Alma S.A 2024
Alma S.A 2024
Alma S.A 2024
ALMA S.A.
EPISÓDIO 1
um velho apartamento, vazio há muito tempo. Apesar de seu aspecto
empoeirado e desprovido de vida, é um lugar amplo e iluminado.
A porta do lugar se abre, e entra VLADIMIR, um corretor, seguido por
RATO.
Vladimir abre a cortina. Uma manhã de céu azul intenso, sem nuvens,
vista pela janela do apartamento. Rato vai até a janela e se distrai com
o céu azul.
Vladimir aponta seu celular e tira uma foto de Rato, que fica meio
desnorteado com o flash.
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RATO - Agora.
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aí cavando seu futuro... é nessa gente que eu confio. É dessa gente
que eu quero me cercar.
VLADIMIR – E você viu isso em mim?
BRAGANÇA – Eu também vejo seu sonho e seu preço. Esse é meu
trabalho. Sua vida acabou de mudar. Suas preces foram atendidas.
VLADIMIR – Ô Glória!
BRAGANÇA - Tira o final de semana de folga, curte o mar, o céu azul.
Me procura na segunda. Agora se me dá licença, vou fazer uma oferta
pra esse cara do apartamento. Quem sabe ele não faz negócio
comigo?
BRAGANÇA — Quem entra aqui pensa que é noite. Pra que tanta
treva?
BRAGANÇA — Vou perguntar pela última vez, Rato. Por que não está
onde devia estar fazendo o trabalho que devia fazer?
RATO — Quer ver uma coisa engraçada? Bati meu recorde de tempo.
Dois dias pra ser encontrado. Tu tá ficando velho.
(Bragança acende um isqueiro. Subitamente Rato começa a se
contorcer de dor)
BRAGANÇA - Muito engraçado, Rato. Tem mais uma piada pra mim?
(Bragança apaga o isqueiro. Rato pára de se contorcer)
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BRAGANÇA — Isso não é você que decide, Rato.
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EPISÓDIO 2
Luz sobre Jessica, uma nadadora profissional, em seu vestiário,
minutos antes de subir para uma prova. Ela faz pequenos
aquecimentos. Ao seu lado, Piolho, da equipe técnica, monitora seus
movimentos.
PIOLHO - Depois que ela tirou a blusa, ela virou pra mim e foi
chegando perto e os peitos dela já estavam encostados em mim
enquanto o resto ainda vinha lá atrás, sacou?
PIOLHO - Aí ela fez o que ela achava que era a sua cara mais
sedutora, e aí sussurrou pra mim, com aquela voz rouca de
anabolizante: “pede pra mim ficar de quatro.” E foi aí que desandou.
Eu corrigi: pede pra eu ficar de quatro. Ela disse: você? Eu disse não,
você. Pra você ficar de quatro. - Foi o que eu disse, pede pra mim ficar
de quatro. - EU! EU! - Mas é você ou eu? - VOCÊ, porra! Mim não fica
de quatro, imbecil! Se diz eu! Eu!
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Olhar malicioso de Piolho. Ele se aproxima de Jessica. Jessica
paralisada. Telefone de Piolho toca.
BODE – Merda! Dá licença um instantinho. (ele se afasta) Fala chefe!
Ele sai do vestiário e atende.
Foco em Bragança, ainda no apartamento.
BRAGANÇA - Piolho, tá aonde?
PIOLHO - Tentando bater minha meta...
BRAGANÇA – Esquece a meta. Preciso que você tome conta de um
velho amigo seu...
PIOLHO – O Rato de novo? Tem que ser agora? Bragança, tô no meio
de uma parada aqui...
BRAGANÇA – Agora. Vou te passar as coordenadas.
PIOLHO – Ok. Se tu não segura as crises de consciência dele, deixa
comigo...
Piolho desliga o telefone, luz sobre Bragança morre.
PIOLHO – Voltando ao nosso assunto, Jessica... Jessica?
Desanimado, ele olha para a tv do vestiário para ver a prova.
LOCUTOR – Boa noite, senhoras e senhores! Vai começar o grande
prêmio Brasil de natação! As competidoras dos 800 metros estão se
preparando, cada uma em sua raia. Aí você vê a nossa Jessica
Oliveira, grande esperança de medalha nos Jogos Olímpicos! E
começou! Jessica vai liderando a prova! E agora viramos os primeiros
50 metros. Jessica vai se distanciando em primeiro! Virou os cem
metros! Epa! Jessica forçou, hein? Sentiu! Nitidamente sentiu o ombro.
Será que é a mesma contusão? E atenção! Jessica Oliveira
abandonou a prova! É ultrapassada pelas outras competidoras. A
grande esperança de medalha brasileira sente a mesma contusão! Ela
se afunda na água, chorando... uma imagem muito comovente que
oferecemos a vocês através dos nossos patrocinadores!
À medida que as coisas vão dando errado para Jéssica, Piolho sorri.
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EPISÓDIO 3
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diabo e disse: ontem mesmo eu estive aqui e havia um campo de
golfe, lagosta, champanhe, e nós nos divertimos o tempo todo. Agora
só vejo esse fim de mundo cheio de lixo! O diabo respondeu: Ontem a
gente estava em campanha. Agora, já conseguimos o seu voto...
Alguém vaia. O telefone de Bragança volta a tocar, preenchendo o
silêncio. Sem graça, Colé prossegue.
COLÉ - E acima do Diabo, só a mulher: com vocês, Bebelzinha
Furacão!
Música, e Isabel começa a dançar um pré-striptease enquanto Colé
vai saindo do palco.
Luz vai baixando sobre Isabel e subindo sobre camarim decadente
COLÉ COLADO entra e senta em uma cadeira, após a apresentação.
Está desfazendo seu santuário (velhas fotos, imagens de santo,
pedaços de jornal amarelados pendurados no espelho) e guardando
sua maquiagem.
Entra Isabel, saindo do strip-tease no palco. Importante: Colé não
deve tirar a maquiagem do rosto..
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ISABEL — Por que não usa isso? É uma situação engraçada. Rir nas
horas erradas. Pode colocar uma estória sobre isso.
ISABEL — Talvez seja hora de mudar. Você faz esse diabinho desde
o Cassino da Urca. Eu pareço uma vedete de teatro rebolado. Acho
que o problema nem é a meia. O meu corpo é que não serve mais pra
esse figurino.
COLÉ — Eu não diria isso. Se não fosse você, eu nem teria mais um
show, Isabel. Você é o único talento aqui.
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COLÉ — Eu não tenho mais como te pagar. Acho melhor você voltar
pro seu trabalho original.
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BRAGANÇA — E pode voltar a ser. (pausa)
COLÉ — Tudo bem, mocinho. Você tem direito a mais uma palavra. E
apenas uma palavra.
ISABEL — Mademoiselle.
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BRAGANÇA — Fique com o meu. Nossos contratados não devem
andar de ônibus. Pega mal pra imagem da empresa.
COLÉ — Contrapartidas?
COLÉ — Peraí. Era você na última fileira. Você assistiu o show e não
riu.
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EPISÓDIO 4
FLASHBACK:
BRAGANÇA — Ele vai ser o seu primeiro contrato, então quero que
ensine a ele tudo que sabe. É o que a tradição manda. O que você
pediu a ele?
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BRAGANÇA - Vai ganhar muito mais que isso, filho. Quem não vai
ganhar nada é o Lar dos Meninos sem Lar. O dinheiro dessa
campanha vai todo pro seu bolso. Todinho.
BRAGANÇA – Desde que você não repasse nada pro Lar dos
Meninos Sem Lar. Essa grana compra muito mais que a tua tv,
compra o que quiser.
PIOLHO – Mas aí o Lar vai fechar. A campanha não é pra salvar o lar?
Eu cresci lá, conheço todo mundo! O que vai acontecer com os outros
meninos?
NO PRESENTE
PIOLHO sorri e acena para RATO. RATO abaixa a cabeça e volta à
sua baia.
RATO repara no poster de colé sobre a mesa vazia ao lado da sua.
RATO se distrai com o poster. VLADIMIR entra e o assusta sem
querer.
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VLADIMIR – Sou seu novo estagiário. Coincidência né? Vladimir
Peixoto, às ordens. (toma pílulas e dá tapas no próprio rosto) Você é
um vencedor! You are number one! (para Rato) É um ritual que eu
tenho pra começar o dia, ajuda pra caramba. Eu quis passar a noite
aqui pra ser o primeiro a chegar. Trabalhe enquanto os outros
dormem! Você também passa a noite aqui?
VLADIMIR — Ele disse pra colar em você que você sabia tudo. Mas
eu sou um cara fuçador. Já tô sabendo dos paranauê. O trabalho aqui
é basicamente encontrar cliente. O que a gente ganha é comissão do
que vende, então quanto mais vender, mais ganha.
VLADIMIR — Ei, peraí! Não me solta uma bomba dessas e vai saindo!
Como assim não sou da empresa? Eu pedi demissão do meu trabalho.
RATO – Ele ainda não assinou seu contrato. Ele quer que eu faça
isso! Você não entra na empresa sem saber exatamente onde está
entrando. Se não o contrato não tem validade. Ainda dá tempo de
você pular fora!
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VLADIMIR - Você pode tá com um problema, mas seja qual for, ele
tem cura, irmão. Nós vamos sair daqui, eu vou te levar na Igreja e
você só sai de lá depois de aceitar Jesus como seu salvador! (mostra
um cordão com um crucifixo.)
RATO — Você não tá entendendo. Fui mandado aqui pra levar a sua
alma.
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BRAGANÇA — Seu merda! Seu imbecil! Você não serve pra nada.
Nunca serviu. Nem pra vigiar um fugitivo. Eu espero não ser chamado
pelos meus superiores pra explicar isso!
PIOLHO – Deixa logo levarem aquele merda pro fogo eterno. Não sei
porque você ainda protege ele!
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BEL - Ai, seu Colé... francamente...
COLÉ - Seu Colé o que? Por esse preço dava pra comprar o oceano
inteiro e eles regulam o camarão?
BRAGANÇA – Você pode comprar o oceano inteiro se quiser.
Acabaram seus problemas de dinheiro. Mais um whisky?
COLÉ - Olha só, se você queria impressionar, já conseguiu. Agora
desembucha. O que eu preciso fazer?
BRAGANÇA - Tem drinks que vão bem com um toque de sutileza,
algumas gotas, uma fatia de laranja.
COLÉ - Eu não sou de sutileza, eu sou filho de um português que me
servia uma taça de vinho no café da manhã aos 8 anos de idade. E
não bebo mais nada enquanto você não disser o que é tá querendo.
BRAGANÇA - Eu já disse! Laranja. Um toque de... laranja. Tudo que
você precisa fazer é uma propaganda de um hospital para
aposentados construído por nós para a prefeitura de Piranapoacema.
Sabe onde é?
COLÉ - Nunca ouvi falar.
BRAGANÇA - Ótimo pra você. Na verdade o hospital nunca foi
inaugurado. Mas a gente precisa justificar a verba. Gravar um filme pro
programa eleitoral mostrando o hospital funcionando. Eu tô recrutando
gente talentosa pra interpretar o papel desses velhinhos de
Piranapoacema, tomando vacina, sendo tratados pelos médicos,
essas coisas. Alguns, os melhores, vão até gravar um depoimento - e
eu tô contando com você pra isso. Você vai dizer que, com toda sua
trajetória artística, estava condenado a morrer no SUS, mas foi
recuperado milagrosamente pelo atendimento do Hospital de
aposentados.
COLÉ - Mas eu não sou aposentado!
BRAGANÇA - Vai ser. O senhor não vai mais precisar trabalhar depois
desse cheque.
Bragança entrega a Colé um cheque. Os olhos de Colé saltam.
ISABEL - Um caminhão de dinheiro, seu Colé.
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BRAGANÇA - Estamos comprando não só a sua interpretação como o
seu silêncio, é lógico.
COLÉ - Mas lá em Piranapoacema vão saber que é mentira. E com
que cara eu fico quando for lá?
BRAGANÇA - E o senhor vai lá fazer o que? Em Piranapoacema não
tem nada, só velho morrendo.
COLÉ – É, mas quando eles denunciarem a mentira, é a minha cara
que tá lá no vídeo, não é a sua!
BRAGANÇA – Nem vai passar na cidade. Vai ser gravado aqui
mesmo! É só pra dizer que a verba foi usada corretamente. Então,
temos um contrato, seu Colé?
Colé já está meio bêbado. Olha para o rosto confiante de Bragança,
para o copo cheio de whisky e para o rosto de Isabel que implora com
os olhos que ele aceite.
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Jéssica em rotina pesada de treino, estilo Rocky. Só que ela está com
muitas dores, realiza o treino com dificuldade e a certa altura o
abandona, chorando de dor.
Piolho se aproxima por trás dela, e sem ser notado, coloca um dedo
no ombro (trapézio). Jéssica pula de dor.
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você fingir pra si mesma que esse tratamento adianta alguma coisa.
Tchauzinho. (vai saindo)
JÉSSICA — Eu não vou dar pra você, Piolho. Eu não daria pra você
nem que a gente sobrevivesse a uma guerra nuclear. Nem que o
futuro da humanidade estivesse em jogo.
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JÉSSICA — No dia que tocarem o hino, você vai esquecer que me
conheceu. Esquecer pra sempre.
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ISABEL - Olha, você tem que perdoar o seu Colé. Ele está ficando
meio velho, só isso. Às vezes ele diz as coisas sem pensar. Você não
devia sair logo dando uma garrafa de whisky pra ele. Tenho certeza
que ele acordou de cabeça fria e se arrependeu.
ISABEL — 18.
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BEL - Miami?
BEL – Você acha que esse corpo ainda consegue fazer sucesso na
gringa? Tu tem mais fé em mim do que eu...
BRAGANÇA — Eu não vim aqui atrás do seu corpo. Não é nisso que
eu tô interessado.
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8.
JÉSSICA — (segura Piolho pela camisa) Fala baixo aí! Qualé a tua,
cara?
PIOLHO – Ei! Lembra que o tua parada não é pra ficar mais forte, é só
pra fugir da dor.
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PIOLHO — Agora somos amigos.
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Camarim.
Colé está esvaziando suas gavetas depois de mais um show frustrado.
Ainda está com a maquiagem de diabo.
Rato entra sorrateiramente.
COLÉ – O último cara que me disse isso acabou com uma garrafa de
whisky quebrada na testa. Black label.
RATO — Eles não deixam a gente parar. Eles nunca vão deixar.
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seguinte acordei sem conseguir respirar. Fui no médico e descobri que
tenho 1 mês de vida. (ri) Maligno. Pulmão, se alastrando pela espinha
até o fígado. Tá fazendo excursão pelo meu corpo. Depois de me
matar ele vai pra Disney.
RATO – Essa é a piada?
COLÉ – Rapaz, se eu tivesse ido ao médico um dia antes, essa hora
eu estaria no Caribe! Num transatlântico! Era só ter assinado o
contrato. Eu achei que não ia conseguir viver com a culpa pelo resto
da vida, mas 1 mês! Por um mês, eu vivia com minha consciência
culpada, numa boa. Não ia precisar me arrastar nesse teatro vazio,
pra tentar pagar a conta do meu plano de saúde. De dentro do caixão,
tanto faz ser filho de Deus ou filho da puta.
COLÉ — Olha bem pra mim. Pode passar muito tempo até você ver
um imbecil maior do que esse.
RATO - Me enganei.
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COLÉ — Que trabalho?
RATO — Ao contrário?
(Rato se levanta)
COLÉ — Aqui é o lugar mais vazio que você vai encontrar. Mas hoje
não quero que fique tão vazio. Espere pelo menos eu dormir. Não
demora tanto. Encare isso como um último desejo. (pausa. Rato
senta-se de novo.) Meu amigo, você está olhando para um homem
morto.
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BRAGANÇA – Não te contratamos ainda. Agora, eu não quero torcer
pela morte do seu pai, Vladimir. Consegue um acordo com o velho.
VLADIMIR - Impossível. Acha que eu nunca tentei? Eu só boto a mão
naquela casa depois que o velho morrer. A casa que o pai dele
cresceu, que ele cresceu, que eu cresci... o velho tem esses apegos...
VLADIMIR – Mas aí eu teria que passar por cima do meu próprio pai,
Bragança.
BRAGANÇA – Bom, você que sabe. Fez um bom trabalho com essas
vendas, de qualquer forma. Agora pode se retirar.
BRAGANÇA – A efetivação não tem nada a ver com isso, garoto. Pra
entrar aqui tem que ser alguém da minha confiança. Alguém que eu
saiba que é capaz de vender o próprio pai pra subir. Quem trabalha
pra empresa não pode ter família, não pode ter religião, não pode ter
amor. Tudo isso vem depois. Mas parabéns. Você fez sua escolha.
Aproveita e me serve um cafezinho antes de sair.
RATO – Isso não importa. Você fez o certo. Eu vim aqui pra te ajudar.
Eu sei que você ainda tá na dúvida. Eles estão te mostrando só a
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parte boa da empresa. É só publicidade. Tudo isso é falso. Você está
sentado sobre pedras. O ouro que você segura com a mão é areia.
RATO – E você virou as costas. Fez o certo. Não assina nada. Depois
você vai ter que conseguir mais almas. E nunca mais vai conseguir
sair.
RATO – É por isso que eu tô tentando te ajudar. Pra que você não
passe por isso.
Vladimir não diz nada, mas se senta de novo. Bragança estende a ele
os papéis.
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passa a ser sócio da construção do condomínio. E parte da nossa
família.
VLADIMIR – Eu aceito.
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Luz abre sobre Isabel, de lingerie, colocando gelo no olho roxo. Entra
Bragança.
ISABEL - Não aguento mais. 24 por 7 nisso. Eu nem sei que horas
são. Nem consigo ver o céu na rua.
BRAGANÇA – Aqui não é lugar de piedade. Você tem uma meta pra
atingir se quiser ser efetivada.
BRAGANÇA — Depois que pagar tua dívida, tu vai ser livre pra ver o
céu na hora que quiser. Agora, anda com isso que o cliente já tá na
porta.
BRAGANÇA — Olha, ela sabe fazer conta. Vou te dar uma conta pra
tu fazer então. Calcula o aluguel e o almoço em dólar. Calcula quanto
vai custar o teu green card...
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você vai agradecer. Quem sabe não encontra um marido velho e rico
aqui no estrangeiro? No fundo a gente tá fazendo uma boa ação. Mas,
se não tiver satisfeita, você sempre pode voltar praquele teatro vazio e
fedorento.
BRAGANÇA – Quando pagar sua dívida você vai ter tudo isso de
volta. Se eu precisar falar pela terceira vez que o cliente tá na porta,
teu outro olho vai ficar pior que esse. (Isabel deita na cama,
desanimada.) É assim que se recebe cliente? (vai até ela e abre suas
pernas e braços, com agressividade) Sensualidade! Agora um sorriso!
(esmaga as bochechas de Isabel, fazendo surgir um sorriso torto)
Deixa eu ver! (olha para Isabel e lhe arranca um beijo à força) Perfeito!
Pode entrar o próximo!
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PIOLHO — Meio tarde pra isso, né? Devia ter planejado antes.
Planejamento é tudo. Você como esportista devia saber disso.
PIOLHO — Das trevas. Além do mais não sou visita. Sou seu amigo.
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JÉSSICA — Amigo? Foi você que fez os planos. Os remédios, a
dosagem e tudo que aconteceu depois. É tudo um plano seu.
PIOLHO — Se for assim, daqui a pouco você acorda, e não tem nada
a perder. Assina aqui. (mostra um pedaço de papel) Ah, é mesmo.
Falta o braço. Tá vendo como faz falta um corpo? Então? Temos
negócio? Basta você dizer. Agora você sabe exatamente do que se
trata. (pausa)
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PIOLHO – Claro. Você volta a ser a grande esperança de medalha.
Nos jogos olímpicos, claro. Nada de paraolimpíada.
JÉSSICA — Pra quê isso? Você disse que não queria o meu corpo.
PIOLHO — Eu menti.
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RATO — Eu?
COLÉ — Todo mundo ganha, não é assim que funciona? O que você
pediu?
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COLÉ — Obrigado, amigo. Eu tenho mais um conselho.
RATO — Diga.
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RATO – Desce?
PIOLHO — Rato?
RATO — Piolho?
PIOLHO — Cara, esse sistema é cruel. Depois de tudo que você fez
por eles. É o que eu digo, não existe justiça. Um cara como você, a
essa altura, tinha que ser o chefe da porra toda. E não aquele merda
daquele Bragança.
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PIOLHO — Como eu faço pra te achar?
PIOLHO — (segurando Rato) Ei, peraí! Pra que a pressa? Não vamos
perder contato! Vamos sair pra tomar uma cerveja! (rato entra no
elevador. porta se fecha. Piolho pega seu telefone celular. disca) Alô?
Bragança?
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Sala de interrogatório. Rato algemado em uma cadeira. Respira com a
dificuldade de quem apanhou muito. Um espelho no fundo. Uma porta
range. Ruído de passos se aproximando.
BRAGANÇA – Quantas vezes mais a gente vai passar por isso, Rato?
BRAGANÇA — Quer ser mais do que isso? Faça suas exigências. Vai
me dizer que você não tem preço?
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por um motivo, Rato. Você tem talento. Quanta gente você mandou
pra nós!
RATO — Aquele mesmo, não. Uma coisa mudou. Não faço mais nada
pra vocês. E eu vou levar todo mundo de volta.
RATO — Deus!
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espelho, Rato. Mas não vai falar com você. Como não vai falar
comigo. Eu também assinei meu contrato, meu amigo. Eu também
pago o meu preço. Pode não parecer, mas eu sou a única chance que
você tem. Olha. (tira um papel do bolso) Eu ainda tenho seu contrato
aqui comigo. Amarelado pelo tempo. Mais um contrato e eu te dou a
liberdade. Um contrato só. A liberdade que você procura nunca esteve
tão perto.
Luz de flashback
Rato chora. Bragança se aproxima.
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BRAGANÇA — Por que? Tudo que você toca vira ouro. A cada dia
você nos traz uma pessoa diferente.
RATO – As pessoas não entram pra ganhar alguma coisa. Entram pra
ter de volta o que elas perderam. O que é que você perdeu?
(pausa)
BRAGANÇA — Um filho.
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Foco de luz sobre Bragança. Ele quebra seu cartão e deposita os
restos em uma urna.
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PIOLHO — Jéssica, você devia sorrir mais. Olha lá, parecia um zumbi
com a medalha na mão.
PIOLHO — Problema seu. Tem que me trazer alguém. E não pode ser
qualquer uma não: alguém que importe pra você. Você não tinha
nenhuma amiga nas categorias de base?
JÉSSICA – Mas elas confiam em mim. Eu não posso fazer isso com
elas.
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PIOLHO — É a última vez, hein?
PIOLHO – Relaxa, Jessica. Você nem pode sentir dor, lembra? (deita-
se sobre ela.)
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VLADIMIR — Clientes?
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Que tenham um desejo: trabalhar na terra do dólar. Você oferece
todas aquelas promessas que você ouviu. Sua tarefa é trazer elas
aqui. Depois que a menina pisa aqui dentro, eu assumo. Como eu não
posso aparecer na fase de captação, você passa a representar a
empresa. Viaja de primeira classe. Dorme nos melhores hotéis. Come
nos melhores restaurantes. Se veste nas melhores grifes. Pra vender
sonhos tem que ostentar.
VLADIMIR – Isso. Pro contrato valer, você tem que saber exatamente
o que tá assinando. Quem trabalha aqui tem que ser capaz de vender
a própria alma. Pra empresa, não pode ter família, não pode ter amor,
ética, escrúpulo, nada. Tudo isso vem depois. A empresa é o centro
do seu universo e sua única função é fazer a empresa crescer cada
vez mais.
VLADIMIR – Fora desse contrato você só vai ver a luz do sol pela
janela, enquanto estiver deitada numa cama com um gringo bêbado
suando em você.
VLADIMIR - Meus parabéns, irmã. Você fez sua escolha. Alma é tudo
que a gente tem na vida, né? Vou chamar o próximo cliente. Cadê a
pose sexy? (Isabel não se mexe. Vladimir a puxa com força.) Agora
aquele sorriso sexy. (ele pega um batom e pinta um sorriso na boca
dela. Ela chora. Ele tira uma navalha do bolso e passa pela cara dela).
Prefere esse batom? (Bel tenta sorrir, chorando) Agora sim o cliente
pode entrar. (sai, deixando Bel sozinha numa pose sexy sem vida e
triste)
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BRAGANÇA — E quem esteve lá esses anos todos fui eu! Tudo que
eu já fiz, todos esses anos de trabalho pela empresa jogados no lixo.
E agora eles me dão as mesmas condições de um garoto que entrou
ontem. Vão se foder!
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RATO – Eu não teria tanta certeza. Tenho medo dos dois.
RATO – Você me libertou por uma luz que ainda tem aí dentro. Não
apaga essa luz!
RATO – Quer uma nova vida? Depois do terceiro sinal, você abre as
cortinas. Quando eu sair, você fecha.
BRAGANÇA — Sair pra onde? Pra cá? Pra esse lugar escuro e vazio?
Você é feliz aqui?
Luz de holofote azul banha Rato. Rato estende a mão para Bragança.
Bragança vai até Rato, entrando na luz. Se abraçam.
BRAGANÇA – Obrigado.
RATO — Agora corre pra cortina que vão soltar o terceiro sinal!
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(Soa o terceiro sinal. Bragança corre pras cortinas. Rato se encaminha
para o centro do palco)
Trevas
FIM
RELOADED 4:
Janeiro 2020
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