Carta Capital #1313 - 05jun24

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PROTECIONISMO AO CONTRÁRIO UE MESMO DIVIDIDA, A EXTREMA-DIREITA

DA RETÓRICA LIBERAL, AS POLÍTICAS AMPLIARÁ SEU PODER NO PARLAMENTO


INDUSTRIAIS E A DEFESA DA PRODUÇÃO EUROPEU, INDICAM AS PESQUISAS. PIOR
INTERNA ESTÃO EM ALTA NO MUNDO PARA OS IMIGRANTES E O MEIO AMBIENTE

Clube de Revistas

PEDAGOGIA
DO COTURNO
CABIDE DE EMPREGO DE PMS E OFICIAIS DA RESERVA,
AS ESCOLAS CÍVICO-MILITARES SÃO UMA FALSA
SOLUÇÃO PARA OS DESAFIOS DO ENSINO NO PAÍS

ANO XXIX N° 1313 R$ 31,90


5 DE JUNHO DE 2024
Clube de Revistas

Há 53 anos a Fenae está


ao lado das empregadas
e empregados da Caixa,
lutando por seus direitos
e por uma Caixa forte,
100% pública e social.
São mais de 5 décadas
cuidando do presente e
olhando com esperança
para o futuro.


    
  
Clube de Revistas
5 DE JUNHO DE 2024 • ANO XXIX • N° 1313

Os museus gaúchos
avaliam as perdas
no desastre. Pág. 30

6 A SEMANA 30 R I O G R A N D E D O S U L
9 M A R I A R I TA K E H L As inundações também Nosso Mundo
devastaram o patrimônio 40 E U R O PA A extrema-
histórico e a vida cultural -direita chega dividida na

Plural
Seu País reta final da campanha
18 E N E R G I A Sob críticas de para o Parlamento da UE
ambientalistas, o governo Economia

48
42 Á F R I C A D O S U L O CNA,
planeja a conclusão da

G U S TAV O G A R B I N O / P R E F E I T U R A D E P O R T O A L E G R E E N E T F L I X
A meta de
32 I N F L A Ç Ã O partido de Nelson
usina nuclear de Angra 3 3% ao ano não tem base Mandela, sofre o desgaste
22 E- C O M M E R C E A taxação na economia e impõe de 30 anos no poder O QUE ESTÁ
do comércio eletrônico sacrifícios ao País
46 G R E E N WA S H I N G A imagem EM JOGO?
internacional movimenta
No capitalismo,
36 A N Á L I S E do bilionário Jeff Bezos
os bastidores do Congresso
a Madame Financeirização como protetor do meio
26 S Ã O PA U L O Programa DOIS PROJETOS DE LEI PARA
é uma figura onipresente ambiente sofre forte abalo
de pós-doutorado para REGULAR OS SERVIÇOS DE VÍDEO
pesquisadores negros POR DEMANDA ENTRAM EM
da USP corre risco UMA CORRIDA NO CONGRESSO
de não ser renovado
29 PEDRO SERRANO CABEÇAS DE PAPEL 50 C I N E M A Sidney Magal em versão morna
52 L I V R O S A Rússia depois da Revolução
AS ESCOLAS CÍVICO-MILITARES 54 T H E O B S E R V E R Jornalista demonstra as
Capa: Pilar Velloso. SÃO UMA FALSA SOLUÇÃO PARA habilidades sensoriais de diversos animais
Foto: iStockphoto OS DESAFIOS DO ENSINO NO PAÍS 57 A F O N S I N H O 58 C H A R G E Por Venes Caitano

CENTRAL DE ATENDIM ENTO F ALE C ONOS CO: HTTP://ATENDIMEN TO.CARTACAPITAL. COM. BR

4 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CARTAS CAPITAIS
Clube de Revistas
DIRETOR DE REDAÇÃO: Mino Carta
REDATOR-CHEFE: Sergio Lirio
EDITOR-EXECUTIVO: Rodrigo Martins
CONSULTOR EDITORIAL: Luiz Gonzaga Belluzzo
EDITORES: Ana Paula Sousa e Carlos Drummond
REPÓRTER ESPECIAL: André Barrocal
REPÓRTERES: Fabíola Mendonça (Recife), Mariana Serafini
e Maurício Thuswohl (Rio de Janeiro) UM MORTO-VIVO
SECRETÁRIA DE REDAÇÃO: Mara Lúcia da Silva
DIRETORA DE ARTE: Pilar Velloso
NO SENADO
CHEFES DE ARTE: Mariana Ochs (Projeto Original) e Regina Assis O 7 a 0 no Tribunal Superior Elei-
DESIGN DIGITAL: Murillo Ferreira Pinto Novich
FOTOGRAFIA: Renato Luiz Ferreira (Produtor Editorial) toral parece revelar um “acordão”
REVISOR: Hassan Ayoub para livrar Moro da cassação. Conse-
COLABORADORES: Afonsinho, Aldo Fornazieri, Alysson Oliveira, André Costa Lucena,
Antonio Delfim Netto, Boaventura de Sousa Santos, Cássio Starling Carlos, Célia quência: a perda de credibilidade do Po-
Xakriabá, Celso Amorim, Ciro Gomes, Claudio Bernabucci (Roma), Djamila Ribeiro,
Drauzio Varella, Emmanuele Baldini, Esther Solano, Flávio Dino, Gabriel Galípolo,
der Judiciário, que diminui a cada dia e
Guilherme Boulos, Hélio de Almeida, Jaques Wagner, José Sócrates, Leneide Duarte-Plon, pode ser irrecuperável com a não conde-
Lídice da Mata, Lucas Neves, Luiz Roberto Mendes Gonçalves (Tradução), Manuela d’Ávila,
Marcelo Freixo, Marcos Coimbra, Maria Flor, Marília Arraes, Murilo Matias, nação criminal de Bolsonaro, Augusto
Ornilo Costa Jr., Paulo Nogueira Batista Jr., Pedro Serrano, René Ruschel,
Riad Younes, Rita von Hunty, Rogério Tuma, Rui Marin Daher, Sérgio Martins, Heleno, Braga Neto e outros.
Sidarta Ribeiro, Vilma Reis, Walfrido Warde e Wendal Lima do Carmo Maria Lídia
ILUSTRADORES: Eduardo Baptistão, Severo e Venes Caitano

CARTA ONLINE NAUFRAGADOS


EDITORA-EXECUTIVA: Thais Reis Oliveira
EDITORES: Allan Ravagnani, Getulio Xavier e Leonardo Miazzo
NO DESCASO
REPÓRTERES: Ana Luiza Rodrigues Basilio (CartaEducação) e Marina Verenicz
VÍDEO: Carlos Melo (Produtor)
A HORA DA VERDADE A tática vitimista do prefeito de
Porto Alegre, de não se responsa-
ESTAGIÁRIOS: Sebastião Moura Excelente reportagem, uma espé-
REDES SOCIAIS: Caio César bilizar pela falta de manutenção
SITE: www.cartacapital.com.br
cie de “imagem tomográfica” das
nas comportas e nos motores, a despei-
investigações que podem resultar na
to dos numerosos alertas, não
condenação de Jair Bolsonaro.
pode prosperar. Colocar a culpa nas
Williams Cantanhede
EDITORA BASSET LTDA. Rua da Consolação, 881, 10º andar. vítimas por ocuparem áreas de risco
CEP 01301-000, São Paulo, SP. Telefone PABX (11) 3474-0150
e dizer que outros municípios deveriam
Só acredito na prisão de
PUBLISHER: Manuela Carta ser investigados não tira a sua
GERENTE DE NEGÓCIOS: Henrique Rogatto Bolsonaro no dia que acontecer.
responsabilidade pela negligência
GERENTE DE TECNOLOGIA: Anderson Sene Há tantos outros crimes mais graves co-
NOVOS PROJETOS: Demetrios Santos e pelo descaso. Se até os estádios
ANALISTA DE ATENDIMENTO: Maria Clara M. Abdal metidos por ele durante a pandemia,
AGENTE DE BACK OFFICE: Verônica Melo
do Internacional e do Grêmio inundaram,
e nada aconteceu.
CONSULTOR DE LOGÍSTICA: EdiCase Gestão de Negócios por que os mais pobres teriam que ser
EQUIPE ADMINISTRATIVA E FINANCEIRA: Fabiana Lopes Santos, Maria Celeste
Fábio André da Silva Ortega, Raquel Guimarães e Rita de Cássia Silva Paiva os culpados, na visão de Melo?

REPRESENTANTES REGIONAIS DE PUBLICIDADE:


COSTAS LARGAS Como um bom negacionista e bolsona-
rista, o prefeito de Porto Alegre foge
RIO DE JANEIRO: Enio Santiago, (21) 2556-8898/2245-8660, Se sofrer boicote financeiro
enio@gestaodenegocios.com.br de suas obrigações.
BA/AL/PE/SE: Canal C Comunicação, (71) 3025-2670 – Carlos Chetto,
e não receber mais armas,
Paulo Sérgio Cordeiro
(71) 9617-6800/ Luiz Freire, (71) 9617-6815, canalc@canalc.com.br em uma semana o governo de Israel cai.
CE/PI/MA/RN: AG Holanda Comunicação, (85) 3224-2267,
Fora do poder, Netanyahu terá muito
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a responder na justiça.
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www.firbraz.com.br, Telefone (11) 3463-6555 na Presidência da República uma pessoa
O governador paulista abre uma
CARTACAPITAL é uma publicação semanal da Editora Basset Ltda. CartaCapital não se que trabalha, tem amor pelo povo e está
responsabiliza pelos conceitos emitidos nos artigos assinados. As pessoas que não
escola cívico-militar com orçamen-
presente o tempo todo. Daí as prontas e
constarem do expediente não têm autorização para falar em nome de CartaCapital ou to turbinado e depois irá propagandear
para retirar qualquer tipo de material se não possuírem em seu poder carta em papel efetivas providências adotadas pelo
timbrado assinada por qualquer pessoa que conste do expediente. Registro nº 179.584,
que ela é boa por ser militar. Tem inocen-
governo federal para minorar a situação.
de 23/8/94, modificado pelo registro nº 219.316, de 30/4/2002 no 1º Cartório, de te que acredita. Desafio Tarcísio de Frei-
acordo com a Lei de Imprensa. Imagino como teria sido caso estivesse
tas a aplicar, nas escolas públicas, a
no seu lugar um governante negacionis-
IMPRESSÃO: Plural Indústria Gráfica - São Paulo - SP
mesma verba destinada aos colégios mi-
ta e preguiçoso, que em vez de marcar
DISTRIBUIÇÃO: S. Paulo Distribuição e Logística Ltda. (SPDL) litarizados para ver o que acontece.
ASSINANTES: Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos presença, estivesse em outras regiões
Cleber Coutinho
do País passeando de jet ski, e, quando
CADEIRA ELÉTRICA perguntado sobre a tragédia,
respondesse: “Não sou coveiro”.
Que olhar macabro o de
Sylvio Belém
Cláudio Castro na foto da reporta-
gem. Imagine se deparar, em uma
viela da Rocinha, com esses olhos
às 6 da manhã.
Jose Maria da Silva

CENTRAL DE ATENDIMENTO C A R TA S PA R A E S TA S E Ç Ã O
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C A R TAC A P I TA L — 5 D E J U N H O D E 2 0 24 5
Clube de Revistas
A Semana
São Paulo/ Botão “liga e desliga”
Cores da violência

Em dez anos, disparos de


armas de fogo em vias
Novas câmeras vão permitir que o policial escolha quando iniciar gravação
públicas mataram quatro
vezes mais negros que

C
brancos no Brasil. De 2012 oncebidas para coletar provas de São Paulo encaminhou uma petição ao Su-
a 2022, ao menos 149,7 mil contra suspeitos, mas também premo Tribunal Federal, solicitando mudan-
homens pretos e pardos para fiscalizar a atividade poli- ças no edital da Secretaria de Segurança Pú-
foram assassinados nesse cial, as câmeras corporais da PM blica. Na peça, a defensora Fernanda Balera,
contexto. Nesse mesmo
de São Paulo passarão a ter um botão de “li- coordenadora do núcleo de Direitos Huma-
período, os óbitos de homens
brancos somaram 38,2 mil. ga e desliga”, que permitirá ao policial deci- nos do órgão, observa que as mortes em in-
Os dados constam no Boletim dir quando iniciar a gravação. Ao anunciar tervenções policiais despencaram após a ins-
Saúde da População Negra, a aquisição de 12 mil novos equipamentos talação das câmeras que não poderiam ser
divulgado na segunda-feira com essa funcionalidade, o governo paulis- desligadas em momento algum. “É justa-
27 pelo Instituto de Estudos
ta justificou que o registro ininterrupto de mente a partir dessa mudança que se começa
para Políticas de Saúde (Ieps)
e pelo Instituto Çarê. imagens traz elevados custos de armazena- a observar a queda nos índices de letalidade.”
Entre as mulheres, também mento, além de “comprometer severamente Na campanha eleitoral, Tarcísio de Freitas
se constatou maior a privacidade” dos agentes em serviço. prometeu retirar as câmeras das fardas da
vitimização da população Na segunda-feira 27, a Defensoria Pública PM paulista. Com a repercussão negativa da
negra, mais que o dobro
proposta, decidiu manter o pro-
da verificada entre as
brasileiras brancas. grama, mas cortou os investimen-
tos para sua expansão. Agora, fi-
nalmente, anuncia a compra de
novos equipamentos, mas com o
dispositivo que permite ao policial
desligar o aparelho, embora ele se-
ja formalmente obrigado a gravar
todas as ocorrências. “É uma far-
sa”, reagiu o ministro dos Direitos
Humanos, Silvio Almeida. “Essa
medida privilegia os maus poli-
ciais, aqueles que não respeitam a
O exitoso programa é boicotado pelo governador Tarcísio de Freitas lei e fazem uso excessivo da força.”

Rio de Janeiro/ “ERA UMA SOCIEDADE”


RONNIE LESSA MATOU MARIELLE POR PROMESSA DE CHEFIAR NOVA MILÍCIA

Em sua delação, Ronnie Lessa -policial militar Edimilson de uma sociedade.” Registrado
revelou a tentadora proposta Oliveira, conhecido como Ma- em vídeo, esse trecho do de-
que recebeu para matar a ve- calé, um loteamento clandes- poimento foi exibido pelo pro-
readora Marielle Franco em tino na Zona Oeste do Rio. grama Fantástico, da Rede
2018. Segundo o sicário, Do- “Era muito dinheiro envolvi- Globo, no domingo 26. Para
mingos Brazão, ex-conselhei- do. Na época, daria mais de Lessa, a proposta representa-
ro do Tribunal de Contas do 20 milhões de dólares”, disse va a oportunidade de liderar
Rio de Janeiro, e seu irmão, o à Polícia Federal. “Eu não fui uma nova milícia, que teria co-
deputado federal Chiquinho contratado para matar mo base territorial o lotea-
O sicário animou-se com a oferta Brazão, ofereceram a ele e a Marielle como um assassino mento clandestino prometido
de um loteamento clandestino um de seus comparsas, o ex- de aluguel. Fui chamado para pelos irmãos Brazão.

6 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Clube de Revistas
5.6.24

Rio de Janeiro/ Jogo viciado


Apelação negada

O presidente do Tribunal
Delator aponta Romário e Marcos Braz em esquema de corrupção Superior Eleitoral, Alexandre
de Moraes, rejeitou um
recurso extraordinário

O
Ministério Público Federal e a está sob a relatoria do ministro Kassio Nunes apresentado pela defesa
Polícia Federal investigam o se- Marques, do Supremo Tribunal Federal. de Jair Bolsonaro e de Walter
nador Romário e o vereador Mar- Preso em 2019 pela Operação Catarata, Braga Netto contra decisão
cos Braz, também vice-presiden- Silva assinou um acordo de colaboração com da Corte que os declarou
inelegíveis por abuso de
te do Flamengo, por envolvimento em supos- a Procuradoria-Geral da República no ano
poder político e econômico.
to esquema de desvio de recursos de projetos seguinte. Segundo o delator, houve desvios A apelação está relacionada
de esportes da Prefeitura do Rio de Janeiro. em contratos da prefeitura com o Centro ao processo em que foram
Iniciada com base na delação do empresário Brasileiro de Ações Sociais para Cidadania acusados de usar as
Marcus Vinícius Azevedo da Silva, a investi- (Cebrac), celebrados por Braz quando ele es- celebrações do 7 de
Setembro como palanque
gação apura indícios de corrupção passiva e teve à frente da Secretaria Municipal de Es-
eleitoral. Antes disso, o
lavagem de dinheiro. Sob sigilo, o inquérito portes. A ONG teria recebido ao menos 13 ex-presidente já havia sido
milhões de reais para a gestão condenado à inelegibilidade
de vilas olímpicas. por reunir embaixadores no
Apontado como responsável Palácio da Alvorada para
atacar o processo eleitoral e
pela nomeação de Braz na admi-
espalhar fake news sobre as
nistração municipal e como pos- urnas eletrônicas. Neste caso,
sível beneficiário do esquema, contudo, Braga Netto foi
Romário afirmou ao portal UOL, absolvido. Moraes deixará
o primeiro a noticiar o caso, que o comando TSE em 3 de
junho, quando será
“não responde pelas ações do se-
substituído por Cármen Lúcia.
cretário no exercício de suas
funções”, além de negar qual-
quer enriquecimento ilícito. Já
Braz preferiu não se manifestar.
A dupla é acusada de desviar recursos públicos de projetos de esporte Ambos são filiados ao PL do Rio.

Ensino superior/ “RESPIRANDO POR APARELHOS”


CONSELHO UNIVERSITÁRIO DA UFRJ PEDE SOCORRO AO GOVERNO LULA
FR A NÇA /AG. SEN A DO, REDES SOCIAIS E PMSP/GOVSP
SINTUFRJ, ALEX ANDRE VIDAL /FL AMENGO, PEDRO

Em carta aberta, o Conselho Centenária, a UFRJ é a rede federal de ensino, mas en-
Universitário da UFRJ pediu so- maior universidade federal do fatizou que, no caso da UFRJ,
corro ao governo federal para Brasil, com cerca de 65 mil es- ele “está muito aquém das ne-
se recuperar de uma prolonga- tudantes e mais de 4 mil pro- cessidades e nem de longe co-
da crise financeira, agravada fessores. A instituição deve en- bre o passivo dos últimos anos”.
pelos numerosos cortes orça- cerrar 2024 com um déficit de Após a publicação da carta,
mentários que sofre desde 380 milhões de reais, estima a os alunos da UFRJ aprovaram
2013. “Sucessivas reitorias Pró-reitoria de Finanças. O va- uma greve prevista para come-
têm feito o esforço monumental lor supera em 97 milhões o or- çar em 11 de junho. Eles reivin-
de manter a universidade aber- çamento de custeio para este dicam a recomposição do orça-
ta no contexto de um processo ano, de 283 milhões. O Conse- mento da universidade, reajus-
inexorável de degradação de lho reconhece que o governo te salarial para os seus traba-
sua infraestrutura, mas esta- Lula iniciou um processo de re- lhadores e um plano nacional A universidade deve encerrar 2024
mos respirando por aparelhos.” composição orçamentária da de assistência estudantil. com déficit de 380 milhões de reais

C A R TAC A P I TA L — 5 D E J U N H O D E 2 0 24 7
Clube de Revistas
A Semana
Um bombardeio israelense
matou ao menos 45 civis em
acampamento de refugiados
Desastre geológico

Uma avalanche deixou


ao menos 2 mil soterrados
em Papua-Nova Guiné,
informou o Centro Nacional
de Desastres no país.
O gigantesco deslizamento
de terra pegou moradores
da província de Enga, a 600
quilômetros da capital Port
Moresby, desprevenidos na
madrugada da sexta-feira 24.
Vilarejos inteiros foram
varridos do mapa, ao menos
150 casas foram sepultadas.
Na terça-feira 28, a ONU
informou serem remotas
as chances de encontrar
sobreviventes. “Não é uma
missão de resgate, é uma
missão recuperação”,
lamentou Niels Kraaier,
Gaza/ “Trágico acidente”
representante do Fundo O mundo assiste inerte a mais um massacre promovido por Netanyahu
das Nações Unidas para a
Infância (Unicef) para o país

E
da Oceania, localizado m evidente afronta à decisão da Josep Borrell, disse estar “horrorizado com
ao norte da Austrália. Corte Internacional de Justiça as notícias vindas de Rafah sobre os ataques
que ordenou a suspensão da ofen- israelenses que mataram dezenas de pessoas
siva militar em Rafah dias antes, deslocadas”. O governo brasileiro também
Israel bombardeou a cidade palestina no do- repudiou o bombardeio. “Essa nova tragédia
mingo 26, provocando a morte de ao menos demonstra o efeito devastador sobre civis de
45 pessoas em um acampamento de refugia- qualquer ação militar israelense em Rafah,
dos. Os alvos, segundo o governo israelense, conforme manifestações e apelos unânimes
eram dois líderes do Hamas, mas um “aciden- da comunidade internacional, e diante dos
te trágico”, nas palavras do premier Benjamin deslocamentos forçados por Israel, que con-
Netanyahu, provocou um incêndio de grandes centraram centenas de milhares de refugia-
proporções nas tendas que abrigavam civis no dos, em condições de absoluta precariedade,
bairro de Tel Al-Sultan. Ao menos metade das naquela localidade”.
vítimas eram crianças, mulheres e idosos. Indiferente aos apelos por um cessar-fogo,
As cenas do acampamento consumido pe- Netanyahu mantém a ofensiva na cidade pa-
las chamas e do desesperado socorro prestado lestina e não demonstra qualquer constran-
pelo Crescente Vermelho a vítimas mutiladas gimento de violar repetidamente o direito in-
ou com graves queimaduras pelo corpo escan- ternacional. Pudera. O governo dos EUA,
dalizaram o mundo. “Indignado com os ata- principal aliado e fornecedor de armas de Tel
ques israelenses que mataram muitos refugia- Aviv, continua a lavar as mãos diante da car-
dos em Rafah”, afirmou o presidente francês, nificina. “Israel tem o direito de perseguir o
E YA D B A B A / A F P

Emmanuel Macron. “Não há lugar seguro em Hamas. (...) Mas deve tomar todas as precau-
Gaza. Este horror deve parar”, acrescentou ções possíveis para proteger os civis”, disse
António Guterres, secretário-geral da ONU. um porta-voz da Casa Branca. Enquanto is-
O chefe da diplomacia da União Europeia, so, os “trágicos acidentes” se sucedem.

8 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
MARIA RITA KEHL
Psicanalista e escritora, foi integrante da Comissão Nacional da
Verdade. É autora, entre outros, de O Tempo e o Cão, vencedor
do Jabuti de 2010, e Tempo Esquisito (2023), ambos pela Boitempo

A massificação da mentira

pre provocador: “Se é mentira, espa- assistir, ou ao menos imaginar, o estrago


► Instrumento de vingança lha logo, antes que desmintam”. Mas provocado pela notícia mentirosa con-
dos covardes e ressentidos, seu objetivo era desmoralizar os mili- tra alguém. A motivação de quem inven-
cos do golpe de 1964. ta mentiras contra outros envolve ele-
a calúnia tornou-se ainda Já o dispositivo da “viralização” das mentos de mediocridade, covardia e res-
mais nociva na era de sua fake news tem alcance muito maior e sentimento. Tipo um Bolsonaro da vida.
reprodutibilidade técnica* mais destrutivo por conta do alcance Mas existem notícias falsas que não
das redes sociais. O leitor deve estar se têm por objetivo destruir a reputação de
perguntando: o que as fofocas têm a ver uma pessoa específica, visam a destrui-
com as fake news? Ambas são instru- ção da confiança dos brasileiros no la-

O
desastre climático no Rio mentos da vingança dos covardes e res- ço social. O semeador de mentiras bus-
Grande do Sul, que causou sentidos. Filha legítima do bolsonaris- ca desmoralizar aquilo que nos faz sen-
163 mortes e deixou quase mo, uma mentira viralizada nas redes tir pertencente a um País, um modo de
600 mil desalojados até a conclusão pode arrasar reputações. vida, uma esfera de pensamento. Ima-
desta coluna, revelou-se ainda mais gino que os medíocres que propagam
doloroso para as vítimas sobreviven- Quem não se lembra do surto de ca- fake news pensem: se eu sofro, sou ca-
tes a partir do momento em que pes- lúnias bolsonaristas ante a perspecti- paz de fazer vocês sofrerem mais. Suas
soas, com interesses escusos (às vezes, va de vacinação para deter a propaga- notícias falsas circulam numa terra sem
até para elas próprias), passaram a di- ção da Covid? Em vez de se engajar na lei. A terra dos covardes anônimos.
vulgar notícias falsas em meio à tra- campanha para mitigar os danos da cri- Por fim: o psicanalista francês
gédia. A prática existia muito antes de se sanitária (como fez Lula na tragédia Jacques Lacan dizia que não acredita-
voltar americanizada. Até o advento gaúcha), o chefe da nação mentiu sobre va em pessoas, mas em dispositivos. Um
da terra sem lei das redes sociais, as a eficácia das vacinas e fez lives debo- dispositivo perverso, por exemplo, per-
mentiras, inocentes ou arrasadoras, chando da falta de ar dos pacientes que vertia os canalhas e, ao mesmo tempo,
tinham alcance menor e nomes singe- corriam risco de morrer. muitas pessoas “de bem”. Esse é o po-
los. Chamávamos de lorotas, tramoias Do outro lado da torrente de notícias der maléfico da prática de dissemina-
ou traição os truques baixos dos que falsas, estão suas vítimas. Não deixa de ção de fatos inventados.
inventavam e faziam circular fofocas se sentir um pouco paranoica a pessoa
maldosas contra seus desafetos. que se torna alvo de uma fofoca. Já per- P.S.: Deu na Folha: “TSE multa Flá-
A calúnia era considerada uma forma ceberam que o desmentido tem muito vio, Zambelli e outros bolsonaristas
de traição. Ainda que de contágio muito menos prestígio do que a falsa acusação? por associar Lula a satanismo”. É uma
mais lento do que na era do WhatsApp, O desmentido não contém elementos de fake news tão ruim que talvez nem gere
a propagação de boatos ou fofocas de- escândalo, o que faz com que muito me- apoiadores, mas vai saber... Os ressen-
pendia de que outras pessoas acreditas- nos pessoas se interessem por ele. tidos topam tudo para se vingarem. •
sem nelas e passassem adiante, boca a Penso que a satisfação de quem in- redacao@cartacapital.com.br
boca. Mesmo assim, a briga ou desaven- venta e espalha notícias falsas é a con-
ça resultantes da fofoca era um evento trapartida dos medíocres, que não con-
* Na chamada desta coluna, tomo emprestado
privado restrito a um pequeno círculo seguem criar nada que seja relevante.
B A P T I S TÃ O

o conceito formulado por Walter Benjamin, da


de conhecidos. Lembro-me de um afo- Sua retaliação – Contra quem? Quem é Escola de Frankfurt, pioneiro nos estudos que
rismo do saudoso Plínio Marcos, sem- o culpado da insignificância alheia? – é apontam as armadilhas da cultura de massa.

C A R TAC A P I TA L — 5 D E J U N H O D E 2 0 24 9
CA PA

Cabeças
de papel
EM EXPANSÃO NO PAÍS, AS ESCOLAS CÍVICO-MILITARES
SÃO CARAS, INEFICIENTES E PARECEM SERVIR APENAS
PARA INFLAR A RENDA DE OFICIAIS DA RESERVA
p o r FA B ÍO L A M E N D O N Ç A

N
a Constituição de blica paulista, mas o suficiente para aca- Em julho do ano passado, o governo fede-
1988, não existe lentar sua estridente base bolsonarista. ral revogou o Decreto 10.004/2019, assina-
menção alguma São Paulo é um dos últimos estados a do por Jair Bolsonaro, que instituía o Pro-
sobre a atuação dos aderir ao modelo. No Paraná, já existem grama Nacional das Escolas Cívico-Mili-
militares na políti- 312 escolas cívico-militares, que atendem tares, o Pecim. A decisão provocou rea-
ca educacional bra- mais de 190 mil estudantes. No ranking ção imediata dos governadores bolsona-
sileira. Essa ausên- nacional, destacam-se ainda Goiás e ristas, que ameaçaram dar continuidade
cia também se observa no Plano Nacional Bahia, que contam, respectivamente, ao programa em nível estadual, promes-
de Educação (Lei 13005/2014), na Lei de com 124 e 121 colégios com essa formata- sa que vem sendo cumprida desde então.
Diretrizes e Bases da Educação Nacio- ção. Com exceção de Sergipe, todas as uni- Policiais militares, do Corpo de Bom-
nal (9394/1996) e no Estatuto dos Milita- dades da federação possuem escolas mi- beiros e até da Guarda Metropolitana, a
res (Lei 6880/1980). Ainda assim, o Brasil litarizadas, sejam administradas pelos maioria da reserva, são recrutados para
tem 42 colégios militares, administrados governos estaduais ou pelas prefeituras. assumirem função de apoio disciplinar
diretamente pelo Exército, pela Marinha De nada adiantou a debandada da União. e até para participar da gestão desses co-
ou pela Aeronáutica, e quase mil escolas cí- légios. Além do soldo, recebem genero-
vico-militares em funcionamento, modelo sas gratificações, em valores muitas ve-
híbrido em ascensão no País e que tem ge- zes superiores aos salários dos próprios
rado intensa celeuma e disputa ideológica. OS COLÉGIOS professores. Em Goiás, os militares estão
Recentemente, o governador paulis- DO EXÉRCITO TÊM presentes no apoio disciplinar, nas áreas
ta Tarcísio de Freitas conseguiu aprovar UM CUSTO POR administrativa e pedagógica, e na dire-
LUCAS FERMIN/SEED/GOVPR

na Assembleia Legislativa, em uma ses- ção escolar. Antes mesmo da revogação do


ALUNO TRÊS VEZES
são marcada por violenta repressão poli- Pecim, o governador Ronaldo Caiado, do
cial aos estudantes que protestavam con- MAIOR QUE O DAS União Brasil, anunciou que o Estado iria
tra a iniciativa, seu projeto para implantar ESCOLAS PÚBLICAS assumir as seis escolas cívico-militares do
cem escolas cívico-militares no estado. CONVENCIONAIS programa nacional, agregando as unida-
Um número ínfimo diante de um univer- des aos 70 Colégios Estaduais da Polícia
so de mais de 5 mil unidades da rede pú- Militar existentes desde 1998. “Não muda

10 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Mais de 190 mil estudantes paranaenses frequentam as escolas militarizadas por Ratinho Jr., sempre disposto a agradar o eleitorado bolsonarista

C A R TAC A P I TA L — 5 D E J U N H O D E 2 0 24 11
CA PA

nada. Esse processo já foi decidido por nós, PRIORIDADE sentou apenas o fim dos repasses do
porque sabemos da eficiência e o quanto o MEC para os colégios militarizados.
colégio militar tem trazido de resultados PARA QUEM? “Criar modalidade educativa é uma
no Ideb (Índice de Desenvolvimento da Investimento por aluno competência exclusiva da União, porque
na educação básica
Educação Básica)”, disse Caiado, um dos pública (em dólares) passa por lei nacional. Estados e municí-
cotados pela extrema-direita para dispu- pios não podem militarizar escola”, apon-
tar a Presidência da República em 2026. ta a pesquisadora Catarina de Almeida
1. Luxemburgo • 26.370
Como pano de fundo para camuflar o ca- Santos, professora da UnB e coordena-
2. Suíça • 17.333
ráter ideológico da militarização na edu- dora da Rede Nacional de Pesquisa sobre
3. Bélgica • 16.501
cação, os adeptos da modalidade falam em Militarização na Educação, lembrando a
maior segurança à comunidade escolar e 4. Áustria • 16.144 existência de uma Ação de Inconstitucio-
usam o falacioso argumento de que as esco- 5. Noruega • 15.551 nalidade parada no STF a tratar especifi-
las geridas pelas Forças Armadas têm me- 6. Estados Unidos • 15.194 camente o caso do Paraná. O relator do ca-
lhor desempenho, motivo pelo qual o mo- 7. Islândia • 15.163 so é o ministro Dias Toffoli. Professor da
delo deveria ser replicado na educação bási- 8. Coreia • 14.525 UFABC, o pesquisador Salomão Ximenes
ca regular. De fato, os colégios administra- 9. Suécia • 14.093 acusa o Ministério da Educação e o Con-
dos diretamente pelo Exército, 15 em todo 10. Dinamarca • 13.162 selho Nacional de Educação de serem
o País, apresentam um desempenho supe- 11. Austrália • 12.416 omissos, por não se posicionarem sobre
rior ao das escolas públicas regulares, mas 12. Finlândia • 12.366 a inconstitucionalidade e a incompatibi-
esse resultado está bem aquém da perfor- 13. Holanda • 12.312 lidade das escolas cívico-militares com as
mance dos institutos federais e de institui- 14. Canadá • 12.260 diretrizes de base da educação brasilei-
ções de ensino vinculadas a universidades. 15. Reino Unido • 12.064 ra. Ele também cobra do presidente Lula
No Enem 2023, para citar um emblemáti- 16. Itália • 11.178 a revogação do Decreto 88.777, assinado
co exemplo, apenas quatro escolas públicas 17. Espanha • 10.819 por Bolsonaro, que regulamenta o papel
tiveram alunos com nota máxima em Re- 18. Portugal • 10.643 das Forças Armadas e tem dado sustenta-
dação e nenhuma delas era militarizada. 19. Rep. Checa • 10.616 ção para as várias iniciativas nos estados
20. Irlanda • 9.910 e municípios que insistem nesse modelo.

S
e a vontade do propositor “Os militares não têm, entre suas fun-
“ do Pecim fosse, de fato, a
busca por modelos de ges-
21. Eslovênia • 9.572
22. Estônia • 9.265 ções, atuação em instituições educacio-
nais. Então, além de ocuparem o papel de
23. Israel • 8.865
tão eficiente ou excelen- 24. N. Zelândia • 8.808 profissionais da educação que estão regu-
te para inspirar as esco- 25. Polônia • 8.457
lados na LDB, eles atuariam em desvio de
las públicas regulares, o modelo de ges- 26. Lituânia • 8.168
função. O decreto de Bolsonaro contor-
tão das escolas de aplicação (geridas por 27. Eslováquia • 8.132
na essa vedação, incluindo, dentre as atri-
instituições de ensino superior) deveria 28. Letônia • 7.400
buições das Forças Armadas e das forças
ser priorizado, ao invés do modelo de ges- auxiliares nos estados, a atuação em es-
29. Croácia • 7.307
tão dos colégios militares”, diz trecho da colas. Se revogar o decreto, Lula retira-
30. Grécia • 7.021
nota técnica assinada pelo Ministério da ria a base jurídica que justifica a presen-
31. Chile • 6.774
Educação que embasou o fim do Pecim. ça de militares nas escolas”, diz Ximenes,
32. Hungria • 6.586
Acabar com o programa nacional de acrescentando que já existe um parecer
33. Bulgária • 5.820
escolas cívico-militares é visto, por es- da Advocacia-Geral da União contrário à
34. Romênia • 5.129
pecialistas, como um gesto meramen- militarização da educação pública.
35. Costa Rica • 4.958
te simbólico do governo federal, que não Miriam Fábia Alves, professora da UFG
36. Colômbia • 4.269
fez esforço algum para deter o avanço e presidente da Associação Nacional de
37. Argentina • 3.975
desse modelo escolar nos estados e mu- Pós-graduação e Pesquisa em Educação,
nicípios. Um gesto, aliás, que terminou 38. Turquia • 3.607 também cobra um posicionamento do go-
estimulando a militarização na educa- 39. BRASIL • 3.583 verno federal sobre o avanço desse mode-
ção em várias localidades, tamanha a 40. África do Sul • 3.085 lo escolar. “Os colégios cívico-militares
polarização ideológica que gira em tor- 41. México • 2.702 descumprem um conjunto de princípios
no do tema. A extinção do Pecim repre- Fonte: Education at a Glance 2023/OCDE da educação brasileira assegurados na le-

12 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
gislação, como a gestão democrática, a li- RETROCESSO EM MARCHA
berdade para ensinar e para aprender e a
Estados com o maior número de escolas cívico-militares (2023)
diversidade pedagógica. Os militares im-
põem uma lógica da caserna, do quartel
dentro da escola, um problema grave que MA BA
a gente precisa enfrentar. O governo fede- 48 121
ral deveria ter uma posição mais incisiva
em relação a esse retrocesso”, lamenta a
pesquisadora, chamando atenção para a
falta de transparência sobre essas escolas,
já que nem os próprios estudiosos conse-
guem ter acesso aos dados.
O discurso de que colocar mili-
tares no interior dos colégios vai
reduzir a violência é outra falácia
apontada pelos especialistas. São
incontáveis os relatos de bullying,
de agressão e de assédio moral e
sexual nos colégios militarizados. “O
confronto entre aquilo que os estudantes
fazem e aquilo que os agentes de segurança
querem que façam, via de regra, gera mui- TO
tos conflitos. Dizer que os estudantes só 43
podem ficar na escola se bater continência,
se cantar o Hino Nacional, se cortar o ca- GO

TOTAL
124
belo, se vestir tal roupa, se usar tal maquia-
gem, se tiver o brinco de tal tamanho, isso
por si só já é uma violência”, salienta San-

NO BRASIL:
PR
tos. “A educação, por natureza, é a área da 312
horizontalidade, da pergunta, do diálogo.
Quando você militariza a escola, não cabe
940, de um universo de 178,5 mil
dúvida, só cabe obediência à regra estabe- escolas de educação básica
lecida hierarquicamente.”
RS
Fonte: Levantamento feito por Fernando Cássio, 43

P
ara Fernando Cássio, pro- professor da Faculdade de Educação da USP,
fessor da Faculdade de e Catarina de Almeida Santos, da UnB
Educação da USP, integran-
te da Rede Escola Pública e
Universidade e do Comitê formas de conduta que impedem os deba- uma lógica autoritária, acrescenta Hele-
Diretivo da Campanha Nacional pelo tes sobre gravidez na adolescência, sexua- no Araújo, presidente da Confederação
Direito à Educação, a militarização na lidade, gênero, raça, ditadura. Enfim, im- Nacional dos Profissionais em Educação
educação fere de morte um dos precei- pede o desenvolvimento da criticidade e (CNTE). “A segurança que defendemos
tos daquilo que a escola pública tem de da inovação pedagógica. Não tem benefí- tem a escola pública como patrimônio do
mais importante: a diversidade. “A esco- cio. No fim das contas, vemos apenas pre- público, onde a comunidade está inserida,
la pública é o lugar onde as pessoas apren- feitos, governadores e secretários fazendo a escola como um instrumento de espaço
dem a ter uma vida pública e a militariza- um aceno para suas bases eleitorais, pre- coletivo, de pertencimento público. Isso
ção ela vai na direção da formatação dos parando um terreno para 2026.” é que garante a segurança na escola. Por-
REGINA ASSIS

corpos: os meninos se vestem de uma cer- Além de atacar o princípio da gestão tanto, o argumento de que militarizar vai
ta forma, as meninas de outra, o cabelo é democrática, a militarização das escolas dar mais segurança é falso, tem outras in-
assim, a bijuteria é assado. São normas e ofende a dignidade humana, por impor tenções por trás”, alerta o dirigente. “Não

C A R TAC A P I TA L — 5 D E J U N H O D E 2 0 24 13
CA PA

queremos estudantes com medo ou sendo ciplina elevada/uma escola sensacional”.


disciplinados por imposição, mas por res- Segundo Vanda Santana, do sindicato dos
peito e por formação cidadã.” NO ENEM 2023, professores no estado, “a matriz curricu-
Autor do Dicionário de História Mili- SÓ QUATRO lar foi alterada para incluir Cidadania e
tar do Brasil, Francisco Teixeira, docen- ESCOLAS PÚBLICAS Civismo como componentes na grade.”
te da UFRJ e professor emérito da Escola Além de ferir preceitos pedagógicos e
de Comando e Estado-Maior do Exército,
TIVERAM ALUNOS não ter amparo no marco legal da educa-
também condena a participação militar COM NOTA MÁXIMA ção pública, o colégio cívico-militar tem
na política educacional. “A noção de dis- EM REDAÇÃO. um custo bem mais alto que o da escola
ciplina proposta pelas escolas cívico-mi- NENHUMA DELAS regular. O investimento anual por aluno
litares é hierárquica de obediência. Pode da educação básica na área urbana gira
ser que tenha alguma função numa tropa,
ERA MILITARIZADA em torno de 6 mil reais, enquanto um es-
mas uma classe de alunos não funciona tudante de um colégio do Exército é três
como uma tropa. A obediência imediata, vezes maior, chega a 19 mil reais. Em rela-
o silêncio, o ‘sim, senhor’ e ‘não, senhor’, Destaque, também chama atenção para o ção às escolas cívico-militares geridas por
a marcha, a ordem unida não são elemen- processo violento que representa a milita- estados e municípios não é possível fazer
tos de formação cidadã”, salienta. “Esta- rização nas escolas. “A polícia não resolve uma média do valor, porque cada ente pú-
mos vendo nesse momento a extrema vio- disciplina. Ela impõe um regime cruel e ile- blico adota um método diferente. Os pes-
lência da Polícia Militar de São Paulo, do gal. O Estatuto da Criança e do Adolescente quisadores são, porém, unânimes em afir-
Rio de Janeiro, da Bahia, de Minas Gerais. diz que nenhum menor pode ser submeti- mar que elas são ineficientes e pesam de-
Ora, é essa Polícia Militar que a gente quer do a um sistema de crueldade e humilha- mais nos cofres públicos, considerando
que eduque nossos filhos, nossos netos? É ção. Vemos também a agressão aos jovens os custos com as gratificações dos mili-
isso que está sendo proposto?” da periferia. É isso que tem lá dentro. Se tares contratados e com reformas neces-
Darcy Ribeiro e Paulo Freire fossem vi- sárias em algumas escolas para receber a

O
jornalista Dioclécio Luz, vos, teriam um ataque do coração com es- militarização. Na época do Pecim, a gra-
autor do livro A Escola sas escolas”, opina Luz. Em um vídeo pu- tificação do militares variava entre 6 mil
do Medo: Vigilância, blicado no site do governo do Paraná, um e 9 mil reais, uma média que deve se re-
Repressão e Humilhação militar grita e os estudantes são obrigados petir nos estados. Pelo projeto do gover-
nas Escolas Militares, a repetir uma insólita canção: “Faço parte nador Tarcísio de Freitas em São Pau-
em entrevista ao podcast Educação em de uma escola/que tem fibra e moral/dis- lo, os policiais recrutados podem rece-
ber até 6 mil reais por 40 horas semanais
de trabalho, valor 13% superior ao salá-
rio dos professores estaduais. O piso na-
cional dos professores é de 4,5 mil reais.
Em um relatório sobre educação divul-
gado em 2023 pela Organização para a Co-
operação e o Desenvolvimento Econômi-
co (OCDE), o Brasil aparece como o tercei-
ro pior de uma lista de 42 países, à frente
apenas do México e da África do Sul. O do-
cumento mostra que o País investe anu-
almente por aluno 3,5 mil dólares, consi-
LUCAS MARTINS @LUCASPORTO01

derando todos os investimentos públicos


na educação, divididos pela quantidade de
matrículas do ensino fundamental até o
médio. Os especialistas são unânimes nes-
te ponto: não há mágica possível com um
investimento tão baixo. Se deseja melho-
rar a qualidade de ensino, será preciso apli-
A repressão aos estudantes marcou a aprovação do projeto paulista de escolas cívico-militares car mais recursos na educação pública. •

14 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
CA PA

Desta linha de
montagem sairão
Pazzuelos, não
Einsteins

Escola não
E
ducação e repressão
não combinam. As
cenas de violência da
Polícia Militar con-
tra estudantes que

é quartel
protestavam duran-
te a aprovação da lei
instituindo o programa de escolas mili-
tarizadas no estado de São Paulo revelam
um mau começo e um fim preocupante
para essa iniciativa. Policiais espancan-
do e prendendo jovens em pleno exercí-
CUMPRIR ORDENS, OBEDECER DE
T O N I N H O TAVA R E S /A G . B R A S Í L I A

cio do direito de manifestar sua opinião


FORMA CEGA, VAI NA CONTRAMÃO DAS é algo intolerável em qualquer tempo ou
lugar, muito menos numa Casa de Leis –
EXIGÊNCIAS DA VIDA MODERNA e jamais no ambiente educacional.
A lei, proposta pelo governador Tarcí-
por CESAR CALLEGARI E CLAR A CECCHINI*
sio de Freitas, foi aprovada pela Assem-
bleia Legislativa em 21 de maio. Prevê
a presença de policiais militares da re-

C A R TAC A P I TA L — 5 D E J U N H O D E 2 0 24 15
CA PA

serva em escolas públicas para cuidar de litar a vida. O que muitos não se dão con-
temas relacionados à disciplina, organi- ta é que a presença de agentes policiais na
zação, segurança e de programas extra- organização escolar contamina as bases
curriculares, sobretudo aqueles voltados do ambiente educacional com outro tipo
ao civismo e aos valores da família tradi- de cultura, com outros valores, na con-
cional e da pátria. Dados levantados pela tramão de tudo o que se deseja e se espe-
RePME, a Rede Nacional de Pesquisa so- ra de uma educação emancipatória para
bre Militarização na Educação, em coo- a cidadania contemporânea.
peração com outras entidades, mostram Policiais são treinados para a conten-
que no Brasil existem cerca de 834 esco- ção e para a repressão. São o braço do Es-
las estaduais e municipais funcionando tado para o uso da força. Sua visão de or-
nesse modelo que ganhou um grande im- ganização é a tropa, onde não se admite
pulso no governo Jair Bolsonaro com a a divergência e se preconiza a obediência
instituição do Pecim, o programa de es- cega no cumprimento de ordens. Escolas
colas cívico-militares. Com o início do e seus profissionais, ao contrário, exis-
governo Lula, o programa foi acertada- tem para expandir horizontes, propor-
mente descontinuado. cionar experimentações, estimular ques-
Ainda falta uma avaliação mais com- tionamentos, fomentar a criatividade e
pleta sobre os resultados desse tipo de o espírito crítico. A forma de ver o mun-
organização escolar que, aliás, tem si- do aprendida na escola passa a fazer par-
do implementado por alguns estados e te da vida presente e futura dos estudan-
municípios há mais tempo, inclusive por tes e da comunidade. A educação pública
administrações do campo progressista. é um espaço de construção de projeto de
Não há evidências de que a militariza- sociedade, e dar as boas-vindas à polícia
ção do ensino influencie positivamente o denota uma escolha que vai muito além
desempenho dos alunos. Além disso, es- da solução de questões práticas do coti-
se formato não tem amparo legal em ne- diano escolar. É uma escolha retrógrada,
nhum dos dispositivos que regem a edu- não apenas no campo dos valores, e abso-
cação brasileira. lutamente anacrônica em relação ao que
os estudantes encontrarão na sua traje-

E
mbora haja um amplo con- tória cidadã e na sua vida profissional.
senso contra o modelo cívi- Além de ser incompatível à aspiração
co-militar entre educado- de uma educação para a cidadania, a de-
res e especialistas que es- fesa da visão militar nas escolas pelo ar-
tudam o tema, é espanto- gumento da preparação para o mundo
so que a ideia goze da simpatia de mui- do trabalho é insustentável. As discus-
tas famílias e até de alguns professores. sões atuais sobre cultura organizacio-
Espantoso, mas compreensível: com di- nal e competências profissionais ques-
ficuldades de assegurar um adequado su- tionam a própria noção de eficiência co-
porte educacional doméstico e diante de mo regra máxima, bem como a estrutu-
um cenário cada vez mais grave de vio- ra mecanicista das relações de trabalho
lência e desinformação, alguns pais e res-
ponsáveis acreditam que a escola precisa e das organizações. Com todo o avanço
ser mais rigorosa e “colocar os meninos tecnológico, o lugar do trabalho huma-
na linha”. Da mesma forma, alguns pro-
BOAS ESCOLAS no está em transformação. Mas é sabido
fessores, obrigados a lecionar para clas- FORMAM REBELDES que para o profissional de hoje e do futu-
ses superlotadas e sem condições míni- COM CAUSA. ro, não basta seguir o manual, cumprir
mas para a realização de seu trabalho, E ISSO É BOM ordens, obedecer. É preciso questionar
acreditam que um regime disciplinar o status quo e criar novas formas de tra-
mais rígido e punitivo lhes poderia faci- balhar – nas organizações públicas e pri-

16 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Aulas de Artes e Ciências são mais entusiasmo em aprender. Assim, a busca
eficazes para introjetar valores como
do aprimoramento pessoal ganha sen-
cooperação, limites e criatividades
tido. A disciplina pela adesão conscien-
te, e não pelo medo. Escolas mais segu-
brevivência neste período de transição ras são aquelas onde impera a gestão de-
tecnológica. Algumas organizações per- mocrática e participativa, permeável ao
ceberam que, para construir o novo, pre- contexto e às questões reais da comuni-
cisam de um ambiente que acolha o não dade. Com liberdade e responsabilidade
saber, a dúvida e crie dinâmicas de cola- na manifestação de ideias, crenças, ar-
boração efetiva na diversidade – a antí- gumentos, corpos e sentimentos.
tese da visão militar.

U
Urgência ainda maior é a revisão m ambiente de aprendi-
das atuais bases de produção e consu- zado ditado pelos valores
mo, que levaram a humanidade à situa- do militarismo pode ter
ção calamitosa de destruição do plane- consequências nefastas
ta. Todas as gerações, as vivas e as fu- sobre a forma como ca-
turas, lidarão com as consequências de da estudante estabelece sua relação com
um modelo exploratório, nocivo para o aprendizado ao longo da vida. O cami-
natureza e para os indivíduos. Nos pró- nho é outro. Professores de Ciências e de
ximos anos, será necessário fortalecer Matemática forjam a curiosidade, o pen-
uma forma mais solidária de viver jun- samento analítico, e ensinam que a dú-
tos, defender os direitos humanos e lu- vida e o erro fazem parte da construção
tar contra a degradação ambiental. Se- do conhecimento. Nas aulas de artes e
rão necessários novos hábitos, novos de- de educação física se desenvolvem as
sejos e novos parâmetros de desenvolvi- potências criativas, de cooperação, bem
mento. Uma reinvenção completa da so- como as noções de limites e possibilida-
ciedade, para a qual são indispensáveis des individuais e coletivas. É nas aulas de
a imaginação e a energia da juventude. Sociologia, História, Filosofia, Geografia
Portanto, é absurdo permitir que a edu- e Literatura que professores – e não sol-
cação se molde à lógica de uma institui- dados – ajudam a formar o pensamento
ção fundamentada na existência da vio- crítico e a consciência sobre sociedade,
lência e do conflito. Cooperação, visão país, nação e pátria. Nesse conjunto ar-
sistêmica e compromisso coletivo não se ticulado, estão as oportunidades de de-
prestam a palavras de ordem, precisam senvolvimento das habilidades necessá-
ser vivenciados genuinamente para se- rias ao presente e ao futuro.
rem incorporados à forma de viver. Vi- Enfim, escola é, e deve continuar a ser,
venciados desde a escola. um campo de liberdade onde professores
Disciplina e segurança não depen- e seus alunos não podem ser tratados co-
dem de hierarquia e obediência. Não mo tropa marchando em ordem unida.
é assim. Reduzir a disciplina escolar à Boas escolas formam rebeldes com cau-
visão militarista tira dos estudantes a sa. E isso é bom. •
oportunidade de desenvolver seu ver-
vadas. Até mesmo empresas tradicionais dadeiro sentido. É na interação entre as
TON Y OLIV EIR A /AG. BR ASÍLIA
J OS É PAU LO L ACER DA /CNI E

*Cesar Callegari é sociólogo. Foi secretário


investem recursos e energia para incor- crianças e jovens, e deles com seus pro- de Educação Básica do MEC (governo Dilma),
porar nas suas culturas a abertura ao er- fessores e com a comunidade, que se secretário da Educação da Cidade
ro, a segurança psicológica, a vulnerabili- constrói o clima de segurança e respei- de São Paulo (gestão Haddad) e integrante
dade e a empatia. Menos hierarquia, me- to coletivo – e não pela repressão. Pro- do Conselho Nacional de Educação. Clara
Cecchini é especialista em cultura
nos comando e controle, mais ousadia e fessores bem-preparados e em condi- e aprendizagem organizacional. Coautora do
criatividade. Não porque é bom ou boni- ções de trabalho adequadas são capa- livro Aprendiz Ágil (Arquipélago Editorial,
to, mas porque é essencial para a sua so- zes de encantar seus alunos, fomentar o 2020) e fundadora do Clube da Escrita CC.

C A R TAC A P I TA L — 5 D E J U N H O D E 2 0 24 17
Seu País

Esqueleto no litoral
ENERGIA Sob críticas de ambientalistas, o governo planeja a
conclusão da usina nuclear de Angra 3, obra iniciada pela ditadura
P O R M AU R Í C I O T H U S WO H L

E
m 1984, quando as expres- promete o governo. Em 24 de maio, a Ele- documentação seguirá para a Empresa
sões mudanças climáticas e tronuclear encerrou a consulta pública de Pesquisa Energética e passará pela
aquecimento global ainda prévia ao lançamento do edital de con- homologação do Tribunal de Contas da
não faziam parte do léxico clusão da obra, ideia abortada em 2015 União e do Conselho Nacional de Política
dos ambientalistas, quase por interferência da Operação Lava Jato. Energética. “Esperamos que isso ocor-
ninguém sabia onde raios ficava ra até setembro deste ano. Aí, teremos o
Chernobyl, mas os protestos contra as Embora o ministro de Minas e Ener- caminho aberto para a licitação pública
usinas nucleares mobilizavam os “avós” gia, Alexandre Silveira, afirme que Bra- ocorrer até o fim do primeiro semestre
de Greta Thunberg, e a ditadura brasilei- sília “ainda não tem posição formada” a de 2025, com a retomada das obras no se-
ra anunciou a construção de Angra 3. respeito da retomada de Angra 3, o pro- gundo semestre”, projeta Raul Lycurgo,
Quarenta anos depois, a terceira e última cesso está em andamento em diferentes presidente da estatal.
SAULO CRUZ/MME

unidade do projeto militar de domínio da setores. Em elaboração pelo BNDES, a A conclusão das obras e a ativação da
tecnologia, não passa de um esqueleto modelagem técnica, financeira e jurí- usina não são consensuais entre os espe-
abandonado em um icônico trecho do li- dica do projeto será concluída até julho, cialistas. “Não sei por que a opção por An-
toral fluminense. Não por muito tempo, segundo a Eletronuclear. Em seguida, a gra 3 se há outras fontes de energia reno-

18 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
TAMBÉM pág. 22
NESTA Proteção. O Brasil segue outras
SEÇÃO nações e impõe sobretaxas a
diversos itens da balança comercial

vável que custam a metade”, afirma Ildo Impasse. Desativar o complexo custaria quase tanto quanto terminar a estrutura e
Sauer, ex-diretor da Petrobras e professor colocar os reatores em funcionamento. O projeto consumiu até agora 8,5 bilhões de reais
da USP. A conta é mesmo salgada. Apenas
a manutenção da usina como está, para-
da e com 65% das obras terminadas, sub-
traiu até o momento 8,5 bilhões de reais
aos cofres públicos. A projeção dos cus-
tos para concluí-la e colocar o reator em
funcionamento em 2030, como deseja o
governo, varia de 15 bilhões a 20 bilhões
de reais. A usina tem capacidade instala-
da para gerar anualmente 12 milhões de
megawatts-hora, suficientes para abaste-
cer 5 milhões de residências. Parece ra-
zoável, mas o ponto, como lembra Sauer,
é a existência de alternativas melhores e
mais baratas. “Houve avanço tecnológi-
co. Soluções de energia eólica e fotovoltai-
ca são uma alternativa de geração de ele-
tricidade que produz tanta energia quan-
to Angra 3, com benefício energético até
um pouco maior, e vão custar a metade.”
Um dos pioneiros da discussão nuclear
no Brasil nos anos 1970 e hoje contrário à
retomada de Angra 3, Sauer aponta dois
outros fatores. Um deles é a própria tec-
nologia a ser utilizada. “Trata-se de um

C A R TAC A P I TA L — 5 D E J U N H O D E 2 0 24 19
Seu País

Não. Como nos anos 1970, os jovens lificação, treinamento de mão de obra e Reis há décadas, os defensores da obra
rejeitam a operação de usinas preservação dessa capacitação, gerando pegam carona no discurso de transição
nucleares, em desuso em vários países
benefícios para a sociedade, em termos energética. “Agora inventaram que ener-
de pesquisas e desenvolvimento na me- gia nuclear é limpa. Como pode ser limpa
dicina, na agricultura, e, acima de tudo, uma forma de energia que gera um rejei-
projeto de concepção que era muito avan- na produção de radioisótopos.” to que precisa ser cuidado por gerações

T O M A Z S I LVA /A B R , R I C A R D O B O T E L H O / M M E E I S T O C K P H O T O
çado há 50 anos”, resume. Atualmente, e gerações? Para além do risco nuclear,
ressalta, as novas usinas têm outras solu- O terceiro ponto apontado por Sauer é se coloca uma questão ética. Que direito
ções, sobretudo em termos de segurança. o que mais preocupa os ambientalistas. temos de deixar para as gerações futuras
“Busca-se agora aquelas que não depen- “Angra 3, assim como as outras, vai dei- a responsabilidade de cuidar de um lixo
dem de bombas elétricas para resfriar o xar como herança material radioativo e nuclear por centenas de anos?”.
reator, o problema em Fukushima”. O en- elementos irradiados que exigirão cui- Dirigente do Grupo Ambientalista da
genheiro lamenta que, do ponto de vista dados. Se houver reprocessamento, es- Bahia e integrante da Articulação Anti-
tecnológico, o País pouco vai aprender a tarão neutralizados em três séculos. Se nuclear Brasileira, Renato Cunha lembra
construir, montar e operar um novo rea- não houver, em dois milênios”, afirma o que esse tipo de energia envolve muitos
tor, além do que se aprendeu com Angra acadêmico, com base em cálculos sobre a riscos: “Há radiação no funcionamento
1 e Angra 2. “É melhor montar o Reator meia-vida de cada elemento. Para Sylvia da cadeia nuclear como um todo, que co-
Multipropósito Brasileiro, projeto da Chada, integrante da coordenação cole- meça na exploração do urânio, vai para
Marinha em Iperó, cujo investimento giada da Sociedade Angrense de Prote- a geração de energia nas usinas e depois
está na ordem de 1,5 bilhão a 2 bilhões ção Ecológica, entidade que acompanha vira o lixo atômico resultante dessa pro-
de reais. Traria ganhos enormes de qua- a questão nuclear na região de Angra dos dução”. Nem o Brasil, nem o mundo, afir-

20 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
ma, precisam correr o risco. “A geração Para especialistas, dade que energia nuclear é energia lim-
de energia nuclear deve ser abandonada pa e que para o Rio ela é importantíssi-
o mais rápido possível para termos uma
trata-se de um ma porque significa desenvolvimento
transição energética confiável e justa, projeto ultrapassado com retomada de emprego para o nos-
que atenda aos interesses da população.” e cercado de riscos so estado”, defende o deputado federal
A proposta ao governo da Articulação Reimont. O petista rejeita, porém, a in-
Antinuclear, acrescenta Cunha, é desati- clusão de um sócio privado na gestão da
var de vez Angra 3 e reavaliar a manuten- usina, possibilidade prevista nos estu-
ção das duas usinas em funcionamento. ço da geração de energia nuclear e da se- dos em elaboração pelo BNDES. “Ener-
“E também não viabilizar mais a mine- gurança energética do País. “A constru- gia é estratégico, portanto, quanto mais
ração de urânio prevista. A geração re- ção da usina pode gerar 9 mil empregos ela estiver na mão do Estado, melhor.
novável das fontes eólica e solar deve ser diretos e indiretos e estimular investi- Energia, assim como a água ou a terra,
incentivada, com todos os cuidados am- mentos nos municípios da região de An- não pode ser vendida, tem de ser parti-
bientais, para minimizar a emissão de gra dos Reis”, diz o texto. Presidente da lhada. O Estado tem a responsabilida-
gases de efeito estufa.” Segundo Chada, Frente Parlamentar Nuclear, o deputa- de de fazer com que a energia chegue à
retomar Angra 3 é insistir em um erro do do federal Júlio Lopes, do PP, afirma ser casa dos cidadãos.”
passado, “um erro que custou bilhões à “um contrassenso” não retomar as obras:
sociedade. E que vai continuar a sangrar “A conclusão da usina gira em torno de 20 Segundo o BNDES, a modelagem téc-
recursos públicos. Hoje, tanto retomar bilhões de reais e o investimento para de- nica, financeira e jurídica do projeto não
Angra 3 quanto abandonar a obra repre- sativá-la seria de 15 bilhões”. prevê a entrada de um novo sócio. “O mo-
senta um gasto muito grande de dinheiro Liderados por Lopes, deputados e delo conceitual aprovado prevê um con-
que poderia ser direcionado para o inves- senadores do Rio de Janeiro, em sua trato de EPC para a conclusão das obras
timento em outras formas de geração de maioria de oposição ao governo fede- de implantação da usina e a captação de
energia que realmente caminhem em di- ral, têm procurado o ministro Silveira recursos por meio de novos financia-
reção a uma transição energética.” para defender a conclusão de Angra 3. mentos bancários e emissão de títulos
Há, porém, os entusiastas da constru- O apoio à retomada das obras vem até de dívida para fazer frente aos investi-
ção. Em nota, a Federação das Indústrias de parlamentares do PT. “Precisamos mentos remanescentes, bem como repa-
do Rio de Janeiro afirma que a conclu- avançar na construção de Angra 3, com- gar as dívidas preexistentes”. O passivo
são da usina é fundamental para o avan- preendendo e discutindo com a socie- existente em Angra 3, informa o banco de
investimento, “será quitado por meio da
captação de novos recursos, os quais se-
rão amortizados após a entrada da usi-
na em operação comercial”. O BNDES
acrescenta que a Lei 14.120, de 2021, de-
fine que “o preço da energia a ser comer-
cializada pela usina deverá considerar a
viabilidade econômico-financeira do
empreendimento e seu financiamento
em condições de mercado”.
No governo, as maiores resistências
partem da Casa Civil e do Ministério do
Meio Ambiente. Em conversa com jorna-
listas no fim de abril, Silveira afirmou que
o governo só tomará uma decisão após a
conclusão dos estudos do BNDES. “Ne-
nhuma decisão será motivo de comemo-
ração porque fazer tem um custo elevado
e não fazer também. O assunto deverá ser
Visões. O ministro Silveira fala em cautela. Lycurgo, da Eletronuclear, tem data: 2030 pautado na próxima reunião do CNPE.” •

C A R TAC A P I TA L — 5 D E J U N H O D E 2 0 24 21
Seu País

De olho no quintal
tinada a proteger empresas sediadas no
Brasil. Sob o carimbo de “política indus-
trial”, a medida foi baixada em dezem-
bro de 2023 em favor da produção de car-
POLÍTICA INDUSTRIAL Como outros países, ros elétricos, turbinas de usinas eólicas
o Brasil avança nas medidas de proteção e painéis solares de geração de energia.
Satanizada pelos liberais do “mercado”
às empresas aqui instaladas e da mídia, a política industrial é objeto
de uma “onda” global liderada pelos paí-
POR ANDRÉ BARROCAL ses mais ricos e governos direitistas. É o
que diz o Fundo Monetário Internacio-
nal. A “onda” tem provocado tensões en-

A
tre os Estados Unidos e a Europa, de um
s importações de peque- dência era confirmá-la. Coube ao presi- lado, e a China, do outro, novela cujos ca-
no valor por pessoas físi- dente da Câmara, Arthur Lira, abraçar o pítulos recentes têm em primeiro plano
cas cresceram exponen- lobby e bancar a tributação, mesmo após os carros elétricos e o aço.
cialmente em dez anos. ter se sentado com Lula e ouvido a dispo-
De 800 milhões de dóla- sição do mandatário de vetá-la. Nos dias Essas duas áreas são alvos de inicia-
res em 2013, menos de 1% das compras anteriores, Lira citava uma pesquisa se- tivas de política industrial no governo Lu-
externas totais, para 13 bilhões em 2022, gundo a qual os beneficiados pela isenção la, e a próxima será a de informática, diz
ou 4,4%, nível similar ao acumulado de são as classes A e B. E decidira: deputado Uallace Moreira, secretário de Desenvol-
janeiro a novembro de 2023, conforme o ausente do plenário em 27 e 28 de maio vimento Industrial, Inovação, Comércio
Banco Central. O motivo foi a populari- teria corte salarial. e Serviços, do Ministério do Desenvolvi-
zação de sites chineses de comércio co- A taxação das remessas pegou carona mento. Vem aí, ainda neste ano, um rede-
mo Aliexpress, Shein e Shopee, no em- numa proposta do governo também des- senho amplo do Padis, de apoio às fábricas
balo da isenção de impostos nas remes- de semicondutores. O programa nasceu
sas internacionais de até 50 dólares. Em em 2007, segunda gestão Lula, com in-
janeiro, as confederações da indústria, centivo a pesquisas e inovações. Pelas re-
CNI, e do comércio, CNC, foram ao Su- gras atuais, acaba em 2026. Paralelamen-
premo Tribunal Federal tentar derrubar te a sua reformulação e perenização, o go-
a isenção, sob a alegação de que os dois verno negocia a aprovação de uma nova
setores sofrem concorrência desleal. O Lei de Informática, que expira em 2029.
governo havia ensaiado propor a taxação “Fora da China, o Brasil é um dos maio-
das remessas em 2023, mas a reação ne- res ecossistemas da indústria de eletro-
gativa na opinião pública, estimulada pe- eletrônicos do mundo”, afirma Moreira.
lo bolsonarismo, levou Lula a não aderir Ao dar incentivos, o governo espera que
aos planos da equipe econômica. A dis- o empresariado invista, gere produção e
posição atual do presidente era vetar a empregos internamente. No caso do apoio
taxação, caso o Congresso a aprovasse. à siderurgia e à fabricação de carros elé-
O lobby patronal foi tão forte que na tricos e ao “esverdeamento” das monta-
antevéspera do feriado os deputados doras tradicionais, deu certo. As fabrican-
aprovaram 20% de imposto de importa- tes de veículos anunciaram mais de 100
ção sobre as remessas, sem dar bola para bilhões de reais em investimentos, favo-
eventuais impactos na classe política nas recidas pelo Mover, programa criado em
eleições municipais de outubro. Um dia dezembro e aprovado pelos deputados na
depois, o da conclusão desta reportagem, Dweck: um eventual gasto maior nas compras antevéspera do feriado. Os parlamentares
o Senado examinaria a taxação e a ten- governamentais é compensado pela arrecadação aproveitaram o ensejo para taxar as re-

22 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Após a taxação
dos importados, as
siderúrgicas anunciaram
novos investimentos

messas internacionais de até 50 dólares. de vários produtos. Na primeira vez, as O próximo setor
Com o “Mover, o governo voltará a co- alíquotas de 10% a 14% passaram para en-
a merecer uma
ISTOCKPHOTO E ADALBERTO MARQUES/MGI

brar impostos sobre carros elétricos im- tre 12% e 16%. Na segunda, subiram de um
portados. O tributo de 35%, extinto em teto de 12% para 25%. Como resposta, em
política de
2015, será retomado de forma gradual 20 de maio as siderúrgicas anunciaram, incentivo é o
até 2026. Idem para automóveis “híbri- em Brasília, investimentos de 100 bilhões da informática
dos” (funcionam com eletricidade e com- de reais até 2028. A ociosidade estava al-
bustível) e caminhões elétricos. Com o di- ta, cerca de 37%, por conta da concorrên-
nheiro da taxação, bolada estimada em 19 cia dos importados. As medidas para side-
bilhões de reais, o governo financiará o rúrgicas e montadoras, diz Moreira, “são
“esverdeamento” das montadoras. No ca- instrumentos de garantia de demanda”,
so da siderurgia, o governo aumentou, em o que explica os investimentos.
fevereiro e abril, o imposto de importação A última iniciativa do governo em favor

C A R TAC A P I TA L — 5 D E J U N H O D E 2 0 24 23
Seu País

da produção nacional beneficia fabrican-


tes de ônibus, trens e metrôs. Estes pode-
rão ter preços até 10% acima da concor-
rência estrangeira e, ainda assim, vence-
rem licitações. Foi o que aprovou, em 23
de maio, em sua primeira reunião, a Co-
missão Interministerial de Compras Pú-
blicas. A comissão nasceu em janeiro, com
o programa Nova Indústria Brasil, símbo-
lo da política industrial lulista. Caberá a
ela definir como usar o poder de compras
federais para incentivar empresas insta-
ladas no País. Essas compras equivalem
a 20% do PIB, diz a ministra da Gestão e
da Inovação em Serviços Públicos, Esther
Dweck, “volume gigantesco de recursos”,
segundo ela. “Esse instrumento é essen-
cial para o desenvolvimento produtivo e
tecnológico, o mundo inteiro usa”, afirma
a ministra. Os EUA, compara, valem-se de
tal expediente desde 1933, graças a uma
lei batizada de Buy American Act.

A chamada margem de preferência de


10% nas licitações tem como base uma lei Os deputados pegaram carona na aprovação do incentivo às montadoras instaladas no País para
de 2021, a 14.133. Era até então, aliás, de taxar o comércio online. O presidente Lula promete vetar a cobrança, fonte de desgaste popular

25%, por obra de Lula no último ano do


segundo mandato. No caso de quem in-
vestiu em inovação a partir de pesquisas
no Brasil, serão mais 10% de preferência,
ou seja, a empresa poderá cobrar nas lici-
tações até 20% acima do preço dos com-
petidores. Aos liberais que atacam inicia-
tivas do gênero e falam em falta de ver-
ba federal para bancá-las, Dweck expli-
ca: cálculos de sua equipe mostram que
pagar mais caro numa licitação será com-
pensado por tributos cobrados nos ne-
gócios que as empresas favorecidas pela
margem de preferência irão gerar. “Va-
mos ter ganho fiscal, mas o objetivo é fo-
mentar emprego e renda no Brasil. A in-
dústria garante emprego de qualidade, a
nossa desindustrialização foi precoce.”
“Política industrial” está na moda no
mundo, constata o Fundo Monetário In-
ternacional. Em 2023, o FMI criou um
observatório para coletar informações a
respeito. Identificou 2.580 medidas em

24 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Lucchesi: não podemos
mais nos submeter à
“hegemonia financeira estéril”

chineses nos EUA serão tributados, nas


contas da Casa Branca. A China reagiu
e mostrou-se pronta para aumentar de
15% para 25% o imposto sobre os carros
elétricos norte-americanos e europeus.
No último caso, é uma ameaça preventi-
va. Em setembro de 2023, a União Euro-
peia abriu uma investigação sobre sub-
sídios chineses a veículos elétricos. Em
março, o bloco informou ter provas dos
subsídios e começou a registrar todas as
vendas de carros chineses em sua juris-
dição, gesto que coloca essas compras ao
alcance de retaliações retroativas.

“Estamos num momento em que ca-


75 países responsáveis por 94% do PIB samos preocupações sobre o uso abran- da vez mais a agenda protecionista é cla-
global. Divulgou neste ano um estudo gente de políticas e práticas não merca- ra. Acabou essa lógica de OMC (Organi-
com as conclusões. Intitula-se O Retor- dológicas pela China”, salienta o texto. Os zação Mundial do Comércio)”, diz Rafael
no da Política Industrial em Dados. Há signatários se declaram dispostos a “res- Lucchesi, diretor de Desenvolvimento In-
uma “recente onda” de política indus- ponder a práticas nocivas”. “Encorajamos dustrial da CNI. Palavras suas na reunião
trial e “governos mais inclinados para esforços” internacionais de mapear e mo- de 23 de maio da Comissão Interministe-
a direita” têm tendência maior a adotar nitorar “dados sobre política industrial”, rial de Compras Públicas. Para Lucchesi,
medidas, descreve o documento. O fenô- prossegue o documento, e “apoiamos” es- o governo acerta ao adotar medidas de po-
meno possui três explicações: baixo cres- tudos sobre o “impacto macroeconômico lítica industrial. O período em que o País
cimento econômico, transição energéti- dos subsídios e outras medidas de políti- mais enriqueceu, afirmou, teve a indús-
ca e corrida tecnológica. À frente, as eco- ca industrial e comercial”. tria de locomotiva, dos anos 1930 a 1980.
nomias mais ricas. EUA, China e União Nos últimos dias, o governo Biden Foi um erro, prosseguiu, abraçar o Con-
Europeia são o berço de 48% das inicia- anunciou várias medidas protecionistas senso de Washington na década de 1990.
tivas. Nas economias avançadas, as me- contra Pequim. A partir de meados de ju- O “consenso” pregava uma visão li-
M A RDÔNIO VIEIR A /CNI, A RQUIVO/AG. CÂ M A R A E BY D GLOBA L

didas mais comuns são subsídios a pro- nho, voltam a pagar imposto de importa- beral-financeira da economia e, para
dutores locais, preferências em compras ção centenas de produtos chineses, como Lucchesi, empobreceu o País, embora li-
públicas, apoio a exportações, barreiras motores, equipamentos médicos, mochi- berais e jornais façam parecer o contrário.
às importações e controle de investi- las, cadeiras para crianças e até caran- “Construímos uma lógica de hegemonia
mentos em áreas estratégicas. Nas me- guejo. A taxação de carros elétricos vai financeira estéril”, declarou. O Brasil es-
nos, subsídios, barreiras e preferências. quadruplicar, para 100%. Ao menos 18 bi- tá preso, segundo ele, “nas mentalidades e
Os ministros da Fazenda e presidentes lhões de dólares em vendas de produtos na hegemonia que muitas vezes grupos de
dos Bancos Centrais dos países do G7, gru- interesse de super-ricos querem manter
po das sete maiores economias do mundo de relação estéril de produção de riqueza
(Alemanha, Canadá, EUA, França, Itália, no Brasil, que não ajuda a construir o fu-
Japão e Reino Unido), reuniram-se de 23 turo do País. Temos que ter coragem de
a 24 de maio na Itália e, na declaração fi-
Há uma disputa colocar esse debate de forma mais públi-
nal, citaram a “China” e “política indus- crescente dos ca (...) e de desconectar de um conjunto de
trial” logo no terceiro parágrafo de um to- EUA e Europa ideias que deram fragorosamente errado”.
tal de 47. Sinal das tensões no ar. “Expres- contra a China Não é uma batalha fácil. •

C A R TAC A P I TA L — 5 D E J U N H O D E 2 0 24 25
Seu País

Iniciativa pontual?
la Assembleia Legislativa, suprimir até
30% do orçamento da Fapes, a principal
agência de fomento à pesquisa no estado.
Diante deste cenário, os pós-doutoran-
SÃO PAULO Estudantes se mobilizam pela dos contemplados no edital da USP tra-
renovação de programa de pós-doutorado balham com insegurança, sem saber se
suas bolsas serão renovadas para o pró-
para pesquisadores negros na USP ximo período, mesmo que as pesquisas
ainda não estejam concluídas.
POR MARIANA SER AFINI
“Sabemos que, quando há qualquer
instabilidade no financiamento das
pesquisas, os primeiros a ser cortados

Q
são os mais vulneráveis. As políticas
uando entrei na USP centemente, ele tentou obrigar as três de inclusão e reparação são sempre as
em 1972, nós, estudan- maiores universidades públicas paulis- primeiras a serem canceladas”, comen-
tes negros, não enchía- tas – USP, Unesp e Unicamp – a repartir ta a cientista política Danielle Pereira
mos uma Kombi. Ago- suas receitas, fixadas em 9,57% da arre- de Araújo, pesquisadora do IEA-USP e
ra, ver um auditório lo- cadação do ICMS pela Constituição pau- uma das 50 pessoas contempladas pe-
tado só de mestres e lista, com outras três faculdades. Após las bolsas da PRIP. Ela conta que o pro-
doutores negros é um escândalo, uma sa- a péssima repercussão da iniciativa, re- grama é fruto da intensa mobilização
tisfação imensa”, afirmou a filósofa Sueli cuou na proposta. Manteve, porém, uma de estudantes e professores negros da
Carneiro, durante encontro realizado brecha na proposta de lei orçamentária USP. “A reserva de vagas no contexto
pelos alunos do Programa de Pós-Dou- para 2025 que pode, se aprovada pe- docente é uma pauta muito cara para
torado para Pesquisadores Negros da
USP. Defendeu, porém, a adoção de polí-
ticas afirmativas para mudar o perfil do
corpo docente, composto majoritaria-
mente por pessoas brancas. Sem garan-
tir reais oportunidades de crescimento
na carreira, emenda Carneiro, a equida-
de jamais será alcançada.
O debate na sede do Instituto de Es-
tudos Avançados da USP, na segunda-
-feira 27, foi organizado por um coleti-
vo de bolsistas da Pró-Reitoria de Inclu-
são e Pertencimento (PRIP), a primei-
ra turma de um edital de pós-doutora-
do reservado exclusivamente para pes-
ISTOCKPHOTO E MARIANA SERAFINI

quisadores negros. Primeira e talvez a


única, temem os estudantes, pois não há
qualquer sinalização de que o progra-
ma, previsto para acabar em junho, se-
rá renovado pela universidade.
A educação e a ciência têm sido al-
vos constantes do governador Tarcísio
de Freitas, outrora retratado pela mídia
como um “bolsonarista moderado”. Re- Alerta. A população negra segue subrepresentada no corpo docente, observa Carneiro

26 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Lançado em 2023,
o edital prevê a
oferta de bolsas
somente até junho

nós, e pouco explorada. Unimos a isso a


nossa batalha pela renovação das bolsas
de quem já está no programa, além de
pleitearmos a institucionalização des-
se edital. Ou seja, queremos que ele vi-
re de fato uma política de reparação, e
não uma iniciativa pontual”, explica.

No primeiro edital, aberto em 2023,


mais de mil doutores negros disputa-
ram uma das 50 vagas oferecidas. Pa-
ra Araújo, esse número evidencia que a
demanda por espaços como este é altís-
sima, mais um motivo para defender a
continuidade do programa, que abrange
todas as áreas do conhecimento. Pesqui-
sadora mais velha da turma, a advoga-
da Sueli Aparecida Sampaio, de 62 anos,
lembra com orgulho de quando ingres-
sou na Faculdade de Direito da USP, em
1989. Foi a primeira pessoa da família a
sentar num banco universitário. “Para
meus pais e meus irmãos, foi uma ale-
gria imensa. Ao mesmo tempo, na mi-
nha turma de 450 alunos, eu era a úni-
ca negra, até os professores me olha-
vam com estranhamento. Teve gente
que passou os cinco anos da graduação
sem nunca me dirigir a palavra. Hoje, is-
so está mudando, mas ainda temos um
longo caminho pela frente.”
Filha de operários de São Bernardo
do Campo, no ABC Paulista, Sampaio
precisou se desdobrar entre trabalho,
estágio e faculdade. Mesmo sendo uma
universidade pública, o custo de per-
manência era alto, a começar pelos ca-
Demanda. Mais de mil candidatos disputaram as 50 vagas oferecidas no ano passado ríssimos manuais de Direito. “A cons-

C A R TAC A P I TA L — 5 D E J U N H O D E 2 0 24 27
Seu País

trução da minha carreira sempre foi di- Os bolsistas temem da duvidam na nossa capacidade. Mes-
fícil e estar hoje entre as pessoas con- mo quando estamos na universidade co-
templadas por essa bolsa de pós-douto-
a interrupção do mo mestres ou doutores, há quem vá nos
rado, para avançar na minha pesquisa, programa após tratar como a faxineira”, lamenta. Tra-
é uma grande felicidade.” o governador tentar ta-se de um preconceito enraizado na
A sensação de solidão na trajetória aca- se apropriar das sociedade brasileira, predisposta a ver
dêmica é algo que atinge grande parte de receitas da Fapesp pessoas negras sempre em “lugares de
pesquisadores negros. “Quanto mais de- subalternidade”, observa. “Ver pessoas
graus a gente sobe, menos encontramos negras no topo da carreira acadêmica
nossos pares, é um caminho bastante so- ainda é uma exceção. Por isso, estamos
litário”, lamenta a farmacêutica Michelle lutando para este edital virar uma polí-
Barão de Aguiar. “Se os negros são mais se desdobrar entre trabalho, doutora- tica pública. Nós queremos ser a regra, e
de 50% da sociedade brasileira, esse qua- do, maternidade e cuidados domésti- não a exceção. Isso só será possível com
dro precisa se repetir também na uni- cos, ela finalmente alcançou um pata- ações afirmativas.”
versidade, deveríamos ser mais de 50% mar estável para desenvolver sua pes-
dos alunos e também dos professores.” quisa sobre fotoproteção para peles ne- Foi durante a residência médica no
A pesquisadora relata que as dificul- gras. “Hoje eu trabalho num laborató- Hospital Universitário da USP que a neu-
dades para mulheres e mães negras são rio com mais de 20 anos de tradição, e rocirurgiã Diana Santana se atentou pa-
ainda maiores. “Existe uma estrutura ninguém nunca tinha pensado em estu- ra um incômodo fenômeno: as pessoas
pronta para receber os homens, princi- dar a pele negra. É um estudo inédito e negras costumavam chegar ao aten-
palmente os homens brancos. Quere- tem pouquíssima literatura científica.” dimento médico de alta complexidade
mos sair do lugar de ser estudados pa- Segundo a antropóloga Adriana de quando já estão com doenças mais agra-
ra o lugar de quem contribui para o de- Oliveira Silva, a conquista de diplomas vadas. “Notei que muitas vezes os pacien-
senvolvimento científico.” Depois de não é o suficiente para garantir o futuro tes negros tinham desfechos piores não
trabalhar na indústria farmacêutica, profissional das pessoas negras. “Mes- apenas pela gravidade da doença, eles já
lecionar em faculdades particulares e mo com uma excelente formação, ain- chegavam com a enfermidade em está-
gio avançado.” No pós-doutorado, ela
pesquisa o impacto do racismo no aten-
dimento de pessoas com aneurismas in-
tracerebrais. “A pesquisa está em anda-
mento, mas já obtive resultados sólidos
e bastante preocupantes.”
Professora da Faculdade de Arquite-
tura e Urbanismo e pró-reitora de Inclu-
são e Pertencimento da USP, Ana Lucia
Duarte Lanna reconhece que não há ga-
rantias de renovação do edital, tampou-
co a possibilidade de ele ser institucio-
nalizado. “Infelizmente, não está previs-
to o que os alunos reivindicam, a trans-
formação dessa iniciativa em um progra-
ma permanente na universidade”, afir-
ma. “Não existe nenhuma linha perma-
nente de financiamento de pós-doutora-
MARIANA SERAFINI

do na USP, isso costuma ser responsabili-


dade das agências de fomento à pesquisa.
Mas isso não significa que a gente não vá
republicar um outro edital nesses mol-
Exemplo. Aguiar pesquisa a fotoproteção da pele negra, negligenciada pela indústria des, ainda está em discussão.” •

28 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
PEDRO SERRANO
Advogado e professor de Direito Constitucional da
PUC de São Paulo, é autor, entre outros, de Autoritarismo
e Golpes na América Latina (Alameda Editorial)

Lawfare contra jornalistas

primeira geração, os quais compreen- gente. Destaque-se, por exemplo, a pos-


► Ao reconhecer que o uso dem os direitos civis e políticos das cha- sibilidade de que um juiz possa deter, por
abusivo de ações judiciais madas liberdades clássicas, negativas ou até 18 meses, um jornalista que venha a,
formais. Tais direitos são caracterizados, supostamente, atingir a dignidade da ju-
compromete a liberdade da ainda de acordo com os teóricos do tema, risdição, negando o fornecimento dos da-
imprensa, o STF rejeita a pela necessidade de uma postura nega- dos da pessoa que lhe serve como fonte de
censura e reforça as bases tiva do Estado, respeitosa às liberdades notícia (“contempt of court”). O relatório
dos indivíduos. Referidos direitos não do Reporters Committee for Freedom of
da democracia brasileira devem ser vistos como mera salvaguar- the Press, veiculado em seu domínio ele-
da individual, na medida em que indisso- trônico, apresenta uma lista de diversos
ciavelmente ligados à cidadania e à dig- jornalistas presos por não fornecerem a

O
Supremo Tribunal Federal re- nidade da pessoa humana, bem como ao identidade das suas fontes ao Judiciário
conheceu, na quarta-feira 22, que podemos chamar de plena participa- ou por terem dirigido críticas à jurisdição.
que o uso abusivo de ações ju- ção na vida da polis. No Brasil, há muito mais tolerância ao
diciais contra jornalistas viola o direito jornalismo crítico e investigativo em re-
constitucional à liberdade da imprensa. Analisando o precedente “Branden- lação à jurisdição do que lá. Por todas es-
A prática, reconhecida como assédio ju- burg v. Ohio, 395 US 444 (1969)”, da Su- sas razões, devemos elogiar a mais recen-
dicial, consiste no ajuizamento simul- prema Corte dos EUA, Cass R. Sunstein te decisão da nossa jurisdição constitu-
tâneo de inúmeras ações sobre os mes- consignou, na obra Why Societies Need cional, a qual vem se somar ao reconhe-
mos fatos em diversas comarcas. A in- Dissent?, que a liberdade de expressão cimento, ocorrido por ocasião da análi-
tensa judicialização visa constranger está diretamente relacionada à própria se da vetusta Lei de Imprensa de 1967, de
a atividade jornalística, dificultando e ideia de democracia. Para o autor, a pro- que a atividade jornalística é “verdadeira
encarecendo a defesa. teção dos dissidentes não visa somen- irmã siamesa da democracia”.
O lawfare contra a atividade jornalísti- te proteger individualmente as pessoas Ali restou consignado, ainda, que a li-
ca vem se tornando corriqueiro no Brasil que professam determinadas ideias, mas berdade de imprensa proíbe a censura,
e, em boa hora, o STF posicionou-se so- também as inúmeras pessoas que se be- isso em nome da dignidade da pessoa hu-
bre o tema. Nosso Judiciário não pode ser neficiam da coragem ou da temeridade mana, mas também em razão das liber-
instrumentalizado em favor da censura. daqueles que discordam. dades constitucionais de manifestação
É direito de todo jornalista professar suas Entretanto, parece haver, no Judiciá- do pensamento, de informação e de ex-
opiniões, assim como é direito da popula- rio norte-americano, maior facilidade em pressão artística, científica, intelectual
ção conhecer os pontos de vista existentes reconhecer os direitos dos dissidentes de e de comunicação. O Supremo também
nos mais diversos temas de interesse pú- extrema-direita, ao passo que a relação reconheceu o relevante papel da impren-
blico. Nossa Constituição, ao dispor sobre com os dissidentes do campo progres- sa na irradiação do pensamento crítico.
a comunicação social, assegurou a mani- sista é marcada por maior rigor no reco- Para além de meros direitos individu-
festação do pensamento, a criação, a ex- nhecimento das liberdades de expressão e almente considerados, estamos diante de
pressão e a informação sob qualquer for- de manifestação do pensamento, como se retaguardas constitucionais umbilical-
ma, processo ou veículo, as quais não so- constata no caso de Julian Assange, fun- mente atreladas ao pacto social e à noção
frerão qualquer restrição. Vedou-se, ex- dador do WikiLeaks acusado de espiona- de democracia. Isto é, ao contrário de sin-
pressamente, toda e qualquer censura. gem por divulgar informações sigilosas. gelos direitos subjetivos, assegurar a livre
Os direitos à liberdade de expressão e Com efeito, é preciso refutar o senso atividade jornalística é tutelar o que há de
B A P T I S TÃ O

de manifestação do pensamento costu- comum de que, nos EUA, a tutela jurídica mais essencial em termos civilizatórios. •
mam ser qualificados como direitos de da liberdade de expressão é mais abran- redacao@cartacapital.com.br

C A R TAC A P I TA L — 5 D E J U N H O D E 2 0 24 29
Seu País

Por água abaixo


RIO GRANDE DO SUL As chuvas também
devastaram o patrimônio histórico e
arruinaram a vida cultural do estado
POR RENÉ RUSCHEL

N
o início dos anos de 1960, o em incontáveis polos de cultura no estado.
gaúcho Jorge Alves dos Um relatório elaborado por um coleti-
Santos montou uma peque- vo de instituições culturais dá uma pis-
na banca de jornal no cen- ta da dimensão do impacto. A tabulação
tro de Porto Alegre. Com o parcial de cerca de 1,7 mil respostas de-
tempo, ampliou a oferta de produtos e volvidas aponta que 99,2% das atividades
passou a também vender livros. Faleceu artísticas no estado foram prejudicadas
em 1977. Num primeiro momento a espo- pelas chuvas. Mais de 91% desses artistas
sa, dona Geraci, assumiu o ponto. Depois, são profissionais, sendo que 82% têm na
os dois filhos, Nara e Fernando, passaram arte e na cultura sua única fonte de ren-
a dividir a tarefa com a mãe. Agora, são os da. Ainda não é possível avaliar com exati- de 2024, seja pago um valor entre 3 mil e
irmãos que administram o negócio fami- dão o montante do prejuízo, mas, segundo 10 mil reais aos trabalhadores da cultu-
liar. Localizado em uma das esquinas de- cálculos da Associação Brasileira dos Pro- ra, em duas parcelas. “Ao pautar essa dis-
fronte ao Mercado Municipal, um dos motores de Eventos, Abrape, as perdas do cussão, esperamos sensibilizar o gover-
pontos mais tradicionais da cidade, a en- setor podem chegar a 8 bilhões de reais. no Lula, que pode editar Medida Provi-
chente destruiu quase tudo, menos a es- sória para fazer esse benefício chegar de
perança e o desejo de recomeçar. “Há al- Para socorrer os artistas gaúchos que forma mais célere aos nossos artistas.”
guns anos enfrentamos a pandemia. Foi perderam o sustento no desastre cli- Segundo a assessoria de comunica-
muito difícil, renegociamos as dívidas e mático, a deputada federal Fernanda ção da Secretaria Estadual da Cultura,
conseguimos nos reerguer. Agora, vamos Melchionna, do PSOL, propôs, na Câma- o desastre climático atingiu cinco insti-
recomeçar outra vez”, afirma Fernando. ra dos Deputados, a criação de um auxílio tuições vinculadas à pasta: o Museu de
A destruição da banca da família San- emergencial. A ideia é que, até dezembro Arte do Rio Grande do Sul, a Casa de Cul-
tos é um pequeno retrato do estrago cau- tura Mario Quintana, o Museu da Comu-
sado pelas chuvas no ambiente cultural do nicação Hipólito José da Costa, o Memo-
Rio Grande do Sul. Por todo o estado, mu- rial do Rio Grande do Sul e o Museu Esta-
seus, teatros, centros culturais e prédios dual do Carvão, em Arroio dos Ratos. Em
históricos tiveram suas instalações inva- Da noite para o dia, meio às chuvas, uma força-tarefa conse-
didas pelas águas. Incontáveis livrarias, milhares de artistas guiu transferir a maior parte do acervo
sebos e editoras de livros perderam boa perderam o emprego. para andares superiores. A recuperação
parte de seu acervo. No bairro Cidade Bai- do mobiliário e dos prédios históricos se-
xa, reduto boêmio de Porto Alegre, cente-
Eles reivindicam um rá iniciada “tão logo seja possível a inspe-
nas de músicos, atores, técnicos e direto- auxílio emergencial ção para apurar os estragos”.
res de espetáculos caíram no desemprego para sobreviver até Francisco Dalcol, diretor-curador do
da noite para o dia – cenário que se repete a retomada do setor Museu de Arte do Rio Grande do Sul, des-

30 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Símbolo da tragédia. O Memorial
do Rio Grande do Sul é um dos museus
inundados pela cheia histórica do Guaíba

Muitos locais estão impossibilitados de


serem acessados, pois a água ainda não
baixou, mas as perdas são grandiosas.”
Ele cita o exemplo da editora LP&M
Pocket, que contabilizou 10 mil livros
arruinados pela água e pela lama. “Ti-
vemos perdas menores do que esperá-
vamos em relação ao estoque (havia 90
mil livros no local), mas perdas consi-
deráveis em relação aos móveis e equi-
pamentos”, diz um comunicado divul-
gado pela empresa. Ao longo de 50 anos
de história, a editora publicou obras de
Luis Fernando Veríssimo, Moacyr Scliar,
Caio Fernando Abreu, Darcy Ribeiro,
Ziraldo, entre outros. Notabilizou-se
ainda por reeditar clássicos da literatu-
ra mundial no formato de livro de bolso,
taca a dedicação dos funcionários da ins- Para a presidente do Conselho Mu- de autores como Balzac, Shakespeare,
tituição, que conseguiram salvar a tempo nicipal de Cultura de Porto Alegre, Ro- Fernando Pessoa e Pablo Neruda. Até
obras de arte de valor inestimável, como zane Dalsasso, o impacto da tragédia é o momento 26 empresas procura-
telas de Di Cavalcanti, Cândido Portinari devastador no meio artístico. “Com even- ram a Câmara Rio-Grandense para re-
e Iberê Camargo. “Só não foi possível re- tos cancelados, espaços públicos e priva- latar danos. “Infelizmente, algumas
mover as pesadas mapotecas, arquivos dos atingidos pelas águas, não há, em cur- não vão se recuperar”, lamenta Ledur.
que guardam desenhos e gravuras. Fica- to prazo, uma solução para a sobrevivên- Na Zona Norte de Porto Alegre, maior
ram suspensas, sujeitas à umidade, mas cia dos nossos artistas”. Por isso, diz ela, polo da indústria gráfica no estado, 45
ainda estão inacessíveis.” o Conselho sugeriu à Secretaria da Cul- empresas ficaram totalmente alagadas.
tura do município a criação de um auxí- José Mazzarolo, vice-presidente do sin-
A Secretaria Estadual da Cultura pre- lio emergencial nos moldes de outro que dicato patronal, diz não ser possível fazer
tende antecipar a liberação de recursos foi editado quando ocorreu a pandemia, um diagnóstico das perdas, pois muitas
para os projetos aprovados pela Lei Paulo o “Edital Giba Giba”, com recursos da Lei empresas “ainda não puderam ser aces-
Gustavo, criada para auxiliar o setor cul- Aldir Blanc. Solicitou ainda o pagamento sadas”, mas cita como exemplo sua pró-
tural na pandemia de Covid-19 – o gover- integral dos editais do Fundo Municipal pria gráfica, na qual todas as máquinas
no federal estendeu os pagamentos até o de Apoio à Produção Artística e Cultural ficaram submersas. A estimativa é de um
CAMIL A DIESEL /SEDAC/GOVRS

fim de 2024. Já foram liberados mais de de Porto Alegre (Fumproarte) realizados prejuízo entre 8 e 10 milhões de reais. “A
7,5 milhões de reais para cerca de 50 pro- em 2023, em caráter de urgência. pandemia”, observa Mazzarolo, “foi mais
postas, mesmo sem a prévia apresentação De acordo com o presidente da Câma- grave em termos sociais e de saúde, uma
dos planos de trabalho. “Desde o início da ra Rio-Grandense do Livro, Maximiliano catástrofe humanitária, mas as chuvas ti-
crise, a secretária Beatriz Araújo tem feito Ledur, o setor foi duramente impactado, veram efeito mais devastador na econo-
reuniões sistemáticas com o Ministério principalmente na Região Metropolita- mia. Não foi só uma parada abrupta. Afe-
da Cultura a fim de criar, propor e alinhar na de Porto Alegre. “Até o momento, não tou maquinário, estoque e toda estrutura
ações que atendam ao setor”, diz a pasta. é possível ter uma ideia do prejuízo total. operacional das companhias.” •

C A R TAC A P I TA L — 5 D E J U N H O D E 2 0 24 31
Economia

Empecilho ao
crescimento
FUNDAMENTALISMO FISCAL A meta de inflação
de 3% ao ano não tem base na economia
e impõe elevados sacrifícios ao País
P O R C A R LO S D R U M M O N D

N
ão bastasse a manipulação porcentual, para 0,25. Há quem considere
escabrosa das projeções de a fala de Campos Neto como uma espécie
inflação elaboradas pelas de senha preparatória de terreno para o
instituições financeiras, Copom alçar novo patamar de juros, mes-
sob supervisão do Banco mo com o IPCA em tendência de baixa.
Central, com ganhos fabulosos para es-
peculadores e rentistas e perdas monu- O irrealismo da meta de inflação aflo-
mentais para as políticas públicas e a rou na manifestação do ministro da Fa-
maioria da população, constata-se agora zenda, Fernando Haddad, na quarta-fei-
que até mesmo a base utilizada para essas ra 22. O ministro reclamou que a meta
manobras, a meta de inflação anual de 3%, de 3% é “exigentíssima” e “inimaginá-
fixada para 2024 e 2025 pelo Comitê de vel”. A queixa de Haddad faz sentido,
Política Monetária, é inexequível, alertam segundo economistas consultados por
economistas. O irrealismo da meta impõe CartaCapital. Os números mostram um
um sacrifício brutal para a economia e a descolamento quase completo entre es-
sociedade, como se verá adiante. sa meta e a realidade econômica, a pon-
A manipulação da Pesquisa Focus, de- to de torná-la quase inexequível e impor
nunciada por Eduardo Moreira, do Insti- ao País um esforço sem fim, leia-se corte
tuto Conhecimento Liberta, consiste na sistemático de investimentos e de gastos.
projeção arbitrária da taxa de inflação pa- O exagero da meta, apesar de pouco co-
ra 8% ao ano entre 2025 e 2028, pelos par- mentado na mídia e entre economistas, é
ticipantes anônimos da Pesquisa Focus,
do Banco Central, sem qualquer base eco-
nômica defensável para isso. O exagero
coincide com o pronunciamento extrao- Em 293 meses, ou
ficial do presidente do BC, Roberto Cam-
pos Neto, em evento da XP em Nova York,
quase 25 anos, o
sobre a tendência de desacelerar o ritmo IPCA ficou abaixo
da diminuição da taxa Selic a cada reunião desse patamar em
do Copom, antes definido em 0,50 ponto apenas 22 ocasiões

32 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
TAMBÉM pág. 36
NESTA Belluzzo. No irreconhecível
SEÇÃO capitalismo de sempre, a
financeirização é onipresente

Descompasso. Em vez de tentar acalmar ples. “Considerado o período de dezembro


o mercado, Campos Neto empenha-se em de 1999, quando ocorre a primeira infla-
assustá-lo ainda mais. Haddad tem razão
ção anual pós-regime de metas, até abril
ao dizer que a atual regra é “exigentíssima”
de 2024, são 293 meses. Nesse espaço de
tempo, a inflação ficou abaixo de 3% so-
mente em 22 ocasiões, o que representa
evidente. A cada mês, o IBGE divulga a va- 8%. É muito pouco”, dispara Abouchedid.
H U L LY P A I VA / S M C S / P R E F E I T U R A D E C U R I T I B A , R I C A R D O
riação acumulada em 12 meses do Índice O número irrisório de vezes em que o ST UCK ERT/PR E EDILSON RODRIGUES/AG. SEN A DO

Nacional de Preços ao Consumidor Am- IPCA acumulado em 12 meses ficou abai-


plo, a principal medida de inflação do País. xo de 3% durante quase 25 anos, prosse-
O IPCA é utilizado tanto como referência gue o economista, atesta que os agentes
para investimentos e reajustes salariais econômicos ajustam os preços de bens e
quanto para a determinação das políticas serviços, ao longo da história, acima des-
monetárias e das medidas econômicas. O se patamar. “O Conselho Monetário Na-
regime de metas de inflação foi instituído cional não pode simplesmente fixar a me-
no Brasil em janeiro de 1999 e é supervi- ta em um nível que não tenha aderência
sionado pelo Banco Central, que costuma ao comportamento dos agentes econômi-
aumentar a taxa de juros quando a meta é cos, sob pena de tornar o processo esqui-
ultrapassada além do limite permitido pe- zofrênico. Essa fixação da meta como uma
la regra. O economista Saulo Abouchedid, referência completamente abstrata, sem
professor da Facamp, fez uma conta sim- sustentação na realidade concreta, condi-

C A R TAC A P I TA L — 5 D E J U N H O D E 2 0 24 33
Economia

ciona toda a política macroeconômica ao A pandemia trouxe concentração de renda no País. Isto gera
atingimento de um objetivo que não en- uma inércia inflacionária que eleva a in-
o temor de deflação,
contra amparo na realidade da economia flação em momentos de choque de ofer-
brasileira”, dispara o professor da Facamp. mas taxas cresceram ta, como tivemos recentemente. Assim,
Segundo o economista Rafael Ribei- em meio a distúrbios não faz sentido uma meta muito baixa
ro, professor da UFMG e pesquisador econômicos e políticos no Brasil, pois acaba gerando uma taxa
da USP, as considerações do ministro de sacrifício em termos de perda de em-
Haddad sobre a inadequação da meta prego e produto muito elevada no País.
de 3% são pertinentes, pois “a inflação No plano internacional, acrescenta o
anual brasileira raramente atingiu esse professor da UFRJ, apesar de não existir
patamar, com exceção dos anos de 2006 monetária e prejudicando a ancoragem um processo que possa ser classificado
e 2018, e foi apenas em 2017 que a taxa fi- das expectativas dos agentes econômicos. como um novo comportamento da infla-
cou abaixo desse nível”. O economista Luiz Fernando de Pau- ção, há alguns fatores, do lado da oferta,
la, professor do Instituto de Economia da que impactaram de forma global na infla-
Além disso, prossegue Ribeiro, o mi- UFRJ, aponta os efeitos negativos pro- ção, tornando-a um fenômeno mundial.
nistro está correto ao destacar que o nú- fundos do estabelecimento, pelo Copom, Um fator novo, ainda que transitório, foi
cleo da inflação, que exclui choques tem- de uma meta de inflação apartada da rea- a crise da Covid-19, que gerou desestru-
porários nos preços, tem se mantido abai- lidade. Uma meta de inflação baixa no turação e gargalos nas cadeias produtivas
xo da inflação total recentemente. A po- Brasil, chama atenção De Paula, não faz de produtos manufaturados, situação que
lítica monetária deve responder somente sentido em função da existência de con- levou tempo para normalizar. Por outro
às variações do núcleo inflacionário, pois tratos (como reajustes de escolas e pla- lado, a guerra da Ucrânia afetou o preço
choques temporários tendem a se autoa- nos de saúde) e de indexação financei- da energia e alguns insumos, gerando um
justar sem intervenção do Banco Central. ra, com boa parte da riqueza financeira choque de oferta importante. “Nessas cir-
Reagir à inflação corrente sem conside- vinculada à taxa Selic e ao IGP-DI. A is- cunstâncias”, recomenda De Paula, “de-
rar o núcleo pode levar, portanto, a uma to se soma ainda a política de aumentos ve-se elevar a taxa de juros com modera-
maior volatilidade na taxa de juros bási- reais do salário mínimo, necessário em ção para arrefecer os aumentos de preços
ca, gerando incerteza quanto à política função dos baixos salários e da elevada de segunda ordem, deixando que o cho-

34 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Problema mundial. A política monetária
do FED e do Banco Central Europeu não
conseguiu domar o processo inflacionário

portante na eficácia da política monetária


e ela deve ser feita com muita serenidade.”
A confluência de interesses conflitan-
tes no BC e no Copom reaviva o questio-
namento, no País e no exterior, do dog-
ma da independência do Banco Central.
“Dado que a política econômica afeta sig-
nificativamente o desempenho econômi-
co, é difícil argumentar que a política fis-
cal e monetária devem ser mantidas se-
paradas. Os bancos centrais controlam
a oferta monetária através das taxas a
que emprestam aos bancos comerciais.
Isto define a estrutura das taxas de juro
de longo prazo, determinando as taxas a
que os mutuários podem aceder aos fun-
dos, o que por sua vez influencia o investi-
que de oferta se dissipe com o tempo.” demanda”, frisa o professor da UFMG. mento e o desemprego. Se quisermos que
Apenas a perspectiva de um choque Assim como aconteceu após a fala de os governos sejam responsabilizados pe-
deflacionário no mundo, com queda no Campos Neto em Nova York, o merca- lo investimento e pelo desemprego, eles
preço dos combustíveis, ou de commodi- do financeiro entrou em rebuliço após a devem controlar também a política mo-
ties, poderia justificar uma meta tão baixa queixa de Haddad quanto à meta de in- netária”, propõe o economista Robert
quanto 3%, mas isso não existe, acrescen- flação de 3%. A especulação nos merca- Skidelsky, professor emérito de Econo-
ta Abouchedid. Ocorre o contrário, a infla- dos de juros e de câmbio, tornada recor- mia Política na Universidade de Warwick,
ção no exterior mostra uma certa resistên- rente com as frequentes declarações do na Inglaterra, no artigo intitulado O Mito
cia e a política monetária do Banco Central presidente do BC sobre o comportamen- da Independência do Banco Central, publi-
Europeu e do Fed para conter esse proces- to futuro de juros e outras variáveis ma- cado no portal Project Syndicate.
so inflacionário ainda não teve sucesso. croeconômicas e financeiras, é, contudo, O Parlamento Britânico publicou, em
A pandemia e a paralisação das ativida- condenável, aponta De Paula. 2011, a seguinte “evidência”, destacada
des econômicas em 2020 trouxeram o te- pelo Grupo de Reforma Fiscal Sistêmi-
mor inicial de deflação, mas as interrup- “O presidente do BC tem que ‘falar ca da Universidade de Cambridge: “O
ções nas cadeias produtivas e a gradual re- nos autos’, pronunciando-se pouco pu- cartel bancário, sancionado pelo Esta-
abertura econômica em 2021 levaram a blicamente, deixando as explicações da do, compreende um banco central e ban-
um aumento acentuado das taxas de in- política de juros para os comunicados do cos membros privados. O BC é responsá-
I S T O C K P H O T O E R E N AT O L U I Z F E R R E I R A

flação no mundo, sublinha Ribeiro. Copom. Nunca um presidente do BC fa- vel pela fixação de preços, partilha de in-
No ano seguinte, a inflação foi impul- lou tanto, antecipando sua opinião ao pú- formações, promoção dos interesses dos
sionada ainda mais pela guerra na Ucrâ- blico e opinando sobre assuntos que não membros e prevenção de falhas por par-
nia e pelo aumento dos custos de ener- são de sua alçada, em particular na ques- te dos membros. Servir o interesse públi-
gia e gás natural. “Esse conjunto de fa- tão fiscal”, diz o professor da UFRJ. “Isto co não é o objetivo principal de um ban-
tores acabou desafiando a visão dos ban- contribui para gerar instabilidade macro- co central. O cartel detém o poder ex-
cos centrais de que choques de oferta econômica, no câmbio e no juros, o que é clusivo de fixar o preço e emitir o meio
são transitórios e que, portanto, a infla- um contrassenso, pois caberia a ele acal- de tributação. Os governos geralmente
ção pode ser controlada exclusivamen- mar o mercado. A questão da comunica- exigem o pagamento de impostos apenas
te com políticas restritivas pelo lado da ção da política monetária é elemento im- nos meios emitidos pelo cartel.” •

C A R TAC A P I TA L — 5 D E J U N H O D E 2 0 24 35
Economia

Financeirização,
confusões, história
RIQUEZA No irreconhecível capitalismo de
sempre, a forma financeira é onipresente
P O R LU I Z G O N Z AG A B E L LU Z ZO E N AT H A N C A I X E TA

A
palavra “Financeirização” Financeira, dispostos a impedir escor-
passou a circular com ares regões provocados por passos abusivos.
de grã-fina elegante nos Ao acompanhar os passos de Madame
bailes em que se exibem as Financeirização e do Senhor Neolibe-
celebridades do nosso ralismo, Dona Globalização encurralou
tempo. A dama Financeirização está as alternativas de desenvolvimento na-
sempre acompanhada de seu fiel compa- cional, obrigando governos a orientar
nheiro, senhor Neoliberalismo, e da co- suas políticas econômicas em respos-
madre inquieta, Dona Globalização. ta aos agouros e trepidações dos fluxos
Estimulados pelos demais convivas, de capitais. O crescente poder de Mada-
a trinca dança ao som dos acordes e ba- me Financeirização sobre as decisões
tuques da orquestra “Capitalismo Con- de investimento e alocação da riqueza
temporâneo”. Os críticos se dividem entre alterou radicalmente o comportamen-
simpáticos e detratores, uns e outros exi- to da Grande Empresa, que ficou refém
bindo laivos de moralismo que turbam a das expectativas de valorização patri-
avaliação do desempenho dos dançarinos. monial sob o comando de bancos, fun-
É mister reconhecer que muitos ob- dos de pensão, fundos de investimento e
servadores dos rodopios um tanto abrup- tutti quanti. Finalmente, o Senhor Neo-
tos da senhora Financeirização tiveram a liberalismo capturou os Estados Nacio-
ventura de viver ou estudar os passos su- nais, condenando as sociedades e seus
aves e elegantes das dançarinas do Bem- cidadãos às penas e obrigações da aus-
-Estar que por 30 anos ofereceram seus teridade perpétua.
talentos à fruição de mulheres e homens Os jeitos, trejeitos e mal jeitos da se-
de seu tempo.
Até o final dos 1970, dizem, a
Orchestra Capitalismo tocava os acor-
des do desenvolvimento econômico e a Os atos e as façanhas
turma deslizava nas pistas do bem-es-
tar social e do pleno emprego, este últi-
do dinheiro não
mo abrigado, sobretudo, nas casamatas induzem a separação
do fordismo industrial. Nas beiradas da entre produtivo
pista estavam os vigilantes da Repressão e financeiro

36 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Processo. O dinheiro gera dinheiro
na exploração do trabalho e o crédito
é o agente fundamental. O pleno emprego
encontrou abrigo no fordismo industrial

nhora Financeirização nos incitam a in-


vestigar sua genética e assim evitar con-
siderações apressadas a seu modo de ser.
Roberto Fineschi, no artigo Marx’s
Class Theory 2.0, se ocupa do significado
da história na obra de Marx. Diz ele:
ISTOCKPHOTO E THE HENRY FORD MUSEUM

“O ‘histórico’ tem um significado on-


tológico: não é a descrição ou inclusão de
fatos que ocorreram em um determina-
do momento, mas uma estrutura teóri-
ca em que ocorre um desenvolvimento
dialético, ‘formal’; a reprodução huma-
na implica passagens e transformações
estruturais; fases internas, lógicas. Es-
sa é sua ‘história’, uma totalidade arti-
culada em fases que se sucedem umas
às outras. Momentos temporais logica-

C A R TAC A P I TA L — 5 D E J U N H O D E 2 0 24 37
Economia

mente determinados de uma totalidade”. tores na mesma medida em que os pro-


A tentativa de apreender o sentido histó- dutores devêm dependentes da troca”.
rico da dita “financeirização” sugere uma “Afirmar” e “negar”, “separar” e
investigação da natureza ontológica da fi- “unir”, os atos e façanhas do dinheiro
nança capitalista. Seguimos, neste senti- não induzem a separação entre produti-
do, a recomendação de Fernand Braudel: vo e financeiro, mas manifestam as con-
“A relação de forças, na base do capita- tradições imanentes da dinâmica do ca-
lismo, pode esboçar-se e ser reencontra- pital em sua saga realizadora.
da em todas as etapas da vida social. Mas, Braudel, em seu clássico Civilização
enfim, é no topo da sociedade que o pri- Material, Economia e Capitalismo, co-
meiro capitalismo se desenvolve, afirma menta a respeito do papel desempenha-
a sua força e se revela aos nossos olhos. E do pelos “fornecedores de dinheiro”:
é à altura dos Bardi, dos Jacques Coeur,
dos Jakob Fugger, dos John Law ou dos “Acumulai! Acumulai! É o que man-
Necker que se deve ir procurá-lo, que se da a lei para uma economia capitalista.
tem uma chance de descobri-lo”. Também se poderia dizer: Emprestai!
Karl Marx, em sua investigação so- Emprestai! É o que manda a lei e todas
bre o funcionamento do modo de pro- as sociedades acumulam, dispõe de um
dução capitalista, procurou reconsti- capital que se divide entre uma poupança
tuir as categorias que estruturam o mo- entesourada e então inútil, mantida à es-
vimento desse modo de produção. Nos Braudel. A relação de forças pode ser pera, e um capital cujas águas benéficas
Grundrisse, Marx discute a interpene- reencontrada em todas as etapas da vida passam pelos canais da economia ativa,
social, mas é no topo que o primeiro
trabilidade das formas. As formas ge- outrora sobretudo a economia mercan-
capitalismo se revela aos nossos olhos
rais – mercadoria, dinheiro, subordina- til. Se esta não for suficiente para abrir ao
ção do trabalho pelo capital-forças pro- mesmo tempo todas as comportas possí-
dutivas – de acumulação e reprodução se veis, haverá quase forçosamente um capi-
acoplam às formas concretas da concor- ra turbação dos neurônios positivistas: tal imobilizado, desnaturado, poder-se-ia
rência, do capital a juros e do capital fic- “...evidencia-se de novo na separação dizer. O capitalismo só estará plenamen-
tício para ensejar a constituição da es- do negócio de dinheiro do comércio pro- te instalado quando o capital acumula-
trutura e mover a dinâmica do Regime priamente dito. Vemos, portanto, como do for utilizado ao máximo, sem nunca se
do Capital. é imanente ao dinheiro realizar suas fi- atingir, evidentemente, os 100%”.
nalidades à medida que simultaneamen- Como forma necessária que realiza
O Regime do Capital só é apreensível te as nega; se autonomizar em relação às os propósitos da acumulação de riqueza
na medida em que tomamos como obje- mercadorias; de meio, devir fim; realizar abstrata – isto é, de dinheiro –, o crédi-
to – ponto de partida – o todo desenvolvi- o valor de troca das mercadorias ao se se- to funda e designa os destinos do capital
do para, em seguida, reconstituir as cone- parar dele; facilitar a troca ao cindi-la; posto em funcionamento na produção e
xões entre as formas dominantes (concre- superar as dificuldades da troca imedia- na circulação.
tas), e as formas elementares (abstratas). ta de mercadorias ao generalizá-las; au- Na reprodução ampliada do capital, na
Ao tratar das formas financeiras, das tonomizar a troca em relação aos produ- qual o dinheiro vira mais dinheiro atra-
categorias do capital a juros e do capital vés da exploração do trabalho na produ-
fictício, Marx as descreve como formas ção e circulação de mercadorias, o cré-
concretas que sobredeterminam as for- dito é o agente fundante do processo ao
mas elementares, aquelas que habitam O crédito funda e adiantar riqueza potencial na forma ca-
os reinos da produção e intercâmbio de designa os destinos pital-dinheiro. Trata-se do valor ante-
mercadorias. cipado para fazer girar o circuito pro-
Essa subordinação necessária da
do capital em dutivo-mercantil. Em sua ânsia de va-
produção e da troca às formas finan- funcionamento lorização, o dinheiro de crédito se afas-
ceiras se realiza na “natureza peculiar na produção ta das contingências da produção e da
do dinheiro”, como Marx explica, pa- e na circulação troca, para ser acolhido nas trepida-

38 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
ções do circuito monetário-financeiro. a exportação de capitais foi uma realida- Movimento. A exportação de capitais
É na forma financeira que o capitalis- de cotidiana, para Florença desde o sécu- foi uma realidade cotidiana, para Florença,
desde o século XIII, para Augsburgo,
mo revela sua natureza, seu modo de ser. lo XIII, para Augsburgo, Antuérpia e Gê-
Antuérpia e Gênova no século XVI
A criação de nova riqueza é a manifesta- nova no século XVI. No século XVIII, os
ção peculiar do caráter geral do capital. capitais correm a Europa e o mundo. To-
dos os meios, procedimentos e estratage-
As transformações ocorridas nos mas do dinheiro não nasceram em 1900 forma para “realizar sua natureza”.
sistemas financeiros, o aperfeiçoamen- ou em 1914, precisaria dizê-lo? O capita- No capitalismo plenamente investido
to dos métodos de gestão, a multiplica- lismo conhece-os todos e, ontem como em todas as suas formas, a contradição
ção dos meios de compartilhamento de hoje, a sua característica e a sua força são está abrigada nas próprias relações entre
riscos e a crescente interpenetração co- de poder passar de um estratagema pa- as formas de posse da riqueza. No movi-
mercial, produtiva e financeira dos mer- ra outro, de uma forma de ação para ou- mento da acumulação, ao longo do pro-
NACIONAL DI SAN MARCO E REDES SOCIAIS

cados não alteraram a forma de ser do ca- tra, de mudar dez vezes suas baterias se- cesso de expansão do valor, ampliam-se
G I R O L A M O S AVA N A R O L A /A C E R V O M U S E U

pitalismo. Ao contrário, tais transforma- gundo as circunstâncias da conjuntura e, os estoques de ativos reais e financeiros,
ções estenderam e aprofundaram a ma- assim fazendo, permanecer bastante fiel, ao mesmo tempo que o progresso tecno-
nifestação de seu caráter autorreferente, bastante semelhante a si mesmo”. lógico “desvaloriza” continuadamente a
antes e agora. Ensina Braudel: Esse instinto transformador, pron- força de trabalho e o estoque de capital
“... o capitalismo sempre foi monopo- to a inovar os meios de produção e ex- produtivo existente.
lista, e mercadorias e capitais nunca dei- tração de valor, aperfeiçoa e potencia- Esse movimento realiza a dinâmica
xaram de viajar simultaneamente, tendo liza o caráter autorreferente do capi- contraditória (dialética) que afirma a na-
os capitais e o crédito sido sempre o meio tal. Eis o sentido geral da (mal)dita fi- tureza Dinheirista e Financeira do Regi-
mais seguro de alcançar e forçar um mer- nanceirização como fenômeno cons- me do Capital, que subordina as formas
cado exterior. Muito antes do século XX, titutivo do capitalismo, que se trans- elementares do trabalho e da troca. •

C A R TAC A P I TA L — 5 D E J U N H O D E 2 0 24 39
Nosso Mundo

Ninho de serpentes
EUROPA Na reta final da campanha ao Parlamento da UE, vaidades,
traições e projetos próprios de poder dividem a extrema-direita
POR SERGIO LIRIO

U
m apelo público mais dire- poentes das duas principais correntes da forme da SS é automaticamente um cri-
to, impossível. No domingo extrema-direita. A francesa integra o gru- minoso”), e das acusações de que um ou-
26, em entrevista ao jornal po Identidade e Democracia, que acaba de tro filiado recebeu dinheiro da Rússia. A
Corriere della Sera, a france- expulsar os neonazistas alemães da AfD, italiana pertence à frente Conservadores
sa Marine Le Pen exortou a depois das declarações “embaraçosas” de e Reformistas Europeus (ECR, na sigla em
colega de ideologia e primeira-ministra Maximilian Krah, principal candidato da inglês). Segundo as projeções, o ID, afeta-
italiana, Georgia Melloni, a juntar-se à legenda, a respeito da SS de Adolf Hitler do pela expulsão da AfD, conquistará 66
campanha para fazer da extrema-direita (“Nunca diga que alguém que usa um uni- das 720 cadeiras em disputa, enquanto o
a segunda maior bancada do Parlamento ECR chegaria a 72. Apesar do isolamen-
Europeu. “Este é o momento de nos unir- to, interno e continental, e de um radi-
O (POSSÍVEL) DESENHO
mos, seria verdadeiramente útil. Acho que DO PARLAMENTO EUROPEU calismo crescente que afasta aliados, os
não devemos deixar passar uma oportu- Total de deputados por blocos* neonazistas alemães, indicam os levan-
nidade como esta”, declarou Le Pen. “Acre- tamentos, passariam de 9 para 17 depu-
EPP (centro-direita)
dito que ela e eu estamos de acordo sobre tados e o húngaro Fidesz, uma das bases
176
as questões essenciais, incluindo a reto- de sustentação de Viktor Órban, elegeria
S&D (centro-esquerda)
mada do controle dos nossos países”. No outros 12. Ao todo, seriam 165 parlamen-
144
mesmo dia, à tevê pública RAI, Meloni res- tares, caso as urnas confirmem as pesqui-
RE (liberais)
pondeu. Não disse sim nem não. “Meu sas, acima dos 144 do grupo Socialistas &
82
principal objetivo é construir uma maio- Democratas, de centro-esquerda.
ECR (extrema-direita)
ria alternativa àquela que governou nos úl- 72
timos anos. Uma maioria de centro-direi- Há dois motivos para Meloni se mos-
ID (extrema-direita)
ta, por outras palavras, que enviará a es- 66 trar refratária à aliança imediata. O pri-
querda para a oposição na Europa”. NI (independentes)**
meiro tem a ver com estilo. Embora seu
Os europeus irão às urnas entre 6 e 9 de 57 governo avance em políticas contra a co-
junho e, como tem acontecido em diversas Partidos sem filiação** munidade LGBT, entre elas proibir o no-
eleições nacionais, tendem a nomear um 50 me dos pais não-biológicos no registro de
Parlamento Europeu mais fragmentado Verdes/EFA filhos de casais homossexuais, e os imi-
e instável do que o anterior. Os velhos li- 41 grantes, a primeira-ministra italiana
berais e a esquerda tradicional, apontam GUE/NGL (esquerda) projeta, para fora do país, uma imagem
as pesquisas, perderão espaço para o ex- 32 de “moderação” quando comparada aos
tremismo de direita e os partidos inde- pares ideológicos no continente. Mede as
*Média das pesquisas, 24 de maio
pendentes, não perfilados a um dos sete ** Candidatos ou legendas não perfilados
palavras, evita certo histrionismo, afas-
blocos tradicionalmente estabelecidos a blocos políticos tou-se de Vladimir Putin e entende o jogo
em Bruxelas. Le Pen e Meloni são as ex- Fonte: politico.com de bastidores da política. Le Pen também

40 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
TAMBÉM pág. 42
NESTA The Observer.
O CNA perde prestígio
SEÇÃO na África do Sul

cer no cargo, Ursula von der Leyen mos-


tra-se flexível, a ponto de borrar aquelas
tais “linhas vermelhas” que em tese sepa-
ram os democratas dos racistas, xenófo-
bos, negacionistas da mudança climática
e neofascistóides. A aprovação pelo Parla-
mento Europeu de uma lei antimigração
mais dura foi uma demonstração recen-
te de que, em nome de um projeto de po-
der, as linhas mudam de cor como em um
passe de mágica – e o que era vermelho su-
bitamente vira verde. Em recente debate,
a alemã destacou as supostas qualidades
da premier italiana, em um esforço de con-
vencimento de aliados do PPE, o grupo de
extrema-direita que projeta conquistar
176 cadeiras: “Ela é claramente pró-UE,
contra Putin, tem sido muito clara so-
bre isso, e pró-Estado de Direito. Se isto
se mantiver, então nos oferecemos para
trabalhar juntas”. Em troca, a comissária
recebeu afagos do ECR. Em entrevista à
agência Euronews, Nicola Procaccini, do
Por si. A AfD, legenda neonazista alemã, foi expulsa do bloco ECR, ao qual se alinha a Fratelli D´Italia, partido de Meloni, não
francesa Marine Le Pen (direita). A italiana Georgia Meloni flerta com o centro-direita descartou o apoio à alemã. “É algo que te-
mos de ver com base no equilíbrio de po-
deres, pois eles podem ter de apoiar um
dos nossos candidatos. Vamos ver.”

Mesmo dividida, a extrema-direita


R ED ES SO CI A IS, VOX ES PA N H A E P R AS E T YO U TO M O/G20 IN D O N ÉSI A

avança para se transformar em uma in-


contornável força de bloqueio, se não de
alteração dos princípios basilares das po-
líticas interna e externa da União Euro-
peia. A solidariedade aos migrantes tem,
aos poucos, sido substituída pelo con-
ceito de segurança das fronteiras. O ri-
gor das leis ambientais será bombardea-
do por uma espécie de “bancada do boi”,
sensível aos reclames dos agricultores que
se sentem prejudicados pela concorrên-
passou por uma repaginação, mas o pas- A outra razão de Meloni é pragmáti- cia internacional. Um dos possíveis efei-
sado a condena. Apesar de negar ou ao me- ca. Justamente pelo disfarce da modera- tos colaterais será o enterro definitivo do
nos disfarçar repúdio pelo antissemitis- ção, a italiana é insistentemente cortejada acordo UE-Mercosul. O apoio incondicio-
mo e anti-europeísmo do pai, Jean-Marie, por Ursula von der Leyen, em campanha nal à Ucrânia também está em risco, da-
tem sido difícil para a francesa se disso- à reeleição ao posto de presidente da Co- da a simpatia que uma parcela conside-
ciar da trajetória da família. missão Europeia. Na ânsia de permane- rável dos extremistas nutre por Putin. •

C A R TAC A P I TA L — 5 D E J U N H O D E 2 0 24 41
Nosso Mundo

Da liberdade
à desilusão
O CNA, partido
de Nelson Mandela, sofre
o desgaste de 30 anos no poder
P O R S T E V E B LO O M F I E L D, E M J O H A N ES B U R G O

N
o coração de Soweto, o ber- sua riqueza ainda repousasse em poucas
ço da democracia sul-africa- mãos brancas, a classe média negra cres-
na foi queimado e saqueado. cia e a nação se preparava para sediar a
Quase 70 anos atrás, nos pri- Copa do Mundo de futebol.
meiros tempos do apartheid,
mais de 3 mil moradores se reuniram nu- Se os primeiros 15 anos de democra-
ma praça empoeirada para redigir a Carta cia foram um sucesso, entretanto, não se
da Liberdade, que exigia uma série de di- pode dizer o mesmo dos últimos 15. E o
reitos e proclamava que a África do Sul impacto pode ser visto claramente na
“pertence a todos os que nela vivem, ne- praça onde nasceu a África do Sul moder-
gros e brancos”. Quando o apartheid ter- na. A pobreza é galopante, o desemprego,
minou, em 1994, e Nelson Mandela foi elei- elevado, e há três anos tumultos levaram
to presidente com uma avalanche de vo- ao incêndio e saque de lojas. Tudo o que
tos, a Carta tornou-se a base da nova e oti- podia ser roubado e vendido foi levado,
mista Constituição do país. Por isso fazia inclusive as grades metálicas sobre os es- em crise. É o país mais desigual e um dos
sentido, anos depois de sua divulgação, gotos. O hotel continua aqui, mas os fun- mais perigosos do mundo. A economia
marcar seu aniversário e transformar a cionários admitem que quase não rece- está estagnada, com crescimento quase
praça na área de Kliptown num local re- be hóspedes. E no monumento onde es- nulo em uma década e quase metade dos
presentativo da nova África do Sul. tá guardada a Carta a chama da liberda- adultos desempregados. Os serviços pú-
Abriram-se lojas e escritórios, um mu- de se apagou há muito tempo. blicos básicos desmoronam. Em muitas
seu, um monumento à liberdade. Para A África do Sul que se preparava para regiões não há água potável e os cortes de
completar, foi inaugurado um novo ho- ir às urnas, 30 anos depois das primei- energia constantes tornaram-se uma ca-
tel, anunciado como “o primeiro quatro ras eleições democráticas, é uma nação racterística habitual.
estrelas, oferecendo hospitalidade afri- No centro de tudo está a corrupção. O
cana no coração de Soweto”. Uma chama que era uma questão menor sob Mandela
de liberdade foi acesa, cercada pelas pa- e seu sucessor, Thabo Mbeki, explodiu
lavras da Carta. quando Jacob Zuma chegou ao poder, em
À época, a África do Sul estava em alta.
A África do Sul 2009. Quando foi destituído do cargo pe-
Novas casas tinham sido construídas e o é um dos países lo Congresso Nacional Africano (CNA),
acesso à eletricidade e à água se estende- mais desiguais e em 2018, bilhões de rands haviam sido
ra a todo o país. Embora grande parte de perigosos do planeta saqueados do Estado, deixando quase to-

42 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Frustração. Ramaphosa, atual
presidente, representa um partido
manchado pela corrupção e pelo
fraco desempenho econômico

dos os órgãos falidos, da companhia aé-


rea nacional à agência que administrava
as ferrovias. “A autoridade fiscal foi efeti-
vamente dominada por um sindicato de
criminosos”, diz Anthony Butler, profes-
sor de Política na Universidade da Cida-
de do Cabo. “Revelou-se muito difícil re-
construir essas instituições.”
Um inquérito sobre a “captura do Esta-
do” concluiu que “o CNA sob Zuma permi-
tiu e apoiou a corrupção”, embora o ex-pre-
sidente negue qualquer atuação direta. De-
pois dele, o partido tentou virar a página e
escolheu como novo presidente um anti-
go aliado de Mandela, Cyril Ramaphosa.
Apesar de admitir que a legenda “co-
meteu erros”, Ramaphosa não conse-
guiu mudar as coisas para melhor, e ho-
je é assombrado pelos antigos fantasmas.

Inabalado, Zuma formou seu próprio


partido, o uMkhonto weSizwe (MK), no-
meado em homenagem à antiga ala para-
militar do CNA, que atraiu apoio, especial-
mente na província de KwaZulu-Natal.
Juntamente com a força de outro parti-
do populista de esquerda, os Combaten-
tes pela Liberdade Econômica (EFF), lide-
rado por Julius Malema, antigo líder da li-
ISTOCKPHOTO E PRESIDÊNCIA DA AFRICA DO SUL

ga juvenil do CNA, as pesquisas de opinião


sugerem que o partido de Mandela cairá
a seu menor nível de apoio desde 1994 e
poderá ficar abaixo de 50%, o que signifi-
ca que teria de governar como um gover-
no minoritário ou formar uma coalizão.
O tamanho da tarefa de Ramaphosa
pode ser visto nas ruas de Alexandra,
um dos maiores bairros populares de
Johanesburgo e antigo reduto do CNA. “É
imundo, densamente povoado e ingover-
nável”, descreve Vusi Khosa, nascido na re-

C A R TAC A P I TA L — 5 D E J U N H O D E 2 0 24 43
Nosso Mundo

gião. “É a anarquia. Fazem o que querem.” de blocos de concreto e ferro corrugado, decisão de votar no outro lado é tão emo-
Segundo Queen Pungula, funcionária com esgotos a céu aberto e gente amon- cional quanto racional.
de uma creche, a criminalidade a mantém toada. Nenhuma casa tem banheiro, Há um receio entre os apoiadores mais
dentro de casa quando o sol se põe. “Às 18 por isso, ao longo de uma rua, centenas velhos do CNA de que a geração dos seus
horas não posso mais sair”. Pungula vive de banheiros químicos estão alinhados filhos não tenha consciência de como a
e trabalha num dos albergues de Alexan- próximos a um muro. “Não temos vasos vida era ruim sob o apartheid, ou de co-
dra, construído pelo governo do apartheid com descarga”, grita um pastor, Charles mo o CNA foi vital para acabar com o sis-
na década de 1970 para alojar migrantes Mahumani. “Isso é um insulto para nós.” tema racista. “Eu sei de onde vim”, resu-
de áreas rurais autorizados a vir para a ci- O CNA não terá o voto dele, e também me Frank Baloyi, professor de 56 anos na
dade para trabalhar. Seu albergue é relati- poderá não receber o de Khosa. Ele é fi- praça da liberdade de Kliptown, oficial-
vamente seguro, mas outros são famosos liado ao partido, mas, faz uma pausa e mente chamada Praça Walter Sisulu. “Eu
pela superlotação e pelos crimes. suspira: “Não sei. Não sei”. vim do apartheid. Se você é daquela época,
A moradia ainda é um pesadelo para a você entende. Não havia facilidades. Nós
maioria da população. Partes de Alexan- Khosa não é o único. Na maioria das sofremos muito.” Ele descreve as falhas
dra têm residências caras com muros al- democracias, um partido no poder há do CNA como “pequenos erros” cometi-
tos e gramados bem cuidados, mas do ou- 30 anos e à frente de uma série tão tre- dos por “seres humanos”. Os jovens “não
tro lado da rua e na esquina há uma fave- menda de crises interligadas enfrenta- entendem o que passamos”, lamenta.
la – casas de um cômodo em ruínas, feitas ria um longo período de oposição. Mas o Essas preocupações estão presentes
CNA não é apenas um partido político – entre a liderança do CNA. “Estamos ape-
é um antigo movimento de libertação, e lando aos sul-africanos para que nos deem
isso faz a diferença. Os sul-africanos têm mais uma chance”, diz Snuki Zikalala,
Memória esmaecida. Os jovens
não sabem o que era viver sob
uma atitude diferente em relação a um presidente da liga de veteranos da legen-
o apartheid nem conhecem movimento que conquistou a liberdade. da e aliado de Mbeki, que retornou à linha
a importância revolucionária do CNA Para muitos, é uma relação complexa, e a de frente da política após o fim de Zuma.

44 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Grandeza. Mandela governou em
tempos de esperança e otimismo.
Seu legado está agora ameaçado

rem responsáveis pela criminalidade. Os


migrantes, predominantemente do país
vizinho Zimbábue, podem representar
apenas 3% da população, mas a propor-
ção é mais elevada nas cidades mais po-
bres, mais densamente povoadas e mais
infestadas pelo crime. A África do Sul foi
atingida por ondas de violência xenófo-
ba nos últimos 16 anos, e alguns partidos
adotaram uma posição anti-imigração.

Também há motivos para ter esperan-


ça. Ninguém duvida que as eleições se-
rão livres e justas. Ao contrário dos Esta-
Eles não apenas imploram, prometem. “Não foi por isso dos Unidos, não há possibilidade de uma
O salário mínimo subiu 8,5%, os subsí- tentativa de golpe se o CNA perder o po-
que lutamos”,
dios sociais aumentaram e neste mês der. As instituições, especialmente o sis-
Ramaphosa sancionou uma lei nacional
lamenta Bob tema judicial, permaneceram indepen-
de seguro-saúde. O que não foi dito é co- Nameng, dentes e fortes. Existe uma imprensa li-
mo o governo pagará por isso. jovem eleitor vre e vibrante. E quando o Estado entrou
Zikalala admite que o partido perdeu em colapso, as empresas e a sociedade ci-
o rumo sob Zuma, que “derrubou todo o vil intervieram, fornecendo saúde e edu-
Estado sul-africano. É por isso que o país cação, prestando serviços sociais, tapan-
está uma bagunça. Andamos cem anos do buracos. Apesar de tudo, a África do
para trás. Era tudo para ele e sua famí- Aliança Democrática, de centro-direita, Sul continua a ser um país de empresas
lia”. Mais parecido a um político da opo- que se opõe às despesas sociais do CNA de sucesso, criatividade vibrante e uma
sição do que a um governista, acrescen- e, mais importante, é visto como domi- indústria turística próspera.
ta: “Temos tudo neste país. Se conseguir- nado por brancos e servil a eles. Em Kliptown, nos trilhos que saem da
mos uma governança adequada e admi- É difícil encontrar otimismo. Mas praça, Bob Nameng discorda. Chefe de
nistrá-lo profissionalmente…” Butler, autor de uma biografia de uma organização juvenil local, aponta a
O CNA ainda governará o país depois Ramaphosa, acredita que o presidente Carta da Liberdade e suas proclamações
das eleições, mas, se as pesquisas estive- pode ser o nome certo para esta situa- sobre a nova África do Sul. “É uma bes-
ADAM JACOBS E ARQUIVO NACIONAL /HOL ANDA

rem certas, será em uma coalizão. Suas ção. “Ele é um político de consenso, um teira, uma contradição. Você fala de terra
potenciais alianças estão, no entanto, negociador. É exatamente o líder que vo- – nós estamos congestionados aqui num
cheias de problemas. Como poderá fa- cê desejaria para um período de governo pequeno pedaço. Você fala de direitos –
zer um acordo com Zuma, que hoje ad- de coalizão. É o negócio dele.” Além dis- não há direitos aqui.” Ele não votará no
mite abertamente ter cometido um dos so, acrescenta, “não há mais ninguém. CNA. “Não posso me dar ao luxo de me
maiores escândalos de corrupção oficial Ele é tudo o que eles têm”. vender novamente.” Em vez disso, apoia-
em qualquer parte do mundo? Como po- Há outra questão sobre o que acon- rá a EFF de Malema. Não que tenha es-
de fazer um acordo com o partido EFF de tecerá depois das eleições: para on- perança de que algo vá mudar. “Nada es-
Malema, que quer se apropriar de terras de irá a raiva se as coisas não melhora- tá bem em nosso país. Não posso mentir.
e que, segundo Zikalala, “não acredita no rem? Vários cidadãos resmungavam Não foi por isso que lutamos.” •
Estado de Direito”? sombriamente sobre os estrangeiros,
Dos principais partidos, resta apenas a acusando-os de aceitar empregos e de se- Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

C A R TAC A P I TA L — 5 D E J U N H O D E 2 0 24 45
Nosso Mundo

Maquiagem verde
res pagos a organizações de conservação
e climáticas. Muitas retiraram dinheiro
do Bezos Earth Fund, e acho isso mui-
to preocupante. Existe obviamente um
A imagem de risco de conflito de interesses”, afirma
Jeff Bezos como protetor do meio Holger Hoffmann-Riem, da ONG suíça
Go for Impact. “A credibilidade do siste-
ambiente sofre fortes abalos ma depende de sua independência.”
Um especialista em política climáti-
P O R PAT R I C K G R E E N F I E L D ca, sob a condição do anonimato, afir-
ma: “Nos poucos anos desde que come-
çou a distribuir enormes quantias para

E
as mudanças climáticas e a conservação,
m abril passado, a coroação res têm presença de destaque nas nego- o Bezos Earth Fund adquiriu influência
de Jeff Bezos e sua parceira ciações internacionais. Suas fileiras in- sobre muitas iniciativas importantes e so-
Lauren Sánchez como os reis cluem o ex-ministro do Meio Ambiente bre seus conselhos diretores. Neste ponto,
do meio ambiente foi do Reino Unido Zac Goldsmith, a impor- a enorme presença do Bezos Earth Fund
concluída. No elegante even- tante ambientalista africana Wanjira no espaço climático e de conservação co-
to de gala anual da Conservação Interna- Mathai e Paul Bodnar, ex-assessor de meça a parecer menos filantrópica e mais
cional em Nova York, com Harrison Ford, Barack Obama. As doações multimi- uma tentativa de assumir o controle do
Jacinda Ardern e Shailene Woodley na lionárias do fundo apoiam dezenas de sistema de governança corporativa pa-
plateia, o casal recebeu o prêmio visioná- ONGs e iniciativas importantes. ra seus próprios interesses e sua agenda”.
rio global pela contribuição financeira do Mas, no nível privado, no setor do cli-
Bezos Earth Fund para o mundo natu- ma e da biodiversidade, o humor em tor- Stephan Singer, consultor sênior de
ral. “Jeff e Lauren estão fazendo história, no do Bezos Earth Fund tornou-se um política energética global da Climate
não apenas pelo valor de seu investimen- mal-estar crescente. Pesquisadores, con- Action Network International, acres-
to na natureza, mas também por sua ra- sultores de política climática e integran- centa: “Organizações filantrópicas como
pidez”, disse o CEO da Conservação In- tes de ONGs expressaram preocupações o Bezos Earth Fund são fundamentais pa-
ternacional, M. Sanjayan, cuja organiza- sobre o nível de influência do fundo so- ra que a sociedade civil em todo o mundo
ção recebeu uma doação de 20 milhões bre instituições ambientais críticas para possa financiar intervenções em questões
de dólares do magnata em 2021 por seu deter as mudanças climáticas e a perda ambientais e climáticas essenciais. Mas
trabalho nos Andes tropicais. de biodiversidade, muitas das quais con- existem grandes problemas nas implica-
Lançado com uma equipe reduzida em tam agora com o Bezos Earth Fund en- ções políticas. Os projetos do Fundo Bezos
fevereiro de 2020, o Bezos Earth Fund tre seus maiores financiadores. Alguns não abordam as questões-chave da crise
pretende doar 10 bilhões de dólares da não quiseram ser identificados por teme- climática fundamental que enfrentamos,
fortuna pessoal de 200 bilhões do fun- rem consequências para seu próprio fi- são bons, mas infelizmente cosméticos”.
dador da Amazon para combater a crise nanciamento. “Vimos milhões de dóla- Um porta-voz do Bezos Earth Fund
climática e a perda de biodiversidade até disse não existir conflito de interesses. O
o fim desta década. Até agora, fez mais fundo, afirmou, levou as acusações a sério,
de 230 doações no valor de 2 bilhões de pois os comentários procuram minar sua
dólares, financiando iniciativas que vão reputação e a de sua equipe.
de soluções ambientais de IA a energia Ambientalistas Muitos especialistas do mundo da
limpa para comunidades desfavorecidas. conservação da natureza e do clima di-
Nesse processo, o Bezos Earth Fund
temem que a agenda zem que seus temores se concretizaram
tornou-se uma das vozes mais influen- do bilionário neste ano, quando uma amarga disputa
tes no setor do clima e da biodiversidade. se sobreponha interna eclodiu na Science Based Targets
Seus associados, conselheiros e direto- à causa ecológica iniciative, uma das organizações de cer-

46 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
tificação climática mais importantes. A Desde o anúncio, Amaral lamentou Em causa própria. Cientistas acusam o
SBTi, que recebeu doação de 18 milhões a confusão em torno dos comentários bilionário de influenciar a adoção de regras
mais flexíveis da SBTi, uma influente
de dólares de Bezos em 2021, é a respon- e disse que nenhuma regra foi alterada
organização de certificação climática
sável por avaliar se algumas das empre- ainda. Mas a turbulência colocou sob
sas líderes mundiais praticam a descar- maior escrutínio os esforços de lobby do
bonização conforme o Acordo de Pa- Bezos Earth Fund e de outras organiza-
ris. Em abril, o conselho diretor da SBTi ções pró-mercado de carbono. do conselho. “É difícil não ver uma liga-
anunciou inesperadamente planos pa- ção entre a reunião de Londres e a deci-
ra permitir às empresas cumprirem su- Um porta-voz da SBTi disse que a or- são do conselho da SBTi algumas sema-
as metas climáticas com compensações ganização lamenta que o anúncio tenha nas depois”, diz Juliette de Grandpré, do
de carbono do mercado voluntário não sido “aberto a interpretações errôneas” grupo de aconselhamento técnico da or-
regulamentado para emissões indire- e que quaisquer alterações seguiriam ganização e especialista em política cli-
tas. A medida provocou comoção inter- um processo de consulta padrão. Um mática do NewClimate Institute.
na. Funcionários e consultores técni- mês antes do anúncio do SBTi, o Bezos O Bezos Earth Fund contesta veemen-
cos disseram não ter sido consultados Earth Fund organizou uma reunião de temente as afirmações e garante não ter
sobre o anúncio e alertaram que ele po- dois dias em Londres, e na agenda estava participado do anúncio do conselho da
deria abrir a porta para a “lavagem ver- o papel das compensações nas reivindi- SBTi. Andrew Steer, presidente e CEO do
de”. Eles manifestaram receios de que o cações corporativas. Foram convidadas fundo do bilionário, afirma que as institui-
processo baseado na ciência seja posto de figuras importantes da indústria de com- ções de definição de padrões ambientais
lado em favor de políticas mais favoráveis pensações, muitas das quais pressiona- financiadas pela iniciativa tiveram uma
às companhias com padrões mais frou- ram para a SBTi permitir compensações liderança marcante e tomaram suas pró-
xos, com grandes poluidores autorizados para aumentar a demanda no setor em prias decisões. “São fortes e comprome-
S E AT T L E C I T Y C O U N C I L

a comprar compensações em vez de re- dificuldades. Uma projeção estima que, tidas com a transparência, padrões de al-
duzir as emissões. Dezenas de funcioná- se a mudança da SBTi for aprovada, va- ta integridade e rigor analítico. Qualquer
rios da SBTi pediram a renúncia do CEO, leria ao menos 19 bilhões de dólares para sugestão de que elas não tomam suas pró-
Luiz Fernando do Amaral, e de integran- o mercado de carbono voluntário. Várias prias decisões está claramente errada.” •
tes do conselho, incluindo o amigo de fontes levantaram preocupações de que
Bezos Iván Duque, em uma carta interna. a reunião tivesse influenciado a decisão Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

C A R TAC A P I TA L — 5 D E J U N H O D E 2 0 24 47
Plural

O que está em jogo


AUDIOVISUAL Dois Projetos de Lei voltados a regular os serviços
de vídeo sob demanda entram em uma corrida no Congresso
P O R A N A PAU L A S O U S A

A
o longo deste mês, houve, a construção de uma única lei, que junte o apoio velado da Globo por implicar nu-
no Congresso Nacional, os dois PLs e, sobretudo, “atenda os inte- ma menor tributação sobre o GloboPlay.
uma corrida entre dois resses da sociedade civil e dos produtores Ambos os projetos estruturam o que
Projetos de Lei (PLs) que independentes brasileiros e não da MPA”. se pode chamar de tripé da regulação:
tratam de um mesmo te- Logo depois, a Associação Brasileira das a visibilidade para as obras brasileiras;
ma: a regulação dos serviços de vídeo sob Produtoras Independentes (API), que con- o financiamento da produção local; e a
demanda no País. grega empresas menores – e que, em geral, questão dos direitos patrimoniais sobre
Sob a torcida de boa parte dos produto- não prestam serviços para as plataformas séries e filmes feitos no Brasil.
res independentes e com o aval do Minis- estrangeiras –, saiu em defesa do PL da Câ-
tério da Cultura (MinC), chegou a ser co- mara, apontando o lobby das “gigantes es- O primeiro aspecto envolve tanto a pro-
locado na pauta da Câmara, em regime de trangeiras”. “Não somos bilionários, mas eminência, que significa a garantia de visi-
urgência, o PL 8.889/2017, de autoria do somos muitos e defendemos a soberania bilidade para obras brasileiras, quanto as
deputado Paulo Teixeira (PT-SP) e com brasileira, a indústria nacional e o audio- cotas que asseguram uma quantidade mí-
relatoria de André Figueiredo (PDT-CE). visual independente”, afirma o grupo. nima de conteúdo brasileiro nos catálogos.
No Senado, com a simpatia das gran- Pelo que CartaCapital apurou, o Sindi- O PL da Câmara prevê uma cota de 2% a
des plataformas de streaming, o PL cato da Indústria Audiovisual (Sicav), do 20%, escalonada, de acordo com a receita
2.331/2022, de autoria do senador Nelsi- Rio, também defende a regulação origina- bruta. No outro PL, o teto da cota é de 5%.
nho Trad (PSD-MS) e transformado no da na Câmara. Esse texto, além disso, teria O segundo tema, o do financiamento,
substitutivo de Eduardo Gomes (PL-TO),
foi aprovado na Comissão de Assuntos
OBRAS BRASILEIRAS SÃO MINORIA ENTRE TÍTULOS
Econômicos e remetido à Câmara.
OFERTADOS NAS PLATAFORMAS
Ao saber que o PL da Câmara entra-
ria na Plenária, a Motion Picture Asso-
Brasileira
ciation (MPA), que representa empresas comum
Nacionalidade
como Disney, Netflix e Paramount, emi- indefinida
0,3%

tiu uma nota endereçada a Arthur Lira, 37,1%

presidente da Câmara, apontando a falta


Brasileira Brasileira
de consenso em torno do texto e listando 8,8% independente Brasileira não
6,3% independente
os riscos da regulação proposta. 2,2%
Na sequência, o Sindicato da Indús- Estrangeira
tria Audiovisual do Estado de São Paulo 54,1%

(Siaesp) e a Associação Brasileira da Pro-


dução de Obras Audiovisuais (Apro) di-
vulgaram uma carta na qual defendiam Fonte: Ancine

48 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
TAMBÉM pág. 52
NESTA Livros. Novas edições
SEÇÃO revelam a literatura russa da
segunda metade do séc. XX

A série Senna foi


feita no Brasil, mas
pertence à Netflix

passa tanto pela definição da Contribui- ca”, argumenta Leonardo Edde, do Sicav. À falta de uma regulação, o que se tem
ção para o Desenvolvimento da Indústria Atualmente, os direitos patrimoniais visto, este ano, são os investimentos em
Cinematográfica (Condecine) a ser paga dos originais das plataformas feitos no originais do streaming escassearem e al-
pelas plataformas quanto pelas possibi- País pertencem a essas empresas. É o guns projetos serem cancelados. “Vários
lidades de investimento direto. No PL do caso, por exemplo, de Senna, da Netflix. países estabeleceram, nos últimos anos, re-
Senado, as plataformas têm maior con- A Gullane Entretenimento figura como gras de conteúdo e de investimentos. Onde
trole sobre o destino dos investimentos produtora, e recebeu créditos e dinheiro essas empresas vão cortar? Obviamente,
obrigatórios e a Condecine é de 3% so- por isso, mas não poderá explorá-la co- nos países onde o investimento não é
bre o faturamento; no da Câmara, os re- mercialmente. Um dos objetivos da regu- obrigatório”, diz André Sturm, do Siaesp.
cursos passam pelo rito do sistema pú- lação, do ponto de vista da política públi- “Sem lei do vídeo sob demanda, vai aca-
blico de fomento e o porcentual é de 6%. ca, é induzir investimentos, por parte das bar a produção das plataformas no Brasil.”
Por fim, tem-se o tema dos direitos, plataformas, que resultem em proprieda- O advogado Caio Mariano, que atende
que envolve a titularidade e a proprie- des patrimoniais de empresas brasileiras. várias empresas do setor, é outro que tem
dade patrimonial. Esse é, talvez, o pon- presenciado, no dia a dia de seus clientes,
to mais sensível. O PL da Câmara man- Ao longo do trâmite na Câmara, o esse recuo. “Existe, a meu ver, um dese-
tém intacto o conceito de “obra brasilei- MinC tentou inserir no texto as platafor- jo, pouco pragmático, de se ganhar essa
ra independente”, que significa, de for- mas de compartilhamento, como TikTok disputa em todas as frentes. E isso dificil-
ma simplificada, que apenas produções e YouTube, e dar maior especificidade às mente vai acontecer, até porque hoje nada
das quais uma empresa brasileira detém cotas, para que elas espelhassem as polí- passa pelo Congresso sem que se negocie
a maioria dos direitos cumpre cota ou ticas afirmativas e de regionalização. Is- com todas as frentes ali representadas”,
pode ser beneficiada por incentivos fis- so, na visão de certos articuladores, fez diz. “Além disso, a produção independente
NETFLIX

cais. O PL do Senado dilui esse concei- com que as negociações andassem algu- está brigando com empresas como Meta,
to. “Isso quebra as bases da nossa políti- mas casas para trás. Google, entre outros players majors.” •

C A R TAC A P I TA L — 5 D E J U L H O D E 2 0 24 49
Plural

Sidney Magal
lidade de amante latino, de forte apelo
popular, contrastante com o contexto

em versão morna
repressivo da ditadura. E é esse período
que o longa-metragem retrata.
“Sou quase uma drag”, disse o cantor,
na entrevista coletiva sobre a cinebiogra-
CINEMA A comédia romântica musical Meu fia, realizada em São Paulo. “Falei para o
(ator) Felipe (Bragança): se não soltar o
Sangue Ferve Por Você diverte, mas não seu lado feminino, não vai funcionar.” O
faz jus à energia transgressora do artista receio dele não era infundado.

P O R S E B A S T I ÃO M O U R A A performance comportada de Bra-


gança não mobiliza a mesma energia de
Sidney Magal e a caracterização do per-

Q
sonagem acaba por depender bastante
uando vi o jeito como ele “Eu não era uma das milhares de do bom design de produção que emula a
olhou para ela, quis dar meninas que sonhavam casar com o estética positivamente brega nos figuri-
para ele.” Gargalhando Magal. Eu queria ser ele”, comenta a atriz nos do artista.
da ideia de sentir-se Emanuelle Araújo, que interpreta a sogra Na entrevista, Paulo Machline, o dire-
atraído pelo ator que in- do cantor e guarda, da época em que ele tor – que antes fez filmes como O Filho
terpreta ele mesmo, era onipresente na TV e no rádio, uma Eterno (2016), além de algumas séries –
Sidney Magal ilustra a sensibilidade lembrança infantil. “Ele era um símbo- contou que a ideia para o filme surgiu de
transgressora que atraiu produtores, di- lo de liberdade pura.” uma conversa com Magal e sua compa-
retor e elenco de Meu Sangue Ferve Por Nos anos 1970, quando estava no to- nheira, Magali West. Na ocasião, a per-
Você, em cartaz a partir da quinta-feira 30. po da carreira, Magal exibia uma sensua- gunta casual de ‘Como vocês se conhe-

50 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Figurinos. Felipe Bragança vive
o cantor em seu auge, nos anos 1970
ENSAIO SOBRE A PERDA
A Metade de Nós, em cartaz a partir da quinta-feira 30,
ceram?’ levou a uma narrativa de duas
acompanha um casal que busca lidar com o suicídio do filho
horas e meia.
Sua proposta declarada foi evitar o
viés enciclopédico que marca parte da le- Metade de Nós, endurecidas, está determi- Coincidentemente, saiu
va contemporânea de biopics musicais e
fechar o foco sobre um recorte específi-
co da vida do biografado, usando as fer-
A estreia de Flávio
Botelho no longa-
-metragem, é um filme que
nada a sofrer em silêncio.
Ele, dono de um olhar mais
suave, deseja que falem
agora no Brasil um livro in-
titulado, justamente, O
Que Não Tem Nome (DBA,
ramentas de gênero de uma comédia ro- procura captar, de modo sobre o suicídio. Botelho, 152 págs., 62,90 reais).
mântica musical. contido e íntimo, a maneira no material de divulgação Nele, a colombiana Piedad
O potencial considerável da ideia e a pela qual um casal sexage- do filme, conta que sua ir- Bonnett se coloca o se-
tentativa de fazer um filme envolvente, nário lida com uma dor di- mã se suicidou, em 2007, guinte desafio: como nar-
que agrade a um público mais amplo – co- lacerante: a do suicídio de e que nasceu dessa expe- rar a morte de um filho?
mo era o de Magal décadas atrás – não se seu único filho. riência seu desejo de falar Botelho escolhe narrar
traduz no produto final, especialmente Nos papéis dos prota- sobre o tema. essa morte a partir das
para quem não tem uma lembrança do gonistas, Francisca e Car- Carlos, ao sair de casa e duas vidas que restam: a
artista em seu auge. los, estão dois atores que ir viver no apartamento do do pai e a da mãe. Essa
contribuem muito para que filho, fala para o novo vizi- opção faz com que, mais
Os seis números musicais realistas a trama transcorra sem ar- nho: quem perde pai e até do que sobre o fim, A
são quase todos tímidos e a linha narra- roubos: Denise Weinberg e mãe, é órfão; quem perde Metade de Nós seja sobre
tiva do romance é canibalizada pelas di- Cacá Amaral. a companheira, é viúvo; e os recomeços.
gressões constantes que o texto faz para Ela, com feições quem perde o filho? – por Ana Paula Sousa
verbalizar as peças-chave da narrativa –
em vez de dar à audiência a chance de vê-
-las se desenrolar na trama.
A relação de Magal e Magali (Giovana
Cordeiro) é retratada, principalmente,
de forma indireta. Nas várias subtramas,
aquilo que poderia ser mostrado com eles
em tela – a intensidade imediata do de-
sejo, o dilema entre o amor e a fama ou a
redenção monogâmica do personagem
masculino – é colocado nos diálogos dos
personagens secundários.
Alguns deles, como aqueles do núcleo
GUIL H ERM E SACO N E R A FA M O RSE

familiar composto pela sogra de Magal


e seu tio Renan (Sidney Santiago), que
tem um alter-ego, Sandra Pink, funcio-
nam como um bem-humorado alicerce
para a narrativa. Mas essas histórias pa-
ralelas, ao mesmo tempo que propiciam
diversão, afastam o filme de seu eixo cen-
tral, que é a história de amor do casal de
protagonistas. • Rostos. Os atores Cacá Amaral e Denise Weinberg vivem os dois protagonistas

C A R TAC A P I TA L — 5 D E J U N H O D E 2 0 24 51
Plural

A Rússia depois
do “pedaços grandes de pedras” com um
martelo, “para fazer brita”: “A mãe disse
a Ivan que por cada pedrinha ela recebia

da Revolução
uma migalha de pão ou uma gota de leite,
e eles precisariam de muitas migalhas de
pão para viver”.
O mundo de detalhes construído por
LIVROS Nos anos recentes, uma leva de Platônov – o menino Afônia comendo
novas traduções de obras escritas na crostas de pão com manteiga; o velho car-
valho à beira da floresta onde Mítia enter-
segunda metade do século XX mostra a ra a mãe – contrasta com obras de seus
riqueza e a variedade da literatura russa contemporâneos lançadas nos últimos
dois anos no Brasil, como Dias Malditos
P O R K E LV I N FA LC ÃO K L EI N (Carambaia), diário de Ivan Búnin (1870-
1953), e Elos Líricos (Bazar do Tempo), co-
letânea de poemas e textos em prosa de

A
Marina Tsvetáieva (1892-1941).
quilo que entendemos psicológica, marcando a fase final da pro-
por “Rússia” teve diferen- dução de Platônov, que morreu em 1951. Apesar de ser mais velho, Búnin – pri-
tes denominações e dese- As histórias têm crianças e animais, vi- meiro escritor russo a ganhar o Nobel –
nhos territoriais ao longo das em contato estreito com a natureza, compartilha a primeira metade do século
dos séculos, mas uma coi- mas também com a pobreza, a violência e XX com Platônov e Marina. Em Dias Mal-
sa parece constante: a força e a influên- a morte. Humildade e misericórdia apare- ditos, prodígio de estilo e de registro his-
cia da sua literatura nos mais variados cem lado a lado com crueldade e ignorância. tórico, o escritor anota o que vê, lê e ouve
contextos e idiomas. Longe de ser um Iúchka, por exemplo, cuida de uma ór- em Moscou e Odessa entre 1918 e 1919, lo-
monolito definido pela oposição entre fã até ela se formar médica: ele “nunca go após a tomada do poder pelos bolche-
Fiódor Dostoiévski e Lev Tolstói, a lite- comeu açúcar para que ela pudesse co- viques: “Abri a janela, vi a rua: a lua bai-
ratura russa é feita de uma miríade de mê-lo”. O pai de Ivan, por outro lado, em xa, atrás das casas, não há uma alma se-
nomes e estilos. O Dom da Vida, morre de tísica na pri- quer e está tão silencioso que dá para ou-
No que diz respeito à tradução de são, forçando a mãe a trabalhar trituran- vir um cachorro que, em algum lugar da
obras russas, o contexto brasileiro é
muito positivo: nos anos recentes, vá-
rias editoras e tradutores colocaram
em circulação livros de Mikhail Kuz-
min, Ievguêni Zamiátin e Ivan Búnin,
entre outros. Acaba de aparecer, pela edi-
tora Ars et Vita, com tradução de Maria
Vragova, um volume de contos de Andrei
Platônov: Iúchka e Outras Histórias.
Platônov, nascido em 1899 – mesmo ano
de Jorge Luis Borges e Vladimir Nabokov –
começou a escrever poemas enquanto tra-
balhava com o pai, como assistente de ma-
RICK RODRIGUES

quinista, nos anos posteriores à Revolu- IÚCHKA E OUTRAS DIAS MALDITOS ELOS LÍRICOS
HISTÓRIAS
ção de 1917. Os contos da coletânea, escri- Ivan Búnin. Marina Tsvetáieva.
Andrei Platônov. Tradução: Tradução: Marcia Organização e tradução: Paula
tos entre 1935 e 1946, trazem uma densa Maria Vragova. Ars et Vita Vinha. Carambaia Vaz de Almeida. Bazar do
mistura de rusticidade e fina observação (128 págs., 72 reais) (212 págs., 99,90 reais) Tempo (208 págs., 52 reais)

52 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
VITRINE
POR A NA PAU L A SOUSA
Imaginários.
Iúchka e Outras
Histórias, de Andrei
Platônov, acaba de
sair no País, ilustrado
por Rick Rodrigues

A questão judaica e seus diálogos com o


debate identitário e o extremismo de direita
são o substrato no qual se desenvolve Pas-
seio com o Gigante (Cia. das Letras, 160
págs., 69,90 reais), nono romance de Mi-
chel Laub, nome dos mais importantes da
literatura contemporânea brasileira.

“Sempre soube que estava enfeitiçado”, diz


o inseguro narrador de Uma Oportunidade
(DBA, 168 págs., 64,90 reais), romance do
argentino Pablo Katchdjian. Caberá às
bruxas que cruzam seu caminho nos fazer
refletir sobre aquilo que nos move a esco-
lher um ou outro caminho.

calçada, está roendo um osso – mas onde Maiakóvski, Anna Akhmátova e Rilke.
é que ele foi arrumar esse osso?”. Em um dos poemas dedicados a
O livro de Marina Tsvetáieva come- Púchkin, ela escreve: A superação / Da
ça em 1914, pouco antes do diário de rotina russa – O gênio de Púchkin?”. Se Analista ambiental, Pablo Casella acom-
Búnin, e vai até 1936, quando come- algo pode ser dito da “rotina russa” é que panhou, por anos, o trabalho dos briga-
çam os contos de Platônov. Os escritos nela há pouco de previsível, como bem distas que procuram salvar a Chapada
Diamantina dos incêndios. Contra Fogo
evidenciam a estatura poética da auto- mostram esses três livros tão diversos e (Todavia, 320 págs., 79,90 reais) é o re-
ra e sua peculiar mescla de poesia com tão ricos, pontos de um mapa que – sorte lato ficcional dessa experiência e das
reflexões sobre outros artistas, como nossa – segue sendo aprimorado. • pessoas que o autor tão bem conheceu.

C A R TAC A P I TA L — 5 D E J U N H O D E 2 0 24 53
Plural

A natureza e seus
sentidos ocultos
Um livro ganhador do mais importante
prêmio científico do Reino Unido revela as habilidades
sensoriais de diversos animais
P O R PAT R I C J B A R K H A M

P
or que a lula gigante tem olhos ao Nosso Redor, de Ed Yong, recém-lan- Elogiado pelo presidente do júri da
do tamanho de uma bola de çado no Brasil, explora, de forma épica, Royal Sociaty de 2023, Alain Goriely, pro-
futebol? Por que mais de 350 o entorno particular de criaturas que fessor de Modelagem Matemática na Uni-
espécies de peixes produzem vão desde percevejos até sapos canto- versidade de Oxford, por “tornar as com-
eletricidade? Por que os cães res e que percebem o mundo de manei- plexidades da percepção animal acessíveis
ficam mais bem-humorados depois de ras muito diferentes de nós, humanos. A e fascinantes”, Yong inicia seu “triunfo da
duas semanas farejando bastante? obra funciona também como um apelo a narrativa científica” com visitas aos labo-
Os mistérios e milagres dos sentidos uma maior empatia com outras espécies. ratórios de biólogos que, em todo o mun-
dos animais são revelados na obra ven- do, se dedicam a estudar a sensorialidade.
cedora do prêmio Trivedi para livro cien- “Nossa maior habilidade sensorial é Ao mostrar que os sentidos dos ani-
tífico da Royal Society, a academia cien- a capacidade de pensar sobre os mundos mais não são apenas perfeitamente
tífica do Reino Unido, que já deu bolsas sensoriais de outros animais”, diz Yong, adaptados a seus ambientes, mas podem,
e prêmios aos mais ilustres cientistas de um jornalista especializado em ciência inclusive, impulsionar a evolução, os tra-
diferentes áreas. que, em 2021, ganhou o Prêmio Pulit- balhos desses pesquisadores revelaram
Um Mundo Imenso - Como os Sentidos zer por sua cobertura da pandemia de mundos ocultos – e fascinantes.
dos Animais Revelam os Reinos Ocultos Covid-19 para a revista The Atlantic. A capacidade dos primatas de ver as

54 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Mundos. O autor revela como o ruído no
oceano prejudica a comunicação entre as
baleias e o quanto o ato de farejar por
duas semanas melhora o humor dos cães

(não identificam corretamente as co-


res) ou prosopagnosia (não identificam
rostos)”, contar o autor. “Essa maneira
fora do ‘normal’ de vivenciar o mundo
pode ajudá-los a ter mais empatia com
outras criaturas que têm essas experi-
ências. No cerne deste livro, estão coi-
sas como curiosidade e empatia, além da
compreensão e valorização dos animais
por si mesmos. Esse trabalho é também
uma tentativa de fazer com que nos co-
loquemos no lugar de criaturas que são
muito diferentes de nós.”

A pesquisa moldou, por exemplo, a for-


ma como Yong criou o próprio cão de es-
timação, Typo, um corgi. O autor, a certa
altura, soube de um estudo que descobriu
que os cães ficam de melhor humor quan-
do recebem, por duas semanas, tarefas de
farejar – eles progridem quando podem
utilizar plenamente seu poderoso olfato.
Mas Um Mundo Imenso não é só sobre
animais. O livro também revela que os
humanos possuem sentidos mais incrí-
cores vermelhas, muito provavelmente, Atlantic, Yong entrevistou todos os ti- veis do que imaginamos. Nossa visão é
os ajudou a encontrar frutos comestíveis pos de cientistas. Mas os biólogos sen- boa, embora seja superada pelas de mos-
e folhas tenras da floresta tropical. Mais soriais são seus preferidos. cas assassinas e aves de rapina; nossa ca-
tarde, no entanto, muitos grandes prima- “Há um número surpreendente de pacidade de detectar fontes sonoras tam-
tas desenvolveram manchas na pele, que biólogos sensoriais que são neuroatí- bém é respeitável, ainda que muito infe-
podem adquirir o tom avermelhado, pa- picos – eles têm algo como daltonismo rior à das corujas e dos gatos.
ra enviar sinais – geralmente sexuais – E, assim como os animais, podemos
uns para os outros. desenvolver de forma profunda os nos-
Já os olhos da lula gigante evoluíram sos sentidos. O autor conhece um estadu-
até o ponto de se tornarem grandes o bas- “Esse trabalho é nidense cego que se movimenta “clican-
tante para detectar um de seus maiores também uma tentativa do”, usando a ecolocalização – um siste-
inimigos, os cachalotes, nos momentos ma de sonar, associado a morcegos e gol-
em que colidem com águas-vivas que
de fazer com que nos finhos, que é disparado quando um ani-
ISTOCKPHOTO

emitem lampejos bioluminescentes no coloquemos no lugar de mal emite uma onda sonora que rebate
oceano escuro. criaturas que são muito um objeto, fornecendo informações so-
Ao longo de sua carreira na The diferentes de nós.” bre distância e tamanho.

C A R TAC A P I TA L — 5 D E J U N H O D E 2 0 24 55
Plural

Narrativa científica. Ed Yong,


ganhador do Pulitzer por sua cobertura
da pandemia, explica, por exemplo,
o que permite que mais de 350 espécies
de peixes produzam eletricidade

“O que há de maravilhoso na poluição


sensorial é que essas soluções são possí-
veis, potencialmente rápidas e eficazes”,
diz Yong. “Mesmo que parássemos to-
das as emissões de gases de efeito estufa
amanhã, a mudança climática ainda te-
ria um impulso descontrolado, mas a po-
luição sonora e luminosa simplesmente
desaparece se apertarmos um interrup-
tor ou reduzirmos o ronco de um motor.”

Compreender melhor como outros


animais percebem o mundo também
pode resolver problemas ambientais.
Foi demonstrado que reproduzir sons
de recifes saudáveis sob a água atrai fi-
O livro de Yong carrega uma mensa- ajustes simples e práticos. Se trocarmos lhotes de peixes de volta a recifes que fi-
gem importante sobre o quanto a nossa as luzes LED de tons azuis/brancos para caram desertos após episódios de bran-
incompreensão dos mundos sensoriais vermelhos, por exemplo, elas se tornarão queamento de corais. “Obviamente, pa-
de outros animais é extremamente des- menos prejudiciais para morcegos e in- ra salvar os recifes de coral, temos de pôr
trutiva. A poluição sonora e luminosa ge- setos. E foi demonstrado que a redução fim às alterações climáticas. Mas com-
neralizada em um planeta antropogêni- da velocidade dos navios em apenas 12%, preender a vida sensorial de outras cria-
co está tendo um impacto cada vez maior no Mar Mediterrâneo, reduz pela meta- turas nos dá opções para preservar me-
nas populações animais. de o ruído dos motores no mar. lhor a natureza”, diz Yong.
Estudos demonstraram que as luzes No entanto, infelizmente, a redução da
LED são especialmente prejudiciais pa- poluição sonora e luminosa não está nem
ra morcegos e insetos. Flores iluminadas perto da agenda política.
por luzes fortes recebem 62% menos vi- “É compreensível que não esteja na
sitas de insetos polinizadores. agenda política, porque não é um proble-
Yong revela ainda que o ruído ma visceral como uma praia infestada de
de baixa frequência nos oceanos plástico ou produtos químicos saindo de
aumentou 32 vezes desde a Segunda uma chaminé”, admite Yong. “Luz e som
Guerra Mundial, devido ao transporte não geram o mesmo tipo de repulsa. A luz,
marítimo global, prejudicando a capa- especialmente, parece algo totalmente
cidade de comunicação das baleias. Os bom – queremos mais luz em nossas vi-
cientistas também demonstraram o das; luz é conhecimento, segurança, bele-
impacto negativo do ruído do tráfego za e bondade. Portanto, apenas aumentar
sobre morcegos e aves. a consciência de que estes são problemas
“Estes são grandes problemas sociais que poderiam ser resolvidos é um primei-
que exigem grandes soluções sociais”, UM MUNDO IMENSO ro passo importante, e espero que meu li-
ISTOCKPHOTO

diz o autor. Ele mostra, ao mesmo tem- Ed Yong. Tradução: Christian Schwartz. vro leve mais pessoas a dá-lo.” •
Todavia (544 págs.,129,90 reais)
po, que grande parte da poluição sono-
ra e luminosa pode ser melhorada com Tradução: Luiz Roberto M. Gonçalves.

56 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
AFONSINHO
Primeiro jogador de futebol a conquistar o passe livre, foi
ídolo do Botafogo nos anos 1960. Médico, usou o esporte
para auxiliar no tratamento de pacientes psiquiátricos

Os deuses do futebol
cados para participar da disputa Palmei- mão – o time vinha de 11 títulos seguidos.
► A vitória do Manchester ras, Flamengo e Fluminense. A grande surpresa mesmo veio, po-
United na Copa Neste momento, tanto na Europa rém, da finalíssima da Copa da Inglater-
quanto aqui entramos na fase de defini- ra, com o Manchester United sagrando-
da Inglaterra comprova ção das copas – regionais para nós e na- -se campeão e erguendo a taça.
a validade da máxima cionais para os europeus. O time de Erik Ten Hag fez 2 x 1 sobre
de que clássico Na França, deu Paris Saint-Germain o Manchester City, em Wembley. O jogo,
no campeonato nacional. A partida ser- disputadíssimo, como não poderia deixar
não tem favorito viu de despedida para Kylian Mbappé de ser, provocou sensações inesperadas.
que, ao que tudo indica, está de malas O retrospecto da campanha dos rivais
prontas para o Real Madrid. dava amplo favoritismo ao City, que vi-

A
Olimpíada de 2024, em Paris, E o Real Madrid também tem um as- nha da conquista do tetra no campeona-
passa a ganhar espaço na co- tro em fase de despedida. to inglês. Além disso, o United vinha de
bertura da mídia e nas con- um mau momento.
versas sobre o esporte à medida que as Na final da Champions League, no Mas nem mesmo os seguros britâni-
decisões dos torneios classificatórios, sábado 1º, contra o Borussia Dortmund, cos conseguiram vencer os “deuses do
mundo afora, vão dando concretude às em Wembley, o alemão Toni Kroos, de 34 futebol”.
futuras disputas. anos, começará seu processo de saída do As apostas eram tão favoráveis aos
Ao mesmo tempo, a passagem das es- futebol profissional, vestindo pela últi- derrotados que o jogo deixou a impres-
tações vai dando, a cada semana, feições ma vez a camisa do time espanhol. são de um erro de avaliação por parte da
distintas ao Hemisfério Sul e ao Hemis- Mas, obviamente, é cedo para saber- comissão técnica do City, encabeçada pe-
fério Norte. mos se não irá mesmo “cantar em outra lo extraordinário Pepe Guardiola.
Fala-se muito, inclusive, na unificação freguesia”. Supondo seguir a lógica evidente da
entre o calendário brasileiro e o europeu. E por falar em Alemanha, na Copa de- superioridade do seu time e com a ca-
E isso parece cada vez mais perto de les, a Bundesliga, deu mesmo o Bayern racterística de manter a posse de bola, a
acontecer, com o anúncio do Mundial de Leverkusen. equipe do City deixou o tempo correr e
Clubes 2025, já em fase de classificação Acabou, dessa forma, a hegemonia do caiu do cavalo, perdendo um título que
entre os 32 clubes de todos os continentes. Bayern de Munique no campeonato ale- era dado como certo.
O torneio, organizado pe- O jogo em si não foi bom du-
la Federação Internacional de rante o primeiro tempo. Chegou
Futebol (FIFA), será disputado até a ter “chutões” para cima, à
entre os dias 15 de junho e 13 de moda daquilo que, no interior,
julho do ano que vem, nos Es- chamamos “jogo de fazenda”.
tados Unidos. Causou estranheza ainda
A nova edição terá um for- a opção do City por jogadores
mato diferente. de estatura elevada, contra-
O torneio será organizado riando a orientação comum
B A P T I S TÃ O E J U S T I N TA L L I S /A F P

em oito grupos, com quatro ti- de Guardiola de privilegiar a


mes cada, que se enfrentam em técnica. O goleador norueguês
turno único. Os dois melhores Haaland, estrela do time, tam-
se classificam para as oitavas bém pouco apareceu.
de final e haverá mata-mata em Em resumo, comprova-se:
jogo único. Não haverá disputa mais uma vez valeu a máxima de
de terceiro lugar. que “clássico não tem favorito”. •
Pelo Brasil, já estão classifi- Zebra. O United fez 2 x 1 sobre o Manchester City redacao@cartacapital.com.br

C A R TAC A P I TA L — 5 D E J U N H O D E 2 0 24 57
VENES CAITANO

58 C A R TA C A P I TA L .C O M . B R
Curso

60 anos de Golpes
Autoritarismo brasileiro: do golpe
de 1964 à intentona bolsonarista de 2023
CartaCapital e um time de professores
consagrados te levam por uma jornada pelo
autoritarismo brasileiro.

Mergulhe no coração da história política do Brasil


e entenda a crise que continua a testar os limites
da nossa democracia.

A primeira aula ocorreu na primeira semana


de maio. Garanta agora sua vaga!

Inscreva-se agora!
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1964
2016

2023
VACINAÇÃO
CONTRA
A PÓLIO
Cuide bem dos nossos
futuros campeões.

De 27/5 a 14/6
Chegou a hora de vacinar as crianças menores de 5 anos
contra a paralisia infantil.

A paralisia infantil foi eliminada no Brasil por causa da vacinação,


mas isso não significa que o perigo não existe mais. Enquanto a doença
existir em outras partes do mundo, ela pode voltar. Por isso,
é preciso vacinar nossas crianças para garantir que a doença não volte.

Menores de 1 ano devem atualizar a caderneta.


Crianças de 1 a 4 anos devem receber uma dose da vacina.

Pais ou responsáveis, procurem uma Unidade Básica de Saúde.

Vacinar é bom
pra todo mundo.

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