Texto Anna Sera v1
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JAPÃO MULTIÉTNICO
Anna Sera
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Resumo
Palavras-Chave
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Fundação Japão em São Paulo - Todos os direiros reservados. Publicado em 14 de outubro de 2019. 1
Introdução
A educação dos jovens brasileiros no Japão é um tópico de muita preocupação. Como
pais, professores e membros da comunidade nos preocupamos com as oportunidades e
qualidade de ensino e de vida de nossos jovens. Educação é um direito universal, inclusive
do migrante, é uma questão de política pública global. A educação como um direito é
essencial para desenvolver a solidariedade e paz para além das diferenças culturais
(UNESCO 2006). Na prática, a educação se materializa em um processo comunitário
e conjunto, não é um dever exclusivo da família, do indivíduo ou do governo local ou
nacional (Levinson, Sutton, e Winstead 2009; Sutton e Levinson 2001). A educação como
um projeto de política pública é institucionalizada como um dos principais pilares na
construção de um estado-nação moderno. Esse projeto é implementado através do
sistema educacional, o qual é mantido pelo trabalho conjunto entre estudante, família,
comunidade e organizações cívicas e governamentais (Meyer et al. 1997; Ramirez e Boli
1987).
Existem várias outras formas de definir “educação”. Educação pode ser debatida
como uma questão moral ou individual, de formação identitária e profissional, visando a
participação ativa na vida social, cultural e econômica. As dimensões da educação são
importantes e relevantes, mas não serão o foco principal deste artigo.
Destacando o caso das crianças brasileiras, farei uma breve apresentação das práticas
e instituições que se desenvolveram nas últimas décadas e formam o contexto escolar
das crianças estrangeiras no Japão. Trata-se de um contexto de diversidade, que não
corresponde à perspectiva de homogeneidade pela qual o Japão é visto. Minha intenção
será em dar foco aos dados que nos permitem discutir e refletir sobre o papel das
autoridades escolares, tanto japonesas quanto brasileiras. Esclareço que essa perspectiva
difere da narrativa que geralmente ouve-se falar das crianças migrantes em relação às
dificuldades que encontram, das crises, ambiguidades e contradições identitárias. Esse
paradigma popular tende a sugerir uma importância das atitudes de pais, familiares e
da própria criança migrante como fatores que resultam na adaptação bem-sucedida ou
não. Novamente, reconheço a importância desses fatores, porém, minha intenção é trazer
atenção a outros fatores para termos um melhor entendimento do fenômeno em questão.
É importante ressaltar que minha própria trajetória e identidade influenciam minha
perspectiva. Ao falar das crianças estrangeiras no Japão, uma das perguntas que sempre
recebo é sobre a minha experiência. Eu também fui recebida como uma estrangeira
na escola japonesa aos quinze anos quando minha família se mudou para o Japão,
país natal de meus pais. Lembro da confusão de meus colegas e professores quando
perceberam que a aluna recém-chegada do Brasil era japonesa. Dez anos depois, me
tornei imigrante novamente, desta vez por escolha própria, e me mudei para os Estados
Unidos começando uma nova fase em minha vida profissional e familiar. Nos Estados
Unidos, minha naturalidade brasileira gera surpresa nas pessoas que inevitavelmente
notam a minha aparência asiática e em contraste associam o Brasil com a imagem de uma
população de “morenos”. Ficam ainda mais surpresos quando explico sobre a história
centenária da imigração e grande presença de descendentes japoneses no Brasil. Um fato
desconhecido por muitos é que a política de imigração discriminatória contra os asiáticos
dos Estados Unidos no início do século XX foi decisivo para a promoção da emigração
ao Brasil pelo governo japonês. No decorrer de minha vida, criei raízes em três países,
mas sempre tenho sido a imigrante. Porém, aprendi que ser ‘imigrante’ ou japonesa ou
brasileira, se associa a diferentes significados dependendo do local e momento histórico.
Então, talvez não seja nada surpreendente que o contexto histórico, político e sociocultural
no qual a criança imigrante vive tenha se tornado a minha área de interesse e pesquisa.
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As escolas japonesas
A educação escolar de modalidade regular no Japão é dividida nos seguintes
níveis. Ensino infantil (yotien)1, ensino fundamental I (shogakkou), ensino fundamental II
(tyugakkou), ensino médio (kotogakkou, normalmente chamado pela forma abreviada koukõ)
e educação superior (koto-kyouiku)2. Somam-se num total de 19 anos de ensino orientados
pelo Ministério da Educação, Cultura, Esportes, Ciência e Tecnologia (MEXT). A educação
infantil para as idades de 3 a 5 anos é opcional e o ensino obrigatório inclui o ensino
fundamental I e II abrangendo as idades de 6 a 15 anos. O ensino médio regular tem um
currículo de 3 anos que após completo qualifica o graduado para continuar os estudos em
instituições de ensino superior, como graduação (daigaku) ou um curso profissionalizante
(tankidaigaku ou senmongakkou). Uma questão importante para os alunos que transferem
entre os dois países é que o ano escolar japonês começa em abril e termina em março e
não corresponde ao calendário escolar de janeiro a dezembro do Brasil. Além do mais, a
prática é colocar o aluno no ano escolar correspondente a sua idade independente de seu
nível de conhecimento. Assim, a transferência entre escolas dos dois países pode ser um
processo trabalhoso dependendo da época do ano, data de nascimento do aluno e grau de
escolaridade (Ministério da Educação 2018).
1
Uma alternativa frequentemente escolhida pelas famílias são as creches (hoikuen), administradas pelo Ministério do Trabalho. As creches podem receber
crianças a partir dos 3 meses até os 5 anos de idade.
2
Os níveis escolares foram traduzidos seguindo os níveis correspondentes do sistema escolar brasileiro em 2018.
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Alunos de nacionalidade estrangeira
O Gráfico 1 mostra o número de alunos estrangeiros ingressados (total anual) nas escolas
japonesas do fundamental I ao ensino médio entre 2006 a 2016. Esse número inclui filhos de
estrangeiros nascidos no Japão já que a nacionalidade japonesa só é concedida quando
um dos pais é de nacionalidade japonesa. Observa-se a queda na população estudantil
estrangeira a partir de 2009, após a crise econômica mundial de 2008 e seguido do
desastre de Fukushima em 2011. Contudo, recentemente o número de alunos estrangeiros
vem aumentando novamente. Em 2016 encontravam-se matriculados mais de 80 mil alunos
de diferentes nacionalidades nas escolas públicas japonesas.
A maioria desta população se encontra nas escolas do fundamental I. O número de alunos
estrangeiros que atinge o ensino médio continua pequeno. Um dos fatores contribuintes é
o processo seletivo para o ingresso nas escolas de ensino médio. Mesmo sendo escola
pública, a admissão é decidida através de concursos seletivos que podem ser bastante
competitivos. Os concursos são administrados pela secretaria da educação de cada
província (Hamamatsu NPO Network Center 2018) ou no caso de escolas particulares, cada
escola. Então os requisitos variam dependendo do local de residência e da concorrência
na escola.
Alunos brasileiros
Como o Gráfico 2 indica, entre 2006 e 2016, as crianças brasileiras (legendado com a
cor verde) continuam sendo o maior grupo entre os alunos estrangeiros que são avaliados
como alunos em necessidade de aulas de reforço para o aprendizado da língua japonesa
(nihongoshidou ga hitsuyouna seito). A proporção de brasileiros teve o seu pico em
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2008 com uma representação de 11,386 alunos e no levantamento mais recente de 2016
constavam 8.779 alunos. O segundo maior grupo, alunos que tem o chinês como língua
materna (legendado rosa), vêm ocupando uma proporção cada vez maior. Em 2016, os
alunos falantes do filipino (legendado azul) formavam o terceiro maior grupo e também
se caracterizavam por mostras um aumento constante. Alunos de espanhol como língua
materna (legendado amarelo) vinha a seguir em termos de número em 2016. O número de
alunos que em conjunto formam a categoria de outras línguas (legendado cinza) duplicou de
2006 para 2016, dado que acrescenta às outras evidências da tendência de diversificação
da população estrangeira e étnica no Japão (Willis e Murphy-Shigematsu 2008).
O reforço dado aos alunos com dificuldade na língua japonesa toma várias formas. Uma
prática comum é a contratação de um voluntário ou assistente bilingue que ajuda os alunos
dentro da sala nas aulas regulares. Em escolas onde se há recursos e professores disponíveis,
as crianças estrangeiras recebem aulas especiais de japonês em salas separadas. A foto
abaixo mostra uma destas salas que muitas vezes é um quartinho pequeno no final do
corredor, refletindo a realidade inegável de que esses reforços são medidas provisórias
na ausência de políticas públicas que integram as crianças estrangeiras no currículo e
estrutura escolar japonês.
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Quarto reformado para as aulas de reforço de japonês
Por outro lado, governos provinciais e municipais, também dependendo dos recursos
e disponibilidade de professores, com escolas que já trabalham com alunos estrangeiros
a vários anos, investem no aprendizado e manutenção da língua portuguesa. Como
frequentemente se ouve falar nas histórias de famílias imigrantes de qualquer parte do
mundo, as crianças aprendem rapidamente a conversar em japonês, a língua local, na
convivência escolar. Ao mesmo tempo, esquecem o português, a língua dos pais, quando
a oportunidades de contato com a língua são precárias e limitadas. Não é incomum ouvir
de famílias, não só brasileiras, em que os pais não falam o japonês, enquanto os filhos só
falam japonês, então pais e filhos ficam sem uma língua comum para se comunicar. O que
pode ser o caso do aluno, como mostra a redação na foto abaixo, que estava no 6º ano do
primário e escreveu “eu quero escrever português cero [certo] para enviar mensagem para
meus pais.” Nota-se a dificuldade na escrita mas é exatamente o que ele expressa como
motivo para estudar a língua portuguesa.
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Trabalho de aluno que recebe aula de português como língua de
herança na escola japonesa
Embora o ambiente das escolas japonesas seja o local de encontro da maioria dos
alunos estrangeiros, incluindo os brasileiros, outro tipo de escola, as estrangeiras, recebe
grande atenção da sociedade japonesa. Além desses fatores, a situação de moradia e
trabalho instável em que se encontram boa parte dos trabalhadores brasileiros no Japão
tem influências críticas na vida escolar das crianças.
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Gráfico 3 - Frequência escolar entre crianças estrangeiras de idade escolar 2009-
2010 (Tabela elaborada pela autora com base em MEXT 2010)
Escolas brasileiras
As chamadas escolas brasileiras geralmente são instituições homologadas pelo Ministério
da Educação e Cultura do Brasil (MEC), mas não necessariamente certificadas pelo MEXT
(Ministério da Educação do Japão). As escolas brasileiras funcionam como alternativa,
além da escola do país sede, para famílias brasileiras residentes no exterior que pretendem
retornar ou continuar os estudos das crianças no sistema educacional do Brasil.
O Japão tem o maior número de escolas brasileiras no exterior embora não seja o
principal destino dos brasileiros que tentam a vida fora do Brasil, posição ocupada pelos
Estados Unidos. Na tabela abaixo disponibilizei um breve histórico das escolas brasileiras
no Japão. As primeiras iniciativas para educar crianças e jovens brasileiros conforme
o conteúdo escolar do Brasil surgiram nos anos 1990 e como “escolinhas” informais ou
aulas particulares no apartamento ou casa do(a) professor(a) ou “tia”. Eram pessoas que
cuidavam das crianças desde cedo pela manhã até tarde da noite para pais que faziam
longas jornadas de trabalho. Aos poucos, essas iniciativas foram ganhando mais alunos e
sendo registradas formalmente como ‘empresas,’ pois não tinham qualificação para serem
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cadastradas como “escola” no Japão. Em 1996, algumas escolas fizeram o pedido ao
MEC e conseguiram o reconhecimento como programas do Ensino de Jovens e Adultos
(EJA) à distância. Com o aumento da demanda, em 1999 o MEC iniciou o processo de
homologação desses cursos, oficializando o status das escolas brasileiras no exterior para
que o histórico e diploma escolar emitidos por essas escolas fossem válidos quando os
alunos retornassem ao Brasil.
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indicam um movimento em direção à melhor integração das escolas brasileiras com a
sociedade japonesa. Em 2013, com a flexibilização dos regulamentos por parte do MEXT
em relação às escolas estrangeiras do ensino médio, 30 escolas brasileiras passaram a
ser reconhecidas como “equivalentes” ao ensino médio japonês. Então, os graduandos
passaram a poder prestar o vestibular para faculdades japonesas. Outro evento relevante
para as escolas brasileiras no Japão ocorreu em 2012, quando o MEC oficializou como
requerimento para a homologação de escolas brasileiras no Japão a “oferta de aulas de
Língua e Cultura Japonesas” (PARECER CNE/CEB Nº 5/2012).
Em 2018, a comunidade brasileira no Japão contava com 39 escolas homologadas.
Porém, a realidade continua sendo que muitas não conseguem atingir estabilidade.
Geralmente funcionam em imóvel alugado e dependem da mensalidade paga pelas famílias.
Como a renda das famílias estrangeiras tende a ser mais vulnerável, pagar as contas no
final do mês é sempre uma preocupação para a administração das escolas brasileiras.
Porém, nas regiões com grande concentração de brasileiros, as escolas brasileiras têm
conseguido maior apoio do governo local e continuam sendo o braço direito de muitos pais.
As mensalidades não são baixas, mas incluem pacotes de transporte, alimentação, horário
integral das 7 da manhã até as 7 da noite, e a facilidade e familiaridade de poder contar com
um educador brasileiro traz um sentimento de segurança aos pais. Muitas também integram
costumes japoneses como trocar os sapatos na entrada e os alunos serem responsáveis
pela limpeza, para que as crianças também entendam as regras da sociedade japonesa.
Se a escola tem os reconhecimentos do governo brasileiro e japonês os graduandos das
escolas brasileiras conseguem seguir os estudos no ensino superior tanto no Brasil como
no Japão. Um caso especial é a escola Mundo de Alegria que começou como escola
peruana, mas agora possui programa homologado pelo MEC brasileiro e MEXT japonês.
Por último, é importante falar das ONGs. Organizações cívicas também têm um papel
importante, principalmente na assistência de famílias e alunos que passam por transferências
entre as escolas japonesas e brasileiras. São comuns os casos de famílias que matriculam
os filhos nas escolas japonesa no início, mas quando decidem retornar ao Brasil, transferem
o aluno para a escola brasileira para facilitar a transição no retorno ao Brasil.
Conclusão
Espero ter demonstrado que temos várias questões envolvidas na educação das
crianças brasileiras no Japão. Considerando a diversidade étnica, a diversidade de escolas
e programas que recebem estas crianças e jovens, a questão vai muito além da cobrança
que se faz frequentemente aos alunos estrangeiros no processo de adaptação ao Japão.
Pensar em uma educação sem barreiras requer não só considerar fronteiras entre países,
mas também as fronteiras burocráticas que existem entre as autoridades, família, alunos
e comunidades envolvidas. Acredito que a garantia de uma boa qualidade de ensino e o
direito à educação da criança migrante dependem da cooperação desses agentes.
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