24 Ensaio BrancaDeNeve AnaLuizaFigueiredo

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 7

[revista dEsEnrEdoS - ISSN 2175-3903 - ano VII - número 24 - teresina - piauí - outubro de 2015]

POR QUE TÃO DUROS COM A BRANCA DE NEVE?

Ana Luiza Figueiredo

É interessante como tantas pessoas decidiram ler Branca de Neve como uma
lição de moral, e não como qualquer narrativa: a jornada de um personagem, que
passa por alguma coisa, devido a alguma coisa, em busca de alguma coisa. Tal
atitude provavelmente se deve ao gênero em que a história da princesa se encaixa e,
sobre ele, há sempre muita discussão.
Os contos de fadas traziam verdades relativas aos tempos em que foram
concebidos: florestas são perigosas, crianças desaparecem à noite, entre outras.
Como quem conta um conto aumenta um ponto, cada aldeão acrescentava-lhes um
trecho inédito, espelhado em sua própria vivência. Assim, os contos também
viraram registros de situações comuns daquela época – a fome, o abandono dos
pobres, o preconceito, a situação dos órfãos. Justamente por isso, davam voz a
grupos negligenciados naquela sociedade, como a mulher (vilã ou vítima), o filho
caçula, o deficiente físico, as crianças e até mesmo os animais. Acima de tudo isso,
essas histórias eram meios de pertencimento, construção coletiva de referenciais.
A recente classificação dos contos de fada como normativos e opressores é,
na verdade, bastante equivocada. Os contos eram maneiras de viajar, experimentar
e transmitir. Eles realizavam o sentido de experiência cunhado pela filosofia de
'atravessar' várias camadas espaciais ou temporais. Tais experiências eram
transmitidas oralmente, de geração a geração, “como quem passa um anel', na
expressão de Walter Benjamin1. Justamente por isso, funcionavam como modo de

1
BENJAMIN, W. O narrador. In: Obras escolhidas I. Trad. José Carlos Martins Barbosa e Hemerson Alves
Baptista. São Paulo: Brasiliense, 1987.

1
[revista dEsEnrEdoS - ISSN 2175-3903 - ano VII - número 24 - teresina - piauí - outubro de 2015]

construção de uma memória coletiva, compartilhada pelos habitantes do mesmo


vilarejo, feudo ou comunidade.
Igualmente errônea é a ideia de que contos de fada são voltados para o
público feminino. Branca de Neve não é uma história (nem um manual) para
meninas, assim como João e o Pé de Feijão não é exclusivo para meninos. Já é
sabido que o gênero do protagonista não determina seus leitores. O Pequeno
Príncipe, Alice no País das Maravilhas, Pinóquio, Píppi Meialonga; são todos
clássicos que conversam com crianças e adultos de ambos os sexos justamente por
tratarem, de modo mais aprofundado, da jornada de um personagem que busca
alguma coisa – e que, para alcançá-la, terá que vivenciar uma série de experiências.

[Imagem 1: Branca de Neve, por Franz Jüttner, domínio público]

O homem gosta de contar e de ouvir histórias. Essa conclusão de Walter


Benjamin2 revela o atrativo que manteve o público (sobretudo o infantil)
interessado nos contos de fadas por tantos séculos, mas que alguns esquecem ao

2
BENJAMIN, W. O narrador. In: Obras escolhidas I. Trad. José Carlos Martins Barbosa e Hemerson Alves
Baptista. São Paulo: Brasiliense, 1987.

2
[revista dEsEnrEdoS - ISSN 2175-3903 - ano VII - número 24 - teresina - piauí - outubro de 2015]

impor aos pequenos uma visão extremamente realista e crítica sobre um universo
fantasioso – o que não exigem de outras leituras igualmente fantasistas.
Tal condenação é, no mínimo, descabida. Já dizia Benjamin: o universo
desses contos seculares é muito limitado para representar a complexidade do
mundo em que vivemos hoje. Portanto, não faz sentido buscar neles o significado
das nossas condutas e comportamentos cotidianos. O que esses contos nos
deixaram são imagens – a floresta, a torre, o castelo – e histórias divertidas.
Um dos pontos mais polêmicos dessa discussão com certeza é o casamento.
O final feliz. Há uma visão equivocada de que a maioria dos contos de fada fala de
romance e são majoritariamente protagonizados por moças que, de tanto sonharem
com o amor, acabam por encontrá-lo.
Primeiramente é preciso esclarecer que o número de protagonistas femininos
e masculinos se equivale, bem como o número de histórias que nada têm a ver com
a temática amorosa. O que acontece é que, nas últimas décadas, as mais exploradas
envolvem casais e são protagonizadas por donzelas – o que não é gratuito. Em
segundo lugar, nenhum desses contos trazia jovens sonhando com seu romance
ideal. Os personagens não possuíam densidade psicológica suficiente para isso. A
visão dos príncipes e, principalmente, das princesas como sonhadores e românticos
aparece muito tempo depois, através da ressignificação dos contos e seus
personagens para o contexto contemporâneo.
Devido a essas visões deturpadas, muitos tratam as jovens que terminam
felizes para sempre como não merecedoras dessa felicidade. Elas só foram gentis,
não viveram uma aventura cheia de perigos como os personagens masculinos. Há
ainda aqueles que veem o casamento das mocinhas como uma grande submissão ao
sexo oposto, pois é apenas através da união com um príncipe que as jovens
conseguem ser independentes de seus malfeitores e realizadas no amor. Já para os
personagens masculinos, a conquista da amada seria um ‘prêmio’ por sua valentia
e/ou trajetória.

3
[revista dEsEnrEdoS - ISSN 2175-3903 - ano VII - número 24 - teresina - piauí - outubro de 2015]

Não é difícil inverter essas afirmativas. Por que não dizer que Branca de
Neve também vive uma aventura? Por que não dizer que, para ela, o príncipe foi
uma espécie de prêmio, conquistado depois de muitos sacrifícios, ou uma
‘recompensa’ por seu caráter? Por que não contar quantas aventuras de
personagens masculinos efetivamente envolvem resgatar donzelas, antes de dizer
que são majoritárias? E por que não lembrar dos vários contos em que é a jovem
quem resgata o amigo, a família, o reino ou o amado? Afinal, quem (ou o que)
tornou essas histórias impopulares?
Branca de Neve não diz para as garotas que elas têm que esperar o príncipe
para salvá-las – ela inclusive estaria morta se não tivesse fugido da madrasta. Essa
“moral da história” foi incluída tempos depois, por grupos interessados em ter a
figura feminina subordinada à masculina. O problema não está no conto, mas em
como ele passou a ser usado.
Ainda sobre a temática do casamento, entramos novamente na questão da
temporalidade. Os contos de fadas nasceram na Idade Média, ou seja, só havia dois
jeitos de ter uma vida melhor naquela época: nascer nobre ou se casar com um.
Claro que um camponês não teria a menor chance com uma princesa, mas é para
isso que um mundo mágico existe. A única chance plausível de ascensão social para
os personagens dos contos de fada era o casamento, até porque eram mulheres
e/ou filhos caçulas, ou seja, não teriam direito a nada. Já que o jeito é se casar,
porque não por amor, sentimento tão recente nesse tipo de união? Assim, a paixão
instantânea é tanto um recurso literário quanto um reflexo da simplicidade da
narrativa desses contos.

4
[revista dEsEnrEdoS - ISSN 2175-3903 - ano VII - número 24 - teresina - piauí - outubro de 2015]

[Imagem 2: Encontro com o Príncipe, por Alexander Zick, domínio público]

Portanto, não se trata de adorá-los, mas de não exigir dos contos de fada o
que não podem dar. Não há como lê-los esperando um reflexo do mundo atual,
muito menos cobrar de Branca de Neve a complexidade de uma Capitu. Não
vamos transformar os contos naquilo que não são, mas vamos aproveitá-los (e
deixar que os outros os aproveitem) por aquilo que de fato oferecem.
Como Benjamin já explicou, nosso universo não cabe mais nas imagens dos
contos de fada, razão pela qual são vistos como infantis. Entretanto, o semiólogo,
antropólogo e filósofo Jesús Martin-Barbero3, dialogando com os estudos do

3
MARTIN-BARBERO, Jesus. Dos meios às mediações. Comunicação, cultura e hegemonia. Trad. Ronald Polito e
Sérgio Alcides. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2003.

5
[revista dEsEnrEdoS - ISSN 2175-3903 - ano VII - número 24 - teresina - piauí - outubro de 2015]

sociólogo Edgar Morin4, encontra um paradoxo no novo milênio. Segundo ele, nós,
pessoas do século XXI, ainda desejamos o conforto de um mundo simplificado,
dividido entre o bem e o mal, o feio e o belo, isto ou aquilo.
Desse modo, qualquer produto cultural que deseje ser largamente consumido
pelo público precisa estar o mais próximo possível dessa dicotomia, utilizando
elementos que sejam familiares aos consumidores. Assim, a publicidade e a cultura
de massa retornam aos contos de fadas em busca das imagens que eles
sedimentaram no nosso imaginário, atribuindo-lhes novos significados.
O problema não está na Branca de Neve, ou em lê-la, mas na transferência
de valores para a personagem, através de atributos que nada têm a ver com sua
concepção original. A princesa bondosa deixa de ser solidária, agora ela só precisa
ser bonita e, para isso, deve usar a marca X. O príncipe não vem a cavalo, vem num
carro de luxo; não é mais corajoso, é bem-sucedido; não se apaixona prontamente,
é seletivo. A varinha de condão vira o cartão de crédito, o baile ganha a sigla VIP,
final feliz é ficar rico, feio é não ser empreendedor. Assim, valores morais vão
sendo cada vez mais substituídos por valores de mercado (não apenas na
publicidade), enquanto as fórmulas consagradas permitem que o público se
identifique mais rapidamente com os frutos da cultura de massa. O que é Harry
Potter senão um predestinado, tal qual o jovem cujo destino era tirar a espada da
pedra? Os grandes estúdios não lucram ao reforçarem uma determinada visão dos
contos de fada, fazendo vários remakes que “contam as histórias de um novo jeito”?
Dirigir as críticas e o rancor a contos de fada seculares é condenar a vítima
injustamente. Eles não possuem os valores que tanto criticamos, muito menos
foram criados com o propósito de doutrinar. Se tinham um propósito, era o de
agregar, como já foi explicado no começo desse texto.
Assim, vemos pessoas atacando furiosamente esses contos que, se fossem
todos destruídos amanhã, não alterariam o modo como a publicidade, a cultura de
4
MORIN, E. Cultura de massas no século XX: Neurose. Trad. Maura Ribeiro Sardinha. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1987.

6
[revista dEsEnrEdoS - ISSN 2175-3903 - ano VII - número 24 - teresina - piauí - outubro de 2015]

massa e o mercado cultural se apropriam de imagens universais para legitimarem


seus discursos e criarem suas produções. Se não viessem dos contos e mitos, esses
referenciais imagéticos viriam de qualquer coisa mundialmente difundida, cujo
significado original pudesse ser radicalmente adaptado.
Portanto, sejamos severos com o que merece nossa severidade. Vamos
criticar essa cultura de consumo que usa os referenciais mais intrínsecos à história
dos povos para vender, a repetição de ideias, as mazelas que se mantém desde a
Idade Média. E mais carinho à Branca de Neve.

Ana Luiza Figueiredo é estudante de Publicidade e


Propaganda na UFRJ. Trabalha como redatora, com
textos publicados na revista digital Afronte e nos sites
Obvious, Ideia de Marketing e Update or Die.
analuiza.dfigueiredo@gmail.com.

Você também pode gostar

pFad - Phonifier reborn

Pfad - The Proxy pFad of © 2024 Garber Painting. All rights reserved.

Note: This service is not intended for secure transactions such as banking, social media, email, or purchasing. Use at your own risk. We assume no liability whatsoever for broken pages.


Alternative Proxies:

Alternative Proxy

pFad Proxy

pFad v3 Proxy

pFad v4 Proxy