Texto vs. Gênero Textual

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Com as discussões sobre o ensino de língua a partir de meados dos anos 80

do século XX, o texto passou a ser o objeto de


ensino nas salas de aula. Isso de fato foi um avanço, já que, até então,
a análise de frases e palavras soltas era o procedimento mais adotado
no desenvolvimento de capacidades de linguagem nas aulas de língua
portuguesa.
Entretanto, isso ainda não significou um trabalho mais efetivo
com práticas sociais de uso da escrita, dado que não eram objeto de
exploração pedagógica as formas de circulação dos textos, as configurações
assumidas por eles para cumprir certas funções sociais – os
gêneros – entre outros aspectos relativos às interações efetivamente
postas em prática em sociedade.
Enquanto o capítulo 1 deste livro, “O ensino da língua escrita na
escola: dos tipos aos gêneros”, dedicou-se a historiar as mudanças
na forma de encaminhar o trabalho com a escrita na escola, este capítulo
objetiva: a) estabelecer uma importante distinção, qual seja, a de
que trabalhar com texto não significa, necessariamente, trabalhar com
Carmi Ferraz Santos
Márcia Mendonça
Marianne C. B. Cavalcante
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gêneros; b) discutir as implicações dessa distinção para o ensino de
língua materna.
1 Diferenciando texto e gênero
Como sabemos, o funcionamento da língua não se dá em unidades
isoladas como fonemas, morfemas ou palavras soltas, mas em unidades
maiores: os textos. Estes se constituem como unidade de sentido e podem
ser concebidos como “um evento comunicativo em que convergem ações
lingüísticas, sociais e cognitivas” (BEAUGRANDE,
1997:10).
Os textos, para serem compreendidos, necessitam do conhecimento do
leitor/ouvinte sobre o mundo de que falam, sobre a sociedade em que estão
inseridos e também sobre a língua em que são
escritos/falados. Por exemplo, entender uma publicidade, uma notícia
de jornal, assistir a uma novela não são atividades simples, apresentam
uma complexidade tal que, até hoje, ainda não podemos descrever esse
processo com clareza. Para a compreensão de qualquer texto, e também
para a sua produção, convergem, dinamicamente, fatores
lingüísticos, sociais e culturais.
Portanto, nessa perspectiva que adotamos, a sociointerativa, o
texto é um processo interlocutivo que vai exigir dos falantes e escritores
que se preocupem em articular seus textos conjuntamente aos
interlocutores, ou então que tenham em mente seus interlocutores
quando escrevem/ elaboram seu texto oral (MARCUSCHI, 2002). Isso
porque a criação e recepção de texto é uma atividade de co-construção de
sentidos: tanto quem produz quanto quem recebe os textos
está ativamente engajado no propósito de ser compreendido e de
compreender; em suma, há o desejo de interagir verbalmente.
Mas o texto não é uma entidade abstrata sem qualquer marca de
identidade. Os textos não são todos iguais, não só porque têm conteúdos
diferentes, mas porque se configuram como gêneros textuais
diversos; estes são entendidos como uma categoria que orienta a
atenção para o mundo social (KRESS, 2003:87, apud: MARCUSCHI,
2002). E acrescenta o autor que
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o uso da língua ... [é] um tipo de ação social, moldada pelas
estruturas sociais e práticas habituais de maior ou menor
estabilidade e persistência. Na ação social, o produtor de
texto molda a linguagem em texto-como-gênero.
Assim, nas práticas de uso da língua, todos os textos se organizam como
gêneros textuais típicos, que usamos para contextos determinados social e
historicamente, a partir das estratégias interativas
construídas na sociedade em que estamos inseridos. Tais práticas
vão requerer gêneros específicos adequados àquele contexto comunicativo.
Por exemplo, não seria apropriado usar o gênero poema para
informar o grande público sobre um acidente na estrada; nesse caso, as
notícias e reportagens seriam os gêneros mais pertinentes para cumprir
a função de fazer chegar às massas tal tipo de informação. Embora os
poemas até possam informar, este não é o seu propósito básico.
Assim, dada a diversidade de práticas sociais presentes numa
sociedade, também serão diversos os gêneros textuais nela presentes. E
estes apresentarão uma dinamicidade tanto na sua forma quanto na sua
função, isto é, os gêneros, historicamente, são entidades
que se constituem como uma forma característica. Por exemplo, quando
ouvimos a expressão: “Alô, quem fala?”, rapidamente identificamos a forma
de interlocução de um telefonema. Quanto à função,
também estabelecemos, pela tradição de uso, que o telefonema é um
gênero cuja função comunicativa é estabelecer contato entre pessoas que
se encontram em lugares diferentes/distantes. Como se percebe, dentro de
uma certa situação comunicativa, um texto se presentifica como gênero
com uma forma reconhecível socialmente e uma
função comunicativa também reconhecível na sociedade.
Mas assim como as práticas vão mudando e se re-configurando,
os gêneros textuais vão acompanhando essa mudança. Por exemplo,
os ofícios escritos há algumas décadas eram bem diferentes dos que
hoje são produzidos. Eram mais formais e prolixos, e abusavam de
extensas expressões cristalizadas, como “Sem mais que se nos apresente
para o momento, reiteramos nossos protestos de estima e consideração.”
Nos dias atuais, os ofícios são fechados com um simples
“Atenciosamente”.
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Além da mudança ao longo do tempo, os gêneros também podem
apresentar variações num mesmo momento histórico: uma campanha
publicitária, de um mesmo produto, apresenta anúncios com
feições um pouco diferentes, a depender do público-alvo (mulher,
criança, adolescente, etc.) e do suporte (outdoor, revista semanal,
jornal diário, cartaz, etc.), por exemplo. É por isso que se afirma
serem os gêneros dotados de uma plasticidade determinada pelas
situações interativas sociohistóricas. Logo, o trato dos gêneros diz
respeito ao trato da língua em seu cotidiano nas mais diversas
formas (MILLER, 1984).
Como destaca Bronckart (1999:103), “a apropriação dos gêneros
é um mecanismo fundamental de socialização, de inserção prática
nas atividades comunicativas humanas”. É a partir deles que nos inserimos
como falantes numa sociedade. Os gêneros, então, são entidades empíricas
em situações comunicativas em que predominam os aspectos relativos a
funções, propósitos, ações e conteúdos.
Diante dessa profunda relação entre os gêneros e as práticas
sociais, perguntamos:
Seria adequada uma abordagem homogênea dos textos na
escola, ou seja, um trabalho que não leva em consideração o
modo como cada gênero funciona nos contextos sociais?
Em que consiste, então, o trabalho com os gêneros textuais?
Em que se diferencia de um trabalho com textos?
Isso traz vantagens para o ensino de língua materna? Por quê?
2 Trabalho com texto x trabalho com gênero
Ao trazerem textos variados para a sala de aula, ultrapassando,
portanto, o trabalho com frases soltas, muitos professores acreditam
ter achado a solução para os desafios do letramento. Entretanto, apenas a
presença da diversidade textual na sala de aula não é suficiente;
é preciso trabalhar, de fato, com essa diversidade. Abordar efetivamente os
gêneros textuais naquilo que têm de específico supõe conhecer o
que os distingue uns do outros, isto é, as suas características.
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Enquanto certas particularidades dos textos se aplicam a um
determinado exemplo, identificando aquele exemplar e só ele, as
características genéricas se repetem nos textos agrupados sob uma
mesma denominação de gênero. Vejamos a notícia abaixo:
MST INVADE 15 FAZENDAS
Mais de 2.600 famílias de sem-terra ocuparam, ontem, 15 propriedades
espalhadas pelo Grande Recife, Zona da Mata, Agreste e Sertão.
Uma das maiores invasões é a do Engenho São João, em São Lourenço da
Mata, onde 600 famílias estão acampadas. MST promete ainda mais
ações no Estado e em todo o País.
(Jornal do Commercio, 06.03.2006)
Exemplo 1
A notícia acima tem algumas particularidades: presença do período “Mais de
2.600 famílias (...) Agreste e Sertão.”; quatro linhas de
extensão; dois períodos; uso do pronome relativo onde, ligando informações
do texto, etc. Essas especificidades dizem respeito a esse
texto e não podem ser estendidas a quaisquer notícias, ao gênero
notícia. Não é porque o Exemplo 1 apresenta tais características que
outras notícias as terão, pois são características desse texto em particular,
que não marcam necessariamente as notícias em geral.
Por outro lado, traços como a presença de um título breve, de
informações concisas para situar o leitor, da estrutura clássica da
notícia – quem – 2.600 famílias; o quê – ocuparam propriedades; quando
– ontem; onde – Grande Recife, Zona da Mata, Agreste e Sertão;
como – através de invasão; por quê – promessa do MST de invadir
todo o país – são comuns às notícias. Tais características são recorrentes
nesse conjunto de textos que, por funcionarem de forma semelhante nas
situações sociais, po7r apresentarem formas específicas
de constituição, estariam agrupados numa mesma categoria, ou seja,
num mesmo gênero. Seriam, por isso, características do gênero notícia.
Explicitando melhor algumas delas:
Função sociocimunicativa básica: informar um grande público, a respeito de
certo fato;
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Tratamento de um fato noticioso (aquele considerado relevante para virar
notícia);
Efeito de objetividade: o texto busca ser imparcial e objetivo,
por isso não se usam adjetivos valorativos, como bom, bonito,
absurdo, etc.;
Título sucinto, revelando o fato central;
Informações essenciais sobre os acontecimentos, respondendo
às seis perguntas clássicas – o quê, quem, quando, onde, como e
por quê; essas informações compõem o que se chama tecnicamente de
lead1
e vêm, freqüentemente, no início do texto.
Vejamos como tais marcas podem ser encontradas não só nesse
exemplar de notícia, mas em outros pertencentes a esse gênero.
Se analisarmos os dois exemplos de notícias abaixo, veremos que
tais características novamente estão presentes. Essa recorrência de
certas características, especialmente da função sociocomunicativa, é
que nos permite dizer que os dois textos pertencem ao mesmo gênero.
Exemplo 2
1
Perguntas básicas que caracterizam o fato narrado pela notícia para situar
o
leitor. Normalmente constituem a própria noticia quando ela é curta, ou
configuram o primeiro parágrafo dela.
A partir de hoje estão abertas as
inscrições para o concurso que vai
selecionar 50 professores para lecionar em turmas de educação especial
nas escolas estaduais. Os interessados devem se inscrever até o dia 13
deste mês no site da Covest
(www.covest.com.br). Se preferir se
cadastrar nas agências dos Correios,
o candidato terá o período de 14 a 24
de março. As vagas são para os cargos de professor intérprete da Língua
Brasileira de Sinais (Libras), de
nível médio e superior, professor instrutor de Libras de nível médio e
professor brailista de nível médio e superior. A inscrição para os cargos de
nível superior é de R$ 20. Para os de
nível médio, R$ 15. Os salários para
o nível médio são de R$ 230,34 mais
50% de gratificação, enquanto os de
nível superior são de R$ 420,30 mais
gratificação de 50%. A seleção terá
três etapas: prova objetiva, análise
de títulos e prova prática.
(Jornal do Commercio, 06.03.2006)
CONCURSO PARA PROFESSOR ESPECIAL
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Exemplo 3
Analisando os exemplos acima, encontraríamos aspectos que
nos permitem categorizá-los como notícias:
Função sociocomunicativa básica: ambas informam um grande público a
respeito de certo fato;
Fato noticioso: tanto o concurso quanto o resgate são de
interesse do grande público, mesmo que por razões distintas
(oportunidade de emprego / acidente);
Efeito de objetividade: ausência de adjetivos valorativos, etc.;
Título sucinto, revelando o fato central;
Presença do lead: o quê: concurso para professor / resgate;
quem: candidatos / náufragos e Marinha; quando: 6 a 13 de
março de 2006 / 5 de março de 2006; etc.
Como vemos, os textos acima podem ser reconhecidos como
pertencentes ao gênero notícia, pois apresentam suas características
básicas quanto à forma e quanto à função sociocomunicativa.
Nas aulas de português, quaisquer textos podem ser explorados tanto do
ponto de vista do texto quanto do gênero. Tomando o
exemplo 2, uma pergunta como “De que formas o candidato pode
inscrever-se no concurso?” seria relativa a esse texto específico,
não ao gênero notícia. Já uma questão como “As informações básicas da
notícia – lead – estão presentes nesse texto?” seria relativa
ao gênero notícia.
RESGATE APÓS 16 HORAS NO MAR
Três homens, com idades de 31, 47 e 53 anos, foram resgatados ontem
após passar quase 16 horas no mar de Santos (SP). O último contato dos
náufragos com o Iate Clube de Santos havia sido feito às 23h15 do
sábado. A lancha em que estavam afundou perto de Bertioga, distante 92
quilômetros da capital paulista. Eles foram encontrados numa região
conhecida como Ponta do Boi entre as 14h e 15h, por um helicóptero da
Marinha. Os três passam bem e já foram liberados do hospital.
(Jornal do Commercio, 06.03.2006)
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Um exemplo retirado de um livro didático (LD) de 5ª série2
ilustra
o que discutimos até agora. Na unidade “Fabulando histórias”, são
apresentadas duas versões para a fábula “A raposa e as uvas”, a de
Esopo e a de Millôr Fernandes. Como introdução ao capítulo, há uma
pequena explicação sobre o gênero: “(...) Fábula é uma narrativa,
muito simples3
, em que os personagens são animais. Ela sempre
termina com uma ‘moral da história’, isto é, com um ensinamento.”
(p. 92). Seguem os textos e as atividades de compreensão, cujas questões
ora tratam do gênero fábula, ora tratam dos textos específicos4
.
Vejamos as perguntas propostas:
1) A respeito da fábula de Esopo:
a) O texto afirma que “lindos cachos de uva” pendiam da parreira.
Por que, então, a raposa diz que elas estavam verdes?
b) A raposa, não alcançando as uvas, vai embora, Que fato posterior a esse
comprova que a raposa mentia ao dizer que as uvas
estavam verdes?
2) Compare a versão de Millôr Fernandes com a de Esopo (...)
3) Identifique a moral de cada uma das fábulas e compare-as. Em
seguida leia estas frases:
– Quem não tem despreza o que deseja;
– A mentira tem pernas curtas (...).
a) Qual delas traduz a idéia principal da moral da fábula de Esopo?
b) E qual traduz a moral da fábula de Millôr Fernandes?
c) Agora compare a moral das duas fábulas. Qual é a diferença
principal entre elas?
(p. 94)
2
CEREJA, William Roberto; MAGALHÃES, Thereza Cochar. Português:
linguagens. 5ª série. São Paulo: Atual, 1998.
3
Registramos aqui uma possível imprecisão do termo “simples”, que talvez
pudesse ser substituído por “sintética” ou “breve”.
4
Para uma discussão mais detalhada, ver o capítulo deste livro “O
tratamento da
diversidade textual nos livros didáticos de português: como fica a questão
dos
gêneros?”.
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É possível notar que os momentos de trabalho com características próprias
da fábula são o texto de abertura, que define o gênero, e
o trecho da questão 3, que pede a identificação da moral. As demais
questões exploram a compreensão dos exemplos específicos, pois
fazem indagações sobre aspectos próprios dos textos explorados,
mas que não se aplicam a outras fábulas necessariamente.
Uma situação híbrida pode ser observada na questão 3: enquanto explora a
dimensão do texto ao tentar relacionar as morais das
fábulas às frases listadas, indiretamente, toca também numa característica
do gênero, qual seja, a de que a moral expressa uma síntese do
tema central. Isso mostra, mais uma vez, o quanto as duas dimensões
– texto e gênero – são imbrincadas e indissociáveis. Para aprofundar
nossa compreensão sobre essas possibilidades pedagógicas, veremos, no
tópico a seguir, como elas têm sido efetivadas por professores da rede
pública no cotidiano da sala de aula.

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