Verso Livre Paulo Henriques Britto

Fazer download em docx, pdf ou txt
Fazer download em docx, pdf ou txt
Você está na página 1de 20

O natural e o artificial: algumas reflexões sobre

o verso livre

O presente trabalho examina o conceito de “verso


livre”, demonstrando que o termo designa não uma única
forma, mas todo um continuum de práticas prosódicas, e
apontando para a historicidade de cada uma de suas
variantes. Em seguida, critica alguns pressupostos e posições
comuns entre poetas e críticoscontemporâneos, como a ideia
de que, ao contrário das formas tradicionais, datadas e
inutilizáveis no mundoatual, o verso livre seria descomprometido
com qualquer temporalidade, imune a qualquer conceito
de regra e de algum modo mais “natural” que as formas
fixas.

Palavras-chave: verso livre, versificação, tradição, artifício

The Natural and the Artificial: Some Reflections on Free


Verse

This article analyzes the notion of “free verse,” showing that


the term refers not to a specific form but rather to
a continuum of prosodic practices, and underscoring the
historicity of each variant. It furthercritiques some
assumptions and positions common among contemporary poets and
critics, such as the idea that traditional forms are too dated
to be suitable for our times, whereas free verse is
unblemished by historical associations, immune to rules of
any kind and somehow more “natural” than metered verse.

Keywords: free verse, versification, tradition, artifice

O natural e o artificial: algumas reflexões sobre


o verso livre
Paulo Henriques Britto
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro(PUC-Rio)

Do ponto de vista formal,a principal contribuição do


século XX à poesia foi sem dúvida o verso livre. Ainda em
meados do século XIX, Walt Whitman introduziu a forma
no repertório da poesia ocidental. Mas dada a centralidade
da cultura francesa na época, foi só depois de adotada
por Rimbaud e pelos simbolistas no final do século XIX
— entre eles, Laforgue, tradutor de Whitman — que
a inovação teve real impacto sobre as outras literaturas,
em particular a brasileira, muito embora Fernando Pessoa
e a geração de Orfeu já registrassem a influência
de Whitman. A partir daí, o verso livre se difundiu
largamente, nas suas últimas décadas vindo a se tornar
não uma opção formal entre outras, e sim a forma mais
identificada com o poético em si — situação que
ainda se mantém neste início do século XXI. No Brasil o
verso livre tornou-se a forma defaultda poesia contemporânea.
Adotar a métrica tradicional passou a ser uma forma de
dissidência, um desvio do mainstream da linguagem poética
de nosso tempo:o que não deixa de ser irônico,
quando se leva em conta que o verso livre surgiu
justamente como uma atitudede rebeldia, uma rejeição das
convenções da arte poética.
Quando examinamos a maneira como o verso livre
foi proposto nos primórdios do modernismo brasileiro, e
também como foi recebido pelos leitores e críticos,
fica claro que o que estava em jogo era nada menos do
que o próprio conceito de poesia.Para os
tradicionalistas — os parnasianos, a Academia Brasileira
de Letras, o leitor médio da época — a expressão “verso
livre” era um oximoro. Negar o metro, negar a rima,
defender a posição de que cada poeta deveria
inventar sua própria forma cada vez que compunha um
poema, eram propostas encaradas como ataques ao que
havia de mais essencial na poesia.As regras de versificação
eram condições definidoras do poético; em todas as

1
épocas, em todas as culturas, poeta era aquele que
praticava uma arte que consistia em submeter as
palavras do idioma a uma série de convenções que as
transformavam em poesia,tal como as convenções da pintura
permitiam produzir arte a partir de pedaços de tela
esticados, pincéis e tinta. As convenções mudavam, é claro;
seria naturalque surgissem novas regras para o verso — mas
negar a necessidade de regras era negar a própria arte.
No momento inicial, os modernistas, por outro lado, viam
a situação pelo ângulo oposto. Para eles, a poesia
consistia em algo impossível de reduzira fórmulas; tais
fórmulas, longe de constituírem a essência da arte, haviam
se transformado em cadeias que aprisionavam a criatividade
dos poetas. Diante das circunstâncias radicalmente novas em que
o poeta do século XX se via mergulhado, o que se
fazia necessário não era um novo conjunto de regras,
modificadas de modo a adaptar-se a um mundonovo, e
sim uma condição radical de liberdade. A expressão
“palavras em liberdade” — a fórmula consagrada de
Marinetti — sintetizava a ambição dos poetas modernistas.
Não que alguns dos pioneiros do versilibrismo fosseminconscientes
de que estavam praticando uma forma, a qual não
poderia deixar de ter suas próprias regras; mas mesmo
os mais perceptivos davam mostras de desorientação. Como
demonstra Chociay (1993),nem Manuel Bandeira nem Mário
de Andrade, que além de introduzirem o verso livre na
poesia brasileira também pensaram a sério as questões
levantadas pela nova forma, jamais conseguiram chegar a conclusões
mais sólidas.1 Para dar apenasum exemplo, no “Prefácio
interessantíssimo” Mário afirma que o verso livre, ao evitar as
1 V., em particular, na correspondência de Mário de Andradee
Manuel Bandeira, a carta de Bandeira de 30 de
março de 1925 (Andrade e Bandeira 2000: 192-194).
formas oracionais completas e privilegiar sintagmas nominais
e verbos no infinitivo, trabalha com harmonia em vez
de melodia (Andrade 1987: 68-72).Basta uma breve reflexão
para que se levante a objeção óbvia: a linguagem
humana, em prosa ou em verso, com ou sem recursos
tradicionais, é inevitavelmente linear. Apesar de toda a
argumentaçãode que Mário se vale para escapar dessa crítica,
que espertamente ele já antecipa, o fato é que
harmonia é precisamente o recurso musical que a
poesia não pode imitar. Uma escansão cuidadosa de um
punhado de poemas da Pauliceia desvairada revela algo
bem menos revolucionário: a utilização de ritmos tradicionais,
até mesmo versos perfeitamentemétricos de vez em
quando, porém sem haver um metro regularque vigore por todo
o poema. O próprio Bandeira já havia chamado
a atenção de Mário para esse fato, como lembraChociay
(1993: 45-46).Se quisermos uma analogia musical, teremos
que procurá-la no campo do ritmo. Do ponto de vista da
forma, o verso da Pauliceia estaria para os de Bilac não
como uma

3
fuga a duas vozes está para uma linha melódica única, e
sim como uma peça musical cujo ritmo muda de modo
inesperado a todo instante está para uma obra que segue
um compasso tradicional — ou seja, mais ou menos como
Le sacré du printemps está para Eine kleine Nachtmusik. Seja
como for, a falha apontada na análise feita por Mário é
menos importante do que o fato de que ele compreendia
que o verso livre não representava a ausência de
técnica, e sim uma nova técnica. Bandeira tinha uma
posição semelhante; quando, porém,muitos anos depois da troca
de cartas com Mário, no ensaio “Poesia e verso”, tenta definir
poesia levando em conta o verso livre, ele termina
afirmando, frustrado, que sente “às vezes uma grande tentação”
de definir verso da maneira mais tradicional, “como ensinavam
Bilac e Guimaraens Passos” (Bandeira 1967: 136).
Com a perspectiva que nos é proporcionada por
um século de distanciamento, hoje é possível entender
o verso livre como uma convenção, tão passível de estudo
e classificação como o decassílabo ou o soneto. Mais
exatamente, trata-se de um repertório de recursos
formais, uma pluralidade escamoteada pela adoção do termo
único “verso livre”, como podemos verificar com facilidade.
Comparecem-se os dois exemplos abaixo.O primeiro trecho
é a passagem inicial da “Confidência do itabirano” de
Carlos Drummond de Andrade, poema de 1940 (Drummond 2003:
68); o segundo é o início de “Autorretrato para
agência de acasalamento”, de Ricardo Domeneck, um
jovem poeta brasileiro da atualidade (Domeneck 2009a: 25):

Alguns anos vivi em Itabira.


Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso, de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
4
A- pós
a

noite em

claro com

Antonioni /
Plath /
Radiohead
você pergunta-
me pela vida
humorosa? (cf.
O. de A.)
auto-devastar-se a
única art we
master, só nos
entendendo via
subtração,

Designar como “verso livre” a forma de cada um desses dois


poemas implicaque o termo só pode ser definido
negativamente: verso livre é aquele que não obedece a
um padrãométrico regular. Porém uma tal definição teria
a desvantagem de incluir qualquer trecho em prosa que fosse
arbitrariamente dividido em linhas que imitassem versos, como
observa Bandeira (1967: 35). Uma outra opção, que venho
tentando explorar (Britto 2011a, 2011b), é entender “verso
livre” como o nome não de um tipo específico de verso,
mas de todo um continuum de formas cujos pontos extremos
são, de um lado, o verso polimétrico, e, de outro,
práticas poéticas que abrem mão do verso, das quais a
poesia concreta é a mais importante no Brasil. O que
todas essas formas teriam em comum seria a utilização
consciente do que chamaremos de ritmo como um dos mais
importantes princípios organizadores da escrita,porém sem recorrer
a um padrãométrico fixo. “Ritmo” é entendido aqui
como “a figure of periodicity, any sequence of events or
objectsperceptible as a distinct pattern capable of
5
repetition and variation” [uma figura de periodicidade,qualquer
sequência de eventos ou objetos perceptível como um
padrãodistinto, capaz de repetição e variação]2 (Preminger
e Brogan1993: 1066-1067).
Já em 1917, Eliot (1985: 183) observava que “vers libre
does not exist” [não existe vers libre], pois o metro, entendido
como repetição de um padrão, é inevitável, ainda que
“there is [...] no reason why, within the single line, there should
be any repetition” [não haja motivo[...] para que, num dado
verso, tenha que haver alguma repetição] (p. 185): o
chamado verso livre seria apenasaquele em que o metro não
é o mesmo em todos os versos do poema. Eliot
concluique a divisão entre poesia convencional e verso livre “does
not exist, for there is only good verse, bad verse, and chãos”
[não existe, pois tudo que há são versos bons, versos ruins e
caos] (p. 188). É precisamente essa a posição de
Cavalcanti Proença (1955: 96): a liberdade do verso livre,
afirma ele, “existe apenaspara a associação entre células métricas.
Estas permanecem as mesmas”. Ou seja: os elementos são
constantes; apenasé flexibilizado o modo de dispô-los. Tais
afirmações podemser verificadas analisando-se um poema em versos
livres do tipo mais tradicional, que chamaremos de whitmaniano:
versos longos,quase sempre terminados em pausa. Tomemos como
exemplo o trecho inicial de “Confidência do itabirano”
transcrito acima:3

2A tradução é minha, aqui e nas citações de Eliot que


se seguem.
3 Utilizo aqui a notação que tenho empregado em trabalhos
anteriores, baseada na de Cavalcanti Proença; os
significados dos símbolos serão explicados no decorrerda
análise. Minha análise parte da apresentada por Cavalcanti Proença,
porém contém alguns detalhesadicionais.
6
Alguns anos vivi
em Itabira. - \ / - - / - - - / - ||
(2)-3-6-10
Principalmente nasci em
Itabira. - - \ / - - / - - - / - || (4)-5-7-11
Por isso soutriste,
orgulhoso, de ferro.
- / - - / || - - / - || - / - || 2-5-8-11
Noventa por cento
de ferro nas
calçadas. - / - - / - - / - - - / - || 2-5-8-12
Oitenta por cento
de ferro nasalmas.
- / - - / - - / - - / - || 2-5-8-11

Como observa Cavalcanti Proença (p. 103-105), nesta parte


inicial do poema predominam as células métricas (ou pés) de
três sílabas. O primeiro verso é um decassílabo
martelo-agalopado (padrão métrico: 3-6-10), iniciado por
dois anapestos (pés cuja forma canônica é - - /), sendo que
no primeiro deles (“Alguns a-”) o segundo tempo fraco
é um acento secundário (- \ /). O segundo verso é
metricamente quase idêntico ao anterior, dele diferindo apenas
pela presença de uma sílaba átona inicial, de modo que o
primeiro pé (“Principalmen-”) não é um anapesto, como
no verso anterior, e sim um péon quarto (forma canônica:
- - - /). Observe-se que, do mesmo modo como o segundo
tempo fraco do anapesto inicial do v. 1 continha um
acento secundário, o terceiro tempo fraco do péon quarto que
abre o v. 2 também tem um acento secundário (- - \ /):
um verdadeiro requinte de paralelismo. Os três versos que
se seguem se dividem quase exclusivamente em células
ternárias, só que o pé utilizado aqui não é mais
o anapesto e sim o anfíbraco (- / -); a exceção
é a última célula métrica do v. 4, um anapesto
(desprezando-se a átona final). Note-se que a relação
entre os vv. 4 e 5 é a imagem especular

7
da que já foi apontada entre os vv. 1 e 2:
os dois versos são bem semelhantes, só que o último pé
do v. 4 — “-ro nas calça-” — é um péon quarto
(- - - /), e a célula que a ele corresponde
no v. 5 — “-ro nas al-” — é um anapesto
(- - /), tendo portanto uma sílaba átona a menos.
Utilizam-se aqui, pois, células métricas tradicionais, porém sem
obedecer a um padrãofixo; mas, como foi demonstrado, há
relações de simetria entre os versos. Por fim, é
importante destacar que todos os versos terminam em pausa
(designada aqui pelo símbolo ||): em outras palavras, cada
verso corresponde a uma unidade métrica maior, composta
de unidades menores, as células ou pés, que, por sua
vez, têm como componentes os átomos do metro, as sílabas.
Se tentarmos analisar um poema que use a forma
de verso livre mais comum hoje em dia — a que
teve William Carlos Williams como um de seus primeiros
expoentes, com versos curtos e fracionados, muitas vezes sem pausa
no final — teremos que seguir um caminho diverso.
Tomemos por exemplo o fragmento de Ricardo
Domeneck que citamos acima:

A- - pós /
a noite - / [-] em claro
com -/--
Antonioni / Plath /
Radiohead - \ - / - || / || / - \ || você
pergunta-me - / - / - - pela vida
humorosa? \ - / - - / - ||
(cf. O. de A.) [?]
auto-devastar-se / - \ - / - ||
a única -/--
art we master, / - / - || só
nos entendendo /-\-/-
via subtração, /-\-/

8
A primeira observação a fazer é que muitos dos versos
de que se compõe o trecho citado são versos apenasno
plano gráfico, e não — como vimos no exemplo de
Drummond — também no plano fonológico. De fato,
qualquer realização sonora do início de “Autorretrato para
agência de acasalamento” forçosamente terá o efeito de
desfazer o corte que vemos,no plano gráfico, entre a
primeira e a segunda sílabas da primeira palavra
do poema, “após”.Além disso, a expressão “noite em claro”
pede a fusão da última átona do v. 3 com a
primeira do v. 4, de modo que essa quebrade versos
é tão puramente visual, livre de implicações sonoras,
quando a que se verificou entre os dois primeiros
versos. A primeira pausa claramente marcada se dá no
quinto verso: ela é assinalada graficamente pela barra entre
“Antonioni” e “Plath”; igualmente inequívocas são as pausas
após “Plath”e após “Radiohead”. Assim, fica partido em três
elementos sonoros um único verso gráfico, que é
também o primeiro verso do poema a terminar com
pausa. Ou seja: o verso gráfico ora é menor que o grupo
de força em que se encontra, ora compreende mais de
um.
Uma maneira de compreender o que se passa no
plano do ritmo de um poema como esse é recorrer ao
conceito de contraponto entre os planos gráfico e sonoro (Britto
2011b: 134). Isto é, a relação entre verso gráfico (disposição
de palavras impressas numa linha com começo e fim
definidos) e verso sonoro (trechocontínuo de poesia que, lido
em voz alta, tem um começo e um fim definidos)
oscila entre aproximação e afastamento, coincidência e defasagem.
Assim, no início do poema de Domeneck temos no plano sonoro
uma única palavra, “após”,enquanto no plano gráfico temos dois
9
versos, sendo que o corte entre elas separa a primeira da
segunda sílaba da palavra. Esta quebrado verso gráfico,
embora não tenha realização sonora numa leitura em voz alta,
exerce efeitos semânticos: o elemento gráfico “A-”, destacado do
resto da palavra, pode ser lido, entre outras coisas, como a
nomeação de uma seção inicial, a ser seguida talvez por
uma “B-”, e sugerir diferentes leituras do fragmento verbal
“pós” isoladono segundo verso gráfico (“pós-moderno”? “póstudo”?
plural de “pó”?).Se ao intervalo entre os versos gráficos
6 e 7 não pode corresponder nenhuma pausa —
usaríamos aqui o termo “enjambement” se estivéssemos
lidando com um poema em metro definido — ao final
do v. 7 temos uma pausa inequívoca: aqui o fim do
verso gráfico coincide com o final de um verso no plano
sonoro (o qual seria “você pergunta-me pela vida humorosa?”). Parece
claro que Domeneck está utilizando de modo criativo a
separação entre os dois planos;a defasagem entre eles no
início do poema põe em destaque a pausa que se dá
quando coincidem o final de uma unidade gráfica e
o de uma unidade sonora, no ponto de interrogação.
E há momentos no poema que parecem existir quase
exclusivamente no plano gráfico: o v. 8, que
parodia a forma da nota de rodapé, é de
duvidosa realização sonora (“cê efe ó de a”? “Vide Oswald
de Andrade”?).
Vemos assim que a expressão “palavras em liberdade”,
aplicada às diferentes formas de verso livre, só pode ser
compreendidaem termosrelativos. Sem dúvida, a liberdade
do poeta que trabalha com qualquer variante versilibrista,
seja a whitmaniana ou a williamsiana, é muito maior do
que a de um poeta que adote o soneto petrarquiano, mas
não se trata de uma liberdade absoluta: em cada caso
10
há a utilização recorrente de regras formais, mesmo
que cada regra vigore por apenaspor uns poucosversos, para que
se crie um efeito de ritmo. No fragmento de Drummond,
vemos o uso da repetição em vários planos:a repetição
ligeiramente modificada entre o padrãométrico e a
estrutura lexical do v. 1 no v. 2; o mesmo,
entre o v. 4 e o v. 5; o paralelismo
especular entre o par v.1-v.2 e o par v.4-v.5; a
sequência quase ininterrupta de anfíbracos do v. 3 ao
v. 5; a rima idêntica entre os vv. 1 e 2
e a rima toante entre os vv. 4 e 5. Num poema
como “Autorretrato para agência de acasalamento”, podemos
entender a noção de ritmo como se referindo, entre outras
coisas, à formação de um padrãovisual na página atravésda
sucessão de versos gráficos cada vez mais longos,do
primeiro ao quinto.Mas mesmo aqui não está excluída
a possibilidade de que também apareçam células métricas,
ainda que menos convencionais: “auto-devastar-se”, “só nos
entendendo” e “via subtração” são três atualizações de um
único esquema métrico, /-\-/-— uma sequência de três
troqueus (pé cuja forma canônica é / -) em que,
no segundo troqueu, o tempo forte é sempre um
acento secundário.
Há, portanto, liberdade no verso livre, ou nas
diferentes formas que recebem a designação de “verso livre”?
Sim, mas não no sentido de não haver regras, e sim
no de ter o poeta liberdade de criar suas próprias
regras. E tanto as regras em questão quantoas maneiras
de usá-las já têm toda uma história, de modo que
podemos dizer que já configuram uma tradição, ainda que
bem mais frouxa e mais recente que a da oitava-rima
ou a do soneto. Voltando aos exemplos citadosacima,
11
os recursos usados por Drummond em “Confidência do
itabirano” já apareciam em Leaves of grass, e foram
posteriormente estudados e classificados por estudiosos de
versificação.4 E o que esses estudiosos costumam observar
é que a maioria desses recursos — o paralelismo,
por exemplo — não foram inventados a partir do nada,
porém colhidos na poesia hebraica do Velho Testamento. Do
mesmo modo, também têm uma longa história os dois
artifícios poéticos que identificamos no fragmento de
Domeneck — o uso criativo do contraste entre a
forma gráfica do texto poético e sua realização sonora,
e a repetição de padrões de acentuação silábica:
o primeiro remonta aos poemas visuais de Símias de
Rodes, poeta grego do século IV a.C.; e o segundo, às
próprias origens do verso europeu em vernáculo, na
Idade Média.
O que foi dito acima é bem diversoda visão do
senso comum, segundo o qual no verso livre o poeta
se “liberta” de todas as convenções “artificiais” — o
que implicaria uma certa “naturalidade” impossível de atingir
com as formas tradicionais. Porém esta visão não está limitada
ao senso comum. Muitospoetas, desde o tempo do
modernismo até os nossos dias, parecem ainda pensar na
questão da forma poética em termossemelhantes aos do
senso comum — apesar do fato evidente de que eles
próprios se autoimpõem regras formais em seus poemas
em verso livre, convenções que são tão pouco “naturais” quanto
quaisquer outras, e que só se distinguem das que estão
em vigor há séculos por serem utilizadas exclusivamente
num grupo de poemas, ou num único poema, ou

4 V., por exemplo, Gross (1966), Allen (1978), Fussel (1979) e Hartman
(1980), para citar apenas algumas obras em língua inglesa.
12
mesmo apenasnum trecho de um único poema. Esses poetas
— e também muitos críticos— ainda insistem em ver
as formas clássicas como inutilizáveis hoje por estarem
associadas a um tempo passado, e em encarar o
“verso livre” — assim, no singular, como se fosse uma forma
única — uma marca genérica de modernidade, a única forma
que um poeta deve utilizar se pretende realizar poemas
que representem o nosso tempo de modo autêntico. Porém o
fato de uma forma ter surgido num determinado momento
histórico não a torna irremediavelmente datada. Nem o
emprego dos metrose formas tradicionais está fadado a ser
passadista, nem o uso de um suposto “verso livre” é
garantia de modernidade ou contemporaneidade, tal como não
é uma afirmação de “liberdade” absoluta.
Sem dúvida, as formas poéticas, ao surgirem, estão
impregnadas de conotações impostas pelas condições de uso
originais; mas tais conotações não se eternizam. Há, por
exemplo, uma ligação evidente entre a oitava-rima e a
dicção heroica, que é flexibilizada mas não desfeita
quando a estrofe passa a ser usada em poemas
heróicômicos: afinal, se essa forma não estivesse previamente
associada às narrativas épicas, como à de Camões, não
seria uma dessacralização usá-la em narrativas satíricas, como
fez Byron. Por outro lado, o surgimento de uma obra-prima
canônica como o Don Juan de Byron amplia sensivelmentea
gama de sentidos e sentimentos que podemser expressos
pela oitava-rima: a partir de Byron ela também se afirma
como uma forma com amplo potencial satíricoe crítico. O caso
do soneto, então, nos proporciona um exemplo ainda
melhor. Nas mãos de Shakespeare, ele ganha um sentido
bem diversodo que tinha em Petrarca e Camões, como
fica patente no soneto 130, que zomba explicitamente do
13
endeusamento da figura feminina na fórmula petrarquista:
o eu lírico dos Sonnets e os personagens que com
ele interagem são seres humanos bem mais complexos,
contraditórios e verossímeis do que o eu lírico idealizante
e a musa idealizada do modelo original. E
quando pensamos no que fizeram com o soneto poetas
tão diferentes quantoFernando Pessoa/Álvaro de Campos, Jorge
de Lima, Drummond e Glauco Mattoso, para mencionar apenas
quatro nomes e permanecer no âmbitoda poesia lusófona, parece
claro que nas mãos de cada um desses poetas o soneto sofre
um processo de ressignificação, por vezes radical.
Analogamente, podemos fazer associações entre formas de
verso livre e determinadas visões de mundo. O verso livre
tradicional — longo, terminado em pausa, marcado por
enumerações e aliterações — lançado por Whitman e
retomado em língua portuguesa por Fernando Pessoa/Álvaro de
Campos e Mário de Andrade, entrou em cena juntamente
com a tematização da nova realidade da urbe moderna,
vista como uma cornucópia de possibilidades, com sua pletora
de movimento, cor e sobretudo ruído. Não por acaso, à
medida que o entusiasmo com a cidade moderna e
a identificação com a multidão expressos por Whitman,
Pessoa/Campos e o Mário da Pauliceia dão lugar a
sentimentos de alienação e busca de refúgiona subjetividade,
o verso livre tradicional é substituído por um verso muito
diferente, que podemos chamar de williamsiano: curto,
fracionado, muitas vezes não terminado em pausa, um verso que
com frequência não corresponde a nenhuma unidade sonora
e estabelece uma relação tensa e cambiante entre o
plano da escrita e o da fala. Porém essas associações, tal
como vimos no caso das formas fixas tradicionais, não são
inevitáveis. “Confidência do itabirano” utiliza o verso whitmaniano,
14
mas esse poema, bem como o resto da obra de
Drummond, passa longe da identificação orgástica entre o eu
e a metrópole moderna que caracteriza a “Song of
myself” e a “Ode triunfal”. Assim, se uma dada forma
poética — seja ela o soneto ou o verso whitmaniano
ou qualquer outra — guarda uma evidente associação com
as circunstâncias em que foi criada e praticada pela
primeira vez, nada impede que gerações posteriores dela
se apropriem, modificando-ae utilizando-a de modo totalmente
diverso. É esse o sentido do famoso bordãode
Pound:make it new.
Assim, não nos parece sustentável a posição de
Domeneck (2009b), para quem o soneto estaria indelevelmente
ligado a “uma crença historicista na teleologia da salvação
cristã, a parúsia, o encaminhar-se da História para
um fim que estabeleceria o significado de todas as coisas,
o encerramento dos séculos em uma chave de ouro [...].
O soneto implicaa fé na equivalência naturalde todos os
elementos”. Parúsia em Shakespeare, o mais materialista dos
poetas? Teleologia da salvação cristã no “cão mijando
no caos” de Drummond? Seria o mesmo que dizer que
usando-se a redondilha maior ou o ballad meter só se
pode produzir poemas singelos e infantis —
singelos e infantis como os poemas de João Cabral
e Emily Dickinson? Claro, Domeneck é demasiadamente
perspicaz para não abrir brechas na sua condenação do
soneto: para ele, a “consciência contextual” do poeta, que
lhe permita destacar metalinguisticamentesua percepção do
que haveria de datado na sua escolha formal,absolve
ou ao menos atenua sua transgressão. Mas, a seguir-se esse
raciocínio, seríamos obrigados a concluir que o poeta
que trabalha com o verso williamsiano está por definição
15
comprometido com a visão de mundodo entreguerras, a
menos que ele exprima metalinguisticamentesua consciência do
que há de anacrônico na forma por ele utilizada. Qual
forma poderia ser utilizada sem distanciamento crítico?
Certamente não o poema concreto, comprometido até a
medula com o otimismo utópico do período pós-
Segunda Guerra. Tampouco o poema-práxis, identificado com
a crença,hoje nostálgica, no poder libertador da mobilização
revolucionária das massascamponesas e operárias. Qual seria a
forma que, surgida em nosso tempo,poderia ser usada de
modo acrítico?
Podemos identificar, ainda que de modo mais sutil, o
mesmo preconceito com as formas fixas que apontamos em
Ricardo Domeneck no poeta e crítico Italo Moriconi (1998).
Tendo detectado uma “volta ao sublime” em alguns poetas
surgidos no final do século passado, Moriconi termina
sua análise com um “minimanifesto”, no qual receita como
antídoto a essa tendência indesejável “a volta ao
coloquial e ao verso livre como estratégias dessublimadoras”
(p. 23). Para ele, pois, o uso das formas tradicionais
implicaria necessariamente, ou no mínimo preferencialmente,
uma certa tendência ao sublime. Talvez por não chegar a
fazer essa associação de modo explícito, Moriconi não vê
necessidade de mencionar os inúmeros contraexemplos que
certamente lhe ocorreriam se ele aprofundasse a discussão:
não apenassonetos que permanecem firmemente presos ao mundo
do material e contingente, como os de Drummond e
Glauco Mattoso, mas também poemas em versos livres que
assumem de modo explícito uma postura sublimadora, alguns
deles de autoriade Alexei Bueno, poeta tomado por Moriconi
como representante exemplar da tendência por ele apontada
e criticada.
16
Creio que seria possível afirmar, sem cometer
nenhuma injustiça, que por trás do preconceito contra o
verso formal está uma outra visão de senso comum à qual
nem mesmo poetas e críticossofisticados são de todo
imunes: as formas tradicionais seriam, além de apenas
limitadoras, “artificiais”; e o verso livre (sempre encarado
como uma forma única) seria não apenaslivre como também
“natural”, permitindo ao poeta se exprimir de modo direto,
sem artifícios antiquados. Boa parte da imagem pública
cultivada por Whitman se fundava num complexo de
estereótipos em que entravam o bom selvagem de
Rousseau, a América como terra ainda inculta e plena de
potencial, e o bardo espontâneo e unschooled, como
Homero ou Ossian,a soltar seu barbaric yawp por cima
dos telhados do mundo. Dentro dessa visão, o verso livre,
surgido de um gesto libertário, teria nascido sem o
pecado original da convenção; sendo, pois, uma antiforma,
ele guardaria sempre o frescor original de um poetar
primevo, sendo eternamente a marca do espontâneo. Nada
poderia ser mais enganoso. A poesia dos povos ditos
primitivos ou bárbaros é tão convencional quantooutra
qualquer — pensemos na complexa estrutura do
hexâmetro de Homero e nas regras de versificação da
poesia anglo-saxã. E o verso que não compactua com as
normas codificadas por Petrarca ou Dante é tão
convencional quantoqualquer outro; apenassegue convenções criadasou
desenvolvidas por Whitman ou Williams ou Cummings ou
os irmãos Campos. Ilude-se o poeta dos nossos dias que
crê estar rompendo com as convenções por escrever versos
fracionados, sintaticamente frouxos, sem sinais de pontuação
nem letras maiúsculas, utilizando recursos tipográficos para formar
efeitos visuais sobre o papel: ele está apenasseguindo outro
17
conjunto de regras, nenhuma das quais tem menos de
sessenta anos de existência na poesia ocidental, sendo que
algumas já existem há mais de um século. Nenhuma
poesia digna do nome, como nenhuma outra arte, é “natural”:
não é por acaso que a palavra “arte” e “artifício”
têm a mesma raiz.

Bibliografia
Allen, Gay Wilson (1978), American prosody.Nova York, Octagon Books.
Andrade, Mário de (1987), Poesias completas. Belo Horizonte, Itatiaia;
São Paulo, Edusp.
-- e Manuel Bandeira (2000). Correspondência.Org., introd. e notas
de Marcos Antonio de Moraes. São Paulo, EDUSP/IEB.
Bandeira, Manuel (1967). De poetas e poesia. Rio de Janeiro, Edições
de Ouro.
Britto, Paulo Henriques (2011a), “A tradução do ‘verso liberto’ de
T. S. Eliot”. In: CONGRESSO DA ABRALIC, 12, 2011, Curitiba.
-- (2011b), “Para uma tipologia do verso livre em português
e inglês”. Revista Brasileira de Literatura Comparada, 19. ISSN
0103-6963 http://www.abralic.org.br/revista/2011/19/125/download. Consultaem 29
de março de 2014.
Cavalcanti Proença (1955), Ritmo e poesia. Rio de Janeiro, Simões.
Chociay, Rogério (1993), “A noção de verso livre, do ‘Prefácio
interessantíssimo’ ao Itinerário de Pasárgada”, Revista de Letras,
nº 33, UNESP, 43-53.
Domeneck, Ricardo (2009a). Arranjos: garganta. São Paulo, Cosac Naify;
Rio de Janeiro, 7 Letras. -- (2009b), “O jogo de equivalências”,
<http://ricardo-domeneck.blogspot.com.br/2009/05/o-jogo-deequivalencias.html> (último acesso
em 13/03/2014).
Drummond de Andrade, Carlos. Poesia completa. Rio de Janeiro,
Nova Aguilar, 2003.
Eliot, T. S. (1985), To criticize the critic and other essays. Londres
e Boston, Faber and Faber [1965].
Fussell, Paul (1979), Poetic meter and poetic form. Ed. revista. Nova York,
McGraw-Hill.
Gross, Harvey (1966), The structure of verse: modern essays on prosody.
Greenwich (Connecticut), Fawcett.

18
Hartman, Charles O. (1980), Free verse: an essay on prosody.
Evanston (Illinois),Northwestern University Press.
Moriconi, Italo (1998), “Pós-modernismo e volta no sublime na
poesia brasileira”, in Celia Pedrosa et al.
(orgs.) Poesia hoje. Niterói, EdUFF.
Preminger, Alex / T. V. F. Brogan (orgs.) (1993), The new
Princeton encyclopedia of poetry and poetics.
Princeton, Nova Jersey, Princeton University Press.

19

Você também pode gostar

pFad - Phonifier reborn

Pfad - The Proxy pFad of © 2024 Garber Painting. All rights reserved.

Note: This service is not intended for secure transactions such as banking, social media, email, or purchasing. Use at your own risk. We assume no liability whatsoever for broken pages.


Alternative Proxies:

Alternative Proxy

pFad Proxy

pFad v3 Proxy

pFad v4 Proxy