A reforma litúrgica de Paulo VI

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Texto da aula Aulas do curso

A Batalha dos Missais

A reforma litúrgica de Paulo VI


À luz da fé que tinha o Papa Paulo VI, e da intenção declarada com que
trabalhou Annibale Bugnini, secretário da comissão que reformou a liturgia,
comece a investigar conosco o que aconteceu afinal, na década de 1960,
com a oração pública da Igreja.

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Apresentação

Chegamos à última aula deste primeiro módulo a respeito da batalha dos


missais [1]. Vimos até aqui que não está aberto a discussões o fato de
que a Missa é um sacrifício verdadeiro oferecido por um padre ordenado,
que é o sacerdote oferente. Não estamos aqui, portanto, debatendo se a
Missa é ou não sacrifício. Fizemos estas aulas apenas para esclarecer a
questão de modo que não fiquemos simplesmente repetindo que a
Missa é sacrifício, sem compreender o sentido exato dessas palavras.

Em nossa reflexão, entendemos o que está verdadeiramente em jogo, a


saber:

1. o que a Igreja Católica entende quando diz que a Missa é sacrifício; e


2. o que os protestantes rejeitam quando dizem que a Missa não é sacrifício.

E como vimos na última aula, na medida em que temos essas ideias


claras, podemos celebrar a Santa Missa com mais devoção e colher
frutos espirituais.

Eu julgo esse conteúdo de grande importância, pois ao longo desses


trinta anos em que sou padre, sempre trabalhei na formação de
sacerdotes e sei que padres e seminaristas não recebem essa teologia
que vocês estão recebendo neste curso. Mais importante do que a
discussão acerca dos missais, é dar essa clareza teológica sobre a
Missa. Porque, se eu que me formei na Universidade Gregoriana de
Roma, não estudei com profundidade essa questão da Missa como
sacrifício, nos termos que vimos até aqui, então fico imaginando que nas
outras universidade e institutos por aí a situação seja a mesma ou pior.

Alguém, ouvindo isso, pode se perguntar se eu, depois de ordenado, não


sabia que a Missa é o sacrifício de Cristo na Cruz. Sim, eu sabia. Porém,
uma coisa é aprender a frase: a Missa é a renovação do sacrifício de
Cristo na Cruz. Uma coisa é receber essa informação cultural, e outra é
realmente enxergar dogmática, histórica e teologicamente o que isso
significa. E esse nosso pequeno módulo serviu para isso: para
esclarecer, para podermos enxergar com mais profundidade a verdade
que está na Missa.

A “Missa nova” ou de Paulo VI

Agora, temos um grande problema quando falamos dos missais. E o


problema, que vamos tratar nos próximos módulos, é o que já vou
apresentar aqui de maneira esquemática.
Em 1965, quando o Concílio já havia sido concluído, o então padre e
monsenhor Annibale Bugnini, o responsável pela reforma litúrgica,
escreveu uma coisa bastante preocupante numa das edições de março
do jornal L’Osservatore Romano [2]. Ele disse, entre outras coisas, que
iria fazer todo o possível para retirar da Missa os obstáculos, as pedras
de tropeço que pudessem servir de dificuldade para os irmãos
protestantes.

Essa afirmação é bombástica, é tremenda, e está escrita. E você pode


dizer: “Padre, isso pode ser interpretado benignamente. E benignamente
quer dizer: ele queria retirar aquilo que aparentemente é obstáculo,
mantendo a substância da fé católica”.

Mesmo considerando assim, está claro que existe nisto uma espécie de
simulação. Pois enquanto se mantém a fé católica no sacrifício da Missa,
maquia-se o rito para os protestantes terem menos dificuldade.

Isso não é honesto. Estamos querendo conciliar católicos e


protestantes, enquanto seguimos professando firmemente o dogma de
Trento, ou seja: que a Missa é o santo sacrifício de Cristo realizado no
Calvário e renovado no altar de forma incruenta, por um sacerdote
legitimamente ordenado, com um sacerdócio de natureza diferente do
sacerdócio batismal, que tem o poder (que os leigos não possuem) de
consagrar o pão e o vinho.

Se continuamos a crer nisso, embora não queiramos chamar a atenção,


continuaremos fazendo uma Missa que os protestantes podem até
aceitar na aparência, mas que jamais aceitarão na essência. Essa é a
melhor maneira de dialogar? Ou, em vez disso, não seria melhor, com
clareza, tentarmos ensinar e explicar o dogma? Porque, ao fim e ao cabo,
o problema está no dogma.

Seja como for, havia uma clara intenção de Bugnini de tirar aquilo que
salienta a Missa como um sacrifício. Sua ideia era mais ou menos esta:
“Embora interiormente nós católicos continuemos a crer no sacrifício,
vamos tirar aquilo que é empecilho”. Tanto é verdade que Bugnini quis
retirar do missal aquilo que é, digamos assim, a “besta fera” para os
protestantes: a Oração Eucarística I, o chamado Cânon Romano.

Nós sabemos, como está documentado, que o Cânon Romano só se


manteve por um ato monocrático de Paulo VI. E, ao meu ver, o Papa
salvou o Missal inteiro fazendo isso, pois, com o Cânon Romano, ele
colocou a “chave interpretativa” das outras orações eucarísticas. Afinal,
se aquela deveria ser a primeira oração eucarística, logo a natureza das
outras — a segunda, a terceira e a quarta — deveria ser a mesma.

E isso é de suma importância porque se lemos as orações eucarísticas


publicadas — desde a segunda, já uma mudança considerável do Cânon
de Hipólito, à terceira e à quarta, escritas provavelmente por Monsenhor
Vagaggini —, percebemos como elas podem ser lidas em duas chaves
diferentes: quando nelas se fala de sacrifício, fala-se de uma maneira que
pode ser lida catolicamente, como sendo o sacrifício de Cristo na Cruz
renovado no altar pelo sacerdote, ou de maneira herética, como sendo
somente um “sacrifício de louvor”, o que é próprio da visão protestante.

Não há, portanto, nas demais orações eucarísticas, a explicitação


necessária de que a Missa é verdadeiramente sacrifício. Essa
explicitação está no Cânon Romano.
Desse modo, as orações eucarísticas II, III e IV, como as outras que
vieram depois, devem ser lidas como sendo da mesma natureza que a
primeira, dizendo essencialmente a mesma coisa. Trata-se de uma chave
interpretativa.

E isso é importante porque a Missa que nós celebramos hoje, com o


Missal de Paulo VI, deve possuir a mesma intenção, deve ter a mesma
natureza da Missa que se celebrava antes. Caso contrário, estaríamos
diante de uma ruptura e o sacramento não valeria mais, a Missa não
valeria mais.

Não obstante, ainda posso perguntar: “E se Paulo VI não tivesse


preservado o Cânon Romano, o missal inteiro iria por água abaixo, e a
Missa não seria válida?”

Nada disso. Primeiro, o missal valeria porque não foi escrito apenas por
Bugnini; ele foi escrito por um consilium (conselho) composto por
pessoas que tinham fé católica. E, segundo, porque o próprio Papa Paulo
VI, que promulgou o missal, tinha fé católica e cria verdadeiramente na
Eucaristia.

Vejamos, por exemplo, que no mesmo ano de 1965, ainda durante o


Concílio, o Papa Paulo VI promulgou uma encíclica chamada Mysterium
Fidei, rejeitando a visão de alguns teólogos como Schillebeeckx,
Schoonenberg e até Karl Rahner. Nessa encíclica, Paulo VI afasta-se da
ideia de abandonar a linguagem da Igreja sobre a Missa, isto é, deixar de
falar de “transubstanciação” para falar em “transignificação” ou
“transfinalização”. O Papa renuncia a isso completamente e diz com
clareza qual é a fé da Igreja sobre a Eucaristia, não somente com relação
à transubstanciação, mas também com relação ao sacrifício e à
renovação do sacrifício. Desse modo, o Papa que promulga o missal e
está confessando a sua fé na Encíclica Mysterium Fidei é também o
autor do missal.

Portanto, independentemente da intenção de Bugnini ou de qualquer


outro, que não podemos adivinhar, o Missal vale e a prova disso é a fé do
Papa que o promulgou e a fé que está no Cânon Romano, cujos séculos
atestam a sua validade.

É necessário conhecer o dogma

Em todo caso, vemos claramente a necessidade de conhecer o dogma


da maneira como foi apresentado aqui nestas aulas. Porque enquanto o
Missal de Pio V enfatizava, a todo momento, o fato de que o padre
celebra o mesmo sacrifício de Cristo no Calvário, renovado de forma
incruenta, o Missal de Paulo VI não o faz.

Essa intenção dita por Bugnini ex professo não pode, contudo, ser para
nós uma objeção à validade da Missa. Sua validade, como vimos,
repousa em outros princípios. Mas deve-se ter um caveat, um cuidado: já
que o Missal de Paulo VI foi feito daquela maneira, os padres celebrantes
e os fiéis que participam precisam fazer um esforço maior para trazer a
intenção dogmática à celebração, a intenção verdadeira de renovação
do sacrifício de Cristo. É necessário que haja um esforço, o que não é
necessário quando se celebra o Missal de Pio V.

Aqui, pois, vemos com clareza a utilidade desse módulo que estamos
concluindo.
A validade da Missa

Mas agora vem outra pergunta: “Padre, e o sacerdote que não sabe nada
disso que o senhor explicou? Não sabe que a Missa é a renovação do
sacrifício na Cruz, não estudou essa teologia que o senhor está
explicando, será que quando ele celebra a Missa de Paulo VI, a Missa
dele é inválida?”

A minha opinião em relação à validade das Missas é tradicionalíssima —


e posso provar — e também tranquilizadora: honestamente, acho que a
maior parte das celebrações com o Missal de Paulo VI, mesmo as
celebradas por padres claramente heréticos, são Missas válidas.

Explico: saiamos um pouco do caso da Missa e vamos a um outro


sacramento para ficar claro o que é o ensinamento tradicional da Igreja
em relação à intenção do sacerdote celebrante ou à intenção do bispo
ordenante.

Sabemos que os luteranos, e com eles todo o resto das denominações


protestantes, não crêem que o Matrimônio seja um sacramento
instituído por Jesus. Portanto, a intenção deles ao celebrar um
casamento é completamente viciada.

Ainda assim, quando um casal protestante vai ao cartório e celebra a


união civil, a Igreja sempre a reconhece como sacramento. Se dois
protestantes, ambos batizados na igreja luterana, vão ao cartório e
celebram o casamento civil, e acontece de um deles vir à Igreja Católica
querendo, depois do divórcio, casar-se com um católico, a Igreja dirá:
“Não”. E dirá “não” porque estas pessoas já estão casadas.
Esta pessoa pode até argumentar que era “só casamento civil”. Mas a
Igreja reconhece como um casamento válido. Por que se os dois
protestantes quiseram, se tiveram a intenção de se casar, então, o
sacramento aconteceu.

Vejam, portanto, que se trata de uma pessoa com conceito


completamente herético de casamento. Mas porque houve um “ato de
vontade” de realizar um casamento, a Igreja reconhece como um
sacramento válido, apesar da ideia equivocada que a pessoa tenha sobre
o assunto.

Alguém pode rebater: “Padre, esse é o sacramento do Matrimônio, que é


uma instituição natural. Não é assim com os outros sacramentos”.

É assim com os outros também. Por exemplo: o Batismo. Para a maior


parte dos protestantes, o Batismo é simplesmente uma manifestação
externa da fé. Eles, de forma geral, não acham que o Batismo faça
alguma coisa na pessoa. Para eles, o que faz é a fé, a fé de quem recebe.

Por isso, o conceito que eles têm de sacramento é completamente


errado. Mas a Igreja reconhece a validade do sacramento do Batismo
realizado pelos protestantes — supondo que se utilizem da matéria e da
fórmula corretas para o sacramento. E isto porque, quanto à intenção,
basta que o ministro queira realizar aquilo que foi instituído por Jesus,
tenha a intenção de fazer aquilo que os cristãos fazem, mesmo com uma
intenção genérica.

Se perguntarmos para qualquer protestante o que é o Batismo, ele


fatalmente vai dar uma explicação herética. Todavia, ele acha que está
fazendo o que a Igreja faz, acha que está fazendo o que os Apóstolos
faziam, acha que está fazendo aquilo que Nosso Senhor instituiu.

Em outras palavras, essa pessoa, no ato de vontade da sua intenção,


quer fazer o que a Igreja sempre fez, embora ela tenha uma ideia errada
do que a Igreja sempre fez.

Há quem possa dizer que isso é muito laxo. Porém, se o laço fosse muito
estreito nessa questão, o que seria da história da Igreja?

Na Idade Média, por exemplo, quando havia grandes confusões


teológicas, o que os bispos achavam que estavam fazendo quando
impunham as mãos e ordenavam os padres? Ora, se tivessem a intenção
mínima de fazer o que a Igreja sempre fez, fazer o que todos os bispos
fazem quando ordenam padres, era válido. Embora pudessem ter ideias
teológicas doidas. Do contrário, nós já teríamos perdido a sucessão
apostólica.

E uma das provas de que nós não perdemos a sucessão apostólica,


apesar de tudo, são os milagres eucarísticos. Milagres eucarísticos
esses que acontecem tanto no missal antigo, como no Missal de Paulo
VI. Por esse motivo, não tenho dúvida da validade das Missas e de que
nós não perdemos a sucessão apostólica, que os bispos são
verdadeiros bispos, que os padres são verdadeiros padres e que as
Missas são verdadeiras Missas.

Que essas Missas possam ser celebradas com mais piedade, com mais
devoção, com mais fé, com mais dignidade etc., estamos de acordo.
Vamos trabalhar para isso.
Por esse motivo estou fazendo esse curso, para que Nosso Senhor pare
de ser ofendido. Pois, quando você sabe o que está fazendo, tem ideia
clara e distinta de que o padre está renovando o sacrifício no Calvário, é
evidente que o “palhacinho fazendo mímica na Missa” não tem mais
lugar. É evidente que danças, jograis e o circo dentro da Missa não têm
lugar. Porque a Missa não é um mero ato de pedagogia.

O que dizem os manuais sobre a intenção do ministro?

Tenho aqui o Manual de Teologia Moral do padre redentorista Josef


Aertnys (discípulo fidelíssimo de Santo Afonso Maria de Ligório) — mas
esta mesma posição você vai encontrar em tantos outros manuais
antigos, unânimes neste ponto.

Ele pergunta qualis intentio requiratur et sufficiat ratione obiecti


intentionis, “qual a intenção requerida e suficiente como objeto da
intenção”. Ou seja, qual é o objeto que o padre, o ministro, deve ter em
mente? E diz como conclusão: Huiusmodi intentio reperiri potest in
hæretico vel infideli, “Esse tipo de intenção pode ser encontrado num
herético ou infiel”. Em seguida, dá o exemplo que eu dei acima: Unde
hæretici contrahentes matrimonium Sacramentum efficiunt quamvis
existiment non esse Sacramentum, “Daí que os hereges que contraem
matrimônio façam o sacramento, embora estimem que não seja
sacramento [o que eles fazem]”.

Essa é a sentença da Igreja quanto à intenção do ministro do


sacramento. Basta que haja a intenção de fazer “o que faz a Igreja
instituída por Cristo, ou o que Cristo instituiu, ou o que os cristãos fazem”
— quod facit Ecclesia a Christo instituta vel quod Christus instituit, vel
quod Christiani faciunt [3].

Um testemunho pessoal

Eu quero concluir dando um testemunho pessoal. Não tenho certeza da


acurácia histórica do que vou narrar, mas esta é a minha opinião sobre o
Monsenhor Bugnini.

Bugnini tinha a intenção de fazer uma Missa que fosse aceitável pelos
protestantes. Contudo, tão logo o missal foi promulgado, aconteceu algo
de que Paulo VI não gostou, e o monsenhor foi mandado como núncio
em Teerã. Foi claramente um castigo, alguma coisa errada ele fez.

Nós iremos ver no terceiro módulo, quando falarmos da história do


Missal de Paulo VI, que houve por parte do Bugnini certa manipulação na
confecção do missal. O fato, porém, é que os livros litúrgicos
promulgados por Paulo VI trazem certa lacuna em termos de rubricas,
em termos de especificação de como se vai executar aquele rito.

Quando se celebra Pio V, por exemplo, está dito o que se deve fazer com
as mãos. Não há espaço para uma criatividade litúrgica, para inventar.
Tudo está previsto: o que o acólito faz, o que o padre faz. Tanto é verdade
que havia pequenas variações culturais, e em pequenos detalhes. Eram
coisas pequenas.

Basicamente, um fiel que ia à Missa na Itália se sentia perfeitamente em


casa indo à Missa na França ou indo à Missa no Brasil ou indo à Missa
nos Estados Unidos ou no Japão. A Missa era a mesma. Já o Missal de
Paulo VI, com orientações básicas nas rubricas, deixa ainda bastante
espaço e de modo que não se sabe exatamente como se deve executar
aquele ato, nos detalhes. Por essa razão, pode-se inventar uma coisa
para o bem ou para o mal, uma coisa devota e uma coisa menos
adequada.

O fato é que Paulo VI, depois, retirou Bugnini e colocou Monsenhor


Virgílio Noè no lugar.

Monsenhor Noè era fortemente contrário ao retorno do Missal de Pio V. E


eu o compreendo; eu era da mesma posição. Pode ser que seja
ingenuidade minha, mas consigo compreender essas pessoas que eram
contra o retorno ao missal antigo.

Para a escola litúrgica de Monsenhor Virgílio Noè, devíamos executar o


Missal de Paulo VI com todo o decoro, dignidade e, digamos assim,
respeito que poderíamos ter, ainda se houvesse aquelas lacunas
deixadas por Bugnini.

Desse modo, sem querer entrar na polêmica da ruptura — eu sei que


houve uma ruptura horrível —, Virgílio Noè tinha a mentalidade de pegar
o Missal de Paulo VI e vivê-lo da melhor maneira possível [4]. Foi por isso
que ele, enquanto bispo secretário da Congregação do Culto Divino,
trabalhou para publicar o Cerimonial dos Bispos.

Eu me lembro disso, da época em que era seminarista novo e estava na


Filosofia. Após a publicação do Cerimonial dos Bispos, que só havia em
latim, nós, no seminário em Campo Grande (MS), passamos horas
traduzindo as cerimônias do latim. Eu ensinei ao pessoal e, assim, nós
começamos a colocar em prática aquilo que estava no Cerimonial dos
Bispos para incrementar a falta de rubricas do Missal de Paulo VI.
Nós olhávamos as fotografias de Roma, pois não tinha internet naquela
época, e olhávamos cada posicionamento, cada movimento. Nós víamos
aquilo tudo e tentávamos copiar as cerimônias papais da melhor
maneira, com aquela dignidade, com aquele respeito. Então, com esses
detalhes todos que o Monsenhor Virgílio foi acrescentando através do
Cerimonial dos Bispos, nós não sentíamos a necessidade de retornar ao
Missal de Pio V.

Monsenhor Virgílio tinha formação em História da Igreja. Assim, nós


estávamos convencidos de que o Missal de Paulo VI era mais próximo à
Missa celebrada por São Gregório Magno, por São Leão Magno etc., sem
aqueles acréscimos que vieram ao longo dos séculos.

Tínhamos a impressão de que estávamos celebrando uma coisa mais


pura, que estávamos fazendo aquilo que o próprio Concílio de Trento
tinha pedido, ou seja, a restitutio da Missa ad normam Sanctorum
Patrum, ou seja, “à norma dos Santos Padres”.

A mentalidade era esta (atenção: eu estou explicando a mentalidade, e


não estou dizendo que penso assim hoje): a nossa Missa tem de ser mais
parecida com aquela de São Gregório Magno, com aquela de São Leão
Magno. Portanto, todas essas coisas barrocas que foram acrescentadas,
todas essas coisas medievais, deveriam ser retiradas. Tudo aquilo que
fosse acréscimo, por exemplo, do renascimento carolíngio, nós
olhávamos como uma degradação. Para nós, a liturgia romana autêntica
era aquela dos sacramentários antigos de Roma. Os sacramentários que
já vinham com acréscimos da reforma carolíngia etc., tudo isso era visto
como degradação, como acréscimos posteriores.
Hoje, porém, vejo que há coisas mais complicadas, e consigo enxergar
isso muito por causa do ministério e do pensamento de um teólogo
chamado Joseph Ratzinger (Bento XVI). Ele foi quem me acordou do meu
sono arqueológico. Fui formado nesse arqueologismo patrístico-litúrgico
de Virgílio Noè, a quem eu sou muito agradecido, mas Ratzinger, com o
seu livro Introdução ao Espírito da Liturgia e vários outros escritos dele,
me acordou para o fato de que há algumas coisas dentro da reforma
litúrgica de Paulo VI que precisam ser corrigidas [5].

Assim, fica a disputa, o que temos de fazer? Restaurar o rito antigo ou


fazer uma reforma da reforma? Essa é a disputa.

Seja como for, é importante que a gente entenda que há coisas a ser
corrigidas. Por exemplo, um defeito que eu não notava: eu não enxergava
o quanto a Missa de Paulo VI é antropocêntrica. De fato, existe ali um
excesso da presença do sacerdote. Podemos dizer que, de certa forma,
é uma espécie de performance do padre, enquanto a Missa
tradicionalmente não era isso. O padre não precisava aparecer tanto,
inclusive ficava até “de costas” para o povo, ou “de frente para Deus”.

Enfim, fica o meu testemunho e sei que levantei muitas questões que
precisam ser resolvidas [6], e é por isso que teremos dois outros
módulos para esclarecer melhor as ideias.

Conclusão

Como vamos sair dessa situação embaralhada na qual a Igreja se


encontra, com esses dois ritos, a forma ordinária e a forma extraordinária
do rito romano, o Missal de Paulo VI e o Missal de Pio V? Como vamos
sair dessa confusão?
Isso tudo vai depender da prudência dos fiéis cristãos e da nossa
paciência histórica. Mas uma coisa é certa: há coisas que não
precisamos mais debater, que já estão decididas, e essa é a razão de ser
desse módulo. Trata-se de enxergar que existe um dogma e esse dogma
fundamental é aquele em cima do qual está edificada a Igreja e o santo
sacrifício da Eucaristia, o sacrifício do Calvário renovado na Santa Missa
pelos ministros ordenados que receberam a sucessão apostólica [7].

Isso não é questionável e precisa estar bem sólido, precisa estar bem
presente na forma de celebrar, na forma de realizarmos esse ato do qual
brota toda a vitalidade da Igreja: Ecclesia de Eucharistia, a Igreja vem da
Eucaristia, e ali está contido todo o bem da Igreja.

Nota

1. Este nosso curso será dividido em três módulos: o primeiro mais teológico-
dogmático, pois trata daquilo que mais importa, aquilo que está em
questão quando falamos do sacramento da Eucaristia. O segundo será
dedicado à história do Missal de Pio V e o terceiro à história do Missal de
Paulo VI.

2. Cf. Annibale Bugnini, “Le ‘variationes’ ad alcuni testi della Settimana Santa”.
In: L’Osservatore Romano, 19 mar. 1965, n. 65, p. 6; cf. também A reforma
litúrgica (1948-1975). Loyola: 2018, pp. 126-127. Ainda no ano de 1965,
publicou-se uma reforma da Missa Tridentina com algumas orações em
vernáculo. Outras, que eram silenciosas, passaram a ser ditas em voz alta.
O Missal de Paulo VI, contudo, só foi publicado em 1969.

3. Josef Aertnys, Theologia Moralis juxta doctrinam S. Alphonsi Mariæ de


Ligorio, 1887, t. II, p. 6. Outro exemplo comum nos manuais de casuística:
você está na prisão e não é batizado; é um catecúmeno, e vai ser morto. Se
não houver nenhum padre para batizá-lo, mas somente seu companheiro
de cela, que é ateu e não é batizado, o que você pode fazer? Você o ensina.
Diz para ele derramar água na sua cabeça e pronunciar: “Fulano, eu te
batizo em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo”, com a intenção de
fazer o que os cristãos fazem. “Mas eu não acredito nisso”, pode dizer o
ateu. Ora, não precisa acreditar, só precisa ter a intenção de fazer o que os
cristãos fazem. Essa é a intenção mínima.

4. Eu me lembro de quando o Monsenhor Virgílio Noè pregou um retiro aos


cônegos da Basílica de São Pedro e depois esse retiro foi publicado. Numa
das palestras, ele dizia que todo padre deveria ter um pequeno caderno no
qual anotasse os defeitos da sua própria Missa, para depois corrigi-los.
Sem dúvida, esse homem não tinha a cabeça das invencionices litúrgicas.
Ele claramente queria viver o Missal de Paulo VI como continuidade e não
como ruptura.

5. Nos próximos módulos, veremos que a liturgia romana teve um


crescimento orgânico, um desenvolvimento orgânico ao longo dos séculos
e que, realmente, aquilo que Paulo VI fez foi um unicum na história da Igreja,
um negócio que ninguém nunca fez e que é até de se questionar se um
Papa tem autoridade para fazê-lo. Afinal, nunca havia acontecido na história
da Igreja de um Papa pegar a liturgia recebida, colocá-la quase toda abaixo,
juntar alguns elementos e reconstruí-la quase do zero.

6. É importante frisar que em toda essa disputa, há, sim, gente mal
intencionada, que quer destruir a fé da Igreja, mas há também gente como
eu era, com pensamento muito bem intencionado, mas com as ideias
litúrgicas um pouco fora da realidade, um pouco arqueológicas. Apesar
disso, em momento nenhum celebrei a Missa hereticamente, em momento
nenhum quis celebrar a Missa de Paulo VI como uma liturgia protestante.

7. A finalidade principal deste curso, com efeito, não é fazer uma guerra de
purismo litúrgico. É claro, temos o ideal litúrgico, e não estou fazendo
pouco caso da dignidade da liturgia celebrada pelos santos. Não é isso.
Mas estamos num caos tão grande, tão tremendo, que se a gente
conseguir fazer com que os padres celebrem com mais dignidade, com
mais consciência e mais devoção, com mais clareza do que estão
celebrando, isso já será uma coisa extraordinária.
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