Teorico 4

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Responsável pelo Conteúdo:

Prof. Dr. Manoel Francisco Guaranha

Revisão Textual:
Profa. Ms. Helba Carvalho
 As narrativas e prática de análise
 O Conto
 Para compreender a intertextualidade: o conto
tradicional: “Ali Babá e os quarenta ladrões”
 Análise de“ O Sésamo”, de Miguel Torga
 Análise da obra A Hora da estrela, de Clarice
Lispector
 O Enredo de A Hora da estrela
 Os Personagens
 O Espaço
 Tempo
 Linguagem
 Temas
 Interdiscursividade
 As narrativas que se interseccionam

Seja bem vindo à unidade IV da disciplina: Análise de


Narrativas. Nesta unidade, colocaremos em prática os conceitos
teóricos da narrativa. Analisaremos um conto português, “O Sésamo”,
para mostrar tanto a questão da intertextualidade quanto um possível
percurso de análise. O mesmo será feito com uma das narrativas mais
complexas da literatura brasileira contemporânea: A Hora da estrela,
de Clarice Lispector.
É importante que você perceba que devemos mobilizar
diferentes saberes para dar conta de uma leitura mais ampla, crítica,
dos textos e que não basta apenas analisarmos os aspectos estruturais.
Por outro lado, é preciso perceber que devemos buscar nos textos, na
forma de organização deles e na escolha dos elementos as sugestões
de leitura, ou seja, o texto não deve servir como pretexto, mas como
ponto de partida e chegada de nossa interpretação.

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Recomendamos que siga o seguinte roteiro para que tenha um melhor aproveitamento
da unidade:

1) Leia o conteúdo teórico da disciplina;


2) Leia o esquema gráfico do conteúdo teórico;
3) Assista à apresentação narrada;
4) Faça a atividade de sistematização;
5) Faça a atividade de aprofundamento;
6) Leia o material complementar;
7) Formule suas dúvidas ao professor da disciplina por meio do módulo Mensagens do
blackboard ou ainda por meio do fórum de dúvidas da disciplina. Faça comentários
também, acrescentando sua forma de ler as narrativas propostas, procure estrutura-los
de maneira que se justifiquem à luz dos conceitos teóricos estudados nas unidades
anteriores;
8) Não deixe de ler a narrativa de Clarice Lispector, A Hora da estrela, pois os estudos só
fazem sentido para quem conhece a história. Tente ler de forma qualitativa, atentando
para os comentários do narrador e para a forma como os elementos estruturais são
organizados na obra.

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Esta unidade tem a finalidade de ajudá-lo a pôr a na prática a teoria da narrativa, por
isso apresentaremos a análise de duas narrativas:“O Sésamo”, conto de Miguel Torga, escritor
português; e A Hora de estrela, de Clarice Lispector, uma história mais extensa,
problemática do ponto de vista da classificação, está entre a novela e o romance.

Como o conto é uma narrativa curta, há a possibilidade de introduzi-lo neste material


antes da análise. Já o livro de Clarice Lispector, pela extensão, deve ser lido antes do estudo
da análise. Contamos com a sua colaboração para isso, pois senão as observações que
faremos não serão compreendidas em sua totalidade.

O SÉSAMO
(Miguel Torga)

- Abre-te, Sésamo!gritava, o Raul, no meio do silêncio pasmado da assistência.

A fiada estava apinhada naquela noite. Mulheres, homens e crianças. As mulheres a fiar, a
dobar ou a fazer meia, os homens a fumar e a conversar, e a canalhada a dormitar ou nas diabruras
do costume. Mas chegou a hora do Raul e, como sempre, todos arrebitaram a orelha às histórias do
seu grande livro.

Em urros, ao lado da instrução da escola e da igreja, a primeira dada a palmatoadas pelo


mestre e a segunda a bofetões pelo prior, havia a do Raul, gratuita e pacífica, ministrada numa voz
quente e úmida, que ao sair da boca lhe deixava cantarinhas no bigode.

-Abre-te, Sésamo! E o antro, com seu deslumbrante recheio, escancarou-se em sedutor convite
...

As crianças arregalavam os olhos de espanto. Os homens estavam indecisos entre acreditar e sorrir.
As mulheres sentiam todas o que a Lamega exprimiu num comentário:

- O mundo tem coisas!...

Urros, em plena montanha, é uma terra de ovelhas. Ao romper de alva, ainda o dia vem longe,
cada corte parece um saco sem fundo donde vão saindo movediços novelos de lã. Quem olha as suas
ruelas a essa hora, vê apenas um tapete fofo, ondulante, pardo do lusco-fusco, a cobrir os lajedos.
Depois o sol levanta-se e ilumina os montes. E todos eles mostram amorosamente nas encostas os
brancos e mansos rebanhos que tosam o panasco macio.

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A riqueza da aldeia são as crias, o leite e aquelas nuvens merinas que se lavam, enxugam e
cardam pelo dia fora, e nas fiadas se acabam de ordenar. Numa loja de gado, ao quente bafo animal,
junta-se o povo. Todos os moradores se cotizam para a luz de carboneto ou de petróleo, e o serão
começa.
É no inverno, nas grandes noites sem fim, que se goza na aldeia essa fraternidade. Há sempre
novidades a discutir, namoricos a tentar, apagadas fogueiras que é preciso reacender, e, sobretudo, há
o Raul a descobrir cartapácios ninguém sabe como e a lê-los com tal sentimento ou com tanta graça
que ou faz chorar as pedras ou rebentar um morto de riso.
Daquela feita tratava-se de uma história bonita, que metia uma grande fortuna escondida na
barriga de um monte. E o rapazio, principalmente, abria a boca de deslumbramento. Todos
guardavam gado na serra. E a todos ocorrera já que bem podia qualquer penedo dos que pisavam
estar prenhe de tesouros imensos. Mas que uma simples palavra os pudesse abrir isso é que não
lembrara a nenhum.
Da gente miúda que escutava, o mais pequeno era o Rodrigo, guicho, imaginativo, e por isso
com fama de amalucado. No meio de uma conversa séria, tinha saídas inesperadas e desconcertantes.
Via estrelas de dia, que ninguém, por mais que fizesse, conseguia enxergar, assobiava modas
inteiramente desconhecidas, e desenhava no chão a cara de quem quer que fosse, o que era o cúmulo
dos assombros. Enfezado, sempre a pegar com os outros e a berrar como um infeliz quando depois lhe
batiam, ouvia do seu canto a leitura do Raul, maravilhado e a fazer projetos.
A fiada acabou tarde, com a assistência a cair de sono e a lutar para prender na imaginação
aquela riqueza oriental enfragada. E de manhãzinha., o Rodrigo, contra o costume, esgueirou-se
sozinho para a serra da Forca atrás do rebanho. A história do Raul tinha-lhe encandescido os miolos.
Necessitava por isso de solidão e de apagar o incêndio sem testemunhas.
A serra da Forca é longe e é feia. Tem pasto, mas de que vale ?! O passado deixou ali tanto
grito perdido, tanto cadáver insepulto, tanta alma penada, que até mesmo as ladainhas da primavera
se desviam e passam de largo. Mas é nos sítios assim amaldiçoados que o povo, talvez para as
preservar da coscuvilhice da razão, gosta de plantar lendas bonitas e aliciantes. E vá de inventar que
havia um tesouro escondido naquele ermo de maldição. Encontrá-lo é que era difícil. Enterrado entre
penedias, guardado por mil fantasmas, quem teria coragem de tentar a empresa? Ninguém. E o monte
excomungado lá continuava azulado na distância, agreste e assombrado.
O Rodrigo, porém, resolvera quebrar o encanto. E, às pedradas ao gado, ao nascer do sol
tinha-o na frente. Ia simplesmente rasgar o véu do mistério. Ia imitar o ladrão da história, com a
diferença apenas de que uma vez dentro da caverna não se esqueceria, como o outro, das palavras
mágicas que lhe assegurariam a retirada.
Das riquezas que encontrasse não sabia ainda o que fazer. Nem sequer pensara nisso, porque
os tesouros não eram o seu fim verdadeiro. A sedução de tudo estava no prodígio em si, na fascinação
do próprio ato assombroso que iria realizar. E o pequeno, ágil e confiado, chegou ao alto, trepou à
fraga maior e olhou em redor. A seus pés jaziam, caídos, os dois grossos pilares da forca, onde
segundo a tradição tinham exalado o último suspiro todos os justiçados da montanha. Sentar-se neles,
tocar-lhes, era ainda, dizia o povo, uma pessoa condenar-se a morrer de morte infeliz. Mas o Rodrigo
trazia na vontade uma força que o preservava dessas contingências. A fórmula encantatória brincava-
lhe nos lábios finos e frescos de criança. E uma alegria imensa, pura, calma, arredou para longe os
espectros patibulares que tentavam perturbar a grandeza daquela hora. Abrir um monte! Dizer com
ânimo e certeza duas palavras e uma riqueza sem par oferecer-se passiva aos olhos da gente!

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Para dilatar o gosto do poder que possuía (e talvez por um sentido íntimo de falência de que
não tinha consciência inteira), prolongava o tempo. Murmurava mentalmente a ordem de comando
que aprendera no conto, e cerrava os dentes para que a boca o não pudesse trair antes do momento
escolhido.
O rebanho, esquecido do dono, pastava, alheio aos segredos da serra e do pastor. De quando
em quando erguia-se do meio dele um balido solitário, mas era um apelo sem resposta.
- Vai ser agora! Disse o Rodrigo, alto, a resolver-se. E com medo de a montanha fender
precisamente pelo sítio onde estava, que era no pino e no meio da fraga mais alta, desviou-se um
pouco para a esquerda.
- É por ali, com certeza... Media os penedos, calculava o tamanho do buraco, via de antemão
as entranhas da terra expostas à luz do sol.
- E o gado? Lembrou-se então.
O gado pastava em baixo, num valeiro, em lugar por onde a imaginação mais ardente não
podia fazer passar o prodígio. Mesmo que rolassem pedras, ou caísse a carvalha agarrada a um
barranco, não havia perigo.
- Só se houver muito azar! rematou, a serenar os cuidados.
E de alma tranquila, mas a tremer de emoção, solenemente, o pequeno feiticeiro ergueu a mão
e gritou:
- Abre-te, Monte da Forca!
A sua imaginação ardente acreditava em todos os impossíveis. Tinha a certeza de que o
Sésamo da história do Raul existira realmente. Por isso ouviu com serenidade e confiança o eco da
própria voz a regressar ferido das encostas.
Tudo requeria o seu tempo. Irreais, os horizontes perdiam-se ao longe, esfumados e frios.
Vago, o rebanho, à volta, tosava a erva mansamente. Impreciso, o gemido da ovelha queixosa não
conseguia transpor o limiar da consciência do pastor. Transfigurado, o Rodrigo estava entregue ao
milagre. Ordenara-o e esperava por ele.
- Abre-te, Monte da Forca! Gritou de novo, já enfadado de uma espera que não cabia na
ilusão. Qualquer coisa à volta pareceu tremer, e o coração do pequeno saltou.
-Abre-te! reforçou, angustiado. Mas os horizontes começaram a tomar crueza e sentido, o
rebanho avolumou-se, e o balido da ovelha aflita subiu mais.
- Era mentira! E pelo seu rosto infantil e desiludido uma lágrima desceu desesperada.
- Era mentira... repetiu, debruçado sobre a alta fraga, a soluçar.
Tudo nele tinha a verdade da inocência. Lograra e fora logrado já, mas no jogo dos botões e a
esconder da mãe um novelo de linhas para a baraça do pião. Quando, porém, se tratava de coisas
grandes como fábulas e mitos, a sua alma cândida não concebia que pudesse haver mistificação. E a
primeira vez que tirava a prova àquela confiança, que tentara ver de perto a miragem, acordava
cruamente traído!

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Valeu-lhe a feliz condição de criança. Ele ainda a chorar e já a mão do esquecimento a
enxugar-lhe os olhos. Breve como vem, breve se vai o pranto dos dez anos. A ovelha chamava
sempre. E o balido insistente acabou por acordá-lo para a realidade simples da sua vida de pastor.

Ergueu-se, desceu da alta fraga enganadora, e, de ouvido atento, foi direito ao queixume.

- Olha, era a Rola... Um cordeiro acabara de nascer e a mãe lambia-o.

O outro estava ainda lá dentro, no mistério do ventre fechado.

(TORGA, 1996, p. 101-110)

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Antes de ler a análise do conto “O Sésamo”, visite o link do E-Dicionário de Termos Literários,
de Carlos Ceia, verbete “Intertextualidade”, cujo endereço é dado a seguir:

http://www.edtl.com.pt/index.php?option=com_mtree&task=viewlink&link_id=442&Itemid=2.

Lá você poderá se aprofundar no conceito de intertextualidade, compreendido aqui


como a relação entre textos. Esse fenômeno, bastante comum em literatura, permite que
possamos rastrear os sentidos da obra por meio da busca das apropriações que ela faz, de
forma consciente ou inconsciente, de outros textos. Como o título do conto de Miguel Torga
nos remete à tradicional história “Ali Babá e os quarenta ladrões”, é a partir de reflexões sobre
ela que conseguiremos compreendê-lo melhor.

“Ali Babá e os quarenta ladrões” narra a história de dois irmãos, Cassim e Ali Babá,
que moravam numa cidade da Pérsia. O primeiro era casado com uma mulher muito rica e o
segundo era muito pobre, trabalhava como lenhador para manter a mulher e o filho.

Um dia, trabalhando na floresta, Ali Babá presenciou um grupo de homens, os


quarenta ladrões, entrando numa gruta e deixando lá dentro uma grande quantidade de sacos
bem pesados. Ouviu também que a pedra que lacrava a entrada da gruta abria-se com as
palavras mágicas “Abre-te Sésamo!”, ditas por Mustafá, o chefe do bando. Quando os ladrões
foram embora, o lenhador aproximou-se da pedra e disse as mesmas palavras mágicas e a
gruta abriu-se, revelando em seu interior um tesouro incomensurável. O homem, então,
encheu alguns sacos com moedas de ouro e fugiu para casa.
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Chegando lá, contou à esposa o acontecido e esta, mais que depressa, correu à casa
da cunhada para pedir emprestado um pote com que se media o trigo. A cunhada,
desconfiada, lambuzou o pote com gordura, para que aquilo que medissem ficasse um pouco
grudado e ela pudesse descobrir de que se tratava.

Depois de toda a fortuna medida, a mulher de Ali Babá foi devolver o pote, mas não
percebeu que uma moeda ficara grudada no fundo. A cunhada, por sua vez, correu a mostrar
ao marido que, bem depressa, foi pedir explicações ao irmão.

Ali Babá contou toda a história para o irmão que, sem demora, correu para a floresta,
disse as palavras mágicas e entrou na gruta. Passou o dia lá dentro enchendo sacos de ouro e,
quando resolveu sair, não se lembrava mais das palavras. Ficou até de madrugada tentando,
mas os ladrões voltaram e o mataram.

Depois de quatro dias, Ali Babá, a pedido da cunhada, foi até lá e achou o cadáver de
seu irmão. Amedrontada, a família escondeu a morte de Cassim, pois se os ladrões soubessem
ondeos demais moravam, os matariam também.

Como Cassim precisava ser enterrado, um alfaiate que costurava mortalhas foi
chamado, mas de olhos vendados para que não soubesse de quem se tratava. Com a ajuda
de Morgana, uma criada bastante esperta, conseguiram realizar a cerimônia. Quando os
ladrões viram que o corpo do homem tinha desaparecido da caverna, logo concluíram que
mais alguém conhecia o segredo. Começaram, então, a procura, usando de muitas
artimanhas.

No final da história, os ladrões chegam até a casa de Ali Babá: o chefe deles, Mustafá,
disfarçado de vendedor de azeite e os outrosladrões escondidos em sacos. A empregada
Morgana descobriutudo e, novamente usando sua esperteza, consegue matar o bando todo.
Como prêmio, Ali Babá faz com que ela se casecom seu filho, dando-lhes uma grande
fortuna.

Este é um conto exemplar, pois sua origem está nas remotas narrativas orais do povo
oriental e contém todosos elementos que caracterizam um conto: um local específico onde se
passa o acontecido (uma cidade da Pérsia); um tempo curto (alguns dias); os personagens
essenciais ( o narrador, Cassim, Ali Babá, as esposas, Mustafá, os quarenta ladrões, o alfaiate
e a empregada Morgana); e um fato para o qual tudo converge (conseguir o tesouro que está
dentro da gruta).

O elemento mais importante do conto, ou seja, o enfoque da construção do texto está


na peripécia, na estratégia de adiar ou dificultar o mais possível que Ali Babá consiga ficar
com a fortuna. Para isso, cada passo do personagem desencadeia uma série de ações dos
antagonistas, que somente conseguem ser dribladas pela esperteza dele e da empregada
Morgana. Há a constante perseguição do herói; a visão maniqueísta do mundo e das
personagens: as mulheres ou colaboram com ele, ou são mesquinhas, egoístas e traiçoeiras, os
bons são nitidamente diferenciados dos maus; a valorização da inteligência e, num segundo

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plano, até a violência, como formas de se vencer os inimigos; e o final feliz para o personagem
principal que, por ser pobre e trabalhador, deve merecer a fortuna. É a típica moral ingênua
dos contos populares, pois nem sempre as atitudes do chamado “herói” são éticas ou
politicamente corretas. Ali Babá é o vencedor final, mas também engana, rouba e usa pessoas
para conseguir o que deseja. Trata-se do reflexo da visão domundo da época em que a
história foi imaginada ou, talvez, produto de alterações que a história foi sofrendo com os
tempos e pelos lugares onde foi sendo contada, ilustrando o dito popular: “ladrão que rouba
ladrão tem cem anos de perdão”.

O fato é que este conto, assim como muitos outros, foram se espalhando e agradando
muito ao público, chegando até os nossos dias. Hoje, o conto é considerado mais adequado
para o leitor infantil ou juvenil, mas com certeza povoa o imaginário dos adultos também,
ganhando lugar na literatura universal e sendo consideradopatrimônio coletivo da
humanidade.

Miguel Torga (1907-1995) surgiu como escritor do Presencismo, movimento literário


português quedefendia o primado da “literatura viva” sobre a “literatura livresca”, que a
finalidade da Arte era a emoção estética, que o individual tinha de sobrepor-se ao social, a
intuição a qualquer verdade objetiva ou racional, o mistério ao realismo fotográfico(MOISÉS,
1990, 318). Adolfo Correia da Rocha, verdadeiro nome do autor, dedicou-se à poesia, prosa
de ficção e até mesmo ao teatro, sendo toda a sua obra permeada pelo questionamento da
condição humana, suas angústias e contradições sem resposta(MOISÉS, 1990, 323).

No conto “Sésamo”, que faz parte do volume Novos contos da montanha,


publicado em1944, podemos encontrar uma narrativa breve, com todas as características
essenciais da forma à que chamamos de “conto”. O cenário é o vilarejo de Urros, “em plena
montanha” (TORGA, 1996, p. 103), que sobrevive da criação de ovelhas. Dentre os homens,
mulheres e crianças que compõem a paisagem, destacam-se os personagens:Raul, que é
contador de histórias; Lamega, a única pessoa que emite uma fala; e Rodrigo, o menino que
resolve investigar os fatos narrados. O tempo da narrativa é curto: uma noite e uma manhã. O
narrador está em terceira pessoa, assume o ponto de vista tradicional do contador de histórias.

O enredo é bastante simples: Raul lê a história de “Ali Babá e os quarenta ladrões”


para o povo da aldeia, aglomerado numa loja de gado, à noite. Todos ouvem encantados e
Rodrigo, um menino tido como amalucado, fica“encandescido” com a possibilidade de
encontrar um tesouro dentro de uma caverna também. Quando amanhece, ele sobe o Monte
da Forca tangendo seu rebanho, resolvido a testara veracidade da história. Enquanto suas
ovelhas alimentam-se, ele se desvia e sobe mais um pouco, tentando alcançar o alto do
monte. Chegando lá, emocionado, grita ao modo de Ali Babá: “- Abre-te, Monte da Forca!”

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(p. 107), mas nada acontece de mágico. Decepcionado, ele desce o monte a ouvir uns
gemidos. Ao chegar ao rebanho, vê que Rola, uma de suas ovelhas, havia parido um
cordeirinho e outro ainda estava por nascer.

É uma narrativa que nos remete às origens do conto, ao tempo em que as histórias
eram contadas oralmente, ao redor do fogo, por alguém instituído como contador e que
detinha algo de especial, no caso, o livro e o conhecimento da palavra escrita. Informava-se
de modo gratuito e pacífico (como diz o narrador) e divertia-se o povo, dando-lhes o
conhecimento do mundo, ainda que fictício. Isto aparece na fala de Lamega:“- O mundo tem
cousas!...” (TORGA, 1996, p. 103).

No texto, o personagem Rodrigo, por ser criança, não distingue o que é real e o que é
ficção. Ele parte em busca do real por causa do imaginado. Sua mentalidade infantil o impele
a testar a história sem os melindres dos adultos, já desencantados ou com vergonha de
mostrar sua curiosidade. Ele se decepciona, já que a magia não se realiza, mas o texto nos
sugere que o mágico está intrinsecamente ligado à própria vida, por mais banal e cotidiana
que seja. A vida é mágica, o estar no mundo é mágico. A ovelha que dá à luz um filhote é
uma metáfora de encantamento. De dentro de seu ventre/caverna aparece um novo ser, que é
um tesouro (por ser uma vida e até por representar um ganho para o seu dono), e guarda
outro que está ainda por nascer.No início da narrativa, aliás, o autor faz referência à
fortunaque está escondida na “barriga de um monte” (TORGA, 1996, p. 104). Enquanto
Rodrigo chora por constatar a “falsidade da magia” na ficção, a vida,emblematizada na
ovelha, o chama para a “beleza do mistério” da realidade.

Nesta história singela encontramos as origens do conto, em sua forma simples, oral; os
elementos essenciais que o caracterizam (a brevidade, a concisão, a unidade, o tempo curto,
personagens restritos, espaço determinado, apenas um acontecimento para o qual tudo
converge); a intertextualidade com a história de Ali Babá; e a metalinguagem, pois o texto põe
em evidência o próprio ato de narrar. Podemos identificar opiniões do enunciador, quando
defende a leitura e a literatura como formasagradáveis e produtivas de transmitir
conhecimento, ao contrário da instrução transmitida na escola, com “palmatoadas” , e na
igreja, com “bofetões”. Há até questões filosóficas ou metafísicas: os limites da vida e da arte,
o que é real e o que ficcional, o que é verdade e o que é mentira, se a beleza/ o estético está
na recriação do real ou se a própria vida já está repleta de mistérios e beleza.

A narrativa, sob uma perspectiva, valoriza a realidade e desmistifica a ficção, o mistério


da vida surpreende como mais interessante que o universo mágico. Por outro lado, a simples
realidade é tão mágica e fecunda quanto a ficção. Eticamente, em Ali Babá, o herói fica rico
graças ao produto do roubo; em “Sésamo”, a riqueza provém somente do trabalho. Nesse
aspecto, podemos perceber certa ideologia do enunciador expressa no diálogo que promove
entre os valores que acredita serem autênticos e os valores tradicionais. Isso só é possível pelo
diálogo intertextual que a literatura permite e pela ideologia que o discurso assume.

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A Hora da estrela foipublicada por Clarice Lispector no ano da morte da escritora. A
temática da obra é claramente social, aspecto que os críticos não conseguiam perceber em
outros trabalhos da autora, motivo de reparos que fizeram à produção dela, já que a época
cobrava dos artistas uma postura engajada, pois o Brasil estava sob o regime da ditadura
militar.

Adepta de estilo intimista, utilizando com frequência a técnica do fluxo da consciência e


por vezes memorialista, nesta obra Clarice inova, criando um narrador masculino, Rodrigo S.
M., que é também escritor e o criador da história. Criador e criatura – a personagem Macabéa
- vão se revelando ao longo do texto, numa reflexão metalinguística sobre o fazer literário.

É uma obra peculiar, pois não se apresenta conforme a estrutura tradicional de um


romance, por isso chega a ser denominada novela, uma narrativa mais elaborada do que um
conto e menos extensa do que um romance. De qualquer modo, mesmo com toda linguagem
poética que permeia o texto, decorrente da subjetividade do fluxo de consciência, trata-se de
uma narrativa. Trata-se de uma das obras mais importantes da autora tanto do ponto de vista
temático quanto da forma de construção, bem como de uma das narrativas mais intrigantes
da literatura contemporânea brasileira.

Vamos observar mais detalhadamente os elementos estruturais da narrativa.

O livro conta a história de Macabéa, uma moça órfã de Alagoas, com dezenove anos,
que vai para o Rio de Janeirotentar uma vida melhor. Ela trabalha como datilógrafa em um
escritório e mora em uma pensão, onde divide o quarto com mais quatro moças balconistas.
Macabéa não tem muita noção de higiene, não tem perspectivas na vida, mal se alimenta
(come cachorro-quente e gosta muito de Coca-Cola), e seus únicos divertimentos são: ouvir a
Rádio Relógio, que divulga informações superficiais, curiosidades de almanaque; colecionar
recortes de jornais e revistas sobre artistas famosos; e ir ao cinema uma vez ao mês.

Além das colegas de pensão, Macabéa convive com Glória, com quem trabalha no
escritório, e com Olímpico de Jesus, quem namora e que não a trata muito bem a ponto de
deixá-la para ficar com Glória.

Sem saber o que fazer da própria vida e aconselhada pela própria colega que lhe
roubara o namorado, a protagonista procura uma cartomante, Madama Carlota, que faz boas
previsões para o futuro da moça, mas ao sair da casa da senhora, Macabéa é atropelada e
morre no meio da rua.
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No caso de A Hora da estrela, os nomes das personagens não são escolhidos ao acaso,
muitas vezes já nos dizem alguma coisa sobre a personalidade dos seus donos. Podem
significar o que a personagem é; podem configurar uma ironia e significar o contrário do que a
personagem revela pelas ações.

Rodrigo S. M. é o narrador a quem é delegada a história. Escritor que sente


necessidade de contar a vida de uma das muitas nordestinas que vivem na cidade do Rio de
Janeiro: “preciso falar dessa nordestina senão sufoco” (LISPECTOR, 1998, p. 17). Enquanto
elabora o texto, o narrador reflete sobre a própria existência que está ligada à da obra; sobre o
ato de narrar, pois ele só existe enquanto a história vai sendo contada; e também sobre a
questão da autoria: trata-se de um enunciador que usa uma máscara (de narrador) para
contar sua história. Às vezes, Rodrigo S. M. narra a história de Macabéa, em terceira pessoa;
às vezes, narra a própria história, em primeira pessoa. As iniciais S.M., não elucidadas pela
narradora, sugerem o termo Sua Majestade, talvez uma figura à imagem do narrador todo
poderoso, que tem poder de vida e morte sobre os personagens que cria. Como Macabéa
nasce de Rodrigo, é ele que a matará no final da narrativa, não sem sofrer muito com isso.

Macabéa é um nome incomum. Trata-se de uma referência aos macabeus que, na


Bíblia, eram um grupo que sobreviveu à entrada dos gregos em Jerusalém na tentativa de
manter o monoteísmo judaico, contra os deuses olímpicos, portanto foram heróis da
resistência. A personagem traz toda essa carga histórico/religiosa/literária, que se torna irônica
pelo prosaísmo das ações que pratica . No dizer do narrador: “ela vive num limbo impessoal”,
“Ela somente vive, inspirando e expirando, inspirando e expirando.”, “o seu viver é ralo”
(LISPECTOR, 1998, p. 23). Num processo inovador, a personagem vai sendo descontruída
no decorrer do texto. No início, Macabéa é a moça datilógrafa que trabalha num escritório e
mora na cidade do Rio de Janeiro. Aos poucos, no entanto, o narrador vai apresentando
todas as limitações dela, que a vão decompondo enquanto ser humano: ela é feia, escreve
errado, apresenta os papéis no escritório sempre meio sujos; não tem a graciosidade e a
feminilidade da mulher, seus “óvulos são murchos”; é fisicamente maltratada, contrai
tuberculose. Cada vez que um problema é acrescentado à moça, mais ela se dilui enquanto
personagem, até o momento final, em que está fadada a morrer, pois é um ser muito
elementar, primário.

Glória, a colega de Macabéa, é bem alimentada, cabelo loiro oxigenado com raízes
escuras, filha de um açougueiro. Às vezes, maternal em relação aMacabéa; outras vezes,
vangloria-se por ser mais bonita do que ela e rouba-lhe o namorado. Faz questão de dizer que
é “carioca da gema”, o que impressiona Olímpico, que a enxerga como uma mulher inteira,
de “raça pura”, boa parideira, que lhe daria ascensão social no Sul do país, região mais rica
do que a região de onde ele viera.

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Olímpico de Jesus é metalúrgico, namorado de Macabéa. Tinha um dente de ouro e já
havia matado um homem. Era ambicioso, queria subir na vida. Seu nome carrega uma
antítese, igualmente irônica: Olímpico refere-se a Olimpo, templo dos deuses pagãos; o
sobrenome “de Jesus” remete ao cristianismo e também é sobrenome daqueles que não
conhecem o próprio pai. Nome grandioso que não corresponde ao ser humano simples, sem
estudos, que trabalha na indústria como metalúrgico.
Madama Carlota é a cartomante, ex-prostituta. É muito carinhosa com Macabéa,
dando-lhe conselhos e esperança de um futuro feliz, mas visivelmente artificial. Figura clássica
de muitas obras literárias, a mulher que lê o destino dá um momento de felicidade à
personagem que não tem futuro, como um golpe de misericórdia.
Sr. Raimundo Silveira é o patrão, dono do escritório. Logo no início da narrativa, já
avisa Macabéa que a demitirá. Como ela lhe dá uma resposta muito polida, ele volta atrás,
por pena, e ela acaba ficando empregada até o final da história, que é relativamente curta.
Colegas de quarto: Maria da Penha, Maria Aparecida, Maria José e Maria apenas:
balconistas das Lojas Americanas. As quatro Marias servem de figuração, para reforçar o
caráter comum das moradoras da pensão, todas são frágeis, sobreviventes, mas têm nomes de
mulher. Parece que apenas Macabéa, como o próprio nome denuncia, está predestinada a ser
mais miserável, a morrer primeiro, a ser incompleta.

A história se passa no Rio de Janeiro, uma cidade toda “contra a personagem”: a


pensão de Macabéa fica na Rua do Acre, palavra que significa “ácido, azedo”, e o escritório
na Rua do Lavradio, palavra que significa “labor, trabalho”.
Macabéa morre na rua, atropelada, lugar igualmente hostil, assim como são frias e
hostis as relações que a cercam, tanto com as colegas quanto com o namorado.
Além disso, há o confronto entre o Rio de Janeiro, sudeste desenvolvido, e o nordeste,
local em que Macabéa nasceu. Nesse caso, a narrativa assume um tom ideológico de
denúncia da dura realidade por que passam os que vêm daquela região, mais pobre, para o
sudeste do país, mais desenvolvido mas nem por isso acolhedor.

Em A hora da estrela a questão do tempo é bastante complexa. Há o tempo que o


narrador leva para escrever a história, adiando o início e estendendo-se ao descrever a agonia
de Macabéa, pois o fim da história significa o fim do narrador que também é personagem. É
um tempo psicológico, o tempo da criação da narrativa.

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Há o tempo de duração da história de Macabéa, que é curto, a narrativa trata de um
intervalo pequeno da vida da protagonista. Sabe-se que ela tem dezenove anos, alguns flashes
de sua existência são narrados até o momento da morte. As referências concretas que se tem
em relação ao tempo são a Rádio Relógio, que informa as horas; os fatos são narrados no
presente, conforme vão acontecendo; e sabemos que o encontro com Olímpico aconteceu no
dia 7 de maio, mas não há referência ao ano.

Quanto ao passado, a protagonista não se lembra, não tem memória: “Mas vivia em
tanta mesmice que de noite não se lembrava do que acontecera de manhã” (LISPECTOR,
1998, p. 42).

Assim, vários tempos se entrelaçam, o que torna difícil precisar a data da história.
Desse modo os eventos se universalizam, assumem uma perspectiva de eterno presente, como
a sugerir as muitas Macabéas que cruzam nosso caminho todos os dias.

Nesta narrativa há grande diversidade de discursos: o de um narrador em terceira


pessoa, que se diz Clarice Lispector; a voz em primeira pessoa de um narrador que se diz
personagem, Rodrigo S.M., que ora entrega a história ao sabor de um diálogo quase teatral,
ora narra de forma onisciente, tanto utilizando o discurso indireto como o indireto livre.Essa
mistura de vozes caracteriza, como se verá no comentário dos temas, os diferentes
questionamentos que a narrativa sugere, entre eles a problematização do próprio ato de
narrar.

Logo no início da obra, encontramos uma instância narrativa que se enuncia como o
autor sob um título: “Dedicatória do autor (Na verdade Clarice Lispector), mas que se define
como homem:

Pois que dedico esta coisa aí ao antigo Schumann e sua doce Clara que são
hoje ossos, ai de nós. Dedico-me à cor rubra muito escarlate como o meu
sangue de homem em plena idade e portanto dedico-me a meu
sangue.(LISPECTOR, 1998, p. 8)

Logo adiante, essa voz entrega a narrativa a outro que “teria que ser homem porque
escritora mulher pode lacrimejar piegas” e (LISPECTOR, 1998, p. 14) e que será um narrador
personagem:

A história – determino com falso livre-arbítrio – vai er uns sete personagens e


eu sou um dos mais importantes deles, é claro. Eu, Rodrigo S.M.
(LISPECTOR, 1998, p. 12-13)

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Em dados momentos, o diálogo se apresenta apenas introduzido por rubricas, como se
fosse uma cena dramática. O diálogo de Olímpico e Macabéa, esvaziado de sentido, recria a
relação estéril do casal:

Ele: - Pois é.

Ela: - Pois é o quê?

Ele: - Eu só disse pois é!

Ela: - Mas “pois é” oquê? (LISPECTOR, 1998, p. 48)

No fragmento a seguir, depois que a personagem é atropelada, temos a voz do


narrador em terceira pessoa, a voz de Macabéa reproduzida pelo narrador e também aquele
discurso que funde ambas as vozes, o indireto livre:

[Macabéa] ficou inerme no canto da rua, talvez descansando das emoções, e


viu entre as pedras do esgoto o ralo capim de um verde da mais tenra
esperança humana. Hoje, pensou ela, hoje é o primeiro dia da minha vida:
nasci.
[...]
Prestou de repente um pouco de atenção para si mesma. O que estava
acontecendo era um surdo terremoto? Tinha-se aberto em fendas a terra de
Alagoas. Fixava, só por fixar, o capim. (LISPECTOR, 1998, p. 80-81)

Neste momento, a técnica narrativa funde não só as vozes, mas as existências dos
diversos enunciadores assim como os diferentes espaços: Macabéa está em uma rua do Rio de
Janeiro, mas pensa que a terra de Alagoas é que se abre em fendas.

Toda obra literária carrega em si várias possibilidades de significação. Há uma história


sendo contada e uma enorme quantidade de outras histórias e ideias subentendidas.
Em A hora da estrela há os fragmentos de vida de Macabéa e aparece entrelaçada a
história do narrador que se revela, em última instância, aspectos de um outro enunciador, que
revela pontos de contato com a própria autora, Clarice Lispector. O texto denuncia a vida
breve e marginalizada de uma moça muito simples que tenta sobreviver numa cidade que é
toda contra ela. A questão social, portanto, é o que primeiro dado que se nota.
Acompanhado a protagonista, há um narrador/autor que reflete o tempo todo sobre o
fazer literário, o papel do escritor diante da sua obra. Há um trabalho metalinguístico,
portanto, que permeia toda a obra e que nos autoriza a atribuir essa voz à autora.

18
Sendo o último livro de Clarice publicado em vida e estando ela já doente, a questão
da morte está presente nas reflexões do narrador e na morte da personagem, o que remete
também à questão da filosofia existencialista, muito presente em outros textos de Clarice: “o
homem é um ser para a morte”.
Macabéa, que vive à parte da sociedade,alimenta-se de cachorro-quente e Coca-cola,
cardápio típico dos americanos do Norte; seu ideal de beleza são as atrizes de Hollywood,
opostas à sua figura franzina. As companheiras de quarto, as quatro Marias, também moças
marginalizadas, são balconistas das Lojas Americanas. O automóvel que atropela a
protagonista é um Mercedes Benz, importado, cujo logotipo ou marca é uma estrela. Parece
presente o discurso ideológico do modo de vida estrangeiro sobre o brasileiro, que em certo
sentido constitui um povo que aceita passivamente os modelos, ou que se esquece facilmente
de sua identidade. Nesse sentido, Macabéa será atropelada pelo outro, o estrangeiro.
Contudo, para além de uma leitura datada, há a temática do espanto em relação à
existência e o sentido inapreensível disso permeia toda a narrativa. Não é só Macabéa que se
perde: também Rodrigo S.M., que é escritor, a própria enunciadora, que cria Rodrigo, que cria
Macabéa e que está às portas da morte, também viverá sua hora da estrela. As indagações
sobre a matéria vivente, a lama viva, um ser primitivo que inspira e expira dão uma densidade
maior à narrativa do que as questões sociais mais imediatas.
Por isso talvez a multiplicidade de títulos dados pela enunciadora. São dozeque
poderiam substituir o principal, A hora da estrela, totalizando treze possibilidades:

1 - A Hora da Estrela
2 - A culpa é minha
3 - Ela que se arranje
4 - O direito ao grito
5 - Quanto ao futuro
6 - Lamento de um blue
7 - Ele não sabe gritar
8 - Uma sensação de perda
9 - Assovio no vento escuro
10 - Não posso fazer nada
11 - Registro dos fatos antecedentes
12 - História lacrimogênica de cordel
13 - Saída discreta pela porta dos fundos

Assim como podemos nos perguntar:“quem é a estrela? Clarice, Macabéa, o automóvel


que a atropela?”,também poderíamos perguntar:“de quem é a culpa?De Clarice, de Macabéa,
de Rodrigo S.M.?”. Desse modo chagaríamos à pergunta final: “quem está saindo
discretamente pela porta dos fundos? Clarice, Macabéa, Rodrigo S.M.? A própria existência?”

19
Assim como problematiza o próprio discurso literário e dialoga com outros textos por
meio, entre outros recursos, dos nomes dos personagens, o texto dialoga também com outros
discursos que não o literário: há referências à música, Beethoven, Bach, Schumann, Richard
Strauss, Debussy, entre outros, e à pintura, notadamente ao Surrealismo de Marc Chagall
(1887-1985), aliás judeu como Clarice. A referência aparece no momento em que Macabéa
está morrendo e funde a agonia da personagem com as recordações do narrador, Rodrigo S.
M. que, assim como Clarice, passou a infância em Recife:

Apareceu portanto um homem magro de paletó puído tocando violino na


esquina. Devo explicar que este homem eu o vi uma vez ao anoitecer quando
eu era menino em Recife e o som espichado e agudo sublinhava com uma
linha dourada o mistérios da rua escura. Junto do homem esquálido havia
uma latinha de zinco onde barulhavam secas as moedas dos que o ouviam
com gratidão por ele lhes planger a vida. Só agora entendo e só agora brotou-
se-me o sentido secreto: o violino é um aviso. Sei que quando eumorrer vou
ouvir o violino do homem e pedirei música, música, música.
(LISPECTOR, 1998, p.82)

Veja, a seguir, um dos quadros de Chagall que inspira a narrativa:

Fonte: http://blogln.ning.com/profiles/blogs/o-mundo-magico-de-marc-chagall

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Nesse momento, o mundo narrado funde-se ao mundo sonoro e ao mundo pintado, às
reminiscências das diversas instâncias narrativas que são trazidas pelas reminiscências da
personagem que, por sua vez, funciona como metonímia da existência humana.

Como você deve ter percebido, quer no conto tradicional, quer nas narrativas
modernas, as histórias parecem se repetir, reconstruindo os sentidos por meio de novas
possibilidades de leitura apresentadas pelo contexto e pelas perspectivas daquele que narra.

Contar histórias é, pois, reconstruir o próprio sentido da existência humana, questionar


nossa passagem por ela, um modo de aprender a viver e de ensinar também, já que as
experiências são narradas para serem compartilhadas. Por isso talvez a literatura nunca se
acabe, por essa capacidade autofágica de se alimentar de si mesma e de outros discursos.

21
Conclusão

Ao ler o conteúdo teórico, você observou que foram apresentados os elementos estruturais da
narrativa, bem como características dos gêneros conto, crônica e romance. Vamos pensar, agora,
como este assunto pode ser inserido no seu cotidiano e no de seus futuros alunos?

Podemos pensar, por exemplo, no conto, como um gênero narrativo que pode
aproximar o aluno da literatura, no sentido de propor a ele que transforme um episódio da
sua vida real em uma narrativa de ficção. Para isso, o professor pode abordar e discutir os
mais diversos temas que envolvam o cotidiano dos alunos, além de questões éticas
relevantes na convivência social, tanto na escola quanto na vida.

Depois, você pode apresentar para os seus alunos alguns elementos que são
característicos das narrativas, como enredo, tempo, espaço, personagens. Apresente a
eles um conto e identifique os elementos da narrativa desse conto. Cada aluno deverá
produzir a sua narrativa que será corrigida por você até que cada texto ganhe uma forma
literária e possa ser exposta para todos os alunos da turma.

Assim, o aluno poderá observar como aspectos da realidade da sua vida podem se
tornar bons elementos para um texto de ficção. Tente aplicar essa ideia com seus futuros
alunos.

22
Para que você possa entender melhor o conto e refletir sobre esse gênero em
função das novas mídias, como a Internet, é muito importante que você
complemente seu estudo lendo o artigo de Carlos Higgie, “O conto, alguns
aspectos deste gênero literário”, no site a seguir:

http://www.artigonal.com/literatura-artigos/o-conto-alguns-aspectos-deste-
genero-literario-395289.html

23
Sobre o conto:

AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel de. Teoria da literatura. 3ª ed. Coimbra: Almedina, 1979.

“Ali Babá e os quarenta ladrões” in As mais belas histórias infantis de todos os


tempos.São Paulo: Globo, 1995.

COELHO, Nelly Novaes. A Literatura infantil: história, teoria, análise (das origens
orientais ao Brasil de hoje). 2ª ed.São Paulo: Quíron,/Global, 1982.

CORTÁZAR, Julio. “Algunos aspectos del cuento (1962-1963) inObra crítica/2. Edición de
Jaime Alazraki. Madri: Alfaguara, 1994, p. 365 – 85.

GOMES, Álvaro Cardoso. A literatura portuguesa em perspectiva ( Simbolismo e


Modernismo)– vol. IV. São Paulo: Atlas, 1994.

JOLLES, André. Formas simples ( Legenda, Saga, Mito, Adivinha, Ditado, Caso,
Memorável, Conto, Chiste).Trad. de Álvaro Cabral .São Paulo: Cultrix, 1976.

MOISÉS, Massaud. O Conto português. 4ª ed. São Paulo: Cultrix, 1990.

REIS, Carlos eLOPES, Ana Cristina M. Dicionário de teoria da narrativa. São Paulo:
Ática,1988.

TORGA, Miguel. Novos contos da montanha. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.

Sobre A Hora da estrela e Clarice Lispector:

GOTLIB, Nádia Battella. Clarice - uma vida que se conta. São Paulo: Ática, 1995.

GUIDIN, Márcia Lígia. Roteiro de leitura – A hora da estrela – Clarice Lispector. São
Paulo: Ática, 1994.

LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

______. Literatura comentada: Clarice Lispector. Seleção de textos, notas, estudos


biográfico, histórico e crítico por Samira Youssef Campedelli e Benjamin Abdala Jr. 2ª ed. São
Paulo:Nova Cultural, 1988.

SÁ, Olga de. A Escritura de Clarice Lispector. Petrópolis: Vozes; Lorena: Faculdades
Integradas Tereza D’Ávila, 1979.

24

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