lá estava o homem rude de quem ela se lembrava. Rafe sorriu de volta, o brilho em seus olhos acendendo uma centelha de vida dentro dela. — Você sempre foi problema, sabia disso? — Sim — seu sorriso se aprofundou. — E você adora. A alegria cintilou em sua expressão, tão deslocada considerando as circunstâncias, mas deu a ela esperança. Calor encheu seu olhar enquanto ele se inclinava para tocar sua testa na dela, suas bocas mal separadas por um centímetro. A respiração quente roçou suas bochechas como uma carícia suave. — Eu adoro… — Ele lambeu os lábios, prolongando o silêncio. — Então, novamente, eu sempre fui ávido por punição. Ele a beijou. Foi breve, apenas longo o suficiente para agitar o friozinho na barriga dela, mas estava tão cheio do amor dele, do futuro deles, da promessa de mais, de dias e anos e uma vida inteira agora que não havia nada para separá-los. — Durma, Ana — Rafe se separou e pressionou os lábios na testa dela. — Estarei de volta quando você acordar. Com um empurrão cruel, os guardas arrastaram Brilhante entre eles e a jogaram na sala de interrogatório. Com as mãos ainda amarradas nas costas, ela não conseguiu recuperar o equilíbrio. Ela caiu para a frente e bateu com a cabeça no chão de ladrilhos. Um gemido escapou de seus lábios quando seu cabelo preto e liso caiu sobre os olhos. Ela o afastou de seu rosto, não querendo que nada bloqueasse seu olhar enquanto observava a pequena multidão de estranhos olhando do outro lado das barras. Um rosto em particular chamou sua atenção. Ele se parece com ele. Isso a pegava de surpresa todas as vezes, o pensamento torcendo como uma faca em seu peito assim que ela pôs os olhos no cabelo preto esvoaçante do rei corvo e na pele de marfim, uma lembrança dolorosa. Rafe. Onde ele estava? Para onde ele foi? Fazia três dias desde que ele desapareceu no vórtice giratório de magia aethi’kine e magia de fenda. Três dias desde que ela viu o poder implodir, sem deixar nenhum sinal de seu amigo para trás. Três dias desde que ela ficou imóvel com as mãos em volta das barras de ouro que ele fundiu para bloquear seu caminho até que metade da tripulação a encontrasse. Três dias desde que foram capturados, acorrentados e trancados nessas masmorras. Maldito idiota. Brilhante não sabia se a maldição era para ela ou para Rafe. É claro que ele correu de cabeça para o perigo. Claro que ele se sacrificou. Claro que ele a deixou para trás. Isso é o que todos que ela deixava se aproximar faziam. Eles a deixavam. E ela não sabia por que ela pensou que ele poderia ser diferente. Já chega de sentir pena de mim mesma, preciso cair fora disso! A única razão pela qual meus amigos estão nessa confusão é porque eles não me abandonaram. Eles vieram me buscar. E porque eu estava agindo como uma tola aflita, todos nós fomos pegos. Malditos idiotas, todos nós. Brilhante zombou e voltou a se concentrar no homem à sua frente – Lysander Taetanus, o rei corvo. Ela tinha ouvido tudo sobre ele. Rafe costumava falar sem parar sobre seu irmão estudioso e de coração mole. Às vezes, era francamente irritante. Mas agora, cara a cara com o homem, Brilhante não estava nem um pouco impressionada. Ela tinha dificuldade em imaginar o rei diante dela como algo além de um traidor. No momento em que Rafe desapareceu, seu amado irmão lhe deu as costas, como havia feito antes. Pelo menos era assim que Brilhante via. Este rei abandonou Rafe na névoa, e agora ele deixou seu irmão ao seu destino além da fenda. Lealdade significava tudo para ela, para a tripulação, para Rafe, e este homem não tinha nada. Inútil, pior que a escória do mar, pomposo, bastardo emplumado. Brilhante jogou um chumaço de saliva em seus pés. Lysander não vacilou. Ele simplesmente abaixou o olhar para o ponto brilhante, então o devolveu sem emoção ao rei columba. — Onde está minha filha? — Não sei — Brilhante encontrou o olhar duro do homem, recusando-se a recuar. — Talvez ela esteja escondendo sua bunda, junto com aquele pedaço de pau que você parece ter enfiado lá. Smack! Sua bochecha ardeu quando o tapa reverberou pela sala. Brilhante apenas sorriu. — Melindrosos, não é? — Para onde Vesevios a levou? Essas aves e seus malditos deuses. Ela bufou, o movimento despenteando os cabelos ainda bagunçados em seu rosto. — O inferno que eu sei. — Quantos de vocês tem lá? — Se você quer dizer photo’kines incrivelmente lindos com um raciocínio rápido e mãos ainda mais rápidas, receio que haja apenas eu. — Magos — o rei praticamente rosnou, as penas cinzentas em suas costas alertas com sua frustração. — Quantos magos estão trabalhando para Vesevios? Ao ouvir a palavra mago, as outras aves reais se eriçaram. Brilhante não se preocupou em lutar contra o revirar dos olhos. Eles esqueceram com facilidade que a magia foi a única coisa que os salvou. Se não fosse por ela e pelo resto da tripulação, toda esta maldita cidade teria sido carbonizada até ficar crocante. Eles espantaram dos dragões – não que ela fosse cometer esse erro novamente. Ela ia sair daqui. Em breve. E depois disso, quaisquer dragões que restassem no mundo poderiam ter o banquete aviário sangrento que quisessem. — Nenhum. Nenhum de nós está trabalhando para Vesevios porque o maldito idiota não existe. Somos gente igual a você, só que sem as asas. E há milhares de nós nos mares. Então faça o seu pior, porque garanto a você, podemos mais do que lidar com isso. Brilhante ouviu o suspiro da capitã no fundo de sua mente, como se a mulher estivesse lá. Começar uma guerra não estava exatamente na agenda ao tentar salvar o mundo, mas ela não se importava mais. Um pé se conectou com seu intestino. Brilhante grunhiu, mas continuou olhando para o rei. — O que você quer? Ela não respondeu. — Por que você veio? Em seu silêncio contínuo, duas mãos a agarraram pelos ombros e a levantaram do chão. Então outro guarda deu um passo à frente, seu punho acertando o rosto dela. Um gosto de cobre chamuscou sua língua enquanto a magia formigava na parte inferior de suas palmas, ansiando pela liberação. Isso seria tão fácil. Mesmo com as mãos atrás das costas, tudo o que ela precisava fazer era iluminar a sala, cegar todos eles, depois girar e fritar seus traseiros. — O que você quer? — Viver — ela ofereceu ao rei um sorriso sangrento, então levou um momento para encontrar os olhos de cada ave bem-vestida do outro lado das grades. — Vocês estiveram sozinhos em suas ricas terras por muito tempo, enquanto aqueles como nós sofriam abaixo da névoa. Vocês prosperaram. Você festejaram. E agora é a nossa vez. Tudo o que queremos é viver. Não sobreviver. Viver. O medo saturava o ar. Isso fez Brilhante rir. Eles eram tão fáceis de ler – ela sabia exatamente como levá-los ao limite. Mas ela os deixaria ter medo. Porque assim que ela visse o sinal, ela sairia desse inferno, e seus deuses não seriam capazes de ajudá-los quando ela o fizesse. — Ela me odeia — disse Xander, deixando cair a cabeça na palma da mão e esfregando o cabelo com raiva. Quando fechou os olhos, ainda podia ver a ira ardendo nas íris opalas de Brilhante, a promessa de retribuição. — Todos eles. — É melhor assim — murmurou Cassi, aproximando-se de onde ele estava sentado na ponta da escrivaninha, segurando sua mão. O calor em sua pele acalmou a dor em seu peito. Por um momento, ele poderia fingir que o sonho era real. Que eles estavam realmente de volta em sua biblioteca com um fogo crepitante. Que eles estavam realmente se tocando. — É para sua própria proteção. Para proteção do seu povo. Se algum dos reis e rainhas suspeitasse que você estava nos ajudando, não quero saber o que aconteceria. Eles precisam acreditar que eu enganei você assim como enganei todos os outros. — Eu sei, é só… — Ele suspirou, olhando para seus dedos entrelaçados antes de encontrar seus olhos prateados. Eles estavam cheios de simpatia. Ela sabia o que ele diria antes que ele dissesse. — Eles acham que eu o abandonei. Assim como quando eu nunca procurei por ele depois que ele caiu no Mar de Névoa. Eles acham que eu o deixei entregue ao seu destino e, honestamente, Cassi, parece que sim. — Você não fez isso. — Então por que parece assim? — Porque nesta situação, você está indefeso — ela respondeu, franzindo as sobrancelhas com sua própria frustração. — Estamos todos desamparados. A fenda ainda está aberta. Lyana e Rafe estão em algum lugar do outro lado, presos, feridos, morrendo, não temos como saber. Sem eles, nossos dois mundos estão em conflito. E nenhum de nós tem ideia do que fazer. É por isso que Brilhante está agindo como se te odiasse. É por isso que ela está fazendo cara de brava. É por isso que ela se recusa a obedecer. Porque ela está perdida. Todos nós estamos. — E o skryr? Cassi abanou a cabeça. — Ainda preso em sua magia. — Faz dias. — E podem passar mais antes que ele acorde. Xander largou a mão dela e se afastou de sua mesa para andar pela sala. Cassi cruzou os braços e ocupou o lugar dele, observando-o. O skryr era sua única pista. O que quer que tenha sido escrito na última página do diário tinha que ser importante. Caso contrário, por que ele estava demorando tanto para analisá-lo? Todas as respostas estavam lá, esperando fora de alcance. Era enlouquecedor. E esta era a primeira vez na vida de Xander em que parecia que seus livros o haviam abandonado. — O que o pai de Lyana está dizendo? — Cassi finalmente perguntou. Provavelmente foram apenas momentos, mas Xander já se sentia como se tivesse feito um buraco no tapete. — Ele está assustado. Eles estão todos assustados e a tripulação não está exatamente ajudando. Eles têm pavor de magia, do que significa estar no meio da névoa, de perder suas casas. E não posso culpá-los. Sem a liderança de Lyana ou Rafe, ou mesmo de Malek, quem sabe o que os magos farão. Nossas ilhas estão cheias de vida, e aposto que parecem bastante aconchegantes para os habitantes de cidades como Da’Kin, depois de passarem eras lutando para sobreviver no mar. É apenas uma questão de tempo até que nossas terras sejam descobertas e infiltradas. Cassi puxou o lábio inferior para dentro da boca, estranhamente silenciosa. — Estou certo, não estou? — Sim — ela exalou alto e a mesa em suas costas se transformou em uma cadeira, na qual ela desabou com um bufo. — A luta já estourou em Da’Kin. Sem um aethi’kine para herdar a coroa, é uma batalha pelo domínio entre os magos restantes. O antigo conselho de Malek está lutando para que Jacinta seja nomeada rainha, já que ela era sua confidente mais próxima e sua magia de metal é formidável, mas há outros na cidade que se opõem ao seu plano de paz. Disseram-me que há um ferro’kine em particular que representa a maior ameaça, um homem chamado Tanos. — Eles querem nossas casas. — Eles querem comida, abrigo e terra firme sob seus pés. Você pode culpá-los? Não. Ele não podia. Mas ele também não podia oferecer sua terra natal como uma fruta madura para ser tomada. Era em momentos como aquele que ele se lembrava com clareza de que Cassi pertencia a ambos os mundos, embora nenhum deles. Para o bem ou para o mal, ela viu os dois lados. — O que nós vamos fazer? — Ele sussurrou, caindo de volta contra suas estantes. Do outro lado da janela, as estrelas brilhavam, brilhantes demais para serem reais, tão próximas que ele quase podia estender a mão para tocá-las. — Vamos encontrar Lyana e Rafe— disse Cassi, aparecendo diante dele em um piscar de olhos com um sorriso malicioso, as mesmas estrelas vivas em seus olhos brilhantes. — Vamos trazê-los para casa, e então o rei e a rainha terão que descobrir isso. Seu irmão, o rei. Xander mal conseguia entender a ideia e, no entanto, era de alguma forma a coisa mais natural do mundo de se imaginar. Ele era um guerreiro nobre e leal, claro que Rafe os lideraria. Exceto… — Nosso povo nunca o seguirá. Não com suas asas. — Vão segui-lo — murmurou Cassi com uma confiança que ele invejava. — De uma forma ou de outra. Antes que ele pudesse argumentar, ela se aproximou, agarrou um punhado de sua camisa e puxou. Ele cambaleou para a frente no momento em que Cassi ergueu as mãos para rodear seu pescoço, e então seus lábios estavam nos dele. Toda vez que eles se beijavam, ele experimentava um momento de descrença – que ela estava aqui, que uma lutadora como ela queria um estudioso como ele, que embora fossem inimigos no mundo real, eram amantes em seus sonhos. Ela tinha gosto de néctar de beija-flor, doce e efervescente, e seus nervos fervilhavam enquanto seu corpo esquentava. Antes que ele soubesse o que estava fazendo, Xander passou os braços em volta das costas dela e a puxou contra seu peito. Eles se moldaram como argila, feitos um para o outro. Ela enfiou os dedos no cabelo dele, torcendo o rosto levemente para aprofundar o beijo. Ele queria se perder nela, mas um pensamento incomodava no fundo de sua mente. — Você está tentando me distrair? — Ele murmurou entre beijos. — Por que? — Ela deslizou sua língua contra a dele, então capturou seu lábio inferior entre os dentes. Ele gemeu. — Está funcionando? — Cass… O chão cedeu sob ele enquanto a biblioteca se dissolvia em um vórtice de cores rodopiantes. Quando o sonho se formou, ele estava deitado em sua cama com as coxas dela de cada lado de sua pélvis, montando-o. Ela sorriu perversamente, suas asas salpicadas de preto e branco espalhadas gloriosamente atrás dela, e se inclinou para lamber sua garganta. Bem, quando você coloca dessa forma... Ele deslizou a mão sob a bainha de sua camisa, provocando uma respiração profunda enquanto seus dedos subiam por seu abdômen. Enquanto ele apreciava que ela nunca tentou mudá-lo nos sonhos, que ela o amava do jeito que ele era, às vezes ele desejava poder assumir o controle e segurá-la com as duas mãos. Afinal, para que serviam os sonhos senão fingir? Como se sentisse seus pensamentos, ela o agarrou pelo ombro, apertou as pernas e rolou de forma que ele precisou usar o braço direito para segurar o próprio peso, deixando a mão esquerda aberta para explorar. Assim que seu polegar roçou a parte inferior de seu seio, o sonho vacilou. Ele se separou do beijo, a mente atordoada, sangue em qualquer lugar, exceto em seu cérebro. Cassi resmungou e deixou cair a cabeça para trás contra a almofada. — Droga, pensei que tivéssemos mais tempo. — Tempo? — Ele perguntou, ainda grogue. Mas agora ele reconhecia o torpor pelo que era – o domínio dela sobre seus pensamentos se esvaindo, fazendo-o voltar a dormir. — Cassi, o que está acontecendo? — Estou lhe dando um álibi. Isso aguçou seu foco. — O quê? — Não venha atrás de nós, Xander — ela beijou seus lábios rapidamente, seu rosto já ficando embaçado. — Voltarei assim que puder. Não corra, ele queria dizer. Se você fugir, eles nunca vão te perdoar. As columbas. Os corvos. Qualquer um de seus povos. Se ela fugisse, ela realmente seria a inimiga. E ele não tinha certeza de como os dois iriam se recuperar disso. Mas ela conhecia o risco. Cassi sempre sabia exatamente o que estava fazendo. E ela se foi. Xander caiu de volta em seus sonhos normais como uma pedra afundando no fundo de um lago, incapaz de lutar, pois foi arrastado involuntariamente para baixo e a consciência desapareceu. — Levante e brilhe, princesa — disse Brilhante enquanto a água fria salpicava o rosto de Cassi. Ela gaguejou, levantando-se com o choque, e olhou para a única fonte de luz na masmorra escura como breu. — Eu dificilmente sou uma princesa. — Sério — Brilhante bufou, a luz em torno de seus dedos queimando. — Poderia ter me enganado com aquela sua atitude superior como se fosse melhor do que eu. Cassi cerrou os dentes – claramente, não havia amor perdido entre elas. — Eu disse para você me acordar quando chegasse a hora, não me afogar. — Você acordou, não é? — Brilhante deu de ombros e olhou para o lado. — Espirro? A magia azul cintilante encheu a escuridão de sua cela e sugou a água de suas roupas, secando-a. Cassi murmurou um “obrigada”. Baixinho, Brilhante bufou. — Como eu disse, uma princesa. — Já chega — a voz da capitã Rokaro cortou o ar com a agudeza de uma lâmina. — Se vocês duas não aprenderem a jogar juntas, nunca sairemos daqui. E eu não sei quanto a vocês, mas estou cansada de levar socos e dormir em um chão de pedra frio. — Pena que não temos mais um navio, não graças a… — Ah, qual é! Você ainda está brava com isso? — Cassi disparou para a photo’kine, diante da atitude que também falava por todos os outros na equipe, pois ainda ficavam em silêncio quando ela estava presente. Eles não confiavam nela. Ela entendia o porquê. Ela era a idiota que cortou as asas de Rafe e a idiota que sugeriu que eles fossem para o mundo acima e a idiota que ordenou que eles desmontassem seu navio peça por peça para usar como um trenó para chegar a Sphaira. Mas ela estava nesta masmorra, assim como eles, e ela era a idiota que passou cada momento dos últimos dias planejando a fuga, então eles poderiam beijar seu traseiro real já que insistiam em chamá-la de princesa. Uma voz masculina interrompeu. — É uma hora ruim? Brilhante ficou de pé e estendeu o escopo de seu poder. As sombras fugiram, revelando uma longa fileira de celas bloqueadas por barras de metal. Perto do final do corredor, Arqueiro estava com os braços cruzados e um sorriso nos lábios. Atrás dele, Sombra esperava, fios de escuridão envolvendo seus pés. — Finalmente! — Brilhante aplaudiu. — Eu estava começando a pensar que você só passava informações ruins. Cassi cerrou os dentes e cerrou os punhos. Não se exalte. Isso é o que ela quer. É para isso que ela vive. Ser a pessoa a ceder não era um papel que ela estava acostumada a desempenhar, e definitivamente não era um que ela apreciasse. — Alguém se machucou? — Ela perguntou ao ferro’kine, ignorando o desdém de Brilhante. Todos sabiam que ela não estava falando sobre a tripulação. Mas Sphaira tinha sido seu lar durante a maior parte de sua vida e, mesmo que agora fosse prisioneira, ela ainda se importava com as aves que viviam aqui. — Egos machucados, talvez, mas nós os amarramos ou os derrubamos. Eles vão se recuperar. — O que é mais do que qualquer um de nós pode dizer — Brilhante rosnou, interrompendo-o. — Tire-me daqui, Arqueiro. Não tivemos notícias de Tremedeira o dia todo. Seus olhos se arregalaram e imediatamente a cela se encheu com o guincho de metal retorcido enquanto faíscas verdes se espalhavam pelo ar. As barras que bloqueavam a saída de Cassi soltaram-se da rocha em que estavam presas e dobraram-se para o lado, deixando uma lacuna. Como um só, ela, sua mãe, Brilhante, Espirro e Sanguessuga saíram de suas jaulas. Ao ver os seus rostos feridos, Cassi estremeceu. Durante dias, tudo o que ela ouviu foram suas vozes, mas os feios vergões roxos que cresciam em suas bochechas deixavam claro que os pássaros não os trataram com a mesma gentileza que Cassi havia pedido a Arqueiro. O ponto tornou-se ainda mais óbvio quando o grupo correu para a cela no final do corredor para encontrar um corpo deitado imóvel contra as rochas. Cassi pode não ser um membro da tripulação, ou mesmo alguém que eles chamariam de amiga, mas seu coração doeu ao ver Tremedeira esparramada no chão, sua rica pele dourada pálida, sua energia vivaz se fora. Uma haste de flecha quebrada ainda se projetava de seu ombro, o sangue encharcando suas roupas. Xander havia argumentado para enviar um curandeiro, com o objetivo de interrogar Tremedeira posteriormente, mas os outros reis e rainhas não concordaram que valia a pena desperdiçar suprimentos. Naquele primeiro dia ela estava consciente o suficiente para falar, mas as palavras diminuíram para gemidos e depois para um silêncio aterrorizante. Sanguessuga imediatamente caiu de joelhos e pressionou os dedos na parte interna do pulso dela. — Há um pulso. Eles soltaram um suspiro coletivo de alívio. — É fraco — continuou ele. — Mas está lá. Se conseguirmos alguns suprimentos, farei tudo o que puder para curá-la. — Vou encontrar o que você precisa. Todos os rostos se voltaram para ela, alguns duvidosos, outros esperançosos. A preocupação acendeu as íris geladas da capitã, mas ela apenas ofereceu um breve aceno de cabeça. Se Cassi pensasse que poderia fazê-lo, apesar do risco, sua mãe não protestaria. Ela confiava na filha e talvez, como Cassi, esperasse que isso pudesse trazer um pouco de redenção. — Encontro vocês no trenó — disse Cassi, enquanto Brilhante e Espirro levantavam Tremedeira com cuidado. Eles haviam destruído os velhos trenós de madeira construídos com o navio muito antes para esconder sua presença na cidade, mas Arqueiro passou os últimos três dias construindo um novo feito de metal. Demorou um pouco para encontrar os suprimentos, e foi por isso que eles não saíram antes. Mas agora Remendado, Pyro, Cozinheiro e Esquilo estavam esperando por eles nos arredores da cidade. — Você tem meia hora — disse a mãe, mantendo o olhar fixo em Cassi durante um longo e firme momento, o significado naqueles olhos gelados claro. É melhor não demorar mais que isso. Eu não vou deixar você para trás novamente. Com um suspiro pesado, a capitã voltou-se para sua tripulação. — Vamos embora. Eles correram pelos corredores escuros das masmorras, uma das poucas estruturas em Sphaira não feitas de cristal translúcido, mas de pedra espessa e gelada. Cassi levara algumas horas para memorizar o caminho para a liberdade e mais algumas para transmiti-lo a Arqueiro por meio de seus sonhos. Agora eles faziam um trabalho rápido no labirinto. A sombra os envolveu na escuridão para cobrir seus movimentos. De vez em quando eles passavam por um guarda que estava amarrado no chão, pés e tornozelos enrolados em bobinas de metal. Quando emergiram nas ruas cobertas de lama da cidade, Cassi despediu- se deles e esgueirou-se na direção oposta. Era estranho andar pela cidade envolta em espessa neblina, estranho não ver os cristais brilhando ao luar, estranho não sentir frio quando o ar aqui sempre foi fresco o suficiente para queimar os pulmões. Mas embora apenas alguns dias tivessem se passado desde que a ilha havia sido devolvida ao mar, as mudanças estavam se instalando rapidamente. A névoa estava quente. A neve estava derretendo. E, quando ela voou para o céu, pela primeira vez ela não precisava se preocupar em ser a única coruja em uma cidade de columbas. A cidade estava cheia de avians de todas as casas, forçados a enfrentar as incertezas de seu novo mundo destruído. Por sorte, era meia-noite, então a cidade estava silenciosa. Cassi voou para as estufas na extremidade norte de Sphaira, ciente de uma vida inteira espionando onde os bosques dos curandeiros eram cultivados. O sol ainda não havia rompido a névoa, mas enquanto ela se esgueirava para dentro do prédio, ela descobriu que as plantas estavam se debatendo, mas não mortas. Sob a magia de Sanguessuga, elas floresceriam. Movendo-se o mais rápido que pôde, pegou um pote vazio da pilha no canto e o encheu de terra. Então ela desceu a fileira, sem ter certeza de quais ervas seriam mais úteis, mas tentando adivinhar enquanto arrancava alguns caules pela raiz. Em dez minutos, ela terminou. Cassi voltou a sair pela porta e... — Quem está aí? Ela engoliu em seco, o coração batendo forte no peito enquanto girava lentamente em direção ao som. Pouco mais do que o contorno borrado de uma mulher alada era visível através da névoa. Uma trabalhadora, talvez, ou uma guarda. As estufas geralmente não eram vigiadas à noite, mas eram tempos incertos. Cassi tocou a adaga em seu quadril. Um lance e estaria acabado. Ela poderia fugir sem ser vista. A tripulação poderia escapar na noite sem que ninguém soubesse. Uma vida era tudo o que custaria. Para Cassi, mesmo uma vida inocente era demais. Com um salto correndo, ela voou para o céu. — Ei! Onde você está indo? O que você está fazendo? A estranha correu atrás dela, mas Cassi foi mais rápida. Em segundos, ela a perdeu na névoa. Ainda assim, era apenas uma questão de tempo até que a notícia chegasse ao rei e os guardas viessem correndo. Apenas outra coisa pela qual a tripulação iria culpá-la. Ou assim ela pensou, até se aproximar do ponto de encontro na periferia da cidade. Gritos encheram o ar, combinados com o som de metal e grunhidos de dor. Faíscas de magia em arco-íris iluminaram a névoa. Tiros de chamas e água dispararam pelo chão enquanto rajadas de vento açoitavam o céu. Raios ofuscantes de luz dissiparam a névoa, até que Cassi avistou a tripulação de sua mãe amontoada em um pequeno trenó de metal, lutando contra um batalhão inteiro de soldados columbas. Dentro do caos, a capitã Rokaro avistou sua filha. — Agora! Uma vela gigante se desenrolou quando Cassi mergulhou com a graça predatória de uma coruja em direção ao trenó. No momento em que seus pés tocaram o metal, sua mãe e Remendado liberaram seu poder aero’kine. O pano estalou quando um forte vendaval varreu a luta e a engenhoca de metal disparou pela neve. Cassi caiu de joelhos ao lado de Tremedeira para entregar cuidadosamente o pote a Sanguessuga. A magia verde imediatamente emergiu de seus dedos e afundou na terra. Folhas e caules murchos endireitaram-se à medida que desabrocharam botões de flores. Ele arrancou pétalas e caules, então usou uma pedra para esmagá-los contra o metal para formar uma pomada. Seu trabalho aqui foi feito. — Como eles encontraram vocês? — Cassi perguntou enquanto se levantava, usando as asas para se equilibrar. O restante da tripulação parecia à vontade no casco de metal em movimento, acostumado com a mudança constante das ondas. — Não tenho certeza — sua mãe murmurou, uma carranca em seus lábios. O olhar em seus olhos, no entanto, era selvagem, Cassi reconheceu, iluminado pela adrenalina. — Mas eles claramente não planejam nos deixar ir embora. Brilhante, cegue seus olhos. E então Sombra, aprofunde a escuridão. Vamos ver se podemos despistá-los no nevoeiro. Arqueiro, fique de olho em a… Ele liberou sua magia ferro’kine antes que ela pudesse terminar a frase. A flecha parou a trinta centímetros do peito de sua mãe e caiu inofensivamente no chão. A capitã arqueou uma sobrancelha enquanto olhava por cima do ombro de sua filha, mais irritada do que qualquer outra coisa. Cassi girou. A névoa atrás deles estava salpicada com os contornos sombrios de asas batendo. Eles conseguiram sair das masmorras e agora a perseguição começou. O bater de uma porta acordou Xander. Uma luz repentina ardeu em seus olhos quando ele rolou na cama, usando sua asa para proteger o rosto do brilho da lanterna. — Você está aqui? — Uma voz profunda perguntou. Levou um momento para Xander reconhecer o príncipe columba. Luka olhou para baixo com choque descarado, seus olhos arregalados contra sua pele escura. — Onde mais eu estaria no meio da noite? — Xander resmungou e acenou para o guarda corvo parado do lado de dentro da porta com a mão no cabo da lâmina. — O que está acontecendo? — Me diga você. — Garanto a você que não tenho… — Ele parou quando seu sonho voltou à consciência. Tinha sido muito realista e vívido demais para ser apenas dele. O que Cassi disse antes de partir, deixando-o nas garras do sono mais profundo? Estou lhe dando um álibi. Ele suspirou. — Eles se foram, não foram? — Onde eles estão indo? — Luka perguntou, sua voz dura. — Quem eles vão encontrar? — Não sei. Ela não me contou — Xander passou as palmas das mãos nas bochechas e depois nos cabelos, forçando-se a acordar, e se levantou. Com sua estatura musculosa e imponentes asas cinzentas, o príncipe columba era formidável. Mas Xander estava farto de ser intimidado. Ele estreitou o olhar. — Ainda assim, você e eu sabemos que eles não estão fugindo para Vesevios e não tiveram nada a ver com o desaparecimento de Lyana. — Eu não sei nada disso. — Se você superasse sua raiva por tempo suficiente para ver a verdade diante de você, você o faria. Você estava nos ajudando, Luka. Você sabe que Cassi nunca faria nada para machucar sua irmã, e se você não fosse tão teimoso, talvez ela o visitasse e contasse todas as maneiras pelas quais ela está tentando trazer Lyana de volta. O príncipe cerrou os punhos. — Onde eles estão indo? Diga-me agora. É sua última chance antes... O coração de Xander disparou quando Luka ficou em silêncio. — Antes do quê? Ele suspirou e por um momento as paredes erguidas sobre suas íris de mel desapareceram. O medo brilhou, não apenas a preocupação por sua irmã, mas um pouco, ao que parecia, por Cassi também. — Luka — Xander exigiu. — Eles deixaram a cidade em direção ao sul — disse ele após um momento tenso. — Eles estão se movendo em um trenó e, se continuarem neste curso, vão atingir uma série de montanhas que não conseguirão cruzar. Nós vamos pegá-los, Xander, e quando o fizermos, eles não vão cooperar. Mas para a segurança deles, para a segurança dela, talvez você o faça. — Eu não sei de nada. — Eu não acredito em você. O príncipe columba saiu. — Luka! Ele não parou. — Luka! Xander correu atrás dele, parando apenas para enfiar os pés nas botas. Antes que ele soubesse o que estava fazendo, ele estava sobrevoando Sphaira, perseguindo uma trupe de soldados columbas liderados por seu príncipe. — Onde estamos indo? — Uma voz chamou por cima dos ventos. Xander não diminuiu o passo. Helen iria alcançá-lo. — Atrás de Cassi e dos magos. — Eles fugiram? — Direto para uma cordilheira. E eu preciso estar lá quando as columbas os encontrarem. — Eu pensei que ela disse para você ficar fora disso. Para se proteger fingindo indiferença. — Sim, bem… — Xander olhou por cima do ombro e chamou a atenção de sua capitã da guarda. — Acontece que não sou tão habilidoso com a indiferença. Eles não falaram depois disso, em vez disso, usaram toda a sua concentração para acompanhar o ritmo das columbas pouco visíveis na espessa névoa da noite. Eles deviam estar voando por uma hora antes que o solo começasse a subir em picos pontiagudos e irregulares. Quanto mais subiam, mais a névoa se dissipava, até que finalmente romperam a margem e emergiram sob um céu salpicado de estrelas. As columbas voaram à frente, suas asas de areia refletindo o brilho do luar. Onde eles estão? Xander pensou, certo de que eles não viram Cassi e o resto dos magos na névoa. Não havia como um trenó ser capaz de deslizar sobre um terreno tão acidentado, de jeito nenhum, exceto... Ele engasgou. Quilômetros à frente, iluminado com o prateado brilhante da lua, um trenó corria pelo céu, seu fundo curvado quase como um navio. A água espirrava da montanha abaixo, ajudando a empurrá-la para o alto. Os ventos sopravam ferozmente no céu, perturbando o manto macio de névoa antes de serem pegos por uma vela branca luminosa. Devia haver pelo menos cinquenta columbas atrás, disparando flechas pelo céu. Nenhuma conseguia chegar ao trenó. E, embora a massa de metal se movesse lentamente, os vendavais eram tão fortes que nenhuma das columbas poderia voar mais perto. Xander não os alcançou em nenhum momento. — Acho que a montanha não os deteve — ele gritou para o príncipe. Luka observou, horrorizado. — Não sei como… Mas ele sabia. Ambos sabiam. Magia. Xander semicerrou os olhos, tentando ver o que Cassi lhe mostrava em seus sonhos. Mas aqui no mundo desperto, por mais que tentasse, ele não conseguia identificar os raios amarelos de magia que deviam estar iluminando o céu, ou a brilhante aura azul da água, ou as faíscas verdes lançando as flechas fora do curso. O mundo estava inundado em tons de cinza da meia-noite, nada mais. O poder era invisível aos seus olhos, algo estranho que ele nunca entenderia. Ou entendia? Um suave brilho laranja na névoa atraiu seus olhos. Magia? Algo mais? A luz era sutil a princípio, mas ficando mais brilhante e mais próxima, quase como se estivesse se movendo… — Dragão! — Xander gritou assim que a criatura irrompeu no topo do banco de neblina, suas escamas de fogo brilhando contra o céu noturno. As columbas gritaram. Elas recuaram. Era tarde demais. A besta e o bando se chocaram, ambos perseguindo o mesmo alvo em movimento. A criatura rugiu, explodindo em chamas. Penas pegaram fogo e corpos caíram do céu. Uma mulher apareceu na parte de trás do trenó, com as mãos em chamas. O fogo navegou pela noite, abandonando asas e roupas para correr para suas palmas ferventes. Ela está nos ajudando, ele percebeu quando o dragão entrou em erupção novamente. As chamas envolveram o trenó, engolindo-o inteiro. Um grito explodiu de seus lábios quando o medo apertou seu peito. Cassi! Antes que o pensamento pudesse se estabelecer, a vela emergiu do fogo, intocada pelo calor. Aquela mulher ainda estava com as mãos em chamas. Se ele não estava enganado, ela parecia estar sorrindo. Atrás de seu ombro, uma enorme folha de metal começou a se dobrar sobre si mesma, até tomar a forma de uma flecha grosseiramente trabalhada. Em um piscar de olhos, a arma disparou ao longe. O dragão desviou e, se a arma fosse normal, teria falhado. Em vez disso, o metal também desviou e afundou profundamente no estômago da criatura. Ela berrou de dor, cuspindo mais fogo. Uma luz branca ofuscante cortou a escuridão e atingiu a fera exatamente onde estava ferida. Outro rugido tão alto quanto um trovão sacudiu o céu. A flecha se soltou, coberta de sangue, e recuou para outro golpe. Desta vez, o dragão fugiu. Seu corpo de carvão fervente mergulhou sob a névoa, tornando-se pouco mais que um brilho alaranjado que se desvaneceu no nada. O trenó seguiu, primeiro o casco prateado afundando na névoa, depois a vela, até sumir de vista. Eles estavam brincando conosco, Xander percebeu enquanto abria as asas para parar e pairar sob as estrelas. As columbas ao seu redor fizeram o mesmo, chegando a uma conclusão coletiva. A perseguição acabou. Não tivemos chance. Parte dele estava emocionada ao ver Cassi escapar, mas parte dele estava paralisada de terror. Uma coisa era Lyana contar a ele sobre magia, ver Rafe se curar ou Cassi entrar em seus sonhos. Outra coisa era ver tanto poder na ofensiva. Observando com seus próprios olhos, Xander entendeu por que seu povo estava com medo. Aqueles magos poderiam ter acabado com eles em instantes se quisessem. O ferro’kine poderia ter enviado todas aquelas flechas de volta para eles em vez de jogar as armas inofensivamente do céu. A pyro’kine poderia tê- los queimado vivos. Aquela luz poderia tê-los cegado. A água poderia tê-los afogado. Os ventos poderiam tê-los varrido. O que faremos se eles decidirem que querem lutar contra nós? Se eles decidirem que querem nossas casas, nossas terras e nosso povo de volta como escravos? Como podemos detê-los? Luka se esgueirou ao lado dele, ambos olhando para o agora vazio céu noturno. A espessa neblina já havia se reunido, sem deixar vestígios do trenó engolido por suas dobras. — Como lutamos contra eles? — O príncipe columba perguntou, seu tom ameaçador. — Como lutamos contra isso? Nós não lutamos, pensou Xander, encontrando os olhos de sua capitã, o olhar sombrio de preocupação. Não podemos. Lyana havia compartilhado seus sonhos do futuro que ela queria construir, os dois povos unidos e duas sociedades vivendo em paz, um mundo reformado. Xander acreditou nas visões que ela teceu. Ele a seguiu para o desconhecido. Ele esteve ao lado dela, guiando seu povo por um caminho que só ela poderia trilhar. Agora ela se foi. E Xander estava com medo, não apenas por ela e Rafe, mas pelo caos que eles deixaram para trás. O resto da jornada para o mar transcorreu sem intercorrências. Depois que o dragão partiu, os avians pararam sua perseguição e a tripulação fez um rápido trabalho de passagem pelo terreno lamacento que antes era a tundra congelada da Casa da Paz. O sal no ar atingiu a língua de Cassi muito antes que a visão das ondas batendo suavemente contra uma costa rochosa rompesse a névoa. Algo em seu coração se prendeu ao ver o oceano ao longo da borda da ilha, em vez de ao ar livre. Nem bom nem ruim, apenas diferente – prova de que a vida nunca voltaria a ser como era para nenhum deles. — Continue indo para o leste — ela ordenou. — Eles estão esperando um pouco mais abaixo na costa. A tripulação ouviu, cansada demais para discutir. Cassi não era tola o suficiente para pensar que realmente havia conquistado sua gratidão ou respeito durante sua ousada fuga. Mas houve uma pequena mudança cerca de uma hora antes, quando ela voltou do uso de sua magia para explorar a frente. Tremedeira estava acordada, principalmente devido à experiência de Sanguessuga, mas também em grande parte às ervas que ela havia adquirido. E, embora nenhum deles agradecesse abertamente, Cassi sentiu uma mudança no ar, sutil, mas o suficiente para aliviar a tensão em seus ombros. Ela não era um deles, mas também não era mais sua inimiga. — Lá — a capitã Rokaro quebrou o silêncio e apontou. — Eu os vejo. Com o amanhecer, a névoa mudou de um carvão da meia-noite para um estanho macio, e a sugestão de velas brancas brilhantes agora espreitava pelas dobras cinzentas. Mais alguns momentos e o navio deslizaria totalmente à vista. Estava ancorado um pouco longe da costa, o ar acima salpicado com manchas coloridas de magia. O vento mudou, mandando o trenó para fora da lama e para o mar. Ao se aproximarem do casco de madeira, uma escada de corda apareceu na lateral. Cassi saltou no ar com um rápido bater de asas. Sua mãe a seguiu, usando sua magia aero’kine para subir ao céu, deixando Remendado e Espirro terminarem de guiar o trenó. — Capitã Rokaro — um homem chamou quando eles desembarcaram no navio, seu cabelo branco preso em um coque elegante, os ângulos definidos de seu rosto tornando difícil discernir sua idade. Ele tinha ombros largos, sua estatura tornada mais imponente pela postura ereta de sua coluna, mas seus olhos castanhos dançavam de alegria. — Bem-vinda a bordo do Dama do Mar. Depois de todos os meus convites, nunca esperei que você finalmente enfeitasse essas tábuas cansadas com a glória de sua presença. Sua mãe zombou, a reação suavizada por um leve sorriso. — Obrigada por nos pegar, Jerard. Parece que perdi meu navio. — Ouvi dizer que você o destruiu em pedaços, sua criatura perversa. — Os rumores viajam mais rápido que o vento nessas águas. — Nenhuma palavra mais verdadeira jamais foi dita. Grunhidos suaves e resmungos atrás de Cassi anunciaram a chegada do resto da tripulação. — Walter — Jerard chamou. — Mostre seus quartos. A menos que você queira ficar nos aposentos do capitão, querida Audezia… A insinuação pairou no ar. Obviamente ele não estava oferecendo seus próprios aposentos pela bondade de seu coração. Seu olhar era faminto enquanto percorria o corpo de sua mãe para cima e para baixo, parando por um momento em sua asa, algo que neste mundo a tornava sedutoramente exótica. A ideia deixou Cassi enjoada. Pelos deuses, mãe, não fique nos aposentos do capitão. Não tenho certeza se conseguiria visitar seus sonhos assim. — Eu fico com minha tripulação — sua mãe respondeu, ignorando seus avanços. Cassi soltou um pequeno suspiro de alívio. Ela nunca pegou sua mãe com um homem em sua cama, e ela nunca quis. Às vezes ela se perguntava se o aparente celibato de sua mãe era para seu benefício ou se havia outra causa. Isso a fez questionar como ela havia sido concebida, em primeiro lugar. Embora ela estivesse curiosa sobre seu pai, não era uma resposta que ela tinha certeza de que queria saber. A única vez que ela tentou perguntar, um olhar assombrado passou pelos olhos normalmente duros de sua mãe, roubando as palavras de seus lábios. — Quem é? — Perguntou Jerard enquanto percorria com os olhos castanhos as asas salpicadas de Cassi. — Um dos antigos soldados do rei — sua mãe respondeu suavemente. — Nós a resgatamos da cidade das aves quando saímos. — Cassi Sky — disse ela, usando seu nome do mundo acima. Ela não sabia por que, mas sua mãe claramente queria manter o relacionamento delas em segredo. O pensamento doía. — Uma dormi’kine? — Ele coçou o queixo e sorriu quando Cassi assentiu. — Bem, então a mensagem que recebi deve ser para você. A Rainha Jacinta mandou um recado esta manhã. “Ele está acordado.” Aparentemente, você deveria saber o que isso significa. Ele está acordado. Cassi congelou, então chamou a atenção de sua mãe. Elas tiveram uma conversa inteira sem falar. O skryr estava acordado. Cassi imediatamente assumiu sua forma espiritual. Antes de seu corpo atingir o convés, sua mãe a abraçou calorosamente. Ainda parecia surreal estar cercada por seu toque amoroso, a coisa mais próxima de voltar para casa que ela jamais experimentaria. Mas não havia tempo para saborear a sensação. Em vez disso, Cassi acelerou na névoa e correu em direção a Da’Kin. O skryr não estava mais na pousada onde ela o deixou desprotegido durante o ataque à cidade. Enquanto o cadáver de Malek ainda estava quente a seus pés, Cassi ordenou a Jacinta que enviasse uma equipe de magos para resgatá-lo, e ela escutou. O homem agora descansava em uma prisão muito mais confortável – o castelo de Da’Kin. Acabariam por libertá-lo, mas não até que Cassi conseguisse o que precisava. Quando ela entrou no castelo, ela meio que esperava encontrar o homem mais velho se arrastando pelo quarto, procurando uma maneira de escapar que não incluísse escalar a sacada e arriscar um salto de cinco andares no mar. Em vez disso, ele dormia sob uma espessa camada de cobertores. Cassi mal podia acreditar em sua sorte ao reivindicar seus sonhos. — Eu estava esperando você — o skryr disse no momento em que terminou de tecer a cena. Eles estavam em sua antiga loja em um canto tranquilo de Da’Kin. As paredes eram forradas de prateleiras e cobertas de bugigangas, uma coleção que o homem passou a vida inteira construindo, uma que agora vivia no fundo do mar. A casa foi destruída pelo híbrido de terra durante os ataques. Um brilho nostálgico iluminou seus olhos enquanto ele olhava ao redor da sala. — Você esteve na minha loja? — Quando eu era mais jovem, costumava pairar pela sala e observar você realizar sua magia. Eu tinha noções tolas de um dia aproveitar o poder para aprender algumas verdades que me foram negadas. — Que tipo? — Ele perguntou, intrigado. — Não é sempre que um dormi’kine fica insatisfeito quando se trata desse departamento. Suas palavras eram verdadeiras, mas ele nunca conheceu a mãe dela. A capitã Rokaro estava determinada a levar seus segredos para o túmulo. — Nada, realmente, apenas sobre o meu passado. — Ah, um pai há muito perdido, talvez? — Cassi enrijeceu com o palpite preciso. O skryr soltou uma risada suave. — Por algum motivo, esperava algo mais original de você. Como estou feliz por você nunca ter tido a chance de me encontrar até que tivesse o diário em mãos. Tem sido muito mais divertido do que eu esperava que pudesse ser. Ou devo dizer, esclarecedor? — Diga-me. — Acabei de emergir da minha magia, então você me pergunta “Onde estamos na história?” Eles já desapareceram pela fenda? Ela respirou fundo. — Você sabe? — Graças à profetisa, sei tudo. — Diga-me agora, ou... — Ou o quê? — Ele zombou. — Você vai me matar? Eu acho que não. — Existem coisas piores que a morte — ela disse sombriamente, odiando um pouco a facilidade com que as ameaças saíram de seus lábios. Mas por Lyana, ela faria qualquer coisa. — Sou um velho. Duvido que você corra o risco. Ele estava certo. Ela precisava de sua informação, e ambos sabiam disso. Ele tinha a vantagem e ela não tinha mais cartas para jogar. Cassi suspirou. — O que você quer? — Ouro suficiente para me manter confortável pelo resto dos meus dias e a garantia de que, assim que eu terminar de contar o que vi, você me deixará escapar pela noite, para nunca mais ser visto. Fiz tantos inimigos quanto amigos com minha magia, e agora tudo o que quero é o anonimato. — Feito. — Receio que sua palavra não seja suficiente para me apaziguar. — Então o quê? — Vai à Jacinta… — Não há tempo — retrucou Cassi. — Você não entende a situação em que todos nós estamos? Não é apenas vida ou morte. É a vida ou a aniquilação de tudo o que conhecemos, do mundo inteiro. Preciso da informação que você está escondendo e preciso agora. — Um segredo, então. Ela franziu as sobrancelhas. — Hã? — Como garantia. Conte-me um segredo. — E como eu sei que você não vai derramar no momento em que seus termos forem cumpridos? — Acho que nós dois precisaremos agir com fé. O homem encolheu os ombros e Cassi conteve um grunhido. Um segredo. Um segredo. A realidade a atingiu imediatamente. — Você já conhece meu segredo mais profundo, o segredo mais profundo que qualquer dormi’kine pode guardar — ela disse, apontando para seu rosto. — Você sabe quem eu sou fora dos meus sonhos. Você conhece meu rosto, minhas asas e meu nome. E você pode colocar essas informações nas mãos erradas, se assim o desejar. Tenho agido com fé desde o momento em que o arrastei para fora daquele navio. — Outras pessoas conhecem seu rosto. — Não muitas. Ele refletiu sobre isso. Um segundo se passou, depois dois. Cassi resistiu ao impulso de estrangular o homem. Mesmo no sonho, ele parecia tão frágil que poderia quebrar. — Tudo bem, Kasiandra — ele encontrou seu olhar, o uso de seu nome verdadeiro um lembrete de que ele já sabia mais sobre seu passado do que ela gostaria. — Nós temos um acordo. O skryr puxou o sonho, disputando o controle, e Cassi o deu. Instantaneamente, a loja ao redor deles se dissolveu em uma confusão borrada de cores. Os arredores se transformaram, catapultando-os para o último lugar que Cassi esperava. Uma praia. Uma praia muito parecida com a que ela havia imaginado para ela e Xander, a areia macia sob seus pés e o sol alto no céu. Era uma cena diferente de qualquer mundo que ela conhecia. — O que… — Observe — ele interrompeu, efetivamente silenciando-a. — Observe e você verá exatamente o que a profetisa uma vez viu, o futuro que ela sonhou. Confusa, Cassi correu o olhar ao longo da orla arborizada, procurando um ponto de interesse. As casas enchiam as áreas abertas entre os pinheiros imponentes. As pessoas circulavam, algumas olhando para o mar aberto com olhares de horror crescente. Ela girou. A baía estava vazia – pelo menos, ela presumiu que deveria ter sido uma baía. Barcos com linhas de ancoragem frouxas avistavam a areia aberta, que estava coberta por grossos aglomerados de algas. Que estranho. Por que deixar seus barcos lá? Por que… Um rugido interrompeu sua contemplação. A água avançou estrondosamente quando uma onda enorme rolou pela baía. Gritos encheram o ar. Um por um, os barcos apáticos foram engolidos pelo líquido agitado, peças de madeira quebrando com o impacto. Imediatamente, Cassi lembrou- se da onda que Lyana havia descrito depois que a Casa dos Sussurradores caiu. Não poderia ser coincidência. Foi assim mesmo, uma corrente de água deslocada por uma das ilhas. Mas somente no dia em que o céu desabar, pensou ela, recitando a profecia, será revelado quem vai a todos salvar. O escolhido estava aqui. Onde? Os cidadãos da pequena aldeia correram em todas as direções. Ninguém se destacou em meio ao pânico. Mas talvez mais fundo na floresta ela encontrasse alguém ou algo incomum, alguma pista. Cassi deu um passo cauteloso para a frente. O skryr a deteve com um toque e ela seguiu seu olhar até a extremidade oposta da margem. Uma garota caminhava pela areia, aparentemente despreocupada com a onda que procurava comê-la viva. Ela se agachou, curvada na cintura enquanto dava passos hesitantes para frente, focada inteiramente na areia sob seus pés. Seu cabelo loiro estava preso em tranças grossas, do tipo que Cassi costumava usar para manter suas próprias mechas longe do rosto, e sardas pontilhavam suas bochechas bronzeadas pelo sol. O que ela estava fazendo? Por que ela não estava correndo? A onda caiu para a frente, quase em cima dela, mas ainda assim ela se arrastou lentamente para a frente. Até que de repente ela se levantou e torceu a cabeça para o lado. O choque aumentou seus olhos cor de mel. Momentos antes que a água a puxasse para baixo, ela ergueu as mãos. A magia branca irrompeu de suas palmas, do tipo que Cassi só tinha visto uma vez antes, pairando sobre um ovo de dragão quebrado no ninho sagrado vazio da Casa da Paz. Magia da fenda. Seu pulso disparou. Ela é uma spatio’kine. A garota passou pela abertura esculpida por seu poder e desapareceu. A onda rolou inofensivamente sobre a terra vazia onde ela estivera. — Onde ela foi? — Cassi perguntou, congelando o sonho antes que a água atingisse ela e o skryr. — Não sei. — O que mais você viu? A cena se dissolveu, depois se formou novamente. Eles não estavam mais em uma costa ensolarada, mas em um terreno rochoso e cheio de neblina. Os ventos açoitavam as roupas de Cassi enquanto um calafrio enrugava sua pele exposta. A terra era árida e o ar rarefeito. O terreno inclinava-se num ângulo tão acentuado que Cassi quase caiu para trás. Ninguém estava aqui. — O que… — Paciência — o skryr estalou. Cassi mordeu a língua e esperou, com uma resposta áspera nos lábios. Depois de um minuto, uma linha branca cintilante ganhou vida acima das rochas. Ele se alargou, tornando-se uma lágrima brilhante na terra, e do outro lado estava a garota. Ela deu um passo à frente, suas feições indo de nebulosas para nítidas quando ela cruzou a soleira. Suas roupas agora estavam em farrapos quando ela abraçou sua barriga. Suas bochechas estavam rosadas por causa do vento e seus lábios estavam rachados. Uma faísca feroz e determinada encheu seu olhar. Sua expressão era mais dura, assombrada de uma forma que não tinha sido na praia. Esticando a mão, ela formou outra fenda na névoa e atravessou, então desapareceu de vista quando a magia se desvaneceu. — Onde ela está indo? O skryr parecia divertido quando ele respondeu a ela. — Onde você acha? Para a fenda. Ela deve ter sentido. De alguma forma, a fenda a estava chamando para mais perto. — Ela consegue? — Eu não sei, e a profetisa também não. Esta foi sua última visão. Não importa o quanto ela empurrasse, a mão inconstante do destino não a deixava seguir em frente. O tempo sempre foi seu próprio mestre. Tudo o que ela sabia era que a garota vivia e sua existência nos dava esperança. — E quanto a Lyana e Rafe? — Ela os viu cair pela fenda e nunca mais os viu. Não. Cassi cerrou os punhos. Isso não pode ser o fim deles. Eu não vou deixar isso acontecer. — O que mais o diário mostrou a você? — Muitas coisas e nada. A história do nosso mundo, futuros que nunca aconteceram, todas as pequenas decisões que nos trouxeram até aqui. Mas se você está procurando respostas, não tenho mais nada para você. De agora em diante, o destino de todos nós está em suas mãos, Cassi Sky, filha de ambos os mundos, mas nenhum deles. O tempo avança implacavelmente, e nem mesmo a profetisa sabia se ele nos levava para a nossa salvação ou para a nossa perdição. Ela olhou de novo para os arredores. O nevoeiro, a paisagem acidentada, os ventos uivantes. Eles estavam nas montanhas. E, se ela tivesse apenas um palpite, apostaria que era a grande cordilheira que dividia seu mundo de todo o resto – aquela construída há muito tempo por magos para proteger sua península isolada do exterior. Era a única explicação para aquela primeira visão cheia de sol e vida. A garota estava tentando cruzar a linha divisória, uma façanha tão perigosa que ninguém conseguira em quinhentos anos. Com a ajuda de Cassi, a spatio’kine o faria. — Vou procurá-la — disse Cassi, com o fogo a atiçando suas veias, queimando a promessa como uma brasa na sua alma. — Vou encontrá-la e, quando o fizer, ela salvará Lyana e Rafe. Ela vai fechar a fenda de uma vez por todas. — Eu rezo para que você esteja certa — o skryr respondeu, já rejeitando seu espírito e forçando-a a sair de sua cabeça, sua parte no acordo cumprida. — Como você disse, o mundo inteiro depende disso. O grunhido vindo do estômago de Rafe teria sido embaraçoso se ele não estivesse voando sozinho por um céu cor de tangerina. Não podemos continuar assim por muito mais tempo, ele pensou, seu estômago revirando com mais do que apenas fome. Lyana estava tão fraca. Ela mal conseguia levantar a cabeça para beber a água que ele trouxe. Toda vez que ele partia, ele temia para onde ia, mas não tinha escolha. Ela precisava de comida. Ele havia prometido encontrar. Tinha que haver algo vivo, algo comestível, em algum lugar neste mundo estéril e queimado. Manchas pretas invadiram sua visão enquanto ele examinava os campos áridos de rocha abaixo da extensão laranja. Suas asas pararam e ele oscilou no ar, piscando para afastar as sombras. Por um breve momento, seus arredores desapareceram, antes que ele desejasse que sua consciência voltasse. Eu preciso encontrar comida para mim também. E ele faria. Estava aqui, em algum lugar. Tinha que estar. Rafe nunca tinha visto dragões consumirem nada além de magia, mas não havia o suficiente neste mundo para sustentá-los. Não havia ninguém até onde ele podia ver. E a terra estava sem vida. Na caverna onde eles estavam escondidos, Lyana tentou estender a mão com sua magia para sentir algum indício de espírito, de terra, de qualquer coisa que pudesse levá-lo à comida. Não havia nada. As pedras de ônix agora brincando com seus olhos não eram apenas completamente desprovidas de vida. Pior. Elas consumiam a vida. No momento em que Lyana enviou seu poder ao solo, aquele lindo brilho dourado foi apagado. O chão devorou avidamente seu poder. Ela disse a ele que isso a lembrava da fenda – o abismo absoluto e sem fim definido para engolir seu mundo inteiro. O comentário dela lhe deu uma ideia. Uma arriscada, sim, mas eles estavam ficando sem opções. No fundo de sua mente, dezenas de vínculos se agitaram, sua conexão mental com as feras vagando por essas terras. Ele estava perto. Antes que o cansaço o fizesse cair do céu, Rafe dobrou as asas nas costas e mergulhou. O terreno surgiu rápido. Ele se chocou contra a rocha, cerrando os dentes quando o impacto sacudiu seus ossos. Apesar de suas botas, as bordas irregulares cortavam seus pés, mas ele estava cansado demais para uma aterrissagem mais graciosa. O desespero se agarrou a seu espírito, um fedor que ele temia que os dragões que esperavam fora de vista pudessem detectar. Uma massa deles estava agrupada em torno da fenda, atraída por seu poder. Ao longe, a fina faixa branca de magia brilhava intensamente contra as rochas, um farol em meio a tanta escuridão. Lyana sempre descreveu a fenda como se fosse uma coisa viva, que respira. Um monstro definido para devorá- los. Insaciável. Não era. A fenda era apenas uma lágrima entre os mundos. E, parado ali, agachado atrás de um afloramento de rochas, Rafe entendeu a verdade. A magia escorria da abertura perolada, drenando de seu mundo para este. Era esta terra estéril, e não a fenda, que sempre buscou o domínio. Assim como o solo escuro da caverna engoliu a magia de Lyana, o mesmo acontecia com essas rochas sem vida, sugando a magia que nunca pertenceu a este lugar, em primeiro lugar. Magia que criava vida. Ele sentiu falta de vida quando eles caíram, pois a vegetação se misturava tão bem, mas após uma inspeção mais próxima, Rafe avistou trepadeiras negras inclinadas sobre campos de rocha, retorcidas e selvagens, cercadas por espinhos afiados. E salpicadas dentro das videiras, brilhando como faíscas dançando acima de uma chama ardente em uma noite escura, estavam as frutas. Laranjas e vermelhas, cascas marmorizadas como fogo congelado, elas se misturavam com o pano de fundo das chamas ardentes de dragão. Comida. A comida de que precisavam para sobreviver. Tudo o que Rafe precisava fazer era pegá-la. Uma façanha mais fácil de dizer do que fazer enquanto ele lentamente se aproximava, enviando seus pensamentos para as dezenas de laços no fundo de sua mente, pedindo sono e calma, prometendo que tudo estava bem, nada estava errado. Ao redor de cada espinheiro, um dragão esperava, guardando um precioso tesouro. Alguns tinham suas asas estendidas protetoramente sobre as frutas. Alguns dormiam com um olho aberto, constantemente vigilantes. Alguns nem dormiam, mas esperavam e observavam, vapor saindo de suas narinas enquanto grunhiam em alerta. Enquanto ele observava, um dragão menor se aproximou das propriedades de uma besta diferente de tamanho semelhante. Assim que o agressor mergulhou do céu, o dragão adormecido saltou sobre as patas traseiras e rugiu. Dois corpos se chocaram com um barulho estrondoso. Dentes brilharam. Garras cortaram. Gritos e chamas encheram o ar. O coração de Rafe disparou com a visão. Seu pulso disparou. As almas do outro lado dos laços não vacilaram, as outras feras mal perceberam, como se a batalha feroz fosse mundana. E, quanto mais Rafe assistia, mais ele entendia o que significava. Brigas irromperam em todo o campo, uma luta constante entre os que têm e os que não têm. A única regra não escrita parecia respeitar os jovens. Espalhadas pelo campo rochoso, as mães se enrolavam em torno de ovos únicos e intactos, incubando-os ou talvez apenas protegendo-os, e até mesmo a menor fêmea permanecia incontestada. Como um mago há muito conseguiu roubar sete dos ovos estava além de Rafe. Ele estava tendo bastante dificuldade em localizar uma abertura para as frutas. Ainda emitindo pensamentos calmantes, Rafe circulou o grupo, cuidando para manter distância enquanto procurava um alvo. As videiras perto da fenda tinham mais frutos, em tamanho e quantidade. Em vez de cachos esparsos enterrados entre espinhos, havia feixes transbordantes prontos para serem levados. Ele só precisava encontrar uma maneira de entrar – ou melhor ainda, precisava de uma distração. Rafe olhou para os dragões mais próximos a ele. Eram menores, não tão fortes quanto os animais que guardavam as melhores videiras, talvez mais fáceis de controlar, mas fracos demais para agitar as massas. Ele continuou examinando, sem saber o que estava procurando até que encontrou. Uma mãe – desta vez não guardando um ovo, mas um pequeno animal adormecido contra seu peito. Seu corpo pulsava vermelho com chamas internas, como um coração separado de seu hospedeiro, aquelas escamas negras ainda não grossas o suficiente para esconder o brilho. Ele precisava do caos. E ninguém criava o caos melhor do que uma mãe enfrentando uma ameaça contra seus filhotes. Ele tomou conta de seus pensamentos. Perigo! O dragão se mexeu, levantando o rosto de onde estava descansando pacificamente nas rochas. As escamas ao longo de sua espinha se mexeram, as bordas afiadas apontavam ameaçadoramente para o céu enquanto seus pelos se eriçavam. Ela mexeu o focinho de um lado para o outro, farejando o ar. Perigo! Ela bufou, enviando uma onda de vapor pelo céu enquanto sua asa se curvava protetoramente sobre o jovem dragão aninhado em sua barriga. Perigo! Os dentes brilharam quando ela rosnou, um som baixo e estrondoso que lembrava um trovão antes de uma tempestade de verão, alertando para um desastre iminente. Perigo! Rafe voltou seu foco para as bestas ao redor dela, suas defesas altas enquanto sentiam a tensão crescente. A maioria era menor. Ela escolheu um local seguro entre alvos fáceis para proteger seus filhotes. Ele desviou o olhar mais para trás em direção à fenda, avistando um dragão enorme encolhido diante de uma videira imponente de vinhas carregadas de frutas. A besta ignorou a exibição da mãe. Afastando sua exaustão, Rafe usou toda sua força para agarrar os pensamentos do dragão. Ataque! Ele silenciosamente ordenou. Ataque! Comer! Lutar! Com cada pensamento truncado, ele inundou o vínculo mental com imagens dos ataques de dragão que havia testemunhado, todo fogo e fúria, então memórias de magia e seu sentimento de fome, misturando tudo em um soco poderosamente potente. Quase imediatamente, o dragão saltou e abriu as asas. Um rugido monstruoso fez o chão tremer. As pedras aos pés de Rafe se moveram com a força. A mãe dragão respondeu da mesma forma, pisoteando e gritando, esmagando pedras sob seus pés. Ataque! Ataque! Rafe agarrou tantas mentes quanto pôde, não mais enviando ondas de calma, mas sim de caos. O ar ficou tenso. Ao redor dele, os dragões se moviam onde estavam sentados, rosnando e bufando, as escamas em suas costas aumentando. Eles se moveram em direção a um ponto de inflexão. Ataque! Ele exigiu de novo e de novo, sem saber mais o que fazer. Ataque! Sob a barriga da mãe, o bebê dragão soltou um guincho aterrorizado e, assim, o inferno começou. A mãe inundou o campo com chama ardente. Os outros dragões atacaram uns aos outros. Dentes estalaram. Garras cortaram. Corpos colidiram em estrondos que estilhaçaram a terra. Asas bateram, criando nuvens de cinzas enquanto o céu se enchia, a luz da tarde cor de pêssego agora negra como a noite. Ciente de que esta poderia ser sua única chance, Rafe entrou na briga. Ele ficou perto do chão, mantendo as asas abertas para que cobrissem seu corpo humano, esperando parecer outro jovem precisando de proteção. Ele desviou de caudas chicoteando e deslizou sob escamas contorcidas, sem diminuir a velocidade, sem parar, até chegar a uma massa imponente de videiras enjaulando um tesouro de frutas. Os caules espinhosos eram maiores do que ele imaginava, quase tão grossos quanto ele, menos como hera e mais como troncos retorcidos de árvores. Foi preciso um empurrão com as duas mãos para lançar-se para cima e sobre a borda de um. Ele torceu o corpo para se espremer pela abertura, contornando pontas afiadas e descendo para as sombras. As frutas emitiam um suave brilho alaranjado, um guia através da escuridão enquanto os arbustos espessos e o ar empoeirado trabalhavam para roubar sua visão. Quando ele alcançou uma, era quase do tamanho de sua cabeça. A superfície lisa era quente ao toque e coberta de veias cor de ferrugem, como uma espécie de melão. A fome rasgou como adagas em seu estômago, o dragão nele ansiando por qualquer coisa que se escondesse dentro, mas ele não teve tempo de romper o duro exterior. Rafe arrancou duas frutas e enfiou uma debaixo de cada braço. Sua saída foi muito menos graciosa do que sua entrada. Enquanto segurava as frutas, ele batia as asas para se equilibrar enquanto subia sobre as videiras, procurando por um indício do céu tangerina. Assim que ele se livrou dos arbustos, seu pé ficou preso e ele tropeçou para frente. Incapaz de se endireitar, ele caiu da borda. A dor se acendeu ao longo de sua coxa esquerda, cortando-a em um espinho. A magia inundou o local antes que ele pudesse detê-la – magia de cura, magia espiritual. Os dragões mais próximos dele congelaram. Eles se viraram. Bulbos de olhos vermelhos o prenderam enquanto as narinas se dilataram, cheirando seu poder na brisa. Pare! Ele pensou. Desvie o olhar! Não há nada aqui. Nada! Por um momento, ele pensou que funcionou. Os dragões mudaram. Eles recuaram. A atenção deles deslizou para o lado. Então um rugido explodiu por trás, batendo em suas costas com força tangível. Rafe girou. O enorme dragão que ele despertou do sono rosnou em seu rosto, a respiração quente varrendo- o rapidamente, bagunçando seu cabelo e roupas. Meu, sussurrou. Meu! Seu? Rafe pensou, antes de olhar para as duas frutas brilhantes dobradas perto de seu peito. Oh, certo. Bem, elas eram dele agora. Rafe lançou seu grito de corvo. O enorme dragão congelou quando o grito reverberou pelo ar. Ele usou a abertura para disparar entre dois dos dragões menores. Um rugido estrondoso o perseguiu, mas Rafe continuou se movendo. Usando as chamas de uma fera próxima como cobertura, ele virou rapidamente para a esquerda e depois para a direita, abaixando-se sob uma fera e depois saltando sobre outra. Durante todo o tempo, ele enviou um comando para os laços queimando para a vida no fundo de sua mente. Eu não estou aqui. Você não pode me ver. Eu não estou aqui. Não passou mais de um minuto antes que ele estivesse de volta ao céu aberto. Um único olhar por cima do ombro deixou claro que nenhuma das feras estava perseguindo. Ele escapou. Ele conseguiu. Estou indo, Ana, ele pensou quando um sorriso surgiu em seus lábios e uma alegria selvagem irrompeu de algum lugar no fundo de seu peito, a adrenalina e o alívio se misturando em algum tipo de estranha emoção. Aguente. Estou chegando. O som de pedras se espalhando quebrou o silêncio e a respiração de Lyana falhou. Com o coração na garganta, ela se virou para o som. Rafe tinha ido embora por horas, deixando-a com nada além de sua dor e sua imaginação enquanto as sombras se fechavam ao seu redor. A luz laranja espiava por uma pequena abertura. Seus músculos ficaram tensos. Mesmo aquele pequeno movimento fez sua pele queimada gritar em protesto. As marcas queimavam como fogo vivo em sua carne enquanto ela se esforçava para ver. Por favor, seja Rafe. Por favor, seja Rafe. Passos apressados ecoaram pela caverna enquanto o brilho se intensificava. Por favor, seja… — Ana — ele disse o nome dela como se tivesse um doce sabor de alívio, e todo o medo que apertava seu peito desapareceu. Rafe entrou na caverna, suas asas flamejantes afastando a escuridão, e tudo de ruim fugiu com ela. Quando ele estava aqui, ela estava segura. Ninguém e nada iria prejudicá-la. — Você está acordada. Ela não teve coragem de dizer a ele que nunca dormia quando ele estava fora. Neste mundo cheio de dragões, sua magia era inútil. Seu corpo estava quebrado. Mesmo escondida neste bolsão de espaço oculto, ela estava muito exposta. Além disso, o fato de ela estar acordada não era o que enchia seu espírito de tão brilhante júbilo. Ele simplesmente não tinha coragem de admitir sua verdade também. Você está viva. Isso era o que ele pensava toda vez que voltava. Isso a fez se perguntar o quão perto da borda ela realmente se agarrou. — Você encontrou algo? — Lyana perguntou em vez disso, mudando de assunto. Ela estremeceu enquanto tentava se acomodar nas rochas. Rafe estava ao seu lado em um instante. Ele deslizou o braço por baixo dos ombros dela, dando apoio, e a abaixou. Então ele pressionou a mão em sua testa. Quando o calor de seu toque afundou em sua pele, ela estremeceu, lembrando-se de repente de como estava fria. As chamas fervendo ao longo de suas asas se intensificaram, aquecendo a pequena caverna, enquanto ele gentilmente enxugava o suor de suas bochechas e oferecia água. Ela pressionou os lábios na ponta dos dedos dele, engolindo o líquido, fraca demais para apreciar seu toque amoroso. Sua pele estava pegando fogo, mas seus ossos tremiam como se estivessem no gelo. A justaposição a deixou cansada e confusa. Ela não conseguia parar os tremores, embora eles fizessem seu corpo doer. Olhos azuis observavam com preocupação, o desamparo que escoava do espírito de Rafe era quase sufocante. Lyana se virou, apenas para notar duas esferas brilhantes descartadas ao acaso no chão. Ela não tinha visto seu brilho laranja como o fogo de Rafe refletindo sobre as rochas luminosas. — O que são aquilo? Ele sorriu, uma explosão de alegria vibrante em meio a tanta preocupação sombria. — Encontrei comida. — Você encontrou? — Seu coração se elevou com suas palavras e seu humor. — O quê? Como? — Eu voltei para a fenda… — Rafe! — O nome dele saiu quando o medo correu por ela. — É muito perigoso… — Eu sabia que era isso que você diria, e foi por isso que não contei até agora. Lyana franziu a testa. — Mas eu estou bem — ele continuou. — Como você pode ver, eu consegui voltar inteiro... na maior parte. Ela revirou os olhos quando o sorriso dele mudou para algo mais irônico. A qualidade terna de seu espírito desmentia sua calma externa, permitindo que Lyana visse além do humor que ele havia erguido como um escudo. Ele gostava de como ela se preocupava com ele, o quanto ela se importava, mas sua própria emoção o assustava. Se ela tivesse curada, ela teria segurado a mão dele, dizendo silenciosamente que estava tudo bem. Esse amor, essa luxúria, essa confiança um no outro também a assustava, tanto quanto a emocionava. Rafe se virou e pegou os orbes, então os jogou entre as palmas das mãos. — Assim que eu descobrir como abrir essas coisas, podemos comer. Alguma ideia? — Eles são duros? — Como pedra — ele murmurou. — Pensei que fossem frutas quando as vi pela primeira vez, mas agora não tenho tanta certeza. — Deixe-me sentir. Ele colocou um ao lado dela e gentilmente levantou seu braço. Quando seus dedos roçaram a dura pele, ela se sacudiu com o choque. A energia pulsava em suas veias, fervendo com um poder que ela reconhecia. Rafe puxou o orbe para fora de seu alcance, franzindo as sobrancelhas com preocupação. — Espere. Eu acho… Ignorando a dor, Lyana se esticou para a frente. Sua visão espiritual se encaixou quando ela mais uma vez pressionou a mão no orbe. Dentro do brilho ardente, faíscas de luz dourada chamaram sua atenção. A magia vibrou contra sua pele, cheia de vida, e um suspiro escapou de seus lábios. — O que está errado? — Rafe perguntou. — Eu acho que é cheio de... espírito. — Espírito? Ele baixou a cabeça para o lado, considerando, enquanto espalmava a mão contra a superfície radiante. Um momento depois, seus olhos se arregalaram. — Espírito — disse ele com admiração evidente. — Estou com tanta fome que não percebi antes… pensei que era apenas meu estômago, mas não é. É o dragão dentro de mim. Ele é voraz. Ele pode sentir a magia. Ele quer provar. — Você acha… — Lyana parou, com muito medo de ter esperança quando seu olhar caiu para as ondulações de pele derretida entrelaçando-se em seus braços. — Malek costumava me curar — ela sussurrou ao invés. — Depois das minhas sessões de treinamento, ele usou magia espiritual para curar minhas feridas. Rafe entendeu a pergunta não formulada. — Só há uma maneira de descobrir. O fogo brilhou profundamente em seus olhos, como metal contra pederneira, acendendo em um propósito recém-descoberto. Ele desembainhou a adaga amarrada em seu quadril, as asas de corvo esculpidas ao longo do cabo parecendo em voo enquanto as insondáveis pedras de obsidiana refletiam chamas. Com toda a força, Rafe baixou a adaga e... Nada. A borda afiada atingiu a pele dura da fruta e parou, mal penetrando nela. A expectativa crescendo em seu coração estourou como uma bolha, esvaziando instantaneamente. Rafe resmungou baixinho enquanto puxava a adaga, incapaz de soltá-la. Lyana mordeu o lábio para esconder a risadinha repentina, mas soltou um bufo. Ele a olhou incisivamente, arqueando uma sobrancelha. Isso só fez seu riso piorar. — Sinto muito — ela se esforçou para dizer. Seus ombros tremeram, o que por sua vez a fez estremecer, mas ela não conseguia parar. — Não sei por que... Se você pudesse ver seu rosto... Eu só... Com qualquer outra pessoa, ela sabia que ele teria ficado irritado, velhas feridas se abrindo de novo – por se sentir indigno, por ser condenado ao ostracismo. Mas com ela, sozinho nesta caverna, os dois contra o mundo, ele jogou a cabeça para trás e riu. A tensão vazou de seu corpo enquanto a alegria deles ecoava pelas paredes da caverna, enchendo a sala com algo diferente de desespero e fogo, algo inteiramente deles. — Eu realmente pensei que isso funcionaria — ele finalmente disse enquanto o som diminuía, um sorriso aberto e arejado ainda em seus lábios. O peso que geralmente marcava suas feições foi substituído por um charme de menino que ela adorava. — Bem, qual é a sua grande ideia? Vamos ouvi-la. — Hum. Lyana olhou em volta, em busca de inspiração. Uma visão de columbas quebrando o gelo dos edifícios de cristal de Sphaira após uma brutal tempestade de inverno encheu sua mente. Ela se animou. — Pegue essa pedra. Sim, assim. Agora bata contra o punho. Agora, novamente. Continue tentando... Ah-ha! Com um estalido satisfatório, uma costura se abriu de onde a adaga foi cravada e a fruta se partiu ao meio. Quando a casca se abriu, gotículas de ouro líquido respingaram nas rochas. Rafe deu uma guinada para impedir que tudo se derramasse e estendeu as metades para que ela pudesse ver. O interior brilhava com magia, a substância opaca como o poder aethi’kine derretido. Eles se entreolharam por cima das cascas brilhantes. — Você está muito satisfeita consigo mesma — ele comentou, divertido. — Eu estou — ela encolheu os ombros, sentindo sua travessura perdida voltando quando as bordas de seus lábios se animaram. — Minha mãe sempre dizia, se você quer algo bem feito, encontre uma mulher para fazê-lo. — E os homens são bons em quê? — Em ser teimosos e insistentes. Ele bufou. — Prefiro dizer que somos obstinados. — Isso também serve. — E eu suponho que a coisa cavalheiresca para um homem fazer seria dar o primeiro gole? — Naturalmente. — E se, eu não sei, me deixar verde ou algo assim? — Você vai se curar. — E se eu não me curar? — Acho que vou aprender a amar a cor verde. Ele tentou e não conseguiu conter um sorriso. A visão apenas a estimulou. — Estou brincando. Eu te curaria, claro. Eu não gostaria que você perdesse esse seu rosto bonito. Gosto de ter algo bonito para olhar enquanto faço todo o trabalho pesado. — Então está resolvido — ele encontrou o olhar dela com um brilho nos olhos e ergueu uma das metades. — Ao heroísmo masculino idiota. — Meu tipo favorito — ela disse, embora seu estômago se apertasse quando ele levou a concha aos lábios. A verdade era que ele era um herói, do tipo mais magnânimo, e ele a salvou mais vezes e de mais maneiras do que ele realmente entenderia. Agora, enquanto ele deixava esse líquido misterioso escorrer por sua garganta, ele a estava salvando novamente. Quando ele engoliu em seco, o olhar em seus olhos mudou para algo mais animalesco. O fogo ao longo de suas asas queimou. Ele ergueu a fruta e jogou a cabeça para trás, engolindo avidamente a substância. — Rafe? — Lyana perguntou timidamente. Então, quando ele não respondeu: — Rafe! Com uma forte inspiração, ele se afastou da fruta e se virou para ela. Contra o pano de fundo do fogo, o azul saturado de seus olhos ganhou um tom selvagem. Seus lábios estavam pintados de ouro. A magia brilhou enquanto ele lambia as gotas em sua boca. Suas asas crepitantes e respirações ofegantes preenchiam o silêncio. — Rafe? — Ana — ele balançou a cabeça como se para limpá-la. — Desculpe. O dragão assumiu. A magia o chamou, e eu não pude resistir. Não sei o que aconteceu. — Então existe magia? — Definitivamente. — Você acha que… — Tente. Ele ergueu a segunda metade da fruta aos lábios dela. Ela hesitou, a esperança com um nó na garganta, crescendo tão rápido que ela temeu que pudesse engasgar com ela. — Confie em mim, Ana — Rafe sussurrou. Ela confiava, mais do que qualquer outra pessoa no mundo, então abriu a boca e deixou o líquido dourado e frio escorrer por sua garganta. Fez cócegas em sua língua ao passar. O formigamento se espalhou, primeiro em sua garganta, depois em seu peito, movendo-se para os dedos das mãos e dos pés, até que cada centímetro de sua pele sentiu o zumbido da magia. Uma sensação quente encheu seu coração. A exaustão desapareceu. Sua dor se tornou uma memória esquecida quando as queimaduras em seus braços emitiram um leve brilho dourado, tão parecido com seu poder, mas não exatamente. Muito rapidamente, ele se foi. Ela bebeu o resto do misterioso líquido dourado e Rafe pôs a casca vazia de lado. — Como você está se sentindo? — Ele perguntou. — Melhor — disse ela, uma nota de admiração em seu tom. — Quase como se eu tivesse sido curada. Não totalmente, nem perto, mas um pouco. Como estou? — Como antes, principalmente, mas talvez um pouco melhor. Vamos tentar um pouco mais. Rafe quebrou a segunda fruta e rapidamente a pressionou contra os lábios dela. Mas ela virou a cabeça para o lado. A fome saiu dele em ondas. — Você não precisa… — Pegue, Ana. Por favor. — Meio a meio, Rafe. É assim que fazemos tudo… meio a meio. Eu não vou sobreviver se você não mantiver sua força também. — Mas… — Metade, metade. Com um suspiro, ele engoliu sua porção, conseguindo manter o controle desta vez. Lyana gostaria de poder dizer o mesmo. Quando ele mais uma vez segurou a fruta na boca dela, ela chupou o suco tão rapidamente que um pouco escorreu do lado de seu lábio de uma maneira nada feminina. Rafe usou o dedo para pegar o líquido dourado e trazê-lo de volta à boca dela. Calor acendeu em seu olhar enquanto ela lambia as gotas de sua pele. No fundo de sua barriga, os músculos enrijeceram. Seu cansaço evaporou enquanto a magia se espalhava por suas veias, deixando uma espécie de energia inquieta em seu lugar. Sua alma reviveu e ansiou, como sempre, pelo homem à sua frente. Lyana ergueu a cabeça das rochas… Um silvo escapou de seus lábios. Uma pontada irrompeu do movimento quando o poder do elixir se esvaiu, e de repente ela se lembrou da dor. As chamas nos olhos de Rafe desapareceram, mas a paixão permaneceu, queimando como brasas sobre um fogo apagado. Era um olhar de amor e a reviveu de maneiras muito mais poderosas do que a magia poderia alcançar. — Nós vamos sair daqui, Rafe — ela sussurrou, finalmente dando vida a sua esperança, rezando para não quebrá-la. — Eu sei que vamos. — Você demorou bastante a acreditar — a borda de seu lábio levantou em um sorriso torto. — Eu te disse isso dias atrás. — Devo estar delirando. — É a única explicação. Ela revirou os olhos, reprimindo um sorriso. — Existe mais alguma coisa dentro da fruta que possamos comer? — Vamos ver. Ele pegou sua faca e começou a raspar o interior, arrancando pedaços fibrosos. Eles comeram juntos e riram juntos, usando o humor para manter a verdade sob controle. Fora da caverna, eles estavam em um mundo estrangeiro hostil, sem como voltar para casa. Fora da caverna, eles eram um rei e uma rainha da profecia, com o peso de milhares de vidas em seus ombros. Mas dentro dela, eles poderiam ser eles mesmos. Uma garota que ansiava por aventura. Um menino que ansiava por um lar. Dois jovens amantes que, um no outro, talvez tenham encontrado tudo o que sempre procuraram. A sala de guerra se encheu de uma cacofonia de vozes, cada uma clamando mais alto que a outra. O rei columba e o rei águia exigiam batalha. As corujas imploravam por cautela. Os pássaros canoros se gabavam de suas proezas. Os beija-flores só queriam correr para casa. Do outro lado da sala, a rainha Zara observava a cena se desenrolar e Xander a observava. Sob as sobrancelhas arqueadas, dois olhos castanhos escuros se moveram em sua direção como se perguntando: O que você planeja fazer sobre isso? Ele limpou a garganta. Nenhum dos membros da realeza lhe deu atenção. Eles continuaram falando um sobre o outro, gritando argumentos pela quarta – às vezes quinta – vez, como se isso fosse fazer alguma diferença. Vesevios trará seus exércitos até nossa porta. Devemos voar e encontrá-los. Não. Devemos esperar e fortalecer nossas defesas. Mas nossos soldados são os mais fortes da terra. Eles não são nada contra a magia. Os deuses nos protegerão. Os deuses viraram as costas. Eles discutiam sem parar, deixando Xander meio louco. Sob todas as palavras, ele encontrou uma única semelhança, uma que eles claramente se recusaram a reconhecer: medo. — Já chega! — Ele bateu o punho contra a mesa. Cabeças viraram em sua direção quando a sala ficou em silêncio. Mais suavemente, ele repetiu: — Basta. — Ou o que você fará? — O rei Lionus cuspiu. A mera presença de Xander era o suficiente para causar a ira do homem. No entanto, ele não poderia culpá-lo, porque Xander sabia exatamente o que o rei columba viu quando olhou em sua direção – a cadeira visivelmente vazia onde sua filha deveria estar assentada. A ausência de Lyana era uma ferida aberta na lateral do pai e, a cada dia que passava, o corte infeccionava. — Você que nos trouxe a esta encruzilhada? Como você nos salvaria? — Eu começaria pedindo para vocês se comportarem como adultos — Xander rebateu. Simpatizar com o homem não significava agir como um saco de pancadas. — Não podemos continuar gritando uns sobre os outros. Se queremos uma solução, devemos começar por encontrar um terreno comum. — Terreno comum? — O rei columba curvou o lábio superior enquanto falava. — Você quer que encontremos um terreno comum? Bem, há alguns pontos em que todos concordamos, filho de Taetanos. Sua ilha foi a primeira a cair. Você nos conduziu por este caminho. Você nos conduziu até os braços de Vesevios. Você cortejou a magia. Você se aproximou de magos. Você também pode ser um deles. — E quanto à sua filha? — Ela estava bem, ela era imaculada, até conhecer você. — Os deuses a escolheram — disse Xander, incapaz de evitar que um suspiro cansado escapasse. Eles estavam de volta a isso de novo? — Eles deram a ela o poder de nos salvar, um presente que não podemos jogar fora. — Caso você tenha esquecido, rei corvo, sua companheira não está mais aqui — o rei Dominic da Casa dos Canoros interrompeu, com um sorriso de escárnio em seus lábios e um tom altivo nas palavras. As brilhantes asas vermelhas em suas costas se ergueram enquanto ele falava. — Será que os deuses mudaram de ideia? Xander lutou para conter seu desdém. Seja a pessoa superior, ele comandou internamente. Para o bem de todos nós, seja um homem melhor. — Eu não esqueci — ele disse em voz alta. — Todo dia rezo pelo retorno dela. Mas até que chegue esse momento, não podemos virar as costas para o que ela simbolizava. A magia não é o inimigo. — Diga isso ao exército de magos que Vesevios se esconde na névoa — o rei columba rebateu. — Testemunhamos o poder deles e eles vão nos destruir, a menos que os destruamos primeiro. Ao redor da mesa, cabeças concordaram com a cabeça. Xander os estava perdendo. Dias antes, ele havia sido o salvador deles, e agora eles olhavam para ele com cautela, como se não tivessem certeza de onde estava sua lealdade. Com vocês, ele queria dizer. Com meu povo. Mas também com a paz. Os dois conceitos estavam mudando lentamente para lados opostos, e ele não sabia como endireitar o navio. Se Lyana estivesse lá, seria tão fácil. Sem ela, cada sugestão que ele fazia continha o potencial para um desastre. — O que exatamente você está propondo? — A voz da rainha Zara preencheu o silêncio, dando-lhe uma abertura. Exceto... que ele não sabia como preenchê-lo. Guerra. Ou paz. Seu povo. Ou o mundo. Xander pensou no navio, nos magos, em sua magia e na facilidade com que afugentaram um dragão e depois fugiram noite adentro. Ele pensou nas cidades escondidas nas profundezas da névoa, transbordando de poder. Ele pensou em suas horas finais na Casa dos Sábios, no menino que deu um passo à frente quando nenhum outro o fez e no homem que o seguiu, usando sua magia para mover a terra e escapar. Finalmente, ele pensou na promessa que havia feito antes de escapar para a liberdade. Espero que o que disse seja verdade. Sou um velho. Eu vivi minha vida. Mas esse menino merece um futuro. Lembre-se disso quando tudo isso acabar. Eu vou, Xander havia jurado. Ele salvaria o menino, mas mais, ele salvaria o mundo deles. Não preservando os modos antigos, mas formando novos. Um mundo construído sobre o amor, não sobre o medo. Essa foi a promessa que ele fez a si mesmo. No entanto, nos dias que se seguiram, depois de chegar a Sphaira para encontrar uma cidade desolada em vez de vitoriosa, ele deixou o medo vencer. Ele ficou parado e observou enquanto os magos eram espancados para obter informações. Não fingira fidelidade a Cassi. Ele deixou aquele menino ser preso em correntes. Ele se sentou em silêncio enquanto reis e rainhas discutiam entre si, seu terror sufocante. Ele não ficaria mais quieto. Lyana e Rafe voltariam. De alguma forma, Xander e Cassi os trariam de volta. Mas até esse dia chegar, ele devia a seu povo colocar sua casa em primeiro lugar. Ele encontrou o olhar da rainha Zara, sentindo o escrutínio dos outros membros da realeza na sala. — Estou propondo um novo estilo de vida. — Essa é uma proposta ousada. — São tempos ousados — os cantos dos lábios dela se curvaram em aprovação quando Xander se levantou para se dirigir à sala. — Todos nós perdemos. Todos nós lamentamos. Mas o tempo de luto acabou. Não somos inocentes. Durante séculos, demos as costas aos presentes que os deuses nos deram. Assassinamos nosso próprio povo. Deixamos que nosso medo de Vesevios superasse nosso amor um pelo outro e pelos deuses. Somos os únicos responsáveis pela destruição de nosso mundo, e mesmo agora, mesmo depois que o que mais temíamos aconteceu, olhamos para trás em vez de para frente. Não há retorno. Não há como se livrar da magia. O mundo mudou e nós devemos mudar com ele. Devemos reconstruir não apenas nossas cidades, mas nossos corações. Vocês se preocupam que um exército de magos chegue à nossa porta? Digo que temos todo o poder de que precisamos para combatê- los aqui mesmo. Nossos melhores soldados estão trancados em nossas masmorras. Eles estão se escondendo à vista de todos. Eles estão com medo de se mostrar porque, no passado, isso significava morte certa. Mas agora precisamos deles. Nosso modo de vida depende das mesmas pessoas que, em nossa própria ignorância insensível, expulsamos. Se queremos que nossos reinos sobrevivam, devemos primeiro abrir nossos olhos para os presentes que os deuses nos deram. Devemos escolher o amor, não o medo. E, se vocês estiverem prontos para fazer isso, talvez nem tudo esteja perdido. Podemos começar hoje, agora mesmo, libertando aqueles que aprisionamos e implorando seu perdão. Podemos liderar pelo exemplo. Podemos ser o alvorecer de um novo dia. Xander fez uma pausa para tomar fôlego e, em seu lugar, dez vozes se ergueram, desconexas e irritantes aos ouvidos, discutindo mais uma vez. Era o suficiente. Ele já teve o suficiente. Sem outra palavra, ele se levantou, o arrastar das pernas da cadeira alto o suficiente para parar o caos enquanto ele recuperava a atenção da sala. Em vez de se dirigir a seus colegas, ele caminhou em direção à porta sem olhar para trás. — Onde você está indo? — O rei columba berrou. — Essa discussão ainda não acabou. — Para mim, já. — Um rei corvo sem-terra para chamar de lar? Saia agora e você não será bem-vindo em nenhum de nossos reinos. — Então me exile — Xander gritou enquanto abria a porta, deixando-a bater ruidosamente contra a parede. Ele havia perdido toda a paciência e todo o senso de decoro. — Não posso ficar sentado nem mais um momento nesta sala enquanto alguém do meu povo sofre. Eles estão trancados no escuro há dias e vou libertá-los, quer você goste ou não. — Você não pode… Dedos apertaram o antebraço de Xander e ele se libertou enquanto se virava para enfrentar seus colegas uma última vez. Covardes, todos eles. — Apenas tentem me parar. Da última vez que verifiquei, os corvos ainda eram minha responsabilidade e tratarei meu povo como bem entender. Bom dia. Ele saiu da sala de guerra e saltou sobre a grade para mergulhar no átrio no coração do palácio das columbas. A sala normalmente era encharcada pela luz do sol que iluminava um majestoso piso de mosaico representando o céu do meio-dia. Agora estava cinza, assim como seu humor. O cristal translúcido parecia opaco como pedra em meio à espessa névoa que ainda não havia se dissipado, e a visão não era melhor do lado de fora quando ele voou para o ar quente e levemente úmido. Mas mesmo sem um guia, Xander lembrou-se do caminho para as masmorras. Dois guardas com asas cinzentas pararam enquanto ele se aproximava. Eles trocaram um olhar breve e incerto. Sulcos cavaram na pele escura de suas testas enquanto examinavam o ar vazio atrás dele, procurando a comitiva normal. — Rei Lysander. Suas botas rangeram quando ele pousou na rua lamacenta. — Deixe-me passar. Eles trocaram outro olhar revelador. — Será que os outros… — Deixe-me. Passar. Mesmo que ele não fosse o rei deles, ele ainda era da realeza, e eles sabiam que não deviam negá-lo. Os guardas cederam e Xander correu para dentro, grudando as asas nas costas nos corredores apertados e estreitos projetados para tornar a fuga impossível. Lanternas a óleo iluminavam passagens escuras. Mais guardas apareceram, mas nenhum ousou detê-lo. Meses atrás, a mera presença deles poderia ter sido suficiente para fazê-lo parar. Agora, ele era o vento e eles eram os galhos quebrando sob seu humor tempestuoso. Xander não tinha magia. Ele não era particularmente forte. Ele não tinha habilidade com uma lâmina. Mas ele era um homem de convicções firmes, e isso era um poder próprio. Quando chegou ao corredor que continha os magos, estendeu a mão. — As chaves. Agora. A autoridade em seu tom proibiu a resistência, e o guarda relutantemente tirou a corrente de seu pescoço. O metal frio beijou sua palma e um leve barulho encheu o silêncio. Xander localizou a chave adequada do grupo, deslizou-a na fechadura e usou o ombro para abrir a pesada porta de madeira. A cela do outro lado estava escura. Ele pegou uma tocha na parede e acendeu antes de entrar nas sombras. A luz do fogo cintilou sobre a pedra úmida, revelando um longo corredor alinhado com mais portas, que levavam a mais corredores com mais portas. Os magos foram divididos por casa e trancados em celas individuais, separados para que não pudessem se comunicar uns com os outros. Xander marchou em direção às celas dos corvos, seu coração martelando com o bater de suas botas, ambos altos através do silêncio. Era arriscado trazer a tocha – um dos corvos possuía magia de fogo –, mas ele precisava mostrar sua confiança. O ruído do ferrolho de metal ecoou nas paredes quando ele destrancou o primeiro conjunto de barras e saiu para a escuridão. — Amara? Uma respiração suave preenchia o silêncio. Em vez de enfiar o fogo em seu rosto e forçá-la a sair do esconderijo, ele enfiou a tocha em seu suporte e ergueu os braços em sinal de paz. Ela era uma agro’kine e não havia plantas nesses salões de pedra sem vida para ela manejar contra ele, mas a última coisa que ele queria era fazê-la se sentir impotente. — Amara — ele tentou novamente, falando com as sombras. — Não há nenhuma razão para você confiar em mim. Eu deveria ter chegado antes e não tenho desculpa para deixá-la apodrecer no escuro nos últimos dias, mas estou aqui agora e estou libertando você. Assim que deixarmos esses corredores, você pode desaparecer na névoa, se assim o desejar. Não vou tentar impedi-la e, com toda a honestidade, não a culparia. Mas você lutou por Lyana. Você acreditou na causa dela para criar um mundo unido e, embora ela não esteja mais aqui, seu sonho não morreu. Quero ver esse mundo ganhar vida e quero trazer Lyana de volta para nos liderar. Então eu pergunto se você vai lutar por mim, como fez com minha rainha. — E os outros? — Você é minha primeira parada, mas não a última. Vou libertar todos os corvos dentro de uma hora. — E todo o resto? — Se o resto da realeza não os libertar, eu irei, não importa as consequências. Por favor, me dê apenas uma semana para ver se podemos fazer isso pacificamente. O caminho pela frente será difícil o suficiente e acredito que as outras casas cairão em si com um pouco de tempo. — Quinhentos anos não foi tempo suficiente? Um sorriso irônico torceu seus lábios. — Aparentemente não. — Você pode garantir minha segurança? Seu humor morreu. — Eu não posso. — O povo de Sphaira, de todos os reinos, não vai simplesmente me deixar andar entre eles agora que eles viram o que eu sou. — Espero que comigo e todos os corvos ao seu lado, eles o façam. Ela suspirou. Passou um segundo de silêncio, depois dois. Roupas farfalharam. Asas negras se abriram da escuridão, penas de obsidiana brilhando ao captarem a luz, e ela deu um passo à frente. Sua pele magra pendia de suas maçãs do rosto, pálida contra seu cabelo preto. No entanto, seus olhos castanhos eram ferozes quando encontraram os dele. Era o olhar de alguém que passou a vida inteira se escondendo e não voltaria a ser enjaulado. — Eu lutarei por você, Rei Lysander, porque estive em contato com a Andarilha de Sonhos, e sei que você nunca nos abandonou de verdade. Mas será em meus próprios termos e somente com o consentimento de meus amigos. — Então vamos ver o que eles têm a dizer. Juntos, eles desbloquearam mais cinco celas e libertaram mais cinco magos corvos. Como um, eles caminharam de volta pelas masmorras. Nenhum guarda ousou intervir. Apenas quando saíram eles encontraram resistência. A realeza esperava em um semicírculo ao redor da entrada, observando-os com cautela. Xander meio que esperava que os magos voassem e o abandonassem à própria sorte, mas não o fizeram. Eles ficaram ao seu lado quando o ar começou a formigar. O fogo da tocha explodiu em uma explosão ameaçadora quando uma súbita rajada de vento soprou e o chão tremeu. A realeza mexeu os pés e as asas, como se ansiasse pelo céu. — Estou levando meu pessoal de volta para os aposentos de hóspedes dos corvos — disse Xander, sua voz crescendo para que qualquer ouvido curioso pudesse ouvir. — Se algum mal lhes acontecer, a retribuição será rápida. Este é o nosso exército. Esses magos são nossa única esperança. Pense nisso enquanto seu povo se senta no escuro e se preocupa com os maus-tratos. Pense em como seremos muito melhores se lutarmos juntos, em vez de desmoronarmos. Com um rápido bater de asas, Xander subiu ao céu. Um novo dia havia amanhecido e só o tempo diria se traria segurança ou desastre. — O que você vê quando vai ao ninho sagrado, Xander? Eles estavam em sua biblioteca em um sonho. Cassi sentada no colo dele enquanto ele a embalava nos braços, apoiando o queixo no alto da cabeça dela. Com a orelha pressionada contra o peito dele, ela escutava as batidas calmas e constantes de seu coração. A presença dele a enfeitiçava, fazendo-a sentir-se segura como nunca antes – consigo mesma e com suas convicções, como se com ele ao seu lado pudesse ser a heroína que sempre quis ser, como se ela pudesse realizar qualquer coisa. — O que eu vejo? — Ele perguntou distraidamente, sua mente claramente em outras coisas. — No ninho sagrado. — Árvores. Pássaros — ele encolheu os ombros. — Um bosque como qualquer outro. Cassi revirou os olhos. — Não, quero dizer a fenda. O que você vê da fenda? — Nada. — Nada mesmo? — Cassi afastou-se para olhá-lo. Os olhos cor de lavanda a observavam com curiosidade sob as sobrancelhas franzidas, seu interesse despertado. — Eu não consigo ver magia. O que você achou que eu veria? — Não sei — ela franziu a testa. — Um brilho no ar, uma sugestão de um reino além da fenda. Mas se você não vê, então eu me pergunto… — Quer saber o quê? Ele se mexeu, voltando seu foco completo para ela. O efeito foi eletrizante. Seu corpo vibrou enquanto ele apertava sua cintura e estudava seu rosto. Ela estava tão acostumada a não ser o único foco da atenção de alguém, a ser valorizada não pelos segredos que poderia compartilhar, mas pelos pensamentos dentro de sua própria mente. Era libertador não mais se esconder atrás de suas mentiras. — Alguém tentou jogar alguma coisa pela fenda? — Cassi perguntou. — Alguém tentou tocá-la? — Até onde eu sei, ninguém, exceto você e seus magos, sabe que ela existe. Por quê? — Ele inclinou a cabeça para o lado, tão bem sintonizado com o humor dela. — O que você está pensando? — Eu só estou pensando… — Ela puxou o lábio em sua boca, com medo de ter esperança. Mas não era para isso que serviam os sonhos, imaginar o impossível? — Lyana e Rafe — a dor passou pela expressão de Xander com a simples menção de seus nomes, mas ela continuou. — Nós dois esperávamos ouvir sobre eles. Eu sei que não dissemos isso, mas é por isso que esperei alguns dias extras antes de escapar, por que você concordou em ficar ocioso na sala de guerra, o porquê paramos. Esperávamos que eles reaparecessem, voassem de volta pela fenda, para salvar o dia. E, quando não o fizeram, bem... — Tememos o pior — interveio Xander, finalmente admitindo o assunto que ele e Cassi vinham discutindo há dias. E se eles tivessem ido embora? E se eles nunca mais voltassem? — Eles podem estar mortos — Cassi afirmou claramente, arrancando a bandagem. Xander engoliu em seco de forma audível. — Ou — ela continuou, — eles podem estar presos. — Presos? — E se a fenda estiver fechada? — Mas você disse… — Eu disse que está lá, mas me pergunto se estar ativa e estar aberta são duas coisas diferentes. A fenda ainda está lá. Eu posso sentir e ver a magia. Mas isso significa que ainda está aberta, ou pelo menos aberta o suficiente para a passagem de dois corpos? Não sei. — Então você está dizendo que há esperança. — Talvez. — Sempre tive esperança — sussurrou Xander, desenhando círculos em sua pele. — Meu medo não é que eles estejam mortos. Meu medo é que eles não voltem a tempo. A guerra está chegando, Cassi. Achei que poderíamos evitar. Achei que poderíamos encontrar outra solução. Mas é inevitável. Os magos tentarão tomar nossas casas e faremos de tudo para detê-los. Não estou mais trabalhando pela paz. Estou trabalhando pela preservação. Ela caiu imóvel em seu colo, seu estômago caindo com seu tom. — O que você fez Xander? — Eu libertei os magos corvos. Ela beliscou a ponta do nariz. — Eu pensei que tínhamos concordado que você ficaria quieto? Deixar a realeza discutir em círculos até eu encontrar a spatio’kine. Ficar fora de perigo. — Não há mais perigo, Cassi. Você não vê? Tudo o que resta é escolher o seu perigo. Eu posso lidar com os outros membros da realeza. Eles não virão atrás de mim... — Sozinhos. Eles não virão atrás de você sozinhos. Eles vão esperar até que a multidão os apoie, e então farão uma exibição pública para puni-lo por trabalhar com magos. Os corvos que você salvou têm magia, Xander, mas não o suficiente para mantê-lo seguro se todo o reino se voltar contra você. — Não vou viver com medo. — Não é… — Ouça, Cassi — implorou ele, com os olhos cor de lavanda a brilhar ferozmente. — Você teria dito a Lyana e Rafe para não lutarem? Ela engoliu em seco, mas não disse nada. — Os outros magos? Você mesma? Não. Então não diga isso para mim. Posso não ter magia, mas sei cuidar de mim mesmo. — Eu sei — disse ela, segurando sua bochecha. Seu coração se partiu com a vulnerabilidade em sua voz. Não é que ela não achasse que ele era forte – ela achava. Isso era sobre ela, não ele. — Eu simplesmente não posso perder você. Suas feições se suavizaram quando ele se inclinou para seu toque. — Você não vai. Era uma promessa que ele não podia fazer, uma que ela sabia que não deveria aceitar, mas ela roubou as palavras do ar e as embalou contra o peito como uma pequena chama precisando de proteção contra o vento. Talvez se ela apenas as mantivesse perto o suficiente, as mantivesse seguras o suficiente, o desejo vivo em seu coração se tornaria realidade. Xander encostou a testa na dela para que respirassem o mesmo ar. As pontas de seus narizes roçaram quando seus olhos se encontraram. Ele estava certo. A guerra estava chegando. Sua mãe havia dito isso. Da’Kin estava dividida. As aves estavam divididas. E o caos gerava o caos. Ele precisava estar preparado. As casas também. Porque se os magos viessem – quando os magos viessem –, eles não recuariam. Após quinhentos anos de miséria, quinhentos anos de espera, eles não parariam a menos que alguém estivesse lá para detê- los, e esse alguém estava preso em outro mundo. Não havia outra realidade que Cassi aceitasse. Lyana estava viva, e a spatio’kine era a chave para salvá-la, para salvar todos eles. E eu sou a chave para encontrar a spatio’kine. Cassi saiu dos sonhos de Xander com vigor renovado. Normalmente, tudo que ela precisava saber era o rosto de uma pessoa ou até mesmo apenas um nome, algum pedaço para amarrá-la a seu espírito, e sua magia fazia o resto, levando-a a um corpo. Mas não foi assim com a spatio’kine. O espírito da garota era evasivo, e Cassi tentou encontrá-la desde que se separou do skryr, mas sem sucesso. Era como se ela não existisse, ou talvez, por causa de sua magia, existisse fora do espaço. Cassi não conseguia senti-la. Enquanto ela voava pelos mares, entrando e saindo de bancos de neblina agora se diluindo com as ilhas voltando para a água, nenhuma amarra chamou seu espírito. Mesmo quando ela alcançou as montanhas, seus picos irregulares ainda envoltos por uma névoa espessa, nenhuma alma gritou. Os penhascos íngremes eram estéreis. A neve não continha pegadas. Os ventos não sussurravam com vozes. Eu sei que você está aqui. A frustração rosnou através de seu espírito. Eu vi você. A memória veio tão facilmente. Cabelos loiros balançando com a brisa. Bochechas sardentas emergindo de uma fenda na névoa. Olhos brilhantes de mel constantemente procurando enquanto a magia branca brilhava no ar. Ela estava assustada, mas temível, com o coração partido, mas em paz, seguindo em frente com a rara segurança de alguém que decidiu nunca olhar para trás. Embora nunca tivessem se conhecido, Cassi a conhecia. Então, por que ela não podia encontrá-la? Onde você está? Ela voou sobre picos agudos e vales profundos, entrando e saindo da névoa, correndo pela interminável cordilheira sem destino em mente, procurando sem rumo, até que finalmente, sem saber o que fazer, ela parou no meio do caminho. Onde você está? Seu espírito sem voz gritou para o vazio, e o deserto estéril ecoou de volta, seu vazio soando como uma risada em seu rosto. Nesse ritmo, ela nunca encontraria a garota. Ela nunca salvaria Lyana. Não. Cassi lutou para desalojar o desespero que se agarrava como uma âncora, arrastando-a para profundezas das quais talvez não emergisse. A positividade tinha poder. Uma lição que ela aprendeu com Xander. Com força de vontade suficiente, tudo era possível – força de vontade e talvez uma nova perspectiva. O que ela estava perdendo? Seus métodos habituais não estavam funcionando, mas tinha que haver uma maneira. Ela tentou imaginar a garota. Ela tentou convocar seu espírito. Ela vagou pelas montanhas por horas a fio, procurando por qualquer sinal de vida. E a magia dela? O pensamento fez Cassi parar. E a magia da garota? Era por isso que ela era tão difícil de localizar, Cassi tinha certeza, mas também poderia ser através dela que ela ia encontrá-la? Seu poder spatio’kine a levava adiante, atraindo-a para Sphaira. Era a única razão que Cassi poderia pensar para explicar por que a garota estava passando pelas montanhas. Por que mais enfrentar o perigo? Por que não ficar em sua terra natal? A fenda tinha que estar chamando por ela. Talvez Cassi pudesse usá-la para chamar de volta. Bastava pensar em Xander e ela disparava pelos céus, o espírito dele era a corda mais forte para a magia dela. Em momentos, ela estava de volta ao seu lado da cama. O suave brilho de pêssego do amanhecer brilhou em suas bochechas enquanto a luz do sol se filtrava através das paredes de cristal de seu quarto. Ela poupou um momento para imaginar acordar ao lado dele, em corpo, não apenas em espírito. Imaginou a pressão de seus lábios em seu ombro como a primeira coisa que ela sentiria, antes de seus braços apertarem sua cintura, puxando-a para seu peito robusto. E então girar em seu aperto, levantar os dedos para o rosto dele e escovar os cabelos pretos desgrenhados de sua testa enquanto ela encontraria seu olhar amoroso. Imaginou ser dele, não apenas em seus sonhos, mas verdadeiramente. Algum dia, talvez, eles teriam isso. Mas não hoje. Cassi fugiu através dos cristais, emergindo no ar úmido do exterior e deixando para trás os aposentos dos corvos. Em sua juventude, o palácio de Sphaira teria brilhado como um farol na luz da manhã. Em vez disso, a névoa pairava opressivamente sobre a cidade, lançando as ruas em um tom laranja quase sinistro enquanto o sol subia no céu. A memória a guiou para o único lugar que ela já chamou de lar, mesmo que ela tivesse sido arrastada daqueles salões dourados acorrentada apenas alguns dias antes. O átrio estava silencioso quando ela entrou, não que isso importasse. Ninguém ali poderia detê-la. A fenda vibrou com um poder que ela sentiu muito antes de passar pelas barras douradas do ninho sagrado. A pulsação estática a conduziu através do denso bosque, arrepiando seu espírito enquanto ela desviava entre os galhos e sobre o chão coberto de folhas. Uma lasca brilhante de magia branca preenchia o centro aberto, uma visão que teria sido gloriosa, até divina, se ela não soubesse o que era. Em vez disso, a fenda radiante encheu Cassi de pavor. Ela pairou diante dela, sem saber como proceder. Se ela tocasse, ela cairia? O que o mundo faria, então? Quem encontraria a spatio’kine? Quem salvaria Lyana e Rafe? Xander vai me substituir em seus sonhos? Ela afastou o pensamento. A covardia já havia tirado muito dela. Isso a prendeu por anos em um papel que ela nunca quis: o de traidora e espiã. O medo do desconhecido nunca mais a impediria. Cassi avançou. A magia crepitou em seu espírito e ela roçou a borda da fenda. Visões de céus alaranjados e campos de ônix roubaram sua visão. Garras cavaram em sua alma, arrastando-a para outro mundo. Ela lutou, o ato tão inútil quanto tentar nadar contra a corrente. Uma avalanche de poder correu sobre ela, puxando-a para baixo do vórtice. Meu corpo. Meu corpo. Ela se concentrou nessa conexão e se agarrou a ela como um homem se afogando em uma corda. O arranhão de lençóis de algodão grosseiramente cortados em suas pernas expostas. O gemido da madeira em seus ouvidos. A dor de suas asas apertadas no pequeno espaço de seu beliche. A boca roendo de seu estômago. Cada lampejo de sensação humana era um puxão forte trazendo-a de volta ao seu mundo. E lá, presa entre dois reinos, em meio a um turbilhão de poder implacável, ela encontrou o que estava procurando. Encharcado de magia spatio’kine, o senso de lugar de Cassi desapareceu. Ela não estava mais no ninho sagrado, ou na fenda, ou em uma terra estrangeira como ela nunca tinha visto. Era como se todos os planos da realidade tivessem se achatado. Ela pensou na garota com cabelo cor de milho e olhos castanhos calorosos, cujo poder era um espelho daquele que atualmente saturava seu espírito, e ela foi transportada. O espírito de Cassi libertou-se da fenda com a força de uma flecha e foi catapultado pelo espaço, atravessando um oceano como se não passasse de uma poça d'água. A garota estava lá. Um anel de magia de fenda branca deixou sua silhueta através da névoa. A spatio’kine deu um passo à frente. Ventos fortes sopravam, levantando nuvens de neve recém caída no ar que bloqueavam a visão de Cassi. Ela correu para segui-la, agarrando-se ao contorno borrado de um corpo. O céu clareou bem a tempo de ela ver um lampejo de marfim quando o poder desapareceu da existência. A garota se foi. Sozinha na fria escuridão das montanhas, Cassi talvez devesse ter se desesperado. Em vez disso, a euforia brilhou em seu espírito, aquecendo-a de dentro para fora. Eu a encontrei. Apenas por um momento, mas foi o suficiente. Eu a encontrei uma vez, e vou encontrá-la novamente. E de novo e de novo. Quantas vezes for preciso. Não vou parar até encontrá-la em seus sonhos. — Sente, Audezia. Tome uma bebida enquanto esperamos. Zia ignorou o outro capitão e continuou andando pela cabine dele, os nervos na nuca formigando. Jacinta e os outros estavam atrasados. Eles chegaram a Da’Kin na noite anterior e ela já estava louca para ir embora. — Você espreita como um animal enjaulado — Jerard continuou, o sorriso em seus lábios visível sobre a borda de seu copo. Ele descansava com os pés apoiados em sua mesa, seus olhos nunca a deixando. O homem era notório, e não apenas por sua magia, embora ele fosse o mais poderoso hydro’kine que Zia já tinha visto. Se ele quisesse, ele poderia separar os mares. Em vez disso, ele se tornou o capitão do navio de caça ao dragão mais rápido nessas águas. O mais rápido, ela pensou com um sorriso malicioso. Mas não o melhor. Esse título foi reservado apenas para sua tripulação. — Como eu adoraria ler sua mente — ele murmurou sugestivamente, — para descobrir o que motivou esse olhar pecaminoso. Ela lançou-lhe um olhar de soslaio, revirando os olhos. Jerard jogou a cabeça para trás e riu, seu cabelo branco caindo sobre os ombros enquanto ele tremia. Passos soaram no corredor. A alegria morreu em seus lábios. Jerard abaixou os pés e sentou-se ereto enquanto Zia girava. A porta se abriu com um estrondo quando Jacinta e o resto da antiga trupe de magos de Malek, agora seu grupo de conselheiros reais, correram para dentro. — Rainha Jacinta — Zia baixou a cabeça. Jacinta dispensou as formalidades. Com um movimento de seu pulso, faíscas verdes dispararam pela sala e giraram a fechadura. — A dormi’kine encontrou alguma coisa? — Ainda não. — Onde ela está? Eu esperava que ela estivesse aqui. — Ela está em seu beliche, ainda procurando. Achei melhor não acordá- la. Jacinta fez um aceno agudo. Sua nova posição não fez nada para suavizar suas feições severas – franja preta reta, pele de marfim, nariz pontudo e maçãs do rosto salientes. A coroa aninhada na testa servia apenas para adicionar mais ângulos ao rosto. No entanto, quando Zia encontrou seus olhos castanhos escuros, ela os encontrou cheios de mais emoção do que a maga de metal jamais havia revelado. Seu desespero era tão profundo que não havia como impedir que transbordasse de seu controle. Para a maioria dos que o conheciam, o rei Malek não era digno de amor. Para Jacinta, ele tinha sido o mundo. — Você pediu esta reunião, capitã Rokaro. O que você precisava me dizer que a dormi’kine não conseguiu transmitir? — Há algo que eu… Uma comoção do lado de fora da porta a fez parar. Grunhidos e gemidos deslizaram pela madeira grossa, depois o bater de botas e o som de metal. — Capitã! O berro profundo de Remendado cortou a confusão. Zia entrou em movimento. Antes que ela estivesse na metade da sala, a porta implodiu. Estilhaços de madeira encheram o ar. A magia fez cócegas em seus dedos enquanto ela invocava uma rajada repentina para varrê-los para o lado. Através da névoa amarela de seu poder, ela avistou a cena no corredor. Magos lutavam, faíscas de poder preenchendo a escuridão enquanto punhos, pernas e corpos lutavam juntos. — Markos! — Ela chamou, esquecendo-se por um momento que esse era um nome do passado. Em sua nova vida, ele era conhecido apenas como Remendado. Um único olho castanho escuro encontrou o dela, a alma visível dentro dele mais gentil do que qualquer outra que ela tivesse conhecido. Ele manteve dois homens afastados, usando seu tamanho para bloquear a entrada enquanto seus ventos sopravam em suas costas. — Tanos está aqui. Seu coração parecia cair de seu peito. Antes que Zia pudesse agir, uma onda de magia verde escura se espalhou pela cabine. Todos neste mundo sabiam que não deviam manter metal consigo. Seus botões eram esculpidos em madeira. A adaga em seu quadril era feita de osso. Jacinta era a única na sala que exibia orgulhosamente braceletes de ferro nos pulsos e uma coroa de aço afiado. Pelo menos, deveria ter sido. Um grito saiu dos lábios de Zia quando a lâmina se alojou em seu ombro, o som mais de surpresa do que de dor. Ela tropeçou para a frente com o impacto, então girou para olhar para trás. Jerard deu um sorriso triste enquanto abria as gavetas de sua escrivaninha. Dezenas de armas de metal ergueram-se no ar, um arsenal escondido à vista de todos. Jacinta imediatamente lutou para ganhar o controle, as duas ondas de magia ferro’kine se misturando enquanto se fundiam. Zia simplesmente cuspiu em seus pés. — Não é pessoal — o capitão murmurou. Ele tomou o resto de sua bebida e se levantou. — Apenas negócios. Negócios, minha bunda. O traidor não valia seu tempo. Zia estendeu a mão para trás, puxou a lâmina e jogou-a para Jacinta. Antes de encontrar os dedos da rainha, foi pega em uma teia de magia verde, como qualquer outra arma cabine sala, vibrando no ar enquanto os dois magos lutavam pelo controle. Ela olhou para Kal, Nyomi, Isaak e Viktor. — Tirem a rainha daqui. Uma luz ofuscante se derramou da palma da mão de Kal. O ar quente beijou sua bochecha quando o crepitar da madeira queimando encheu o ar. A água espirrou, encharcando-a. Não havia como saber se vinha de Nyomi ou de Jerard, mas ela não queria correr nenhum risco. Zia jogou o braço para o lado, enviando uma rajada de vento na direção do capitão. Viktor deve ter feito o mesmo porque um uivo alto encheu seus ouvidos, então um tunk. No momento em que o brilho da magia photo’kine clareou, Zia estava sozinha ao lado de um buraco aberto, a madeira enegrecida onde ainda não havia se transformado em cinzas. Ao se virar para a porta, ela avistou Jerard empalado contra a parede – uma espada em seu estômago, uma adaga em seu coração e mais uma bem entre seus olhos sem vida. A simpatia veio e se foi rapidamente. Eles eram amigos, de certa forma, depois de tantos anos vivendo nesses mesmos mares tempestuosos, mas a lealdade era o único deus a quem Zia rezava, e o bastardo não tinha nenhuma. Boa viagem. A magia ferro’kine no ar aumentou. Sem Jacinta, Arqueiro estava tentando lutar contra o homem sozinho e, embora Zia o amasse, ele não era páreo para este inimigo. Eles tinham minutos, talvez nem tanto, antes que a fuga se tornasse impossível. Ela correu para onde Markos ainda bloqueava a porta e encostou a coluna na dele. Enquanto seus ventos mantinham os intrusos afastados, os dela estavam focados em atrasar as armas que agora disparavam na cabine do capitão. — Sanguessuga? — Ela perguntou rispidamente, todo o seu foco em sua magia. — Pronto — seu primeiro companheiro grunhiu. — Dê o sinal. Ele enfiou o polegar e o indicador entre os dentes e soltou um assobio penetrante. De algum lugar distante, um som correspondente ecoou. O chão sob seus pés desapareceu e eles caíram pela abertura. Zia caiu de pé com força, bem a tempo de ver as tábuas de madeira selarem acima de sua cabeça. Eles não aguentariam por muito tempo. — Kasiandra? — Ela perguntou ao agro’kine enquanto contava enquanto mais corpos caíam no corredor. Primeiro Pyro, depois Sombra. Eles deixaram Tremedeira na enfermaria naquela manhã com o jovem Esquilo ao seu lado, e Cozinheiro saiu para coletar suprimentos. Encontrariam a tripulação desaparecida mais tarde, assim que tivessem assegurado um navio. Agora, escapar era tudo o que importava. — Eu a peguei — gritou Brilhante, a voz tensa sob o peso das pesadas asas da coruja. Kasiandra ainda estava no auge de seu poder. Arqueiro caiu pelas tábuas, quase derrubando os dois, e as botas trovejaram acima. Acabou o tempo, pensou Zia. — Sanguessuga? — Preparado. — Espirro? — Preparado. — Você precisa espirrar? — Brilhante comentou baixinho. — Porque eu prefiro que você acabe logo com isso, antes que... Zia lançou um olhar duro para a garota exasperada. Brilhante simplesmente deu de ombros. — Estou apenas dizendo. — Estou pronta — confirmou Espirro. Ela não precisou dizer o nome de Markos. Seus olhos se encontraram, cheios de história não dita e compreensão completa. Ele simplesmente assentiu. — Vamos. Eles correram para a parte de trás do navio e Sanguessuga pressionou sua mão contra a madeira conforme o brilho azul da magia hydro’kine enchia o ar. Enquanto o agro’kine cortava as tábuas de madeira, Espirro mantinha o mar sob controle. Uma seção da parede se partiu com uma e caiu de volta à superfície da água. A tripulação subiu a bordo enquanto Zia e Remendado puxavam o ar ao redor deles em uma bolha. Não duraria muito, mas eles garantiriam que durasse o suficiente. Um arrepio desceu pela espinha de Zia e ela olhou por cima do ombro. Ele está aqui. Tanos estava em frente a ela, cercado por uma névoa de magia ferro’kine. As pessoas costumavam pensar nos monstros como coisas inegavelmente feias, mas ele era tão devastadoramente bonito quanto ela se lembrava. Cabelos castanhos ricos que caíam em ondas. Ombros largos e cintura marcada. Uma mandíbula forte coberta de barba por fazer. Seus olhos eram a única parte que revelava o mal que residia dentro dele. O reconhecimento brilhou quando seus olhares se encontraram. Um sorriso cruel torceu seus lábios como uma promessa, mas Zia também fez uma promessa. Ela não era a garota de que ele se lembrava e nunca mais ficaria presa em suas correntes. Antes que ele pudesse reagir, ela fundiu sua magia com a de Espirro e a correnteza os levou embora. — Isso é uma tolice, meu rei. A voz parou Xander. Pertencia a uma mulher que nunca havia duvidado dele. Do outro lado do cristal translúcido, a noite escura acenava, e ainda assim ele não podia negá-la, não depois da lealdade que ela tinha mostrado. Ele soltou a mão da maçaneta e se virou, encontrando os olhos de sua conselheira mais próxima. — Eu dei a eles uma semana, Helen. — Dê-lhes duas. — Não é minha culpa que eles escolheram não ouvir. Devemos nossas vidas a esses magos. Nós… — Eu sei. Mas também devemos alguma graça ao nosso povo, não é? Você pede a eles que desfaçam séculos de tradição. Dê a eles um pouco mais de tempo para ver a verdade antes de exilar você e seu povo. Isso só terminará em mais divisão, mais derramamento de sangue e mais perdas, não menos. — Eu fiz uma promessa… — Você fez muitas promessas. Como rei, as promessas que você fez aos corvos são as mais importantes. Juramentos de proteção, fidelidade e servidão. Isso serve para eles? Todos eles? Ou isso serve apenas para você? — Helen, eu... — Ela está certa. Xander virou a cabeça para o lado. A nuvem subiu quando seis corpos emergiram das sombras, a escuridão como uma coisa viva, respirando como gavinhas soltas contorcendo-se em torno de asas de obsidiana. Ele deveria saber que eles estariam lá. Ainda assim, ele não pôde evitar a forma como seu coração martelava em seu peito – de surpresa, sim, mas também com o menor indício de medo. Eram corvos e demonstravam uma lealdade incrível, mas o poder deles era algo que ele não tinha esperança de controlar. Amara estava à frente do grupo, a general de um pequeno exército. Ele não pôde deixar de se perguntar como a mulher havia se tornado sua líder não oficial. Contra um mago do fogo, um mago das sombras, dois magos da água e um mago do vento, sua magia de terra parecia mais fraca. Sua presença chamava a atenção, porém, sua força era serena. Talvez seu poder a fundamentasse, e todos eles, mais do que ele jamais poderia entender. — A Andarilha de Sonhos esteve nos visitando — ela continuou. — Na época em que estávamos em nossas celas, e ainda ontem à noite. Nossos amigos no escuro concordaram em esperar um pouco mais. Eles não tentarão escapar e não tentaremos libertá-los… ainda. Ela disse que as columbas estão perto. Ela me disse que cabe a você convencê-las. — Estou tentando… — Se esforce mais. Ao seu lado, os lábios de Helen se curvaram em um sorriso, diversão e respeito brilhando em seus olhos. Ele olhou para sua capitã e ela tentou abafar a reação, mas não adiantou. — O que mais Cassi disse? A pergunta saiu como um longo suspiro. Ela não tinha visitado seus sonhos em dias. Segundo ela, eles eram muito perturbadores. Xander zombou da acusação. Eu posso me controlar. Não é com você que estou preocupada, ela respondeu, antes de agarrá-lo pela lapela e puxá-lo em seus braços. Suas bochechas coraram com a memória. — Ela disse que você queria uma briga, e agora você tem uma. Xander bufou. — E que seria bom para você parar de seguir as regras. Típico, ele pensou. Primeiro, Cassi grita comigo por causa do meu comportamento precipitado. Agora ela diz que não estou sendo ousado o suficiente. — Eu tirei seis magos da prisão e estou preparado para libertar o resto. Quantas regras mais eu preciso quebrar? — A mensagem não é minha — Amara deu de ombros. — Mas se me permite, talvez ela não estivesse falando tanto sobre quebrá-las. Mas ver de uma nova maneira? Tentando um novo ângulo? — Que ângulo? — Ele perguntou, mudando sua atenção de Helen para Amara. Ambas as mulheres o olharam em silêncio, incapazes de dar uma resposta. O que você está tentando me dizer, Cassi? O que você está tramando? Atrás dele, um punho esmurrou a porta. Xander deu um pulo. Quem pelos deuses poderia ser a esta hora? Ele estendeu a mão para a maçaneta e a madeira se abriu, quase acertando seu rosto. Ele cambaleou para trás quando um borrão roxo iridescente brilhou à luz da vela. — Damien? O príncipe beija-flor se materializou diante dele com um sorriso arrogante. — Eu sei o que você vai dizer, e você está errado. Não tem hora ruim para beber, mas não é por isso que estou aqui. — Então por que… — Vamos para a névoa. — O quê? — Na verdade… — Ele inclinou a cabeça para o lado, em seguida, empurrou o queixo. Três corpos correram pela porta em uma explosão de cores. Um por um, os magos pararam atrás de seu príncipe. A princesa Coralee seguiu mais devagar, suas asas de coruja não tão ágeis. — Estamos indo para a névoa. — Os beija-flores estão se juntando a mim? — Xander se animou, a esperança entremeada nas palavras. — Não exatamente. A chama se apagou. — Não pareça tão desamparado — Damien brincou revirando os olhos. A covinha em sua bochecha cintilou de uma forma que quase pedia para ser estapeada. — Eu estou do seu lado, e eles também, o que significa que você tem mais cinco pessoas do que há alguns minutos atrás. Os reis e rainhas são velhos e estão desnorteados. Eles precisam de um empurrão na direção certa. — Eu estive empurrando — Xander murmurou. — Com discursos eloquentes, sem dúvida. Agora é hora de lutar através da ação. Nosso povo está tão assustado e cego pelo medo que não vê mais nada. Eu estava aqui durante a batalha. Eu vi a magia. Sem ela, os dragões teriam nos destruído. Eu era muito tolo antes, muito aprofundado em nossas tradições e minhas próprias inseguranças para ver a verdade, mas aquele dia mudou tudo. Somos muito melhores juntos do que jamais fomos separados. E, apesar de tudo que fizemos a eles, esses magos ainda querem lutar conosco. Com toda a honestidade, não merecemos a ajuda deles, mas vou aceitar. Xander franziu a testa. — O que vai conseguir entrando na névoa? Precisamos ficar aqui. Precisamos ser um exemplo. Precisamos mostrar a todos que não temos medo. — Pense maior. Ele não conseguiu parar o bufo que subiu por sua garganta. Apenas algumas semanas atrás, Damien segurou uma adaga em sua garganta e cuspiu nele por ser um amante de magos. E agora o príncipe beija-flor estava dizendo a Xander para pensar grande? A tentativa de mudar os próprios fundamentos de sua sociedade não era grande o suficiente? Um sorriso triste passou pelos lábios do príncipe, como se ele pudesse ouvir tudo o que Xander estava pensando. — Mostrar a eles que não temos medo da magia de nosso povo não é suficiente, ou todos já estariam do seu lado. Se quisermos ser um exemplo, vamos provar que não temos medo da névoa ou de Vesevios ou de qualquer um desse exército mítico de que tanto ouvi falar. Vamos para o céu. Vamos encontrar o que sobrou de nossas casas. Vamos desmascarar nosso inimigo. Então, quando voltarmos, a mensagem não será simplesmente sobre aceitar esses magos. Podemos dizer que vimos o outro lado. Podemos dizer que sabemos o que estamos enfrentando. Podemos dizer, juntem-se a nós, lutem conosco e nos ajudem a recuperar nosso modo de vida. A ideia tinha mérito. Agora mesmo, seu povo estava espremido, entrincheirado na névoa que haviam sido criados para temer, sufocados pelo desconhecido. Se eles pudessem abrir caminho, só um pouco, poderia ser o suficiente. Xander podia falar o quanto quisesse sobre as coisas que Lyana lhe contara e os lugares que Cassi lhe mostrara em seus sonhos. Até que ele os visse com os próprios olhos, era só conversa. A realeza não acreditou nele. Mas com Damien e Coralee ao seu lado, os três falando sobre o que testemunharam, a maré pode virar. — Meus pais vão me ouvir — Damien continuou, sua voz baixa e séria, como se ele sentisse que Xander estava prestes a concordar. — Coralee falará com seu irmão. Ele ainda está se ajustando ao seu novo papel como rei, mas sem o pai por perto para orientá-lo, ele está mais apto do que nunca a seguir o conselho dela. Se a Casa dos Sussurradores, a Casa dos Sábios e a Casa dos Colibris se unirem, o resto se alinhará. Taetanos, me ajude. Valia a pena. Qualquer coisa para sair daquela maldita sala de guerra cheia de debates intermináveis e enlouquecedores. — Vamos fazer isso — disse Xander. A sala fervilhava de excitação enquanto as penas farfalhavam e os pés se moviam, ansiosos para agir. Helen assentiu em aprovação. Este era o caminho. Não tirando os magos da prisão e dando ao povo mais motivos para temer, mas acendendo uma tocha para queimar a escuridão. A esperança tem o poder de fazer um reino caído se erguer. Eles caíram o mais longe possível, do céu e em um mar de pesadelos. Mas se pudessem sonhar com um lar, se tivessem algo concreto pelo qual lutar, juntos poderiam recuperar as nuvens. — Partiremos esta noite, antes que seus pais descubram que você libertou seus magos — disse Xander, o plano se formando rapidamente em sua mente agora que a decisão foi tomada. — Helen, ajude todos a reunir suprimentos. Pegue o que for necessário de nossos depósitos e roube o resto. Estarei de volta quando você terminar. Damien arqueou uma sobrancelha. — E onde você está indo? — Conseguir mais duas casas para o nosso lado. — Quem… — Galen — Xander interrompeu, ignorando Damien. Quando o umbra’kine avançou, a escuridão se moveu com ele. — Meu rei? — Você pode me levar para dentro do palácio sem ser visto? Conheço uma entrada secreta que deve ser pouco vigiada a esta hora da noite. — Considere feito. — Você é mais louco do que eu imaginava — Damien murmurou baixinho, entendendo em seu tom. — Pode ser uma esperança tola, mas tenho que tentar. Galen, vamos. Eles saíram da sala em uma onda de escuridão e correram pela cidade adormecida. Dois guardas vigiavam a passagem sobre a qual Cassi havia falado, mas depois de apagar a lanterna, Galen fez um trabalho rápido para protegê-los, usando um pó que Amara havia feito para deixar um homem inconsciente. O mago o guiou pela escuridão até chegarem a uma porta, e simples assim, eles estavam dentro do palácio. Mantendo-se nas sombras, eles subiram a rampa que circundava o perímetro do átrio, passando por alguns criados, mas não muitos. Quando chegaram aos aposentos reais, Galen subjugou mais dois guardas com o pó enquanto Xander deslizava pela porta. Um minuto depois, ele colocou a palma da mão sobre os lábios quentes. — Luka? Os olhos da columba se abriram. O alarme foi rapidamente substituído pelo reconhecimento quando uma carranca torceu suas feições. Ele rolou para uma posição sentada, empurrando a mulher ao seu lado, e desalojou a mão de Xander. — O que você está fazendo aqui? Com o rosnado baixo, a princesa Iris acordou. Olhos castanhos piscaram para Xander, observando a cena com curiosidade. Bom. Sua mensagem era para ambos. — Estou voando na névoa e quero que você se junte a mim. — Cassi está… — Isso não tem nada a ver com Cassi. — Então, por quê? — Para mostrar que não tenho medo. O príncipe Damien e a princesa Coralee voam comigo, assim como os magos de nossas casas. Estamos indo para a Casa dos Colibris para encontrar o que restou de Abaelon, e para ver o que está entre nós e recuperar nossos lares. — Damien? — Luka zombou. O príncipe beija-flor já havia sido escolhido por Lyana, mas depois das provações ele amaldiçoou o nome dela, algo que um irmão amoroso não esqueceu tão cedo. — Estou surpreso que ele esteja sóbrio o suficiente para voar, ainda mais voar na névoa. — Você o julga mal. — Eu acho que não. — Então venha conosco e prove que estou errado. — Não. — Por que não? — Sou necessário aqui. — Para quê? Agir como lacaio de seu pai? Luka estava em cima dele tão rápido que Xander não teve tempo de reagir. Dedos envolveram sua garganta quando ele foi empurrado contra a parede, suas penas esmagando dolorosamente contra o cristal. Mesmo que pudesse falar, não retiraria a acusação. Luka sabia a verdade sobre Lyana, os magos, a profecia e o mundo sob a névoa, mas não disse nada para acalmar as chamas da ira de seu pai, não fez nada para lutar pelo futuro que sua irmã havia previsto. — Não fale do meu pai nesse tom. — Luka — Iris sussurrou, e colocou a palma da mão em seu antebraço. Ele suavizou visivelmente, a tensão escorrendo de seu corpo, mas seu aperto permaneceu firme. Xander teve um espasmo, seu corpo lutando por ar. — Luka! A columba o soltou. Xander tossiu e respirou fundo. — Venha conosco — ele insistiu novamente, ignorando a queimação em sua garganta. — Por Lyana. Chamas de raiva e dor brilharam nos olhos cor de mel de Luka, uma janela para o tormento que sua ausência havia causado. Iris apertou seu domínio sobre seu companheiro e exigiu sua atenção. Luka encontrou o olhar dela. Xander não sabia o que o silêncio deles sussurrava, mas estava claro que os meses juntos os transformaram em um time, o tipo de companheira que ele sempre desejou. Ela deslizou a palma da mão ao longo de seu braço até que seus dedos se entrelaçaram, então levou a mão dele aos lábios e pressionou um beijo carinhoso em sua pele. O ato foi tão íntimo que Xander percebeu que precisava desviar o olhar. — Nós iremos — Luka disse alguns momentos depois, — porque é o que minha irmã teria desejado. Mas não faço promessas além disso. A magia da fenda agarrou seu espírito, arrastando-a para baixo e para baixo em um vórtice profundo do qual ela nunca poderia emergir. Cassi lutou contra a atração, usando a conexão com seu corpo como âncora. Esta batalha estava se tornando muito familiar. Todas as noites, durante dias, ela chegava à fenda em seus sonhos, usando o poder de se lançar em direção à elusiva spatio’kine. Mas a magia da fenda só parecia sentir a maga enquanto ela usava seu poder. O que significava que, todas as noites, tudo o que Cassi captava era o mais ínfimo vislumbre de cabelo louro antes de a magia de marfim brilhar, deixando-a sozinha. Não esta noite, ela silenciosamente prometeu a si mesma, nada para apoiar a afirmação, mas pura bravata. Esta noite, chegarei a tempo. Enquanto o seu espírito se arrastava para o precipício de um novo mundo, rodeado pelo poderoso poder da fenda, Cassi procurava aquela lasca de ligação com a garota. Era como arrancar uma folha das garras de um tornado, precisando de um momento perfeito e... Peguei você! Cassi disparou da fenda e impulsionou-se através da própria estrutura do mundo, carregada por uma magia diferente de qualquer outra que ela já tivesse conhecido. Cores piscantes se acentuaram em um instante, deixando-a cercada por uma névoa de carvão, o ar tão frio que até sua alma estremeceu. À frente, um círculo de magia branca brilhava intensamente contra a noite. No centro, o contorno escuro de um corpo. Ela já estava quase atravessando a fenda. De novo não. De novo não! Cassi atravessou o fosso a toda a velocidade, sua magia à procura de qualquer ponto de apoio na mente da garota. Vamos! A spatio’kine ficou com um tom prateado quando ela atravessou o portal. O círculo brilhante começou a escurecer. Não! Pare! Espere! A garota fez uma pausa. Como se tivesse ouvido de alguma forma, ela olhou por cima do ombro. Olhos quentes de mel examinaram a cena, examinando o terreno árido da montanha em busca de qualquer sinal de vida. Claro, ela não veria Cassi. Mas talvez ela pudesse senti-la. Seus poderes eram semelhantes nesse aspecto – elas usavam pessoas como âncoras para cruzar grandes distâncias, Cassi em uma forma espectral e a spatio’kine por meio de um portal. Um sulco instável cavou na sobrancelha da garota, mas depois de um momento ela se virou. Um momento era tudo de que Cassi precisava. Antes que a magia da fenda desaparecesse, ela deslizou para o outro lado, finalmente deixando sua marca, e o portal se fechou atrás dela. A vitória, porém, durou pouco. A garota ainda não tinha adormecido e, até sucumbir à exaustão, Cassi nada pôde fazer senão segui-la e torcer pelo melhor. Juntas, elas fizeram um trabalho lento de cruzar as montanhas. A spatio’kine caminhava por um tempo, arrastando-se pela neve, seus dentes batendo ruidosamente por causa do vento. Às vezes, quando a neve e a névoa clareavam, ela criava um portal e saltava algumas dezenas de metros à frente, nunca muito além do que seus olhos podiam ver. A constatação fez Cassi querer gritar. Todo esse tempo, ela esteve tão perto! Porém, não havia nenhuma residência. Uma hora se passou, talvez duas, com as duas nesse estranho jogo de gato e rato. Elas caminhavam e pulavam portais e caminhavam um pouco mais, Cassi pairando o mais perto possível para não perdê-la. Finalmente, nas últimas horas da noite, a garota parou – embora desmaiou poderia ser o termo mais apropriado. Suas pernas simplesmente cederam e ela caiu sobre a neve. Deuses vivos! Cassi correu para o lado dela, incapaz de fazer qualquer coisa nesta forma etérea. A garota estava morta? Morrendo? Seu corpo inteiro estremeceu e ela se encolheu sobre si mesma, os olhos fechados, os lábios de um azul assustador. Por alguns momentos, tudo o que ela fez foi deitar ali e respirar, o ar raspando em sua garganta, cada inspiração difícil. Então, com um gemido, ela rolou para uma posição sentada e estendeu as mãos. Uma fenda ganhou vida, pouco mais do que o tamanho de sua palma. Ela enfiou o braço e ressurgiu com um espeto fumegante. Sua magia desapareceu e ela afundou os dentes na carne recém assada. Outro portal se abriu e ela o alcançou, desta vez tirando o que parecia ser uma xícara de chá quente. Item por item, a garota construiu seu acampamento do nada, pegando roupas de cama e depois um pouco de madeira e depois uma vela acesa. Um pote de frutas secas e nozes foi a última coisa que ela recuperou quando se preparou para dormir, sem mais tremer. Sua pele voltou a um rosa avermelhado enquanto ela rastejava sob um monte de cobertores. Uma gargalhada percorreu o espírito de Cassi. A spatio’kine era uma ladra, e habilidosa nisso, mas mesmo a melhor ladra do mundo não conseguia escapar de uma dormi’kine. Assim que a maga fechou os olhos, Cassi mergulhou em seus sonhos. A dor a atingiu como uma onda. A dor e a saudade a envolveram, os tentáculos de um monstro arrastando-a para as profundezas. Ela lutou com as emoções carregadas, tentando acalmar a tempestade. Não havia dúvida de que a garota havia sofrido uma perda, mas Cassi não estava ali para se intrometer. Em vez de se esgueirar para os pesadelos privados da maga, Cassi assumiu o controle de sua mente esgotada e criou as imagens de um novo sonho. Os redemoinhos das cores do arco-íris foram se apagando até ficarem cercados por nada além de neblina e neve. O vento uivava enquanto cortava as montanhas estéreis. Um fogo quente ardia e olhos cor de caramelo observavam Cassi com curiosidade por cima das chamas. — Olá — ela disse suavemente. A garota não respondeu, mas também não correu. — Meu nome é Cassi. Nada. — Eu venho do outro lado das grandes montanhas, em um mundo criado pela magia. A garota permaneceu muda enquanto seus olhos se estreitavam e sua cabeça inclinava para o lado. — Eu sei o que aconteceu com você. A onda que destruiu sua vila. Eu sei que você está correndo. E eu sei para onde você está correndo, o que você está procurando. Posso levá-la até a fenda. Cassi esperou que a spatio’kine reagisse, por qualquer sinal de compreensão. As chamas crepitavam. Os ventos uivavam. Os segundos passaram sem mais nada para quebrar o silêncio. Isso não está funcionando, ela amaldiçoou silenciosamente. Por que isso não estava funcionando? — Você me entende? — Ela perguntou em voz alta. — Sou real. Estou usando minha magia para visitá-la. Sou uma Andarilha de Sonhos, uma dormi’kine. Olhos de mel se arregalaram. — Dormi’kine? — Cassi saltou na abertura. Talvez elas ainda usassem a língua antiga do outro lado das montanhas, ou algo semelhante a ela. — Você entende essa palavra? Eu sou uma dormi’kine. A garota ficou de pé quando um súbito lampejo de terror cruzou seu rosto. — Eu não estou aqui para machucar você. Eu só quero conversar. A spatio’kine balançou a cabeça e cambaleou para trás. Ela abriu a boca, mas nenhum som saiu, exceto um gemido baixo e distorcido. As palavras ficaram presas em sua garganta. Ela tossiu como se estivesse engasgando com elas enquanto se virava para correr. — Espere! — Cassi acenou com a mão e o sonho voltou a se formar de modo que, em vez de fugir, a garota correu em sua direção. — Por favor, não vou te machucar. Um rosnado curvou os lábios da garota e ela se virou. Mais uma vez, Cassi mudou de cena. E de novo a garota correu, desta vez em cheio no peito de Cassi. Ela agarrou a menina pelos braços, tentando acalmá-la. Foi inútil. Ela socou e chutou, se debatendo até que Cassi a soltou. A garota caiu no chão e arranhou a neve enquanto se afastava. Desta vez, Cassi permitiu. — Eu. Dormi’kine — ela disse novamente, tentando passar. — Você. Spatio’kine. A maga congelou. Cassi sorriu. — Sim, você é uma spatio’kine. A garota atacou. Num segundo, Cassi tinha um sorriso nos lábios, e no seguinte ela levou um soco no queixo e sua cabeça virou de lado. Pernas engancharam em seu peito enquanto outro punho batia em seu rosto. Dedos puxaram seu cabelo. Unhas arranharam sua bochecha. A garota lutou como uma pessoa possuída. Deuses vivos, isso dói. Cassi desejou que a dor desaparecesse, incitando sua mente a lembrar que nada disso era real. Em vez de lutar, ela separou o terreno. Como se um tapete tivesse sido puxado debaixo delas, de repente elas estavam caindo. Asas brotaram das costas de Cassi e ela pegou o ar com toda a graça de quem nasceu para o céu. A garota caiu de pernas para cima, a boca aberta em um grito silencioso enquanto seu terror rasgava as bordas do sonho. Se Cassi não tomasse cuidado, ela perderia a maga para esta loucura, e possivelmente o resto do mundo com ela. Pense. Pense. Ela mergulhou, a distância entre elas desaparecendo, e pegou a garota do céu. Um segundo depois, elas estavam em terra firme, cercadas por árvores floridas e pássaros cantando. A luz do sol brilhava através da cúpula de cristal que se arqueava acima, mas era a brilhante luz branca da fenda que cortava os galhos, envolvendo-as em seu brilho. A respiração da garota falhou. Cassi pousou-a delicadamente no chão. — Spatio’kine — ela disse novamente, e apontou para a fenda. — Isso é uma fenda. Isso é o que está chamando você. Spatio’kine. A garota franziu as sobrancelhas enquanto desviava o olhar de Cassi para a fenda, para a frente e para trás, a mente a rodopiar com emoções que Cassi não conseguia ler. Ela se aproximou e ergueu os dedos hesitantemente para a fenda. A luz branca envolvia sua palma enquanto ela alcançava o rasgo entre os mundos. Quando sua mão fez contato, nada aconteceu. Frustrada, ela acenou com o braço para dentro e para fora da luz pulsante, procurando por um poder que não estava lá. — Isto é apenas um sonho — Cassi tentou explicar. — Não é real, mas este lugar é, e assim que eu souber que é seguro, levarei você até lá. A garota voltou a olhar para Cassi. Sua boca se abriu, então fechou quando ela dobrou os lábios entre os dentes com um suspiro pesado. A magia fervendo na ponta dos dedos queimou. Em algum lugar distante, a vigília puxou os cantos de sua mente. — Por favor — Cassi deu um passo à frente, recuperando a atenção da garota enquanto ela reforçava seu controle sobre o sonho. Ela só precisava de mais alguns minutos. — Quero te mostrar mais uma coisa. Ela acenou com a mão e a cena ao redor delas mudou. O oásis do ninho sagrado deu lugar a nuvens escuras e mares revoltos, bater das ondas na madeira e bater de velas. A chuva salpicou o convés do navio, encharcando-as, e a magia iluminou os céus. A tempestade caiu no momento em que Cassi se arrastava para a cama. — Abaixe as velas! — Sua mãe gritou enquanto ela agarrava o leme, seus dedos brancos e seus dentes cerrados pelo esforço de manter o curso. Ao seu lado, Remendado girou o vento, lutando contra os vendavais da tempestade. Esquilo rastejou até o mastro, afrouxando os nós, enquanto Brilhante, Arqueiro e Pyro fixavam as cordas. Espirro estava na proa do navio com os braços estendidos. Lampejo após lampejo de magia azul saiu de suas mãos e mergulhou no mar, acalmando as ondas que as batiam de todos os lados. Sanguessuga sentou-se com as mãos contra o convés gasto, a magia verde inundando a velha madeira e dando-lhe nova vida enquanto fundia as tábuas. O velho navio que a Rainha Jacinta tinha adquirido para eles em Da’Kin não teria sido a primeira escolha de sua mãe, mas era rápido, e isso era tudo que importava. Cassi ainda não sabia ao certo por que a saída deles da cidade fora tão apressada – ela estava imersa em seus sonhos na época –, mas isso pouco importava. Quanto menos tempo eles ficassem lá, melhor. Um destino diferente chamando. Cassi virou-se para a spatio’kine, que estava de braços cruzados e pés apoiados, claramente familiarizada com o mar. Mas enquanto o navio não era novidade, a magia que preenchia os céus a mantinha extasiada. Através do cabelo loiro girando em torno de seu rosto, ela observou a cena, o olhar indo de um ponto brilhante de poder para o próximo, com a boca aberta. Cautelosamente, para não assustar, Cassi tomou a menina pela mão. — Este lugar é real. Essas pessoas são reais. E nós estamos indo para encontrá-la. Por favor, tente se lembrar dessa cena. Use-a, se puder. Faça um portal. Spatio’kine. Nós estamos esperando. E somos amigos. A garota a encarou inexpressivamente, sem entender. Ela balançou a cabeça ligeiramente, uma carranca cruzando seus lábios. Cassi apertou com mais força. — Estamos indo atrás de você. A luz do fogo piscava sobre a rocha de obsidiana, de modo que o teto brilhava como um mar derretido. Se ela não estivesse olhando para ele pelo que pareceram semanas, teria sido lindo. Em vez disso, tudo em que Lyana conseguia se concentrar era no gotejamento incessante da condensação da pedra e na respiração lenta e constante do homem ao seu lado. As chamas ao longo de suas asas ferviam com o calor, expulsando o frio. Tudo o que ela sentia ao longo de suas próprias asas era uma coceira que ela não conseguia coçar – suas penas doíam até o céu. — Vá dormir, Ana — Rafe resmungou como se sentisse os olhos dela nele, sua voz grossa com o sono. Ela suspirou. — Não posso. — O que está errado? — Minha pele está formigando. — Hum! O quê? — Ele saltou e examinou a escuridão, seus olhos meio vidrados enquanto procurava o inimigo invisível. — Onde? — Eu disse que minha pele está formigando, Rafe. Não que algo estivesse rastejando na minha pele. — Oh — ele caiu de costas na terra e passou as mãos pelo rosto, esfregando a exaustão. — Eu preciso sair desta caverna. Estar tão confinada está me deixando louca. — Você não está pronta. Ela revirou os olhos. — Rafe… — Ana, confie em mim. Você não está pronta. Ela zombou quando se virou para encará-lo. O homem não tinha o direito de parecer tão bonito enquanto agia como um idiota total – com penetrantes olhos azuis, cabelo perfeitamente despenteado, lábios macios que eram convidativos apesar de sua carranca. Lyana não tinha certeza se queria estrangulá-lo ou beijá-lo. Talvez ela fizesse as duas coisas. — Acho que posso avaliar minha própria força, muito obrigada. Ele arqueou uma sobrancelha. Sua ira explodiu. — Eu sou uma aethi’kine. Eu sou a Rainha Nascida no Inverno. E eu salvei todo o maldito mundo. Estou pronta quando digo que estou pronta. Desta vez, Rafe soltou uma gargalhada. — O quê? — Ela estalou. — Nada. — O quê? — Nada. — Rafe! — É só… — Ele puxou seu lábio inferior com os dentes e lançou seu olhar para ela como se estivesse medindo seu humor. Um sorriso conhecedor se espalhou em seu rosto, mesmo quando ele tentou segurá-lo. Lyana ansiava por esbofeteá-lo imediatamente. — Não é nada, apenas... uma vez princesa, sempre princesa. — Oh — magia dourada brilhou ameaçadoramente ao longo de seus dedos. Rafe mal piscou um olho. — O que você vai fazer? Limpar esse olhar presunçoso de seu rosto. Ela mergulhou para a adaga com o cabo de corvo amarrada em seu quadril. Rafe enganchou o braço sob a cintura dela e rolou até que ela estivesse presa sob ele. Não era um lugar que ela normalmente se ressentiria de estar presa, mas agora só servia para provar seu ponto. Ela não estava pronta para enfrentar os dragões ou os híbridos se não pudesse nem mesmo enfrentá-lo. Com um grunhido, Lyana tentou acertar um soco de esquerda. Quando ele pegou o punho dela na palma da mão, ela deu uma joelhada na virilha dele. Além de um gemido profundo, ele não reagiu. Ela se contorceu sob seu peito largo, mas ele a manteve firme. O tempo todo ela encontrou seu olhar, lendo as palavras altivas ali. Viu? Ele silenciosamente incitou. Você não está pronta. Vou te mostrar, Aleksander Ravenson. Eu vou te mostrar. Magia dourada derramou de sua palma, o alvo do poder não Rafe, mas a pesada estalactite pendurada acima de sua cabeça. Em casa, bastaria um simples pensamento para soltar a pedra. Neste mundo, no segundo em que sua magia deixou seu corpo, o próprio ar pareceu devorá-lo. Os elementos estavam famintos por seu poder. Não havia espírito para agarrar. Nada com o que ela pudesse trabalhar. Foi uma luta evitar que a terra sugasse as faíscas douradas de sua pele antes que Rafe pudesse vê-las. Mas ele viu. E ele reagiu, exatamente como ela esperava. Sempre o protetor, ele se levantou de um salto, já estendendo a mão para pegar a pedra antes que ela pudesse cair em qualquer um deles. No momento em que ele percebeu que a estalactite não estava caindo, ela já havia rolado debaixo dele, desta vez com a adaga de corvo firmemente presa entre os dedos. Lyana arqueou as sobrancelhas e lançou a Rafe um olhar vitorioso. Ele simplesmente bufou. — O quê? Você vai me esfaquear? — Você vai se curar. Ele franziu a testa. Lyana aproveitou a abertura e atacou. Não, ela obviamente não iria esfaqueá-lo. Ela só queria provar que podia – que mesmo neste mundo ela era forte o suficiente para se defender sozinha, da mesma forma que sempre foi. Rafe bloqueou seu golpe e estendeu a perna, tentando mandá-la de volta ao chão. Ela saltou, batendo as asas uma vez para se equilibrar, e o chutou atrás do joelho enquanto pairava. Seu peso cedeu e ele caiu. Lyana girou para tirar vantagem, mas ele simplesmente aproveitou o impulso para deslizar para fora do alcance e depois se levantou. Um sorriso abriu seus lábios, pairando em algum lugar entre diversão e provocação. Ela se concentrou no último. Motivada pela frustração, Lyana rosnou. Eu vou te mostrar. Eu vou. Uma explosão brilhante de magia saiu de seus dedos, apontada para os olhos dele. Não podia tocá-lo, mas o cegou pela fração de segundo que ela precisou para tirar seus pés debaixo dele. Ele tentou bombear as asas e segurar seu peso, mas Lyana o apoiou estrategicamente perto da parede da caverna para evitar que se afastasse, e ele caiu com força. Lyana atacou. Se tivesse sido uma batalha verdadeira, ela sabia que Rafe teria lutado. Um soco aqui. Um chute ali. Seu grito de corvo. Seu fogo. Inúmeras armas perigosas estavam à sua disposição para derrubá-la, mas se havia uma coisa que ela sabia com certeza em qualquer mundo, era que Rafe nunca a machucaria. E ele não o fez. Ele a deixou montar nele e pressionar a lâmina em sua garganta. Ele a deixou se sentir forte. Ele a deixou vencer. — Estou saindo desta caverna. — Tudo bem. — Tudo bem? — Sim, tudo bem. — O que aconteceu com você não está pronta? — Eu mudei de ideia. — Simples assim? — Sim. Lyana estreitou o olhar. Ela sabia, assim como ele, que ele poderia facilmente tê-la parado se quisesse. A verdade era que ela não estava pronta para este mundo, e provavelmente nunca estaria, mas ela estava cansada de deixar seu medo controlá-la. — Por que? — Porque você lutou de volta — ele respondeu, e incisivamente focado na lâmina que ela ainda mantinha pressionada contra sua garganta. Lyana tossiu e a afastou, um pouco envergonhada. Ela pode ter esquecido que ainda estava lá. — Durante dias, você está me pedindo para sair, mas você nunca lutou quando eu disse não. Hoje você lutou. — Eu pensei que você odiava quando eu agia como uma criança mimada e teimosa. — Ah, sim — ele sorriu. Ela deu um tapa de brincadeira no peito dele. — Mas? — Eu odeio mais quando você faz tudo que eu digo para você fazer, porque isso não é quem você é. Você é uma líder, não um seguidora, e isso significava que você estava com medo, o que significava que não estava pronta. Mas agora quando olho em seus olhos, Ana, eu vejo você. Não a rainha da profecia, ou a aethi’kine, ou mesmo a princesa columba. Eu vejo a garota que não teve medo de enfrentar um dragão com nada além das adagas em seu cinto e a esperança em seu coração, e essa garota é uma sobrevivente. Enquanto falava, ele passou as mãos lentamente pelas coxas dela até que ele agarrou seus quadris. Seu pulso acelerou, não mais pela luta, mas pelo rastro ardente que seu toque criou, seus nervos em frenesi, sua pele em chamas. Completamente vestida, ela ainda se sentia nua diante dele quando ele a olhava assim, como se visse todo o caminho até sua alma e não pudesse se afastar de sua glória. — E se você estiver errado? — Ela sussurrou, porque ela sabia que ele lia a pergunta em seu rosto, de qualquer maneira, suas inseguranças mais profundas expostas. E se seu poder fosse a única coisa forte nela? E se sem isso ela não fosse nada? — Eu sou muito teimoso para estar errado. Ela sentiu seus lábios se curvarem. — Rafe. — Você está pronta. De alguma forma, ela acreditou nele. No entanto, em vez de correr para a saída, ela se viu inclinando-se e diminuindo a distância entre eles, não mais desesperada para fugir. Seu desejo mudou. O céu podia esperar. O mundo poderia esperar. Lyana não podia mais. Sua pele zumbiu. Seu sangue queimava. Os músculos profundos de seu estômago se contraíram na mais deliciosa antecipação, porque pela primeira vez, nada se interpôs entre eles. Nenhum companheiro. Nenhum rei. Nenhuma profecia. Nenhuma lesão. Nada, ao que parecia, exceto Rafe. Ela não sabia por que, mas sentiu a hesitação em seu beijo. E, quando ela pressionou, ele recuou. Era como se ele tivesse tido a mesma percepção que ela, e em vez de atiçar as chamas de seu desejo, como tinha feito por ela, a verdade as tinha apagado. Não era o mesmo agora que era permitido? Ele não a queria agora que a tinha? Ela sabia que isso poderia acontecer, mas nunca imaginou que aconteceria com eles. Lyana recuou. No momento em que ela encontrou seus olhos, a acusação em seus lábios morreu. Claro. Se o maior medo dela era não ser tudo o que ela acreditava, o maior medo dele era que ele fosse... não um Rei Nascido no Fogo, mas um homem amaldiçoado por ele. As chamas ao longo de suas asas ardiam com mais intensidade com sua paixão, algo que ele ainda não sabia como controlar, e ele não conseguia esconder o medo em seu coração de que pudesse machucá- la. — Rafe… — Eu pensei que você queria sair daqui — ele virou o rosto. Lyana deixou. E, quando ele a moveu suavemente para o lado para que pudesse ficar de pé, ela o deixou fazer isso também, da mesma forma que ele a deixou vencer, porque ela sabia que ele precisava disso. Também porque ela teve uma ideia. — Eu quero — disse ela enquanto se empurrava para seus pés. — Faz dias desde a última vez que tomei banho e estou fedendo. Leve-me até o rio. Ele a estudou com o canto dos olhos, como se estivesse ciente de sua trama. — O rio? Ainda está no subsolo. — Eu não ligo. Não está aqui, e isso é tudo que importa. Preciso lutar com você de novo? Porque agora que sei que secretamente você gosta, fico feliz em satisfazê-lo. Ele gemeu. — Eu nunca deveria ter te contado isso. — Não, provavelmente não — ela sorriu, então enganchou seu cotovelo ao redor dele. — Então, para o rio? — É, para o rio. Ela estava tramando alguma coisa – isso estava claro. Enquanto atravessavam as cavernas subterrâneas, Lyana nunca parava de falar, uma conversa inocente para preencher o silêncio, mas ele sabia o que não era dito. Suas palavras tinham um tom nervoso. Seus movimentos eram nervosos. Seu sorriso se esforçava para parecer travesso. A cada passo que dava em direção ao rio, o buraco sinistro em seu estômago crescia. No entanto, ele estava feliz em vê-la de pé, quase aliviado por ser o alvo de suas tramas mais uma vez. Houve dias escuros na caverna em que ele não tinha certeza se ela acordaria, quando a respiração dela parou por um momento muito longo e seu próprio coração pareceu parar com a demora. Ele daria qualquer coisa para nunca mais sentir medo assim. Ele faria qualquer coisa para manter o sorriso em seu rosto. Na verdade, ele também estava desesperado para escapar do pequeno esconderijo e de suas memórias sufocantes. Talvez fosse por isso que ele perdeu o que se tornou óbvio no momento em que eles entraram na enorme caverna onde o rio que fluía lentamente formava uma poça quase como um lago, a água escura brilhando com manchas derretidas quando a superfície refletia a luz de suas asas. Lyana não perdeu tempo enquanto desabotoava o casaco. A pele marrom e quente brilhou e ele se apressou em lhe dar privacidade. — Eu dificilmente acho que isso é necessário, Rafe — ela falou lentamente, suas palavras pontuadas pelo som suave de sua roupa se acumulando nas pedras. — Na verdade, eu pensei que você poderia… — Vou esperar nos túneis. — Rafe. Sua voz de repreensão ecoou enquanto ele se afastava, cada batida de suas botas exagerada pelas paredes da caverna como se o próprio lugar tivesse ficado do lado dela e o estivesse repreendendo. — Rafe. Ele não parou ou se virou, totalmente ciente do que veria se o fizesse, e sem saber por quanto tempo sua vontade poderia durar. — Rafe! Ele colocou a mão na parede para se equilibrar enquanto se preparava para voltar para o túnel. No momento em que baixou a cabeça, uma adaga penetrou pesadamente na areia entre seus pés, detendo-o. O movimento foi tão reminiscente de seu tempo das provações de cortejo – Lyana exigindo sua atenção, e ele se recusando a dar – que um bufo escapou dele antes que pudesse detê-lo. Rafe afundou e arrancou sua adaga de corvo do chão, mantendo os ombros retos para a sair. Desta vez, ele não cederia tão facilmente às exigências dela. — Como vou ver se você for embora? — Ela perguntou inocentemente. — Acho que você vai conseguir. — Rafe… — Ana — a palavra saiu como um meio gemido, seu corpo e mente divididos no meio. As chamas ao longo de suas asas já queimavam além de seu controle, motivadas pelo mero pensamento do que poderia fazer. Ela sabia exatamente o que estava fazendo, o que estava pedindo e sabia exatamente por que ele tinha que dizer não. — Não posso. — Não sabemos disso. — Não vou arriscar. — Nunca? Ele suspirou, a luta nele se esgotando com a pergunta tensa. Ele não sabia como responder a ela. — Você acabou de se curar. — Confie em mim, estou ciente disso — as palavras eram coloridas por um humor sombrio. — Você não é aquele cujo corpo agora está coberto de cicatrizes. Eu sou. Não é você que está sendo rejeitado agora. Mas eu sim. Não é você quem está se questionando por que um homem que não conseguia tirar as mãos de você alguns meses atrás de repente não quer mais nada com você. Eu sim. — Não é por isso. Você sabe que não é por isso. — Eu sei? A vulnerabilidade em sua voz o quebrou. Contra seu melhor julgamento, Rafe se virou e soltou as rédeas fracas de suas chamas. O fogo ao longo de suas asas ardeu quando ele deliberadamente varreu seu corpo com o olhar, tomando seu tempo para devorar cada curva flexível. A escuridão recuou quando o calor que emanava dele aumentou, seu sangue fervia de desejo. Ela era bonita. Ele mal notava as leves ondulações em sua pele outrora lisa, mas mesmo que notasse, elas representavam sua força, seu ímpeto e sua convicção. Cada centímetro dela era perfeito como era, uma mensagem que ele tentou transmitir silenciosamente quando encontrou seus desafiadores olhos verdes. — Sim, você sabe — ele murmurou. Nenhuma prova maior para a verdade de suas palavras era necessária do que o inferno que a mera visão dela provocava. Mas ela não se esquivou dele ou do monstro que ele se tornou. — Não estou com medo — disse ela. — Apenas tente. — Eu… Ela o cortou com um sussurro. — Aleksander, por favor — embora ela permanecesse ali descaradamente, naquele som ele sentiu a confiança dela diminuir um pouco, e ele odiava ser a causa. — Apenas venha para a água comigo. Apenas tente. Ele ouviu o que ela estava realmente pedindo. Apenas tente encontrar sua coragem. Apenas tente superar seu medo. Ele poderia – e ele faria – por ela. Lyana leu a decisão em seu olhar e deu um passo para trás, o leve respingo de água alto no silêncio. Ele deu um passo à frente. Pé a pé eles se moveram até que ela estava no fundo do rio e ele parou na beirada. Então ela esperou, sem dizer nada enquanto ele lutava com essa decisão. Cada peça de roupa que ele tirava era uma batalha silenciosa, mas lá se foram suas botas e suas armas e sua camisa e suas calças, até que ele se viu nu diante dela, sem lugar para onde correr enquanto ela o acolheu avidamente. Apenas tente. Apenas tente. Seu apelo tocou como um mantra no fundo de seus pensamentos até que finalmente ele mergulhou os dedos dos pés na água fria. Lyana não se mexeu enquanto ele entrava lentamente, esperando que ele a encontrasse. O vapor entrou em erupção no momento em que suas asas tocaram a superfície, o silvo alto fazendo-o se encolher. Mas ela estava firme. Ela não vacilou. E a confiança dela deu a ele a força para seguir em frente, mesmo quando os vapores ondularam tão densos que ele mal conseguia vê-la através da névoa. Quanto mais ele afundava, mais escura a caverna se tornava, até que apenas o brilho dourado de sua magia o guiou adiante. Ele parou a poucos centímetros dela, perto o suficiente para sentir o calor de seu corpo sob a água, mas não perto o suficiente para tocá-la. Lyana pegou as mãos dele e trouxe os dedos entrelaçados para a superfície. A pele dele tinha um brilho prateado enquanto a dela era cercada por um sutil brilho dourado. Além deles havia apenas sombra, como se o resto do mundo não existisse. Ainda somos nós, seu olhar parecia sussurrar. Dois magos se encontrando no escuro. Ele engoliu o nó grosso em sua garganta quando ela nadou para mais perto. Um leve chiado encheu o silêncio quando ela enganchou uma perna ao redor de seu quadril, e depois a outra, se encolhendo até que seus corpos estivessem nivelados, nada além de suas mãos entrelaçadas e magia brilhante entre eles. Ele não poderia dizer quanto calor suas asas estavam irradiando. Cada centímetro dele parecia em chamas. Lyana manteve os olhos fixos nos dele, nem um pingo de medo brilhando naquelas profundezas esmeraldas. A testa dela caiu suavemente contra a dele, as pontas de seus narizes roçando. A respiração quente beijou a pele de seus lábios como uma promessa tentadora do que poderia ser, se ele permitisse. E então ela ficou imóvel, seu único movimento era a sutil ascensão e queda de seu peito enquanto ela esperava que ele a encontrasse do outro lado da linha. Não havia nada que ele quisesse fazer mais, mas ele estava congelado. E se ele a machucasse? E se algo acontecesse? E se ele não conseguisse se controlar? E se o dragão assumisse o controle? Havia tantos “e se” e todos eles passaram por sua cabeça como uma tempestade de vento mantendo-o prisioneiro em suas correntes. — Rafe. A voz dela acalmou o caos, devolvendo-o a este mundo e a esta câmara e a este momento com ela. — Vamos jogar um jogo. As palavras trouxeram um sorriso a seus lábios, apesar do turbilhão de sua mente, um eco de sua única noite roubada. Então eles eram um corvo sem passado e uma columba sem futuro. Agora, quando ela virou o rosto para o lado para que suas bochechas se tocassem, ela estava pedindo outra coisa. — Vamos fingir que sou sua rainha e você é meu rei, e juntos não temos nada a temer. Lyana deu um beijo suave em seu pescoço, no ponto sensível logo abaixo da orelha, e ele se desfez. Rafe virou o rosto para encontrar o dela e reivindicou seus lábios, seu toque não apressado, mas lento e deliberado. A última vez que estiveram assim, eles estavam fervorosos e febris, como se a qualquer momento isso pudesse acabar, o tempo escorregando por entre seus dedos antes que pudessem detê-lo. Os dois estavam em guerra contra o amanhecer. Mas isso era diferente. O para sempre se estendia diante deles como uma promessa. Eles poderiam levar seu tempo. Eles poderiam explorar. Os minutos se passaram enquanto ele se perdia no gosto de sua pele, deixando beijos em seu pescoço, arrastando os lábios em seus seios enquanto ela agarrava seus braços, seus suspiros como música no silêncio. Ela passou as mãos pelo abdômen dele, pelas costas e pelo cabelo, como se cada centímetro fosse um novo terreno a ser descoberto. Sob a água, ela traçou a curva de suas asas, seu aperto em seus quadris aumentando enquanto um arrepio o percorria. Ele sentiu o sorriso dela contra seu ombro e baixou as mãos, tocando- a até que ela arfou e se contorceu contra ele. Quando eles finalmente se uniram, foi firme e sedutor, seus olhares se encontraram enquanto cada centímetro entre eles estava selado. Foi uma decisão que eles tomaram, não por causa do destino, de uma profecia ou de uma força fora de seu controle. Mas porque ele era Rafe e ela era Lyana, e eles estavam se escolhendo. Acabou-se o medo. Não havia mais hesitação. Apenas confiança, fé e amor. Depois que suas paixões esfriaram, eles se deitaram juntos na costa rochosa, os membros entrelaçados, a cabeça dela no peito dele, o braço dele em volta da cintura dela, aproveitando o silêncio. Lyana deve ter cochilado porque Rafe sentiu sua respiração ficar uniforme e seus músculos relaxarem. Ela ficou mais pesada. Seu braço formigou quando o peso dela beliscou seus nervos e cortou a circulação, mas ele não ousou se mexer. Durante toda a sua vida, ele lamentou sua má sorte – nascido bastardo em vez de herdeiro, um órfão, amaldiçoado por seu próprio povo, um mago, um mutilado, um monstro. Mas agora, enquanto ele percorria com os dedos as pequenas saliências em sua pele, traçando o osso do quadril enquanto a respiração dela provocava arrepios em seu peito, Rafe não podia acreditar em sua boa sorte. Para ter esta mulher em seus braços, ele deve ter feito algo certo para agradar aos deuses. Suas provações e tribulações foram um teste válido se o prêmio fosse um futuro com ela, por mais longo ou curto que fosse. Talvez Taetanos não fosse tão bastardo, afinal. Ou talvez fosse, o que explicava por que tinha uma queda por Rafe. Ou talvez… Fogo e escuridão. Lampejos de laranja cercados por preto profundo. Voar. Voar. Ele tinha que voar. Ele não conseguia parar – ele nunca poderia parar. Onde os outros foram? Onde eles estavam escondidos? Como eles escaparam? Ele tinha que encontrá-los. Ele tinha que seguir. Rugidos o perseguiam pelos céus. Não havia descanso. Seus irmãos lutavam. O Fogo queria ficar. A Água queria ir embora. Ar e Terra estavam divididos. Ele não sabia para onde levá-los, como guiá-los. Não havia tempo nem para respirar. A fome o corroía por todos os lados, o vínculo em sua mente sempre buscando, sempre procurando. Eles vieram atrás dele em um fluxo interminável, um deles, mas não exatamente. Dentes e garras. Rugidos e gritos. Seu sangue cantava para eles, não importava o que ele fizesse ou para onde fosse, o zumbido sempre estava lá, seu poder atraindo-os, atraindo-os para mais perto – todos menos um. Onde ele estava? Onde eles estavam? O vínculo. Ele tinha que encontrar o vínculo. Fechar. Fechado. Perdido. Como? Por quê? Mas espere. Lá. Algo novo floresceu em seus pensamentos, abrindo-se, tão estranho, mas familiar, a calma um farol em seu mundo frenético. Siga a linha. Use-o como um guia. Escapar. Voar. Ir. Lá. Lá. Lá. Eu encontrei você. Quando Xander pressionou a luneta contra o olho, a cidade aninhada nas dunas abaixo ficou clara. Montes amanteigados rolantes solidificaram-se em arestas duras. As formas de arenito se transformaram em prédios, alguns desmoronados e outros ainda eretos. Seu olhar, porém, fixou-se nas pessoas que passeavam pelo que deveriam ser ruas vazias. Magos. Cassi uma vez explicou as cores da magia para ele, então, embora ele não pudesse ver as auras do arco-íris pintadas no céu, Xander sabia que elas deviam estar lá quando ele olhou de uma façanha impossível para a próxima – videiras verdes emergindo do deserto sem vida, pedras de paredes quebradas flutuando de volta ao lugar, água serpenteando da costa saturada até a lagoa em uma praça central. Além dos telhados, enormes velas brancas ondulavam com os ventos suaves, seus navios ancorados ao longo do que antes era ar, mas agora era um mar azul vibrante. Impossível, mas muita coisa acontecia bem diante de seus olhos. — Devemos voltar para Sphaira — Luka murmurou à esquerda de Xander. — Vimos o que viemos ver. — Fale por você, columba — o comentário sarcástico veio do beija-flor à direita de Xander. Damien agarrou a luneta e levou-a ao rosto. — Essa é minha terra, minha casa, e me recuso a abandoná-la ao inimigo. — É uma pequena cidade fronteiriça. — É só o começo. — E o que você propõe? — Luka zombou. Os dois estavam indo e voltando por dias. Xander considerou uma pequena vitória que ele ainda não tivesse uma enxaqueca por causa de suas brigas, mas era apenas uma questão de tempo. — Você quer que enfrentemos uma frota inteira de magos? É uma loucura. O néctar subiu à sua cabeça... de novo. — Luka está certo — Iris entrou na conversa, apoiando seu companheiro. Sob o sol radiante, suas bochechas tinham um rubor rosado para combinar com suas asas vermelhas. — Representamos o futuro de nossos reinos e estamos aqui sozinhos, sem guarda-costas e sem testemunhas. Em primeiro lugar, foi bastante irresponsável sair por aí. Irresponsável, mas necessário. Fazer qualquer coisa a mais é loucura. — Loucura? — Coralee latiu de volta, a coruja normalmente reservada surpreendendo Xander com sua flagrante demonstração de desaprovação. Talvez a rixa entre as columbas e os beija-flores se estendesse a seus companheiros. — Seria uma irresponsabilidade não correr esse risco. Precisamos nos aproximar. Precisamos reunir o máximo possível de informações sobre esses magos. Conhecimento é poder. E, embora eles possam estar satisfeitos com esta pequena cidade fronteiriça agora, você não pode ser tola o suficiente para acreditar que eles ficarão por muito tempo. Em breve, eles também estarão em Sphaira, e o que as columbas dirão, então? — Vamos nos preocupar com isso quando chegar a hora — Luka respondeu evasivamente. Damien bufou. — Isso foi o que eu pensei. — Já chega. Quatro pares de olhos se voltaram para Xander. Ele suspirou e pegou de volta a luneta. Em vez de usá-la, ele guardou o cilindro de metal e rolou para olhar o céu aberto, esperando que o ar limpo ajudasse a ordenar seus pensamentos. A areia estava quente sob suas asas, os pequenos grânulos coçando suas penas. Ele beliscou a ponta do nariz e ignorou as energias impacientes pressionando-o de todos os lados. Um momento, era tudo o que ele precisava. Um momento de silêncio para pensar. De alguma forma, ele se tornou o azarado pacificador do grupo, embora preferisse o rótulo de líder não oficial. Eles chegaram na Casa dos Colibris cinco dias atrás, começando sua jornada em Abaelon. A cidade era muito parecida com a que Xander se lembrava antes de desaparecer sob a névoa. Rachaduras subiam pelas laterais dos prédios. Entulhos cobriam as ruas, molhados dos aquedutos quebrados, espirrando água sobre as pedras desmoronadas. Jardins, outrora cuidadosamente cuidados, agora pareciam quase selvagens. Mas a essência do lugar permaneceu – a Cidade da Vida, perseverante. Os beija-flores seriam capazes de reconstruir. A casa deles havia sobrevivido. E, felizmente, estava vazia, exceto pelos poucos retardatários que não foram fortes o suficiente para fugir antes que a pedra divina falhasse. Nenhum invasor estrangeiro – ainda. Embora uma carga estática no ar estivesse sussurrando, era apenas uma questão de tempo. Foi assim que eles se encontraram aqui, curvados sobre o pico de uma duna de areia, espionando a cidade fronteiriça abaixo. Eles levaram dois dias inteiros voando ao redor do perímetro da ilha para encontrar os magos, as velas brancas ondulantes dos navios que se aproximavam impossíveis de ignorar. Durante toda a manhã, eles os observaram desembarcar e reclamar. O que antes era um simples posto avançado destinado a receber aqueles que voavam de outras casas era agora o primeiro território cedido ao inimigo, pelo menos que eles soubessem. Os magos rapidamente se apropriaram disso, um presságio se Xander já tivesse visto um. Se houve uma fresta de esperança nesta aventura, foi descobrir a expansão saturada que se estende por cima. O Mar de Névoa não existia mais. Cassi havia dito isso a ele, é claro, mas cercado pela névoa úmida em Sphaira, ele não acreditou nela. A Casa da Paz ainda estava envolta em névoa pesada, não por causa do mar, mas porque a tundra gelada estava derretendo no ar recém-quente. Quanto mais longe eles voavam das pátrias das columbas, mais claros os céus se tornavam, até que finalmente não havia nada além de um azul infinito até onde a vista alcançava. Isso lhe dera esperança. Infelizmente, a esperança não seria suficiente para vencer esta guerra, se fosse para isso. — Eu concordo com Damien e Coralee — Xander finalmente disse aos outros. Ele podia sentir o peso do sorriso presunçoso de Damien sem ter que olhar, e do rosnado de desaprovação de Luka. — Precisamos ver do que nosso inimigo é capaz, é a única maneira de nos prepararmos para o que está por vir. Precisamos nos aproximar. Precisamos testá-los. — E daí? Nós simplesmente voamos direto para o ninho de vespas? — Luka retrucou. — Não temos noção do poder deles, como você vive me lembrando, e se o que você me disse é verdade, eles estão muito condicionados a vigiar os inimigos que se aproximam do céu. É um perde-perde. — Talvez para um retardatário como você… Xander deu uma cotovelada nas costelas de Damien. — Só precisamos de um plano. — Então, por favor — Luka falou lentamente, — esclareça-me. Um plano. Um plano. Xander passou a língua no céu da boca enquanto percorria os vários cenários, tentando descobrir um que não terminasse com todos eles capturados, ou pior, mortos. — Poderíamos… — Não — Xander interrompeu Damien. — O que quer que você estivesse prestes a dizer, apenas não. Foi a vez de Luka oferecer um sorriso maroto. — Tudo bem, posso ter uma ideia — Xander finalmente disse, os fios se entrelaçando enquanto ele falava. — A vantagem deles é óbvia: magia, em todas as suas formas. O que precisamos descobrir são suas fraquezas… o que podemos explorar? Velocidade para um, talvez força para outro. Organização. Disciplina. Somos um exército. Eles são mais como mercenários. Estamos bem alimentados, treinados. Eles estão morrendo de fome. Nós temos o céu. Eles só podem ir tão longe e tão rápido quanto seus pés permitirem. Nossos soldados superam seus magos, talvez o suficiente para fazer a balança pender, se fizermos as armas certas, se tivermos o plano de ataque certo. Então, embora eu concorde que precisamos aproveitar esta oportunidade, hoje não se trata de forçá-los a sair dessas terras como Damien sugeriu. Não somos fortes o suficiente sozinhos, mesmo com nossos magos, para algo assim. Hoje é sobre cutucar suas defesas para ver o que ataca de volta. Trata-se de descobrir por que o rei deles não queria que descobríssemos sua existência na névoa. Trata- se de descobrir por que, mesmo com toda a magia deles, somos algo a temer. — Que belo discurso — disse Luka. — Mas palavras não vão nos ajudar a derrotar a magia. — Aqui está o meu plano. Xander acenou para os magos avians que esperavam a alguns passos de distância e expôs sua proposta. Enquanto ele falava, todos tiraram suas adagas, seus broches de metal, suas joias de pedra. Luka manteve uma espada esculpida de cristal translúcido de sua terra natal. Damien e Iris tinham adagas feitas de vidro. Coralee tinha uma aljava cheia de flechas esculpidas em osso. Seus magos tinham seus poderes. E Xander tinha sua mente – ele só podia rezar para que se mostrasse afiada o suficiente. Quando o sol do meio-dia atingiu seu pico mais alto, eles entraram em ação. Damien e os três magos colibris permaneceram abaixados, pouco mais que borrões na areia. Xander e os outros voaram alto, usando o brilho como cobertura. Não demorou muito para que eles fossem vistos, mas ser visto era meio que o objetivo. Ao se aproximarem da cidade, eles se espalharam. As pessoas do mundo abaixo estavam acostumadas a rastrear um grande alvo, não quatorze que se moviam rapidamente, cada um com seu próprio objetivo. Luka era o músculo. Ele deveria encontrar um único combatente com o qual lutar, enquanto os magos acima forneciam cobertura mágica. Eles queriam ver como o inimigo se sairia no combate corpo a corpo se seu poder fosse contrabalançado. Coralee deveria usar sua graça predatória para se lançar para avanços aéreos. Eles queriam ver com que rapidez esses magos reagiriam a mergulhos mortais e flechas imunes à magia do metal. Iris se manteria nas ruas, usando a graça natural e a precisão de uma ave-do-paraíso para atravessar a cidade, mantendo-se abaixada enquanto os magos rastreavam seus movimentos. Eles queriam ver o quão bem ela poderia evitar ataques mágicos. O objetivo de Damien era puro caos. Iniciar incêndios. Rasgar suas velas. Confundir. Aterrorizar. Causar estragos suficientes para que qualquer aparência de unidade que esses magos possam ter tido seja cortada. E Xander faria o que fazia de melhor: observar, catalogar, criar estratégias, comandar. Uma mente inferior poderia ter pensado que seu papel era inferior. Na verdade, era o papel mais crucial de todos. Uma das velas brancas ondulantes explodiu em chamas e Xander gritou: — Luka, agora! O príncipe caiu do céu. — Coralee, vá! A coruja disparou sua primeira flecha enquanto disparava em direção a um trio de magos boquiabertos. — Íris! A princesa caiu no chão. — Preparem-se! — O corvo aero’kine gritou quando uma rajada de vento cortou o céu, suas mãos já levantadas para lutar contra o golpe. Xander moveu suas penas apenas o suficiente para pegar a brisa, mantendo o olhar fixo no terreno abaixo. Enquanto a magia de Lyana era divina, invisível e abrangente, essa magia elementar era diferente. Ele não podia ver a centelha vermelha da magia pyro’kine, mas podia ver a nuvem de chamas avançando em sua direção bem o suficiente para evitá-la. Nenhuma listra azul o alertou sobre ataques de hydro’kines que se aproximavam, mas cordas de água desviavam como cobras no céu eram difíceis de perder. Sem seus magos, Xander e os outros membros da realeza teriam sido superados, mas mesmo que eles tivessem apenas seis magos corvos e três magos beija-flor com eles, a balança havia caído apenas o suficiente para dar a eles os minutos cruciais de que precisavam. Luka lutou contra um geo’kine, sua espada de cristal brilhando a cada golpe. Quando o mago bateu com o punho no chão, abrindo uma fenda na areia, um aero’kine beija-flor entrou em cena como reforço. As pedras disparadas em direção ao príncipe foram desviadas, deixando-o ileso e capaz de pressionar seu ataque. Em uma luta verdadeira, o geo’kine teria sido morto em segundos, mas eles concordaram em não derramar sangue primeiro. As flechas de Coralee espalharam-se pelas ruas, caindo aos pés de seus alvos como se sussurrassem silenciosamente: Sua vida é minha. Nenhuma magia presente poderia afastar o osso daquelas pontas afiadas. Iris desviou para evitar ataques mágicos, perdendo seus inimigos nas ruas. Mesmo o homem mais rápido em uma corrida falhava em acompanhá-la enquanto ela usava suas asas para voar, rápida e ágil, curva após curva. Os magos ficaram tontos apenas tentando seguir. E, embora Xander não pudesse ver os movimentos de Damien, ele rastreou suas consequências quando o príncipe beija-flor e a pyro’kine com a qual ele duelava incendiou fogo após fogo, deixando explosões em seu rastro. Está funcionando, pensou ele, quase com medo de ter esperança. Estamos vencendo… — Electro’kine! — Amara gritou. Xander mergulhou. Ele estava muito atrasado. Pura energia crepitou no céu, o calor queimando suas bochechas enquanto o próprio ar parecia queimar. Então, Xander cambaleou quando um chicote invisível cortou suas asas. O cheiro acre de penas queimadas atingiu seu nariz e ele caiu, atordoado pela dor. Seu corpo parou de funcionar, os nervos à flor da pele. Ele caiu dez metros, cinco, dois. Suas asas se recuperaram diante de sua mente, pegando-o instintivamente. Os segundos eram caros. Ele não foi o único pássaro no céu que ficou momentaneamente paralisado. Metade dos magos caiu com ele. Sem sua proteção, a realeza vacilou. Uma pedra atingiu a cabeça de Luka e o corte profundo explodiu em sangue. Um feixe de luz photo’kine atingiu Coralee, jogando-a bruscamente na areia. Uma onda explodiu de terra firme, atingindo Iris no peito quando ela dobrou uma esquina. — Retirada! — Xander gritou. Eles tinham o que queriam. — Retirada! Um chiado sutil foi seu único aviso antes de outro relâmpago fraturar o céu, desta vez atingindo sua perna. Ele não precisava dizer a Amara e aos outros para neutralizar o electro’kine. Os pelos de seus braços se eriçaram enquanto seu poder invisível saturava o céu. — Galen! — Xander ordenou em vez disso. Uma nuvem de escuridão imediatamente explodiu das palmas das mãos do mago das sombras. Ele não era forte o suficiente para engolir a cidade inteira, então ele se concentrou primeiro em Luka, o príncipe da Casa da Paz tendo precedência, como planejado. Assim que aquelas asas cinzentas dominantes se libertaram da escuridão e saíram para o ar livre, o umbra’kine voltou sua ajuda para Iris e depois para Coralee. Damien e os outros beija- flores já haviam fugido ao comando de Xander. — Para as dunas! — Ele disse o resto. Fugindo da magia em seus calcanhares, eles correram para a segurança das areias montanhosas, derrotados, mas não realmente derrotados, sua esperança era uma coisa palpável. Porque por um breve e glorioso momento, eles sentiram o gosto no ar – o doce sabor do medo de seu inimigo. — Eu não gosto disso — murmurou a capitã Rokaro, olhando para os grossos tentáculos de névoa que giravam em torno dos picos irregulares que se erguiam do mar. Ventos uivantes rasgavam as montanhas. Ondas estrondosas batiam nas rochas. Sua respiração nublou diante de seus lábios no ar gelado. Eles ficaram ancorados nessas águas turbulentas por três dias, esperando e torcendo para que a spatio’kine se juntasse a eles. Mas ela nunca apareceu, o que significava que Cassi não tinha escolha a não ser procurá-la. — Já enfrentei coisas piores — ela disse à mãe. — Nos seus sonhos. Em sua forma espectral. Mas isso é diferente, Kasiandra. Muito, muito diferente. — Caso você tenha esquecido, eu cresci em uma terra feita de gelo e neve. Eu vou ficar bem. Sua mãe lançou-lhe um olhar aguçado. — Sim, como a melhor amiga de uma princesa. Esgueirar-se de um palácio por algumas horas é muito diferente de se arrastar sozinha pelo deserto. — Não vou me arrastar para lugar nenhum — ela cutucou a asa de sua mãe com uma das suas. — Eu estarei voando. — E quando você precisa abandonar seu corpo pelos seus sonhos? — Estou indo — disse Cassi com firmeza. Goste você ou não. Ela encontrou aqueles olhos azuis gelados diretamente, desafiando a capitã de uma forma que ninguém mais no navio ousaria tentar. Mas para Cassi, ela não era a capitã Rokaro. Ela era a sua mãe – a mesma mãe que a entregou à coroa para ser usada como espiã, que a entregou à causa, que a conduziu por esse caminho perigoso, em primeiro lugar. Ambas sabiam disso. E foi por isso que, embora o maxilar da capitã Rokaro estivesse cerrado, ela permaneceu em silêncio. Nessa luta, ela não tinha pernas para se apoiar, nem asas para voar, aliás. — Confie em mim — sussurrou Cassi com ternura, o único consolo que podia oferecer. — Sim — disse a mãe, antes de voltar o olhar para a névoa. — É que aprendi a questionar tudo e todos. E a isso Cassi não respondeu. Sua vida lhe ensinou a mesma lição. — Magia viva, juro que as camas deste navio são feitas de pedras, não... — Brilhante congelou no meio do trecho, seus olhos sonolentos finalmente observando o convés vazio. A porta pesada pela qual ela havia aberto agora se fechou, jogando-a para frente. Ela se moveu com calma. — Desculpe. Estou interrompendo? O cozinheiro usou o que restava do chocolate para fazer scones para o café da manhã e está um caos lá embaixo. O açúcar subiu à cabeça deles. Estou surpresa por ter saído viva. Vou ficar de pé... Ei, espere. Você está saindo? — Eu… — Você não pode ir — ladrou a photo’kine, percebendo a mochila atada aos ombros de Cassi e tirando as suas próprias conclusões. — E Rafe? E a rainha? E essa maga que você nos arrastou até esse adorável canto do mundo para encontrar? — Vou atrás dela. — Oh — a luta de Brilhante diminuiu. — Você não está partindo? — Não — Cassi franziu os lábios com a sugestão. Confiava na photo’kine para assumir o pior absoluto sobre ela. — Estou indo para as montanhas para encontrá-la. Brilhante fez uma careta, como se estivesse relutantemente impressionada e depois completamente em dúvida. — Você sabe que elas são consideradas intransitáveis, certo? — Por pessoas sem asas. A garota bufou. — Sim, bem... Tente não morrer, certo? Você é uma espécie de nossa última esperança para salvar o mundo. — Farei o meu melhor. — Kasiandra. Ela se virou para a mãe. A capitã olhou para ela com um calor que seus olhos normalmente não tinham, uma vulnerabilidade reservada apenas para sua filha. Eu te amo, sua expressão sussurrou. Estou preocupada. Eram coisas que sua mãe nunca aprendera a dizer e nunca admitiria, especialmente com uma plateia. Em vez disso, pegou na mão de Cassi e apertou-lhe delicadamente os dedos. — Esteja a salvo. — Eu estarei — Cassi segurou a mãe por mais um tempo. Eu também te amo. Então ela foi para o céu. A névoa imediatamente a engoliu e ela não olhou para trás. Mesmo que olhasse, ela sabia que o navio tinha sumido. Ela estava sozinha aqui, nada além do vento assobiando e o cinza infinito para lhe fazer companhia. Voar nessas condições era difícil – não havia como distinguir cima e baixo, esquerda ou direita, nada além de sua intuição para guiá-la. Felizmente, a coruja dentro dela sabia o que fazer. E sua magia forneceu as direções. Quando Cassi voltou da visita à spatio’kine naquela manhã, em vez de retornar rapidamente ao seu corpo, ela fez a viagem devagar, serpenteando pelas montanhas e estudando o terreno enquanto seguia aquele pequeno fio de vida de volta ao navio. O percurso não foi perfeito, mas foi um começo. Algumas horas depois, seu otimismo ingênuo desapareceu. Onde em todos os mundos estou? Em todos os lugares que ela olhava… cinza, cinza, cinza. Ela estava com tanto frio que até suas penas estremeceram, e com tanta fome que seu estômago parecia ter começado a comer a si mesmo. Rajadas fortes atingiram suas bochechas, sua pele queimando. Pior de tudo, ela havia perdido o rastro. Ela não tinha ideia de onde estava nas montanhas, se estava voando em direção à spatio’kine ou cada vez mais longe. Eu preciso me recompor. Embora ela descesse em círculos lentos em direção ao solo, ele ainda veio sobre ela rapidamente. Ela estava com neve até os joelhos antes mesmo de se lembrar de dobrar as asas, sacudida pelo impacto. Se ela pensou que o ar estava frio, não era nada comparado às montanhas congeladas. De volta à Casa da Paz, ela viajou com os melhores suprimentos possíveis – roupas de couro impermeáveis aos elementos, peles grossas projetadas para manter o calor, tanta comida quanto ela precisava. E, claro, era em casa, então ela e Lyana conheciam todos os lugares secretos que alguém poderia usar para se descongelar. Não era o caso agora. Suas roupas foram desenhadas para uma vida úmida no mar, e não importa quantas camadas ela usasse, não era o suficiente para bloquear o frio. Sua comida era limitada e ela contou suas rações enquanto tirava uma tira de carne seca de sua mochila. Não houve descanso do frio. Mesmo que ela quisesse voltar, ela não poderia. A névoa havia roubado qualquer noção de onde o navio esperava. Sua única saída era encontrar a spatio’kine o mais rápido possível e rezar para que ela fizesse um portal. Cassi usou uma colher grande que havia roubado da cozinha para ajudar a cavar um buraco na neve, protegendo-se do vento da melhor maneira possível. Uma fogueira teria que esperar até mais tarde. Em vez disso, ela puxou um pequeno globo de vidro cheio da luz mágica de Brilhante. O calor picou seus dedos, dolorosamente no começo, mas de um jeito bom – um jeito que a deixou saber que ele ainda estava funcionando. Em poucos dias, a luz se apagaria e, a cada hora que passava, o calor que ele emitia diminuía, mas era alguma coisa. Cassi enrolou-se ao redor do globo, usando suas asas como um cobertor para manter seu núcleo o mais protegido possível, e então ela afundou em sua magia. No segundo em que ela entrou em sua forma espectral, todos os pensamentos sobre seu corpo mundano desapareceram rapidamente. Em vez disso, seu foco se voltou para a fenda. E assim, ela estava lá, afundando em sua magia, procurando pela garota. O tempo passou, não há como dizer quanto, até que finalmente ela percebeu a presença da spatio’kine no caos da fenda. Cassi atirou-se de seu vórtice. Antes mesmo daquelas ondas loiras entrarem em foco, ela já estava perseguindo um alvo constantemente em movimento. Lá. Ela se agarrou a esse local enquanto voltava para seu corpo, o pássaro interior já mapeando as coordenadas. Quando ela acordou, seu corpo estava rígido, meio congelado e enterrado. A neve cedeu enquanto ela mudava de posição. Levou três tentativas para sair do chão, mas seu sangue bombeava mais rápido a cada tentativa, seus músculos voltando à vida. E o processo se repetiu. Voar. Sonhar. Voar. Sonhar. As horas passaram. Os dias passaram. Seu corpo ficou cada vez mais fraco. Seu suprimento de comida desapareceu. A luz mágica encolheu, mas ela ainda estremeceu em torno dela, procurando pelo menor pedaço de calor. Eu vou morrer aqui. Não, você não vai. Eu vou. Eu posso sentir isso. A ligação entre minha alma e meu corpo oscila incerta. Fique firme! Por Lyana. Por Rafe. Pelo mundo. Eu não posso mais fazer isso. Eu tenho que fazer. Me desculpe, mamãe. Você estava certa. Eu não deveria ter vindo. Eu precisava. Precisava? Sim. Que heroína miserável eu me tornei. Até que finalmente, a única coisa que restou foi Xander. Xander. Pense nele. Faça isso por ele. Não desista. Não pare. Xander. Xander. Xander. Tornou-se difícil dizer se ela estava no mundo real ou em um sonho. Havia névoa sem fim. Neve sem fim. Seus dois mundos colidindo, então ela não sabia o que era passado e o que era futuro, onde ela estava ou quem era. Às vezes ela caminhava. Às vezes ela voava. Ela só tinha que continuar. Ela só tinha que… Só tinha que… Tinha… Cassi gritou. Agulhas perfuraram seu corpo inteiro. Mãos a seguraram. Ela estava pegando fogo. Cada centímetro dela queimava. O mundo estava branco. Ela não podia ver. Seus ouvidos zumbiam. Sua garganta estava em carne viva. O pânico se espalhou. Seu batimento cardíaco batia como um trovão. Um tapa! Um grito rasgou seus lábios. Um tapa! A ardência em sua bochecha finalmente a fez recuar. Cassi piscou, lembrando-se da neve, dos ventos e das montanhas. Ela não estava cega. Ela não estava morta. Ela estava cercada por neblina e gelo e... Ela sacudiu a cabeça para o lado. Olhos de mel a observavam com curiosidade. A spatio’kine. Ela estava aqui. Cassi a encontrara. — Você — ela tentou resmungar, mas sua garganta estava muito dolorida, como se sua voz tivesse sido esculpida com facas. Há quanto tempo ela estava gritando? A garota levou o dedo aos lábios, pedindo silêncio. Depois pegou nas mãos de Cassi e aproximou-as das chamas crepitantes. Cassi estremeceu quando o calor se afundou em seus dedos congelados, fazendo com que seus nervos voltassem à vida. Para se distrair da dor, ela examinou os arredores. O fogo iluminou o pequeno buraco escavado, lançando a neve em um tom sutil de tangerina. Os cobertores a cobriam da cabeça aos pés. Uma tigela de caldo estava inacabada ao seu lado. No alto, os ventos uivavam, seu toque tempestuoso incapaz de penetrar na fenda. A spatio’kine salvou sua vida. Cassi devia estar meio morta quando a garota a encontrou. Os últimos dias não passaram de um borrão de magia e loucura. — Obrigada — Cassi conseguiu sussurrar. A maga não pareceu ouvir, então ela tentou novamente, um pouco mais alto. — Obrigada… Um tremor sacudiu o chão e o estômago de Cassi revirou. A spatio’kine desviou o olhar do fogo, concentrando-se na neve. Ela vibrava. Vibrações percorreram o corpo de Cassi, muito familiares. Mas essas montanhas estavam solidamente no chão, sem terremotos para derrubá-las dos céus. Um rugido distante fez cócegas em seus ouvidos. À medida que o tremor se tornava mais intenso, o rugido também. Isso era ruim. Isso era muito, muito ruim. Cassi tentou levantar-se do chão, mas todo o seu corpo gritou em protesto. Ela mal conseguia mexer os braços, muito menos bater as asas. Não haveria como escapar para o céu. A spatio’kine continuou a olhar ao redor de seu buraco, como se procurasse a fonte do distúrbio. — Precisamos ir — resmungou Cassi, as palavras saindo entrecortadas e quase inaudíveis. — Precisamos nos esconder. Mas para onde elas iriam? E como elas poderiam se esconder? E o que estava por vir? O trovão sacudiu seus ossos, abafando o resto do mundo. Seus dentes batiam. Finalmente, a spatio’kine ergueu a cabeça acima da neve e contra os ventos, o cabelo voando sobre o rosto. Uma faísca selvagem iluminou seus olhos e ela imediatamente caiu de volta, seu pânico maduro. O que é? O que você viu? A maga se virou para ela, as pupilas agitadas com seus pensamentos acelerados, seu olhar silenciosamente sussurrando: Onde? Onde? Onde? — O navio! — Cassi forçou as palavras a saírem dos lábios como uma flecha de um arco, esperando que encontrassem o alvo. O rugido era tão alto que ela não conseguia se ouvir, mal conseguia pensar. A neve cedeu sob elas, escorregando e deslizando. Ela caiu e pegou a mão da garota para evitar que elas se separassem na pressa. — O navio! — Ela gritou. — O navio! Dedos quentes agarraram seu braço. O mundo brilhou em branco. E bum! A corda pendia frouxa na mão de Brilhante, zombando dela. Ela não sabia por que ainda a carregava. Mesmo que Rafe estivesse lá, ele aprendera os nós há muito tempo e não precisava praticar. Este pedaço de barbante de meio metro era simplesmente um peso morto. No entanto, quando Brilhante estava sentada com os pés pendurados na borda do navio e a cabeça pressionada contra a amurada de madeira, ela não conseguia jogá-la no mar, soltá-la e tudo o que ela simbolizava. Porque Rafe havia tocado nessas cordas puídas. Elas eram tudo o que restava dele, e segurá-las a fazia se sentir como se estivesse se agarrando a ele também. Cassi estivera fora por quase dez dias – tempo demais para alguém sobreviver sozinho naquelas montanhas. E, se ela estivesse morta, qualquer chance que Brilhante tivesse de encontrar seu amigo morreria com ela. Magia viva, fiquei sentimental. Ela não era a única. Brilhante espiou à sua esquerda, onde a capitã estava com os pés apoiados e a cabeça inclinada para o céu nublado. Todos os dias desde que sua filha partiu, ela assumia essa pose. Ninguém ousou sugerir que talvez fosse hora de partir. Ninguém ousou mencionar que as chances de sobrevivência da coruja eram mínimas. Ninguém ousou dizer nada à capitã. Volte, pensou Brilhante, e não pela primeira vez. Por favor, volte. Ela estava rezando por Rafe? Por Cassi? Ela nem tinha certeza. Mas quando fechou os olhos, ela viu Rafe de volta naquele ninho sagrado, seu rosto parcialmente escondido atrás das barras douradas, um olhar triste em seus olhos. Ele não tinha dito nada. Ele não precisava. Ele simplesmente estendeu a mão para enxugar a lágrima de sua bochecha e ofereceu um sorriso torto, do tipo que a fazia querer bater nele. Seus dedos ainda coçavam com o desejo de apagar aquele sorriso teimoso de seus lábios. O idiota, ousando se despedir dela. Ela teve despedidas suficientes. E ela poderia ser uma idiota teimosa também. Daí a corda. E a esperança. E a promessa tácita que ela fez enquanto observava seu melhor amigo, o homem que reabriu seu coração para a possibilidade de companheirismo, ir embora. Eu vou lutar por você. Isso foi tudo o que ela foi capaz de pensar na hora. A rainha estava lutando para salvar o mundo. Ele estava lutando para salvá-la. E ninguém estava lutando para salvá-lo. Mas Brilhante o faria – mesmo que com nenhum outro propósito além de finalmente colocar algum juízo nele. Talvez ela usasse esta mesma corda para fazer isso. Pelo menos, foi o que ela disse a si mesma enquanto torcia o pedaço puído entre os dedos até sentir a pele em carne viva. Não era sobre sentir falta dele. Não, claro que não. Era sobre vingança. Pura e simples. — Ei! Brilhante se assustou quando Tremedeira se sentou ao lado dela. A electro’kine percorreu um longo caminho desde que foi carregada inconsciente das masmorras de Sphaira. Sua pele havia recuperado seu brilho dourado e, embora suas curvas estivessem menos aparentes com a perda de peso, ela ainda passeava enquanto se movia pelos conveses. Quando a electro’kine exerceu sua magia, seus braços estavam visivelmente rígidos e ela não conseguia esconder a careta em seus lábios, mas Tremedeira estava de volta. Um fato pelo qual todos no navio ficaram gratos. — Me assuste até a morte, por que não? — Brilhante murmurou, desconfiada do olhar de cumplicidade nos olhos escuros de sua amiga. Tremedeira intencionalmente baixou o olhar para a corda. — O que você está fazendo com isso? — Nada, eu… Um estrondo alto interrompeu Brilhante e ela virou a cabeça para o lado. Não rápido o suficiente. Uma parede branca se chocou contra ela, jogando suas costas contra o corrimão. Sua cabeça bateu na madeira com força e dolorosamente. Uma substância pesada e gelada a pressionava por todos os lados, esmagando-a contra o corrimão. Suas pernas formigavam, ficando dormentes enquanto seus nervos se comprimiam. O frio atingiu sua pele, quase queimando. O que em nome da magia... Neve! A percepção veio nítida e rápida. É neve. Cassi. E a spatio’kine . Brilhante não tinha certeza se queria comemorar ou gritar, mas não podia fazer nada, pois o gelo a mantinha firme no lugar, o peso crescendo e crescendo contra seus ossos, torcendo-os e dobrando-os, até... Luz! A princípio, ela pensou que fosse sua coluna. Mas então algo afiado abriu um corte em sua perna, ela deslizou para frente e o mundo desapareceu. Na fração de segundo antes de atingir a água, ela percebeu que era a amurada do navio que havia quebrado, não seus ossos. Então o mar a engoliu em suas profundezas, a água fria expulsando todos os pensamentos de sua mente. Uma corrente a arrastou para baixo, puxando suas pernas como se fossem mãos. Momentos preciosos se passaram antes que ela sequer pensasse em usar os braços e chutar os pés. A escuridão se adensou, pintando o mundo de preto. A luz mágica disparou de sua palma. Safira e água-marinha brilharam diante de seus olhos, difíceis de decifrar na confusão. Qual era o caminho? Onde ela caiu? A neve nublava sua visão, tornando as águas turvas. Brilhante liberou seu poder novamente, segurando-o dessa vez. Foi quando ela finalmente percebeu que a corda não estava mais em sua mão. Puta merda! Cadê? Ela sabia que não devia desperdiçar o pouco tempo que tinha procurando por um pedaço de sucata. Claro que sim. Mas desde quando a mente e o coração concordam? Em vez de procurar por sinais da superfície, ela vasculhou as profundezas em busca de indícios de fios retorcidos, a sombra mais nua, um pontinho entre o azul. Em vez disso, ela encontrou um corpo. Tremedeira! Tinha que ser ela. A electro’kine ainda estava se recuperando. Seu braço estava fraco demais para nadar. Elas estavam sentadas uma ao lado da outra contra a grade. Amaldiçoando-se por não ter pensado nisso antes, Brilhante forçou seu caminho mais fundo após a sombra afundar. Seus pulmões ardiam, mas ela empurrou, e empurrou, além de seu limite físico, impulsionada apenas pela força de vontade. A escuridão se fechou ao seu redor quando a falta de oxigênio roubou sua visão. Mas ela estava perto. Tão perto. Então… Peguei você! Seus dedos roçaram couros encharcados, e ela enganchou os cotovelos sob os ombros de Tremedeira. Então ela chutou e chutou, contando com puro instinto, confiando em seu corpo para saber o caminho. Brilhante emergiu da superfície com um suspiro. — Lá! — A Capitã gritou. De repente, as águas ao redor de Brilhante subiram e ela voou para o céu. Um vento rapidamente agitado a envolveu em um abraço amoroso antes de guiá-la em uma queda suave em direção ao navio. Quando suas costas bateram na madeira, ela rolou para o lado, tossindo a água salgada de seu peito. — Você demorou bastante — ela finalmente resmungou antes de encontrar os olhos de Espirro. — Você também é alérgica à neve? Tive um ataque de espirros enquanto fazia uma coisinha chamada afogamento! A hydro’kine cruzou os braços. — Você é alérgica a gratidão? — Já chega, vocês duas — a capitã retrucou. — Temos que acordá-la. O pânico aqueceu o peito de Brilhante. — Tremedeira! Mas quando ela virou, não era a electro’kine deitada imóvel ao seu lado. Era uma estranha – a estranha mais bonita que Brilhante já vira. O cabelo loiro grudava na testa em espirais emaranhadas, mas pouco ajudava a esconder as feições impressionantes por baixo. Maçãs do rosto salientes pintadas com um punhado de sardas quentes. Lábios rosados separados como uma rosa desabrochando. Um nariz forte e uma mandíbula quadrada. Aqueles olhos estavam fechados, mas Brilhante sabia que, quando se abrissem, roubariam o fôlego de seus pulmões. Se eles abrissem... — Deixe-me passar! A voz de Tremedeira quebrou seu devaneio e Brilhante saiu do caminho. Relâmpago ferveu na ponta dos dedos de sua amiga, a suave aura lavanda da magia electro’kine circulando sua mão. Ela pressionou a palma da mão no peito da estranha, e ela saltou do chão, seus músculos tensos. — De novo — Sanguessuga comandou do lado. Tremedeira carregou seu poder e atirou no coração da garota. Desta vez, seus olhos se abriram e ela respirou fundo. Uma tosse escapou de seus lábios quando ela rolou para o lado. Bafo de dragão, pensou Brilhante, imaginando o licor âmbar quente. Isso é o que seus olhos me lembram. Mel aquecido pelo fogo, queimando em seu caminho para baixo. O tipo de dor que dói tanto que chega a ser bom. A garota ergueu a mão e um arco de pura magia branca cruzou o céu. Brilhante seguiu seu caminho, notando pela primeira vez o rio de neve derramando-se por uma fenda no céu, aparentemente vindo do nada enquanto deslizava infinitamente no mar. A capitã deve ter movido o navio depois que ela caiu na água porque, exceto pelo local onde Brilhante estava sentada, o convés estava praticamente intocado. Pyro derreteu os últimos pedaços e jogou a lama no mar. Cassi encostou-se à amurada, com as asas salpicadas dobradas enquanto respirava pesadamente. A estranha fechou os dedos em um punho apertado. Assim, a abertura e a neve que escorria por ela desapareceram. Salpicos estrondosos foram substituídos por silêncio reverente. Ela é real. Brilhante engoliu em seco e olhou para a garota. Uma spatio’kine. Viva. E em seu navio. E real. O silêncio durou cerca de cinco segundos. — Faça isso novamente! — Esquilo gorjeou enquanto descia do mastro, com as pernas enroladas na madeira enquanto usava uma corda para se pendurar de cabeça para baixo sobre a garota. — Esquilo! — Tremedeira saltou para a frente para agarrá-lo. Ele se afastou. — De novo! Vamos! — Devemos ir direto para Da’Kin — Pyro disse. — Devemos ir direto para a fenda — rebateu Arqueiro. Sanguessuga rastejou para mais perto. — Posso tocar sua mão? Eu só quero ver… — Por que esperar? — Qual é a pressa? — Até onde você pode nos levar? — Como funciona a sua magia? — Você pode fechar a fenda? — Você pode trazer o rei e a rainha de volta? — Você pode… — Você pode… Pergunta após pergunta encheu os céus, fundindo-se em uma cacofonia de ruído. A spatio’kine se encolheu, virando a cabeça de um lado para o outro, confusão e pânico gravados em suas feições elegantes. — Basta! — A capitã interrompeu o barulho e todos na tripulação imediatamente calaram a boca. A spatio’kine, no entanto, não pareceu reagir – um fato que despertou ainda mais o interesse de Brilhante. Ela não se virou para a capitã. Ou estremeceu com o grito. Ou até mesmo pareceu notar a calma repentina. Seu olhar disparou para a esquerda, depois para a direita, incapaz de se fixar em qualquer ponto. — Você está bem? — A capitã perguntou a ela. Nenhuma resposta. — Você está ferida? Nada. — Por favor — a capitã se ajoelhou diante da garota para finalmente chamar sua atenção. — Nós somos amigos. Nenhuma centelha de compreensão passou por aqueles olhos cor de mel, mas quando o olhar da garota caiu nas mãos da capitã, com as palmas estendidas em sinal de paz, seu medo pareceu diminuir. Pedaços do que Cassi havia contado a eles sobre a spatio’kine começaram a se infiltrar nos pensamentos de Brilhante. Ela não pareceu notar a onda até que estava quase sobre ela... Ela não deve entender nossa língua, porque ela não reagiu ao que eu estava dizendo... Eu tentei usar a velha língua, e ela me atacou... Eu não… Não sei por que ela não falava comigo nos sonhos... Ela nunca dizia uma palavra... Era como se ela não pudesse me ouvir... Não conseguia ouvi-la, pensou Brilhante, ou não conseguia ouvir nada? — Capitã! — Ela gritou, provavelmente mais alto do que precisava, já que a capitã Rokaro se virou para ela com uma sobrancelha levantada. — Sim, Brilhante? — Posso tentar alguma coisa? A capitã suspirou, mas deu um passo para o lado. — De jeito nenhum. Brilhante moveu-se para o local vago e se agachou até que ela estivesse no nível dos olhos da spatio’kine. A garota a observou cautelosamente, aquele olhar afiado examinando-a em busca de pistas de um amigo ou inimigo. Seu coração martelava, mas ela forçou suas feições a se acalmar, então tentou suavizá-las com um sorriso. Arqueiro tossiu para disfarçar uma risada. Brilhante lutou contra a vontade de encarar. Amigável. Aja de forma amigável. Não ameaçadora. Eu estou bem, eu posso ser legal. Vou matá-lo mais tarde, mas posso ser legal. Brilhante ergueu as mãos e respirou fundo. Havia uma linguagem menos conhecida usada nas ruas de Da’Kin, usada pelos ladrões da cidade. Não era falada com palavras, mas por meio de movimentos, usando gestos com as mãos no lugar de vocalizações – uma forma de comunicação furtiva e silenciosa. Ela a aprendera quando jovem e a usava até agora para enviar e receber mensagens enquanto estava no porto sem ter que sair do navio. A spatio’kine pode não entender, mas valia a pena tentar. Para salvar Rafe, ela tentaria qualquer coisa. — Somos amigos — sinalizou Brilhante, entrelaçando os dedos indicadores um no outro e depois invertendo a posição. — Nós também somos magos — ela continuou. — Queremos ajudar você. Então ela esperou... e esperou... sentindo-se uma tola quanto mais o silêncio se estendia e mais a spatio’kine olhava. Suas bochechas estavam começando a ficar tensas com o esforço de segurar o sorriso. Quando ela estava prestes a desistir, a garota levantou as mãos. — Solvei. Brilhante balançou a cabeça, sem saber o que ela estava tentando dizer. — Meu nome — a spatio’kine acrescentou, suas mãos ansiosamente desenhando no ar. Excitação agora escorria dela, ao invés de medo. — Meu nome é Solvei. Solvei, pensou Brilhante, já gostando do som, forte mas elegante. — Eu sou Brilhante. Prazer em conhecê-la. — Prazer em te conhecer também — a garota baixou a cabeça com um sorriso tímido, então lançou olhares rápidos para os rostos ao seu redor antes de voltar sua atenção para Brilhante. — Todos vocês. Desta vez, o sorriso de Brilhante foi real, provocado por um ataque inexplicável de tontura repentina. Ela não tinha ideia de onde o sentimento tinha vindo, mas estava lá, no fundo de seu peito, borbulhando como uma espécie de bebida sem graça, não importa o quanto ela tentasse controlá-lo. Ela balançou a cabeça. Prepare-se. Ela estava prestes a sinalizar de volta quando Solvei a olhou nos olhos e sorriu. Brilhante congelou. Foi um daqueles momentos que ela só tinha ouvido falar nas histórias, onde parecia que a névoa havia se dissipado e o sol brilhava, e embora eles estivessem no meio de um mar agitado na base de uma cordilheira gelada, de alguma forma os pássaros estavam cantando. Cada centímetro dela ficou quente quando os lábios de Solvei se abriram cada vez mais, o sorriso tomando um rosto já bonito e tornando-o tão surpreendentemente lindo que Brilhante tinha que se virar. Só que ela não podia. Ela olhou para Solvei, e Solvei olhou de volta. Talvez Rafe tivesse razão. O pensamento veio espontaneamente. Talvez o deus do destino seja real. Claramente, ela estava delirando porque Rafe nunca fazia nada certo. Mas ela não conseguia parar de pensar no pedaço de corda puído em suas mãos, e que se ela não o estivesse segurando, ela nunca teria procurado nas águas, e se ela nunca tivesse procurado nas águas, ela nunca teria visto o corpo, e se ela nunca tivesse visto o corpo, talvez eles tivessem chegado tarde demais. Solvei estaria morta. E Rafe estaria perdido. E o mundo destruído. Mas não foi assim. O mundo continuou girando. Rafe estava ao seu alcance. E a spatio’kine estava aqui, brilhando com toda a glória de uma escolhida. Quanto mais Brilhante sustentava o olhar de Solvei, mais uma mancha desconhecida de esperança ganhava vida. Talvez ela nos salve, afinal. Xander abriu a porta com tanta força que os pratos chacoalharam ao bater na parede – uma exibição dramática que Lyana teria aprovado se estivesse lá. Doze cabeças viraram em sua direção. Ele não parou enquanto entrava na sala, seguido por seus colegas. — Ah — o rei Dominic murmurou, suas asas vermelhas de cardeal eriçadas. — Os filhos pródigos voltam. — E nós não estamos sozinhos — Xander interrompeu, mantendo sua voz calma apesar do sarcasmo pingando das palavras do pássaro canoro. — Amara? A agro’kine caminhou calmamente pela porta, levando o resto dos magos corvos e beija-flores com ela. Eles mantiveram seus rostos em branco enquanto se espalhavam pela sala. A realeza se agitou em seus assentos, seu nervosismo era palpável. O rei Lionus se levantou, a fúria gravada nos sulcos escuros de seu rosto enquanto ele pressionava as palmas das mãos contra a mesa e expandia suas asas cremosas em toda a sua largura. — O que é isso? Um golpe? — Não, pai — Luka respondeu, seu tom respeitoso, mas inflexível. — É um acerto de contas. — Luka! — A rainha repreendeu. O príncipe columba lançou seu olhar de olhos cor de mel para sua mãe, mas o conjunto resoluto de seus lábios não vacilou. — Nós viemos da Casa dos Colibris. Vimos o inimigo em primeira mão. E não podemos manter nossas casas sem os magos. A sala explodiu. Xander permaneceu calmo, assim como seus colegas, enquanto os mais velhos começaram a se mover. Penas eriçaram. Vozes estalaram. Perguntas encheram o ar. Era exatamente como eles esperavam. E enquanto Xander se coçava para entrar na briga, eles concordaram que a mensagem seria melhor servida vindo de Luka. O príncipe columba era filho de Aethios, sua cabeça estava virada e ele tinha a melhor chance de convencer os outros membros da realeza a se juntarem a eles. — O corvo envenenou seu coração, assim como envenenou o de sua irmã — rei Lionus sibilou enquanto agarrava Luka pelo braço. Luka usou a mão livre para agarrar o antebraço do pai, deixando os dois em um abraço rígido, cada um implorando silenciosamente para que o outro entendesse. — Ouça-me, pai, e entenda o que eu digo. Se há algo que o corvo é culpado de fazer, é dar a Lyana a chance de voar. Você não tem ideia de quem sua filha realmente é, nenhuma ideia. Ela se escondeu por tanto tempo. Nós cortamos suas asas. Você. Eu. Mamãe. Nossas regras. Nossas tradições. Nós a estávamos sufocando, e o corvo simplesmente a libertou. O rei franziu a testa, confuso. Luka abaixou o queixo e aprofundou o olhar, desejando que seu pai entendesse a verdade em suas palavras. Xander prendeu a respiração, o significado oculto claro. Eles não discutiram essa revelação, mas ele não conseguiu encontrar sua voz para detê-la. Ele se apegou às mentiras por tanto tempo que parecia certo finalmente deixar parte da teia se desfazer. — O que você está dizendo, meu filho? — A pergunta pingava negação. Luka se recusou a dar uma chance ao pai. — Lyana foi uma maga a vida toda. A sala ficou em silêncio. Cabeças se viraram. Alguém engasgou, a inalação suave reverberando como um trovão enquanto pai e filho permaneciam travados em uma batalha silenciosa. — Luka… — Eu não mentiria sobre isso, pai. Eu soube o que ela era toda a sua vida. Antes mesmo de ter idade suficiente para entender o que estava fazendo, ela estava usando magia. Os poderes que ela recebeu durante a cerimônia de acasalamento são diferentes de todos que eu já vi, mas ela nasceu dos deuses, abençoada por Aethios com o poder de curar desde que era um bebê. Ela costumava consertar meus cortes e contusões o tempo todo, mesmo sem querer, seu coração era muito bom e sua magia muito livre. Apenas desejar que minha dor fosse embora foi o suficiente para soltá-la. Fui eu quem a amarrou. Eu disse a ela… Ele se interrompeu, a emoção em sua voz grossa. Xander reconheceu isso como culpa. O mesmo peso estava em seu coração, vergonha por ter dito a seu irmão para se esconder em vez de viver, remorso por desejar que o poder de Rafe desaparecesse em vez de lutar pelo direito de seu irmão de exercê-lo. — Eu disse a ela para esconder — continuou Luka. — Eu disse a ela para não contar a ninguém. Mas você sabia, pai. Em algum nível, você deve ter sabido. A combatividade do rei desapareceu e ele caiu contra a mesa, em outro mundo enquanto olhava para o veio da madeira. Ao seu lado, a rainha observava com uma expressão de pesar no rosto. Pelo que Lyana contou a Xander sobre seu pai, era fácil para ele acreditar que o rei Lionus havia feito vista grossa. Ele tinha o hábito de ignorar o comportamento imprudente de Lyana e tinha uma queda por ela. A combinação tornaria fácil ignorar uma verdade que ele não podia suportar. Sua mãe, no entanto, era uma história diferente. Nenhuma revelação iluminou seus olhos verdes, tão parecidos com os da filha, apenas resignação. Luka estendeu a mão e pegou a mão de seu pai. — Lyana pensou que sua magia era um belo presente que ela desejava compartilhar com o mundo. Nós é que fizemos feio. Quanta morte e destruição poderiam ter sido evitadas se ela tivesse passado a vida aprendendo a usar seu poder em vez de escondê-lo? Se ela tivesse mais tempo para se comunicar com os deuses, mais tempo para entender como nos salvar? Se ela estivesse aqui, eu não pediria para ela voltar para as sombras. E também não vou pedir isso a mais ninguém, especialmente com o que tenho visto. Esses magos são nosso povo e precisamos da ajuda deles. Já passou da hora de abraçá-los. — Diga-me — o rei finalmente disse depois de um longo silêncio, sua voz rouca. — Diga-me o que você viu na Casa dos Colibris. Cada um deles se revezou contando suas histórias – primeiro Luka, depois Iris, Damien e Coralee. Xander foi o último. — Podemos vencê-los — prometeu, encerrando sua resenha sobre a luta na cidade fronteiriça. — Eles são fortes, mas nós somos mais fortes. Ou pelo menos podemos ser, se lutarmos juntos. Assim como as corujas sempre foram nossas arquivistas, e os beija-flores, nossos cultivadores, e os corvos, nossos pastores, e os pássaros canoros, nosso coração, e a Casa do Paraíso, nossos curadores, e a Casa dos Rapineiros, nossos caçadores, e a Casa da Paz, nossas almas, também os magos são outra faceta da força em nosso reino diverso, que evitamos por muito tempo e em nosso detrimento. Sempre fomos partes de um todo maior, melhor juntos do que separados. E se não abrirmos nossos olhos agora, para todos os presentes que os deuses nos deram, perderemos mais do que apenas nossas casas. Perderemos nossa liberdade. Perderemos nossa fé, pois se virarmos as costas para nosso povo novamente, depois de tudo o que testemunhamos, os deuses certamente farão o mesmo conosco. A fala de Xander pairava pesadamente no ar, como se suas palavras tivessem substância, a pressão delas pressionando como se os próprios deuses estivessem ali, mãos invisíveis dando peso às suas palavras. — Mas não podemos controlá-los — disse o rei Dominic enquanto olhava ao redor da mesa, procurando por um aliado. — Não podemos controlar ninguém, mágico ou não — Xander respondeu com firmeza. — Nem devemos querer. É um sinal de fraqueza, um desejo governado pelo medo, e um rei que deve controlar seus súditos não é um rei que desejo em nenhuma das casas. A lealdade é a marca da boa liderança. E o fato de que esses magos vieram aqui hoje, quando sua própria existência os condena à morte sob nossas leis atuais, prova sua dedicação ao nosso modo de vida muito mais do que qualquer garantia que eu possa fornecer. — Por que? — A rainha Zara sussurrou. O estômago de Xander revirou, sua surpresa aguda. Ele tinha certeza de que a Casa do Paraíso estaria do seu lado. Se a rainha Zara ainda o questionasse, toda a esperança estava perdida. Mas a pergunta dela não era dirigida a ele, ele percebeu. Ela olhou além dele. — Por que vocês querem nos ajudar? — Ela continuou, sua atenção nos magos alinhados atrás de Xander. — Por que vocês querem lutar por nós, depois de tudo que fizemos a você e aos seus? Por que não nos punir em vez disso? — Porque a vingança nunca foi o que me move — respondeu Amara. — Outros talvez, mas não eu ou esses magos ao meu lado. Tudo o que sempre desejamos foi aceitação. A realeza não parecia convencida, o que talvez dissesse mais sobre eles do que sobre qualquer outra pessoa. Xander acenou com a cabeça para Amara, encorajando-a a continuar. Eles estavam próximos, ele podia sentir isso, e talvez fosse hora de finalmente deixar aqueles com magia falarem por si mesmos. — Há uma celebração na Casa dos Sussurradores chamada Noite das Almas Perdidas — continuou Amara. — É a noite em que honramos Taetanos guiando nossos irmãos e irmãs perdidos para seu reino, realizado quando o tempo entre o crepúsculo e o amanhecer está no auge e as portas para o mundo espiritual estão abertas. Velas iluminam o caminho através dos portões espirituais, e cada arco negro é suavizado por guirlandas em cascata de lírios frescos e perfumados, destinados a invocar os mortos. Todo ser vivo, jovem e velho, rico e pobre, inunda as ruas. Por horas, cantamos, dançamos, comemos e rimos, um desfile de barulho, alegria e movimento que flui constantemente, agindo como um farol nos céus para atrair nossos irmãos errantes. Todos os anos, o rio se torna luminescente. A água tocada pelo deus brilha prateada com a aprovação de Taetanos, e permanece assim por quase um mês após o término da cerimônia, iluminando a escuridão, guiando os espíritos por nossa cidade e pelo vale até os respingos brancos do portal para seu reino. — Você pode se perguntar por que estou trazendo isso à tona, e é porque a Noite das Almas Perdidas é quando tenho mais orgulho de ser um corvo. Aqueles de vocês das outras casas há muito nos subestimam, há muito nos entendem mal, mas naquela noite não há outro lugar e ninguém mais que eu preferiria ser do que um dos muitos em um mar de asas de ônix iridescentes. E, no dia em que nossa ilha caiu, eu não estava torcendo silenciosamente pela destruição de uma cidade cheia de pessoas que me veriam morta. Eu estava pensando na Noite das Almas Perdidas e em como nunca mais veria Pylaeon ganhar vida sob as estrelas. Eu estava de luto, assim como os magos que estão aqui comigo hoje. Lamentamos uma perda que a maioria de vocês agora conhece muito bem. — Então, para responder à sua pergunta, Rainha Zara, por que queremos lutar com vocês? Por que não queremos puni-los em vez disso? Porque nós somos vocês. Somos magos, sim. Mas também somos corvos, beija-flores, pássaros canoros e columbas. Este reino é o nosso reino. Esses costumes são nossos costumes. Essas ilhas são nossos lares. Nós sempre amamos vocês. Vocês que nunca nos amaram. Mas tudo o que vocês precisam fazer é abrir os braços e nós os abraçaremos, do jeito que passamos nossas vidas sonhando que vocês nos abraçariam. Nós os ajudaremos, porque não queremos ver nosso modo de vida destruído mais do que vocês. Os magos de ambos os lados de Amara concordaram com a cabeça. Os membros da realeza se entreolharam, conversando em olhares silenciosos e expressões sutis, até que finalmente o rei columba se endireitou, o movimento de suas sedas douradas atraindo todos os olhares da sala. — Em homenagem à minha filha e sua magia, vou libertar os magos columbas de suas prisões, tanto reais quanto imaginárias. Deste dia em diante, a Casa da Paz não reconhecerá mais como crime a posse de poder dado pelos Deuses. Vamos parar todas as execuções. Quem ficará ao meu lado? A rainha Zara levantou-se. — A Casa do Paraíso está com você. — A Casa dos Colibris está com você. — A Casa dos Sábios está com você. — A Casa dos Rapineiros está com você. Todos os olhos se voltaram para o rei Dominic. Ele olhou através da sala para sua irmã, cuja filha tinha sido a causa de tantos problemas e tanta salvação. Com um suspiro, ele se levantou a contragosto. — A Casa dos Canoros está com você. — E o que diz a Casa dos Sussurradores? — Perguntou o rei Lionus, virando-se para Xander com um brilho orgulhoso nos olhos, o tipo de olhar que um pai daria a um filho. Xander engoliu o nó que se formou em sua garganta enquanto avançava e ocupava seu lugar de direito na mesa como um rei entre os reis. — A Casa dos Sussurros está com você — ele disse, sua voz forte enquanto dava sua confirmação formal da mudança que ele trabalhou tão duro para concretizar. — Está feito — rei Lionus explodiu. — Em nome de Aethios, e com a concordância de todos os deuses, assim será. Assim será, pensou Xander enquanto o rosto de Rafe surgia em seus pensamentos. Um peso que ele carregava há tanto tempo que havia esquecido que estava ali caiu. Este era um dia que ele nunca pensou que viveria para ver, mas um que ele orou desde o momento em que encontrou o corpo de seu irmão inteiro e ileso no ventre carbonizado do castelo. Chega de se esconder. Não mais segredos. Acabou-se o medo. Depois de todos esses anos, eles finalmente estavam livres. Conseguimos, irmão. Onde quer que você esteja, nós conseguimos. Uma batida puxou Zia de seus pensamentos. A insônia atacara novamente. Já era tarde. O óleo em sua lanterna queimava baixo. Apenas uma pessoa ousaria arriscar sua ira. — Entre — ela disse suavemente. A porta se abriu silenciosamente e Markos entrou, surpreendentemente quieto, apesar de seu corpo grande, que preenchia totalmente a moldura. Sua atenção se voltou para a cama onde sua filha estava deitada, o peito subindo e descendo, suas asas salpicadas enroladas em volta dela como um cobertor. — Ela dorme ou sonha? — Ele sussurrou. Zia atravessou a cabine e gentilmente puxou o decote da camisa de Kasiandra, revelando a carne bronzeada acima de seu coração. Nenhuma magia prateada iluminava sua pele. — Dorme. — Bom. — Quais as novidades? — Vamos sentar. Zia se acomodou em sua cadeira de capitã enquanto ele ocupou o assento vago do outro lado da mesa, posições com as quais eles estavam muito familiarizados. Ela apoiou os pés na madeira, com cuidado para não perturbar os mapas espalhados pela superfície. Ele se recostou e deslizou o tapa-olho de couro de seu rosto, um suspiro escapando de seus lábios, como acontecia toda vez que ele se permitia esse alívio momentâneo. Um entalhe marcava sua pele marrom, uma longa linha que corria de sua testa até sua bochecha e formava um anel profundo ao redor de sua órbita vazia. Zia há muito havia dito a ele para esquecer o maldito tapa-olho. A tripulação se ajustaria à visão de seu rosto remendado. Mas ele recusava – não para o benefício deles, ela secretamente acreditava, mas para o dela. Afinal, era culpa dela que o olho dele tivesse sido arrancado de seu rosto, em primeiro lugar. Ele raramente tirava a coisa na presença dela. O fato de ele ter feito isso agora era uma prova de seu humor, mas ela não conseguia discernir se ele estava anormalmente calmo ou anormalmente perturbado, ou talvez ambos. — Fui visitado por um dos dormi’kines de Jacinta. Temos notícias de Sphaira... notícias nas quais você nunca vai acreditar. Suas sobrancelhas se contraíram. Rafe e a columba não poderiam ter retornado, mas o que mais provocaria um tom tão esperançoso de seu primeiro imediato? — E… — O corvo conseguiu, Zia. Ele realmente conseguiu. — Markos. Ele sorriu com o aviso impaciente em seu tom. — Por ordem de Aethios, e com a concordância de todos os deuses, não é mais crime possuir magia em nenhum dos reinos das aves. Eles pararam as execuções, Zia. Em todas as casas. Aquele bastardo de olhos roxos realmente conseguiu. Por um momento, seu coração parou de bater. Zia levou as palmas das mãos dobradas aos lábios, escondendo sua expressão enquanto a cicatriz ao longo de seu ombro direito queimava com as memórias dolorosas de seu passado. Ela nunca pensou que viveria para ver o dia em que os magos seriam aceitos entre sua espécie. Uma brisa soprou, agitando suas penas. Zia encontrou o olhar questionador de seu amigo. — Eu pensei que você ficaria feliz. — Estou, Markos. Eu estou — e estava exultante. E sobrecarregada. A notícia nunca poderia lhe devolver o céu, mas pelo menos outros seriam poupados. Pelo menos Kasiandra não teria mais necessidade de se esconder. — Agora me diga o que você realmente veio aqui para dizer. Ele arqueou uma sobrancelha travessa, parecendo o garoto de quem ela se lembrava há tanto tempo. Zia sustentou seu olhar e desdobrou suas mãos entrelaçadas para que seus dedos indicadores roçassem seu lábio superior. Ele suspirou e mudou seu peso, a cadeira rangendo sob a tensão. — Diga-me. — Jacinta e seus magos fugiram de Da’Kin esta manhã. Eles perderam a cidade. Zia murmurou uma maldição enquanto seus pés deslizavam de sua mesa para pousar com um baque nas tábuas abaixo. Ela se sentou e consultou seus gráficos. — Para onde eles navegam? — Para Karthe. O chefe da cidade, um ferro’kine, simpatiza com nossa causa, mas não é páreo para... O silêncio abrupto pairou pesado com palavras não ditas. — Diga o nome dele. — Zia… — Diga. — Tanos. Cada músculo de seu corpo se contraiu. — Como é que ele derrotou a Jacinta? — Ele sempre foi mais forte — Markos disse suavemente. — O rei Malek escolheu Jacinta para o seu conselho, mas ambos sabemos que não foi uma decisão baseada apenas no poder. Apesar de todos os seus defeitos, o rei sempre foi um bom juiz de caráter. Ele conhecia a alma daquele homem e a achou em falta. Tanos nunca o perdoou pelo desprezo. — Tanos nunca o perdoou por ser rei — o nome tinha gosto de ácido em sua língua. — Poder é tudo o que ele sempre quis. Ele anseia por isso. E ele certamente não se contentará em ser o rei dos mares quando ainda há terras a serem conquistadas. — O povo está com fome. Eles estão cansados. — E ele faz promessas que não tem intenção de cumprir. — Sua língua prateada é ainda mais forte que sua magia. — Eu me lembro, Markos. Confie em mim. Eu lembro — um medo súbito percorreu sua espinha. — Ele tem um dormi’kine? — Ainda não — a segurança em sua voz a acalmou. — O rei Malek era o único que conhecia suas verdadeiras identidades. Alguns permaneceram leais a Jacinta. Muitos abandonaram suas vidas de Andarilhos. Não sabemos para onde eles foram, e duvido que algum dia saberemos. Cassi é uma das poucas a ser tão conhecida publicamente. Sua atenção deslizou para a cama. Ele seguiu. — Devemos contar… — Não. — Zia — seu tom continha um aviso. Eles tiveram essa discussão muitas vezes antes. — Ainda não, Markos — ela encontrou seu olhar escuro e suplicante. Segredos giravam em suas profundezas, segredos que ele guardava para ela. — Ela está segura aqui. — Ele virá por ela, por seu poder. — Eu sei. Ele abriu a boca, mas ela o silenciou com um olhar. — Estaremos prontos quando ele o fizer. O estrondo profundo da voz de Remendado despertou Cassi. — Devemos ir para Karthe imediatamente. A resposta de sua mãe veio bruscamente. — É o que ele espera. — É o que a Jacinta precisa. — Ela pode cuidar de si mesma e tem os melhores magos de todos os mares ao seu lado. — Ela poderia usar mais alguns. — Eu não vou fazer o jogo dele. Eu me recuso. — Zia... — Isto não é sobre isso. A spatio’kine é muito importante, mais importante do que você, eu ou a rainha. Precisamos mantê-la segura. Se ela cair nas mãos dele... não quero nem imaginar as repercussões. Um silêncio pesado com o pensamento se estendeu. Cassi teve o cuidado de permanecer imóvel na cama, com a respiração controlada, o rangido do navio a cobertura perfeita para as suas escutas. Não demorou muito para ela juntar as peças – o ferro’kine que estava atrás da coroa tomou Da’Kin, e agora Jacinta e o resto do antigo conselho de Malek fugiram para Karthe. Foi um golpe com certeza, mas sua mãe não estava errada. Manter a spatio’kine segura era sua principal prioridade. No momento em que Cassi estava prestes a assumir a forma de espírito para ver mais de perto este pequeno encontro à meia-noite, uma cadeira arrastou-se no chão. Ela manteve os olhos firmemente fechados enquanto as botas se aproximavam da cama. Atrás dela, a porta se abriu com um gemido. A tensão tangível engrossou o ar quando o imediato de sua mãe fez uma pausa. O silêncio deixou Cassi louca de perguntas e ela se xingou por não ter mergulhado em sua magia quando teve a chance. Um olhar poderia dizer muito, e agora ela sabia que o que sua mãe e Remendado estavam compartilhando falava muito. — Pense no que eu disse, capitã — ele finalmente falou lentamente. — Eu sempre penso, velho amigo. Eu sempre penso. A porta se fechou com um clique suave. Cassi suspirou sonolenta. No meio de seu estiramento fingido, algo atingiu sua bochecha. Seus olhos se abriram de surpresa e ela pegou o item ofensivo – uma bola de papel amassada. Ela espiou por cima do ombro, encontrando sua mãe olhando para ela do outro lado da cabine com os braços cruzados e as sobrancelhas arqueadas. — Me espionando? Cassi esfregou a pele onde ainda ardia e resmungou: — Não muito bem, evidentemente. — O que você ouviu? — O suficiente para supor que Jacinta perdeu Da’Kin. — Eles fogem para Karthe enquanto falamos. — Mas você não quer se juntar a eles? — Você acha que deveríamos? A pergunta foi feita com bastante inocência, mas Cassi compreendia um teste quando ouvia um. Sua mãe a estudou com olhos semicerrados. — Eu concordo com você, a spatio’kine é nossa prioridade — ela começou lentamente. Antes que as palavras saíssem de sua boca, ela sabia que estavam todas erradas. A capitã recostou-se na cadeira e soltou um suspiro pesado – um sinal claro de que Cassi havia falhado. Ela continuou independentemente. — Mas precisamos que Jacinta mantenha o trono se quisermos evitar uma guerra total entre os reinos. Eu sei que esse ferro’kine do qual estamos fugindo é perigoso, mas com certeza ele deve querer a fenda fechada tanto quanto todos os outros. Ele ficaria louco se fosse atrás de Solvei e arriscasse o retorno dos dragões. — Ele não está bravo. — Mas… — Ele tem sede de poder — sua mãe terminou, ignorando seu protesto. — E isso é pior. Tem razão, filha. Ele não quer deixar a fenda aberta, mas se você acha que ele vai deixar Solvei trazer o rei e a rainha de volta antes que ele a obrigue a selá-la, então você que enlouqueceu. Você quer seus amigos de volta? — Sim. — Você quer paz? — Sim. — Então tenha fé em Jacinta e deixe-a travar esta batalha sozinha. A melhor coisa que podemos fazer é ficar fora do fogo cruzado. A nossa guerra é completamente diferente. Os ombros de Cassi caíram. — Tudo bem. A capitã se levantou da cadeira e contornou a mesa. — Mas eu não deveria pelo menos… — Não — sua mãe interveio. — Mas Jacinta.. — Não. — Mas… A capitã Rokaro parou diante dela e sentou-se na beirada da cama, levando a mão ao rosto de Cassi. Ela se inclinou na palma da mão de sua mãe, apreciando o toque quente. Elas compartilharam uma vida inteira em seus sonhos, mas não poderia ser comparado a estar aqui no mundo desperto juntas. Nem mesmo sua imaginação, por mais selvagem que fosse, poderia criar tamanha perfeição. A capitã acariciou a pele de Cassi com o polegar e suavizou a expressão, os olhos gelados a derreter-se como no início da primavera. — Deixe essas decisões comigo, filha. Outras novidades esperam por você. Vá visitar seu corvo e ele explicará. — Que novidades? — Perguntou Cassi, franzindo as sobrancelhas. — Vá até ele e descubra. Ela franziu a testa, mas sabia que não devia perguntar de novo. Sua mãe, como o vento que ela manejava tão habilmente, era impossível de encurralar. Seus segredos iriam com ela para o túmulo antes que alguém os arrancasse de seus lábios, muito menos sua filha. Em vez disso, Cassi revirou os olhos e caiu de costas na cama, já na sua forma espiritual quando a cabeça encostou na almofada. — Bons sonhos — a capitã sussurrou. Quando um beijo fantasmagórico tocou sua testa, Cassi deslizou pela nave e emergiu sob o céu noturno. Em algum nível, ela sabia que sua mãe estava escondendo alguma coisa. Estava no tom de sua voz. Na borda cautelosa em seus olhos. Na inocência com que ela sugeriu encontrar Xander. Havia algo que a capitã não queria que a filha descobrisse, o que naturalmente deixou Cassi ainda mais ansiosa para ir direto a Karthe e desvendar o mistério. Por outro lado... Xander. Fazia muito tempo que ela não se permitia passar um tempo real com ele porque, é claro, ele era uma distração, e ela precisava manter o foco em encontrar Lyana e Rafe, em ajudar o conselho de Malek, em monitorar os reinos avians, e várias coisas, exceto na verdade. Ela estava com medo e ainda agindo como covarde. Houve um breve momento, quando ele emergiu das profundezas da submersa cidade de Rynthos, seguro e ileso, que ela se permitiu acreditar. Ele disse a ela que a amava, e ela não conseguiu impedir que a confissão também vazasse por seus próprios lábios. Ela o amava – ela não podia deixar de amá- lo, com seu coração terno, espírito desafiador e força oculta. Por um momento, ela se permitiu imaginar que o amor poderia ser suficiente. Então eles chegaram a Sphaira e a vida a lembrou da verdade. Ela era uma traidora, uma espiã e uma criminosa, enquanto ele era um rei. Algumas coisas só poderiam existir em sonhos. Por sorte, a lua estava alta, as estrelas apareciam e o mundo dormia. Assim, Cassi acelerou sobre ondas escuras e depois praias lamacentas, através do céu claro e depois da névoa nebulosa, até que finalmente ela pressionou seu espírito contra o coração dele e o mundo real foi embora. — Cassi! Braços fortes envolveram sua cintura e a puxaram para um peito duro. Com um whoosh, ela foi arrebatada. Eles giraram e giraram e giraram. Cassi enterrou o rosto no pescoço dele para esconder o sorriso. — Ponha-me no chão! — Nunca. — Xander... — É rei Lysander para você — ele brincou, deixando seus lábios roçarem sua orelha enquanto falava. — Eu estava começando a pensar que você tinha se esquecido de mim. Foi a vez dela de sussurrar: — Nunca. Xander a manteve no círculo de seu braço enquanto colocava os pés dela no chão. Ela baixou a cabeça contra o peito dele e ouviu o ritmo constante de seu coração. Ele a colocou sob seu queixo. Ficaram assim, simplesmente inspirando um ao outro, até que a curiosidade de Cassi se tornou insuportável. — Minha mãe pensou que você poderia ter notícias… — Ela murmurou casualmente. — Arrá! — Ele exclamou e se afastou até que ela encontrou seus olhos, um largo sorriso em seus lábios. A notícia tinha que ser boa. Ele parecia mais leve do que da última vez que o vira. — Eu sabia que você tinha um motivo oculto para vir. Talvez eu devesse fazer você esperar um pouco mais, dar-lhe um gostinho do seu próprio remédio. Ela lançou-lhe um olhar aguçado. Seus olhos lavanda brilharam de volta. — Bem, então. Talvez eu apenas… Cassi liberou sua magia de uma só vez. Um piscar de olhos e a cena mudou. Xander estava sentado em uma cadeira de madeira, com os pulsos e pés presos, o peito nu. Cassi aproximou-se dele, girando uma adaga entre os dedos. Levantando uma perna, depois a outra, ela montou nele. Ele riu baixinho e deixou cair a cabeça para trás contra a cadeira. — Se você está tentando me assustar até a submissão, temo que isso esteja tendo o efeito oposto. De sua posição no colo dele, Cassi podia sentir a verdade em sua declaração. Ela enfiou a adaga na madeira perto de sua orelha e trocou de tática, esfregando-se lentamente contra ele enquanto gentilmente passava o nariz pela lateral de seu pescoço. Mesmo sem a mão em seu peito, ela teria sentido sua pulsação subir. — Tenho certeza de que posso pensar em alguma outra maneira de arrancar a verdade de você. — Acho que vou gostar deste interrogatório — respondeu ele, com a voz um pouco tensa. Ela mordeu a orelha dele, sorrindo para si mesma quando ele engasgou de surpresa, então arrastou os dedos pelo peito dele. Ele se contorceu enquanto eles mergulhavam cada vez mais baixo. Cassi afastou-se para olhá-lo nos olhos enquanto deslizava pela cintura das suas calças. Então ela se inclinou para frente apenas o suficiente para que seus lábios se tocassem e queimasse com seu poder. Antes que Xander tivesse tempo de retribuir o beijo, ela se afastou um metro e meio e um balde de água gelada apareceu sobre a cabeça dele. Cassi cruzou os braços e deixou rolar. — O que… — Xander gaguejou enquanto seus músculos se contraíam. — Cassi! Ela levou a mão aos lábios e cobriu a risada com uma tosse suave. Ele lutou contra suas amarras e olhou para ela, mas teve que piscar para afastar a água que escorria por suas sobrancelhas. Então, em vez disso, ele ergueu o queixo desafiadoramente, sempre o digno rei. Ela achou adorável. Um momento depois, ele revirou os olhos. — Eu ia te contar. Por ordem de Aethios, não é mais crime possuir magia em nenhuma das casas. O conselho dos sete concordou. As execuções estão suspensas. Acabou. — Xander! Cassi voou pela sala e se chocou contra ele. Eles caíram juntos em um colchão macio, um emaranhado de penas e membros. Ele a puxou para seu peito enquanto ela segurava seu rosto com as palmas das mãos. — Você está dizendo a verdade. Você jura? — Está feito, Cassi — sussurrou ele. — Você é livre. Ela puxou o rosto dele para mais perto e, desta vez, ela o beijou com todo o fervor e entusiasmo de seu coração. — Você conseguiu — disse ela entre as respirações. — Você é incrível. Não acredito que você os convenceu. — Eu tive ajuda. — Não qualifique sua vitória — ela se afastou para encontrar seu olhar. — Sem você, isso nunca teria acontecido. Você fez isso. Você… Cassi engasgou com a emoção e voltou a roubar-lhe os lábios, incapaz de dar vida às palavras que lhe agitavam a alma. Meu herói. Meu campeão. Meu rei. Ele não sabia o quão incrível ele era, e ela se viu à beira das lágrimas tentando dizer a ele, então ela jurou mostrar a ele, fundindo seu amor em seu toque. Mas ele a conhecia muito bem. Sob a devoção, ele sentiu suas inseguranças. Qualquer outro homem teria cedido à tentação que ela oferecia. Não Xander. Ele diminuiu o ritmo e se afastou apenas o suficiente para olhar profundamente em seus olhos. — Ouvi dizer que você encontrou a spatio’kine. Um dos dormi’kines de Jacinta visitou os meus sonhos — ele passou o polegar suavemente sobre sua bochecha. — Por que você mesmo não veio me contar? Porque tenho medo, Cassi confessou silenciosamente. Receio que nunca seremos mais do que outra mentira que conto a mim mesma em meus sonhos. — Eu estava ferida — ela disse ao invés. — Quando a encontrei, estava à beira da morte. Eu não tinha forças para sonhar. Eu precisava dormir. Ele ficou tenso. — Você está bem agora? Você está… — Estou bem, Xander. Estou recuperada. — Alguém deveria ter me contado... — Por que? Então você gastaria seu tempo se preocupando desnecessariamente comigo quando havia coisas mais importantes para focar, como salvar centenas de magos da execução? Ele mergulhou o polegar mais abaixo, até traçar seu lábio inferior. — Eu não gosto de ter você tão longe. — Eu estou aqui agora. — Mas você não está. Não totalmente. — Eu estarei em breve — disse ela, comportando-se de forma obtusa de propósito. — Eu preciso levar a spatio’kine para a fenda. Ela precisa senti-la, entendê-la, antes de descobrir como fechá-la. Estamos trabalhando em um plano para visitar Sphaira. — Não é isso que eu quero dizer, e você sabe disso. Ela se virou para o lado, incapaz de encará-lo. — Não fuja de mim, Cassi — murmurou ele, o hálito quente como um beijo, fazendo-a arrepiar o pescoço. — Não fuja de nós. — Xander... — Eu sei o que você está pensando — ele continuou, ignorando seu fraco protesto. — Que você é uma traidora. Que você não é boa o suficiente. Que nosso povo nunca a aceitará. Mas eu não me importo com o que os outros pensam, nem mesmo sobre você, e gostaria que você pudesse se ver do jeito que eu te vejo. Como uma heroína. Como uma rainha. Ela puxou uma respiração repentina, suas palavras provocando uma pontada aguda em seu peito. — Dance comigo — ele disse antes que ela pudesse impedi-lo. — Por favor. Foi o por favor que a desfez, o apelo suave em sua voz. Ela não podia dizer não a ele. Então ela fez o que ele pediu, e a cena mudou. Eles ficaram de braços dados em sua biblioteca, uma música de cordas tocando suavemente ao fundo enquanto um fogo quente crepitava na lareira. Ele passou os dedos pelo cabelo dela e gentilmente pressionou a cabeça dela contra seu peito até que ele a sentiu relaxar contra ele. — Feche os olhos — ele sussurrou. — Deixe-me guiar. Ela sabia o que ele realmente estava pedindo, e contra seu melhor julgamento, ela entregou o controle do sonho. Eles balançavam juntos enquanto ele reconstruía o mundo ao seu redor, Cassi no escuro, Xander nas nuvens, desejando coisas impossíveis. O ar viciado mudou com uma nova brisa. A música orquestral se aprofundou, acompanhada pelo bater suave da água e o murmúrio abafado de uma multidão. Saias reunidas em torno de suas pernas. Penas sedosas rodeavam sua garganta. O tempo todo Xander a segurou perto, firme e segura, nunca perdendo o ritmo enquanto a guiava por um caminho que ela estava apavorada demais para percorrer sozinha. A música terminou. Ele parou de se mover. — Abra seus olhos. Cassi hesitou, já sabendo o que encontraria quando saísse para a luz. Ele apertou os dedos dela de forma tranquilizadora e as pálpebras dela se ergueram por vontade própria. A primeira coisa que ela viu foi seu rosto sorridente, tão caloroso e amoroso que o medo persistente se esvaiu. Ele usava um casaco de obsidiana profunda, a gola forrada com pérolas brilhantes de ônix. Ela olhou para seu vestido, a saia feita de camada sobre camada de chiffon preto ondulante pontuado por pequenas contas de diamante que brilhavam quando refletiam a luz. Ao redor, havia corvos finamente vestidos, um mar de asas iridescentes e joias brilhantes. No alto havia um tapete de estrelas, a lua em lugar nenhum. Lírios perfumados cobriam cada centímetro da praça, de edifícios que ela reconheceu como os agora enterrados sob o mar. Eles estavam no coração de Pylaeon, no meio da cerimônia que ela nunca conseguiu ver concluída todos aqueles meses antes, quando desejou felicidades à sua melhor amiga e observou Lyana partir em uma carruagem com destino ao ninho sagrado. Então, sua mente estava em coisas muito mais horríveis. No entanto, seus dedos tremiam mais agora quando ela os ergueu em direção ao colar em sua garganta do que antes, segurando seu arco e flecha. — Xander. Ela murmurou seu nome enquanto deslizava a coroa de penas de corvo ao redor de sua garganta. Dele, ela tinha certeza. Era uma exibição usada por uma única pessoa. Uma companheira. — Você é minha rainha, Cassi. — Eu não sou… — Você é — ele disse enquanto colocava os dedos sob o queixo dela e gentilmente incitava sua cabeça para cima até que ela encontrasse seus olhos. — E eu juro, um dia você vai acreditar. Uma pedra grossa arranhou a parte de baixo das palmas de Rafe enquanto ele se agarrava ao cume e espiava por cima da borda do penhasco. Os dragões jaziam espalhados pelas rochas, cada um enrolado protetoramente no topo de seu próprio arbusto. Nas sombras das videiras retorcidas, frutas rubi brilhantes pulsavam com magia. A visão tornou-se familiar para ele. — Quantos são? — Lyana perguntou de seu esconderijo abaixo. Rafe fez uma contagem rápida. — Uma dúzia. Talvez duas. Não tantos quantos estavam reunidos ao redor da fenda, mas também não era o menor contingente que ele havia encontrado. Parecia não haver nenhuma razão específica a respeito de onde residiam as silvas e, portanto, os dragões. Ele passou as últimas semanas pulando de horda em horda e roubando suas frutas. O ato não o preocupava mais. Desta vez era diferente, porém, porque Lyana se juntou a ele. Ele revirou os olhos enquanto as botas arranhavam o cascalho solto. — Volte para baixo. — Eu só quero… — Ana. — Humpf. Rafe olhou por cima do ombro para onde ela estava amuada com os braços cruzados, suas asas de marfim dobradas muito visíveis contra os campos de ônix estéreis deste estranho mundo no qual eles estavam presos. — Você precisa ficar fora de vista. — Eu sei, eu só… — Eu sei. Sua voz era terna. O olhar ansioso em seus olhos de esmeralda refletia a emoção que crescia em seu estômago. Este foi o momento mais exposto que ela esteve desde a chegada deles nas terras natais dos dragões. Ele se moveria o mais rápido que pudesse, mas ela ainda estaria vulnerável. Pelo menos ela estará perto, Rafe lembrou a si mesmo. Afinal, foi por isso que ela apareceu, em primeiro lugar. As criaturas os estavam caçando. O híbrido aethi’kine entrou nos sonhos de Rafe mais três vezes, cada visita soando com mais e mais desespero. Tinha ficado meio louco. Todos eles tinham. Os híbridos eram vorazes. Suas mentes doíam de fome. Eles estavam tontos com isso, a fome tão aguda que ele sentia mesmo com os laços mentais selados o mais firmemente possível. Eles não descobriram as frutas ou não conseguiram chegar perto o suficiente para roubá-las, deixando a magia de Lyana uma refeição tentadora que eles fariam qualquer coisa para garantir. Rafe recusou-se a dar-lhes a chance. Ele e Lyana estavam em movimento desde o rio, aderindo ao intrincado sistema de cavernas subterrâneas, mas nunca permanecendo em uma por muito tempo. Rafe relutava em ir à superfície. Sob o céu aberto de tangerina, havia poucos lugares para se esconder. Mas eles precisavam de comida. E deixá-la para trás no subsolo não era uma opção. Se as criaturas a encontrassem sozinha... Rafe balançou a cabeça, dissipando o pensamento enquanto um arrepio percorria sua espinha. Não quero nem pensar na possibilidade. — Você vai ficar fora de vista? — Ele perguntou mais uma vez. — Eu prometi que sim. Meses atrás, quando se conheceram, ele não tinha certeza se teria acreditado naquela promessa. Eles passaram por bastante coisas juntos desde então para ele confiar que ela falava a verdade. — Vou me mover o mais rápido que puder. — Eu sei. Mas Rafe? — Ela fez uma pausa, chamando sua atenção. — Tome cuidado. Ele ergueu os lábios em um sorriso torto e saltou sobre a borda do penhasco, mantendo-se próximo às rochas. Ela não precisava se preocupar. Xander o teria chamado de herói altruísta e Brilhante de idiota, mas ele não era nenhum dos dois. É verdade que ele tinha uma tendência a agir precipitadamente e confiar em sua magia invinci, mas no final do dia ele simplesmente fazia o que precisava ser feito, e nada mais. Agora eles precisavam de comida. Portanto, não importava o que custasse, ele encontraria alguma. Felizmente, sua técnica havia percorrido um longo caminho desde a primeira vez que ele se esgueirou para os arbustos. Em vez de instigar uma batalha para desviar o foco, Rafe simplesmente rastejou pelo campo e projetou indiferença. Desvie o olhar, ele sussurrou através dos laços que pairavam nos confins de sua mente. Não há nada para ver. Não há nada de extraordinário. Fique calmo. Você não me vê. Desvie o olhar. Havia muitos dragões aqui para ele controlar todos eles, mas ele percebeu que o controle completo não era necessário. Apesar de todo o seu fogo, eles eram criaturas bastante simples. Possessivos quando ameaçados. Irados quando com fome. No entanto, neste cenário, bem alimentados e descansando protetoramente sobre seus tesouros mágicos, eles estavam tranquilos. Se ele não os perturbasse, eles o deixariam em paz – na maior parte do tempo. Rafe rastejou em direção a um dragão menor na borda externa do grupo. Sua amoreira não era tão alta ou grande quanto as outras, mas as frutas rubi ainda brilhavam em suas profundezas, então serviria. A besta nem sequer se mexeu quando Rafe se içou para cima e sobre a borda de uma videira espinhosa, então caiu nas sombras. O céu alaranjado desaparecia à medida que ele se aprofundava no matagal, cercado por todos os lados por uma teia de galhos retorcidos. Ele parou ao lado da primeira fruta que encontrou e arrancou-a imediatamente. Uma a menos. Só mais uma. Rafe estreitou os olhos, procurando o revelador brilho carmesim. Lá. Ele deu um passo à frente. Com um estalo, a videira abaixo dele se partiu ao meio. Embora ele abrisse as asas, o emaranhado era muito apertado para voar. Espinhos arranharam como garras quando ele caiu no escuro. Suas mãos escorregaram sobre caules cerosos, incapazes de segurá-los. Ele bateu o ombro, depois o quadril, depois a cabeça ao cair de uma videira para a próxima, até que finalmente pousou em uma superfície dura e plana. Bem feito. Ele se sentou com um gemido. Brilhante está certa. Eu realmente sou um idiota. De alguma forma, o dragão aninhado sobre o ápice da sarça permaneceu imperturbável. Rafe enviou mais algumas ondas de calma ao vínculo mental, então acendeu o fogo em suas costas para fornecer uma luz na escuridão. Videiras se contorciam como um labirinto acima, tornando impossível discernir a rota mais rápida para o céu aberto. Ele examinou as sombras em busca de alguma pista para a liberdade. Não há nada aqui. Não há nada aqui. Não… Ele saltou cerca de três metros no ar ao ver dois olhos vermelho-sangue, seu coração saltando de seu peito. Rafe procurou um vínculo mental, mas não havia conexão, nem consciência. Nenhum vapor saiu das narinas da besta. Nenhuma vida iluminou suas pupilas vítreas. O dragão estava morto. E, pela aparência afundada de sua pele, pendendo fina sobre ossos protuberantes, estava assim há muito tempo. Uma batalha? Ele se aproximou e passou a mão pelas escamas empoeiradas. As pontas ainda eram afiadas, mas fracas, e se desfaziam com a menor pressão. Ele não sabia quanto tempo os dragões viviam, mas essa criatura lamentável havia morrido há muito, muito tempo, para o dragão agora em posse desta amoreira tê-la tomado. Esta baixa não foi uma luta por domínio, pelo menos não recente. Por que você está aqui? Nenhuma resposta surgiu no fundo de seus pensamentos, o que fez com que a pergunta o irritasse ainda mais. Mas não havia mais tempo a perder. Ele já estava nas videiras há muito tempo, e cada segundo que passava aqui era um que Lyana passava sozinha do lado de fora. Fruta. Eu preciso pegar outro pedaço de fruta, então vá. Uma luz vermelha pulsante se derramou sobre as costas do dragão. Rafe escalou a carcaça, criando pontos de apoio quando não conseguia encontrá-los. Só quando alcançou o topo percebeu que o brilho não vinha de uma fruta, afinal. Buracos perfuravam os restos do esqueleto, brilhando com um tom carmesim. A luz emanava de dentro do próprio corpo. Rafe deu um soco na pele amaciada pelo tempo e rasgou uma grande abertura, sua curiosidade muito forte para negar. No fundo da cavidade agora oca do peito, um radiante caule de rubi brilhava, pulsando no mesmo ritmo constante das frutas, quase como se fosse... Um coração. Rafe recuou, estudando as amoreiras novamente. Ramos luminosos se bifurcavam a partir do núcleo flamejante, seu brilho desaparecendo conforme eles se alongavam até que nada além de trepadeiras negras opacas rasgavam a pele do dragão, quase como veias. A localização da besta morta era uma coincidência? Ou era outra pista de como esse estranho mundo funcionava? Ele estava pensando nos dragões e em seu tesouro como duas coisas separadas, mas talvez não fossem. Em caso afirmativo, o que isso significava? Sua atenção se voltou para a haste do coração. Em sua base, onde deveria haver rocha negra como todo o resto da terra, picos cristalinos de um vermelho quase ofuscante emergiam do solo. Algo sobre eles parecia familiar. Ele se inclinou para olhar mais de perto e... A fome aumentou tanto que roubou sua respiração. Uma sensação de desejo inundou os laços no fundo de sua mente. Cada dragão ao alcance estava aceso com desejo, sua necessidade tão avassaladora que não podia ser reprimida. A besta em Rafe respondeu na mesma moeda. Os músculos de seu estômago se contraíram quando a dor esculpiu um buraco dentro dele que só a magia poderia preencher. E havia magia. Mesmo longe das videiras, ele sentiu o poder no ar, aproximando-se cada vez mais. Eu encontrei você. As palavras explodiram em sua cabeça, cheias de vitória. Eu encontrei você. Eu encontrei você. Rafe se encolheu, cada repetição caindo como um chicote. Eu encontrei você. Eu encontrei você. Eu encontrei você. Por mais que tentasse, não conseguia desalojar o aperto da criatura. O vínculo estava escancarado, a porta arrancada de suas dobradiças. Mesmo enquanto lutava para recuperar o controle, sua visão começou a manchar. A visão de videiras retorcidas e rubis brilhantes desapareceu enquanto ele era arrastado pela conexão, para uma mente estrangeira. Asas brancas brilharam na rocha negra, dobradas e emplumadas, inconfundíveis. Ela estava de costas. Ela não sabia. Eu encontrei você. Você tenta se esconder. Mas você não pode. Eu sinto sua magia. Eu entendo você. Somos um e o mesmo. Então, por que eles não caçam você? Por que eles não te perseguem? Eles vão. Me ajude. Me machuque. Me salve. Mostre-me como usar esse poder. Como desligá-lo. Como queimá-los até o chão. Como lutar. Como fugir. Como se esconder. Você não vai fugir. Devo pegar o que você não quer compartilhar. Vou rasgar você e então talvez você me dê o que eu preciso. Raiva e adrenalina percorreram Rafe quando ele finalmente se livrou do domínio da criatura aethi’kine. Lyana! Ele se levantou de um salto, todos os pensamentos sobre o coração queimados pela imagem dela nas rochas. Videiras negras se retorciam ao acaso no alto. Ele pegou uma ao acaso e se arrastou até a borda. Então ele escalou outra, e outra, lutando para voltar ao céu. Aninhada atrás de uma grande pedra, Lyana desenhava formas preguiçosamente no cascalho solto. Um quadrado, depois um círculo, depois voltas em redemoinho, antes que ela achatasse a palma da mão nas pedras esfareladas e limpasse os rabiscos. Mais uma vez ela desenhou, um ziguezague e depois uma explosão de estrelas, na necessidade desesperada de uma saída para sua crescente frustração. Isso está demorando muito. Onde ele está? Suas asas se contorceram em desconforto. Ela ansiava por voar sobre a borda e procurar por si mesma. Mas ela não iria. Ela havia prometido a Rafe que ficaria bem aqui, então ela ficaria. Eles eram uma equipe, o que significava que não eram nada sem confiança. Ela não quebraria a dele – não importa o quão nervosa ela ficasse. Lyana jogou a cabeça para trás e olhou para o céu alaranjado. Embora nublado, estava sem nuvens, o que significava que não havia entretenimento ali. Então, em vez disso, ela puxou a adaga que Rafe lhe dera do cinto e usou a ponta para raspar a sujeira sob as unhas. Ela sentia falta de estar limpa. Um mergulho no rio não podia fazer muito e, bem, ela tinha outras coisas em mente além de tomar banho. Um sorriso satisfeito apareceu em seus lábios, e seus pensamentos começaram a vagar enquanto ela preguiçosamente cutucava seus dedos, distraída pela memória de Rafe vagando lentamente na água, nu como no dia em que nasceu, seus músculos ágeis, sua pele brilhando com uma fina camada de suor enquanto ele se aproximava. O olhar ardente em seus olhos fazia seu coração bater forte até agora. Um formigamento se espalhou por sua pele, os pelos de seus braços se eriçaram. Levou um momento para ela perceber que a lembrança muito vívida de Rafe não era a causa. Lyana caiu de joelhos. A criatura aethi’kine estava quase sobre ela. A magia dourada se derramou dela em ondas brilhantes, deixando um rastro de arco de magia em seu rastro enquanto se aproximava. Mais quatro corpos salpicaram o céu atrás dela, as outras criaturas seguindo seu líder. Rafe viria, ela sabia. Mas ele chegaria a tempo? Eu posso me salvar. Pense, Ana. Pense. Voar seria inútil. Não havia como ela se mover mais rápido do que uma criatura já em voo. Mas ela tinha que chegar aos dragões. O poder que vazava daquelas escamas douradas com certeza levaria as feras ao frenesi. Com alguma sorte, eles forneceriam a abertura que ela precisava para fugir. Mas como? Suas asas de columba eram mais ágeis. Se aterrissasse, se ela pudesse distrair… Isso pode funcionar. Lyana segurou a adaga com mais força em uma das mãos e agarrou um punhado de cascalho com a outra, levantando-se de um salto. A criatura se aproximou rapidamente, chegando cada vez mais perto, como se planejasse derrubá-la no chão. Então suas asas coriáceas moveram-se abruptamente ao vento, inflando como velas, e a criatura pousou com força na saliência diante dela. Dois olhos dourados a fitaram ferozmente, divididos entre a malícia e o desespero. A magia inundou o ar, caindo sobre ela como uma onda. O poder cheirava a desespero e medo, fome e loucura, um ataque violento de emoção turbulenta. Um movimento errado e a criatura acabaria com ela. No entanto, o poder de cura dentro de Lyana se agitou, respondendo a um espírito perdido que precisava de ajuda, mesmo um tão perigoso quanto este. Ou talvez, especialmente um tão perigoso quanto este. Talvez eles não precisassem ser inimigos. Uma vez, ela rezou para o ovo de ouro que esta criatura chamou de lar. Agora ela sabia que não era seu deus, mas isso significava que não merecia sua compaixão? Afinal, era parte humana. Recém- nascido, e tão perdido quanto ela neste mundo estranho onde o poder aethi’kine era mais um obstáculo do que uma ajuda. Lyana deu um passo hesitante à frente. A criatura não se moveu. Ela colocou a adaga de volta no cinto e estendeu a mão, o poder dourado ganhando vida na ponta dos dedos. Ele a observou com cautela. — Eu posso te ajudar — ela sussurrou, com medo de que sua voz pudesse quebrar a estranha paz. — Posso mostrar a você como controlá-lo, se você me deixar. A criatura piscou, sem emitir nenhum som, mas algo nas duras arestas de seu rosto pareceu suavizar. Lyana deu mais um passo à frente. O poder derramou de sua mão aberta, fechando a distância e lentamente roçando escamas douradas. Seu espírito ardia através dela. Sob sua pele, o fogo floresceu, muito quente para ela pressionar mais. Calma, ela ordenou, e o caos diminuiu. O desespero abriu espaço para a esperança. O medo deu lugar à curiosidade. A loucura acalmou-se em paz. Ela estava perto. Tão perto. Deixe-me ajudá-lo. As chamas diminuíram. Lyana pegou a abertura e cerrou os dentes contra a dor. Ignorando o calor doloroso, ela disparou sua magia o mais fundo que pôde e fez contato com sua alma. Ela percebeu seu erro imediatamente. A criatura aethi’kine rugiu, o berro ecoando nas rochas e ricocheteando no céu. Seus ossos sacudiram com o som. A magia do espírito chicoteou a distância e a atingiu com um chicote ardente. Ela tropeçou para trás quando sua magia estalou em sua pele. A insanidade inundou aqueles olhos dourados, não mais como os de um humano ou mesmo de um dragão, mas como os de alguma coisa bestial e distante. A criatura atacou. O instinto tomou conta e Lyana jogou o cascalho com a mão esquerda. Pequenas pedras atingiram o rosto da criatura enquanto a poeira nublava sua visão. Lyana bateu as asas, bombeando uma, duas vezes, enquanto voava para o céu. A criatura a perseguiu, mas ela foi mais rápida. Suas garras agarraram o ar vazio enquanto ela saltava sobre a borda do penhasco. Como um só, os dragões se viraram quando ela entrou em sua linha de visão. Duas dúzias pareciam um número administrável quando Rafe disse isso, mas ter todos aqueles olhos vermelho-sangue brilhando na direção dela fez sua pele arrepiar. Ainda assim, ela não teve escolha a não ser catapultar-se para a briga. Asas negras cobriram o céu enquanto um após o outro os dragões dispararam no ar. Uma fome inegável escoou de seus corpos em chamas. Lyana liberou sua magia em uma onda ofuscante de poder. Com um rugido, os dragões dispararam em sua direção. Vamos. Vamos. Um ponto cor de pele dentro do preto atraiu seu olhar. Rafe assistia com horror enquanto as feras se aproximavam, seus olhos azuis arregalados. O fogo ardeu ao longo de suas asas enquanto ele lutava com todas as suas forças para alcançá-la primeiro. Ela agarrou seu espírito apenas o tempo suficiente para ordenar pare. Ele parou bruscamente e rapidamente desapareceu de vista. Então Lyana desligou sua magia, enfiou as asas perto das costas e caiu do céu. Ela bateu nas pedras sem tempo de pousar. A dor explodiu ao longo de sua lateral quando bordas duras cortaram sua pele. Uma onda negra passou por cima. Ventos escaldantes açoitavam seu cabelo e lambiam sua pele enquanto as asas flamejantes batiam. E então estava feito. Os dragões seguiram a nova marca, nada mais do que animais perseguindo um cheiro, um que ela felizmente sabia como reprimir. Os híbridos não tiveram tanta sorte. Um guincho agudo perfurou o ar e Lyana estremeceu, sentindo cada pedacinho de desespero no grito da criatura aethi’kine. Ela olhou por cima do ombro quando ela se juntou aos outros híbridos e eles fugiram pelo céu, todos os cinco agora sendo perseguidos por uma horda furiosa de dragões famintos. Não havia outra resposta? — Você fez o que tinha que fazer. Lyana se virou ao ouvir a voz de Rafe e aceitou a mão que ele ofereceu. Ele a colocou de pé, seu olhar penetrante avaliando-a em busca de ferimentos. A única ferida estava em seu orgulho. — Isso não significa que eu tenha que gostar. — Você não pode salvar todo mundo, Ana. Acredite em mim quando digo que essa criatura está além de você. — Eu sei. A resposta saiu como pouco mais que um suspiro frustrado. Ela limpou a sujeira de suas roupas já sujas, pensando em seu espírito maníaco. Por um momento, ela pensou que talvez pudesse ajudar, mas para quê? Eles não poderiam levar nenhuma das criaturas de volta ao seu mundo, e não poderiam salvá-las deste. Lyana nunca havia considerado a morte uma misericórdia, mas neste caso, poderia ser. — Não podemos mais viver assim, Rafe. Nem nós. Nem eles. Alguma coisa tem que mudar. — Até que a fenda reabra, o que podemos fazer? — Lutar. Sua mandíbula apertou. Ela pegou sua mão e passou os dedos sobre sua pele quente até que a tensão em seus músculos diminuiu. — Eu sei que você não acha que é seguro para mim — ela continuou, sua voz baixa, mas firme. — Mas vivendo na clandestinidade, vivendo em fuga, o que aconteceu hoje? Também não é seguro para mim. Um movimento errado e eu estaria morta. Eu não vou sentar e esperar por mais tempo. Por favor, não peça isso a mim. — As criaturas enlouqueceram de fome. — Então, usamos isso a nosso favor. Elas estão além da razão. Elas vão nos perseguir onde quer que formos, como você viu hoje. Isso as torna vulneráveis. Ele estava claramente lutando contra o desejo de protestar, mas engoliu suas objeções e baixou os ombros em derrota. — Não tenho certeza se gosto de onde isso está indo. — Quer saber, Rafe? — Um plano se formou no fundo de sua mente, trazendo um sorriso perverso a seus lábios. — Tenho quase certeza que você não quer. A luz da lua fluía através do ápice da cúpula, lançando o palácio de cristal em um brilho prateado. A névoa finalmente começou a se dissipar. Lá fora, a neve quase desaparecera. Lá dentro, os corredores estavam silenciosos. Xander voou em direção aos aposentos reais e parou diante das portas vigiadas. As columbas o olharam com incerteza. — Por favor, diga ao príncipe Luka que o rei da Casa dos Sussurradores está aqui para falar com ele — Xander ordenou, usando seu título completo para dar ênfase. Os guardas se entreolharam, com clara hesitação. Depois de um momento tenso, a mais velha deu um passo à frente, sua voz respeitosa, mas firme. — Está tarde, rei Lysander. Nosso príncipe está esperando por você? — Não — ele disse simplesmente. Ela engoliu em seco. Ele esperou educadamente, seu olhar inflexível. Depois de um minuto, ela deslizou para dentro. Ele mudou seu peso de um pé para o outro, até que finalmente a porta se abriu. — Estou cansado desses encontros noturnos, corvo — Luka resmungou enquanto esfregava o rosto sonolento, então sinalizou para Xander segui-lo para os aposentos reais. — Acredite em mim quando digo que você ficará feliz com este. Luka franziu a testa e projetou o queixo em direção à saída, indicando que os guardas deveriam partir. — Quais as novidades? — Está na hora — disse Xander, mantendo a voz baixa, embora estivessem sozinhos. Ele não podia arriscar alguém ouvindo. Isso arruinaria tudo. — Nossos visitantes estão prontos. Temos meia hora para garantir que o ninho sagrado esteja vazio antes que eles cheguem. — Meia hora? — Menos, quanto mais ficamos aqui conversando. Luka grunhiu, reservando um momento para olhar para sua aparência desgrenhada. Ele pôs a palma da mão no punho da espada presa à cintura e deu de ombros. Era tudo o que ele precisava. — Vamos. Eles fugiram dos aposentos reais e saltaram sobre a grade. Luka sinalizou para seus guardas ficarem para trás enquanto eles desapareciam na borda e caíam no piso de mosaico abaixo. O baque suave de botas marcou a aterrissagem. — Não diga nada — Luka aconselhou enquanto se dirigiam para a imponente entrada do ninho sagrado. — Deixe-me falar. — De jeito nenhum. As portas de madeira foram destruídas na batalha contra os dragões, então eles caminharam desimpedidos pela abertura e pelo longo corredor que levava aos brilhantes portões dourados. Esses também foram danificados na luta, algumas das barras empenadas e deformadas, mas a fechadura foi consertada. Conforme eles se aproximavam, uma figura vestida de marfim emergiu do bosque. — O que o traz aqui, príncipe Luka? — Eu devo conversar com Aethios. Preciso do conselho dele. — Claro. A sacerdotisa deu uma olhada na direção de Xander, então pegou uma chave e deu as boas-vindas a eles. Ela os guiou por entre as árvores, o outrora exuberante bosque agora em frangalhos. Galhos quebrados e folhas secas cobriam o chão. O dossel estava tão vazio que ele podia ver o céu através dos cristais. Ainda assim, o suave chilrear das columbas fornecia consolo. Nem tudo estava perdido, como facilmente poderia estar. Um arrepio percorreu a espinha de Xander quando eles entraram no coração do ninho sagrado. As metades quebradas da pedra divina jaziam intocadas, as conchas ainda douradas e brilhando ao luar, suas bordas fraturadas e serrilhadas. O efeito era quase sinistro. Aethios não morava mais aqui. Ele nunca morou. Mas as melhores ilusões eram aquelas que as pessoas teciam para enganar a si mesmas. Luka se ajoelhou até sua testa tocar a terra. Xander o seguiu. Ele conhecia bem a posição – ele a assumiu muitas vezes em seu próprio bosque sagrado, deixando as horas passarem despercebidas enquanto buscava o conselho de seu deus. Agora, porém, seu corpo lutou contra ele enquanto ele caía no chão, seus músculos rígidos e inflexíveis. Era diferente agora, sabendo o que ele sabia. Todo aquele tempo perdido, rezando para um demônio que quase tinha sido sua perdição. — Deixe-nos com nossas orações. Vou alertá-los quando terminarmos. — Muito bem. A sacerdotisa desapareceu entre as árvores. Eles permaneceram onde estavam, esperando não por um sinal de seus deuses, mas por um sinal mesmo assim. — Isso parece estranho, não é? — Luka sussurrou. — Sim. — Não sei por que, mas ainda me sinto mais próximo de Aethios quando estou aqui. — Velhos hábitos são os mais difíceis de quebrar. — Eu suponho… — A voz da columba sumiu, seu tom normalmente seguro oscilando e incerto. Um profundo suspiro escapou. — Os deuses ainda estão conosco — Xander disse a ele, virando o rosto para o lado para estudar o príncipe. Os olhos da columba estavam fechados e sua testa franzida como se sentisse dor. — Eles sempre estiveram conosco e sempre estarão conosco. Eles nunca estiveram aqui onde pensávamos que estavam. Eles estiveram em todos os lugares, em tudo. O calor do sol é o toque de Aethios. Nossos sonhos são um presente de Taetanos nas horas solitárias da noite. Cada fogo é aceso com o amor de Erhea, e cada gota de chuva é uma bênção de Eurythes. Fomos tolos, Luka, em pensar que nossos deuses poderiam estar contidos em algo tão simples como uma pedra. O príncipe assentiu com a cabeça ainda no chão. Seus lábios se moveram em uma oração silenciosa. Xander concedeu-lhe privacidade e levantou-se do chão, esperando que tivesse passado tempo suficiente para que a sacerdotisa não notasse seu comportamento blasfemo enquanto ele olhava corajosamente para a casca quebrada. Não era a pedra que o intrigava. Era o ar vazio acima dela, o espaço que ele sabia vibrava com um poder que seus olhos sem magia nunca veriam. A fenda. — Xander! Antes mesmo que ele registrasse sua voz, Cassi estava pulando em seus braços. Ele teve tempo suficiente para se preparar antes que ela colidisse com ele, quase jogando os dois no chão. Ele a esmagou contra ele em um abraço feroz, cavando o rosto em seu pescoço enquanto suas gloriosas asas salpicadas o rodeavam como um escudo. — Senti sua falta — ela sussurrou, tão suavemente que ele poderia ter imaginado. Então ela o soltou e girou rápido o suficiente para causar uma chicotada. — Viu? Eu disse que eles estariam aqui. — Hum — Brilhante bufou, não convencida ao passar pelo que Xander só poderia descrever como um rasgo no tecido do mundo. Era como se uma porta tivesse se formado do nada, de um lado o bosque onde ele estivera e do outro as pranchas de madeira pertencentes a um navio. O ar salgado foi levado por uma brisa repentina. As ondas quebravam ao longe. Uma garota loira que ele nunca conheceu antes emergiu da abertura – a spatio’kine. Atrás dela, a porta desapareceu. — Prazer em conhecê-la — ele tentou sinalizar, imitando os gestos manuais que Cassi lhe mostrara o melhor que podia, esperando que eles fizessem algum tipo de sentido com apenas cinco dedos em vez de dez. — Obrigado por nos ajudar. A maga sorriu amplamente e correu os dedos pelo ar. O sorriso de Xander vacilou. Ele pediu ajuda a Cassi. — Não olhe para mim. Já te ensinei tudo o que sabia. — Ela disse que você é bem-vindo — Brilhante meio rosnou enquanto ela o examinava da cabeça aos pés e inclinava o quadril para o lado, claramente não impressionada. Ele não podia culpá-la. A última vez que ela esteve nesta cidade, ele foi seu carcereiro. — Devo… — Economize — ela interrompeu. — Prefiro não perder tempo falando com você. Cassi encontrou seu olhar e revirou os olhos em um olhar exasperado que ele sabia significar ela é impossível. — Concordo — disse Luka, agora de pé e com uma expressão determinada. — Não há tempo para gentilezas. A sacerdotisa voltará para nos verificar em breve e você precisa ir embora antes que ela o faça. — Exatamente os meus pensamentos. Brilhante apresentou-lhes as costas. Suas mãos começaram a voar, desenhando formas que ele não tinha esperança de decifrar. A spatio’kine respondeu da mesma forma, as duas falando em sua própria língua. Parecia quase uma dança, a maneira como uma garota se movia e depois a outra, a conversa fluindo como uma maré, para frente e para trás, perfeitamente sincronizada. — Se te faz sentir melhor, ela também me odeia — murmurou Cassi, chamando a atenção de Xander. Pela primeira vez, ele notou as ondas profundas em seus cabelos, volumosos pelos dias no mar. Sua pele também estava mais bronzeada, radiante e dourada, trazendo um calor a seus olhos prateados. Tudo nela era mais vivo, mais vibrante, mais bonito do que a versão dela mesma que ela apresentava em seus sonhos. Ele passou os dedos pelo antebraço dela em um convite, emocionado por poder tocá-la de verdade. A borda de seu lábio se ergueu em um pequeno sorriso quando ela pegou a mão que ele ofereceu, então se virou para o príncipe columba. — Oi, Luka. Fico feliz em ver que você finalmente está do lado certo da guerra. Ele bufou, baixando a guarda para ela de uma forma que Xander raramente testemunhava. — Acho que mereço isso. — Não se preocupe. Não vou contar a Ana que você me trancou nas masmorras e quase me executou. — Cassi. — O quê? — Suas sobrancelhas arquearam tão altas que Xander teve medo de que elas pudessem sair do topo de sua cabeça. — Você fez isso. — Eu não teria deixado eles executarem você. Seu olhar só poderia ser descrito como implacável. O príncipe cedeu à pressão. — Sinto muito, tudo bem? Quantas vezes devo dizer isso para você acreditar? — Só mais uma vez — ela piscou. Alívio inundou seu olhar. — Sinto muito. — Como está Elias? Eu pretendia visitar seus sonhos para perguntar, mas o tempo fugiu de mim. — Ele está bem. Está em casa. Não tenho certeza se ele entende totalmente a situação, mas ele prometeu que não contaria a ninguém o que testemunhou em Da’Kin, especialmente sobre o envolvimento de Lyana. E você conhece Elias... — Claro. Ele nunca quebraria sua palavra. — Exatamente. Um nervo doeu no fundo do peito de Xander, a menor pontada de ciúme por suas brincadeiras fáceis, seu passado compartilhado. Cassi nunca lhe contou sobre a sua relação com o príncipe, mas o fato de se conhecerem intimamente era tão claro como o céu mais azul. Há quanto tempo eles estiveram juntos? Quão forte Cassi se sentiu? Com que facilidade ela se afastou? Será que Luka já se sentiu como Xander agora, como se toda vez que se encontrassem uma parte dela já estivesse se despedindo? Ele podia sentir a distância em seus sonhos, como ela às vezes não conseguia encontrar seus olhos ou se afastava muito cedo ou, pior ainda, segurava apenas um momento por muito tempo, como se tentando guardá-lo na memória para o caso de nunca acontecer de novo. Xander estava sempre lutando, mas Cassi era como a areia daquela praia onde eles se conheceram em seus sonhos, escorregando cada vez mais rápido por entre seus dedos quanto mais ele tentava segurar. Como se ela ouvisse seus pensamentos, ela olhou para ele com curiosidade. Ele apertou os dedos dela, pronto para explicar sua melancolia, mas congelou quando uma explosão de poder surgiu no ar. A corrente elétrica era forte o bastante para arrepiar os pelos de seus braços. Ele e Cassi voltaram o foco para a fenda. — Estamos dentro — disse Brilhante com um sorriso satisfeito. — Dentro? — Xander deu um passo à frente, procurando por uma porta. — Mas eu não… — Não dentro, dentro — a photo’kine revirou os olhos como se ele fosse a pessoa mais irritante do mundo. Xander estava começando a entender como ela e Rafe se tornaram amigos – eles eram as pessoas mais rabugentas que ele conhecia. — Magia viva, não vamos escancará-la para que os dragões possam voar direto por ela. Pelo menos, ainda não. Você é doido? Precisamos de um plano primeiro. Esta noite foi apenas para ver se Solvei pode acessá-la e, aparentemente, ela pode. — Então está aberta? — Bem pequenininha. Seu tom carregava uma corrente de significado oculto que ele não entendia muito bem. Xander estreitou os olhos e estudou o ar acima da casca quebrada. De acordo com Cassi, a magia era tão brilhante que quase o cegava, mas ele não via nada, apenas um espaço vazio cercado por árvores. Espere. Algo piscou. Ele se aproximou. Laranja brilhou, como a mais pura faísca de chama, e então se foi. Era isso? O outro lado? — Precisamos enviar algo — disse ele, ainda maravilhado com a sugestão de brasas. — Uma columba talvez? Podemos amarrar uma mensagem à sua perna. Não há garantia, mas temos que tentar. — Não se preocupe, rei corvo, estamos enviando algo. — O quê? — Uma coruja. Levou um momento para o significado se assentar. A coluna dele endireitou-se ao virar-se para Cassi. O pedido de desculpas já estava escrito em seu rosto. O medo queimou através dele. — Você não pode. — Eu preciso. — Cassi… — Shhh — ela colocou o dedo no lábio dele. — Eu volto logo com notícias de Lyana e Rafe. É a única maneira de termos certeza de que ainda estão vivos. — Mas nós não sabemos... Ela moveu a mão para que a palma cobrisse a boca dele, silenciando-o. Então ela se aproximou, pressionando um beijo suave em sua bochecha antes de sussurrar: — Alguém tem que ser dispensável, Xander. E todos nós sabemos que sou eu. — Você não é Mas ela já havia partido, deixando-o sem outra escolha a não ser segurar seu corpo enquanto caía. A fenda brilhou diante dela e Cassi não olhou para trás. Ela não queria ver a raiva e a decepção no rosto de Xander. Obviamente, ela deveria ter contado a ele. Ela pretendia contar a ele. Mas o tempo deles em seus sonhos sempre parecia tão rápido e fugaz que ela nunca quis desperdiçá-lo discutindo, o que teria acontecido, é claro. Ele teria dito a ela para não ir, ela teria dito que não poderia ficar e, no final, nada teria sido diferente, exceto que eles teriam passado uma semana brigando. Não, assim era mais fácil... para ela, pelo menos. Sem despedidas. Sem hipóteses. Não havia tempo para pensar na enormidade do que ela estava fazendo. Em vez disso, na pressa de escapar do que havia deixado para trás, Cassi esqueceu de temer o que estava por vir. Seu espírito foi catapultado para a fenda. O vórtice a prendeu, o poder agarrando-a com mãos invisíveis e puxando-a para baixo. No entanto, estava mais calmo do que da última vez que ela esteve lá, quando usou a magia para encontrar Solvei – não mais um redemoinho louco, mas sim uma tempestade suave, os ventos fortes, mas breves, nada que ela não pudesse suportar. O poder spatio’kine branco e brilhante pulsava em um túnel ao seu redor. A outra ponta brilhava com o laranja brilhante de um amanhecer iluminado pelo fogo. Em algum lugar daquela porta, seus amigos esperavam. Cassi hesitou. Solvei seria capaz de manter a fenda aberta? Ela seria capaz de voltar? Ou isso era um adeus para seu amor, sua vida e tudo que ela já conheceu? Só havia uma maneira de descobrir. Ela mergulhou adiante. A fenda a cuspiu com a mesma força que usou para engoli-la. Cassi disparou pelo ar, seu espírito caindo em uma brisa invisível, o mundo pouco mais do que faixas borradas de laranja e preto. Por fim, a paisagem se acalmou, embora a visão de céus infinitos de tangerina e campos de ônix pouco ajudasse a acalmar seus nervos. Ela girou. Uma linha fina de luz de marfim puro pairava suspensa no ar. Através dela ela quase podia ouvir o trinado suave de columbas, quase podia ver asas de ônix iridescentes. Lar. A conexão com seu corpo era tênue, mas estava presente, as batidas sutis de seu coração eram uma segurança reconfortante. A fenda ainda estava aberta por enquanto. Um rugido quebrou seu momento de devaneio. Cassi estremeceu. Dragões cobriam o chão. A princípio ela havia sentido falta deles, escamas pretas camufladas contra o terreno acidentado, mas agora eles eram óbvios. O fogo fervia ao longo de suas asas expansivas. Amoreiras feitas de grossas trepadeiras negras ondulavam sobre as rochas, salpicadas com pontos brilhantes de um laranja brilhante. Em qualquer outro momento, Cassi teria parado para explorar. Mas ela estava lá por um único motivo – para encontrar seus amigos. Ana. Cassi elaborou a memória de sua amiga, seu riso fácil, seu coração aberto, sua magia calorosa. A dor e a nostalgia agitaram-se com imagens de sua infância. Elas não estavam no mesmo lugar de antes, mas Lyana ainda era sua melhor amiga e nada mudaria isso. Não uma profecia. Não uma guerra. Nem mesmo a morte. Embora Cassi esperasse, acima de tudo, que não tivesse chegado a isso. Por favor, por favor, esteja viva. Levou um momento para sentir a alma de sua amiga, mas quando ela o fez, o alívio soprou através dela como uma brisa de verão, fresca e calmante. Cassi agarrou o fio e disparou pelo estranho céu alaranjado, deixando a paisagem borrar até o nada enquanto ela corria em direção à sua rainha. Seguindo a conexão, ela mergulhou entre as crateras, então afundou no chão, seu espírito cercado por um preto opaco. Ela viajou cada vez mais fundo, tão fundo que uma pequena partícula de dúvida começou a se instalar. Seu poder nunca a havia falhado antes, mas onde… O ônix recuou repentinamente quando ela entrou em uma extensa caverna subterrânea. A luz do fogo ricocheteava nas paredes escorregadias e brilhantes. Uma poça de água fluindo lentamente refletia brilhos como brasas brilhantes. Lá na borda, adormecidos com os pés enredados nas águas rasas, estavam seu rei e sua rainha. Cassi levou um momento para perceber que não estavam vestidos... e outro momento para controlar sua curiosidade enquanto seu olhar percorria a curva da asa flamejante de Rafe, seguindo-a cada vez mais para baixo, até que a sugestão de suas nádegas nuas provocou um riso abafado. Cassi correu para Lyana e mergulhou em seus sonhos. — Bem, bem, bem. O que temos aqui? — Ela falou lentamente, de pé sobre seus corpos entrelaçados. Lyana abriu lentamente os olhos e ergueu a cabeça, despertada de um sono profundo e tranquilo. Ela piscou para Cassi, confusa por um momento, e então notou o braço fortemente enrolado em sua cintura e gemeu. — Vocês dois parecem aconchegantes — Cassi provocou. — Nos deixe em paz. Cassi bufou, aproximou-se um passo e estendeu a mão para a asa flamejante de Rafe. Visto que era um sonho, as chamas não queimaram sua pele. Enquanto ela levantava o apêndice de couro, ela murmurou: — Eu me pergunto, e se eu apenas... Lyana assumiu o controle do sonho e interrompeu o movimento de Cassi antes que ela tivesse uma boa visão do que estava escondido embaixo. Cassi lançou à amiga um olhar penetrante. — O mínimo que você pode fazer é me deixar dar uma espiada. Você tem ideia de como trabalhamos arduamente para encontrar vocês dois, enquanto vocês estavam, digamos, em lua de mel? — Cassi arqueou as sobrancelhas e disfarçou o riso com uma pequena tosse. — Quero dizer, quase morri encontrando a spatio’kine. Xander está preocupado demais. E Brilhante está brigando com todo mundo, embora eu esteja começando a achar que ela é assim. Ainda… — Cassi! — Lyana exclamou de repente, seu rosto era a imagem do choque. — Você está aqui! Ai, meus deuses, Cassi! Sua rainha ficou de pé, esquecendo que estava nua. Quando ela caiu nos braços de Cassi, a cena havia mudado. Elas estavam de volta ao palácio de cristal, vestindo pijamas de seda enquanto o brilho prateado da luz das estrelas enchia os antigos aposentos de Lyana. — Oh, Cassi, você não tem ideia de como estou aliviada em vê-la. — Provavelmente não tão aliviada como estou por te encontrar viva — rebateu Cassi, afastando-se para encontrar os calorosos olhos verdes da amiga. Ela nunca pensou que Lyana olharia para ela assim novamente, com confiança, amor e emoção, não depois de tudo o que ela havia feito. Parte dela não tinha certeza se merecia. — Sei que estava brincando, mas você e Rafe estão bem? De verdade? — Nós estamos. — Graças aos deuses. — Como você chegou aqui? A fenda está aberta? — Na verdade. Apenas o suficiente para o meu espírito passar despercebido. — Mas como? Cassi suspirou. — Tenho muito para te contar. — Eu também. Então elas conversaram. Cassi contou a Lyana sobre o diário, a caça à spatio’kine e o experimento com a fenda. Ela contou a ela como Xander convenceu a realeza a aceitar a magia e como Da’Kin caiu nas mãos de um ferro’kine desonesto. Ela disse a ela que Solvei estava procurando uma maneira de abrir e selar permanentemente a fenda. Por sua vez, Lyana contou a ela sobre sua chegada a este mundo estrangeiro, os estranhos frutos que a curaram e sua luta com os híbridos. — Vamos atrás deles — concluiu ela. — Eu me recuso a ficar parada por mais tempo. — Bem, você não estava exatamente ociosa — Cassi brincou com um sorriso astuto. Lyana deu um tapa em seu ombro. — Pare. — O quê? — Ela firmou suas feições na imagem da inocência. Lyana bufou. — Você sabe o quê. — O que isso significa? — Isso significa que você e Xander já confessaram seu amor eterno um pelo outro? Ou você ainda está fingindo indiferença? — O quê? — Sua mandíbula quase caiu no chão. Ela sacudiu a surpresa. — Por que você... Como você... — Como posso saber sobre os sentimentos super óbvios que vocês têm um pelo outro? — Lyana sorriu presunçosamente, aproveitando a vantagem. — Apesar do que você pode acreditar, você nem sempre é uma mentirosa tão boa quanto pensa. E Xander definitivamente não é um. Tudo o que ele precisava fazer era dizer seu nome e eu sabia como ele se sentia, mas demorei um pouco mais para perceber que você sentia o mesmo — ela estendeu a mão e a colocou no braço de Cassi. — Eu posso dizer que você está prestes a pedir desculpas, mas você não tem nada para se desculpar. Amo Xander como amigo, assim como amo você, e quero que vocês dois sejam felizes. Eu poderia ter sido sua rainha, mas nunca fomos companheiros, não realmente. — Mas… — Você merece ser feliz — disse Lyana, apertando o braço para dar ênfase. — Eu sei que você não acredita nisso, mas você acredite. Todos nós, Cassi, depois de tudo que passamos. Não tenho tanta certeza de que Rafe concordaria, Cassi pensou silenciosamente, suas ações uma mancha constante em sua alma. Apesar das garantias de Lyana, ela não resistiu à sensação de que essa história não teve um final feliz, pelo menos não para todos, e principalmente para ela. — Ana… Um puxão em sua mão distante roubou as palavras de seus lábios. Cassi congelou e o sonho congelou com ela. Ao longe, ela sentiu dedos ao redor de seus pulsos, arrastando-a pela terra. — O que é? — Lyana perguntou, toda a alegria sumindo de sua voz. — Meu corpo. Algo está... acontecendo. — Vá. Cassi murchou, dividida. A paisagem onírica ondulou. — Mas eu só… — Vá, Cassi. Rafe e eu estaremos aqui esperando quando você voltar. Eu prometo, nos encontraremos novamente. E, quando o fizermos, faremos o que sabemos fazer de melhor: planejar uma aventura. — Você faz parecer que ainda estamos em Sphaira, planejando fugir para a ponte do céu. — Não é mais fácil pensar assim? Como apenas mais um dia? Apenas outro esquema? — Talvez. Lyana suspirou e virou o rosto para a janela, olhando para a lua brilhante visível através dos cristais, uma bela miragem. — Há uma diferença, no entanto. — E qual seria? — Desta vez, estou encontrando um caminho para casa. E, quando o fizer, não tenho certeza se quero deixá-la de novo — seus olhos verdes, muito mais maduros do que os da princesa que outrora residira naqueles elegantes aposentos, encontraram os de Cassi e fixaram-se nela. — Vá. Cassi se moveu. O sonho se dissolveu. Ela poupou um momento para olhar para seus corpos ainda em paz na areia, seu rei e rainha, vivos e bem e prontos para retornar ao seu mundo. Em breve. Eu estarei de volta e você estará em casa. Em breve. Com essa promessa silenciosa, ela puxou a corda de seu corpo e estalou para trás, escorrendo através da rocha, das chamas e do céu, não parando até atingir a fenda. A magia a pegou em sua teia. Em um momento ela voou, e no próximo ela estava presa. O poder era tão inflexível quanto uma parede de pedra. Ela podia ouvir os pássaros no ninho sagrado. Ela quase podia ver o brilho azulado dos cristais. A conexão com seu corpo era forte, mas havia algo mais forte. Uma força oposta a puxava de volta. Não. Não eu, ela percebeu. O meu mundo. Não era a fenda que a estava impedindo. Era algo no ar, no chão, uma maré invisível sugando magia como se por um canudo. O fluxo de poder estava contra ela, como se seu espírito estivesse nadando contra a corrente. As mãos continuaram puxando seu corpo, um peso morto pesado. O que estava acontecendo no ninho sagrado? O que ela estava perdendo? Quanto tempo ela tinha antes que Solvei fechasse a fenda? Vamos. Cassi puxou a corda de seu corpo. Vamos. Centímetro por centímetro, ela se arrastou de volta para seu mundo, rezando para chegar a tempo. — Ei, menino columba. Uma ajudinha, por favor? — Brilhante zombou enquanto puxava inutilmente o braço de Cassi. A garota era pesada e o corvo quase não ajudava em nada. Ele estava muito preocupado em machucar a dormi’kine para se mover com a velocidade necessária. Luka se aproximou e pegou Cassi nos braços com um grunhido. Dois segundos depois, ela estava escondida em segurança atrás de um arbusto. Não poderia ter feito isso cinco minutos atrás? Brilhante resmungou silenciosamente enquanto esfregava seus bíceps tensos. Com um aceno de cabeça, ela se virou e fez sinal para Solvei. A spatio’kine assentiu, suas mãos muito envolvidas em sua magia para formular uma resposta. Brilhante não precisava disso, de qualquer maneira. Ela aprendera a lê-la no tempo que passaram juntas no navio, horas amontoadas no convés, falando sobre a fenda e a vida, inventando sua própria linguagem. Nem todos os sinais que ela aprendera nas ruas de Da’Kin se sobrepunham aos usados por Solvei, mas fora um começo, uma base sobre a qual construíram meticulosamente. Não que Brilhante realmente se importasse – ela conseguia pensar em maneiras muito piores de passar o tempo do que na companhia de uma mulher bonita. Mas Solvei era mais do que isso, ela percebeu – gentil apesar das cartas que a vida lhe deu e dura por causa delas. A dureza, Brilhante entendeu. A gentileza a deixou maravilhada. — Ela está quase chegando — Luka sibilou. — Escondam-se Xander agarrou o pulso de Brilhante antes que ela pudesse se afastar. — Não se atreva a deixar Cassi para trás. — Ou o quê? — Ela estalou. O corvo franziu a testa. Ele não era um lutador – ela sabia disso por suas conversas com Rafe. Ele não tinha nada com que ameaçá-la. — Foi o que eu pensei — ela bufou e soltou o braço. O homem parecia cabisbaixo. Um pequeno nervo equivocado em seu coração doeu. Oh, pelo bem da magia. Ela revirou os olhos. — Se eu quisesse deixar Cassi para trás, já teríamos ido. A melhor coisa que você pode fazer por ela agora é ficar fora do nosso caminho. Com isso, Brilhante se virou e colocou a mão na parte inferior das costas de Solvei para guiá-la para trás do arbusto. A spatio’kine estava imersa em sua magia e apenas metade deste mundo, o que tornava sua confiança ainda mais clara. Ela não lutou quando Brilhante gentilmente empurrou seus ombros até que ambas se agacharam sobre o corpo imóvel de Cassi. — Se acontecer alguma coisa, fique aqui. Deixe-me cuidar disso — sinalizou Brilhante. — Você apenas se concentra na fenda. Solvei assentiu. O farfalhar suave das folhas deslocadas desviou o foco de Brilhante da maga. Uma sacerdotisa se aproximou, o olhar em seu rosto sereno. Em suas longas túnicas esvoaçantes, ela parecia flutuar pela floresta, graciosa e piedosa, se alguém acreditasse nessas coisas – o que, felizmente, Brilhante não acreditava. Nenhuma reverência encheu seu peito. Não a deixava impressionada. Em vez disso, um sentimento ruim formigou em sua espinha. Ela saltou na ponta dos pés, mantendo os dedos soltos, pronta para qualquer coisa. A sacerdotisa era uma maga espiritual de baixo nível, como todos os avians escolhidos. Todos no exército de Malek sabiam disso – era uma fonte de escárnio. Os avians são tolos. Olhe para eles. Eles executam magos, mesmo quando os adoram. Era assim que as pedras divinas funcionavam há tanto tempo. Os sacerdotes e sacerdotisas canalizavam a magia aethi’kine. Mas a maioria dos magos espirituais de baixo nível não tinha poder próprio – um forte senso de simpatia, talvez alguma clarividência leve – e apenas cerca de metade deles eram fortes o suficiente para realmente ver a magia no ar ao seu redor. Essa sacerdotisa poderia ver a fenda? Ela podia sentir seu poder? Brilhante engoliu em seco, molhando a garganta seca quando a mulher parou ao lado de Luka. Ele e Xander haviam retomado suas orações, seus corpos curvados, suas testas contra o chão. — Meu príncipe — a sacerdotisa disse, sua voz calmante. — Aethios responde às suas orações. Eu posso sentir sua presença ao nosso redor. Você o agradou muito ao vir aqui. Na verdade, ela estava sentindo a magia de fenda de Solvei, mas Brilhante não iria corrigi-la. — Posso oferecer alguma ajuda… A fenda ondulava e a magia de Solvei pulsava brilhantemente no ar em resposta. A sacerdotisa engasgou, seguindo o súbito arco de poder. Seu olhar caiu para o arbusto onde elas se esconderam, e sua mão desapareceu dentro das dobras de seu manto, sem dúvida buscando uma arma. Magia viva! Brilhante atacou. A magia photo’kine irrompeu de sua palma e temporariamente cegou a mulher. Em um piscar de olhos, ela envolveu o pescoço da sacerdotisa com o braço e apertou os dedos ao redor do ponto onde o pescoço encontrava o ombro. Cinco segundos depois, a mulher caiu como um saco de batatas no chão. Era um truque bacana que Brilhante aprendera há muito tempo, antes que sua magia se manifestasse. Ser uma garotinha sozinha nas ruas de Da’Kin a tornara engenhosa, para dizer o mínimo. — O que você está fazendo? — Luka disparou. Brilhante o ignorou e rasgou uma tira de tecido da bainha do roupão, usando-a para amarrar as mãos da mulher. — O que… Dedos musculosos pousaram em seu ombro e Brilhante girou para fora de seu aperto. Ela se abaixou sob sua asa, roubou uma adaga de seu cinto e saltou no ar. Quando ele reagiu, ela já estava agarrada a ele como se ele fosse uma árvore com a lâmina pressionada contra sua garganta. — A sacerdotisa viu a magia de Solvei. Eu não tive escolha. Ela teria nos descoberto de qualquer maneira, mas pelo menos assim ela não saberá de seu envolvimento. Em alguns minutos ela estará acordada, então sugiro que você me escute se quiser que todos nesta cidade pensem que você é o bom menino que finge ser. Seu corpo rígido afrouxou. — Excelente escolha. Brilhante deixou cair os pés no chão e deu um passo para trás, mantendo a adaga na mão. Ela rasgou outra tira de tecido e fez sinal para Luka se virar. Ele suspirou, mas manteve as mãos atrás das costas para deixá-la amarrá-las. O corvo fez o mesmo. Então ela deu um passo para trás, uma carranca no rosto. — Não é o suficiente — murmurou Xander, compreendendo o olhar dela. Ela cruzou os braços. — Não, acho que não. — Precisamos parecer que estivemos em uma luta. Brilhante assentiu. — Bem, você roubou minha adaga, você também pode fazer um bom uso dela — disse Luka. — Não é minha primeira cicatriz e não será a última. Corte- me no peito. O rasgo na minha camisa. O sangue. Isso vai ajudar. Apenas certifique-se de que não seja muito profundo. Ela cortou antes que ele tivesse tempo de se arrepender. A columba sibilou, mas permaneceu quieta enquanto uma mancha vermelha floresceu em sua camisa, espalhando-se horrivelmente sobre o tecido. Brilhante ainda não estava convencida. Antes que ele pudesse reagir, ela pegou a ponta cega da lâmina e a cravou em sua têmpora. Luka caiu inconsciente. — Isso deve bastar — ela murmurou, virando-se para Xander. O corvo apertou a mandíbula, esperando resolutamente pelo ataque dela. A partícula resultante de admiração que floresceu em seu coração a irritou sem fim. Ela puxou o punho para trás e... — Brilhante! Dedos envolveram seu braço e torceram com força suficiente para colocá- la de bunda. Então a coruja estava sobre ela, prendendo seus braços na terra e montando em seu peito para segurá-la. — Que diabos você está fazendo? — Cassi exigiu, veneno em sua voz. Brilhante ofereceu a ela um sorriso selvagem. — Que bom que você se juntou a nós. — O. Que. Você. Está. Fazendo? — Dando a eles um álibi. A menos que você queira que todos nesta maldita cidade saibam que eles nos ajudaram a entrar aqui. Nesse caso, por favor, me interrompa. — Esse não era o plano — Cassi sorriu com desdém ao escorregar do peito de Brilhante. De sua parte, Brilhante rolou suavemente para ficar de pé, perplexa. — Oh, você preferiria que Solvei tivesse fechado a fenda, deixando seu espírito alto e seco com os dragões? — Não, mas... — Cassi parou de falar, incerta. — Você deveria ter voltado para o navio. — Para enfrentar a ira da capitã? — Brilhante bufou. — Foi um plano estúpido. Eu improvisei. — Atacando meus amigos? — O olhar de Cassi pousou na columba. Ela notou o sangue em seu peito pela primeira vez e caiu de joelhos ao lado dele. — Luka! — É um corte raso — Brilhante suspirou, depois estremeceu. — O ferimento na cabeça, no entanto... Isso pode levar alguns dias para cicatrizar. Com as narinas dilatadas, Cassi olhou por cima do ombro, com uma expressão feroz nos olhos. Brilhante se preparou. Mas antes que a coruja pudesse atacar, o corvo interveio. — Ela agiu certo — disse ele. — E precisamos terminar isso antes que a sacerdotisa acorde. Não temos muito tempo. — Xander... Ele silenciou Cassi com um olhar, depois virou-se para Brilhante. — Faça. Não precisa me dizer duas vezes. Brilhante deu um soco no rosto dele. — Ai! — Sua cabeça virou para o lado. — Relaxe. Eu não quebrei nada. Ele olhou para ela. — Mas você vai ficar com um baita hematoma — ela não conseguiu evitar que seus lábios se contraíssem com um sorriso. — Eu acho que você gostou demais disso — ele resmungou. Você está certo. Esse soco foi pelos dias que ela passou trancada no escuro. Foi pelas semanas que Rafe passou preocupado que seu irmão nunca iria perdoá-lo, se perguntando por que ele não tinha vindo buscá-lo. Foi para cada membro da tripulação que arriscou suas vidas protegendo esta cidade dos dragões, apenas para ter os avians cuspindo em seus rostos. Foi por uma vida inteira sobrevivendo na névoa, lutando silenciosamente em uma guerra enquanto o mundo acima vivia em uma feliz ignorância. Claro. O corvo não era pessoalmente responsável por esses dois últimos, mas era um dos reis das aves e, naquele momento, representava todos eles. — Ajuda! O grito rasgou o ninho sagrado, trazendo Brilhante de volta à realidade. A sua magia derramou-se sem pensar duas vezes, cegando a sacerdotisa enquanto ela agarrava Cassi pelo cotovelo. — Hora de ir. Mas elas não podiam. Solvei ainda estava no meio da fenda, deixando- os sem uma estratégia de saída. Brilhante e Cassi fizeram contato visual enquanto a sacerdotisa gritava novamente. Pela primeira vez, realmente parecia que elas estavam no mesmo time. Cassi se jogou para o lado e enfiou um pedaço solto de tecido na boca da mulher, enquanto Brilhante deslizava a espada da cintura de Luka. Ele ainda estava nocauteado, e um pequeno nó de preocupação atravessou seu interior. Por favor, fique bem. Ela poderia ser uma idiota, ela sabia, mas danos permanentes nunca foram sua intenção. Vozes passaram pelas árvores. Brilhante jogou a adaga para Cassi e ergueu a espada. Magia viva, a maldita coisa era pesada. Como no mundo Rafe balançava duas delas ao mesmo tempo? Meia dúzia de figuras vestidas emergiram do bosque sombrio, observando a cena de seu príncipe ensanguentado, sua sacerdotisa amarrada e o rei ferido. Um assobio soou. As columbas no ninho sagrado trinavam, como se alertadas pelo chamado. Asas bateram. Folhas farfalharam. À distância, a batida constante de botas soava, guardas treinados respondendo a uma convocação. Brilhante e Cassi se aproximaram, criando uma parede diante da spatio’kine. Ela não iria embora sem estabilizar a fenda, e não havia como saber quanto tempo isso levaria. — Feche os olhos — murmurou Brilhante para Cassi. Então sua magia explodiu. O ninho se encheu de uma luz branca pura, brilhante e ardente. Todos se encolheram e ergueram os braços até os olhos – todos menos ela. Brilhante podia ver claramente através do brilho. Ela sabia quando os guardas chegaram, os via se atrapalhando para se aproximar. Seus dedos apertaram a lâmina. Ela acabaria com eles um por um, se necessário, qualquer coisa para manter Solvei segura e as chances de Rafe vivas. Ela ergueu o pé para atacar. Alguém puxou sua camisa. Brilhante cambaleou para trás ao lado de Cassi e caiu em pranchas de madeira familiares enquanto o cheiro do mar invadia seu nariz. Houve um breve grito seguido de silêncio. Ela controlou sua magia e rolou de joelhos, encontrando os olhos de Solvei. — Em boa hora — ela sinalizou. Solvei sorriu. — A fenda está fechada? — Tão fechada quanto antes. Não havia mais nada que eu pudesse fazer. Preciso de mais tempo para estudá-la. Há algo sobre o outro mundo, alguma força impedindo que minha magia tome conta completamente. Brilhante assentiu. O objetivo dessa pequena aventura nunca foi selar a fenda, de qualquer maneira. Foi para… Ela virou a cabeça para o lado. — Eles estão vivos? — Sim. As bochechas de Cassi começaram a se alargar, mas antes que se transformassem em um sorriso, a visão de Brilhante ficou turva e seu mundo ficou distorcido. Por um momento, o medo tomou conta. Que tipo de magia era essa? Então ela percebeu que não era magia. Eram lágrimas. Suas lágrimas. O alívio a inundou, tão potente que tinha que escapar de alguma forma, e estava explodindo de seus olhos em um fluxo embaraçoso que ela não sabia como parar. Rafe estava vivo. Ele está vivo. — Eu tenho que dizer a Xander — Cassi exclamou antes de cair no chão. Brilhante baixou a cabeça, tentando enxugar sutilmente o rosto na camisa antes que Solvei pudesse ver. Ela não sabia por que estava tentando se esconder. Solvei entenderia. Ela sabia que sim. Era apenas... a enxurrada de emoções deixava Brilhante exposta. Sua fraqueza estava em exibição. O exterior resistente que ela tentou tanto construir foi subitamente destruído, deixando-a dolorida e vulnerável, e ela não sabia como se comportar sem isso, especialmente na frente de alguém que ela começou a... começou a... Uma mão pousou suavemente em seu braço. Brilhante enrijeceu. Dedos quentes apertaram tranquilizadoramente. Se fosse qualquer outra pessoa, Brilhante teria ignorado o toque e murmurado algo sarcástico antes de fugir rapidamente. Mas ela não poderia fazer isso com Solvei. Ou ela a deixaria confusa e preocupada, ou encontraria forças para encará-la e explicar. Muito lentamente, Brilhante ergueu o queixo. O profundo tom de mel dos olhos de Solvei a deslumbrou, fazendo-a esquecer seus medos. Uma sensação de calma tomou conta de Brilhante, como se ela estivesse descansando no centro pacífico de uma grande tempestade. Ela não sabia o que significava, apenas que parecia certo. As sobrancelhas de Solvei se juntaram em preocupação enquanto suas mãos corriam pelo ar. — Você está bem? O que está errado? — Nada. Estou bem. Ela riu, liberando sua tensão, e Solvei riu com ela, a conexão entre elas era palpável. Quando elas sorriam uma para a outra, o próprio ar parecia sorrir também, borbulhando com uma energia que Brilhante não conseguia explicar, efervescente como aquele néctar de beija-flor sobre o qual Rafe a advertira em seu tempo na Casa da Paz. Os estalos sutis explodiram contra sua pele, fazendo-a formigar. Recomponha-se, ela repreendeu silenciosamente e balançou a cabeça. — Meu amigo. Ele está vivo. Cassi o encontrou. Ele está bem. — Bom — uma carranca passou pelo rosto de Solvei, em desacordo com o sentimento, mas foi rapidamente substituída por um olhar sério e determinado. — Não se preocupe. Encontrarei uma maneira de controlar a fenda, prometo. Vou trazê-lo de volta para você. — Eu sei que você vai. — Seu amor vai voltar. Brilhante deixou cair o rosto para o lado. Meu amor? Então seus olhos se arregalaram. Um latido escapou de seus lábios e, antes que ela percebesse, ela desabou contra as tábuas de madeira enquanto um fluxo constante de risadas escandalosas rugia do fundo de suas entranhas. Ela agarrou a barriga quando começou a doer. As gargalhadas continuaram. Era um alívio que Solvei não pudesse ouvir, porque ela tinha certeza de que parecia perturbada. Mas apenas a ideia dela e Rafe... que os dois... que eles... Oh, magia viva. Brilhante congelou quando um súbito terror assumiu o controle. É isso que ela pensa? Que Rafe é meu... Que ele é... Brilhante rapidamente rolou de volta para uma posição sentada, com o coração na garganta enquanto suas mãos agitavam o ar. — Ele não é meu amor. Ele é um amigo. Só um amigo. — Um amigo? Talvez ela não conheça esse sinal? Talvez eu esteja fazendo errado? Os pensamentos de Brilhante correram a mil por hora enquanto ela se apressava em esclarecer. — Sim, um amigo. Ele não é meu tipo. Ele é grosseiro e mal-humorado e tão rabugento o tempo todo. Mais ou menos como eu, eu acho. Mas ele também tem muitos músculos para o seu próprio bem. Eu prefiro alguém mais suave. Mais gentil. Mais gracioso. Alguém... Alguém... Brilhante fez uma pausa. Por que estou tremendo? Ela pensou, percebendo que suas mãos tremiam. Seus nervos dispararam, deixando-a quente e desconfortável. A parte de trás de seu pescoço formigou. O sangue latejava em seus ouvidos. Ela estava suando? O que há de errado com… Ah, não. A verdade a atingiu como um tapa na cara, um que ela deveria ter previsto. A maneira como sua respiração engatava sempre que Solvei entrava em um cômodo. A maneira como seus olhos sempre encontravam a maga. A maneira como o ar parecia carregado sempre que elas estavam próximas. A maneira como sua pele queimava após o menor toque. Pelo bem da magia. Eu tenho uma queda por ela. Eu tenho uma queda pela escolhida. Estou me apaixonando pela salvadora do mundo. Solvei a observou pacientemente, inconsciente de seu ataque de pânico iminente, e perguntou: — Alguém? Brilhante engoliu em seco contra o aperto em sua garganta e fechou os dedos em punhos. Então, em um momento de completa loucura ou bravura inimaginável, ela respondeu. — Alguém como você. Uma bomba detonou. Por um momento, Brilhante pensou que era seu coração, explodindo em mil pedacinhos indignos, porque ela claramente havia enlouquecido. Então ela ouviu botas batendo e vozes gritando. Uma onda de magia no ar trouxe um formigamento em sua pele. Ela olhou para fora para ver o fogo mágico correr pelo céu e percebeu que era um navio. Eles estavam sob ataque. — Eu tenho que ir — ela sinalizou, já pulando de pé. Ao chegar à porta, ela ousou dar uma espiada por cima do ombro, quase com medo do que encontraria. Um rubor se espalhou pelas bochechas sardentas de Solvei, intensificando-se ligeiramente quando seus olhares se encontraram. Nos cantos de seus olhos, pequenas faíscas misteriosas dançavam, fazendo o peito de Brilhante arder. Seu coração pulou uma batida. Talvez eu não seja tão louca, afinal. — Brilhante, todos no convés! — Arqueiro chamou de cima. — É um dos navios de Tanos novamente. — Estou chegando! — Ela gritou de volta, incapaz de afastar aquela luz nos olhos da maga. Mas não havia tempo para decifrá-lo agora. Com um gemido, ela ergueu as mãos. — Eu tenho que ir. Você estará segura aqui com Cassi. Voltarei assim que puder. Solvei puxou o lábio inferior carnudo entre os dentes de uma forma que fez o estômago de Brilhante se contrair e assentiu. — Tome cuidado. Ah, vou tomar, pensou Brilhante enquanto se forçava a entrar no corredor e subir as escadas. Eu me recuso a morrer até descobrir o que significa exatamente esse olhar em seus olhos. Outro feixe de energia atingiu o navio, forçando-a para o lado. Brilhante encostou a palma da mão na parede para manter o equilíbrio e abriu a porta com um chute. Um redemoinho mágico esperava no convés. Com um sorriso selvagem, ela trouxe seu poder para a superfície e entrou na luta. Uma pulsação constante irradiava do nariz de Xander. Cada passo provocava um estremecimento. Cada estremecimento provocava um arrepio. Cada arrepio aprofundava a dor latejando atrás de seus olhos. E o ciclo se repetia. Os curandeiros colocaram algumas bandagens em volta de seu rosto, uma demonstração pela qual ele tinha certeza de que Cassi iria provocá-lo impiedosamente se visse, mas isso pouco ajudou a aliviar a dor. Assim, ao entrar em seus aposentos, pegou uma página do livro de Damien e bebeu duas doses de néctar de beija-flor – não do tipo vendido aqui em Sphaira, mas do forte que o próprio príncipe lhe dera. Então ele desabou em sua cama. O céu havia se tornado índigo com a chegada do amanhecer, e normalmente Xander teria forçado o sono de seus olhos, mas em vez disso ele tentou acalmar sua mente. A conversa que ele teve com o rei Lionus sobre o corpo inconsciente de Luka passou por seus pensamentos. O rei das columbas não acreditou na desculpa esfarrapada de Xander sobre o motivo de terem ido ao ninho sagrado no meio da noite. Ele sem dúvida questionaria seu filho no momento em que Luka acordasse. Xander provavelmente deveria ter esperado na enfermaria para interceptar, mas ele mesmo precisava de algumas respostas, e só as encontraria em seus sonhos. Durma, ele ordenou enquanto fechava os olhos e cuidadosamente ignorou a dor latejante. Durma. Durma. Durma. Durma. Dur… — Eles estão vivos. — Eles estão vivos? As palavras saíram de sua boca antes que a cena se completasse. Um sorriso deslumbrante iluminou o rosto de Cassi. Ela agarrou seus braços, praticamente quicando na ponta dos pés. Atrás dela não havia nada além de céu azul, água turquesa e luz do sol brilhante. A areia esmagava sob seus pés e as ondas rolavam em seus ouvidos. Eles estavam na praia deles. — Rafe e Lyana estão vivos, Xander. Eu os vi. Eles estão seguros. Ele sentiu seus lábios se abrirem quando o alívio o invadiu. Uma respiração assombrada escapou. — Eles estão vivos. — E isso não é tudo. Ele inclinou a cabeça interrogativamente. — Eles sabem sobre nós. Um milhão de pensamentos passaram por sua cabeça ao mesmo tempo, enviando seu corpo para um bloqueio, cada músculo rígido enquanto sua mente girava. Será que ela mudou de ideia? Ela via um futuro com ele? Ela estava pronta para ser sua rainha? Xander lambeu os lábios, tentando agir casualmente, mesmo quando estava prestes a explodir. — Você... contou a eles? — Não — disse Cassi com um risinho, alheio ao modo como aquela única palavra esvaziou toda a esperança crescente dentro dele. — Lyana meio que me contou. — Lyana. — Sim. Eu estava brincando com ela sobre Rafe, vamos apenas dizer que quando os encontrei, eles estavam em uma posição comprometedora. De qualquer forma, eu estava brincando com ela e, de maneira típica, ela deu o melhor que pôde. Mas ela disse que merecíamos ser felizes. Que ela queria que fôssemos felizes. Isso não é... não sei. Algo? — É alguma coisa — ele murmurou baixinho. Cassi franziu a sobrancelha. — Eu pensei que você ficaria feliz? — Eu sou. Eu só… — Ele caiu na areia, aterrissando com força antes de apoiar os cotovelos nos joelhos. As ondas batiam em seus pés, a água encharcando suas calças. Ele olhou para o horizonte distante onde as nuvens de tempestade se reuniam, manchas escuras bloqueando o sol dourado. Cassi estava chateada. Ou era sua mente trovejando? Ela se sentou ao lado dele e descansou a cabeça em seu ombro antes de sussurrar: — Você o quê? — Eu gostaria que tivesse sido você. — Eu? — Eu gostaria que você tivesse contado a Lyana. — Ah — um momento de silêncio se passou. — Por quê? — Porque, Cassi, isso significaria... — Ele se interrompeu e riu sombriamente, o som mudando para um suspiro profundo depois de um momento. Para alguém normalmente tão inteligente, ela estava agindo de forma obtusa. Mas ele não queria dizer essas palavras com raiva, então suavizou o tom, baixando a guarda para deixá-la entrar. — Isso significaria que você via um futuro para nós, que vê um futuro para nós, como eu. Ela ergueu a cabeça do ombro dele e olhou para ele. — Eu vejo. — Você vê? — Ele manteve seu olhar no oceano ondulante. — Porque parece que no momento em que chegamos a Sphaira, você começou a se afastar de mim, talvez não fisicamente, mas emocionalmente. E todos os dias desde então é como se você estivesse esperando. — Pelo quê? — Um adeus inevitável. — Xander. — O quê? — Olhe para mim — ele olhou, instantaneamente acalmado pela visão daqueles orbes prateados. No alto, o sol escureceu e o céu se transformou em um manto de estrelas. Seus olhos brilhavam como a lua, atraindo-o para mais perto. — Eu não estou esperando por um adeus. Não quero me despedir de você, não tenho certeza se sobreviveria a isso. Mas eu também não sou construída como você. Não consigo me lembrar de uma época em minha vida em que não tenha me preparado para o inevitável, me preparando para um coração partido, me preparando para a dor que sabia que viria. Já te disse que tive uma queda por Malek? Foi estúpido. Uma fantasia de menina. Mas eu sabia que ele sempre foi feito para Lyana. E Lyana? Passei toda a nossa amizade esperando pelo dia em que teria que revelar minhas mentiras, esperando que ela me odiasse. E Rafe? Antes mesmo de falar com ele, eu estava me preparando para cortar suas asas. Eu nasci no mundo abaixo, nasci sabendo que uma guerra era iminente e poderia levar todos que eu amava. Não sei viver de jeito nenhum senão com o coração guardado. Não quero ser assim, não com você, mas você é um rei, Xander. E eu sou uma traidora. Não sei ver um futuro além disso. — Tente. — Mostre-me como. Ele pensava que podia. Ele a pintou como sua rainha. Ele deu a ela uma coroa de suas penas. Ele mostrou a ela o futuro que ele imaginou. Mas talvez não fosse para mostrar a ela o que ele queria. Talvez fosse para mostrar a ela como querer essas coisas para si mesma. — Você sabe como me sinto, Cassi. Você sabe como se sente. E, no entanto, quando você olha para frente, algo a impede de abraçar esses sentimentos, de confiar neles. Por que? O que está prendendo você? Do que você tem medo? — Eu não sei… — Ela mordeu o lábio quando sua voz sumiu e seu foco voltou para dentro de si. As palavras saíram lentas, hesitantes e inseguras. — Acho que tenho medo de que, quando essa coisa entre nós sair de nossos sonhos e entrar no mundo real, todos eles vejam o que você não vê, e eles nunca vão me aceitar. Uma traidora. Uma espiã. Alguém indigna de seu amado rei. — Você está falando sobre os corvos? — Sim. — Deixe-me falar sobre o meu povo, então. Eles perderam suas casas. Eles perderam suas posses. Eles perderam muito e, embora sofram, não se desesperam. Taetanos é nosso deus patrono. Crescemos sabendo que nada neste mundo é mais importante do que as coisas intangíveis que carregamos conosco quando o deixamos. Fé. Amor. O dinheiro não viajará com você para o reino espiritual. Nem joias. Nem roupas. Tudo o que temos na vida são os laços que fazemos uns com os outros. Eu sei disso. Meu povo sabe disso. E então se eu disser que estou feliz, se eu disser que vocês são minha família, se eu disser que amo vocês, eles vão amar vocês também, porque saberão que não é algo que eu declararia em vão. — Mas Lyana... — Não é a rainha deles. E eles vão entender isso estando você ao meu lado ou não. — Mas você… — Sou apenas um homem. — Não, Xander — ela murmurou tristemente. — Você não é apenas um homem. Você é um rei. E aí está o problema. Ela não precisava dizer isso. Ele entendeu a implicação. — Acho que você superestima enormemente minha importância. Cassi bufou. — Estou falando sério — ele a cutucou com o ombro. — Você quer ouvir sobre uma conversa que tive hoje cedo? A mudança repentina claramente despertou seu interesse. — Um corvo veio até mim, a mãe de uma menina de duas semanas. Ela queria saber se sua filha algum dia ganharia suas asas. — A curiosidade que iluminava os olhos de Cassi desapareceu rapidamente na escuridão. Xander continuou. — Eu não sabia o que dizer a ela. As pedras divinas se foram e a magia dentro delas foi destruída. Lyana está presa em outro mundo, e a esperança de toda a nossa civilização está presa a ela. Existe outro aethi’kine por aí que pode realizar magia? Não sei. Será que Lyana voltará para casa? Não sei. Todo o nosso modo de vida acabou, simples assim? Não sei. Essas são as questões com as quais lidamos diariamente, Cassi. Você, eu, os corvos, todos em todas as casas. Você realmente acha que eles se importam com quem é minha companheira? Suas sobrancelhas formaram um nó. — Mas… — Se vencermos esta guerra, Cassi, se trouxermos Lyana para casa, se trouxermos a esperança de volta ao nosso povo, se acabarmos com isso de uma vez por todas, nada mais importará. Eu prometo. Se quando tudo isso acabar eu for capaz de dar um novo lar aos corvos, dar asas aos seus filhos, dar-lhes um modo de vida, eles não vão se importar com quem eu escolho amar. Taetanos me ajude, eles provavelmente não se importariam se eu decidisse passar o resto da minha vida chapado de néctar de beija-flor, andando nu por aí, cantando canções como um comerciante bêbado. Eles provavelmente estariam muito perdidos em sua própria alegria para notar. Uma risada relutante escapou de seus lábios. — Sinto-me honrada por ser a melhor escolha. — Você é a única escolha — ele pressionou a palma da mão em sua bochecha e deslizou os dedos por seu cabelo até que ele agarrou a parte de trás de sua cabeça, forçando-a a continuar segurando seu olhar. Ela se inclinou em seu toque. — Você é muito mais do que pensa que é, Cassi. Eu gostaria que você pudesse ver isso. Essa era a verdade do que a detinha. Não preocupações ou medos sobre como os outros reagiriam, mas uma crença enterrada no fundo de seu coração de que ela não merecia ser feliz. Se ele queria ajudá-la a ver o futuro que ele imaginou para eles, primeiro ele tinha que ter certeza de que ela sabia que era digna de tudo. Ele daria a ela o mundo inteiro se pudesse, mas esperava que ela se contentasse com algo muito mais simples. Seu coração. — Você é esperta, Cassi — disse ele enquanto passava o polegar sobre o lábio inferior dela, observando o fogo em seus olhos acender. Xander sorriu. — Quase tão inteligente quanto eu. Ela revirou os olhos. — E você é linda — ele sussurrou, desta vez se inclinando mais perto, então seus lábios roçaram a orelha dela enquanto ele falava. Pequenos inchaços se espalharam pela lateral de seu pescoço enquanto um arrepio percorria sua pele. — Tão linda que às vezes me dói olhar para você, porque tudo que consigo pensar é em tocar em você. Ele arrastou seus dedos por sua garganta e sobre seu ombro, então ao longo de seu braço até encontrar sua mão. O calor se espalhou do corpo dela para o dele. Ela se inclinou mais perto. — Você é forte, não apenas fisicamente, o que você é, mas mentalmente. Poucas pessoas poderiam ter sobrevivido à vida que você levou e às decisões que teve que tomar. Ele pressionou seu peito contra o dela, então eles caíram contra a areia e ele segurou seus braços acima de sua cabeça, prendendo-a. Sua respiração engatou, o som fazendo seu sangue palpitar. — Você é incrivelmente sexy. Ele pressionou um beijo na parte inferior de sua mandíbula, depois outro, movendo-se cada vez mais baixo enquanto falava. As roupas entre eles começaram a desbotar lentamente quando Cassi arqueou as costas ao seu toque. — Você é habilidosa com uma lâmina, e ainda mais com as palavras. Você lê as pessoas melhor do que qualquer um que eu conheço. Você defende seus entes queridos. Você defende o que acredita. Você é criativa, contadora de histórias e arquiteta de tantos belos sonhos, mas não tem medo de ser o pior pesadelo de alguém quando a situação merece. E, acima de tudo, você passou toda a sua vida… não, você sacrificou toda a sua vida, tentando salvar o mundo. Você tem tudo para ser uma rainha incrível. Ele se afastou para encontrar seus olhos, cobertos de paixão. Dúvida ainda puxava sua expressão. Xander jurou queimar tudo. — Você é boa, Cassi. Ela virou o rosto para o lado. Ele o virou para ele e tocou sua testa na dela, deixando-a sem espaço para correr. — Você é boa. Uma lágrima escorregou por sua bochecha. Antes que ele pudesse enxugá-la, Cassi enfiou as mãos em seu cabelo e diminuiu a distância entre eles. Ela envolveu as pernas ao redor de seus quadris, trazendo seus corpos para ficarem nivelados, desta vez deixando-o sem opção de retirada. A mensagem era clara: o tempo de conversar havia acabado. Ele não sabia se suas palavras ressoavam, então ele continuou a conversa, usando seus lábios em vez de sua voz, seu corpo em vez de sua mente. Ele canalizou sua esperança, sua fé e seu amor em cada toque, rezando para que, se a adorasse o suficiente, ela pudesse finalmente acreditar nele. Dedos percorriam o peito de Rafe, descendo pelo esterno e sobre o abdômen, despertando-o. Quando ele abriu os olhos, seu sangue estava fervendo. Lyana riu baixinho, sua respiração quente contra a pele dele. — Você está brilhando. Ele deixou cair o rosto para o lado, arqueando uma sobrancelha. — E você está brincando com fogo. — Eu sei. Um brilho perverso iluminou seus olhos esmeralda, mas ela pressionou um beijo casto em seu ombro, então se apoiou em seu cotovelo para olhá-lo. — Eu tenho notícias. — Notícias? — Cassi visitou meus sonhos. — O quê? Ele se levantou do chão, mas ela antecipou sua reação e colocou a palma da mão em seu peito para mantê-lo no lugar. Então ela cruzou as mãos sobre o coração dele e descansou o queixo por cima, usando o corpo dele como travesseiro. — É melhor ficarmos à vontade, porque há muito para lhe contar. — Responda primeiro, por favor. Xander está bem? Ela sorriu calorosamente, como se a pergunta dele só a tivesse feito amá- lo mais. — Vivo e bem. Um nó que ele estava segurando desde que Da’Kin se desfez. A última vez que ele ouviu falar de seu irmão, Xander estava preso em Rynthos enquanto a Casa dos Sábios caiu no mar. Lyana assegurou-lhe que havia estabilizado a ilha antes que ela afundasse, mas com aquela rocha porosa e a cidade subterrânea, ele não tinha certeza. Quando ele acordou ao lado do corpo de Malek, pronto para seguir sua rainha até Sphaira e acabar com os dragões de uma vez por todas, ele fez uma promessa. Por favor, Cassi, vá até ele. Certifique-se de que ele está bem. Faça isso por mim, e tudo entre nós estará resolvido. Salve-o e nada mais importa. A coruja cumpriu sua parte no acordo. Agora, ele supôs, era sua vez. — E Cassi? — Rafe praticamente engasgou com as palavras. Lyana torceu o nariz. — E Cassi? — Ela está... bem? — É engraçado você perguntar, porque há algo que eu queria falar com você. Um buraco se formou em seu estômago. — O quê? — Você quer que Xander seja feliz, certo? O poço se transformou em um desfiladeiro. Ele estreitou os olhos. — Por que? — Você quer. Eu sei que você quer. E, bem, Cassi o faz feliz. — Cassi — o nome dela saiu secamente de seus lábios, nenhum indício de emoção no som. A confissão de Lyana o levou ao limite e agora ele estava caindo, incerto sobre subir ou descer, o mundo passando por ele em um borrão. — Sim, Cassi. E, se você pensar sobre isso, faz muito sentido. Ambos têm constantemente suas cabeças enterradas em livros. E, embora tenham feito isso de maneira um pouco diferente, ambos passaram a vida inteira tentando tornar o mundo um lugar melhor. — Um pouco diferente? — Ele engasgou. Era o eufemismo do século. Cassi cortou suas asas e mentiu para Lyana por toda a vida. Xander era a pessoa mais honesta e nobre que ele conhecia. — E eles se equilibram — ela divagou, ignorando o comentário dele. — Cassi precisa de alguém gentil e compreensivo. Xander precisa de alguém um pouco mais áspero nas bordas. Eles funcionam juntos. E, mais importante, eles estão completamente apaixonados um pelo outro. Portanto, mesmo que não concordássemos com o relacionamento deles, não há nada que possamos fazer agora. Eles se escolheram, e se os queremos em nossas vidas, o que eu sei que você quer, não temos escolha a não ser aceitá-los. Da maneira como eles nos aceitaram. Ela terminou suavemente e puxou o lábio inferior entre os dentes. Rafe baixou a cabeça contra a areia e olhou para o teto da caverna. Chamas vazaram de suas asas, piscando sobre a pedra úmida. Ele trabalhou para controlá-las de volta. — Rafe… — Estou processando. — Você o ama. — Claro que eu o amo — Rafe cuspiu, então respirou fundo. Sua raiva não era de Lyana, ou de seu irmão. Tinha um alvo muito específico. — É Cassi que eu não suporto. — E esse é o seu direito. Você não precisa perdoá-la, nem mesmo gostar dela, mas pelo bem de Xander, você precisa aprender a tolerá-la. Porque, se ele a ama do jeito que eu acho que ama, você vai perder. Se você o fizer escolher, ele a escolherá. E isso destruiria vocês dois. Faça isso por mim, e tudo entre nós estará resolvido. Foi isso que ele prometeu a Cassi no calor do momento, seu amor por Xander é maior do que qualquer ressentimento, maior do que qualquer malfeito contra ele. Salve-o e nada mais importa. Rafe era um homem de palavra? Ele olhou para o lado onde suas roupas estavam empilhadas, a adaga com cabo de corvo visível entre as dobras. Xander o perdoou. Xander havia escolhido seu vínculo fraternal sobre qualquer ressentimento pessoal, sobre seu ressentimento e sua amargura. Rafe faria o mesmo. Não por Cassi, mas pelo irmão que amava de todo o coração, o irmão que ele traiu, o irmão que jurou nunca mais perder. — Eu não tenho certeza se posso encontrar algo em meu coração para perdoá-la — ele admitiu suavemente. Mesmo agora, a bile subiu em sua garganta com a mera lembrança daquele dia fatídico, o esmagamento de seus ossos, a determinação em seu olhar, o desamparo que ele sentiu quando suas asas, seu céu, sua essência foram tão insensivelmente arrancadas. — Mas por Xander, vou tentar. Lyana passou os dedos pela bochecha dele, atraindo seus olhos. Ela pressionou um beijo suave em seus lábios enquanto acariciava sua pele. — Você é um bom homem, Aleksander Ravenson. Um homem melhor do que a maioria. E, se você conseguir perdoar o imperdoável em seu coração, espero que isso lhe traga paz. Mas se você não puder, por favor, entenda que ninguém iria culpá-lo. Tudo o que Xander precisa é que você aceite a decisão dele. Ninguém espera de você mais do que isso. Mas ele tentaria mais, porque queria mais. Queria o futuro com que sempre sonhara para ele e para o irmão, que os filhos tivessem o tipo de família que lhes faltava, unidos pelo amor e pelo riso, não pela frieza e pela crueldade. E, se Cassi fosse a mulher que um dia faria dele um tio, então ele encontraria uma maneira de amá-la. Ele não sabia como, em que momento, mas ele faria. Rafe era um homem de palavra, e este era um voto que ele manteria. — O que ela disse sobre a fenda? — Eles encontraram uma maga que pode fechá-la, mas ela precisa de tempo para entender o poder. E estamos presos aqui até chegar a hora. — Uma maga da fenda? — Uma spatio’kine — Lyana esclareceu. — Mas somente no dia em que o céu desabar, será revelado quem vai a todos salvar — ele completou suavemente. As palavras da profecia. — Nunca foi profetizado que seríamos nós. — Não no final. — Eles têm um plano? A resposta curta era não. A resposta longa era mais complicada. Lyana o informou sobre tudo o que eles perderam – a queda de Da’Kin, as crescentes tensões entre as pessoas do mundo acima e as pessoas do mundo abaixo, a ameaça de guerra. A capitã e a tripulação estavam sendo caçados pelo ferro’kine que havia assumido a coroa, deixando pouco tempo para discutir outras opções além de fugir. E, enquanto eles protegiam o navio, a spatio’kine estava tentando entender a magia da fenda. Ela precisava se aproximar de seu poder, mas a última coisa que as columbas queriam era uma maga no coração de seu reino. Xander estava trabalhando em uma solução diplomática, mas até o momento nenhuma havia chegado. O que significava que eles estavam no limbo. Rafe e Lyana estão presos no mundo errado, incapazes de ajudar. Todos os outros tentando trazê-los para casa. O destino de seu povo tão incerto como sempre. Estava uma bagunça. Mas, supôs Rafe, não estava mais bagunçado do que o normal. — Então, o que fazemos enquanto isso? — Ele finalmente perguntou. — Vamos atrás dos híbridos. — Ana. — Temos que ir, Rafe. É a única maneira de ajudarmos nossos amigos. O que mais vamos fazer? Girar os polegares e lentamente perder a cabeça? — Posso pensar em outras maneiras de passar o tempo. — Ah, sério? Como o q… aaah! Ele a agarrou pela cintura e virou, trocando suas posições para que ele ficasse por cima. Então ele pairou sobre ela, apreciando a maneira como seu fogo refletia em seus olhos. Eles já estavam nus, os corpos pressionados um no outro, pele contra pele. O sorriso emocionado em seus lábios foi mais que suficiente para excitá-lo. — Rafe. Foi uma reprimenda gentil, e nem perto de convencer. Ele roubou qualquer outra tentativa de protesto com um beijo, reivindicando a boca dela como sua. Ela suspirou em sinal de rendição e estendeu a mão para enfiar os dedos em seu cabelo. O arranhão suave de suas unhas em seu couro cabeludo provocou um gemido. Ela sorriu contra seus lábios, plenamente consciente do efeito que tinha sobre ele, e se afastou um pouco. — Isso ainda não acabou. Ele agarrou seu quadril para puxá-la contra ele e puxou seu lábio inferior entre os dentes. O que quer que ela quisesse dizer se perdeu em um suspiro de prazer. Foi a vez dele sorrir. Rafe sabia que não estava acabado. Com Lyana, nunca acabava até ela vencer. Mas ele poderia pensar em maneiras muito piores de adiar isso. Não foi até ela se sentar sozinha no centro de uma horda de dragões que Lyana começou a questionar seu plano. No momento em que Rafe virou as costas depois de deixá-la atrás de uma pedra, as dúvidas surgiram. Isso era muito arriscado? Eles estavam sendo imprudentes? Isso realmente funcionaria? Sim. Sim. Talvez. Era o talvez ao qual ela sempre voltava – talvez isso funcionasse e valesse a pena o risco. Se eles pudessem acabar com um desses híbridos antes que a fenda fosse reaberta, todos que eles amavam estariam mais seguros. Seus amigos estavam fazendo de tudo para levá-los para casa, não importava o perigo, não importava o custo, e o mínimo que ela e Rafe podiam fazer era retribuir o favor. Lyana procurou por qualquer sinal das criaturas. Rafe abriu sua mente para os laços, enviando uma imagem dela através da conexão como um desafio. Ela era a isca e ele o anzol. Enquanto ela esperava dentro das rochas, suas asas brancas abertas como um farol apontado para o céu, ele se escondeu entre os dragões, apenas mais um pedaço de chamas dentro do fogo, uma víbora pronta para atacar. Eles esperavam que os híbridos viessem rápido e com força, ainda à beira da loucura e sem pensar direito, seduzidos demais pela possibilidade de uma refeição. Ela, é claro, era a refeição. Lyana agarrou a frente da camisa e bombeou o tecido algumas vezes, tentando se refrescar naquele ar quente e seco. As asas fervendo constantemente faziam o campo parecer uma fornalha. Vapor escorria de narinas dilatadas, a respiração profunda e retumbante de pelo menos cinquenta dragões. Os nervos vibraram profundamente em seu peito. Poder formigou as pontas de seus dedos. Ela apertou as mãos em punhos, mantendo- o contido. O mero cheiro de sua magia seria suficiente para causar um frenesi. Se ela se soltasse por um segundo, as feras estariam sobre ela. O ar ondulava. A princípio foi uma sensação, como uma coceira na nuca enquanto os sons ao seu redor mudaram de uma respiração suave para um silêncio perfeito, depois movimentos sussurrantes, o estalo do cascalho e o estalo das trepadeiras. Quando ela levantou a cabeça, todos os dragões à vista haviam arqueado o pescoço. Eles farejaram a brisa, seus focinhos todos inclinados na mesma direção. Lyana seguiu essa linha. Uma partícula de ouro brilhou como uma estrela solitária em um céu laranja. A criatura aethi’kine estava aqui. Magia iridescente cascateava de suas asas. O poder escorria de seus poros. Mesmo a essa distância, os membros de Lyana formigavam em resposta. A pobrezinha não tinha esperança. À medida que se aproximava, os dragões se agitaram, ficando de pé, depois pisando e batendo as asas. Pena ecoava em seu peito, as reverberações ficando mais fortes mesmo quando ela tentava acalmá-las. A criatura era uma causa perdida. Não havia como salvá-la e, mesmo que pudesse, representaria um risco muito forte para seu mundo. Ainda assim, sentia pena da vida que levava. Às vezes, a morte é uma bondade. Lyana endureceu sua determinação e olhou além da criatura aethi’kine. Mais quatro criaturas seguiam atrás dela – fogo, água, ar e terra. Ela podia sentir o poder delas também, mas era diferente. Forte sem se tornar opressor. Mais controlado, de alguma forma. Quase mais maduros. Pela primeira vez, ela se perguntou quem seriam esses homens e mulheres antes de suas almas serem transformadas. Seria esse o motivo da diferença? A criatura aethi’kine parecia juvenil em comparação, cedendo aos seus impulsos com a confiança da juventude, não se preocupando com as consequências como se não tivesse controle de impulsos, quase como uma criança que não sabia o que fazer. Ela estava cozinhando naquele ovo por quinhentos anos, mas talvez sua mente estivesse presa no tempo, congelada naquela fração de segundo antes de sua humanidade ter sido tão cruelmente arrancada. Os dragões surgiram no céu, um após o outro, não deixando mais tempo para especulações. Quase todos foram para a criatura aethi’kine, o cheiro muito tentador para ignorar, dando aos outros híbridos – que permaneceram mais atrás – uma chance de se aproximar. O jogo começou. Lyana apertou as asas junto ao corpo e se aninhou mais perto de uma pedra próxima, tornando-se menor, se diminuindo como alvo agora que as criaturas haviam chegado. Ela espiou de um lado para o outro, certa de que Rafe a mantinha à vista, mas ele era um fantasma. Ela não captou nenhum sinal de sua pele pálida entre as rochas negras ou arbustos ardentes. Ainda assim, uma cócega na nuca dela sussurrou que os olhos dele estavam nela. Pare de se preocupar comigo, ela queria gritar, mas seria inútil. Ele nunca pararia de se preocupar com ela, e essa era uma das muitas razões pelas quais ela o amava. Essa também era uma das muitas razões pelas quais ela frequentemente queria estrangulá-lo. Preste atenção na luta. Como se ele tivesse ouvido, a sensação ao longo de sua pele desapareceu. Um frio estranho tomou seu lugar, quase como se alguém tivesse passado um dedo indesejado e desconhecido por sua espinha. Lyana olhou por cima do ombro. Nada. O campo estava quieto com a partida dos dragões, um pouco quieto demais. Seu batimento cardíaco tamborilava em seus ouvidos. Ela se sentiu exposta. Era estranho que cinquenta feras caçadoras de magos tivessem fornecido conforto, mas era verdade. Eles agiram quase como uma parede, a primeira linha de defesa, e agora que a maioria estava perseguindo a criatura aethi’kine pelos céus, mantendo-a distraída exatamente como planejado, Rafe e Lyana estavam por conta própria. Dois contra quatro. Não era a melhor chance, mas não importava. Juntos, eles poderiam conseguir qualquer coisa. O cascalho estalou e Lyana girou. Não havia nada. Uma brisa puxou suas tranças e ela se virou. Nada de novo. Estão brincando comigo, ela pensou, sentindo o formigamento da magia. Estão brincando comigo enquanto procuram por Rafe. Ela trouxe seu poder para a superfície, perto o suficiente para detectar as correntes elétricas no ar, mas não o suficiente para atrair os dragões. Foi mais difícil do que ela pensava localizar todos os quatro espíritos. O campo zumbia com a magia aethi’kine inexplorada. As videiras de carvão e frutas ardentes que Rafe se tornou adepto de roubar vibravam com poder, chamando por ela. Mas isso era magia espiritual, e ela estava procurando pelos próprios espíritos – almas com sentimento, com fogo. Lá. O desespero a chamava, um estômago faminto desejando ser preenchido. Outro à sua esquerda. Mais um à sua direita. E o quarto oposto ao grupo, tentando se esgueirar por trás. Ela sentiu Rafe também, seu espírito cheio de adrenalina, ansiando pela luta. Magia geo’kine explodiu. Lyana mergulhou bem a tempo de a pedra passar inofensivamente por cima de sua cabeça e bater em um matagal. Um estalo alto dividiu o céu. O chão se rompeu sob ela e ela caiu. Suas asas a pegaram antes que ela fosse longe. Uma rajada repentina de vento surgiu da fenda. Antes que suas penas pudessem se ajustar, ela bateu na parede áspera com um ruído audível. O sangue escorria quente sobre sua orelha de um corte em sua têmpora, mas ela cerrou os dentes, recusando-se a gritar. Só iria distrair Rafe. Outra rajada uivou enquanto avançava em direção a ela. Não havia nada que ela pudesse fazer a não ser se preparar contra a força. Mesmo que ela deixasse sua magia sair, neste mundo não havia espírito no ar para se segurar. Tudo era sugado para a terra, para aquelas frutas e videiras, sem deixar nada para trás. Enquanto seu mundo estava todo amarrado por uma força vital invisível que ela tinha o poder de controlar, este era mantido unido pelo espaço morto, um vazio sinistro que ela não podia tocar. As criaturas haviam se esquecido de uma coisa, não importa em que mundo estivessem, ela sempre pertenceria ao céu. O ar correu ao redor dela. Lyana torceu o corpo para pegar a corrente. Com uma batida forte de suas asas, ela voou sobre a borda e… O fogo rolou em uma onda furiosa. O calor lambeu sua pele. Um grito subiu por sua garganta, vindo de algum lugar lá no fundo, uma porta trancada que ela estava tentando ignorar enquanto as marcas de queimadura cobrindo sua pele doíam com a dor lembrada. De repente, braços a envolveram. Lyana chutou e socou enquanto batia em um pedaço de cascalho macio. Asas negras a envolveram em um casulo protetor quando o calor aumentou. Uma bochecha tocou a dela, suave e humana, enquanto dedos, não garras, se enroscavam em seu cabelo. — Sou eu — Rafe a acalmou, sua voz como um raio de sol a perfurar um nevoeiro sem fim. — Estou aqui. Eu peguei você. As palavras a trouxeram de volta a um tempo diferente, quando o perigo era pedras caindo em vez de fogo, mas as palavras dele eram as mesmas. Eu peguei você. Aquele momento em Pylaeon mudou tudo. Os dois sozinhos enquanto o mundo desmoronava, sua magia surgindo na crescente escuridão, prestes a serem esmagados até a morte e ainda de alguma forma em paz porque eles enfrentaram aquilo juntos. Ela soube naquele instante que não seria capaz de deixá-lo ir. E, depois de tudo pelo que passaram, o sentimento só aumentou. Lyana agarrou sua camisa para mantê-lo perto. — Isso pode ter sido um plano tolo. — Sim — Rafe se afastou com um sorriso, nem um pouco preocupado, aparentemente animado pela batalha. — Mas vai funcionar. — Tem certeza? — A criatura de fogo será a primeira a morrer — ele fez uma pausa, como se estivesse ouvindo alguma coisa. — Ao meu sinal, corra para o matagal mais próximo e se esconda. Ela estava prestes a perguntar que sinal, quando sentiu a presença de um espírito abrasador, a chama inegavelmente vitoriosa. Rafe ficou tenso. Os músculos sob suas palmas endureceram como pedra, uma bobina prestes a saltar. Ele esperou até que a criatura estivesse tão perto que pudessem ouvir seus passos nas pedras acima das chamas furiosas. Então ele beijou sua bochecha e atacou. No segundo em que o fogo se extinguiu, Lyana se pôs de quatro e correu para o lote mais próximo de trepadeiras espinhosas. Um gemido fez seu coração apertar, mas não era humano. Não era Rafe. Ela se abaixou sob um grosso galho de ônix e se arrastou para as sombras. Assim que ela estava fora de vista, ela se virou e espiou por uma abertura na folhagem. Rafe girou no lugar como o centro de uma furiosa tempestade, suas lâminas gêmeas voando para pegar as garras que se estendiam para sua garganta. As criaturas eram pouco mais que borrões coloridos ao seu redor. A magia ondulava como fumaça brilhante, bloqueando sua visão. Vamos. Sentia-se menos do que inútil observando Rafe travar esta batalha sozinho, mas não podia arriscar distraí-lo. Se ele estivesse preocupado em protegê-la, não seria capaz de se proteger. Vamos. Um som estridente irrompeu do caos. A mente de Lyana ficou em branco quando o grito do corvo roubou seus pensamentos e sua autonomia. Poderia ter durado um segundo. Poderia ter durado uma hora. Ela não tinha como saber, mas quando a confusão se dissipou, Rafe estava sozinho. Ele limpou um pouco de sangue carmesim de uma de suas espadas. A seus pés, a criatura de fogo jazia mole, mas não totalmente. Lyana examinou o campo de ônix até encontrar a cabeça. Olhos vermelho-sangue a encaravam, sem vida, mas de alguma forma cheios de dor, como se estivessem presos naqueles momentos finais impiedosos. Uma menos, ela pensou. Faltam três. Então... Espere. Lyana congelou. Três. Elas deveriam estar lá. As outras três criaturas deveriam estar ao lado de Rafe, tão confusas quanto ela. Mas eles não estavam. Como elas… Garras cavaram em sua garganta. Estúpida! Estúpida! Sua mente era completamente humana, enquanto a metade da deles pertencia a uma criatura feita para absorver magia. Claro que o grito do corvo duraria mais tempo nela. Ela deveria saber. Ela deveria estar pronta. Em vez disso, uma tosse estrangulada saiu de seus lábios. A cabeça de Rafe se ergueu como se tivesse ouvido, mas ele nunca chegaria a tempo. Ele correu, de qualquer maneira. Um pedaço de rocha irrompeu do chão como uma lâmina, disparando um, depois três, então seis metros de altura. Outra se soltou, e outra, até que uma parede impenetrável se interpôs entre eles. Ele voava por cima ou ao redor, mas nem ele era tão rápido. O vento soprou com um grito uivante, o som tão alto que abafou todos os outros, mesmo os pertencentes a um corvo. Lyana estava sozinha. A criatura bateu a cabeça em uma vinha próxima e ela caiu no chão, em um lampejo. Duas garras envolveram sua garganta, cortando o ar. Escamas azuis captaram o mais leve indício de luz. A criatura da água não tinha magia aqui para usar, mas não precisaria dela para derrotá-la. Se ela tentasse controlá- la com seu poder, ela morreria ainda mais rápido, queimada viva de dentro para fora. Ainda assim, ela tinha que tentar alguma coisa. Lyana soltou sua magia. A represa quebrou e o poder aethi’kine derramou de cada centímetro de seu corpo. O terreno ganancioso deste mundo o engoliu, sugando seu poder tão rapidamente quanto ela o soltou. Ela não conseguiu encontrar um ponto de apoio, não conseguia encontrar um... Espere. Espírito cintilou ao redor dela. Nas videiras. Nas frutas. Em outra coisa, mais concentrada e condensada, uma substância que ela não conseguia identificar. Ao contrário das cavernas, esta terra não estava completamente morta. Sem tempo para pensar, Lyana agiu por instinto e puxou. Uma vinha atrás da criatura se partiu ao meio, lançando um brilho dourado na escuridão enquanto o líquido aethi’kine escondido dentro vazava. Antes que a criatura da água pudesse reagir, ela agarrou as pontas quebradas com sua magia. Uma disparou em seu peito, a outra envolveu sua cabeça e ela puxou. Sangue azul irrompeu em um respingo violento quando ela rasgou a besta em duas. Seu momento de vitória passou rapidamente. Os dragões rugiam acima, atraídos pela explosão repentina de sua magia. As videiras tremeram quando um corpo pesado caiu com estrondo. Vinhas estalaram. Chamas surgiram. Laranja brilhante inundou sua visão, o calor a fez suar. — Ana! — Rafe! — Ana! Ela rastejou em direção ao som de sua voz e caiu em seus braços. Ele a pegou pela mão e a guiou de volta através do labirinto de dragões, usando seu controle mental sobre eles para forçar sua atenção em outro lugar. Da mesma forma que eles se infiltraram na horda. — O que aconteceu com as outras criaturas? — Eu as perdi. — Eu matei a azul. — Então terra, ar e espírito são tudo o que resta. Ele sinalizou pedindo silêncio. Quando a costa estava limpa, eles subiram ao céu. Foi apenas quando as batidas de seu coração diminuíram, dando-lhe tempo para pensar, que ela percebeu que seu poder havia arranhado algo mais profundo. As videiras e as frutas, sim, mas algo mais. Ela pensou no que Rafe disse a ela sobre o dragão morto que ele encontrou no fundo dos espinhos, do caule do coração e do que ele pensava serem pedras preciosas brilhantes. Isso deve ter sido o que ela sentiu. Quem eram eles? A magia dentro deles era forte, quase latejante em sua intensidade. Fios se entrelaçaram em sua mente, ainda não claros o suficiente para formar uma imagem, mas o suficiente para deixá-la intrigada. As frutas. As pedras preciosas. Os dragões. A magia. Uma resposta esperava na raiz das videiras, uma que ela pretendia descobrir. O fogo crepitava na noite silenciosa. Um jogo de dados estava chegando ao fim no convés principal, enquanto Cassi estava sentada na parte de trás do navio com os pés pendurados na borda. Pyro estava atualmente enfrentando Sanguessuga pela vitória. O duelo já durava alguns minutos, então ela parou de prestar atenção, em vez disso virou para o mar. Nuvens rolavam suavemente pelo céu, lançando sombras sobre a água cintilante. As ondas estavam calmas, pouco mais que ondulações, movendo-se apenas o suficiente para fazer dançar os reflexos das estrelas. Sua mãe e Remendado estavam trancados nos aposentos da capitã, obviamente guardando segredos, mas Cassi não sentiu vontade de xereta-los. Brilhante e Solvei estavam no convés inferior espionando a fenda. As columbas agora guardavam o ninho sagrado dia e noite, sem deixar chance de aparecer para outra visita. Eles mantiveram vigilância constante na esperança de uma breve abertura, mas até agora não tiveram essa sorte. Cassi poderia ter jogado com a tripulação, ela supôs, mas sua magia dormi’kine não era exatamente útil em um jogo como dados. Ela estaria fora de seu primeiro duelo. Além disso, sua mente estava preocupada com coisas diferentes. Você é boa, Cassi. Você é boa. As palavras se repetiam desde que ela deixara o sonho de Xander. Elas queimavam em seu sangue. Elas sacudiam dentro de seu coração oco fazendo- o parecer cheio. Elas cortavam sua alma, fazendo-a querer coisas que ela sabia que não merecia. Seu amor. A vida dela. O futuro deles. Malek estivera certo meses atrás – ela era uma arma. O arco de Lyana. A espada de Rafe. Escudo de Xander. Eram eles que importavam. Vidas, mundos e reinos dependiam deles. Até que a fenda fosse fechada e a guerra terminada, ela não poderia se deixar ser nada além de uma ferramenta nas mãos deles, uma extensão de seus desejos e necessidades, sem vontade própria. Ainda assim, seus pensamentos voltaram para os lábios de Xander em sua pele e suas palavras em seu ouvido, fazendo-a desejar mais de uma maneira, tornando-a ávida por tudo. Uma luz brilhante cintilou no mar. Cassi ergueu os olhos, esperando ver a lua. Em vez disso, um navio cercado por magia aero’kine voava pelo céu. O quê? Ela piscou e sumiu. A área estava negra como uma nuvem da meia-noite. Mas não era uma nuvem. O espaço não tinha borda prateada sutil, nem profundidade e nem dimensão. Era apenas sombra – escuridão profunda e interminável do poder umbra’kine. O estômago de Cassi revirou. — Ataque! Ata… Dedos envolveram seu tornozelo e puxaram. Cassi bateu na amurada. Uma explosão de estrelas dançaram atrás de seus olhos enquanto a dor irradiava por seu crânio. Antes que ela soubesse o que estava acontecendo, a madeira abaixo dela se deformou. Uma prancha se soltou do convés e se apertou ao redor de sua barriga, prendendo-a no lugar. — Ataq… Uma corrente de água passou pela borda e entrou em sua boca aberta, abafando seu chamado. Cassi balbuciou e virou o rosto, tentando escapar do dilúvio. Três figuras borradas rastejaram sobre a amurada. Uma se inclinou para enfiar uma mordaça em sua boca, faíscas azuis de magia hydro’kine dançando em seus dedos. Ela tentou gritar através do tecido, mas seus gritos eram abafados, quase inaudíveis com a brisa. Não importava, de qualquer maneira. Como se sua aparição no convés fosse um sinal, o misterioso navio caiu do céu e pousou com um estrondo na água. Uma onda enorme atingiu a lateral do navio de sua mãe, quase derrubando-o. A tripulação amaldiçoou. Magia iluminou o céu. Os intrusos silenciosos passaram por Cassi e saíram da sua linha de visão. Com a tripulação focada no navio inimigo, eles nunca veriam o ataque vindo de trás. Cassi contorceu-se, conseguindo mover-se apenas o suficiente para se sentar um pouco mais alto enquanto a madeira pressionava sua cintura. Ela abriu as asas, batendo-as contra o convés, tentando obter qualquer alavanca que pudesse. Um pouco se balançando, um pouco batendo asas, e finalmente ela estava livre o suficiente para sentir o ar em suas penas. A pressão em sua cintura aumentava quanto mais ela empurrava. Vamos. Vamos. A prancha quebrou e ela saltou livre, suas mãos e quadris se libertando de uma só vez. Ela estava no ar em um piscar de olhos. Cassi assumiu a batalha no céu. Mais três magos entraram pela frente do navio, deixando a tripulação cercada. Faíscas de arco-íris ondulavam enquanto eles lutavam. Chamas explodiram. Água se derramou. Ar chicoteou. O falso rei os estava caçando há semanas, e ainda assim eles foram pegos desprevenidos. Ficamos muito confiantes, muito convencidos, depois de superá-los tantas vezes. Talvez esse fosse o plano dele o tempo todo. A Capitã Rokaro e Remendado irromperam pelas portas, arcos amarelos já surgindo de suas palmas. Cassi dobrou as asas e mergulhou para encontrá- los. — Como eles nos pegaram? — Sua mãe perguntou antes mesmo de seus pés tocarem o chão. — Eles vieram do céu... — Do céu? — E do mar. A magia umbra’kine escondeu o navio atrás das nuvens, e eu estou supondo que eles tinham dois hydro’kines, um com cada grupo de magos que se esgueirou para cá. Eles tinham que estar bem abaixo da superfície para que não víssemos a magia. — Kasiandra… — Tenho que avisar Solvei e Brilhante. — Deixe-as — a capitã Rokaro agarrou-a pelo antebraço e apertou com uma força quase dolorosa. — Elas provavelmente já se foram. Você estará apenas caminhando para ser pega. Vá para o céu. Saia daqui enquanto ainda pode. — Fugir? — Ela soltou o braço. — Salve-se. Eu reconheço uma luta perdida quando vejo uma. — Mãe! — Kasiandra! Elas se irritaram até que o rosto da capitã suavizou um pouco. — Ele não está procurando… Uma lâmina golpeou, cortando-a. A capitã Rokaro se abaixou para o lado, agarrou o agressor pelo pulso e puxou a mão do homem para trás até que a adaga escorregou de seus dedos. Então ela o socou no rosto, seu punho brilhando amarelo enquanto ela usava o ar para adicionar força extra ao golpe. Ele caiu. Outro lutador tomou seu lugar. Cassi pegou a arma descartada do chão. Era feita de vidro, mais leve do que as lâminas com as quais ela cresceu, mas a essa distância isso pouco importava quando ela a enfiou no peito de seu inimigo. — Vá — sua mãe ordenou. Cassi voltou-se para a porta. — Para o céu! A capitã pontuou suas palavras com um empurrão. Cassi voou para trás quando uma rajada de vento envolveu seu corpo e a fez girar de cabeça para baixo. O redemoinho se agitou, levantando-a e sobre a borda do navio antes de descartá-la acima da água. A desorientação durou apenas um momento, mas a mensagem de sua mãe era clara: corra. Cassi se recusava. Em vez disso, ela girou no ar e voou em direção às cabines inferiores. A janela estava fechada, mas quando ela olhou para dentro, Brilhante e Solvei ainda estavam lá. Cassi bateu com a palma da mão no vidro, chamando a atenção delas. — Fujam! Solvei franziu a testa, incapaz de ler seus lábios. Brilhante também franziu a testa, mas a expressão dela era de irritação. Ela não abandonaria sua tripulação. Um súbito ímpeto de simpatia pela mãe invadiu Cassi à medida que sua exasperação com a photo’kine aumentava. Será que a garota apenas ouviria alguma vez? — O navio está perdido! Vá até Xander. Ele vai manter vocês escondidas. Brilhante apertou a mandíbula. Pelo amor de Aethios! Cassi estava prestes a dar um soco na janela e arrastar Solvei para longe quando a porta atrás delas se abriu com um estrondo. Ela nem pensou. Ela mudou para sua forma de espírito, escorreu pela madeira e colidiu com a mulher que não havia reconhecido. O poder dormi’kine só funcionava em uma mente acordada por um certo tempo, mas ela rezou para que fosse tempo suficiente para Solvei formar uma fenda enquanto ela agarrava a mente da maga. Alguns momentos preciosos se passaram antes que a mulher se libertasse. Cassi voltou ao seu corpo, esperando ser pega pelas ondas, mas acordou seca em uma superfície dura. Ela levantou a cabeça para encontrar os olhos leitosos de Brilhante. Em vez de fugir, Solvei abriu uma fenda para pegá- la. Quando alguém finalmente perceberia que não valia a pena salvá-la? Tolas! — Vamos! — Brilhante estalou. Sobre seu ombro, uma brilhante magia branca girou, o círculo se alargando e se alargando até que uma imagem se formou em seu centro. Xander estava sentado na beira da cama, suas asas se misturando às sombras enquanto seu rosto captava a luz da lua fluindo através do cristal. Ele estava virado para a vista do lado de fora, mas olhou por cima do ombro quando a fenda se solidificou. O horror tomou conta de seu rosto instantaneamente e ele se levantou no mesmo momento em que Cassi finalmente encontrou os olhos dele. Mãos agarraram suas penas e ela recuou. Uma corrente enrolou em sua cintura. Faíscas verdes de magia ferro’kine encheram o ar enquanto ela se apertava. — Cassi! Ele soou como se estivesse bem ali, não a mil milhas de distância. Ele se arrastou sobre a cama, batendo as asas negras. Então ele estava no ar. — Vão! — Cassi gritou desesperadamente, olhando para Brilhante. A photo’kine hesitou. O quê? Agora você gosta de mim? — Vão! — Cassi rosnou quando a corrente a puxou para trás. Ela tropeçou em seus pés, encontrando os olhos de Xander mais uma vez. Ele estava quase na fenda. O medo encheu seu rosto, medo por ela. Ela não aguentou e desviou o olhar. — Vão agora ou Rafe estará perdido para sempre! Brilhante empurrou Solvei pela fenda e elas caíram sobre Xander, parando-o antes que ele voasse. Eles desapareceram. A visão de tábuas de madeira sujas nunca deixara Cassi tão aliviada. Um pano caiu sobre sua cabeça e a escuridão tomou conta quando um novo par de mãos envolveu seus braços. — Você apenas levanta um dedo e vamos quebrar suas asas — uma voz profunda e gutural comandou. O hálito quente e rançoso escorria pelo tecido que cobria seu rosto. Ele pairava no ar abafado, fazendo-a engasgar. — Nós a pegamos! O cheiro foi instantaneamente esquecido quando sua coluna se endireitou. A corrente puxou, forçando-a para frente. Sua mente disparou. Nós a pegamos? Mas isso significava... isso significava... Cassi balançou a cabeça, nem mesmo se importando enquanto a levavam embora. Ela estava de volta ao convés, ao lado de sua mãe, desta vez ouvindo o que a capitã tentou lhe dizer enquanto ela ordenava que sua filha fosse embora. Ele não está procurando, sua mãe começou antes de ser cortada. Ele não está procurando por ela, foi o que ela tentou dizer, o que quis dizer. Não fazia sentido. E, no entanto, a verdade estava encarando-a enquanto o inimigo a arrastava para longe. Ele está procurando por você. Eles não tinham vindo atrás de Solvei. Por alguma razão inexplicável, o falso rei veio buscá-la. Era um absurdo. Era ridículo. Isso a fez querer rir. Foi também o último pensamento consciente que Cassi teve antes de algo duro acertar sua cabeça e ela cair. Xander olhou para as sombras como se, de alguma forma, isso fosse fazer a fenda reaparecer. — Cassi! — Ela se foi — disse Brilhante. — Não! Ele se arrastou para a frente e acenou com as mãos no ar, procurando por alguma centelha de magia. Ela esteve aqui, apenas a alguns metros de distância, tão perto que ele poderia tê-la salvado. Não mais. — Reabra. Temos que ir buscá-la — ele deu um passo em direção a Solvei. Mesmo que ela não pudesse ouvir suas palavras, ela podia ler o desespero que ele sabia que estava escrito em suas feições. — Ela se foi — repetiu Brilhante, dessa vez com mais força. Ela colocou um braço sobre o peito dele para barrar seu caminho para a maga da fenda. Um brilho ameaçador fervia ao redor de sua palma, uma clara ameaça. No entanto, seu olhar era simpático quando ele olhou para baixo para encontrá-lo, e sua voz era calma quando ela acrescentou: — Quanto mais cedo você aceitar isso, mais cedo podemos trabalhar em um resgate. Toda a minha tripulação acabou de ser capturada. Você não é o único prestes a perder tudo. Ele engoliu a dor que ameaçava derrubá-lo. — O que você tem em mente? Seus dedos voaram pelo ar. Solvei respondeu animadamente. Um momento depois, o espaço entre suas mãos brilhou, quase como se ela estivesse segurando um espelho. As cores diminuíram e depois se acentuaram, até que algo semelhante a uma janela se formou, exibindo tábuas molhadas e ondas espirrando enquanto o convés de um navio gradualmente se tornava visível. — O que é? — Ele sussurrou, não querendo perturbá-la. — Uma fenda de mão única — explicou Brilhante. — Nós podemos vê- los, mas eles não podem nos ver. Muito brilhante, certo? — Onde… Ele parou ao ver as asas salpicadas. A forma flácida de Cassi estava envolta em dois pares de braços, sendo puxada pelo convés e por uma prancha de embarque. Um pano preto estava amarrado sobre sua cabeça. Seu coração parou. — Ela está viva? — Ela está viva. Eles a teriam jogado ao mar se quisessem matá-la. — O que eles querem? Brilhante fez uma pausa. Ele desviou os olhos de Cassi por um breve momento, exigindo uma resposta. A photo’kine fez uma careta enquanto ela visivelmente pesava suas opções. Observaram em silêncio enquanto Cassi era transportada para as profundezas do navio desconhecido. Quando ela estava completamente fora de vista, Brilhante finalmente respondeu. — Eles querem informações. Ele estava prestes a perguntar o que ela queria dizer quando a cena na janela ficou borrada. Solvei moveu os dedos até que as cores rodopiantes se solidificassem. A sala do outro lado da fenda era quase preta, exceto pelas pequenas chamas dançando ao redor de um conjunto de dedos inquietos. — Eu apreciaria se você não colocasse fogo no navio, Pyro — a voz afiada da capitã falou lentamente. — A última coisa de que precisamos depois da noite que tivemos é sermos queimados vivos. O brilho laranja desapareceu imediatamente. A capitã suspirou – pelo menos Xander pensou que soava como isso. Com o fogo apagado, a sala estava iluminada apenas por uma fresta de luz que entrava por baixo de uma porta. Barras brilhavam ligeiramente atrás de suas formas sombrias. Alguém se moveu e o metal tilintou. Eles estavam acorrentados. — Eles saíram? — Perguntou a capitã. — Bem, eles não estão aqui — alguém respondeu. Xander não reconheceu todas as vozes. Parecia uma mulher, no entanto. — Nem Arqueiro, mas eu sei que eles o pegaram. Eles estão apenas mantendo-o em outro lugar para garantir que permaneçamos nesta pequena jaula. — Eu não vi Brilhante ou Solvei — outra voz respondeu, o tom calmo e gentil. Ele pensou que poderia ter sido Tremedeira. Um momento de silêncio se passou. — E Kasiandra? — A voz da capitã estava tensa. Um barítono profundo respondeu desta vez, parecendo preocupado: — Não a vi depois que você a mandou para o céu. — Bom. — Então, qual é o nosso jogo? — Um tom jovem perguntou. — Ah, Esquilo. Eu gostaria de ter notícias melhores para lhe contar, mas tudo o que podemos fazer no momento é esperar para ver. Ele fez um som de desgosto. — É isso? Vamos sair daqui. Vamos… — Matar a nós mesmos? — Não… — Você já quis que Cozinheiro te levasse para outro bordel? — Sim! — A resposta foi rápida e ansiosa. Desta vez, Xander tinha certeza de que era a capitã que suspirava, embora o som tivesse um tom divertido. — Então você tem que viver o suficiente para chegar ao próximo porto, e a única maneira de fazer isso é ficar parado. Enquanto estivermos nesta cela e Arqueiro não aparecer, qualquer coisa que fizermos tem mais chances de nos transformar em isca de tubarão do que nos libertar. Brilhante e Solvei fugiram. Elas podem estar nos observando agora. Vamos dar-lhes tempo para elaborar um plano. — Sim, sim, capitã — sussurrou Brilhante. Xander olhou para o lado. Seus olhos estavam brilhantes e totalmente paralisados pela escuridão do outro lado da janela. Ela chamava a tripulação de sua família. O carinho era claro. — Algo está acontecendo — uma voz disse, de repente. Ele voltou sua atenção para a fenda. — Eles estão queimando o navio — Pyro explicou. — Posso sentir a magia. — E a água está se movendo — outra voz acrescentou. Tinha que ser Espirro. — Essa não é uma corrente natural. — Existe magia aero’kine trabalhando também — a Capitã disse, agora resignada. — Eles estão sem dúvida nos levando para o rei deles. Descansem enquanto podem, porque quando chegarmos ele vai interrogar cada um de nós, começando por mim. Ninguém diz uma palavra sobre Brilhante ou Solvei. Eu não me importo com o que ele fará para arrancar as respostas de vocês. Seus lábios permanecem selados. Ele não pode descobrir sobre a magia dela. Entendido? Um coro de sim encheu a escuridão, então um suave. — Capitã? — O quê, Sombra? — Ele já não sabe? — Acho que não. — Então por que ele estava nos caçando? O silêncio pairou no ar, mais pesado do que as palavras teriam sido. — Descanse — disse a capitã Rokaro, finalmente. — Quanto menos você souber, melhor. Brilhante deu um tapinha no braço de Solvei e a fenda desapareceu. Ela assimilou algumas coisas, provavelmente contando para a spatio’kine a essência da conversa ouvida, antes de enfrentar Xander. — Ela é uma dormi’kine. — O quê? — Ele rosnou. — Magia me ajude — Brilhante murmurou e revirou os olhos. — A resposta à sua pergunta: por que ele quer Cassi o suficiente para perseguir nosso navio por todo o mar? Não tenho certeza, mas acho que é porque ela é uma dormi’kine. — E? O quê? Ele não conseguiu encontrar outra pessoa? — Não. Fazia muito tempo que Xander não sentia seu braço direito tremer, seu punho invisível tremendo de fúria reprimida, mas essa garota testava até sua paciência. — Não? — Não — Brilhante deixou a palavra sair como meio suspiro e desabou contra o chão como se a noite finalmente a tivesse alcançado. Ela massageava as têmporas enquanto falava. — Olha, eu sei que você não está muito familiarizado com magia e sei que Cassi está em uma onda de sacrifícios cheia de culpa, então talvez você tenha acreditado em todo o discurso dela, mas você não deveria ser mais inteligente do que isso? Quero dizer, magia viva, quão comum você acha que é ser Andarilho de Sonhos? Xander franziu a testa. — Acho que não... — E, mesmo que fosse comum, eles são espiões… vivem em segredo, ninguém sabe quem eles são. Bem, o rei Malek sabia, mas levou essa informação para o túmulo. Alguns dos dormi’kines visitaram Jacinta em seus sonhos para jurar lealdade quando ela se tornasse rainha, mas a maioria simplesmente desapareceu. Exceto Cassi. Nem todo mundo sabia o que ela era, mas o suficiente sabia. — Então este rei a quer por causa de sua magia? — Ela pode entrar furtivamente em qualquer prédio sem ser vista. Ela pode ouvir qualquer conversa. Ela pode ir a qualquer lugar, observar qualquer coisa, até mesmo interrogar as pessoas em seus sonhos, sem falar que ela cresceu em Sphaira e conhece a cidade por dentro e por fora. Suas fraquezas. A melhor maneira de montar um ataque. O caminho mais rápido para a fenda. Então, sim, ele a quer por sua magia, entre outras coisas. O medo fez os ombros de Xander enrijecerem. — Ela vai morrer antes de falar. — Ele não vai deixar isso acontecer. O tom sinistro da declaração de Brilhante reverberou no silêncio. A escuridão tremulava com visões que ele não queria ter, de Cassi quebrada, suas asas quebradas, suas bochechas encovadas, seus olhos vagos, seu corpo vivo, mas seu espírito esmagado além do reparo. — Eu tenho que ajudá-la. A necessidade perfurou através dele, roubando sua respiração, sua visão, cada pensamento. — Por favor, Brilhante — ele murmurou enquanto agarrava o braço dela para evitar cambalear. — Deve haver algo, qualquer coisa… — Nós vamos salvá-la — disse Brilhante. Pela primeira vez, que ele conseguisse se lembrar, sua voz não continha nenhum tom sarcástico, nem veneno. — Na primeira oportunidade, vamos salvá-los todos. Mas precisamos começar com Arqueiro. Sem ele, nunca passaremos das correntes. Ela estava certa. Ele sabia disso. No entanto, ele não conseguia encontrar as palavras para concordar. Elas se aglomeraram em sua garganta até que seu peito ardesse de falta de ar. Mesmo assim, enquanto ele ofegava por ar, elas não vinham. — Apenas deixe-me vê-la — ele resmungou em vez disso. — Por favor. Brilhante suspirou, enfrentando seu próprio dilema. Algo em seu rosto deve tê-la convencido. A determinação em sua mandíbula rígida enfraqueceu e ela murchou antes de assinar algo para Solvei. A maga abriu outra fenda de mão única. Xander quase caiu de cara no chão lutando para ver. — Coloque-a ali — uma voz áspera chamou. — A capitã estará aqui em breve. Cassi caiu sem cerimônia em um colchão velho. Seus pés quicaram no chão enquanto sua cabeça batia na parede. Uma de suas asas estava dobrada sob suas costas em um ângulo que faria doer quando ela acordasse. Um estremecimento se formou em sua testa, mas a visão fez seu coração cantar porque significava que ela estava viva. Uma porta se abriu. O baque de passos ficou mais alto. Assim que a ponta de uma bota preta apareceu, a fenda desapareceu. — Não! Quem era aquele? Xander se virou para Brilhante e as perguntas morreram em seus lábios. Uma carranca beliscou suas feições enquanto ela olhava para Solvei. A maga da fenda manteve seus braços firmes, músculos contraídos, um olhar de pura concentração em seu rosto. Ela olhou para cima, uma mecha de cabelo loiro caindo sobre sua bochecha, e balançou a cabeça. Os dedos de Brilhante voaram. Solvei respondeu. — O que está acontecendo? — A fenda foi bloqueada — respondeu Brilhante, sem olhar para ele. — Bloqueada? Como? — Shhh — ela rosnou entre os dentes, sem interromper sua conversa com Solvei. — Ela já não consegue sentir Cassi. A âncora se foi. — É ela… — Não — respondeu Brilhante rapidamente, percebendo como suas palavras soaram. — Não está morta, apenas cortada, de alguma forma. Solvei nunca experimentou nada parecido antes. Elas continuaram acenando. Ele nunca se sentiu tão enlouquecedoramente deixado de lado. — Brilhante — ela o ignorou. — Brilhante! — Já chega! — Seus olhos perolados brilharam. — Você queria ver Cassi? Você a viu. Não sei o que vai acontecer com ela. Ainda não sei como ajudá-la. E não, não entendo o que aconteceu com a fenda. Você quer saber o que eu sei? Se você me fizer mais uma maldita pergunta, eu dou um soco na sua cara de novo. Gostei bastante da primeira vez. Agora me deixa em paz. Preciso me concentrar em salvar Arqueiro e minha tripulação. Se você quer resgatar Cassi, então pare de chorar como um tolo e faça algo útil. Sem uma fenda, Lyana é provavelmente a única pessoa viva que conseguirá chegar perto o suficiente de salvá-la. Se você quer ajudar, comece por aí. A reprimenda caiu como o tapa na cara de que ele tanto precisava. Sentar aqui, choramingar e lamentar, não faria nada. E era a última coisa que Cassi desejaria. Xander ficou de pé. — Magia viva, você é tão dramático quanto seu irmão — Brilhante murmurou. — Você realmente não tem que sair. Este é o seu quarto. Ele não interrompeu o passo. — Se alguém além de mim entrar por aquela porta, vá até Luka e ele a manterá segura. Sua cabeça inclinou para o lado. Ela estava curiosa agora. — Onde você está indo? — Fazer algo que eu deveria ter feito há muito tempo. — Isso soa suspeitosamente nobre — ela torceu o nariz. Talvez seja, ele pensou. Talvez seja. Em seguida, em voz alta: — Eu voltarei. O caminho para o palácio de cristal era tão familiar agora que ele poderia ter voado enquanto dormia. Os guardas praticamente gemeram quando ele pousou diante deles, exigindo entrar. — O príncipe Luka… — Não estou aqui para ver o príncipe Luka — ele interrompeu. — Estou aqui para ver o rei. Os olhos do guarda se arregalaram em choque. Xander respirou fundo e ergueu as sobrancelhas. O homem correu para dentro. Alguns minutos depois, o rei Lionus estava diante dele. — O que… — Tenho uma história para contar a vocês — disse Xander ao passar por eles, estranhamente mal-educado, mas não havia tempo a perder. Ele já havia demorado o suficiente, em seu medo e seu orgulho. Mas Cassi tinha ido embora. Lyana e Rafe ainda estavam presos. A fenda era a única coisa entre eles e o esquecimento, e Solvei precisava ser capaz de estudá-la sem escrutínio – não em momentos roubados enquanto os guardas mudavam de turno, mas sem pressa à luz do dia. Era hora de parar de agir como se ainda existissem dois mundos – acima e abaixo, ave e mago. Eles eram um só povo agora. Suas vidas estavam todas penduradas no mesmo equilíbrio, o que significava que as mentiras haviam se esgotado. O rei Lionus precisava ouvir quem sua filha realmente era. — É uma história sobre amor e destino — continuou Xander. — É uma história sobre um rei e uma rainha. É uma história sobre um corvo e uma columba. O rei suspirou. — Isso não poderia ter esperado até de manhã? — Não. — Suponho que você seja o corvo? — Na verdade… — Xander parou e girou nos calcanhares, sorrindo tristemente. — Eu não sou. Depois que o corvo partiu, Brilhante não perdeu tempo. A surpresa era a única vantagem restante e a velocidade era essencial. Nenhuma borboleta invadiu seu estômago. Nenhum pensamento indisciplinado sobre lábios rosados ou pele macia e bronzeada, ou cachos dourados e sedosos, quebrou sua concentração. Ela não se perguntou por que Solvei ainda não havia mencionado a conversa de antes, quando Brilhante praticamente desnudou sua alma. Ela não estava obcecada com o sorriso de um possível talvez que curvou a boca da maga da fenda antes de serem tão rudemente interrompidas. Ela não analisou demais cada frase que passou entre elas em busca de um significado oculto. Todas as distrações contra as quais ela normalmente lutava quando estava sozinha com Solvei felizmente haviam desaparecido, substituídas pelo terror. A tripulação era sua família. E Brilhante faria o que fosse necessário para recuperá-los. Claro, ela não pôde deixar de notar como o luar atravessava a parede de cristal, refratando apenas o suficiente para brilhar nos olhos âmbar de Solvei. Seu coração sofreu uma pontada leve quando ela se virou para encontrá-los. Magia viva, sou apenas humana, ela resmungou silenciosamente antes de sinalizar: — Você pode me mostrar Arqueiro? Uma fenda de mão única se abriu no pequeno espaço entre elas. Do outro lado, seu amigo caminhava sobre um piso de madeira rangente, a superfície ondulante do navio mais natural para ele do que as pedras imóveis sobre as quais ela se ajoelhava. Seu foco estava voltado para dentro, seus olhos vidrados, o que significava que ele estava sozinho. A cabine parecia estar vazia de todas as posses, iluminada apenas por uma janela circular. A porta estava fora de vista, mas Brilhante imaginou que fosse trancada por uma fechadura de madeira – o tipo de cela projetada especificamente para um ferro’kine. Ainda assim, um sorriso torceu seus lábios. Eles cometeram um erro deixando-o solto. A notícia de como Brilhante e Solvei escaparam não deve ter se espalhado para a capitã ainda, mas era apenas uma questão de tempo até que eles percebessem que estavam enfrentando uma spatio’kine. Ela puxou a manga de Solvei. — Você pode mudar para uma fenda real? Eu vou agarrá-lo. — Você acha que é seguro? — Acho que é a única chance que teremos. Solvei assentiu. Suas sobrancelhas franzidas em um olhar concentrado que Brilhante começou a reconhecer. As faíscas brancas dançando sobre seus dedos se intensificaram. Sua magia cresceu. A imagem no centro da fenda ficou mais nítida, as cores ficando mais vivas como se um filme tivesse sido levantado enquanto a abertura se estendia mais alto e mais larga. Do outro lado, Arqueiro continuou andando, inconsciente enquanto seus passos o levavam para mais longe, depois de volta, cada vez mais perto, até que parecia que ela poderia simplesmente estender a mão e agarrá-lo. Então ela o puxou. No segundo em que as bordas da fenda se solidificaram, Brilhante esticou os braços através do portal, torceu os dedos na camisa dele e puxou. Uma pluma verde imediatamente saturou o ar, mas ela aprendeu a não manter nenhum metal em seu corpo, então não havia nada que o ferro’kine pudesse fazer para detê-la. Ele tropeçou e caiu na pedra ao lado dela. Um piscar de olhos depois, a fenda desapareceu. — Arqueiro, sou eu — disse Brilhante, agora que não havia chance de ser ouvida. — Graças à magia! Seu poder desapareceu quando ele caiu de joelhos e praticamente se atirou contra o peito dela. Ela ficou rígida como uma tábua, mas ele optou por não notar e apertou ainda mais forte. Brilhante revirou os olhos. Ela poderia ter se esquivado do abraço ou interrompido com um comentário sarcástico. Em vez disso, ela olhou para o cabelo grisalho fazendo cócegas em sua bochecha e esperou. Outro segundo se passou antes que ele se inclinasse para trás. — Onde estão todos os outros? — Tivemos que começar com você. A compreensão escureceu seus olhos azuis claros. — Mostre-me. Ela sacudiu a cabeça para o lado onde Solvei já havia aberto uma fenda de mão única para o quarto escuro que atualmente abrigava o resto da tripulação. — Com o que estamos lidando? — Arqueiro perguntou, apertando os olhos. Brilhante estava mais sintonizada com a luz. Na sombra verdadeira, ela era tão cega quanto qualquer outra pessoa, mas o brilho que se infiltrava por baixo da porta era mais do que suficiente para iluminar o espaço. Cada brilho sutil se acentuou como a luz do sol nas barras de metal e correntes em seus olhos photo’kine. — Eles estão completamente cercados por uma jaula de metal, o que não é um grande problema para a fenda, mas também acorrentados individualmente, o que pode levar algum tempo, especialmente se houver outras pequenas armadilhas à espreita. — Nós podemos lidar com isso. — De acordo. — Então vamos. Seu tom era ansioso. Ele entendia as restrições de tempo tão bem quanto ela. A tripulação nunca mais ficaria desprotegida assim. Brilhante gesticulou para Solvei. A fenda se solidificou. — Desculpe interromper a festa... — Brilhante! — Esquilo ficou de pé no momento em que sua luz mágica encheu a sala, um pacote de entusiasmo. — Shhh! — A capitã repreendeu rapidamente, com as narinas dilatadas enquanto ela voltava sua atenção para a fenda. Sua fachada dura foi traída pela diversão em seus olhos. — Já estava na hora. — Eu tive que fazer uma parada primeiro — disse Brilhante e olhou por cima do ombro. Uma onda de magia ferro’kine voou pela fenda, desviando dela para começar a atacar as correntes. Ela se moveu para o lado, dando a Arqueiro espaço para se juntar a eles na cela. — Existem guardas? — Um do lado de fora da porta, uma hydro’kine, acreditamos, embora possa haver outros. — Haverá em breve — disse Brilhante gravemente enquanto se ajoelhava diante da capitã, deixando Arqueiro com seu trabalho. Ela baixou a voz. — Eles viram a fenda quando Solvei e eu escapamos. Pelo menos dois deles sabem o que ela é, e é apenas uma questão de tempo até que notifiquem os demais. Estou surpresa que eles deixaram vocês sozinhos. A capitã franziu a testa. — Eles devem estar distraídos. — Eu sei o porquê. — Kasiandra — toda a cor se esvaiu do rosto da mulher mais velha, deixando sua pele pálida. Terror brilhou elétrico em seus olhos. — Eles a têm? Por que você não a salvou primeiro? — Nós tentamos. Eu estava prestes a ir atrás dela quando a fenda desapareceu. — Desapareceu? — Solvei não soube explicar. Em um momento, a fenda era forte e, no seguinte, sua âncora em Cassi havia se desfeito. Ela não sabe como ou por quê. A capitã a agarrou pelo antebraço, os dedos cavando quase dolorosamente em sua pele. — Onde ela está? Botas batiam na madeira acima de suas cabeças. Vozes altas se agitaram do outro lado da porta. A pontada de magia encheu o ar. — Estamos prestes a ter companhia — Remendado murmurou. — Quanto tempo mais você precisa, Arqueiro? — Alguns minutos para deixar todo mundo livre. — Me deixe — disse a capitã. — Tire todos os outros. Remendado virou a cabeça para o lado, dando a ela um olhar atipicamente duro. — Me deixe. — Mas Cap... A mulher interrompeu Brilhante com um aperto forte e puxou-a para mais perto. — Onde. Ela. Está? — Não importa — disse Brilhante, desculpas vazando em seu tom. — Você não vai conseguir. — Eu tenho que tentar. — E quando você for pega? — Brilhante perguntou, seu tom não mais simpático. Ela seria o cara mau se precisasse. Quando se tratava da segurança da capitã, ela faria o que fosse necessário. Esta mulher tinha lhe dado uma segunda chance na vida. Brilhante devia tudo a ela. Não seria assim que a história da Capitã terminaria, acorrentada e indefesa, nada mais que um cordeiro sacrificado. Ela merecia mais do que isso. — Eles vão encontrar uma maneira de forçá-la a falar. Não facilite o trabalho deles se jogando de cabeça, a menos que seja isso que você deseja para sua filha? Ter que escolher entre salvar sua vida ou salvar o resto do mundo. A capitã mostrou os dentes, mas não disse nada. A porta se abriu. Como se fossem uma só mente, a Capitão e Remendado moveram suas mãos para o lado. Magia aero’kine irrompeu de suas palmas e uma rajada de vento atravessou a sala, fechando-a com força. — Isso não vai detê-los por muito tempo — Remendado alertou. — Eu vou — Arqueiro grunhiu, mantendo seu foco nas correntes. As pancadas de metal eram reconfortantes, uma após a outra, enquanto as algemas caíam no chão. Dentro da brisa agitada, a porta começou a brilhar. A mudança foi sutil a princípio, um amarelo suave vazando pelas rachaduras, depois um laranja mais vibrante, até que as bordas da madeira começaram a escurecer e descascar. O inferno mudou para um vermelho derretido. Tábuas borbulhavam e estalavam com o calor. — Pyro! — Capitão gritou. — Já estou cuidando disso! A porta se desintegrou. Faíscas vermelhas encheram o ar, encontrando a onda de chamas de frente e parando-a em seu caminho. O ar quente soprou contra as bochechas de Brilhante. Sua testa começou a suar. Então a madeira estalou. Água assobiou. — Sanguessuga! Espirro, esguichar! Flashes azuis e verdes encheram o ar. A hydro’kine inclinou a cabeça para trás como se fosse espirrar, e Brilhante se lançou para o lado para apertar seu nariz. O ar acumulado no peito de Espirro se dissipou. — Obrigada — ela murmurou. Brilhante simplesmente revirou os olhos. A escuridão ao redor deles engrossou, sufocando o brilho que emanava de sua palma. — Sombra! A umbra’kine sugou o preto impenetrável em sua palma. — Consegui! Clang. Clang. As correntes continuaram caindo, uma a uma. Quando a tripulação foi libertada, eles se juntaram a ela ao lado da fenda, mantendo as costas juntas e os olhos em tudo o mais. As barras ao redor deles tremeram quando a magia estrangeira ferro’kine zuniu pela porta. A cela saltou uma vez, fazendo com que todos caíssem de joelhos, antes que Arqueiro a estabilizasse. Clang. Clang. — Quantos mais? — Apenas um — veio sua resposta áspera. A capitã. — Me deixe — ela ordenou. — Estamos em um impasse — disse Brilhante como se não tivesse ouvido. — Temos que ir juntos, em um salto, ou não. Prepare-se. — Droga, eu disse para me deixar! Arqueiro chamou a atenção de Brilhante do outro lado da cela e assentiu. A capitã iria de um jeito ou de outro, mesmo que ele mesmo tivesse que arrastá- la pela fenda. Ela acenou para Solvei e o portal se alargou, até ficar grande o suficiente para que todos pudessem pular. Como um amontoado, eles se aproximaram da borda. — Em três — ela sussurrou. — Um. Dois. Três! Sua magia crepitou quando sua concentração mudou para a fuga e, como um só, eles se lançaram para a frente através da fenda. Fogo, água, ar e metal correram atrás deles em uma tentativa desesperada de deter seu movimento, mas em um segundo acabou. Eles caíram amontoados contra um chão de pedra fria e a fenda se fechou atrás deles. — Malditos sejam todos os dragões! A maldição da capitã foi alta no súbito silêncio. Brilhante olhou por cima do ombro quando um último clang encheu o ar. A magia de Arqueiro piscou e a corrente que ele usou para puxar a Capitã pela fenda caiu no chão. Ela estava lívida, tremendo de raiva. — Vocês deveriam ter me deixado! — Ela se enfureceu, com as mãos fechadas em punhos. — Vocês deveriam ter partido! Vocês deveriam... deveriam... A capitã se interrompeu e ergueu a cabeça, os olhos em chamas. Enquanto a mulher mais velha olhava para eles um por um, fraturas se espalharam por suas íris azuis geladas. Quando ela olhou para Brilhante, suas paredes desmoronaram. Ela não está com raiva, percebeu Brilhante. Ela está com medo. — Cassi vai ficar bem. Ele precisa dela. Ele não vai machucá-la. — Não fisicamente — a capitã sussurrou, sua expressão ficando distante e oca, vulnerável de uma forma que ninguém na tripulação tinha visto antes, ninguém exceto talvez Remendado. Isso era mais do que a preocupação de uma mãe por sua filha. A dormi’kine era capaz. Ela sobreviveria até que eles encontrassem uma maneira de salvá-la. Isso era mais profundo, atingindo o âmago da capitã. — O que você não está nos dizendo? — Perguntou Brilhante. Remendado colocou a mão no braço da capitã e ela estremeceu. — Você não precisa dizer nada, Zia. — Está na hora, Markos. Markos? Pensou Brilhante. Zia? Tremedeira murmurou os nomes para ela e ambos deram de ombros. O resto da tripulação trocou olhares cautelosos, mas a capitã simplesmente suspirou. Sua coluna se curvou quando ela respirou fundo e, quando seus olhos reabriram, sua máscara estava de volta no lugar. — Está na hora. Enquanto a consciência voltava lentamente, Cassi tomou conhecimento de um fato muito importante. Ela não estava sozinha. A princípio, não passava de um sentimento, a sensação de olhos em suas costas. Então, um o rangido suave de uma cadeira, quase indiscernível dos gemidos do navio de madeira, perto o suficiente para que ela não pudesse ter certeza. E, finalmente, ela ouviu – o som que ela estava procurando por cima do bater de seu próprio coração – sopros de uma respiração calma e constante. Quem quer que estivesse assistindo, não estava com medo. O que era um erro. Cassi amoleceu contra o colchão, forçando seus músculos a relaxarem enquanto seu corpo gritava com a calma antinatural. Ela precisava parecer adormecida. Se ela se movesse muito enquanto entrava em sua forma espiritual, seu captor saberia. Quando seus membros ficaram completamente flácidos, ela buscou profundamente aquela centelha de magia mais familiar do que sua própria pele. O poder dormi’kine puxou seu espírito e... Nada aconteceu. Uma carranca vincou sua testa. Deslizar para seu eu espiritual era mais fácil do que entrar em um sonho, exigindo nada mais do que um único pensamento. E ainda… Cassi voltou a usar a sua magia. Nada. O poder queimava profundamente dentro dela, mas ela não conseguia agarrá-lo. O pânico borbulhou em sua garganta enquanto ela tentava uma terceira vez sem sucesso. Toda pretensão de dormir caiu no esquecimento quando seu pulso acelerou e seus músculos se contraíram. Ela esqueceu que havia mais alguém na sala. Ela esqueceu tudo – onde estava, quem era, o que deveria estar fazendo. Tudo o que importava era sua magia, um pedaço dela que ela nunca por um segundo imaginou que poderia ser removido. Onde estava? O que aconteceu? Como? Uma risada baixa encheu o ar. Cassi congelou. — Tive a sensação de que você tentaria isso. A voz pertencia a um homem. Era profunda e, de alguma forma reconfortante, rolando sobre ela como um cobertor quente, apesar da situação em que se encontravam. A diversão pulsou através das palavras. Embora ela nunca tivesse conhecido o homem, pessoalmente ou em seus sonhos, ela sabia quem era. Apenas uma pessoa seria tão presunçosa, tão à vontade. Cassi voltou-se para o falso rei. Ele parecia diferente do que ela imaginara, não velho e envelhecido, mas viril e em forma. Seu rosto carregava a passagem do tempo, as rugas ao redor dos olhos e o toque de cinza em suas bochechas com barba por fazer, mas o efeito geral era intimidador. Mesmo sentado casualmente na cadeira, ele parecia um homem grande, alto e musculoso, do tipo que não tem medo de causar dor quando necessário. O cabelo castanho ondulado caía frouxamente sobre o rosto, como se tivesse sido recentemente açoitado pelos ventos do oceano, a única parte dele que se poderia chamar de desgrenhado. Suas botas estavam engraxadas e suas roupas feitas sob medida. Ainda assim, ele não parecia alguém que pedia aos outros para completar seu trabalho sujo. Aquelas mãos carregavam sangue – Cassi tinha certeza disso. Elas podiam suportar o dela também. Olhos da cor de fumaça e aço a varreram enquanto o falso rei fazia seu próprio inventário. Ela não conseguia ler sua expressão. Eles eram inimigos, com certeza, mas ele não a estava avaliando como se fosse um inimigo, procurando por fraquezas e catalogando pontos fortes, do jeito que ela o estava examinando. Havia uma nota de admiração em seu olhar que fez seus ombros se contorcerem. Ela não entendia o que isso significava. Eu deveria tê-lo espionado. Eu deveria estar mais preparada. Ela era uma dormi’kine e não fez nenhum segredo sobre isso nos últimos meses – seu próprio erro. Claro que ele viria por ela, por sua magia. Mas a mãe dela disse que eles estavam lutando uma guerra diferente, para se concentrar na spatio’kine e na fenda e deixar o falso rei para Jacinta. Oh, ela estava curiosa, e uma ou duas vezes ela tentou localizá-lo, mas sua magia foi incapaz de encontrar um ponto de apoio. Cassi nunca se importou com isso, atribuindo-o ao fato de ele ser um estranho. Algumas pessoas eram mais difíceis de localizar em sua forma espiritual do que outras. Então, em vez de perder tempo em uma perseguição selvagem, ela manteve o foco em recuperar seus amigos, como lhe disseram. E, para ser sincera, passar o tempo livre nos sonhos de Xander era uma alternativa muito mais atraente. Ela amaldiçoou sua luxúria agora. O homem era imune a sua magia? Foi por isso que ela nunca foi capaz de encontrá-lo? Era por isso que ela não podia tocar seu poder na presença dele? O falso rei era um poderoso ferro’kine – ela sabia disso. Mas ele era mais? — Tanos — disse Cassi, com tom firme. Ela não ofereceu a ele nenhum título, nenhuma marca de respeito, nada além de seu nome. Ele sorriu, como se estivesse encantado. Sua voz era quente quando ele falou. — Kasiandra. — Seja lá o que você quer, minha resposta é não. Seu sorriso se aprofundou. — Como eu suspeitava. — Então vamos pular para a parte em que você me ameaça e acabe logo com isso. — Não estou planejando ameaçar você. — Certo — ela bufou. — Posso ser jovem, mas não nasci ontem. A alegria morreu em seus lábios. — Estou bem ciente disso. Interessante, pensou Cassi, observando a reação dele. Eu me pergunto o que ele quer dizer. Normalmente, ela teria pensado que era algum tipo de insinuação – afinal, ela era uma mulher mantida em cativeiro por um homem. Mas enquanto seu tom estava cheio de implicações ocultas, ela não acreditava que fossem de natureza sexual. Ela não tinha ideia do que eram. — Tudo bem, vou jogar o seu jogo — disse ela, intrigada, enquanto colocava os pés no chão e equilibrava os cotovelos nos joelhos, encarando-o de frente. Suas asas se moviam enquanto ela se movia, não mais curvadas atrás dela, mas abertas em uma exibição quase opulenta. Seu olhar se demorou em suas penas salpicadas antes de retornar a seu rosto. — Se você não quer me ameaçar, o que você quer? — Te fazer uma pergunta. — Pergunte à vontade. — Onde você pertence? Um choque elétrico irradiou em seu peito, a marca de um golpe bem colocado, mas por fora ela permaneceu imperturbável. — Não a este lugar. — Então onde? Ela abriu a boca, mas nenhuma resposta veio. Ela não sabia. Ela nunca soube. Mas ela se recusou a dar-lhe a vitória. — Por que você pergunta? — Porque estou curioso — ele não se moveu desde que eles começaram a falar, mas agora ele se inclinou para frente, espelhando a pose dela, as mãos frouxamente cruzadas no espaço entre os joelhos. Seu rosto estava apenas um palmo mais perto, mas Cassi ainda teve que lutar contra o instinto de se encolher diante do súbito peso de seu olhar. — Não ao céu, com certeza. Você traiu os avians no mais alto nível. Não ao mar. Suas asas sempre o nomearão uma pária. Nem mesmo ao navio de sua mãe, praticamente um lar rebelde para almas perdidas. Ouvi dizer que o Rei Nascido no Fogo chegou lá primeiro e, bem, nós dois sabemos o que você fez com ele — ele riu baixinho e um brilho de algo quase como orgulho brilhou em suas pupilas escuras. Isso fez seu estômago revirar. — Você poderia pertencer a este lugar, se você quisesse. — Sério? — Cassi arqueou uma sobrancelha pontiaguda, fingindo mais bravata do que sentia. — É por esse caminho que você está indo? — Que oferta maior poderia haver do que um lugar no mundo? — Eu já tenho um lugar no mundo — Cassi fervilhava, suas inseguranças borbulhando logo abaixo da superfície. — E não é com você. — Então onde é? Com seu rei e sua rainha? Os que se foram? Ou os que nunca vão voltar? É com Xander, ela pensou, agarrando-se ao último grão de esperança que ainda ardia no fundo de seu coração. Se ela fechasse os olhos, poderia sentir o peso das penas de corvo sedosas em volta do pescoço e a mão quente dele na dela. Se ela tentasse, quase poderia ouvi-lo sussurrando: Você é boa. Mas ela nunca daria ao falso rei a satisfação dessa confissão. — Eu pertenço ao mesmo lugar que todo mundo: às pessoas que me amam. — Você acreditaria que eu sou uma dessas pessoas? — Ele fez uma pausa. — Você poderia? Sua nuca formigou quando a pergunta despertou uma nova ideia, mas sua negação correu como uma avalanche, enterrando a semente antes que pudesse crescer. — Acabamos de nos conhecer. Ele riu, um som alto e barulhento que encheu a sala até que sua garganta queimou. Não havia ar para respirar, nem espaço para pensar enquanto os ecos batiam como punhos contra seu crânio, forçando-a a abrir os olhos e ver. — Agora, Kasiandra, finalmente você está errada. Ela odiou a cadência arrogante da declaração, a corrente de pena permeada pelas palavras, e a maneira inteligente como ele falou o nome dela, como se fosse de alguma forma familiar, como se ele tivesse dito isso mil vezes antes e o diria mil vezes mais. Principalmente, ela odiava como, no fundo de sua mente, um milhão de pedacinhos pareciam estar se encaixando. — Você pode ter acabado de me conhecer, mas eu te conheço por toda a sua vida — a voz dele era suave, e ela se viu inclinando-se para mais perto como se estivesse em transe, ou talvez com repulsa, ou talvez presa em algum lugar no meio, equilibrada entre o horror de assistir a uma tragédia se desenrolar diante de seus olhos e a curiosidade de se perguntar se tudo terminaria do jeito que ela temia que pudesse. — Eu conhecia você antes de ser levada para o céu — ele continuou. — Antes de você ser uma espiã, antes de ser um pássaro, antes mesmo de nascer. Eu te conheci quando você era apenas uma ideia. Finalmente a ficha caiu. Ela se encolheu como se o som tivesse sido real e não em sua cabeça. Seus olhos prateados. Seu cabelo castanho ondulado. Sua pele marrom clara. Sua crueldade infame. Sua astúcia. Não, não, não, não. Em voz alta, ela disse algo tão fraco que sabia que iria repetir de novo e de novo, sua aversão aumentando a cada repetição. — Eu não acredito em você. Ele suspirou, como se estivesse desapontado, e olhou por cima do ombro, acrescentando quase como uma reflexão tardia: — Talvez isso a convença — em seguida, mais alto: — Emalia. Cassi seguiu o seu olhar até à porta que se abria. Uma garota entrou, magra mas forte, vestida inteiramente de preto, das botas às calças e ao colete justo amarrado no peito. Seus braços estavam nus, exceto por um par de algemas douradas ao longo de seu bíceps direito. Seis punhais quebravam a exibição monótona, um na panturrilha, um na coxa, três no quadril e um na mão, todos de metal. Ela girou o aço brilhante entre os dedos para captar a luz, chamando a atenção para o local, e enfiou-o de volta na lateral do chapéu, que tinha a aba larga como o de um capitão. Então ela ergueu lentamente o queixo. As sombras envolvendo suas feições recuaram como se fossem uma cortina. A revelação foi tão dramática que Cassi poderia ter revirado os olhos se não estivesse completamente congelada, paralisada pelo choque. Seu próprio rosto olhava de volta. A estranha curvou os lábios em um sorriso torcido. — Olá, irmã. — Eu tenho uma filha — a tripulação encarou Zia sem expressão. Suas narinas dilataram. — Outra filha. — Droga, Capitã! — Outra? — Você deu umas escapadinhas! — Silêncio — Markos interrompeu e ofereceu um aceno encorajador. — Ela não acabou. Zia fechou os olhos enquanto o silêncio se instalava. Ela nunca havia dito essas palavras em voz alta. Não antes de ela fugir, e nunca mais depois. Tudo o que ela queria fazer era esquecer – esquecer os erros de sua juventude, esquecer as escolhas que fez, esquecer a culpa, a dor e a desgraça, – enterrar tudo em sua promessa de fazer melhor, de ser melhor. Mas agora a verdade arranhou sua garganta como uma besta finalmente libertada de sua jaula subterrânea. — Tanos é o pai delas. Desta vez, nem uma única voz perfurou o silêncio deixado na sequência de sua confissão. A tripulação olhou para ela de queixo caído. Levou toda a coragem que tinha enquanto lutava para não esconder o rosto de vergonha. Velhos sentimentos borbulhavam à superfície, como se estivessem fervendo ali por vinte anos, apenas esperando o momento de transbordar. Mas ela era uma mulher agora. Ela não usava mais suas emoções em sua manga. — Tanos, tipo o Tanos? — Brilhante finalmente disse, as palavras saindo de seus lábios. Não era nenhuma surpresa que a photo’kine fosse quem finalmente quebrou o silêncio. — Tanos, o falso rei, Tanos? — Sim. — Magia viva. Como? — Bem, Brilhante — Arqueiro interrompeu. — Veja, quando um homem e uma mulher... Ai. A garota o silenciou com uma boa e velha cotovelada no estômago. Zia lutou contra um sorriso. — Apesar da gracinha, Arqueiro não está errado. Nós nos conhecemos há muito tempo. Eu gostaria de dizer que ele era uma pessoa diferente naquela época, mas não era. Eu apenas falhei em ver o monstro dentro do homem até que fosse tarde demais. E eu era diferente naquela época. Muito, muito diferente. O único olho castanho de Markos encontrou o dela do outro lado da sala. Memórias piscavam em suas profundezas, algumas faíscas brilhantes, algumas manchas escuras, marcando sua história compartilhada. Desde que ela chegou neste mundo sobre o mar, ele esteve ao seu lado, esteve lá para salvar seu corpo quebrado das águas quando ela caiu, esteve lá para ajudá-la a encontrar seus novos pés, esteve lá em cada final complicado e cada esperançoso novo começo, esteve lá para o bem, para o mal e para o verdadeiramente horrível. — Eles não precisam de todos os detalhes — ele murmurou, oferecendo uma tábua de salvação como sempre. Desta vez ela não aguentou. — Eles precisam. Eles mereciam finalmente saber quem realmente era sua capitã. — Eu tinha sete anos quando meus pais me arrancaram da cama no meio da noite e me seguraram enquanto meu tio cortava minha asa. Eles observaram silenciosamente enquanto ele me empurrava até a borda, sem pronunciar uma palavra sequer. Eu era uma criança e então, em um piscar de olhos, toda a minha inocência foi arrancada junto com minha identidade. Não é uma desculpa, é mais uma explicação de onde minha mente estava quando caí na névoa, não mais um pássaro, mas ainda uma criatura do vento. Esperei que a ira de Vesevios me consumisse, mas, em vez de chamas crepitantes, ouvi uma voz gritar. Outro vento veio ao encontro do meu e minha queda diminuiu até que eu estava quase flutuando. Então dois braços atarracados gentilmente me arrancaram do céu. Aqueles braços se tornaram o único lar que eu já conheci. O menino a quem eles pertenciam tornou-se meu protetor, meu confidente, meu irmão, mais próximo do que os de sangue. Ela parou para encarar Markos. Ele desenhou os lábios em uma linha sombria, lembrando-se daquela noite e das noites que viriam. Quando ele notou sua atenção, sua expressão se suavizou. Ele era sua família, e ela era dele. A tripulação olhou de um para o outro, sentindo que eles estavam do lado de fora olhando para dentro. — Vocês o conhecem como Remendado — ela continuou, então tossiu suavemente para limpar a garganta. A história dele não era dela para contar, e a dela já era bastante complicada. — Ele era um aprendiz do mago do vento local. Ele me levou de volta à loja deles e convenceu o mago a ficar comigo. Fui relegada aos depósitos. Minha única asa chamava muita atenção. Eu mal podia sair. Tantas vezes implorei a ele para cortá-la para que eu pudesse me misturar, mas mesmo assim ele me conhecia melhor do que eu mesma. À noite, saíamos escondidos e corríamos para os arredores da cidade. E ali nos sentávamos para ver os navios entrarem no porto. Durante horas, imaginei-me de pé na proa com o vento nas minhas penas e jurei que um dia estaríamos naqueles navios como soldados do exército do rei. Mas primeiro, tínhamos que chegar à academia em Da’Kin. Aquele desespero de voar ainda queimava profundamente em seu coração, não aplacado depois de todos esses anos como capitã de seu próprio navio. Quando menina, ela pensou que talvez se continuasse avançando um passo mais perto, algum dia ela poderia se sentir inteira novamente. Como mulher, ela aprendeu a aceitar que nunca o faria. Parte dela se perguntava se Markos ainda a teria seguido se soubesse do que estaria abrindo mão – uma família verdadeira, uma vida simples, um lugar para chamar de lar. Parte dela ainda carregava a culpa por tudo que ele havia perdido. — Remendado foi testado quando sua magia se tornou conhecida, e ele foi considerado não forte o suficiente para a batalha. Mas eu sabia um segredo: sua magia havia chegado em duas ondas, e ele estava mantendo seu verdadeiro poder escondido. Eu não entendi o porquê. Eu não entendia então que conforto, estabilidade e comunidade continham magia própria. Eu não entendi porque a minha tinha sido tão cruelmente arrancada. Então, quando finalmente não aguentei mais meu lugar quieto no fundo dos depósitos, tive um ataque, um ataque bastante grande. Invoquei uma tempestade que destruiu o prédio, todo o quarteirão e metade dos vizinhos. Tenho sorte de ninguém ter morrido, mas naquela época eu não pensava nessas coisas. Eu só considerei minhas próprias necessidades egoístas. Infelizmente, levaria um tempo até que eu aprendesse essa lição, porque quando os principais magos da cidade chegaram, eles me deram exatamente o que eu queria: uma oferta para estudar em Da’Kin. Eu concordei com uma condição: Remendado iria comigo. E, no dia seguinte, nós dois conhecemos Tanos pela primeira vez. Zia se lembrava de cada detalhe. O ar salgado com cheiro de promessa. A brisa rodopiante encheu-se de alegria. A palpitação de seu coração e a cintilação no fundo que quase parecia esperança, uma sensação que ela havia esquecido, uma que ela pensava ter sido esculpida em sua pele tão eficazmente quanto sua asa. Para ela, pisar naquele navio era como entrar em uma nova vida. Mas quando ela olhou para o amigo com um sorriso nos lábios, seu olhar solene estava na cidade que logo estaria desaparecendo cada vez mais de vista. — Tanos era novo no navio, recém-saído da academia e ainda ganhando seu sustento. Naturalmente, o trabalho pesado de nos monitorar coube a ele. Mas ele tinha o dom, mesmo naquela época, de fazer as pessoas se sentirem desejadas, especiais. Não importava quantas perguntas eu fizesse, ele respondia, com um sorriso e uma piscadela. Tola que fui, estava meio apaixonada quando chegamos a Da’Kin. Mas então Remendado e eu fomos para a escola, ele voltou para seu navio, e levaria quase dez anos até que nos encontrássemos novamente. Sempre fiquei atenta às notícias de seu avanço, então sabia que ele havia sido promovido a capitão jovem, mas ainda assim foi um choque quando entrei em meu primeiro navio e lá estava ele, exatamente como eu me lembrava, cheio de maturidade apenas aumentando seu fascínio. Remendado nunca foi enganado. Foi a única vez em minha vida que ignorei todos os seus avisos, e por isso, velho amigo, ambos pagamos caro. A tripulação trocou olhares, mas Zia manteve o foco em Markos. Eles perderam – oh, como ambos perderam –, mas ela também ganhou, um novo coração e uma nova esperança na forma de Kasiandra. Então, embora ela estivesse arrependida, mais arrependida do que ele jamais perceberia, ela nunca desejaria apagar aquilo. Se tivesse a chance, ela cometeria todos os erros novamente. Talvez ela ainda fosse aquela garota egoísta, afinal. — Tenho certeza de que todos vocês podem imaginar para onde essa história está indo — continuou ela, repassando os meses de namoro. — Fiquei grávida em um ano. Na época, sua cabeça estava cheia de romance. Agora ela reconhecia a verdade. Não havia nada que Tanos amasse mais do que a perseguição, e ela representava o desafio perfeito. Proibida. Protegida. A princípio, foram olhares furtivos pelo convés, depois toques secretos quando ele passava, depois um beijo nas sombras escuras do salão que a deixou sem fôlego. Logo eles estavam se escondendo não apenas da tripulação, mas também de Markos. Parecia que eles eram as duas únicas pessoas no mundo. Ela cresceu dependente dele, de seus humores, até que sentiu como se não pudesse nem respirar sem ele por perto. Apenas anos depois ela começou a reconhecer a manipulação pelo que era – abuso, não amor. Mas, mesmo agora, seu coração disparou com a lembrança de quão excitante tinha sido, quão apaixonada. Ele a arruinou. Não importa quantas vezes ela tentasse apagar o toque dele de sua mente, nenhuma outra mão provocou a mesma resposta. Eventualmente, ela parou de tentar. — Eu entrei em pânico. Eu disse a ele que não poderia ser mãe, que não sabia como, não tive exemplo e eu não tinha vontade. Eu queria cuidar disso, mas ele me implorou para não fazer isso, e eu nunca consegui dizer não. Então pensei, no fundo da minha mente, que poderia convencê-lo a desistir do bebê depois que ele nascesse. Tudo o que pude ver enquanto minha barriga crescia era meu futuro se esvaindo. Teria que me mudar para uma casa. Eu nunca me tornaria uma capitã. Eu tinha acabado de redescobrir o céu e iria perdê-lo novamente. Em vez de pacificar meus medos, ele os alimentou. Levei muito tempo para entender o porquê. Ele nunca gostou de competição. Ele queria a criança só para ele, para moldá-la como quisesse. Tanos assumiu o papel de chefe dos ferro’kine em uma das cidades da periferia para dar um lar estável à nossa filha e, quando ela nasceu, ele me deu a única coisa que sempre sonhei em ter: seu navio. Ele pagou pela minha tripulação, por sua lealdade e silêncio, e eu não me importava que tudo o que eu tinha fosse por causa dele. Eu só queria a fuga. Aqueles primeiros dias de maternidade não passaram de um borrão, nunca dormindo, sempre amamentando a bebê em seu peito, seu coração batendo de pânico, a voz dele em seu ouvido. Ela estava incrivelmente perdida, em seu novo corpo, em sua nova vida, nas emoções que pensava ter enterrado, atormentada pela dor, tristeza e incerteza. Se ela tivesse ficado mais uma semana, talvez as coisas tivessem sido diferentes. Mas ele forneceu uma porta, uma direção, e ela se lançou por ela. — Eu o deixei. Nem duas semanas se passaram antes que eu percebesse meu erro e voltasse correndo, mas quando entrei pela porta de sua nova casa, nossa filha já havia me esquecido. Ela chorou quando eu a segurei. Ela gritou pelo pai. Eu estava tão arrasada com minhas escolhas, tão perdida em minha própria depressão que não conseguia ver o que devia ser óbvio para todos os outros. Se eu tivesse ficado e lhe dado meu amor, ela teria me perdoado. Mas não o fiz, eu não podia. Corri de volta para o mar e não parei de correr por três anos, voltando apenas alguns dias de cada vez. Aqueles três anos foram os mais sombrios de sua vida. Tinha sido um longo sufoco, vivendo cada dia como se fosse incapaz de respirar, chutando constantemente para manter a cabeça um pouco acima da superfície, as bordas de seu mundo sempre negras com as sombras que se aproximavam. — O nome dela é Emalia — Zia sussurrou. — E ela me despreza. Em algum momento de sua história, Markos se moveu para o lado dela. Ele pegou sua mão. Ela sentiu conforto em seu toque, segurando seus dedos grossos como a tábua de salvação que eram. Ela o deixou fora da história – todas as brigas que eles tiveram, todas as vezes que ele tentou fazê-la ver a verdade sobre Tanos, todas as vezes que ele implorou para ela virar o navio, sempre dizendo que ela não queria ouvir, mas o que precisava ouvir. Sem a amizade dele, ela não teria sobrevivido àquela noite sem fim e iria para o túmulo se perguntando o que havia feito para merecer o amor incondicional dele. — Quando voltei para casa determinada a corrigir meu erro, já era tarde. Eu não era mais bem-vinda, nem por Emalia nem por seu pai. Eles fingiram a princípio, o suficiente para me apaziguar. Levei semanas para perceber os olhares compartilhados, os sussurros, os pequenos truques de magia que ele usava nas minhas costas para enviar uma mensagem muito clara: ela pode ser sua mãe, mas não é uma de nós. Talvez eu devesse ter cortado minhas perdas, mas é engraçado como a mente funciona. Ficar de fora só me fez querer ainda mais voltar às boas graças deles. Fiz tudo o que Emalia pediu, tudo o que Tanos desejou. Eles estavam brincando comigo. Foi um jogo. Foi preciso outra gravidez para eu entender a verdade. Tanos virou minha filha contra mim e faria o mesmo com qualquer outro filho que eu pudesse gerar. Decidi naquele momento que, se não pudesse salvar Emalia, salvaria seu irmão. Mas Tanos notou a mudança em mim, e foi aí que percebi toda a extensão de sua maldade. Havia uma razão para ela nunca usar mangas curtas, e era para que sua tripulação nunca visse as cicatrizes em seus pulsos. Não é tão fácil deixar um ferro’kine. Ele a acorrentou em um chão de pedra fria por uma semana, fornecendo comida e bebida apenas o suficiente para nutrir a criança que crescia dentro dela, e então a levou para uma cama quente, como se oferecesse um consolo. Ele manteve as correntes em seus pulsos por quatro meses, deixando-as flutuar ao lado dela quando ele a deixava ir ao banheiro ou sair para uma breve caminhada pelo jardim privado. Markos não teve permissão para vê-la. Houve um momento em que ela pensou que talvez, finalmente, seu amigo tivesse desistido dela, mas era uma falha em seu próprio caráter duvidar dele, não importa o quão brevemente. Ele veio com uma equipe de magos contratados para arrebatá-la no meio da noite. — Você me salvou — disse ela, segurando as mãos de Markos e olhando fixamente em seu único olho castanho, agora úmido com uma lágrima não derramada. Então sua atenção se voltou para a mancha escura que se cravava em sua pele marrom. E Tanos nunca te perdoou por isso. Ela respirou fundo e moveu seu olhar entre os membros de sua tripulação, ouvindo atentamente, mais quietos e mais bem-comportados do que ela já tinha visto. — Eu dei à luz a Kasiandra em fuga, ninguém além de Remendado ao meu lado. Conseguimos escondê-la por um tempo, mas Tanos nos encontrou quando ela tinha quase seis meses. Ele tinha a intenção de se vingar. Ele pensou que eu me machucaria para matá-la. Ele ainda achava que eu não queria ser mãe. Não foi até que ele viu a bebê em meus braços que ele percebeu a verdade, eu não tinha partido para destruí-la. Eu saí para salvá-la dele. Em sua raiva, ele fez a única coisa que sabia que mais machucaria Zia. Ele envolveu Markos em correntes e arrancou seu olho, lenta e maliciosamente, fazendo o possível para provocar gritos. O tempo todo, Markos cerrou os dentes e não deu nada ao homem. Tanos estava tão concentrado em sua fúria, em sua vingança, que não ouviu Kasiandra chorando, mas três outros magos ouviram. Ela nunca descobriu seus nomes. Não havia tempo. Ela e Markos aproveitaram a oportunidade, sem parar para olhar para trás. — Continuamos a viver nas sombras por três anos, sempre em movimento, nunca permanecendo no mesmo lugar por muito tempo, sempre olhando por cima dos ombros. Mas também houve bons momentos. Uma noite tão fria que eles ficaram tremendo sob os cobertores puídos, e o bater de seus dentes fez Kasiandra rir pela primeira vez. Ou quando Zia e Markos levantaram os olhos da sopa rala, e então viram Kasiandra caminhando em direção a eles sobre tábuas de madeira encharcadas. O sorriso dela foi a única alegria deles, mas foi o suficiente. E teria continuado sendo suficiente se não fosse pela noite em que Zia notou o sutil brilho prateado da magia sob a pele de sua filha. — Kasiandra tinha três anos e meio quando sua magia se anunciou, e eu soube instantaneamente qual era a única maneira de mantê-la segura. Há muito tempo deixei de acreditar em meus deuses, mas percebi que eles não haviam se esquecido de mim. Foi um presente, essa magia. Eu perderia outra filha, o castigo que merecia por ter abandonado Emalia, mas em troca Kasiandra teria uma nova vida, uma vida boa, no mundo que um dia chamei de lar. Ela teria o céu. Tudo o que eu precisava fazer era garantir um encontro com o rei. Ela e Markos foram rapidamente para Da’Kin, assumindo mais riscos do que o normal, finalmente sentindo uma luz no fim desta vida sombria. Eles se aventuraram na luz do dia apenas o tempo suficiente para avistar o menino rei no meio da multidão. Zia não sabia muito sobre Malek então, mas ela sabia o suficiente. Ela disse a Kasiandra para visitar seus sonhos e, pela manhã, ele os encontrou. Eu sou o rei. Você vai vir até mim, disse Malek depois que ela apresentou Kasiandra a seu conselheiro, pensando que o homem mais velho era o verdadeiro responsável. Foi a primeira e única vez que Zia subestimou o rei. Sua magia o deixou mais velho do que sua idade, expondo-o ao melhor e ao pior que a humanidade tinha a oferecer. Minha filha é uma dormi’kine e eu a submeto ao seu serviço, meu rei. Ela esperava que fosse isso, mas em vez disso, Malek se inclinou para frente e inclinou a cabeça para o lado, a curiosidade acesa em seus olhos tempestuosos. Por que? Por que? Normalmente, devo perseguir as crianças fortes, mas você a oferece de bom grado. Eu gostaria de saber por quê. Ele saberia se ela estivesse mentindo, então ela não sabia, sem saber se isso era um teste. O pai dela nos caça. Estamos fugindo há três anos e sei que isso a manterá segura. Quem é ele? Ela engoliu em seco, com medo de dizer o nome em voz alta. Tanos, o chefe ferro’kine… Eu conheço o homem, Malek interrompeu, seu tom áspero enquanto ele se recostava em seu trono. Ele não vai incomodar nenhum de vocês depois deste dia, não enquanto eu ainda respirar. Mas não ofereço favores livremente. Há algo que preciso em troca de minha proteção. Qualquer coisa. Você já foi capitã, segundo me disseram. Você será uma capitã novamente. Há um punhado de magos, magos muito poderosos, ninguém consegue comandar. Você conseguirá. Eu não me importo com como você chegará até eles, apenas encontre um jeito. Eu vou encontrar. E ela encontrou. Com um beijo rápido na testa da filha, Zia se despediu. Kasiandra foi levada por uma porta, para não ser vista em carne e osso novamente por dezesseis anos. Nesse tempo, ela fez o que Malek havia pedido e muito mais. E, à sua maneira, ele devolveu a ela uma pequena porção do que havia tirado – uma família. Ela cuidava de sua família agora. Eles eram um bando estranho de desajustados, mas eram tudo o que o outro tinha. Havia amor ali, muito amor. E, se eles prometeram a ela que lutariam para salvar Kasiandra das garras de Tanos, ela acreditou neles. — O resto vocês sabem — Zia disse, sua voz forte mais uma vez, não mais presa no passado, mas voltando ao presente. Sua tripulação se mexeu, como se saindo de um transe. — Então a única pergunta que resta é: o que vamos fazer agora? — Desculpe, Cap, mas posso perguntar mais uma coisa? Zia deslizou seu olhar para Brilhante. Eu deveria saber. Uma sobrancelha arqueada foi sua resposta sucinta. A photo’kine seguiu em frente, no entanto. — Sua primeira filha, ela tinha magia? — Não que eu saiba. — Hum — Brilhante lambeu os lábios e engoliu. — Então acho que podemos ter um problema. — E o resto você sabe — Tanos continuou, ainda sentado casualmente em sua cadeira, completamente impassível por sua história. — Sua mãe abandonou você, assim como abandonou sua irmã. Mas, em vez de pelo menos deixá-la com o pai que daria qualquer coisa para estar com você, ela deixou um rei mimado despachá-la para um mundo estrangeiro. Ela a condenou a uma vida de subterfúgios. Ela é a razão pela qual você não pertence a lugar nenhum quando poderia pertencer a mim. — Você ainda pode — acrescentou sua irmã com ternura. Eles estavam fazendo isso por um tempo, terminando os pensamentos um do outro, deixando a história rolar entre eles como se fosse uma peça bem ensaiada. Cassi fizera o possível para não olhar na direção da garota. Era muito estranho ver quase seu próprio rosto olhando de volta, como se ela estivesse em sua forma espiritual olhando para seu próprio corpo, só que este estava vivo e dizendo a ela todo tipo de coisas horríveis que ela nunca quis ouvir. Ela não queria acreditar nessas coisas sobre sua mãe. Que ela era capaz de tamanha crueldade. Que ela seria tão rancorosa. Não combinava com a Capitã Audezia'd'Rokaro em sua cabeça – a mãe de toda uma tripulação, dura, mas não fria, disponível para Cassi sempre que ela precisava dela, mesmo que apenas em seus sonhos. Ela passou a vida tentando não culpar sua mãe por entregá-la a Malek, tentando não odiá-la por isso, e agora aqui estavam as duas pessoas que poderiam ser sua família dizendo a ela para ceder ao impulso. Eu te amo. Essas foram as últimas palavras que sua mãe disse antes que os guardas a levassem embora, e foi a única vez que sua mãe as disse. Cassi não conseguia se lembrar de seus rostos, nem da sala do trono, nem de qualquer outra coisa sobre sua vida no mar, mas se fechasse os olhos, ainda podia ouvir a voz de sua mãe, ainda podia sentir o beijo quente em sua testa. Essas três palavras ficaram impressas em sua alma. Lembre-se, Kasiandra, sua mãe sussurrou, a voz suave, mas feroz. Você é sempre bem-vinda em meus sonhos. Eu te amo. Isso foi o adeus de uma mulher maliciosa? Cassi espiou Emalia por baixo dos cílios. A garota estava com os braços cruzados e as costas contra a parede, uma perna dobrada e a outra reta, de modo que o quadril pendia para o lado. A arrogância emanava dela em ondas – arrogância e outra coisa que Cassi não conseguia identificar. Minha irmã. Era uma frase que ela nunca imaginou pensar, e ainda não acreditava muito. Ah, eles estavam falando a verdade – Cassi não duvidava. A questão, porém, era o quanto era verdade o que eles estavam dizendo? Ela viveu sua vida cuidadosamente distribuindo pedaços selecionados de informação. Ela entendia que a parte mais importante de qualquer conversa era o que não era dito. E esses dois? Eles estavam muito equilibrados, muito posados. Foi uma encenação, uma boa, e poderia ter funcionado se não fosse por uma coisa: a pequena voz na parte de trás de sua cabeça gritando para não acreditar neles. O instinto a manteve viva em mais de uma ocasião. Cassi não iria ignorá- lo agora, nem mesmo pelo pai que ela passou a vida inteira querendo encontrar, ou pela irmã que ela nunca soube que tinha, mas agora desejava conhecer. Seu coração pode ter amolecido, mas sua vontade não. Minha mãe. Lyana. Xander. Eles não eram todos parentes de sangue, mas eram sua família do mesmo jeito. E eles precisavam que ela fosse forte. — O que você quer de mim? — Cassi finalmente perguntou. A pergunta era real, assim como o leve tremor em sua voz. Claro, ela poderia ter tentado esconder isso. Mas por que? Deixe-os pensar que ela vacilava. — Queremos que você se junte a nós — disse Tanos. — Para qual finalidade? Para torná-lo rei? — Você não quer ser uma princesa? — Seus lábios se curvaram com humor, mas seus olhos brilharam, lembrando-a do fio da espada com a intenção de matar. Não, ela respondeu silenciosamente. Eu não quero. — Queremos manter os magos seguros — sua irmã interveio, sentindo o erro de seu pai. — Os avians já possuem o céu, e agora com suas ilhas caídas, eles vão querer reivindicar o mar também. O nosso povo vai precisar de uma liderança forte para sobreviver, e a Jacinta não é essa rainha. — Mas você é esse rei? — Ela perguntou ao pai. — Eu posso ser. Você quer poder ser, ela pensou. Eu ouço a fome em sua voz. Em voz alta, ela disse: — E o que você precisa que eu faça? Ser sua espiã? — Não. Eu quero que você seja minha filha. — Eu pensei que já era. Tanos riu baixinho, como se estivesse dando a vitória a ela, e se mexeu na cadeira. — Eu quero que você seja minha filha em mais do que apenas sangue. — E o que mais? A menos que eu diga o que você quer saber, vai me despachar? Achei que você tinha passado os últimos vinte anos tentando me trazer de volta. Agora você está pronto para me descartar tão facilmente? Os músculos de seu pescoço ficaram tensos. Ela viu, e ele sabia disso. — Somos sua família, Kasiandra. A única que você tem. E ajudar uns aos outros é o que as famílias fazem. — É mesmo? Tanos se aproximou. — Você não quer manter vivo o mundo que construímos? Um mundo de magia e maravilha? Você passou a vida inteira nas nuvens. Você, mais do que ninguém, sabe que os avians nunca aceitarão nossa espécie. A guerra é o único caminho. Jacinta pode pensar diferente, mas você sabe a verdade. Você deveria saber. Acho que você não sabe tudo, pai. Cassi manteve o rosto cuidadosamente impassível. Tanos não fazia ideia de que os avians haviam encerrado as execuções, que estavam acolhendo a magia lentamente no redil. O descuido pode custar-lhe mais tarde. — Ajude-nos — pediu Emalia. — Por que vocês não me ajudam primeiro? — Cassi perguntou. — Como uma demonstração de boa fé. Família ajudando a família funciona nos dois sentidos, você sabe. — Eu faria qualquer coisa por você, filha. — Então devolva minha magia. Um sorriso conhecedor se espalhou em seus lábios. O orgulho brilhou em suas pupilas escuras. — Qualquer coisa menos isso. — Então, pelo menos, me diga o que aconteceu com ela. — Eu aconteci. Cassi olhou fixamente para Emalia, não conseguindo esconder sua surpresa. A reação trouxe um sorriso satisfeito aos lábios de sua irmã. Ela não era uma atriz tão boa quanto o pai. Astúcia e engano escorriam de cada poro dela. Era como se Cassi se olhasse no espelho, e todas as suas piores partes olhassem de volta. — Como? Não vejo nenhuma magia em ação. — Não é magia — sua irmã disse. — Ou talvez seja. Eu nunca poderia dizer. — Fale claramente. — Magia não funciona perto de mim. Se eu me concentrar, posso abafar seus efeitos, então poucas pessoas estão cientes da verdade. Mas se eu realmente me concentrar, posso expandir meu campo de influência. E, querida irmã, no momento estou me concentrando muito em você. Quando Emalia entrou pela primeira vez, Cassi deu uma olhada nas lâminas de metal presas a seu corpo e presumiu que a garota fosse uma ferro’kine, como seu pai. Mas agora, Cassi olhou para as adagas com novos olhos. Era uma exibição, sim, mas não a que ela presumira, a princípio. Parte disso deve ter sido um encobrimento – se Emalia estivesse perto de seu pai, ele poderia empunhar as armas para ela e as pessoas simplesmente presumiriam que era sua magia. Mas Cassi se perguntou se não haveria ali também um aspecto de desafio, como se ela estivesse desafiando o pai a tentar. Seu estômago caiu. Se a magia não funcionasse, isso significava... — Sim, Kasiandra — seu pai interrompeu, lendo sua mente. — Significa o que você pensa que significa. Não haverá spatio’kine vindo para salvá-la. Mas você não precisa ser resgatada. Como eu disse antes, não queremos fazer mal a você. Tudo o que queremos é que você nos dê uma chance. Tudo o que queremos é conhecê-la. Nossos esforços são em vão? Cassi queria acreditar nele. No fundo de sua mente, seu eu mais jovem sussurrou: Eu tenho um pai. Eu o encontrei. Ele é real. Por quase vinte anos, ela esperou e sonhou, nunca imaginando que esse dia chegaria. Mais uma traição em uma longa lista de traições e ela poderia ter esse pai, essa irmã, esse lugar no mundo. — Nós lhe demos um segredo, e agora você deve compartilhar um em troca — Tanos continuou suavemente, sentindo que ela estava à beira. — Tudo o que quero saber é se existe um segundo caminho para o ninho sagrado das columbas, um que não exija passagem pelo centro do palácio. Seria tão fácil ceder, tão fácil ignorar os avisos. Seria tão fácil, mas destruiria tudo. — Não — respondeu Cassi em voz baixa, sustentando o olhar e sem desviar o olhar. Ela havia aprendido há muito tempo a ignorar o desconforto inato da mentira, a se sentar no constrangimento até que a outra pessoa quebrasse. Isso a tornava mais crível. Enquanto ela continuava, Tanos mudou seu foco para o chão. — Não, não tem outro jeito. Mas conheço uma entrada secreta no palácio. Ele olhou para trás. Isso mesmo, insistiu Cassi silenciosamente. Acredite em mim. Ela poderia dar esta pequena coisa. Inferno, a passagem escondida era praticamente a porta da frente hoje em dia. Metade de Sphaira provavelmente já sabia disso. E, se ela jogasse suas cartas direito, ele nem perceberia que havia sido enganado até cair direto em sua armadilha. — Existe um túnel que vai de um prédio abandonado nos arredores da cidade até o coração do palácio. À noite, ninguém está lá, exceto alguns guardas noturnos e alguns criados. Você conseguirá alcançar o ninho sagrado facilmente, especialmente com um pouco de magia. — E você nos mostraria? — Posso desenhar um mapa para você. Ele se inclinou para frente, cruzando as mãos no espaço entre os joelhos, sua expressão inescrutável. Cassi pressionou com mais força. — Posso fazer melhor para você, se minha irmã permitir. Posso visitar seus sonhos. Posso mostrar a você em detalhes precisos exatamente como são Sphaira, o palácio e o ninho sagrado. Eu poderia até mostrar a você a fenda. — Você já a viu. — Já fiz mais do que isso. Ele se aproximou mais um centímetro, inegavelmente intrigado. Cassi acompanhou a pose dele, sem desviar o olhar. Ela manteve a voz baixa para atraí-lo ainda mais fundo na teia. — Eu vi o outro lado. Suas narinas se dilataram em um deleite mal contido. — Você viu? Emalia olhou severamente para Tanos. Ele estava saindo do roteiro. Cassi tentou esconder a sua alegria. — Eu… — Ela está mentindo — sua irmã interrompeu, o tom áspero, quase possessivo, ciumento até. Cassi armazenou essa informação para usar mais tarde. — Eu não estou — ela retrucou. — Você está — Emalia voltou-se para o pai, que não se mexera. Continuava a estudar Cassi, embora o brilho nos seus olhos tivesse mudado, não mais ansioso, mas resignado. — Ela nunca vai nos ajudar. Não de bom grado. — Eu sei — as palavras caíram como o estalo de um chicote. Cassi estremeceu quando Tanos suspirou e recostou-se no assento. — Ela se parece com a mãe quando mente. Traga para dentro! Cassi preparou-se para o que estava prestes a acontecer por aquela porta. Seria uma bandeja de dispositivos projetados para tortura? Um homem grande que encontrava alegria em dar um bom soco ou um pequeno que se deleitava em provocar a dor de alguém? Ela achava que Tanos era do tipo que fazia o trabalho sujo sozinho, mas estava prestes a ver como suas primeiras impressões haviam sido erradas. Ou ela não? Quando a porta se abriu, um corpo foi empurrado à força para dentro. O estranho tropeçou com os pés instáveis. A magia ferro’kine coloriu a sala de verde enquanto Tanos alcançava as algemas de metal. Cabelo comprido pendia em fios sobre um rosto magro. Cassi levou um minuto inteiro para perceber que a pessoa era um menino, não mais do que alguns anos mais velho que ela, embora a desnutrição o tivesse claramente envelhecido. Ele não tinha nome, nem história, nem importância, mas ela sabia exatamente quem ele era: seu destino. — Já quebrou suas promessas, pai? — Cassi brincou, tentando manter uma cara corajosa. Quanto mais ela falasse, mais ela poderia atrasar. — Eu pensei que você disse que não iria me ameaçar. — Eu não estou ameaçando você — Tanos deu de ombros. — Estou ameaçando ele. Uma adaga se soltou do quadril de Emalia, atravessou a sala e acertou a coxa do prisioneiro. O grito dele reverberou nas paredes, tão alto que Cassi quis cobrir os ouvidos. Mas ela não o fez. Ela manteve o corpo rígido e não deu nada ao pai. — Isso parece uma ameaça. — Uma ameaça é projetada para fazer alguém se sentir impotente. O que estou fazendo com você é exatamente o oposto. Estou lhe dando todo o poder para decidir se isso será rápido ou terrivelmente lento. A adaga torceu e então se soltou da perna do homem, arrancando um pedaço de pele com ela. O pedaço de carne pousou com um baque úmido. Cassi não conseguiu esconder o estremecimento. Outro grito penetrante encheu a sala. Tanos e Emalia permaneceram inalterados. Na verdade, eles só ficaram mais vivos. — O que exatamente você quer saber? — Ela forçou as palavras com os dentes cerrados, pesando a importância da vida de um estranho contra a vida de todos que ela já amou, contra o mundo inteiro. — Tudo. Uma estranha sensação de pavor tomou conta de Rafe enquanto ele segurava Lyana perto. Ela estava dormindo profundamente, seu peito subindo e descendo em um ritmo constante dentro de seu abraço. Nem um grama de espaço existia entre eles. Suas costas estavam pressionadas em seu estômago, suas coxas contra as dele. Até seus pés estavam entrelaçados. Sua bochecha descansava contra suas tranças, seu queixo contra a borda de sua asa. O súbito pico de medo não fazia sentido. Exceto que fazia. Eu não quero ir embora. Não desse momento. Não dessa caverna particular. Não desse mundo. Quero ficar aqui, assim, para sempre. Mas eles não podiam. Ele sabia que eles não podiam. Eles precisavam ir para casa. Eles precisavam impor a paz a dois povos à beira da guerra. Eles precisavam ser símbolos de esperança. Eles precisavam fazer todas essas coisas. Mas o que Rafe queria, aqui na segurança de seus próprios pensamentos, era outra coisa completamente diferente. Este mundo era brutal. Era estrangeiro. Não havia comida, abrigo, água limitada e os suprimentos eram ainda mais limitados. Era uma terra feita de fúria e chamas – e ele se encaixava perfeitamente. Aqui, sua mente era uma entre muitas. Aqui, suas asas eram apenas mais uma faísca em um incêndio maior. Aqui, sua fome corrosiva por magia foi saciada. Em casa, as coisas seriam diferentes. Ele seria diferente. Ele seria o único dragão no céu. Ele seria o único invinci na água. Ele não seria mais Rafe, ou mesmo Aleksander. Ele seria… Um rei. Ele não expressou o pensamento, mas ali estava, vil em sua língua, o suficiente para fazê-lo querer engasgar. E nem era toda a verdade. Ele não seria um rei, ele seria o rei – o Rei Nascido no Fogo, aquele que deveria liderá-los. Era um trabalho que ele nunca quis, nunca pediu e, na verdade, tentou durante toda a sua vida evitar. E, no entanto, era dele. Por nascimento. Por profecia. Por coincidência. Pelo destino. Por todos os fatores, exceto o mais importante: escolha. — Pare de pensar tanto — Lyana gemeu, mexendo-se em seus braços. — Está me mantendo acordada. — Eu não disse uma palavra. Eu nem estou me movendo. — Esse é o problema — ela resmungou. — Você está muito parado, muito tenso. Seus bíceps continuam apertando sob minha bochecha. É como dormir em cima de uma pedra. Ele revirou os olhos e murmurou: — Eu não sabia que meus músculos te incomodavam tanto. — Eles não incomodam... normalmente. Ele podia sentir seu sorriso irônico apenas pelo tom de voz. Um igual alargou seus lábios. Ela era a única pessoa que o fazia se sentir brincalhão. — Porque eu poderia simplesmente ir embora, e então você estaria dormindo em uma pedra de verdade. Muito mais confortável, tenho certeza. — Não se atreva. Ela agarrou seus antebraços e o segurou firmemente contra o peito. Ele bufou suavemente em seu cabelo, mas não fez nenhum movimento para recuar. Na verdade, seu impulso natural era fazer o contrário e abraçá-la ainda mais forte. Lyana suspirou satisfeita. — Então, no que você está pensando? Ele grunhiu. — Tão ruim assim, hein? Desembucha. Um nó apertou sua garganta. Não havia nada que ele não dissesse a ela e, no entanto, parecia embaraçoso admitir. A última coisa que ele queria era a pena dela. — Rafe? — Ela o cutucou gentilmente. Ele cedeu, como sempre. — Não é nada. Eu só estava pensando que, bem, estamos morrendo de fome, fugindo e longe de casa, ainda assim… — É delicioso? — Ela falou. Ele soltou uma risada suave e lamentável. Ela o lia com muita facilidade. — Nunca estive tão em paz em toda a minha vida e acho que estou preocupado que nunca mais estarei, que talvez não possa estar naquele outro mundo… em nosso mundo. Seu peito se contraiu quando ela soltou um suspiro pesado, mas foi um conforto de uma forma que ela não pulou imediatamente para consolá-lo. Isso significava que ela estava ouvindo, que ela entendia. Ele sentiu que ela estava prestes a se mover e afrouxou seu aperto enquanto ela girava em seus braços. Suas asas dificultavam a manobra e ela se atrapalhou desajeitadamente por um segundo, o rosto cheio de penas brancas e sedosas. Mas no momento em que seus olhos verdes finalmente o encontraram, uma sensação de calma tomou conta de Rafe, acalmando seus medos. — Estamos nisso juntos — disse ela, levando a mão ao rosto dele. — Sempre. Sei que não é o futuro que nenhum de nós imaginou, não é o futuro que queríamos, mas é o que temos, e isso é mais do que algumas pessoas podem dizer. Você vai ser um grande rei. E eu vou ser uma grande rainha. Mas não importa o quão bons sejamos, ainda haverá momentos em que tudo o que queremos fazer é gritar, por causa de quão difícil é, quão injusto é, quão impossível parece. Quando isso acontecer, lembre-se disso, de agora, de nós aqui nesta caverna. Lembre-se de que não importa o quão terrível seja o dia, quando a noite cair, estaremos de volta nos braços um do outro e tudo parecerá certo novamente. Vamos superar isso, dia após dia, noite após noite, um passo de cada vez, juntos. Ele se moveu ligeiramente para beijar sua palma. Lyana encostou a testa na dele e deslizou a mão para a nuca dele, as unhas roçando suavemente a pele enquanto o segurava firme. As pontas de seus narizes roçaram enquanto respiravam o mesmo ar, uma, duas, três vezes, encontrando aquele momento de conexão perfeita. Ela estava certa, o que ele nunca admitiria em voz alta. Eles encontrariam um caminho juntos. — Já que acordei — ela sussurrou, — devemos nos preparar. — Hum? — Ele cantarolava, bêbado com pela presença dela. — Nos preparar para quê? — Para nos esgueirar para uma videira de um dragão para que eu possa dar uma olhada mais de perto no caule saindo do coração. Ele emergiu do torpor em um instante. — O quê? — Falamos sobre isso ontem à noite. — Nós falamos? — Sim. — Eu estava consciente quando essa conversa aconteceu? Parece algo que eu me lembraria de ter dito não. Ela revirou os olhos. — Estou falando sério. — Eu também — ela respondeu enquanto se movia para seus pés. Então ela fez uma pausa e olhou para ele por cima do ombro. — Embora agora que você mencionou, você estava estranhamente quieto quando eu toquei no assunto. — Porque eu estava dormindo. — Tenho certeza que você estava acordado... tipo setenta e cinco por cento de certeza... talvez cinquenta. — Ana. — O quê? Ele tentou agarrar a mão dela, mas ela saiu de seu alcance e começou a calçar as botas. — Nós dois sabemos que este é o movimento certo — continuou ela. — Os híbridos ficaram em silêncio desde que matamos os de fogo e água. Talvez eles finalmente tenham descoberto as frutas e percebido que não precisam de mim. Talvez estejam planejando seu próprio ataque, agora que sabem que os estamos caçando. De qualquer maneira, não conseguimos encontrá-los ou trazê-los à tona. E estou lhe dizendo, Rafe, esses caules no coração são importantes. Cada instinto do meu corpo está gritando para eu descobrir o porquê. Ele não sabia por que se incomodava em discutir, exceto que era divertido. Para surpresa de ninguém, duas horas depois Rafe se viu seguindo um conjunto de asas brancas brilhantes nas sombras de uma videira negra. Eles voltaram para a horda de dragões perto da fenda, tentando ficar perto caso Cassi os procurasse. Seu crânio latejava com a pressão de direcionar tantas outras mentes para longe de Lyana, para longe de ambos. Não estamos aqui. Ignore-nos. Olhe para o céu. Se acalme. Descanse. Tudo está como deveria estar. Ele enviou seus pensamentos para baixo e para baixo nas amarras, junto com imagens de céus claros e alaranjados e ninhos guardados e dragões em paz. Rafe não parou até que estivessem no meio da videira e, mesmo assim, manteve-se sintonizado com as emoções que se agitavam nessas conexões, preparando-se para agarrar Lyana e correr ao primeiro sinal de qualquer perturbação. — Estamos perto — Lyana murmurou. — Posso sentir a magia do espírito ficando mais forte. Rafe assentiu, concentrado demais para falar. Enquanto rastejavam sob a próxima videira, um sutil brilho carmesim perfurou a escuridão. Ele não precisava ser um aethi’kine para sentir a excitação crescente de Lyana. Eles correram em direção à luz, manobrando pelo labirinto, até que seus dedos roçaram escamas lisas. Rafe perfurou a pele macia e podre, formando uma abertura. O mundo mudou para vermelho pulsante quando eles pisaram no núcleo oco. As entranhas do dragão haviam se deteriorado há muito tempo, deixando nada para trás além de ossos e pele. As costelas arqueavam estranhamente ao redor deles, conectadas por faixas de tecido seco. O solo abaixo era macio e Rafe não queria se concentrar no porquê. Em vez disso, seu olhar foi para o caule brilhante. Ele vibrava com uma batida constante, como se estivesse vivo. O caule grosso era tão largo quanto era alto, mudando para preto quando se partia em galhos. Em sua base, rubis gigantes cortavam o chão. Ao contrário do caule, sua iluminação era estável e sólida, um profundo bordô salpicado de ouro. — Há tanto espírito — disse Lyana, admiração em sua voz. Seus olhos estavam arregalados de admiração quando ela pressionou seu corpo rente ao caule, encostando sua orelha contra o brilho pulsante como se estivesse ouvindo uma voz. — Do dragão? — Rafe perguntou, curioso. — Não — ela respondeu, falando de uma forma improvisada que deixou claro que apenas metade dela estava com ele, a outra metade imersa em sua magia. — Não é o dragão. É apenas magia, toneladas de magia espiritual, quase como se... como se... Ele esperou e, quando ficou claro que ela não pretendia continuar, ele perguntou: — Como se? Com um piscar de olhos, ela estava de volta com ele. — Como se os dragões e este mundo tivessem uma relação simbiótica. Os dragões comem essas frutas e absorvem sua magia para sobreviver e, quando morrem, o solo reabsorve a magia para cultivar novas frutas em um ciclo sem fim. Pelo menos é assim que parece. — E onde eles se encaixam? — Rafe perguntou, olhando as pedras brilhantes. — Eu não tenho certeza… Lyana afastou-se com pesar da haste do coração e virou-se para uma joia, com os lábios franzidos. Seu rosto se contraiu em um olhar adoravelmente concentrado antes que ela estendesse a mão para passar o dedo ao longo de uma faceta lisa. A expressão dela se iluminou. — Também está cheio de magia! — Sério? — Rafe se aproximou e colocou a palma da mão contra o mesmo plano. A fome apertou seu estômago quando o poder fez seus dedos formigarem. — Está. — Você acha que poderia, sei lá, absorver isso? Ou essa magia é algo que os dragões não podem tocar? — Eu não tenho certeza. Deixe-me… Ele parou enquanto se concentrava no ponto onde sua pele tocava o rubi. Ele só consumia magia à moda antiga, através da boca e das frutas, mas sabia que os dragões tinham outro método. Rafe mergulhou em sua fome, deixando- a controlá-lo. Ele estava tão acostumado a sufocar o desejo que finalmente deixá-lo ir parecia uma libertação. A necessidade o atingiu como um maremoto, afogando seus outros sentidos. O instinto assumiu. O animal no fundo de sua alma foi solto. Havia algo primitivo na dor que o percorria, algo desesperado e desejoso. Toda a sua atenção foi para a magia fervendo logo abaixo de sua palma. Ele puxou, não com a mão, nem mesmo com a mente, mas com a alma. Mais. Mais. Mais. — Rafe, olhe! A voz de Lyana o arrastou das profundezas. Rafe piscou, voltando ao mundo com um suspiro. Ele se afastou, mas o contorno de seus dedos permaneceu – uma mão branca contra a superfície da gema. Eles observaram em silêncio enquanto ele desaparecia lentamente, tornando-se rosa, depois escarlate, depois marrom, até que todas as evidências de seu toque desapareceram. — Eu me pergunto… — Ana — Rafe a interrompeu, com o coração pulando na garganta. — Eles foram embora. — Quem? — Os dragões! As conexões no fundo de sua mente estavam silenciosas, mortas. Ele estendeu a mão, mas não havia nada lá, o que só poderia significar uma coisa. Rafe abriu a boca para lançar um grito de corvo no momento em que um vento forte passou pela carcaça oca. Ele uivou com um tom selvagem que abafou o som que emergia de seus lábios. Ele não deve ter passado mais de cinco minutos com o cristal, mas foram cinco minutos fatais. Os olhos de Lyana se arregalaram com compreensão. Sem aviso, o chão cedeu sob eles e eles caíram. Conexões mentais corriam de todos os lados, tornando impossível encontrar uma corrente dentro da loucura. Lyana batia as asas, mas não importava o ângulo, ela não conseguia pegar o ar. Ela caiu, virando de ponta- cabeça enquanto as rajadas implacáveis sopravam seu corpo para os lados. Faixas alaranjadas à sua esquerda piscavam indo e vindo – as asas de Rafe. Ele também foi pego no redemoinho. Pense, Lyana. Pense! Tinha que haver uma saída para isso, mas ela não conseguia se concentrar no uivo em seus ouvidos. Pense! Pense! Então, de repente, um estalo! Um grito escapou quando ela bateu em uma superfície dura. Seus ossos ocos trituraram com o impacto. A dor explodiu. Estrelas estouraram em sua visão. O mundo inteiro desapareceu por um momento. Nada existia além da dor até que ela ouviu um gemido profundo à sua esquerda. Levou toda a sua força para deixar cair a cabeça para o lado. Rafe estava praticamente na mesma posição, uma de suas asas claramente quebrada em duas e seu joelho dobrado para o lado errado. A magia prateada fervilhava em sua pele exposta, aumentando o brilho suave de suas asas. Ela encontrou seus olhos através das chamas. Ele moveu os lábios. Ela tentou balançar a cabeça, mas não conseguiu. Seus músculos pararam de responder. Rafe tentou novamente. E de novo. Até que leu “Ana”. Seu nome, ela finalmente percebeu. Ele estava tentando dizer o nome dela. Os cantos de sua boca se contraíram e, mesmo aquele fantasma de sorriso, o fez relaxar visivelmente. Ele fechou os olhos e respirou fundo enquanto sua magia aumentava. Ele iria se curar. Eventualmente ele iria se curar, e então ele iria ajudá-la. Lyana tentou se concentrar nisso enquanto sentia lágrimas silenciosas escorrerem de seus olhos, incapaz de detê-las, a dor era demais para esconder. Acabaria logo. A percepção era um conforto... até que amarelo brilhou na escuridão. A criatura aero’kine pousou entre eles em um piscar de olhos, movendo- se muito rapidamente para seus olhos seguirem. Ele nem sequer olhou para ela antes de se ajoelhar sobre o peito de Rafe. Ele tentou revidar, mas Lyana sabia a dor que ele estava sentindo – também consumia cada centímetro de seu corpo. Não havia nada que ele pudesse fazer, nada que qualquer um deles pudesse fazer, pois o híbrido quebrou seus dois braços, acabando rapidamente com qualquer esperança de fuga. — Rafe — ela tentou sussurrar, mas o som saiu como pouco mais que o ar. Como se tivesse ouvido, ele se virou para ela. Arrependimento encheu seu olhar, mas ela não sabia do que ele estava arrependido. Isso tinha sido ideia dela – sua ideia estúpida e arriscada e fracassada. Um leve estremecimento foi a única indicação de que ele havia sido atingido, mas quando ela olhou para baixo, um grito borbulhou de seus lábios. A criatura cravou suas garras no peito de Rafe e arrancou sua pele. Escamas amarelas brilhavam vermelhas com sangue na luz suave do fogo ainda vazando de suas asas. Lyana sabia o que estava procurando: seu coração. Não. Não! Sua magia derramou. Ela tentou agarrar sua alma, mas a queimação foi imediata e intensa, mais do que seu corpo já cambaleante poderia aguentar. Se ela tentasse se segurar, os dois morreriam. Em vez disso, ela olhou para cima. A escuridão se estendeu até o esquecimento. Quão longe eles caíram? Onde estava a haste do coração? Os cristais? As frutas? Se ela pudesse alcançá-las... Lyana empurrou com seu poder, procurando na terra e no ar por qualquer pedaço de magia espiritual para se agarrar. Ao seu lado, Rafe choramingou. A criatura continuou a rasgar, rasgar e puxar, cada som escorregadio e úmido provocando um estremecimento. Vamos, ela pensou. Vamos. Rafe não seria capaz de aguentar por muito mais tempo. O tempo estava se esgotando. Estava quase voando. Sua magia encontrou um ponto. Sem saber o que era e sem se importar, Lyana puxou com toda a força. E puxou. E puxou. Os segundos passaram. Nada aconteceu. Ossos trituraram quando a criatura alcançou a caixa torácica de Rafe e forçou seu caminho para dentro. O poder sacudiu dentro dela, todo focado no único item desconhecido em suas mãos. Estava perto, tão perto, tão... Poeira explodiu, cobrindo sua pele e cabelo, batendo em suas bochechas e cobrindo seus olhos. A criatura uivou. Lyana piscou para afastar a ardência, ignorando os pedaços ásperos que grudavam sob suas pálpebras. Através das lágrimas cada vez mais espessas, ela viu algo escuro cortar as duras escamas amarelas. Uma raiz, ela percebeu. Sua magia havia encontrado uma raiz. Ela segurou o espírito formigando dentro da planta e o empurrou de volta no peito da criatura, de novo e de novo. Mais e mais pedregulho desmoronava das paredes, nublando sua visão. — Ana. A tosse suave quebrou seu frenesi e Lyana baixou a cabeça para o lado. A criatura aero’kine havia desaparecido há muito tempo, seu peito perfurado além do reconhecimento e seu corpo em pedaços espalhados por todo o chão. Rafe brilhava com um prateado espesso, sua magia fazendo hora extra para tentar curá-lo. Ela sabia que ele ficaria bravo, mas ela não se importava. Ela moveu lentamente o braço, sibilando de dor, até encontrar os dedos dele. A magia fluiu de seu corpo para o dele, selando as feridas. O chão tremeu. — Ana! Ele parecia mais forte, melhor. Ela empurrou mais magia sob sua pele. A terra continuou a tremer. — Ana! Ela ignorou o tom de súplica em sua voz. Tudo o que importava era fechar o buraco em seu peito, reabastecer seu sangue perdido, restaurar seus ossos quebrados, remover sua dor. — Ana! O chão tremeu violentamente. Eles caíram três metros, talvez cinco. Ela caiu com força contra a terra, gritando quando uma nova dor a atingiu. As paredes tremeram com uma ponta de raiva. E, finalmente, ela percebeu o que estava acontecendo. A criatura geo’kine estava aqui. Mas não aqui. Não perto o suficiente para tocar. Ela a sentiu, bem acima de sua cabeça, seu corpo vibrando com a magia enquanto o mundo ao seu redor rachava e se dividia. A razão do pânico na voz de Rafe de repente ficou clara. O híbrido não tinha planos de combatê-los. Não precisava quando poderia enterrá-los vivos. — Eu carrego você — disse Rafe, mas ele não conseguia nem suportar a si mesmo. No momento em que ele tentou se levantar, ele balançou e imediatamente caiu novamente. Então ele ergueu o rosto para o céu e soltou um grito estridente de corvo. Ele ecoou nas paredes ao redor deles, penetrantemente alto, mas não alto o suficiente. A criatura estava muito longe. O tremor não parou nem por um momento. — Eu vou parar com isso — Rafe explicou, para si mesmo ou para ela, ela não tinha certeza, enquanto ele rastejava sobre suas mãos e joelhos. Asas sempre levavam mais tempo para cicatrizar, os ossos eram tão frágeis, e as dele pendiam frouxamente de suas costas. Com um grunhido, ele cravou os dedos na parede, lutando por um apoio. — Rafe, não… — Sua voz era muito fraca, desaparecendo antes que ela pudesse terminar seu pensamento. — Eu vou nos salvar. — Rafe. Ele não parou, e ela não tinha mais energia para desperdiçar tentando fazê-lo. Em vez disso, ela se concentrou no interior, no poder ainda agitado sob sua pele. A terra caiu em cascata ao redor deles. As paredes gemeram. As rochas começaram a cair, primeiro seixos, depois pedregulhos, errando-os apenas por pura sorte. Lyana se rendeu à sua magia, aos seus instintos, não mais consciente de seu corpo ou do mundo, mas apenas do espírito que saturava o espaço ao seu redor. Ela agarrou tudo o que pôde e puxou para mais perto – raízes, videiras, frutas, pedras, tudo e qualquer coisa que sua magia tocasse. Cada pedaço diferente de espírito era como uma corda individual que ela teceu em uma tapeçaria, mergulhando e mergulhando e atando e enfiando, até não sobrar mais nada para pegar. Ainda assim, o chão tremeu. — Rafe? — Estou bem — ele tossiu. Ela não tinha forças para erguer os braços para limpar a sujeira dos olhos. A terra pesava em seus membros, pressionando cada ponto dolorido e aumentando a dor. Cada vez que ela respirava, pequenos pedaços entravam mais fundo em suas narinas, bloqueando suas vias aéreas. A escuridão se fechou. Seu coração começou a martelar. Concentre-se, ela ordenou. O pânico não resolveria nada. Apenas mantenha o foco. — Não há mais nada para eu tocar — ela ofegou, tentando falar pela abertura mais limpa de seus lábios para evitar que a terra escorresse por sua garganta. — Precisamos parar com isso. — Eu não posso voar, ainda não... — Os dragões — ela interrompeu, lutando contra uma tosse quando a lama caiu em sua boca, isso só pioraria as coisas. — Use os dragões. Já devem ter voltado. Ela estava vazando espírito só os deuses sabem quanto tempo. Ela poderia muito bem ter sido um farol. Ele não respondeu, mas ela o conhecia e sabia por quê. Ele estava imerso nas conexões mentais, já em guerra. As paredes tremeram. Mais terra caiu em seu corpo, provocando um gemido. Seu poder continuou a inundar. Ela segurou cada grama de espírito, cada vez com mais força, esperando e esperando, até... Tudo parou. — Está morto — Rafe deu um profundo suspiro de alívio. — Eles o mataram. Lyana tentou falar, mas sua boca estava muito cheia. Se ela se movesse um pouquinho, exceto para respirar, ela temia que sua garganta entupisse. Cada inalação era lenta e difícil. Ela tossiu ao exalar e seu cuidadoso equilíbrio se desfez. Detritos invadiram. Ela gaguejou. Seu corpo arfava, mas sob a terra não havia para onde ir. Seus membros já quebrados fraturaram ainda mais. — Ana! — O pânico em sua voz fez seu medo aumentar. — Ana? Onde está... Taetanos, me ajude! — As pedras ao redor dela se moveram — Estou chegando! Eu estou quase aí! Ele gentilmente escovou a sujeira de suas bochechas e olhos, mas não foi o suficiente. Ambos sabiam o que tinha que ser feito. Ela gritou quando ele ergueu seus ombros, o som mudando para uma tosse quando ela começou a engasgar. Ele não parou. Ele a puxou da pilha e a virou de lado. Sujeira e muco saíram de seus lábios enquanto ela tossia. Sua garganta queimou. Seu corpo estava em chamas. A dor era diferente de qualquer outra que ela sentira antes, talvez até pior do que o fogo, porque estava totalmente dentro dela, completamente consciente de que todos os ossos de seu corpo estavam em chamas. Lágrimas encharcaram suas bochechas. Suspiros saíram de seus lábios. Ela podia estar hiperventilando. Ela não tinha certeza. Ela não conseguia pensar além da dor. Rafe murmurou baixinho, sua voz se movendo para mais longe. — Deuses vivos, tem que haver… Encontrei uma. Ela ouviu um barulho , depois um estalo. Rafe grunhiu. — Beba isso. Algo pressionou contra seus lábios, e ela sabia exatamente o que era antes mesmo que o fluido tocasse sua língua. Um doce alívio desceu por sua garganta, um êxtase líquido. A magia do espírito zumbiu em suas veias, dando-lhe vida. Ela engoliu em seco. — Aqui está outra — disse ele. Levou mais três frutas antes que ela estivesse curada o suficiente para se sentar com a ajuda dele. Durante todo o tempo em que bebia, ela estudava o teto improvisado. Vinhas, raízes e cristais se entrelaçavam em uma intrincada tapeçaria que retinha a sujeira que ameaçava desmoronar ao redor deles. Mais alguns minutos e talvez não tivesse aguentado. Mas tinha. E eles estavam seguros. Curiosamente, eles estavam mais seguros que provavelmente já estiveram desde que chegaram a este mundo. Quatro dos híbridos estavam mortos. Eles estavam presos em um abscesso subterrâneo, sem saída, mas também sem entrada. Frutas e rubis brilhavam no alto, cheios de magia que sustentava a vida. E uma horda de dragões esperava em algum lugar na superfície, uma ameaça tão boa quanto qualquer outra para manter a criatura aethi’kine afastada. Lyana deixou cair a testa no ombro de Rafe. Ele cuidadosamente envolveu seu braço ao redor de sua cintura, seu aperto solto o suficiente para não machucar, mas apertado o suficiente para fornecer o conforto que ela precisava. Suas asas pendiam de suas costas, espalhadas pelo chão, ainda muito danificadas para se mover. Levaria muito mais frutas e muito mais tempo antes que ela voasse novamente. — Você deveria comer um pouco — ela sussurrou quando ele entregou a ela outra metade da fruta, mantendo a palma da mão na parte inferior para ajudar a guiá-la aos lábios. — Eu não preciso disso. — Certo — ela entrelaçou seus dedos e empurrou sua magia em sua pele. Rafe franziu a testa. — Eu também não preciso disso. Conserve sua força. — Coma alguma coisa. — Foque em você. — Por que? Você está focado em mim o suficiente para duas pessoas. Rafe se virou para ela com uma carranca. Ela arqueou a sobrancelha. Eles se encararam por um momento tenso, até que, ao mesmo tempo, começaram a rir baixinho. Ela o cutucou com o ombro e ele colocou um pedaço suculento de fruta na boca. — Feliz? — Sempre — seu corpo estava quebrado, mas iria se curar. Não importa quanta dor ela sofresse, com ele por perto, sua resposta seria sempre a mesma. Ela suspirou e acariciou seu peito. — E agora? — Nós curamos. — E? — Tentaremos descobrir como dar o fora daqui. Lyana deu uma olhada superficial acima. Ela não tinha ideia de como eles iriam sair, mas outras ideias estavam começando a aparecer. Uma brilhante pedra preciosa de rubi chamou sua atenção e, no fundo de sua mente, ela viu a marca de marfim da mão de Rafe contra a superfície lisa. As peças começaram a se encaixar, respostas para as perguntas que ela vinha fazendo. Se seu palpite estivesse certo, o que geralmente acontecia, ela poderia finalmente descobrir como acabar com isso de uma vez por todas... assumindo que Rafe eventualmente encontrasse um caminho de volta à superfície. Depois de tudo isso, ela odiaria que o mundo acabasse só porque eles não conseguiram sair de seu próprio buraco. Literalmente. — Cassi virá nos buscar em breve — ela murmurou. — Eu prometo que estaremos prontos quando ela o fizer. — Alguma palavra? — Perguntou a capitã Rokaro enquanto entrava no refeitório e se sentava sem cerimônia na cadeira em frente a Xander. Depois que ela e o resto da tripulação chegaram aos aposentos dos corvos, eles nunca mais partiram. Mas ele estava começando a se ajustar a seus modos bruscos. Na verdade, ele quase gostava deles. Eles o lembravam de Rafe. — Não — Xander suspirou. — Nada ainda. Sua resposta foi a mesma por dias. Não. Não. Não. Ele nunca gostou muito da palavra, mas agora a detestava. Se alguém alguma vez duvidou da importância de Cassi, as últimas duas semanas sem ela deixaram a verdade clara. Eles estavam se debatendo. Tanos havia desaparecido. As relações diplomáticas entre os reinos do mar e do céu praticamente cessaram. Jacinta estava demasiada ocupada a travar a sua própria guerra para se lembrar de que uma batalha mais importante se aproximava. Os dormi’kines que ela enviou eram poucos e distantes entre si, e nenhum sequer tentou viajar pela fenda para atualizar Lyana ou Rafe. O Rei Nascido no Fogo e a Rainha Nascida no Inverno se tornaram uma reflexão tardia. A paz que eles trariam estava cada vez mais longe de seu alcance. E, claro, havia o fato óbvio de que Xander estava perdendo a cabeça. Ele não conseguia comer, não conseguia dormir, não conseguia se concentrar em nada além de encontrá-la. A ausência de Cassi era um vazio – profundo, escuro e cada vez maior – não apenas em seu coração, mas no mundo. Ele pegou o pão em seu prato, beliscando-o distraidamente. Com cada corte, uma pergunta picava seus pensamentos. Ela está viva? Ela está machucada? Ela está esperando que eu a salve? Eu posso? Eu vou? Nem mesmo uma migalha chegou à sua boca. — Pelo bem da magia! — A capitã rosnou, quase no mesmo estado que ele. Seu primeiro imediato tentou deslizar casualmente um prato pela mesa, mas ela o empurrou. — O homem tem um exército de magos e toda uma armada de navios. Como diabos ele desapareceu da face do mar? Brilhante encontrou os olhos de Xander do outro lado da mesa, e um entendimento passou entre eles. Emalia. A primogênita da capitã. Os dormi’kines de Jacinta forneceram o máximo de informações que puderam sobre a filha misteriosa de Tanos, mas não foram muitas. A garota era de estatura mediana e magra, com cabelos castanhos ondulados e olhos cor de aço. Alguns a viram de longe, poucos de perto, quase sempre ao lado do pai. Ela era quieta, eles disseram. Indefinida. Negligenciada. Sem importância. Ou, pelo menos, cuidadosamente elaborada para aparecer dessa forma. Quanto mais Xander ouvia, mais ela o lembrava de Cassi – a Cassi que ele conhecera antes, aquela que guardava segredos. Claramente, era um traço de família. Emalia tinha magia, ele sabia que tinha, e não qualquer tipo. Era forte o suficiente para esconder um exército, e rara o suficiente para nenhum deles sequer adivinhar sua natureza. Era a chave para a liberdade de Cassi. No entanto, a capitã Rokaro evitou até mesmo a menção de seu nome. — E os corvos? — Ela estalou, como se sentisse a direção de seus pensamentos. — Alguém tem… — Não. Quando o exército de Tanos desapareceu, Xander enviou uma dúzia de seus mais bravos soldados para investigar, caso os olhos humanos pudessem ver o que a magia não conseguiu descobrir. Seis foram procurar nos mares uma armada errante e seis permaneceram em torno do perímetro da Casa da Paz como vigias. Algumas das outras casas se juntaram à busca, mas até agora nenhum soldado havia retornado com notícias. Brilhante chamou sua atenção novamente. Pergunte a ela, a photo’kine parecia dizer. Pergunte a ela sobre sua filha. — Capitã… — Meu rei. Ao som da voz de Amara, Xander pulou da cadeira com tanta pressa que ela caiu para trás e bateu com força no chão. — O que você ouviu? — Um dormi’kine me visitou durante a noite. Suas sobrancelhas franziram. — Um dos de Jacinta? — Não — ela engoliu em seco. — Um dos nossos. — Nossos? — Antes que pergunte, não tenho nome, rosto ou casa. O informante desejava permanecer anônimo e garanti a ele que você honraria esse desejo. — Que outras promessas você fez pelas costas do rei? — Helen perguntou quando ela veio para ficar ao lado dele, sua mão descansando não tão casualmente no cabo de sua espada de cristal. A fúria aguçou seu olhar. — Nenhuma — Amara respondeu, seu tom orgulhoso. Mas quando a maga voltou seu olhar para Xander, seu ego murchou. — Eu não sabia — ela continuou suavemente. — Não até que o mago visitou meu sonho na noite passada, e eu fiz todas as promessas que tive porque sabia que você faria qualquer coisa por notícias. Estou trabalhando para você, não contra você, mas também não vou pedir a um mago que se manifeste antes de estar pronto. Mesmo com as leis alteradas, nosso povo ainda tem um longo caminho a percorrer. Ele sabia que havia dormi’kines escondidos dentro das casas – homens e mulheres esperando voltar para as sombras e esquecer que seu relacionamento com Malek ou com a magia existiu. Ele não podia culpá-los. E Amara estava certa. Ele faria qualquer coisa para obter informações. — O que ele disse? — A armada está escondida em uma série de cavernas nos limites da Casa da Paz. — Onde? — Posso localizá-la em um mapa. — Alguém me traga um mapa — Xander gritou enquanto passava a mão pelo cabelo, praticamente arrancando as mechas de sua cabeça. Era isso. Sua chance de salvá-la. — Agora! Botas bateram. Uma porta bateu. Um momento de puro silêncio se passou, cheio de expectativa. Xander não aguentou. — Como Tanos foi localizado? Amara hesitou, sem saber o quanto tinha o direito de revelar. — Já descobri que essa pessoa é um dormi’kine e uma ave, e provavelmente é um dos soldados que se ofereceram para se juntar à busca. Isso reduz consideravelmente as pessoas, mas não tenho intenção de reduzir ainda mais. Você sabe que pode confiar em mim, então, por favor, Amara, conte-me tudo o que sabe. Minha palavra é minha palavra, e tudo o que você disser será confidencial. Não vou compartilhar. — Ele estava usando sua forma de espírito para procurar mais rapidamente, quando se deparou com uma parede — ela explicou, não mais hesitante, mas fortemente focada. — Havia algum tipo de barreira e não importa o quanto ele tentasse se aproximar, ele não conseguia, não em sua forma de espírito. Se ele não estivesse procurando com tanta atenção, ele disse que nunca teria notado. Era menos como uma parede e mais como um empurrão na direção oposta, algo que parecia quase inato. Isso foi há duas noites, e no dia seguinte ele foi explorar em sua forma corporal. Desta vez ele passou dos limites, mas disse que sentiu a diferença. Quando ele tentou alcançar sua magia, ele não conseguiu, não importa o quanto ele tentasse, como se houvesse um bloqueio que o impedisse de tocar seu poder. Emalia. Xander não precisou olhar para Brilhante para saber que ela estava pensando a mesma coisa. — Então, como ele os encontrou? — Ele ficou perto dos penhascos até chegar a uma série de cavernas. As aberturas eram estreitas, mas as fendas eram profundas. Elas foram criados por um geo’kine. Ele chegou o mais perto que pôde, perto o suficiente para ver as velas no escuro e o movimento no convés, e então saiu antes de ser localizado. Ele não viu Tanos ou Cassi, mas... — Eles estão lá — concluiu Xander. Eles devem estar. Uma porta se abriu e um corvo atravessou o refeitório para depositar um pergaminho na mesa diante de Xander. Ele imediatamente o abriu para revelar um mapa da Casa da Paz. As partes não eram mais precisas, especialmente a parte que mostrava nuvens e ar em vez de um vasto mar, mas era o melhor que eles tinham. Amara se inclinou sobre o desenho e passou o dedo pálido ao longo da borda da ilha antes de parar completamente. Ela tocou no local. — Aqui. — Você tem certeza? A maga assentiu. — Aqui. — Helen? — Xander rugiu, esquecendo que a mulher já estava ao lado dele. — Dê-me vinte minutos e uma equipe de busca estará pronta. — Nós precisamos… — Eu sei. — E… — Eu sei. — Também… — Meu rei. Considere feito. — Hã, pessoal? Xander estava tão envolvido na onda repentina de excitação que mal registrou a interjeição de voz suave de Brilhante. Seus pensamentos correram para Cassi e seu reencontro e o estado em que a encontraria, para a luta e o plano de batalha e a melhor estratégia para a extração, para Tanos e a doce vingança. — Pessoal? A palavra foi um pouco mais alta desta vez, mas ainda não o suficiente para chamar sua atenção. Xander saltou de um pé para o outro. Suas asas coçavam para ir para o céu. Seus nervos vibravam. Cada grama de seu corpo e espírito estava pronto para entrar em ação. — Pessoal! Ele pulou quando o grito dela reverberou nas paredes de cristal. Todas as cabeças na sala se voltaram para Brilhante, inclusive a dele, mas ela olhava para outro lugar. O alarme esculpiu rugas em sua testa normalmente lisa e ela projetou o queixo. Ele seguiu a linha traçada por seus olhos leitosos – através da sala, através das pedras, até a cidade além. — Eu, hum, acho que eles já estão aqui. Navios assomavam no horizonte, suas velas esticadas em uma brisa constante. A água se agitava sob os cascos em uma onda que nunca batia. Xander não podia ver a magia, mas sabia que atualmente iluminava o céu em uma estonteante tapeçaria de arco-íris. Não havia outra explicação. A frota acelerou pelo terreno aberto, aproximando-se cada vez mais. Chamas crepitavam acima dos seis navios da frente. Como um, os incêndios estavam sincronizados. Eles navegavam pelo céu como balas de canhão em chamas, girando e cuspindo, crepitando e queimando, quase do tamanho de uma casa. Xander assistiu em choque como um em particular crescia cada vez mais. Toda a visão através do cristal logo foi engolfada pelo inferno, quase como se… — Pyro! — Brilhante gritou. A ruiva engasgou, o grito a tirando de seu torpor. Suas mãos se levantaram e diante dos olhos de Xander, o cometa prestes a cair sobre eles se partiu em duas dúzias de pedaços. A parede tremeu quando as chamas atingiram, mas nada quebrou. Nada rachou. No momento em que o fogo se dissipou, os navios estavam perto o suficiente para que ele pudesse localizar os magos alinhados ao longo da proa. O medo serpenteou por sua espinha. — Vocês acham que nós éramos o alvo? — Ele perguntou, a pergunta dirigida a todos e a ninguém, simplesmente escapando de seus lábios enquanto sua mente girava. No caos, ele pensou que tinha passado despercebido. Mas quando ele se afastou da janela, a capitã o observou, seus olhos gelados e duros. Seu coração disparou quando seus olhares se encontraram. — Por que? — Ela perguntou lentamente. — Havia seis bolas de fogo. São seis instalações. Se fôssemos um alvo, se ele soubesse o que era esse edifício específico... — Então ele a quebrou. Nenhum dos dois falou. Discordar era inútil. Mas concordar... concordar pode significar que a Cassi que ele conhecia, a Cassi que ele amava, tinha ido embora. — Meu rei, não temos tempo para isso — Helen cortou, segurando seu pulso para forçar sua atenção. — O inimigo está sobre nós. Seu povo precisa de você. Ele entendeu o que não foi dito. Seu povo precisa de um líder, não de um homem apaixonado. Ele sempre seria um rei em primeiro lugar e um homem em segundo lugar. Esse era o preço da realeza. Não havia outra maneira. Então, embora levasse tudo dentro dele, ele suportou seu medo. Pela primeira vez em duas semanas, Cassi estava ao seu alcance. Ele se concentraria nisso. — Amara — Xander disse, seu tom cheio de comando enquanto ele deslizava para o papel para o qual ele havia se preparado toda a sua vida, usando-o como um escudo. — Reúna os magos. Estamos trabalhando em um plano de batalha há semanas e, embora a luta comece mais cedo do que imaginávamos, estamos prontos para ela. E deixe claro que a ajuda de um dormi’kine pode mudar o rumo da guerra. Se alguém se anunciar a você, envie- o a mim imediatamente. Helen, vá a todas as casas de hóspedes, descubra quais ainda estão de pé depois dos incêndios e mobilize seus soldados. Vou para a sala de guerra. Imagino que todos os membros da realeza vivos já estejam a caminho. E Capitã? Você vem comigo. — O inferno que eu vou. — Você conhece Tanos melhor do que qualquer um aqui — disse ele, sua voz de aço. Ela permaneceu imóvel. — Você sabe como ele luta, o que significa que você é necessária lá. Não podemos correr o risco de perder você na linha de frente. — Vou atrás da minha filha. — Você terá a chance — Xander se aproximou, sua expressão implorando enquanto baixava a voz. — Ninguém quer que você a encontre mais do que eu, mas isso é maior do que apenas Cassi. Venha comigo e nos ajude a entender como ele vai atacar, o que ele vai fazer. Há uma vista melhor do topo do palácio. Assim que identificarmos sua localização, você pode sair. Ninguém tentará impedi-la. Mas até sabermos onde ele está e onde ela está, é inútil de qualquer maneira. Você deve saber disso, em sua cabeça, senão em seu coração. — Ele está certo, Zia — Remendado murmurou. Os fios coloridos em seu cabelo esvoaçaram quando ela virou o rosto para o lado. — Markos… — Vá com ele. A sala ficou vazia de todos, exceto por Xander e a tripulação. Todos eles assentiram encorajadoramente para sua capitã, como se sentissem seu medo e suas vulnerabilidades pela primeira vez. — Vá — seu primeiro imediato disse novamente, algo intenso passando silenciosamente entre eles. — Faça o que precisa ser feito. A capitã parecia sem palavras enquanto engolia em seco. — E quanto a Rafe? — Brilhante perguntou, interrompendo o momento. — E a rainha? E a fenda? Todos nós sabemos o que Tanos está procurando. Ele quer selá-la para sempre. Precisamos alertá-los. Precisamos de Cassi, e precisamos dela agora... — Nós vamos pegá-la — interrompeu Xander. — Assim que pudermos. Brilhante bufou, tão pouco impressionada com ele como sempre. Seus dedos voaram pelo ar, falando uma língua que ninguém mais conseguia entender. Uma fenda se abriu atrás dela e, como o único não-mago na sala, ele tinha certeza de que seria o último a vê-la. Mas ao contrário de todos eles, ele reconheceu a cena além – uma com luz solar, árvores e pássaros cantando. Era o ninho sagrado. — O que você… — Ele começou a gritar quando Solvei juntou seus braços, mas com um passo, elas se foram. Ambas as mulheres desapareceram em um instante. — Deuses vivos! — Deixe-as — ordenou a capitã. — Mas… — Argumentou Xander, acostumado a ser o único a distribuir as ordens. — Deixe-as. Brilhante é um pé no saco, mas ela é esperta, e se ela tiver uma ideia, eu confio nela completamente. Estamos perdendo tempo. Quero encontrar minha filha e quero encontrá-la agora. Então, me leve para a maldita sala de guerra e vamos acabar com isso, certo? Só havia uma coisa que Xander poderia pensar em dizer, e era uma frase que ele nunca pensou que diria. — Aye, aye, capitã. — Vamos abri-la — sinalizou Brilhante enquanto atravessava o bosque, o olhar fixo na estreita lasca de magia branca suspensa no ar. Era difícil acreditar que um mundo totalmente diferente esperava do outro lado – um mundo que escondia dragões e monstros e, infelizmente, seu melhor amigo, não que ela fosse admitir isso em voz alta. — Precisamos encontrar Rafe e a rainha, com ou sem a ajuda de Cassi. Ela esperou que o formigamento da magia arrepiasse os pelos de seus braços. Quando nada aconteceu, Brilhante virou-se para Solvei com uma sobrancelha levantada. — Você viu o que eu disse? Precisamos abri-la. — Eu vi. — E? — E… — A maga mordeu o lábio, completamente inconsciente do modo como isso fez as entranhas de Brilhante se apertarem. Uma mecha de cabelo loiro caiu sobre seu ombro quando ela baixou o queixo e respirou fundo, como se estivesse ganhando coragem. Os fios balançando suavemente brilhavam sob a luz do sol filtrada pelos cristais acima. Brilhante reprimiu a vontade de colocá-los atrás da orelha de Solvei, seus dedos coçando por seu toque sedoso. Agora não é hora para isso! Essa paixão maldita. Seu coração não compreendia que o mundo estava à beira da ruína? Ela precisava se concentrar na batalha, não naqueles lábios rosados que ela estava morrendo de vontade de... Pare! Solvei finalmente completou seu pensamento, suas mãos voando pelo ar em uma corrida para colocar as palavras para fora. — Não é exatamente isso que Tanos quer? Brilhante franziu a testa. — Ele não pode abrir ou fechar a brecha sem mim — continuou Solvei, seus olhos calorosos exalando um pedido de desculpas silencioso. — Eu sou a única spatio’kine viva… neste mundo, pelo menos. Por mais difícil que seja de acreditar, acho que seus amigos estão mais seguros do outro lado. Ele os quer aqui para poder matá-los. Não podemos dar a ele esse presente. — Não é um presente. Confie em mim — rebateu Brilhante. — Você nunca viu Rafe lutar. Eu já. Ele é uma fera absoluta, e não porque ele é parte dragão. Sem ele, não temos chance. E a rainha é uma aethi’kine. Ela destruirá Tanos. Ela forçará sua rendição. Ela trará paz. — E a filha da sua capitã? — Cassi? — Não. A outra. Brilhante fez uma pausa. E Emalia? Ela era uma desconhecida. — Nós temos que arriscar. — Nós? — Sim! Os olhos de Solvei saltaram das órbitas, mas sua exasperação não incomodou Brilhante. Na verdade, ela gostou, porque sabia que era a única pessoa viva que tinha permissão para ver por trás dessas paredes. Ainda assim, os gestos da maga da fenda eram calmos enquanto ela sinalizava, sua bondade sempre a guiando. — Você se lembra do que me disse? Você acha que ela pode sufocar a magia. Isso não é alarmante? Não é algo que deveríamos temer... Laranja brilhou no bosque sagrado e um estrondo alto sacudiu as paredes de cristal. Brilhante ergueu o olhar. O fogo borbulhou contra as pedras translúcidas, produzindo um vermelho profundo antes de desaparecer na fumaça. Aparentemente, os pyro’kines de Tanos chegaram. Ela apontou para o teto. — Não acho que magia sufocante seja algo com que devamos nos preocupar hoje. Tanos quer explodir este lugar, e a magia é sua melhor vantagem sobre os avians. — Não sabemos como o poder dela funciona. — Então é bom que seu poder possa nos levar a qualquer outro lugar do mundo ao primeiro sinal de um problema. — Brilhante. Pare por um momento. Use sua cabeça. — Eu estou usando. — Você não está. Você está com medo e eu entendo, mas precisamos ser espertas. — Espertas? Espertas! Tanos está aqui há dez minutos e seus magos já estão perto o suficiente para atacar o palácio de cristal. Não temos tempo para esperteza. — Então você prefere ser estúpida? — Prefiro ter Rafe e a rainha aqui para não ter que ser nada. Eles vão descobrir o que fazer! É o que eles fazem! — Eu sei que você está preocupada com Rafe, mas eu prometi a você que iria salvá-lo, e eu vou. Quando for a hora certa… — Não é sobre Rafe! Bem, era, mas não inteiramente. Brilhante cerrou os punhos para não revelar mais nada. Solvei franziu a testa. — Então do que se trata? — Da guerra — disse Brilhante, com os dedos quase flácidos e se rebelando contra ela, como se soubessem como sua resposta era esfarrapada. — Brilhante. Ela olhou para baixo. — Brilhante, o que... — É sobre você, caramba! — Ela gritou. A confissão pairou no ar, ricocheteando nos cristais, enchendo o ninho sagrado, crescendo e crescendo até que Brilhante mal pudesse respirar, de tão sufocada por ela. Sua garganta se fechou e seu peito queimou. Seu coração batia contra suas costelas. Ela estava guardando tudo dentro de si por tanto tempo que os sentimentos explodiram dela, acendendo cada nervo dela em chamas. Ela ofegou no silêncio, dominada por suas emoções. Solvei simplesmente olhou para ela. — O que você acabou de dizer? Brilhante ergueu as mãos lentamente, mas seus dedos não se moviam. Ela estava congelada de medo. Dizer a confissão uma vez já foi difícil o suficiente, mas dizê-la novamente, sabendo que Solvei estaria assistindo, lendo, compreendendo... Ela não sabia se conseguiria. — Diga-me o que você disse — Solvei pressionou. Brilhante respirou fundo. Seus braços tremiam. Desde aquela noite, aquele momento entre elas, ela fingia que não havia sentimentos e que essa briga não era pessoal. Mas havia, e era, e ela não podia mais fingir. Seu coração estava nisso. Ela foi exposta, querendo ou não. Era hora de ser honesta – com Solvei e consigo mesma. Era hora de se abrir novamente para as possibilidades. — Eu disse… — Brilhante engoliu em seco. Solvei franziu as sobrancelhas, observando atentamente, esperando. — Eu disse que é sobre você. Solvei recostou-se, surpresa. — Sobre mim? Oh, magia viva... A maga ainda não entendia. E Brilhante estava muito envolvida para voltar atrás agora. Ela mergulhou, sem saber se acabaria se afogando em suas próprias palavras. — Tanos quebrou a própria filha, pelo amor de Deus! Ele a torturou para obter as informações de que precisava. Ele fará o que for preciso, então se ele colocar as mãos em você, o que você acha que vai acontecer? Ele fará de tudo para selar a brecha, para manter seu trono, para impedir que Rafe e a rainha retornem. E eu sei que não falamos sobre o que eu disse naquela noite, sobre o que isso significava, e como você nunca tocou no assunto, você claramente não retribui meus sentimentos, mas preciso apenas dizer de uma vez por todas para entender o que se passa no meu peito. Estou apaixonada por você… tragicamente, pateticamente apaixonada por você. Então não vou ficar parada vendo você ser torturada quando Rafe pode impedir. Quando ele pode... Solvei cruzou os dedos em torno dos de Brilhante, parando no meio da frase. Brilhante engoliu em seco. Ela olhou para as mãos femininas envolvendo as suas, não tão macias que nunca tivessem visto um dia de trabalho, mas gentis e quentes. Ela estudou as sardas ao longo dos pulsos de Solvei e nas palmas das mãos, seus dedos bronzeados tão parecidos, mas tão diferentes. Esses pontos escuros eram a única maneira de saber onde terminava a spatio’kine e começava Brilhante. Solvei se aproximou. A respiração de Brilhante falhou. Solvei se aproximou de novo, e de novo, até que suas mãos cruzadas estavam imprensadas entre seus peitos e Brilhante não tinha escolha a não ser ficar vesga olhando para o próprio nariz ou finalmente olhar para cima. Ela escolheu o último. Olhos cor de mel encheram sua visão, brilhando como âmbar ao sol, cheios de camadas profundas, transbordando de calor. A esperança cresceu no peito de Brilhante, mas ela tentou sufocá-la, incapaz de acreditar que isso era real, certa de que estava presa em um sonho, mesmo quando a maga sorriu, mesmo quando ela apertou seus dedos entrelaçados, mesmo quando ela se inclinou para mais perto, e mais perto , fechando a distância entre elas. Magia viva! Isso pode realmente estar acontecendo, pensou Brilhante um momento antes de seus lábios se tocarem, sua descrença madura, e então ela não conseguiu mais pensar. Seu mundo ficou imóvel. Não havia sons além das batidas suaves de seu coração, nenhum cheiro além dos cítricos frescos agarrados à pele de Solvei. Tudo sumiu – a guerra, a fenda, o ninho – como se ela estivesse flutuando neste momento perfeito, protegido e sagrado. Solvei se afastou. Embora o beijo tenha sido rápido, seu toque permaneceu na pele de Brilhante, formigando com uma promessa não dita. Ambas sorriram, amarradas pela carga elétrica preenchendo o espaço entre elas, mesmo quando Solvei soltou as mãos de Brilhante. Laranja brilhou sobre a pele delas e o chão tremeu, mas no que dizia respeito a Brilhante, todo o maldito palácio poderia desabar ao redor antes que ela desviasse o olhar de bom grado, especialmente quando Solvei ergueu os dedos para falar. — Tem muita coisa que eu quero te contar, mas como estamos sem tempo, vou apenas dizer isso. Depois que perdi minha mãe e minha irmã, pensei que meu mundo tinha acabado, mas ao te conhecer, encontrei um novo começo. Senti esperança pela primeira vez. Então é claro que eu te amo, sua tola maravilhosa, e se você acha que trazer seus amigos de volta é a escolha certa, então eu farei isso. Mas não tome essa decisão em meu nome. Faça isso apenas se você realmente achar que é a escolha certa para todos os outros, porque depois que eu abrir totalmente a fenda, ainda não sei se conseguirei fechá-la. Claro que eu te amo, sua tola maravilhosa. Claro que eu te amo. Eu te amo. Eu te amo. Eu te amo. A frase repetiu-se na mente de Brilhante, repetindo-se várias vezes, até que ela finalmente acreditou... Então o resto do que Solvei havia dito foi compreendido. Tanos. A batalha. O melhor amigo dela. Certo. Brilhante voltou ao presente e respondeu apressadamente. — Se os deixarmos naquele outro mundo, Tanos vence. Ele vai capturar você. Ele vai torturá-la para selar a fenda. Eles ficarão presos para sempre. É um fato. E, se abrirmos a brecha, ele pode ganhar também. Há uma chance de fazermos o jogo dele. Talvez tudo isso faça parte do plano dele, não sei. Mas pelo menos Rafe e a rainha poderão lutar por si mesmos, lutar por nós. Mesmo que seja a única coisa que posso dar a Rafe e ele esteja condenado de qualquer maneira, farei isso. A menor chance possível ainda é melhor do que nenhuma chance. E, quanto à fenda, daremos um jeito de fechá-la. Não vou sair do seu lado até que o façamos. — Tudo bem — Solvei assentiu, o poder já fervendo na ponta dos dedos, sua confiança em Brilhante absoluta. Mas sua confiança diminuiu quando ela se virou para enfrentar a fenda. — Como vamos encontrá-los sem Cassi? Brilhante estudou a lasca de magia branca suspensa no ar, observando-a pulsar com um brilho sinistro. Sem um dormi’kine, eles não tinham esperança de localizar Rafe ou a rainha, então só restava uma opção. — Temos que fazer com que eles venham até nós. — Como? — Eu tenho uma ideia. Um líquido antigo se derramou no chão quando a fruta escorregou pelos dedos de Rafe. Ele se levantou e voltou sua atenção para as raízes mutiladas e cipós acima. A fome se agitou profundamente em suas entranhas. A excitação fazia cócegas no fundo de seus pensamentos. Algo estava acontecendo. — Rafe? — Lyana chamou. Ele fez sinal de silêncio e se abriu para os vínculos mentais sempre presentes nos confins de sua mente. Os dragões estavam ativos. Eles estavam intrigados, uma mente coletiva voltada para um único assunto. Mostre-me, ordenou Rafe. O que você vê? O que está acontecendo? Ele enviou sua curiosidade pela conexão, pressionando e imaginando. O quê? O quê? O quê? Faixas borradas de laranja cintilaram em seus pensamentos. Não importa o quanto ele empurrasse, eles não se tornavam uma imagem nítida. Os dragões estavam muito distraídos para responder às suas exigências. Mas a criatura aethi’kine estava lá fora em algum lugar. Também sentiria a mudança. Ela viria. Rafe pegou o híbrido. Mostre-me. Mostre-me. — Espera, eu acho… A voz de Lyana desapareceu enquanto uma mais alta colidiu com seu espírito, jogando Rafe profundamente em outra realidade. Lar. Lar. Lar. Eu sinto. Eu sinto o cheiro. Está perto. Lar. Lar. Rafe se livrou dos pensamentos maníacos da criatura aethi’kine. A adrenalina o atingiu quando ele virou a cabeça para o lado, encontrando o olhar resoluto de Lyana. Em uníssono, eles disseram: — A fenda. — Está aberta — ela continuou. — O espírito está fluindo para este mundo. — Os dragões devem sentir isso também. Cassi… — Ela não está aqui. Um momento de silêncio se passou enquanto eles engoliam essas implicações. Se a dormi’kine não estava aqui, então algo estava muito, muito errado. Ou a fenda se abriu sozinha ou alguém forçou as mãos de seus amigos cedo demais. Rafe não conseguia parar de olhar para as asas de Lyana. Embora elas não estivessem mais tortas e deformadas, o tempo que os dois passaram neste esconderijo subterrâneo não foi suficiente para que seus ossos frágeis terminassem de se curar. Não havia como elas segurarem seu peso. — Eu vou ficar bem — Lyana murmurou, sentindo a direção de seus pensamentos. — Assim que eu passar pela fenda, ninguém será capaz de me tocar, quer eu voe ou não. E a caminho da fenda? Havia apenas dezenas de dragões famintos por magia e um híbrido insano para superar – as criaturas, Rafe não pôde deixar de pensar, que ele teria que manter de alguma forma neste mundo enquanto voltava para outro. Como se ouvisse suas reclamações, Lyana simplesmente deu de ombros. Rafe apertou a mandíbula, sem dizer uma palavra, pois ele sabia que não deveria. Além disso, ele não tinha escolha. Nenhum dos dois tinha. Era agir agora ou possivelmente perder a chance para sempre e, por mais adorável que tenha sido o tempo deles neste mundo quando não estava morrendo de fome, lutando contra híbridos ou se esgueirando pelos enclaves de dragões, ele estava pronto para voltar para casa. Com Lyana ao seu lado, ele estava pronto para tudo. — Assim como nós conversamos? — Ela perguntou enquanto se levantava lentamente, falhando em esconder seu estremecimento. — Exatamente como conversamos — ele confirmou. Havia pouco a fazer em seu casebre improvisado além de comer frutas e planejar uma fuga. Embora a hora tivesse chegado antes do esperado, eles estavam preparados. Rafe pegou Lyana em seus braços. Antes que ele pudesse bombear suas asas, ela colocou a mão em seu bíceps com pressão suficiente para fazê-lo parar. — Eu nunca vou te perdoar se você não chegar ao outro lado. Ele bufou. — Eu sei. — Eu quero dizer isso, Rafe. Eu nunca vou te perdoar. Eu não me importo se a criatura aethi’kine passar. Não me importo se cem dragões passarem. Vamos lidar com eles juntos. Podemos fazer qualquer coisa juntos. Você precisa passar pela fenda. Você… — Ana — disse ele com firmeza. Ela engoliu em seco e piscou para ele. A emoção que brilhava em seus lindos olhos verdes não era mais um mistério. Era amor, amor por ele, e ele não o desperdiçaria. — Eu prometo a você, eu vou passar por ela. Nenhum dragão, criatura ou magia em qualquer mundo vai me parar. O próprio Taetanos não ousaria. Somos um, você e eu. Não por causa de alguma profecia, mas porque nós escolhemos. E nada jamais nos separará novamente. — Bom, bem… — Ela tentou esconder o sorriso, mas decidiu não se incomodar. — Vou cobrar isso de você, sabe. Em cinco anos, em dez anos, da próxima vez agirei de forma incrivelmente irritante. Direi, Rafe, somos um, lembra? Você está preso a mim. Ele a apertou contra o peito e manteve a boca perto de sua orelha. — É melhor você fazer isso mesmo. Ela beijou sua bochecha, então inclinou a cabeça para trás com um suspiro. — Preparada? — Vamos fazer isso. A magia dourada derramou de suas mãos para preencher rapidamente a caverna. Rafe decolou. O teto se aproximava. Ele não diminuiu a velocidade. Ele não entrou em pânico. Sua fé nela era absoluta. Pouco antes de sua cabeça atingir a terra, uma fenda se abriu. Detritos caíram, nublando o ar. Ele voou por ela, subindo e subindo, cada vez mais alto, confiando nela para mover as vinhas, gemas e raízes em seu caminho. Pedregulhos se lançaram em suas bochechas. A poeira manchava sua pele. As paredes gemeram. Uma série de estalos encheu o ar, um após o outro, o som se tornando cada vez mais alto, cada vez mais próximo, até que... Rafe explodiu em um céu laranja. A luz brilhante fez seus olhos arderem quando a terra e a rocha caíram. Um estrondo sacudiu o ar, a vibração arranhando sua espinha enquanto o chão tremia de forma audível. Ele olhou para baixo. Essa foi por pouco. A poeira subiu do enorme buraco na paisagem rochosa. Dois segundos a mais e eles teriam sido esmagados. Mas não fomos. A vitória vertiginosa encheu seus pulmões enquanto ele respirava fundo e satisfeito. — Rafe, olhe. Lyana não parecia tão triunfante quanto ele se sentia, seu olhar fixo em algo sobre seu ombro. Ele girou. Todo senso de otimismo se esvaiu em um piscar de olhos. Dragões invadiram a fenda. Dezenas deles, talvez cem, circulavam o local, girando em um vórtice. Mandíbulas estalaram. Caudas chicotearam. O fogo se agitou em uma labareda constante enquanto rugidos enchiam o ar. Ele não conseguia nem captar um vislumbre de magia branca em meio à loucura. Como deuses eles deveriam passar por isso? — Você pode controlá-los? — Lyana perguntou. — Você pode forçá-los a parar? — Não tantos de uma vez. Em seus braços, ela estremeceu, traçando distraidamente uma das cicatrizes ao longo de seu antebraço enquanto olhava para o enxame. Ela estava pensando no fogo, ele tinha certeza. Ela estava com medo. — Eu não vou deixar você queimar — ele sussurrou. Ela se encolheu e fechou as mãos em punhos. — Eu sei. As palavras não eram nada convincentes. — Ana… — Apenas vá, Rafe. Agora. Quanto mais cedo começarmos, mais cedo terminará. — Esconda seu rosto contra meu peito, e aconteça o que acontecer, não use seu... Lar. Lar. Lar. Os pensamentos invadiram sua mente enquanto o vínculo queimava para a vida. Rafe saltou para o lado. Lá, no horizonte, um ponto de luz se movia rapidamente. Lyana ergueu a cabeça, sentindo a magia da criatura, tão parecida com a dela. — Vá, Rafe — ela exigiu. — Vá! Ele voou. Ele sempre estava no seu melhor quando agia por puro instinto, então deixou seu corpo assumir o controle, tentando não pensar muito enquanto se aproximavam do enxame. Ele circulou uma vez fora da luta, ajustando-se à velocidade e procurando uma abertura. Lá. Ele assumiu o controle da mente de um dragão enquanto eles mergulhavam sob sua asa e desviavam de suas garras estendidas. Um indulto momentâneo passou enquanto eles se esconderam sob sua barriga. Quando ele estava prestes a se mover, uma cortina de chamas bloqueou o caminho. No fundo de sua mente, ele sentiu o híbrido se aproximando. Mais rápido. Temos que nos mover mais rápido. No segundo em que o fogo desapareceu, ele agarrou o próximo dragão e o próximo e o próximo, evitando caudas e dentes, usando seus corpos como proteção contra o pior do caos. As chamas crepitaram. Mandíbulas estalaram. Rugidos vibraram no ar. Ele e Lyana se moveram cada vez mais para dentro do bando, cada vez mais perto do centro da loucura. Um dragão agarrou outro pelo pescoço e o jogou contra um terceiro, iniciando um efeito dominó quando os corpos se chocaram contra asas que se chocaram contra mais corpos. Através da abertura, Rafe captou o mais breve vislumbre de branco. Ele abandonou todo o senso de cautela e correu para o local, seu corpo reagindo instintivamente, e antes que ele percebesse o que havia acontecido, eles estavam lá. A fenda pairava suspensa no ar. Árvores verdes e sol quente acenavam do outro lado, um pedaço do paraíso. Mas isso era tudo – uma lasca. A abertura tinha a altura de um homem, mas não mais do que meio metro de largura. Os dragões não caberiam, ele percebeu, finalmente entendendo a verdade do frenesi. Ele nem tinha certeza se passaria, especialmente com suas asas. Mas Lyana sim. — Me arremesse — ela gritou acima do barulho. — Mas… — Me arremesse, Rafe — ela repetiu, o alarme mudando as palavras para um grito. Seus olhos se arregalaram enquanto ela olhava por cima do ombro dele. Profundamente em suas pupilas, ele captou o brilho mais sutil de ouro. — Me arremesse agora! Rafe a arremessou enquanto girava, observando por cima do ombro até que ela desaparecesse pela fenda. Um corpo se chocou contra ele em pleno ar. Sim. Sim. Sim. As palavras passaram por sua mente na mesma hora em que ele pensou: Não. Não. Não. No último segundo, Rafe deu um torque no ar. Ele envolveu as mãos em escamas douradas e puxou. Eles colidiram com um dragão e rolaram juntos por sua espinha, mãos contra garras, chutando e lutando pelo controle. Uma cauda chicoteou entre eles, forçando-os a se separar para evitar os espinhos. Através do fogo e do caos, Rafe encontrou os olhos dourados da criatura. Você não vai me impedir, parecia sussurrar. Ele deslizou suas lâminas gêmeas de suas bainhas e sussurrou de volta. Não tenha tanta certeza. Rafe não tinha planos de morrer neste inferno. Ele estava farto de se sacrificar pelo mundo. Ele já havia sacrificado o suficiente. Não era sobre isso. Era sobre ele. Pela primeira vez em sua vida, ele estava lutando por si mesmo. Não por Xander. Não por Lyana. Quando fechou os olhos, viu um futuro que se recusava a entregar. Um futuro que ele faria qualquer coisa para realizar. Sua promessa a Lyana tinha sido verdadeira – ele passaria pela brecha. Ele a encontraria. Ele só precisava matar o híbrido primeiro. Lyana gritou quando pousou na terra compactada e rolou, suas asas já frágeis triturando com o impacto. Bem, eu disse a ele para me arremessar. — Você está aqui! — Uma voz falou, surpresa. — Eu não tinha certeza se isso realmente funcionaria. Onde está Rafe? — Ele está vindo — Lyana disse enquanto se levantava e localizava Brilhante. Os lábios da maga se contraíram. — Quando? — Quando ele achar melhor. — Você não pode estar falando sério. — Você não deveria estar surpresa. Eu confio nele completamente. — Eu também — Brilhante zombou. — Eu confio nele como um completo e total idiota. Nós dois sabemos que ele é um idiota altruísta, e você é uma tola se pensa que ele está vindo de bom grado em breve. Um completo idiota! Lyana não pôde deixar de sorrir, o que apenas irritou ainda mais a photo’kine, mas não era todo dia que a rainha da profecia era tratada assim, e ela gostou bastante. A irritação de Brilhante saiu dela em ondas, e a magia de Lyana formigou em resposta. Poder zumbiu sob sua pele. Ao seu redor, o espírito sussurrou. Lyana respirou fundo, deixando a sensação familiar rolar sobre ela. Era bom estar em casa. — Brilhante — ela disse enquanto juntava as palmas das mãos, resistindo ao desejo de controlar o temperamento da maga, de manipular suas emoções. Seria tão fácil – em seu tempo longe, ela quase esqueceu como é fácil –, mas essa não era a rainha ou a pessoa que ela queria ser. — Você não precisa acreditar em mim se não quiser, mas as coisas são diferentes desta vez. Rafe está diferente. A maga bufou zombeteiramente e atacou a fenda, gritando: — Rafe! Rafe! Traga sua bunda flamejante para cá agora mesmo! Rafe! Uma onda de magia dourada atravessou a sala para prender a photo’kine antes que ela pudesse tocar a abertura. Era para o bem dela. A única coisa esperando do outro lado era um enxame de dragões furiosos e uma queda de trinta metros que ela provavelmente não sobreviveria. — Por favor — Lyana implorou enquanto liberava sua magia, confiando na maga para se colocar de volta sob controle. — Ouça o que estou dizendo. Me ouça. Ele mudou. Ele não está mais fugindo. Ele correrá em direção a algo, em minha direção, sim, mas também em sua direção, na de Xander, deste mundo e, acima de tudo, em direção ao futuro dele. Ele virá. Você precisa confiar em mim. Não, você precisa confiar nele. Uma expressão dividida cruzou o rosto da maga. Ela queria acreditar. Lyana podia ver o desejo estampado em seu rosto. No entanto, ia contra todos os seus instintos. Seus olhos opalinos mudaram ligeiramente. Sua atenção se voltou para Lyana – e simples assim, a dúvida desapareceu. A expressão dela se aqueceu. Não precisava ser um aethi’kine para entender o porquê. Mesmo alguém sem magia teria sentido o afeto queimando através das duas almas agora, olhando uma para a outra através do ninho sagrado, a outra sendo a spatio’kine, Lyana supôs. Elas ainda não se conheciam, mas o tom de marfim de sua magia havia revelado sua identidade. — Ele virá — Lyana repetiu. Brilhante assentiu quase imperceptivelmente. — Agora temos coisas mais importantes para discutir e não muito tempo para discuti-las. Cassi me disse que a spatio’kine não fala nossa língua, então, por favor, traduza para mim. Diga a ela que sei como fechar a fenda. — Você sabe? — O fogo de Brilhante voltou à vida. Lyana sorriu. — Eu sei. Bem, pelo menos ela tinha certeza de que sabia como fechar a fenda, mas a confiança costumava ser metade da batalha, então por que não começar a fortalecê-la? A ideia surgiu enquanto ela estava presa naquela cratera e, agora, estando neste ninho, ela só tinha confirmado. Isso vai funcionar, ela pensou, arqueando o pescoço para estudar os cristais brilhantes acima. Tem que funcionar. Quando ela baixou os olhos, estava de volta no tempo, não mais uma rainha da profecia olhando para uma fenda, mas uma princesa rebelde espiando um ritual sagrado que ela nunca deveria testemunhar. Um grupo de seis sacerdotes e sacerdotisas etéreos circundando a pedra divina de Aethios. Suas túnicas chegavam até o chão, fazendo parecer que flutuavam sobre a terra, e em uma das mãos cada um segurava um pequeno cristal polido. Como um, eles colocaram as palmas das mãos contra o orbe dourado brilhante. Seus corpos estremeceram. Suas cabeças caíram para trás. Suas pupilas rolaram para trás de seus olhos enquanto estavam cheios do poder de seu deus. Os cristais outrora opacos em suas mãos gradualmente se iluminaram, iluminados por dentro por um fogo oculto até brilharem com o mesmo brilho radiante da pedra divina. E, quando nenhum fio de poder restou para ser transferido, os sacerdotes e sacerdotisas recuaram. Seus sorrisos desapareceram. A consciência deles voltou. Mas o brilho nos cristais permaneceu. Você viu? Seu irmão havia sussurrado mais tarde, já sabendo da resposta, um certo brilho em seus olhos que a lembrava do menino que ele havia sido. Você não? Quanto mais Lyana amadurecia, mais ela se perguntava se sua veia rebelde tinha sido um presente dos próprios deuses e não um fardo, como costumava ser chamado. Tanta coisa nunca teria acontecido se ela não tivesse ousado sonhar com mais – incluindo esta resposta. Aquele momento das provações de cortejo estava se repetindo em sua mente por dias, desde que ela tinha visto a impressão branca da mão de Rafe naquele rubi brilhante. Ou cristal, ela deveria dizer. Engraçado que uma substância que nem era deste mundo acabou sendo a única coisa a salvá-lo. — O palácio — ela disse a Brilhante, que disse a spatio’kine. — Use-o como sua âncora. Brilhante recuou no segundo em que terminou de traduzir e franziu o rosto em confusão. — O palácio? — O feitiço da fenda desmoronou porque foi ancorado por criaturas vivas, por ovos, uma fonte finita. Quando eles eclodiram, ele se desfez. Mas podemos selá-lo para sempre se usarmos o palácio. Os cristais podem conter magia, eu já vi, e são eternos. O feitiço vai durar. A dúvida marcou as feições da garota enquanto ela passava a mensagem relutantemente, mas a spatio’kine encontrou os olhos de Lyana com um olhar feroz que indicava triunfo, como se a última peça do quebra-cabeça tivesse se encaixado. O branco rapidamente engolfou as palmas das mãos e se espalhou pelo ninho sagrado, cobrindo as árvores com um brilho reluzente de marfim. Parecia nevasca em um dia ensolarado, cada floco refletindo a luz enquanto caía. No centro, mais brilhante que uma estrela, estava a fenda. Através dela, laranja e preto brilharam, sussurrando o calor e o horror. Lyana olhou para as bordas, tentando não pensar no que Rafe estava enfrentando do outro lado. Ele conseguiria. Ele iria conseguir. — Por que está crescendo? — Brilhante sussurrou, mantendo os lábios planos para esconder qualquer aparência externa. Lyana acabara de se pegar pensando a mesma coisa. Ela não conseguiu encontrar os olhos de Brilhante. Esta era a resposta. Ela tinha certeza disso. Todos os momentos de sua vida, todos os momentos desde que a fenda se abriu pela primeira vez, levaram a isso. O mundo acima. O mundo abaixo. Sua infância dentro destas paredes. Seu status real. Seu poder. Era por isso que ela era a Rainha Nascida no Inverno: porque Lyana, e somente Lyana, tinha o conhecimento para fornecer essa resposta que resolveria tudo, que salvaria a todos. Exceto que não. Isso não aconteceu. A fenda se expandiu implacavelmente. E, quanto mais magia a spatio’kine liberava, mais rápido ela parecia se espalhar, 5 metros de largura, depois dez, mais alto e maior, até Lyana conseguir distinguir o enxame do outro lado. Logo, os dragões passariam. A garota gritou. Não foi tanto o som que fez Lyana se encolher – não passou de um gemido baixinho –, mas a frustração enterrada nele a atingiu como um golpe no crânio. De alguma forma, seu sentido foi atingido em vez dela. Claro. Lyana desviou o olhar para os cristais brilhantes acima, de volta para a abertura cada vez maior e para as cascas do ovo quebradas ainda no chão. A magia da fenda não era suficiente. Nunca tinha sido, e nunca seria. Claro! — Brilhante! A photo’kine estava encolhida perto da outra maga, um olhar terno em seus olhos enquanto suas mãos se moviam rapidamente pelo ar. Um sorriso relutante surgiu e desapareceu no rosto da maga da fenda, do tipo que precisava ser tirado teimosamente das profundezas pela única pessoa que sabia como. Enquanto seu desespero aumentava, Brilhante era a única coisa que a mantinha longe das profundezas, mas isso não podia esperar. — Brilhante! — O quê? — Ela estalou. — Tem outra ideia maluca para compartilhar? Lyana agarrou o espírito da maga com mão de ferro para mostrar que não estava brincando. — Traga-me cinco magos. Terra, ar, fogo, água e sombra. Agora. Para enfatizar o ponto, Lyana deu um pequeno empurrão em Brilhante em direção à porta enquanto falava o comando final. A indignação brilhou nos olhos da maga e ela se firmou, sempre lutando, seu espírito construído no desafio. Então a compreensão surgiu. — O feitiço da fenda — ela exclamou. — Precisamos recriá-lo — confirmou Lyana. — Usaremos cada hospedaria como uma âncora... — Isso pode ser um problema — Brilhante interrompeu com uma careta. — Nem todas elas estão de pé. O ouro fervia na palma da mão de Lyana. — Elas estarão quando você voltar. — E Solvei? Você vai mantê-la segura? — Quem neste mundo ousaria me desafiar? Brilhante hesitou, parecendo querer contestar a afirmação de Lyana. Quando ela abriu a boca para falar, um rugido quebrou o momento. Lyana girou. Um dragão estava no meio da fenda. Fogo bulboso explodiu de seu focinho enquanto suas mandíbulas estalavam em sua direção. Com um aceno de mão, ela enviou as chamas inofensivamente para o céu. — Vai, Brilhante! — Ela gritou enquanto canalizava o espírito do vento e formava um ciclone para forçar a besta a recuar. Outro dragão se chocou contra ele pela lateral, garras cortando escamas e carne enquanto jogava a besta para trás, lutando para tomar seu lugar. Meus deuses, pensou Lyana, presenciando a carnificina. Rafe. Mas em voz alta, tudo o que ela disse foi: — Vá agora! Demorou duas semanas e sete corpos para seu pai quebrá-la. Uma criança de cinco anos. Essa foi a vítima que finalmente quebrou a força de vontade de Cassi. Eles haviam carregado a garota, toda joelhos nodosos e inocência de olhos brilhantes, chegando ao ponto de esculpir Cas em sua coxa antes que Cassi se rendesse. Ela tentou contar meias verdades e mentiras para poupar as outras seis vidas, mas nada disso funcionou. Embora tenha levado quase vinte anos para seu pai conhecê-la, de alguma forma ele a conhecia. Ele podia ler cada pensamento em sua cabeça. Era desarmante. E ela se recusou a arriscar outra vida inocente jogando seus jogos. Então ela contou tudo a ele. E agora ela tinha um assento na primeira fila para a destruição que sua fraqueza havia causado. Não fraqueza, ela corrigiu internamente, tentando manter algum senso de si mesma, de seus valores, de seu espírito. Isso é o que eles querem que você pense. Mas não é verdade. A compaixão a tornava humana. A compaixão a tornava forte. Compaixão era a razão pela qual seu lado bom iria vencer. Porque eles estavam lutando por algo. Por suas casas, por suas culturas, por seus entes queridos. Tanos lutava por ninguém e nada além de si mesmo. Seria a destruição dele, ela tinha certeza, e o acerto de contas chegaria em breve. — Olhe — seu pai disse, a alegria em sua voz fazendo-a querer vomitar. — Lá. Cassi espiou com o canto do olho, tomando cuidado para não erguer a cabeça de onde estava pendendo um tanto dolorosamente contra o peito. Ela estava amarrada à grade atrás de seu pai desde que eles deixaram as cavernas, e isso forneceu a oportunidade perfeita para continuar seu estupor fingido. Bem, principalmente fingido. A princípio, seu completo desânimo tinha sido real. Seu corpo, seu espírito, sua mente, tudo se desligou depois que ela confessou, como se ele tivesse cortado a verdade com facas em vez de palavras. Mas então uma ideia surgiu, trazendo-a de volta à vida – interiormente, pelo menos. Para o mundo, sua letargia permaneceu inalterada. Eles arrastaram seu corpo flácido de seus aposentos e pelo convés antes de amarrá-la a este local, um coro de grunhidos e maldições em seu rastro. As asas da coruja eram bastante grandes e difíceis de manobrar. Ela ainda não sabia por que eles se incomodaram. Para a diversão doentia de seu pai? Para usá-la como isca? Para ficar de olho nela? Por todas essas razões? Cassi não ousou procurar respostas. Em vez disso, ela permaneceu onde a colocaram, seus músculos ficando ainda mais rígidos e doloridos a cada segundo que passava, mas ela não era nada além de paciente. A oportunidade perfeita estava chegando, e ela estaria pronta quando chegasse. — A aethi’kine está aqui — Tanos continuou. Cassi avistou a magia dourada disparando pelo céu. Seu coração afundou. Ana. — Está quase na hora. Hora de quê, ela não tinha ideia. Tudo o que Cassi sabia era que a irmã tinha fugido há cerca de uma hora, antes de o sol nascer completamente, e não a tinha visto desde então. Não muito tempo depois, a magia agitou-se no fundo do peito de Cassi – o retorno de seu poder dormi’kine. Forneceu pouco conforto. Em vez disso, um vazio se espalhou por seu peito. Para onde Emalia foi? E por quê? Para ser honesta, Cassi sabia as respostas para essas perguntas. Ela só não queria enfrentá-las quando estava impotente para fazer qualquer coisa para detê-la. — Anime-se, Kasiandra. Vai acabar logo. Ele queria uma reação, então ela se recusou a dar-lhe uma, nem mesmo o menor aperto de seus dentes. Ele precisava acreditar em sua apatia com cada fibra de seu ser. Vamos ver se você consegue ver através dessa mentira, Papai. O desafio a sustentou melhor do que qualquer droga ou comida. Ela respirava como oxigênio mantendo uma chama, atiçando as brasas até que ela silenciosamente fervesse. Mas seu corpo permaneceu imóvel, seus membros flácidos, sua alma sem vida, como se ela não fosse nada além de uma casca de pessoa, a filha que ele empurrou com tanta força que ela quebrou. — Eu odeio ver você assim — ele incitou. — Não é como se eu tivesse deixado você passar fome. Você foi bem cuidada, alimentada e banhada. Você tinha rédea solta no meu navio. A única coisa que retive foi sua magia, e certamente você entende a necessidade disso. Ele fez uma pausa, estudou-a, esperou. Cassi manteve-se firme. — Ver meu próprio sangue tão quebrado. Você está realmente tão magoada com algumas vidas perdidas? Pensei que você fosse mais forte que isso. Eles eram criminosos. E, mesmo que não fossem, você acha que eles teriam feito o mesmo por você? Especialmente aquela pequena verme? Sabe o que eu perguntei a ela depois que você poupou a vida dela, se ela cortaria sua garganta em troca de dez moedas de ouro? A garota disse que sim! E pensar que você sacrificou todos que acredita amar por aquela criatura impiedosa. Ele resmungou. Cada nervo de Cassi vibrava com a necessidade de responder, seu tom paternalista atingindo-a exatamente como pretendia. Sua pele zumbiu. Não faça isso. Não faça isso. Não faça isso. — As pessoas são horríveis — ele suspirou e se ajoelhou diante dela, tentando chamar sua atenção. — Sua vida será melhor quando você aprender a parar de se importar tanto. Ah, então é assim que ele está se justificando, Cassi percebeu. Tanos havia desistido do jogo. Em sua mente distorcida, ele pensava que a estava ajudando. Ele pensava que a estava endurecendo. Ele pensava que estava cumprindo seu dever paterno. De uma forma estranha, ele estava. A cada momento que ela lutava contra ele, seu espírito se fortalecia. Ela se voltou um pouco mais para si mesma. — Kasiandra — ele murmurou, quase gentil. Em seguida, mais firme em sua falta de resposta. — Kasiandra. Tanos agarrou-a pelo queixo e sacudiu sua cabeça. Olhos de aço a perfuraram como uma lâmina em busca do golpe perfeito. Ela manteve o olhar vazio, fazendo tudo o que podia para pensar em assuntos brandos, o céu e o mar, qualquer coisa para temperar o fogo. Ele procurou, procurou e procurou, mas não encontrou nada. Seu pai zombou e a soltou. A cabeça de Cassi caiu de volta no lugar. — Você é tão frágil quanto sua mãe com seu alegre bando de desajustados — ele murmurou enquanto se levantava, então marchou para um de seus magos. Ela foi convincente. Cassi lutou contra a vontade de sorrir. Não havia ninguém mais vulnerável do que um homem poderoso que já pensava ter vencido. Ela o tinha exatamente onde queria. Pela primeira vez naquele dia, ninguém a estava observando. Pela primeira vez naquele dia, ninguém se importou. Pela primeira vez em semanas, ela tinha uma brecha. Cassi não perdeu tempo e assumiu sua forma espiritual. Afundado como já estava contra o corrimão, seu corpo não se mexeu quando ela se despediu. O céu tinha gosto de liberdade. Ela correu pelos campos de batalha, uma nota de orgulho em seu coração ao ver avians e magos trabalhando juntos contra um inimigo comum. Eles lutavam em unidades compostas de pelo menos quatro magos – um para cada elemento principal – e um esquadrão de guerreiros avians. Fora ideia de Xander. Ela se lembrou dele explicando a ela durante um de seus sonhos, seu foco um tanto prejudicado. Quem sabia que a inteligência poderia ser tão excitante? A princípio ela escutou, mas com cada palavra apaixonada, ela encontrou sua atenção deslizando para os lábios dele, observando as formas que eles faziam, pensando neles na pele dela, imaginando ser o foco de todo aquele fervor. É desnecessário dizer que, quando ele terminou, ela assentiu silenciosamente antes de se jogar em seus braços. Fosse qual fosse seu plano, estava funcionando. O exército de magos de Tanos avançou firmemente, mas não era uma vitória fácil, nem mesmo clara. Os avians superavam em número os magos, eles tinham seus próprios magos lutando com eles e estavam armados com armas esculpidas em cristal. Cassi não entendia de onde vinha a certeza do pai. Ele não estava perto de vencer esta luta, pelo menos, não ainda. A magia dourada chamou sua atenção. O ninho sagrado brilhava como o sol, um sinal claro de que Lyana estava lá, e talvez Rafe também, mas por mais que Cassi quisesse ajudar seus amigos, ela não queria distraí-los. A fenda era responsabilidade deles – eliminar os dragões, repelir os híbridos, fechar seu mundo para sempre. Era a luta mais importante do dia, e ela não iria afastá-los disso. Tanos era secundário. Seu exército era uma ameaça, mas não existencial, apenas o tipo antiquado de matar pessoas. A maneira mais rápida de detê-los era destruir seu líder e, por mais grandioso que Tanos se considerasse, não seria necessário o rei e a rainha da profecia para fazer isso. Havia outra pessoa em quem Cassi confiava a tarefa – uma pessoa que naquele exato momento, de acordo com a magia de Cassi, estava no topo do palácio de cristal e não no meio da loucura onde ela esperava encontrá-la. A capitã Rokaro se destacava das outras aves, sua única asa dobrada grudada em suas costas como se estivesse propositalmente escondida. Suas pernas eram firmes pela vida de marinheira, apesar de sua localização em terra firme, e seus olhos gelados estavam fixos na batalha abaixo. Uma carranca franzia sua testa. Ela parecia inconsciente da conversa atrás dela. — De acordo com a capitã, Tanos vai se concentrar aqui e aqui — disse Xander, sua voz um fascínio indescritível. Confiante e inabalável. Apaixonado e gentil. — Então, precisamos atacar primeiro. Cassi lançou-lhe um olhar. Como ela não poderia? Ele se inclinou sobre a mesa de estratégia, movendo navios e esquadrões em miniatura enquanto descrevia seu plano de batalha, a imagem de um rei em seu colete bordado e justo, cada centímetro dele coberto de preto, até o sinete de obsidiana brilhante em seu dedo. A realeza reunida ouviu enquanto ele falava, quase reverente. Ele havia conquistado a lealdade deles – é claro que sim. Era quase doloroso não correr para ele. Em seu corpo distante, seu coração doía. Mas foi para isso que ele nasceu, e ela se recusava a ficar em seu caminho, a ser um fardo, a tirá-lo de seu povo. Em vez disso, Cassi atirou-se para o lado até que o seu espírito se moldasse ao corpo que a criara, aquele que ela conhecia quase tão bem como o seu próprio depois de tantos anos a sonharem juntos. Sua mãe não tentou lutar. Sua mente estava aberta, esperando, quase como se esperasse esta visita. Como a capitã estava acordada, Cassi não teve tempo para mais do que uma breve palavra, mas saiu clara e forte. Olhe. A capitã Rokaro respirou fundo, cada centímetro dela em estado de alerta, e colocou a mão nos cristais como se desejasse mergulhar neles. Cassi saiu bruscamente de seu corpo, não voltando para o dela, mas pairando sobre ele, procurando o alvo perfeito. Lá. O aero’kine favorito de Tanos estava no topo do mastro, magia amarela saindo de suas mãos enquanto o ar crescia em uma rotação circular em direção às velas. Ela mergulhou em sua mente. O homem estremeceu quando ela entrou em seus pensamentos e agarrou seu espírito. Ele lutou contra o invasor estrangeiro. Seus dedos afundaram como garras. Quanto mais ela pudesse aguentar, mais chance ela teria de sua mãe perceber a interrupção em seu poder, nos padrões do vento. Vamos. Vamos. Veja… Cassi rolou no ar, girando ao acaso enquanto era atirada para longe da mente dele. Em um piscar de olhos, ela voltou para seu corpo, com cuidado para não se mover. Era uma aposta no escuro apostar na falta de experiência de seu pai com o poder de dormi’kine, uma aposta que ela esperava que valesse a pena. A maioria nunca suspeitou que magos conhecidos como Andarilhos pudessem afetar a mente desperta. Até onde ela sabia, ela era a única que havia tentado, e não era o tipo de informação que Malek teria compartilhado com alguém fora de seu círculo imediato. — Que raios foi aquilo? — Tanos berrou. Seu mago estalou. — Eu não… eu não… Tanos rosnou e baixou o olhar para Cassi. Seu coração trovejou e ela desviou os olhos, esperando que ele não notasse o jeito que ela estava espiando através de sua visão periférica. Ele a observou por um segundo, depois dois, o tempo se estendendo anormalmente enquanto o pulso dela acelerava. O peso aumentou. Cassi arriscou outro olhar. Seu pai olhou para a batalha, a luta que ele pensou que já havia vencido. Se ele estivesse um pouco preocupado, poderia ter questionado ainda mais a estranha ocorrência. Mas ele acreditava que sabia tudo. Ele pensava que era o único com segredos. Ele estava errado. A vingança era uma mulher, e ela estava vindo com apenas uma asa. Disso Cassi tinha a certeza. — Eu os encontrei — disse a capitã Rokaro, não abertamente alto, mas as palavras cortaram a sala de guerra mesmo assim, levando o silêncio em seu rastro. O coração de Xander se apertou, o plano de batalha foi esquecido. — Onde? — No meio da armada, na retaguarda, três mastros, o central com quatro velas e bandeira preta no topo. Esse é ele. — Como você pode ter certeza? — Posso ter apenas uma asa, garoto, mas ainda tenho olhos de falcão. Eu reconheço minha marca quando a vejo. Xander pegou a luneta da mesa e a levou ao olho. Mesmo com o efeito de ampliação, ele não conseguia ver nada além de figuras borradas em um convés de madeira, parcialmente obscurecido por velas entrando e saindo de vista. Ele procurou por asas salpicadas de preto e branco, que deveriam ser tão óbvias contra o marrom, mas não viu nada. — Como… — Acredite ou não, a escolha é sua, mas tínhamos um acordo. Eu vim. Eu forneci informações. E agora estou partindo. Se você for um homem de palavra, não vai ficar no meu caminho. Ela passou por ele quando terminou de falar, deixando-o atordoado com a chicotada. Levou um momento para recuperar suas faculdades. — Capitã — Xander a perseguiu. — Capitã! Com o movimento de sua mão, as portas da sala de guerra se abriram, batendo ruidosamente contra as paredes. Mais um movimento e elas se fecharam. Xander revirou os olhos enquanto se atrapalhava com a maçaneta. Ele estava começando a pensar que o poder não era a única coisa com a qual os magos nasciam – cada um que ele conheceu parecia ter um dom extraordinário para o drama. — Capitã! — Ele chamou de novo quando irrompeu na sala ao lado. Já estava vazia, e outro conjunto de portas duplas estava escancarado. Ele correu atrás, passando por três grupos de guardas boquiabertos e mais duas portas abertas até que finalmente alcançou o átrio central. — Cap… Duas portas se fecharam atrás dele e ele parou. — Tive a sensação de que você viria atrás de mim e queria falar com você a sós — disse ela à sua esquerda. Xander se virou para encontrá-la encostada com um ombro contra a parede, uma emoção em seus olhos que ele não conseguia ler. Eles estavam duros como gelo, mas cortados com pequenas fraturas, as rachaduras se espalhando lentamente por sua compostura. A resolução estava gravada em cada uma de suas feições, mas a dor também estava lá, um desgosto que ele não entendia muito bem. — A rainha está aqui. Ele deu um passo à frente, surpreso. — Solvei abriu a fenda? — Deve ter aberto. A magia da rainha está em toda parte. Ela pinta o céu. — Por que não… — Porque ela está travando uma batalha sobre a qual seus reis e rainhas não sabem nada — a capitã cortou, seu tom como veneno enquanto uma vida inteira de hostilidade borbulhava na superfície. — E, ao contrário de você, parei de honrar as regras da sociedade avian há muito tempo. Mas você merece saber, porque se a rainha está aqui, então... — Rafe também. A capitã assentiu. Xander olhou por cima do parapeito, para a cavidade aberta no centro do palácio, imaginando o piso de mosaico em sua base, onde a cerimônia de casamento aconteceu. A entrada do ninho sagrado estava tão perto. Seu irmão estava tão perto. E ainda... Ele voltou sua atenção para a capitã Rokaro. — Não posso… — Eu não espero que você abandone seu posto, mas agora que estou saindo, alguém precisa saber, e a única pessoa em quem eu confio remotamente aqui na segurança do palácio de cristal é você. Ela disse segurança como se fosse uma palavra feia. Ele entendeu. Uma capitã sempre afundava com seu navio e, aos olhos dela, um rei ou rainha também deveria. Mas eles não eram os mesmos. Cada corvo nesta cidade o procurava em busca de liderança, assim como os membros de todas as outras casas. Alguns dos homens e mulheres na outra sala podem ter sido covardes se escondendo da batalha, mas a maioria estava fazendo o possível para manter seu povo seguro. E nesta situação, suas mentes eram armas muito melhores que suas espadas. — Você não acha que eles conseguirão fechar a fenda — disse ele, uma afirmação e não uma pergunta. — Espero que sim. — Mas. — Mas se não conseguirem, você precisa estar ciente de que Tanos não é o único perigo no campo de batalha hoje. Se algo der errado com a fenda, será pior. Você não vai precisar de magia para saber. Esteja preparado. Não quero que isso o pegue de surpresa. — Por que não? — Ele estreitou os olhos. — Pensei que você tivesse parado de se importar com as aves há muito tempo. — Todas menos uma — a capitã Rokaro engoliu em seco, um leve cerrar os dentes. — E ela vai precisar de você quando isso acabar. — O que você quer dizer com isso? A capitã chutou a parede e estendeu as mãos. Um vento rápido se agitou, envolvendo seu corpo em um casulo apertado. As mechas coloridas de seu cabelo balançavam com a brisa quando seus pés começaram a se levantar do chão. Xander gritou sobre o uivo repentino. — Capitã! Ela olhou para ele, a triste inclinação de seu queixo tornando-se ainda mais clara. Ele engoliu as palavras que queria dizer, ciente de que nunca a faria mudar de ideia, e em vez disso enfiou os dedos no bolso. — Dê isso a ela por mim. A pedra de obsidiana parecia absorver a luz quando ele estendeu o anel para a capitã pegar. Combinava com o de seu próprio dedo, embora menor e feito para uma mão feminina. Ele o carregava desde o falecimento de sua mãe, esperando a oportunidade perfeita chegar. Ele deveria tê-la conhecido melhor. Isso estava longe de ser perfeito, mas se ele próprio não pudesse estar lá, precisava que Cassi entendesse exatamente quem ela era e exatamente o que ela significava para ele. Ele precisava que ela soubesse que ela nunca estaria tão perdida no mundo ou em si mesma que ele não a encontraria: sua rainha. A capitã Rokaro pegou o anel e olhou para ele por um longo segundo antes de colocá-lo com segurança no bolso da camisa. — Você realmente a ama, então? — Com tudo o que sou. — Bom — a capitã abriu a boca para continuar, mas reconsiderou. As palavras não ditas pesavam em sua língua enquanto ela o estudava. Ele esperava que os olhos dela se enchessem de decepção. Ele esperava ser considerado indigno. Em vez disso, ela franziu os lábios, como se não houvesse mais nada a dizer – nenhum aviso, nenhuma sabedoria, nenhum conselho. Como se ela confiasse que ele já soubesse. Como se ela confiasse nele com sua filha. Foi a primeira vez que alguém da tripulação, e principalmente sua líder, conseguiu fazê-lo se sentir digno. — Ótimo — repetiu a capitã Rokaro, o som quase inaudível à medida que os ventos aumentavam e a levavam embora. Xander olhou para o espaço agora vazio. Cassi. Rafe. Rafe. Cassi. Seu irmão. Sua amante. Seus dois melhores amigos. Ele não podia fazer nada por nenhum deles a não ser virar as costas, e nem isso podia fazer. Ele estava enraizado no lugar, seu coração desejando ir para um lado e sua cabeça para outro, ambos os lados puxando e puxando e puxando até que qualquer decisão ameaçasse separá-lo. Como posso abandoná-los? Como posso abandonar meu povo? Não havia uma boa resposta, nenhuma escolha certa. — Xander. A voz profunda de Luka cortou a indecisão. Xander se virou para olhar para trás. O príncipe columba projetou seu queixo, uma carranca beliscando suas sobrancelhas escuras enquanto ele sinalizava de volta para a sala de guerra. — O que você está fazendo aqui? Nós precisamos de você. O flanco esquerdo está desmoronando. Não há tempo a perder. Era incrível o quão profundo três palavras podiam mudar tudo. Eu te amo. Eu perdoo você. Sinto sua falta. E agora, precisamos de você. Porque essa era a diferença. Essa era a escolha. Rafe tinha Lyana. Cassi tinha sua mãe. Eles não precisavam dele. Seu povo sim. Os avians estavam debatendo. Nenhum representante da Casa dos Canoros ou da Casa dos Rapineiros havia chegado à sala de guerra e, pelo que sabia, suas famílias reais haviam morrido nos incêndios. O jovem rei coruja estava muito sobrecarregado para falar, quanto mais para liderar. A rainha Zara era uma aliada próxima, mas como amante das artes, ela não era exatamente uma comandante. E tanto Luka quanto Damien aprenderam a recorrer a ele em busca de orientação. No caos de um ataque repentino, seus pais seguiram o exemplo. Seus reinos estiveram em paz por tanto tempo, uma verdadeira batalha trouxe nada além de confusão. E, de alguma forma, Xander se viu o único na sala capaz de ver através da loucura. Eles precisavam dele. Decisão tomada. — Sim, claro. Ele seguiu Luka de volta aos aposentos reais, deixando um pedaço de si para trás. Cassi e Rafe ainda não precisam de mim, Xander prometeu baixinho. Mas assim que precisarem, largarei tudo. — Por que está demorando tanto? — Tanos rosnou. Os ferrolhos que se espalhavam pelo navio chacoalharam sob sua raiva crescente. Aparentemente, nem tudo estava indo conforme o planejado. Cassi conteve o sorriso. O que quer que você esteja fazendo, Ana, continue. Magia aethi’kine enchia os céus, um grito de guerra para os magos em Sphaira e um presságio crescente para as tropas de seu pai. Era o único poder que eles não podiam vencer, nem com toda a magia do mundo. Um pensamento, e Lyana pararia todos eles. Assim que a fenda fosse selada, Tanos já era. — Ela deveria… Ele parou de repente e um baque alto encheu o ar. Cassi estava desesperada para olhar, mas manteve sua posição, a curiosidade espetando como uma faca. — Caius! — Seu pai berrou. Ele deu um passo à frente em seu campo de visão, uma flecha presa entre os dedos pálidos e sem sangue, o punho tremendo com sua fúria. Ele a estendeu em direção ao aero’kine, a ponta de cristal brilhando ao sol. O mago se encolheu. — Você tem apenas uma responsabilidade, uma! — Eu não… Não foi… A compreensão surgiu no olhar de seu pai. Ele arqueou a cabeça para trás quando um corpo caiu do céu. Mais um segundo e sua mãe o teria pegado de surpresa. Em vez disso, um disco de metal se desprendeu do mastro principal e a atingiu no estômago, jogando-a de lado. Ela caiu rolando e ficou de pé, um fogo queimando em seus olhos normalmente gelados. Ela lançou seu olhar para Cassi apenas tempo suficiente para fazer contato, e então o devolveu a Tanos. — Marido — ela zombou. — Esposa. Uma explosão de magia verde disparou de seus dedos e uma espiral de correntes surgiu como uma cobra desperta. O poder aero’kine rolou da palma da mão da capitã. Tanos sorriu. — Esperei por esse momento por muito tempo — disse ele. — Embora eu nunca tenha pensado que você viria com tanta boa vontade. — Não há nada que eu não faria por ela. — Ainda assim, vir cegamente para uma armadilha parece um pouco... abaixo de você, Audezia. Eu esperava mais luta. — E eu esperava que você agisse como o homem valente que finge ser e me enfrentasse sozinho — sua mãe cuspiu quando seus magos se posicionaram atrás dela, magia fervendo na ponta dos dedos enquanto eles se aproximavam. Cada quilo de botas fez a pulsação de Cassi disparar. Por favor, me diga que você tinha um plano melhor do que esse, ela implorou baixinho. Um brilho vicioso iluminou os olhos de sua mãe. — Ainda bem que aprendi a viver com a decepção. Magia aero’kine varreu o convés em uma torrente repentina. Os magos caíram como alfinetes, para baixo, para baixo, para baixo ao longo de uma linha, sua magia disparando inofensivamente contra o vento, que não parava. Com o passar dos segundos, as rajadas só aumentaram, pegando vestígios de sujeira e água, tornando-se uma parede quase opaca dividindo o navio em dois. A mãe dela brilhava como o sol, cada poro vazando amarelo, mais forte do que Cassi jamais imaginara. E ela não estava sozinha nessa surpresa. — Impressionante — admitiu Tanos. — Você cresceu desde a última vez que nos vimos. — E você permaneceu exatamente o mesmo, muito enfiado em sua própria bunda para ver o mundo ao seu redor. Eu disse para você não me subestimar. Uma e outra vez, eu disse a você. Mas você nunca, nunca ouviu. A capitã torceu as palmas das mãos e o vento mudou, não mais fluindo em uma linha, mas girando em um círculo, girando e girando e girando. O redemoinho cercou os pais de Cassi, isolando-os do resto do navio. Os ventos violentos rasgaram o convés, tão mortais quanto belos, brilhando com a magia citrina. Estalos e rachaduras encheram o ar quando as tábuas se soltaram, as pontas de madeira um aviso para qualquer um que tentasse atravessar. Qualquer um exceto Cassi. Ela deslizou para sua forma de espírito e mergulhou na tempestade. A corrente a varreu, o mundo virou um borrão. Foi vertiginoso. Ela perdeu toda a noção de cima ou de baixo. Seu espírito rolou e virou e girou, enquanto sua mente girava. O poder aero’kine não era nenhum mistério para ela, mas isso era outra coisa, vinte anos de fúria desencadeada. Sua mãe deve ter esperado, ganhando tempo escondendo sua força desde que deixou Tanos, e talvez mais, tudo em preparação para este inevitável reencontro. Remendado ao menos conhecia o verdadeiro poder de sua mãe? Sim, respondeu Cassi à sua própria pergunta. Era a única explicação para sua ausência. Os dois tinham planeado este dia, no segredo da cabine da mãe, longe de ouvidos indiscretos, numa esfera de confiança perfeita que Cassi nunca conseguira violar. Ela quase podia ouvi- los agora. Vou fazer isso sozinha, era o comando firme de sua mãe. Zia… Sozinha, Markos, e ponto final. Mas não sozinha, não mesmo. Estou indo, pensou Cassi enquanto procurava o espírito de sua mãe. A corda estava lá, mais forte do que qualquer outra, fortalecida pelo sangue. Usando-o como âncora, ela mergulhou mais fundo na tempestade, através do vento e dos escombros, até cair no olho do furacão. Estava tudo, menos calmo. Adagas pairavam acima das palmas de seu pai, vibrando com poder como uma corda de arco esticada, a flecha esperando para voar livre. Ele estalou o dedo e três dispararam pela distância, apenas para serem arrastados por uma rajada repentina. Correntes deslizavam pelo convés como cobras. Sua mãe as empurrou para trás. Raios caíram do céu. A capitã as tirou do caminho. — Eu posso fazer isso o dia todo, Audezia — Tanos gritou acima do uivo, seu tom encantado. — Você pode? Ela não precisava responder. A verdade estava escrita no leve tremor de seus braços, na gota de suor que escorria por sua testa, no ranger de seus dentes. A quantidade de poder que ela exercia não era sustentável. Era imenso e incrível, e contra qualquer outro mago poderia ter sido suficiente, mas o poder ferro’kine era temido por uma razão. Quase não era necessária nenhuma magia para um mago de metal controlar uma adaga, nem mesmo um pensamento para arremessá-la em um campo de batalha. Mesmo o ferro’kine mais fraco possuía força mortal – e seu pai não era fraco. O furacão encolheu. Em seguida, encolheu novamente. O cabelo castanho rodopiava enquanto a brisa beijava suavemente a pele de Tanos. Sua camisa tremulou. Ele não se mexeu. — Atreva-se. O redemoinho se aproximou e o lado esquerdo de seu lábio se contraiu em diversão. Uma folha de metal se desprendeu do convés e se moveu atrás dele como um escudo. A madeira e o vento golpearam, deixando marcas, mas segura por seu poder, ela não se mexeu. Sua mãe pressionou com mais força, mas seu pai meio que resistia aos vendavais que tão facilmente varriam seu espírito, sua magia verde-pinho brilhando como uma promessa. Você não vai me matar, seus olhos pareciam dizer. Assim não. Então como? Cassi olhou ao redor do círculo cada vez menor, procurando a arma escondida de sua mãe. Certamente ela tinha um plano melhor do que este. Mesmo que ela conseguisse varrer Tanos com os ventos, isso não o mataria. Ferir, provavelmente, mas isso não seria suficiente para acabar com a guerra, para detê-lo. Apenas a morte certa serviria, um fato que a capitã sabia muito bem. Esta era uma tática de atraso, uma distração para seu ataque real. O que você está esperando, mãe? — Está pensando duas vezes, amor? — Tanos provocou. — Sempre soubemos nos divertir. A capitã desviou o olhar para o lado, a primeira vez que ela mudou o foco, então para cima, quase como se estivesse procurando por algo. Ou alguém. Eu. Cassi estremeceu. Ela está procurando por mim. Claro, era tão óbvio. Como ela demorou tanto para perceber? Ela era o truque na manga de sua mãe. Ela era a arma secreta. Ela sempre seria. Cassi diminuiu a distância entre eles, sem saber como tornar sua presença conhecida sem destruir a concentração da capitã. Malek e Lyana foram os únicos que conseguiram sentir seu espírito fora de seus sonhos, mas sua mãe não era aethi’kine, apesar dessa espetacular demonstração de poder. Talvez ela não tivesse que ser. Elas compartilhavam um vínculo mais profundo do que qualquer outro. Esta mulher a tinha feito. Esta mulher a criou. Esta mulher a amava, apesar de tudo o que ela havia feito, talvez até por causa disso. Suas almas estavam conectadas. Talvez isso fosse o suficiente. Cassi roçou a bochecha da mãe com o toque mais suave de dedos. A capitã suspirou, como se estivesse prendendo a respiração. A única asa de caramelo em suas costas se desenrolou e bateu uma vez. Era um sinal que elas usaram mil vezes em seus sonhos, o significado muito claro. Vamos. Cassi disparou ao longe, uma flecha acertando em cheio enquanto perfurava a mente de seu pai. Por mais que ela odiasse admitir, os dois também estavam conectados, mas desta vez funcionou a seu favor. As pequenas partes dele que reconheciam as pequenas partes dela davam as boas-vindas ao seu espírito. Eles agiam como pontos de apoio, e ela enfiou os dedos neles. Ele lutou, ah, ele lutou, mas pela primeira vez na vida de Tanos, não havia absolutamente nada que ele pudesse fazer. Cassi manteve-se firme. Por ela mesma. Por sua mãe. Por seus amigos. Pelas vidas sacrificadas em seu nome. Pelos corpos que com certeza irão sujar esta cidade no final do dia. Tudo em nome da ganância de um homem. A impiedade estava em seu sangue, deixaria esta ser a última vez que ela sentiria raiva em suas veias. Cassi resistiu. Mesmo quando seu espírito vacilou, mesmo quando seu corpo enfraqueceu, mesmo quando seus pensamentos escureceram, ela segurou, segurou e segurou, até que finalmente não havia mais ninguém para segurar. Ela soltou. A capitã ajoelhou-se sobre Tanos. A palma da mão cobriu o nariz e a boca dele, a magia brilhando nas pontas dos dedos enquanto ela sugava a vida dele. A tempestade se foi. O vento havia morrido. A raiva dela estava concentrada em uma tarefa menor – remover todo o ar que restava nos pulmões dele. Ela esperou um segundo a mais do que o necessário, relaxando de dor ou alívio, não havia como ter certeza. Cassi recuou para o seu corpo, a mesma luta estranha a tocar-lhe as cordas do coração, em parte vitória, em parte remorso. Ele era mau. Ele era o pai dela. Ele estava morto. Ela ajudou a matá-lo. Tudo verdade. Tudo real. Tudo trágico. — Kasiandra — sua mãe disse com firmeza. Cassi ergueu a cabeça, sem saber ao certo por que sentia lágrimas no rosto, mas incapaz de contê-las. Os músculos de seu pescoço gritaram em protesto depois de tantas horas de inatividade. Sua garganta estava crua. — Mãe. — Isto não… — A capitã estremeceu. A princípio, Cassi não entendeu. Então ela estremeceu novamente, e novamente, então uma quarta vez. Ela tossiu e pequenos respingos de vermelho escaparam de seus lábios. Quando ela caiu para a frente, revelando as adagas cravadas em suas costas, Cassi já estava gritando. — Mãe! Mãe! Ela puxou as cordas que a prendiam ao corrimão. Elas nunca tinham sido amarradas com força – um erro ou apenas outra tática para tentar quebrar seu ardil, ela não tinha certeza –, mas levou apenas alguns segundos para ela se libertar. Seu corpo estava rígido quando ela se levantou. Seus joelhos dobraram. Ela se arrastou para a mãe com as mãos e os joelhos, o corpo tremendo, seus movimentos lentos, desesperada para diminuir a distância. Os magos de Tanos não pararam de lutar, mesmo que ele tivesse parado. Tudo aconteceu rápido demais. Eles não entenderam que não tinham mais nada para ganhar. A capitã Rokaro caiu. — Mãe! — Cassi gritou. — Mãe! Uma súbita rajada de vento atravessou o navio quando a capitã rolou para o lado, a parede que ela havia esquecido de manter ressuscitando quando Cassi rastejou para mais perto. Seus olhos se encontraram. A vida dentro daquelas íris geladas já havia começado a desaparecer. — Não! Mãe! Não! Cassi agarrou o corpo flácido da mãe nos braços, indiferente à dor que lhe invadia os músculos. Não era nada comparado à dor em seu coração, como mil pedaços de vidro quebrado que ela nunca juntaria de volta. — Kas… — A capitã ofegou, incapaz de continuar. A magia amarela se moveu por seus lábios, fornecendo a respiração que ela não tinha forças para tomar. Ao sentir o peito subir, ela agarrou as mãos de Cassi e apertou-as com toda a força que pôde reunir. Algo frio pressionou contra a palma da mão de Cassi, um pequeno objeto imprensado entre seus dedos entrelaçados. — Você é o melhor de mim, Kasiandra, e ela é a pior. Mas vocês duas ainda são parte de mim. Prometa-me que vai encontrá-la. Prometa-me que vai salvá-la dela mesma. — Eu prometo, mãe — disse Cassi entre soluços, sem sequer saber com o que estava a concordar, apenas para dar à mãe tudo o que podia, o que quer que fosse, nestes últimos momentos. — Eu prometo. Por favor, só não me deixe. Ainda não. Eu preciso de você. Você não pode ir. Você não pode… — Não vou conseguir segurá-los por muito mais tempo — disse a mãe, a tensão na voz destroçando Cassi. — Você precisa ir. Agora. — Eu não posso, mãe. Não posso. Eu não vou. — Kasiandra… — Não mãe. Por favor, mãe. — Kasiandra, pare! Quando a capitã falava naquele tom, era impossível desobedecer. A cabeça de Cassi ergueu-se e ela pestanejou em meio às lágrimas, registrando o que a mãe já tinha visto. O ninho sagrado tinha apagado. A magia de Lyana não iluminava mais o céu. Ela se foi. Cassi voltou a olhar para a mãe, horrorizada em tantos níveis que não conseguia falar. As palavras se alojaram em sua garganta, muito avassaladoras para serem ditas. Ela estava presa por sua própria incapacidade de deixar ir, de dizer adeus, de admitir que algo importava mais do que esses últimos momentos que as duas jamais compartilhariam, mesmo que esse algo fosse o mundo. A expressão de sua mãe se suavizou e ela separou suas mãos, revelando o anel preso entre elas. A pedra de ônix parecia engolir a luz do sol. Cassi sabia exatamente o que era, exatamente de quem era e exatamente o que significava. A capitã Rokaro deslizou o sinete sobre o nó do dedo de sua filha e encheu seus pulmões com um último suspiro, apenas o suficiente para uma última palavra. O amor brilhava em seus olhos. Nem era preciso pronunciá-lo. Em vez disso, ela sussurrou: — Voe. Um comando. Um pedido. Uma esperança – não importa o quão sombria, desesperada ou destruída, Cassi sempre seria capaz de voar. Por sua mãe, ela o faria. E ela fez. Ela voou. — Mas o que… — Lyana olhou para suas mãos enquanto reprimia uma maldição, desejando que sua magia viesse à tona. Não vinha. Seus dedos permaneceram de um marrom opaco e enfadonho, parecendo quase sem vida sem o brilho dourado da magia. Seu poder não apenas parou de funcionar. Ele simplesmente sumiu. Eu... me esgotei? Mas isso não era possível. Era? Não. Lyana balançou os pulsos e tentou novamente. Ela podia sentir a magia profundamente dentro de sua alma, agitando-se com potencial explosivo. Ela simplesmente não conseguia alcançá-lo. Não importa o quanto ela tentasse atrair seu espírito, não importa o quanto ela desejasse que o poder fluísse, simplesmente não acontecia. Aethios, me ajude! A spatio’kine olhou para ela, sobrancelhas cor de areia em um nó, sua expressão uma mistura de curiosidade e preocupação. Lyana não sabia o que dizer, e mesmo que soubesse, não sabia como falar com Solvei. Brilhante ainda não havia retornado com os magos para o feitiço de fenda. As duas ainda estavam sozinhas, o que não importava até alguns segundos atrás, com Solvei mergulhada em sua magia e Lyana emprestando seu poder. Elas não precisavam de palavras, audíveis ou não. Mas agora, sim. Lyana deu de ombros, um gesto antigo, se é que ela conhecia algum. Solvei inclinou a cabeça, confusa. Lyana mordeu a parte interna da bochecha, tentando conter o pânico crescente. Vamos. Vamos. Mas sua magia não vinha. E não havia como explicar por que a rainha da profecia, a Rainha Nascida no Inverno, a rainha profetizada por quinhentos anos, de repente, sem motivo algum, perdeu sua magia. A fenda vacilou. Não, não, não. Seus apelos silenciosos não fizeram nada. As bordas se alargaram, apenas uma fração mínima, mas era uma promessa do que estava por vir. Solvei não seria capaz de segurá-la por muito tempo. Sem o poder de Lyana, ela não era forte o suficiente para controlá-la. Em questão de minutos, o mundo iria acabar, e seria tudo culpa dela, a menos que ela pudesse descobrir o que pelos deuses tinha acontecido. Um movimento chamou sua atenção. Lyana se virou. Um rio fluindo de ouro brilhava por entre as árvores. A princípio ela pensou que fosse o poder aethi’kine, a criatura talvez, ou algum mago saindo do esconderijo, mas então ela percebeu que era um jogo de luz do sol sobre seda. Um grupo de sacerdotes e sacerdotisas correu pelo bosque, suas vestes espalhadas atrás deles. Era a primeira vez que ela via os pés deles, calçados com sandálias finas com tiras que envolviam os tornozelos, a sujeira voando em uma nuvem enquanto fugiam. Para onde estavam correndo? Por que agora? — Esperem — Lyana chamou, levantando a mão, embora, é claro, ela não pudesse impedi-los. Solvei virou a cabeça para o lado, seguindo a direção do gesto de Lyana. Mas ela não teve tempo de tentar explicar para a spatio’kine. Os sacerdotes e sacerdotisas eram magos espirituais de baixo nível. Eles também perderam a conexão com a magia? Eles pensavam que era um sinal de Aethios? O que eles sabiam? Lyana foi atrás. — Esperem! Seus pés bateram na lama compactada, levando-a cada vez mais longe da fenda, de seu trabalho, de seu foco. Mas sem seu poder, o que ela era? E se eles soubessem, se tivessem alguma maneira de ajudá-la... — Esperem! Uma sacerdotisa perto da parte de trás do bando tropeçou e tentou se segurar, antes de bater com força contra o chão. Ela rolou duas vezes e depois caiu imóvel. Ninguém notou. Ninguém parou. Lyana olhou para o grupo maior enquanto eles desviavam das árvores e atravessavam o bosque, escapando do alcance, e então caíram de joelhos ao lado da mulher. Mesmo sem sua magia, Lyana era uma curandeira. Tinha que haver algo que ela pudesse fazer. — Você está machucada? — Ela perguntou, procurando nas vestes por uma ferida. De longe, ela não tinha notado o vermelho, mas de perto, as manchas brilhantes que manchavam o manto eram difíceis de perder. A mulher não respondeu. O cabelo bronze ondulado caía sobre seu rosto, cobrindo suas feições. Lyana pensou que seus olhos poderiam estar fechados, mas era difícil dizer. Ela olhou para longe, enrolada de lado, abraçando sua barriga. — O que aconteceu? — Lyana tentou novamente. — Por que você fugiu? Nenhuma resposta. Ela puxou o ombro da sacerdotisa, mas seu corpo estava pesado e sem vida, rígido e difícil de mover. Certamente aquela simples queda não poderia ter… — É uma armadilha! O grito de Brilhante rasgou o ninho sagrado. A sacerdotisa se desenrolou com a agilidade de um gato em uma caçada, encolhendo-se em um momento e explodindo no seguinte. No momento em que as palavras foram registradas, Lyana já estava ofegando de dor. A adaga deslizou em seu estômago com quase nenhum esforço, a lâmina afiada perfurando seda, carne e músculo em um instante. Suas mãos foram para o local. Sangue quente derramou sobre seus dedos quando ela alcançou o punho dourado. Antes que ela pudesse segurá-la, a sacerdotisa torceu a lâmina, então a soltou com um puxão cruel que roubou o ar dos pulmões de Lyana e arrancou a visão de seus olhos, até que ela estava arfando em uma escuridão repentina, incapaz de ver ou ouvir além a dor. Não apenas sua vida, mas as vidas de todos que ela amava passaram pelas sombras crescentes. A fenda os engoliria inteiros. Eles não tinham ideia do mundo que os esperava do outro lado, nenhuma ideia do vazio estéril que agora se aproximava cada vez mais. Sem ela, eles nunca parariam. — Por que? — Ela ofegou. Por que sacrificar o mundo? — Porque eu posso. A voz soou quase familiar. Lyana piscou e piscou de novo, tentando clarear os olhos. Vinhetas piscaram. Árvores. Luz solar. Pele sardenta. Olhos prateados. Um rosto que ela não conseguia compreender. Não era verdade. Não poderia ser. Cassi? Ela tentou dizer, mas a palavra não veio. Em vez disso, Lyana caiu para o lado e bateu com a cabeça no chão, já longe demais para sentir dor. Uma dor rasgou o abdômen de Rafe, tão intensa que ele checou se uma garra havia perfurado sua carne. Mas não havia ferimento, nem sangue, nada além das fivelas sujas que prendiam seu casaco. A sensação desapareceu tão rapidamente quanto surgiu. Ele se perguntou brevemente se um dos dragões ao seu redor havia sido ferido, se ele sentiu isso através do vínculo, mas suas conexões mentais com as bestas nunca foram tão físicas. Um suspiro ainda brincava em seus lábios com a memória da dor. Seu peito parecia apertado. Satisfação cutucou seus pensamentos. Rafe amaldiçoou a distração e virou a cabeça para o lado bem a tempo de ver a criatura aethi’kine desaparecer sob uma asa flamejante. Ele bombeou a sua própria e voou atrás. O calor fez cócegas em suas bochechas enquanto ele mergulhava no fogo, seu mundo ficando laranja, mas ele estava muito atrasado. Quando chegou ao local, a criatura já havia sumido. Deuses vivos! Eu só desviei o olhar por um segundo! Aparentemente, um segundo foi o suficiente para perder tudo. Não, não, não. Rafe desviou de garras pontiagudas e mergulhou entre asas afiadas como navalhas, procurando por qualquer partícula de ouro na loucura. Corpos negros se agitavam e ardiam enquanto os dragões invadiam a fenda. Vermelho. Laranja. Amarelo. Ônix. As cores giravam e giravam, fundindo-se em um borrão enquanto ele parava para olhar. Um brilho de magia brilhou. Lá! Ele sabia para onde a criatura estava indo. Ele também sabia que estava muito longe para chegar lá a tempo. Mas havia uma abertura, um caminho reto, se ele pudesse... Rafe fechou as asas e mergulhou. A criatura cortou pelo lado. Rafe caiu do céu, cada vez mais perto. Uma cabeça dourada desapareceu pela fenda, depois ombros, asas e cintura, até que restou apenas um pé. Rafe abandonou suas lâminas e agarrou a criatura pelo tornozelo. Ele abriu as asas para pegar o ar, tentando arrastar o híbrido de volta, mas foi como bater em uma parede. Seus cotovelos dobraram para trás e ele gemeu, recusando-se a soltar. Uma onda de magia dourada inundou a fenda, inundando Rafe e provocando ainda mais frenesi quando os dragões sentiram o cheiro. O pé nas mãos de Rafe deu um solavanco para a frente e juntos eles atravessaram a fenda. Com um estrondo, eles pousaram em uma superfície dura. Um aroma amadeirado invadiu o nariz de Rafe enquanto ele respirava, mas não havia tempo para apreciá-lo. O poder dourado envolveu sua visão enquanto onda após onda de magia aethi’kine batia em seu peito. A força rolou sobre ele e afundou em sua pele, absorvida por seu sangue de dragão. A criatura exalava poder bruto, mas não tinha treinamento. Ele não percebeu a verdadeira extensão do que poderia fazer – e Rafe precisava matá-lo antes que ele tivesse a chance de entender. Ele tentou agarrar a perna da criatura, mas ela chutou descontroladamente. Escamas parecidas com lâminas cortavam a pele de Rafe a cada golpe. Ele segurou com mais força, ciente de que seus dedos logo ficariam escorregadios com o sangue. Quando isso acontecesse, acabou. No segundo em que seu aperto escorregasse, a criatura desapareceria. Pela primeira vez em sua vida, ele queria garras. — Minha adaga! — Rafe gritou, rezando para que Lyana ouvisse. — Eu preciso da minha adaga! Algo duro bateu contra sua perna. Ele agarrou cegamente o cabo, os dedos primeiro encontrando metal afiado e depois couro gasto. Ele notou distantemente que não era sua adaga, pelo menos não a que ele havia dado a Lyana, mas serviria. Rafe segurou seu aperto, então mergulhou a lâmina na panturrilha da criatura. Ela gritou. Ele ignorou o som e puxou ainda mais a perna da criatura, então soltou a adaga e atacou novamente. Ele rastejou, a arma como suas garras enquanto lutava por uma posição mais mortal para atacar. Garras arranharam suas costas, mas ele estava além de sentir dor. Ele estava além de sentir qualquer coisa, exceto pura determinação. O poder inundou suas veias, parte invinci, parte dragão, parte corvo, parte teimosia. Rafe abriu a boca e gritou. O grito saiu de seus lábios, penetrante e paralisante. A criatura ficou imóvel embaixo dele. Rafe aproveitou a abertura e enfiou a adaga direto em seu coração dourado. Seu corpo estremeceu. Seus olhos se arregalaram quando os efeitos do grito do corvo desapareceram. No fundo da mente de Rafe, descrença e traição perfuravam. Você é um de nós, parecia dizer. Somos iguais. Não. Ele quebrou o pescoço da criatura e o vínculo acabou. Nós não somos. — Está feito — Rafe ofegou e soltou, caindo de lado. A magia de cura se espalhando por seus membros. Eles formigaram de alívio quando os cortes, arranhões e sulcos voltaram a selar. Ele respirou por alguns segundos, incapaz de acreditar em suas próprias palavras. Um sorriso brincou em seus lábios. Ele lutou contra a vontade de rir. — Está feito. — Rafe. A palavra era tão abafada, o tom tão oco, que ele quase não reconheceu a voz de Brilhante. Mas ele ouviu. E isso fez até seu sangue gelar. Ele rolou de pé, ficando sóbrio em um instante quando o gelo inundou suas veias. — O quê? Seu rosto estava pálido. Não apenas pálido, como sempre fora em seu tempo sob a névoa, nunca beijado pelo sol, mas cinza… não, verde, como se ela estivesse enjoada. Qualquer alegria que ela teve ao vê-lo foi rapidamente engolida pelas sombras que escureciam suas feições. — O quê? — Ele disse novamente, mais enérgico desta vez. Seu coração trovejou. Ela abriu a boca, depois fechou de novo, incapaz de encontrar as palavras enquanto levava os dedos aos lábios. Eles tremeram. Ele nunca a tinha visto tão séria. Nenhum sarcasmo cintilou. Sem humor. O horror era real. O terror. Mas o que mais o assustou foi o pedido de desculpas escrito em seus olhos leitosos um momento antes de ela engolir em seco e desviar sua atenção para o lado. Ele sabia o que iria encontrar antes de se virar. Aquela ferida misteriosa em seu estômago se abriu novamente, toda a dor voltando dez vezes, como se suas entranhas fossem violentamente dilaceradas, como se fosse ele quem tivesse sido estripado. Mas ele não era. O tempo parou. Em um momento ele estava parado ao lado da fenda, e no próximo ele estava de joelhos em uma poça de sangue tão profunda que encharcou suas calças quando ele se ajoelhou. Em um momento ela estava enrolada no chão, e no seguinte ela estava em seus braços, penas de marfim imaculada pingando vermelho, a rica pele marrom ficando fria. Seus olhos verdes fitavam o nada. Esse olhar vago o assustou mais do que qualquer outra coisa. Mais do que as feridas das quais eles puderam se recuperar. Eles já tinham feito isso antes. Mas quando ele olhou para ela, ela estava vazia. — Ana. Ele pressionou a palma da mão em seu rosto e passou o polegar ao longo de sua bochecha, tentando ignorar o rastro carmesim. Uma e outra vez, ele esfregou sua pele, procurando algo em seu olhar, qualquer coisa. — Ana. Ana, por favor. Ele baixou a boca até a dela, como se quisesse dar vida a ela. Sua mão deslizou para a parte de trás de sua cabeça. Ele pressionou suas testas juntas, seus olhos bem fechados contra a verdade. Não faça isso comigo. Por favor, não faça isso comigo. Parte oração. Parte apelo. Droga, Taetanos. Você me deve uma. — Ana. Sua voz falhou quando um soluço subiu por sua garganta. Um rugido agitou-se lá no fundo. As chamas em suas costas queimaram. Ele enterrou o rosto em seu pescoço e se libertou. De si mesmo. Do tempo. Do mundo. De tudo, exceto da mulher deitada inerte em seus braços. Cassi voou para o átrio central do palácio de cristal no momento em que quatro pessoas irromperam pela porta do ninho sagrado – Sombra, Arqueiro, Espirro e Remendado. O aero’kine a localizou primeiro. Nenhuma surpresa apareceu em seu rosto e em seus olhos vermelhos, apenas uma aceitação sombria. Ele sabia do plano de sua mãe. Claro que ele sabia. Ele era provavelmente a única pessoa no mundo de quem a capitã não guardava segredos. — Ela está fugindo! — Arqueiro gritou um momento depois. — Pare ela! Cassi voltou-se a tempo de captar o brilho de um manto dourado que desaparecia por uma fenda na pedra. O bater de uma porta reverberou através da cúpula oca, sinistro e definitivo. A irmã a trancaria, Cassi tinha certeza. Afinal, foi ela quem forneceu a Emalia o plano de fuga perfeito – perfeito, exceto por um pequeno detalhe. A passagem secreta só tinha uma entrada, o que significava que só tinha uma saída. E, com suas asas, Cassi poderia chegar lá mais rápido. Ela desviou sem uma palavra para os magos abaixo e cortou o amplo corredor de entrada antes de explodir no ar fresco. Uma coruja em busca de uma caça, Cassi correu pela cidade de cristal. Ela sabia o caminho de cor. Em pouco tempo, ela estava pousando diante da casa indefinida que escondia a entrada da passagem. Cassi escancarou a porta e a guarda estacionada lá dentro estremeceu. O fato de a mulher ainda estar viva significava que sua irmã ainda não havia chegado. — Saia agora — disse Cassi ao entrar. A guarda ficou de pé. — Desculpe… — Eu disse para sair — Cassi levantou a mão, o anel de ônix em seu dedo denotando seu novo status. Ao seu lado, ela quase podia ver Xander revirando os olhos, tão clara era sua presença. — Por ordem de uma rainha. O queixo da guarda caiu. Cassi preparou-se para uma luta, mas a mulher saiu correndo sem dizer mais nada. Ela olhou para o dedo, um pequeno sorriso nos lábios. Talvez ser da realeza não seja tão ruim, afinal. Um baque suave de pés a trouxe de volta à realidade do dia. Seu pai foi derrotado. Sua mãe estava morta. E sua irmã precisava pagar pelo que tinha feito. Não pense nisso. Não vá por esse caminho. No entanto, tudo o que Cassi viu no fundo de sua mente foi a ausência da magia de Lyana, a falta de vida no céu, a escuridão do ninho sagrado. Ela não conseguia se concentrar no que isso significava. Ela não podia se deixar viajar por esse caminho ou quebraria. Mas ela sabia. No fundo, ela sabia. Cassi encostou-se à parede, os músculos contraídos, as asas apertadas, o corpo pronto, uma flecha viva esperando para ser disparada. A vingança ferveu, uma centelha para uma chama. Quando a porta se abriu, ela explodiu. Emalia era muito presunçosa para prever isso. Num piscar de olhos, Cassi atacou. Em um momento elas colidiram, e no próximo elas estavam no chão. Cassi lutou para obter vantagem, mas sua irmã era rápida. Elas lutaram, os braços travaram, pernas se agarraram. Uma sensação fria tomou conta dela, afundando profundamente sob sua pele, em seguida, envolvendo seu coração, estabelecendo-se como uma película de gelo em sua alma para manter sua magia longe. Cassi sorriu. Não preciso do meu poder para chutar seu traseiro. Ela bateu a testa contra o nariz da irmã com um estalo satisfatório. O sangue jorrou do local enquanto Emalia gemia. Seus braços ficaram fracos por um segundo – felizmente, um segundo era tudo de que Cassi precisava. Ela bombeou suas asas e os bíceps de sua irmã cederam contra a força adicional. Cassi saltou para o peito de Emalia, levando as mãos ao pescoço da irmã, batendo as asas sem piedade. A sujeira nublou o ar. Uma brisa se agitou. O vento acariciou sua bochecha. No assobio sutil, ela ouviu o sussurro de sua mãe. Você é o melhor de mim, Kasiandra, e ela é a pior. Mas vocês duas ainda são parte de mim. — Faça — interrompeu outra voz, puxando Cassi de volta. Ela piscou, a princípio não compreendendo a visão de dentes encharcados de sangue por trás de um sorriso horrível. Seus dedos flexionaram ao redor do pescoço fino de Emalia. A risada molhada em resposta enviou um arrepio por sua espinha. — Faça. Cassi encontrou os olhos prateados da irmã e o tempo parou. Era como olhar para um espelho quebrado, suas feições distorcidas, tão semelhantes e ainda irreconhecíveis. Nas profundezas daquelas poças de prata cortantes, Cassi viu o que sua vida poderia ter sido se sua mãe não a tivesse enviado para o céu, se Malek não a tivesse acolhido em sua guerra, se Lyana nunca tivesse sido sua melhor amiga ou Xander seu salvador. Ela seria uma desgraça se seu pai tivesse sido sua única pedra angular. Ela passou toda a infância lutando contra o abandono, apenas para agora perceber a verdade. Sua mãe nunca a deixaria. Ela nunca foi descartada. Ela foi salva. Todas as piores coisas sobre si mesma, todas as coisas horríveis que ela pensava que era – impiedosa e cruel, uma mentirosa e vigarista, desprezível e indigna – desapareceram quando ela olhou nos olhos de sua irmã. Isso era ser insensível e cruel, ser vil e selvagem e além da redenção. A pena agitou-se profundamente no coração de Cassi. Seu pai tinha sido mau, movido por pura ganância egoísta, e ele criou sua irmã no mesmo molde. No fundo, Cassi sabia que não era nada parecida com nenhum dos dois. Ela se importava profundamente. Ela amava de verdade. Ela era boa. Ela era digna. E ela era melhor do que isso. — Acabou — Cassi finalmente disse, sua vida mudou irrevogavelmente em questão de momentos. Ela afrouxou o aperto e liberou a pressão no pescoço de Emalia. — Nosso pai está morto. Nossa mãe o matou. E agora ela também se foi. Não há mais nada pelo que lutar. — Você está certa sobre isso — Emalia zombou. O triunfo brilhou em seu rosto, mas sob a máscara a dor latejava, talvez o remorso também, embora Cassi nunca tivesse certeza. Ela estava muito envolvida no olhar vitorioso para se importar com aqueles pequenos sussurros de humanidade. Seus dedos se cravaram no pescoço de sua irmã. — O que você quer dizer? — Sua amiga está morta, então acho que nós duas perdemos. Morta. Morta. Morta. A palavra a acertou como um soco no estômago, de novo e de novo e de novo, piscando repetidamente nos pensamentos de Cassi enquanto ela se sentava paralisada e levava a surra. Morta. Morta. Morta. Ela sabia que algo estava errado. No fundo ela suspeitava que isso fosse uma possibilidade, mas ter isso confirmado, de forma tão cruel, tão definitiva, como um ataque em vez de uma confissão, era como ficar no meio de um sino tocando, o som alto demais, as vibrações muito fortes, entorpecentes, incapaz de entender qualquer coisa fora do barulho. A negação era a única luta que lhe restava. Não é verdade. Não pode ser. Isso… Cassi caiu de costas antes de saber o que havia acontecido, a palavra ainda reverberando em seu cérebro, morta, morta, morta. Ela observou em transe enquanto Emalia se arrastava para a porta. Outra voz rompeu o caos. Prometa-me que vai encontrá-la. Prometa-me que vai salvá-la dela mesma. Se ela deixasse sua irmã ir agora, ela nunca cumpriria essa promessa. O poder de Emalia a tornava indetectável. Cassi nunca a encontraria, a menos que ela quisesse ser encontrada. O último desejo de sua mãe ficaria sem resposta. Mas… Ana. Cassi olhou por cima do ombro, na direção do túnel escuro e do palácio mais adiante. Elas podem não ter sido ligadas pelo sangue, mas Lyana era sua irmã de todas as maneiras que importavam e, se houvesse alguma chance de ela estar viva, Cassi tinha que aceitá-la. Não apenas para o bem dela, mas para o bem de todos. Apesar de suas falhas e de todas as suas más decisões, se Malek havia ensinado alguma coisa a ela, era sempre colocar o mundo em primeiro lugar, não importa o custo. Ele havia sacrificado sua vida por esse nobre objetivo e, de certa forma, sua mãe também. Ela entenderia, pensou Cassi, ao ouvir a porta do prédio bater. Espero que ela entenda. Mesmo que ela não o fizesse, pouco importava. Sua mãe se foi, mas Lyana ainda pode ter uma chance. Cassi pôs-se de pé de um salto, as asas impelindo-a para a frente mais depressa do que as suas pernas podiam suportar. Ela conhecia o túnel de cor. Mesmo na escuridão, não houve tropeços, hesitações, não até que o próprio chão cedeu debaixo dela e ela caiu. As paredes tremeram. A terra tremeu. Um rugido atravessou a escuridão, tão alto que sacudiu seus ossos, e a pequena centelha de esperança em seu coração se apagou. A fenda estava aberta, o que só podia significar uma coisa. Lyana estava bem e verdadeiramente morta. Cassi limpou os detritos dos olhos e forçou-se a ficar de pé. Ela deu um passo pesado para frente, depois outro, e outro, mais rápido, mais rápido, até que ela estava correndo mais uma vez – em direção ao palácio de cristal, em direção a seus amigos, em direção a seu amor, em direção ao inimigo, em direção à verdade. Não importa o que ela esperava, ela continuaria lutando. Uma rainha não faria mais nada além disso. O rugido ensurdecedor fez a sala de guerra parar. Todos congelaram, imóveis, incapazes de acreditar em seus ouvidos ou em seus olhos quando um dragão surgiu à vista. Outro o seguiu, e outro, as feras se movendo freneticamente enquanto cuspiam chamas para o céu. Xander foi o primeiro a superar o choque. — Eu tenho que ir. — O quê? — Luka se virou para encará-lo. — Agora? — Eu tenho que ir — ele repetiu enquanto as palavras de despedida da capitã passavam por sua mente. Se algo der errado com a fenda, será pior. Você não vai precisar de magia para saber. Bem, um enxame de dragões espalhando fogo do inferno era quase tão pior quanto poderia ser. Algo estava errado, o que significava que o jogo havia mudado. Rafe precisava dele. Lyana precisava dele. O mundo precisava dele. Então ele iria. — Você não pode simplesmente ir — Luka agarrou seu braço. — Não quando seu povo mais precisa de você. Você vê o que está acontecendo lá fora? Precisamos de um plano. Nós precisamos… — Você vai pensar num plano, Luka — Xander interrompeu, encontrando o olhar da columba. O pânico brilhou como mel em seus olhos castanhos, não baseado no medo, Xander sabia, mas no amor. Ele se preocupava, não por si mesmo, mas por sua família, seu povo, seu mundo. Ele temia que não fosse o suficiente, mas era. Todos eles eram. Xander levou um momento para realmente olhar para cada um de seus amigos, primeiro Luka, depois Damien, depois Iris, depois Coralee. Todos eles viajaram com ele para a Casa dos Rapineiros. Eles foram os únicos na sala que testemunharam o poder da magia em primeira mão. E, se eles pudessem superar seus egos por um momento, eles resolveriam isso sem ele. — As columbas os guiarão. Aceite meu comando — ele disse a Luka e ao rei. Então ele se afastou da mesa, sinalizando para os beija-flores. — E a Casa dos Colibris atuará como segunda divisão. Concentrem-se no meio para dividir as forças de Tanos enquanto os dragões os distraem. Isso pode realmente funcionar a nosso favor. Podemos derrotá-los no céu, mas Tanos e seu exército serão alvos fáceis. Os dragões irão instintivamente para o alvo mais fácil. Vocês descobrirão o resto. — Onde você está indo? — A rainha Zara perguntou, com um toque de acusação em seu tom. Ela havia confiado nele para liderá-los, para ser a mão guiadora constante equilibrando a tempestade de Lyana. Mas ele não os estava abandonando. Não era isso. Isso era por eles. Por todos. Pelo mundo. — Para o ninho sagrado — Luka respondeu primeiro, sua compreensão surgindo. — A fenda está aberta — disse Xander, segurando o olhar do príncipe. De todos nesta sala, ele era o único que entenderia. Sua irmã também estava lá embaixo. — Meu irmão precisa de mim. Estou indo ajudar. Foi tão simples quanto respirar. Xander marchou para fora da sala, ignorando as vozes gaguejantes em seu rastro enquanto entrava no átrio central. Um salto rápido o lançou no ar, e ele mergulhou em direção à base do palácio, concentrado em uma única coisa: o ninho sagrado. Quando ele pousou, uma voz o deteve. — Xander. — Cassi! Ele girou, saudado por um borrão de cabelo cor de bronze, e então ela estava em seus braços. Xander enterrou o rosto em seu pescoço. Cercado por seu calor e seu perfume, ele a puxou com força contra seu peito. A guerra. Os dragões. Rafe. Tudo se desvaneceu enquanto ele a segurava. Não havia medo, nem preocupação, apenas paz, uma serenidade diferente de qualquer outra que ele já conhecera. Ela estava segura. Depois de duas semanas de pânico constante, ela voltou para casa. Não para este lugar, mas para ele. — O que aconteceu? Sua mãe… Cassi enrijeceu em seu abraço, o significado claro. Ele suspirou pesadamente e se afastou apenas o suficiente para levar a mão ao rosto dela, usando o polegar para enxugar a lágrima que sabia que estaria lá. Ela se inclinou na palma da mão dele. — Eu sinto muito — ele sussurrou. — Eu sei. — Ela não descansaria até que encontrasse você. — Eu sei. — Ela amava você, Cassi. Profundamente. Com tudo o que ela tinha. — Eu sei. — Eu também te amo. Para sempre. Ela finalmente se afastou, piscando para tirar a água dos olhos. O coração dele disparou quando a visão dela clareou. O terror o percorreu ao pensar em quem ela poderia ter se tornado e em como ela poderia ter mudado e se ela ainda... — Eu te amo, Xander. Pela primeira vez desde que a conhecia, as profundidades prateadas de seus olhos estavam livres de sombras, brilhantes e acetinadas, quentes como um lago tranquilo em um amanhecer de primavera. Ele temia que, quando a encontrasse, ela estaria quebrada. Em vez disso, ela parecia inteira, livre de suas amarras invisíveis como um pássaro solto. Ela cruzou os dedos nos dele, mantendo suas mãos juntas contra sua bochecha, e um pedaço frio de metal beijou a pele dele. Ele sabia exatamente o que era. O anel de sua mãe. O anel de uma rainha. — Cassi, o que... — Mais tarde — ela murmurou, um novo tipo de vulnerabilidade em seu tom. Ele procurou seu olhar, tentando não se apressar e se deixar levar por sua esperança. Mas não houve hesitação, nem medo, nem cantos fechados atrás dos quais ela tentava se esconder. As janelas de sua alma se abriram. Ela não estava tentando fugir. Ela estava fazendo uma promessa. Mais tarde explico. Mais tarde, darei a você tudo o que você está pedindo e direi tudo o que tenho medo de dizer. Mais tarde, todos os nossos sonhos se tornarão realidade. O futuro passou diante de seus olhos. Cassi com um colar de penas de corvo. Ele ao seu lado. Seu povo celebrando diante deles. Sua companheira. Sua maior vitória. Em todos os sentidos da palavra. Um novo amanhecer para a Casa dos Sussurradores. Um novo começo… — Lyana está ferida — disse Cassi, apagando a imagem com algumas palavras apressadas. — Ela pode estar morta. Não temos mais tempo para perder. Vamos. Cassi levantou voo e Xander correu atrás, suas asas não tão rápidas. Ela disparou pelo corredor, uma verdadeira caçadora, elegante e determinada, sua força era a coisa mais sexy nela. Mas mesmo com toda a sua graça e poder, ela não poderia ir tão longe. Alguns metros depois da porta, ela parou abruptamente e caiu com força no solo, seus pés deixando marcas de derrapagem enquanto ela lutava para manter o equilíbrio. Xander pousou rapidamente ao lado dela, tentando entender. O calor o atingiu primeiro. Então o chiado atingiu seus ouvidos e a fumaça encheu suas narinas. Através da densa cobertura de árvores, ele finalmente avistou o inferno. As chamas devastavam furiosamente as folhas e a casca, alcançando mais longe, espalhando-se mais rápido, um monstro à solta. O ninho sagrado queimava. — Me segure. Xander conhecia Cassi bem o suficiente para antecipar o comando, e seus braços já haviam começado a alcançá-la antes que ela falasse. Ela caiu contra ele como um peso morto e ele cuidadosamente baixou o corpo dela no chão, mantendo o olhar nas chamas. Os dragões, talvez? Ou o mundo além da fenda? Ou… — É Rafe — uma voz que ele reconheceu murmurou à sua esquerda. Xander se virou para encarar Brilhante. Ela se aproximou, uma carranca nos lábios e um olhar vazio em seus olhos. A maga da fenda segurava a mão dela, seus dedos entrelaçados com tanta força que interromperam a circulação. Atrás delas, alguns de seus tripulantes esperavam, observavam, preocupados. — Rafe está no fogo? — Ele perguntou, sem entender. — Não — Brilhante balançou a cabeça, mudando seu foco para as chamas. — Rafe é o fogo. — Eu não… — Ele explodiu. Ele encontrou Lyana. Ele caiu de joelhos. E então ele simplesmente... explodiu. Pyro não pode contê-lo. Ela me trouxe o mais perto que pôde e eu tentei tirá-lo disso, mas é como se ele não estivesse nesse mundo. Ele está em outro lugar… seus olhos não veem, seus ouvidos não ouvem. Ele se foi. — Mas ele está vivo? A maga não tinha nada de seu espírito habitual quando respondeu: — Se é que você pode chamar isso de vida. — E a fenda? Brilhante espiou Solvei com o canto do olho, hesitante, quase se desculpando. — Precisamos da magia de Lyana para controlá-la. Sem ela… está aberta e crescendo, e não há como pará-la. — O que exatamente você está me dizendo? — Ele perguntou lentamente, estudando o desânimo que emanava dela, os olhos baixos de seus companheiros, a tristeza gravada no rosto da maga da fenda, incapaz de acreditar no que testemunhava. — É isso? — A menos que alguém consiga fazer um milagre nos próximos cinco minutos, então sim, é isso. Está feito. O mundo está… — Ela engoliu em seco, incapaz de continuar. Sua garganta ficou seca. Está feito. As palavras ecoaram no silêncio que se estendeu e se estendeu, os segundos passando enquanto o peso da confissão afundava. Eles falharam. Ele sabia que era uma possibilidade. Em algum nível, com as apostas tão impossivelmente altas, ele sempre soube que eles poderiam perder. Mas ele nunca acreditou nisso. Na verdade. Lyana sempre tinha um truque na manga. Rafe era o homem com nove vidas. Cassi era infalível aos seus olhos. Certamente, eles iriam salvar o mundo. Certamente, este não era o fim. Certamente… Cassi engasgou e sua pequena centelha de esperança desafiadora aumentou. Ele baixou o olhar, observando como o ar acelerou através de seus lábios e seus olhos piscaram abertos, nítidos e claros. Todas as suas vidas dependiam de quais palavras aquela inspiração profunda se transformava. Ela poderia salvá-los ou condená-los com uma única respiração. Ele esperou, a pressão sob sua pele quase dolorosa. Vamos. Vamos. Vamos. Cassi sorriu, e cada pedacinho de sua alma se elevou junto com os cantos de seus lábios. — Ela está viva. — Não é possível — disse Brilhante de imediato, franzindo as sobrancelhas, como se estivesse zangada com Cassi por acenar com uma esperança tão cruel. — Eu vi a ferida. Eu vi o sangue. Ninguém poderia ter sobrevivido a isso. Ninguém. — Eu não disse que sabia como ela estava viva, apenas que ela está — disse Cassi, ainda com os olhos fixos em Xander. — Ela está viva. Por pouco, e não sei por quanto tempo, mas toquei seu espírito. Ela está lá. Então nem tudo estava perdido. Ele assentiu e desviou o olhar para a pyro’kine. — Leve-me até Rafe. — Você? — Brilhante cuspiu, dando um passo à frente. Solvei gentilmente a segurou. — Você o abandonou. Você o traiu. Você… — Ele é meu irmão — Xander a cortou, seu tom duro, seu olhar mais duro, como a batida de uma parede de pedra, cheia de força suficiente para calá-la. — Vou falar com ele, Brilhante. Eu prometo. Eu já fiz isso antes. — Quando? — Ela perguntou. — Como? Mas Pyro já havia começado a cavar um túnel nas chamas e não havia tempo para explicar. A maga não precisava saber. Esta era uma questão familiar. O suor escorria pela testa de Xander quando ele entrou nas chamas, o ar quente demais para respirar, as chamas a apenas alguns centímetros de sua pele. Um mar laranja abriu-se diante dele, revelando um solo coberto de cinzas e árvores enegrecidas. A cada passo, ele era transportado de volta. Para outro corredor coberto de fuligem. Para outra caminhada entre os destroços. Para outra época em que a fraca esperança o levou adiante. Seus pés eram menores então, seu corpo mais leve, sua mente mais simples, mas ele era o mesmo em muitos aspectos – um menino guiado por seu coração, guiado por seus sonhos e governado por sua única crença sagrada de que não importava as probabilidades, a bondade prevaleceria. Mesmo quando criança, Rafe desempenhou o papel de nobre herói na história de Xander. Ele não podia morrer. Ele não perderia. Não, antes. E não agora. Não se Xander pudesse evitar. O fogo se abriu para revelar asas de ônix escaldantes dobradas em uma cúpula protetora ao redor do que Xander sabia ser o corpo de Lyana. Chamas brotavam das peles de couro. A parte de trás do casaco de Rafe estava cheia de marcas de queimadura, mas a pele de marfim por baixo estava imaculada. Ele estava parado, quase como mármore. Ele não se mexia, ao que parecia, nem mesmo para respirar. Sua cabeça estava inclinada entre o ápice de suas asas, nada além de um ninho de ondas desgrenhadas. Seus braços e pernas e cada centímetro dele além daquela linha de sua coluna estavam escondidos sob escamas ferventes, em outra realidade com seu amor. Deveriam ser asas de corvo, Xander não pôde deixar de pensar enquanto se ajoelhava ao lado de seu irmão, mantendo uma cuidadosa distância das chamas. Talvez então ele pudesse tê-las tocado, do jeito que tinha feito naquele dia distante, quando viu a sugestão de penas de ébano enterradas sob dois montes carbonizados e estendeu a mão para rolar o corpo de alguma forma intocado. Infelizmente, as palavras teriam que servir. Ainda bem que Xander era um dos poucos a entender que elas carregavam um poder próprio. — Estou aqui, Aleksander — ele disse, sua voz mais profunda do que naquele dia, e mais forte, não aérea com descrença, mas determinada e clara. — Eu encontrei você. Estou aqui, irmão. Você está seguro. E nunca mais vou deixar você sozinho. As mesmas palavras que ele falava quando eram meninos. As mesmas palavras que afastaram Rafe de seus pais e o trouxeram de volta ao mundo dos vivos. As mesmas, e ainda assim diferentes depois de tudo que eles passaram. Agora ele sabia que realmente as queria dizer. Não havia ferida tão profunda ou traição tão imperdoável que não pudessem se recuperar. Eles eram irmãos. Eles eram sangue. E esse vínculo nunca seria quebrado novamente, não enquanto qualquer um deles ainda respirasse, o que Rafe fez, Xander percebeu, quando um arrepio passou visivelmente pela espinha de seu irmão. O fogo crepitava. Galhos quebraram. O tempo passou, os segundos passaram, mas nenhum deles se mexeu. Até que finalmente, com uma respiração estrangulada e trêmula, Rafe ergueu a cabeça. A angústia puxou suas bochechas, sua boca, seu pescoço. Suas veias inchadas e seus músculos tensos com todo o esforço para mantê-lo contido, para evitar que o arrastasse de volta para baixo. Xander encontrou os olhos injetados de sangue de seu irmão. — Ela está viva. Rafe piscou, incapaz de compreender. Xander sustentou seu olhar com firmeza. Quando menino, ele deu notícias diferentes, devastadoras e destrutivas. Agora suas palavras continham mais poder de cura do que cada grama de magia sob a pele de Rafe. — Ela está viva, irmão. Ela está viva. Nada existia além do fogo. Da raiva em seu coração. Da dor. Do medo. Ele não conseguia pensar além disso. Não conseguia superar isso. Quando ele fechou os olhos, viu chamas. Quando ele os abriu, viu chamas. Sem ela para mantê-lo com os pés no chão, o dragão interior assumiu. E a besta queria fazer o mundo queimar. — Viva. A palavra atingiu seus ouvidos, distorcida e esticada, quase irreconhecível, como se ele estivesse em uma vasta piscina, a corrente levando a clareza embora. — Viva. Um pouco mais claro agora, a voz familiar, embora ele não conseguisse lembrar quem ou por quê. Em algum lugar lá no fundo, o homem começou a lutar. — Irmão. Rafe piscou, captando um lampejo de lavanda em meio a um mar carmesim, aquela cor acalmando sua alma, fazendo-o sentir-se em paz, sentir- se amado. Ele piscou de novo, e de novo, a imagem ficando mais clara. Um rosto. Cabelo. Asas. Olhos. Olhos que ele conhecia. Olhos que ele lembrava. Xander. — Ela está viva. O mundo voltou ao foco perfeito. A mulher em seus braços. A fenda em suas costas. As apostas. Os lados. O fardo. A menor centelha de esperança. Seu irmão sentiu a mudança. — Ela está viva, Rafe — ele disse, agora com urgência, inclinando-se para mais perto. — Cassi ainda pode sentir seu espírito, mas o tempo está se esgotando. Não sabemos quanto tempo ela ainda tem. Você tem que agir agora se quiser salvá-la. Salvá-la. Salvá-la. Salvá-la, como? Lyana era a aethi’kine. Lyana era a curandeira. Rafe não tinha nada, nada exceto essa magia que o mantinha vivo, não importa quantas vezes ele desejasse que não. Ele olhou para Xander, sua mente em branco. Atrás das profundas asas de carvão de seu irmão, as chamas dançavam, a constante oscilação de vermelho e laranja quase hipnótica, o fervilhar tão consistente que era quase como uma espécie de silêncio. Seu pulso batia em um ritmo constante. O fogo moveu-se no mesmo ritmo. Seu coração e o fogo eram um, lembrando-o das videiras, dos rubis e das... As frutas. Rafe endireitou a coluna, a percepção vindo como um choque. Claro, as frutas! Ele virou o rosto em busca da fenda, mas foi recebido por fogo implacável. A determinação caiu como uma chuva fria, apagando a raiva em sua alma. As chamas que ainda rolavam de suas asas diminuíram, então vacilaram, então finalmente mudaram, até que o fogo não mais fluiu para fora, mas recuou. O calor correu de todos os lados. Ele manteve o escudo ao redor do corpo de Lyana e seus olhos em Xander, percebendo pela primeira vez que a magia pyro’kine fervilhava protetoramente ao redor do corpo de seu irmão. Seus amigos estavam aqui, em algum lugar. Eles não o haviam abandonado. Eles acreditaram nele – uma crença que ele temia ser infundada quando o inferno fracassou para revelar o caos que ele havia deixado para trás. O ninho sagrado não existia mais. O que antes era um oásis era agora uma paisagem infernal. Troncos de árvores carbonizados enchiam-se de fumaça. As cinzas caíam como neve. Folhas queimavam. E isso nem era o pior. A fenda se estendia por toda a clareira central, expandindo-se diante de seus olhos, a visão ininterrupta com a folhagem destruída. Dragão após dragão voava, um depois do outro, depois do outro, seus corpos lustrosos escuros contra o cristal brilhante. Rugidos enchiam o ar enquanto eles disparavam por um buraco na cúpula, desaparecendo no céu, deixando um rastro de chamas. Seu coração, sua alma, seu tudo afundou. Não havia como passar. O frenesi havia sido desencadeado. Os dragões provavam magia. Eles provavam a liberdade. Eles provavam a vida. Ele podia ouvir a ansiedade, a excitação, a pura loucura como uma martelada em seu crânio. Eles não desistiriam tão facilmente. E, em um estado tão frágil, o corpo quebrado de Lyana nunca sobreviveria à jornada. Não haveria frutas curativas – não desta vez. Eles haviam exagerado na sorte. Eles mostraram suas cartas muitas vezes. Eles se tornaram complacentes. Mas sua casa sempre ganhava. Nesse jogo implacável, Taetanos sempre saiu vitorioso. Era uma verdade que Rafe compreendia desde o nascimento. Eu tenho que tentar. Ele colocou Lyana suavemente de volta no chão e se levantou. Eu mesmo irei. Pegarei o máximo que puder. Eu vou voltar a tempo. Mas ele não o faria. Ele não podia. As frutas eram de ação lenta e ela não estava viva o suficiente para engolir o líquido curativo. Quantas seriam necessárias para trazê-la de volta da beira do abismo? Uma dúzia? Cem? Este plano era inútil. Era uma loucura. É a única chance que ela tem. Ele deu um passo à frente, depois outro, lutando contra sua dúvida e seu medo, recusando-se a deixá-los enterrá-lo novamente. — Onde você está indo? — Xander perguntou. — É melhor você não estar fazendo o que eu acho que você está fazendo, seu idiota! — Outra voz chamou, uma que ele reconheceu, mas se recusou a atender. — Você não vai sobreviver, não de novo! A photo’kine brilhou em um aviso. Rafe continuou correndo, suas asas se movendo agora, seus dedos mal beijando a terra. — Está me ouvindo, Rafe? Volte aqui! Outro feixe de luz passou correndo, prendendo-se em um ponto, o reflexo ofuscante. Dourado chamou sua atenção. A cor da esperança. A cor da cura. A cor dela. Rafe derrapou até parar. — Finalmente, um pouco de bom senso — resmungou Brilhante. Ele mal ouviu. Todo o seu foco foi para aquele destaque dourado, ainda brilhando, embora a magia da luz tivesse se dispersado. A criatura aethi’kine jazia imóvel ao lado de um arbusto enegrecido, uma camada de fuligem cobrindo suas escamas polidas. Sua cabeça estava inclinada em um ângulo muito quebrado para permitir a vida, e o vínculo no fundo da mente de Rafe há muito se acalmou, mas a magia brilhava ao redor da adaga enfiada no fundo de seu peito. Magia aethi’kine. Magia de cura. Rafe agarrou o punho e puxou, incapaz de acreditar em seus olhos quando uma lâmina aparentemente imersa em poder dourado deslizou do cadáver da criatura. O cegava. Mas ele não conseguia desviar o olhar, mesmo quando seus olhos ardiam. O dragão nele doía. Sua fome latejava, combinando com o pulso da magia vibrando em seu braço, imensa e avassaladora. — Magia viva — Brilhante murmurou por cima do ombro, admiração em sua voz. — Ela estava certa. Ele trouxe a adaga para mais perto, inspecionando a ponta afiada. — É feita de cristal. — Isso foi ideia de Xander — explicou Brilhante apressadamente, inclinando-se tão perto que o cabelo preto dela roçou a bochecha dele. — Então teríamos armas imunes à magia. Só que acho que eles não eram imunes, não mesmo. A rainha disse que os cristais tinham poder, e ela estava certa. Você sabe o que isso significa, Rafe? Que ele poderia salvá-la. Se o cristal absorveu todo o poder da criatura aethi’kine quando ela morreu, assim como a videira absorvia o poder de um coração, assim como os rubis no mundo dos dragões, então haveria magia suficiente para curá-la. Ele só precisava descobrir como usá-la. Eu posso salvá-la. Brilhante tocou a ponta da lâmina. — Podemos selar a fenda sem ela. — Não. Ele mergulhou sob o braço dela e girou de joelhos, escondendo a adaga atrás das costas enquanto encontrava seus olhos incrédulos. — Rafe. — Não, Brilhante. — Seja razoável, Rafe. Podemos salvar o mundo inteiro... — Eu não dou a mínima para o mundo — ele cuspiu, agarrando o cabo com mais força em sua determinação. — O destino escolheu o herói errado. Eu só me importo em salvá-la. — Você não se importa comigo? — Ela soltou uma risada e arqueou as sobrancelhas. — É bom saber, considerando o quão desesperadamente eu tenho tentado salvar sua bunda — ela projetou o queixo para o lado. — Você não se importa com ele? Seu próprio irmão? Ou eles? — Ela gesticulou para trás dela. — A tripulação que lhe deu um lar quando todos os outros o abandonaram? Você não se importa com nenhum de nós? Então vá em frente, meu soberano, e mande todos nós para o inferno. Ele vacilou com o título. Mas ele não se mexeu. Dragões voavam acima, ainda fluindo da fenda, agitando os ventos a cada batida de suas asas. Cinzas rodopiavam do chão. Rugidos sacudiram as paredes precárias. O tempo passou enquanto eles olhavam um para o outro, nem se curvando nem quebrando, mas presos num perigoso lugar entre eles. Rafe quase podia sentir Lyana se afastando cada vez mais. — Faça — a voz de Xander cortou a tensão. Rafe virou-se para o irmão, com uma pergunta nos olhos, enquanto o queixo de Brilhante caía. Xander caiu de joelhos e abriu as asas, bloqueando o resto do mundo. Então ele pegou Rafe pelo ombro. — Será que vai dar certo? A garganta de Rafe ficou seca. — Eu acho que sim. — Você acha? Ele engoliu em seco e fechou os olhos, repassando todo o tempo passado naquele mundo estrangeiro, tudo o que aprendera, tudo o que vira. Eles se uniram. Eles se tornaram um. Ele a sentiu sendo esfaqueada. Ele sentiu isso em sua própria alma, e essa conexão não havia se rompido, não completamente, ainda não, como se estivessem ligados, como se... Rafe engasgou. A percepção disparou através dele como um raio. — Eu posso salvá-la. Eu sei como salvá-la. — Você tem certeza? — Nunca tive tanta certeza de nada em toda a minha vida. — Então eu confio em você — Xander levou um momento para olhar de um lado para o outro, como se desafiasse alguém a fazer uma objeção. Então ele encontrou o olhar inabalável de Rafe e assentiu. — Faça. Rafe atravessou a sala em um piscar de olhos. Desta vez, ninguém tentou detê-lo. Ele colocou a palma da mão contra o peito de Lyana, a pele deles se tocando, a dele muito quente, a dela muito fria. Nenhum batimento cardíaco. Ele colocou a lâmina em seu estômago, sobre sua ferida. Sangue derramou, cobrindo seus dedos, mas ele a segurou lá, firme e forte, sem tremer em seus movimentos. Então ele alcançou com sua mente, não Lyana, mas a nova conexão que ele apenas começou a entender, aquela que simbolizava tudo o que eles significavam um para o outro. Uma brasa cintilou para a vida. Estou aqui, ele sussurrou pelo vínculo, de um dragão para outro. Você não está sozinho. Você nunca estará sozinho. Você é amado. Tão amado. Por favor, fique. Por favor, aceite o que estou oferecendo. Por favor, fique. Ele não sabia de quanto tempo Lyana estava, quantas semanas seu filho poderia ter, o que ele ou ela entenderia, mas ele enviou tudo o que pôde pela conexão – sentimentos de satisfação, de fome, imagens de como ele absorvia a magia, memórias do que fazer, mais e mais e mais, o tempo todo olhando para a lâmina sob sua mão, esperando por qualquer sinal, o mais leve vislumbre. Estou aqui. Estou aqui. Coma. Um súbito calor floresceu em seus pensamentos, roubando sua respiração. Não havia como explicá-lo, descrevê-lo. Não havia palavras ou sentimentos que um humano entenderia. Havia apenas amor. Amor puro, intrínseco e surpreendente. Seu filho. O filho deles. Um guerreiro. Um rebelde. Um salvador. A magia na lâmina ondulou, então mudou, então afundou, pouco a pouco, até que cada grama de ouro brilhante desapareceu. O sol brilhava contra o céu azul claro. Lyana voava, seu coração leve, sua alma livre. O vento pegou suas penas na medida certa, passando por seus cachos soltos, roçando sua pele. Uma risada escapou de seus lábios enquanto ela desviava com a corrente, leve e flutuante. Ela não tinha ideia de para onde viajava, e isso por si só era emocionante. — Volte — uma voz disse, uma que ela reconheceu, profunda e autoritária, pertencente a um homem nada acostumado a ser desobedecido. Pelo menos, não por ninguém, exceto ela. — Deixe-me em paz, Malek. Quando Lyana se virou, não havia ninguém. Ela olhou para o outro lado, então por cima do ombro, mas ela estava sozinha, unida apenas por um azul infinito e um único sol brilhante. Ela balançou a cabeça e continuou voando, tentando recuperar aquela paz feliz. — Pare. Não, ela pensou desafiadoramente. — Ouça-me, Lyana. A demanda foi tão alta que parecia um golpe físico, o eco persistente como as vibrações de um gongo, sacudindo seus pensamentos. Ela olhou em volta novamente. Nada. Onde diabos ele estava? — Malek, isso não é engraçado. — Lyana, o trabalho não acabou. — Trabalho? Que trabalho? — Lyana! Algo cintilou profundamente no centro do sol ofuscante, não uma sombra, mas um brilho, um contorno fraco. Peguei você, ela pensou, mudando seu curso. — Lyana! Agora havia pânico. Ela correu mais rápido, a esfera dourada crescendo de tamanho conforme ela se aproximava. Não o sol, ela percebeu, mas a magia. Muita e muita magia aethi’kine. Bem no centro do globo, o poder pulsava, quase como o bater de asas. — Lyana! Ele parecia mais fraco, mais distante. Mas quem era ele mesmo? E o que ele estava dizendo? O azul do céu desapareceu, seu mundo inundado de luz dourada. Era bonito. Era de tirar o fôlego. De alguma forma era familiar. Ela estendeu a mão. Faíscas dançavam ao longo de sua pele. Vindo de dentro. Vindo do brilho. Elas viajaram por seu braço, dando-lhe as boas-vindas, acenando para ela, puxando-a mais fundo para que ela não voasse mais, mas flutuasse através de um mar ensolarado, deixando-os levá-la adiante, deixando-os levá-la além. — Ana. O sussurro áspero trouxe arrepios à sua carne, como se ela pudesse sentir sua respiração ao longo de sua pele. Ela reconheceria sua voz em qualquer lugar. Ela se esqueceria de si mesma antes de esquecê-lo. — Ana, por favor. Volte. — Rafe — ela tentou dizer, mas sua língua estava pesada. A palavra não vinha. Ela virou o rosto, tentando encontrá-lo, mas tudo era dourado e brilhante, brilhante demais, quase doloroso agora que ela era confrontada pelo brilho incessante. Ela tentou fechar os olhos, mas eles já estavam fechados. Suas pálpebras estavam pesadas demais para se mover. Seu corpo estava rígido, como se enterrado sob uma pedra. Ela queria gritar, mas não podia. Ela estava presa, presa. Rafe! Rafe! Onde ela estava? O que aconteceu? Rafe! — Eu preciso de você Ana. Precisamos de você. Por favor. Não posso fazer isso sem você. Estou indo, Rafe. Estou indo! O desespero sangrou por sua alma. Ela tinha que escapar. Ela tinha que voltar para ele. Ela não se importava com o que fosse necessário. Ela faria qualquer coisa, daria qualquer coisa, para estar com ele novamente. Por favor. Por favor. Os pensamentos saíram como uma oração angustiada. Que não ficou sem resposta. — Como quiser, minha filha. A voz estava em toda parte e em lugar nenhum, tão alta quanto um furacão e tão suave quanto uma pena caindo, avançando contra ela como um navio em alta velocidade, mas roçando sobre ela como a mais suave carícia. Era Aethios? Ela estava sonhando? Ele estava lá? Antes que Lyana pudesse perguntar, até mesmo processar, seus olhos se abriram, um suspiro roubou as palavras de seus lábios e a dor explodiu, enterrando a memória em seus escombros. — Ana! Deuses vivos, Ana! Rafe embalou sua cabeça, dedos envoltos em suas tranças, lábios roçando sua bochecha. Suas testas se tocaram, pele contra pele. A respiração dele se misturou com a dela. Ela não estava viva o suficiente para vê-lo, mas ele estava em toda parte, em cada parte dela. Sua boca se moveu sobre seu rosto, beijando qualquer coisa que pudesse encontrar, seu nariz, suas pálpebras, sua mandíbula, seus lábios, e entre cada um, ele murmurou seu nome como uma oração. — Ana. Ana. Ana. Suas mãos eram gentis, seus movimentos precisos apesar de sua espontaneidade, sempre protegendo-a de qualquer mal. Desta vez, porém, ela queria apertá-lo. Isso significaria que ele era real. — Rafe — ela tentou dizer, a palavra saindo como uma tosse. Seus músculos se contraíram, seu abdômen queimando mais do que qualquer fogo. Ela sabia por quê. Ela lembrava. Uma lágrima escorreu pelo canto do olho. Ela tinha que vê-lo, tocá-lo. Lyana tentou levantar a mão, mas antes que pudesse mover um dedo, os dele estavam lá, envolvendo os dela com força. — Ainda não, amor. Fique quieta. Você não terminou de se curar. Apenas traga sua magia para a superfície e ela fará o resto. Um momento de silêncio se passou. — Ela? — Eu decidi que é uma menina. — Quem? — Nosso bebê. Lyana recuou, a dor não era nada comparada à alegria que a percorria ao encontrar os olhos azuis brilhantes dele. — Ela está viva? — Ela está perfeita. Lágrimas fluíam livremente agora, de alívio e felicidade, a dor em seus ossos era a coisa mais distante de sua mente enquanto ela sustentava o olhar de Rafe. Ela estava planejando contar a ele suas suspeitas assim que eles voltassem para casa, assim que a fenda fosse fechada e a profecia cumprida e o mundo salvo. Na verdade, ela estava tentando não se concentrar nisso. Ela se sentia diferente, mudada de uma forma que não conseguia explicar. Então veio a náusea e a exaustão. Quando ela pensou sobre isso, ela percebeu que suas regras nunca chegaram. Ainda assim, ela estava com muito medo de ter esperanças quando poderia ter sido uma série de coisas. Inanição. Lesões. Ansiedade. Ela não queria se perder em devaneios quando eles estavam sozinhos em uma terra estrangeira, cercados por inimigos, totalmente presos. Mas agora… Lyana trouxe sua magia à tona, hipnotizada enquanto a luz dourada desaparecia de volta em sua pele. Sangue de dragão. Era a única explicação. A filha deles absorveu o poder aethi’kine, da mesma forma que Rafe, e o usou para se curar, e ao fazer isso curou as duas. Um formigamento quente se espalhou por seu peito, pelas pernas, pelos braços, não desagradável, mas estranho – sua própria magia, mas diferente. A cada momento que passava, ela ficava mais forte. A névoa se dissipou. A exaustão diminuiu. A dor desapareceu. Lyana piscou, mudando sua visão até que o mundo se tornou uma confusão de fios de arco-íris, elementos amarrados pelo espírito, vivos e transbordantes. Então ela hesitantemente baixou o olhar. Sua barriga brilhava. Por baixo das roupas manchadas de sangue e do ferimento quase desaparecido, uma bola brilhante de espírito zumbia. Sua filha. Viva, feliz e perfeita, como Rafe havia dito. Lyana colocou as mãos unidas sobre o local. — Eu a sinto. — Eu também. — Ela é perfeita. — Eu sei. — Você realmente está preso a mim agora. Quando Rafe não respondeu, Lyana desviou o olhar, bem a tempo de ver a risada explodir em seus lábios, rica e desinibida. Ela passou o polegar pelas rugas profundas e alegres esculpidas em sua bochecha. Ele beijou sua palma, o tempo todo segurando seu olhar. Ela poderia passar uma vida inteira assim, envolta em seus braços enquanto ele a olhava com tanto brilho em seus olhos. A magia pode ter sido a primeira coisa a uni-los, magia, profecia e destino, mas isso aqui, esse sentimento, essa conexão, essa linda aventura, isso era para sempre. Uma tosse interrompeu o momento. — Hum hum. A carranca natural de Rafe voltou. A visão fez o sorriso de Lyana se alargar. Ele desviou os olhos, sem se preocupar em mover mais nada. — Sim, Brilhante? — Sem querer acabar com essa comovente reunião de família, mas tem uma coisinha chamada o fim do mundo acontecendo, então se vocês puderem acelerar isso... Um rugido a interrompeu. A atenção de Lyana voltou-se para o som. Um dragão voou pela fenda e mais esperava atrás, lutando por uma chance. Ela não tinha certeza de como ela falhou em notá-los até agora. — Quantos? — Ela perguntou. — Pelo menos duas dúzias voaram desde que a fenda se espalhou — disse Xander de lado, seus olhos calorosos quando seus olhares se encontraram – calorosos e apologéticos, seu coração terno odiando quebrar sua alegria. A felicidade e o orgulho irromperam de sua alma, ligeiramente amortecidos por uma corrente oculta de preocupação. — E mais estão a caminho — acrescentou Brilhante. — Por que eles não… — Estou protegendo você — Rafe respondeu, antecipando sua pergunta. O nível de magia espiritual percorrendo seu corpo seria impossível para um dragão ignorar. Deve ter levado todo o seu foco, todos os seus esforços para mantê-los longe dela, para impedi-los de ver. Ela desviou o foco para a visão turva através dos cristais, e novamente ele leu sua mente. — É ruim, mas não podemos fazer nada para ajudar ninguém até que você esteja curada. — Estou curada. Ele bufou. — Estou falando sério — ela empurrou-se para fora de seus braços e ficou de pé com os pés vacilantes, lutando contra um arrepio quando uma lufada de ar frio a invadiu. — Já estou suficientemente curada e, enquanto uso minha magia, ela fará o resto, como você disse. Vamos fechar a fenda. Vamos acabar com isso. — E os dragões? — Cassi! — Lyana girou, esperando que o chicote atacasse a qualquer momento. Ela não tinha certeza se poderia lidar com mais aparições repentinas. — Bem-vinda de volta — disse a coruja com um sorriso, seu espírito uma mistura confusa de desespero absoluto e euforia brilhante. O primeiro instinto de Lyana foi apertar a amiga em um abraço apertado e exigir saber o que estava errado. Em vez disso, ela franziu a testa. — Você me esfaqueou. — Hã? — Você… Você… — Lyana balançou a cabeça, tentando afastar a imagem, mas estava clara. Ela tinha certeza. — Você não tinha asas. Você era uma sacerdotisa e me apunhalou. — Ah — disse Cassi em compreensão. A dor tecida em sua alma de repente explodiu. — Isso foi minha irmã. — Irmã? — Sim, ela tem uma irmã — interrompeu Brilhante. — E um pai. E ambos são idiotas. Podemos brincar de verdade ou consequência outra hora, por favor? Os dragões. A fenda. O mundo precisando ser salvo. Foco, gente. — Brilhante — disse Rafe com firmeza. Ela se virou para ele em completa exasperação. — O quê? — Senti a sua falta. A photo’kine mostrou os dentes enquanto ele sorria, mas não havia como esconder a afeição que percorria seu espírito. O amor que ela sentia por Rafe fez Lyana amá-la também, apesar de suas arestas. — A minha pergunta se mantém — disse Cassi, levando-os de volta ao assunto. — O que fazemos com os dragões? Rafe só pode proteger Lyana por certo tempo. Quando a magia dela realmente funcionar, quando houver espírito por toda Sphaira, não haverá como escondê-la. E somos fortes, mas nem nós podemos lutar contra duas dúzias de dragões famintos. Um silêncio pesado se estendeu. Antes, Rafe teria se oferecido em uma bandeja de prata, mas esse dia havia passado. Lyana baixou a mão de volta para o estômago, encontrando o olhar dele. Ele tinha mais motivos para viver agora. Ambos tinham. — Talvez eu tenha uma ideia. Quatro pares de olhos se voltaram para Xander. Ele mordeu o lábio por um momento, então engoliu em seco, ficando um pouco mais alto, abrindo as asas um pouco mais, assumindo a liderança. — É arriscado — disse ele. Ninguém se mexeu. — E perigoso. Mais uma vez, eles esperaram. — Mas acho que vai funcionar. — Vamos ouvir então, menino corvo — disse Brilhante com um sorriso selvagem. — Depois de todo esse tempo, você finalmente está falando a minha língua. Depois que Brilhante traduziu o plano, Solvei olhou para os cinco pares de olhos encorajadores e ansiosos que a estudavam com um pensamento em sua mente: Eles são desequilibrados. E eles eram. Esse plano era insano. Era ridículo. Beirava o psicótico. E ela estava absolutamente emocionada por fazer parte disso. Pela primeira vez em sua vida, ela pertencia a algo. Na aldeia ela nunca se sentiu em casa. Aquelas pessoas que a ignoravam tanto quanto a ridicularizavam nunca foram consideradas como amigas. Sua mãe e irmã foram tudo para ela, mas até elas a subestimaram. Ela passou a vida se sentindo um fardo, e agora ela era uma graça salvadora. Essas pessoas não se importavam que ela não pudesse ouvir. Elas não se importavam que ela falasse com as mãos em vez da boca. Elas não a consideravam inferior, mas a tratavam como igual. E a maneira como eles a observavam agora, esperando por sua aprovação, como se sua opinião importasse, fez Solvei perceber o quanto ela estava perdendo, como sua vida era vazia e quão pouco ela pensava que valia. Então, mesmo que o plano deles fosse insanidade, ela concordaria, porque essas pessoas acreditavam nela, mesmo que ela não acreditasse totalmente em si mesma. Como ela poderia dizer não? Ainda assim, uma vida inteira de dúvidas era difícil de ignorar. Quando ela ergueu as mãos para responder a Brilhante, seus dedos se moveram por conta própria. — Você tem certeza disso? — É o melhor plano que temos. — Eu sei — Solvei lambeu os lábios. — Quero dizer, você tem certeza sobre... mim? — Sim — respondeu Brilhante, sem hesitar. A photo’kine se aproximou, sustentando o olhar de Solvei. A profundidade do sentimento naquelas poças leitosas a ancorou no local. Ninguém jamais a havia olhado daquele jeito, com tanto amor, fé e convicção. — Eu serei a primeira a admitir que até cerca de cinco minutos atrás, eu pensei que estávamos condenados, mas você viu o que aconteceu? Rafe trouxe uma mulher de volta dos mortos, dos mortos! E nós os trouxemos de outro mundo. Estou começando a achar que os avians sempre acertaram. Talvez existam deuses observando cada movimento nosso. Ou talvez seja apenas a mão do destino em jogo. Mas algo lá fora quer que vençamos, então vamos vencer. Eu sei que vamos — Brilhante balançou a cabeça, incrédula enquanto jogava as mãos no ar. — Olhe para mim, eu amoleci. Mas estou falando a verdade. Essa ideia malfeita vai funcionar. Você vai selar a fenda. E vamos salvar o mundo. Eu nunca acreditei nisso até este momento, mas eu acredito. Eu acredito. Esses idiotas me transformaram em uma crente. Uma risada saiu dos lábios de Brilhante, uma que Solvei desejou desesperadamente poder ouvir. O som criado por sua imaginação nunca faria justiça, ela sabia, mas ainda assim, arrepios ondularam ao longo de sua pele. Seu coração se elevou, mais leve ao ver tanta alegria no rosto de seu amor, tanta esperança e tanta promessa. O futuro dançou nos olhos de Brilhante e, quando a photo’kine passou as costas da mão na bochecha de Solvei, por um momento ela pôde vê-lo – as duas na proa de um navio, unidas não apenas pela paixão, mas pelo propósito, usando sua liberdade para ajudar aqueles que o mundo considerava menos, mas eles não eram. Brilhante e Solvei eram a prova viva. Uma menina de rua outrora cega e uma surda pária de uma aldeia estavam prestes a salvar o mundo. — Você pode fazer isso — sinalizou Brilhante. — Você vai fazer isso. — Eu sei — ela concordou. — Estou pronta. — Bom — Brilhante assentiu e um brilho travesso iluminou seus olhos. — Mas apenas no caso de você precisar de alguma motivação extra, no segundo que isso acabar eu vou te beijar do jeito que eu quero te beijar por semanas. Então guarde um pouco de magia para mim, porque o que planejei não inclui uma audiência. Um rubor aqueceu as bochechas de Solvei quando Brilhante se virou para os outros, e o calor permaneceu sob sua pele mesmo depois que o grupo se dispersou. Cassi e Xander saíram para informar os avians de seu plano. Brilhante foi falar com os outros magos da tripulação. Rafe pegou Lyana nos braços e Solvei ocupou o lugar vazio ao seu lado, um pouco intimidada, verdade seja dita. O poder chiava entre o rei e a rainha. Ela tinha ouvido muito sobre eles, mas agora, vendo-os em carne e osso, ela finalmente entendeu o que todos estavam dizendo. A presença deles silenciosamente exigia respeito. Sem palavras, eles exalavam autoridade. Apenas estar perto deles a fazia se sentir mais forte, como se pudesse fazer qualquer coisa, como se juntos eles realmente fizessem o impossível. Lyana colocou a mão em seu braço. Solvei olhou em seus olhos verdes, as duas compartilhando um rápido momento de entendimento antes de a rainha apontar o queixo para o lado. Brilhante e o resto de sua tripulação ocuparam seus lugares em um círculo ao redor dela, cada mago em posição. Já era tempo. Ela acenou com a cabeça para Lyana, os nervos à flor da pele. A rainha sorriu tranquilizadoramente, provavelmente sentindo a apreensão repentina de Solvei. Sem nenhum outro aviso, o ouro irrompeu das palmas de Lyana e envolveu o ninho sagrado. Rafe se lançou para o céu. Solvei observou enquanto eles voavam cada vez mais alto, cada vez mais longe, a magia quase ofuscante de testemunhar. O que restou da cúpula de cristal desapareceu quando a rainha explodiu o telhado, expondo-os ao exterior. Dragões correram em direção ao brilho. O rei se moveu com uma velocidade que Solvei nunca havia testemunhado, carregando a rainha e sua magia pelos céus. As feras deram início à perseguição. Um por um, eles se juntaram à caçada, brigando entre si pelo primeiro lugar até que uma longa linha caótica se formou. Rafe se voltou para o ninho sagrado. Solvei agarrou as bordas da fenda, esperando, seu poder aumentando, sua magia crescendo, mais e mais e mais, até que ela praticamente vibrou com a carga. Ele voou mais perto. E mais perto. E mais perto. E… Solvei abandonou seu controle. Não mais presa, a fenda explodiu, disparando para cima e para fora assim que Rafe e Lyana passaram. Em seu rastro, a fenda cortou o céu, quase raspando seus dedos dos pés. Os dragões atrás deles voaram pela abertura, um por um, movendo-se rápido demais para parar. Quando a última fera desapareceu, Solvei liberou a magia que vinha crescendo dentro dela. Ela agarrou a fenda, agora selvagem e indisciplinada, lutando para se manter firme mesmo com seu poder no auge. A magia do espírito tomou conta dela. Solvei agarrou os fios dourados e os puxou em seu tecido. Mais fios ganharam vida, primeiro a luz, depois a sombra, depois o ar, a terra, a água e o fogo. Ela segurou todos. A magia era apenas outra fibra do mundo, dela para manipular, dela para controlar. O padrão se formou rapidamente, como se ela o conhecesse a vida inteira, como se tivesse vivido em seus sonhos, como se cada minuto que ela tivesse passado viva tivesse sido construído para esta mesma tarefa. Ela quase podia sentir outro par de mãos trabalhando com ela, guiando- a, maior e masculina, paciente e firme. Ele era um spatio’kine, e um pedaço de seu espírito ainda vivia dentro da fenda. Ele já havia feito isso uma vez. Ele sabia o que fazer. Eles trabalharam juntos – dobrando, amarrando, tecendo, acima e abaixo e ao redor, cada vez mais forte e mais apertado. A fenda encolheu. A magia queimou. Os cristais resistiram. Em seu mundo tranquilo, não havia distrações. Sem dragões rugindo. Sem pessoas gritando. Sem prédios em ruínas. Sem medo. Apenas um zumbido suave, quase reconfortante, ajudando-a a se concentrar em seu poder e no padrão. Os fios diminuíram à medida que a tapeçaria se juntava. Ela teceu as pontas soltas em um nó final. Era isso. Ela havia chegado ao fim. Ou a peça se sustentaria e o mundo seria salvo, ou tudo desfaria. Não havia como saber até que ela soltasse a magia. Era o momento que aguardava ao longo de quinhentos anos, mas ninguém poderia ajudá-la agora. Nenhum rei. Nenhuma rainha. Nenhuma profecia. Nenhum mago. Ela estava sozinha, porque só ela havia sido escolhida. Ela estava exatamente onde deveria estar. Solvei respirou fundo e soltou. — Pelo que vejo, você está lidando bem com isso — disse Brilhante enquanto atravessava a fenda e se posicionava ao lado do pedaço enrolado de metal que respirava, anteriormente conhecido como Rafe. Ele puxou o cobertor de malha de sua cabeça, incapaz de impedir que algumas chamas se enrolassem em seu pescoço. — Você está aqui. — Não pareça tão surpreso. Ele franziu a testa. — Ou irritado. Sua carranca se aprofundou. — Alegre-se — ela bateu levemente em sua bochecha. — Você honestamente acha que eu perderia a oportunidade de vê-lo em um estado como este? Claro que estou aqui. Cassi me visitou ontem à noite e me contou o que estava acontecendo. — Eles estão a caminho, eu presumo? — Eles estão… — Aqui! — A voz profunda do rei corvo ressoou, muito mais animada que a de seu irmão. Um largo sorriso decorava seu rosto. Cassi caminhava ao seu lado, sem se mover com a velocidade que costumava fazer, a barriga redonda evidente sob as dobras soltas da camisa. Um pequeno pacote de penugem cinza encaixado entre suas asas. — Tia Brilhante! Tia Brilhante! Solvei rapidamente selou a fenda enquanto sua exuberante sobrinha catapultava pelo corredor, ignorando completamente o pai para pular nos braços de Brilhante. — Você está aqui! Você deveria ter me visitado há um mês. O que aconteceu? Onde você estava? Você se machucou? O que você trouxe para mim? Magia viva. Três anos era uma idade infernal. Brilhante cobriu a mão da garotinha com a palma da mão e se ajoelhou na altura de seus olhos, encontrando aquele familiar azul bebê, brilhante contra sua rica pele marrom. — O que faz você pensar que eu trouxe alguma coisa para você? — Você sempre me traz alguma coisa. — Sempre? A garota olhou para baixo, seu sorriso desaparecendo quando um pequeno beicinho se formou. Ela tinha todo o charme e as habilidades de manipulação de sua mãe, e apenas o suficiente do coração de seu pai para que Brilhante não pudesse negar nada a ela. Não era nenhuma surpresa quando aquele lábio inferior rechonchudo começou a tremer. Era tudo o que ela podia fazer para não revirar os olhos. — Claro que trouxe algo para você — disse Brilhante apressadamente, e enfiou a mão no bolso. A garotinha olhou para cima com um sorriso ansioso. — Uma concha de uma das praias além das grandes montanhas. O exterior é carvão, mas o interior é pérola de mármore. Isso me lembrou dessas suas asas cinzentas de columba. A garota arrancou a concha das mãos de Brilhante com tanta velocidade e fervor que teve que tossir ativamente para não rir. Rafe chamou sua atenção por trás das asas macias de sua filha. Obrigado, ele murmurou. Ela olhou para o céu com um encolher de ombros. Melhor isso do que admitir que a princesa tinha sua tia totalmente enrolada em seu dedo mindinho. Magia me ajude, Brilhante suspirou enquanto se levantava. Olha o que eu me tornei. Uma mão quente deslizou para a dela e entrelaçou seus dedos. Ela se virou para encontrar os olhos de mel luminescentes que se tornaram seu lar. Solvei levantou a mão livre, sinalizando a palavra doce. Brilhante bufou. Solvei sorriu, puxando-a para mais perto. E, por mais delicada que ela tivesse claramente se tornado, ela não lutou contra isso, em vez disso se acomodou no local familiar, pressionada contra a lateral da maga da fenda. — Espere — exclamou Cassi de repente, voltando sua atenção para Rafe. — O que você está fazendo aqui? Você deveria estar lá. Ele rosnou baixinho. — Eu estava. — Ah, não — Cassi voltou-se para a porta fechada. — Você não fez isso de novo, não é? De novo não. — Não. — Você fez, não é? — Não! — Quando ele disse isso, o vermelho brilhando através da malha se iluminou, suas asas queimando. Ele respirou fundo e o inferno diminuiu. Então ele suspirou. — Eu não coloquei fogo nas cortinas desta vez. Juro. Desta vez. Brilhante estreitou os olhos. — No que você colocou fogo? Ele olhou para ela. Ela sorriu. — O que você incendiou, Rafe? — Cassi perguntou, sua voz firme. Ele fechou os olhos, deixou cair a cabeça nas mãos e murmurou algo que soou suspeitosamente como curandeiro. — O quê? — Cassi pressionou. Ele ergueu o rosto. — O curandeiro, ok? Coloquei fogo no curandeiro e Lyana teve que ajudá-lo, e então ela me expulsou da sala. Vocês estão todos felizes agora? — Seria rude se eu dissesse que sim? — Brilhante perguntou enquanto levava o punho aos lábios para mantê-los fechados. Cassi revirou os olhos e empurrou a porta, sem graça. — Eu pensei que seria mais fácil da segunda vez — Xander disse enquanto se aproximava, seus olhos em sua rainha até o momento em que ela desapareceu. Ele desviou a atenção para seu irmão. — Você já fez isso antes. Todos olharam para a garotinha que ainda estudava encantada sua nova bugiganga. O sangue de dragão em suas veias a tornava imune às chamas, e ela se acomodou perto de seu pai, encostada em sua perna com a cabeça apoiada em seu joelho, sem medo do inferno que assolava sob o cobertor de metal. Rafe gentilmente passou os dedos pelos cabelos dela. — Não tem como ser mais fácil — disse ele, voltando-se para Xander com uma expressão compreensiva, a palma da mão apoiada na cabeça da filha. — Você verá em breve, irmão. Xander empalideceu. Homens, Brilhante refletiu silenciosamente. Apenas terror. Nada de trabalho pesado. Cassi enfiou a cabeça pela porta. — Você pode voltar agora. — Nasceu? — Rafe ficou de pé, arrastando o cobertor com ele. — Você tem um filho, meu soberano. Só por isso, o fogo queimou. O metal escorregou dos ombros de Rafe enquanto ele pegava sua filha do chão. Ela deu um grito selvagem, seu sorriso igual ao de seu rosto, e eles desapareceram pela porta. Cassi fechou-a atrás deles. — E agora? — Perguntou Brilhante. — Agora — disse Cassi, sentando-se no assento que Rafe acabara de desocupar — esperamos. Brilhante suspirou. Seu passatempo menos favorito. Solvei gentilmente puxou sua mão e elas caíram juntas no chão. Ela baixou a cabeça para o ombro de seu amor quando encontraram uma posição confortável contra a parede, preparando-se para o longo percurso. Pelo menos esses corredores estavam mais iluminados agora que Lyana e Rafe haviam se mudado, sem cortinas pesadas ou candelabros de ferro ou a sensação geral de destruição iminente. A primeira coisa que fizeram ao reivindicar o trono foi remover todos os vestígios de Malek do castelo de Da’Kin. Bem, nem todos os vestígios. Havia uma pequena mesa em um canto de suas salas privadas que Brilhante reconheceu em sua primeira visita. Quatro tigelas elementais repousavam em linha reta no topo. A rainha a manteve, ela tinha certeza. Como algum tipo de lembrete. E eles deixaram sua estátua na praça da cidade. Afinal, aos olhos de seus súditos, ele sempre foi um herói. Brilhante pensou que era excessivamente generoso da parte do novo rei e da rainha deixá-lo manter esse título na vida após a morte. Embora ela supunha que, no final, ele havia dado tudo para salvá-los. Ainda assim, eles eram pessoas melhores do que ela. Ela teria explodido a monstruosidade em pedacinhos. É por isso que não sou uma rainha, pensou ela com um sorriso triste. Solvei a cutucou. — Que olhar é esse? — Nada. — Você está tramando algo nada bom. — Apenas relembrando. A maga da fenda bufou. Era possivelmente o som mais deselegante que Brilhante já ouvira, e isso a fez amar ainda mais Solvei. — O que você está dizendo? — Perguntou Cassi, incapaz de decifrar os sinais. — Se eu quisesse que você soubesse, eu teria dito em voz alta. — Bem, você não mudou nem um pouco desde a última vez que te vi. — Faz parte do meu charme. Cassi soltou um suspiro exasperado, o que provocou um sorriso cheio de dentes em Brilhante. Na verdade, o sangue ruim entre elas havia evaporado há muito tempo. Sim, a coruja a lembrava um pouco demais da capitã de uma forma que fazia seu coração apertar toda vez que a via. E sim, o corvo ainda era tão bom que deixou um gosto amargo em sua boca. Mas onde antes havia ódio, agora havia uma estranha sensação de afeto que ela se recusava a chamar de amor. A necessidade ardente de chutar suas bundas constantemente, porém, permaneceu inalterada. — E como vão as coisas na Casa dos Sussurradores? — Ela perguntou, o tom muito inocente. Cassi olhou-a com cautela. — Bem. — As restaurações estão quase completas? — Depois de quatro longos anos, sim — disse Xander com um suspiro satisfeito. — Pylaeon está ainda mais bonita do que costumava ser. Você deveria vê-la algum dia. Brilhante encolheu os ombros evasivamente. Um dos primeiros movimentos de Lyana como rainha, um ato de paz entre os reinos do mar e do céu, foi restaurar todas as ilhas caídas à sua antiga glória, puxando-as das profundezas do mar e colocando cada uma em um local permanente. Embora as pedras divinas nunca fossem restauradas, cada ninho sagrado agora abrigava um cristal dourado brilhante cheio da magia espiritual necessária para as uniões de almas. E um acordo foi negociado, prometendo que qualquer futuro aethi’kine no poder no mar garantiria que a magia permanecesse forte em troca de comida e mercadorias das terras das aves. Não foi fácil descobrir um meio-termo feliz, e a luta estava longe de terminar, mas havia esperança de um futuro melhor. Algumas das cidades nas margens externas já estavam se tornando o lar de uma mistura de alados e sem asas. Só o tempo diria o que aconteceria quando o rei e a rainha da profecia não estivessem mais por perto para manter a paz, mas com sorte, ou destino, ou talvez intervenção divina, demoraria um pouco até que esse dia chegasse. Inferno, então a animosidade havia sido esquecida – por todos, exceto Brilhante, é claro, que estava muito entusiasmada em continuar encrencando com pelo menos duas aves em particular. — Ouvi dizer que você estava tendo um problema com móveis — ela comentou levemente. — Sério? — Xander franziu a testa, sério demais para seu próprio bem. — Como assim? — Problema com estrados de cama quebrando continuamente em momentos muito inoportunos… O rosto do rei ficou vermelho como uma beterraba. — Eu vou matá-lo. — Ah, qual é, eu praticamente arranquei a história dele. E é uma boa. Você deveria estar orgulhoso — ela fez sua voz soar com insinuações e balançou as sobrancelhas. — Estou impressionada com sua resistência, rei Lysander. De alguma forma, o rubor carmesim pintando suas bochechas pálidas se aprofundou. — Era velha e com Cassi grávida, tivemos que ser criativos e... — Xander — interrompeu Cassi. — Sim, querida? — Pare de falar. — Certo. Brilhante sorriu. Enquanto Xander olhava para a porta, Cassi chamou sua atenção, uma velha pergunta escrita naquelas poças prateadas. A alegria de Brilhante desapareceu rapidamente. Ela sutilmente balançou a cabeça, relutante em ver a decepção no rosto da coruja. Não, ela não havia encontrado Emalia. Ainda. Um silêncio confortável se estabeleceu, cada um deles perdido em seus próprios pensamentos. Eventualmente, a porta se abriu mais uma vez. Desta vez, um homem saiu, desconhecido para ela, mas a magia agro’kine verde brilhando em torno de suas mãos o identificou como o curandeiro, assim como as marcas de queimadura chamuscadas em suas roupas. O que ela não teria dado para estar lá quando Rafe colocou fogo no pobre bastardo. O olhar em seu rosto, magia viva, deve ter sido impagável. — O rei e a rainha convidam vocês para conhecer o novo príncipe — ele murmurou. — Por favor, entrem. Xander e Cassi entraram correndo na sala, mas Brilhante ficou para trás, e Solvei com ela, as duas mal passando pela moldura. Era longe o suficiente para ver o que precisava ser visto. Lyana estava absolutamente radiante ao segurar seu filho, não precisando de sua magia para brilhar com a luz de mil estrelas cintilantes. Ninguém poderia adivinhar a provação pela qual ela acabou de passar, sua pele escura imaculada, suas tranças ainda intactas, seu sorriso largo e seus ombros orgulhosos. A felicidade escorria dela em ondas enquanto ela entregava o menino para Xander segurar. Ele estava envolto em um pano de seda azul, mas Brilhante percebeu um vislumbre daquele rosto enrugado e profundamente adormecido. Ela não sabia por que, mas imaginava que ele tinha olhos verdes como os da mãe. O cabelo preto que já caía sobre sua pequena testa e a curva de sua mandíbula eram de Rafe. Uma visão que fez seu coração amolecido derreter um pouco mais. Ele era perfeito. Um pouco engraçado, como todos os bebês eram, mas perfeito. Rafe encontrou seu olhar através da sala. Os dois há muito deixaram de precisar de palavras para falar. Ele ofereceu um pequeno sorriso e um aceno de cabeça enquanto ela se retirava pela porta. Brilhante fazia parte da equipe, mas os quatro eram uma verdadeira família – irmãs ligadas por escolha, irmãos ligados pelo sangue, uma coruja, um corvo, um dragão e uma columba, membros da realeza do mar e do céu, unidos. Deixaria-os ter seu tempo. Ela veria o pequeno príncipe novamente em breve. Além disso, ela nunca foi de despedidas. — Estamos atrasados? — Uma voz profunda chamou no corredor. — Nasceu? — Luka! — A rainha Lyana virou-se para a porta, procurando ansiosamente por seu irmão. — Estamos aqui! Brilhante saiu do caminho bem a tempo de uma massa de penas cinzas passar. A distração não poderia ter sido mais oportuna. Ela olhou para Solvei. — Para casa? — A spatio’kine acenou. — Para casa. A magia branca brilhou quando uma costura cortou o corredor, substituindo a pedra estéril por um mar infinito. Brilhante respirou fundo aquele ar salgado enquanto atravessava a fenda e voltava para as pranchas de madeira de seu navio, O Imensurável Falcão. A coceira sob sua pele aliviou imediatamente. Apesar de seu amor pela sobrinha e seu novo sobrinho, filhos nunca foram sua praia. Isso aqui, sim. O céu aberto. As ondas rolantes. O amor de uma boa mulher e a companhia de sua tripulação. Eles eram toda a família de que ela precisaria. — Como está o Rei? — Tremedeira chamou do convés inferior. — Ainda um imbecil — respondeu Brilhante, assumindo seu lugar ao leme. Arqueiro deu um passo para o lado para dar espaço a ela. Ele assumiu o papel de primeiro imediato depois que Remendado deixou o navio para ela. O aero’kine nunca amou o mar. Ele amava a capitã. E, sem ela, esta vida não tinha apelo. Eles ainda o visitavam no porto de vez em quando. Ele tinha uma loja nos arredores de Da’Kin. Quando Brilhante segurou os raios do leme, um sorriso se abriu em seus lábios. Ela não poderia parar de encrencar, mesmo que tentasse – e ela não o fez. — O idiota colocou fogo no curandeiro. — No curandeiro. — Sim. — Fogo? — Sim. Tremedeira jogou a cabeça para trás e soltou uma profunda risada gutural. Por cima do ombro, Pyro fez um beicinho, claramente desapontada por ter perdido. — E o bebê? — Arqueiro perguntou. — Um menino saudável. O ferro’kine sorriu. — Então, o que eu perdi? — O senhor da guerra voltou para o interior durante a noite, mas Sombra estava perto o suficiente para assistir algumas das interações, e ela acha que alguns dos aldeões podem falar. — Magos? — Nós pensamos que sim. — Eles não seriam os primeiros a buscar refúgio além das montanhas. Lyana e Rafe darão as boas-vindas a quem estiver disposto. — Eu sei. Eu disse a Sombra para fazer o acordo. — Bom. Fora ideia de Solvei todos aqueles anos atrás viajar além das montanhas. Brilhante e o resto da tripulação estavam apáticos sem um mundo para salvar, sem um mar para vasculhar, sem dragões para caçar, rastrear ou matar. Então Solvei os lembrou gentilmente de que um reino totalmente novo com problemas totalmente novos os esperava a apenas alguns milhares de quilômetros de distância. Depois de dois anos perseguindo o senhor da guerra – um idiota de um aethi’kine, como a tripulação acabou descobrindo –, eles libertaram o máximo de suas concubinas magas que puderam e encontraram sua primeira informação real. A notícia de uma mulher misteriosa começou a viajar pelas planícies – uma mulher que Cassi não conseguia localizar. E, na mesma época, o senhor da guerra caiu com a coruja em sua paisagem de sonho. Brilhante nunca foi de coincidências. Era Emalia. Tinha que ser. A imagem da garota fugindo em vestes sujas de sacerdotisa, pingando sangue da rainha, ficou gravada em sua mente. Brilhante a encontraria nem que fosse a última coisa que ela faria. — Isso é tudo? — Aye, aye, capitã. Ela colocou as mãos em concha ao redor da boca. — Tudo bem, seus bastardos preguiçosos! Vamos! Esquilo caiu das velas, magia amarela explodindo de suas pontas dos dedos, enquanto Espirro assumiu seu lugar no leme, azul caindo em cascata de suas palmas. O resto da tripulação moveu-se de lugar. Brilhante poupou um momento para encontrar os olhos de Solvei, as duas trocando um olhar secreto antes de ela voltar o olhar para o mar. O vento roçou suas bochechas. Magia iluminou os céus. E então eles voaram. O barulho de botas na madeira quebradiça tirou Rafe de seus pensamentos. Um suspiro escapou espontaneamente de seus lábios. Ele sempre assumiu que eles iriam encontrá-lo. Ele esperava, no entanto, que demorassem um pouco mais. — Eu sabia que você estaria aqui — disse Xander, sua voz clara sobre o sutil bater das ondas. — E eu disse a ele que de jeito nenhum você estaria — Brilhante entrou na conversa, então bufou.— Afinal, quem em sã consciência gostaria de sentar- se, literalmente, nos restos carbonizados das noites mais escuras de sua vida? Então me lembrei de quem estávamos falando. E eu percebi, é claro, que o corvo estava certo. — Eu conheço meu irmão. Ele só pode pensar quando cercado por cinzas e fuligem e os fantasmas de seu passado. — Eu posso te ouvir — Rafe resmungou. — Nós sabemos. Xander se agachou ao lado de Rafe e colocou a mão em seu ombro, apertando-o suavemente. — A pergunta nunca foi onde você estava… mas por quê? Conectado a seu irmão, a tensão no corpo de Rafe desapareceu. Ele ergueu os olhos da pilha de madeira enegrecida para a qual estivera olhando como se ela guardasse todos os mistérios do universo. Por que ele voltou aqui? Rafe estudou os escombros ao seu redor... os montes de tábuas queimadas, as paredes que sobraram do armazém, a fuligem negra se agitando na brisa. Ele entendeu que era tudo que Brilhante e Xander veriam. Um pesadelo. Destruição. Um fim. E tinha sido de muitas maneiras. Se fechasse os olhos agora, poderia facilmente retornar ao fogo queimando seu sangue, a dor lancinante, a batalha pelo controle, seu inimigo agora unido a ele para sempre. Este era o lugar onde o corvo havia morrido. Mas também foi o lugar onde o dragão nasceu. E era por isso que Rafe estava aqui. Não pelo terror ou trauma, mas pela ternura que veio depois quando ele acordou nos braços dela e a verdade de sua conexão foi revelada para todos verem. Um Rei Nascido no Fogo. Uma Rainha Nascida no Inverno. Eu sou um monstro, ele cuspiu, parado neste mesmo lugar. Você não é, Rafe, Lyana havia sussurrado de volta, o amor brilhando em seus olhos, incitando-o a voltar para casa. Você não é. Ele achava que nunca acreditaria nela. E ainda... Rafe se virou para encontrar o olhar preocupado de Xander. No momento em que os olhos azuis encontraram os lavanda, seu irmão soltou um suspiro aliviado. — Você não está fugindo. — Não — ele aceitou a mão que lhe foi oferecida. — Eu não estou. — Bem, podemos nos mexer então? — Uma voz feminina exasperada interrompeu. Rafe revirou os olhos quando Xander o colocou de pé. — A maldita cidade inteira está esperando. Rafe virou-se para Brilhante. Seus braços estavam cruzados, seu quadril para o lado. Ela impacientemente batia o pé, cada batida suave deslocando uma pequena nuvem de cinzas. Ele simplesmente sorriu. — Desde quando você se preocupa com toda essa maldita cidade? — Eu não me preocupo. Ela torceu o nariz para ele, parando apenas para mostrar a língua, embora ele pudesse dizer que ela pensava sobre isso. Em vez disso, um brilho perverso encheu seus olhos luminosos. — Então, novamente, não sou eu quem está prestes a ser coroado seu rei. Rafe desviou sua atenção para o portal branco brilhante cintilando sobre seu ombro e a maga loira esperando pacientemente do outro lado. Paredes de pedra escura e pesadas cortinas vermelhas decoravam a cena atrás da spatio’kine – o castelo que ele ainda não conseguia acreditar que agora chamava de lar, aquele do qual ele deveria estar saindo com uma coroa na testa neste exato momento. — Então isso não tem nada a ver com o navio? — Rafe perguntou, voltando-se pesaroso para Brilhante. — Que navio? Ela suavizou sua expressão, a imagem da inocência. Rafe bufou. — Aquele ancorado nos arredores de Da’Kin com uma dama alada e as palavras O Imensurável Falcão recém-pintadas na proa. Ela estreitou os olhos. — Como você sabe sobre aquele navio? — Eu sou o rei — os cantos dos lábios dele se contraíram em diversão. — Eu sei de tudo que acontece nesta cidade. Brilhante rosnou. — Foi Tremedeira, não foi? — Um cavalheiro nunca revela suas fontes. — Maldita electro’kine. — Era tão errado da parte dela pensar que seu rei poderia querer saber que sua melhor capitã estava prestes a fugir do porto sem avisar? — Rafe a encarou incisivamente, então a cutucou com sua asa. — Ou que eu quisesse saber que minha melhor amiga estava planejando partir sem ao menos se despedir. Brilhante o empurrou para longe. — Eu ia me despedir. — Quando? Ela resmungou incoerentemente. — O quê? — Rafe segurou sua orelha, o riso fazendo cócegas em sua língua. — Não consigo ouvir você. — Ah, sai fora — ela zombou e girou nos calcanhares. — Quer um adeus? Que tal esse? Uma explosão repentina de luz potente encheu o ar. Rafe jogou o braço diante do rosto, tentando proteger os olhos. Um segundo depois, o brilho ofuscante se foi... e ela também. Rafe piscou para afastar a dor enquanto observava o espaço estéril onde costumava haver um portal. — Muito bem, meu soberano — Xander deu-lhe um tapinha no ombro. — Você sempre teve jeito com as palavras. Rafe deu uma cotovelada nas costelas dele. Xander cambaleou para trás com meia risada, meio gemido. — E agora? Rafe olhou para o irmão, depois para o convidativo céu azul e depois de volta para o irmão. Doze anos desapareceram no momento em que seus olhos se encontraram, tornando-os meninos novamente. Rafe correu. Xander esticou um pé, mandando-o para o chão. Rafe rolou, o grito penetrante já em seus lábios. As asas de corvo acima dele pararam de bater imediatamente e Xander caiu um metro no chão. Ele caiu em uma pilha. Rafe o segurou por mais um momento, só para garantir, então correu enquanto batia suas asas de dragão. Um segundo depois, penas negras dispararam no céu. As asas de corvo eram mais rápidas, mais ágeis na decolagem, mas Rafe não tinha dúvidas de que pegaria Xander no ar. Quatro batidas depois, Rafe voou para o céu. Mais cinco e ele passou voando por seu irmão com um chamado provocador. — Um dia desses eu te dou uma surra — Xander gritou, sua voz distante quase levada pela brisa. Rafe virou de cabeça para baixo, suspendendo o ar por um momento em uma façanha que nenhuma asa de pássaro jamais conseguiria, e sorriu. — Um dia desses, talvez eu deixe. Com um bater de asa, ele sumiu. O vento em suas bochechas. A alegria em seu coração. A liberdade. A leveza. Era exatamente o que ele precisava. Claro, não havia como ignorar os rostos voltados para assistir enquanto ele sobrevoava ou os aplausos que se seguiram em seu rastro – assim como não havia como negar a destruição evidente por toda a cidade. Edifícios jaziam em escombros, seus restos mortais sendo lentamente engolidos pelo mar. Em algumas áreas, blocos inteiros afundaram sob as ondas. Em outras, eles permaneciam enegrecidos e carbonizados, como se tentassem negar. Os dragões deixaram sua marca, assim como os próprios magos. Após a morte de Malek, os mais fortes entre eles destruíram o lugar lutando pelo poder, uma tradição tão antiga quanto a própria cidade. Mas os dias de caos acabaram. E foi nisso que Rafe escolheu se concentrar enquanto cortava os céus em direção ao castelo no coração do reino e à mulher que fornecia sua alma. O ar não estava mais cheio de medo. Uma emoção muito diferente emanava dessas ruas cansadas de batalha. Esperança. A profecia havia se cumprido. A era do sofrimento acabou. Era hora de começar uma nova era mais próspera. Rafe passou pela estreita porta da sacada, o movimento de suas asas deslocando papéis cuidadosamente empilhados e uma pilha de pergaminhos. Cortinas grossas estavam amontoadas a seus pés, as argolas ao longo do topo todas quebradas como se tivessem sido puxadas com raiva. Uma pesada escrivaninha de madeira ocupava o centro da sala. De pé ao lado dele, com uma carranca nos lábios exuberantes, Lyana esperava. — Não esperava encontrar você aqui — murmurou. Um arrepio percorreu sua espinha enquanto ele observava o restante da sala – a lareira de pedra excessivamente grande, as pesadas cadeiras de couro, o lustre de ferro, as paredes cobertas de mapas. Ele só esteve aqui uma vez antes, uma reunião da qual não se importava em se lembrar, a memória de suas asas amarradas e ensanguentadas descansando naquela mesa ainda era coisa de pesadelo. Eles estavam nos aposentos de Malek, o único cômodo em que Rafe não pisara desde que reivindicou o castelo e a coroa como seus. Lyana se virou para cumprimentá-lo com um sorriso. — E eu não esperava encontrar você. — Você também pensou que eu tinha fugido? Ela deu de ombros. Rafe atravessou a sala em um piscar de olhos, puxando-a para seus braços. Ele cavou seus dedos em seus quadris com uma possessividade feroz. Ela era dele e ele era dela. A essa altura, ela já devia saber disso. Preocupação cravava em seu peito. — Ana, você não pode pensar... — Shhh — sua cabeça caiu para trás enquanto ela olhava para ele com prazer travesso. A mão dela foi até a bochecha dele enquanto um brilho iluminou seus olhos. — Você facilita demais, Rafe. Eu disse a Xander e Brilhante para deixá-lo em paz. Eu sabia que você estaria de volta em seu próprio tempo. Ele bufou e deixou cair a testa contra a dela enquanto uma suave gargalhada feminina enchia o ar, a música mais doce. Ele respirou fundo, absorvendo a essência dela, deixando-a acalmá-lo. — Você é terrível. — Você adora. Ele adorava. Ele realmente, realmente adorava. Lyana beijou-o suavemente, um beijo doce e adorável. Mas mesmo o toque mais sutil dela fazia seu sangue ferver. Rafe a puxou contra seu peito, aprofundando o ângulo enquanto o calor que sempre fervia ao longo de suas asas queimava. Lyana sorriu contra seus lábios, ciente do efeito que ela tinha sobre ele. Sua língua disparou para encontrar a dele enquanto suas mãos deslizavam em seu cabelo. Um segundo de indulgência se transformou em três, depois em quatro, o tempo se esvaindo até que ela se afastou com um gemido. Antes que ele pudesse protestar, ela girou em seu aperto e passou seus braços ao redor de sua barriga, deixando-o sem escolha a não ser descansar o queixo sobre a cabeça dela para não se engasgar com uma pena branca e felpuda. — Por mais que eu queira continuar... — Ela se interrompeu, mudando o ângulo do rosto. Rafe seguiu o olhar dela até o tampo da mesa que vinha ignorando de propósito. Duas reluzentes coroas douradas repousavam sobre uma almofada de veludo, uma delicada e refinada, esculpida para se assemelhar a flocos de neve entrelaçados, e a outra imponente e severa, com pontas afiadas entalhadas como chamas. — Temos um lugar onde precisamos estar — finalizou suavemente. — Você está pronta? Desta vez, a vulnerabilidade em suas palavras faladas suavemente era verdadeira. Ela sabia que ele nunca a deixaria, que ela era tudo para ele, toda a sua vida, mas também não queria que ele ficasse preso nisso. Rafe a puxou para mais perto, deixando cair as mãos em seu estômago e o queixo em seu ombro, para que suas bochechas se tocassem. Suas asas pressionavam contra seu abdômen enquanto ela se inclinava em seu abraço. Uma terceira alma estava lá com eles, ainda não nascida, mas não menos real, o sangue de dragão dela zumbindo no fundo de seus pensamentos. A filha deles. Fazia apenas uma semana desde que ele soube da existência dela, mas levou apenas um momento para seu mundo mudar de eixo, como se finalmente se encaixasse no lugar. Depois de uma vida escondida, uma vida vivida nas sombras, uma vida de perguntas, dúvidas e incertezas, ele finalmente sabia a que lugar pertencia. Bem aqui. Ao lado de Lyana. Com as duas. Em chamas para todo o mundo ver. Foi por isso que ele foi ao armazém naquela manhã. Não se debruçar sobre o passado, mas fazer as pazes com ele. Ele não considerava mais o fogo sua maldição. Era a bênção dele. Dera a ele esta mulher, a bebê em seu ventre e um propósito maior do que ele jamais poderia ter imaginado para si mesmo. Ele havia nascido no fogo – um homem batizado novamente pelas chamas naquela noite e pelo dragão agora queimado dentro de sua alma. E ele não mudaria isso. Por nada no mundo. — Estou pronto. — Ótimo — ela pegou a mão dele e o conduziu para fora da sala. Meia hora depois, eles emergiram do castelo de Da’Kin, vestidos com elegância. O vestido marfim cravejado de cristais de Lyana brilhava como neve recém caída enquanto eles voavam a curta distância até o topo da parede ao redor e aterrissavam diante da multidão repentinamente silenciosa. Ele ficou ao lado dela, envolto em carmesim e preto como uma chama viva, o fogo rolando de suas asas. Pela primeira vez em sua vida, Rafe não fez nada para segurá-lo, deixando o dragão dentro de si arder. Um cobertor de magia dourada cobriu a multidão quando Lyana começou seu discurso, deixando as pessoas abaixo extasiadas. Enquanto seu poder e sua promessa se instalavam em suas almas, Rafe estudou a praça transbordante. Cada centímetro de espaço livre estava ocupado. Os cidadãos de Da’Kin se amontoaram nas tábuas de madeira, nos telhados ao redor, empurrando as janelas, subindo em ombros, fazendo tudo e qualquer coisa por apenas um vislumbre de seu novo rei e rainha. A única área com espaço para respirar era o estrado montado ao longo da extremidade da praça, frouxamente salpicado de magos avians e tronos meio cheios. Lyana e Rafe convidaram todos os reis e rainhas das casas reais, um sinal de paz entre os reinos do mar e do céu, mas apenas o punhado de sempre aceitou. Luka e sua companheira, Iris. A rainha da Casa do Paraíso e seu rei. Príncipe Damien e Princesa Coralee. E, claro, Xander, que não estava mais sentado sozinho entre seus colegas. A visão de Cassi de vestido negro ainda deixava Rafe enjoado, mas ele reprimiu a sensação. Para o bem ou para o mal, ela logo seria sua irmã e com o tempo isso ficaria mais fácil, o passado não pairando mais como uma arma pronta para atacar. Um suspiro coletivo chamou sua atenção de volta para Lyana. Seu discurso acabou. Sua magia encheu o ar, unida por redemoinhos de todas as cores imagináveis, a cidade incendiada por uma súbita explosão de magia. A chama borbulhou no céu. O vento uivava. A água jorrava. Rochas tremeram. A luz e a escuridão brilharam quando raios eletrificados chiaram no alto. No centro do frenesi, uma almofada flutuava suavemente, como se fosse carregada por mãos invisíveis. Ele deu a volta na praça antes de pousar suavemente aos pés deles. Guiadas pelo poder de Lyana, as coroas subiram. À luz do sol, o fogo e a magia brilhavam no metal polido, tão radiante que Rafe teve que desviar o olhar. Ele virou para o lado e, finalmente, em meio a toda a glória, encontrou o rosto que procurava na multidão. Brilhante estava cercada por sua tripulação nas rochas ao redor da base do castelo, um portal em chamas atrás deles. A magia brilhou em seus dedos erguidos enquanto eles se juntavam à celebração. Rostos orgulhosos o observavam. Orgulhosos e vitoriosos. Ele concentrou a atenção em Brilhante, notando o brilho altamente suspeito, como se uma lágrima ameaçasse vazar a qualquer momento. Ele iria provocá-la impiedosamente por isso mais tarde, um fato que ela deve ter lido em seu rosto quando lançou um olhar sardônico em sua direção. Rafe sorriu. Brilhante mostrou o dedo do meio para ele e murmurou algo para a equipe. Um por um, eles voltaram pelo portal. Como a última da fila, ela hesitou antes de entrar. A expressão em seu rosto suavizou por um momento antes que ela oferecesse uma saudação de despedida. Eu disse que diria adeus, parecia dizer. Depois atravessou para o outro lado e virou o rosto para o mar aberto, uma alma que nunca parava de buscar algo mais naquele horizonte distante. Uma vez, Rafe pensou que ele era do mesmo jeito. Mas, no fundo, tudo o que ele sempre quis foi um lar. E agora ele tinha um. A coroa pousou em sua testa e Rafe virou-se para Lyana quando um grito de alegria soou. Ele agarrou seus dedos e sustentou seu olhar, um rei com sua rainha, um homem com sua companheira, um dragão com sua columba, unidos para todo o mundo ver.