Acórdão RESP 2037491

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RECURSO ESPECIAL Nº 2037491 - SP (2022/0354287-9)

RELATOR : MINISTRO ROGERIO SCHIETTI CRUZ


RECORRENTE : THIAGO EDVANIO DOS SANTOS
ADVOGADOS : DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO
LUÍS CÉSAR ROSSI FRANCISCO - DEFENSOR PÚBLICO -
SP227133
RECORRIDO : MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

EMENTA

RECURSO ESPECIAL. TRÁFICO DE DROGAS. SILÊNCIO DO


ACUSADO NA ETAPA INVESTIGATIVA SEGUIDO DE
NEGATIVA DE COMISSÃO DO DELITO EM JUÍZO. VIOLAÇÃO
DIRETA DO ART. 186 DO CPP. RACIOCÍNIO PROBATÓRIO
ENVIESADO. EQUIVOCADA FACILITAÇÃO PROBATÓRIA
PARA A ACUSAÇÃO A PARTIR DE INJUSTIFICADA
SOBREVALORAÇÃO DO TESTEMUNHO DOS POLICIAIS.
MÚLTIPLAS INJUSTIÇAS EPISTÊMICAS CONTRA O RÉU.
INSATISFAÇÃO DO STANDARD PROBATÓRIO PRÓPRIO DO
PROCESSO PENAL. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.
1. O direito ao silêncio, enumerado na Constituição Federal como direito
de permanecer calado, é sucedâneo lógico do princípio nemo tenetur se
detegere. Neste sentido, é equivocado qualquer entendimento de que se
conclua que seu exercício possa acarretar alguma punição ao acusado. A
pessoa não pode ser punida por realizar um comportamento a que tem
direito. Esse reprovável subterfúgio processual foi enfrentado no
julgamento do HC n. 330559/SC, em 2018. Consta, na ementa daquela
decisão, apontamento que também serve para o caso ora em apreço: "3.
Na verdade, qualquer pessoa ao confrontar-se com o Estado em sua
atividade persecutória, deve ter a proteção jurídica contra eventual
tentativa de induzir-lhe à produção de prova favorável ao interesse
punitivo estatal, especialmente se do silêncio puder decorrer
responsabilização penal do próprio depoente". (HC n. 330559/SC, Rel.
Ministro Rogerio Schietti, 6a T, DJE 9/10/2018)
2. Quem quer que se veja envolvido em um procedimento investigativo
da justiça criminal tem o direito de se manter em silêncio e não
colaborar. O fato de que a CRFB de 1988 tenha disposto, em seu art. 5o,
inc. LXIII, que "o preso será informado de seus direitos, entre os quais o
e permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de
advogado" não deixa dúvidas quanto à não recepção do art. 198 do CPP,
quando diz que o silêncio do acusado, ainda que não importe em
confissão, poderá se constituir elemento para a formação do
convencimento do juiz. Ora, quando a Constituição reconhece o direito
ao silêncio, restam excluídas de nosso ordenamento regras que
autorizem situações em que o exercício de um direito gere prejuízos ao
cidadão. Ter direito ao silêncio significa poder exercê-lo sem que, por
isso, seja punido. E tanto ficar em silêncio constitui um direito, que pesa
sobre o Estado a obrigação de explicá-lo a toda e qualquer pessoa, no
exato momento de sua prisão.
3. Ademais, a dimensão da presunção de inocência (enquanto regra de
julgamento) determina que, a menos que a acusação satisfaça o ônus de
provar que pesa sobre ela, o cidadão tem o direito de ser tratado como
inocente. Ele não pode ser prejudicado quando o Estado deixa de
satisfazer a condição que ele, Estado, deve cumprir para que esteja
legitimado a exercer o poder de punir. Nas palavras de Maria Elizabeth
Queijo: "A recusa do acusado em colaborar na persecução penal não
poderá ser interpretada desfavoravelmente a ele, em face do princípio da
presunção de inocência" (QUEIJO, Maria Elizabeth. "O direito de não
produzir prova contra si mesmo: o princípio nemo tenetur se detegere e
suas decorrências no processo penal". São Paulo: Saraiva, 2012, p. 102)
4. No caso dos autos, a absolvição em 1a instância do recorrente foi
revista pelo tribunal que, acolhendo a apelação interposta pela acusação,
condenou o réu pela prática do delito incurso no art. 33, caput, da Lei n.
11.343/06. Na linha argumentativa desenvolvida pelo TJSP, a negativa
do réu em juízo quanto à comissão do delito seria estratégia para evitar a
condenação. Estas as exatas palavras utilizadas no acórdão recorrido:
"Fosse verdadeira a frágil negativa judicial, certamente o réu a teria
apresentado perante a autoridade policial, quando entretanto, valeu-se do
direito constitucional ao silêncio, comportamento que, se por um lado
não pode prejudicá-lo, por outro permite afirmar que a simplória
negativa é mera tentativa de se livrar da condenação". Houve, portanto,
violação direta ao art. 186 do CPP.
5. O raciocínio enviesado que concedeu inequívoco valor de verdade à
palavra dos policiais e que interpretou a negativa do acusado em juízo
como mentira, teve o silêncio do réu em sede policial como ponto de
partida. A instância de segundo grau erroneamente preencheu o silêncio
do réu com palavras que ele pode nunca ter pronunciado, já que, do
ponto de vista processual-probatório, tem-se apenas o que os policiais
afirmaram haver escutado, em modo informal, ainda no local do fato.
6. Decidiu o Tribunal estadual, então, que, se de um lado havia razões
para crer que o réu mentia em juízo, de outro, estavam os
desembargadores julgadores autorizados a acreditar que os policiais é
que traziam relatos correspondentes à realidade, ao afirmarem: 1) que
avistaram o acusado descartando as drogas que foram encontradas no
chão, 2) que a balança de precisão que estava no interior de um carro
abandonado seria do acusado e, adicionalmente, 3) que ainda na cena do
crime, o recorrente haveria confessado informalmente que, sim,
traficava. Essa narrativa toma como verídica uma situação em que o
investigado ofereceu àqueles policiais, desembaraçadamente, a verdade
dos fatos, em retribuição à empatia com que fora tratado por eles; como
se houvesse confidenciado um segredo a novos amigos, e não
confessado a prática de um delito a agentes da lei. Com a devida vênia,
esta sim é uma hipótese implausível. Se é que de fato o acusado
confirmou para os policiais que traficava por passar por dificuldades
financeiras, é ingenuidade supor que o tenha feito em cenário totalmente
livre da mais mínima injusta pressão.
7. Para o que importa à análise do presente caso, são oportunas as
reflexões relativas às chamadas injustiças epistêmicas. Conforme nos
ensinam os seus estudiosos, sociedades marcadas por preconceitos
identitários — como, aliás, é o caso da sociedade brasileira — acabam
por apresentar trocas comunicativas injustas. Por vezes, a pessoa deixa
de ser considerada enquanto sujeito capaz de conhecer o mundo
adequadamente pelo simples fato de ser quem é. Sobre essas situações,
Miranda Fricker explica que se comete uma injustiça epistêmica
testemunhal quando um ouvinte reduz a credibilidade do relato
oferecido por um falante por ter, contra ele, ainda que não de forma
consciente e deliberada, algum(s) preconceito(s) identitário(s)
(FRICKER, Miranda. Epistemic Injustice: Power and the ethics of
knowing. Oxford: Oxford University Press, 2007). Negros em
sociedades racistas, mulheres e pessoas LGBTQIA+ em sociedades
machistas, pessoas com deficiência em sociedades capacitistas são
alguns exemplos de vítimas sistemáticas de injustiça epistêmica
testemunhal. Indivíduos provenientes de grupos sociais vulnerabilizados
têm de enfrentar o peso dessa realidade opressora nos mais diversos
contextos, inclusive no contexto da justiça criminal.
8. Nessa perspectiva, e ante a circunstância de que o recorrente é pardo,
cabe a lembrança do pensamento de Sueli Carneiro, acerca do racismo
estrutural que permeia a sociedade brasileira: "No caso do negro, a cor
opera como metáfora de um crime de origem da qual a cor é uma
espécie de prova, marca ou sinal que justifica a presunção de culpa. Para
Foucault, 'ninguém é suspeito impunemente', ou seja, a culpa presumida
pelo a priori cromático desdobra-se em punição a priori, preventiva e
educativa. A suspeição transforma a cena social para os negros em uma
espécie de panóptico virtual, 'a vigilância sobre os indivíduos se exerce
ao nível não do que se faz, mas do que se é, não do que se faz, mas do
que se pode fazer'. Assim, a própria cena social é onde se realiza a
vigilância e a punição como tecnologias de controle social".
(CARNEIRO, Sueli. Dispositivo de racialidade: a construção do outro
como não ser como fundamento do ser. Rio de Janeiro: Zahar, 2023, p.
125)
9. Ademais, analisando o fenômeno das falsas confissões, autores como
Jennifer Lackey sinalizam que o sistema de justiça acaba praticando
múltiplas injustiças epistêmicas contra um mesmo sujeito: ao confessar
(ainda que sob tortura, maus tratos, ameaça, pressão psicológica etc.), o
investigado/acusado tem rapidamente reconhecida a sua credibilidade;
quando, ao contrário, busca se retratar, já não é considerado merecedor
do mais mínimo grau de credibilidade. Trata-se de um paradoxo:
acreditam que o relato do sujeito corresponde a uma correta
reconstrução dos fatos precisamente quando ele tem menos preservada a
sua autonomia cognitiva; de outro lado, quando mais pode trazer
declarações confiáveis, porquanto emitidas sem injustas pressões
externas, aí é que não se observa mínima disposição para acreditar em
suas palavras. Essa falaciosa economia de credibilidades que o sistema
de justiça oferece a um único e mesmo sujeito em distintos momentos
constitui claro exemplo do que Lackey nomeou de injustiça epistêmica
agencial (LACKEY, Jennifer. False confessions and testimonial
injustice. In Journal of Criminal Law & Criminology, v. 110, p. 43-68,
p. 60, 2020).
10. Foi exatamente o que ocorreu no caso deste recurso especial.
O tribunal incorreu em injustiças epistêmicas de diversos tipos, seja por
excesso de credibilidade conferido ao testemunho dos policiais, seja a
injustiça epistêmica cometida contra o réu, ao lhe conferir credibilidade
justamente quando menos teve oportunidade de atuar como sujeito de
direitos. A confissão informal — se é que existiu — não tem valor como
prova, no sentido processual, configurando-se equivocada a postura de
aceitar acriticamente que o investigado fala a verdade em cenário
carente das mínimas condições para atuar livre e espontaneamente.
11. Neste sentido, é preciso reconhecer que, se se pretende aproveitar a
palavra do policial, impõe-se a exigência de respaldo probatório que vá
além do silêncio do investigado ou réu. O silêncio não descredibiliza o
imputado e não autoriza que magistrados concedam automática
presunção de veracidade às versões sustentadas por policiais. Seguindo
este raciocínio, de que é necessário corroborar a isolada palavra do
policial, impõe asserir que, tivessem os policiais gravado toda a
abordagem — do início ao fim —, ao menos seria possível saber como a
confissão se deu. A medida viabilizaria que o conteúdo objeto de
registro pudesse vir a servir de elemento informativo, sendo mais do que
oportuno repisar que não seria suficiente de per si para a condenação.
Como não o fizeram e, ante a manifesta escassez probatória que — em
violação ao art. 186 do CPP — se extraiu do silêncio do acusado
inferências que a lei não autoriza extrair, impõe-se reconhecer que o
standard probatório próprio do processo penal, para a condenação, não
foi superado no presente caso. Enfim, tal como o tema do
reconhecimento de pessoas pediu-nos reflexão acerca dos erros que o
Judiciário cometeu no passado, o tema do silêncio também requer nossa
atenta autocrítica.
12. Tendo isso em consideração, o interesse institucional na otimização
dos testemunhos de policiais deveria servir de sério estímulo a que se
retomasse o tema discutido no julgamento do HC n. 598.051/SP e se
investisse na documentação, em vídeo e áudio, dos atos de investigação
ou de abordagem policial, tal qual se passou a demandar em relação ao
ingresso domiciliar, de sorte a tornar mais robusta, confiável e infensa a
questionamentos éticos ou epistemológicos a prova produzida longe do
contraditório judicial.
13. A escassez probatória do presente caso impõe provimento desse
recurso especial, para absolver o recorrente da prática do crime descrito
no art. 33, caput, da Lei n. 11.343/06.

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas,


acordam os Ministros da Sexta Turma, por unanimidade, dar provimento ao
recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator.
Os Srs. Ministros Antonio Saldanha Palheiro, Jesuíno Rissato
(Desembargador Convocado do TJDFT), Laurita Vaz e Sebastião Reis Júnior
votaram com o Sr. Ministro Relator.

Brasília (DF), 06 de junho de 2023.

Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ


Relator

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