Tempo e Espaco Artigo
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RESUMO INTRODUÇÃO
Esse artigo pretende refletir, em forma de es- A questão do tempo e espaço sempre implicou
boço, pois não vai mais além do que isto, as noções de em concepções e reflexões ontológicas e epistemo-
tempo e espaço no pensamento antropológico, restrin- lógicas sobre estes e seus inter-relacionamentos. Na
gindo-se sobretudo ao período clássico desta ciência. tradição ocidental desde a antigüidade clássica, tempo e
Dos evolucionistas à escola francesa, passando pelos espaço são pensados e refletidos nas elaborações filo-
particularistas de Boas e pelo estrutural-funcionalis- sóficas, com repercussões que se fazem sentir nas ciên-
mo de Radcliffe-Brown, estas categorias (compreendi- cias humanas, sobretudo história e ciências sociais. A
das principalmente a partir de uma concepção antropologia no processo de sua construção enquanto
kantiana) foram fundamentais na construção ciência moderna elaborou em diferentes etapas relações
epistemolôgica da antropologia e influiu nos seus diferenciadas com estas duas categorias, relações e con-
direcionamentos metodolôgicos. Faço, então, uma bre- cepções estas que foram influenciadas (e influenciou)
ve análise dos usos (ou não-usos) destas noções ten- por contextos históricos, culturais e filosóficos. Sem
tando, ainda, fazer uma rápida relação com o tempo/ dúvida, aliás, de uma forma ou de outra, a filosofia tem
espaço na contemporaneidade antropológica. um impacto grande na antropologia; mas para nós bas-
ta, por enquanto, tratar, a princípio e rapidamente, das
RESUMÉ concepções de KANT (1724-1804), que, de diferentes
maneiras, repercutiram na antropologia, principalmente
Cet article, enforme d'esquisse, prétend nous do período clássico, sendo talvez, na minha perspectiva,
emmener à Ia reflexion sur les categories du temps um dos pensadores que mais contribuíram para a cons-
et de I' espace dans Ia pensée antthropologique, trução dessa disciplina. Assim, para ele - quando discu-
concernée dans Ia période classique de cette te na Crítica da Razão Pura -, tempo e espaço são
science. Dês les evolucionistes jusqu 'a à l'école categorias de entendimento do pensamento humano, mas,
françaisc, en passant par le particularisme de Boas ao contrário de outras (quantidade, qualidade, relação e
et le structural-functionalisme de Radcliffe-Brown, modalidade), não são categorias puras (pureza esta que
ces categories ( comprises surtout a partir d'eune implica em transcendência e imperatividade). KANT
conception kantienne) ont eu une inportance pensa então que elas são formas a priori do pensamen-
fondamentale dans Ia construction epistemologique to, dando forma e dimensão às categorias puras, sendo
de I 'anthropologie, au même temps qu 'a influencé que estas se concretizam, fenomenologicamente, a par-
les perpectives méthodologiques. Voici alors une tir da condição daquelas. Depois de um período de "gló-
breve analise differents conceptions de ces notions. ria", essa postura de Kant vai ser questionada pelos
tout en essayant d'élaborer un rapport entre le temps/ neokantistas, principalmente HAMELIN (1856-1907)1,
l'espace el Ia comtemporanité anthropologique. contemporâneo de Durkheim, que vai ampliar estas re-
flexões a partir do momento que considera tempo e es-
1 Mísia Lins Reesink é mestra em Antropologia pela UFPE e Pro-
fessora Assistente do Departamento de Antropologia da Univer- 1 Para uma melhor discussão da concepção de Hamelin, ver R. Car-
sidade Federal da Bahia (UFBA) doso de Oliveira (1988).
.,.,...
paço também como categorias puras do entendimento diretamente implicados na questão da alteridade - sen-
humano". Ora, a antropologia, sobretudo a partir do do esta problema básico para a antropologia.
momento que faz uma reflexão sobre os pressupostos Diante do exposto acima, pode-se ver como as
evolucionistas, tende a pensar estas categorias não mais categorias tempo/espaço se constituem, então, como
apenas como puras, mas sobretudo como construções pontos fundamentais para o conhecimento antropológi-
socioculturais. Mas, por enquanto antes de entrar numa co (mesmo quando há uma tentativa de negação ou anu-
discussão mais "exaustivamente antropológica", gosta- lação do tempo), pois instituição sociocultural implica
ria de voltar um pouco mais minha atenção para alguns reciprocamente em tempo/espaço. Sendo assim, o que
aspectos mais propriamente ontológicos do tempo/es- pretendo aqui é esboçar, rapidamente, como estas cate-
paço discutidos mais contemporaneamente, privilegian- gorias foram pensadas e refletidas no percurso que a
do aqui a perspectiva de C. CASTORIADIS. antropologia fez (e refez), centrando minhas considera-
Partindo de uma abordagem mais "estruturalis- ções no período da antropologia clássica (ou seja, antes
ta", C. CASTORIADIS (1992) concebe que há três da revolução estruturalista de Lévi-Strauss), a partir
tipos diferentes de tempo e espaço. Primeiramente, o principalmente das considerações de autores como J.
tempo/espaço objetivos (comensurável, quantificável, FABIAN, R. CARDOSO DE OLIVEIRA, R. DA-
materializado, conídico' ); com implicações no sistema MA TT A. Além disto, gostaria ainda de demonstrar a
filosófico de Aristóteles, por exemplo. Segundo, o tem- utilização do tempo/espaço como categorias de análise
po e espaço subjetivo, aquele experienciado e vivido pelo em etnografias clássicas, como a de E. EV ANS-
sujeito, estas categorias" aqui como ponto de importan- PRITCHARD, e também refletir um pouco, a partir de
tes reflexões para Santo Agostinho. Por último, o tempo etnografias contemporâneas, como estas categorias são
e espaço cósmicos, ou seja, o tempo e espaço enquanto pensadas hoje pela antropologia.
tais, base tanto para o objetivo, quanto para o subjetivo.
No entanto, como diz CASTORIADIS, tradicionalmen-
te estes dois primeiros tempos e espaços sempre foram NOCÕES DE TEMPO E ESPACO:UM BALANCO
pensados separadamente; entretanto, são fundamental- ANTROPOLÓGICO' .
mente inseparáveis: diferentes, mas complementares.
O tempo e espaço, assim, possuem duas dimensões: uma Se seguirmos o que pensa CASTORIADIS,
conídica ( relativa à lógica racional e ao cósmico) e ou- tempo/espaço estão em relação de implicação com
tra imaginária, estas sendo plenas de significação e sig- alteridade; ou seja, a percepção do "Outro", do diferen-
nificado. Num eco distante das idéias de KANT e te, se dá também a construção do tempo e do espaço. A
HAMELIN, então, institui o seu mundo a partir de dois partir disto, agora seguindo FABIAN (1983), tempo/es-
receptáculos: o espaço e o tempo social, tanto conídico, paço/'Outros" se constróem a partir de uma perspecti-
quanto imaginário, sendo que a instituição do espaço e va de inclusão/exclusão. Portanto, segundo este autor,
do tempo conídico (objetivo e cósmico) é modificado e na pré-modernidade o tempo e o espaço são pensados
alterado pela instituição do tempo e espaço imaginário inclusivamente, ou seja, a partir da conversão e salva-
(subjetivo - esse mesmo auto-alteração). Tempo e es- ção, o mundo pagão circundante era incluído dentro da
paço são então, relativos e se constróem implicitamen- espacialidade e temporal idade do mundo cristão; o mo-
te, e mais ainda, segundo CASTORIADIS, estão vimento então é o de inclusão. Já na modernidade, o
que ocorre é um distanciamento, onde a civilização eu-
ropéia é "aqui" e "agora" (here and now); e "lá" e o
2 Essa perspectiva de Hamelin será ampliada e rediscutida por "então" (there and then) é o tempo e o espaço dos sel-
Durkheim e Mauss, como veremos mais tarde. vagens. Ora, H. CLASTRES (apudMONTERO, 1991)
) O termo "conídico" foi elaborado por Castoriadis como uma con- já refletiu que é a partir do Iluminismo que a sociedade
tração do termo conjuntistalidentitário, que se refere à lógica racio-
ocidental vai pensar e refletir sobre a sua própria condi-
nal, ao que ele chama de fazer e dizer/representar social. Conide é
tudo aquilo que diz respeito ao que é conjuntizável pelo homem,
ção de sociedade, fazendo isso a partir de uma auto-
quantificável lógico-racionalmente pelo homem. O elemento consciência histórica, mas que, no entanto, nessa reflexão'
conídico é também instituído pelo imaginário radical e é necessá- não se inclui as sociedades diferentes, porque para o
rio para a instituição de uma sociedade pelo imaginário radical. O Iluminismo estas sociedades não têm história, impossi-
social-histórico não prescinde do elemento conídico.
bilitando o seu conhecimento, pois, para estes ilumina-
4 Utilizarei aqui neste trabalho a concepção de tempo e espaço
como categorias, mas em um sentido mais lato, próximo a "idéia" dos, o único método que assegurava um conhecimento
e "conceito". cientifico era o método histórico. H. CLASTRES acres-
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rápida e superficial análise que servirá mais a título de de linhagem e parentescos. Portanto, ele afirma que os
exemplo. Nuer têm uma baixa profundidade temporal, tendo em
vista que o tempo é fixo e contado entre dois pontos.
Assim, por exemplo, o tempo é contado entre um grupo
ALGUNS EXEMPLOS ETNOGRÁFICOS E O de agnatos em relação ao ancestral em comum mais
TEMPO/ESPAÇO afastado na escala temporal, os graus de parentesco, no
entanto, são quatro: avô - pai - filho - neto. Quando se
Ora, a antropologia está transbordando de im- pensa nos grupos etários, os Nuer concebem seis e o
portantes textos etnográficos que tocam a questão do tempo é contado entre o primeiro e o sexto grupo etário.
tempo/espaço - tomando-os invisíveis ou o contrário. Como fala EV ANS-PRlTCHARD, para os Nuer o co-
Mas, aqui me deterei sobre dois trabalhos que conside- meço do mundo foi e é há um tempo sempre recente.
ro exemplares: o primeiro é a clássica etnografia de E. Ainda em relação ao tempo estrutural, EV ANS-
EV ANS-PRlTCHARD sobre os Nuer da África; o se- PRlTCHARD considera que este está condicionado e
gundo é um trabalho contemporâneo da antropóloga bra- estruturado pelo espaço ou distância estrutural, como já
sileira E. WOORTMANN sobre uma população mencionei; o tempo só pode ser conhecido se se conhe-
pesqueira do Nordeste do Brasil. Assim, o que pretendo ce a distância estrutural. Mas, para compreender isto é
é, rapidamente, demonstrar como o tempo/espaço foi necessário antes considerarmos os espaços Nuer, por
pensado na antropologia clássica e como é concebido EVANS-PRITCHARD.
hoje na antropologia contemporânea. Ora, os Nuertambém possuem dois espaços ou
distâncias: a ecológica que se refere a distribuição e
densidade, como também à água, a vegetação, etc.; e a
EVANS-PRITCHARD - OS NUER distância estrutural, que se refere as relações entre
grupos e ao valor e significado dessas relações, modifi-
Talvez esta seja uma das etnografias mais conhe- cando a distância ecológica. Assim, se três aldeias ( a,
cidas sobre o tempo e o espaço de uma dada sociedade, no a', e b ) estão geograficamente eqüidistantes, na dis-
caso, a sociedade Nuer. Aqui EV ANS-PRlTCHARD tância ecológica, se a, e a' fazem parte de uma mesma
(1978) analisa a sociedade Nuer (dentro de uma perspec- linhagem, elas estão mais próximas em relação à dis-
tiva estrutural-funcional, na tradição de RADCLIFFE- tância estrutural do que b. Há, então, alguns tipos de
BROWN) considerandoque o socialestá contidono ecológico. distâncias estruturais: linhagem grupos etários, etc.
A partir dos seus dados, ele descreve que os Nuer conce- Assim, a distância estrutural entre segmentos de linha-
bem dois tipos de tempo (sendo o tempo uma sucessão de gem mínima é menor do que a distância estrutural entre
acontecimentos): o tempo ecológico e o tempo estrutu- os segmentos da linhagem menor, que é menor do que
ral. No primeiro, o tempo é concebido como um reflexo os segmentos da linhagem maior que é menor do que os
das relações com o meio ambiente; no segundo o tempo é segmentos da linhagem máxima. É partindo da distân-
concebido como um reflexo das relações entre os grupos cia estrutural entre, por exemplo, os indivíduos de um
sociais. O tempo ecológico possui uma concepção cíclica, grupo de agnatos, que se conhece o tempo estrutural
sendo a contagem do tempo anual, em que se encontram dessa linhagem a partir do ancestral comum mais longe
duas estações principais: a da chuva e de seca. É seca na estrutura de linhagens. Assim, para o autor, tempo e
quando se está no acampamento, é chuva quando se está espaço se inter-relacionam, o espaço condicionando o
na aldeia. A concepção de tempo ecológico é feita a partir tempo. E, nessa brilhante etnografia de EV ANS-
das atividades, ou seja, são as atividades que defmem o PRlTCHARD, podemos encontrar o pressuposto da
tempo ecológico. Assim, literalmente, o tempo é o de seca, escola britânica, e já mencionados, do tempo e espaço
não porque cessaram as chuvas, mas porque se está no relativos apenas à sociedade estudada, mais especifica-
acampamento. Nesse sentido, são as atividades que dão mente, à estrutura e funcionamento de uma socieda-
significado ao tempo ecológico. O tempo estrutural é um de específica.
reflexo ou está condicionado pela distância estrutural:
faz parte, assim, propriamente da estrutura social. Segun-
do EVANS-PRITCHARD, a contagem do tempo estrutu- E. WOORTMANN - TEMPO, ESPAÇO E GÊNERO
ral se dá a partir de pontos significativos dentro do contexto
social e histórico para o grupo, mais a relação entre os Chega-se então à contemporaneidade. Na
grupos de conjuntos etários e a relação dos segmentos etnografia "Da Complementaridade à Dependência: