Freud Lacan Jung
Freud Lacan Jung
Freud Lacan Jung
Uberlândia, MG
2023
STEVAN BERNARDINO SILVA
Uberlândia, MG
2023
FREUD, LACAN E JUNG: CONTRIBUIÇÕES PARA AS RELAÇÕES
INTERNACIONAIS
_____________________________________________________________________
Profa. Dra. Lara Martim Rodrigues Selis (orientadora) – Universidade Federal de
Uberlândia
___________________________________________________________
Prof. Dr. Aureo de Toledo Gomes – Universidade Federal de Uberlândia
______________________________________________________________________
Prof. Dr. Paulo Henrique de Oliveira Chamon – Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro (PUC-Rio)
“O correr da vida embrulha tudo,
a vida é assim: esquenta e esfria,
aperta e daí afrouxa,
sossega e depois desinquieta.
O que ela quer da gente é
coragem.”
(Guimarães Rosa).
AGRADECIMENTOS
À minha família – sobretudo ao meu pai Wiliam, à minha mãe Marize, à minha irmã
Walleska, ao meu cunhado Jean e ao meu sobrinho Felipe –, pelo apoio incondicional.
À minha querida esposa, pelo suporte, pelo amor, pela dedicação e pelo respeito.
Aos meus estimados amigos – especialmente ao João Gabriel, pela assistência e pelo
À professora Lara, cuja orientação nesta dissertação contribuiu para que eu ampliasse a
científica.
1. INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 13
2. FREUD NAS RI ................................................................................................................... 21
2.1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 21
2.2 TEORIA DA PSICANÁLISE DE FREUD ................................................................ 22
2.2.1 O ID SEGUNDO FREUD ..................................................................................... 27
2.2.2 O EGO SEGUNDO FREUD ................................................................................. 28
2.2.3 O SUPEREGO SEGUNDO FREUD ..................................................................... 29
2.3 FREUD E A POLÍTICA ................................................................................................. 29
2.4 ANÁLISE DE DOUGLAS WILLIAM BETTCHER................................................... 34
3. LACAN NAS RI ................................................................................................................... 72
3.1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 72
3.2 TEORIA DA PSICANÁLISE DE LACAN ................................................................ 73
3.2.1 O IMAGINÁRIO, O SIMBÓLICO E O REAL .................................................. 73
3.2.2 O ESTÁGIO DO ESPELHO, O EGO E O SUJEITO ........................................ 80
3.2.3 ALTERIDADE E COMPLEXO DE ÉDIPO....................................................... 83
3.3 LACAN E A POLÍTICA ............................................................................................. 93
3.4 ANÁLISE DE FRANZ FANON................................................................................... 102
3.5 ANÁLISE DE HOMI BHABHA .................................................................................. 122
4. JUNG NAS RI .................................................................................................................... 141
4.1 INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 141
4.2 TEORIA DA PSICOLOGIA ANALÍTICA DE JUNG.............................................. 143
4.2.1 PSIQUE ................................................................................................................... 148
4.2.3 CONSCIÊNCIA...................................................................................................... 152
4.2.4 EGO ......................................................................................................................... 157
4.2.5 INCONSCIENTE PESSOAL ................................................................................ 159
4.2.6 COMPLEXOS ........................................................................................................ 159
4.2.7 INCONSCIENTE COLETIVO ............................................................................. 160
4.2.8 ARQUÉTIPOS........................................................................................................ 162
4.2.9 PERSONA ............................................................................................................... 165
4.2.10 ANIMA E ANIMUS ............................................................................................. 167
4.2.11 SOMBRA E PROJEÇÃO .................................................................................... 168
4.2.12 SELF ...................................................................................................................... 172
4.3 JUNG E A POLÍTICA .................................................................................................. 173
4.4 ANÁLISE DO CONFLITO PSÍQUICO DA GUERRA FRIA MEDIANTE OS
CONCEITOS JUNGUIANOS DE INCONSCIENTE COLETIVO, DE SOMBRA E DE
PROJEÇÃO ......................................................................................................................... 184
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 216
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................. 220
RESUMO
A “virada afetiva1” nas Relações Internacionais (RI) tem chamado à atenção para
os pontos de encontro entre esse campo e os estudos da Psicologia e da Psicanálise. A
troca teórica e metodológica entre essas áreas não é, contudo, exatamente uma novidade,
de modo que, na literatura de RI, é possível identificar vínculos analíticos já solidamente
estabelecidos, em particular vínculos direcionados à leitura dos processos individuais,
coletivos e estatais. De forma geral, a pesquisa em política externa e/ou política
internacional restringiu, inicialmente, a relação entre psicologia e política ao campo de
estudos dos indivíduos, dos pequenos grupos e dos processos, todos comumente
alinhados às abordagens psicológicas cognitivas. Nesse sentido, essa vinculação ocorreu,
prioritariamente, por meio da troca de modelos e de variáveis explicativas, mobilizadas
para a análise do comportamento humano, quer individual quer coletivo.
Nesse horizonte, o processo de pesquisa e de vinculação entre a área da psicologia
e dos estudos da mente humana e as RI pôde colaborar para a identificação de vieses
cognitivos e de heurísticas, elementos que influenciam agentes tomadores de decisão no
nível estatal. A psicologia tem contribuído, também, para o estudo da dinâmica de grupos
e de sociedades nas relações internacionais, sobretudo no que concerne à polarização
entre estes. Nesse sentido, o campo de pesquisa de conflitos intergrupais tornou-se fértil
para interpretar os processos por meio dos quais grupos e sociedades podem entrar em
conflito uns com os outros no sistema internacional. Entre os exemplos teóricos que
contribuem para tal vinculação, pode-se citar a produção desenvolvida por Henri Tajfel e
John Turner (1979), cuja teoria da identidade social sugere que os indivíduos derivam o
senso de identidade de sua participação em grupos sociais. Essa teoria foi aplicada às
relações internacionais para explicar por que os indivíduos podem ser mais propensos a
apoiar seu próprio país em conflitos, a despeito de não terem interesse pessoal no conflito.
Já a teoria do pensamento de grupo, elaborada por Irving Janis (1982), considera
que os grupos podem tomar decisões erradas, devido ao desejo do consenso e à
1
A “virada afetiva” foi um momento no qual os estudos acerca dos efeitos dos estados emocionais na
formulação de políticas externas e nas interações entre Estados começaram a ganhar espaço nas Relações
Internacionais. Pode-se dizer que a "virada afetiva” nas ciências sociais se refere a uma crescente
consciência da função da emotividade na compreensão das relações e das experiências sociais, tanto para
aqueles que as vivenciam e as experimentam, quanto para os pesquisadores que as estudam. Isso significa
que a “virada afetiva” trabalha com o reconhecimento da emoção como um elemento basilar na constituição
de conceitos políticos, como poder, segurança e cooperação.
14
incapacidade de considerar perspectivas alternativas. Essa teoria foi vinculada às relações
internacionais para explicar por quais motivos grupos, como governos ou organizações
militares, podem tomar decisões equivocadas em tempos de crise. Além disso, a teoria da
dissonância cognitiva, desenvolvida por Leon Festinger (1957), sugere que os indivíduos
sentem desconforto quando suas crenças ou seus comportamentos são inconsistentes entre
si. Nesse caso, essa teoria foi empregada às relações internacionais para explicar a razão
pela qual os indivíduos podem ser mais propensos a apoiar as políticas de seu país, mesmo
que discordem delas, processo que leva a um aumento da tendência à dissonância
cognitiva, tanto individual quanto coletiva. A própria teoria realista de RI, que não é
estritamente uma teoria psicológica, mas tem implicações nessa área do conhecimento,
sugere que os Estados são motivados principalmente pelo interesse próprio e pela busca
do poder, possibilitando o aumento de conflito uns com os outros.
No geral, a relação entre Psicologia2 e Relações Internacionais é complexa e
multifacetada. Embora haja uma sobreposição considerável entre os dois campos,
também existem diferenças importantes em termos das perguntas que essas áreas do saber
procuram responder e dos métodos que usam para respondê-las. Incorporar a psicologia
e os estudos da mente humana ao domínio das relações internacionais pode fornecer uma
compreensão mais abrangente do comportamento dos indivíduos e dos Estados na política
mundial. Para que haja esse entendimento e se reconheça a importância do estudo do
2
É importante aqui fazer a distinção entre a Psicologia e a Psicanálise. A Psicologia é a ciência que estuda
o comportamento humano e os processos mentais subjacentes, como cognição, emoções e motivação. Já a
Psicanálise é uma teoria psicológica que busca compreender a mente humana por meio da análise das
emoções, pensamentos e memórias inconscientes. A Psicologia tem uma longa história, que remonta aos
filósofos gregos da antiguidade. No entanto, a Psicologia como ciência experimental surgiu apenas no final
do século XIX, com a criação do primeiro laboratório de Psicologia por Wilhelm Wundt. Por sua vez, a
Psicanálise foi desenvolvida por Sigmund Freud no final do século XIX e início do século XX, como uma
forma de compreender os problemas emocionais e mentais dos pacientes (ABRAFP, 2023). Nesta
dissertação, ambas serão utilizadas, porém com um foco maior, em um primeiro momento, na Psicanálise,
a saber a freudiana e a lacaniana, que já são assaz utilizadas e consolidadas nos estudos das RI. Em um
segundo momento, a Psicologia Analítica de Jung será introduzida nos estudos de política internacional,
exercício teórico ainda inicial, porém com consequências que podem implicar enriquecimento de pesquisa
nessa área do conhecimento, pois traz novos aportes teóricos capazes de interpretar eventos do âmbito
internacional. A classificação “Psicologia Analítica” foi elaborada para que as ideias de Jung pudessem ser
separadas das de Freud, que já havia alcunhado a Psicanálise para se diferenciar da Psicologia, esta também
recém-surgida como disciplina e campo de estudo independente. O campo da Psicologia será mais
frequentemente referenciado neste texto no momento de explicações mais gerais sobre o avanço da
intersecção teórica nas Ciências Sociais, mais especificamente nas Relações Internacionais, no caso desta
dissertação. A escolha da psicanálise freudiana, da psicanálise lacaniana e da Psicologia Analítica justifica-
se devido ao fato de que essas áreas do conhecimento se concentram, não raro, em compreender a mente
inconsciente e as motivações internas que influenciam o comportamento humano. Vale lembrar, no entanto,
que essas três abordagem, embora se engajem, de certa maneira, no tema da psique inconsciente, os
caminhos pelos quais estas percorrem são diferentes. Nesse sentido, não há o que se discutir em termos de
igualdade teórica entre elas, mas em abordagens que tentam desvendar a influência do inconsciente no
comportamento humano de forma geral, seja individual seja coletivo.
15
campo geral da psicologia e da mente humana na política internacional, mais
especificamente nas relações entre sociedades e entre Estados, esta dissertação tem um
duplo objetivo: o primeiro refere-se à necessidade de ressaltar a relevância da relação
entre esses dois domínios do conhecimento, Psicologia e RI, para a compreensão mais
profunda dos conflitos no nível coletivo e internacional. Já o segundo objetivo concerne
à introdução teórica de conceitos de Carl Gustav Jung, para analisar conflitos coletivos
com base na Psicologia Analítica. Malgrado haja dois objetivos neste trabalho, há,
somente, uma conclusão geral: as Relações Internacionais, como um domínio das ciências
humanas, não devem desconsiderar os elementos psicológicos e psíquicos das
coletividades, pela razão natural de que não só os indivíduos interagem, em regra, por
meio de dimensões psicológicas e psíquicas, mas também as coletividades, as sociedades
e os Estados se manifestam com base nessas dimensões, visto que são atravessados pela
ação das atividades humanas.
Para que se possa demonstrar e compreender a importância do primeiro objetivo
desta dissertação, é necessário trabalhar com três dos principais teóricos da Psicologia
Moderna: Sigmund Freud, Jacques Lacan e Carl Gustav Jung. Vale lembrar que este texto
não tem a pretensão de comparar as teorias e os conceitos desses autores, a fim de
encontrar a melhor proposta teórica da psicologia para a política internacional; o intuito
é, no entanto, fazer, em um primeiro momento, uma revisão bibliográfica dos dois
psiquiatras mais populares e mais empregados nas pesquisas de relações internacionais
na atualidade, Freud e Lacan; em um segundo momento, o objetivo é utilizar, por sua vez,
os trabalhos de Jung, de modo a propor a utilização teórico-conceitual da Psicologia
Analítica deste autor, especificamente dos conceitos de inconsciente coletivo, de sombra
e de projeção, como uma tentativa original de contribuir para o desenvolvimento teórico
das RI.
Para que o duplo propósito desta dissertação possa ser cumprido, o texto deste
projeto foi organizado não só a partir dos conceitos originais de cada um dos três
psiquiatras, mas também foram apresentadas interpretações e foi realizado emprego
teórico de autores que utilizaram o conhecimento produzido por Freud, por Lacan e por
Jung, para examinar eventos relacionados às relações internacionais e às interações entre
coletividades e sociedades, em um sentido geral. Essa dissertação possui três capítulos e,
em cada capítulo, há três secções mais relevantes. No capítulo um, que diz respeito à
Psicanálise de Freud, a primeira secção refere-se à teoria psicanalítica freudiana; a
segunda concerne aos temas de política com que Freud se relacionou e mediante o qual
16
foi relacionado; e a terceira trata da análise e da aplicação do conceito topográfico id-ego-
superego de Freud por William Bettcher, para compreender eventos da política
internacional, relacionando-os à abordagem da Sociedade Inglesa.
No capítulo dois, a primeira secção refere-se à teoria psicanalítica lacaniana; a
segunda concerne aos temas de política com que Lacan se relacionou e mediante o qual
foi relacionado; e a terceira trata da análise e da aplicação dos conceitos lacanianos por
Franz Fanon e Homi Bhabha no âmbito da abordagem pós-Colonial. Por fim, no capítulo
três, a primeira secção refere-se à teoria da Psicologia Analítica de Jung; a segunda
concerne aos temas de política com que Jung se relacionou e mediante o qual foi
relacionado; a terceira trata da análise e da aplicação original dos conceitos junguianos
de inconsciente coletivo, de sombra e de projeção no conflito bipolar da Guerra Fria, com
base em autores que pesquisaram e elaboraram análises dos conceitos de Jung
relacionados a eventos da política mundial.
É interessante observar, nesse sentido, as contribuições de cada um desses autores
dos estudos da área da psique e da mente humana, individual e coletiva, para a pesquisa
nas RI. As ideias de Sigmund Freud foram aplicadas à política internacional,
particularmente no domínio da psicologia política. Freud, ao colocar em questão o cogito
descartiano e ao sugerir a centralidade das características inconscientes em relação aos
elementos conscientes, elaborou contribuições importantes não só para as pesquisas
biográficas de agentes políticos, mas também colaborou para o aprofundamento das
análises dos fenômenos de massa, que integram o campo da psicologia política. Desse
modo, as ideias de Freud sobre o inconsciente e a função das emoções na formação do
comportamento humano foram aplicadas, principalmente, ao estudo das relações
internacionais por meio da psicologia política, esta que ensejou a análise de como as
emoções podem moldar as percepções e o comportamento político e como os fatores
psicológicos, como vieses cognitivos e traços de personalidade, podem influenciar a
tomada de decisões em política externa. Além disso, as ideias de Freud, sobre a função
das emoções na formação do comportamento humano, foram aplicadas ao estudo das
relações internacionais por meio da política das emoções. A política das emoções explora
como estas podem moldar o comportamento político e a tomada de decisões e como os
atores internacionais podem tentar manipular, aproveitar ou implantar emoções e
exibições emocionais para fins políticos. Essas interpretações teóricas podem ser
observadas no trabalho do professor Vamik D. Volkan: “Freud’s Influence on
International Relations” (1998). Em um nível coletivo, Bettcher faz essa contribuição, ao
17
relacionar a topografia freudiana id-ego-superego com a teoria política, com a abordagem
da Sociedade Internacional das RI e com a teoria neorrealista de John Mearsheimer.
No caso de Lacan, seu pensamento tem sido mais utilizado por autores que lidam
com a questão da outridade, das estruturas de linguagem e do campo discursivo da
realidade política, sobretudo no pós-Colonialismo e nos Estudos de Cultura. Andreja
Zevnik e Moran Mandelbaum, em sua obra “Psychoanalysis in Global Politics and
International Relations” (2021), demonstram o espaço que o pensamento lacaniano foi
obtendo para a compreensão dos eventos internacionais. Esses autores explicam que
teorias críticas e pós-estruturais foram introduzidas, mais proficuamente, na política
global na década de 1990. Desde então, tem havido uma proliferação do pensamento
crítico na política global, sendo as abordagens derridiana e foucaultiana as mais
populares. Embora tenha aparecido e ganhado popularidade ao lado de outras abordagens
críticas à política internacional, ainda nos anos 1990, os autores explicam que, nesse
período, a psicanálise ainda era considerada incipiente e pouco utilizada, fato que mudou
nos anos 2010, época em que a psicanálise ressurgiu lentamente no cenário político
global.
O pensamento mais atual vale-se significativamente da contribuição da
psicanálise lacaniana e de pensadores como Slajov Žižek, Judith Butler e Julia Kristeva,
que se baseiam nas obras de Lacan. Nos estudos pós-coloniais, um relato psicanalítico
distinto também foi desenvolvido por Frantz Fanon. Essa contribuição oferece uma
perspectiva geral das abordagens psicanalíticas no estudo da política global com foco na
teoria psicanalítica lacaniana e naqueles que a aplicaram (Žižek, Fanon, Butler e
Kristeva). A razão para a escolha da psicanálise lacaniana é patente: esta tem sido uma
das abordagens mais populares, nesse campo, desde a introdução desse pensamento na
disciplina de RI. A teoria lacaniana gira em torno de conceitos como desejo, gozo, fantasia
e pulsão, e preocupa-se em explicar o laço social. É por meio desses conceitos que se
pode compreender o modo pelo qual o sujeito passa a existir e quais fatores sociais
determinam a existência do sujeito na sociedade. Em outras palavras, concentra-se no que
pode ser representado e no que permanece não representado, mas ainda impacta o mundo.
Nesse sentido, afetos, sintomas ou material inconsciente podem influenciar a maneira
pela qual o sujeito e a sociedade se comportam (ZEVNIK; MANDELBAUM, 2021).
Se esta dissertação cumpre, em um primeiro momento, o objetivo de demonstrar
a importância de elementos psicológicos para a compressão das relações entre
coletividades, sobretudo no nível internacional, ao revisar a bibliografia de autores que
18
se utilizaram de expoentes da área da Psicologia, como Freud e Lacan, ela também realiza,
por sua vez, a tarefa de introduzir, em um segundo momento, conceitos da Psicologia
Analítica de Jung, como um terceiro autor com um instrumental teórico capaz de auxiliar
no desenvolvimento teórico do campo das Relações Internacionais. O pensamento de Carl
Jung pode ser relevante para as teorias das RI de algumas maneiras. Seus conceitos de
sombra, arquétipo, projeção e inconsciente coletivo podem ser utilizados para entender a
natureza e a origem de conflitos coletivos e para compreender a função dos mitos e dos
símbolos no inconsciente coletivo de uma sociedade. Esses estudos aprofundam o
conhecimento de movimentos sociais e nacionais que podem auxiliar na compreensão do
espaço internacional, quando duas sociedades se interagem, especialmente de modo
conflituoso e agressivo.
Dessa maneira, a contribuição de Jung para a análise de fenômenos políticos
específicos, como a ascensão do nacionalismo, a Guerra Fria e a Guerra ao Terror, pode
ter seu valor e gerar uma nova maneira de se refletir sobre o espaço internacional e as
interações estatais. A obra de Jung pode oferecer um ferramental teórico que possibilite
interpretações mais assertivas da realidade mundial em um nível psíquico e coletivo, de
modo que se possa compreender a complexa e, não raro, contraditória dinâmica das
relações internacionais. O trabalho de Jung poderia dialogar com algumas teorias de RI,
como o Construtivismo. Os construtivistas argumentam que a ordem internacional é
constituída socialmente e que a compreensão do mundo é moldada por símbolos e pelo
compartilhamento de experiências e de culturas. O trabalho de Jung sobre os arquétipos
e o inconsciente coletivo pode auxiliar esse campo e enriquecer o modo pelo qual
elementos subjetivos de mitos e de símbolos podem não só dominar e direcionar emoções,
mas também influenciar decisões coletivas nas relações internacionais.
Nesse sentido, o valor de um trabalho de revisão bibliográfica de autores como
Freud, Lacan e Jung para o campo das RI pode fortalecer a tendência de se considerar
elementos da psicologia e da psique humana nas trocas políticas entre indivíduos e,
sobremaneira, entre Estados. Do entendimento do mito de Édipo de Freud, passando pela
sua reinterpretação com Lacan, cujo desenvolvimento teórico acerca da estrutura
simbólica e da ideia de que o inconsciente é estruturado por meio da linguagem, a essa
nova proposta do inconsciente coletivo de Jung que abriga arquétipos como a sombra,
susceptível à projeção quando seus elementos não são trabalhados no ego consciente,
todas essas ideias vêm colaborando e podem colaborar ainda mais para que o domínio
das RI não deixe de considerar temas básicos das relações sociais e, consequentemente,
19
das relações internacionais, ou seja, os elementos psicológicos e psíquicos envolvidos na
relação que o indivíduo tem consigo e com o outro e, similarmente, da relação que uma
sociedade tem consiga e com a outra. Desconsiderar essa relação e seus conteúdos
subjetivos pode ser o indício e a confirmação de uma negligência sistêmica, com o intuito
de assegurar uma certeza científica paradigmática repleta de ansiedade cartesiana,
incapaz de expressar a inteira complexidade da realidade social, que abrange as emoções,
os impulsos e as tendências latentes e ainda pouco conhecidas da mente humana.
20
2. FREUD NAS RI
2.1 INTRODUÇÃO
Sigmund Freud, fundador da Psicanálise, não era um teórico político, mas suas
ideias foram aplicadas ao estudo da política internacional por alguns estudiosos, que
argumentam que as teorias de Freud sobre o inconsciente podem ajudar a entender os
fatores irracionais e emocionais que impulsionam conflitos internacionais. Um dos
conceitos-chave na teoria de Freud é o id, parte da mente que é movida por instintos e
desejos primários. O id não considera a moralidade ou a razão e busca, constantemente,
satisfazer suas necessidades. Freud (1923) argumentou que o id é a força motriz de grande
parte do comportamento humano, sobretudo no que se refere à agressão e à violência.
Outro elemento relevante na teoria de Freud é o superego, parte da mente que
representa a consciência e as valores morais. O superego tenta controlar o id e impedi-lo
de agir de acordo com os instintos básicos; o superego também pode ser, no entanto,
rigoroso e fictício, levando o indivíduo a suprimir os desejos naturais de maneira nociva.
Freud (1923) acreditava que o conflito entre o id e o superego é uma importante fonte de
tensão psicológica, ao argumentar que esse conflito pode ser ainda mais pronunciado no
contexto internacional, em que os Estados são, não raro, motivados por interesses e
ideologias concorrentes, de modo a levar a um comportamento agressivo e, quiçá, a uma
guerra.
As ideias de Freud contribuem, também, para o entendimento da psicologia de
líderes individuais, já que a maneira como a qual líderes lidam com seu id e superego
pode ter um impacto significativo em suas decisões de política externa. Um exemplo disso
é quando um líder se deixa ser dominado por seu id, de modo a aumentar a probabilidade
de se envolver em comportamentos arriscados ou agressivos. Nesse sentido, a aplicação
das teorias de Freud à política internacional é um campo complexo e controverso; gerou,
todavia, algumas hipóteses e alguns esclarecimentos relevantes sobre as causas de
conflitos e sobre a maneira pela qua a psicologia de líderes e de massas pode ser
desenvolvida.
Para aprofundar essa ideia, pode-se observar certa relação entre as ideias de Freud
e alguns temas de política internacional. No realismo político, pode-se inferir que as
teorias de Freud tem a capacidade de auxiliar na explicação de algumas premissas da
21
perspectiva do Realismo clássico das RI, que tem os Estados como movidos e motivados
pela busca de poder e de segurança. O desejo de satisfação do id pode ser lido como
análogo ao desejo de poder do Estado, e as restrições morais do superego podem ser
entendidas como análogas às regras e às normas do sistema internacional. No caso dos
temas acerca da agressão e da guerra, as ideias de Freud podem ser, também, usadas para
explicar as causas desses temas: a guerra, juntamente com a agressão, pode ser entendida
como uma forma de os Estados liberarem seus impulsos reprimidos do id, ou como um
modo de defenderem sua ordem moral imposta pelo superego.
Além disso, no caso da psicologia dos líderes, o pensamento freudiano pode ser,
também, empregado para analisar a psicologia de líderes individuais, na medida em que
as personalidades de líderes podem ter um impacto significativo em suas decisões de
política externa. Por exemplo, um líder que é dominado por seu id pode ter mais
probabilidade de se envolver em comportamentos arriscados ou agressivos. Nesse
sentido, a aplicação das teorias de Freud à política internacional pode gerar análises
interessantes e complexas e contribuir para interpretações elucidativas sobre as causas de
conflitos e sobre a psicologia dos líderes.
Sigmund Freud dividiu a mente em três elementos: id, ego, superego, constituindo
a Teoria da Personalidade. O id é a agência psíquica mais antiga e primitiva,
representando os fundamentos biológicos da personalidade, em que se encontram os
impulsos instintivos básicos, particularmente os impulsos sexuais (libidinais), que
motivam o organismo a buscar o prazer. No caso do ego, este é uma modificação do id
que surge como consequência da influência direta do mundo externo, caracterizado como
o “executivo” da personalidade, pois regula as energias pulsionais libidinais, de maneira
que a necessidade de satisfação esteja de acordo com as exigências da realidade. O ego é
o centro da razão, da realidade e do bom senso e tem sob seu comando uma série de
estratagemas defensivos que podem desviar, reprimir ou transformar a expressão de
energias pulsionais irrealistas ou proibidas. Por fim, o superego é uma diferenciação do
ego que representa o seu ideal. O superego advém da consequência do drama edipiano,
por meio do qual a criança assume a autoridade das figuras parentais mediante introjeção
ou identificação. Enquanto o id opera em busca do prazer e o ego é governado pelo
princípio da realidade, o superego ordena ao aparelho psíquico que persiga objetivos
22
idealistas e a perfeccionistas, sendo a origem da censura moral e da consciência.
(LAPSLEY E STEY, 2011).
De acordo com Lapsley e Stey (2011), a psicanálise é uma daquelas raras
realizações intelectuais e práticas que conseguiram transformar a autocompreensão
humana. Esses autores explicam que os conceitos freudianos permearam tão
profundamente a cultura e a dinâmica de vida humana que vários jargões da psicanálise
se tornaram, inclusive, acessível àqueles menos instruídos acerca do comportamento
humano. A psicanálise efetivamente completou a revolução intelectual iniciada por
Copérnico e promovida por Darwin segundo a própria estimativa de Freud; uma
revolução que reduziu a presunção humana em relação à sua posição especial e
privilegiada no cosmos e na natureza. Lapsley e Stey (2011) argumentam que, enquanto
Copérnico deslocou o planeta da humanidade do centro do universo e enquanto Darwin
demostrou que nenhum conforto pode ser obtido com a ideia de que estamos acima das
forças da natureza, Freud completou o ataque à pretensão humana, ao demonstrar que
nem mesmo a razão humana é o que se supõe e que a psicologia humana é, de fato, sitiada
e movida por motivações irracionais e inconscientes.
A descoberta de uma realidade psíquica oculta, que ultrapassa os limites da
consciência sensível, foi elaborada por Freud, similarmente à aplicação do mesmo
processo dualístico newtoniano, que aceitava a distinção entre habilidades sensoriais
humanas – percepções – e uma realidade física oculta que poderia só ser apreendida pela
matemática e pelo arcabouço da ciência física (LAPSLEY E STEY, 2011). Os autores
esclarecem que o esquema newtoniano foi recorrido pela psicanálise, para propiciar uma
compreensão da vida psíquica e uma aplicação que depende da distinção entre vida mental
consciente e inconsciente. Nesse sentido, similar à Física que desenvolve métodos
científicos para apreender o universo físico, que se encontra além da sensibilidade
humana imediata, a Psicanálise tenta penetrar, com base no mesmo processo intelectual,
as realidades inconscientes ocultas, com suas técnicas e seus procedimentos clínicos
especiais. Consequentemente, a psicanálise deve ser incluída, segundo Freud, entre as
ciências naturais, na medida em que concerne a um ramo especializado da medicina, de
sorte que a vida mental e psíquica seja o objeto de investigação (LAPSLEY E STEY,
2011).
Conforme Lapsley e Stey (2011), malgrado tenha sido alvo de controvérsias à
época vitoriana, sobretudo em relação às suas reivindicações sobre a dinâmica mental
inconsciente e a sexualidade infantil, a psicanálise foi fundamentada com base em temas
23
comuns à ciência do século XIX. Isso porque a teoria dos instintos de Freud parecia
familiar à cultura humana ocidental que se habituava às ideias da biologia darwiniana. A
utilização de modelos espaciais por Freud, para identificar estruturas psíquicas, estava em
congruência com os esforços da neurologia que se empenhava para localizar funções
cerebrais. Dessa maneira, como argumentam Lapsley e Stey (2011), a imagem freudiana
mecanicista da arquitetura psicológica, como um aparato para canalizar energias
pulsionais instintivas, não estava dissonante da mecânica energética da física do século
XIX; a despeito dos argumentos e das armadilhas do positivismo científico, que Freud
costumava reivindicar para a psicanálise, o projeto freudiano encontrou, entretanto,
significativa resistência, e a história do movimento psicanalítico é uma história de
reconhecimento e de luta pela respeitabilidade acadêmica, clínica e popular. Um dos
objetivos de Freud era popularizar essa nova ciência da vida mental. Lapsley e Stey
(2011) notam que Freud também estava empenhado em diferenciar a Psicanálise de outras
psicologias, como as de Alfred Adler e Carl Jung, ao demonstrar que as afirmações
psicanalíticas eram resultados de uma diligente investigação científica positivista, como
se fazia na ciência natural. Com essa perspectiva, Freud elaborou a teoria da
personalidade tripartida. As noções estruturais de id, ego e superego foram
desenvolvimentos teóricos bastante tardios, que podem ser compreendidos
adequadamente apenas no contexto das revisões teóricas de Freud, revisões essas que o
próprio Freud afirmaria terem sido impostas à psicanálise pela garantia evidencial
(LAPSLEY E STEY, 2011).
Freud elaborou a teoria psicanalítica com base em três premissas: na descoberta
dos processos mentais inconscientes, na teoria do recalque e da transferência e na
importância da sexualidade infantil e do complexo de Édipo para a compreensão das
neuroses. Desse modo, é importante retornar ao desenvolvimento de seu pensamento para
que os traços estruturais da personalidade id, ego e superego possam ser profundamente
analisados. Lapsley e Stey (2011) elucidam que a divisão da vida psíquica e mental em
consciente e inconsciente sugere uma hipótese topográfica, de maneira que a vida mental
pode ser delimitada em regiões psíquicas. Esses autores explicam que a inconsciência
(Ics) é, ao mesmo tempo, um atributo que pode ser conferido a uma ideia ou impulso
reprimido e é, também, uma região para onde a ideia é deixada no ostracismo. A
consciência (Cs) e seu precursor (“pré-consciência” - Pcs) também foram elaborados
como uma região psíquica, sendo vinculados ao funcionamento do ego. Lapsley e Stey
(2011) argumentam que o conflito psíquico representaria, para Freud, uma questão de
24
ideias inconscientes, emanadas do sistema Ics, resistindo às forças repressivas do ego
consciente.
Além disso, argumentam que os processos inconscientes e conscientes seguem
leis diferentes. O Ics consiste em “representantes instintivos” ou impulsos que buscam
descarga, de sorte que esses impulsos são ilógicos, atemporais e não orientados para a
realidade; são, por sua vez, movidos pelo princípio do prazer e por processos primários e
básicos humanos. Isso significa que os impulsos instintivos de desejo são não
direcionados e móveis, podendo deslocar-se e vincular-se a vários objetos. Já no caso do
Cs, o processo é o contrário, visto que é o processo secundário é o dominante. Esse
processo secundário é uma conquista posterior do desenvolvimento associada ao ego.
Com um processo orientado para a realidade, há a capacidade de revisão, de censura ou
de cerceamento da descarga de impulsos instintivos (LAPSLEY E STEY, 2011).
Lapsley e Stey (2011) esclarecem que, a despeito de nunca ter abandonado a noção
de processo primário e secundário, Freud revisou o provisório modelo topográfico da
arquitetura psíquica como envolvendo “sistemas”, e revisou, também, a hipótese
dinâmica de que o inconsciente estava em conflito com o ego consciente. Essas noções
foram reexaminadas segundo a observação clínica de Freud de que seus pacientes não
tinham, frequentemente, consciência do fato de que estavam aplicando certas resistências.
Lapsley e Stey (2011) argumentam que, se o ego é responsável pela repressão, mas
também é a sede da consciência, é, portanto, inexplicável como o indivíduo não poderia
estar consciente de suas resistências e de seu próprio ato de repressão. Os autores
comentam que Freud chegou à conclusão de que muito do ego também deve ser
inconsciente. Isso significa que o inconsciente não é todo reprimido – apesar de que o que
é reprimido é inconsciente –, fato que torna menos apelativa a divisão da arquitetura
psíquica em sistemas Ics e Cs (LAPSLEY E STEY, 2011). O conceito de ego havia sido
ainda mais esclarecido em consequência das revisões na teoria do instinto. Lapsley e Stey
(2011) notam que os instintos surgem de fontes internas e exercem uma força constante,
exigindo satisfação. A força implacável das energias pulsionais possibilita que o sistema
nervoso permaneça em uma condição não estimulada, “princípio da constância”, o que
motiva adaptações psíquicas para produzir a satisfação das necessidades internas. A
pressão de um instinto é um fator que demanda trabalho psíquico, e o objetivo dele é ser
recompensado por meio da redução da tensão. Como descrevia Freud, a fonte de um
instinto é um processo somático experimentado como uma espécie de necessidade e de
25
desejo, como se os instintos fossem “representantes psíquicos” dos processos somáticos
(LAPSLEY E STEY, 2011).
Lapsley e Stey (p. 4, 2011) explicam que,
3
Concentrar energia mental ou emocional sobre uma representação qualquer.
26
teórico foi agrupar os instintos libidinais, como Eros – ou os instintos de vida, o
preservador de todas as coisas –, e contrapor aos instintos de vida um impulso pulsional
contrário, que almeja restaurar a vida orgânica a um estado inanimado, que Freud chamou
“instintos de morte”. Lapsley e Stey (2011) observam que Freud foi levado a postular a
existência de instintos de morte por sua observação de que aqueles que sofrem de
neuroses traumáticas tendem a repetir sonhos traumáticos. Os sonhos dos pacientes
combatentes de guerra, por exemplo, pareciam contrários ao caso geral de que os sonhos
representam a realização simbólica de um desejo. Dessa forma, a compulsão de repetir
experiências traumáticas apareceu, para operar além do princípio do prazer e para apontar
para uma tendência pulsional em desacordo com a autopreservação libidinal (LAPSLEY
E STEY, 2011).
Freud verifica que a luta de Eros e os instintos de morte podem ser observados em
todos os níveis da vida, em cada partícula de substância, mesmo em organismos
moleculares (LAPSLEY E STEY, 2011). O comentário de Freud sobre as duas classes de
instintos, Eros, como sexualidade e autopreservação, e morte, como agressão, permitiu-
lhe preservar uma classificação dualista dos instintos. Lapsley e Stey (2011) apontam que
a questão pairava, naquele momento, sobre como esses instintos semelhantes interagiam
com as características topográficas da mente, dado que as noções de consciência e de
inconsciência não tinham mais implicações diretas para uma representação estrutural da
vida mental. Essa questão, como abordam esses autores, seria retomada na obra “O Ego
e o Id” (1923). Nesse trabalho, Freud altera a teoria estrutural para incluir as três regiões
psíquicas, id, ego e superego, descrevendo como as energias pulsionais instintivas podem
ser transmutadas entre essas estruturas e como certas condições neuróticas podem ser
explicadas como consequência desse modelo da mente (LAPSLEY E STEY, 2011).
27
coincide, teoricamente, com o id, na medida em que os conteúdos do id, que são expressão
psíquica das pulsões, são inconscientes, devido ao fato de serem hereditários e inatos e
serem, ao mesmo tempo, adquiridos e recalcados. Além disso, Freud entende o id como
a fonte e o reservatório de toda a energia psíquica do indivíduo, que desenvolve e estimula
a operação dos outros dois elementos do sistema: ego e superego. Em relação a seu
funcionamento e dinâmica, o id interage não só com as funções do ego, mas também com
os objetos, sejam aqueles da realidade exterior sejam aqueles introspectivos, que se
encontram no superego. No que concerne à operacionalidade, o id é governado pelo
princípio do prazer; busca, nesse sentido, a resposta direta e imediata a um estímulo
instintivo, de modo a desconsiderar o contexto e as condições da realidade. Dessa forma,
o id descarrega as tensões biológicas, orientado pelo princípio do prazer (FREUD, 1923).
28
o princípio da realidade, que impõe limites. No que diz respeito aos acontecimentos
externos, o ego executa sua tarefa, ao reunir experiências sobre os diversos estímulos na
memória, de maneira que se adapta a novas circunstâncias e aprende a moldar situações
do mundo externo para seu benefício. A psicanálise entende o surgimento do ego como
um componente psíquico capaz de constituir um sistema adaptativo, diferenciado a partir
do id e em contato com a realidade exterior (FREUD, 1923).
O superego forma-se a partir do ego, no que Freud (1923) nomeou como “período
de latência”, que está localizado entre a infância e o começo da adolescência. Nesse
período, a personalidade moral e social é constituída. Uma dos objetivos do superego é
desempenhar a função de um “juiz”, “censurador” ou “regulador” do ego. Na perspectiva
de Freud, as funções do superego estão relacionadas à consciência moral, à auto-
observação e à formação de ideais. Nesse sentido, é natural que o superego se forme
fundamentado pela interiorização das demandas, das exigências e das regulações
parentais, pois o superego é, a princípio, representado pela autoridade parental, que
modula o desenvolvimento infantil, estabelecendo uma relação em que há não só
demonstração de amor, mas também de punições, causadoras de angústia. Freud (1923)
explica que, quando a criança abdica à satisfação edipiana, as proibições e as interdições
externas são, em um segundo momento, internalizadas. É nesse momento que o superego
sucede à instância parental, por meio de uma identificação da criança com os pais. Freud
(1923) ressaltou a ideia de que o superego não se forma de acordo com as referências
parentais; constitui-se, todavia, conforme a formação do superego dos pais. Dessa forma,
o superego cria os mecanismos para a censura dos impulsos que a sociedade e a cultura,
em geral, proíbem ao id, fato que obsta a satisfação plena dos instintos e dos desejos do
indivíduo; por isso o superego é o elemento psíquico da repressão, sobretudo a sexual.
Bettcher (1997) explica que, embora Freud não tenha utilizado, diretamente, sua
metodologia psicanalítica individual com o objetivo de refletir sobre questões sociais e
políticas, o vínculo é implícito e inevitável. Pode-se compreender o interesse de Freud
por temas que ultrapassam a área das ciências naturais: “Meu interesse, depois de fazer
29
um desvio ao longo da vida pelas ciências naturais, medicina e psicoterapia, voltou-se aos
problemas culturais, sociais e políticos que me fascinaram muito antes, quando eu era um
jovem que mal tinha idade para pensar” (FREUD, p. 72, 1959). Freud afastou-se da
psicanálise clínica individual para dedicar mais tempo a escrever e comentar sobre temas
das ciências sociais no final de sua vida. Segundo Bettcher (1997), Freud afirmava,
explicitamente, que sua topografia id-ego-superego poderia representar um modo de
compreender a história humana e a evolução cultural:
30
pode ter subestimado seu potencial para fazer uma contribuição relevante para a ciência
social e para os estudos da política mundial.
Na obra “Jung on War, Politics and Nazi Germany” Lewin (2009) fornece uma
ideia geral do pensamento de Freud sobre política internacional e a guerra. Lewin (1997)
faz, inicialmente, um preâmbulo do contexto em que Freud vivenciava. O autor explica
que houve pouca paz no século XX, e o consenso acerca do progresso do século XIX foi
questionado pela perniciosa Primeira Guerra Mundial, o que gerou, sobretudo na classe
dominante europeia, uma desilusão em relação à integridade humana e ao conceito de
civilização, contribuindo para que psicanalistas analisassem as causas psicológicas da
guerra. Freud declarou que a guerra chegaria, dificilmente, ao fim, enquanto as condições
de existência entre as nações fossem tão divergentes e repulsivas (LEWIN, 2009).
Após a guerra, Freud afirmou que esta não só era prejudicial demais para ser
considerada uma continuação da política, mas também que a guerra não era mais uma
oportunidade para alcançar os antigos ideais de heroísmo, afirmações que podem ser
observada em seu artigo “Why War?” (LEWIN, 2009). Nesse mesmo artigo, Freud
argumenta que as conquistas militares são, em regra, de curta duração, na medida em que
as unidades recém-criadas não se sustentam, devido à falta de coesão entre as porções que
foram unidas pela violência. Lewin (2009), com base nesse argumento de Freud, esclarece
que essa compreensão demonstra o ambiente que se criou para a desintegração dos
impérios coloniais da Europa. Além disso, Freud também alertou sobre o potencial de
instabilidade em um país, cujo governante constitucional teria apenas poder limitado, de
sorte que a estabilidade poderia ser comprometida por uma tensão entre o anseio dos
governantes de estarem acima da lei e o desejo dos povos oprimidos de buscarem mais
direitos perante a lei (LEWIN, 2009).
Lewin (2009) explica que Freud identificou, em “Why War?”, três fundamentos
da guerra no nível social: a instabilidade de democracias, o efeito da luta de grupos pelo
poder e a instabilidade gerada pela insegurança material. Nesse quesito, Freud reconheceu
que a prosperidade material era basilar para manter a estabilidade, mas era convicto de
que somente a prosperidade não seria suficiente para manter a paz, pois tinha noção de
que não era possível se livrar das inclinações agressivas dos seres humanos (LEWIN,
2009). Na opinião de Lewin (2009), Freud foi otimista quando assumiu que as
democracias eram, necessariamente, mais pacíficas do que as ditadura e os regime
políticos autoritários, argumento esse elaborado por filósofos libertários, como John
Stuart Mill, de cujo trabalho Freud foi entusiasta.
31
Freud negligenciou o quadro estratégico mais amplo que se desenvolvia na Europa
à sua época; no entanto, quando se tratava de guerra, sua contribuição teórica foi sobre a
psicologia da agressão, que, novamente, centrou-se mais no indivíduo e nas multidões, e
a maior parte dos escritos de Freud sobre agressão ocorreu após a cisão com Jung
(LEWIN, 2009). Os escritos de Freud sobre ódio e agressão são focados no potencial de
instabilidade social derivados da repressão dos instintos, nas emoções envolvidas com
agressão e morte, na psicologia do ódio e na sugestionabilidade das multidões e sua
necessidade de líderes.
Freud dedicou relativamente pouca atenção aos comentários sobre a política
internacional que ocorria ao seu redor. Consoante Lewin (2009), Freud analisou a
psicologia da agressão na esfera da psicologia do indivíduo; no entanto, como a sociedade
e as instituições tiveram que encontrar maneiras de lidar com os desejos, as frustrações e
as agressões individuais, suas ideias acabaram por fornecer uma perspectiva sobre a
agressão e o conflito em um nível social mais amplo. Com as tensões entre a rivalidade
do amor e do ódio e com o conflito entre os desejos sensuais do id e as restrições da
sociedade, Freud sabia que a psique individual seria dificilmente capaz de alcançar
estabilidade por muito tempo. Dessa forma, Freud analisava que a sociedade se
fundamentava em bases muito instáveis, na medida em que impunha padrões morais
restritivos ao indivíduo, cujas inclinações instintivas não condiziam aos preceitos sociais.
Isso significava que o indivíduo vive psicologicamente além de seus meios, conforme
pensava Freud. Lewin (2009) ainda expõe a opinião de Freud acerca da Segunda Guerra
Mundial, apresentado no artigo “Um Esboço de Psicanálise” (1940), referindo-se à
influência da civilização entre os determinantes da neurose, ao argumentar que é mais
fácil para um bárbaro ser saudável do que para um ser humano civilizado.
Para Freud, como explica Lewin (2009), o embate entre as pulsões instintivas e os
constrangimentos da sociedade põe em movimento tensões que provocam guerras. Essas
observações refletiriam nas ideias de Jung sobre os problemas causados quando existe
um abismo muito grande entre uma cultura altamente civilizada e consciente, com um
inconsciente emocionalmente primitivo. Freud concentrava-se na resolução de problemas
gerados pelas demandas emocionais dos impulsos instintivos; sua concepção do problema
era, entretanto, bem diferente. Lewin (2009) nota que Freud tendia a postular um conflito
entre os impulsos instintivos da psique primitiva e as normas da sociedade, de modo que
esse conflito era uma característica insolúvel da necessidade da civilização de conter e de
direcionar impulsos sexuais primitivos para fins socialmente aceitáveis. Portanto, a
32
preocupação de Freud era com o reforço saudável das características positivas da
civilização contra o eterno desafio dos instintos negativos e bárbaros (LEWIN, 2009).
Além de Lewin, que apresentou uma perspectiva geral de Freud acerca da política
e da guerra, o professor Robert Schubert elaborou um trabalho intitulado “Freudian Roots
of Political Realism: the importance of Sigmund Freud to Hans J. Morgenthau's theory
of International power politics”, que revela certa dívida intelectual da teoria realista de
Morgenthau sobre a política do poder internacional para com a metapsicologia freudiana
e para com a psicologia de grupo. Schuett examina um ensaio inédito de Morgenthau
sobre a antropologia freudiana, desenvolvida ainda na década de 1930. Schuett (2007),
em seu trabalho, argumenta que a teoria da política internacional de Morgenthau é, em
última análise, baseada na teoria dos primeiros instintos de Freud, de maneira que este
deveria ser considerado como um dos pais intelectuais de Morgenthau. Além disso, o
realismo político das Relações Internacionais, fundado por Morgenthau, pode estar
enraizado no pensamento freudiano, devido ao fato de compartilharem processos,
conceitos e constructos intelectuais semelhantes (SCHUETT, 2007).
Schuett elaborou, ainda, outra análise, baseando-se em concepções freudianas,
mas, dessa vez, examinando o trabalho de John Mearsheimer. Em seu artigo, “Fear and
Freud in Politics: Critical Notes on Mearsheimer's Structural Realism”, Schuett (2020)
argumenta que, dada a posição ou autoimagem do Neorrealismo como uma teoria
estrutural de Relações Internacionais, segundo a qual a anarquia, não pessoas ou tipos de
regime, explica o comportamento dos Estados na política mundial (MEARSHEIMER,
2001), é interessante observar, como argumenta Schuett, que em sua última disputa
intelectual com os neoliberais, Mearsheimer apresentou seu pensamento sobre a natureza
humana e a política, localizando o medo em todos os três níveis de análise, como um fator
poderoso na vida individual, nos grupos sociais e no sistema internacional. Schuett (2020)
explica e desafia, utilizando a psicanálise freudiana como recurso metodológico, cada
uma dessas imagens de medo do modo pelo qual Mearsheimer as apresenta. Além disso,
propõe uma posição alternativa de um tipo “estruturacionista” de medo mútuo, que pode
ser derivado da mente de agentes humanos, embora sem reduzir a noção de medo
freudiano a algum tipo de analogia de “Estado como pessoa”. Schuett argumenta contra
a noção da natureza humana do medo de Mearsheimer, ao afirmar que o medo elaborado
por Mearsheimer é idealista, superficial e ideologicamente tendencioso, favorecendo o
status quo.
33
Como pôde ser observado, os conceitos e as ideias de Freud são, também,
trabalhadas no âmbito da ciência política e da política internacional, uma vez que, embora
tenha deixado somente alguns escritos sobre esse tema, Freud tinha interesse genuíno
pelos eventos sociais, sobretudo aqueles que aconteciam à sua época, como demonstrado
pela obra de Lewin. Freud formulou diversos comentários sobre os conflitos que
presenciava, bem como realizou uma reflexão um pouco mais profunda em seu artigo
“Why War?”. Além disso, é interessante observar que há autores que interpretaram
eventos das relações internacionais por meio do pensamento freudiano, como os estudo
do professor Schuett, relacionando a teoria realista de Relações Internacionais – e mais
especificamente os conceitos elaborados por Morgenthau e Mearsheimer – à psicanálise
de Freud. Nesta próxima parte da dissertação, será analisado a obra de Douglas William
Bettcher, que se aprofundou no exame dos eventos e do pensamento de certas abordagens
teóricas das Relações Internacionais mediante a topografia da estrutura psíquica freudiana
ide-ego-superego.
34
Primeira Guerra Mundial, a formação da Liga das Nações, a construção
das nações e questões normativas; entretanto, como Marx, que
contribuiu com artigos sobre assuntos internacionais para o New York
Daily Tribune (Marx, 1951) e para outras revistas americanas, Freud
tendia a não usar, explicitamente, sua metodologia da psicologia
humana nos seus textos, embora essa aplicação fosse geralmente
implícita (BETTCHER, 1997, p.6).
Uma das razões para que Bettcher utilizasse os conceitos de Freud na análise de
política internacional refere-se ao fato de que as principais tradições filosóficas relativas
às ciências sociais e à política mundial, em sociedades ocidentais e não ocidentais, foram,
geralmente, fundamentadas em ideias pseudopsicológicas sobre a natureza humana. Isso
significa que parte da produção de conhecimento das ciências sociais já se baseava em
análises psicológico-comportamentais, de modo que o emprego de fundamentos da
psicanálise não contrariaria as bases do conhecimento das ciências sociais, visto que o
objeto de estudo dessa ciência concerne aos comportamentos humanos, individuais ou
coletivos, e ao modo pelo qual esses comportamentos influenciam a estrutura de um
agrupamento humano.
Com o objetivo de preparar uma tese para o desenvolvimento de uma análise
psicanalítica das Relações Internacionais, cujo conteúdo extrapola os princípios
psicanalíticos de um nível individual para um nível de agrupamentos estatais e não
estatais, Bettcher (1997) estruturou seu texto em quatro passagens basilares: em um
primeiro momento, Bettcher esclarece que o modelo id-ego-superego de sociabilização
da psicologia humana pode ser usado para formular uma ordem internacional, cujo
sistema internacional não seja necessariamente predeterminado; em um segundo
momento, explica que a psicologia do ego pode ser usada para analisar as interações da
política externa do Estado; já em um terceiro, argumenta que os princípios psicanalíticos
podem ser usados para formar uma “quarta imagem” da guerra (referindo-se às três
imagens da obra “Man, the State and War” de Kenneth Waltz); por fim, em um último
momento, demonstra que o modelo psicanalítico desenvolvido em sua tese se encontra
com os três principais paradigmas das modernas teorias de Relações Internacionais, como
o Estruturalismo, o Pluralismo e o Realismo/Liberalismo, ao sugerir que esses
paradigmas não precisariam ser considerados como teorias mutuamente excludentes.
Nesse sentido, os conceitos elaborados por Bettcher, com base em análises históricas e
em estudo de casos, constituem um modelo teórico que oferece uma perspectiva distinta
e original da política mundial.
35
No que concerne ao desenvolvimento desta dissertação em relação à obra de
Bettcher (1997), este estudo pormenorizará somente uma parte da elaboração teórica
desse autor, com o intuito de apenas demonstrar que já houve tentativas bem-sucedidas
em utilizar vertentes da psicologia para analisar temas das Relações Internacionais. No
caso de Douglas Bettcher, a psicanálise freudiana, somada à abordagem da Escola da
Sociedade Internacional – comumente conhecida como Escola Inglesa de Relações
Internacionais –, foi o método conceitual que orientou seu constructo teórico, para
compreender melhor as interações entre sociedades humanas; este trabalho restringir-se-
á, portanto, ao primeiro momento da tese de Bettcher, que se refere aos capítulos um, dois
e três, em que o modelo id-ego-superego de sociabilização da psicologia humana pode
ser usado para formular uma ordem internacional, cujo sistema internacional não seja
necessariamente predeterminado. Por fim, serão abordados, ao longo e ao final desta parte
do trabalho, os pensamentos sociais e políticos de Freud, sobretudo aqueles concernentes
aos agrupamentos humanos e às coletividades, e o estudo psicanalítico da sociedade
internacional, conceito este vinculado à Escola da Sociedade Internacional.
Para demonstrar a importância do comportamento humano na política
internacional e legitimar, consequentemente, o desenvolvimento de um estudo das
relações internacionais com base na psicanálise, Bettcher (1997) cita algumas das
principais tradições do pensamento ocidental, que foram expostas por Martin Wight, em
sua obra International Theory: The Three Traditions. Essas tradições teóricas – com as
quais Wight trabalha e cujos aspectos revelam características da natureza humana – são
as vertentes realista, racionalista e revolucionista das ciências sociais, que foram reunidas
pela abordagem da Sociedade Internacional de Relações Internacionais. Wight (1994)
asseverou que toda teoria política pressupõe alguma perspectiva sobre a natureza humana,
alegação que enriquece as possibilidades de entendimento da dinâmica política e social;
há, entretanto, estudiosos que não consideram os aspectos humanos como centrais na
análise de política internacional, por serem recursos que não levam a avaliações precisas
e por não serem susceptíveis a exames fundamentados em métodos científicos
tradicionais.
Kenneth Waltz é um dos teóricos que não acredita na relevância e na centralidade
dos aspectos humanos para a análise estrutural de política internacional; a ideia da
característica humana foi, todavia, tema da análise da primeira imagem da guerra de
Waltz (1959), em sua obra Man, The State and War, que se concentrou na natureza
humana como causa substancial de conflitos. Na análise de Waltz, a filosofia política
36
havia descrito a natureza do ser humano como fundamentalmente pessimista (um ser
antissocial e agressivo) ou essencialmente otimista (um ser pacífico e sociável), o que
contribuiu para a clivagem, assaz conhecida nas Relações Internacionais, entre realistas e
liberais. O fato é que, de acordo com Evan Luard (apud BETTCHER, 1997, p. 9), o
elemento da natureza humana, geralmente ignorado, tem sido uma característica
onipresente nas teorias que analisam a atividade política entre sociedades, não somente
na história recente, mas também em tempos remotos, como na época dos grandes impérios
grego e chinês.
Para compreender melhor os aspectos humanos no estudo das relações
internacionais e para identificar variáveis psicológicas que possam ultrapassar os
fundamentos de contradição entre realistas e liberais, Bettcher (1997) também utilizou os
trabalhos de Wight, na medida em que este se distancia, de certo modo, dessa dicotomia,
ao demonstrar que o comportamento político das relações internacionais deveria ser
analisado por meio do racionalismo, do realismo e do revolucionismo,
concomitantemente. Nesse sentido, fundamentado na maneira pela qual Wight
compreende os aspectos humanos na política internacional, Bettcher correlaciona a
topografia freudiana da psique humana, que se refere à representação da mente constituída
por diferentes partes em um espaço psicológico imaginário, às três abordagens com as
quais Wight trabalha.
Segundo Bettcher (1997), a principal razão de mencionar a confluência das três
abordagens teóricas que Wight apresenta é demonstrar que os paradigmas contrastantes
do racionalismo, do realismo e do revolucionismo expõem uma tensão dialética da
psicologia humana entre uma perspectiva associal e outra social. Nesse sentido, Bettcher
acredita que uma análise freudiana das abordagens estudadas por Wight poderia servir
como elemento formativo de uma teoria psicológica da natureza humana, para fornecer
um modelo que possa ser utilizado como um sistema transcultural e transhistórico do
comportamento político.
Consoante Bettcher (1997), o sistema id-ego-superego de Freud possibilita uma
vinculação entre a estrutura comportamental da natureza humana e o comportamento dos
Estados; algumas ressalvas são, todavia, válidas. É interessante notar que o trabalho de
Wight foi principalmente circunscrito ao contexto europeu, ao passo que a teoria de Freud
assume uma perspectiva generalizada do comportamento social e da psicologia humana.
Além disso, o modelo de Freud parece ser o tipo de teoria geral socioantropológica, cujo
paradigma id-ego-superego poderia ser usado para analisar a história política e
37
antropológica do ser humano. O sistema tripartido de política internacional de Wight, em
que cada escola de pensamento tem uma compreensão distinta da natureza do ser humano,
como explica Bettcher, pode assemelhar-se ao trabalho de Freud, no que se refere ao
mapeamento da estrutura da psique humana. Nesse sentido, Freud (1962) explica que a
psique humana consiste dos seguintes elementos: o id, que representa os aspectos
instintivos das ações humanas, incluindo, por exemplo, a agressão; o ego, que mantém e
monitora a orientação da realidade; e o superego, que representa a parte moralista e crítica
do comportamento humano. Para que haja compreensão do paradigma id-ego-superego,
é importante que haja uma explicação mais pormenorizada do significado de cada
elemento do modelo freudiano (BETTCHER, 1997).
Segundo Freud (1923), o id é um elemento primitivo e instintivo da personalidade
humana (psique). Além disso, integra o inconsciente da psique, que contém desejos e
impulsos, em particular a libido, que tem algumas funções, como a de ser tanto um vetor
dos instintos de sobrevivência quanto um elemento que contribui para a apreciação das
manifestações artísticas do ser humano, por exemplo. O id também consiste em todos os
componentes biologicamente herdados da personalidade presentes no nascimento:
simbolicamente “Eros” – o instinto sexual de vida, que contém a libido – e “Tânatos” – o
instinto agressivo de morte. De acordo com o Freud (1923), o id é, ainda, a parte da
personalidade que se encontra no inconsciente, respondendo, direta e imediatamente, aos
impulsos, às necessidades e aos desejos básicos do indivíduo; por isso a personalidade de
um recém-nascido é inteiramente id; e só posteriormente o ego e o superego serão
desenvolvidos.
É interessante observar que o id permanece infantilizado ao longo da vida de um
indivíduo, pois não está em contato com o mundo exterior, bem como não é influenciado
pela realidade, pela lógica ou pelo mundo cotidiano, devido ao fato de situar-se no
inconsciente da psique. Desse modo, é inteligível o fato de que o id atua com base no
princípio do prazer e da dor (FREUD, 1920), cuja ideia é a de que todo impulso de desejo
deve ser satisfeito imediatamente, independente das consequências. Isso significa que,
quando o id é satisfeito, experimenta-se prazer; quando este, por sua vez, não é satisfeito,
experimenta-se desprazer. Nesse sentido, pode-se compreender que o id está vinculado
ao processo de pensamento primário, que tem como característica comportamentos
primitivos, ilógicos, irracionais e fantásticos, de maneira que esse processo não só tem
pouca ou nenhuma ligação com a realidade objetiva, mas também é egoísta e ávido pelos
impulsos e pelos instintos naturais (Freud, 1920).
38
No que concerne ao ego, este, consoante Freud (1923), é a parte do id que foi
modificada, em razão da influência direta do mundo exterior; é, por conseguinte, a única
parte da personalidade consciente. Isso significa que o ego é a parte do id que possibilita
ao indivíduo se perceber, quando este reflete sobre si, sendo o ego a parte que projeta,
geralmente, seus conteúdos sobre os outros. O ego, que se fundamenta na razão,
desenvolve-se para mediar a relação entre o id irracional e o mundo real externo e para
ser o tomador de decisão da personalidade, atuando com base no princípio da realidade e
elaborando formas realistas de satisfazer as demandas do id (FREUD, 1923).
O ego, como o id, busca o prazer e evita a dor; porém, ao contrário do id, o ego
preocupa-se em elaborar uma estratégia realista para obter prazer, ao sopesar as
consequências da decisão. Nesse sentido, o ego não entende suas decisões como certas
ou erradas, mas como realizadas ou não realizadas, na medida em que uma decisão boa é
aquela que atinge o objetivo, sem causar dano a si ou ao id. Pode-se argumentar também
que o ego é, em geral, menos irredutível do que o id, cabendo ao ego o esforço de apenas
administrar os impulsos do id. Para compreender essa interação entre ego e id, Freud
(1923) fez a seguinte analogia: ele classificou o id como sendo um cavalo, e o ego como
um cavaleiro, em que o ego é como uma pessoa a cavalo, que tem de controlar a força
superior do cavalo. (FREUD, 1923). Desse modo, consegue-se entender a capacidade de
influência que o id tem sobre a psique do indivíduo.
O ego relaciona-se ao processo de pensamento secundário, que tem como
característica os comportamentos racionais, realistas e de solução de problemas, de
maneira que, caso um problema não seja resolvido, as ações do ego impulsionam o
indivíduo para que este reelabore um plano, até que uma solução seja encontrada. Esse
processo é conhecido como teste de realidade e possibilita ao indivíduo controlar seus
impulsos e demonstrar autocontrole, mediante o conhecimento e o domínio do ego. Nesse
sentido, o objetivo do ego é tentar conter o id, ao impossibilitar que este tenha o controle
geral da psique (FREUD, 1923).
A respeito do superego, este é um elemento da psique que incorpora os valores e
a moral da sociedade. É entendido como o provedor de recompensas – orgulho e
satisfação – e de punições – vergonha e culpa. O superego é a parte do inconsciente, em
que a consciência e a autocrítica se situam, de modo a representar os valores morais e
éticos da sociedade, dos quais o indivíduo está ciente; o superego contém, no entanto,
códigos e proibições, que são, sobretudo, manifestados de maneira inconsciente, na forma
de comandos ou de declarações não necessariamente manifestas. A função do superego
39
é, também, a de controlar os impulsos do id, principalmente aqueles condenáveis pela
sociedade, como o sexo desequilibrado e a agressão gratuita. Além disso, o superego tem
a ambição de persuadir o ego a se voltar aos propósitos moralistas e à busca da perfeição,
em vez de se interessar, basicamente, pelos objetivos realistas (FREUD, 1923).
O superego consiste em dois elementos psíquicos: a consciência e o ego ideal4. A
consciência é a percepção que o ser humano tem do que é moralmente certo ou errado.
Esta é o elemento que consegue constranger o ego por meio da culpa, caso este ceda às
exigências do id, já que o superego pode proporcionar o sentimento de culpa ao indivíduo.
Uma vez que o superego é o aspecto moralizante da psique humana, Freud classificou o
outro elemento de ego ideal, que surge no ser humano a partir do primeiro grande apego
amoroso, frequentemente aos pais. O ego ideal é uma representação imaginária de como
a pessoa deveria ser e representa as aspirações profissionais e pessoais do indivíduo,
baseadas no que a sociedade espera desse sujeito. O comportamento que não corresponde
aos parâmetros do ego ideal pode ser punido pelo superego, mediante o sentimento de
culpa; o superego pode, porém, recompensar o sujeito, por meio do ego ideal, quando
este se comporta de forma adequada às expectativas sociais, o que gera o sentimento de
orgulho. O ego ideal e a consciência são, em grande parte, constituídos na infância,
sobretudo pelos valores morais e éticos dos pais e pela maneira segunda a qual a infância
foi experimentada (FREUD, 1923).
Após uma explicação mais detalhada dos elementos que compõem o modelo de
freudiano, Bettcher esclarece que:
40
do id e do superego continuam sem percepção consciente por parte do
indivíduo” (Lasswell, 1935, p.63) (BETTCHER, 1997, p.6).
41
No caso do conceito freudiano de ego, este parece corresponder com a perspectiva
teórica dos racionalistas na filosofia política. Como um aspecto da personalidade humana,
o ego tem a função de assegurar, mediante avaliação diligente, o monitoramento interno
e externo do indivíduo e a manutenção de certa racionalidade e razoabilidade das ações
do ser humano (BETTCHER, 1997). O ego atua como mediador entre o id e o superego.
Isso significa que os impulsos agressivos representados pelo id podem ser neutralizados
pelos princípios moralizantes do superego. Nesse sentido, o ego assume uma posição
dialética similar à descrita na tradição racionalista apresentada por Wight, em que as
características sociáveis e moralizantes do indivíduo são sobrepostas aos aspectos
agressivos e antissociais do egocêntrico (BETTCHER, 1997).
Se, por um lado, em contextos hostis, o ego pode apresentar traços de
agressividade, por outro, em situações mais auspiciosas, o ego tende a limitar a violência
e a estimular um comportamento sociável de cumprimento de normas. Com base nesse
entendimento, se os racionalistas testemunham o dilema entre uma interpretação hostil da
natureza humana e uma outra sociável e amistosa, pode-se analisar que o conceito
freudiano de ego caracteriza, com certa correspondência, a maneira pela qual o
comportamento humano se desenvolve. Por fim, o ego apresenta o aspecto racional da
psique humana que, similar ao pensamento racionalista, age em razão do autointeresse,
com o objetivo de garantir a segurança e a proteção do indivíduo.
No que concerne ao conceito de superego, Bettcher (1997) explica que, caso a
análise acerca da adaptação social do ser humano fosse apenas realizada usando esse
conceito como base, a ideia que se teria era a de que a humanidade seria
fundamentalmente constituída de indivíduos e de grupos benevolentes, propagadores da
paz e da cooperação. O superego descreve uma perspectiva idealizada de como o ser
humano deve agir, concepção semelhante ao paradigma kantiano apresentado por Wight.
Consequentemente, o superego pode ser compreendido como uma consciência
internalizada no indivíduo ou como um elemento moralizador (BETTCHER, 1997).
Na psicanálise, a consciência do superego é separada por meio de dois aspectos:
o aspecto punitivo e o aspecto ideal do ego5. O aspecto punitivo do superego desenvolve-
5
Para além da explicação já feita na nota de rodapé anterior, é importante explicar com mais detalhes acerca
da diferença entre o ideal do ego e o ego ideal, de modo que recorri ao texto da psicanalista Sophie de
Mijolla-Mellor, em que ela demonstra que “o conceito de ideal do ego apareceu pela primeira vez em ‘Sobre
o narcisismo: uma introdução’ de Sigmund Freud (1914c). O ideal do ego substitui o narcisismo perdido
durante a infância e promete a possível realização do narcisismo no futuro. O conceito de ideal do ego de
Freud forneceu suporte para outros conceitos anteriores, como consciência moral, censura e autoestima, e
possibilitou uma compreensão original da formação de movimentos de massa e sua relação com o líder
42
se fundamentado em normas dentro da sociedade, que proíbem, com punições, o
indivíduo de certas ações que são contrárias às normas sociais, o que se entende como
uma ameaça de coerção externa. Isso possibilitou Freud (1985) argumentar que, ao longo
da experiência humana, a coerção externa e as exigências morais da civilização foram
internalizadas no ser humano, de modo que foram integradas ao superego do indivíduo.
Por sua vez, no caso do segundo aspecto, este representa as normas, os valores ou os
elementos externos que engendram o respeito do indivíduo em relação às leis e aos
princípios instituídos na sociedade. Isso significa que a identificação, o vínculo emocional
e o respeito pelas instituições sociais criadas resultam na socialização do indivíduo em
agrupamentos sociais (BETTCHER, 1997). Um exemplo acerca do sentimento de
pertencimento a um grupo pode ser entendido a partir do conceito de culpa jurídica6, em
que a sociedade repreende os cidadãos por descumprirem normas sociais. Esse processo
demonstra uma consciência social de grupo, que se internaliza, de maneira que o
indivíduo censura o comportamento contrário às expectativas da sociedade. Nesse
sentido, Bettcher (1997) assevera que o desenvolvimento do superego contribui para a
coesão social.
De acordo com Bettcher (1997), como o elemento superego da teoria de Freud é
similar à escola de pensamento kantiana de Wight, pode-se considerar que tanto Kant
quanto Freud propuseram a ideia do desenvolvimento de uma consciência nacional. Eles
acreditariam que as ações individuais ou coletivas contrárias ao arcabouço normativo do
grupo são susceptíveis à censura dentro do agrupamento social, o que corrobora a
existência de profundos vínculos sociais e coletivos entre os indivíduos. Dessa forma,
(1921c). O ideal do ego e o superego, juntamente ao ego ideal, formam um grupo de instâncias que devem
ser claramente distinguidas, embora Freud, algumas vezes, tenha usado os dois primeiros indistintamente.
Freud introduziu o superego em O Ego e o Id (1923b). Permitiu-lhe distinguir o aspecto normativo da
psique (o superego) do aspecto motivacional direcionado a um objetivo (o ideal do ego). Originalmente,
porém, os dois aspectos estavam presentes no ideal do ego, que também não se diferenciava do ego ideal.
Essa falta de diferenciação reapareceu em New Introductory Lectures on Psycho-Analysis (1933a [1932]),
em que o ideal do ego se tornou uma função do superego. O ideal do ego é formado quando a criança, por
meio da influência crucial dos pais, educadores e outros no ambiente, é forçada a abandonar seu narcisismo
infantil. Isso é possível pela formação desse substituto, o ideal do ego, que deixa em aberto a possibilidade
de que no futuro a criança possa reencontrar o ego e o ideal. Esse desenvolvimento do ideal do ego da
criança, às vezes confundido com o superego, ocorre por meio da identificação da criança com os pais ou,
mais precisamente, com o superego dos pais. Em O Ego e o Id (1923b), Freud indica que o superego se
desenvolve a partir da identificação com o modelo paterno. Para que ocorra a identificação, o componente
erótico deve ser sublimado. Como resultado, ele não tem mais força para prender o componente destrutivo
da psique. Tudo isso cria uma divisão libidinal. Consequentemente, o superego torna-se severo, até mesmo
autodestrutivo. A partir disso, surge um sentimento de culpa inconsciente e, na melancolia, a criança
encontra o mesmo ideal do ego, dissociado do ego, furioso contra ela” (INTERNATIONAL DICTIONARY
OF PSYCHOANALYSIS, 2023)
6
No Direito, é o comportamento voluntário desatencioso, voltado a determinado objetivo, lícito ou ilícito,
embora produza resultado ilícito, não desejado, mas previsível, que poderia ter sido evitado.
43
ambos os intelectuais consideram que o ser humano e o “ser humano coletivo”, como o
Estado, poderiam ser socializados em conformidade com as regras da coletividade.
Bettcher (1997) cita a obra de Freud “Thoughts for the Times on War and Death”
(1985), em que este discute as perspectivas de se formar uma consciência nacional
coletiva, devido às vantagens que o ser humano teria de viver em sociedade. Essas
vantagens estariam relacionadas à tendência dos indivíduos de se absterem de condutas
hostis e arbitrárias, quando adotam padrões gerais de moralidade, em função da
conveniência de se submeter as regras do grupo para uma convivência adequada. Nesse
sentido, ao sugerir que suas concepções psicológicas pudessem servir de análise para o
“ser humano coletivo”, Freud desenvolveu, segundo Bettcher (1997), uma analogia
individual-coletiva, ideia que também pode ser encontrada nos trabalhos de Wight e que
está presente em trabalhos de filosofia política como nos de Thomas Hobbes, de
Immanuel Kant e de Hans Morgenthau.
Uma vez que o sistema freudiano id-ego-superego pode ser correlacionado com
as propostas de Wight, com a finalidade de elaborar um modelo psicológico da política
internacional, é importante notar que as três tradições de Wight e as três características
do sistema freudiano se sobrepõem, como observado na figura abaixo. Consoante
Bettcher (1997), essa justaposição pode ser analisada com base na obra de Wight (1994),
cujo trabalho esclarece que os grotianos são constituídos de realistas e de idealistas, na
medida em que a doutrina racionalista apresenta a tensão dialética entre o egocentrismo
e a natureza social do ser humano. Por sua vez, os kantianos são subdivididos em
revolucionários e evolucionários. Os revolucionário-realista-kantianos, como Lênin,
acreditam que a coerção pode ser necessária para estimular a coesão social, enquanto os
idealista-evolucionário-kantianos, como Woodrow Wilson, tendem a acreditar na
capacidade das ideias de fazer os seres humanos cooperarem, sem recorrer à coerção. Por
fim, os maquiavélicos acreditam que a natureza do ser humano é, essencialmente,
antissocial e egocêntrica: as paixões humanas são mais relevantes na política, e não os
ideais.
44
Figura 1- A Confluência das Três Tradições de Wight comparada ao Modelo id-ego-superego da Psicologia Humana
de Freud
45
Segundo Bettcher (1997), na imagem referida acima, os kantianos evolutivos e
revolucionários são equiparados aos aspectos ideal do ego e aos aspectos punitivos da
consciência do superego, respectivamente. Os kantianos evolucionistas e os grotianos
acreditam em certa socialização sem violência, o que se assemelha à descrição de Freud
acerca da evolução do ideal do ego, cujo processo de socialização do ser humano tende à
cooperação, em razão de seu caráter benevolente. Essa socialização cooperativa pode ser
incentivada pelo respeito ao líder de um grupo, a um sistema normativo ou a uma doutrina
religiosa, por exemplo. No que se refere ao conceito de ideal do ego, as figuras externas
de autoridade orientam o respeito do indivíduo, de sorte que a cooperação social se
manifesta sem ameaças de coerção ou de punição (FREUD, 1959). Os evolucionários, os
idealistas, os kantianos e os grotianos idealistas acreditam que a cooperação ocorre na
sociedade sem, necessariamente, o emprego da força e a utilização da punição. Nesse
sentido, pode-se considerar que o ideal do ego do sistema freudiano e a filosofia dos
idealistas kantianos reconhecem que há um aspecto benevolente, pacífico e susceptível
ao aperfeiçoamento na formação psicológica do ser humano (BETTCHER, 1997).
Para os revolucionários radicais, não obstante a capacidade progressista de
aperfeiçoamento do ser humano possa ser o intuito último, os recursos utilizados para
alcançar esse desenvolvimento são distintos. Para estes, a transformação envolve,
geralmente, violência. A orientação psicológica dos revolucionários radicais parece
adequar-se à descrição de Freud acerca do desenvolvimento do aspecto punitivo do
superego, por meio da exposição a forças externas coercitivas da sociedade. Dessa forma,
esse processo demonstra a evolução da cooperação social, em resposta à ameaça de
coerção ou de punição real de um agente de autoridade externa (FREUD, 1985). Por
conseguinte, o superego punitivo extremo e a escola kantiana extrema reconhecem que a
natureza do ser humano pode ser moldada e modificada; os meios para conseguir
cooperação social podem, no entanto, ser austeros e inflexíveis (BETTCHER, 1997).
As hipóteses dos kantianos revolucionários sobre a natureza do ser humano podem
ser comparadas com as dos kantianos evolucionários. Os kantianos revolucionários, que
defendem a coerção e a punição para alcançar um futuro ideal, reconhecem um aspecto
antissocial e inerente da psicologia humana. Isso significa que defendem a violência para
alcançar seus objetivos, o que expõe um pessimismo intrínseco sobre o potencial do ser
humano para socialização. No diagrama de Wight, pode-se observar que kantianos
extremos e realistas extremos se mesclam, o que leva a um pessimismo, pelos realistas
radicais, em relação à mudança que a natureza do ser humano pode sofrer, não importando
46
quão hostis sejam os meios. Para esses realistas radicais, o indivíduo deve ser reprimido
para manter a ordem política. Nesse sentido, tanto para certas teorias da filosofia política
quanto para o sistema freudiano, a certeza de que a coerção extrema é necessária, para
estimular os indivíduos a cooperar, reflete uma convicção pessimista, agressiva, caótica
e antissocial; os aspectos psicológicos do ser humano parecem equiparar-se, portanto, ao
conceito freudiano do id (BETTCHER, 1997).
De acordo com Bettcher (1997), cada uma das três tradições de Wight tem
correspondência a, pelo menos, um dos elementos do sistema id-ego-superego de Freud;
é importante ressaltar, no entanto, que as classificações conceituais de Wight advêm de
sua compreensão da filosofia política europeia, enquanto o sistema de Freud pretende
representar uma afirmação sociopsicológica mais generalizada sobre a natureza humana.
Nesse sentido, para que o sistema freudiano possa ultrapassar fronteiras culturais e ter
características transculturais e transhistóricas, Bettcher (1997) realizou, também,
paralelos entre as tradições políticas europeias e as tradições da filosofia política não
ocidentais, com referência especial à antiga filosofia política chinesa e à indiana. Em
ambas as filosofias políticas, está também presente uma “trifurcação de concepções” que
parece corresponder à classificação conceitual de Wight.
Além disso, Bettcher (1997) argumenta que, ao utilizar o sistema da psicologia
humana de Freud, as três tradições de Wight podem ser amalgamadas em um mapa
psicológico que descreve o comportamento político do ser humano e do ser humano
coletivo. Isso significa que o sistema psicológico de Freud fornece uma perspectiva
holística da natureza humana, pela qual essas escolas filosóficas podem ser vinculadas
entre si, ao longo de diferentes culturas, civilizações e épocas históricas.
Segundo Bettcher (1997), as três tradições de Wight podem ser encontradas na
antiga filosofia política chinesa, na obra de Arthur Waley, intitulada “Three Ways of
Thought in Ancient China”. Bettcher demonstra que as escolas de filosofia política
chinesa legalista, confucionista e taoísta/moísta parecem corresponder às escolas realista,
racionalista e revolucionista de Wight, respectivamente. Os legalistas podem ser
comparados aos realistas, em razão de ambos acreditarem que os seres humanos eram,
natural e inerentemente, maus e, caso não fossem coagidos, buscariam somente seus
próprios fins e interesses, gerando conflito uns com os outros (LUARD, 1992).
Adicionalmente, com base no mesmo raciocínio, os legalistas acreditavam que a
predileção natural do Estado é manter e expandir suas fronteiras (WALEY, 1939). Uma
vez que os legalistas entenderam que o comportamento humano era agressivo, antissocial
47
e ausente de compromisso moral, pôde-se considerar que suas concepções correspondem
ao pivô id-ego. Além disso, os legalistas sancionavam o uso da força pelos indivíduos e
pelos Estados, para alcançar os próprios interesses, por meio da dominação de outros.
Essa concepção hobbesiana de mundo assemelha-se ao id, que enfatiza o caráter
antissocial do ser humano (BETTCHER, 1997).
No que concerne ao Moísmo, essa doutrina aproximam-se do idealismo kantiano
de Wight. Ao espalhar a ideia de “bem universal”, os líderes poderiam desenvolver uma
reputação de retidão e de integridade, o que teria repercussões positivas em todo o mundo.
A ideia de amor universal dissuadiria as sociedades mais fortes a atacar e a conquistar as
mais fracas (BETTCHER, 1997). Nesse sentido, a generosidade e a bondade
disseminadas entre os Estados seriam de benefício mútuo, pois salvariam o mundo do
flagelo da guerra. Mo Tzu, filósofo idealista chinês que representou a escola moísta, era
convicto de que o caminho para o "amor universal" poderia exigir o uso da coerção, como
os revolucionários radicais no esquema de Wight. Se, por um lado, Mo Tzu condenou a
guerra que serve para satisfazer a ganância individual dos governantes dos Estados, por
outro, sancionou a guerra que serve para alinhar os Estados com base em um código moral
universal (BETTCHER, 1997).
No que diz respeito às observações de Wight, a aprovação de Mo Tzu do uso
punitivo da força, na forma de uma “guerra justa” para punir Estados errantes, sobrepõe-
se às ideias dos grotianos realistas e às ideias dos kantianos revolucionários. Com uma
perspectiva mais próxima a um racionalismo prático, a convicção de Mo Tzu na
benevolência humana é misturada com uma crença mais pessimista e antissocial do
comportamento humano. Nesse sentido, as ideias de Mo Tzu sobre a natureza humana
parecem corresponder ao eixo ego-superego (BETTCHER, 1997). O Taoísmo, análogo
às ideologias religiosas e políticas da escola revolucionista de Wight, tem o objetivo de
orientar, com a moralidade, os membros da sociedade, o que asseguraria, hipoteticamente,
relações mais harmoniosas. Essa tradição filosófica, uma das mais idealistas das escolas
de filosofia política chinesa e tendo Chuang Tzu como seu principal filósofo, parece
representar uma doutrina messiânica, que funciona, da perspectiva freudiana, com base
em princípios éticos da sociedade, que auxiliam a moldar o superego. Consequentemente,
esse entendimento otimista e progressista da natureza humana alinha-se ao superego do
paradigma de Freud (BETTCHER, 1997).
No que concerne ao Confucionismo, a tradição grotiana do mundo, que defende a
boa governança, a sociabilidade inerente ao ser humano e o diálogo como meio para a
48
paz, é a que mais se aproxima dos confucionistas. Além disso, o Confucionismo
concentra-se na “bondade moral da humanidade”, de maneira que a guerra se torna meio
inútil para resolução de conflitos, e a benevolência elemento que orienta as ações dos
governantes (BETTCHER, 1997). Como na filosofia de Grotius, os confucionistas
acreditam que indivíduos e Estados são entes sociáveis, embora isso não signifique que o
Confucionismo não reconheça aspectos antissociais da natureza do ser humano, na
medida em que estes acreditam na punição de crimes, sejam esses realizados por
indivíduos, sejam por Estados. Com isso, pode-se considerar que as ideias confucionistas
correspondem à categoria idealista-grotiana, isto é, à escola racionalista de Wight. Por
conseguinte, no diagrama psicológico de Freud, os fundamentos do Confucionismo sobre
o comportamento do ser humano parece corresponder às funções do ego, visto que o ser
humano e os Estados são capazes de comportamentos sociáveis, mas, ao mesmo tempo,
os aspectos antissociais também integram suas ações. Vale lembrar que o ego atua como
agente estabilizador entre essas partes contraditórias do comportamento do ser humano,
que é o momento em que a ética e o egoísmo se encontram (BETTCHER, 1997).
Além das possíveis semelhanças entre as tradições chinesa e europeia, Bettcher
(1997) esclarece que há um padrão de similaridade no pensamento filosófico-político em
relação aos antigos escritos hindus. As ideias realistas estão bastante presentes nos
escritos políticos da Índia Antiga. Por exemplo, o Arthasastra de Kautilya, que pode ser
definido como uma ciência que abrange as áreas temáticas da Política e da Economia,
representa uma das vertentes mais extremas do realismo hindu (PRASAD, 1927). As
escolas de política Kautilya, bem como o Manu-Mahabharata, defendem uma
interpretação pessimista da natureza humana, o que auxilia na compreensão de que o
pensamento dos antigos realistas indianos é semelhante ao dos realistas agressivos de
Wight (PRASAD, 1927). Os escritos políticos de Manu, Kamandaka e Kautilya usaram,
por exemplo, a palavra "matsyanyayd" – anarquia (SEN, 1926), com o intuito de
descrever o estado de natureza pré-político, caracterizado pelo estado de confusão e caos,
bem próximo à concepção de estado de natureza de Hobbes. Assim, análogo ao realismo
hobbesiano, os realistas hindus sancionam a coerção como meio de manter a ordem social
contra as tendências antissociais do ser humano. Além disso, relações interestatais e
diplomáticas, para o antigo realista indiano, tinham nenhum senso de moralidade e,
portanto, nenhum sistema genuíno de Direito Internacional era possível (PRASAD,
1927). No modelo do id-ego-superego, essa escola de pensamento parece pertencer ao
49
eixo do id-ego: o comportamento humano e estatal, análogo à teoria de Freud do id, é
amoral, violento e de sobrevivência (BETTCHER, 1997).
No que se refere ao Budismo, os mesmo princípios que se aplicavam aos
indivíduos também eram empregados nas relações interestatais, em que Buda condenava
a agressão militar qualquer que fosse a justificativa. O estado de natureza humano para a
escola budista supõe que, na origem da humanidade, as pessoas eram inteiramente
perfeitas, de modo a terem uma vida pacífica e feliz (PRASAD, 1927; SEN, 1926,). Além
disso, o “escolhido dos deuses”, isto é, o governante, deve direcionar todos os recursos
do Estado para propagar os princípios do budismo, a benevolência e a moralidade.
Conclui-se que o estado de natureza budista assume que o ser humano é sociável e capaz
de se aperfeiçoar; de acordo com a teoria política budista, entretanto, à medida que seres
humanos viviam juntos, por mais tempo, a decadência social e os conflitos começaram,
gradualmente, a ocorrer, e os contratos sociais tiveram, consequentemente, de ser feitos,
para restabelecer a ordem e a harmonia na sociedade. Esses contratos possibilitaram a
evolução de instituições como a família, a propriedade e o Estado. O pensamento político
da escola filosófica budista parece, nesse sentido, correlacionar-se com o da tradição
kantiana de Wight. A filosofia budista sobrepõe-se à dos grotianos, já que estes
acreditavam que as ações do Estado são orientadas pela razão e pela conveniência, e não
pela intervenção divina (PRASAD, 1927). Como os kantianos, a filosofia política budista
estaria situada ao longo do eixo do ego-superego: a natureza generosa, benevolente e
cooperativa do ser humano é enfatizada na filosofia política budista e, portanto, o
otimismo da perspectiva budista em relação à natureza humana parece corresponder ao
aspecto do ideal do ego do superego (BETTCHER, 1997).
No caso do Jainismo, essa teoria política representa uma perspectiva intermediária
entre os realistas e os missionários budistas. Na filosofia ateísta jainista, a ideia de
governo não é associada a significados divinos. As funções desempenhadas pelo governo
são racionais, de maneira que o propósito de um governo é, conforme o estado de Direito,
educar seus cidadãos em todos os aspectos da vida social (BETTCHER, 1997).
Consequentemente, o pensamento do Jainismo não é diferente daquele expresso por
racionalistas europeus, como Locke ou Grotius, o que auxilia na compreensão de que o
sistema de pensamento jainista representa uma síntese das tendências sociais e
antissociais do ser humano. Como os grotianos, os jainistas acreditavam que o indivíduo
não é totalmente sociável; por isso a punição deve ser permitida, de modo que um sistema
jurídico justo é essencial para o desenvolvimento da sociedade (PRASAD, 1927). De uma
50
perspectiva freudiana, a orientação dos jainistas para a psicologia humana, como a dos
grotianos e a dos confucionistas, parece corresponder ao elemento ego. A tensão dialética
do ser humano entre a natureza sociável e cooperativa e o comportamento antissocial e
egoísta desempenha uma função basilar no pensamento social jainista, bem como a teoria
do ego no paradigma de Freud (BETTCHER, 1997).
No caso do pensamento político islâmico, este determina que os fundamentos
políticos de um Estado sejam estruturados pela ideologia do Islamismo, e somente
aqueles que acreditam na Lei Divina do Alcorão devem ser confiáveis para administrar
os órgãos e as instituições do governo (TAMADONFAR, 1989). Além disso, um Estado
constituído por meio da doutrina islâmica tem a prerrogativa de comandar e de cercear
sua população em diversas áreas da vida; pode-se, por isso, argumentar que o sistema
normativo religioso do Islamismo tende a influenciar a vida de seus adeptos. Por fim, em
relação à autoridade suprema do Estado, esta é definida com base no Alcorão, cujos
fundamentos advêm da vontade de Deus. A política externa do Estado fundamentado no
Islamismo é semelhante à dos revolucionários mais agressivos de Wight. Isso significa
que o Islã advoga, explicitamente, o uso de meios violentos para preservar a justiça e para
erradicar sistemas “injustos”, nesse caso sistemas não islâmicos. Segundo a doutrina
política islâmica, a guerra santa (jihad) representa um meio legítimo de eliminar sistemas
políticos injustos. Além disso, esse Estado almeja defender a propagação do Islamismo,
a busca da justiça, a fraternidade universal e a coexistência pacífica (TAMADONFAR,
1989). No entanto, o princípio da coexistência pacífica parece estar condicionado à
realização e à concretização de um sistema islâmico universal (BETTCHER, 1997).
Segundo Bettcher (1997), as manifestações políticas do Islã em relação à natureza
do ser humano parecem correlacionar-se melhor com as ideias dos kantianos
revolucionários de Wight. Isso significa que uma perspectiva revolucionária otimista de
reforma e de igualdade social parece estar vinculada a uma visão pessimista da formação
psicológica do ser humano, de modo que o uso de coerção para alcançar a justiça islâmica
seja justificado. Nesse sentido, a convicção na capacidade de aperfeiçoamento do ser
humano vincula-se ao pessimismo, visto que a coerção pode ser usada para circunscrever
as ações dos indivíduos. Com isso, Bettcher afirma que não só a perspectiva islâmica da
psicologia humana é mais semelhante ao eixo ego-superego do paradigma de Freud, mas
também a ênfase nos meios coercitivos de autoridade assemelha-se mais ao aspecto
punitivo do superego. Ao se analisar o pensamento islâmico com base na filosofia política
e na política internacional, compreende-se que a perspectiva política do Islamismo não
51
tem a mesma profusão de concepções e de ideias filosóficas como as manifestadas pelas
antigas tradições europeia, grega, chinesa e indiana; o pensamento político islâmico
continua, no entanto, a ter sua posição no mapa psicológico freudiano, embora não
abranja toda a extensão do sistema id-ego-superego da mesma forma que os sistemas
europeu, indiano e chinês antigo, na medida em que o pensamento islâmico parece ser
mais homogêneo do que as filosofias das três outras civilizações analisadas (BETTCHER,
1997).
Bettcher tenta demostrar, com base em várias filosofias políticas, que a topografia
de Freud pode ser analisada como um modelo geral da psicologia humana. O autor explica
que, embora Freud não tenha aplicado diretamente seu paradigma para analisar filosofias
políticas, essa análise era possível, já que diferentes aspectos do mapa psicológico de
Freud podem ser reconhecidos em várias tradições da filosofia política. Isso significa que
Bettcher tentou demonstrar que cada escola política de pensamento assume certa
orientação para a natureza psicológica do ser humano, proporcionando o fundamento
teórico para determinada doutrina política (BETTCHER, 1997).
Bettcher montou um quadro sinótico, Figura 2, que condensa a relação entre o
sistema psicanalítico de Freud e as filosofias políticas abordadas. Em primeiro lugar, os
sistemas de crença dos maquiavélicos, dos legalistas chineses e das antigas escolas
indianas aproximam-se do eixo id-ego. Em segundo, os kantianos, os taoístas chineses e
as antigas tradições budistas indianas pressupõem que a natureza política do ser humana
seja capaz de se aperfeiçoar – já os kantianos evolucionários mais otimistas acreditam
que a natureza do ser humano é benevolente e cooperativa –; o fundamento psicológico
dessas escolas corresponde ao eixo ego-superego. Por fim, um meio-termo é presumido
pelas escolas grotiana, confuciana e jainista, de modo que a orientação psicológica dessas
escolas para a natureza política do ser humano se vincule à função do ego.
52
Figura 2 - O Mapa "id-ego-superego": Um modelo transcultural e transhistórico da filosofia
política
53
Nesse sentido, no que diz respeito ao comportamento dos Estados, que têm o contrato
social como um elemento importante de análise, Bettcher (1997) elaborou uma analogia
entre as ideias de Rousseau e as de Freud, não só para descrever os processos políticos e
sociais que levam a integração do indivíduo a uma comunidade política, como a pensada
pelo próprio Rousseau, mas também para vincular esses fatores socioculturais a um
paradigma do desenvolvimento psicológico do ser humano, com base nas ideias de Freud.
Bettcher (1997) explica que o trabalho de Freud sobre a evolução de grupos
políticos se assemelha ao desenvolvimento de grupos sociais do Contrato Social de
Rousseau, cujos estágios são definidos desta maneira: um estágio pré-social, como o
estado de natureza, um de início de contrato social entre indivíduos e um de sociedade
civil organizada e estabelecida. Embora Freud fosse menos otimista do que Rousseau em
relação ao estado de natureza do ser humano, já que Rousseau acreditava na pureza e na
inocência do indivíduo e Freud tinha um entendimento de que esse indivíduo – no seu
estágio pré-social – era egoísta e agressivo (correspondente ao id agressivo freudiano),
ambos concordavam que o estado de natureza do ser humano era dinâmico, pois o
indivíduo sofre uma transformação sociopsicológica, à medida que se socializa em uma
sociedade civil (BETTCHER, 1997).
A socialização já pressupõe o início de um contrato social, o que implica não
apenas a alteração das condições sociais e materiais da existência do ser humano, mas
também uma transformação da natureza humana, à medida que os indivíduos passam do
estado de natureza ao de sociedade política. Uma vez feito o contrato social,
estabelecendo autoridades legais e instituições legítimas, a sociedade fica menos
propensa a conflitos. Além disso, a base da sociedade humana reside nos sentimentos
comunitários e nos vínculos emocionais que se desenvolvem entre os indivíduos de uma
coletividade unida, pois a coerção social, como único meio de autoridade, pode provocar
rebeliões e instabilidades (FREUD, 1985).
No estágio em que a sociedade civil já está organizada com base em um contrato
social, há uma necessidade de mitigação da natureza egoísta e individual do ser humano,
para se pensar também no coletivo, ao analisar o contrato social a partir do paradigma da
psicologia humana. Para Freud, o desenvolvimento do superego individual está vinculado
ao superego cultural, que tem relação com a estrutura normativa da sociedade. Segundo
Bettcher (1997), Freud demonstrou a transformação da consciência humana, quando o
indivíduo se integra à sociedade civil, bem como oferece um modelo que explica a
mudança sociopsicológica desse indivíduo. As sociedades – Estados, nações,
54
comunidades – são possíveis e sustentáveis, segundo Freud (1985), porque os indivíduos
transferem a autoridade a uma unidade maior e legítima, de modo que se mantém unida
pelos laços emocionais entre os membros dessa unidade social (BETTCHER, 1997).
O vínculo social gerado entre os indivíduos, em uma sociedade, pode ser
explicado, segundo Bettcher (1997), por meio do conceito de superego cultural e de
consciência coletiva. Para isso, será brevemente apresentado algumas ideias de filósofos
que já analisavam a concepção de consciência comunitária ou coletiva, que também foi
objeto de estudo de Freud. Émile Durkheim entende a consciência coletiva como a
totalidade das crenças e dos sentimentos comuns aos membros de uma sociedade, que
formam determinado sistema com vida própria. O substrato dessa consciência é difundido
na sociedade, mas possui características específicas que a torna uma realidade distinta da
consciência de um indivíduo. Além disso, não muda a cada geração; vincula, entretanto,
várias gerações umas às outras. É diferente da consciência dos indivíduos, embora só se
realize nos indivíduos, conforme entendia Durkheim. Nesse sentido, a consciência
coletiva de Durkheim é um termo geral que descreve todas aquelas influências normativas
que os indivíduos, de uma geração a outra, estão expostos em razão da vida em sociedade;
essas regras coletivas abrangem valores religiosos, leis civis e criminais e outros valores
tradicionais. A consciência coletiva funciona de forma a unir os seres humanos por um
vínculo de sociabilidade (BETTCHER, 1997).
De acordo com Bettcher (1997), Freud refere-se ao superego cultural como um
elemento da psique humana que abrange os ideais éticos, os valores morais, as normas e
as forças punitivas dentro da sociedade, que contribuem para a coesão e a cooperação
social. Constitui, desse modo, a estrutura normativa e o sistema de coerção comunitária
de uma sociedade, bem como interfere e modifica o comportamento egocêntrico do
indivíduo que contraria as expectativas sociais. Símbolos, leis, totens e tabus são, por
exemplo, meios pelos quais a sociedade formula restrições ao egoísmo individual e à
violência latente – que pode ser resultado de um comportamento egocêntrico e antissocial
– com o intuito de engendrar uma coexistência social sustentável (BETTCHER, 1997).
Além disso, o superego cultural é o agente externo em uma comunidade que
implica a formação do superego individual, já que estabelece exigências, cuja
desobediência instaura o que se chama medo de consciência. Consequentemente, são
essas influências exteriores que criam uma consciência moral em relação à sociedade.
Freud sugere, ainda, que as exigências éticas do superego cultural dentro de uma
sociedade, após a elaboração de um contrato social, podem ser bastante severas, com o
55
desenvolvimento de neuroses (FREUD, 1985a). Freud comenta que a consciência do
superego individual é reproduzida por um conjunto semelhante de processos sociais
dentro de uma comunidade; por isso afirma que há uma vinculação entre a evolução
psicológica do superego do indivíduo e as forças sociais externas que auxiliam a moldar
esse aspecto da personalidade humana. Por conseguinte, Bettcher explica que, em virtude
de o ser humano se socializar em certo ambiente social e cultural, de modo a cumprir com
as expectativas sociais, fornece evidências da evolução do superego (BETTCHER, 1997).
No que concerne à filosofia política de Rousseau, a teoria da vontade geral é
apresentada com base em seu conceito de corpo político7, em que a anatomia do Estado
foi comparada com as características fisiológicas do corpo humano. Para Rousseau, a
unidade do corpo político é basilar, pois, para que o Estado mantenha sua função como
um ente moral, ao proporcionar bem-estar à população, deve, portanto, permanecer como
uma entidade unificada (BETTCHER, 1997). Já Auguste Comte propôs uma analogia
biológica dos Estados e dos agrupamentos humanos, em que sugere que o estudo
sociológico de grupos humanos deve considerar o todo social, de modo que não possa ser
reduzido a uma análise individual. Em “The Positive Theory of the Social Organism”,
Comte comparou a função do líder de um agrupamento, ou de um Estado, às funções
cerebrais de um ser humano individual (COMTE, 1975, p.427), considerando o
organismo social como um ente corpóreo8, como um fato empiricamente definido
(BETTCHER, 1997).
Outro autor que aborda o assunto acerca de uma consciência coletiva é Friedrich
Hegel, que em sua obra “Elements of the Philosophy of Right”, também empregou uma
metáfora entre o corpo humano e o Estado. As partes individuais que integram o
organismo estatal ocupam um lugar específico e definido, da mesma maneira que
acontece com os órgãos do corpo humano. Caso uma dessas partes não funcione, o todo
social perecerá (HEGEL, 1985). Hegel (1985) personifica o Estado como um eu coletivo.
7
O corpo político, tomado individualmente, pode ser considerado como um corpo vivo organizado,
semelhante ao do homem. O poder soberano simboliza a cabeça; as leis e os costumes são o cérebro, fonte
dos nervos e sede do entendimento, da vontade e dos sentidos, dos quais os juízes e magistrados são os
órgãos; o comércio, a indústria e a agricultura são a boca e o estômago que preparam a subsistência comum;
as finanças públicas são o sangue, que uma economia prudente, cumprindo as funções do coração, distribui
por todo o corpo para dar alimento e vida; os cidadãos são o corpo e os membros que fazem a máquina se
mover, viver e trabalhar e que não podem ser feridos em nenhuma parte sem causar rapidamente uma
impressão dolorosa no cérebro, se o animal estiver em estado saudável (ROUSSEAU, 1991, p. 95).
8
Comte faz uma analogia biológica comparando os grupos sociais às células e aos tecidos do corpo humano:
“tratará o organismo social como definitivamente composto pelas famílias que são os verdadeiros
elementos ou células; a seguir, das classes ou castas que são seus próprios tecidos; e por último, das cidades
e comunas que são seus órgãos reais.” (COMTE, 1991, p. 429).
56
Dessa maneira, a “pessoa do Estado”, como um organismo vivo, tem uma “mente”. Nesse
sentido, os Estados, como “indivíduos existentes”, representam a “mente nacional”, de
modo que interage com o comportamento de outros entes estatais que têm os mesmos
atributos, direitos e deveres que este. O Estado incorpora, consequentemente, a
moralidade coletiva de uma comunidade unida pela tradição, pela religião e pelas crenças
morais, o que contribui para que uma fidelidade ao Estado possa garantir que o coletivo
prevaleça sobre o egoísmo individual (BETTCHER, 1997).
De acordo com Bettcher (1997), Freud não elaborou uma teoria coesa do Estado
como fizeram Rousseau, Durkheim Comte e Hegel. Quando Freud reflete sobre unidades
políticas, como os Estados, considera-as como grupos de agentes; suas reflexões sobre as
relações interestatais e a psicologia de grupo revelam, entretanto, similaridades
metodológicas em relação à análise desses intelectuais, embora Freud não cite
diretamente nenhum trabalho desses pensadores. Bettcher explica que Freud, em seus
ensaios políticos, se refere ao Estado de maneiras diferentes: classifica-o como unidades,
outras vezes como pessoas ou mesmo como organismos. Em se tratando da análise
psicológica de um agrupamento humano, Freud tentou desenvolver uma teoria
sistemática da psicologia de grupo em sua obra “Group Psychology and the Analysis of
the Ego” (1921). A psicologia de grupo de Freud concentra-se na ideia de Eros9 de Platão
para se referir às forças de harmonização e de unidade, que podem manter unidos os
agrupamentos humanos (FREUD, 1985), com base no respeito, pelos seus membros, aos
valores e aos princípios do grupo, e com base nos vínculos emocionais que esses valores
auxiliam a desenvolver entre esses membros do grupo. Nesse sentido, a psicologia de
grupo de Freud dedica-se ao aspecto benevolente e pró-social da psicologia humana, que
é resumido pelo conceito de ego-ideal.
Consoante Bettcher (1997), Freud argumenta que é possível atribuir
características de um indivíduo a um grupo, de maneira que a formação de grupos é como
se fosse a continuação do caráter multicelular dos organismos superiores (FREUD, 1985).
Dessa maneira, quando se analisa que os aspectos de um indivíduo podem ser observados
9
Vejamos o que se passa com Eros na República. Nesta, a alma humana é dividida em três partes: a racional,
a irascível e a irracional ou apetitiva. Cada uma deve exercer a atividade que lhe é própria. À parte racional,
que é superior, cabe comandar e sua qualidade específica é a sabedoria. À parte irascível compete auxiliar
a parte racional, de tal forma que suas ordens sejam sempre obedecidas; a qualidade que a distingue é a
coragem. À parte apetitiva, cabe obedecer aos comandos da parte racional e a qualidade que lhe cabe é a
temperança. Se cada parte exerce sua função, a alma está em harmonia, é justa e saudável. Quando ocorre
de alguma parte desviar-se de sua tarefa, a alma adoece: a desordem impera e, com ela, a injustiça
(BARROS, 2023).
57
nas ações de um grupo, torna-se importante explicar que o modelo de psicologia de grupo
de Freud se desenvolve a partir de suas ideias sobre totens e tabus 10, cuja existência
representa símbolos coletivos que criam uma dinâmica particular de interação entre
membros de uma comunidade. Bettcher explica que a coesão social se forma uma vez que
o narcisismo individual, que é a capacidade do indivíduo de resistir à socialização em um
agrupamento humano organizado, é enfraquecido pela identificação do indivíduo com um
líder ou com as diretrizes de um grupo. Essas forças socializadoras encontram-se no
superego cultural. Por sua vez, Bettcher argumenta que Freud não acreditava, como
Comte acreditava, que um agrupamento humano tem a capacidade de suprimir,
inteiramente, a independência individual, de modo que o indivíduo se torne indistinguível
do grupo. Freud entendia que certa dimensão de autonomia individual coexistia com a
identificação do indivíduo com um grupo, de forma que a mente grupal não se apodera,
necessariamente, da individual (BETTCHER, 1997).
Em seu artigo Thoughts for the Times on War and Death (1915), a observação de
Freud em relação ao Estado, como sendo um indivíduo coletivo da humanidade (FREUD,
1985a), refere-se a uma extensão do sistema de pensamento da mente grupal. Freud
sugere que o Estado deve ser considerado como grupo de agentes unitário, detentor de
uma mente grupal, que orienta as relações com outras unidades políticas homólogas. Por
conseguinte, Freud acreditava que as relações éticas entre os Estados poderiam
desenvolver-se e evoluir, similarmente ao processo de interação ética que acontece entre
os cidadãos individuais.
Bettcher (1997) explica que o pensamento de Freud se assemelha ao de Durkheim,
visto que Durkheim propõe que o Estado deve resguardar a moralidade do grupo, ao
exercer autoridade sobre o indivíduo; este, por sua vez, como parte de um grupo – Estado
–, deve demonstrar lealdade por meio do nacionalismo e do patriotismo.
Consequentemente, o Estado assegura que os padrões éticos de uma sociedade sejam
inculcados em seus cidadãos. Já Freud, por seu turno, extrapola Durkheim, ao sugerir que
uma autoridade moral supranacional deveria existir, com o objetivo de estabelecer
parâmetros de comportamento entre os agentes estatais. Para Freud, a concepção de
10
“O totemismo, a primeira forma de religião que conhecemos, contém, como parte indispensável de seu
sistema, uma série de leis e proibições que claramente não significam nada além de renúncia instintiva.
Existe o culto do Totem, que contém a proibição de matá-lo ou feri-lo... a concessão de direitos iguais para
todos os membros da horda de irmãos, ou seja, a restrição do impulso de resolver sua rivalidade pela força
bruta. Nessas regras temos que discernir o início dos primórdios de uma ordem moral e social” (FREUD.
1939).
58
sociedade civilizada refere-se à transformação dos aspectos das compulsões externas da
sociedade, de uma orientação egoísta a uma tendência altruísta; por isso que esse processo
transformativo, que ocorre, em regra, entre indivíduos em uma comunidade, deve ser,
também, desenvolvido e estimulado entre os Estados (BETTCHER, 1997).
Freud (1985) argumenta que os Estados podem ter de passar pelos estágios de
socialização, processo similar à transformação pelo qual o ser humano passou: de
indivíduos primitivos a cidadãos de uma unidade política. Somado a isso, Freud (1985a)
não aceita a ideia de que o ser humano e o ser humano coletivo estejam, necessariamente,
sujeitos a viver em um estado de natureza hobbesiano. Nesse sentido, elucida que os
Estados devem ser ensinados a apreciar os benefícios da cooperação interestatal,
argumento que, com base na analogia de Freud entre indivíduos e Estados, vincula a
questão da coesão social do indivíduo ao nível coletivo (FREUD, 1985a). Freud muda,
por consequência, o nível de análise do individual para o coletivo, porém utiliza a mesma
metodologia psicanalítica para analisar o comportamento dos indivíduos e dos Estados11.
Bettcher (1997) esclarece, por exemplo, que a descrição de Freud acerca da função
da Liga das Nações, como um vetor de coesão social entre os Estados, se relaciona à
função do superego cultural. Nesse sentido, Freud coloca o conceito de superego cultural
em um nível interestatal. Além disso, argumenta que, se vínculos sociais duradouros
devem ser criados entre sujeitos estatais, as identificações e os vínculos emocionais entre
seus membros devem, portanto, existir (BETTCHER, 1997).
Bettcher (1997) cita mais um exemplo sobre as identificações e os vínculos
emocionais que Freud relata em uma de suas cartas para Einstein:
11
Por exemplo, ele parece estender a ideia do “superego” ao nível interestatal. Como observado
anteriormente, a orientação de Freud em relação à Liga das Nações é paralela à noção de Kant de uma
“consciência da humanidade”. Consistente com sua teoria da formação do "superego", Freud acreditava
que, se a Liga das Nações fosse eficaz, deveria ter algum poder investido nela, enquanto membros e não
membros deveriam estar preparados para atender à sua mensagem "moralista". A partir desses comentários
políticos, parece que as convicções políticas de Freud estavam próximas das tradições políticas do
"pensamento liberal" e, consequentemente, ele promoveu a ideia da Liga das Nações (BETTCHER, 1997).
59
da nação grega ou mesmo para restringir uma cidade ou uma
confederação de cidades de se aliar ao inimigo persa para obter
vantagem sobre um rival” (BETTCHER, 1997, p.65).
60
É importante ressaltar que, além de analisar a concepção de seres humanos
coletivos com base em uma perspectiva sociopsicológica da natureza humana, Freud
analisou, também, o comportamento social e político dos Estados como se fossem
indivíduos, ao aplicar o conceito de neurose coletiva e de mecanismo de defesa nas
relações interestatais. Segundo Bettcher (1997), embora acreditasse que os resultados
clínicos psicanalíticos pudessem ser utilizados no domínio da Ciência Social, da Filosofia
e da Antropologia, Freud (1955) não estava, inteiramente, convicto de que o diagnóstico
de distúrbios psicológicos poderia ser usado para analisar o comportamento sociopolítico
de Estados. Como acreditava que grupos religiosos pudessem apresentar, no entanto,
sinais de distúrbios psicológicos, pode-se inferir, segundo Bettcher (1997), que Freud
também acreditava que era possível que Estados apresentassem o mesmo quadro, como
no caso da guerra entre franceses e prussianos.
Na guerra franco-prussiana de 1870, em que a França perdeu o território da
Alsácia-Lorena, Freud esclareceu que a derrota francesa gerou uma condição psiquiátrica
de paranoia em massa, em um nível Estado-nação (FREUD, 1966). Esse quadro
psiquiátrico pode ser compreendido pelo que ficou conhecido como o revanchismo
francês, que foi não só um dos fatores causadores da Primeira Guerra Mundial, mas
também foi um dos elementos que possibilitaram a elaboração de um Tratado de
Versalhes (1919) draconiano e despótico, documento que instigou, inclusive, movimentos
incitadores da Segunda Guerra Mundial. Bettcher (1997) explica que, com base na análise
de Freud, a França, como uma grande potência, sentiu-se envergonhada por sua derrota
e, para defender seu orgulho coletivo em face da derrota, acabou desenvolvendo o que
Freud nomeou paranoia em massa e delírio de traição. Isso significa, portanto, que os
conceitos psiquiátricos e psicanalíticos ao nível de análise coletivo são perceptíveis na
obra de Freud (BETTCHER, 1997).
Segundo Bettcher (1997), Freud havia sugerido que os mecanismos psicanalíticos
de defesa12 poderiam ser usados para analisar o comportamento estatal. Para confirmar
esse argumento, Freud (1985) asseverou que os Estados são muito mais susceptíveis às
exigências de suas paixões do que diligentes em relação a seus interesses. Os interesses
12
Em psicanálise, os mecanismos de defesa são métodos pelos quais o ego, orientado para a realidade, lida
com as demandas antissociais do id, com as pressões morais e socioculturais do superego e com
informações sociais do mundo exterior. O ego tenta harmonizar esses dados psicológicas, para se adaptar e
para manter plena consciência de sua realidade objetiva. Essas defesas psicológicas representam meios
pelos quais a psique do indivíduo pode usar para reduzir os níveis de ansiedade pessoal, de medo e de
insegurança. (Schwartz et al., 1974, p.500) (BETTCHER, 1997, p.71).
61
coletivos dos Estados atuam como um mecanismo de racionalização para suas paixões;
os Estados expressam, portanto, seus interesses com o intuito de justificar, de racionalizar
e de satisfazer suas paixões. (FREUD, 1985a). Esse argumento é idêntico ao conceito
utilizado na psicologia individual e na psicanálise. Isso significa que a racionalização da
paixão representa um mecanismo de defesa, pelo qual o ego do indivíduo justifica,
fundamenta e exprime seu comportamento em termos socialmente aceitáveis, com o
propósito de ocultar a verdadeira motivação antissocial e agressiva por trás da conduta
(BETTCHER, 1997).
É importante, dessa maneira, entender que os Estados justificam situações
violentas e relações agressivas uns em relação aos outros, com a intenção de disfarçar
suas condutas socialmente inaceitáveis, por meio de um comportamento fundamentado
na ideia de interesse nacional. Nesse sentido, uma vez que Freud sugerira que os Estados
pudessem manifestar emoções coletivas, como o ódio ou a vingança, e pudessem utilizar
mecanismos de defesa para justificar seu comportamento, faz sentido inferir que o sistema
psicológico freudiano pode ser útil para analisar as ações coletivas dos Estados
(BETTCHER, 1997).
O estudo da prática de atribuir características e comportamentos humanos às ações
e às condutas de grupos de indivíduos, especificamente Estados, é um lugar-comum na
filosofia política clássica; Bettcher (1997) cita, entretanto, outros estudiosos, cujos
trabalhos também analisaram a ideia de “personificação do Estado” e influenciaram a
contemporânea disciplina de Relações Internacionais. Intelectuais como Edward Carr,
Charles Manning, Reinhold Niebuhr e Evan Luard mais conhecidos pelas contribuições
ao pensamento vinculado à Escola da Sociedade Internacional ou Escola Inglesa de
Relações Internacionais, são os que Bettcher trabalha em sua tese, pois cada um deles
emprega uma analogia individual-coletiva para analisar aspectos comportamentais
específicos dos Estados.
Bettcher (1997) explica que, para Carr, a personificação do Estado é uma ficção
necessária, uma elucubração da mente humana, que se tornou realidade em função da
instituição de um sistema de Direito Internacional. A personificação do Estado é um
mecanismo importante para as interações estatais no contexto internacional. Nesse
sentido, com base em uma estrutura normativa internacional, tornou-se possível atribuir
ao Estado uma personalidade jurídica, em que este reclama direitos, deveres e obrigações
morais como sujeito de direito internacional público na política mundial. Além disso, essa
personificação das instituições não se restringe somente aos Estados, já que, segundo Carr
62
(1958), na esfera econômica, as sociedades anônimas também são entendidas como
grupos de atores que assumem responsabilidades corporativas e sociais em determinada
comunidade (Carr, 1958, p. 148-151).
Manning também argumenta a favor da personificação do Estado como um
mecanismo funcional, um fato social, que auxilia nas interações estatais. De acordo com
Bettcher (1997), Manning considera o Estado como uma ideia da mente dos seres
humanos. A ideia de “comportamento” estatal é um conceito fictício, já que a conduta do
Estado é socialmente planejada. Nesse sentido, Estados são considerados pessoas
coletivas juridicamente reificadas, como sendo um aparato burocrático ou uma estrutura
institucional. Com base em uma metodologia holística, o sujeito estatal de Manning é,
portanto, uma pessoa imaginária (BETTCHER. 1997).
Consoante Bettcher (1997), a análise de Niebuhr acerca da personificação do
Estado tem uma perspectiva mais psicológica. Niebuhr aplica o conceito de egoísmo
individual (egocentrismo) a processos psicológicos advindos do comportamento de
Estados, com base em suas ambições e motivações egoístas. O entendimento de Niebuhr
sobre a psicologia de grupo dialoga com o pensamento político realista, pois esse autor
entende que as relações de grupo, sobretudo o relacionamento entre Estados, nunca serão
tão éticas quanto aquelas entre indivíduos (NIEBUHR, 1941). O egoísmo coletivo é mais
inflexível do que o egocentrismo individual, porque a tarefa de persuasão moral tende a
ser mais difícil quando as relações são intergrupais, principalmente quando essas
interações são realizadas entre grandes grupos, como os Estados (BETTCHER, 1997).
Luard enfatiza a semelhança sociopsicológica entre o comportamento individual
e o de uma coletividade social, referindo-se à sociedade de Estados como um organismo
social. Essa sociedade tende a ser concebida como uma entidade, e não como a soma de
partes, de modo que é compreendida como uma entidade que tem existência e autonomia
própria (LUARD, 1990). Segundo Bettcher (1997), o entendimento de Luard concernente
às relações interestatais é holístico, e a sociedade internacional é considerada um todo,
em que os Estados se relacionam, influenciados por um contexto social, de maneira que
suas ações podem ser analisadas a partir de uma perspectiva sociopsicológica. Luard
acredita, por fim, que os Estados, como os indivíduos, manifestam impulsos coletivos,
como os impulsos agressivos, ao demonstrar um padrão de comportamento violento e
bélico, que se assemelham às atitudes dos indivíduos portadores de distúrbios
psicológicos (BETTCHER, 1997).
63
Luard (1988), por fim, argumenta que o isolamento de um Estado da sociedade
internacional pode implicar um comportamento e um modus operandi antissocial,
processo semelhante ao que ocorre quando um indivíduo se isola da comunidade e
começa a ter comportamentos de repulsa e de negação em relação a outros indivíduos.
Dessa maneira, por não se sentirem incluídos e valorizados, tornando-se cada vez mais
isolados, esses Estados desenvolvem, por conseguinte, tendências antissociais e
agressivas. No que concerne a esse comportamento, Luard faz, novamente, uma
comparação com os indivíduos, referindo-se a um caso de estado mental psicótico. No
caso das relações entre Estados, o Japão no início do século XX, a Alemanha entre as
duas Grandes Guerras Mundiais e a Coréia do Norte, mais recentemente, poderiam
apresentar esse quadro psicótico no âmbito interestatal (BETTCHER, 1997). Conforme a
análise de Bettcher (1997), como os indivíduos, os Estados estão, também, sujeitos a
influências socializantes, com base em normas, leis e princípios morais, que têm o
objetivo de estabelecer certo padrão de conduta socialmente aceito em uma comunidade
de sujeitos estatais. Nessa conjuntura, os agrupamentos humanos, como os Estados,
demostram que estão aptos a se relacionarem em alto nível de cooperação social,
similarmente às interações cooperativas entre indivíduos.
Para compreender a vinculação entre a ideia de personificação do Estado,
elaborada por esses autores contemporâneos das Relações Internacionais, e o pensamento
de Freud em relação ao comportamento estatal, Bettcher (1997) desenvolveu a
classificação do conceito de ego coletivo, embora a ideia já tenha sido elaborada por
Freud anteriormente. Com o intuito de melhor entender esse conceito, Bettcher fez uma
breve comparação entre o pensamento dos teóricos supracitados e o de Freud. De acordo
com Bettcher (1997), Freud definiu o Estado, da mesa forma que Carr o fez, como um
agrupamento de indivíduos, com responsabilidades sociais em suas relações interestatais,
por meio de compromissos legalmente respaldados em tratados e convenções
internacionais. O Estado para Freud, como seres humanos coletivos, corresponde,
também, à metodologia holística de Manning, pois ambos argumentam que, em suas
relações externas, os Estados atuam como uma unidade social e, nesse sentido, é
comparável, em um nível holístico de análise, a um indivíduo em relação a seus atributos
comportamentais. Para analisar o comportamento individual e coletivo, Freud utilizou um
sistema psicológico detalhado, cujo desenvolvimento é semelhante à noção de Manning
de mapa social.
64
Freud argumentou que o Estado, como um agrupamento que interage com seus
homólogos, manifesta seu egoísmo coletivo, quando viola e descumpre, por exemplo, os
tratados internacionais dos quais é parte e acaba por entrar em guerra com outro Estado.
Bettcher (1997) esclarece que o conceito psicanalítico de egoísmo individual e o de
egoísmo coletivo, na forma de um egocentrismo social e um comportamento antissocial,
caracteriza a desconsideração do ego pelos compromissos sociais, em razão de uma busca
autocentrada e individualista de seu próprio interesse e para sua própria vantagem, o que
pode provocar o uso da força ou a violação de normas sociais e internacionais.
Bettcher acredita que a concepção de Freud acerca do egoísmo do Estado é
comparável à de Niebuhr, pois, para Freud e Niebuhr, o egoísmo, estatal ou individual, é
antagônico ao conceito de altruísmo social, em que as condutas e as ações de um sujeito
conformam-se às regras e à ética da sociedade. Além disso, ao contrário de Niebuhr,
Freud argumentava que o Estado, como o indivíduo, tem compromissos morais e
normativos, além de entender que a relação entre Estados, como a dos indivíduos, poderia
evoluir de uma interação “primitiva” à criação de uma sociedade “civilizada”. Nesse
sentido, Bettcher assevera que a análise freudiana do Estado dialoga melhor com a
evolução da Sociedade Internacional de Luard do que com a análise de Niebuhr
(BETTCHER, 1997).
Bettcher esclarece que nenhum desses autores modernos das Relações
Internacionais referenciaram, explicitamente, a psicanálise, malgrado haja certas
semelhanças em relação à análise do Estado desses intelectuais com a teoria freudiana. A
metodologia de Luard tem, todavia, uma equivalência mais próxima ao estudo de Freud
sobre o Estado, especialmente acerca das pulsões coletivas e dos distúrbios psicológicos
coletivos. Esses conteúdos não serão pormenorizados nesta dissertação, visto que o
intuito, aqui, é apresentar, laconicamente, as comparações que Bettcher realizou entre o
trabalho de Freud e o dos teóricos de Relações Internacionais.
No que concerna ao ego coletivo, algumas considerações são importantes para a
melhor compreensão de seu funcionamento. O conceito freudiano de ego parece
corresponder a uma característica interativa e negociadora do aparato 13 do Estado, visto
que, conforme Bettcher (1997), cada um dos teóricos de Relações Internacionais,
apontados por ele, descreve algum tipo de aspecto ativo ou mental do Estado, em que essa
“mente” negocia pelo Estado as interações dentro do sistema internacional. Esse processo
13
Conjunto de instrumentos, equipamentos ou elementos necessários à realização de determinados
objetivos (HOUAISS, 2022).
65
é, basicamente, o que a concepção freudiana de ego explica em relação ao comportamento
do ser humano em sua individualidade, mas, nessa ocasião, o ego é explicado com base
em interações entre coletividades. Nesse sentido, assim como Freud trabalhou o conceito
de ego em relação aos seres humanos individuais, a ideia de ego coletivo pode fazer
sentido para as relações interestatais, já que as funções executivas do aparato estatal, que
orienta e regula as ações externas e a política externa do Estado, garantem o ajuste, a
orientação, a socialização e os interesses de sobrevivência desse Estado dentro de um
sistema internacional hostil. O aparato do Estado poderia ser representado, portanto,
como um ego coletivo (BETTCHER, 1997).
Por fim, com o intuito de examinar melhor a dinâmica das relações internacionais
em uma perspectiva psicanalítica, Bettcher (1997) também utilizou o conceito da Escola
da Sociedade Internacional, com base no entendimento de Hedley Bull. Na obra
“Sociedade Anárquica” (2002), Bull demonstra a diferença entre sistema internacional e
sociedade internacional14. O sistema internacional diz respeito a um conjunto de Estados
que interage entre si, sem compartilhar, necessariamente, normas ou valores
predeterminados, ao passo que a sociedade internacional concerne a um conjunto de
Estados que, além de interagir, compartilha valores, princípios e regras internacionais, de
modo que haja relações mais densas entre si e mais sustentáveis ao longo do tempo.
Em uma sociedade internacional, a coesão social é maior do que em um sistema
internacional, de sorte que uma sociedade de Estados é consciente de certos interesses e
valores compartilhados, razão pela qual as relações são vinculadas por regras comuns de
associação. Esses objetivos e interesses comuns incentivam a cooperação entre os
Estados, de tal maneira que compartilham o desenvolvimento e a operacionalização de
certas instituições, como a diplomacia, o Direito Internacional, os costumes, as
convenções de guerra e as organizações internacionais (BULL, 1995). Nesse sentido,
Bettcher afirma que a noção de sistema e de sociedade internacional de Bull parece
inserir-se em um gradativo processo de coesão social, pois, em um sistema internacional,
a cooperação social é menor do que em uma sociedade internacional, que, ao longo do
tempo, se foi formando à medida que as relações internacionais se foram aprofundando
(BETTCHER, 1997).
14
Para a compreensão das relações internacionais e da dinâmica da política internacional, Bull apresenta,
também, um terceiro conceito com o qual trabalha, que se refere à “sociedade mundial”; entretanto, como
nesta dissertação não há, necessariamente, uma obrigação de pormenorizar o conteúdo desse conceito, este
será somente citado.
66
A conquista das necessidades matérias básicas da vida social do ser humano
tornou-se possível, no momento em que uma ordem social foi estabelecida. Segundo Bull,
os seres humanos são sensíveis à violência, de modo que a ocorrência de qualquer
situação violenta gera interesses comuns entre os indivíduos, com o fito de restringir a
perpetuação do evento hostil; pode-se, portanto, considerar que a ordem em uma
sociedade é mantida por um senso de interesses comuns, por regras que prescrevem o
padrão de comportamento e por instituições que tornam essas regras legítimas e efetivas.
Bull (1995) explica que, como os indivíduos em uma sociedade, os Estados podem ter, a
partir de suas interações, uma série de interesses comuns, que dizem respeito ao medo da
violência, ao cálculo recíproco da liberdade de interação ou ao conjunto de valores
comuns. Com base nesse argumento, Bull cita as cinco principais instituições da
sociedade internacional, que auxiliam a manter certa harmonia entre os Estados. Essas
instituições serão abordadas por Bettcher, fundamentadas com base nos conceitos da
Psicanálise (BETTCHER, 1997).
A primeira instituição que Bull (2002) apresenta é o “equilíbrio de poder”, em que
nenhum Estado está em uma posição preponderante e possa estabelecer uma lei para
outros Estados. A “guerra” é a segunda instituição da sociedade internacional e tem
funcionado para manter a ordem por meio da aplicação do Direito Internacional e da
manutenção do equilíbrio de poder. A terceira instituição é a “hegemonia das grandes
potências”, em que a gestão de um sistema internacional por grandes potências contribui
para a ordem internacional, quando unem forças e promovem políticas comuns. O
“Direito Internacional” (DI) seria a quarta instituição, que representa uma estrutura
jurídica vinculante aos Estados e a outros sujeitos de DI nas relações internacionais. A
quinta instituição é a “diplomacia”, que atua para manter a coesão social por meio dos
processos de negociação, de comunicação e de minimização de atritos entre os Estados.
Bettcher incluiu mais um conceito, complementando o trabalho Bull, (BETTCHER,
1997).
De acordo com Bettcher (1997), embora Bull não insira em sua lista de instituições
internacionais, o princípio da “moralidade internacional” (citado por Geoffrey Stern) é
relevante para o constrangimento dos Estados na sociedade internacional e para a
compreensão das interações entre Estados. Nesse sentido, a moralidade internacional
representa certos tipos de obrigações extralegais nas relações entre os Estados, que podem
ser exemplificadas por meio do conceito de opinião pública mundial, em que há uma
67
expressão espontânea e organizada do público atento a situações específicas,
reivindicando soluções e monitorando resultados (BETTCHER, 1997).
Como observado na dinâmica da sociedade internacional, as instituições
internacionais exercem significativa influência no comportamento estatal. Bettcher
explica que os Estados, como unidades políticas, são abordados de forma holística e estão
sujeitos às influências normativas que ajudam a moldar seu comportamento em relação a
outros sujeitos de DI, em uma estrutura institucional de normas sociais. No que concerne
ao pensamento freudiano, Bettcher esclarece que Freud estendeu sua análise sociopolítica
a outros agrupamentos políticos, como impérios, cidades e nações; ele não apresentou,
todavia, nenhum exame pormenorizado da sociedade internacional ou das instituições
(BETTCHER, 1997).
Muito embora Freud não tenha especificamente refletido sobre a sociedade
internacional, Bettcher acredita que a abordagem psicanalítica pode ser aplicada às
interações estatais, de modo a fornecer um mapa sociopsicológico da organização da
sociedade internacional. Bettcher pontua que a concepção de Freud acerca do superego
cultural parece correlacionar-se com as funções sociais das seis instituições da sociedade
internacional. Pode-se considerar, dessa maneira, que o superego cultural apresenta um
processo de coesão social, pelo qual o egoísmo individual e o sentimento de ambição são
submetidos às leis, aos padrões morais e às normas sociais para serem administrados, o
que possibilita o surgimento de um ambiente em que os interesses mútuos dos membros
da sociedade sejam considerados. Esse processo é similar ao que Bull expõe sobre a
interação social na sociedade internacional, na medida em que, para a realização dos
objetivos elementares de uma sociedade internacional, os Estados devem cooperar por
meio de normas, de valores e de regras do grupo, de modo a cercear comportamentos
antissociais (BETTCHER, 1997).
O equilíbrio de poder, como uma das instituições internacionais supracitadas,
contribui para restringir expressões de egoísmo coletivo na dinâmica da sociedade
internacional, visto que, com base nesse equilíbrio, o objetivo das relações entre os
Estados é manter certa harmonia em suas interações, de maneira que nenhum Estado se
torne mais poderoso e, consequentemente, mais ameaçador ao equilíbrio constituído.
Bettcher (1997) argumenta, nesse sentido, que se o aparato estatal é caracterizado como
um ego coletivo e o Estado mais um agente dentro da sociedade internacional, interagindo
com seus homólogos, pode-se afirmar que uma instituição internacional, como o
equilíbrio de poder, cumpre as funções sociais de superego cultural, pois limita,
68
individualmente, as tendências antissociais e egocêntricas dos Estados, por meio de ações
coercitivas (BETTCHER, 1997).
Bettcher (1997) conclui que as instituições da sociedade internacional parecem
utilizar os mecanismos de coesão social caracterizados pelo ideal do ego e pelos aspectos
punitivos do superego de Freud. Isso significa que cada uma das instituições da sociedade
internacional – guerra, equilíbrio de poder, hegemonia das grandes potências, Direito
Internacional, diplomacia, moralidade internacional – favorece a coesão social, por meio
da coerção física, da cooperação social voluntária ou de uma combinação de ambos.
Bettcher (1997) explica, também, que o aspecto punitivo e o aspecto ideal do ego do
desenvolvimento do superego pressupõem certo altruísmo social entre os membros de
uma sociedade, de sorte que estejam preparados para balizar suas reivindicações de
autonomia absoluta, em favor dos interesses comuns da sociedade internacional. Bettcher
afirma, por conseguinte, que cada uma dessas instituições pode ser posicionada em algum
lugar entre os dois elementos que compõem o superego: o aspecto punitivo e o ideal do
ego (BETTCHER, 1997).
Primeiramente, Bettcher argumenta que as instituições “equilíbrio de poder”,
“hegemonia das grandes potências” e “guerra” dependem do uso ou da ameaça da coerção
física. Em segundo lugar, “Direito internacional” e “diplomacia” contribuem para a
coesão social na sociedade internacional, em função de combinar meios coercivos e
consensuais, que demonstram certa legitimidade do sistema de regras e de normas
internacionais. Em terceiro lugar, a “moralidade internacional” contribui para a
cooperação internacional, ao reivindicar relações mais responsáveis e cooperativas entre
os Estados. A ordem social que se origina da moralidade internacional não advém da
coerção física; resulta, contudo, da aceitação e da interiorização dos valores e do código
de ética socialmente constituídos. Segundo Bettcher (1997), esse processo é o que mais
se assemelha ao desenvolvimento do ideal do ego.
Em uma sociedade internacional, Bettcher (1997) compreende que as relações
entre os Estados estão constantemente susceptíveis a restrições sociais, que limitam seus
comportamentos antissociais. Essas limitações, com o desenvolvimento do superego nos
indivíduos, dependem de mecanismos que podem ser encontrados em um intervalo que
vai da agressão física ao respeito pelos interesses e pelos valores da comunidade, fatores
capazes de estimular consenso social e cooperação. Em relação a esse processo, Bettcher
(1997) assevera que um mapa psicanalítico da sociedade internacional descreveria a
coesão social entre os Estados como dependentes de mecanismos coletivos específicos
69
do superego. Isso significa que os Estados, para formar uma sociedade, dependeriam, por
exemplo, das seis instituições da sociedade internacional, que contribuem para
estabelecer o modus operandi nas interações sociais entre esses sujeitos estatais, de modo
a limitar o egoísmo coletivo dos Estados. Por fim, Bettcher (1997) finaliza suas
considerações, ao argumentar que os Estados, como os indivíduos, quando integram uma
sociedade internacional, acabam por internalizar, em suas respectivas sociedades, regras,
valores e normas, que podem ser representados pelo conceito de superego cultural.
Em sua tese, Bettcher demonstrou que certos princípios fundamentais da
Psicanálise, que também perpassam o domínio da Psiquiatria e da Psicologia, podem ser
utilizados para constituir um modelo analítico que proporciona uma perspectiva distinta
da política internacional. Bettcher explicou que o paradigma id-ego-superego pode
oferecer uma compreensão da análise transhistórica e transcultural da sociedade
internacional e da dinâmica das interações sociais, propiciando um exame das filosofias
políticas de diferentes civilizações. Bettcher também esclareceu que o pensamento
político e social de Freud era consistente com o pensamento predominante da filosofia
política e social de sua época. A filosofia política de Freud contém elementos do
Realismo, do Racionalismo e do Idealismo, que refletem tanto uma preocupação com as
normas cosmopolitas quanto com os aspectos racionais e lógicos da psicologia humana,
para melhor compreender os aspectos sociais do comportamento do ser humano coletivo.
Nesse sentido, seus entendimentos acerca da política e da filosofia política aproximam-
se do seu modelo id-ego-superego.
Em conclusão, a topografia freudiana pretende ser um modelo geral da psicologia
humana. Embora Freud não tenha aplicado diretamente seu paradigma para analisar a
filosofia política, Bettcher (1997) mostrou que o exercício intelectual é válido, na medida
em que os aspectos do mapa psicológico de Freud podem ser reconhecidos em várias
tradições da filosofia política. O estudo do aparato estatal, conforme o modelo da
psicologia do ego, sugeriu que a definição de Estado, como uma estrutura institucional,
não precisaria ser entendida, exclusivamente, por meio da definição de Estado no Direito
Internacional, como um sujeito jurídico. Mediante a Psicanálise, as instituições do Estado
funcionam como um ego coletivo, para que o Estado seja um ator político coletivo. Além
disso, a teoria psicanalítica desafia as teorias de RI em relação à linearidade da ordem
política na sociedade internacional, como observado nas principais concepções da
sociedade anárquica de Hedley Bull. Esse modelo propõe que as instituições de coesão
70
social nas sociedades internacionais podem ser compreendidas pelos dois elementos do
superego: o aspecto ideal do ego e os aspectos punitivos do superego cultural.
71
3. LACAN NAS RI
3.1 INTRODUÇÃO
Jacques Lacan, assim como Freud, não era, necessariamente, um teórico político
das ciências sociais, mas suas ideias foram aplicadas ao estudo da política internacional.
É importante citar, nesse sentido, alguns de seus principais conceitos, que além de serem
pormenorizados nas secções seguintes, serão úteis para contextualizar o pensamento de
Lacan na política. Um dos conceitos-chave na teoria de Lacan é o Real, domínio do
incognoscível e do impossível. O Real é o que escapa à compreensão e ao controle, fonte
da ansiedade e do medo. Outro conceito relevante na teoria de Lacan é o Simbólico,
âmbito da linguagem e da cultura. O Simbólico é o que confere sentido e identidade,
sendo a maneira pela qual se entende o mundo e o lugar que se ocupa nele. Lacan
argumentou que o Real e o Simbólico estão em constante tensão um com o outro, visto
que o Real ameaça romper com a ordem Simbólica.
É importante observar que os conceitos de Lacan podem ser aplicados à área das
relações internacionais, particularmente no contexto da psicanálise e da teoria política. A
obra “Jacques Lacan: Between Psychoanalysis and Politics”, de Samo Tomšič e Andreja
Zevnik, tem como objetivo introduzir a obra de Lacan no campo da política internacional
de forma coerente e acessível. Nesta obra, na parte “Psicanálise e Política”, os autores
enquadram a discussão entre política e psicanálise, fornecendo um pano de fundo geral
do envolvimento de Lacan com a política e o político. Na parte “Lacan e o Político”, cada
capítulo se concentra em diferentes ideias e conceitos-chave do pensamento de Lacan,
incluindo ética, justiça, discurso, objeto a, sintoma, gozo. Por fim, na parte “Encontros
Políticos”, os autores procuram representar diferentes formas de se envolver com o
pensamento lacaniano e de adotá-lo para explicar e comentar fenômenos políticos globais.
Essa obra sobre Lacan foi aplicada à análise da ideologia e da reprodução institucional na
teoria política. Já o artigo O artigo “Why Freud Matters: Psychoanalysis and
International Relations Revisited” argumenta que os estudiosos da política, não apenas
das relações internacionais, evitaram a disciplina da psicanálise e demandam um
compromisso renovado com a psicanálise no estudo da política. Essas obras já
demonstram o quanto Lacan tem sido empregado para entender fenômenos individuais e
coletivos, sobretudo aqueles que dizem respeito à esfera internacional. Nesse sentido, é
patente que o pensamento lacaniano tem influenciado a psicanálise, a teoria política e a
72
estética, além de ser aplicado ao estudo da ideologia, da reprodução institucional e da
política internacional.
Vale citar alguns outros conceitos específicos da teoria lacaniana que foram
aplicados, também, às relações internacionais. A pscianálise lacaniana enfatiza a
importância do desejo, que é reconhecido como insaciável e impossível de satisfazer. O
desejo é concebido como uma força motriz que molda o comportamento humano,
inclusive no âmbito da política internacional. O gozo refere-se ao gozo radical ou
excessivo, que é visto como um aspecto fundamental da experiência humana. A
psicanálise lacaniana sugere que o gozo pode ser uma fonte de poder político e pode, além
disso, moldar o comportamento político. A fantasia é um conceito fundamental para
Lacan e refere-se às maneiras pelas quais os indivíduos formam narrativas sobre si
mesmos e sobre o mundo ao seu redor. No contexto das relações internacionais, a fantasia
pode moldar as percepções de si mesmo e dos outros e pode influenciar a tomada de
decisões de política externa. Por fim, no caso da pulsão, esta refere-se às forças
inconscientes que motivam o comportamento humano. Lacan sugere que a pulsão pode
ser uma fonte de poder político e pode moldar o comportamento político. Dessa forma,
no geral, a teoria lacaniana tem sido aplicada ao estudo das relações internacionais por
meio desses conceitos, que são considerados, nesse sentido, como fundamentais para
entender as maneiras pelas quais indivíduos, grupos e sociedades se comportam no
âmbito político.
Jacques Marie Émile Lacan (1901 – 1981) foi uma figura importante na vida
intelectual parisiense durante grande parte do século XX, sobretudo na história da
psicanálise. Seus ensinamentos e seus escritos exploraram o significado da descoberta do
inconsciente por Freud, tanto na teoria quanto na prática da própria análise, bem como
possibilitaram conexões com uma série de outras disciplinas. A obra de Lacan é,
particularmente, bastante relevante no que concerne aos estudos das dimensões
filosóficas do pensamento de Freud, de modo que as ideias lacanianas se tornaram
centrais para as várias recepções dos elementos psicanalíticos. Um dos elementos
psicanalíticos mais significativos e inovadores na obra de Lacan refere-se à teoria dos três
73
registros: Imaginário, Simbólico e Real, que formam a estrutura teórico-conceitual para
recepcionar as concepções e as ideias da maior parte do arcabouço intelectual de Lacan,
de maneira que a maioria de seus conceitos é definida em conexão com esses três
registros. O Imaginário, o Simbólico e o Real podem ser compreendidos como as três
dimensões fundamentais da subjetividade psíquica que Lacan elabora (JOHNSTON,
2022). Lacan introduziu esse ternário em sua conferência intitulada O Imaginário, o
Simbólico e o Real, durante a abertura das atividades da Sociedade Francesa de
Psicanálise. Lacan apresentou a confrontação entre esses três registros, que são essenciais
na realidade humana, e ressaltou que apresentar separadamente esses três registros
responderia simplesmente a uma questão didática. Não se pode, no entanto, analisar essas
dimensões de forma separada, visto que o operador de cada uma delas é relativo aos
outros (PORGE, 2006).
Com base nesse nesses esclarecimentos analíticos e fundamentando na ideia de
que a explicação independente de cada registro cumpre apenas uma função didática, é
importante apresentar o significado de cada um desses registros. No que concerne ao
Imaginário, este é um conceito utilizado para indicar, grosso modo, um processo da mente
ou do aparelho psíquico suscetível às seduções da imagem. Para Lacan (1956), o
Imaginário é o estado ou ordem mental da criança antes de ser induzida na ordem
simbólica, por meio do processo que ele chamou “estágio do espelho”. A criança observa-
se no espelho e confunde a imagem que vê refletida ali como sendo seu verdadeiro eu. O
eu nesse sentido é uma imagem: um produto do Imaginário. O Imaginário não é um estado
de espírito “infantil”; é, no entanto, um estado de espírito que ignora os limites do real,
tornando-se altamente criativo. Por outro lado, o Imaginário também pode ser
perturbador, na medida em que a experiência da psicose é semelhante a estar preso no
Imaginário (BUCHANAN, 2020).
Ao observar que a noção de imaginário compreende-se, incialmente, em
referência a uma das primeiras elaborações teóricas de Lacan, a respeito da fase do
espelho, em que Lacan evidencia a ideia de que o ego da criança, sobretudo em virtude
da prematuração biológica, se constitui com base na imagem do seu semelhante (ego
especular), pode-se ressaltar as seguintes características do imaginário: no que diz
respeito ao elemento intrassubjetivo, encontra-se, no Imaginário, a relação
fundamentalmente narcísica do sujeito com o seu ego; referente ao elemento
intersubjetivo, revela-se uma relação classificada como dual, baseada na imagem de um
semelhante e captada por ela, como a atração erótica e a tensão agressiva (para Lacan, só
74
existe semelhante “outro que seja eu”, porque o ego é originariamente um outro);
concernente ao elemento meio ambiente (Umwelt), há uma relação similar à etiologia
animal, que descreve e que atesta a importância da Gestalt no desencadeamento dos
comportamentos; finalmente, quanto aos elemento de significações, existe um tipo de
apreensão em que certos fatores, como a semelhança e o homeomorfismo, desempenham
uma função decisiva, o que atesta uma espécie de coalescência do significante com o
significado (LAPLANCHE; PONTALIS, 1991).
Embora haja o uso especial de Lacan em relação ao termo Imaginário, como
observado no parágrafo anterior, este não deixar de estar relacionado a seu sentido
habitual. Lacan (1956) pretende, também, designar o Imaginário com aquilo que é
ficcional, simulado e virtual. Os fenômenos do Imaginário são, porém, ilusões
necessárias, em uma linguagem kantiana, ou abstrações reais, em uma linguagem
marxista. Porge (2006) explica que esse reconhecimento sinaliza dois pontos. Em
primeiro lugar, como um dos três registros básicos de Lacan, o Imaginário é uma
dimensão intrínseca e inevitável da existência dos sujeitos psíquicos falantes, de modo
que, em razão de uma análise não poder livrar o analisando de seu inconsciente, não é
nem possível nem desejável acabar com as ilusões desse registro. Em segundo lugar, as
abstrações ficcionais do Imaginário, longe de serem meramente “irreais”, como
epifenômenos ineficazes e inconsequentes, são integrais e têm efeitos concretos sobre a
realidade humana (PORGE, 2006).
À medida que integra seus primeiros trabalhos das décadas de 1930 e 1940 com
suas teorias vinculadas ao estruturalismo da década de 1950, Porge (2006) esclarece que
Lacan passa a enfatizar a dependência do Imaginário em relação ao Simbólico. Essa
dependência significa que mais fenômenos sensório-perceptivos – imagens e experiências
do próprio corpo, emoções afetivas experimentadas conscientemente, percepções dos
pensamentos e dos sentimentos dos outros – são moldados, dirigidos e determinados por
estruturas e dinâmicas sociolinguísticas. Com a crescente importância do Real na década
de 1960 e dos nós borromeanos15 na década de 1970, Lacan concebe o Imaginário como
15
O nó borromeano refere-se à constituição de três anéis entrelaçados, de maneira que se algum deles se
separa, os outros dois são soltos. Lacan utilizou a simbologia desse nó em sua psicanálise, com o objetivo
de formar a estrutura psíquica do ser falante, que se divide entre os três registros: o Imaginário, o Simbólico
e o Real. Lacan explicou que esse processo é uma topologia e sugeriu, em sua obra “Nomes-do-Pai”, que
os três registros estão presentes em todo sujeito, de modo a afirmar que o nó borromeano é essencial para
que a realidade desse sujeito possa ser coerente e possa manter um discurso e um vínculo social com o
outro. Lacan explica que as diferentes maneiras de atar os nós determinam a estrutura psíquica. Além disso,
pode-se vincular o nó ao objeto a, na medida em que este é a outra parte do desejo que gera o sentimento
de falta e de ausência na vida do indivíduo, que, além de ser estruturado pelos três registros, é regido por
75
vinculado aos outros dois registros. Lacan explica que o Imaginário e o Simbólico,
quando tomados como mutuamente integrados, constituem o campo da realidade, esta
que é contrastada com o Real. Segundo Porge (2006), pode-se, nesse sentido, sustentar
que o Imaginário está susceptível a erros de categoria, na medida em que é o registro em
que os outros dois registros são confundidos uns com os outros. Isso significa que o que
é Real é erroneamente reconhecido como Simbólico e, na mesma proporção, o que é
Simbólico é erroneamente reconhecido como Real. Lacan insiste na diferença e na
oposição entre o Imaginário e o Simbólico, de modo a demonstrar que a intersubjetividade
não se reduz ao conjunto de relações sob o registro do Imaginário e que, especialmente
no tratamento analítico, é importante não confundir os dois registros (PORGE, 2006).
No que concerne ao registro Simbólico, este é, também, um dos três registros que
estruturam a existência humana. Buchanan (2020) expõe que Lacan adaptou esse conceito
da obra do antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, que utilizou, por sua vez, seu modelo
com base no pensamento do linguista suíço Ferdinand de Saussure. Fundamentado na
ideia de Saussure de que o significante é arbitrário em sua relação com o significado e de
que não há, de fato, alguma ligação necessária entre uma representação e seu significado,
Lévi-Strauss estendeu esse princípio aos fenômenos culturais, de maneira a argumentar
que o que se deveria compreender era, na realidade, o sistema simbólico, que confere seus
significados específicos a todos os fenômenos. Com base nesse argumento, Buchanan
(2020) explica que Lacan apresenta duas importantes implicações teóricas: a primeira
refere-se ao inconsciente, que deve ser estruturado como uma linguagem, para que possa
produzir tal sistema e para que possa existir dentro dele; a segunda relaciona-se ao sujeito
que nasce no sistema simbólico, de modo que este tem de aprender a usá-lo, já que esse
sujeito se insere em uma ordem preestabelecida de natureza simbólica, processo cuja
experiência é alienante. Para Lacan, o amadurecimento do ego ocorre quando a criança é
induzida nessa ordem simbólica. A psicose, por exemplo, é, segundo Lacan, um estado
psíquico de ser em que o sujeito se encontra caso o processo de indução ao simbólico
falhe, de sorte que o sujeito permanece preso no mundo ilusório do imaginário.
(BUCHANAN, 2020).
impulsos. O nó borromeano representa, nesse sentido, os elos que forma a estrutura psíquica do indivíduo.
O Simbólico refere-se ao mundo que está estruturado consoante as leis que organizam as interações
humanas e está profundamente vinculado à linguagem. O Imaginário tem relação com a imagem espelhada
do corpo, que permite ao sujeito se identificar. No caso do Real, este concerne à existência e a algo que não
pode ser representado por imagens ou por linguagem, algo que é incognoscível, divergindo da realidade
pois representa a forma pela qual o indivíduo compreende o mundo (CAPANEMA; VORCARO, 2017).
76
Laplanche e Pontalis (1991) expõem que a palavra “simbólica” pode ser
encontrada na sua forma substantiva em “A interpretação dos Sonhos” de Freud e denota
um conjunto de símbolos de significação constante que pode ser encontrado em diversas
produções do inconsciente. Laplanche e Pontalis (1991) explicam que entre a influência
freudiana e o simbólico de Lacan existe patente diferença: Freud acentua a relação que
une o símbolo àquilo que ele representa, enquanto Lacan evidencia a estrutura do sistema
simbólico como essencial, razão pela qual o vínculo com o simbolizado (por exemplo, o
fator de semelhança) é secundário e impregnado de imaginário. Pode-se, entretanto,
encontrar, na simbólica freudiana, uma exigência que permite unir as duas concepções:
Freud deduz da particularidade das imagens e dos sintomas uma espécie de “língua
fundamental” universal, ainda que se concentre mais no que ela diz do que na sua
articulação (LAPLANCHE; PONTALIS, 1991).
Laplanche e Pontalis (1991) argumentam que, pretender aprisionar o sentido do
termo “simbólico”, em limites estreitos, definindo-o, seria ir de encontro ao próprio
pensamento de Lacan, que se recusa atribuir a um significante uma vinculação fixa com
um significado. Nesse sentido, pode-se analisar que o termo é utilizado por Lacan em
duas direções diferentes, porém complementares:
77
moldes da Geworfenheit heideggeriana16); uma espécie de ordem pré-existente
preparando lugares para eles com antecedência e influenciando as vicissitudes de suas
vidas subsequentes (JOHNSTON, 2022).
Johnston (2022) apresenta, ainda, que, de acordo com Lacan, uma das condições
mais significativas para a subjetividade individual é a ordem simbólica coletiva, ou “o
grande Outro”. Os sujeitos individuais constituem-se devido à mediação dos arranjos
sociolinguísticos e das constelações do registro do Simbólico. O inconsciente analítico,
estruturado como uma linguagem, é representado como redes cinéticas de significantes
interligados, ou “cadeias significantes”. Nesse sentido, o inconsciente, sendo de uma
antinatureza Simbólica em si, deve ser interpretado por meio do Simbólico da fala, que é
a própria substância do ser-em-si do sujeito falante do inconsciente (JOHNSTON, 2022).
Johnston (2022) acrescenta ainda que quando Lacan menciona “estrutura”, palavra à qual
recorre com frequência, considera, em regra, o registro do Simbólico. O inconsciente,
vinculado ao que é simbólico, é uma rede complexa e labiríntica de representações
ideativas, que são, sofisticadamente, interconectadas de várias maneiras. Isso significa
que, para Lacan (2006), o inconsciente – ao contrário das representações triviais e comuns
da análise freudiana, baseada em uma psicologia cujos conteúdos desse inconsciente são
naturalmente indisciplinadas – não é o id, ou seja, um conjunto de instintos animalescos
irracionais, mas uma série de conteúdos organizados e estruturados (JOHNSTON, 2022).
De acordo com Lacan (1956), o Real é aquilo que resiste absolutamente à
representação. Isso significa que é algo impossível de imaginar por si mesmo, pois se
puder imaginá-lo, poder-se-ia representá-lo. É, desse modo, impossível integrar o Real na
ordem simbólica, fato paradoxal em sua origem, na medida em que o Real é, com efeito,
oposto à realidade. O encontro com o Real é, portanto, sempre traumático. Como aquilo
que é estranho à realidade Imaginário-Simbólica, que contém apreensão consciente e
significado comunicável, o Real é naturalmente evasivo, de modo a resistir, por natureza,
à captura de significados dos registros Imaginário-Simbólicos. É, nesse sentido, uma
impossibilidade diante da realidade (JOHNSTON, 2022).
Chemama (1995) expõe que,
16
Geworfenheit, ou arremesso, é um conceito introduzido pelo filósofo alemão Martin Heidegger para
descrever as existências individuais dos seres humanos como sendo "jogadas" no mundo (WHEELER,
2020)
78
realidade ordenada pelo Simbólico, que a filosofia chama
"representação do mundo exterior". Mas ele volta na realidade para um
lugar no qual o sujeito não o encontra, a não ser sob a forma de um
encontro que desperta o sujeito de seu estado ordinário. Definido como
o impossível, o Real é aquilo que não pode ser simbolizado totalmente
na palavra ou na escrita e, por consequência, não cessa de não se
escrever (CHEMAMA, 1995, p. 182).
79
Por fim, Felluga (2015) nota que o Real é o estado de natureza do indivíduo que
foi, ad aeternum, fragmentado, em razão de sua entrada na linguagem. Segundo Felluga,
somente as crianças recém-nascidas estão perto deste estado de natureza, momento em
que não há nada além da própria necessidade. Um bebê precisa e busca satisfazer essas
necessidades sem conhecimento de qualquer separação entre ele e o mundo externo, ou,
ainda, o mundo dos outros. Dessa maneira, Felluga (2015) explica que Lacan representou
esse estado de natureza como um tempo de plenitude ou completude, que se perde
posteriormente com a entrada do sujeito na linguagem. Felluga (2015) acrescenta que a
primordial necessidade animal de cópula corresponde, de forma semelhante, a esse estado
da natureza, em que há uma demanda constante de busca de satisfação; porém,
concernente aos seres humanos, o Real é impossível, pois este não se pode expressar na
linguagem, devido ao fato de que a própria entrada na linguagem marca a separação
irrevogável desse sujeito do real. A despeito disso, o Real continua a exercer sua
influência ao longo da vida adulta, pois é o obstáculo que as fantasias e as estruturas
linguísticas não conseguem ultrapassar. Felluga exemplifica que o Real continua a
irromper sempre que o indivíduo é levado a reconhecer a materialidade de sua existência,
um reconhecimento que costuma ser percebido como traumático, visto que ameaça a sua
"realidade", embora estimule o sentido de jouissance (FELLGUA, 2015).
17
Felluga esclarece que Lacan faz uma distinção entre o "ego ideal" e o "ideal do ego", em que o primeiro
ele associa à ordem imaginária, e o segundo ele associa à ordem simbólica. O ego ideal de Lacan é o ideal
de perfeição que o ego se esforça para imitar; afetou o sujeito pela primeira vez quando ele se viu no espelho
durante o estágio do espelho, que ocorre por volta dos 6 aos 18 meses de idade. Ao observar aquela imagem
de si, o sujeito estabeleceu uma discórdia entre a imagem idealizadora no espelho (limitada, inteira,
80
qual o indivíduo vai esforçar-se perpetuamente ao longo de sua vida. Para Lacan (2006),
o estágio do espelho estabelece o ego como dependente de objetos externos ou de um
outro. À medida que o indivíduo amadurece e entra nas relações sociais por meio da
linguagem, esse "outro" vai sendo elaborado dentro de quadros sociais e linguísticos que
conferirão à personalidade de cada sujeito, juntamente às suas neuroses e a outros
distúrbios psíquicos, suas características particulares (BUCHANAN, 2020).
Buchanan (2020) esclarece que
Johnston (2022) argumenta que Lacan oferece a narrativa desse estágio como uma
explicação específica para a gênese e as funções da agência psíquica freudiana do ego.
Um dos resultados psicanalíticos e filosóficos do estágio do espelho, crucial para Lacan,
é que o ego é um objeto, e não um sujeito. O ego não é um locus de ação autônoma, a
sede de um “eu” livre e verdadeiro, que determina seu destino. Além disso, Lacan (2006)
considera o ego comprometido e neurótico em sua essência. O estágio do espelho
descreve a formação do ego por meio do processo de identificação; o ego é, portanto, o
resultado da identificação com a própria imagem especular. O conceito de identificação
ocupa uma posição igualmente importante na obra lacaniana. Lacan enfatiza a função da
imagem, de modo que define a identificação como a transformação que ocorre no sujeito,
quando este assume uma imagem. Assumir uma imagem é reconhecer-se na imagem e
apropriar-se dela como se estivesse apropriando de si mesmo (JOHNSTON, 2022).
completa) e a realidade caótica do próprio corpo entre 6 e 18 meses, o que contribuiu para configurar uma
lógica da formação da fantasia do imaginário, que iria dominar a vida psíquica do sujeito para sempre. Para
Lacan, o ideal do ego, ao contrário, é quando o sujeito se observa desse ponto ideal; observar-se desse ponto
de perfeição é constatar a própria vida como vã e inútil. O efeito, então, é inverter a vida "normal" da
pessoa, ao vê-la repentinamente repulsiva. O ideal do ego é o significante operando como ideal, o guia que
governa a posição do sujeito na ordem simbólica e antecipa, portanto, a identificação secundária (edipiana)
ou é um produto dessa identificação. O ego ideal origina-se, por sua vez, na imagem especular do estágio
do espelho; é a ilusão de unidade sobre a qual o ego é construído. O ego ideal sempre acompanha o ego,
como uma tentativa presente de recuperar a onipotência da relação dual pré-edipiana. Embora formado na
identificação primária, o ego ideal continua a desempenhar a função de fonte de todas as identificações
secundárias (FELLUGA, 2015).
81
Lacan (2006) elucida a diferença entre o conceito de identificação imaginária e o
de identificação simbólica. A identificação imaginária é o mecanismo pelo qual o ego é
criado no estágio do espelho, pertencendo à ordem imaginária. Quando o bebê humano
vê seu reflexo no espelho, ele identifica-se com aquela imagem. A constituição do ego
pela identificação com algo que está fora e, até mesmo, contra o sujeito é o que estrutura
esse sujeito como rival de si mesmo, envolvendo os sentimentos de agressividade e de
alienação. No caso da identificação simbólica, esta é a identificação com o pai na fase
final do complexo de Édipo, que dá origem à formação do ideal do ego. É por meio dessa
identificação secundária que o sujeito transcende a agressividade inerente à identificação
primária, e pode-se inferir que esse momento representa uma certa normalização libidinal.
Johnston acrescenta que, embora essa identificação seja chamada "simbólica", ainda é
uma identificação secundária, modelada a partir da identificação primária e, como toda
identificação, participa do Imaginário. Essa identificação só é nomeada "simbólica",
porque representa a conclusão da passagem do sujeito à ordem simbólica (JOHNSTON,
2022).
Com base no estágio do espelho, Johnston (2022) analisa que Lacan formou uma
distinção entre o ego e o sujeito. Apesar das aparências, Lacan explicou que o ego é, em
última instância, um conjunto inerte e fixo de coordenadas objetivadas, uma entidade
libidinal e reificada. Em contraste com o ego e com o sentido ilusório de individualidade
ficcional que ele sustenta, Johnston (2022) explica que o sujeito psicanalítico de Lacan é
uma negatividade cinética inconsciente, que desafia a captura de formações identitárias
no nível do ego. O sujeito enunciador lacaniano do inconsciente fala por meio do ego,
embora permaneça distinto dele. Para compreender o modo pelo qual o estágio do espelho
de Lacan funciona em relação à formação do ego, Johnston acrescenta que
82
imagético do ego está impregnado desde o início com o “discurso do
Outro” de destino – neste caso, significações fatídicas (“traços
unários”), provenientes das narrativas dos cuidadores, articuladas
simultaneamente a seus incentivos para que a criança se reconheça no
espelho (“Que menino lindo!”, “Que menina linda!”, “Você vai crescer
grande e forte, igual seu pai”, etc.) (JOHNSTON, 2022, p.7).
83
se aproxima das acepções de igualdade, semelhança, rivalidade, originando-se do estágio
do espelho e do registro Imaginário – e desse “grande Outro” – lugar em que há uma
aproximação entre inconsciente e linguagem, pertencente ao registro Simbólico –, Lacan
aborda, ainda, o “objeto pequeno a” ou “objeto a”, que integra basicamente o registro
Real e que é motivo de desejo, e o “êxtimo” (já analisado), que constitui o domínio dos
laços sociais.
No que se refere ao outro minúsculo, este designa o ego Imaginário e seus alter-
egos que o acompanham. Ao analisar o próprio ego como um “outro”, Lacan (1978)
enfatiza seu atributo estranho e alienante. Isso significa que, ao se relacionar com os
outros por meio de alter-egos, o indivíduo interage com base no que “imagina” sobre
esses outros – imaginando-os, não raro, como “como eu”, de maneira a compartilhar um
conjunto comum de pensamentos, de sentimentos e de inclinações, tornando-os
compreensíveis para esse indivíduo falante. Essas imaginações, que são transferíveis
pelas interações humanas, são ficções que dominam e adestram a estranheza misteriosa
dos membros de uma mesma espécie, o que tona a vida social possível e tolerável.
No que concerne ao Outro maiúsculo, este se refere a dois tipos adicionais de
alteridade correspondentes aos registros do Simbólico e do Real. O primeiro tipo de Outro
é o “grande Outro” de Lacan como ordem simbólica. Isso significa que esse “grande
Outro” seria o “espírito objetivo” abrangente das estruturas sociolinguísticas e
transindividuais, que configuram os campos de interações intersubjetivas. O grande Outro
simbólico também pode se referir às ideias (por vezes ficcionais) de um poder autoritário
ou de um conhecimento. Há, todavia, uma dimensão real para a alteridade, em que o
segundo tipo do grande Outro se encontra. Essa encarnação particular do Real, sobre a
qual Lacan detalhou, ao abordar tanto o sentimento de amor quanto os sintomas da
psicose, é o enigma provocador do Outro como um elemento incognoscível, um abismo
inexplicável e incompreensível de alteridade retraída, porém próxima (JOHNSTON,
2022).
Da mesma forma, Quinet (2012) expõe que o grande Outro é o registro simbólico
como marca do sujeito do discurso. Lacan afirma basicamente que o grande Outro seria
o inconsciente, como determinações simbólicas do sujeito, constituindo-o e colocando-o
em certo lugar. Esse sujeito, que não tem consciência de qual lugar fala, é marcado por
essas determinações oriundas do exterior, ou seja, por “outros” que estarão nesse Outro
que reside no sujeito. O Outro é, dessa forma, um discurso que coloca o sujeito em um
lugar de subjetividade, com base nos significantes que o forma, lugar em que as cadeias
84
significantes do sujeito se articulam, ao determinar e ao estabelecer sobre o que e o modo
pelo qual o sujeito se expressa, de maneira que, consoante Quinet, nada do sujeito escapa
ao Outro (QUINET, 2012). Conforme Lacan (2006), o Outro é o “tesouro dos
significantes”, é o lugar em que o sujeito encontra a verdade e um conhecimento que
abrange um não saber, fato que demonstra a impossibilidade da apreensão completa do
saber, que será definida pelo engano. Nesse registro Simbólico, encontra-se o estranho
que forma o sujeito, esse estranho que define a cultura estabelecida no indivíduo com
base nas suas características e determinações preexistentes, cujos conteúdos se
ressignificam a partir da relação com os significantes (QUINET, 2012).
Em suma, o grande Outro é uma instância que exerce sobre o indivíduo uma
função de determinação. No caso do pequeno outro, este é aquele cuja palavra e expressão
não geram grande impacto na vida do indivíduo, pois os sujeitos que estão nessa posição
de “pequeno outro” operam como extensões ou projeções daquele outro próprio sujeito
que fala, como um reflexo no espelho. Com o “grande Outro”, a relação é diferente, já
que este designa o conjunto das instâncias que determinam a existência do sujeito,
malgrado os desejos e as vontades desse sujeito. Nesse sentido, se, por um lado, a palavra
ou a manifestação do grande Outro determina e subordina, por outro, a manifestação
expressiva do pequeno outro passa, necessariamente, pelo crivo do ego.
No que se refere ao complexo de Édipo, este é considerado o mito organizador
central da Psicanálise. Em “A Interpretação dos Sonhos”, Freud relata que, em sua
experiência clínica, a relação da criança com os pais representa o maior determinante na
vida psíquica de seus pacientes mais neuróticos. Freud chegou a essa compreensão
quando realizou uma autoanálise, com base na sua relação com seus pais na infância.
Como ele relatava em uma carta a seu amigo Fliess, ao analisar sua afeição por sua mãe
e o ciúme em relação a seu pai, Freud associou sua análise à peça de Sófocles “Oedipus
Rex”. Para melhor compreender o complexo de Édipo, criado por Freud e reinterpretado
por Lacan, é, portanto, relevante saber, de forma resumida, a história dessa peça trágica.
A peça Édipo Rei é considerada uma das obras dramatúrgicas mais importantes
de Sófocles. Esta conta a tragédia de um homem, Édipo, que era filho do rei de Tebas,
Laio, e de sua esposa, Jocasta. Nesse conto, Édipo ouviu do oráculo do deus Apolo a
profecia que, quando chegasse à idade adulta, ele mataria o pai e se casaria com a mãe. O
pai, horrorizado, ordenou que Édipo fosse abandonado; Édipo sobreviveu, entretanto, e
foi encontrado por um pastor, que o levou para Corinto, onde foi adotada pelo rei Políbio.
Quando adolescente, Édipo ouviu a mesma profecia do oráculo e fugiu de Corinto para
85
fugir desse destino; no caminho, porém, desentendeu-se com um viajante e matou-o, sem
saber que era seu verdadeiro pai. No momento em que chega em Tebas, encontrou a
cidade em uma situação de caos e desolação. Havia uma Esfinge18, às portas da cidade,
que propunha aos homens enigmas e devorava aqueles que não conseguissem decifrá-los.
A rainha, Jocasta, já viúva, prometeu casar-se com quem libertasse a cidade da Esfinge.
Édipo decifrou o enigma; casou-se, consequentemente, com a mãe, fato que consumou a
profecia do oráculo. Dessa união, nasceram quatro filhos. Com o tempo, Édipo e Jocasta
descobrem a tragédia dos quais faziam parte. A rainha suicidou-se e Édipo furou os
próprios olhos, ficando cego e abandonando Tebas para sempre, em direção a seu exílio,
em Colono, morrendo, posteriormente, de forma misteriosa (SOPHOCLES, 1984).
Essa tragédia inspirou Freud a elaborar a ideia de complexo, intitulando esse conto
como o “complexo de Édipo”, cuja história se refere, na perspectiva da psicanálise
freudiana, ao desejo da criança de envolver-se com o genitor do sexo oposto, aliado a um
sentimento de rivalidade em relação ao genitor do mesmo sexo. A psicanálise sustenta
que as crianças desenvolvem um apego amoroso ao genitor do sexo oposto e uma
correspondente rivalidade com o genitor do mesmo sexo: dessa maneira, o menino ama a
mãe e quer usurpar o pai. Freud descreveria esse desejo conflituoso como o “complexo
de Édipo”, inscrevendo, portanto, esse mito no centro de seu pensamento. Na Psicanálise,
o termo técnico do “complexo” diz respeito a um conflito, diferentemente de outras
acepções, como a de perturbação psicológica ou dificuldade de trato. O entendimento de
Freud acerca do conceito de "complexo" relaciona-se a um conjunto de representações
mentais, associadas entre si, que são tomadas por afetos. Com base nessa compreensão
acerca do complexo, Freud almejava, no que se refere ao complexo de Édipo, demonstrar
a relação que a criança desenvolve como os pais, interação essa que se vincula às
concepções de parricídio, de incesto, de afeto e de aversão. A causalidade que se origina
a partir do complexo de Édipo é o elemento mais relevante para a análise psicanalítica,
pois, com base no desenvolvimento e nos resultados desse complexo, certa estrutura e
organização da personalidade desenvolver-se-á, de modo a causar sintomas estruturais de
diversas categorias, como a psicose e a neurose.
18
A esfinge grega era um monstro que trazia morte e destruição por onde passava e era filho de outro
monstro, Quimera. Na Grécia antiga, monstro fabuloso com corpo, garras e cauda de leão, cabeça de
mulher, asas de águia e unhas de harpia, que propunha enigmas aos viandantes e devorava quem não
conseguisse decifrá-los (HOUAISS, 2022).
86
Para Lacan (1956), o complexo de Édipo freudiano encena o drama das lutas da
criança para se situar em relação a todas as três dimensões teóricas de registro que Lacan
propôs. As personas edipianas, materna e paterna, são posições subjetivo-psíquicas. Isso
significa que essas posições são funções socioculturais – não naturais e não biológicas –
que podem ser desempenhadas por qualquer pessoa de qualquer sexo e gênero. Além
disso, de acordo com Lacan, pode-se argumentar que o complexo de Édipo seria um mito
freudiano, cuja descrição acerca dos conflituosos vínculos eróticos e ambivalentes que a
criança estabelece com seus pais seria, basicamente, uma narrativa simbólica. Para Lacan,
a criação do complexo de Édipo por Freud, com base nos depoimentos de seus pacientes
e por meio de figuras imagéticas, tem a função de explicar a formação do desejo (e de sua
falta) no indivíduo, ao expor a impossibilidade de satisfação completa, que é simbolizada
por meio da figura da castração (conceito posteriormente esclarecido). Com base nisso,
Lacan concentrou-se em identificar o que seria a estrutura do complexo de Édipo, que se
encontraria na descrição mítica freudiana, de modo que pudesse localizar os elementos
que integram a condição humana e que estão, de forma atemporal, presentes na vida dos
indivíduos.
Para isso, Lacan (2006) elaborou a concepção dos três tempos do Édipo. No
primeiro tempo, Lacan expôs a ideia “eu sou falo”, em que a criança nasce e acredita ser
o objeto mágico (falo19) que proporciona satisfação plena para o Outro (“mãe”), já que
toda a atenção está voltada para si. No segundo tempo, Lacan demonstrou a ideia “tenho
ou não tenho o falo?”, em que, ao perceber que o Outro (“mãe”) tem outros interesses
para além dela, a criança percebe que não é o falo. Por sua vez, a criança passa a
questionar se não teria o falo ou se seria capaz de ter o objeto que tornaria o Outro
plenamente satisfeito. Para saber se tem ou não o falo, a criança passa a ter de olhar para
onde se dirige o desejo desse Outro, que, nesse caso, se direciona ao Nome-do-Pai (pai
simbólico). Por fim, no terceiro tempo, Lacan explica a ideia “não tenho falo”, em que a
criança chega à conclusão que não tem o objeto mágico que satisfaria plenamente o Outro;
passa a acreditar, entretanto, que esse objeto pode ser encontrado. Bastaria, nesse sentido,
19
“Falo” aqui como “significante de uma falta”, aquilo que “está em lugar da falta”. O autor do texto
observa que essa falta, a partir da subjetividade do sujeito, pode aparecer como presença – a presença do
falo enquanto significante da falta (é nesse sentido que o falo ocupa o lugar da falta). Se a imagem (do falo
imaginário) está presente, há a ilusão de completude – expansão do narcisismo, satisfação plena – mas, por
outro lado, se algo está presente, há também a possibilidade de perdê-lo. Note que o falo imaginário não é
somente a imagem do pênis, o falo imaginário pode ser qualquer coisa que complemente a falta e dê a
sensação de plenitude (BOMFIN, 2014).
87
seguir o rastro do desejo do Outro, trajeto cuja orientação é o Nome-do-Pai ou pai
simbólico.
Pode-se analisar que, para Lacan (1956), o conceito de Édipo é um tipo de
estrutura subjetiva, na medida em que não existe lugares estabelecidos na relação mãe-
filho-pai, devido ao fato de que esses lugares são estabelecidos à medida que o falo se
desloca. Pode-se inferir, nesse sentido, que um sujeito se encontra na estrutura em razão
do outro e da posição em que se encontra em certo período. Além de ser estrutura, o
conceito de Édipo é, também, estruturante, visto que favorece a formação do inconsciente
de todos os sujeitos que compartilham dessa relação, e não apenas o da criança, como
sugeria Freud, à época do desenvolvimento da concepção do complexo de Édipo.
Adicionalmente, o Édipo é estruturante da personalidade, porquanto, passados os três
tempos lacanianos, a constituição da sexualidade da criança já estará estabelecida, bem
como a formação de sua personalidade. Houve, portanto, um processo de formação do
sujeito, em que o indivíduo se pode constituir, finalmente, como sujeito, porque não será
mais o objeto de desejo de outro.
Na mesma linha de Lévi-Strauss, Lacan argumentou que a proibição do incesto
constitui uma lei universal que diferencia a “civilização” humana de um estado de
natureza. Elliot (2015) explica que Lacan utiliza a expressão Nome-do-Pai, que se
caracteriza pela aceitação da lei social e que define a passagem de uma condição pré-
humana potencialmente psicótica, como a do estágio do espelho, a uma condição humana
real, de fato. Lacan ainda afirmou que o pai interfere na díade criança-mãe com base em
uma capacidade simbólica, como representante da dinâmica cultural mais ampla e do tabu
social acerca do incesto. Isso significa que a criança é, segundo Elliot (2015), separada
da integridade imaginária do corpo materno e introduzida em um mundo estruturado de
significado simbólico, que molda as interações entre o eu e os outros. A partir desse
processo, na perspectiva de Lacan, o psicótico não internalizou o Nome-do-Pai, e Elliot
afirma que uma das principais contribuições de Lacan se refere à originalidade dessa
interpretação que este realizou em relação à de Freud, ao esclarecer que o Nome-do-Pai
não coincide com o pai real (ELLIOT, 2015).
Lacan (1993) compreende que mãe e filho experimentam uma relação simbiótica,
que se rompe com o nascimento, de modo que, após esse rompimento, ambos têm uma
espécie de nostalgia dessa condição de dependência original, almejando recriá-la. O
desmame é, dessa forma, a fase traumática, em que a contiguidade entre os corpos,
mantida pela amamentação, é interrompida. Essa nostalgia é um desejo de identificação,
88
em que a criança se identifica com a mãe (LACAN, 1966). O sujeito capaz de interromper
essas situação e impedir o impulso agressivo é o pai, de modo que, de acordo com a
interpretação de Lacan, essa proibição paterna é considerada em termos simbólicos.
Lacan reflete sobre o complexo de Édipo como uma estrutura do signo, permitindo-o
aplicar o complexo de Édipo em homens e em mulheres. O pai representa, dessa maneira,
a norma social de convivência e, consequentemente, representa a linguagem, que tem um
poder legislativo e uma função proibitiva. O Nome-do-Pai é, portanto, a repressão
originária, apto a desviar o impulso imediato e original de mãe e de filho. Quando o faz,
essa repressão abre o espaço do signo, isto é, do aparecimento da linguagem. A linguagem
precede os indivíduos, de sorte que os indivíduos são “falados” e determinados pela
linguagem, em um universo de palavras sobre as quais esse sujeito não tem poder.
Na passagem do estádio do espelho para o complexo de Édipo, o sujeito passa de
um estado de absoluta liberdade imaginária a um estado de absoluto constrangimento. O
desejo é simbolizado, circunscrito em um sistema de diferenças e de combinações
baseadas em normas sociais. Para Lacan, o eu está sempre alienado de sua própria
história, bem como é formado pela alteridade e está inserido em uma rede simbólica. O
Nome-do-Pai rompe a união imaginária entre a criança e a mãe – o gozo – e impõe a lei
social. A afirmação lacaniana de que o inconsciente é estruturado como uma linguagem
significa que os processos sociolinguísticos e a psique estão interligados. Para ser um
indivíduo social, membro da sociedade, Elliot esclarece que se exige um nível mínimo de
competência linguística, para adotar a posição de falante e de ouvinte. Isso exige a
aceitação de uma posição do sujeito em termos de condições sociais, de cultura, de
diferença sexual e ideologia. Nesse sentido, o domínio simbólico – a linguagem – é o
mecanismo fundamental pelo qual os indivíduos são “sujeitos” em relação ao mundo
exterior.
Outro conceito importante de Lacan vinculado à alteridade é o “objeto pequeno
a” (ou “objeto a”), que sofre várias alterações no decorrer do seminários ministrados por
Lacan. Esse conceito é uma sofisticação em relação à ideia de objeto da teoria
psicanalítica, criado devido à necessidade de identificar e de especificar o objeto original
dessa teoria: o “objeto perdido de desejo” de Freud. Para além do conceito elaborado por
Freud, Lacan considerou, também, o conceito de “objeto transicional” de Donald
Winnicott e a concepção de “objeto parcial” de Melanie Klein. A hipótese freudiana
acerca do “objeto perdido de desejo” diz respeito a um objeto que é constantemente
buscado, mas que não se encontra; um desejo que, embora possibilite ao indivíduo
89
aprender enquanto interage com a realidade, não consegue ser satisfeito e que guarda
características assíntotas.
Para Lacan, além de outros significados que o objeto a adquire ao longo de seus
estudos, este significa, inicialmente, a necessidade do desejo de se beneficiar de um objeto
fixo e saciável, já que, quando o indivíduo alcança um objeto de desejo, voltava-se,
necessária e posteriormente, a outro. O objeto a é o objeto do desejo que nunca pode ser
obtido; é aquilo que o desejo carece perpetuamente; aquilo, portanto, que causa o desejo.
Lacan utilizou a letra “a” (de “autre”, que significa ‘outro’ no francês, referindo-se ao
outro do desejo) como um valor lógico, aludindo ao domínio da Álgebra. Ao considerar
o sujeito uma personagem que está inserida e permeada pelo desejo, pelo, gozo, pelo
outro, Lacan teve o intuito de metaforizar a ideia de perda, a partir do conceito do objeto
a, pois esse autor conseguiu identificar o quão difícil é, para o sujeito, se libertar desses
conteúdos que o envolvem, em função de esse sujeito ter de lidar com o sentimento de
perda. Nesse sentido, pode-se compreender que não se refere, exatamente, a algo que se
perde, mas diz respeito a uma sensação constante de que há algo ausente na vida desse
indivíduo; a função do objeto a é, portanto, mascarar essa falta ou essa perda (QUINET,
2001).
Há alguns conceitos com os quais Lacan trabalha que estão diretamente
vinculados ao objeto a, como o gozo, a angústia, a falta e o fantasma. No que se refere ao
gozo, trata-se da satisfação da pulsão, pois o objeto a é a causa do desejo, que gera prazer,
ao mesmo tempo em que tem o sofrimento como fundamento. Já a angústia vincula-se ao
objeto a quando há uma falta, de modo que é esta que criará a realidade dessa ausência.
No que concerne à falta, o objeto representaria uma espécie de imagem que revela a falta
desse sujeito; o objeto a seria, desse modo, o meio ou mecanismo para essa falta. Por fim,
o conceito de fantasma, que se vincula à fantasia, detém uma estrutura discursiva,
significante e simbólica. O fantasma relaciona-se ao objeto a, na medida em que o sujeito
pode fazer uma tentativa de atravessá-lo, com o objetivo de desestabilizá-lo ou apanhá-lo
(SHERIDAN, 1998).
É o objeto a que atrai o sujeito para o Real, que está além da linguagem, e é, por
meio da linguagem, que se concebe e que se compreende o contexto Simbólico da
tentativa desse sujeito em adquirir significado, como o desejo do Outro. Evans (1996)
esclarece que
Lacan articula o objet petit a com o termo agalma (termo grego que
significa uma glória, um ornamento, uma oferenda aos deuses ou uma
90
pequena estátua de um deus) que ele extrai do “O Banquete” de Platão.
Assim como o agalma é um objeto precioso escondido dentro de uma
caixa relativamente sem valor, o objet petit a é o objeto de desejo que
buscamos no outro. A partir de 1963, “a” vai adquirindo cada vez mais
conotações de Real, embora nunca tenha perdido seu estatuto de
imaginário; em 1973, Lacan ainda poderia dizer que é Imaginário (S20,
77). Desse ponto em diante, “a” denota o objeto que nunca pode ser
alcançado, que é realmente a causa do desejo, e não aquilo para o qual
o desejo tende; é por isso que Lacan agora o chama de "objeto-causa"
do desejo. Objet petit a é qualquer objeto que põe em movimento o
desejo, especialmente os objetos parciais que definem as pulsões. As
pulsões não buscam atingir o objet petit a, mas sim circular em torno
dele (S11, 179). Objet petit a é tanto o objeto da ansiedade quanto a
reserva irredutível final da libido (Lacan, 1962-3: seminário de 16 de
janeiro de 1963). Ela desempenha uma função cada vez mais importante
no conceito de tratamento de Lacan, no qual o analista se deve situar
como a aparência de um objeto pequeno a, a causa do desejo do
analisando (EVANS, 1996, p.128).
Evans (1996) continua e explica que, ao longo do tempo e dos seminários, o objeto
a foi adquirindo novas conotações e novos conteúdos, de modo que Lacan pudesse melhor
compreender a relação do objeto a não só com o desejo e com a falta, mas também sua
relação com os registros Imaginário e Real. Nesse sentido, Evans clarifica que
Em resumo, Lacan explica que o objeto a é algo do qual o sujeito, para se formar,
teve que se separar. Esse movimento de separação serve como símbolo da falta, ou seja,
do falo, não como tal, mas como falta. Deve ser um objeto que seja, em primeiro lugar,
separável e, em segundo, que tenha alguma relação com a falta. Nesse sentido, o objeto a
seria um elemento que se direciona para o inalcançável; seria, além disso, um excedente
do gozo, que interage com o outro, a angústia, o desejo, a falta, o fantasma. O objeto a é,
portanto, o objeto da causa de desejo ou do mascaramento da falta.
91
O pensamento lacaniano foi, em grande medida, elaborado com base em um
retorno às ideias de Freud. Este tentou, a princípio, incorporar os conceitos da psicanálise
no domínio da biologia e cientificar sua perspectiva da psique. Por sua vez, Lacan
reinterpretou esses conceitos de Freud, como os de inconsciente, repressão, e
transferência, segundo a linguística moderna e os princípios das teorias pós-
estruturalistas. Ao afirmar que o inconsciente é o discurso do Outro, Lacan nota,
essencialmente, que a paixão humana é constituída pela referência ao desejo dos outros,
seja pela alteridade interna – o inconsciente – seja pela alteridade externa – a linguagem.
Elliot (2015) explica que as paixões inconscientes mais profundas são expressas por meio
de uma espécie de revezamento de outras pessoas. A psicanálise seria, consequentemente,
uma teoria sobre a formação do sujeito individual como refratado, por meio da linguagem
e do mundo social, em que esse sujeito é fragmentado. (ELLIOT, 2015). O cerne da
psicanálise lacaniana é a conexão entre a releitura de Freud, a linguística e o pós-
modernismo. Para Lacan, a linguagem é o meio fundamental em que o desejo é
representado e por meio do qual o sujeito é constituído. A afirmação lacaniana de que o
inconsciente é estruturado como uma linguagem significa que o indivíduo já nasce em
uma linguagem e que o seu desejo está constantemente imerso nela. Isso significa que os
sujeitos não são criadores da linguagem, porque esta já existe quando esses sujeito
nascem. Nesse sentido, a linguagem não é somente um meio pelo qual o mundo pode ser
descrito; é, também, um mecanismo que domina e determina o indivíduo em todos os
momentos, sendo independente do assunto, mas revelando a verdade do assunto
(ELLIOT, 2015).
Essa concepção do inconsciente estruturado como linguagem não pode ser
compreendida sem mencionar outro aspecto crucial: a fratura entre significante e
significado, conceitos com os quais Lacan trabalha a partir de Saussure. Elliot (2015)
explica que a linguagem é, segundo Saussure, um sistema de signos, e todo signo é
constituído por um significante e um significado. O significante é o elemento fonológico
do signo; é, dessa maneira, a imagem acústica vinculada a um significado, este que é
imaterial. Lacan argumenta, seguindo os princípios da linguística estruturalista, que a
relação entre significantes e significados é arbitrária e baseada na convenção; é,
consequentemente, uma estrutura social. Para esclarecer essa posição, Elliot assevera que
o significado é constituído por meio de diferenças linguísticas e de significantes. Elliot
(2015) apresenta esse processo da seguinte maneira:
92
por exemplo, o significado de um significante – “homem” – é definido
pela diferença, neste caso, com o significante “mulher”. A relação entre
signo e objeto é sempre provisória e arbitrária, e seu uso depende de
convenções históricas e culturais. A estrutura linguística se organiza em
dois eixos: a condensação, que pode ser concebida como metáfora
(ordem sincrônica), e o deslocamento, que pode ser equiparado à
metonímia (ordem diacrônica). No primeiro caso, os significantes são
sobrepostos, justapostos e sintetizados, enquanto no segundo ocorre
uma troca, ou seja, a substituição de um significante por outro. A
metáfora e a metonímia são os dois eixos ao longo dos quais opera o
inconsciente lacaniano. Elliot (2015) ainda aponta para uma das
principais inovações de Lacan: a interpretação da distinção saussuriana
entre significante e significado em termos da repressão. Além disso, o
inconsciente é não só o elemento que orienta a dinâmica de combinação
dos significantes – o inconsciente que fala –, mas também elemento que
é reprimido e censurado pelos significantes – o inconsciente que não
fala. Os sentidos produzidos pela cadeia simbólica apresentam um
sentido mais fundamental: o gozo (jouissance), ou seja, o inconsciente
que não fala. A cadeia simbólica é recalque porque “salva” o sujeito do
gozo e lhe permite – por meio da análise – construir uma nova relação
com a força do gozo, ou seja, com a pulsão. O que distingue a estrutura
linguística lacaniana da gramática gerativa chomskiana é o fato de que,
para Lacan, é o puro impulso, a força inconsciente do gozo que fala na
estrutura. O inconsciente se manifesta no artefato, isto é, na linguagem
(ELLIOT, 2015, p. 23).
93
Coloniais de Relações Internacionais. Autores que têm vínculos com essa área do
conhecimento, como Franz Fanon e Homi Bhabha, se dedicaram ao estudo e à aplicação
da Psicanálise, sobretudo a desenvolvida por Lacan, para analisar eventos no nível
individual e coletivo do ser humano, embora cada autor tenha empregado a Psicanálise à
sua maneira. É importante, nesse sentido, explicar o desenvolvimento teórico desses
autores e compreender a maneira pela qual cada intelectual utilizou a Psicanálise para
analisar episódios do contexto internacional, especialmente aqueles concernentes ao
Colonialismo e a seus efeitos. Para isso, será feita uma breve explicação dos Estudos pós-
Coloniais e, posteriormente, a demonstração conceitual do pensamento dos referidos
autores.
Os Estudos pós-Coloniais integram parte das correntes teóricas que também
ficaram conhecidas como teorias pós-modernas, pós-positivista e críticas, no que
concerne ao desenvolvimento teórico da disciplina de Relações Internacionais. Essa
abordagem propõe reflexão crítica em relação ao mundo moderno, colonial e imperial, de
modo a oferecer uma alternativa à postura eurocêntrica e às noções de dominação
ocidental, ao desafiar as ideias e o pensamento ocidentais em diversas áreas do
conhecimento, como na Literatura, na História, na Linguística e nos Estudos de
Identidade e de Gênero. Nesse sentido, o pós-Colonialismo almeja realizar uma análise
crítica do legado cultural, político e econômico do Colonialismo e do Imperialismo, de
maneira a enfatizar o impacto do controle humano e da exploração dos povos colonizados
pelos colonizadores.
Os Estudos Pós-Coloniais emergiram influenciados pelos Estudos Culturais e pela
Crítica Literária, embora se emancipando destes, em função do seu objeto de análise: o
mundo colonial. É interessante observar ainda que, na abordagem pós-colonial, os
Estudos Subalternos, cujo início ocorreu por meio de um conjunto de intelectuais indianos
que refutaram a concepção e o discurso colonial, classista e exclusivista sobre a história
da Índia, destacaram-se como uma parte representativa dessa experiência pós-colonial.
Contra essa perspectiva elitista, os intelectuais do grupo dos Estudos Subalternos
concentraram suas reflexões e seus esforços para os grupos que foram excluídos,
subalternizados e marginalizados ao longo da história da Índia. Consequentemente, a
produção intelectual do grupo dos Estudos Subalternos possibilitou o debate sobre
exilados e excluídos em outras partes do mundo (CHAKRABARTY, 2000).
Quando se aproximam da área das Relações Internacionais, observa-se que os
Estudos pós-Coloniais, abordam, em regra, o modo pelo qual a manutenção de formas
94
coloniais de poder e o racismo se perpetuaram nas relações entre sociedades. O
eurocentrismo da disciplina de Relações Internacionais e o “paroquialismo geográfico”,
a partir do qual essa disciplina se constituiu, são questionados pelos críticos coloniais, na
medida em que a história das Relações Internacionais é geralmente narrada sob
perspectivas ocidentais. Relacionam-se, a esse respeito, os conceitos de chauvinismo
cultural e “fardo do homem branco”, cujo conteúdo contribuiu para explicar o
egocentrismo ocidental. O pós-Colonialismo concentra-se, nesse sentido, em realizar uma
revisão crítica da história, visto que a produção do conhecimento tem sido reproduzida
não só nos termos da modernidade ocidental, mas também tem sido influenciada, quando
se analisa o período contemporâneo, por uma miríade de narrativas, de práticas e de
representações ocidentais, convergentes para a manutenção, no nível global, da
distribuição assimétrica de poder e de riqueza (HOFFMAN, 2005).
No que se refere à epistemologia, à ética e à política, o âmbito dos Estudos pós-
Coloniais abrange temas que constituem a identidade pós-colonial de um povo
descolonizado. Essa identidade advém da produção de conhecimento cultural do
colonizador sobre o povo colonizado e do modo pelo qual esse conhecimento foi aplicado
para subjugar um povo – em regra não europeu – a uma colônia da metrópole – não raro
europeia. Após o contato entre um povo dominador e um outro dominado, instituem-se
as identidades culturais de colonizador e de colonizado. Nesse sentido, o intuito do pós-
Colonialismo é refutar as narrativas ocidentais, europeias e imperialistas, presentes em
diversas áreas do saber e da dinâmica de vida, que impõem certa compreensão, certa
percepção e certo conhecimento do mundo.
Os Estudos pós-Coloniais estabelecem espaços intelectuais para os povos
subalternos expressarem-se, com base na maneira pela qual compreendem o mundo, de
sorte que elaborem seus discursos e suas narrativas, com o objetivo de equilibrar a relação
de poder do binarismo colonizador-colonizado. Isso significa que o sufixo “pós”, em
“pós-Colonialismo”, não se refere exclusivamente ao fim do colonialismo formal –
sobretudo o colonialismo nos continentes africano e asiático no período das décadas de
1950, 1960 e 1970 –, visto que ainda há discussões sobre o fato de que o colonialismo e
a ação colonizadora não cessaram, mas somente transformaram a forma pela qual operam
no período pós-Moderno. Dessa maneira, esses colonizados também precisam de resistir
contra o domínio colonizador e de transformar a realidade no âmbito cultural, linguístico,
psicológico e ideológico, para se fazerem percebidos.
95
Ao identificar as complexidades nas relações de poder situadas na vida acadêmica,
o pós-Colonialismo entende que se dedicar à desestruturação de discursos coloniais-
ocidentais, que normalizam as desigualdades, é, também, uma forma de resistência
(SAID, 2007). Adicionalmente, é importante observar que a professora Gayatri Spivak,
em sua obra Can the subaltern speak?, relaciona a marginalização dos grupos e dos
discursos subalternos ao silenciamento, localizando, na fala, a condição indispensável
para a insubordinação da subalternidade (BHABHA, 1998). Para essa transformação, é
necessária uma ação política que ultrapasse o discurso acadêmico, de modo que haja
comprometimento do crítico pós-colonial em relação aos subalternos. Spivak advoga por
essa preocupação de privilegiar a subalternidade como espaço de enunciação, em que o
pós-colonial pode emergir, na medida em que as subalternidades são lugares que
contribuem para identificar e subverter as estruturas de poder (SPIVAK, 1988).
Finalmente, o pós-Colonialismo opõe-se a essencialismos20 e a generalismos, pois
não corrobora as concepções de oposição binária, a partir das quais os discursos coloniais
constituem formas de racismos e de preconceitos. O objetivo da abordagem pós-colonial
é, nesse sentido, a busca de identidades mais complexas e multifacetadas, congruentes
com a realidade social e política. O Pós-Colonialismo critica os pressupostos
epistemológicos em que o discurso da Modernidade se fundamenta, de maneira a
desconstruir a ideia de superioridade europeia. Além disso, Spivak (1988) localiza a
subalternidade como uma consequência das relações de violência epistêmica, de modo
que essa violência não só forma o sujeito colonizado, como sendo um outro do
colonizador, mas também se institui com base na imposição colonial de uma ordem
científica e de um sistema legal legítimo. Dessa forma, o desenvolvimento e as
proposições da Modernidade são constituídos e fundamentados em uma relação de poder,
pautada na diferença colonial entre aqueles que existem, livres de um adestramento
cultural, e aqueles que não existem, exceto como objetos de dominação. (SANTOS,
2004).
20
O essencialismo é a suposição de que grupos, categorias ou classes de objetos têm uma ou várias
características definidoras exclusivas de todos os membros dessa categoria. Alguns estudos de raça ou
gênero, por exemplo, assumem a presença de características essenciais que distinguem uma raça da outra
ou o feminino do masculino. Nas análises da cultura, é uma suposição (geralmente implícita) de que os
indivíduos compartilham uma identidade cultural essencial, e tem sido um tópico de debate vigoroso na
teoria pós-colonial. A afirmação cartesiana Cogito ergo sum (penso, logo existo) foi a base para a ênfase
na consciência individual e na centralidade da ideia do sujeito humano no discurso intelectual dominante
dos séculos XVIII e XIX. O deslocamento dessa preocupação iluminista com o indivíduo por visões pós-
estruturalistas da subjetividade colocou uma pressão considerável sobre a teoria cultural contemporânea
para revisar essa forma dominante de conceber o comportamento humano (ASHCROFT et all, 1988, p. 73).
96
No que concerne à relação entre o Estudos pós-Coloniais e a Psicanálise, de
acordo com Greedharry (2008), em sua obra Postcolonial Theory and Psychoanalysis,
malgrado a herança problemática da racialização, por um lado, e da relativa desatenção
do estudo da raça ou do racismo pela teoria psicanalítica, por outro, a Psicanálise provou
ser uma metodologia significativa e recorrente na crítica colonial e na teoria pós-Colonial.
Esse exame da relação entre os estudos coloniais críticos e a psicanálise inicia-se com o
trabalho de Frantz Fanon21, elaborado na década de 1950; pode-se, todavia, voltar à
década de 1920 para encontrar psicanalistas e estudiosos que utilizaram a Psicanálise para
compreender e analisar manifestações culturais, políticas e sociais do Colonialismo
(GREEDHARRY, 2008). Um dos trabalhos mais influentes, em que o pensamento
psicanalítico está profundamente arraigado, é, segundo Greedharry, o de Homi Bhabha,
que teve enorme impacto nos estudos literários e históricos coloniais desde a década de
1980. Além disso, o pensamento de Bhabha tem sido usado para uma renovação da
linguagem psicanalítica nos estudos pós-Coloniais, sendo aplicado em uma ampla gama
de textos, de imagens e de representações.
Greedharry (2008) faz uma crítica em relação à utilização do ferramental teórico
psicanalítico, já que, para a autora, a linguagem da Psicanálise integra, demasiadamente,
o discurso dos Estudos pós-Coloniais, de sorte que a maioria dos estudiosos se afastou da
origem dos termos e das conceituações das quais se utilizam com frequência, como é o
caso do desgastado termo “o Outro22”, derivado, a princípio, de Freud e Lacan
(GREEDHARRY, 2008). É importante observar que Greedharry (2008) faz uma análise
crítica do emprego da Psicanálise nos Estudos pós-Coloniais e explica que há, em parte,
uma sintomática persistência da Psicanálise na difusão geral do discurso psicanalítico na
cultura ocidental, de maneira que este se tem tornado natural, inerente e ahistórico na
cultura contemporânea do ser humano, visto que aqueles que vivem e escrevem no
Ocidente pensam, psicanaliticamente, sem estar conscientes de que o fazem23. Greedharry
21
Importante salientar que Octave Mannoni, e não Fanon, foi o primeiro pensador a utilizar a Psicanálise
como meio de escrever contra o colonialismo, cuja crítica pode ser encontrada em sua obra “Psychologie
de la Colonisation” (1950).
22
“Outro” refere-se às formas sociais e/ou psicológicas pelas quais um grupo exclui ou marginaliza outro
grupo. Ao declarar alguém "Outro", as pessoas tendem a enfatizar o que as torna diferentes ou opostas umas
das outras, e isso se reflete na maneira como elas representam os outros, especialmente por meio de imagens
estereotipadas.
23
Não há o objetivo, aqui, de desenvolver e expor toda a crítica de Mrinalini Greedharry, mas apenas
apresentar elementos analíticos que contribuem para o entendimento de como a Psicanálise se tornou um
método de investigação tão comum e natural entre os autores que se aproximam dos Estudos pós-Coloniais.
Como já explicado na metodologia dessa dissertação, o objetivo dessa etapa do projeto é demonstrar não
só as análises psicanalíticas de alguns pensadores pós-coloniais, mas também elucidar que já houve diversos
97
esclarece que se naturalizou, quase sem se questionar, a ideia da mente inconsciente e das
manifestações de repressões emocionais, de neuroses e de fetichismos, como se fossem
condições inevitáveis da existência humana. Além disso, a Psicanálise ainda é assumida
como uma das linguagens mais complexas para pensar sobre o desejo, a identificação e
os processos de subjetividade.
Greedharry (2008) aponta que um dos motivos para que os Estudos pós-Coloniais
ainda utilizem, inconscientemente, ideias psicanalíticas – compelindo a Literatura, a
História e a Antropologia a examinar a política colonial e suas formas de produção de
conhecimento – se refere ao fato de que a Psicanálise oferece algumas vantagens
metodológicas, que auxiliam na explicação de aspectos particulares da cultura colonial,
bem como permite que o Colonialismo seja analisado por uma perspectiva mais
detalhada, complexa e ampla do que por outras disciplinas. A Psicanálise integra o
repertório de estudiosos que priorizam uma abordagem cultural do Colonialismo. Desde
Fanon, centrando-se na subjetividade, na identidade ou na dinâmica relacional entre
colonizadores e colonizados, por meio da linguagem psicanalítica, permitiu-se que a
crítica pós-colonial demonstrasse que existem não só manifestações culturais, mas
também efeitos perniciosos causados pelo Colonialismo, cujas consequências não eram,
anteriormente, tão claras (GREEDHARRY, 2008).
Na opinião de Greedharry (2008), a principal contribuição dos Estudos pós-
Coloniais refere-se ao fato de que a reflexão sobre a história do Colonialismo é realizada
com base em uma releitura dos ditos “estudos tradicionais”, cuja produção de conteúdo
advém, em regra, do colonizador. Essa reinterpretação da história influencia a maneira
pela qual se estuda e se pensa sobre a produção de conhecimento em disciplinas
acadêmicas, como a História, as Ciências Políticas ou a Antropologia. Nesse sentido,
Greedharry argumenta que o pós-Colonialismo não se interessa somente em trazer teorias,
literaturas, filosofias e histórias não ocidentais para a academia ocidental contemporânea,
mas também se concentra, com base em uma perspectiva da Psicanálise lacaniana, em
compreender como esses corpos de conhecimentos se tornaram "outros"
(GREEDHARRY, 2008).
Greedharry (2008) afirma que não é somente a questão de compreender se as ex-
colônias se tornaram ou não livres da dominação, mas também de como a história do
intelectuais que utilizaram o domínio da Psicologia para pensar em eventos internacionais e coletivos, o
que justifica e legitima a introdução de outros conceitos da Psicologia, como mecanismo para análise das
relações entre sociedades.
98
Colonialismo e o adestramento da história pelo Colonialismo podem ser libertados de
certas classificações e certas ideias binárias, como as de colonizador-colonizado, de
branco-preto; de civilizados-bárbaros; de moderno-arcaico; de tribo-nação. Ao escolher
trabalhar com base na perspectiva dos Estudos pós-Coloniais, Greedharry expõe que uma
crítica efetiva sobre os métodos psicanalíticos deve compreender o modo pelo qual os
mecanismos desse método se tornaram, de maneira geral, uma forma ocidental moderna
de conhecimento e de influência sobre mentes e egos (GREEDHARRY, 2008). Além
disso, um dos desafios em estudar a relação entre teoria pós-Colonial e teoria psicanalítica
é, segundo Greedharry, a inevitável necessidade de condensar, laconicamente, os
conhecimentos da Psicanálise, da Psiquiatria e da Psicologia nas obras de autores de
Estudos pós-Coloniais. Esse compêndio é quase obrigatório, em função da miríade de
diferentes entendimentos que cada crítico traz, quando utiliza a Psicanálise em suas
pesquisas acadêmicas (GREEDHARRY, 2008).
Com o fito de compreender a intersecção da Psicanálise em relação aos Estudos
pós-Coloniais, Greedharry (2008) explica que escolheu compreender esse mapa por meio
do trabalho de cinco diferentes estudiosos24, devido a três fatores gerais:
24
Na obra de Greedharry, além dos dois pensadores que aqui serão trabalhados, ela ainda analisa mais três:
Ashis Nandy, Gilles Deleuze e Félix Guattari. No que se refere a Nandy, algumas justificativas podem ser
apresentadas para que este não seja detalhadamente analisado neste trabalho. As contribuições intelectuais
de Nandy têm, de fato, a psicologia e a psicanálise como base; todavia, para fins desta dissertação, embora
integre, de certo modo, o arcabouço teórico-conceitual do pensamento de Nandy, a psicanálise lacaniana é
menos explícita em suas obras, se comparada com as obras de Fanon e de Bhabha. Nandy identifica-se
como um metafreudiano e é bastante influenciado pelo modelo da Psico-história de Erik Erikson e pelo
estudo da Psicobiografia. Em razão de Nandy enfatizar o indivíduo, é, portanto, intuitivo que a
psicobiografia seja um de seus principais métodos de análise. Como o próprio Nandy reconhece, uma das
razões pelas quais prefere trabalhar com pessoas, em vez de grupos coletivos maiores, é que ele domina o
método de análise dos indivíduos. O objetivo de Nandy em relação à Psicobiografia é, nesse sentido, servir
como um terreno para extrair recursos psicológicos, não só para entender como o eu indiano sobreviveu –
ou não sobreviveu – ao ataque violento do colonialismo, mas também para que uma política de consciência
seja elaborada. (GREEDHARRY, 2008). No caso de Deleuze e Guattari malgrado estes façam observações
sobre o Colonialismo e sobre a implicação da teoria psicanalítica na colonização, suas análises estão mais
relacionadas à filosofia e à política das metrópoles europeias do que às colônias. Nesse sentido, embora a
crítica de Deleuze e de Guattari acerca da Psicanálise seja pertinente e os termos a partir dos quais essa
crítica é oferecida estejam alinhados com a teoria psicanalítica para explicar a cultura ocidental e as
dinâmicas da colônia, resolvi trabalhar somente com Fanon e Bhabha, visto que são duas das principais
referências nos Estudos pós-Coloniais, no que concerne à psicanálise lacaniana, bem como proporcionam
uma perspectiva autêntica de como a abordagem pós-colonial apresenta e desenvolve seus conteúdos.
99
colônia, seja por meio de análises diretas (Bhabha, Fanon), seja por
histórias psicanalíticas (Nandy) e práticas materiais (Fanon). A
psicanálise aparece como uma linguagem crítica de várias maneiras em
cada um desses escritores; e parte do meu objetivo aqui é demonstrar
quão variado é o uso que cada crítico faz da psicanálise e até que ponto
ele é capaz de extrair o potencial crítico da teoria psicanalítica. Em
terceiro lugar, escolhi escritores com reconhecida influência no atual
mainstream da teoria pós-colonial. Embora existam outros escritores
que fizeram uso da psicanálise para criticar o colonialismo e o racismo,
Fanon, Nandy e Bhabha são três dos críticos mais importantes do
cânone da teoria pós-colonial (GREEDHARRY, p. 10, 2008).
Para entender o modo pelo qual cada teórico utiliza a Psicanálise, Greedharry
(2008) fez uma breve introdução dos autores que analisou. A autora observa que, no caso
de Fanon, este aplicou métodos psicanalíticos e escreveu sobre a Psicanálise, embora ele
tenha sido um ativo psiquiatra e a utilizasse no contexto da prática da psiquiatria. Em
Black Skin White Masks, Fanon referiu-se ao que parece ter sido fenômenos psicológicos
populares, em vez de questões estritamente psiquiátricas ou psicanalíticas. A negrofobia25
seria um exemplo de um resultado psicológico real e existente do período sobre o qual
Fanon escrevia; não reconhecida, entretanto, como um distúrbio psiquiátrico ou uma
neurose psicanalítica, exceto como uma manifestação generalizada de um pensamento de
ansiedade ou de paranoia. Já Bhabha parece ser o único purista entre os autores aqui
abordados. Bhabha escreve sobre Psicanálise, aparecendo de forma mais textual, na
medida em que os conceitos de Freud e de Lacan são utilizados com o intuito de descrever
processos que ocorrem, em grande parte, por meio da linguagem. Torna-se,
consequentemente, mais uma variante da Psicanálise e em um outro contexto que não o
de Fanon (GREEDHARRY, 2008).
Greedharry (2008) explica que Fanon entende a Psicanálise, a Psiquiatria e
Psicologia como práticas materiais que são elaboradas e reelaboradas no contexto de um
mundo racista e colonial, de modo que a discussão acerca da psique da pessoa de cor é
tema relevante para a discussão política. Além disso, Greedharry verifica que há poucos
pesquisadores, que trabalham com estudos pós-coloniais – desde marxistas até
desconstrucionistas –, que não citam Fanon como uma influência em sua abordagem de
análise colonial. A autora nota, por um lado, que teóricos com predileções marxistas
25
A negrofobia é um fenômeno no qual a imago – representação de uma pessoa formada no inconsciente
durante a infância e conservada de forma idealizada na idade adulta, segundo as teorias de C.G. Jung – do
negro se torna profundamente arraigada na psique, capaz de gerar uma aversão pronunciada aos negros,
pelo menos na superfície (YOKUM, 2022).
100
enfatizaram aquele Fanon que escreveu sobre a necessidade de o mundo pós-colonial se
resguardar da burguesia, desviadora das lutas culturais e da necessidade de se engajar em
revoluções violentas; por outro, críticos mais comprometidos com interpretações pós-
estruturalistas, como Bhabha, defenderam mais o uso da Psicanálise por Fanon, porquanto
esta permite observar o Colonialismo como um processo que ultrapassa o arranjo de um
sistema meramente político ou econômico, alcançando aspectos culturais, sociais e,
sobretudo, psicológicos (GREEDHARRY, 2008).
No que se refere a Bhabha, Greedharry (2008) explica que esse professor, cujo
trabalho representa uma das mais recentes aplicações da Psicanálise aos Estudos pós-
Coloniais, parece fornecer algumas sugestões sobre a relação colonizador-colonizado, ao
debater sobre a cultura no mundo colonial e sobre a cultura no mundo metropolitano
contemporâneo. Enquanto Fanon recorre à teoria psicanalítica para explicar as maneiras
pelas quais os sujeitos colonizados experienciam o Colonialismo e resistem a este,
Bhabha utiliza o Colonialismo para explicar as maneiras pelas quais as culturas se
interagem. Em sua obra O Local da Cultura, Bhabha emprega conceitos psicanalíticos,
como o fetichismo26, a mímica27 e a ambivalência28 para examinar o modo pelo qual as
culturas são performadas, produzidas e autorizadas, quando são manifestadas em uma
sociedade colonial (GREEDHARRY, 2008).
O argumento de que os estereótipos funcionam como fetiches culturais ou raciais,
unindo e negando, ao mesmo tempo, a diferença entre a cultura dos colonizadores e a dos
colonizados, é um dos mais significativos da obra de Bhabha. Greedharry (2008)
argumenta que a escrita de Bhabha parece fazer uso mais literal da teoria psicanalítica do
que as obras de Fanon. Enquanto este se sente confortável para interpretar, livremente, a
teoria psicanalítica adequada a seus próprios fins analíticos, Bhabha cita Freud e Lacan
como se suas teorias fossem unânimes e definitivamente verdadeiras e incontestáveis.
Bhabha usa, aparentemente, conceitos psicanalíticos para escrever sobre manifestações
26
Fetichismo concerne, resumidamente, ao deslocamento do desejo e da fantasia para objetos alternativos
ou partes do corpo (por exemplo, fetiche por pés ou fetiche por sapatos), a fim de evitar o confronto de um
sujeito com o complexo de castração. Freud percebeu em seu ensaio sobre "Fetichismo" que o fetichista é
capaz ao mesmo tempo de acreditar em sua fantasia e reconhecer que ela não passa de uma fantasia. E, no
entanto, o fato de reconhecer a fantasia como fantasia em nada reduz seu poder sobre o indivíduo.
27
De forma lacônica, mímica é o meio pelo qual o colonizado adapta a cultura (língua, educação, vestuário,
etc.) do colonizador, mas sempre em processo de mudança de maneiras importantes. Tal abordagem sempre
o contém na ambivalência do hibridismo.
28
Ambivalência diz respeito, grosso modo, a forma ambígua como colonizador e colonizado se encaram.
O colonizador muitas vezes considera o colonizado como inferior, mas exoticamente diferente, enquanto o
colonizado considera o colonizador invejável, mas corrupto. Em um contexto de hibridismo, esse
entendimento pode produzir um sentimento misto do que é benéfico e do que é maléfico.
101
coloniais, pois acredita que a linguagem psicanalítica representa, por completo, o que
acontece nas culturas coloniais. O motivo pelo qual essa correspondência ou analogia
entre a cultura colonial e a teoria psicanalítica deveria existir, ou o que isso poderia,
exatamente, significar, não é explorado na obra de Bhabha (GREEDHARRY, 2008).
O trabalho desses dois estudiosos demonstra que a própria teoria psicanalítica não
é, consoante a análise de Greedharry, um mecanismo de crítica apolítico. Com Fanon, a
Psicanálise é usada para descrever como os colonizados são afetados pela dominação
colonial. Com Bhabha, a teoria psicanalítica fornece uma estrutura para entender como
as culturas colonizadas sobrevivem e são transformadas por meio de sua interação e
manifestação nas sociedades coloniais. Além disso, Bhabha explora como uma
compreensão psicanalítica da relação entre o passado e o presente pode fornecer, à
sociedade pós-colonial, um meio de combater os legados do discurso colonial, que ainda
reverberam na contemporaneidade. Para este, a Psicanálise é um mecanismo relevante,
devido à capacidade de desestabilizar a contínua dominação do conhecimento ocidental,
desenvolvido e perpetuado mediante princípios, padrões e práticas supostamente
universais (GREEDHARRY, 2008).
Nascido na ilha da Martinica, sob o domínio colonial francês, Frantz Omar Fanon
(1925-1961) foi um dos escritores mais importantes no período em que não só o conceito
do Atlântico negro29 foi desenvolvido, mas também em uma época em que a luta de
libertação anticolonial ocorria. O trabalho de Fanon constitui-se de uma série de textos
de cunho poético, psicológico, filosófico e político, de modo que influenciou, sobretudo,
os estudos e a produção de conhecimento da região politicamente conhecida como Sul
global. Fanon concentrou-se nos estudos sobre questões fundamentais de sua época, como
o uso da linguagem, do afeto, da sexualidade, do gênero e da raça, como meios para
compreender, no indivíduo e na sociedade, os efeitos psicológicos, sociais e culturais da
29
Clássico contemporâneo da sociologia e dos estudos da cultura, The Black Atlantic, de Paul Gilroy,
professor da Universidade de Yale, busca definir a modernidade a partir do conceito de diáspora negra e
suas narrativas de perda, exílio e viagens. Histórias de deslocamentos e de identidades caracterizam essa
formação que Gilroy chama Atlântico negro: um conjunto cultural irredutivelmente moderno, excêntrico,
instável e assimétrico, que escapa à lógica estreita das simplificações étnicas, e se manifesta tanto nos
escritos de W. E. B. Du Bois como nas letras dos rappers do século XXI (GILROY, 1993). Foi neste livro
que Gilroy expôs seu conceito de “atlântico negro”, a ideia de que a cultura negra é essencialmente um
híbrido, um produto de séculos de troca, escravidão e movimento através do Atlântico.
102
colonização e da descolonização. Sua participação na luta revolucionária argelina
ampliou seu pensamento: trabalhava, a princípio, com teorizações a respeito da negritude;
enfatizou, posteriormente, uma elaboração teórica mais profunda acerca do colonialismo,
da luta anticolonial e das interpretações culturais em sociedades pós-coloniais. Fanon
demostrou, também, familiaridade com as principais abordagens acadêmicas de sua
época: a Psicanálise, o Existencialismo, a Fenomenologia e a Dialética, bem como
apresentou profundo conhecimento sobre o movimento Negritude dos Estados Unidos
(DRABINSKI, 2019).
Além de outros trabalhos, publicou duas obras originais, que se tornaram bastante
conhecidas: “Black Skin White Masks”, em 1952, e “The Wretched of the Earth”, em
1961. É importante ressaltar que, nesta parte da dissertação, não há pretensão em passar
por todos os trabalhos de Fanon ou de escolher um e pormenorizá-lo; o objetivo é, no
entanto, entender a influência que a Psicanálise teve em seu pensamento, o que pode ser
observado, sobretudo, na obra Black Skin White Masks. Nesse sentido, é necessário citar
algumas passagens desse livro, sem pretender, contudo, esgotá-lo. Nessa obra, Fanon
almejou compreender os fundamentos do racismo antinegro, com base na formação
psicológica da consciência e do mundo social. O livro é, segundo Drabinski (2019), a
principal obra de Fanon sobre a negritude. A partir dessa obra, Fanon mudou seu foco,
afastando-se da Negritude, como um problema do mundo moderno, e indo em direção a
uma análise mais ampla dos oprimidos, do Colonialismo e da resistência revolucionária,
que abrange a colonialidade como um sistema. Esse trabalho de Fanon estabeleceu,
portanto, a estrutura básica de sua análise anticolonial e decolonial, em termos da
apresentação dos efeitos e dos afetos do racismo antinegro. Além disso, é importante citar,
de acordo com Drabinski (2019), que a inovação de Homi Bhabha, como leitor de Fanon
(intelectual que ainda trabalharemos com mais diligência nesta dissertação), foi extrair as
dimensões pós-estruturalistas de seu pensamento, escrevendo sobre temas relacionados a
conceitos pós-coloniais, como os de hibridismo, de linguagem, de subjetividade e de
tempo (DRABINSKI, 2019).
Na introdução de Black Skin White Masks, Drabinski (2019) explica que Fanon
sintetizou a ideia de sua obra, ao afirmar que os negros estão aprisionados na negritude e
os brancos, na branquitude. Em uma perspectiva teórica-conceitual, o que Fanon indicou
foi a existência de uma relação entre ontologia e estruturas sociológicas, ao explicar que
as últimas formam a primeira, de modo que nesta se aprisionam subjetividades em
categorias raciais. Com base nessa ideia, Fanon tentou sustentar essa argumentação no
103
restante da obra, por meio da linguagem, da sexualidade, da corporificação e da dialética.
Além disso, é significativo compreender um dos conceitos mais interessantes que Fanon
(2008) introduziu: a “zona do não ser”, cuja metáfora se refere a um “inferno” em que se
encontra a negritude, esta que é confrontada com sua condição existencial em um mundo
antinegro. Por sua vez, o mundo antinegro, o único mundo que se conhece, oculta esse
“não ser”, atribuindo à negritude rejeitada um lugar – o de não existência – e uma função
– o de corpo e de matéria –, de forma a negar sua subjetividade30. Segundo Fanon, o
reconhecimento da zona do não ser produz uma potência revolucionária; e revolucionária
justamente em função de o mundo antinegro não conseguir compreender e sustentar a
afirmação da vida negra como vida, como ser existente e, ainda, como reivindicadora de
um mundo. Essa afirmação e essa potência revolucionária são os elementos que
contribuem para aquilo que Fanon nomeia violência política (DRABINSKI, 2019).
Fanon, consoante Drabinski (2019), realizou uma relação entre a experiência
existencial da subjetividade racializada e a lógica calculista do domínio colonial. O
colonialismo é, para Fanon, um projeto integral, que penetra por toda parte da pessoa
humana, de sua realidade à sua psique. Além disso, em relação às reflexões sobre
linguagem, racismo e colonialismo, Fanon afirmou que adotar e falar uma língua é
participar de um mundo, assumir uma civilização. Essa afirmação representa, de muitas
maneiras, o ambiente filosófico francês e alemão de meados do século XX, em que a
30
No que tange ao reconhecimento, Fanon, em Pele Negra, observa que, se ao negro, limitado em sua
existência, é negada a condição humana, sua relação com o seu outro, isto é, o branco, será inevitavelmente
desigual. O autor se debruça, então, sobre a dialética Hegeliana do senhor e do escravo de modo crítico e
afirma que não há, na realidade, qualquer possibilidade de luta por reconhecimento nesta relação, uma vez
que o racismo é uma negação total dos atributos humanos (GORDON, 2015). Em seu lugar, temos uma
relação unilateral, em que o branco atribui apenas a si a condição de ser. Situado fora dessa dialética, o
negro se tornou, a priori e aos olhos do branco, apenas corpo. Em uma concepção de mundo que estabelece
uma separação entre corpo e mente, ao negro foi relegado o biológico; ao branco, legitimou-se o
conhecimento e a transcendência. Assim, isolado em uma condição de “matéria”, ou de não ser, a
representação do negro é construída não por ele mesmo, mas pelo outro. Para Fanon, o corpo do negro é
significado no mundo a partir de um esquema histórico-racial, isto é, a partir de uma narrativa elaborada
socialmente (pelo branco europeu) que tem como efeito a construção do outro (o próprio negro) como o
não Eu (o não branco) (SPIELMANN, 2000). A pseudociência do século XIX, dotada de um racismo
mascarado de objetividade, foi um importante pilar para a manutenção desta ideologia [...]. Essa condição
específica do negro e a sua caracterização enquanto não ser, a partir de sua subordinação material e
metafísica, impossibilitou-o de se ver enquanto expressão universal, haja vista sua limitação ao caráter
imanente do corpo [...]. Assim, nota-se que a zona de não ser é concebida pelo autor enquanto uma condição
existencial, sendo um subproduto da empresa colonial. Ao ter sua metafísica negada, o negro perdeu, aos
olhos do europeu, a sua subjetividade, uma vida interna, foi reduzido a pura exterioridade, a uma negação
do simbólico. O racismo antinegro conferiu a este uma essência, ilustrada a partir da negação da pluralidade
pertencente ao humano, transformando a diversidade de um continente em uma categoria homogênea
denominada “o negro”. Segundo Lewis Gordon, este movimento inibe a possibilidade de um conhecimento
aprofundado do ser, relegando-o a uma condição de anonimato (GORDON, 2015). O que, retomando a
discussão do tópico anterior, dificulta ainda mais a elaboração de conhecimento entre o sujeito que produz
o saber e o objeto a ser estudado. (WEBER, MEDEIROS, 2020, p. 273).
104
Fenomenologia, o Existencialismo e a Hermenêutica exploraram, também, essa mesma
ideia. Se falar uma língua significa integrar um mundo e adotar uma civilização, a língua
do colonizado, língua imposta por séculos de dominação colonial e dedicada à eliminação
ou cancelamento de outras formas de expressão, fala e expressa o mundo do colonizador.
Segundo Fanon (2008), falar como o colonizado é, nesse sentido, participar de sua própria
opressão e refletir as próprias estruturas de sua alienação em todos os níveis, desde o
vocabulário até à sintaxe e à entonação (DRABINSKI, 2019).
Drabinski (2019) esclarece que Fanon aprofundou sua argumentação no que diz
respeito à sexualidade interracial, ao desejo sexual e aos efeitos na identidade racial. Para
isso, afirmou que o desejo interracial, como forma de autodestruição, revela a ambição
do preto em se tornar branco ou demonstra a vontade de elevar seu status social, político
e cultural, ao se aproximar da branquitude. As representações de sexualidade interracial,
exclusivamente as heterossexuais, são, nesse sentido, para Fanon (2008),
fundamentalmente patológicas. Com base na psique e no desejo interracial, Drabinski
(2019) aponta que, fundamentado no pensamento fanoniano, a mulher negra que deseja
um homem branco sofre com a ilusão de que o corpo dele é mecanismo de acesso à
riqueza e à admissão. O homem negro que deseja uma mulher branca sofre, por sua vez,
com as ilusões que o corpo dela pode oferecer: inocência e pureza. Drabinski (2019) nota
que as análises de Fanon estavam imbuídas de linguagem da Psicanálise e da
Fenomenologia existencial, de modo a contribuir para o entendimento de que o desejo
interracial é patológico, na medida em que o colonialismo antinegro é um projeto integral,
que se infiltrou, que modificou e que enrijeceu todos os aspectos da vida (DRABINSKI,
2019).
É importante comentar sobre o exame de relatos psicológicos do colonizado, que
Fanon realiza no capítulo ‘The Lived-Experience of the Black Man’, de “Black Skin White
Masks”. Drabinski (2019) expõe que Fanon empreendeu uma crítica sistemática do relato
psicanalítico de Octave Mannoni, especialmente acerca da opressão colonial,
trabalhando, posteriormente, com um relato psicanalítico da economia libidinal
racializada31. Consoante Drabinski (2019), a psicanálise forneceu a Fanon uma linguagem
para descrever os efeitos dos desejos com base no racismo antinegro e propiciou a
31
Publicado pela primeira vez em 1974, “Libidinal Economy” é uma obra importante da filosofia
continental do século XX. Nela, Jean-François Lyotard desenvolveu a ideia de economias impulsionadas
por “energias” ou “intensidades” libidinais que ele afirma fluir por todas as estruturas, como o corpo
humano e eventos políticos ou sociais. Ele usa essa ideia para interpretar uma gama diversificada de
assuntos, incluindo economia política, marxismo, política sexual, semiótica e psicanálise.
105
compreensão de como as noções de poder, de personificação e de individualidade de
gênero são organizadas e instituídas a partir de dentro, por meio da prática colonial de
racismo. Além disso, Drabinski explica que Fanon revelou, em sua crítica e em seu
reaproveitamento da Psicanálise, não só as novas camadas de patologias por parte do
colonizador, mas também as novas camadas de patologia por parte do colonizado, que
não pode ter uma psique intacta. Isso contribui para o entendimento que Fanon teve acerca
da incapacidade da psicanálise europeia de compreender a situação colonial, visto que a
negritude requer modificações no método de atuação, especialmente se esse método
propiciar espaço para resistência, rebelião e libertação (DRABINSKI, 2019).
Além de outros assuntos, é, ainda, relevante observar que Fanon ofereceu uma
leitura crítica da dialética relacionada tanta à psicologia de Alfred Adler quanto à filosofia
de Hegel. De acordo com Drabinski (2019), a discussão sobre a dialética refere-se ao
reconhecimento: o reconhecimento da negritude, da subjetividade e, consequentemente,
da humanidade. Fanon foi, segundo Drabinski, crítico do pensamento dialético e assimila,
ao mesmo tempo, lições dele. Em particular, Fanon interessa-se em conhecer como uma
dialética de reconhecimento pode significar a elevação da pessoa negra a um nível de
humanidade formado pelas pessoas brancas e modelado nestas. A argumentação
desenvolvida por Fanon teve, conforme Drabinski, o intuito de contestar esse
desenvolvimento teórico, de maneira a oferecer formas alternativas de pensar o futuro.
Nesse sentido, Drabinski esclarece que Fanon rejeitou a concepção de reconhecimento
que diz respeito a uma ideia pré-formada do humano, de modo que suspeite de que tal
ideia seja sempre racializada. Fanon desconfiou, também, do método dialético que
proceda de uma lógica de reconhecimento, caso este advenha de um raciocínio ou de uma
lógica colonial. Em vez disso, nos termos da metodologia hegeliana, Fanon está
interessado, segundo Drabinski, não só em conhecer como essa dialética expõe a
dependência conceitual do colonizador em relação ao colonizado, mas também saber
como o confronto – o trabalho de negação no pensamento dialético – almeja eliminar
formas preexistentes de relação. Se estas forem extinguidas, é possível, dessa forma,
algum tipo de revolução, em que a humanidade do negro colonizado possa emergir, pela
primeira vez, em seus próprios termos. Drabinski entende que o pensamento de Fanon
direciona-se, portanto, ao futuro, de sorte que fica evidente a pergunta: o que poderia ser
a negritude depois do colonialismo? (DRABINSKI, 2019).
Na conclusão da obra Black Skin White Masks, Fanon seguiu essa noção de
futuridade e de uma dialética dedicada ao desmantelamento de formas preexistentes de
106
relação. Drabinski compreendeu que Fanon esboçou uma análise da história e da memória
que sustenta a perspectiva da libertação negra, incluindo mais a noção de que não estamos
nem circunscritos à história nem somos escravos do passado, de maneira que qualquer
futuro se torne possível. Além disso, Drabinski afirma que Fanon rejeitou a ideia de
reparações, visto que esta vincula os negros ao passado, tornado esse vínculo inexorável
à ideação de justiça. No lugar do passado, Fanon recorreu à abertura e à indeterminação
do futuro, que possibilitaria que os negros questionassem: “Ó meu corpo, faça-me sempre
um homem que questiona!” (FANON, p. 206, 2008). A subjetividade, no ato de
interrogar, é, conforme Drabinski, a solução de Fanon para o problema do aprisionamento
racial; é, também, a razão pelo qual os brancos estão presos na branquitude, e os negros,
na negritude. Portanto, o humano que questiona escapa dessa armadilha (DRABINSKI,
2019).
No que concerne ao emprego de conceitos de várias áreas do conhecimento,
especialmente da Psicanálise e da Psiquiatria, uma das características mais originais da
obra de Fanon referiu-se, exatamente, a este deslocamento contínuo entre a Política e a
Psiquiatria, entre o social e o subjetivo, e entre o inconsciente e a história. Isso justifica a
afirmação de que Fanon marcou o advento de uma “etnopsiquiatria crítica”, reunindo
prática clínica e reflexões teóricas sobre as intersecções do poder e da vida psíquica, em
relação à cultura, à história e à própria prática clínica. Fanon insistiu que os profissionais
médicos deveriam conhecer as condições históricas e sociais da formação da sociedade
em que praticam a psiquiatria, bem como suas práticas e crenças estruturais, para que
pudessem elaborar uma análise política e um diagnóstico legítimo das condições dos
pacientes (GIBSON; BENEDUCE, 2017).Para corroborar essa peculiaridade de Fanon,
Derrida (1991), em seu artigo cujo tema se refere à psicanálise e à política, afirmou que
Fanon foi excepcional e incomum em sua capacidade de questionar sua prática médica
em dimensões política, etnopsicanalítica e socioinstitucional.
De acordo com Gibson e Beneduce (2017, p.48),
Fanon não considerava nada como certo e garantido; ele entendeu que
cada abordagem teórica ou clínica deveria ser analisa dentro de um
contexto particular e de uma circunstância específica, de maneira a
revelar suas forças e limitações, suas perspectivas e suas cumplicidades.
Autores como Césaire com a noção de negritude; Hegel com a dialética
do reconhecimento; Mannoni com a situação colonial; Sartre com o
existencialismo; Jaspers com a psicopatologia; Lacan e até o “Jung
cósmico” foram, exaustivamente, explorados em um esforço para
107
entender a alienação colonial, então radicalmente criticada por Fanon,
uma vez que notou suas fraquezas e suas deficiências.
32
L'œil se noie, Les Mains parallèles et La Conspiration (1949); Peau noire, masques blancs (1952); L'An
V de la révolution algérienne (1959); Les Damnés de la Terre (1961); Pour la révolution africaine (1961);
L’expérience vécue du Noir (1951); Antillais et Africains (1955.)
108
reside, sobremaneira, na definição que este confere ao desejo. Hook aponta, ainda, que
Lacan concebeu a psicose como um ciclo de comportamento, de modo que a questão seria
entender o mecanismo organizador do desejo e de sua satisfação, cuja manifestação é
essencialmente social em sua origem, em seu exercício e em seu significado. Isso denota
que, com base na compreensão do “mecanismo organizador do desejo”, de acordo com
Hook, Fanon identificou a maneira pela qual a noção de desejo separa a psicanálise
lacaniana do domínio da Biologia, ao mesmo tempo em que priorizou a área do
intersubjetivo e do social. Lacan foi, nesse sentido, creditado por conceber uma
fenomenologia da personalidade, por meio de um postulado do determinismo
psicogenético e mediante a priorização de uma perspectiva intersubjetivista sobre a
loucura. Cada um desses conceitos é relevante, pois possibilitaram que Fanon rejeitasse
a etnopsiquiatria da Escola de Argel33, fundamentada nas ideias da constituição congênita
da psique, considerada biologicamente determinada, e baseadas na psiquiatria colonial
contemporânea (HOOK, 2020).
A busca de um entendimento sobre uma “lógica da loucura historicamente
fundada” e a busca de uma definição da história como uma “valorização sistemática dos
complexos coletivos” foram, segundo Gibson e Beneduce (2017), decisivas na leitura de
Lacan por Fanon. A expressão “lógica da loucura historicamente fundada” direciona, de
acordo com Hook (2020a), Lacan e Fanon a um objeto comum, visto que essa expressão
se insere não só nas teorizações de Fanon sobre a natureza patogênica da condição
colonial, mas também representa a preferência de Lacan por analisar as perturbações da
vida psíquica por meio de uma consideração pormenorizada da ordem simbólica das quais
essas inquietações emergem.
Segundo Hook (2020), é importante observar a razão pela qual Fanon considerou
Lacan como “o lógico da loucura”, uma vez que a este foi creditado a capacidade de
localizar e de compreender “o princípio organizador dentro da loucura”, ou seja, a lógica
da loucura. Desenvolver a ideia de uma lógica da loucura, de um princípio organizador
dentro da loucura, de complexos coletivos e de uma constituição do delírio é ressaltar um
33
A Escola de Psiquiatria de Argel foi fundada pelo psiquiatra francês Antoine Porot, que liderou pesquisa
sobre o racismo. Ele tentou justificar o racismo inerente à missão colonial francesa em Argel com base no
fato de que os argelinos, ou seja, os habitantes muçulmanos não etnicamente franceses, eram
biologicamente inferiores. Frantz Fanon discutiu suas teorias e o impacto na sociedade colonial argelina
em seu livro, “The Wretched of the Earth”. Fanon criticou, também, essa escola e seu fundador, Antoine
Porot (1876-1965), denunciando-o e a outros membros da escola por afirmarem que os argelinos
muçulmanos nativos eram preguiçosos, mentirosos, ladrões e criminosos natos, pois seus cérebros eram
dominados, como os dos vertebrados inferiores, pelos diencéfalos e as funções corticais dos cérebros
argelinos, se é que existiam, eram muito fracas. (KELLER, 2007).
109
modo de funcionamento e de organização psicológico. É, dessa forma, destacar a função
dos processos, dos mecanismos e das estruturas na vida psíquica (HOOK, 2020a).
Hook afirma que
Fanon não estava interessado apenas no reducionismo psicológico da
psicanálise e na reiteração das origens historicamente específicas e
fundamentalmente políticas do trauma; ele continuou também
preocupado com os mecanismos psíquicos de sua reprodução
individualizada. Dito de outra forma: a preocupação de Fanon não era
apenas com os conteúdos da experiência psíquica e como eles surgem
dentro das condições brutais da opressão colonial, ele também estava,
como psiquiatra, interessado nos processos de sua influência
traumática, e nas maneiras pelas quais estes se tornam internalizados,
subjetivados de forma ativamente “psicopatologizante” (HOOK, 2020
p.6).
34
A relação de poder dada entre colonizador e colonizado é investigada de maneira profunda por Fanon. A
estrutura preconceituosa da Europa, que se expandirá mais tarde devido à imposição de sua ideologia nos
países colonizados, ocorre porque o inconsciente coletivo europeu é baseado em um complexo de
autoridade, isto é, em uma ideia de ser humano superior, perpetuada ao longo dos séculos através de
materiais simbólicos, tais como mitos e lendas. Esse complexo gera no outro, no povo que sofre a
aniquilação de sua própria cultura, um complexo de inferioridade (FANON, 2008, p. 34). É o começo de
um trabalho epistemológico de relações baseadas naquilo que Bourdieu (2002) chama de violência
simbólica, que é invisível a suas próprias vítimas, que se exerce essencialmente pelas vias puramente
simbólicas da comunicação e do conhecimento, ou, mais precisamente, do desconhecimento, do
reconhecimento ou, em última instância, do sentimento. Essa relação social extraordinariamente ordinária
oferece também uma ocasião única de apreender a lógica da dominação, exercida em nome de um princípio
simbólico conhecido e reconhecido tanto pelo dominante quanto pelo dominado, de uma língua (ou uma
maneira de falar), de um estilo de vida (ou uma maneira de pensar, de falar ou de agir) e, mais geralmente,
de uma propriedade distintiva, emblema ou estigma, dos quais o mais eficiente simbolicamente é essa
propriedade corporal inteiramente arbitrária e não predicativa que é a cor da pele. Além disso, quando o
homem branco ocidental, que já traz consigo um conflito de diferenciações dentro de sua própria cultura
(homem/mulher, heterossexual/homossexual, adulto/criança etc.), se defronta com não brancos e não
ocidentais, o olhar é projetado com certa fobia, porque seu inconsciente coletivo é o da superioridade, da
universalidade. Assim, ele lega ao outro o mesmo estado de inferioridade que lega aos diferentes de sua
própria cultura (FERRARA, 2019).
35
Fanon (2008) explica que o surgimento da negritude nas Antilhas adveio da insatisfação da população
no que se refere à ideologia mulata, que conferia importância à mestiçagem. A cor de pele preta era tida
como deselegante e deplorável. Para mudar essa visão e branquear sua linhagem genealógica, era necessário
tornar-se branco, seja por meio da utilização preciosista da língua francesa e dos costumes europeus seja
mediante casamento com um indivíduo menos preto, de modo a ocultar e eliminar os traços africanos. Essa
110
corporal advindo do racismo colonial, à phobogenesis36 do racismo branco. Nesse
sentido, a influência de Lacan sobre Fanon não pode somente se limitar a enfatizar os
múltiplos fatores históricos subjacentes ao Colonialismo, embora estes sejam crucias no
combate ao reducionismo psicológico de parte da psicanálise, mas deve, segundo Hook
(2020a), salientar, sobretudo, os mecanismos e os processos psíquicos envolvidos.
De acordo com Hook (2020), o interesse geral de Fanon por Lacan contemplou
três assuntos. O primeiro diz respeito ao trabalho de Lacan sobre o “estágio do espelho”;
o segundo refere-se à obra de Lacan “Os Complexos Familiares”, cujo conteúdo Fanon
parece ter considerado útil para desconstruir a universalidade do complexo de Édipo; e o
terceiro concerne ao desenvolvimento conceitual de Lacan sobre a causalidade psíquica.
Todos os três assuntos, abordados por Lacan, contêm temáticas e significados decisivos,
dos quais Fanon extraiu e analisou conteúdos relevantes, com o intuito de elaborar uma
abordagem crítica acerca da alienação, encontrada em sua obra “Black Skin White
Masks”. Além disso, pode-se identificar mais três temas que desempenharam uma função
crucial nas teorizações de Fanon: as ideias de Lacan sobre méconnaissance37; a
preferência de Lacan por uma noção de “vida psíquica localizada historicamente”; e a
prioridade concedida por Lacan à função da paranoia38 na intersubjetividade humana
(HOOK, 2020).
concepção foi nomeada, e posteriormente criticada por Fanon, como uma ideologia de lactificação, que
remove a história e as narrativas do imaginário social do povo preto.
36
Phobogenesis está relacionada ao objeto fóbico, que se refere à coisa ou à pessoa que causa sentimentos
irracionais de pavor, medo e ódio. A ameaça do objeto fóbico é irracionalmente exagerada e é, em regra,
considerada como possuidora de intenções malignas e prejudiciais. Além disso, o objeto fóbico induz, não
raro, uma sensação de ansiedade paranoica, agindo, também, como uma fonte de atração inconsciente
(HOOK, 2004b, p. 121).
37
Méconnaissance tem o sentido de "falha em reconhecer" ou "má interpretação". O conceito é central no
pensamento de Lacan, pois, para ele, o conhecimento (connaissance) está inextricavelmente ligado ao
termo méconnaissance. Esse termo francês méconnaissance corresponde aproximadamente às palavras
inglesas "misunderstanding" and "misrecognition". Por sua vez, o termo francês não é geralmente
traduzido, a fim de demostrar sua estreita relação com o termo conaissance ("conhecimento").
Méconnaissance é um processo de autoidentificação no qual um sujeito assume uma identidade que
confunde com a sua. O conceito deriva do relato de Jacques Lacan sobre o estágio do espelho no
desenvolvimento da infância, no qual a criança (com menos de 18 meses) se vê no espelho e confunde essa
imagem com ela mesma. Embora a imagem no espelho seja obviamente uma imagem “deles” (da criança
e do Eu dela), na verdade não são eles, pois a criança falha em fazer essa distinção. Assim, o “Eu” da
criança é produto de seu imaginário e fruto de uma ilusão. O crítico marxista Louis Althusser adapta essa
ideia no desenvolvimento de seu conceito de interpelação, segundo o qual a sociedade constantemente
convoca seus súditos a adotar uma identidade particular (cidadão, consumidor, eleitor etc.). Mas, ao fazê-
lo, o sujeito é alienado de seu “verdadeiro” Eu. (BUCHANAN, 2020).
38
A paranoia ou ansiedade paranoica: crença irracional, mas consistente, de que alguém está sendo
sistematicamente prejudicado, perseguido ou atacado por um objeto mau, isto é, uma pessoa, um grupo ou
uma coisa que pretende prejudicar a quem persegue (HOOK, 2004b, p. 123).
111
É relevante observar o modo pelo qual a dialética entre o reconhecimento e o
méconnaissance interessava a Fanon, na medida em que esse processo desempenhou uma
função importante na sua análise subversiva da alienação e das ideias repressivas entre os
colonizados. Gibson e Beneduce (2017) apresentaram as noções fanonianas acerca de
uma “psicologia de máscara branca” ou de uma “lactificação”, que representam os desejos
inconscientes do colonizado de se tornar branco e de se apoderar, de alguma maneira, da
branquitude. Essas identificações e esses desejos seriam, nesse sentido, alienantes, e a
ideia de Lacan de que as tentativas do ego de se reconhecer e de obter reconhecimento
social seria essencialmente formas de méconnaissance; essa ideia de Lacan conferiu, por
isso, um novo entendimento e uma nova pertinência à análise, realizada por Fanon, das
circunstâncias politicamente opressivas do racismo colonial (HOOK, 2020).
Considerando que, para Lacan, o ego falha, frequentemente, em reconhecer a si
mesmo em imagens e em outros, estes que servem de base de identificação para o próprio
ego, é interessante analisar a qualidade inerentemente paranoica e delirante deste. Hook
(2020) demonstra que, se o “eu é um Outro” e “um Outro é eu”, como no caso do estágio
do “espelho de Lacan”, o que o outro faz tem sempre a ver com o eu, com o ego que
percebe39. Nesse sentido, o que Lacan aborda, como uma qualidade inerente do ego, pode
ser aplicado ao âmbito colonial, em que as realidades e as dinâmicas políticas podem ser
legitimamente caracterizadas como paranoicas. Em The Wretched of the Earth, Fanon
argumentou que não há colonizado que não deseje ou aspire, pelo menos uma vez, estar
no lugar do colono, e não há colonizador que não tema a possibilidade de represálias
39
A afirmação “o Eu é um Outro" denota que a identidade não é plenamente interior, mas tem um vínculo
de exterioridade ao sujeito. Segundo Freud, a personalidade, que tem relação com a identidade, é um ideal,
de modo que, desde a infância, momento em que aprendemos as regras e a moral por meio dos pais, dos
professores e das figuras públicas, adquire-se conhecimento para compreender o modo pelo qual se deve
comportar na sociedade, cerceando ações e impondo sensação de culpa. Essas exigências do Outro geram a
consciência de uma personalidade ideal no sujeito, embora esse sujeito se possa sentir diferente desse ideal.
Pode-se identificar a existência de uma sensação de que o que se é ou deveria ser está em outro lugar,
porventura em alguma coisa ou, sobretudo, em alguém, que tenha qualidades que desejamos. Esse processo
pode resultar em comparações: quando alguém é melhor e mais bem-sucedido em algo que o sujeito deseja,
a inveja ou a frustração aparece nesse sujeito, como se a existência deste tivesse sido colocada em perigo.
Lacan (1996) explica que essa sensação se refere a um processo de perda, como se o indivíduo bem-sucedido
usurpasse a identidade desse sujeito, ao ser tudo aquilo que, de forma ideal, esse sujeito projetou. Nesse
sentido, torna-se mais claro a expressão lacaniana “Outro é meu Eu”. Como escapar, então, desses cotejos
opressivos? Segundo Lacan (1996), o sujeito tem de reconhecer que espelha sobre o outro suas demandas e
seus desejos irrealizados, bem como deve reconhecer que o outro real é somente um outro. Esse processo de
um encontrar-se no outro é, portanto, um movimento realizado com certa recorrência, o que implica uma
relação basicamente proporcional nesse desenvolvimento da identificação: a ausência de empecilhos com o
qual o sujeito se depara, a fim de se reconhecer fora de si, é correspondente à miríade de obstáculos com o
qual esse sujeito se de depara a fim de se encontrar dentro de si, de sorte que, ao se observar, o sujeito não
encontrará a si, mas deparar-se-á com o Outro, que constitui um ideal no desenvolvimento e na história desse
sujeito.
112
violentas do colonizado. Esse processo dialético pode ser analisado e interpretado por
meio do desenvolvimento e da introdução do contexto histórico da dominação colonial,
com base nas ideias lacanianas do ego, este como sendo paranoico e nunca inteiramente
separável de seu outros. (HOOK, 2020).
A discussão sobre o méconnaissance do ego esclarece, também, o tema acerca da
causalidade psíquica40. Enquanto se havia considerado as crenças delirantes41 como
resultado de um tipo de déficit congênito ou falta de controle, Lacan, como argumentou
Fanon, abordou tais crenças como fundamentadas na dinâmica da méconnaissance
(HOOK, 2020). Embora as crenças delirantes representassem uma versão mais extrema
da méconnaissance, esta era, para Lacan, esperada de cada ego e não deveria ser analisada
como necessariamente psicopatológico. De acordo, com Hook (2020), pode-se
compreender, nesse sentido, o valor de tais ideias para Fanon, que poderia argumentar,
doravante, que os sentimentos de perseguição, de alienação e de ilusão, gerados nos
indivíduos colonizados, no contexto das relações coloniais, não eram o resultado de
déficits congênitos ou, para a psiquiatria colonial, como no caso da Escola de Argel,
inferioridades inerentes. Hook afirma, por sua vez, que essas são qualidades estruturais
de qualquer ego, que seriam exacerbadas em situações particulares, como no contexto
opressivo do colonialismo (HOOK, 2020).
40
Em um artigo de 1946, intitulado “Apresentação sobre a causalidade psíquica” (2006a), Lacan atacou
veementemente o alegado determinismo orgânico de Henri Ey, apelando não apenas para a psicanálise, mas
também para a filosofia, a fim de fazer uma precisa distinção entre realidade e verdade. Para sujeitos
humanos, ele argumentou, a causalidade psíquica não é uma questão da realidade quantificável que a física
foi capaz de modelar de forma tão impressionante, mas sim, uma questão da verdade subjetiva que a
linguagem nunca pôde capturar totalmente (WRIGHT, 2021).
41
Crença delirante, na qualidade de um elemento que constitui um quadro psicótico, é frequentemente
definida como uma falsa crença que é sustentada a despeito de evidência contrária. Uma crença falsa que
não é justificável em termos do background educacional e cultural do paciente, e que é sustentada com
completa convicção e que não pode ser abalada por argumentos (HARRE e LAMB, 1986). Flew (1973, p.
94) estabelece como critério da presença de uma crença delirante a condição de ela ser completamente
indefensável. Para o autor, uma crença é considerada delirante na medida em que ela descredita o sujeito
da crença e, indiretamente, a si mesma. Glover (1970, p. 134-135), por sua vez, argumenta que a crença
delirante é uma categoria especial de crenças falsas, estabelecendo evidência existente contra ela como o
critério para considerar como delirante uma dada crença. Segundo ele, o critério da falsidade torna delirante
uma dada crença quando essa falsa crença não apresenta abertura para persuasão racional, quando ela não
é alterada diante de uma evidência existente contra ela. Pelo contrário, mesmo diante disso, de acordo com
Glover, crenças falsas delirantes mantêm-se não abaladas. Em situações nas quais eu sustento uma crença
falsa, a despeito de ser apresentada uma esmagadora evidência contra ela e consequentemente o meu agir
não poder ser explicado em termos de crenças comuns em meu grupo ou sociedade, a única explicação que
parece restar é que minhas habilidades de fazer julgamentos com base em fatos práticos estão prejudicadas
em uma extensão não usual (GLOVER, 1970, p. 135, tradução nossa). Entretanto, a despeito de essa
definição de crença delirante ser encontrada na maior parte dos modernos manuais de Psiquiatria e de
Psicologia e parecer ser amplamente aceita, nem todas as crenças delirantes são culturalmente atípicas, nem
incorrigíveis e nem necessariamente falsas crenças (CORREA, 2008).
113
É interessante notar que, de acordo com Gibson e Beneduce (2017), o trabalho de
Lacan sobre causalidade psíquica encontrou dificuldades em relação à compreensão
universalista do complexo de Édipo. No caso de Fanon, este considerou legítima a
afirmação de Lacan de que o complexo de Édipo não surgiu com a história do ser humano,
mas emergiu do prelúdio da história. Desse modo, Hook (2020) argumenta que foi
importante que Fanon tenha utilizado o pensamento de Lacan como parte de uma crítica
dos conceitos psicanalíticos mais doutrinários. Isso possibilitou a Fanon, conforme
Gibson e Beneduce (2017), obter uma compreensão profunda para a elaboração de um
modelo de desenvolvimento psíquico baseado na cultura e na história, de maneira a
extrapolar o conceito de ontogenia de Freud42. O empenho de Lacan, para compreender
a constituição do delírio e o sentido da loucura, não só instigou Fanon a discutir sobre a
teoria de Lacan em sua dissertação, mas também possibilitou a Fanon usar os conceitos
lacanianos como mecanismos de crítica às versões reducionistas de um freudismo
neurofisiológico. Além disso, não só o “estágio do espelho”, mas também a crítica ao
complexo de Édipo foram bases conceituais determinantes no entendimento da alienação
colonial observados por Fanon, em Black Skin (GIBSON; BENEDUCE, 2017).
Hook (2020) explica, ainda, que a leitura lacaniana da psicanálise de Freud, que
se manifesta na expressão “o inconsciente é estruturado como uma linguagem",
proporcionou meios para que teóricos da Ciências Sociais fundamentassem uma
explicação psicodinâmica da subjetividade dentro de uma ordem simbólica e dentro de
condições materiais e sociais específicas. Isso possibilitou à Psicanálise oferecer, segundo
Hook (2020), uma leitura crítica dessa ordem, como uma ordem racista e heteropatriarcal,
em vez de apoiá-la. Nesse sentido, com a diligência de Lacan em relação à ordem
simbólica e com a constante reiteração de Fanon acerca do contexto colonial, como um
42
Na Psicanálise, a ontogenia é o estudo de como ocorre o desenvolvimento mental e emocional de uma
pessoa ao longo de sua vida. Observa-se como os pensamentos, as emoções e os comportamentos do
indivíduo foram desenvolvidos e moldados ao longo da história desse indivíduo. Na ontogenia, considera-
se, nesse sentido, o estudo da história da vida do indivíduo e dos eventos e das experiências que mais o
impactaram. No caso de Freud, este usou o termo filogênese para abranger o processo de evolução humana
desde suas origens mais remotas. Ele levantou a hipótese de que o desenvolvimento individual (ontogênese)
repete os principais estágios da evolução, com os eventos traumáticos da história da humanidade
reaparecendo e tendo uma influência estrutural no indivíduo. Isso explicaria a universalidade das fantasias
primais, o complexo de Édipo e, mais globalmente, um esboço geral para o desenvolvimento e
funcionamento do aparelho psíquico humano (FREUD, 1918). Por sua vez, Frantz Fanon adaptou o
conceito de ontogenia de Freud. Fanon desenvolveu os conceitos de sociogenia e sociogênese para explicar
como fenômenos produzidos socialmente, como a pobreza ou o crime, estão ligados a certos grupos como
se esses grupos fossem biologicamente – ou ontogeneticamente – predispostos a esses fenômenos. A fusão
de sociogenia e ontogenia, argumentou Fanon, desempenha um papel importante na formação social da
raça (WYNTER, 1999).
114
elemento balizador da vida psíquica do colonizado, Hook assevera que não se pode mais
permitir uma forma de engajamento psicanalítico que focalize o intrapsíquico como
separado do histórico, do político e do sociossimbólico (HOOK, 2020).
Outro ponto importante que Hook (2020) ressalta é o fato de que Fanon parece ter
ficado particularmente impressionado com a insistência de Lacan em relação à formação
social da personalidade, ao endossar a opinião deste de que os fatores biológicos não
podem, por si mesmos, causar a loucura. Nesse sentido, a despeito de Fanon não ser
lacaniano, na medida em que seu entusiasmo pelo pensamento de Lacan foi moderado e
por ter se inspirado em uma miríade de outros pensadores dos domínios da Psiquiatria,
da Antropologia e da Filosofia, é patente que Fanon compartilhava, com Lacan, o
compromisso de apreender a categoria social da realidade humana. Talvez, mais
importante, foi a compreensão de Fanon acerca da centralidade que Lacan atribuiu à
linguagem, tanto para a experiência humana quanto para a psicopatologia, o que levou
Fanon a afirmar que o fenômeno da loucura é indissociável da linguagem (HOOK, 2020).
Além disso, Hook argumenta que Fanon compreendeu, ainda que de maneira introdutória,
as noções iniciais dos três registros de Lacan: o imaginário (como evidenciado nos
conceitos de estágio do espelho, identificação imaginária e méconnaissance), o simbólico
(a função central da linguagem, do desejo e do intersubjetivo) e o real (pulsão de morte e
a noção de discordância essencial). É importante destacar, por sua vez, que, embora Fanon
se aproximasse das ideias lacanianas e tivesse certa familiaridade com o pensamento de
Lacan, isso não sugere que Fanon concordasse, fundamental e inteiramente, com esses
conceitos (HOOK, 2020).
Segundo David (2011), Fanon almejava elaborar um entendimento da cultura que
fosse psicopolítica, mas uma psicopolítica que, na perspectiva fanoniana acerca do
inconsciente e da realidade colonial, demonstrasse como a fantasia racista pode não só
ser totalmente integrada e institucionalizada às relações sociais, mas também pode
permanecer como um tipo de memória traumática, apesar de negada, na vida inconsciente
do colonizado. Isso significa que se deve considerar a relação do indivíduo com a situação
cultural, em que uma relação fundamentada na ordem simbólica que molda a
subjetividade humana, isto é, o “grande Outro”, em termos lacanianos, seja,
necessariamente, uma relação mediada tanto por fatores estruturais – como os históricos,
os sociais e os políticos – quanto mediada por particularidades da fantasia e do
inconsciente. Hook (2020) explica que analisar a dinâmica do racismo de uma forma
essencialmente psicológica, em uma relação dual ou narcísica entre o eu e o outro, é
115
distanciar-se da função estruturante do simbólico, desse “grande Outro”, no psiquismo do
sujeito. Isso esclarece como a teoria lacaniana desempenhou uma função de apoio na
expansão do entendimento analítico de Fanon, ao auxiliá-lo na compreensão de que o
racismo não pode ser circunscrito somente às análises psicológicas, embora a onipresença
e a inevitabilidade da consciência racial e racista nas sociedades colonizadas fossem
elementos permanentemente psicológicos entres os colonizados (HOOK, 2020).
De acordo com Hook (2020a), a difusão do racismo como um esquema cultural,
que sobrepõe e determina a experiência individual, é parte do que tornou o pensamento
de Fanon tão relevante para os teóricos críticos da raça, do discurso e dos estudos
culturais. Fanon ambicionava, todavia, ir além dos conteúdos críticos do discurso e das
formas representacionais de dominação, pois se empenhou em compreender o que se
encontra oculto e o que se estrutura nesses conteúdos e nessas representações, além
objetivar entender o que organizava e assegurava a repetição dessas ideias (HOOK,
2020). Um exemplo dessa tentativa de ultrapassar esses conteúdos críticos e de
demonstrar o que se apresenta oculto nestes refere-se aos interesses teóricos de Fanon por
um “modelo político de fantasia”, que pode ser representado pelo “mito do negro”, cujo
conteúdo é uma estruturação desse modelo da fantasia, em que os parâmetros
configuradores da ideação racista, embora não sejam explicitamente declarados, ainda
condicionam a compreensão racial. Segundo Hook,
o “mito do negro” é um sistema racista de representações e atitudes que
é, em certo sentido, mais substancial – mais socialmente enraizado – do
que a experiência psicológica individual. Fanon passa a usar o termo
"inconsciente coletivo europeu" para descrever quão difundida e
sistemática é essa imagem da negritude: "o arquétipo dos valores mais
baixos é representado pelo negro" (HOOK, p. 10, 2020). Além disso,
Hook afirma que o "mito do negro" não é ahistórico, universal ou
natural; tem, em vez disso, uma função política precisa, afirma Fanon,
que é atuar como um repositório – uma figura na qual os brancos
simbolizam todas as suas emoções inferiores e inclinações mais baixas.
Aqui, novamente, podemos identificar o mecanismo do bode
expiatório, juntamente com o da projeção. Uma descrição do racismo,
então, é que ele envolve uma tentativa de externalizar, de "projetar",
aquelas qualidades de si que se considera repreensíveis; "atribuir [suas]
origens a outra pessoa" (Fanon, 1986, 190). Evita-se, assim, ter de
confrontar certas qualidades do eu. É assim que o "homem negro
representa o lado ruim do caráter". O que podemos perceber no racismo
branco, então, é "uma expressão dos maus instintos, da escuridão
inerente a todo ego, do selvagem incivilizado, do negro que dorme em
todo homem branco. Podemos, dessa forma, empregar,
condicionalmente, a noção de um "inconsciente coletivo europeu", para
entender algo sobre o funcionamento do racismo, mas, para Fanon
(1986), o inconsciente coletivo "não depende da hereditariedade
cerebral: é o resultado da imposição irrefletida de uma cultura. Desse
116
modo, a versão de Fanon do "inconsciente coletivo europeu" "é pura e
simplesmente a soma de preconceitos, mitos, atitudes coletivas de um
determinado grupo”. A tentativa, como McCulloch (1983) coloca, é
transformar esse conceito de inconsciente coletivo: "de um mecanismo
ahistórico, localizado na matéria cerebral herdada, para uma estrutura
psíquica historicamente específica, que está aberta ao reforço social
contínuo" (HOOK, 2004, p. 123).
43
Na área da Psicologia, engrama significa uma marca definitivamente impressa na psique advinda de uma
experiência física (HOUAISS, 2023).
117
aspecto individual, mas especialmente ao aspecto universal e coletivo. Com o intuito de
legitimar esse argumento, Hook enfatiza alguns conceitos cruciais da teoria lacaniana. O
autor explica que, primeiramente, a psicanálise lacaniana não se dedica ao intrassubjetivo,
mas se aproxima da psicologia intersubjetiva. Além disso, o fato de que a ordem
simbólica, o grande Outro, recebe uma função constitutiva na formação do sujeito – que
é sempre o sujeito do significante – denota que o inconsciente lacaniano é, de fato,
externo, em vez de interno. Isso significa que entender a noção de inconsciente para Lacan
é compreender que o inconsciente se manifesta a partir da relação social, cuja interação é
sempre do sujeito com o “grande Outro”. Com base nessa concepção, Hook (2020)
apresenta as máximas lacanianas mais conhecidas, como “o desejo é sempre o desejo do
Outro” e “o inconsciente é o discurso do Outro”. Segundo Hook, a teoria lacaniana seria,
portanto, o aparato conceitual psicanalítico mais apto e qualificado para compreender a
função determinante do político, que é, basicamente, o que Fanon deseja expor em Black
Skin White Masks (HOOK, 2020).
Finalmente, Peter Hudson (2013), ao analisar a maneira pela qual Fanon
empregou a psicanálise lacaniana em Black Skin, demonstra a importância da formulação
do conceito de inconsciente colonial por Fanon, sobretudo para os estudos da abordagem
pós-colonial. Esse conceito é relevante para o entendimento do “retorno do recalcado4445
colonial”, que se refere ao reaparecimento de formas frequentemente intensas e não
reconstituídas de racismo em sociedades democráticas e liberais. Além disso, Hudson
expõe, em termo lacanianos, a relação assimétrica entre “negritude” e o significante
44
O conceito de retorno do recalcado, primeiramente empregado por Freud (1915), é um conceito
psicanalítico que explica o processo psíquico por meio do qual os conteúdos que foram recalcados
(reprimidos ou expulsos da consciência) tendem a reaparecer de forma distorcida e deturpada - retornando,
desse modo, como sintomas, sonhos, atos falhos e lapsus, fantasias oníricas diurnas e como sintomas
psicopatológicos). Essas construções do inconsciente, mediante o qual opera o retorno do recalcado,
constituem formações transacionais, que são o resultado de uma espécie de negociação entre a instância
psíquica repressora e as representações reprimidas, representantes da pulsão (LAPLANCHE; PONTALIS,
1991).
45
Lacan (1988) nos oferece a noção de que o retorno do recalcado e o recalcado são um só e o mesmo. Essa
afirmação correlaciona-se à ideia de que o inconsciente não é um espaço interno ou uma mentalidade. O
inconsciente lacaniano não é uma “psicologia profunda”, uma coleção irredutivelmente intrapsíquica de
conteúdos e impulsos. É, ao contrário, um inconsciente “externo”, que é moldado, tornado possível por
práticas de linguagem, pela utilização e disposição de palavras, significantes. É importante ressaltar aqui a
ideia do significante como mais ampla do que apenas as palavras, pois, afinal, as imagens são significantes,
assim como os semáforos e as instâncias da língua de sinais, cada qual cumprindo a função de significante.
Ou seja, cada um desses exemplos pode ser lido, carregando um significado para alguém – na verdade, para
um outro – mesmo que o que eles signifiquem nem sempre é imediatamente evidente. Além disso, como
todos os significantes para Lacan, estes são polivalentes, podendo conter, simultaneamente, mais de um
significado possível. Como, então, abordar a ideia de Lacan de que o recalcado e o retorno do recalcado
são a mesma coisa? Considerando que, ao falar, eu crio a possibilidade de um recalcado – ou, mais
precisamente, de um potencial “retorno do recalcado” (HOOK, 2013, p. 7).
118
mestre da “brancura”, com cujo conteúdo os sujeitos colonizadores se identificam, de
maneira que lhes confere a ilusão de plena autonomia (HUDSON, 2013). Hudson
acrescenta, ainda, que os sujeitos negros não só se identificam com o significante mestre,
mas também se percebem por meio deste. Esse processo psicológico propicia, segundo
Hudson, uma imagem corporal46 ordenada e equilibrada, que nos termos de Fanon, seria
um “esquema corporal47” viável para aqueles que são reconhecidos como brancos.
46
Partindo da psicanálise, é importante pensar na questão da imagem corporal através da diferença entre
esquema e imagem corporal. O primeiro diz respeito a um corpo biológico, provido de pernas, braços, peso,
medidas; entretanto o corpo representado pelo sujeito não é este, o real da carne. “O esquema corporal é
uma realidade de fato, sendo de certa forma nosso viver carnal no contato com o mundo físico; reporta o
corpo atual no espaço à experiência imediata. Ele pode ser independente da linguagem, é inconsciente, pré-
consciente e consciente. O esquema corporal é, em princípio, o mesmo para todos os indivíduos
(aproximadamente da mesma idade, sob o mesmo clima) da espécie humana. A imagem do corpo, em
contrapartida, é peculiar a cada um: está ligada ao sujeito e à sua história. Ela é específica de um tipo de
relação libidinal. A imagem do corpo é a síntese viva de nossas experiências. Ela pode ser considerada
como a encarnação simbólica inconsciente do sujeito desejante. A imagem do corpo é, a cada momento,
memória inconsciente de todo o vivido relacional e, ao mesmo tempo, ela é atual, viva, em situação
dinâmica, simultaneamente narcísica e interrelacional: camuflável ou atualizável na relação aqui e agora,
por qualquer expressão linguareira, desenho, modelagem, invenção musical, plástica, assim como mímica
e gestos. É graças à nossa imagem do corpo sustentada por – e que se cruza com – nosso esquema corporal
que podemos entrar em comunicação com outrem” (DOLTO, 1984, p. 14-15). O esquema corporal diz
respeito ao tempo do amadurecimento neurológico, do desenvolvimento orgânico, de um corpo estudado
fisicamente, com seus órgãos e membros trabalhados pontualmente. Já a imagem corporal é inconsciente,
é aquela da qual o sujeito se apropria a partir de seu reconhecimento no espelho, e quem realiza o processo
de identificação especular para a criança é a mãe. A imagem corporal está diretamente ligada ao fato de o
corpo estar inserido na linguagem, a este corpo psíquico, da psicanálise, delineada pela mãe com sua história
e inserida no social. A imagem corporal se dá de forma singular para cada um, é constitutiva do sujeito e
inconsciente. O corpo para se constituir necessita do olhar do Outro e a partir das inscrições que da mãe
(Outro) fizer, nasce um sujeito singular provido de uma imagem corporal própria.
47
“Para conceituar este processo de interiorização – ou o racismo internalizado –, autores reconhecem a
originalidade e o pioneirismo da obra de Fanon (2008), "Pele negra, máscaras brancas", no campo das
análises fenomenológicas (DeRoo, 2013; Heinämaa & Jardine, 2021; Marrato, 2021; Ngo, 2017; Staudigl,
2012;). Isto nos permite dizer que é, à obra de Fanon (2008), que a descrição fenomenológica da vivência
racializada remonta de forma paradigmática. O autor conceitua a desumanização ocorrida em um contexto
colonialista como inferiorização e, também, como "epidermização" (Fanon, 2008, p. 28). A conceituação
de Fanon sugere que a raça se apresenta sedimentada na corporeidade, ou seja, no corpo considerado pela
perspectiva subjetiva e realizador de sentido, que pode ser tomado como o correlato funcionamento
cinestésico e sinestésico pelo qual os objetos corporais aparecem e recebem a sua forma significativa. É por
esta espécie de âncora fenomenológica da análise cultural (Csordas, 2008) que Fanon destrinchou as
camadas de constituição da raça e do racismo. O autor aborda como o esquema corporal do negro
colonizado se encontra alterado ao se deparar com o olhar do Outro branco colonizador. O autor descreve,
por exemplo, um momento em que, ao dividir o espaço de um trem com Outros brancos, colonizadores, a
sua experiência espacial, por exemplo, é alterada e seu corpo parece ficar distorcido. O corpo do negro é
“atacado” pelo olhar do branco colonizador e por seus discursos, presentes em diferentes veículos de
comunicação e produtos da cultura dominante. Fanon aborda o conceito de ‘esquema corporal’ de forma
um tanto diferente das linhas estudadas por Merleau Ponty (2006) em “Fenomenologia da percepção”,
embora em diálogo com elas. Para Fanon (2008), o esquema corporal não fica restrito a sentimentos
corporais e cinestésicos, mas envolve uma fundamental dimensão narrativa e intersubjetiva. Pois, para ele,
o olhar do Outro – o homem branco colonizador – e os fragmentos narrativos do discurso do branco
constituem, sobre o esquema corporal básico, uma camada de significação distinta, as quais o alteram. É
isso que ele conceituou como ‘esquema histórico-racial’ (Fanon, 2008, p. 108). Baseando-se na teoria
intersubjetiva da corporeidade desenvolvida por Sartre (1994), em “O Ser e o Nada”, Fanon (2008) propôs
que os conflitos colocados entre a imagem corporal do negro colonizado e a violência discriminativa do
olhar do branco levam a um “colapso” do esquema corporal e, por conseguinte, dão origem ao que o autor
119
Hudson (2013) argumenta, por sua vez, que, no caso daqueles que não são
reconhecidos como brancos, a imagem corporal é instável, desarmônica e ansiosa,
responsável por uma espécie de desmembramento corporal e psíquico, em que o efeito
do espelho branco no sujeito negro desmantela as características de unificação e de
controle neste. Ao se deparar com a estrutura do “ser branco”, em que se procura
reconhecer, o negro observa-se, dessa maneira, como inexistente. Essa fragmentação do
sujeito negro apresenta-se por meio de duas realidades inexequíveis: “ser branco” e “ser
negro”. O ser branco é impossível, em função do contexto colonial, e o ser negro é uma
impossibilidade per si, uma vez que não há ser negro, o que engendra a ideia de um vazio
ontológico do sujeito negro colonizado (HUDSON, 2013). Hudson observa que o
conhecimento de Fanon acerca do estágio do espelho de Lacan, da função do significante,
do simbólico colonial e do conceito do grande Outro colonial contribuiu para que este
realizasse a relação entre os conceitos lacanianos do imaginário – que se refere às noções
imagéticas de corpo e à identidade – e do simbólico – que diz respeito à linguagem, à
estrutura social e às normas.
Dessa maneira, Hudson (2013) explica que, ao analisar a obra de Fanon, o
simbólico colonial foi constituído para que o sujeito negro não tivesse em que se apoiar
– nem mesmo em uma identidade, o que demonstra como é, dentro da matriz colonial, o
movimento ontológico, cuja abrangência compreende a identidade colonial e a
experiência vivida. O sentido de “branquitude” e de “negritude” é, dessa forma,
120
disseminado por um conjunto de suposições, hipóteses, histórias, preconceitos e mitos,
de forma que esse conjunto pode ser classificado como o “Grande Outro Colonial”, o
simbólico, em cujo âmbito a relação colonial é formada e reproduzida. Esse grande Outro
é branco, pois a brancura é o significante mestre; todas as identidades são,
consequentemente, brancas sob o colonialismo (HUDSON, 2013). Além disso, Hook
(2020) explica que o conceito lacaniano do real, aquele que escapa da simbolização e da
domesticação do imaginário, é utilizado com base em uma crítica particular de Fanon. É
importante ressaltar que, na teoria lacaniana, a simbolização gera um excesso, um tipo de
resíduo extradiscursivo, que não pode ser integrado na própria ordem simbólica. Em
termos lacanianos, essa resistência à simbolização é representada por meio do que Lacan
classificou de “objeto a”, que é um tipo de elemento externo que não integra à ordem
simbólica e é, concomitantemente, produzido por esta. Fundamentada no processo e na
dinâmica da ordem simbólica, surge, portanto, a concepção de “parte de nenhuma parte”,
como se fosse um objeto sem lugar definido ou um excesso não totalizável, que é gerado
por um sistema que não reconhece suas categorias. (HOOK, 2020).
Hudson (2013) esclarece que se pode observar, por meio da análise realizada por
Fanon acerca dos conceitos lacanianos, uma nova significação do estado psíquico-racista
da alienação social, experienciada pelo sujeito colonizado, em que
48
Lacan relaciona a angústia à ameaça de fragmentação que o sujeito enfrenta no estádio do espelho
(LACAN, 1956).
121
existencial do sujeito negro, vinculada à sua incapacidade de assumir uma posição de
sujeito humano, é orientada e regulada pelo grande Outro. Isso ocorre, de acordo com
Hudson, devido à dificuldade do colonizado, este como elemento do real e como “objeto
a” do sistema colonial, em separar-se desse sistema. Nesse sentido, Hudson (2013) afirma
que o colonialismo coloniza o real, cujo ponto de excesso, o “objeto pequeno a49”, está
inserido no próprio funcionamento do colonialismo” (HUDSON, 2013). Isso significa
que a rejeição da branquitude não é suficiente para a desalienação, na medida em que o
colonizado não só se identifica inconscientemente com a branquitude, mas também
acredita que esta é, malgrado denegrida, a solução do desmantelamento colonial, o que
implica, ao contrário, uma maior consolidação da alienação colonial (HUDSON, 2013).
Por fim, na análise que realiza sobre o pensamento fanoniano, Hudson identifica,
como Fanon, que não é a aniquilação da brancura que resultará em uma desalienação; o
sujeito colonizado tem, todavia, de desapegar-se da branquitude, reformulando sua
concepção acerca de sua identidade colonial, para que, dessa maneira, uma transformação
anticolonial legítima se torne viável. É importante evidenciar, segundo Hudson (2013),
que, para se opor ao colonialismo, é imprescindível que haja um sujeito vazio, uma vez
que o vazio do colonizado não é, porém, vazio o suficiente, pois ocupa ainda uma posição
de sujeito dentro do grande Outro colonial, não interessando qual identidade esse sujeito
tenha, caso tenha alguma. Para que esse sujeito conquiste emancipação e autonomia, é
preciso que o sujeito seja separado desse significante colonial. Atacar a branquitude é
uma ação político ineficaz, na medida em que possibilita que o Grande Outro colonial
seja reinserido na ordem simbólica, em vez de promover uma separação absoluta desse
Outro. Portanto, a condição do vazio colonial necessita de ser esvaziada por completo,
sem vínculos com o significante (HUDSON, 2013).
49
Na teoria psicanalítica de Jacques Lacan, objet petit a (objeto pequeno a) representa o objeto inatingível
do desejo, sendo o "a" o pequeno outro ("autre"), uma projeção ou reflexo do ego feito para simbolizar a
alteridade, como uma imagem especular, em oposição ao grande Outro (sempre maiúsculo com "O") que
representa a própria alteridade. É também chamado “objeto causa do desejo”, pois é a força que induz o
desejo em relação a qualquer objeto específico. O objeto pequeno a é o que se extrai do sujeito na ansiedade
(SHERIDAN, 1998).
122
estruturalistas, como Jacques Derrida, Jacques Lacan e Michael Foucault. As principais
ideias e os conceitos mais relevantes do pensamento de Bhabha encontram-se na obra “O
Local da Cultura”, que é composta por onze capítulos, baseados em ensaios e artigos
desse próprio autor, cuja estilística está carregada de conceitos da Psicanálise e dos
Estudos Literários, demonstrando a predileção de Bhabha por alusões conceituais que
abrangem variações do uso da metalinguagem crítica e da análise psicanalítica, sobretudo
a lacaniana. Com base em sua estética e estilística, que fornecem modelos teóricos
inovadores para a crítica pós-colonial e pós-estruturalista, os conceitos de Bhabha
estimulam a alteração de paradigmas teóricos da ciência do Ocidente (VEGA, 2009). A
exposição a duas culturas diferentes (britânica e indiana) e a experiência em transitar por
sociedades distintas, embora interligadas pelo processo colonial, possibilitaram Bhabha
a compreender que o “deslocamento da diversidade cultural para a diferença cultural50”
implicaria uma fragmentação na maneira pela qual se analisa a contemporaneidade, o que
enseja a compreensão da elaboração de um espaço cultural híbrido. Com base na obra “O
Local da Cultura”, Schäffer explica que
50
Bhabha (2014), com o intuito de estabelecer as características da cultura, desloca o conceito de
diversidade cultural para diferença cultural. No que se refere-se à diversidade cultural, Bhabha explica que
é uma epistemologia que diz respeito a cultura como um objeto empírico. A diversidade é uma categoria
que está vinculada ao “domínio da ética, da estética ou das etnologias comparativas”. No que concerne à
diferença cultural, esta relaciona-se, por sua vez, a um processo de enunciação da cultura, como um
elemento capaz de ser conhecido e apropriado para a elaboração de sistemas de identificação cultural. Isso
detona que a “diferença cultural é um processo de significação através do qual afirmações da cultura ou
sobre a cultura diferenciam, discriminam e autorizam a produção de campos de força, referência,
aplicabilidade e capacidade” (BHABHA, 2014, p. 69). Bhabha argumenta, dessa maneira, que ir além do
conceito de diversidade cultural significa ultrapassar a concepção de costumes culturais preconcebidos, que
estimula e apoia as ideias de multiculturalismo, de intercâmbio cultural e de cultura da humanidade
(BHABHA, 2014). Bhabha explica, portanto, que a crítica é direcionada ao ponto central das perspectivas
intelectuais sobre a cultura na contemporaneidade, que não são capazes de desenvolver reflexões além da
teorização, distante das polêmicas moralistas contra o preconceito, o estereótipo ou a afirmação
generalizadora do racismo individual ou institucional (BHABHA, 2014). Nesse sentido, Bhabha oferece o
argumento de que esse deslocamento conceitual propicia o consentimento de que as sociedades não são
somente diversas, mas, diferentes. Ser diferente é inato à humanidade; todas as variantes culturais precisam
ser, consequentemente, reconhecidas e entendidas, com base na articulação do hibridismo, e não do
exotismo do multiculturalismo ou da diversidade cultural (SCHAFFER, 1999).
123
a desestabilização dos essencialismos; convoca, enfim, o espaço-cisão
da enunciação, um ele como espaço indeterminado dos sujeitos da
enunciação. (SCHÄFFER, 1999, p.161).
51
Bhabha adapta o conceito de mímica de Lacan à teoria pós-colonial, ao expor que a mímica não é, como
a camuflagem, uma harmonização ou repressão da diferença, mas uma forma de semelhança que difere da
presença e que a defende, expondo-a em parte, metonicamente (BHABHA, 2014). O tema acerca da
presença parcial em relação ao sujeito mímico resulta na limitação e na deficiência do discurso colonial. O
mímico obtém, dessa forma, as características do paródico em relação ao que representa. Nesse sentido, no
caso de Bhabha, o sujeito colonizado hindu de pele escura destoa do uniforme imposto pelo colonizador.
Essa presença parcial evidencia a ambivalência do discurso colonial, de modo a desestruturar a sua
autoridade; por isso Bhabha afirma que a ambivalência da autoridade colonial repetidamente passa de
mímica – uma diferença que é quase nada, mas não exatamente – a ameaça – uma diferença que é quase
total, mas não exatamente. E nesse outro contexto do poder colonial, em que a história se torna farsa e a
presença se torna “uma parte”, podem ser observadas as figuras gêmeas do narcisismo e da paranoia, que
se repetem, furiosa e incontrolavelmente” (BHABHA, 2014).
124
reproduzir uma imagem distinta da autoimagem daquele. Essa interação possibilita a
criação de realidades ou de contextos culturais diferentes, que ensejam o hibridismo no
âmbito da cultura. Os processos de negociação de significados culturais conseguem, desse
modo, gerar um local híbrido, que produz novos posicionamentos e novos entendimentos,
com capacidades de influir nas narrativas histórico-nacionais, na política e na estruturação
do poder, bem como influenciar a constituição da identidade do sujeito. É nesse contexto
do hibridismo que se encontra o “entrelugar52” de Bhabha, que o define como um espaço
internacional de realidades históricas descontínuas, em que os sujeitos se revelam e se
abrem, reorganizam fronteiras, questionam limites e se deparam com diferenças
(BHABHA, 2014).
Bonnici (2010) auxilia no entendimento acerca do conceito de hibridismo.
Esclarece que o hibridismo pode ser linguístico, cultural, político e racial. Esse conceito
foi, a princípio, utilizado por Mikhail Bakhtin, com o objetivo de demonstrar o poder
subversivo de situações polifônicas da linguagem e da narrativa contra a sobriedade e a
“beleza” da cultura dominante. Explica ainda que, na teoria pós-colonial, o hibridismo
foi, inicialmente, comparado a uma simples interação cultural, que não considerava a
desigualdade intrínseca às relações de poder e que destacava as políticas de assimilação
por meio da ocultação das diferenças culturais. Isso significa que as teorias que insistem
na ideia de uma reciprocidade cultural conferem pouca importância ao fator oposicionista,
de modo a implicar um aumento da dependência cultural. Por sua vez, o conceito de
hibridismo de Bhabha possibilitou o sujeito pós-colonial a posicionar-se de maneira a
enfrentar a perspectiva cultural do outro, processo que contribui para o potencial de
reversão das estruturas de dominação colonial. Nesse sentido, o hibridismo intencional
de Bakhtin foi transformado por Bhabha em um elemento ativo de desafio e de resistência
52
Bhabha (2014) explica que as identidades se formam não nas singularidades, como as de gênero ou as
de classe, mas nas fronteiras das diferentes realidades. Esse argumento contém o que Bhabha chama
“entrelugares”. Esses “entrelugares” oferecem subsídios para a formação de métodos de subjetivação,
individual ou coletiva, dos quais se originam novos signos de identidade e de contestação, para estabelecer
a ideia de sociedade. O conceito entrelugar refere-se ao modo pelo qual grupos subalternos se colocam
diante do poder e à maneira pela qual elaboram e realizam estratégias de empoderamento. Esse processo
de posicionamentos propicia o entrelugar, em que se apresentam, mais explicitamente, questões de domínio
político e social. Bhabha argumenta que essa compreensão do conteúdo do entrelugar só é oportunizada,
devido à capacidade de ir-se além das narrativas tradicionais e ordinárias e devido às aproximações
advindas das diferenças culturais, com todas as subjetividades inerentes a essas diferenças. As fronteiras
possibilitam vislumbrar as estruturas de poder e de conhecimento, auxiliando na apreensão da subjetividade
de povos subalternos. Nesse sentido, Bhabha esclarece que o conceito de entrelugar tem, na concepção de
fronteira, a sua localidade, em que a cultura e a história são interpretados. Caso esse espaço da fronteira
não seja considerado, o poder e o conhecimento vão permanecer intocáveis; o entrelugar possibilita,
portanto, uma reorganização de sentidos, na medida em que congrega as diferenças, que se articulam nas
relações humanas e sociais (BHABHA, 2014)
125
contra o poder colonial dominante, ao confrontar a cultura imperialista e a autoridade
conquistada pela violência.
Com base na interdependência entre colonizador e colonizado e na
impossibilidade da hierarquia cultural, Bhabha (2014) analisa que os sistemas culturais
são formados em um espaço chamado terceiro espaço da enunciação, cuja constituição
além de ser ambivalente e contraditória, possibilita uma identidade cultural. O hibridismo
é, consequentemente, o lugar em que se identifica a diferença cultural, e a natureza híbrida
da cultura pós-colonial abriga a resistência nas práticas contradiscursivas, que estão
implícitas na ambivalência colonial, de modo a subverter o apoio sobre o qual se assenta
o discurso imperialista e colonial (BONNICI, 2010).
De acordo com Idilva Germano (1996), um dos objetivos de Bhabha, em relação
à sua obra “O Local da Cultura”, é a constituição de um esforço de teorização da cultura
ocidental, mediante a perspectiva pós-colonial, em que a análise teórica se concentra nas
narrativas e nos discursos modernas e em suas categorias, entre as quais se apresenta a
“nação”. A abordagem pós-colonial concerne à concepção de cultura fronteiriça e
marginal, âmbito do qual os efeitos contemporâneos do colonialismo se originaram.
Segundo Germano (1996), Bhabha observa, ao analisar a questão do transcultural,
significante ambiguidade nas expressões de identidade nacional, sexual, ética e cultural,
o que lhe propicia a elaboração de uma teoria do hibridismo cultural e da articulação das
diferenças sociais, apta a servir de ferramental teórico para a análise de fenômenos
contemporâneos de identificação e política cultural. Com base nessa vontade analítica,
dos quais autores como Edward Said, Gayatri Spivak e Terry Eagleton também a
compartilham, o intuito desses estudiosos é, conforme Germano (1996), examinar os
sistemas dominantes de imagens e de linguagens – ocidentalistas, sexistas, racistas – que
provocaram o silenciamento do Outro – orientais, mulheres, negros, nações colonizadas
–, de modo que os impossibilitaram de se autodefinir.
Influenciado por “Black Skin White Masks” de Frantz Fanon, Bhabha analisa o
tema da formação da identidade cultural, ao considerar a articulação entre duas categorias
tradicionalmente estanques: colonizador e colonizado. Germano esclarece que,
para Bhabha, esses perfis não devem ser compreendidos como traços
culturais definidos a priori e de forma a-histórica. Colonizador e
colonizado são construídos em um processo de negociação e de troca
constante de ações culturais que produzem um reconhecimento mútuo
e mutável da diferença cultural. Portanto, há uma ênfase sobre o caráter
performativo e temporal da produção das diferenças étnicas e culturais.
126
Desse modo, o espaço de engajamento das partes - seja no sentido de
afiliação e de consenso seja no de antagonismo e conflito - é entendido
como um lugar híbrido que produz o significado cultural. Esse espaço
liminar, observável nas metáforas de fronteira (viagem, ponte, escada,
margem) das linguagens ordinárias e na arte contemporânea, passa a ser
o foco da análise e da proposta teórica do autor (GERMANO, 1996,
p.150).
127
colonizador, cujo desenvolvimento apresenta essas ansiedades, que expressam momentos
em que os colonizados conseguiram resistir ao domínio colonial, movimento que Bhabha
está comprometido em enfatizar, por meio de uma agência53 ativa do colonizado
(HUDDART, 2006).
O fim do colonialismo formal ocorreu, em grande medida e em determinados
casos, devido à violenta luta anticolonial, de modo que a descolonização não aconteceu
apenas de forma tácita, mas também pela agência da violência; o desenvolvimento
colonial que Bhabha analisa não é, por sua vez, o mesmo dessa agência revolucionária e
agressiva. De acordo com Huddart (2006), o trabalho de Bhabha é original, pois conecta
dois elementos. Primeiramente, Bhabha fornece um vocabulário conceitual para a leitura
de textos coloniais e pós-coloniais, que expõem a fragilidade da ideia de que há distinções
rígidas entre colonizador e colonizado; com essa afirmação, a intenção de Bhabha é
refletir além das estratégias narrativas tradicionais – como as noções de
igualdade/diferença, passado/presente e inclusão/exclusão –, de maneira a analisar, nesse
sentido, os seus espaços de intermédio. Em segundo lugar, a obra de Bhabha demonstra,
por meio desse arcabouço conceitual, sobretudo o psicanalítico, que o Ocidente é
importunado por seus “duplos54”, em particular pelo Oriente. Esses duplos forçam o
Ocidente a explicar sua identidade e a justificar sua autoimagem racional. Bhabha (2014)
53
A agência é a capacidade de agir de modo autônomo, determinado pela formação da identidade. Na teoria
pós-colonial, agência, intimamente ligada à subjetividade, é a capacidade do sujeito pós-colonial reagir
contra o poder hierárquico do colonizador. Como a subjetividade é construída pela ideologia, pela
linguagem e pelo discurso, a agência deve ser uma consequência de, pelo menos, um desses fatores. Embora
a colonização tenha influenciado sobremaneira o sujeito e tornado difícil escapar de suas limitações, a
agência do sujeito pós-colonial é possível, como as lutas pró-independência e a literatura pós-colonial
atestam (BONNICI, 2005, p. 14). Agência refere-se à capacidade de agir ou realizar uma ação. Na teoria
contemporânea, ela depende da questão de saber se os indivíduos podem iniciar ações de forma livre e
autônoma, ou se as coisas que eles fazem são, de alguma forma, determinadas pelas maneiras pelas quais
sua identidade foi construída. A agência é particularmente importante na teoria pós-colonial porque se
refere à capacidade dos súditos pós-coloniais de iniciar uma ação de engajamento ou resistência ao poder
imperial. O termo tornou-se um problema nos últimos tempos como consequência das teorias pós-
estruturalistas da subjetividade. Uma vez que a subjetividade humana é construída pela ideologia
(Althusser), pela linguagem (Lacan) ou pelo discurso (Foucault), o corolário é que qualquer ação realizada
por esse sujeito deve ser também, em alguma medida, uma consequência dessas coisas. Para a teoria do
discurso colonial de Bhabha e de Spivak, que concorda com grande parte da posição pós-estruturalista sobre
a subjetividade, a questão da agência tem sido problemática. No entanto, muitas teorias nas quais a
importância da ação política é fundamental assumem a agência como algo certo e legítimo. Elas sugerem
que, embora possa ser difícil para os sujeitos escaparem dos efeitos das forças que os "constroem", isso não
é impossível. O próprio fato de tais forças poderem ser reconhecidas sugere que elas também podem ser
revogadas (ASHCROFT et all, 1998 p. 6).
54
O filósofo Jacques Derrida propõe a concepção de um “duplo gesto” no pensamento da desconstrução,
em que esse duplo se apresenta como movimentos simultâneos de inversão e deslocamento, que promovem
a inversão não como forma de sobreposição, mas como uma maneira de reconhecer o valor daquele que se
encontrava historicamente rebaixado. Esclarece, nesse sentido, que “deslocar-se é, antes, não se fixar a
identidades (DERRIDA, 2004).
128
argumenta que a civilização ocidental não é única, nem simplesmente ocidental, e sua
“superioridade” não é algo que possa ser afirmado com segurança, enquanto outras
civilizações são, também, bastante semelhantes. Desse modo, Bhabha analisa a história
colonial, de maneira a reexaminar o momento atual, visto que o colonialismo do passado
parece reverberar seus efeitos no presente (HUDDART, 2006).
A figura do duplo colonial é um recurso teórico que Bhabha utiliza com o objetivo
de compreender a relação colonizador-colonizado. Bhabha (2014) exprime que esse
duplo colonial é um elemento que incomoda a autoimagem do colonizador, o que pode
ser representado, de forma similar, pelo incomodo que o Oriente gera na autoimagem
limitada do Ocidente. Essa duplicação é algo que Bhabha encontra nos textos coloniais e
pós-coloniais, particularmente nos textos literários, cujos conteúdos apresentam
elementos fantásticos e enigmáticos. Como é frequentemente uma questão de duplicação,
em que há esse elemento do duplo, a literatura torna-se, para Bhabha, central na
elaboração de sua perspectiva pós-colonial, que reexamina e evoca as origens coloniais
reprimidas desse Ocidente. Além disso, a linguagem fornece os subsídios necessários
para os métodos analíticos de Bhabha, particularmente a ideia de que a linguagem não é
uma comunicação direta e unilateral de significado, pois este não é simplesmente imposto
pelo colonizador; os significados culturais do colonizador estão, por sua vez, abertos à
transformação pela população colonizada. Quando colonizador e colonizado se unem, há
um elemento de negociação do significado cultural, de maneira que Bhabha explora como
a linguagem transforma o modo pelo qual as identidades são estruturadas no momento
em que colonizador e colonizado interagem. Esse contato demonstra como o colonialismo
é marcado por uma complexa estrutura de identidade cultural, na qual colonizado e
colonizador dependem um do outro. Nesse sentido, o trabalho de Bhabha enfatiza e
amplia a agência dos povos colonizados, bem como desenvolve um modelo linguístico
dessa agência.
Com base nesse breve preâmbulo acerca dos conceitos e das ideias com as quais
trabalha em sua obra, “O Local da Cultura”, é oportuno examinar, mais detalhadamente,
o vínculo que Bhabha desenvolve com a psicanálise lacaniana. Nesta parte da dissertação,
não há o intuito de pormenorizar, de forma exaustiva, todo o pensamento analítico de
Bhabha concernente às concepções de Lacan, mas de apresentar, de maneira
exemplificativa, alguns entendimentos que Bhabha pôde empregar em seu exame teórico
mediante a leitura lacaniana. Para isso, Greedharry (2008) analisa que Bhabha utiliza, em
toda sua obra, a psicanálise sobretudo a de Lacan e a de Freud. Ela argumenta que, ao
129
contrário de Fanon, Bhabha não emprega a psicanálise em um contexto clínico; utiliza-a,
exclusivamente, como mecanismo teórico, de maneira a enfatizar a compreensão acerca
do inconsciente estruturado como linguagem, processo psicanalítico desenvolvido por
Lacan. Dessa forma, diferentemente de Fanon, Bhabha não empregou, com o auxílio de
classificações e de categorias clínicas, a psicanálise em seus estudos para descrever
pessoas e suas respectivas experiências da vida colonial; utilizou, em vez disso, conceitos
psicanalíticos para representar fenômenos e processos coloniais como os de estereótipo,
de mímica e de projeção (GREEDHARRY, 2008).
Consoante Greedharry (2008), Bhabha analisa o estereótipo com base na noção
freudiana de fetiche, como uma maneira de organizar informações que se pode ter sobre
o mundo, mas que nem sempre se deseja reconhecer. Para Bhabha (2014), o estereótipo
tem um aspecto importante no discurso colonial, que é sua dependência do conceito de
fixidez na formação ideológica da alteridade, fato que contribui para certa permanência e
perpetuação do estereótipo. Para entender esse processo, Greedharry (2008) expõe que o
problema com análises anteriores acerca da persistência desses estereótipos coloniais,
como o “asiático desonesto”, o “africano luxurioso”, o “árabe preguiçoso”, refere-se, na
perspectiva de Bhabha, ao fato de que esses estudos se envolvem com o problema dessas
imagens tomadas como positivas ou negativas, verdadeiras ou falsas, complexas ou
simples, e não como instâncias de um discurso produtivo, eficaz e ambivalente
(GREEDHARRY, 2008). Além disso, no que concerne à persistência de estereótipos,
Germano (1996) explica que Bhabha explora o discurso colonial, por meio de uma análise
dos processos de subjetivação propiciados pelos estereótipos. Para isso, Bhabha
fundamenta-se na concepção de que é necessário evitar uma posição moralista ou
nacionalista, que identifica estereótipos e que os cria em um discurso de afirmação da
origem e da unidade da identidade nacional. Germano (1996) aponta, ainda, que Bhabha
se concentra no sistema textual, que forma as diferenças e os sentidos de mestiçagem e
de impureza, de sorte que possibilita a circulação da alteridade racial e cultural. O
estereótipo, estratégia discursiva colonial relevante, é, nesse sentido, um discurso
contraditório bidimensional, ao afetar tanto o dominador quanto o dominado.
(GERMANO, 1996)
Greedharry (2008) demonstra que, com o objetivo de aprofundar a análise acerca
do conceito de estereótipo, Bhabha utiliza o fetiche como um modelo assertivo para seu
exame. Bhabha (2014) argumenta que o fetichismo, como uma negação ou proibição da
130
diferença, representa aquela cena repetitiva em torno do complexo da castração55. Nota
que o reconhecimento da diferença sexual é, em termos psicanalíticos, negado pela
fixação no objeto, que mascara essa diferença e que restaura uma presença originária. O
fetichismo é, não raro, uma oscilação entre a afirmação arcaica de totalidade/semelhança
– em que todos os humanos têm a mesma pele, raça, cultura – e a ansiedade associada à
falta e à diferença – em que alguns humanos não têm a mesma pele, raça, cultura. Dessa
maneira, no interior do discurso, Germano (1996) argumenta que o fetiche se apresenta
por meio da relação entre a metáfora – que camufla a ausência e a diferença – e a
metonímia – que expõe a falta percebida. O fetiche e o estereótipo, portanto, assegurariam
o acesso a uma identidade derivada não só do poder e do prazer, mas também da ansiedade
e da defesa. Germano explica
55
O complexo da castração é o medo da castração na primeira infância que tanto Freud quanto Lacan viam
como parte integrante de nosso desenvolvimento psicossexual. O complexo de castração está intimamente
associado ao complexo de Édipo, segundo Freud: "a reação às ameaças contra a criança destinadas a
interromper suas atividades sexuais precoces e atribuídas ao pai" (Aulas Introdutórias 15.208). A criança
com desejos primitivos, ao se deparar com as leis e convenções da sociedade (incluindo as proibições de
incesto e assassinato), tenderá a alinhar proibição com castração (algo que às vezes é reforçado pelos pais
se eles alertam contra, por exemplo, masturbação, dizendo que a criança será de alguma forma punida
corporalmente, por exemplo, ficando cega). Lacan baseia-se nesse conceito freudiano ao definir a Lei do
Pai (FELLUGA, 2015). Lacan, que fala mais sobre a castração do que sobre o complexo de castração,
define-a como uma operação simbólica, que determina uma estrutura subjetiva: aquele que já passou pela
castração não é mais complexado, ao contrário, é normalizado em relação ao ato sexual. Porém, destaca
que existe, nisso, uma aporia: por que o ser humano deverá ser primeiramente castrado para poder chegar
à maturidade genital? ("A Significação do Falo", 1958; Escritos, 1966). Lacan tenta esclarecê-lo com a
ajuda das três categorias do Real, do Imaginário e do Simbólico.
131
sentimentalmente exaltado. Além disso, esse modelo esclarece por qual motivo as
mesmas figuras estereotipadas persistem em uma série de condições históricas e
econômicas. Segundo Greedharry (2008), o estereótipo não é um indicativo da realidade;
é, entretanto, um regime de verdade sobre a raça que tenta fixar a identidade racial, com
o objetivo de administrar as ansiedades em relação à diferença racial. O estereótipo obsta,
nesse sentido, a movimentação e a articulação do significante de raça, algo diferente de
sua fixidez como racismo.
A reflexão de Bhabha em relação às figuras psicanalíticas, como o fetiche,
permitiu-o a estabelecer a maneira pela qual a fixidez – característica que o discurso
colonial almeja – é, não raro, comprometida pelas produções coloniais. Consoante
Greedharry (2008), Bhabha, em seu ensaio “Da Mímica e Do Homem”, utiliza as teorias
da identificação de Lacan, de modo a investigar o fenômeno colonial do sujeito
colonizado, que parece ser uma imitação do colonizador, em que, por meio de uma
percepção enviesada, o colonizado preservaria suas características fisiológicas, malgrado
realizaria mudanças no comportamento e nas crenças conforme a práxis do colonizador.
A mímica é compreendida como estereótipo ou como um indicativo de autenticidade
original, seja essa autenticidade pertencente ao colonizador seja, ao colonizado.
Greedharry (2008) explica que, com base nesse entendimento, Bhabha concentra-se na
formulação do conceito de mímica por Lacan, quem esclarece que não há nada que possa
estar escondido ou disfarçado para produzir a mímica; ao contrário, o que ocorre é o
processo no qual o sujeito se torna idêntico ao seu ambiente. Isso significa que a mímica
revela algo que é diferente do que se poderia chamar um “si mesmo” – um “si mesmo”
que está por detrás, disfarçado. Esse raciocínio contribui para a compreensão de que o
efeito da mímica é a camuflagem56. Em uma interpretação metafórica, Lacan (1978)
explica que a mímica não se refere a harmonizar-se com o plano de fundo, mas sobre o
plano fundo, já “manchado”.
Thomas Bonnici argumenta que
56
A camuflagem de que falava Lacan se baseava na constatação real de que certos animais têm o hábito de
adotar as formas e as cores de seu ambiente, para evitar serem predados por outros animais. Embora tenha
sido demonstrado que animais mimetizados – camuflados – não diminuíram sua probabilidade de serem
comidos (MORALES, 2020, p. 164).
132
subversiva. A mímica, portanto, produz uma dúvida na certeza imperial
de que a dominação colonial mantém completo domínio sobre o
colonizado. O escárnio (a ridicularização) e a ameaça existem na
mímica da cultura, na do comportamento e na dos valores dominantes
empregados pelo colonizado. A escrita pós-colonial é a principal
estratégia da mímica contra o colonizador, porque “devido à sua visão
dupla, a revelação da ambivalência do discurso colonial subverte a
autoridade desse mesmo discurso” (Bhabha, 1998, p. 88). A quase-
identidade do sujeito colonial com o sujeito dominante (descrito por
Bhabha como “quase o mesmo, mas não é branco”) faz com que a
cultura colonial seja potencialmente subversiva (BONNICI, 2010,
p.46).
133
esta nunca poderá ser integral, e o excesso que a mímica produz coloca em questão o
significado da autoridade e da missão do Colonialismo (GREEDHARRY, 2008).
Para compreender o modo pelo qual a relação colonial se forma em torno de uma
ambivalência, é importante entender o significado que Bhabha confere a esse termo. O
termo ambivalência é usado na psicanálise para descrever a existência simultânea de
sentimentos contraditórios em relação a um único objeto. Morales (2020) argumenta que
a ambivalência é um conceito característico do discurso colonial, em razão de oscilar
entre a rejeição e o fascínio, por meio da alteridade. Esse processo de oscilação se
aproxima do conceito de estereótipo já analisado. No caso da ambivalência, esta não é
somente uma experiência contraditória, estanque, mas tem a característica da fluidez, do
ir e vir, discursivamente, sobre um ponto. Morales (2020) explica que, influenciado por
Lacan, especialmente por seu estágio do espelho, e também por Freud, sobretudo em
relação às suas disposições binárias de instintos opostos, Bhabha retorna à noção de
estereótipo, para argumentar que, no discurso colonial, há uma ambivalência evidente ou,
em termos lacanianos, uma relação especular, cujo conteúdo se refere ao reflexo do
próprio corpo no espelho, a imagem de si mesmo que é simultaneamente si mesmo e outro
– o “pequeno outro”.
Ao aprofundar a explicação sobre a relação especular, Lacan argumenta que é se
identificando com a imagem especular que a criança começa a formar seu ego no estágio
do espelho. Mesmo quando não há espelho real, a criança observa seu comportamento
refletido nos gestos imitativos de um adulto ou de outra criança; esses gestos imitativos
permitem, dessa maneira, que a outra pessoa funcione como uma imagem especular.
Pode-se observar, segundo Lacan, que o ser humano é completamente cativado pela
imagem especular, de modo que esta é a razão básica do poder do imaginário no sujeito;
há, entretanto, certas coisas que não têm imagem especular, que não são
"especularizáveis", como o falo, as zonas erógenas e o objeto pequeno a (LACAN, 2006).
A ambivalência é fundamental para o discurso colonial, pois, com base em seu
conteúdo, pode-se analisar que há, segundo Morales (2020), não só um desejo de
identificação com o "outro" — consciente de que, devido a esse “outro”, o "nós" forma
sua identidade, razão pela qual seu desejo de diferença surge —, mas também há um
ímpeto de rejeição e de negação. Todorov (2010) consegue auxiliar no esclarecimento
desse conflito gerado pela ambivalência, ao explicar que esse processo ocorre da seguinte
maneira: o narcisismo é percebido frente a alteridade, não só devido à possibilidade de
vermos “nós” mesmos (e consequentemente a agressividade), mas também porque o
134
“nós” está perante uma imagem que é, ao mesmo tempo, dele, mas não é ele, e sim uma
projeção narcísica, que não reconhece o outro como sujeito, igual a si mesmo, mas
diferente dele. Nesse sentido, essa é a contradição que gera a aversão e o ressentimento
que incidem no personagem colonizado, que é não só rejeitado, mas também
menosprezado (MORALES, 2020).
Além da mímica e do estereótipo, Bhabha utiliza, entre outros, o conceito
psicanalítico de projeção, para compreender a história colonial. Na psicanálise, a projeção
é um mecanismo de defesa, em que um desejo, um pensamento ou um sentimento interno
é deslocado e localizado fora do sujeito, em outro sujeito. Em geral, a projeção representa
uma operação que consiste no deslocamento de algo de um espaço para outro, ou de uma
parte de um único espaço para outro, com o objetivo de retirar o que é percebido como
característica “ruim” de si mesmo e projetá-la em outro sujeito “ali”, em que essa
característica pode ser condenada e punida, deslocando, portanto, os atributos pejorativos
do qual o sujeito inicial não deseja para si, e alocando-os no outro. Lacan (1993) entende
a projeção como um mecanismo puramente neurótico e distingue-a do fenômeno,
aparentemente semelhante, que ocorre na psicose: a foraclusão. Nesse sentido, enquanto
a projeção está enraizada na relação dual imaginária entre o ego e a contraparte, a
foraclusão vai além do imaginário, de maneira a envolver um significante que não está
incorporado no simbólico (LACAN, 1993).
Em “Civilidade Dissimulada”, Bhabha investiga a escrita colonial em termos de
mecanismos de projeção e de paranoia. Kaufmann explica que
135
lugar, sob forma de percepção advinda do exterior. No delírio de perseguição, essa
deturpação consiste em uma transformação do afeto. Isso significa que o que deveria ser
sentido internamente como amor é percebido externamente como ódio, sendo esse
processo um dos elementos mais importante da paranoia. Além disso, há duas
características importantes da relação entre projeção e paranoia. Em primeiro lugar, a
projeção não desempenha a mesma função em todas as formas de paranoia e, em segundo,
a projeção não se manifesta somente no curso da paranoia, mas também em outras
condições psicológicas. A projeção tem uma função em relação ao mundo externo, pois,
em vez de o indivíduo buscar as causas de certas impressões em si, este situa essas
impressões no exterior. Nesse sentido, para compreender a projeção, deve-se considerar
os mecanismos dos sintomas paranoicos (KAUFMANN, 1996).
Segundo Bhabha (2014), a projeção nunca é uma profecia autocumprida, nem
mesmo uma simples fantasia que atue como bode expiatório. Além disso, Bhabha explica
que a agressividade do outro advinda do meio externo, que justifica e legitima o sujeito
de autoridade, torna aquele mesmo sujeito um “espaço fronteiriço de ocupação conjunta”.
Com essa noção da agressividade, pode-se compreender que esse processo de projeção é
capaz de forçar o nativo (nesse caso, o colonizado) a interpelar o senhor (nessa situação,
o colonizador), mas jamais será capaz de gerar os sentimentos de amor ou verdade, que
centrariam a demanda confessional. Bhabha argumenta ainda que, caso o nativo seja, por
meio da projeção, parcialmente alinhado ou reformado no discurso, o ódio fixo, que se
recusa a circular, produz a fantasia repetida do nativo, como situado entre a legalidade e
a ilegalidade, de modo a colocar em perigo as próprias fronteiras da verdade (BHABHA,
2014).
De acordo com Bhabha
136
Por fim, é ainda importante compreender a função que o conceito de ansiedade
tem no pensamento de Bhabha, sobretudo em relação ao Colonialismo. Como já foi
apresentado neste texto, a ansiedade é um elemento significativo para compreender a
estruturação da relação colonizador-colonizado. Desse modo, de acordo com Thakur
(2013), Bhabha argumenta que os momentos de ansiedade expõem a fragilidade do eu-
Outro, ou seja, dos discursos dentro-fora como vinculativos. Bhabha não alega que a
ansiedade surge na experiência do momento em si, mas mediante ato de representação,
que se refere ao momento transformado em narrativa histórica. Isso significa que a
ansiedade não está situada fora do quadro do discurso; aparece, no entanto, de maneira
paradoxal, nos próprios interstícios da escrita imperial, destinada a transformar o
momento catastrófico em um discurso de domínio. Contrariamente a Fanon e Mannoni,
que situam a ansiedade nas experiências do outro, Bhabha identifica sua origem no
discurso e na produção do discurso, o que o aproxima da leitura de Lacan (THAKUR,
2013).
A interpretação de Bhabha, por meio da perspectiva lacaniana, apresenta, segundo
Thakur (2013), a ansiedade colonial como um epifenômeno do discurso colonial. As
ansiedades sobre o colonizado estão intrinsecamente vinculadas aos discursos que
almejam formar um imaginário singular do Outro, este abstraído da realidade plural do
espaço e da cultura do outro. Thakur (2013), ao analisar a obra de Bhabha, argumenta que
a relação entre a ansiedade e o discurso colonial destaca a maneira pela qual essa
ansiedade habita o espaço experiencial da colônia como uma assinatura fundamental, que
reordena afetivamente as relações coloniais, as práticas, as representações imperiais, as
ideologias e o imaginário do Outro. A ansiedade origina-se a partir da ação fundadora do
Colonialismo – que, em termos lacanianos, significa a lexicalização do colonizado como
Outro e a reprodução do colonizador como um eu invertido a esse Outro –, ou seja, a
significação da (ou do colonizado como) diferença (THAKUR, 2013). Lacan (2006)
argumenta que um dos primeiros elementos para se analisar a organização estrutural da
ansiedade refere-se às observações em que esta se apresenta: fascinado pelo conteúdo do
espelho, esquece-se dos limites da ansiedade e o fato de que a ansiedade é enquadrada,
cerceada, motivo pelo qual o horrível, o suspeito, o misterioso se apresentam por meio de
“claraboias”, espaço em que, sedimentado nessa “moldura”, se situa o campo da
ansiedade (LACAN, 2006).
Em “O Local da Cultura”, nos ensaios “A Outra Questão” e “Articulando o
Arcaico”, Bhabha descreve a ansiedade com base em duas perspectivas teóricas,
137
aparentemente distintas. No primeiro ensaio, a ansiedade é apresentada como um efeito
da ruptura das metáforas constitutivas do discurso colonial, principalmente os
significantes da diferença; no segundo, a ansiedade é, por sua vez, exposta como advinda
dos limites do discurso, local em que esse discurso não consegue explicar,
adequadamente, as experiências na colônia, o que explica a razão pela qual esse ensaio
de Bhabha seja apresentado como um produto do encontro do colonizador com o
nonsense colonial. Além disso, no ensaio “A Outra Questão”, Bhabha concentra-se em
dois pontos. O primeiro diz respeito à formação da “fixidez” pelo discurso colonial, que
tem a função de consolidar os sinais de outremização ou alteridade57 para diferenciar o
eu do Outro. O segundo refere-se à natureza paradoxal do Outro, uma vez que este, como
estereótipo, escapa à própria fixidez que apresenta, de modo a resultar em repetições
ansiosas de alteridade do Outro no discurso. Conforme Thakur (2013), no contexto do
deslizamento observado por Bhabha, pode-se situar a ansiedade na fissura que surge entre
o discurso como autoridade e o discurso como falha em autorizar o Outro como autêntico.
Isso significa que as ansiedades no discurso imperial se vinculam à composição
epistêmica (e malsucedida) de um Outro fundamentado na pluralidade heterogênea das
massas colonizadas. O problema reside em qualificar, de forma unívoca, os vários hábitos
e as idiossincrasias culturais do colonizado. O Outro, como uma categoria, permanece,
portanto, parcialmente fora da lógica binária do discurso colonial (THAKUR, 2013).
57
A alteridade pelo conceito de outridade pode ser entendida como uma maneira de existência que advém
da articulação do eu com a identidade do outro. Pode-se distinguir entre “outremização” (ingl. otherness) e
alteridade (ingl. alterity). Alteridade (lat. alteritas) significa ser o outro, ser diferente, manter a diversidade.
Partindo de Descartes (1596-1650), a alteridade refere-se ao conhecimento do outro, ao “outro epistêmico”,
ou seja, formulam-se perguntas sobre o outro, tais como: “Como posso conhecer o outro?” e “Como outras
mentalidades podem ser conhecidas?” Por outro lado, o termo outremização refere-se ao outro engajado
num contexto político, cultural, religioso e linguístico. Consequentemente, a construção do sujeito é algo
inerente à construção dos outros. Embora na Teoria pós-Colonial os termos outremização, alteridade e
diferença possam dizer a mesma coisa, é conveniente adotar a alteridade no sentido acima. Por outro lado,
a construção da identidade do sujeito colonizador está intimamente ligada à outremização do outro
colonizado. Além disso, o que Said (1995) diz sobre “a centralidade da cultura imperial”, se aplica a um
fenômeno existente na Teoria Pós-colonial: quando o “centro” (o colonizador) pretende falar em nome da
humanidade (colonizador e colonizado), está solapando seu compromisso para defender a diferença e a
alteridade (BONNICI, 2010, p.15). Segundo Ashcroft (1998), a teoria da outremização refere-se à
diferenciação entre sujeito colonizado e colonizador, em função de existir diferença, diversidade entre
ambos. Nesse sentido, é relevante que haja a diferenciação entre “alteridade” e “outremização”. Ambos os
vocábulos podem ser empregados nessa dissertação, embora o conceito de outremização esteja mais
próximo do âmbito dos estudos coloniais e pós-coloniais, como demonstra Ashcroft: “este termo foi
cunhado por Gayatri Spivak para o processo pelo qual o discurso imperial cria seus ‘outros’. O outro é o
excluído ou o sujeito dominado, criado pelo discurso de poder. A outremização descreve os vários modos
pelos quais o discurso colonial produz seus sujeitos. Na explicação de Spivak, a outremização é um
processo dialético porque o colonizador Outro é estabelecido ao mesmo tempo em que seus colonizados
outros são produzidos sujeitos” (SPIVAK, 1998, p. 171).
138
Thakur (2013) questiona como esse mapa teórico psicanalítico auxiliaria na
compreensão do discurso colonial e da formação do nativo como o Outro, além de
questionar como a afirmação de Bhabha sobre a ansiedade poderia provocar instabilidade
do Outro-como-estereótipo. Para dar sentido e encontrar uma resposta a esses dois
questionamentos, Thakur explica que a melhor maneira de realizar esse empreendimento
é analisar o discurso colonial como um espaço simbólico, com base nas identidades
diferenciais formadas dentro desse espaço simbólico como posições imaginárias. Se
houver a anuência de que o colonialismo exige uma separação entre o colonizador e o
nativo (colonizado) e de que o colonialismo é defendido no discurso, atribuindo ao nativo
uma alteridade no contexto em que o eu como um "não igual" pode ser definido,
consequentemente, essa metaforização do outro como Outro – ou a condensação da plural
cultura colonizada em um único componente identificável da diferença – encena uma
separação forçada entre o colonizador e o colonizado, que é propensa à implosão, devido
ao fato de que esses discursos imaginativos são desafiados no curso das interações
cotidianas entre o colonizador e o nativo (THAKUR, 2013)
Thakur (2013) argumenta que a ansiedade colonial é, nesse sentido, formada na
instância da metaforização forçada do espaço colonial e existe como uma falha nascente,
de maneira a incentivar o colapso da identidade imperial. Além disso, todo momento em
que o colonizado anuncia seu desejo ou rompe com suas posições objetivadas, como em
tempos de resistência armada anticolonial, o imaginário colonial rompe, desse modo, com
essa falha. Thakur (2013) esclarece que as ansiedades em relação ao Outro não emergem,
portanto, de sua realidade fenomenológica, mas da ameaça representada por um retorno
da realidade reprimida pelo discurso que forma uma imagem expurgada do Outro. O autor
explica ainda que, em termos da psicanálise lacaniana, a ansiedade, aqui, concerne à
intrusão do Real na ordem Simbólica do sujeito, de modo a romper a relação fantasmática
do sujeito com o Outro, enquanto o “objeto pequeno a”, como objeto de desejo, enseja
uma transformação repentina desse objeto imaginário da fantasia em um objeto revelador
do real para o sujeito (THAKUR, 2013).
Greedharry (2008) compreende que o uso da psicanálise por Bhabha demonstra e
enfatiza que o discurso colonial não é uma questão nem de verdade e de mentira nem de
realidade e de fantasia, mas uma curiosa combinação e um inusitado cruzamento de
ambos os modos de compreensão, que tornam absurda a distinção entre esses modos.
Greedharry (2008) afirma que, para os objetivos de Bhabha, a psicanálise,
particularmente a teoria da negação de Freud e as teorias da identificação de Lacan,
139
provam ser os conceitos que melhor podem articular esses modos, bem como contribui
para a discussão acerca do discurso colonial. Além disso, a autora argumenta que Bhabha
tenta esclarecer o significado do pós-colonial e do pós-moderno em “O Local da Cultura”.
Mediante sua investigação de estereótipo-fetiche, agência de pânico e o tempo do colonial
e do migrante na modernidade, Bhabha explica que se deve analisar o racismo não
simplesmente como uma consequência das concepções arcaicas da aristocracia, mas
como integrante da tradição histórica de humanismo cívico e liberal, que criaram matrizes
ideológicas e identidades nacionais, com base nas acepções de povo e de comunidade
imaginada.
Greedharry (2008) conclui que, nesse “presente” pós-moderno, a intenção de
Bhabha é enfatizar que o objetivo da crítica pós-colonial não é mais estabelecer novos
símbolos de identidade ou novas imagens positivas, promovedoras de uma política de
identidade irrefletida, mas impulsionar, ainda mais, a crítica da modernidade já disponível
na história do Colonialismo. Em “O Local da Cultura”, a Psicanálise é utilizada para
desempenhar várias funções críticas, de modo que os conceitos psicanalíticos auxiliam
no argumento de Bhabha de várias maneiras, oferecendo uma estrutura de linguagem para
descrever os fenômenos e os processos culturais em ação na colônia e para desconstruir
e reconstruir as histórias ocidentais da modernidade. Essa é a razão pela qual o uso da
análise psicanalítica por Bhabha não tenta fornecer uma psicanálise pós-moderna,
“racial” ou relativizada, mas almeja empregar o uso da linguagem psicanalítica para
revelar e interromper os relatos históricos e contemporâneos da modernidade
(GREEDHARRY, 2008).
140
4. JUNG NAS RI
4.1 INTRODUÇÃO
141
protestante da igreja reformada de orientação luterana, a quem Jung tinha profunda
ligação de alma. Sua mãe, Emile Preiswerk, que era instruída e culta, incentivou-o à
leitura de obras clássicas na adolescência, como a do Fausto, de Johann von Goethe. A
infância foi no campo entre a natureza e os livros da biblioteca de seu pai, em cujo local
se encontrava textos de filosofia e de teologia (STEVENS, 2001).
Quando ingressou na Universidade de Basiléia para o curso de medicina, Jung já
tinha razoável conhecimento de filosofia, especialmente nas ideias de Immanuel Kant e
Goethe. O seu entusiasmo filosófico levá-lo-ia, também, ao pensamento de Arthur
Schopenhauer e às ideias de Nietzsche, que influiriam, significativamente, na construção
de sua teoria psicológica. Concluído o curso de Medicina, Jung dedicou-se à psiquiatria,
como assistente do professor Eugene Bleuler, no Burgholzi Psychiatric Hospital, da
Universidade de Zurich, interessando-se, substancialmente, pela patologia da
esquizofrenia. Além disso, por certo tempo, manteve vínculos profundos e íntimos com
Sigmund Freud, de modo a estudar as ideias de seu professor e conhecer mais sobre os
conteúdos do inconsciente e sobre a psicanálise freudiana (STEVENS, 2001).
Jung esteve ativamente presente nas reuniões em Viena promovidas por Freud,
além de ter sido presidente da Sociedade Psicanalítica, por indicação do próprio Freud,
que o considerava seu herdeiro intelectual, entre outros motivos, por não ser de origem
judaica – Freud temia que a Psicanálise fosse associada à religião judaica, em função de
suas origens se terem dado no meio de judeus, bem como o próprio Freud ter sido judeu
de nascimento. Após três anos, depois do primeiro encontro, Freud solicitou a Jung o que
já havia feito anteriormente: o pedido de não abandonar a teoria sexual.
De acordo com Stevens (2001), para Freud, era preciso fazer de sua teoria sexual
um dogma, um baluarte inabalável. Jung sentiu-se frustrado com a proposta, já que
percebeu em Freud mais a necessidade de deixar um legado do que a busca real de uma
verdade. Esse acontecimento abalou a amizade entre ambos. O desentendimento entre os
dois foi ponto de partida para Jung começar a sua própria teoria: a teoria da Psicologia
Analítica. Enquanto a teoria de Freud busca as causas, a de Jung busca a razão, a
finalidade; enquanto para Freud a libido é somente sexual, para Jung a libido é toda a
energia psíquica. Desse modo, embora Freud e Jung pertencessem ao mesmo domínio de
estudo, analisavam-no de maneiras distintas.
O relacionamento entre os dois foi denso e profícuo, de sorte que provocou marcas
permanentes na teoria de Jung. A partir do rompimento com Freud, Jung aumentou,
significativamente, suas produções intelectuais, ao criar teorias e conceitos complexos.
142
Jung teve experiências intensas em vários campos do conhecimento, desde a filosofia até
à psicologia, o que o possibilitou compreender o ser humano em seus diferentes atributos.
A Psicologia Analítica foi fundamentada pelas próprias experiências de Jung, sobretudo
no que concerne à investigação do inconsciente. Com uma observação pormenorizada de
si, incluindo temas que passariam despercebido para o indivíduo comum, como os
sonhos, as fantasias e as intuições, Jung abasteceu-se de uma rica fonte de pesquisa e de
análise.
Segundo Stevens (2001), Jung interessou-se, constantemente, pelos fenômenos
psíquicos. Criou seus fundamentos e sua base teórico-conceitual, ao manter contato com
conhecimentos da Mitologia e de povos originais da África, da Ásia e da América do
Norte. Visitou, entre vários lugares, a Índia, em busca de respostas para suas dúvidas mais
íntimas. Além disso, teve contato com as religiões e as filosofias orientais, como I Ching,
de maneira que encontrou significados importantes nos simbolismos dessas sabedorias e
no entendimento da evolução e do desenvolvimento do ser humano.
Jung foi pioneiro em introduzir uma nova maneira de se exercer a psicologia
clínica, com novas práticas e novos conceitos. Ressaltava que o ser humano deveria ser
analisado por inteiro, de forma holística, sem desconsiderar as circunstâncias que
influenciam e formam esse ser, como a comunidade, o momento e o contexto social,
cultural e universal do período. Jung faleceu no dia 6 de junho em 1961. Embora suas
obras expressem profundo interesse por temas místicos, espirituais e metafísicos,
enquanto fenômenos psíquicos, Jung preocupava-se, permanentemente, em manter seus
constructos teórico-conceituais vinculados aos métodos científicos de comprovação.
Assim, pôde produzir trabalhos que deixaram um legado relevante para a Psicologia e
para o conhecimento humano em geral.
Jung formulou conceitos para explicar as relações que o ser humano tem consigo
e com o outro. Essas concepções não se limitam somente à esfera individual, mas também
abrangem o âmbito coletivo, de modo que a dinâmica da análise individual pode ser
similarmente empregada a compreender a dinâmica da análise coletiva. Nesse sentido,
pode-se utilizar alguns dos conceitos fundacionais do pensamento junguiano para
entender as relações conflituosas entre Estados. Embora haja vários eventos que possam
143
ser demonstrados nessa dissertação, há um conflito que se destaca: o conflito, à época da
Guerra Fria, entre as duas grandes potências: os Estados Unidos e a União Soviética. Esse
evento pode servir de caso para uma análise segundo os conceitos junguianos, de modo a
possibilitar o entendimento da formação da ordem bipolar desse conflito. Essa interação
bipolar pode ser interpretada como uma manifestação de natureza esquizofrênica, no nível
psíquico coletivo, por meio da qual a humanidade se fragmentou, se dividiu e se polarizou
em torno de sistemas de pensamento, de valores e de instituições políticas e
socioeconômicas considerados incompatíveis entre si. Para que esse processo seja
compreendido, serão abordados os principais conceitos teóricos de Jung, de maneira que
o caso da Guerra Fria será posteriormente analisado. Antes de aprofundar em cada
concepção de Jung, será realizado um preâmbulo acerca da formulação de alguns de seus
conceitos.
A análise da psique humana elaborada por Jung e fundamentada em seus estudos
filosóficos, históricos, antropológicos e religiosos foi inovadora para sua época. Antes de
Jung, o conceito do modelo psíquico era formado pelo consciente e pelo inconsciente.
Este era composto de elementos concernentes aos acontecimentos particulares do
indivíduo, desconhecidos pela consciência, enquanto aquele se constituía por todos os
conteúdos: experiências, ideias e afetos que o indivíduo poderia recordar-se.
Consequentemente, a psique, para equilibrar e regular internamente o indivíduo, ao
conduzi-lo ao convívio social, seria constituída de uma consciência e de um inconsciente
pessoal, na medida em que este se relacionava às experiências e aos conteúdos vividos
por esse indivíduo (SCHULTZ, 2019).
Por meio do conceito de psique, Jung demonstrou que o ser humano é, a princípio,
um todo, e não um conjunto de partes obtidas ao longo das experiências da vida. Isso
significa que Jung não acreditava nas concepções de que a personalidade58 do ser humano
poderia ser constituída aos poucos e, em algum momento da existência, esse indivíduo
encontraria um movimento uníssono e coerente para as suas partes desorganizadas. Desde
o início de sua vida, o ser humano é um todo. O objetivo básico do ser humano seria
58
A palavra personalidade ou personagem, que advém originalmente de persona, significa originalmente
uma máscara usada por um ator e que lhe permitia compor uma determinada personagem numa peça. Na
psicologia junguiana, o arquétipo de persona atende a um objetivo semelhante: dá a um indivíduo a
possibilidade de compor uma personagem que necessariamente não seja ele mesmo. Persona é a máscara
ou fachada ostentada publicamente com a intenção de provocar uma impressão favorável a fim de que a
sociedade o aceite. Também pode ser denominada arquétipo da conformidade (HALL; NORDBY; 2021
p.36).
144
desenvolver esse todo essencial, de modo que o tornasse o mais coerente e harmônico;
uma personalidade dissociada é, para Jung, uma personalidade disforme. Além de as
vivências clínicas corroborarem esse argumento, Jung identificou que a psique de cada
pessoa é também formada por um inconsciente coletivo, juntamente com o consciente e
o inconsciente pessoal. A noção de inconsciente coletivo não se refere a um indivíduo,
mas à humanidade. Em suas análises, Jung identificou que certos símbolos e certas
imagens, individuais a cada pessoa, presentes nos sonhos e nos depoimentos de seus
pacientes, eram similares a imagens míticas. Tribos e povos que nunca tiveram
aproximações entre si criaram imagens e mitos semelhantes uns aos outros. Essa
constatação foi crucial para que Jung elaborasse o conceito de inconsciente coletivo; para
a Psicologia Analítica, a psique é, portanto, constituída pelos seguintes elementos: o
consciente pessoal, o inconsciente pessoal e o inconsciente coletivo (HALL; NORDBY,
2021).
De acordo com Tonietto (2000), o inconsciente coletivo concerne à experiência
da psique humana, ao ser o vínculo que une, de forma consonante e atemporal, toda a
humanidade. Isso significa que o inconsciente coletivo é um aspecto psíquico
compartilhado pelos seres humanos. Jung (1998) afirma que o nível do inconsciente
pessoal se circunscreve às recordações infantis mais antigas, ao passo que o inconsciente
coletivo abrange o período anterior à infância, em que se encontram as reminiscências da
vida dos antepassados. Dessa maneira, introduz o conceito de arquétipo, que é o conjunto
das experiências humanas depositado pelos ancestrais ao longo de milénios, do início de
tudo até os dias atuais. O inconsciente coletivo é constituído por arquétipos, que são os
fundamentos da psique, com a capacidade de influenciar a vida dos indivíduos. O
arquétipo é, grosso modo, um elemento inerente ao ser, que determina um modelo de
comportamento. Conforme Jung (1998), esse processo pode ser observado nas ações
intuitivas do reino animal, como na construção de um ninho por um pássaro ou na
migração instintiva de baleias para acasalamento em mares mais quentes. De maneira
similar, o comportamento humano tem certos padrões. Devido a esses padrões, os fatores
do inconsciente coletivo dos seres humanos – os arquétipos – têm sistemas psíquicos
semelhantes, a despeito de a raça, a etnia e a origem cultural serem diferentes.
Os arquétipos são, basicamente, os instintos psíquicos, o que possibilita afirmar
que são a identidade da espécie humana. São o modo pelo qual os instintos se manifestam.
Pode-se verificar que a função que o instinto tem para o corpo é, em grande medida,
similar à que os arquétipos têm para a psique. Desse modo, ao se analisar a existência dos
145
instintos no ser humano, constata-se a presença dos arquétipos. O que mais os distingue
é a vinculação dos arquétipos a elementos subjetivos da espiritualidade e do inconsciente,
enquanto os instintos estão sujeitos a fatores fisiológicos e biológicos. Independentes da
consciência, os arquétipos têm uma espécie de energia própria, mas não são acessíveis à
consciência. O modo pelo qual se tornam perceptíveis para a consciência é por imagens
arquetípicas, compreendidos e experimentados pelo indivíduo mediante imagens
particulares e universais. Essas imagens arquetípicas formam-se por meio de símbolos,
fato que constitui, em grande parte, os mitos, as crenças religiosas, as lendas e os contos.
Todos os arquétipos estão sob os auspícios de um tipo de arquétipo principal, que é
classificado como Self, cuja concepção é o agrupamento de todos os outros arquétipos e
cuja função especial é a de harmonizar e a de nortear a vida do indivíduo. Para que se
manifeste, o Self deve ser “reconhecido, integrado e realizado” (TONIETTO, 2000).
Segundo Tonietto (2000), a psique do ser humano é formada por personalidades,
que se relacionam e exercem funções diversas. O ser psíquico tem dois núcleos
independentes, o ego e o Self. O ego corresponde ao domínio da consciência e é o cerne
da identidade subjetiva, enquanto o Self é a base da identidade objetiva – a psique por
inteira. A fim de se entender a dinâmica e as funções desses arquétipos, é importante
aprofundar o significado dos conceitos mais importantes para esta pesquisa. Para isso,
serão apresentados, em um organograma sinótico, os conceitos de Jung, para facilitar a
compressão geral da dinâmica de sua teoria. Posteriormente, cada tópico será detalhado
de acordo com a importância dos elementos para entender o caso estudado neste trabalho.
146
Extroversão e
Introversão
Estrutura da
Personalidade Pensamento
Sentimento
Consciência
Sensação
Intuição
Inconsciente
Complexos Persona
pessoal
Anima e Animus
Inconsciente
Arquétipos
coletivo
Sombra
Self
Sobre esse organograma, vale ressaltar alguns pontos. É importante salientar que
os aspectos que determinam a consciência são as atitudes determinantes da orientação da
mente consciente. Além disso, quando a consciência de um indivíduo se individualiza,
pode-se concluir que houve o processo de individuação, o que permite o surgimento do
ego. Finalmente, os arquétipos, que são os conteúdos do inconsciente coletivo, não se
circunscrevem somente aos apresentados no organograma, mas são os mais relevantes
para este trabalho.
147
4.2.1 PSIQUE
De acordo com Jung (2008), a psique, como sendo reflexo do ser humano e,
consequentemente, da maneira pela qual o ser humano se manifesta no mundo, pode ser
analisada em níveis diferentes, desde o âmbito coletivo até o individual. Examinar a
psique é enfrentar o mesmo problema quando se faz alguma análise sistêmica do mundo
ou do todo, cuja dificuldade reside na abrangência e na densidade do termo. O vocábulo
latino psique, que inicialmente tinha o sentido de “espírito” ou de “alma”, obteve, ao
longo do tempo, acepção de “mente”, que guarda o sentido empregado pela Psicologia.
Para Jung, a psique é a totalidade de todos os processos psíquicos, tanto conscientes
quanto inconscientes. Nesse sentido, Jung utiliza o termo psique em vez de “mente”, na
medida em que esta é ordinariamente referida aos aspectos do funcionamento mental
(HALL; NORDBY, 2021).
Jung (1991, CW6) afirmava que a psique é um sistema autorregulador, do mesmo
modo que o corpo físico também o é. A psique tem a função de manter o equilíbrio entre
qualidades opostas, enquanto busca seu desenvolvimento e aperfeiçoamento, cujo
processo Jung nomeou individuação – conceito que será posteriormente mais bem
elaborado. Para Jung, a psique pode ser compreendida por meio de seus elementos, como
os complexos e os conteúdos arquetípicos, funcionando de forma autônoma. Embora seja
a totalidade de todos os processos psíquicos conscientes e inconscientes, a psique não é
uma unidade homogênea; é, entretanto, uma matriz heterogênea de impulsos, de inibições
e de afetos contraditórios (JUNG; HULL, 2003). A psique manifesta-se por meio de
complexa interação de fatores, que abrange a idade, o sexo, a disposição hereditária, os
tipos psicológicos e o nível de consciência sobre os instintos de um indivíduo. Os
processos psíquicos comportam-se como uma gradação, pela qual a consciência perpassa.
Isso significa que, em um momento, o indivíduo encontra-se em um extremo, próximo ao
instinto, de sorte a receber sua influência; em outro, no entanto, está próximo à outra
extremidade, em que o espírito predomina, de maneira que consegue assimilar os
processos instintivos que mais se opõem a ele (JUNG, 2011a).
A psique é o início de toda a experiência humana, e o conhecimento obtido por
meio dessa vivência retorna a ela. Isso significa que a psique é o início e o fim de toda
cognição, que é, em resumo, a faculdade de adquirir conhecimento; ela não é, portanto,
148
somente o objeto de sua ciência, mas também o sujeito. Para Jung, a função da experiência
pessoal era desenvolver o que já existe, de forma que ative o latente arquetípico já
presente no Self. Dessa maneira, a psique não é meramente o resultado da experiência
individual, assim como os corpos físicos não são tampouco o resultado apenas do que se
ingere.
Consoante o pensamento de Jung, uma vez que o ser humano já nasce um todo
completo e tem o objetivo de desenvolver esse todo essencial, é importante verificar e
compreender quais são os elementos que compõem esse todo da psique. A estrutura da
psique elaborada por Jung pode ser apresentada por uma representação diagramática, em
que o consciente pessoal, o inconsciente pessoal e o inconsciente coletivo são os aspectos
fundamentais que integram essa estrutura. Os diferentes domínios da psique não estão
completamente separados uns dos outros, mas, em vez disso, interagem, continuamente,
de maneira compensatória. Essa interação dinâmica entre os domínios do consciente e do
inconsciente da psique gera o potencial de crescimento e de mudança pessoal e coletiva,
levando à individuação. Stevens explica que
o modelo deve ser observado como uma esfera com camadas. No centro
está o Self, que permeia todo o sistema com sua influência. No interior
dos três círculos concêntricos está o inconsciente coletivo, composto de
arquétipos. O círculo externo representa a consciência, com seu ego
focal orbitando o sistema como um planeta orbitando o sol, ou a lua
orbitando a Terra. O intermediário entre o consciente e o inconsciente
coletivo é o inconsciente pessoal, composto de complexos, cada um dos
quais está ligado a um arquétipo, visto que os complexos são
personificações de arquétipos; eles são os meios pelos quais os
arquétipos se manifestam na psique pessoal (STEVENS, 2001, p. 49).
149
Figura 4 - Modelo da Psique Humana conforme Jung
151
princípio da equivalência, pois argumenta que da psique nada desaparece, apenas se
transfere. Esse processo é demonstrado, por exemplo, quando a perda de interesse em um
objeto ou em um problema gera interesse em outro objeto ou problema. Isso significa que
o conteúdo que gera maior valor para o indivíduo promoverá trocas energéticas com o
conteúdo que gera menor valor energético, em função do interesse de energia direcionado.
Esse processo, por sua vez, não representa que outras áreas da psique estão sem energia
psíquica, mas que utilizam menos energia nesse contexto; a energia psíquica movimenta-
se, portanto, por meio de um sistema de compensações.
4.2.3 CONSCIÊNCIA
152
Hall e Nordby (2021) esclarecem ainda que, além das quatro funções psicológicas,
Jung avaliou que há duas atitudes determinadoras da orientação da mente consciente,
conhecidas como extroversão e introversão. A atitude extrovertida norteia a consciência
para o âmbito externo objetivo, ao passo que a atitude introvertida conduz a consciência
ao domínio interior subjetivo. Fundamentado nesse constructo, Jung identificou
processos psicológicos básicos e explicou o modo pelo qual esses processos se vinculam
com base em várias combinações, com o propósito de determinar o caráter de um
indivíduo. Antes de aprofundar nos conceitos das funções psicológicas, é importante
pormenorizar o significado dos vocábulos objetivo e subjetivo, para compreender em que
nível a extroversão e a introversão se apresentam.
No que se refere ao âmbito objetivo, Jung entende que é tudo o que está no
exterior, que é externo ao indivíduo, em que se encontram os costumes, as convenções,
as instituições políticas, econômicas e sociais. No que concerne ao domínio subjetivo,
pode-se entender o plano interior e privado da psique, pois não é diretamente observado
por quem está de fora, de sorte que nem sempre se faz acessível à mente consciente. A
energia psíquica, ou seja, a libido, na extroversão, é direcionada para as representações
da esfera exterior objetiva e empregada em percepções, pensamentos e sentimentos
referentes a objetos, pessoas, animais, circunstâncias. Já na introversão, a energia psíquica
perpassa estruturas e processos psíquicos subjetivos. Essas duas atitudes são excludentes,
de modo que não existem concomitantemente na consciência; podem, todavia, alternar-
se. Isso significa que um indivíduo pode ser ora introvertido ora extrovertido, embora
uma dessas atitudes prevaleça na maior parte do tempo.
Ao retomar à explicação do processo das quatro funções psicológicas
(pensamento, sentimento, sensação e intuição), é importante entender a relevância desses
conteúdos na consciência. A função psicológica pensamento é o processo intelectual e
mental de interpretar o que é percebido. O pensamento é, basicamente, a capacidade de
relacionar ideias e representações mentais, de modo a resolver problemas ou encontrar
soluções. Jung (1991, CW6) classificou, ainda, o pensamento entre ativo e passivo. O
pensamento ativo é um ato da vontade, enquanto o pensamento passivo é uma mera
ocorrência. No primeiro caso, o conteúdo é submetido a um ato voluntário de julgamento;
no segundo, as conexões de ideias estabelecem-se por conta própria. O pensamento ativo
corresponderia, consequentemente, ao conceito de pensamento dirigido, e o pensamento
passivo, ao de pensamento intuitivo. A capacidade de pensamento dirigido nomeia-se
153
intelecto, e a capacidade de pensamento passivo ou não direcionado, de intuição
intelectual.
A função psicológica sentimento avalia e julga o quanto algo ou alguém vale. Isso
significa que essa função aceita ou rejeita uma concepção com base no sentimento
agradável ou desagradável que tal ideia gera. Jung (1993, CW10) assevera que um
sentimento é uma realidade tão indiscutível quanto a existência de uma ideia. Como um
processo subjetivo, essa função pode ser bastante independente de estímulos externos. De
acordo com Jung, é uma função racional, como o pensamento, no sentido de que é
influenciada não pela percepção, como são as funções sensação e intuição, mas pela
reflexão. Um indivíduo cuja atitude geral é orientada pela função sentimento é chamado
tipo sentimental. Comumente, o sentimento é confundido com a emoção. Esta, mais
apropriadamente nomeada de afeto, é a consequência de um complexo ativado. Sentir-se
não contaminado pelo afeto pode parecer bastante insensível e impessoal. A função
sentimento distingue-se do afeto pelo fato de aquele não produzir inervações59 físicas
perceptíveis, ou seja, nem mais nem menos do que um processo de pensamento comum
(JUNG, 1991, CW6). Pensamento e sentimento são categorizados como funções
racionais, na medida em que ambos demandam ato de julgamento. Quando pensa, o
indivíduo faz julgamentos acerca da conexão de ideias; similarmente, quando sente, julga
se a ideia é agradável ou desagradável, por exemplo.
A sensação é a função psicológica que percebe60 a realidade imediata por meio
dos sentidos físicos. Isso significa que essa função é uma percepção sensorial que abrange
não só as experiências advindas do estímulo dos órgãos sensoriais, como cheiros,
paladares, tato, visão, mas também inclui as sensações originárias das mudanças nos
processos orgânicos internos. Jung clivou também essa função psicológica entre sensação
sensorial ou concreta e sensação abstrata. A sensação concreta nunca aparece na forma
"pura", mas está relacionada a ideias, sentimentos, pensamentos. A sensação concreta de
uma flor, por exemplo, transmite uma percepção não apenas da flor como tal, mas também
do caule, das folhas, do habitat e assim por diante. Relaciona-se, instantaneamente, à
sensação de prazer ou antipatia que a visão da flor evoca, com percepções olfativas
simultâneas, com pensamentos sobre sua classificação botânica, etc. Por sua vez, a
59
Veiculação de energia psíquica para determinada parte do corpo, gerando fenômenos motores ou
sensitivos. Termo usado por Freud em seus estudos sobre a histeria (OXFORD LANGUAGES, 2020).
60
Tomar consciência de, por meio dos sentidos.
154
sensação abstrata escolhe imediatamente o atributo sensual mais saliente da flor, como
sua vermelhidão brilhante, e torna isso o único ou pelo menos o conteúdo principal da
consciência, inteiramente separado de todas as outras combinações (JUNG, CW 6, 1991).
A função psicológica intuição percebe possibilidades inerentes ao presente. No
modelo tipológico de Jung (1991, CW6), a intuição, do mesmo modo que a sensação, é
uma função irracional, pois sua apreensão do mundo é baseada na percepção de fatos
existentes. Ao contrário da sensação, a intuição percebe por meio do inconsciente e não
depende da realidade concreta. Na intuição, um conteúdo apresenta-se de maneira inteira
e completa, sem que se possa explicar ou descobrir de onde esse conteúdo se originou. A
intuição é uma espécie de apreensão instintiva, de modo que o conhecimento intuitivo
tem uma certeza e uma convicção intrínsecas. A intuição pode receber informações de
dentro, como um lampejo de origem desconhecida, ou ser estimulada a partir do que
ocorre em outro indivíduo. Isso revela que esse primeiro processo é uma percepção de
conteúdos psíquicos inconscientes originados no sujeito; e o segundo processo é, por sua
vez, uma compreensão de conteúdos dependentes de percepções do âmbito consciente do
objeto, dos quais sentimentos e pensamentos são evocados. A intuição e a sensação não
são consequências do pensamento ou do sentimento, além de não exigirem julgamentos.
Nesse sentido, não recorrem à razão. São estados mentais que se desenvolvem com base
em estímulos que agem no ser humano. Esses impulsos não são teleológicos, de modo
que não há objetivo a ser cumprido, o que difere das funções psicológicas pensamento e
sentimento.
Fundamentado nesses conceitos, Jung demonstrou que há oito combinações
possíveis entre atitudes e funções psicológicas que podem ser analisadas para
compreender a abrangência da consciência. Serão somente citadas as combinações
possíveis, uma vez que não é necessário, para o objetivo deste trabalho, pormenorizar e
aprofundar cada uma dessas combinações. Consoante Stevens (2011), Jung observou que
é raro que haja utilização exclusiva de apenas uma função: os indivíduos tendem a
desenvolver duas funções, geralmente uma racional e outra irracional; uma torna-se a
principal e a outra, a auxiliar. As outras duas funções permanecem relativamente
inconscientes e vinculadas à sombra. A mais inconsciente delas é conhecida como função
inferior. Não é, desse modo, comum encontrar pensamento e sentimento ou sensação e
intuição desenvolvidos juntos no mesmo indivíduo. Consequentemente, não só as funções
racionais, pensamento e sentimento, podem ser concebidas como uma díade de opostos,
mas também as funções irracionais, sensação e intuição, também o podem.
155
As combinações de atitudes e de funções psicológicas que Jung sugere podem ser
descritas da seguinte forma: a) tipo pensamento introvertido com função inferior de
sentimento extrovertido; b) tipo pensamento extrovertido com função inferior de
sentimento introvertido; c) tipo sentimento introvertido com função inferior de
pensamento extrovertido; d) tipo sentimento extrovertido com função inferior de
pensamento introvertido; e) tipo sensação introvertida com função inferior de intuição
extrovertida; f) tipo sensação extrovertida com função inferior de intuição introvertida;
g) tipo intuição introvertida com função inferior de sensação extrovertida; e h) tipo
intuição extrovertida com função inferior de sensação introvertida. O diagrama abaixo
auxilia na compreensão desse processo.
Esse diagrama, que pode ser interpretado como a bússola da psique junguiana,
demonstra as atitudes e as funções psicológicas de um tipo pensamento extrovertido com
função inferior de sentimento introvertido, de modo a ilustrar a dinâmica da interação
entre esses aspectos da consciência da psique. Na realidade, cada indivíduo tem seu
exclusivo padrão de atitudes e de funções psicológicas, o que não significa que inexista
alguma dessas atitudes ou funções. Caso não se encontrem na consciência, estarão no
inconsciente, a partir de onde continuam a influir no comportamento, pois ainda
permanecem em um estado primitivo (HALL; NORDBY, 2021).
156
A consciência de um indivíduo torna-se única e singular por meio de um
desenvolvimento chamado individuação, que é o processo pelo qual o indivíduo se torna
um todo indivisível. A individuação é um processo de diferenciação psicológica, que tem
como objetivo o desenvolvimento da personalidade individual. Em geral, é o processo
pelo qual os seres individuais são formados e diferenciados. Mais especificamente, é o
desenvolvimento do indivíduo psicológico como um ser distinto da psicologia geral e
coletiva. Desse modo, o intuito da individuação é despojar o Self dos falsos envoltórios
da persona e do poder sugestivo das imagens primordiais, (JUNG, 1991, CW8)
Tornar-se uma unidade integral significa alcançar o objetivo máximo do processo
de individuação: a autoconsciência. Nessa perspectiva, a individuação e a consciência
evoluem juntas no desenvolvimento da psique, de sorte que o começo da consciência é,
igualmente, o início da individuação. Isso denota que quanto mais o indivíduo desenvolve
a consciência, mais avançado estará o processo de individuação e, consequentemente,
mais autoconsciente e integral esse indivíduo se torna. Jung explica que quanto menos o
ser humano tem consciência de si, menos individualizado esse indivíduo se transforma.
O processo de individuação será mais bem detalhado posteriormente, na medida em que
o conhecimento sobre o processo de individuação se torna mais inteligível após a
apresentação e a análise dos outros elementos da psique junguiana. Com base nesse
processo de individuação da consciência, advém um novo elemento: o ego.
4.2.4 EGO
157
no dia a dia, vemo-nos sujeitos a um grande número de
experiências, a maioria das quais não se tornam conscientes
porque o ego as elimina antes que atinjam a consciência. Tal
função é importante porque, caso contrário, ficaríamos
assoberbados pela massa do material acumulado na consciência
(HALL; NORDBY, 2021, p.27).
158
controle do inconsciente, ou pela assimilação do Self ao ego, em que o ego se torna
proeminente. Em ambos os casos, o resultado é o excesso, com distúrbios na adaptação
(JUNG CW5, 1986).
4.2.6 COMPLEXOS
159
preocupação, de necessidade de poder ou de ideia de inferioridade que acabam
influenciando o comportamento. Os complexos interferem na vontade e prejudicam o
desempenho consciente do ego, ao produzir distúrbios de memória e bloqueios no fluxo
de associações, surgindo e desaparecendo conforme suas leis. Os complexos são
independentes, têm força propulsora própria e podem influir no gerenciamento de
pensamentos e de comportamentos, além de serem incompatíveis com a atitude habitual
da consciência; um complexo é, portanto, uma parte da personalidade separada da
personalidade total. (HALL; NORDBY, 2021).
É interessante observar que Jung entende o complexo não necessariamente como
algo que um indivíduo tem, mas algo que o possui. Isso significa que uma pessoa não
tem, fatalmente, um complexo, mas o complexo que a tem, de modo que é possuída por
ele. Compreendê-lo é essencial para libertá-la do domínio do complexo; no entanto, este
não é sempre um óbice ao aperfeiçoamento do indivíduo, ao também ser fonte de
inspiração para a criação e execução de um objetivo. Jung oferece o exemplo da produção
artística e do artista, em que este pode ser estimulado pelo complexo da perfeição ou da
beleza pura, o que eventualmente poderia gerar resultados positivos, na medida em que
há a possibilidade de criação de obras únicas, embora o artista possa abdicar-se de seu
bem-estar (JUNG, 1988, CW16).
Jung (2003) explica ainda que a identificação com um complexo, particularmente
a anima, o animus e a sombra, pode ser uma fonte frequente de neurose. O objetivo do
reconhecimento e da análise não é livrar-se dos complexos, mas minimizar seus efeitos
negativos, ao compreender a função que desempenham nos padrões de comportamento e
nas reações emocionais. Hall e Nordby (2021) demonstram que a ideia do complexo
surgiu pela influência de Freud, visto que Jung acreditava, inicialmente, que os
complexos advinham das experiências traumáticas da primeira infância; no entanto Jung
percebeu que os complexos têm origens mais profundas na natureza humana do que
somente as experiências da primeira infância. Essa análise levou-o a descobrir outro nível
da psique, ao nomeá-la de inconsciente coletivo.
De acordo com Jung (2011), o inconsciente coletivo é uma parte da psique que se
diferencia do inconsciente pessoal, em função de que sua existência não depende da
existência da experiência pessoal. Isso significa que os conteúdos do inconsciente
160
coletivo não advêm de qualquer aquisição da experiência pessoal. Enquanto o
inconsciente pessoal é formado fundamentalmente de conteúdos que já foram
conscientes, não obstante tenham desaparecidos da consciência por terem sido esquecidos
ou reprimidos, os conteúdos do inconsciente coletivo jamais se encontraram na
consciência. Isso significa que esses conteúdos não foram obtidos individualmente, mas
devem sua existência apenas à hereditariedade.
O inconsciente coletivo contém toda a herança hereditária da evolução da
humanidade, que pode ser revivida, novamente, na estrutura cerebral de cada indivíduo.
Para corroborar essa afirmação, Jung derivou a teoria do inconsciente coletivo com base
na onipresença dos fenômenos psicológicos que não podiam ser explicados com base na
experiência pessoal. Com esse esclarecimento sobre o conceito de inconsciente coletivo,
Jung (2011) rompeu com o determinismo da mente em um sentido social, visto que os
conteúdos da mente não são apenas formados pela experiência pessoal, mas também
influenciados pelos conteúdos do inconsciente coletivo, e explicou que “a evolução e a
hereditariedade fornecem as linhas de ação para psique, exatamente como o fazem para
o corpo.” (HALL; NORDBY, 2021, p.31).
Por meio do cérebro, a mente herda as características que definem de que modo o
indivíduo reagirá às experiências de vida, pois a mente do ser humano é pré-formada pela
evolução, de modo que este está circunscrito ao passado de sua primeira infância, bem
como ao passado de sua espécie. Jung (2011) observa que o inconsciente coletivo é um
reservatório de imagens iniciais ou originárias, cujo conteúdo concerne ao
desenvolvimento inaugural da psique. Isso significa que o ser humano herda essas
imagens de seus ancestrais, heranças que abrangem todos os antepassados humanos e
proto-humanos ou animais.
O inconsciente coletivo é constituído de imagens mitológicas ou imagens
primordiais, de maneira que os mitos de basicamente todas as nações são referências na
dinâmica social e política dessas sociedades. Pode-se considerar que a mitologia é um
tipo de projeção do inconsciente coletivo, o que possibilita o estudo do inconsciente
coletivo por meio da mitologia ou da análise do indivíduo. Quanto mais se conhece os
conteúdos do inconsciente pessoal, mais se revela a rica camada de imagens e de temas
que compõem o inconsciente coletivo, o que amplia a personalidade.
Nesse sentido, forma-se uma consciência que não está mais cerceada ao mundo
pessoal e supersensível do ego, mas que participa, mais amplamente, do mundo dos
interesses coletivos e objetivos. Essa consciência ampliada não é mais um conjunto
161
egoísta de desejos, medos, esperanças e ambições pessoais que deve ser constantemente
compensado ou corrigido por contratendências inconscientes; é, ao contrário, uma função
de relacionamento com o mundo dos objetos, levando o indivíduo a uma comunhão
absoluta, vinculativa e indissolúvel com o mundo em geral (JUNG, 2011).
É importante notar que Jung nomeou os conteúdos do inconsciente coletivo de
arquétipos. Dessa maneira, enquanto o inconsciente pessoal consiste, em sua maior parte,
de complexos, o conteúdo do inconsciente coletivo é constituído essencialmente de
arquétipos.
4.2.8 ARQUÉTIPOS
162
do cérebro também o é, mas representando o aspecto psíquico. Os arquétipos
caracterizam, por um lado, os aspectos instintivos da psique mais relevantes do ser
humano, enquanto, por outro, constituem os mecanismos mais eficazes de adaptação
instintiva. Jung (2011) afirma, dessa maneira, que eles são, essencialmente, a parte
ctônica61 da psique, cujos conteúdos estão vinculados à natureza.
Os arquétipos apresentam-se como ideias e imagens, do mesmo modo que outros
elementos que se tornam conteúdo da consciência. Além disso, organizam os materiais
psíquicos em certas imagens determinadas, de tal maneira que só podem ser reconhecidos
pelos efeitos que produzem, mas não pela imagem em si mesma. Como mencionado
anteriormente, os arquétipos são como "imagens instintivas", ou seja, formas que os
instintos assumem. Com linguagem poética, Jung afirma que, psicologicamente, o
arquétipo, como uma imagem do instinto, é uma meta espiritual pela qual toda a natureza
do ser humano se empenha para alcançar; é o mar para o qual todos os rios seguem seu
caminho; o prêmio que o herói arranca da luta com o dragão (JUNG, 1991, CW8).
Os arquétipos manifestam-se tanto no nível pessoal, por meio de complexos,
quanto no nível coletivo, por meio de características culturais de povos e de sociedades.
Jung acreditava que
61
Em mitologia, e particularmente na grega, o termo ctônico refere-se à “terra" ou "terreno" e concerne aos
deuses ou espíritos do mundo subterrâneo, por oposição às divindades olímpicas. Por vezes, são também
denominados "telúricos". Essa palavra é uma das várias que são usadas para "terra", além de se relacionar
tipicamente ao interior do solo mais do que à superfície da terra ou à terra como território (BURKERT,
2021).
163
não sob a forma de imagens completas de conteúdo, mas, inicialmente, sob formas sem
conteúdo, que ensejaram somente a expectativa de um certo tipo de percepção e de ação.
Isso significa que, quando alguma situação que se relaciona a um arquétipo acontece na
vida de um indivíduo, esse arquétipo é ativado, de modo que uma compulsão é gerada e
se impõe sobre a razão e sobre a vontade do indivíduo, ou, ainda, essa compulsão gera
certa patologia, como a neurose62.
Para que haja uma correta compreensão da teoria dos arquétipos, Jung (2011)
esclarece que estes não devem ser considerados representações inteiramente
desenvolvidas na mente, como as imagens de experiências passadas, mas aproximam-se
de imagens e de conteúdos que estão à espera de serem revelados pela experiência. Isso
significa que uma imagem primordial só consegue ser definhada em relação ao seu
conteúdo após se tornar consciente e estar completa pelo material da experiencia
consciente. Todos os seres humanos herdam as mesmas imagens arquetípicas básicas, já
que os arquétipos são universais; entretanto o modo pelo qual estes se manifestam é
diferente, devido às experiências particulares de cada indivíduo. Adicionalmente, os
arquétipos podem fazer combinações entre si, não obstante formem estruturas separadas
no inconsciente coletivo, o que contribui para a formação das diferenças de
personalidades nos indivíduos (HALL; NORDBY, 2021).
Ao se analisar as origens dos complexos, é interessante notar que, atuando como
centro de um complexo, o arquétipo funciona como um elemento de atração, ao trazer
para si as experiências vividas com o objetivo de formar um complexo. Ao se fortalecer,
à medida que se acrescenta mais experiências, o complexo é capaz de alcançar a
consciência. Com a constituição do centro de um complexo desenvolvido, o arquétipo
será capaz de se expressar na consciência e no comportamento. Hall e Nordby apresentam
o exemplo
62
A neurose é uma crise psicológica devido a um estado de desunião consigo mesmo ou, mais formalmente,
uma dissociação leve da personalidade devido à ativação de complexos. Jung definiu neurose como uma
dissociação da personalidade em decorrência dos complexos. Quando um complexo se torna incompatível
com o complexo do ego, o indivíduo experimenta a sensação de ansiedade, por exemplo. Para conter a
ansiedade, a pessoa dissocia o complexo incompatível do ego e manobra inconscientemente contra o ego
ou outros complexos identificados com o ego. Essa dissociação capacita a pessoa a manter os dois
complexos incompatíveis, um mais identificado com o ego e o outro mais com o ego distônico. O ego
distônico é frequentemente experimentado como sendo infligido pelo mundo externo (“eu estou sendo
maltratado” em vez de “eu tenho um conflito interno”). A cisão resta particularmente evidente em
transtornos de conversão e dissociativos e é uma explicação do fenômeno das múltiplas personalidades.
Dentro da psique, o ego, ou personalidades parciais ou complexos, opera junto com personalidades-sombra
antitéticas a elas.
164
do complexo divino a partir de um arquétipo de Deus. Como todos os
demais, este arquétipo existe primeiro no inconsciente coletivo. À
medida que se vão somando as experiencias da pessoa com o mundo,
as que têm alguma importância para o arquétipo de Deus se vão lhe
aderindo para formar o complexo. O complexo toma-se cada vez mais
forte em virtude da acumulação de novos materiais, até adquirir força
suficiente para forçar um caminho para a consciência. Se o complexo
de Deus se tornar dominante, grande parte do que a pessoa experimenta
e a sua maneira de se comportar passam a ser governados pelo
complexo divino. Tal pessoa percebe e julga tudo em termos de bem e
de mal, advoga o fogo do inferno e a danação para os “maus” e um
paraíso eterno para os virtuosos, acusam as pessoas de viverem no
pecado e delas exige arrependimento. Julga-se um profeta de Deus, ou
mesmo o próprio Deus, e está certa de que é a única criatura capaz de
revelar à humanidade os caminhos da virtude e da salvação. Esta pessoa
seria considerada fanática ou psicótica. Seu complexo assumiu-lhe o
controle da personalidade. Temos aí um exemplo de um complexo que
opera com capacidade extrema e ilimitada. Se o complexo divino deste
homem estivesse funcionando como uma parte de sua personalidade em
lugar de lhe dominar a personalidade total, ele poderia ter prestado
grandes serviços à humanidade (HALL; NORDBY; 2021, p. 35).
Embora haja uma miríade de arquétipos que possam ser analisados em cada
situação específica, há alguns que são mais recorrentes e mais importante para esta
dissertação. Os arquétipos mais utilizados para entender as relações políticas, sociais e
culturais entre sociedades e entre Estados serão os seguintes: o arquétipo da persona, do
animus/anima, da sombra e do Self.
4.2.9 PERSONA
O termo persona tem sua origem do teatro grego antigo, que, à época, significava
máscara, definição essa que auxilia na compreensão do significado atual que esse
vocábulo recebeu. Para entender esse conceito, pode-se descrever a persona como um
arquétipo vinculado às ações que o indivíduo tem com o mundo exterior, para que haja
sua adaptação às obrigações do meio social em que vive. Refere-se à identidade e à
performance de funções socialmente imbuídas a um indivíduo, além de corresponder a
uma expressiva parcela do comportamento do sujeito como personagem coletiva. A
persona é um ente que se mostra para fora, e o ser humano identifica-se com a persona,
de modo que tem certa consciência coletiva, mas não uma identidade verdadeiramente
desenvolvida. O indivíduo tem a ilusão de individualidade, corroborada pela persona, que
funciona como um intermediário entre a pessoa e o mundo. Dessa forma, Jung assevera
que a persona é o que não se é na realidade, porém o que se imagina que seja.
165
A formação de uma persona que seja socialmente adequada revela uma concessão
ao mundo exterior, em um ato de autossacrifício, que impulsiona o eu a identificar-se com
a persona. Consequentemente, esse fato possibilita os seres humanos acreditarem que são
o que pensam ser. Como dizia Jung, a falta de alma que essa mentalidade parece implicar
é só fictícia, na medida em que o inconsciente não aceita esse desvio do centro de
gravidade. Ao se analisar casos desse tipo, descobre-se que a máscara ideal é compensada
no interior por um tipo de vida particular (JUNG, 2008).
Desse modo, consoante Saiani (2000), é importante estar atento às imposições da
sociedade e das máscaras usadas para assegurar a aparência. A máscara deve ser usada de
modo maleável, não sendo interessante utilizá-la em todas as circunstâncias. Além disso,
é também importante ser capaz de não usar nenhuma, uma vez que a confusão
psicológica, entre ser ou não ser a persona do momento, pode instalar-se. O médico, o
religioso, o mercador, a mãe, o pai e o filho, por exemplo, têm uma função anteriormente
definida pelos aspectos sociais e culturais de uma sociedade, função essa que é
relativamente igual. Deduz-se que o indivíduo aja como se estivesse encenando em uma
peça teatral, tendo as máscaras como motivador de nossas ações.
Pode-se considerar que a persona é uma máscara do psiquismo coletivo, que finge
individualidade, impulsionando os outros e a si mesmo a acreditem que cada ser humano
é um indivíduo, embora todos estejam simplesmente desempenhando uma função por
meio do qual o psiquismo coletivo se expressa. Quando se analisa a persona e se coloca
a máscara de lado, identifica-se que o que parecia ser individual é, na realidade, coletivo.
Isso significa que a persona era apenas uma máscara da psique coletiva.
Fundamentalmente, a persona não é nada real: é um compromisso entre o indivíduo e a
sociedade em relação ao que um ser humano deveria ser. Este recebe um nome, ganha
título, exerce uma função. De certo modo, tudo isso é real, mas em relação à
individualidade essencial da pessoa em causa é apenas uma realidade secundária, uma
formação de compromisso, em que os outros muitas vezes têm uma participação maior
do que o próprio indivíduo.
O objetivo da persona é auxiliar no reconhecimento das atribuições da vida de
cada indivíduo para que as relações sociais possam ser estabelecidas. Jung argumenta que
a persona estabelece uma interação entre a consciência individual e o meio social, gerando
certa influência, ao mesmo tempo que oculta a legítima natureza do indivíduo. Isso
significa que a identificação completa do ser com a persona é a negação por inteira da
natureza mais profunda de si.
166
4.2.10 ANIMA E ANIMUS
Em sua análise, Jung (1991, CW6) observou que, além da existência de uma
personalidade externa (persona), que se relaciona com o mundo externo, há também a
uma personalidade interna, a alma, que se relaciona com o mundo interno e que no homem
se chama anima e na mulher, animus. Diferentemente da persona, a alma é o arquétipo
que concerne aos aspectos internos do indivíduo, isto é, o inconsciente. Nos estudos
acerca da estrutura do inconsciente, Jung fez uma distinção entre alma e psique. Por
psique, asseverou que é a totalidade dos processos psíquicos, conscientes e inconscientes.
Por alma, identificou um complexo limitado de funções que se caracterizava como
personalidade.
O arquétipo anima forma o lado feminino da psique masculina, enquanto o
arquétipo animus compõe o lado masculino da psique feminina. Todo indivíduo tem
características do sexo oposto, não apenas no sentido biológico, em que tanto o homem
quanto a mulher secretam hormônios masculinos e femininos, mas também no sentido
psicológico das atitudes e dos sentimentos. O homem desenvolveu o seu arquétipo da
anima por meio do relacionamento continuado com as mulheres ao longo de muitas
gerações, enquanto a mulher desenvolveu o seu arquétipo do animus mediante o
relacionamento com os homens durante muitas épocas. Ao viver e interagir um com o
outro durante gerações, cada sexo adquiriu características do sexo oposto, que facilitam
as respostas adequadas e a compreensão do outro sexo, de modo que os arquétipos da
anima e do animus, do mesmo modo que o da persona, têm um valor importante para a
sobrevivência (JUNG, 2011).
Com o intuito de a personalidade permanecer em equilíbrio, o lado feminino da
personalidade do homem e o lado masculino da personalidade da mulher devem poder
expressar-se na consciência e no comportamento, para que se desenvolvam e não
permaneçam em um estado primitivo. Isso garante, consequentemente, o melhor
funcionamento da psique. Para melhor compreensão do contexto interior do ser humano,
é importante reforçar a explicação de anima e de animus. Anima é a característica
feminina interior da psique do homem, que tem por objetivo possibilitar a relação com o
inconsciente. Considera-se a anima
167
identificada inicialmente com a mãe-pessoa. Mais tarde, ela é
vivenciada não apenas em outras mulheres, mas como uma influência
que acompanha toda a vida de um homem. A anima é personificada,
nos sonhos, por imagens de mulheres, que se apresentam tanto como
sedutoras quanto como guias espirituais. Está associada ao princípio de
Eros, motivo pelo qual o desenvolvimento da anima de um homem
reflete a maneira pela qual ele se relaciona com as mulheres. Dentro da
própria psique, a anima funciona como alma, influenciando as ideias,
atitudes e emoções de um homem (SHARP, 1993, p. 18).
168
traços reunidos por afetos comuns e que, como todos os complexos, têm um núcleo
arquetípico, como o arquétipo do Inimigo ou o do Estranho.
De acordo com Jung, por ser a parte desconhecida ou rejeitada da personalidade,
a sombra apresenta-se como instintiva e irracional, além de ser propensa à projeção
psicológica. Esta funciona da seguinte maneira: caso algum aspecto de inferioridade
pessoal seja percebido pelo próprio indivíduo, essa característica é, imediata e
inconscientemente, reconhecida como uma deficiência moral percebida em outro
indivíduo. Jung afirma que, se os fatores geradores das projeções permanecerem ocultos,
o princípio de criação da projeção, no caso o arquétipo sombra, tem completa liberdade,
de modo que possa realizar seus intentos, caso tenha algum. Conforme Jung apresenta, a
sombra é essa parte obscura do indivíduo, da qual um ser se livra, geralmente, por meio
das projeções, ao transferir os conteúdos viciados da sombra de um ser humano a outros
seres humanos ou a outras divindades. Consequentemente, os resultados da projeção da
sombra implicam certo distanciamento do indivíduo em relação à realidade, pois a sombra
atua como um obstáculo entre o ego e a realidade.
A projeção é um dos mecanismos que o ego emprega para preservar os conteúdos
arquetípicos desagregados da consciência. Os outros mecanismos são a negação e a
repressão. A negação é a não aceitação consciente de algum fato, de alguma situação ou
de algum aspecto que desestabilize o ego, enquanto a repressão é o mecanismo que afasta
aquilo que gera desarmonia à consciência, de forma que mantém os conteúdos
arquetípicos no ostracismo do inconsciente. Nesse sentido, o reconhecimento da sombra
é imprescindível para que o ego do indivíduo se torne mais consciente da realidade e
menos absorto pela projeção da sombra. Com esse reconhecimento, há possibilidade de
analisar e integrar os complexos, diminuir a dinâmica de projeção da sombra no outro e
equilibrar as faculdades do ego. Isso só se pode tornar uma realidade, na medida em que
os aspectos fundamentais para o desenvolvimento do ego se encontram na sombra
(JUNG, 1988, CW11). Stevens ainda explica que
169
permite negar nossa própria sombra e atribuí-la a outros, a quem
consideramos responsáveis por ela. Isso explica a prática quase
onipresente do bode expiatório e está subjacente a todos os tipos de
preconceito contra pessoas pertencentes a grupos identificáveis que não
o nosso. A projeção da sombra também está envolvida no sintoma
psiquiátrico da paranoia, quando os próprios sentimentos hostis e
persecutórios são repudiados e projetados para os outros, que são, então,
experimentados como hostis e persecutórios em relação a si mesmo
(STEVENS, 2001, p.56).
170
modo, por meio da projeção da sombra coletiva, desinteligências e desequilíbrios
ocorrem, e a recusa de responsabilizar-se por atos desestabilizadores, como os de
violência, é o que torna possível identificar a sombra coletiva de uma nação.
Stevens exemplifica do seguinte modo:
171
4.2.12 SELF
63
Para Rudolf Otto, numinoso é a consciência do grande mistério, que é algo enigmático, inexplicável e
terrível que inspira temor e veneração; essa consciência seria a base da experiência religiosa da humanidade
(FILOSOFIA, 2018).
172
atração e emoção, pois é uma experiência que gera uma sensação de plenitude de sentido
incomum.
No que concerne à consciência, esta advém, para a Psicologia Analítica, do
inconsciente, que é constituído de uma superestrutura cuja gênese está no próprio
inconsciente, de modo que o que vem primeiro é o inconsciente e, posteriormente, surge
a consciência. Já a personalidade precede o ego, que se constitui e se transforma no centro
da consciência. É a partir do Self, portanto, que a consciência se forma. Dessa maneira,
consoante Edinger (1995), o Self nasce; o ego, todavia, é constituído. A consciência não
se cria a si mesma, mas emana das profundezas desconhecidas. Conforme Jung
apresentou, a consciência não é somente influenciada pelo inconsciente, mas também é
emergida constantemente dele, manifestando-se em ideias e inspirações.
O Self e o ego têm uma relação intrínseca, pois é do Self que advém a energia da
vida. O ego cerceia-se do Self, caso esse vínculo se interrompa. Consequentemente, o
indivíduo fragiliza-se; porém, com o reestabelecimento do vínculo e o conteúdo do
inconsciente pessoal e do inconsciente coletivo à consciência, a personalidade
potencializa-se, ao se tornar mais completa. Inicia-se, por consequência, o processo de
autoconhecimento. Sem esse processo, Jung explica que as enfermidades psíquicas
surgem, gerando uma ausência de sentido para vida. O ser humano é, em suma, parte de
um todo e paulatinamente vai diferenciando-se. À proporção que a consciência do eu se
vai formando, fragmenta-se do todo. O indivíduo identifica-se, portanto, com essa
característica da psique, que é a consciência, e esquece-se do Self, o todo (TONIETTO;
FIALHO, 2000).
173
considerar se a personalidade e a experiência de vida desse intelectual influenciaram
diretamente seu desenvolvimento teórico. No caso de Jung, esse movimento em direção
a sua experiência pessoal e clínica, que o próprio Jung classificou como “equação
pessoal64”, é patente, o que contribuiu, em termos gerais, para a elaboração de teorias e
de conceitos sobre a psicologia humana. Essa análise geral é especialmente importante
para compreender sua perspectiva política, muito embora seu objeto de estudo principal
não fosse a política, mas concernia às preocupações psicoterapêuticas, às críticas a Freud,
aos problemas da modernidade e seu interesse em reinterpretar o Cristianismo (Stevens,
1990). Jung esforçou-se para apontar que sua equação pessoal incluía o fato de que era
um europeu, suíço, cientista e psiquiatra, de modo que, ao realizar esse tipo de
observação, compreendia que estava profundamente cônscio do impacto da socialização
e do ambiente na formação de percepções inconscientes. Isso demonstrou que Jung não
era ingênuo em relação aos aspectos subjetivos da produção do conhecimento e entendia
que havia idiossincrasias pessoais na elaboração do saber científico e acadêmico.
(LEWIN, 2009).
De acordo com Lewis (2009), houve, durante certo período, impressão de que
Jung não se interessava em eventos políticos. Essa tendência de subestimar sua
consciência política é recrudescida pelo pequeno número de declarações e escritos
políticos que produziu, em proporção à sua enorme produção sobre outros assuntos. Isso
significa que elaborar uma imagem de seu perfil político é algo como fazer uma
investigação, pois o que havia de produção política por parte de Jung se encontra
espalhada por suas obras. Apenas algumas das declarações políticas de Jung estão
contidas no volume dez das “Obras Completas”, e o restante está espalhado por outros
volumes desse mesmo compêndio, ou mais frequentemente encontradas em pequenas
referências nas cartas ou nos comentários dos Seminários (LEWIN, 2009). A maioria dos
comentários políticos de Jung são retirados de suas entrevistas ou de seus ensaios sobre
eventos do momento, de modo que a maior parte do material não é produto de longa
reflexão ou de tentativa de formulação teórica. Ao analisar as obras de Jung, pode-se
observar que, como comentador de eventos políticos, ele mostrou um nível sofisticado de
realismo político ao longo do tempo, analisando, sobremaneira, eventos vinculados às
duas Grandes Guerras Mundiais e às suas consequências (LEWIN, 2009).
64
A equação pessoal de Jung significa a influência do fator subjetivo do sujeito na pesquisa científica.
174
Lewin (2009) esclarece que, para aqueles que tentam estudar o pensamento
político de Jung, muitas vezes é difícil tentar reformular sua posição com base em
evidências esporádicas e dispersas; entretanto, como Jung não deixou de fazer
declarações sobre a estrutura política da sociedade, pode ser possível identificar certos
temas. Em suas palestras no grupo de estudo Zofingia, apesar de criticar, inicialmente, o
materialismo, Jung estava disposto a creditar os benefícios do progresso industrial e do
Estado-nação moderno, de maneira que reconheceu a importância do desenvolvimento
social de Estados bem ordenados e a estrutura de ajuste e de adaptabilidade estatal (JUNG,
2016). Posteriormente, Jung começou entender que o desenvolvimento do Estado
moderno e do nacionalismo representava uma ameaça ao indivíduo. Nesse sentido,
afirmou que o ser humano moderno é caracterizado por um egoísmo imanente e por um
desconhecimento de si, pois já perdeu a consciência de si mesmo como indivíduo,
percebendo-se como um átomo, um mero elo na cadeia que constitui o Estado. Desse
modo, Jung afirmou que o ser humano moderno transfere a responsabilidade da criação
da felicidade individual de si ao Estado, este que procura nivelar ou mesmo eliminar a
individualidade, educando todos, tanto quanto possível, a serem exatamente iguais
(JUNG, 1985, CW13).
Jung (2016) vinculou o nacionalismo à total devoção ao Estado, o que o
aproximou do pensamento de Nietzsche, ao citar que o ser humano não tem compromisso
mais importante do que servir ao Estado com estupidez, de modo a elaborar críticas acerca
da interpenetração da Igreja (sobretudo do luteranismo protestante) e do Estado na vida
do indivíduo. Lewin (2009) evidencia que algumas das afirmações de Jung advinham da
maneira pela qual este não só psicologizou o Estado, mas também o modo pelo qual
formulou seus diagnósticos. Nesse sentido, Jung sugeriu que o Estado apresentava um
processo psicológico que espelhava aquele do indivíduo. Isso significa que o Estado é a
imagem psicológica espelhada do “monstro da democracia”. Jung (1991) afirmou que,
devido à nação sempre se constituir e se manifestar como um ser humano, o Estado é tão
bom ou tão mal quanto um; é como ser um indivíduo, porém mais exigente do que
qualquer tirano jamais foi, ganancioso e biologicamente perigoso. Com essas concepções,
pode-se observar que essa psicologização ocorreu continuamente no pensamento de Jung,
de sorte que a propensão para transpor processos psicológicos a entidades ou ideias sócio-
históricas era uma característica fundamental de suas teorias sobre coletividades.
Lewin (2009) esclarece que, em 1936, malgrado se referisse ao “monstro da
democracia”, Jung não condenava necessariamente a democracia, mas demonstrava seu
175
pessimismo nietzschiano acerca da crescente infraestrutura do Estado, que, em sua
opinião, minava os elementos democráticos. Segundo Lewin (2009), Jung passou a
sugerir que a ideologia incorporada no mote “para o bem do estado” havia absorvido a
realidade democrática participativa e que o grande Estado moderno e desenvolvido estava
reivindicando para si muito poder, em detrimento da participação individual. Os
indivíduos eram, dessa forma, controlados por um Estado burocrático e fiscalizador, de
maneira que restringia a iniciativa individual e privada. Com base nesses argumentos,
pode-se, inclusive, considerar, conforme Lewin (2009), a atitude de Jung próxima ao
libertarismo estadunidense contemporâneo, longe de tendências antidemocráticas.
Para além dos assuntos acerca do Estado, Jung fez observações interessantes sobre
as Grandes Guerras. Enquanto discutia como a Primeira Grande Guerra esvaziou o
otimismo ingênuo do século XIX, dava atenção à crise iminente na Europa, que se
aproximava de um segundo conflito mundial. Consoante Lewin (2009), Jung argumentou
que a única solução, a única “mágica”, era que os indivíduos deveriam reconhecer o lado
sombrio da psique e equilibrar sua consciência dos estados psicológicos superiores e
inferiores em si mesmos; consequentemente, com esse processo de reconhecimento por
um número suficiente de indivíduos (sobretudo aqueles com atribuições de liderança), o
desarmamento poderia acontecer e uma guerra de proporções mundiais poderia ser
evitada. Em seus comentários nos “Seminário das Visões”, Jung explicou que, ao
reconhecer o lado sombrio da psique, alcança-se uma consciência superior, possibilitando
ao indivíduo a incerteza acerca de suas convicções, de modo que a sombra profunda da
humanidade se apresente, a fim de ser trabalhada e esclarecida, para não ser instrumento
de projeção entre indivíduos e entre sociedades. Conforme Jung (2011a), isso sugere que
o ser humano não é somente capaz de manipular os bons atributos ou os “poderes do
bem”, mas também é capaz de manipular os aspectos ou “os poderes do mal”, para que
conquiste uma consciência superior à dinâmica binária entre polos positivo e negativo; o
ser humano tem, portanto, a possibilidade de realizar alguma mágica (LEWIN, 2009).
Jung (1986, CW5), como um psiquiatra, apresentava um fenômeno incomum,
porém não único: era, como Freud, um médico que se interessava por eventos políticos
mais amplos, aos quais se dedicava, em certas circunstâncias, com profundidade e
diligência. Em suas palestras do grupo Zofingia, mencionou a perseguição turca aos
armênios e a repressão turca da tentativa dos cretenses de se unirem à Grécia. Jung fez
vários comentários sobre a política interna e internacional de vários países, não se
restringindo somente à Europa. Avaliar a atitude de Jung em relação à guerra e à política
176
não é uma tarefa simples, aponta Lewin (2009). Ao presenciar as duas Grandes Guerras
Mundiais e parte da Guerra Fria, a vida de Jung foi envolvida por conflitos, lutas e
guerras. Esse período de beligerâncias e conflitos mudou a maneira pela qual a guerra era
analisada pelos círculos públicos e políticos; é, por isso, apropriado examinar como Jung,
em uma perspectiva psiquiátrica, respondeu aos conflitos de seu tempo para a elaboração
de sua teoria de coletividades e de seus comentários sobre política. Por sua vez, quando
se considera sua perspectiva política, é importante ressaltar que Jung não era um
estrategista e não se preocupava com as distinções técnicas atribuídas a um. Jung escreveu
antes que os estudos mais específicos e sistemáticos tivessem gerado muitos dos conceitos
e dos mecanismos acadêmicos atualmente comuns à literatura de estratégia política.
Desse modo, é apropriado compreender as análises de Jung, no que concerne à política,
apenas para aspectos gerais que podem ser, basicamente, aplicados a qualquer nível do
conflito político (LEWIN, 2009).
Lewin (2009) ressalta que Jung foi, considerado por muitos, um dos principais
inovadores psicanalíticos do século XX, bem como teve sua vida influenciada pela
dinâmica da política internacional de sua época, o que o levou a dedicar parte significativa
de seu trabalho à compreensão de eventos mais amplos e sistêmicos. Ao longo da primeira
metade do século XX, o entendimento e as posições em relação à guerra, para a recente
disciplina de Política Internacional e de Estudos Estratégicos, pode ser, em certa medida,
sintetizada tendo como base o clássico estudo, do século XIX, da obra “On War”, de Carl
von Clausewitz, cujo mote basilar se referia à guerra como uma continuação da política
do Estado por outros meios. Para os Estados-nação, em constante conflito pela busca de
poder e pela tentativa contínua de sobrevivência, a guerra continuou a ser o mecanismo
de segurança definitivo da realidade. Foi neste contexto que Jung comentou sobre o
desenvolvimento das interações políticas entre Estados. Nesse sentido, a compreensão e
o estudo dos imperativos da força tornaram-se, na disciplina de Relações Internacionais,
conhecidos como abordagem realista, na medida em que essa força pôde ser
experimentada e testada na realidade prática. Lewin (2009) argumenta que o
desenvolvimento desse “realismo” significou que a Política Internacional teve, moral e
filosoficamente, uma abordagem pouco densa e profunda. Essa filosofia, aparentemente
superficial e reduzida, precisa ser considerada, para que a perspectiva realista seja
compreendida; segundo Lewin (2009), essa abordagem realista é, antes, um modelo
teórico de classificações provisórias sobre eventos internacionais, este que envolvem, na
realidade, além de Estados, outros atores internacionais, com culturas e histórias variadas.
177
Lewin ainda complementa que,
178
ao tentar relacionar as ideias de Jung sobre política internacional na
literatura de Estudos Estratégicos, é útil fazê-lo em termos do modelo
de Waltz. A perspectiva de Waltz situa os eventos em três níveis, tanto
no passado quanto no presente. Jung não estava sistematicamente
tentando dar conta de todos os níveis de interação política. Quando se
referia à guerra ou comentava sobre acontecimentos no plano
individual, social e internacional, tendia a interpretar psicologicamente
os eventos, ou a referir-se a aspectos psicológicos que só podem
manifestar-se em indivíduos ou grupos. Assim, Jung geralmente lida
com os níveis de análise individual ou social de Waltz.
Consequentemente, Jung forneceu apenas um exame parcial da política
internacional, já que a maior parte do que ele escreveu foi uma
interpretação da psicologia de períodos históricos, de grupos, de
ideologias e de mecanismos psicológicos que afetavam as pessoas em
conflitos políticos. Ao escrever dessa maneira, Jung contribuiu para a
compreensão dos aspectos individuais e sociais dos eventos, destacando
as implicações psicológicas dos fatores que operam na consciência e no
inconsciente, e a função que a racionalidade ou a irracionalidade
desempenham em ambos. Essa atenção ao consciente e ao inconsciente
pode dialogar com a estrutura de Waltz; na verdade, enriquece a
compreensão da complexidade dos padrões individuais e sociais de
comportamento além da órbita de onde Waltz e a maioria dos
historiadores preocupados com Estados armados na política
internacional estão acostumados a operar (LEWIN, 2009, p. 74).
179
era objeto de sua análise, pois, se assim o fosse, Jung teria abordado, a princípio, as
contribuições de Freud e de outros psicanalistas. Adicionalmente, a perspectiva de Jung
estava focada além das influências pessoais e biográficas do indivíduo, com o interesse
voltado a fatores históricos e coletivos, possibilitando-o ultrapassar o escopo do sociólogo
e permanecer abaixo do foco do historiador, de maneira a se concentrar em motivações
conscientes e inconscientes. Dessa forma, Jung pretendia que essa abordagem fosse uma
perspectiva adicional ao conhecimento psicológico acerca da política, e não uma
continuação teórica a partir de outros autores (LEWIN, 2009).
Lewin (2009) ainda observa que, após a Segunda Guerra Mundial, Jung continuou
a mostrar consciência da situação política mais geral; sua perspectiva teórica mudou, por
sua vez, concentrando-se mais no indivíduo e na cultura contemporânea do pós-guerra.
Nesse período, Jung voltou a enfatizar o impacto das emoções negativas, mais
especificamente o conceito de sombra, e a concentrar-se nos perigos que líderes
messiânico-carismáticos ofereciam. Ao se concentrar nesse desejo irracional de
destruição, Jung estava implicitamente se dedicando ao impacto da instabilidade
irracional na política internacional, que atuava como uma força inconsciente e contrária
aos processos de equilíbrio de poder; com base nesse raciocínio, Jung utilizava-se da ideia
de enantiodromia65, para conseguir analisar a maneira pela qual os eventos oscilavam
entre a instabilidade irracional e a ordem sistêmica. Lewin (2009) argumenta que, a partir
dos processos de dissuasão e de equilíbrio de poder, Jung observou que sistemas estatais
mais complexos (mais e maiores Estados), quando falham, geram aumento de tensão,
próximos de uma escala provável de destruição.
O reconhecimento dessa insegurança pode intensificar, inconscientemente, a
ansiedade dos indivíduos e exacerbar ainda mais qualquer espécie de crise. Nesse sentido,
quando se aborda os eventos internacionais, não é de se surpreender, segundo Lewin
(2009), que Jung tenha realizado comentários sobre os esforços bem-intencionados da
Liga das Nações. Segundo Jung (2016), até as duas grandes guerras mundiais, havia uma
convicção entre os intelectuais racionalistas e progressistas de que não se ocorreriam mais
guerras, em função do então intenso e complexo nível em que a racionalidade humana, a
ciência, o positivismo filosófico e a profunda interconectividade do comércio exterior e
das finanças internacionais alcançaram; no entanto, posteriormente, se presenciou as duas
maiores guerras já registradas na história humana, em que nem planos de paz, nem
65
Enantiodromia é um termo criado pelo filósofo Heráclito para o conceito de que uma grande força em
uma direção gera uma força no sentido oposto (HOUAISS, 2023).
180
tratados nem comércio internacional conseguiram conter a irracionalidade humana,
apenas gerar otimismo pueril em relação à conduta dos indivíduos e dos Estados. Nesse
sentido, é, por isso, que Jung (1986, CW5) afirmou que o inconsciente e, por
consequência, as imagens arquetípicas são a parte da psique humana que decidem o
destino do ser humano, e não exatamente o que se pensa e o que se fala na “câmara e no
sótão do cérebro”.
De acordo com Lewin (2009), Jung acreditava que quaisquer fossem os problemas
imediatos da conjuntura internacional, o que era, de fato, significativo se desenvolvia em
um nível mais fundamental. Lewin (2009) explica que Jung considerava que a base
psicológica das atitudes conscientes e inconscientes, que sustentavam todas as
instituições sociais, se havia tornado disfuncional, de modo que os sintomas desse “mal-
estar” eram uma ilusão da posse da racionalidade e um fascínio e uma sedução do
nacionalismo e do dinheiro. Isso significa que Jung elaborava uma análise mais incomum
e sutil sobre eventos nacionais e internacionais do que um cientista político. Além disso,
Lewin nota que, ao expor a imagem de instituições sociais degradadas devido à
irracionalidade, Jung reiterava a preocupação de Freud em relação à capacidade da
civilização de resistir à irrupção de emoções primitivas. Jung observou ainda que a crise
de Agadir foi compreendida como uma ação irracional isolada de um monarca psicótico
e que o sentimento geral era de que, um evento como esse jamais levaria a consequências
sistêmicas, visto que havia uma rede internacional de obrigações financeiras, cuja
proporção e importância deveriam excluir quaisquer tentativas de investida militar
relevante. Para explicar a irracionalidade e o comportamento desarrazoado do indivíduo,
Jung observou que quanto mais medo, mais instabilidade potencial. Nesse sentido, como
ninguém é capaz de reconhecer o momento em que se está “possuído” e inconsciente, o
indivíduo projeta sua condição sobre o próximo, de maneira que estimula,
paulatinamente, a desconfiança e a violência; todos estão, portanto, sob o domínio de
algum medo incontrolável (JUNG, 1991, CW8).
Lewin (2009) aponta que uma das obras que esclarece a maneira pela qual Jung
compreendia a psicologia individual e coletiva é “The Psychology of the Unconscious”.
Nesse trabalho, Jung asseverou que havia uma espécie de “psicologia da nação”, cujo
conteúdo poderia ser entendido como uma extensão das psicologias de múltiplos
indivíduos. Essa suposição advém, também, da compreensão de Freud sobre o assunto, e
Jung, por meio da leitura da obra “Psicologia das Massas”, de Gustave Le Bon, estava
ciente que havia um aspecto psicológico no comportamento da multidão. Lewin (2009)
181
esclarece que Jung expandiu e sofisticou essa ideia, ao supor que havia um vínculo dos
processos psicológicos do indivíduo ao grupo social e, consequentemente, à nação. A
opinião de Jung em relação às nações é a de que estas, como organizações sociais, são,
de uma perspectiva psicológica,
Por meio de um pensamento intuitivo, Jung (2011a) afirmou que o que é, em geral,
verdade para a humanidade também o é para cada indivíduo, na medida em que a
humanidade se constitui de indivíduos, de modo que a psicologia da humanidade é, da
mesma forma, a psicologia do indivíduo. Com base nesse raciocínio, Jung argumentou
que a Primeira Guerra Mundial gerou uma compensação em relação às intenções
racionais da civilização. Dessa forma, pôde-se notar que o que é vontade no indivíduo,
para as nações, é caracterizada como imperialismo, porquanto toda vontade é uma
demonstração de poder sobre o destino (JUNG, 2011a). Lewin (2009) observa que, ao
sugerir o tema de psicologias nacionais, Jung assumiu a possibilidade de realizar um
diagnóstico de uma psicologia nacional, similarmente a um diagnóstico elaborado para
um paciente individual, não obstante fosse cônscio da complexidade do objeto de análise
que estava tentando interpretar, especialmente, quando no texto “Wotan”, Jung
reconheceu que destinos nacionais eram mais complexos do que psicologias individuais,
sugerindo a importância dos fatores arquetípicos nesse estudo. Adicionalmente, Jung
constatou que havia mais dificuldades e complexidades na administração da vida das
nações. Para compreender esse argumentou, Jung afirmou que todo controle humano
acaba quando o indivíduo é absorvido em um movimento de massa, momento em que os
arquétipos começam a se manifestar (LEWIN, 2009).
Lewin ainda explica (2009) que, como as camadas mais profundas do inconsciente
coletivo influenciam nações inteiras, quando os processos arquetípicos são acionados, a
atmosfera psicológica transforma-se qualitativamente para todos. Consequentemente,
como apenas os indivíduos podem transformar sintomas arquetípicos em sua psique, são
somente os esforços individuais que são aptos a causar mudanças na psicologia nacional.
182
Conforme McGuire e Hull (1980), concentrando-se em seus conflitos internos, o
indivíduo já contribui para a diminuição dos conflitos internacionais, raciocínio esse que
permaneceu, por meio do vínculo entre a clínica e a política internacional, na mente de
Jung; por sua vez, embora soubesse que a psiquiatra poderia tratar com sucesso forças
inconscientes perniciosas no indivíduo, Jung era ciente de que mudar uma nação inteira
seria uma tarefa hercúlea (LEWIN, 2009).
A análise mais desenvolvida de Jung no que concerne às condições psicológicas
dos eventos políticos de seu tempo foi, conforme demonstra Lewin (2009), sobre a
história Alemanha nazista pré-guerra, ao apresentar consciência em relação aos
desenvolvimentos históricos e estratégicos anteriores à Segunda Guerra Mundial. A partir
desse conhecimento, Jung pôde formar melhor sua compreensão sobre a dinâmica
psicológica da mudança, que foi fundamentada em seu trabalho clínico, a partir do
conceito de enantiodromia. Jung utilizou essa concepção para descrever o modo pelo
qual a energia emocional permanece restrita entre dois polos, como se um processo
inconsciente de autocorreção fosse incorporado à dinâmica da energia emocional, uma
função compensatória, de forma que um desequilíbrio em uma direção provocaria uma
contrarreação na outra extremidade da mente (LEWIN, 2009). Nesse sentido, a energia
entre esses dois polos serviria como um relevante fator de mudança psicológica. Lewin
exemplifica que uma das maiores demonstrações de enantiodromia na política
internacional para Jung foi fornecida pela Primeira Guerra Mundial, já que este se
alarmou com a agressividade da propaganda política e a remoção do verniz social da
civilização, para revelar a barbárie subjacente. De acordo com Lewin (2009), Jung
interpretou que, em períodos de paz, havia certa profusão de manifestação cultural para
que se pudesse conter o ímpeto de agressão destrutiva em períodos de guerra; essa
interpretação seria, portanto, um exemplo de enantiodromia.
A posição de Jung acerca do conceito de enantiodromia era a de que, no indivíduo,
esse processo de instabilidade é perene, de sorte que é irrelevante o quanto os padrões
comportamentais conflitantes tentem estabelecer uma relação estável de freios e de
contrapesos entre si, uma vez que mesmo estes não possibilitam, necessariamente, uma
estabilidade psíquica. Nesse sentido, consoante Lewin (2009), Jung considerava que, não
só para o indivíduo, mas também para o sistema internacional, o conflito e a instabilidade
integram a herança instintiva do ser humano, e somente o desenvolvimento psicológico
individual seria capaz de gerar paz em uma humanidade afligida por frequentes conflitos
e por duas guerras mundiais (LEWIN, 2009).
183
Em conclusão, para sintetizar o pensamento político de Jung como um “psicólogo
das nações”, Lewin (2009) afirma que, ao longo de sua trajetória clínica, a base de suas
ideias e de suas concepções intercalou entre um trabalho com indivíduos, em um ambiente
clínico, e um estudo mais amplo sobre as manifestações sociais da humanidade. Essa
análise mais ampla refere-se à sua teoria da coletividade, o que ensejou a propositura de
conceitos sobre psicologias nacionais por Jung. Além disso, concentrou-se no impacto da
irracionalidade na política internacional, por meio de uma perspectiva psicológica, sendo
diligente no que concerne à instabilidade tanto no sistema político nacional e
internacional quanto nas manifestações dos indivíduos a essas realidades. Nesse sentido,
de uma maneira geral, a intenção de Jung era colocar, com base nesse tópico acerca da
psicologia das massas, o aspecto psicológico da política internacional em evidência,
malgrado os estudos políticos não fossem nem seu domínio do saber nem uma área de
interesse central para ele (LEWIN, 2009).
184
seguintes conceitos junguianos: inconsciente coletivo, sombra e projeção. Da mesma
maneira que William Bettcher utilizou conceitos freudianos e Fanon e Bhabha utilizaram
conceitos lacanianos para analisar eventos de escala internacional, almeja-se realizar
processo similar ao desses autores nesta dissertação, fundamentada, por sua vez, nos
conceitos de Jung. Com base nisso, será apresentada a maneira pela qual a relação entre
os Estados Unidos da América (EUA) e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
(URSS) pode ser examinada mediante conflito psicológico entre esses dois países, que
tinham objetivos semelhantes na concretização de uma sociedade ideal paradigmática e
referencial, porém com base em trajetórias e nacionalismos divergentes.
O conflito bipolar da Guerra Fria foi, em várias dimensões, a disputa nas relações
internacionais pelo poder e pela hegemonia entre EUA e URSS. Essa contenda foi um
marco no sistema interestatal, visto que as interações entre os países ocorreram sob os
auspícios das convicções estadunidenses e soviéticas. Os Estados, em regra,
relacionavam-se mediante dois modelos de estruturação socioeconômico: o capitalismo
nos Estados Unidos e o socialismo na União Soviética. O caráter maniqueísta da relação
EUA-URSS perpassou basicamente toda a segunda metade do século XX, gerando
desdobramentos na orientação das políticas interna e externa dos Estados no sistema
internacional. Além disso, a dicotomia influenciou a produção de conhecimento na
política, na economia, na tecnologia e na cultura, uma vez que diversas áreas do saber
serviam ao propósito de defender as posições ideológicas, seja do capitalismo
estadunidense seja do comunismo soviético; a Guerra Fria teve, portanto, impacto na
estruturação do sistema internacional, reordenando as posições e as atitudes dos países,
interna e internacionalmente.
No caso de Jung, este consideraria a Guerra Fria como uma manifestação de
ordem esquizofrênica no nível psíquico coletivo da humanidade, por meio da qual esta se
clivou e se polarizou em torno de sistemas de pensamento, de valores e de instituições
socioeconômicas e políticas considerados incompatíveis, sendo o muro de Berlim um dos
símbolos de tal manifestação esquizofrênica. Para Jung, ambas as sociedades, a
estadunidense e a russo-soviética, com seus asseclas e aliados, guiavam-se pela busca
similar de uma sociedade idílica, como duas versões de um mesmo, ou um arquetípico
mito do Éden, no qual a abundância caracterizaria um mundo sem faltas ou carências
estruturais e, portanto, sem medo e sem grandes conflitos. Essas sociedades, com seus
blocos, contudo, opunham-se, ardentemente, quanto à forma ou aos processos e aos
185
caminhos necessários para se alcançar esse Éden, definindo-se, cada qual, a partir da
oposição aos caminhos, às formas e aos processos que a outra sociedade representava.
Para que o conflito da Guerra Fria possa ser compreendido no nível coletivo, é
importante entender os mecanismos básicos do inconsciente coletivo, de modo que
possibilite a aplicação dos conceitos de sombra e de projeção, em um nível social e de
maneira vinculativa. Além disso, o conceito de nacionalismo será abordado nesta parte
do trabalho, pois este é um conceito do âmbito político que abriga concepções
psicológicas, compartilhadas coletivamente, o que contribui para a acomodação das
definições teóricas da Psicologia Analítica. Nesse sentido, os conceitos de inconsciente
coletivo, de sombra e de projeção poderão ser examinados por meio da ideia política de
nacionalismo. Vale lembrar, ainda, que, embora essa parte teórica-conceitual acerca do
inconsciente coletivo já tenha sido debatida neste trabalho, é relevante retomar e
aprofundar, nesta análise de caso, alguns pontos.
De acordo com Shamdasani (2011), ao empregar o termo “representações
coletivas”, retirado de Lévy-Bruhl, Jung afirmou que as imagens do inconsciente coletivo
correspondiam às representações coletivas; entretanto argumentou, posteriormente, que
os arquétipos se referiam, de forma indireta, apenas às representações coletivas, na
medida em que estas se relacionavam a conteúdos inconscientes que não passaram pelo
crivo da consciência. Nesse sentido, os arquétipos constituíam os fundamentos das
representações coletivas, e estas determinavam a condição dos arquétipos após passarem
pelo crivo da consciência (SHAMDASANI, 2011). Shamdasani (2011) explica, ainda,
que Durkheim utilizou a ideia da existência do inconsciente como um fator argumentativo
acerca da existência de representações externas, nesse caso representações coletivas, ao
indivíduo. A partir desse pensamento, malgrado Jung asseverasse que atrações externas
pertencem à sociedade, ou à consciência coletiva, insistia em dizer que, “da mesma
maneira como uma sociedade existia fora da pessoa, havia também uma psique coletiva
fora da psique pessoal” (SHAMDASANI, p.271, 2011). Shamdasani (2011) nota que
186
O pensamento de Jung, no que concerne aos aspectos da dinâmica social, era o de
que o indivíduo se situava entre a consciência coletiva e o inconsciente coletivo, de forma
que, consoante apresenta Shamdasani (2011, p.272), “a consciência do ego dependia das
condições da consciência coletiva ou social, e dos dominantes inconscientes coletivos, ou
arquétipos”. Essa relação dependente geraria conflito, visto que haveria
incompatibilidade entre as verdades do senso comum da consciência coletiva e os
conteúdos do inconsciente coletivo, de maneira que, segundo Jung, este seria rejeitado
por aquele, em função de ser irracional e ilógico, e o indivíduo seria cativo desse
antagonismo. Nesse sentido, os conteúdos do inconsciente coletivo seriam reprimidos,
caso a consciência subjetiva se vinculasse às concepções da consciência coletiva, o que
implicaria a absorção do ego pelo inconsciente coletivo, de modo a criar o indivíduo da
multidão, aprisionado por ideologias, crenças e convicções (SHAMDASANI, 2011). Para
que não houvesse esse cerceamento do indivíduo, seria necessário evitar a identificação
com a consciência coletiva e reconhecer a presença e as funções dos arquétipos na
dinâmica da vida social, uma vez que essas ações gerariam um mecanismo de contrapeso
em relação ao poder da consciência social e da psique da coletividade.
Com base nessa importância conferida à coletividade, Shamdasani esclarece que
Jung
priorizou o estudo do inconsciente coletivo, relativamente ao da
consciência coletiva. A dominação que esta exercia e o consequente
desenvolvimento do “ser humano de massa” no século XX, ao lado do
fracasso da religião de formar adequadamente um contrapeso para a
consciência coletiva, era justamente a patologia social da modernidade.
A única solução estava no inconsciente coletivo e, finalmente, em
promover o processo da individuação que, por si só, seria capaz de
permitir à pessoa diferenciar-se da consciência coletiva, evadindo-se
assim dos perigos do totalitarismo, de um lado, e da psicose, de outro.
Essas afirmações também indicam como ele entendia a significação
cultural da psicologia analítica. Sua missão cultural consistia no
estabelecimento da existência e da importância do inconsciente
coletivo, que poderia salvar o Ocidente de uma catástrofe. Embora a
consciência coletiva encontrasse seus porta-vozes nos líderes sociais,
políticos e religiosos, o inconsciente coletivo tinha seu porta-voz em
Jung (SHAMDASANI, 2011, p.271).
187
as experiências grupais acontecem em um nível de consciência mais
baixo do que as vivências que o sujeito experimenta. Isso se deve ao
fato de que, quando muitas pessoas se reúnem para partilhar de uma
mesma emoção, a psique total que emerge desse grupo se situa abaixo
do nível da psique individual. Se for um grupo muito grande, a psique
coletiva será mais parecida com uma psique primitiva, e é por esse
motivo que a atitude ética de grandes organizações é sempre duvidosa.
A psicologia de uma grande massa afunda, inevitavelmente, até o nível
da psicologia da turba; a presença de tantas pessoas reunidas exerce
uma grande força de sugestão. A pessoa em meio a uma multidão
facilmente se torna vítima de sua própria sugestionabilidade (JUNG,
2002, p.225, apud, LEWIN, 2009, p. 273).
Tanto para Jung quanto para os estudiosos das coletividades, um fato é claro: as
multidões organizam-se em torno de líderes. Jung (2011) argumentou que vários
acontecimentos que mudaram a direção da história ocorreram em função de
personalidades de liderança que orientaram as massas para realizar feitos de mudança e
de transformação. Isso significa que a massa é, em regra, liderada, e não lidera, fato que
propiciou Jung a seguinte avaliação no que concerne a esse processo: a massa não tem
livre arbítrio em função de sua inconsciência, razão pela qual a atividade psíquica se
desenvolve, em seu cerne, como uma lei caótica da natureza. Consequentemente, uma
sucessão de eventos reativos é provocada, que só se finaliza quando um desastre é gerado.
Nesse sentido, Jung esclarece que a ansiedade dos indivíduos só é cessada ou amainada
quando estes encontram um herói; portanto o indivíduo sempre está em busca de um líder
ou herói. (JUNG, 2011). Shamdasani (2011) observa que a psicologia de massa formulada
pelos intelectuais franceses exerceu, dessa forma, uma significativa função de referência
para a compreensão de Jung acerca dos eventos sociais, políticos e internacionais, de
modo que contribuiu para que Jung afirmasse, já, em 1936, que, por meio do comunismo
na URSS, do nacional-socialismo na Alemanha e do fascismo na Itália, o Estado, nessas
nações, transformou-se em uma entidade onipotente, demandando, de seus indivíduos,
corpo e alma (SHAMDASANI, 2011).
Com base nesse entendimento da psicologia de massas e do modo pelo qual Jung
formulou a ideia de inconsciente coletivo, cujos conteúdos podem afetar diretamente as
relações estatais, contribuindo para compreender os conceitos de sombra e de projeção, é
importante, para fins de análise do caso desta secção, entender como o conceito de
nacionalismo contribui para que os termos da Psicologia Analítica sejam aplicados em
um exame da política internacional, especialmente no conflito da Guerra Fria. No que
concerne ao conceito de nacionalismo, não há intenção, neste trabalho, nem de
pormenorizar e de inovar sua definição, que já tem sido exaustivamente discutida e
188
desenvolvida pela literatura das humanidades, nem de citar os vários significados que
esse conceito obteve ao longo do tempo; o objetivo é, todavia, demonstrar que o
nacionalismo forma e molda a estrutura social, política e psicológica das sociedades
humanas, ao servir de base para as manifestações psicológicas no nível coletivo, que,
nesta dissertação, serão observadas por meio do nacionalismo russo-soviético e
americano. Por fim, vale lembrar que, na literatura que aborda o conceito de
nacionalismo, há distinções entre o conceito de nação, de nacionalidade, de identidade
nacional e do próprio nacionalismo. Este trabalho não almeja aprofundar as distinções de
cada definição ou examinar a origem, o desenvolvimento e a relação entre esses
conceitos; tem o intuito de somente apresentar o nacionalismo como um fato na dinâmica
política de grande parte das sociedades contemporâneas, sobretudo nos Estados russo-
soviético e estadunidense.
De acordo com Anthony Smith, em National Identity (1991), o nacionalismo é um
movimento ideológico para alcançar e manter autonomia, unidade e identidade em nome
de uma determinada população, considerada, por alguns de seus membros, constituidora
de uma nação real ou potencial. Já, para Greenfeld (1994), o nacionalismo está na base
deste mundo. O vocábulo “nacionalismo” é utilizado, consoante a autora, como um termo
“guarda-chuva”, sob o qual estão incluídos os fenômenos relacionados à identidade
nacional (ou à nacionalidade), à consciência e às coletividades fundamentadas em nações;
é, por sua vez, ocasionalmente empregado para se referir à ideologia articulada sobre a
qual se encontram a identidade e a consciência nacional, embora não se refira,
necessariamente, à variedade política do patriotismo nacional. O nacionalismo é
compreendido por Greenfeld como a principal fonte de atuação da identidade na
sociedade contemporânea, existindo previamente e encontrando-se na base de todas as
outras sociedades que os indivíduos possam formar; essa identidade é, por sua vez,
diferente das outras, visto que localiza a fonte da identidade individual dentro de um
“povo”, percebido como maior do que qualquer outra comunidade e fundamentalmente
homogêneo, apesar das diferenças de classe, de religião, de idioma, de localidade e, por
vezes, de etnia.
Com base nessas definições, Greenfeld (1994) argumenta que, ao se analisar a
história do século XX e suas guerras, parece evidente como o nacionalismo tem sido um
dos principais elementos políticos e sociais que tem estimulado conflitos e moldado as
sociedades atuais. Além disso, acrescenta que a identidade nacional, uma conquista
eminentemente psicológica e cultural, implantada em cada indivíduo, é, de uma
189
perspectiva coletiva, o cerne dos Estados nacionais, que são agentes fundamentais da
história moderna e da economia contemporânea. Greenfeld (1994) ainda nota que o
nacionalismo é uma forma de consciência social, mas não se deve compreender sua
relação com o individualismo – predominante nas sociedades ocidentais, sobretudo
britânicas e americanas – como dicotômica e excludente. Adicionalmente, no que se
refere à individualidade, esta é, como expõe Greenfeld, uma consequência da cultura, não
da natureza, na medida em que um organismo individual natural não é um indivíduo no
sentido que se atribui ao termo, ou seja, um agente moral independente; isso significa,
portanto, que o individualismo é, necessariamente, uma aspiração, uma projeção de uma
imagem ideal – de uma imagem da sociedade, de consciência social, de um tipo de
racionalização –, da qual a natureza só pode aproximar-se (GREENFELD, 1994).
Greenfeld também parece adotar a definição dada por Durkheim do indivíduo
como uma formação social, um resultado da interação social, em que o “individualismo”
seria a forma pela qual a sociedade se representa na mente de seus membros. Além disso,
identifica, no individualismo, o elemento central do que Weber reconheceu no
protestantismo: pelo termo “consciência coletiva”, Durkheim definiu um complexo moral
e cognitivo que fundamenta a ética compartilhada, influenciando e orientando as
atividades sociais e econômicas da sociedade. Em última instância, a consciência coletiva
funciona como uma força unificadora, ao reunir diferentes indivíduos em uma única
sociedade e ao agir sob uma única vontade. Seguindo as reflexões de Durkheim,
Greenfeld remonta a inspiração original que gerou a economia moderna a esse feito
particular do nacionalismo individualista britânico, que, ao longo do tempo, se espalhou
para outros países, afetando e alimentando suas identidades nacionalistas (GREENFELD,
1994).
Outro termo psicológico que Greenfeld (1994) utiliza para descrever o sentimento
que estimula as nações a adotarem o nacionalismo, para reagir contra outras nações, é o
“ressentimento”, cujo uso foi feito, primeiramente, por Nietzsche, com o fito de delinear
sua genealogia da moral, de maneira a argumentar que o ressentimento nasce em seres
humanos fracos e doentes, como um sentimento rancoroso e invejoso em relação aos
fortes e saudáveis. O ressentimento como sentimento coletivo e nacional é valorizado por
Greenfeld como um elemento essencial, capaz de fornecer a pré-condição do “desejo”
weberiano, e surge quando uma igualdade teórica entre sujeitos – neste caso, nações – é
provada falsa pela praticidade, gerando um sentido de inadequação e impotência que
produz ressentimento. Greenfeld cita a Rússia como um exemplo preciso desse processo
190
histórico, na medida em que é um país com fortes tradições, relativamente distante das
europeias, animada por uma vontade igualmente forte de poder competir com as nações
europeias mais avançadas. Esse caso pode ser comprovado quando se analisa o período
de Pedro, o Grande, cujo objetivo era europeizar culturalmente a Rússia, a partir do século
XVII. Por fim, Greenfeld (1994) investiga que o nacionalismo não é apenas uma pré-
condição fundamental tanto para capitalismo quanto para a democracia; porém, uma vez
que todos esses elementos são moldados pela agência humana e que o nacionalismo é
observado como uma fonte primária de identidade e motivação, o nacionalismo é a
principal causa da estrutura psicológica e, consequentemente, social.
A partir dessa breve introdução em relação ao conceito de nacionalismo e seus
desdobramentos psicológicos e sociais, pode-se compreender que o nacionalismo tem
uma função psicológica agregadora, na medida em que possibilita a unificação de um
povo em torno de um projeto comunitário maior, de modo a propiciar a formação de uma
estrutura social e psicológica coletiva. No caso da Guerra Fria, pode-se inferir que o
nacionalismo serviu de base para que os aspectos psicológicos coletivos pudessem ser
projetados de uma sociedade à outra, não a partir de uma relação favorável e positiva
entre as duas sociedades (EUA e URSS), mas como uma relação conflituosa dos aspectos
psicológicos internos e coletivos de ambos os países, em que, por meio do nacionalismo,
foram despertados e materializados em ações de confronto e de desinteligências. É, desse
modo, que se poderá compreender o vínculo dos conceitos de inconsciente coletivo, de
sombra e de projeção ao conceito de nacionalismo; no entanto, no jogo político, o que é,
em regra, depreendido, e se torna perceptível, é somente o movimento relacional político
entre nacionalismos, e não os conteúdos psicológicos que se encontram nestes, o que
demonstra o significativo desconhecimento no que concerne às manifestações
psicológicas coletivas entre sociedades. O nacionalismo desempenharia, portanto, a
função de um mecanismo de acionamento, que coloca em ação os conteúdos psicológicos
coletivos, estes mobilizados por meio de movimentos políticos e sociais.
Além da hipótese de que o nacionalismo serve de vetor aos componentes
psicológicos manifestados nas relações interestatais, é interessante retornar, para fins de
análise de caso desta secção, não só à dinâmica política e às interações sociais entre EUA
e URSS no período da Guerra Fria, com base na ideia de inconsciente coletivo, de sombra
e de projeção, mas também voltar à origem da formação dos nacionalismos russo e
americano. É importante, ainda, destacar que, a partir da análise desse momento bipolar
da política internacional, não se pretende nem passar por todos os eventos desse período,
191
nem determinar e se aprofundar em um ou dois episódios desse conflito; o objetivo é, no
entanto, panorâmico, de modo que se possa ter uma perspectiva geral dessa bipolaridade,
concentrando-se em eventos que demonstram a materialização dos processos
psicológicos coletivos com bases nas conspecções junguianas.
O próprio advento da Guerra Fria pode ser compreendido, por meio da Psicologia
Analítica, como uma consequência do conflito psicológico entre duas sociedades, que se
estruturaram a partir de diferentes processos históricos, políticos, sociais, culturais e
econômicos, e a Segunda Guerra Mundial foi somente o palco e o evento propulsor para
a materialização de um conflito que já poderia existir no nível psíquico, haja vista as
diferenças estruturais na composição social e nacional de ambas as nações. Para entender
esse processo, é importante voltar à ideia que Greenfeld (1994) tem acerca do
nacionalismo, sobretudo os manifestados na sociedade estadunidense e na russo-
soviética, para que, posteriormente, se possa prosseguir com a interpretação conceitual
nos termos junguianos. Greenfeld compreende que o nacionalismo estadunidense tem,
em grande medida, um caráter cívico-libertário-individualista e que o nacionalismo russo-
soviético tem um aspecto étnico-autoritário-coletivista. Esse argumento pode ser
confirmado, ao se analisar a formação histórica, social, política e econômica de ambas as
sociedades, em que, para os EUA, teve início no século XVIII e, para os russos, no século
XVII.
A respeito das classificações “cívica” e “étnica”, Miscevic explica que,
192
Pode-se compreender que o nacionalismo cívico é uma forma de nacionalismo
que adere aos tradicionais valores liberais de liberdade, de tolerância, de igualdade e de
direitos individuais. A identidade nacional – uma identidade superior – serve como um
aspecto compartilhado da identidade dos indivíduos, para que estes possam ter vidas
autônomas, de maneira que uma nação cívica não almeja, em teoria, promover uma
cultura em detrimento de outra. O nacionalismo cívico é frequentemente contrastado com
o nacionalismo étnico (TAMIR, 2019). Historicamente, ao passo que o nacionalismo
cívico foi essencial na evolução das formas constitucionais e democráticas de governo, o
nacionalismo étnico foi mais vinculado, não raro, ao governos autoritários e ditatoriais.
Adicionalmente, a nacionalidade cívica é uma identidade política, constituída em torno
da cidadania compartilhada dentro do Estado. Nesse sentido, uma nação cívica é
determinada não pela cultura, mas por instituições políticas e princípios liberais,
defendida por seus cidadãos. Por fim, a adesão a uma nação cívica está normalmente
aberta aos indivíduos por meio da cidadania, a despeito da cultura ou da etnia, de maneira
que aqueles que compartilham os valores cívicos são considerados membros da nação
(TAMIR, 2019).
No caso do nacionalismo étnico, este é uma forma de nacionalismo em que a nação
e a nacionalidade são definidas em termos de etnia, com ênfase em uma abordagem
etnocêntrica, cujas perspectivas políticas estão relacionadas à afirmação nacional de certo
grupo étnico. O elemento essencial dos nacionalistas étnicos refere-se ao fato de que as
nações são determinadas por uma herança compartilhada, que abrange, não raro, um
atavismo, uma religião e uma língua comuns, podendo levar o nacionalismo étnico a se
tornar uma forma de pan-nacionalismo, como o pan-eslavismo (ROSHWALD, 2001).
Além disso, o nacionalismo étnico almeja, em regra, o estabelecimento de uma estrutura
política etnocrática, na qual o aparato estatal é administrado por um grupo étnico
nacionalista dominante. Do mesmo modo, o nacionalismo étnico é, frequentemente,
contrastado com o nacionalismo cívico, de sorte que aquele fundamenta o pertencimento
à nação com base na descendência ou na hereditariedade, muitas vezes articulada em
termos de sangue ou parentesco. Nesse sentido, em vez de se vincular a ideais cívicas
comuns e a tradições culturais, o nacionalismo étnico tende a salientar narrativas de
descendência comum (ROSHWALD, 2001).
Ao explicar o surgimento do nacionalismo, Greenfeld (1994) analisa que o
nacionalismo cívico-individualista, que surgiu e se desenvolveu na Inglaterra, foi herdado
por suas colônias na América e tornou-se, posteriormente, característico dos Estados
193
Unidos. No caso do nacionalismo étnico-coletivista, este apareceu primeiro, e quase
simultaneamente, na França e na Rússia; em seguida, no final do século XVIII e no início
do XIX, apresentou-se nos principados alemães. Greenfeld afirma que, enquanto a França
representava, em grande medida, um caso ambivalente, em que se manifestava, ao mesmo
tempo, um nacionalismo coletivista e cívico, a Rússia e a Alemanha desenvolveram
exemplos patentes de nacionalismo étnico (GREENFELD, 1994). Greenfeld realiza uma
análise minuciosa acerca do nacionalismo estadunidense e do nacionalismo russo. Com
o intuito de compreender a formação psíquica do conflito bipolar entre EUA e URSS, é
importante entender, de maneira geral, a formação nacional de ambos os países, conforme
o pensamento dessa autora.
Greenfeld (1994) afirma que as condições sob as quais o nacionalismo cívico se
desenvolveu nos EUA foram únicas e, embora em questões de identidade nacional o
excepcionalismo não seja tão excepcional, isso tornou peculiar a própria singularidade do
nacionalismo americano. A nacionalidade da identidade da consciência americana não
exige, necessariamente, uma explicação original e inicial, visto que os colonos ingleses
levaram ao continente americano sua identidade nacional. Esses colonos concebiam a
comunidade a que pertenciam como uma nação; a ideia de nação era, nesse sentido, uma
herança americana. Segundo Greenfeld (1994), a identidade nacional na América,
portanto, precedeu não somente a formação da identidade americana específica – a
singularidade e o excepcionalismo americano –, mas também da estrutura institucional
da nação americana e do território nacional.
É aludido, de acordo com Greenfeld, que tem sido o destino da nação americana,
não ter ideologias, mas ser uma. A autora considera, de certa forma, essa afirmação, como
uma verdade para todas as nações, na medida em que, em sua análise, uma nação é, a
priori, a personificação de uma ideologia. Segundo ela,
194
Greenfeld (1994) observa a particularidade do nacionalismo dos EUA, ao explicar
o surgimento da ideia de nação. Desse modo, observa que a ideia de nação emergiu em
uma sociedade antiga e tradicional, muito diferente da imagem ideal que o conceito
carregava. Posteriormente, em todos os casos, com exceção da colonização britânica na
América, o conceito de nação foi importado para ambientes sociais, cuja realidade estava
em contradição com essa ideia. Greenfeld (1994) expõe que, nesse conflito desigual entre
o princípio nascente de nação e os modos de vida há muito tempo estabelecidos, foi o
princípio que teve de se ajustar; na América, contudo, quase não havia realidade social –
como aquela conhecida na Europa66 –, além daquela que os colonos traziam consigo em
suas mentes, o que possibilitou o desenvolvimento de uma sociedade a partir de uma
experiência europeia, mas com sistema econômico, organização política e instituições
governamentais originais. Greenfeld esclarece que
66
É importante salientar que havia as estruturas sociais indígenas originais nas Américas; entretanto, como
a autora trata do desenvolvimento da concepção de nação, originalmente advinda da Inglaterra, infere-se
que, no caso americano, quando os colonos ingleses chegaram a essas terras, não se encontrou nenhum tipo
de estrutura social fundamentada a partir da recém-ideia de Estado moderno, que posteriormente será
desenvolvida pelos sociedades europeias.
195
Para aprofundar na compreensão sobre essa singularidade americana, Greenfeld
(1994) descreve as características do nacionalismo dos EUA que permanecem ao longo
do tempo. A autora analisa que o compromisso nacional dos EUA com a liberdade e a
igualdade continua sendo a principal fonte de coesão social e, ao mesmo tempo, o
principal estimulante de inquietação. Ela argumenta que a rigidez da lealdade a esses
ideais nacionais, bem como sua frouxidão, ameaça a nação; no entanto, consoante
Greenfeld, essa lealdade também a preserva. Além disso, no decurso de sua trajetória,
com uma existência nacional mais duradoura do que a de qualquer outra sociedade, com
exceção da Inglaterra, a singularidade da nação americana consiste em permanecer fiel à
ideia original de nação e em se aproximar mais da realização dos princípios do
nacionalismo individualista e cívico. Isso significa, consoante Greenfeld, que os EUA
permanecem como exemplo de sua promessa original de democracia, o que confirma seu
compromisso e sua viabilidade, malgrado suas contradições inerentes. Por esse motivo,
não por sua heterogeneidade, à América é creditada ter um nacionalismo singular, de
modo que a nação americana representava uma “ideia”, a própria ideia da nação
americana como a encarnação da liberdade individual. (GREENFELD, 1994).
Greenfeld (1994) explica, ainda, que os americanos não concebiam uma nação,
um povo ou um Estado em termos de uma entidade unitária ou um indivíduo coletivo,
mas como designações coletivas para associações de indivíduos. A adesão a uma
coletividade não implicava a dissolução do indivíduo na comunidade; embora tenha
trocado alguns de seus direitos naturais pela proteção civil, esse indivíduo, de forma
alguma, revogou sua soberania. Além disso, a identificação da nação americana com uma
sociedade democrática, cujos membros são livres e iguais, que se baseava no respeito
pelo indivíduo, em que a humanidade composta desses indivíduos encontrava sua
realização, era universal. Greenfeld observa que, se era incerto acreditar que a América
funcionava assim na realidade, o que era certo era que todos concordavam que era assim
que deveria ser.
Muito mais do que na Inglaterra, a lealdade, constantemente cultivada, não era
para uma determinada extensão de terra, de grupos de pessoas ou de estrutura política,
mas para os princípios e instituições que os incorporavam. O nacionalismo americano
era, dessa forma, um nacionalismo idealista. Como resultado, quanto mais forte era esse
nacionalismo, mais a sério se levavam os ideais com os quais a nação estava
comprometida – mais forte era, também, o potencial de alienação de sua realidade
(GREENFELD, 1994). Deve-se compreender que o nacionalismo individualista-
196
libertário se propõe a uma tarefa complexa. Uma nação é, idealmente, uma sociedade
constituída de indivíduos iguais em seu valor humano; essa igualdade perfeita não pode,
no entanto, ser alcançada. A realidade de uma nação individualista e de seus ideais são,
necessariamente, inconsistentes, e essa inconsistência gera descontentamento e frustração
(GREENFELD, 1994).
No caso do nacionalismo russo, a partir do final do século XVII e do início do
século XVIII, a prolongada crise de identidade dentro da nobreza russa, à semelhança do
desenvolvimento político e econômico em outras regiões, tornou esse estrato da elite
simpático às ideias nacionalistas, que haviam sido promovidas pelos déspotas da Rússia,
Pedro, o Grande, e Catarina, a Grande. Greenfeld (1994) explica que essas ideias
ofereciam um remédio muito poderoso para a doença que afligia a nobreza. A
nacionalidade elevava cada membro da nação e oferecia uma garantia absoluta contra a
perda de status: podia-se perder a nobreza, mas não a nacionalidade. Havia, no
nacionalismo, a garantia de um mínimo de dignidade incontestável, que deveria ser
mantida. Com essa mentalidade, aponta Greenfeld (1994), que os aristocratas russos
foram, aos poucos, tornando-se nacionalistas; estavam começando a experimentar os
efeitos terapêuticos do orgulho nacional, e sua identidade como nobres estava dando lugar
à identidade nacional dos russos (GREENFELD, 1994).
Em sua obra, Greenfeld esclarece que o nacionalismo tinha uma ambivalente e
inevitável dependência do Ocidente, de modo que, em uma tentativa de escapar da agonia
psicológica da crise de identidade, os russos acabaram adotando o ressentimento como
um significante do nacionalismo. Foi-se criado um ambiente propício para o crescimento
da consciência nacional e foi-se minando as frustrações e as aspirações que, por longas
décadas, nutria e moldava novas paixões. Foi com base nesse ressentimento ao Ocidente,
que gerou movimentos antagônicos e paradoxais, que a nação russa surge. Greenfeld
(1994) apresenta o trabalho de Denis Fonvisin, dramaturgo que satirizava as pretensões
culturais da nobreza, que exemplificava o conflito de identidade russo, ao abordar as
seguintes questões colocada por ele: “Como podemos remediar os dois preconceitos
contraditórios e mais prejudiciais: o primeiro, que tudo conosco é horrível, enquanto em
terras estrangeiras tudo é bom; o segundo, que em terras estrangeiras tudo é horrível, e
conosco tudo é bom?” (GREENFELD, 1994, p.221). Essa parte de uma sátira de Fonvisin
resume o dilema em que se fundamentou a formação da identidade nacional russa.
No trabalho de Greenfeld (1994), essa autora expõe que a consciência do Ocidente
foi imposta à Rússia por Pedro, o Grande, e a sociedade russa teve de ceder à importação
197
dos costumes ocidentais, que, de forma geral, em um primeiro momento, foi uma reação
a este outro mundo que pareceu ser de admiração, o que faz lembrar o entusiasmo com a
anglofilia em massa na França, na primeira metade do século XVIII. Essa euforia auxilia
na compreensão de que a própria ideia nacional é, também, um sinal de reconhecimento
do Ocidente como modelo, e as primeiras expressões do nacionalismo russo,
fundamentado em um patriotismo e consciência nacional, referem-se às comparações da
Rússia ao Ocidente, cujo cotejamento se tornou um componente indispensável do folclore
nacional russo. Greenfeld (1994) analisa que os primeiros representantes do nacionalismo
russo não tinha o Ocidente como uma ameaça, pois a conquista de Pedro, o Grande, e a
mudança na posição internacional e na imagem interna da Rússia foram significativas,
contribuindo para o sentimento de confiança e de orgulho dos primeiros nacionalistas, os
chamados "homens de Pedro", que glorificavam a grandeza da Rússia, mas a definiam
em comparação à Europa, como um Estado europeu, sendo esse sentimento de
pertencimento o principal fundamento de seu orgulho nacional (GREENFELD, 1994).
A competição com o Ocidente foi, consoante Greenfeld (1994), a força motriz que
impulsionou as primeiras conquistas da cultura russa e da formação da consciência
nacional, verificada, basicamente, por toda a literatura russa do século XVIII; todavia,
após a morte do czar, tornou-se patente o fato de que a Rússia não estava no mesmo nível
de desenvolvimento econômico e político dos Estados europeus, encontrando-se em um
nível inferior. É, com base nessa percepção, que a nacionalidade se tornou um elemento
indispensável, capaz de resguardar os nobres russos da agonia conflitante de identidade.
Greenfeld (1994) observa que a constatação da discrepância entre a realidade russa e seu
ideal escolhido foi um acontecimento gradual, à medida que a consciência nacional se
desenvolvia. A partir desse despertar, reconheceu-se a superioridade dos estrangeiros
europeus e certa desconfiança quanto às consequências de admirá-los. Esse
reconhecimento da superioridade do Ocidente incentivou o ressentimento russo, ao gerar
o sentimento de vergonha e de negação na realidade sociopolítica da Rússia
(GREENFELD, 1994).
Greenfeld (1994) explica que a inclinação de buscar conforto na igualdade não se
sustentava, pois esta inexistia, e que, a partir desse desconforto, o ressentimento
apresentou-se como uma solução para o problema da identidade nacional russa, que se
baseou na rejeição ao Ocidente, fundamentado na inveja e na constatação do sentimento
de inferioridade. Segundo Greenfeld (1994), não foi o “governo de estrangeiros”, aqueles
cujo desejo era a importação dos costumes europeus à sociedade russa, que levou ao
198
ressentimento, mas o reconhecimento da discrepância entre a Rússia e seu ideal e de sua
inferioridade frente à Europa. A hostilidade generalizada em relação aos estrangeiros e
suas eventuais ameaças, a partir do século XVIII, enfatizou a inadequação da Rússia.
Greenfeld explica que esse sentimento persistiu, pois a razão para sua existência não havia
deixado de existir. Ao mesmo tempo, o desenvolvimento da consciência nacional russa
começou a crescer e prosperar nos intelectuais não nobres de Petersburgo e de Moscou
(GREENFELD, 1994).
A matriz da consciência nacional russa finalmente cristalizou no final do século
XVIII, segundo Greenfeld, quando a elite nobre se voltou ao aprendizado e à identidade
nacional, reivindicando, como suas, as conquistas dos intelectuais não nobres acerca do
desenvolvimento do nacionalismo. O elemento mais relevante dessa solidificação da
consciência nacional foi o ressentimento. Greenfeld (1994) argumenta que a inveja
existencial do Ocidente e os fatores constituidores da consciência nacional foram
consequência da transvaloração advinda desse ressentimento. Consequentemente, a
antipatia em relação aos admiradores russos do Ocidente e os ocidentais na Rússia
representava a rejeição dessa entidade ideal como modelo (GREENFELD, 1994). A etapa
final do desenvolvimento de uma identidade, em que o ressentimento era o vetor das ações
coletivas, não representava o ódio patente. Greenfeld (1994) analisa que foi uma
transvaloração dos valores ocidentais, a partir da criação imaginária de um novo modelo,
que carregava nova esperança e caracteriza nova imagem para a Rússia, capaz de servir
de base para autoestima individual dos russos.
Com a matriz da identidade nacional russa desenvolvida, houve o crescimento do
orgulho nacional, que, posteriormente, foi prejudicado pela proximidade e pela própria
existência do Ocidente (GREENFELD, 1994). Isso significa que os russos não podiam
separar-se do Ocidente e retornar ao período em que sua existência era indiferente, pois
foi o encontro com o Ocidente que possibilitou a Rússia tomar consciência da ideia de
nação. Nesse sentido, devido à incorporação da Rússia ao Ocidente, patriotas russos
desenvolveram e experimentaram o sentimento de orgulho nacional. Consequentemente,
o Ocidente era uma parte integral e inexorável da consciência nacional russa, porquanto
não fazia sentido ser uma nação, caso o Ocidente não existisse. Greenfeld explica que os
russos se analisavam por meio dos paradigmas ocidentais, utilizando seus modelos e suas
concepções, de modo que a aprovação e o reconhecimento eram condições indispensáveis
à autoestima nacional russa (GREENFELD, 1994).
Para que os russos pudessem superar esse obstáculo e formar o orgulho nacional,
199
malgrado a "superioridade ocidental", Greenfeld (1994) apresenta três trajetórias. A
primeira era tornar-se como o Ocidente, imitando-o. Já a segunda foi caracterizar o
Ocidente como um modelo inadequado para a Rússia, pois esta era única e seguia seu
caminho, sem se relacionar com o Ocidente, fato que não só desafiaria o propósito que
evidenciou a consciência nacional, mas também, ao assumir que a Rússia e o Ocidente
eram incomparáveis, sendo avaliados por padrões diferentes, significaria renunciar à
esperança de conquistar o respeito do Ocidente; como consequência, a autoestima
nacional dependia do cotejamento com o Ocidente (GREENFELD, 1994). A trajetória
que se apresentou mais viável foi a rejeição do Ocidente por este ser odioso, ou seja
escolheu-se o ressentimento. Com o relativismo cultural, Greenfeld demonstra que o
ressentimento se fundamentava no exame pessimista da Rússia, isto é, no reconhecimento
de sua impotência em relação à competição com o Ocidente; diferentemente do
relativismo cultural, era, contudo, um sentimento inovador, com capacidade de se
ramificar, gerando e estimulando, constantemente, novos sentimentos, ideias e ideologias.
Os russos haviam deixado, portanto, sua existência pré-ocidental (GREENFELD, 1994).
Da percepção da inferioridade russa, passando pela aceitação otimista do
relativismo cultural e, posteriormente, pelo puro ressentimento até a transvaloração de
valores, as etapas dessa evolução não podem ser separadas e organizadas de maneira
cronológica, coexistindo e sobrepondo-se de vários modos. Greenfeld (1994) nota que os
criadores da consciência nacional russa acabaram por convergir no estágio final da
transvaloração, como a única solução viável para o problema da consciência nacional. A
rejeição à razão acabou por atravessar todos os escritos investigativos, por meio de
afirmações acerca do caráter nacional russo. Greenfeld (1994) explica que essa razão
concerne à racionalidade, à razão do indivíduo pensante, que necessitava de liberdade e
de igualdade. Como não havia nem liberdade nem igualdade no território russo, a Rússia
revoltou-se contra a racionalidade, de modo a rejeitar tanto o indivíduo pensante quanto
a faculdade que definia sua natureza. Greenfeld explica que as qualidades da alma russa
foram conquistadas por meio do exercício mental de propor antíteses às virtudes
ocidentais existentes em relação às quais a Rússia era particularmente deficiente; e,
portanto, essas qualidades estavam, incialmente, tão pouco presentes na Rússia quanto
em qualquer outro lugar (GREENFELD, 1994).
A rejeição da razão implicou certa reinterpretação de seus efeitos na política,
sobretudo no que diz respeito aos conceitos de liberdade e de igualdade. Greenfeld (1994)
esclarece que, enquanto os nacionalistas russos concordavam que os conceitos denotavam
200
grandes virtudes morais, recusavam-se a aceitar nas instituições ocidentais sua verdadeira
personificação, porquanto acreditavam que a liberdade e a igualdade ocidentais não eram,
de fato, liberdade e igualdade reais e legítimas. O fator central dessa reinterpretação é,
segundo Greenfeld (1994), facilmente estabelecido: a razão individual era a fonte de toda
servidão, visto que reprimia e circunscrevia as forças interiores do espírito, de sorte que
toda expressão dessa racionalidade restritiva nas instituições econômicas e políticas
somente estimulou seus efeitos perniciosos. Nesse sentido, a autora observa que a
verdadeira liberdade recuou para a alma, tornando-se liberdade interior, e a igualdade
política perdeu todo o significado (GREENFELD, 1994).
Para que a transvaloração dos princípios ocidentais pudesse solidificar como a
consciência nacional russa, a elite nacionalista russa inventou o “povo”, que determinou
os critérios de pertencimento à nação e levou à sua definição como uma coletividade
étnica, conforme esclarece Greenfeld. O atraso da Rússia representava sua imaturidade e
o fracasso de sua civilização por meio dos padrões ocidentais. Os patriotas russos
associavam a repulsa da razão ao excesso de civilização, da qual a Rússia foi poupada.
Nesse contexto, a invenção do “povo” surgiu, de modo a gerar o sentimento de
pertencimento à nação e a propiciar a existência de uma coletividade étnica, na medida
em que conectaram as virtudes espirituais da alma russa: espontaneidade e sentimento
vinculados ao sangue e ao solo (GREENFELD, 1994). Greenfeld argumenta, ainda, que
o "povo", transformado pela elite russa como o objeto central do culto coletivo, era um
constructo mental, e a alma, que era o símbolo da “russianidade”, advinha do sangue e do
solo. Essa elaboração psicológica e mental levou à conclusão de que o povo, no sentido
de plebe, de trabalhador, de classe não contaminada pela civilização, tinha somente
sangue e solo; a alma desse povo, isto é sua nacionalidade, seria a mais pura. Segundo
Greenfeld, isso significa que aqueles que não tinham “sangue e solo” não poderiam ter a
alma russa e não poderiam, portanto, ser russos (GREENFELD, 1994).
Greenfeld (1994) afirma que foi o ressentimento, não as preocupações sociais, que
estimulou a consciência nacional russa, sendo o ressentimento, não a simpatia pelo
campesinato, que fez do trabalhador camponês um símbolo da nação russa, como o porta-
estandarte da nacionalidade. Greenfeld esclarece que a servidão não era tida como
contraditória a essa ideia, de maneira que o sofrimento do campesinato parecia possibilitar
o desenvolvimento da alma eslava. Com a invenção do povo, o período de gestação da
consciência nacional russa chegou ao fim, e a matriz dessa consciência nacional, em que
todos os futuros russos baseariam sua identidade, estava completa, ensejando o sentido
201
de nacionalidade (GREENFELD, 1994). Com isso, pôde-se inferir que a ideia nacional
russa consistia nos seguintes elementos: a nação era definida como um indivíduo coletivo;
era formada por grupos étnicos e por fatores como sangue e solo; e, por fim, era
caracterizada pela ideia de alma ou espírito russo. Greenfeld (1994) observa que o espírito
da nação se encontrava no povo; era, entretanto, revelada por meio da elite educada, que
tinha a capacidade de decifrá-la. Ela explica que a rejeição do indivíduo de pensamento
comum, que se expressava, justamente, na glorificação de seu oposto – a comunidade –,
também enfatizou indivíduos incomuns, como profetas e teólogos do espírito nacional.
Consequentemente, a adoração do povo encontrava, não raro, sua contraparte no elitismo
e no descaso pelas massas iletradas. Nesse sentido, esses indivíduos incomuns, que
conheciam o desejos e anseios do povo, possuíam o direito legítimo de determinar e
administrar as massas, que não conheciam sua vontade (GREENFELD, 1994).
A partir desse desenvolvimento da consciência nacional, o nacionalismo russo
pode, consoante Greenfeld (1994), ser classificado de étnico, de coletivista e de
autoritário, de modo que, com base na maneira pela qual foi constituída, a identidade
nacional russa conseguisse fornecer os fundamentos à autoestima individual. O
cotejamento com o Ocidente já não mais colocava Rússia em uma posição de
inferioridade; o Ocidente permaneceu, porém, o outro significativo para a Rússia, sendo
um componente necessário de sustentação do orgulho nacional, na medida em que sua
superioridade derivava do fato de não ser uma nação ocidental, em razão de incorporar o
princípio oposto àquele em que se baseava a civilização ocidental (GREENFELD, 1994).
Era o princípio russo da dissolução do indivíduo em comunidade que significava a
verdadeira aspiração do ser humano e representava a verdadeira liberdade, visto que a
nação era, segundo esse princípio, um indivíduo moral de espírito único. Greenfeld
(1994) analisa que esse princípio se manifestou na Igreja Ortodoxa russa, no Cristianismo
oriental e na comuna camponesa. O Cristianismo oriental, assegurado e preservado pela
Rússia para o mundo, era o único original e legítimo; a Igreja russa, em contraposição às
Igrejas ocidentais, que enfatizava o indivíduo, era caracterizada pela ideia de unidade na
multiplicidade. Greenfeld (1994, p.266) cita o teólogo russo Aleksey Khomyakov, ao
dizer que “A Igreja é uma” e “sua unidade decorre necessariamente da unidade de Deus;
pois a Igreja não é uma multidão de pessoas em sua individualidade separada, mas uma
unidade da graça de Deus, vivendo na multidão de criaturas racionais, submetendo-se
voluntariamente à graça”.
Para continuar com essa ideia, que, em teoria assemelha-se à de Karl Marx,
202
Greenfeld cita ainda o famoso literário do século XIX Sergey Aksakov:
204
para o inconsciente coletivo herdado – na realidade, essa separação é somente didática,
visto que há bastante interação entre estas. Essas formas coletivamente herdadas de
percepção e de apreensão são o que Jung classifica de arquétipos. Estes são correlatos
psíquicos dos instintos, isto é, a percepção do instinto de si mesmo, similar à ideia de que
a consciência é uma percepção interior do processo de vida objetivo. Odajnyk (2007)
elucida que, entre os tipos de classificações arquetípicas de Jung, as “ideias arquetípicas”
são versões ou extensões secularizadas e abstratas de temas simbólicos, o que possibilita
rastrear as ideias científicas, filosóficas e sociológicas influentes de volta à sua fonte
simbólica, como a ideia da Primeira Causa para Deus ou a concepção de Comunhão para
o Paraíso. Jung acredita que é sua base arquetípica simbólica que explica a popularidade
das “ideias arquetípicas” e o feroz compromisso emocional que muitos têm com elas.
(ODAJNYK, 2007). Os ideologismos enquadram-se perfeitamente no que Jung chama
“ideias arquetípicas”, e, nesta dissertação, o liberalismo/capitalismo e o
coletivismo/socialismo, como ideologias modulantes da vida social, serão as mais
relevantes para o a compreensão do conflito bipolar da Guerra Fria.
Um dos objetivos da Psicologia Analítica é a integração entre os elementos
conscientes e inconscientes da psique (ODAJNYK, 2007). Uma vez que o inconsciente
abriga aspectos pessoais e coletivos, um fenômeno derivado da assimilação consciente
dos conteúdos do inconsciente é a extensão da personalidade para além dos limites
adequados aos indivíduos. Jung explica que, na terapia, o indivíduo sob análise, que passa
por esse processo, descobre em si elementos não apenas de seu inconsciente pessoal, mas
também do inconsciente coletivo. A assimilação de conteúdos do inconsciente pessoal
pode produzir sensações a esse indivíduo, de modo a fornecer nova confiança e força para
ele; como os conteúdos do inconsciente coletivo aparentam, também, pertencer ao
indivíduo, este pode tentar, no entanto, assimilar esses aspectos de sua psique e
identificar-se com os conteúdos do inconsciente coletivo (ODAJNYK, 2007). Caso isso
ocorra, esse indivíduo estende sua personalidade para além de seus limites individuais e
acaba por preencher um espaço que normalmente não pode preencher, pois só pode
preenchê-lo, ao apropriar-se de conteúdos e de qualidades que, necessariamente, existem
apenas para si. Nesse sentido, Jung argumentou que, como consequência dessa extensão
de sua personalidade, o indivíduo experimenta uma sensação de ser "sobre-humano" ou
"sobrenatural", cujo fenômeno Jung definiu como inflação psíquica. Não obstante seja
definida no domínio da Psicologia Analítica, Odajnyk (2007) nota que a existência da
inflação psíquica nem se restringe às situações clínicas e terapêuticas, nem relaciona
205
exclusivamente à identificação do indivíduo com os conteúdos do inconsciente coletivo.
Nesse sentido, na medida em que a consciência é tanto pessoal quanto coletiva, a inflação
psíquica pode ser, também, pessoal ou coletiva. Isso significa que um grupo, uma tribo
ou uma nação podem experenciar a inflação psíquica. (ODAJNYK, 2007).
A inflação psíquica coletiva decorrente de uma identificação grupal com
conteúdos do inconsciente coletivo pode ser uma forma de inflação psíquica significativa
para a compreensão do comportamento político. Odajnyk (2007) analisa que, na inflação
psíquica coletiva, o coletivo ou o ego grupal é dominado e submetido pelos conteúdos
inconscientes. Com base nesse argumento, pode-se inferir que os membros individuais
desse coletivo já experienciem um sentimento de inflação psíquica, em razão de seu senso
de unidade com o grupo. Odajnyk (2007) explica que não só o senso de unidade, mas
também a inflação psíquica que deste resulta são robustecidos pela identificação do grupo
com o inconsciente coletivo. O autor analisa que essa unificação grupal com a totalidade
coletiva pré-consciente tem um poder de contágio intenso e uma virulência psíquica
extraordinária, visto que, conforme argumenta Jung, a identificação com camadas
inferiores e mais primitivas da consciência é acompanhada por um elevado senso de vida,
fornecendo uma nova fonte de poder, que pode, no entanto, desencadear um entusiasmo
perigoso (ODAJNYK, 2007).
Odajnyk (2007) aprofunda sobre essa manifestação psíquica, ao argumentar que,
da mesma forma que ocorre com o indivíduo, a identificação do grupo com o inconsciente
coletivo gera uma sensação de validade universal, de onipotência e de divindade, o que
possibilita a esse grupo impor suas exigências e demandas do inconsciente sobre os outros
grupos. Nesse contexto, o sentido de validade e de legitimidade é sustentado pela
unanimidade de pensamento entre os membros do grupo. Odajnyk (2007) observa que a
tolerância com as diferenças individuais é colocada em ostracismo pela propensão natural
da psique coletiva para a concretização dos objetivos da unidade psíquica, e o sentimento
de onipotência é intensificado pela verdadeira força material e social do grupo.
Consequentemente, sob essa circunstância, tanto o indivíduo quanto o grupo são privados
do desenvolvimento consciente da psique, de maneira que os efeitos políticos e sociais
dessa inflação psíquica coletiva tenha desdobramentos imprevisíveis e complexos
(ODAJNYK, 2007, p.30).
O que se pode interpretar dessa demonstração teórica dos conceitos junguianos é
que a origem da Guerra Fria pode ser considerada um confronto, em nível internacional,
de duas psiques coletivas infladas, por meio de ideias arquetípicas divergentes, como o
206
capitalismo e o socialismo, que se fundamentaram em concepções nacionais contrárias,
em que os Estados Unidos adotaram um nacionalismo cívico-libertário-individualista, e
a Rússia assumiu um nacionalismo étnico-autoritário-coletivista. O embate entre essas
duas formações nacionais, com seus respectivos modus vivendi, não surgiu após 1945,
mas já carregava as sementes da discórdia na sua gênese, pois um nacionalismo rejeita,
necessariamente, o outro, desde sua criação. Nesse processo, a origem da Guerra Fria,
materializada em função de uma confronto bélico de proporções mundiais, constituir-se-
ia pela projeção da sombra coletiva estadunidense sobre os russo-soviéticos e pela
projeção da sombra coletiva russo-soviética sobre os estadunidenses. Infere-se, desse
modo, que a sombra dos EUA seria o coletivismo e a ênfase na justiça social russo-
soviética, e a sombra da URSS seria o individualismo e a ênfase na liberdade
estadunidense; o inconsciente dos EUA seria, portanto, o consciente da URSS e vice-
versa. Esse processo pode ser observado na figura abaixo.
Vale relembrar que a sombra, de acordo com Jung, guarda os aspectos inacessíveis
pelo consciente, permanecendo, desse modo, no inconsciente. Esses aspectos são, em
207
regra, negativos e opostos. Não obstante o inconsciente guarde qualidades distintas, as
características repulsivas são mais comuns na formação da sombra, visto que não são
trabalhadas no consciente, devido à dificuldade em lidar com questões que desestabilizam
o ego consciente. Isso significa que, caso haja somente observação dos atributos
positivos, sem avaliação dos aspectos negativos, estes, advindos do inconsciente, tornam-
se mais autônomos, pois o ego consciente não toma conhecimento da formação e da
atuação dos elementos relegados ao inconsciente. Há, portanto, menos controle das ações
que advêm do inconsciente. Jung asseverava, desse modo, que a sombra é a soma das
propriedades ocultas e desfavoráveis, das funções pouco desenvolvidas – porque
rejeitadas – do inconsciente.
Isso significa que a Guerra Fria pode ser considerada uma consequência do
processo psíquico coletivo, por meio do qual as sociedades projetam, uma em relação à
outra, a própria sombra coletiva, ao identificar na outra as crenças, as atitudes, os
comportamentos e as características que rejeitam e suprimem em si. Esses elementos são
projetados para o inconsciente por serem incompatíveis ou se oporem às atitudes, aos
valores e aos princípios com os quais o ego consciente se identifica. Baseado nessa
ausência da observação do inconsciente e da projeção reativa dos aspectos repulsivos do
inconsciente coletivo, a análise da Guerra Fria pode ser realizada por meio da origem dos
fundamentos da interação de uma sociedade com o outra.
Pode-se analisar que a Segunda Grande Guerra foi, com base em uma perspectiva
psicológica, consequência da interação entre nacionalismos, que oportunizou, no final
desse conflito, a atmosfera psíquica para o confronto entre uma nação que advogava por
ideias liberais e outra que defendia, em contraposição, as concepções coletivistas – tanto
estas como aquelas são formações ideológicas opostas que já se haviam desenvolvido há
algum tempo em cada sociedade. A manifestação dos conteúdos do inconsciente coletivo
ocorre por meio dos arquétipos. Os “ismos”, ou os ideologismos, podem ser considerados
como arquétipos ou “ideias arquetípicas”, já que possuem a capacidade de influenciar e
modular a dinâmica social de coletividades inteiras, conquistando mentes e corações. No
caso dos EUA, o liberalismo político-filosófico e o capitalismo econômico foram as
doutrinas que arquitetaram as relações sociais e as interações internacionais desse país;
na URSS, por sua vez, os princípios do coletivismo político-filosófico e do socialismo
econômico constituíram a dinâmica de vida dos russo-soviéticos. Cada sociedade cultuou
e identificou-se com as práticas e os costumes de seus sistemas ideológicos, que
modularam as ações sociais e permitiram a criação, a absorção e a reprodução de seus
208
componentes ideológicos, de modo que os indivíduos de cada país defendessem o seu
“ismo” como se fossem, de fato, original, natural e intrinsicamente, deles.
A defesa ideológica de uma ideia ou de um pensamento modulador de
comportamento social, os “ismos”, pode ser analisado com base na formação arquetípica
do inconsciente coletivo. Jung explica a formação e o processo pelo qual esse tipo de
ideia arquetípica se desenvolveu nos indivíduos e, consequentemente, nas sociedades.
Para isso, é importante notar que, da perspectiva psicológica, a ênfase dada, sobretudo no
período do Iluminismo, ao racionalismo e à sua rejeição a “superstições” ocasionou a
repressão dos conteúdos irracionais e inconscientes da psique. Ao determinar a psique
como uma tábula rasa, os filósofos iluministas recusaram-se, segundo Odajnyk (2007), a
reconhecer que os antigos reinos com seus símbolos, suas místicas e suas representações
não surgiram inesperada e repentinamente; originaram-se, todavia, do ânimo que ainda
habita dentro do ser humano. Isso significa que esses elementos, inatos aos seres humanos
em suas formas primitivas, estão nestes e podem a qualquer momento irromper com uma
força inopinada, sob a forma de sugestionabilidade em massa, contra a qual o indivíduo
é indefeso. Nesse sentido, o Iluminismo pode ter “destronado os deuses e destruído os
espíritos da natureza”, mas não apagou, conforme Jung argumenta, os “fatores psíquicos
que lhes correspondem, como a sugestionabilidade, a falta de crítica, o medo, a propensão
à superstição e o preconceito” (ODAJNYK, 2007).
Jung observou que, na Europa da Idade Moderna, a imposição do Cristianismo
contribuiu para o efeito de dividir a psique do indivíduo em dois, ao reprimir a metade
“inferior”, regida por simbolismos e por superstições, e ao permitir-lhe administrar a
metade mais racional, acendendo-a à civilização; a metade “inferior” aguarda, entretanto,
a redenção e um segundo período de domesticação. Ao comprometer a autoridade do
Cristianismo, ignorando o inconsciente e rejeitando seus aspectos irracionais e seus
modos de expressão cultural, Odajnyk (2007) explica que o Iluminismo intensificou a
neurotização geral do ser humano moderno, pois, conforme Jung asseverava, quando é
negada a qualquer função natural a expressão consciente e intencional, essa negação
implica uma perturbação geral. Jung afirmava que os elementos reprimidos no indivíduo
são, psiquicamente, voláteis e imprevisíveis, devido à repressão sofrida, de modo que
reagem – gerando uma espécie de compensação – por meio de manifestações de cultos,
de manias, de crenças e de convicções, que, na era moderna, representa e se manifesta
por meio dos “ismos”. “Nossos deuses temíveis”, escreve Jung, “apenas mudaram seus
nomes: agora rimam com ‘ismo’, pois os diversos ‘ismos’ modernos são apenas um
209
substituto sofisticado para o elo perdido com a realidade psíquica”, ou seja, com as forças
do inconsciente (ODAJNYK, 2007, p. 36). Odajnyk explica, ainda, que os ideologismos
expressam e mobilizam aqueles impulsos irracionais, reprimidos e distorcidos pela ênfase
unilateral no racionalismo e no intelectualismo, bem como levam a uma identificação da
consciência individual com a consciência coletiva, materializada no ‘ismo’ de escolha;
isso estimula, por sua vez, a identificação do grupo com as forças do inconsciente
coletivo, de modo que produz, nesse sentido, uma psique de massa com desejos e anseios
irresistíveis (ODAJNYK, 2007).
Jung (1991, p. 563), na obra “Psicologia e Alquimia” afirmou que
A projeção simultânea entre a sombra dos EUA e a da URSS gerou uma série de
ações e reações coletivas que foram materializadas na política, na economia, na cultura e
nas relações sociais e internacionais como um todo, à época da bipolaridade. Como ambas
as nações eram reconhecidas como potências mundiais, não só pelo desenvolvimento
material de cada povo, mas também pela capacidade de disseminação internacional de
poder e de influência, por meio da doutrina nacional e da propaganda ideológica sistêmica
210
de cada uma, as consequências da projeção dos elementos do inconsciente coletivo de
cada país tiveram proporções ecumênicas. É relevante lembrar, segundo Jung, que a
projeção é um processo automático pelo qual os conteúdos do próprio inconsciente são
percebidos como habitados nos outros. A projeção significa a expulsão de um conteúdo
subjetivo em direção a um objeto. Consequentemente, é um processo de dissimilação,
pelo qual um conteúdo subjetivo se torna alienado do sujeito e é incorporado no objeto,
para que o sujeito se livre de conteúdos antagônicos e incompatíveis, projetando-os
(JUNG, 2011). A projeção não é um processo consciente; a razão psicológica geral para
a projeção é, por sua vez, sempre um inconsciente ativado que busca expressão.
Frequentemente, o objeto da projeção comporta-se como um gatilho ou um estímulo para
a projeção, atraindo-a para fora do sujeito. Todas as projeções provocam contraprojeções,
quando o objeto é inconsciente da qualidade projetada sobre ele pelo sujeito (JUNG,
2011).
Todo esse processo de projeção pode ser compreendido quando há interações
entre conteúdos do inconsciente coletivo representados pela sombra de cada país, em uma
dinâmica projetiva de ideias arquetípicas, caracterizados, neste caso, pelos ideologismos
estabelecidos nos Estados Unidos e na União Soviética. Odajnyk (2007, p.74) ainda
reafirma os argumento de Jung ao notar que,
211
economias do leste europeu à União Soviética, por meio de auxílios econômicos e
financeiros, separando-as das economias de mercado da Europa ocidental. No âmbito
militar, os EUA, juntamente aos países do oeste europeu, criaram a OTAN, e a URSS, ao
lado dos países do leste europeu, instituiu o Pacto de Varsóvia, ambos os acordos com o
intuito de assegurar a dinâmica de vida de cada bloco, utilizando meios bélicos, caso
necessário. No domínio ideológico, nos EUA, surgiu o movimento Macartismo, que
perseguia simpatizantes do comunismo e contribuía para a elaboração de projetos e de
leis contra aqueles que se envolviam em atividades “antiamericanas”, ao passo que, na
URSS, havia um movimento de “combate à dissidência” política, artística e religiosa,
responsável pela censura daqueles com “predileções americanas”. Na esfera da
inteligência, os EUA criaram a CIA, e a URSS instituiu a KGB, ambos centros de
inteligência com o fito de coletar informações e de elaborar análises e projetos
concernentes à espionagem, à contraespionagem e às ações de inteligência, de modo a
garantir informações e dados a priori para seus respectivos países.
Há, ainda, no campo cultural, o que se chamou “paradigma Modernista
americano”, do lado dos EUA e “paradigma do Realismo Socialista”, do lado da URSS.
De acordo com Cardoso (2012), ambos os paradigmas se desenvolveram em uma
dinâmica de espelhos “antonímicos” de uma formação identitária, tornada angustiante
pela rivalidade entre os EUA e a URSS, durante a Guerra Fria. De seu início, passando
pela sua etapa de afirmação, ao início de sua desintegração, cada paradigma necessitou
de seu “outro”, para se definir, ao determinar teorias, métodos e valores antagônicos ou
diametralmente opostos aos do seu rival. Com destaque para as obras de Hoffmann,
Pollock, Rothko, Newman e Kooning – a Escola de New York, no pós-guerra, marcou o
deslocamento da produção de arte modernista, até então concentrada em Paris, para os
Estados Unidos. Esta concernia a uma prática artístico-cultural mais “livre” e “criativa”,
representação de uma “América livre” e resistente às ameaças da União Soviética. Já, na
URSS, com expoentes como Vladimir Pchelin, Sergey Malyutin e Czeslaw
Znamierowski, o realismo socialista foi caracterizado pela representação de valores
comunistas, como a emancipação do proletariado, de modo que a arte e a cultura deveriam
estar, basicamente, a serviço dos ideais revolucionários. Além do aspecto cultural, houve
a corrida armamentista, que colocou em constante fricção a disputa não só pela melhoria
no desenvolvimento de armamentos comuns, mas também pela inovação na tecnologia
nuclear com fins militares. Adicionalmente, na área de tecnologia, houve a corrida
espacial, em que EUA e URSS disputaram pelo avanço tecnológico no setor de foguetes
212
espaciais e pela aspiração da chegada do ser humano à Lua.
Todos esses episódios, entre outros que não foram exaustivamente citados, da
relação EUA-URSS demonstraram a materialização psicológica da relação bipolar, da
qual essas duas nações se constituíram, após da Segunda Grande Guerra. Seja a ideia da
contenção do avanço comunista pelos Estados Unidos seja o projeto de combate à
dissidência política de inclinações americanas pela União Soviética, todas essas
iniciativas foram eventos que se originaram da singular formação do nacionalismo em
cada sociedade67. Cada uma identificou-se com sua ideia arquetípica, representada pela
formação do “ismo” ou do ideologismo de cada nacionalismo – de um lado, o
nacionalismo capitalista-libertário e, de outro, o nacionalismo socialista-coletivista –, de
modo que, por meio do inconsciente coletivo de cada nação, os conteúdos reprimidos e
desagradáveis, presentes na sombra coletiva nacional russo-soviética e na sombra coletiva
nacional estadunidense, foram manifestados e projetados em direção à sociedade que, de
fato, representava os elementos internos que cada sociedade rejeita em si. Por serem
ideologias nacionais diametralmente opostas, cada nação gerou uma psique coletiva
inflada, cada qual identificada com seu ego coletivo, cujo crescimento e desenvolvimento,
em ambos os países, implicou uma relação conflituosa e repleta de desinteligências,
observadas em várias áreas do conhecimento. Os conteúdos do inconsciente coletivo de
67
Vale lembrar que o nacionalismo russo, que se formou ao longo do tempo e se consolidou, sobretudo,
no século XIX, não perdeu – embora tenha havido modificações – sua essência coletivista, étnica e
autoritária, à época do surgimento da União Soviética. No período de Stalin, foi enfatizado um patriotismo
socialista soviético centralista, que defendia a ideia de um povo soviético coletivo, identificando os russos
como sendo os irmãos mais velhos do povo soviético. Durante a Segunda Guerra Mundial, o patriotismo
socialista soviético e o nacionalismo russo se uniram, apresentando a guerra não só como uma luta de
comunistas contra fascistas, mas também como uma luta pela sobrevivência nacional (MOTYL, 2001). Ao
longo desse conflito, os interesses da União Soviética e da nação russa foram apresentados como sendo os
mesmos, de modo que o governo de Stalin adotou os heróis e os símbolos históricos da Rússia,
estabelecendo uma aliança com a Igreja Ortodoxa Russa. Além disso, a guerra foi descrita pelo governo
soviético como a Grande Guerra Patriótica, e, após esta, o nacionalismo foi oficialmente estabelecido na
ideologia da União Soviética. Consequentemente, nacionalidades consideradas "não confiáveis" foram
perseguidas. No governo de Nikita Khrushchev, mudaram-se as políticas do governo soviético para longe
do culto stalinista, ao promover a noção do povo da União Soviética como sendo um "Povo Soviético"
supranacional, cuja concepção se tornou política de estado depois de 1961. Isso não significou que grupos
étnicos perderam suas identidades separadas ou que seriam assimilados; promoveu, todavia, uma aliança
fraternal de nações que pretendiam tornar irrelevantes as diferenças étnicas. Ao mesmo tempo, a educação
soviética enfatizava uma orientação "internacionalista". Motyl (2001) argumenta que muitos soviéticos não
russos suspeitaram que essa “sovietização” fosse um disfarce para um novo episódio de “russificação”,
visto que o aprendizado da língua russa se tornou parte obrigatória da educação soviética e o governo
soviético encorajou os russos étnicos a se mudarem para fora da Rússia, estabelecendo-se em outras
repúblicas soviéticas. Os esforços para alcançar um povo soviético unido foram prejudicados pelos graves
problemas econômicos na União Soviética nas décadas de 1970 e de 1980, resultando em uma onda de
sentimento antissoviético entre não russos e russos. Mikhail Gorbachev apresentou-se como um patriota
soviético dedicado a resolver os problemas econômicos e políticos do país, mas não conseguiu conter o
crescente nacionalismo étnico regional e sectário, com a URSS dissolvendo-se, em 1991 (MOTYL, 2001).
213
cada país foram materializados, por meio desses nacionalismos, gerando o conflito
bipolar, na medida em que cada nação repreendeu o que mais desprezava em si, de forma
que a interação entre EUA e URSS foi formada por meio da sombra coletiva projetada,
com base em uma realidade engendrada pelos conteúdos indesejáveis e menosprezados
dessas sombras coletivas. O muro de Berlim foi a concretização de tal manifestação
esquizofrênica e foi o fator que demonstrou a incompatibilidade ideológica entre as duas
nações.
Embora os Estados Unidos e a União Soviética pudessem estar em rota de colisão
antes mesmo da Guerra Fria, devido à formação identitária-nacional antagônica de ambos
os Estados, irrompendo o confronto somente após 1945, pode-se argumentar, ainda, que
houve momentos de cooperação, de entendimento e de assistência mútua, como o período
de “coexistência pacífica” e de “détente”. Com base na Psicologia Analítica, seria
possível explicar, psicologicamente, os momentos que ensejaram essa aproximação;
demandaria, entretanto, pormenorizar certos episódios dessa relação bipolar, o que não é
o objetivo desta dissertação. Esses dois períodos da Guerra Fria não modificaram, por sua
vez, a essência da relação entre EUA e URSS, que continuaram, mesmo nesses
momentos, cada qual com seus ataques ao modo de vida de seu homólogo, sobretudo por
meio da utilização do que se convencionou chamar, atualmente, “soft power”. O
entendimento entre russo-soviéticos e estadunidenses ocorreu, entre outras razões, mais
em função de uma ameaça real de destruição em massa do que uma concertação política
e ideológica entre o nacionalismo de cada sociedade.
As ideias arquetípicas do ideologismo do socialismo-coletivista e do liberalismo-
individualista, manifestadas no plano econômico como socialismo e capitalismo, não se
resumem aos países em que se desenvolveram e prosperaram, mas aos fatores psíquicos
que cada ideologismo contém de forma intrínseca. Isso pode ser contemporaneamente
evidenciado pelos desentendimentos e pelas rivalidades entre China e EUA, cujas
sociedades ainda guardam pisques coletivas formuladas por nacionalismos divergentes,
embora esta seja uma relação diferente e não, tecnicamente, comparável com a da EUA-
URSS. Desse modo, a confrontação entre as sombras coletivas não é uma exclusividade
da época bipolar da Guerra Fria, malgrado esta seja emblemática para objeto de análise;
isso significa, porém, que as ideias arquetípicas podem ter permanecido na psique coletiva
e se manifestarem quando encontram momento adequado, apresentando-se por meio do
inconsciente coletivo e produzindo seus efeitos. Nesse sentido, não bastou o
desmantelamento da URSS e não bastará, na atualidade, a China mudar a estrutura de sua
214
organização social e de sua identidade nacional para que o ideologismo implementado
por ambos os países deixe de existir; a ideia arquetípica permanece, a despeito do povo,
do território e da nação em que esta se manifesta.
O fator relevante é, por sua vez, a ideia arquetípica estimulada no inconsciente
coletivo, que possibilita a projeção das sombras coletivas, uma vez que estas não são
identificadas e trabalhas pelo ego consciente coletivo. O conflito individual pode ser
diligenciado terapeuticamente, mas o conflito coletivo demanda, a princípio, uma
compreensão, que leva a sociedade a um desenvolvimento de uma consciência grupal e
coletiva, para que as projeções de elementos indesejáveis sejam evitadas e para que o
desenvolvimento de relações mais profícuas possam ser estabelecidas. A mudança social
é consequência de uma movimentação inconsciente que necessita de tempo e de
dedicação, cuja manifestação acontece, primeiramente, na individualidade do indivíduo.
Caso não passe por esse processo de individuação, a força do ego consciente diminui
diante da massificação. Nesse sentido, quando o assunto concerne a movimentos de
massa, e não mais a do indivíduo, os regulamentos humanos do ego consciente são
cessados, e são os arquétipos que passam a atuar.
215
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
216
decisões são influenciadas por elementos psicológicos e psíquicos. Nas RI, os estudos
preliminares dos behavioristas, passando pelo avanço no aprofundamento das análises
das relações sociais e internacionais pelas abordagens pós-positivistas, como o
Construtivismo, o pós-Colonialismo, o Feminismo e a política das emoções e dos afetos,
chegando ao estudo da Psicanálise, seja a freudiana seja a lacaniana, contribuíram para
mais aceitação e intersecção entre psicologia e política internacional.
Já aqueles que são céticos em relação à psicologia, sobretudo os teóricos da
abordagem realista e neorrealista, argumentam que ela é uma ciência muito branda e que
suas descobertas não são suscetíveis à generalização para o campo das relações
internacionais. Argumenta-se que a psicologia está muito focada no nível individual de
análise e que não leva em conta os fatores estruturais que constituem as relações
internacionais. Essa afirmação descuidada serve, por um lado, para deslegitimar o uso de
elementos da área da psicologia e da psique humana e para corroborar, por outro, a
tentativa de uma análise isenta de elementos subjetivos e particulares, sejam esses
elementos da individualidade do ser ou da individualidade de uma coletividade.
Para explicar melhor como a área da psicologia e da mente humana pode
contribuir e se tornar um ferramental teórico indispensável para a análise das RI, pode-se
observar que a inserção da psicanálise de Freud nos estudo das RI não só contribuiu para
o desenvolvimento de uma perspectiva psicológica sobre o indivíduo e sobre as nações
no contexto internacional, mas também serviu de base para o desenvolvimento de
interpretações mais complexas sobre o poder, a identidade nacional e o sentimento de
pertencimento a um grupo. Essa oportunidade de inserção teórica de outra área do
conhecimento só foi possível devido aos movimentos que criticavam a produção de
conhecimento na área de RI, sobretudo na década de 1970 e de 1980. Colocava-se a
questão de que era preciso discutir sobre assuntos metateóricos e utilizar ferramentais
teórico-conceituais desenvolvidos por outras áreas das ciências humanas, como a
filosofia, a antropologia, a linguística e, finalmente, a psicologia, para que se
desenvolvesse um entendimento e uma percepção de um mundo que, embora estivesse
dividido política e juridicamente entre Estados, tinha suas decisões e suas ações tomadas
por seres humanos, que vivem em sociedades e que desenvolvem, por consequência, um
senso de coletividade.
Com essa diferente maneira de se refletir sobre as possíveis epistemologias,
ontologias e metodologias do domínio das Relações Internacionais, o trabalho de Lacan
ganhou mais espaço, sobretudo ao fazer uma releitura do pensamento de Freud. Esse
217
espaço adquirido ensejou novas considerações acerca da função do indivíduo, dos grupos
e dos Estados na política internacional. A psicanálise lacaniana enfatiza a estrutura
simbólica dos processos psíquicos por meio da linguagem, além de salientar a
importância do desejo na conduta humana. Essa perspectiva psicanalítica foi bastante
explorada por autores pós-coloniais, como Fanon, Bhabha e Ashis Nandy, cujos estudos
ganharam relevância para compreensão dos componentes psíquicos da relação
colonizador-colonizado. Essa contribuição amplia o escopo das RI, por considerar
elementos subjetivos da psique individual e coletiva e por estimular o estudo das
consequências subjetivas das relações humanas, nos seus mais variados níveis.
Já a contribuição de Jung segue esse mesmo caminho. As interpretações acerca
dos conceitos junguianos de inconsciente coletivo, de sombra, de arquétipo e de projeção
são outros mecanismos teórico-conceituais que auxiliam na elaboração interpretativa de
fenômenos da política mundial em um nível coletivo, no caso desta dissertação. As RI,
como âmbito de estudo das humanidades, demandam, para que haja um entendimento
mais preciso da complexidade da realidade humana individual e coletiva, um
aprofundamento nos estudos sobre as relações psicológicas na esfera social e
internacional. Os conceitos de Jung servem de material teórico para esse tipo de análise.
Neste trabalho, a relação bipolar entre estadunidenses e russo-soviéticos, no contexto da
Guerra Fria, foi objeto de estudo para esses conceitos da psique coletiva de Jung,
interpretação que pode contribuir para novas análises das interações e dos eventos
coletivos no contexto internacional.
O domínio da psicologia e da mente humana pode auxiliar no desenvolvimento de
estratégias mais eficazes para resolução de conflitos e da formação de paz, uma vez que
se considere que elementos da psique coletiva humana não só existem, mas também têm
uma função fundamental no desenvolvimento do agrupamento humano em questão e no
modo pelo qual sociedades se comportam frente a outras. A ideia de nação e do
nacionalismo contribui para canalizar essa energia psíquica existente no ente social
coletivo, de maneira que a sua expressão e sua manifestação dependa de como essa
sociedade conhece e trabalha com os elementos que estão no seu inconsciente. Nesse
sentido, pode-se deduzir que conflitos geralmente ocorrem em razão do desconhecimento
dessa capacidade psíquica coletiva, bem como a desconsideração de fatores psicológicos
inerentes do ser humano individual e coletivo, como o medo, a desconfiança e a raiva,
todos influenciadores de comportamentos no contexto internacional. Compreendendo
esses fatores, é possível desenvolver novas estratégias que abordem as causas
218
psicológicas subjacentes de conflitos e pensar na causa desses conflitos que fogem de
abordagens tradicionais, pensando em projetos de longo prazo de esclarecimento
nacional. A relação entre política internacional e psicologia é complexa, mas importante.
Ao entender os fatores psicológicos que influenciam as relações internacionais, pode-se
prever, entender e moldar melhor o curso dos eventos mundiais.
De um modo geral, apesar das críticas, há uma aceitação paulatina da área da
psicologia e do estudo da mente humana no campo das relações internacionais. Isso se
deve em parte ao número crescente de estudiosos engajados tanto em psicologia quanto
em relações internacionais. Também se deve ao crescente corpo de pesquisa que mostra
como a psicologia pode ser usada para entender as relações internacionais. À medida que
essa área da política internacional se desenvolve, é provável que a psicologia desempenhe
uma função cada vez mais importante. Isso ocorre pois a psicologia pode auxiliar na
compreensão de fatores complexos que moldam e modulam as relações internacionais e
pode contribuir para o desenvolvimento de estratégias mais eficazes para as relações entre
sociedades e entre Estados.
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