Texto 4 - Vera Iaconelli. E A Maternidade, o Que É

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VERA. IACONELLI
MANIFESTO · ·
ANTI MATERNALISTA

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PSICANÁLISE
EPOLÍTICAS DA
REPRODUÇÃO
lli
Co pyr igh t© 2 023 by Vera Jac one
Ma rol a Edições
ue (cit ado às pp. 153-4): 100 % ©
"O que será?", de Ch ico Bu arq
s res erv ado s.
Musicais Ltd a. To dos os dir eito reira Gullar
, de Fer rei ra Gu lla r (cit ado às pp. 128 -9): © He rde ira de Fer
"Tr adú zir- se"
de ,
Ortográfico da Língua Portuguesa 1990
Grafia atualizada segundo o Acordo
que entrou em vigor no Brasil em 200
9.

Capa
Elisa von Ra ndo w

Imagem de capa 120 cm . Coleção particular.


Ac ríli co sob re tela, 120 x
Luna I, 202 0, de Hil da Palafox.

Preparação
Cri stin a Yarnazaki

Checagem
Érico Me lo
Revisão
Ca rm en T. S. Co sta
Ad ria na Mo rei ra Ped ro

açã o na Pub lica ção (CIP )


Dad os Inte rna cio nai s de Cat alog
Brasil)
(Câ mar a Bra sile ira do Liv ro, SP,

laconelli, Vera o / Vera


análise e pol ític as da rep rod uçã
Manifesto ant ima tern alis ta : Psic
eiro : Zah ar, 202 3.
laconelli. - x~ ed. - Rio de Jan
Bibliografia.
ISBN 978 -65- 597 9-13 0-9
2 . Mã es - Psic olog ia
3. Ma tern idad e -
Gra vid ez -As pec tos psicológicos
1.
lise Títu lo.
Sex uali dad e 5. Psic aná 1.
Aspectos sociais 4. Mu lher es -
CDD-150.195
23-159743

:
Índice par a catálogo sistemático
1. Psicanálise: Psicolog
ia 150 .195

cária - CRB -8/9253


Tábata Alves da Silva - Bibliote

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Sumário

Sobre cuidar das novas gerações 9

Maternalismo u

Origens 13

E a maternidade, o que é? 21

Mulheres? Quais mulheres? 31

Em busca do orgasmo perdido, ou O que quer uma mulher? 38

A miragem do instinto materno 44

O sofrimento feminino pela perspectiva de Freud 57

As contradições do maternalismo 63

Psicanálise e maternidade 82

A preocupação materna primária


e o modelo uterino de cuidado 95

Genitoridade, perinatalidade e parentalidade 106

Reprodução de corpos nr

Perinatalidade: gravidez, parto e pós-parto n3

Algumas considerações sobre a reprodução de corpos n8

Psicanálise e corpo erógeno 122


O Eu e a ima gem cor por al 133
Do que é feito um bebê? 142
O par to 149

Bebê não nascido de mãe, ou Qu and o o pai


dá à luz 169

Reprodução de sujeitos 173

Parentalidade 175

Constituição subjetiva 185

Funções con stit uin tes da subjetividade


198
Assunção subjetiva do parentesco 206

Co ncl usõ es 2n

O que leva alg uém a ter filhos? 213

Agradecimentos 223

Notas 225

Referências bibliográficas 241


1111

E a maternidade, o que é?

"MATERN lDAnE .. í: llM lTRMo curioso pela multiplic idade de


sentidos que con_iuga e pelos paradoxo s que cria. Pode significar
a relação de parentes co con1 os filhos, mas também o hospital
onde se costuma parir. "1'vl}c" é un1 significan te que contemp la
a n1ulher que deu à lu z. a mu lhcr responsá vel pelo filho sem
te-lo parido, a mulher que é. responsá vel legalmen te mas que
não se ocupa do filho. ·· tvfalerno" pode ser o adjetivo para des-
crever uma certa qualidad e de cuidado despendi do pela mãe,
mas também pelo pa1 , por q uem cuida. pelo/a psicanalista!
O termo "mãe" se 1iga ao m ito de que a genitora é o tipo
preferenc ial de mãe, aquelâ qu e teria dotes naturais para a
função. Nesse caso , di z se, desde o tempo do Império, que
"Mãe só tem uma!", para distingui -\J da ama de leite, ama-seca
ou babá, que eram as cu idador.1s de fato. 1
Aparent emente, em ro du lugar, e portanto em nenhum
com muita clareza, o termo revela nossa dificulda de em en-
tender, afinal, o que seria uma mãe e qual a diferença entre a
função materna e a dos /as demais cu idadores /as das crianças.
Ao tentar elencar essas diferença s, vemos que a convençã o
social prevalece , não havendo nada de intrinseca n1ente natu-
ral sob esse significan te .
Por tocar na questão central sobre nossa origem, que sem-
pre nos escapa , o significan te "rn~c" Li.1 margem ;1 infind:weis

li
---------------------
E a maternidade, o que é?

"MATERNIDADE" É UM TERMO curioso pela multiplicidade de


sentidos que conjuga e pelos paradoxos que cria. Pode significar
a relação de parentesco com os filhos, mas também o hospital
onde se costuma parir. "Mãe" é um significante que contempla
a mulher que deu à luz, a mulher responsável pelo filho sem
tê-lo parido, a mulher que é responsável legalmente mas que
não se ocupa do filho. "Matemo" pode ser o adjetivo para des-
crever uma certa qualidade de cuidado despendido pela mãe,
mas também pelo pai, por quem cuida, pelo/a psicanalista!
O termo "mãe" se liga ao mito de que a genitora é o tipo
preferencial de mãe, aquela que teria dotes naturais para a
função. Nesse caso, diz-se, desde o tempo do Império, q_ue
"Mãe só tem uma!", para distingui-la da ama de leite, ama-seca
ou babá, que eram as cuidadoras de fato. 1
Aparentemente, em todo lugar, e portanto em nenhum
com muita clareza, o termo revela nossa dificuldade em en-
tender, afinal, o que seria uma mãe e qual a diferença entre a
função materna e a dos/as demais cuidadores/as das crianças.
Ao· tentar elencar essas diferenças, vemos que a convenção
social prevalece, não havendo nada de intrinsecamente natu-
ral sob esse significante.
Por tocar na questão central sobre nossa origem, que sem-
pre nos escapa, o significante "mãe" dá margem a infindáveis

21
22 Maternalismo

pistas falsas. Não podendo' responder ao "De onde viemos?",


nem ao "Para onde vamos?", temos a palavra "mãe" fazendo
véu para o incognoscível.
"Mãe" é um termo que pode migrar com o gênero, con-
forme o sujeito se reconheça homem ou mulher. Frequente-
mente, homens transgênero* se autodenominam pai e mulhe-
res transgênero se autoden ominam mãe, mas nem sempre.
Como nos mostra Patrícia Porchat, esse é um indício im-
2

portante do trabalho simbólico envolvido na nomeação de


pai/mãe , que vai além dos atributos biológicos, dos papéis
sociais e mesmo do gênero. Casais homossexuais também
encontra m formas próprias de se nomear diferenciando dois
pais ou duas mães.**
Quando Margaret Mead descreveu o cuidado carinhoso
e ostensivo que os pais do povo Arapesh, da Nova Guiné,
dedicavam a seus filhos recém-nascidos, ela usou a palavra
"materno" para qualificá-lo. 3 Ao mesmo tempo que revela

* Usa-se o termo transgêne ro para referir a pessoas que não se sentem ·


identificadas com o sexo que lhes é atribuído ao nascer. Cisgênero, por
outro lado, é a pessoa cuja identidade de gênero correspon de àquela atri-
buída às característ icas anátomo-f isiológicas ao nascer. Inclui pessoas
nascidas com ovários/út ero/vagina , convencio nalmente denomina das
"mulheres", que se identificam como mulheres, e as nascidas com pênis/
testículo, que se identificam como homens. Veremos que em algumas et-
nias tradicionais há relatos de casos nos quais a infertilidade, a menopaus a
ou a escolha pessoal permitiam que sujeitos nascidos com útero fossem
assimilados ao grupo dos homens e se tornassem pais, por exemplo.
** Usarei a transgene ridade masculina como paradigm a que rompe a
ideia hegemôni ca de paternidad e e maternida de na medida em que esses
ideais são fortement e tributários da interpretaç ão biologizan te da mater-
nidade. Os atravessamentos ideológicos ligados à orientação sexual serão
apontados como formas heteronor mativas ou, de maneira mais geral e
inclusiva, como violência contra sujeitos dentro do espectro LGBTQIAPN +.
li
E a maternidade, o que é? 23

um mundo no qual pai/mãe desempenham a mesma função


para o nascituro - com exceção da tarefa de aleitar -, a
antropóloga não imaginava que esses possam ser cuidados
paternos. De sua perspectiva europeia oitocentista - nesse
e em outros aspectos nada distante da atual -, o materno
se traduz por uma qualidade de cuidado associada ao gênero
feminino, mesmo quando realizado por um homem.*
Hoje são cada vez mais frequentes os pais que se dedicam
aos filhos de uma forma até então considerada exclusiva-
mente feminina. Ainda são poucos em comparação com o
comportamento hegemônico, mas revelam uma mudança
de mentalidade crescente. Teremos que qualificá-los como
pais maternais ou eles podem receber mérito próprio? Guar-
daremos "cuidados maternos" como adjetivo? Se o fizermos,
seria em nome de quê? Qual a relação disso com o fato de
que, na reprodução, a mulher cisgênero e o homem trans-
gênero ficam com a parte da gestação, do parto e do aleita-
mento? Seria a biologia o fator determinante? Se sim, como
qualificar a relação de pais/mães adotivos ou de mulheres
transgênero com seus filhos? Seria uma competência intrin-
secamente feminina, mesmo quando a mulher não concebe?
Como avós, outros parentes e também cuidadores/as em
instituições podem criar as crianças sem serem considerados
mães/pais de fato?
Pai e mãe ainda são considerados a dobradinha de ouro, en-
tendida muitas vezes como composta de elementos cuja falta
comprometeria o psiquismo infantil. Mas estão aí as mães

* Uso "recém-nascido", "rebento" e "nascituro" por nem sempre se tratar


de filho.
Maternalismo
24

filhos pa ra_pro va r qu e a
solo e os casais lésbicos e gay s co m
sso ra do qu e a car tilh a
realidade é mu ito ma is ric a e pro mi
het ero no rm ati va pre ten de faz er crer.
e a psicólogos, juí -
Nos casos de dis pu tas de gu ard a, cab
res , ass ist ent es sociais
zes, advogados, co nse lhe iro s tut ela
qu al é o im ag iná rio de
e dem ais envolvidos rec on he cer em
ve de gu ia na s decisões
par ent ali dad e e fam ília qu e lhe s ser
vid as tod os os dias. Na
qu e tom am e qu e afe tam mi lha res de
un ha s de co mo essas
função de psicanalistas, som os tes tem
me nte , os profissionais
decisões afe tam tam bé m, pro fun da
de crianças. Reconhecer
que lidam com o fut uro de famílias e
decisões sobre gu ard a e
as fantasias inconscientes qu e mo ve m
ent ais a ser em pensadas
cuidados é um a das questões fun dam
na interpretação dessas disputas.
nossas políticas da re-
Para me lho r ent end er os em bat es de
inh o qu e vai da repro-
produção, pro po nh o per cor rer um cam
4
nte de qu e se trata de
dução de corpos à reprodução de sujeitos, cie
vediça. A reprodução do
um a divisão cuja barreira é tên ue e mo
ialidade reprodutiva, ou
corpo está ligada, po r um lado, à mater
o pro du to da concep-
seja, ao processo a par tir do qual se ob tém
da espécie hu ma na, a
ção: um a est rut ura anátomo-fisiológica
lado, se essas estruturas
qual chamarei de organismo.* De ou tro
corpo, como entendido
serão alçadas - ou não - à categoria de

sen tido usu al, par a me ref erir à


* Usarei o term o "organismo", em seu
lógica. O psi can alis ta Ch rist ian
reprodução da est rut ura anátomo-fisio
to de corporeidade, pro põe a pa-
Dunker, no entanto, ao sug erir o concei
áte r ima gin ário do corpo, ligado
lavra "organismo" par a se refe rir ao car
uir seus passos aqui par a tor nar o
ã constituição do Eu. Optei por não seg
fora do cam po da psicanálise. Aos
texto mais inteligível par a leitores de
recomendo vivamente: C. Dunker,
interessados na concepção de Dunker,
, car ne e organismo".
"Corporeidade em psicanálise: Co rpo
E a maternidade, o que ér 25

pela psicanálise, dependerá de seu reconhecimento a partir das


coordenadas simbólicas, e não de sua existência material. É
o simbólico que determina, com base no reconhecimento de
uma certa imagem nomeada como tal, o que é corpo, o que é
potencialmente um corpo e o que é dejeto.
Nem sempre a concepção desemboca na reprodução de
um sujeito.* Nem sempre um sujeito chega a se constituir,
pois não basta ter a materialidade do organismo. A constitui-
ção subjetiva implica a produção de µm outro corpo, que se
baseia no corpo erógeno. A questão da psicanálise é justamente
como de um organismo pode emergir um corpo. E a resposta
passa pelo corpo de quem cuida,** cuja subjetividade já está
constituída.
Esse processo só é possível se lhe for oferecida uma certa
qualidade de relação muito específica, desde os primórdios.
Supor que haveria um trajeto automático ou simples, como
ocorre com outros mamíferos, que mal nascem e já adqui-
rem autónomia e o comportamento próprio da sua espécie,
é ignorar o que seja a natureza humana.
Já do lado dos pais, o erro recorrente é supor que a expe-
riência da gestação, do parto, do puerpério ou da amamen-
tação seria capaz por si só de tornar alguém mãe ou pai de
fato. Se não há relação de causa e efeito entre a experiência

* Os temas da reprodução de sujeitos, da parentalidade e da constituição


do sujeito serão abarcados na terceira parte do presente livro, "Reprodu-
ção de sujeitos".
** Uso "quem cuida" ou "cuidador/a" para englobar pais, mães, demais
parentes, pessoas responsáveis pela criança sem grau de parentesco, pro-
fissionais em instituições que se incumbem delas. Usarei "pai" e "mãe"
apenas nas situações nas quais, dentro desse leque de possibilidade de
cuidadores, se tratar de uma relação de filiação.

Maternalismo

da reprodução e a constituição subjetiva no bebê, tampouco


estará garantida a assunção subjetiva do parentesco pelo si~-
ples nascimento da criança. Inseminar e parir nunca fizeram
de ninguém pai ou mãe, e os bancos de sêmen e as barrigas
de aluguel ou solidárias* estão aí para exemplificá-lo.
A biologização e a naturalização do tema impedem que
vejamos com acuidade qual a relação entre procriação e as-
sunção de maternidade/paternidade. Mas, se a reprodução
não garante o tipo de laço nein a tarefa de criar, não se deve
ignorar a complexidade da experiência reprodutiva e seus
efeitos na subjetividade e nos laços sociais. A experiência de
gestar, parir e aleitar não deve ser confundida com qualquer
garantia ou com uma determinada qualidade de cuidado.
Tampouco os efeitos do ciclo gravídico-puerperal podem ser
negligenciados. Resta separá-los de falsas expectativas que
levam a equívocos e sofrimento.
Se a genitora costuma ser considerada o "padrão-ouro"
no cuidado com a prole, obviamente não se trata de qual-
quer uma, pois imputa-se a certa classe de genitoras o topo
da hierarquia de quem cuida de uma criança. Sejamos mais
exatos: trata-se da mulher, cisgênero, heterossexual, casada,
branca, com recursos financeiros, adulta.** Padrão que, ao ser

* No Brasil, o termo correto é "barriga solidária", uma vez que, segun~o a


resolução n. 2294/2021 do Conselho Federal de Medicina (CFM), "a cessão
temporária do útero não poderá ter caráter lucrativo ou comercial". No
entanto, não há ainda leis brasileiras, mas tão somente resoluções do CFM
e um provimento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
** Classe, gênero e raça são marcadores fundamentais para se pensar o
valor atribuído a quem pode ou não ser mãe em nossa sociedade. Com
a menção a "adulta" refiro-me ao contraponto com a parentalidade na .
adolescência, hoje condenada, mas em algumas épocas e lugares alta-
mente desejada.
E a maternidade, o que é?
27

usado como norma, reprod uz o ideário hegemônico e opres-


sor responsável pela patologização de outras configurações
parentais e de outros/a~ cuidadores/as e pela reprodução de
desigualdades sociais.
Assim, crianças sob responsabilidade de pais, de mães que
não pariram , de outros parentes ou de profissionais estariam
social e psiquicamente condenadas por não receberem os cui-
dados da matern idade padrão -ouro. Nessa lógica, os filhos
de -outra realidade, que não cumpre esse imaginário racista,
classista, familiarista e misógino, poderão, por exemplo, ser
"salvos" por adotantes em melhor classe social, numa prática
de circulação de crianças que tem dimensões globais.
Mas se, como dito, a biologia não garante os laços paren-
tais, tampou co pode ser descartada de antemão. A ausência
de direitos reprodutivos - fruto da miséria, do anacronismo
e do descaso do Estado - chega a reduzir mães e pais so-
cialme nte vulneráveis a simples genitores. Trata-se de uma
violência institucionalizada, que retira sistematicamente as
crianças de pais e mães pobres que não têm nem a chance de
assumi r sua descendência.
A pesquis adora Claudia f onseca, estudando ~lgumas po-
pulações pobres do Sul do Brasil, apontou como, nas cama-
das popula res, os significantes "mãe que criou", "mãe que
amame ntou" e "mãe que pariu" não se confundem, podendo
ser os três reconh ecidos. Ela ilustra esse fato por meio de
vários casos sobre os quais escreveu.5 Em um deles, Fonseca
é apresentada à menina Claudiane, a quem pedem que relate
quantas mães ela tem. A criança responde com desenvoltura
e ar de satisfação: "Três: a mãe de leite, a mãe de criação e a
mãe que me ganhou . Eu tinha três dias, vim para cá [para a
28 Maternalismo

casa de uma vizinha], só fui embora com cinco anos".6 Outro


caso diz respeito a um jovem que chega no bairro pergun-
tando sobre uma senhora chamada Maria, mãe de muitos
filhos. Quem lhe responde on~e mora a senhora é uma de
suas filhas, que só depois vem a saber que o jovem é um ir-
m~o criado longe. O rapaz é imediatament e assimilado como
irmão, o sangue7 comum funcionando como eixo agregador
fundamental desses sujeitos que passam a reconhecer o paren-
tesco, mesmo sem nunca terem sido criados juntos.8 Fonseca
advoga pelo reconhecimen to dos diferentes discursos sobre
a maternidade, para além do modelo hegemônico imposto
pelas camadas mais abastadas.9
O tratamento oposto se apresenta quando vemos que, a
depender do lugar de onde miramos essas mães, a genitora
sem recursos financeiros pode ser tomada como mera repro-
dutora de organismos, a s~r descartada logo que a criança é
adotada por uma família em melhores ·condições sociais. A
genitora das classes mais abastadas, no entanto, costuma ser 1
vista como mãe inconteste, pois encarna o modelo hegemô- l
nico da maternidade. É o discurso das classes mais altas que
desqualifica a genitora que entrega o filho para outra família
l
cuidar, ao mesmo tempo que invisibiliza a onipresença das
babás que cuidam de sua prole.
A l!laternidade reproduz o lugar social no qual encon-
tramos mães de primeira classe e de segunda. Como já de-
nunciava Jacques Donzelot, caberia à sociedade e ao Estado
apoiar as primeiras em sua "função supostamente sagrada",
enquanto vigia as "limitações e coíbe os vícios" imputados
às segundas.1º
Diante de uma realidade na qual homens e mulheres dis-
putam o espaço público, mulheres continuam acumulando
E a maternidade, o que ér 29

cuidados domésticos e a chefia dos lares, novas formas re-


produtivas são popularizada s e configuraçõe s familiares não
hegemônicas passam a ser reconhecidas , é imprescindív el
que reflitamos sobre o que entendemos por maternidade e
paternidade hoje. O colapso do modelo ideal de maternidade
herdado do século xv111 e recrudescido no início do século xx
é perceptível. Seu fracasso se faz notar no adoecimento das
mulheres, na corrosão da conjugalidad e com a chegada dos
filhos, na precarização dos cuidados com as infâncias 11 e na
perda do direito à descendência em populações mais pobres.
A infância seria o período no qual a sociedade como um
todo e pais e mães em particular têm por missão apresentar o
mundo paulatinamen te à criança, identificando e respeitando ·
seus limites físicos e psíquicos. A ideia de infância como a
conhecemos hoje foi criada com a modernidade para melhor
preparar os pequenos para as novas exigências sociais da fa-
.
mília burguesa. Claro está que nem todas as crianças se
12

beneficiam da proteção e da preparação que se preconizam


para esse período da vida,13 como podemos notar pelo con-
tingente assombroso de crianças que trabalham, se casam
ou guerreiam,14 contrariando o ideário de infância surgido
no século xv111. Além disso, a ideia hegemônica de infância
responde a uma preparação para o modelo burguês de família
e sociedade, um modelo que não contempla a experiência
de inúmeras crianças em outras culturas, cujas aspi~ações
são distintas das do modelo capitalista. A psicanalista Ilana
Katz, em "Infâncias: Uma questão para a psicanálise", aponta
o caráter colonizador do uso do termo "infância" quando ele
supõe homogeneida de de intenções, métodos e experiências
para crianças ao redor do mundo. Daí a importância de sua
9
Maternalismo
30

, ,
1 proposta de usarmos o plural, "infâncias", denunciando a ori-
gem ideológica do paradigma original.
Vivemos um ponto de inflexão no qual a maternidade idea-
lizada, que não corresponde às necessidades e possibilidades
de mães e crianças, desemboca numa geração desassistida.
Para a questão perene sobre o cuidado com as próximas ge-
rações, nossa sociedade responde com um modelo anacrônico
baseado na inteira responsabilização das mulheres - resposta
que já era insustentável no passado e que agora tende ao
colapso.

r
1

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