Teorico 4
Teorico 4
Teorico 4
Revisão Textual:
Profa. Ms. Helba Carvalho
As narrativas e prática de análise
O Conto
Para compreender a intertextualidade: o conto
tradicional: “Ali Babá e os quarenta ladrões”
Análise de“ O Sésamo”, de Miguel Torga
Análise da obra A Hora da estrela, de Clarice
Lispector
O Enredo de A Hora da estrela
Os Personagens
O Espaço
Tempo
Linguagem
Temas
Interdiscursividade
As narrativas que se interseccionam
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Recomendamos que siga o seguinte roteiro para que tenha um melhor aproveitamento
da unidade:
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Esta unidade tem a finalidade de ajudá-lo a pôr a na prática a teoria da narrativa, por
isso apresentaremos a análise de duas narrativas:“O Sésamo”, conto de Miguel Torga, escritor
português; e A Hora de estrela, de Clarice Lispector, uma história mais extensa,
problemática do ponto de vista da classificação, está entre a novela e o romance.
O SÉSAMO
(Miguel Torga)
A fiada estava apinhada naquela noite. Mulheres, homens e crianças. As mulheres a fiar, a
dobar ou a fazer meia, os homens a fumar e a conversar, e a canalhada a dormitar ou nas diabruras
do costume. Mas chegou a hora do Raul e, como sempre, todos arrebitaram a orelha às histórias do
seu grande livro.
-Abre-te, Sésamo! E o antro, com seu deslumbrante recheio, escancarou-se em sedutor convite
...
As crianças arregalavam os olhos de espanto. Os homens estavam indecisos entre acreditar e sorrir.
As mulheres sentiam todas o que a Lamega exprimiu num comentário:
Urros, em plena montanha, é uma terra de ovelhas. Ao romper de alva, ainda o dia vem longe,
cada corte parece um saco sem fundo donde vão saindo movediços novelos de lã. Quem olha as suas
ruelas a essa hora, vê apenas um tapete fofo, ondulante, pardo do lusco-fusco, a cobrir os lajedos.
Depois o sol levanta-se e ilumina os montes. E todos eles mostram amorosamente nas encostas os
brancos e mansos rebanhos que tosam o panasco macio.
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A riqueza da aldeia são as crias, o leite e aquelas nuvens merinas que se lavam, enxugam e
cardam pelo dia fora, e nas fiadas se acabam de ordenar. Numa loja de gado, ao quente bafo animal,
junta-se o povo. Todos os moradores se cotizam para a luz de carboneto ou de petróleo, e o serão
começa.
É no inverno, nas grandes noites sem fim, que se goza na aldeia essa fraternidade. Há sempre
novidades a discutir, namoricos a tentar, apagadas fogueiras que é preciso reacender, e, sobretudo, há
o Raul a descobrir cartapácios ninguém sabe como e a lê-los com tal sentimento ou com tanta graça
que ou faz chorar as pedras ou rebentar um morto de riso.
Daquela feita tratava-se de uma história bonita, que metia uma grande fortuna escondida na
barriga de um monte. E o rapazio, principalmente, abria a boca de deslumbramento. Todos
guardavam gado na serra. E a todos ocorrera já que bem podia qualquer penedo dos que pisavam
estar prenhe de tesouros imensos. Mas que uma simples palavra os pudesse abrir isso é que não
lembrara a nenhum.
Da gente miúda que escutava, o mais pequeno era o Rodrigo, guicho, imaginativo, e por isso
com fama de amalucado. No meio de uma conversa séria, tinha saídas inesperadas e desconcertantes.
Via estrelas de dia, que ninguém, por mais que fizesse, conseguia enxergar, assobiava modas
inteiramente desconhecidas, e desenhava no chão a cara de quem quer que fosse, o que era o cúmulo
dos assombros. Enfezado, sempre a pegar com os outros e a berrar como um infeliz quando depois lhe
batiam, ouvia do seu canto a leitura do Raul, maravilhado e a fazer projetos.
A fiada acabou tarde, com a assistência a cair de sono e a lutar para prender na imaginação
aquela riqueza oriental enfragada. E de manhãzinha., o Rodrigo, contra o costume, esgueirou-se
sozinho para a serra da Forca atrás do rebanho. A história do Raul tinha-lhe encandescido os miolos.
Necessitava por isso de solidão e de apagar o incêndio sem testemunhas.
A serra da Forca é longe e é feia. Tem pasto, mas de que vale ?! O passado deixou ali tanto
grito perdido, tanto cadáver insepulto, tanta alma penada, que até mesmo as ladainhas da primavera
se desviam e passam de largo. Mas é nos sítios assim amaldiçoados que o povo, talvez para as
preservar da coscuvilhice da razão, gosta de plantar lendas bonitas e aliciantes. E vá de inventar que
havia um tesouro escondido naquele ermo de maldição. Encontrá-lo é que era difícil. Enterrado entre
penedias, guardado por mil fantasmas, quem teria coragem de tentar a empresa? Ninguém. E o monte
excomungado lá continuava azulado na distância, agreste e assombrado.
O Rodrigo, porém, resolvera quebrar o encanto. E, às pedradas ao gado, ao nascer do sol
tinha-o na frente. Ia simplesmente rasgar o véu do mistério. Ia imitar o ladrão da história, com a
diferença apenas de que uma vez dentro da caverna não se esqueceria, como o outro, das palavras
mágicas que lhe assegurariam a retirada.
Das riquezas que encontrasse não sabia ainda o que fazer. Nem sequer pensara nisso, porque
os tesouros não eram o seu fim verdadeiro. A sedução de tudo estava no prodígio em si, na fascinação
do próprio ato assombroso que iria realizar. E o pequeno, ágil e confiado, chegou ao alto, trepou à
fraga maior e olhou em redor. A seus pés jaziam, caídos, os dois grossos pilares da forca, onde
segundo a tradição tinham exalado o último suspiro todos os justiçados da montanha. Sentar-se neles,
tocar-lhes, era ainda, dizia o povo, uma pessoa condenar-se a morrer de morte infeliz. Mas o Rodrigo
trazia na vontade uma força que o preservava dessas contingências. A fórmula encantatória brincava-
lhe nos lábios finos e frescos de criança. E uma alegria imensa, pura, calma, arredou para longe os
espectros patibulares que tentavam perturbar a grandeza daquela hora. Abrir um monte! Dizer com
ânimo e certeza duas palavras e uma riqueza sem par oferecer-se passiva aos olhos da gente!
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Para dilatar o gosto do poder que possuía (e talvez por um sentido íntimo de falência de que
não tinha consciência inteira), prolongava o tempo. Murmurava mentalmente a ordem de comando
que aprendera no conto, e cerrava os dentes para que a boca o não pudesse trair antes do momento
escolhido.
O rebanho, esquecido do dono, pastava, alheio aos segredos da serra e do pastor. De quando
em quando erguia-se do meio dele um balido solitário, mas era um apelo sem resposta.
- Vai ser agora! Disse o Rodrigo, alto, a resolver-se. E com medo de a montanha fender
precisamente pelo sítio onde estava, que era no pino e no meio da fraga mais alta, desviou-se um
pouco para a esquerda.
- É por ali, com certeza... Media os penedos, calculava o tamanho do buraco, via de antemão
as entranhas da terra expostas à luz do sol.
- E o gado? Lembrou-se então.
O gado pastava em baixo, num valeiro, em lugar por onde a imaginação mais ardente não
podia fazer passar o prodígio. Mesmo que rolassem pedras, ou caísse a carvalha agarrada a um
barranco, não havia perigo.
- Só se houver muito azar! rematou, a serenar os cuidados.
E de alma tranquila, mas a tremer de emoção, solenemente, o pequeno feiticeiro ergueu a mão
e gritou:
- Abre-te, Monte da Forca!
A sua imaginação ardente acreditava em todos os impossíveis. Tinha a certeza de que o
Sésamo da história do Raul existira realmente. Por isso ouviu com serenidade e confiança o eco da
própria voz a regressar ferido das encostas.
Tudo requeria o seu tempo. Irreais, os horizontes perdiam-se ao longe, esfumados e frios.
Vago, o rebanho, à volta, tosava a erva mansamente. Impreciso, o gemido da ovelha queixosa não
conseguia transpor o limiar da consciência do pastor. Transfigurado, o Rodrigo estava entregue ao
milagre. Ordenara-o e esperava por ele.
- Abre-te, Monte da Forca! Gritou de novo, já enfadado de uma espera que não cabia na
ilusão. Qualquer coisa à volta pareceu tremer, e o coração do pequeno saltou.
-Abre-te! reforçou, angustiado. Mas os horizontes começaram a tomar crueza e sentido, o
rebanho avolumou-se, e o balido da ovelha aflita subiu mais.
- Era mentira! E pelo seu rosto infantil e desiludido uma lágrima desceu desesperada.
- Era mentira... repetiu, debruçado sobre a alta fraga, a soluçar.
Tudo nele tinha a verdade da inocência. Lograra e fora logrado já, mas no jogo dos botões e a
esconder da mãe um novelo de linhas para a baraça do pião. Quando, porém, se tratava de coisas
grandes como fábulas e mitos, a sua alma cândida não concebia que pudesse haver mistificação. E a
primeira vez que tirava a prova àquela confiança, que tentara ver de perto a miragem, acordava
cruamente traído!
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Valeu-lhe a feliz condição de criança. Ele ainda a chorar e já a mão do esquecimento a
enxugar-lhe os olhos. Breve como vem, breve se vai o pranto dos dez anos. A ovelha chamava
sempre. E o balido insistente acabou por acordá-lo para a realidade simples da sua vida de pastor.
Ergueu-se, desceu da alta fraga enganadora, e, de ouvido atento, foi direito ao queixume.
Explore
Antes de ler a análise do conto “O Sésamo”, visite o link do E-Dicionário de Termos Literários,
de Carlos Ceia, verbete “Intertextualidade”, cujo endereço é dado a seguir:
http://www.edtl.com.pt/index.php?option=com_mtree&task=viewlink&link_id=442&Itemid=2.
“Ali Babá e os quarenta ladrões” narra a história de dois irmãos, Cassim e Ali Babá,
que moravam numa cidade da Pérsia. O primeiro era casado com uma mulher muito rica e o
segundo era muito pobre, trabalhava como lenhador para manter a mulher e o filho.
Depois de toda a fortuna medida, a mulher de Ali Babá foi devolver o pote, mas não
percebeu que uma moeda ficara grudada no fundo. A cunhada, por sua vez, correu a mostrar
ao marido que, bem depressa, foi pedir explicações ao irmão.
Ali Babá contou toda a história para o irmão que, sem demora, correu para a floresta,
disse as palavras mágicas e entrou na gruta. Passou o dia lá dentro enchendo sacos de ouro e,
quando resolveu sair, não se lembrava mais das palavras. Ficou até de madrugada tentando,
mas os ladrões voltaram e o mataram.
Depois de quatro dias, Ali Babá, a pedido da cunhada, foi até lá e achou o cadáver de
seu irmão. Amedrontada, a família escondeu a morte de Cassim, pois se os ladrões soubessem
ondeos demais moravam, os matariam também.
Como Cassim precisava ser enterrado, um alfaiate que costurava mortalhas foi
chamado, mas de olhos vendados para que não soubesse de quem se tratava. Com a ajuda
de Morgana, uma criada bastante esperta, conseguiram realizar a cerimônia. Quando os
ladrões viram que o corpo do homem tinha desaparecido da caverna, logo concluíram que
mais alguém conhecia o segredo. Começaram, então, a procura, usando de muitas
artimanhas.
No final da história, os ladrões chegam até a casa de Ali Babá: o chefe deles, Mustafá,
disfarçado de vendedor de azeite e os outrosladrões escondidos em sacos. A empregada
Morgana descobriutudo e, novamente usando sua esperteza, consegue matar o bando todo.
Como prêmio, Ali Babá faz com que ela se casecom seu filho, dando-lhes uma grande
fortuna.
Este é um conto exemplar, pois sua origem está nas remotas narrativas orais do povo
oriental e contém todosos elementos que caracterizam um conto: um local específico onde se
passa o acontecido (uma cidade da Pérsia); um tempo curto (alguns dias); os personagens
essenciais ( o narrador, Cassim, Ali Babá, as esposas, Mustafá, os quarenta ladrões, o alfaiate
e a empregada Morgana); e um fato para o qual tudo converge (conseguir o tesouro que está
dentro da gruta).
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plano, até a violência, como formas de se vencer os inimigos; e o final feliz para o personagem
principal que, por ser pobre e trabalhador, deve merecer a fortuna. É a típica moral ingênua
dos contos populares, pois nem sempre as atitudes do chamado “herói” são éticas ou
politicamente corretas. Ali Babá é o vencedor final, mas também engana, rouba e usa pessoas
para conseguir o que deseja. Trata-se do reflexo da visão domundo da época em que a
história foi imaginada ou, talvez, produto de alterações que a história foi sofrendo com os
tempos e pelos lugares onde foi sendo contada, ilustrando o dito popular: “ladrão que rouba
ladrão tem cem anos de perdão”.
O fato é que este conto, assim como muitos outros, foram se espalhando e agradando
muito ao público, chegando até os nossos dias. Hoje, o conto é considerado mais adequado
para o leitor infantil ou juvenil, mas com certeza povoa o imaginário dos adultos também,
ganhando lugar na literatura universal e sendo consideradopatrimônio coletivo da
humanidade.
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(p. 107), mas nada acontece de mágico. Decepcionado, ele desce o monte a ouvir uns
gemidos. Ao chegar ao rebanho, vê que Rola, uma de suas ovelhas, havia parido um
cordeirinho e outro ainda estava por nascer.
É uma narrativa que nos remete às origens do conto, ao tempo em que as histórias
eram contadas oralmente, ao redor do fogo, por alguém instituído como contador e que
detinha algo de especial, no caso, o livro e o conhecimento da palavra escrita. Informava-se
de modo gratuito e pacífico (como diz o narrador) e divertia-se o povo, dando-lhes o
conhecimento do mundo, ainda que fictício. Isto aparece na fala de Lamega:“- O mundo tem
cousas!...” (TORGA, 1996, p. 103).
No texto, o personagem Rodrigo, por ser criança, não distingue o que é real e o que é
ficção. Ele parte em busca do real por causa do imaginado. Sua mentalidade infantil o impele
a testar a história sem os melindres dos adultos, já desencantados ou com vergonha de
mostrar sua curiosidade. Ele se decepciona, já que a magia não se realiza, mas o texto nos
sugere que o mágico está intrinsecamente ligado à própria vida, por mais banal e cotidiana
que seja. A vida é mágica, o estar no mundo é mágico. A ovelha que dá à luz um filhote é
uma metáfora de encantamento. De dentro de seu ventre/caverna aparece um novo ser, que é
um tesouro (por ser uma vida e até por representar um ganho para o seu dono), e guarda
outro que está ainda por nascer.No início da narrativa, aliás, o autor faz referência à
fortunaque está escondida na “barriga de um monte” (TORGA, 1996, p. 104). Enquanto
Rodrigo chora por constatar a “falsidade da magia” na ficção, a vida,emblematizada na
ovelha, o chama para a “beleza do mistério” da realidade.
Nesta história singela encontramos as origens do conto, em sua forma simples, oral; os
elementos essenciais que o caracterizam (a brevidade, a concisão, a unidade, o tempo curto,
personagens restritos, espaço determinado, apenas um acontecimento para o qual tudo
converge); a intertextualidade com a história de Ali Babá; e a metalinguagem, pois o texto põe
em evidência o próprio ato de narrar. Podemos identificar opiniões do enunciador, quando
defende a leitura e a literatura como formasagradáveis e produtivas de transmitir
conhecimento, ao contrário da instrução transmitida na escola, com “palmatoadas” , e na
igreja, com “bofetões”. Há até questões filosóficas ou metafísicas: os limites da vida e da arte,
o que é real e o que ficcional, o que é verdade e o que é mentira, se a beleza/ o estético está
na recriação do real ou se a própria vida já está repleta de mistérios e beleza.
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A Hora da estrela foipublicada por Clarice Lispector no ano da morte da escritora. A
temática da obra é claramente social, aspecto que os críticos não conseguiam perceber em
outros trabalhos da autora, motivo de reparos que fizeram à produção dela, já que a época
cobrava dos artistas uma postura engajada, pois o Brasil estava sob o regime da ditadura
militar.
O livro conta a história de Macabéa, uma moça órfã de Alagoas, com dezenove anos,
que vai para o Rio de Janeirotentar uma vida melhor. Ela trabalha como datilógrafa em um
escritório e mora em uma pensão, onde divide o quarto com mais quatro moças balconistas.
Macabéa não tem muita noção de higiene, não tem perspectivas na vida, mal se alimenta
(come cachorro-quente e gosta muito de Coca-Cola), e seus únicos divertimentos são: ouvir a
Rádio Relógio, que divulga informações superficiais, curiosidades de almanaque; colecionar
recortes de jornais e revistas sobre artistas famosos; e ir ao cinema uma vez ao mês.
Além das colegas de pensão, Macabéa convive com Glória, com quem trabalha no
escritório, e com Olímpico de Jesus, quem namora e que não a trata muito bem a ponto de
deixá-la para ficar com Glória.
Sem saber o que fazer da própria vida e aconselhada pela própria colega que lhe
roubara o namorado, a protagonista procura uma cartomante, Madama Carlota, que faz boas
previsões para o futuro da moça, mas ao sair da casa da senhora, Macabéa é atropelada e
morre no meio da rua.
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No caso de A Hora da estrela, os nomes das personagens não são escolhidos ao acaso,
muitas vezes já nos dizem alguma coisa sobre a personalidade dos seus donos. Podem
significar o que a personagem é; podem configurar uma ironia e significar o contrário do que a
personagem revela pelas ações.
Glória, a colega de Macabéa, é bem alimentada, cabelo loiro oxigenado com raízes
escuras, filha de um açougueiro. Às vezes, maternal em relação aMacabéa; outras vezes,
vangloria-se por ser mais bonita do que ela e rouba-lhe o namorado. Faz questão de dizer que
é “carioca da gema”, o que impressiona Olímpico, que a enxerga como uma mulher inteira,
de “raça pura”, boa parideira, que lhe daria ascensão social no Sul do país, região mais rica
do que a região de onde ele viera.
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Olímpico de Jesus é metalúrgico, namorado de Macabéa. Tinha um dente de ouro e já
havia matado um homem. Era ambicioso, queria subir na vida. Seu nome carrega uma
antítese, igualmente irônica: Olímpico refere-se a Olimpo, templo dos deuses pagãos; o
sobrenome “de Jesus” remete ao cristianismo e também é sobrenome daqueles que não
conhecem o próprio pai. Nome grandioso que não corresponde ao ser humano simples, sem
estudos, que trabalha na indústria como metalúrgico.
Madama Carlota é a cartomante, ex-prostituta. É muito carinhosa com Macabéa,
dando-lhe conselhos e esperança de um futuro feliz, mas visivelmente artificial. Figura clássica
de muitas obras literárias, a mulher que lê o destino dá um momento de felicidade à
personagem que não tem futuro, como um golpe de misericórdia.
Sr. Raimundo Silveira é o patrão, dono do escritório. Logo no início da narrativa, já
avisa Macabéa que a demitirá. Como ela lhe dá uma resposta muito polida, ele volta atrás,
por pena, e ela acaba ficando empregada até o final da história, que é relativamente curta.
Colegas de quarto: Maria da Penha, Maria Aparecida, Maria José e Maria apenas:
balconistas das Lojas Americanas. As quatro Marias servem de figuração, para reforçar o
caráter comum das moradoras da pensão, todas são frágeis, sobreviventes, mas têm nomes de
mulher. Parece que apenas Macabéa, como o próprio nome denuncia, está predestinada a ser
mais miserável, a morrer primeiro, a ser incompleta.
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Há o tempo de duração da história de Macabéa, que é curto, a narrativa trata de um
intervalo pequeno da vida da protagonista. Sabe-se que ela tem dezenove anos, alguns flashes
de sua existência são narrados até o momento da morte. As referências concretas que se tem
em relação ao tempo são a Rádio Relógio, que informa as horas; os fatos são narrados no
presente, conforme vão acontecendo; e sabemos que o encontro com Olímpico aconteceu no
dia 7 de maio, mas não há referência ao ano.
Quanto ao passado, a protagonista não se lembra, não tem memória: “Mas vivia em
tanta mesmice que de noite não se lembrava do que acontecera de manhã” (LISPECTOR,
1998, p. 42).
Assim, vários tempos se entrelaçam, o que torna difícil precisar a data da história.
Desse modo os eventos se universalizam, assumem uma perspectiva de eterno presente, como
a sugerir as muitas Macabéas que cruzam nosso caminho todos os dias.
Logo no início da obra, encontramos uma instância narrativa que se enuncia como o
autor sob um título: “Dedicatória do autor (Na verdade Clarice Lispector), mas que se define
como homem:
Pois que dedico esta coisa aí ao antigo Schumann e sua doce Clara que são
hoje ossos, ai de nós. Dedico-me à cor rubra muito escarlate como o meu
sangue de homem em plena idade e portanto dedico-me a meu
sangue.(LISPECTOR, 1998, p. 8)
Logo adiante, essa voz entrega a narrativa a outro que “teria que ser homem porque
escritora mulher pode lacrimejar piegas” e (LISPECTOR, 1998, p. 14) e que será um narrador
personagem:
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Em dados momentos, o diálogo se apresenta apenas introduzido por rubricas, como se
fosse uma cena dramática. O diálogo de Olímpico e Macabéa, esvaziado de sentido, recria a
relação estéril do casal:
Ele: - Pois é.
Neste momento, a técnica narrativa funde não só as vozes, mas as existências dos
diversos enunciadores assim como os diferentes espaços: Macabéa está em uma rua do Rio de
Janeiro, mas pensa que a terra de Alagoas é que se abre em fendas.
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Sendo o último livro de Clarice publicado em vida e estando ela já doente, a questão
da morte está presente nas reflexões do narrador e na morte da personagem, o que remete
também à questão da filosofia existencialista, muito presente em outros textos de Clarice: “o
homem é um ser para a morte”.
Macabéa, que vive à parte da sociedade,alimenta-se de cachorro-quente e Coca-cola,
cardápio típico dos americanos do Norte; seu ideal de beleza são as atrizes de Hollywood,
opostas à sua figura franzina. As companheiras de quarto, as quatro Marias, também moças
marginalizadas, são balconistas das Lojas Americanas. O automóvel que atropela a
protagonista é um Mercedes Benz, importado, cujo logotipo ou marca é uma estrela. Parece
presente o discurso ideológico do modo de vida estrangeiro sobre o brasileiro, que em certo
sentido constitui um povo que aceita passivamente os modelos, ou que se esquece facilmente
de sua identidade. Nesse sentido, Macabéa será atropelada pelo outro, o estrangeiro.
Contudo, para além de uma leitura datada, há a temática do espanto em relação à
existência e o sentido inapreensível disso permeia toda a narrativa. Não é só Macabéa que se
perde: também Rodrigo S.M., que é escritor, a própria enunciadora, que cria Rodrigo, que cria
Macabéa e que está às portas da morte, também viverá sua hora da estrela. As indagações
sobre a matéria vivente, a lama viva, um ser primitivo que inspira e expira dão uma densidade
maior à narrativa do que as questões sociais mais imediatas.
Por isso talvez a multiplicidade de títulos dados pela enunciadora. São dozeque
poderiam substituir o principal, A hora da estrela, totalizando treze possibilidades:
1 - A Hora da Estrela
2 - A culpa é minha
3 - Ela que se arranje
4 - O direito ao grito
5 - Quanto ao futuro
6 - Lamento de um blue
7 - Ele não sabe gritar
8 - Uma sensação de perda
9 - Assovio no vento escuro
10 - Não posso fazer nada
11 - Registro dos fatos antecedentes
12 - História lacrimogênica de cordel
13 - Saída discreta pela porta dos fundos
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Assim como problematiza o próprio discurso literário e dialoga com outros textos por
meio, entre outros recursos, dos nomes dos personagens, o texto dialoga também com outros
discursos que não o literário: há referências à música, Beethoven, Bach, Schumann, Richard
Strauss, Debussy, entre outros, e à pintura, notadamente ao Surrealismo de Marc Chagall
(1887-1985), aliás judeu como Clarice. A referência aparece no momento em que Macabéa
está morrendo e funde a agonia da personagem com as recordações do narrador, Rodrigo S.
M. que, assim como Clarice, passou a infância em Recife:
Fonte: http://blogln.ning.com/profiles/blogs/o-mundo-magico-de-marc-chagall
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Nesse momento, o mundo narrado funde-se ao mundo sonoro e ao mundo pintado, às
reminiscências das diversas instâncias narrativas que são trazidas pelas reminiscências da
personagem que, por sua vez, funciona como metonímia da existência humana.
Como você deve ter percebido, quer no conto tradicional, quer nas narrativas
modernas, as histórias parecem se repetir, reconstruindo os sentidos por meio de novas
possibilidades de leitura apresentadas pelo contexto e pelas perspectivas daquele que narra.
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Conclusão
Ao ler o conteúdo teórico, você observou que foram apresentados os elementos estruturais da
narrativa, bem como características dos gêneros conto, crônica e romance. Vamos pensar, agora,
como este assunto pode ser inserido no seu cotidiano e no de seus futuros alunos?
Podemos pensar, por exemplo, no conto, como um gênero narrativo que pode
aproximar o aluno da literatura, no sentido de propor a ele que transforme um episódio da
sua vida real em uma narrativa de ficção. Para isso, o professor pode abordar e discutir os
mais diversos temas que envolvam o cotidiano dos alunos, além de questões éticas
relevantes na convivência social, tanto na escola quanto na vida.
Depois, você pode apresentar para os seus alunos alguns elementos que são
característicos das narrativas, como enredo, tempo, espaço, personagens. Apresente a
eles um conto e identifique os elementos da narrativa desse conto. Cada aluno deverá
produzir a sua narrativa que será corrigida por você até que cada texto ganhe uma forma
literária e possa ser exposta para todos os alunos da turma.
Assim, o aluno poderá observar como aspectos da realidade da sua vida podem se
tornar bons elementos para um texto de ficção. Tente aplicar essa ideia com seus futuros
alunos.
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Para que você possa entender melhor o conto e refletir sobre esse gênero em
função das novas mídias, como a Internet, é muito importante que você
complemente seu estudo lendo o artigo de Carlos Higgie, “O conto, alguns
aspectos deste gênero literário”, no site a seguir:
http://www.artigonal.com/literatura-artigos/o-conto-alguns-aspectos-deste-
genero-literario-395289.html
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Sobre o conto:
AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel de. Teoria da literatura. 3ª ed. Coimbra: Almedina, 1979.
COELHO, Nelly Novaes. A Literatura infantil: história, teoria, análise (das origens
orientais ao Brasil de hoje). 2ª ed.São Paulo: Quíron,/Global, 1982.
CORTÁZAR, Julio. “Algunos aspectos del cuento (1962-1963) inObra crítica/2. Edición de
Jaime Alazraki. Madri: Alfaguara, 1994, p. 365 – 85.
JOLLES, André. Formas simples ( Legenda, Saga, Mito, Adivinha, Ditado, Caso,
Memorável, Conto, Chiste).Trad. de Álvaro Cabral .São Paulo: Cultrix, 1976.
REIS, Carlos eLOPES, Ana Cristina M. Dicionário de teoria da narrativa. São Paulo:
Ática,1988.
TORGA, Miguel. Novos contos da montanha. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.
GOTLIB, Nádia Battella. Clarice - uma vida que se conta. São Paulo: Ática, 1995.
GUIDIN, Márcia Lígia. Roteiro de leitura – A hora da estrela – Clarice Lispector. São
Paulo: Ática, 1994.
SÁ, Olga de. A Escritura de Clarice Lispector. Petrópolis: Vozes; Lorena: Faculdades
Integradas Tereza D’Ávila, 1979.
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