ESCREVER NA PEDRA, ESCREVER NO PAPEL

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CONHECIMENTOS E LUGARES: ANÁLISES ETNOGRÁFICAS

©CACO XAVIER

Representação de petroglifos localizados na Escola Indígena Baniwa


e Coripaco Pamaali (EIBC – Pamáali), médio rio Içana
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PARTE II

PARTE II

CONHECIMENTOS E LUGARES:
ANÁLISES ETNOGRÁFICAS

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ESCREVER NA PEDRA, ESCREVER NO PAPEL 1

Stephen Hugh-Jones, Universidade de Cambridge

Neste capítulo, examino a relação entre diferentes modalidades in-


dígenas de discurso e música e várias formas iconográficas. Os discursos
e músicas incluem histórias narrativas, cantos rituais, benzimentos xamâ-
nicos, cantos de dança e música instrumental, todos eles direta ou indire-
tamente associados ao que os antropólogos costumam chamar de “mito”.
A iconografia inclui não apenas formas obviamente gráficas, como petro-
glifos, pinturas de casas, padrões de cestaria, mas também características
da paisagem, compreendidas em termos gráficos como marcas ou traços
dos corpos de seres ancestrais e como signos de suas atividades, confor-
me foram se movendo pelo mundo.
Meu foco será dado nos povos falantes de línguas arawak e tukano
da região do alto rio Negro. Em alguns contextos, observadores de fora
e de dentro enfatizam as diferenças entre os Arawak e os Tukano, des-
tacando ainda outras diferenças e subdivisões internas a cada um des-
ses blocos linguísticos, que distinguem povos a partir de critérios como
território, especialização ecológica, língua, relações matrimoniais, hierar-
quia, status, origens ancestrais etc. Não obstante, em outros contextos,
os Arawak e Tukano do alto rio Negro estão bem cientes, como seus an-
tropólogos, do compartilhamento de muitas características culturais e da
constituição de um só sistema sociocultural, aberto e dotado de identida-
de própria. Devo me concentrar aqui mais nas semelhanças do que nas
diferenças, e esta é uma das razões pelas quais meu foco será dado mais
na forma do que nos conteúdos. Minha preocupação não é com os de-
talhes de histórias ou cantos particulares, mas sobretudo com a maneira
pela qual a mito-história é estruturada e memorizada, e com a maneira
pela qual esta pode se manifestar também em diferentes formas mate-
riais, não verbais. Interesso-me em como formas verbais e não verbais se
relacionam e operam juntas enquanto sistema integrado, em como isso
pode nos ajudar a compreender as ideias indígenas de tempo e história,

1 Este capítulo reproduz, de forma modificada, alguns materiais apresentados pela primeira vez na “Confe-
rência Magna” que abriu o Congresso Internacional de Antropologia e Historia, “Memoria Amazónica y los
paises andinos”. Gostaria de registrar meus agradecimentos aos seus organizadores e patrocinadores pelo
convite generoso e à Fundação Rainbird pelo financiamento generoso responsável pelo início do presente
trabalho sobre os cantos tukano.

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e em como formas orais e gráficas tradicionais perpassam documentos
escritos mais recentes.
Este capítulo divide-se em duas partes. Na primeira, “Escrever na
pedra”, exploro alguns dos sistemas mnemônicos gráficos e não gráficos
que sustentam várias formas de “mito” ou história indígena na região do
alto rio Negro. Esses sistemas mnemônicos correspondem ao que tenho
em mente quando me refiro a eles como “escrita”. Meu argumento é o
de que “mito” e “ escrita” devem ser compreendidos a partir de um pon-
to de vista indígena. Também sugiro que, mais do que insistir em distin-
ções rápidas e rígidas entre sociedades com ou sem escrita, ou perguntar
se petroglifos, pinturas de casas, padrões de cestaria e outras formas de
inscrição são ou não “verdadeira escrita”, é mais interessante e produtivo
alargar o campo da investigação ao examinar como o obviamente gráfico
e o aparentemente não gráfico, as formas arquitetônicas ou espaciais tra-
balham em conjunto com tradições orais.
Na segunda parte, “Escrever no papel”, pretendo explorar breve-
mente a continuidade entre essas formas mais velhas, tradicionais de “es-
crita” e a produção mais recente de livros, mapas, diagramas e calendários
indígenas. Esses documentos escritos estão sendo produzidos no contex-
to de programas de pesquisa e etnoeducação aliados à revitalização e
reivindicação do território e cultura tradicionais por organizações indí-
genas na área do alto rio Negro. Em um certo sentido, esses documentos
escritos são bem novos: apareceram há cerca de 30 anos e são produzidos
por membros da geração mais jovem, muitos dos quais foram educados
por missionários salesianos e javerianos que outrora dominaram o Uau-
pés. Por outro lado, no entanto, eles são bastante velhos: não apenas são
produzidos em colaboração com xamãs, cantadores, dançadores e outros
conhecedores seniores mas, de muitas maneiras, reproduzem também
formas de conhecimento que existiram muito antes da chegada dos es-
trangeiros ou do advento da educação missionária.
O trabalho que aqui apresento está ainda em progresso, é ao mes-
mo tempo incompleto e intencionalmente especulativo. Em vez de for-
necer respostas definitivas, meu objetivo é lançar questões, estimular o
debate, e sugerir caminhos para pesquisas futuras.

ESCREVER NA PEDRA

Petroglifos, escrita e sistemas de memória


Quando exploradores e cientistas europeus adentraram pela primei-
ra a região do alto rio Negro, uma das coisas que mais os impressionou fo-
ram os rituais secretos Jurupari, que ocorriam nas imensas malocas ou ca-
sas cerimoniais com fachadas fartamente decoradas. Conforme viajavam

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CONHECIMENTOS E LUGARES: ANÁLISES ETNOGRÁFICAS

ao longo dos rios, esses visitantes surpreendiam-se também com figuras


misteriosas gravadas nas pedras que emergiam das águas de suas cacho-
eiras. A densidade de petroglifos na área do alto rio Negro é, com efeito,
provavelmente maior do que em qualquer outra parte da Amazônia. Er-
manno Stradelli, explorador italiano que visitou o Uaupés nos anos 1880,
e Theodor Koch-Grünberg, etnógrafo alemão que trabalhou longamente
entre os povos falantes de línguas arawak e tukano da área logo na virada
do século XX, fizeram, ambos, registros apurados dos muitos petroglifos
com os quais se deparavam (Stradelli 1900, Koch-Grünberg 1907/2010).
No mesmo período, também começavam a especular sobre o sentido dos
signos enigmáticos que encontravam em torno desses petroglifos.
Quando Stradelli perguntou aos seus guias indígenas o que que-
riam dizer esses signos, eles responderam-lhe em termos de narrativas
ou mitos tradicionais; provavelmente mencionaram a “escrita”, pois nas
diferentes línguas indígenas da região, as palavras para desenhos feitos
por pessoas – pintados, gravados ou trançados – e para marcas e padrões
presentes nos corpos dos animais são também aplicadas para a escrita,
e frequentemente traduzidas como “escrita” quando os índios falam em
português ou espanhol. Mas quando as pessoas do alto rio Negro afir-
mam, como o fazem sempre, que sua história está “escrita nas pedras”,
essa afirmação não significa que eles traduzem simplesmente ideias indí-
genas em categorias estrangeiras; ela revela, isso sim, uma compreensão
sofisticada do que a escrita é e faz.
O próprio Stradelli estava bem convencido de que os petroglifos
eram de fato uma forma de escrita, como já haviam concluído certos
viajantes que o antecederam e que identificavam em outras partes da
América Central e do Sul formas pictográficas e ideográficas a formas de
escrita. Stradelli lançou, assim, a ideia de que os petroglifos do Uaupés
eram registros históricos de migrações antigas, escritas em um alfabeto
ideográfico esquecido; aparentemente, os tais migrantes haviam deixado
mensagens em lugares estratégicos para guiar seus seguidores. Stradelli
alegou que um petroglifo que ele supôs ser a representação de ovos de
cobras significava “vocês encontraram muita comida aqui”, ao passo que
uma imagem das próprias cobras conteria a mensagem “preste atenção,
há perigo por aqui” (ibidem: 462).
Koch-Grünberg leu o relato de Stradelli, mas não se convenceu
com suas interpretações. Como Stradelli, ele estava ciente da alegação
dos povos locais de que havia uma conexão íntima entre petroglifos e
mitos. Também observou pertinentemente que muitos dos petroglifos
que viu apresentavam uma semelhança impressionante em relação às
figuras e desenhos que as pessoas pintavam nas fachadas de suas casas,
gravavam em seus maracás e trompetes de cerâmica ou trançavam em

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Escrever na pedra, escrever no papel

suas cestas. No entanto, na sua opinião, petroglifos certamente não con-


sistiam em uma forma de escrita. Além disso, e apesar do que lhe con-
taram seus companheiros indígenas, ele enfatizou que tampouco eram
realmente relacionados aos mitos – eram apenas passatempos. Segundo
Koch-Grünberg, se os petroglifos eram tipicamente encontrados em ca-
choeiras, isso ocorria porque as pessoas eram obrigadas a parar ali e es-
perar enquanto transportavam sua carga e carregavam suas canoas para
descer ou subir rios. Ao parar nas cachoeiras, elas comiam e descansavam
e, dispondo de muito tempo livre, acabavam por gravar petroglifos para
seu divertimento.
Este já velho debate entre Stradelli e Koch-Grünberg sobre se os
petroglifos são ou não uma forma de escrita encontra eco, mais recente-
mente, no trabalho de Fernando Santos Granero, Writing History into the
Landscape: Space, Myth and Ritual in Contemporary Amazônia [Escrever a
história na paisagem: espaço, mito e ritual na Amazônia contemporânea
(1998)]. Tomando como exemplos os Yanesha do piemonte peruano (fa-
lantes de uma língua arawak) e os povos arawak do alto rio Negro, Santos
Granero debruça-se sobre a prática arawak de inscrever sua história na
paisagem. Eles o fazem às vezes por meio de petroglifos, mas também
por meio de referências constantes a localizações geográficas tanto em
seus mitos de criação como nas histórias orais que conectam memórias
históricas a locais de casas antigas, rotas de migração, palcos de batalhas,
bem como locações de outros eventos. Santos Granero usa a noção de
“escrita topográfica” para se referir a esses diferentes modos de marcar a
história na paisagem, deixando claro, contudo, que a escrita topográfica
não pode ser considerada uma forma verdadeira de escrita, tal como de-
finida por Goody (1993: 17): uma “ligação sistemática entre som e signo”
que permite “a transcrição exata de uma afirmação linguística”.
Santos Granero continua, sugerindo que a escrita topográfica entre
os povos amazônicos pode ter sido derivada de seus contatos com socie-
dades mais complexas da região andina. Isso implica que a ideia de “es-
crita”, nesse sentido mais amplo, teria sido lida sob o filtro de fontes como
aquelas que se referem ao quipo (cordão com nós) dos Inca, usado para
manter registros, e seu sistema ceque, que associava linhas de locais sa-
grados com eventos calendáricos, ambos aproximações mais confiáveis
a uma “verdadeira escrita”. Parece que, por trás dessa sugestão de uma
possível origem andina para as práticas amazônicas, reside também a su-
gestão de que os povos amazônicos não poderiam ter inventado, por eles
mesmos, tais esquemas. A arqueologia recente da Amazônia pré-históri-
ca sugere, contrariamente, que eles bem poderiam tê-lo feito. Veremos a
seguir exemplos tanto de quipos amazônicos como de arranjos lineares
de locais sagrados com ressonâncias calendáricas.

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CONHECIMENTOS E LUGARES: ANÁLISES ETNOGRÁFICAS

Em vez de fazer distinções radicais entre sociedades com ou sem


escrita ou entre escrita menos ou mais “verdadeira”, seria mais útil alargar
o campo de investigação examinando a relação mais geral entre tradições
orais e as várias formas de iconografia. Sigo aqui Carlo Severi (2003: 77),
que escreve: “A fala e a imagem articuladas conjuntamente em uma técni-
ca da memória, notadamente no contexto de enunciação ritual, constitui
a alternativa que prevaleceu, em muitas sociedades, sobre o exercício da
escrita”.2 Tomando como exemplos os desenhos da cestaria yecuana, os
livros sagrados kuna, os mastros totêmicos da costa noroeste da América
do Norte e o quipo andino, Severi (2009) evidencia como sistemas ico-
nográficos funcionam enquanto sistemas de memória associados a uma
forma especial de linguagem, os cantos rituais cuja estrutura consiste na
listagem repetitiva de nomes e várias outras formas de paralelismo. Tais
sistemas de memória operam por estabilizar uma relação entre sistemas
ordenados de conhecimento e conjuntos ordenados de elementos gráfi-
cos. A discussão de Severi encaixa-se muito bem ao caso do alto rio Ne-
gro, e penso que pode gerar alguns insights interessantes. Para desenvol-
ver este ponto, devo antes fazer algumas considerações sobre as histórias
orais no alto rio Negro. Usarei aqui termos muito genéricos, simplificando
um quadro de fato muito complexo.
Afora a diferença linguística, os Arawak e Tukano do alto rio Negro
também se distinguem por suas origens. Os Arawak compartilham uma
tradição de origem que remonta à cachoeira de Hípana no rio Aiari, ao
passo que os Tukano compartilham uma que remonta a jusante, no rio
de Leite ou lago de Leite, tendo nas cachoeiras de Ipanoré, no Uaupés,
um local comum de emergência. Apesar dessas diferenças, em outros
aspectos, as histórias orais destas duas populações compartilham, de
modo impressionante, muitas características, tanto que, em termos bem
gerais, podemos falar de uma tradição narrativa compartilhada no alto
rio Negro, distribuída entre grupos diferentes, cada qual conferindo à sua
tradição um viés especial, produzindo a sua própria versão particular e a
interpretando de acordo com sua identidade específica. Um exame dos
livros publicados por autores indígenas na Coleção Narradores Indígenas
do Rio Negro bastaria para tornar evidente esse ponto.
Tomada em conjunto, essa tradição oral comum costuma ser or-
denada cronologicamente em três diferentes ciclos, que se sucedem no
tempo. O primeiro lida com origens primordiais e tem como locação o
espaço-tempo indiferenciado de um universo identificado a uma única

2 No original: “La parole et l’image articulées ensemble en une technique de la mémoire, notamment dans
le contexte de l’énonciation rituelle, constituent l’alternative qui a prévalu, dans biens des sociétés, sur
l’exercice de l’écriture”.

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Escrever na pedra, escrever no papel

maloca – a região de Hípana no caso dos Arawak. O segundo ciclo lida


com a figura de um ancestral divino que recebe um número variado
de nomes em diferentes línguas tukano. Os Arawak o chamam Kuwai e,
na língua geral ou nheengatu, a língua de contato e comércio outrora
utilizada em todo o alto rio Negro, é mais conhecido como Jurupari.
Devo usar aqui esse último nome. As histórias narram a concepção e
o nascimento de Jurupari, contam como ele comeu meninos iniciados
por conta do castigo pela sua desobediência, como ele foi queimado
até a morte, como as flautas sagradas foram criadas de uma palmeira
que brotou de suas cinzas, e como sua mãe (conhecida pelos Arawak
como Amáru), suas irmãs e amigas roubaram esses instrumentos musi-
cais dos homens. Em uma série de eventos que conduzem à expansão
e abertura do cosmos, resultando no seu tamanho atual, as mulheres
escapam com as flautas, perambulando por entre diferentes lugares e
deixando traços de sua passagem nos petroglifos das pedras. Os ho-
mens as perseguem e eventualmente recuperam suas flautas. O terceiro
ciclo diz respeito, então, à criação e emergência dos verdadeiros hu-
manos, tratando de como eles se dividiram em unidades étnicas no-
minadas conectadas por laços de casamento e troca, e da formação e
dispersão de seus clãs constituintes. Os feitos de vários chefes clânicos
e as histórias de migração e guerra intergrupal passam aqui ao primeiro
plano; a história acaba com a chegada de traficantes de escravos, mis-
sionários, seringueiros e outros agentes da sociedade branca colonial.
Em resumo, vista de modo genérico e do ponto de vista de alguém de
fora, a passagem do primeiro ao terceiro ciclo pode ser descrita como
uma passagem do mito à história.
Essas narrativas, e sobretudo (mas não exclusivamente) aquelas
que aludem ao Jurupari e ao roubo pelas mulheres das flautas que tra-
zem o seu nome, associam-se, no contexto dos rituais de passagem, aos
cantos rituais entoados por especialistas, xamãs e cantadores. Os Arawak
do alto rio Negro referem-se a esses cantos como málikai; os grupos tuka-
no usam termos diversos: keti oka, em barasana, niromakañe em tuyuka,
etc. Os cantos málikai ou keti oka funcionam como benzimentos que os
xamãs usam para proteger pessoas submetidas a esses ritos: os benzi-
mentos tornam mais seguras a comida que elas ingerem e as atividades
a que são expostas. Esses mesmos benzimentos podem ser também so-
prados silenciosamente na comida, na bebida, no fumo, na coca e em
outros veículos ingeridos ou aplicados sobre o corpo. Em seus cantos e
benzimentos, cantadores e xamãs, viajando em seu pensamento, seguem
as rotas percorridas por Jurupari e pelas mulheres que roubaram as flau-
tas, listando os nomes de espíritos e forças espirituais associados a locais
sagrados nomeados, dispersos pela extensão dos diferentes rios.

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CONHECIMENTOS E LUGARES: ANÁLISES ETNOGRÁFICAS

No mais das vezes, o que é relatado nos cantos e benzimentos


pode voltar a ser contado sob a forma de histórias narrativas. Narrativas
e cantos/benzimentos são, assim, transformações uns dos outros: as nar-
rativas empregam um discurso mais cotidiano e partem de conjuntos de
histórias conectadas, que operam sob um sentido semântico mais óbvio,
ao passo que cantos/benzimentos estão mais próximos da poesia, da me-
táfora, da métrica e da música, envolvendo tipicamente a listagem de no-
mes, lugares, espécies, artefatos etc. O que é crucial para meu argumento
é o fato de que cantos e benzimentos estão associados a várias formas de
iconografia, não apenas a petroglifos e à projeção e inscrição na paisa-
gem, mas também a desenhos de cestaria, casas e pinturas de casa – algo
bem próximo ao que Severi tem em mente.
Em um trabalho muito interessante sobre esse assunto, Hill mostra
que os málikai arawak, ou cantos e benzimentos rituais, situam-se em al-
gum ponto entre a narração estritamente verbal e a música pura, cantada
ou tocada em instrumentos. Hill emprega os termos “mitificação” e “musica-
lização” para enfatizar o jogo ou tensão dinâmica entre os aspectos categó-
ricos, classificatórios e semânticos mais convencionais e os aspectos musi-
cais, rítmicos e poéticos mais livres, que são explorados nos cantos málikai.
O processo ritualmente potente da musicalização usa características dinâ-
micas da música para transformar classificações semânticas em um mundo
expansivo de pessoas nomeadas, lugares, espécies e objetos; no processo
menos potente da mitificação, as categorias semânticas da linguagem são
usadas para cercear a musicalidade do discurso em um modo de cantar to-
nal, ritmicamente estável e relativamente regular. A distinção entre “mitifi-
cação” e “musicalização” corresponde à distinção wakúenai entre “amonto-
ar nomes em um único lugar” e “perseguir nomes”. Se o “perseguir nomes”
explora o potencial do lado poético, musical da linguagem para expandir
ou cruzar as categorias e identidades semânticas demarcadas, o “amontoar
nomes” cerceia esse potencial dinâmico, fluido ao localizar a diversidade
dos objetos e espécies naturais em um conjunto relativamente estável de
categorias genéricas (Hill, 1993: 20-23, 1996: 152-3).
Muito disso pode ser dito também para os Tukano – e aqui devo usar
o exemplo dos Barasana do rio Pirá-Paraná, que conheço melhor (ver figu-
ra 1). A categoria barasana bükü~ra keti, literalmente “histórias dos velhos”,
é normalmente aplicada para mitos narrados sob a forma de contos, mas
pode ser usada também para fazer referência a outras narrativas históricas,
a genealogias e a histórias sobre os feitos de gerações prévias e ancestrais
de clãs passados. No outro extremo, a palavra basa abrange todos os can-
tos, danças e música instrumental. A categoria keti oka, que deve ser tradu-
zida como “discurso poderoso e sagrado, pensamento ou conhecimento
esotérico”, aplica-se, particularmente, a cantos rituais e, nesse sentido, é

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Escrever na pedra, escrever no papel

algo equivalente ao málikai arawak. Em sentido mais amplo, keti oka apli-
ca-se não apenas aos cantos ou benzimentos xamânicos, mas também a
cantos de dança, aos cantos latentes nas melodias das flautas Jurupari, e a
objetos rituais, petroglifos e locais sagrados, todos eles evocando comentá-
rios exegéticos estendidos ou filiações ancestrais. Cantos, música, objetos,
desenhos e lugares podem ser todos equiparados a seções relevantes de
narrativas orais e, assim, servem como veículos ou manifestações de co-
nhecimento ou pensamento (ver também Hugh-Jones, 2009).

NARRATIVA, CANTO E MÚSICA

MITIFICAÇÃO -–––––––––––– MUSICALIZAÇÃO

a) Arawak (Wakuénai) [Hill 1993]


Narrativa Málikai Música instrumental
(cantos rituais)

b) Tukano (Barasano)
Bükura Keti Keti oka Música instrumental
narrativa mítica, cantos rituais, cantos
história oral de dança, música de
Jurupari, sítios sagrados,
petroglifos, objetos sagrados
Fig. 1

Os cantos rituais tukano operam ao longo de dois eixos: um deles


é estruturado com referência a uma sequência de entidades nomeadas, a
mais importante delas sendo os locais sagrados identificados com malo-
cas ou casas, em sua maioria localizadas ao longo do curso dos rios (ver
também Wright, 1993: 18). Um canto é, portanto, como uma viagem que
costuma seguir o curso linear de um rio, ramificando-se para subir ou des-
cer igarapés e por vezes passando de um rio para o outro. O outro eixo de
um canto envolve sequências associadas com um local específico, apresen-
tando-se como que perpendicular ao primeiro. Essas sequências consistem
em listas de espíritos, ancestrais, espécies naturais e objetos rituais nome-
ados, alguns dos quais representados nos petroglifos gravados nas pedras
dos locais sagrados. Meus dois eixos corresponderiam à distinção espacial,
segundo Hill, entre “amontoar nomes” e “perseguir nomes” (ver figura 2)3.

3 Os “lugares” do ato de “amontoar nomes em um único lugar” não são simplesmente geográficos. Eles
podem ser também “lugares” no cosmos, na sociedade humana e no ciclo de vida individual, e “lugares”
musicais, como tons, tempos, timbres, ritmos e volumes – ver Hill (1993:23; 1998: 153).

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CONHECIMENTOS E LUGARES: ANÁLISES ETNOGRÁFICAS

OS DOIS EIXOS DOS CANTOS RITUAIS

X : Lugares (’casas’) em sequência (’perseguindo nomes’ Hill 1993)

X ----- X ----- X ----- X ----- X ----- X ----- X

Y: Sequências em lugares (‘amontoando nomes’ Hill 1993)

Nomes (ancestrais, animais, plantas, espítitos, etc.)


ou
Eventos (mito, história oral)

X ----- X ----- X ----- X ----- X ----- X ----- X ----- X


Y Y Y Y Y Y Y Y
: : : : : : : :
Y Y Y Y Y Y Y Y
: : : : : : : :
Y Y Y Y Y Y Y Y
: : : : : : : :
Y Y Y Y Y Y Y Y
: : : : : : : :
Fig. 2

Algo semelhante aplica-se às narrativas míticas tukano: à medida


que a narrativa se desenrola, a ação passa de um lugar a outro, tendo
cada lugar como cenário para um ou mais diferentes episódios. Nesse
sentido, contar um mito também envolve uma viagem de um lugar a ou-
tro. Os Barasana usam o termo ~ba, “caminho”, para se referir às sequên-
cias narrativas, sequências de lugares ou linhas de pensamento. ~Ba é um
classificador nominal que se aplica a qualquer caminho estreito e longo,
e a linhas, cipós ou objetos que se assemelham a um fio. Viagens seguem
esses “caminhos” ou linhas, e um rio (riaga) pode ser referido também
como um oko ~ba ou “caminho d’água”. Os episódios do mito que se de-
senrolam em lugares particulares envolvem seres e itens que também fi-
guram em cantos e benzimentos xamânicos, então como listas de nomes;
os nomes destes seres e objetos também figuram em cantos de dança e,
desse modo, estas evocam os episódios do mito ao qual se referem.
Um exemplo de tudo isso pode ser encontrado na relação entre a) a
história da morte de ~Rabe, uma águia canibal que ~Waribi, o herói cultural,
mata com sua zarabatana e dardo venenoso4; b) a sequência da letra para

4 Ver S. Hugh-Jones (1979: 282, M4.H) para uma versão sumária desta história.

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Escrever na pedra, escrever no papel

~Rabe basa, a “dança de Rame”, uma peça cantada e dançada durante reu-
niões rituais na região do Pirá-Paraná; c) benzimentos xamânicos relativos
ao veneno curare; d) cantos relativos aos instrumentos Jurupari e outros
objetos sagrados dos Tatuyo, “gente de céu” e, por isso parentes de ~Rabe.
Na história, ~Waribi acerta ~Rabe com um dardo venenoso; deli-
rando, ~Rabe voa sobre a terra, percorrendo diversos lugares para, even-
tualmente, cair morto sobre o solo. Ao voar, gotas de sangue caem de
seu corpo dando origem aos diferentes cipós e plantas usados para fazer
curare, conhecidos por ocorrer em diferentes locais nomeados na região.
Cai então o seu bico, dando origem ao ~Igeaya ou “Rio do Bico”, o rio Tí,
afluente do Uaupés, localizado acima da cidade colombiana de Mitú. Por
fim, seu corpo inteiro cai no chão: seus ossos dão origem aos instrumen-
tos Jurupari, e seu crânio, a duas cuias sagradas que contêm a coca e o
rapé, todos pertencendo aos Tatuyo.
~Rabe basa, a “dança de Rame”, é o canto que Rame cantou ao mor-
rer; as poucas palavras identificáveis de seus versos aludem a lugares,
itens e locações, sempre associados à sua morte lenta. Essa sequência de
versos, cada um intercalado por uma sessão de canto ritual, marca a sequ-
ência temporal da reunião ritual, na qual o canto é entoado e dançado. Ao
recitar o benzimento para o veneno curare, o xamã viaja em sua mente,
valendo-se dos rios como dispositivo mnemônico e contando cada fon-
te conhecida de curare. Em cada lugar por onde passa, lista os nomes,
propriedades, grupos a que pertence e outros atributos relevantes das
plantas, proferindo uma série de injunções performativas, que tanto for-
talecem como diminuem e removem os efeitos do veneno, a depender
do propósito do benzimento. Temos também ~Rabeü ou ~Rabe bota, o
“morro / poste de ~Rabe”, um sitio sagrado no Caño Tatú afluente do Pirá-
-Paraná, onde ~Rabe empoleirou.5 Finalmente, as flautas e as cuias sagra-
das dos Tatuyo evocarão a história de Rame, assim como os benzimentos
e cantos proferidos, quanto ao uso de objetos, aludem aos eventos e lu-
gares da história. Nesse sentido, lugar, objeto, nome, narrativa, benzimen-
to, canto e música podem ser todos considerados como diferentes partes
ou manifestações de uma mesma e única entidade.
Narrados, os mitos são portanto mais descritivos; são também sem-
pre marcados como discurso indireto, e considerados menos potentes.
Canto ritual, benzimento e canto de dança são opacos e alusivos, são
diretamente identificados com o falante e considerados como formas
verbais transformativas, mais potentes, podendo agir sobre o mundo.
Por sua qualidade transparente, mais direta, os mitos falados funcionam

5 O fato que os morros são “postes da casa” (bota) sublinha a transposicão mais geral entre casa/maloca e
paisagem (ver abaixo).

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CONHECIMENTOS E LUGARES: ANÁLISES ETNOGRÁFICAS

como chaves semânticas e interpretativas para a poesia alusiva e conden-


sada dos cantos e benzimentos, oferecendo pistas para compreender as
taxonomias xamânicas dos seres no mundo e dos poderes e perigos com
os quais estão associados. Enfim, os lugares, os locais sagrados e as ma-
locas ancestrais que figuram em todas essas formas narrativas e musicais
têm uma função mnemônica. É possível inserir informação em um lugar
ou casa ao ensinar ou explicar o seu significado. Isso é o que acontece
quando pessoas ouvem mitos, especialmente quando um ou mais mitos
são usados para explicar o sentido e o propósito por trás de um canto,
benzimento ou petroglifo. Ao mesmo tempo é possível extrair informa-
ção de um lugar quando este se presta como um dispositivo mnemônico.
Isso é o que acontece quando os contadores de histórias usam a memó-
ria de uma sequência de lugares para estruturar sua narrativa ou quando
cantadores vão de um lugar a outro, de um verso a outro conforme pros-
segue seu canto. Estes processos de inserir e extrair informação seriam
equivalentes ao que entendemos, respectivamente, como inscrever e ler.
Muito disso aplica-se também aos objetos. Aqueles encontrados
em uma maloca, especialmente os objetos sagrados que assumem um
papel proeminente no ritual, são tipicamente cobertos por densas ca-
madas de significado. Essas camadas vêm dos mitos, dos comentários
narrativos e das seções de cantos e benzimentos que são recontados em
relação aos objetos envolvidos. Nesse sentido, a informação vai sendo in-
serida nos objetos à medida que os indivíduos amadurecem e adquirem
conhecimento e sabedoria. Para aqueles que adquiriram tal conhecimen-
to e sabedoria, é como se objetos sagrados fossem rodeados por um halo
verbal invisível; e, com efeito, quando se ingere yagé, aparecem rodeados
por uma aura visual colorida e cintilante. Objetos podem ser, portanto, le-
vados a falar e evocar memórias, e o mesmo se aplica a diferentes formas
de iconografia.
Uma conclusão para tudo isso é que, de um ponto de vista indíge-
na, o que os antropólogos chamam de “mito” aparece de fato sob uma va-
riedade de formas, e que a nossa categoria “mito”, com suas implicações
de narrativa falada, encaixa-se com dificuldade às compreensões indíge-
nas. Esse ponto torna-se claro em Malikai: el canto del malirri, de Manuel
Romero Raffo. Como escreve Raffo: “limitar el mito a la oralidade es sólo
conocer una de las múltiples formas del relato” (2003: 20). Para os Coripa-
co (arawak), mitos aparecem também como cantos, música e petroglifos,
do mesmo modo que os Barasana os incluiriam sob a categoria keti oka.
Raffo escreve que a distribuição dos petroglifos ao longo dos rios “deslin-
da una geografia en secuencias narrativas en forma de mitos graficos”, “un
alphabeto de raudales”, “compuesto por marcas y formas que sobre las
rocas rememoran la marcha de Iñapirriuli, de Dzuli o de Kuwai” (idem: 21).

148
Escrever na pedra, escrever no papel

Para resumir: vimos, até então, que os locais sagrados são também
locais de memória que funcionam como um dispositivo mnemônico, que
muitos desses locais são marcados por petroglifos, e que cantos estrutu-
rados em relação a locais sagrados podem fazer também referência explí-
cita a esses petroglifos. Para dar um exemplo: cantadores barasana sabem
que quando seu canto chega a ~Yedodi, certa cachoeira e importante
“casa de transformação” (~basa yuhiri wii) no rio Pirá-Paraná, eles devem
mudar a melodia do canto de um tom ascendente repetitivo e cadente
para uma melodia mais plana que desce ao fim de cada estrofe.
Para além das principais características lineares de sua paisagem – os
rios, frequentemente cortados por cachoeiras e quedas – os povos do alto
rio Negro também fazem uso de vários outros dispositivos mnemônicos.
O formato usual da maloca – fileiras paralelas de colunas e uma grade de
vigas longitudinais e laterais em intersecção no telhado – fornece de ime-
diato um teatro da memória. Os desenhos pintados na fachada da maloca
ou trançados na cestaria e repetidos em muitos dos petroglifos são outras
manifestações desses dispositivos. Munidas de papel e caneta, as pesso-
as reproduzirão espontaneamente esses desenhos, oferecendo seções de
cantos como um comentário explicativo à medida que traçam seus dedos
ao longo de fileiras de pontos ou zigags repetidos ou ondulações. Apro-
priadamente, ukari, o termo para desenho, padrão ou para as marcas em
um corpo de animal, é também empregado como termo para “escrita”.
O que temos aqui é um sistema no qual elementos iconográficos
espacialmente ordenados – petroglifos ao longo dos rios ou elementos
repetidos em desenhos em fachadas, cestaria e petroglifos – operam em
conjunto com outros elementos não-iconográficos que estão “diante de
nossos olhos” na paisagem – pedras não marcadas porém impressionan-
tes, cachoeiras, montanhas e outras características naturais – ou no es-
paço das casas – as fileiras de colunas e a intersecção das vigas. Severi
decerto considera essa ênfase nos esquemas arquiteturais ao focalizar
as técnicas europeias de memória (ver Yates, 1966), mas estes teatros da
memória dificilmente figuram em sua discussão sobre os exemplos ame-
ríndios. Não é de modo simples que a arquitetura ou os elementos geo-
gráficos, iconográficos ou não iconográficos, operam juntos como partes
separadas e complementares; no pensamento indígena eles são efetiva-
mente a mesma coisa.6
Cachoeiras, seixos, afloramentos rochosos, montanhas que figu-
ram nos cantos são eles mesmos casas ou malocas, moradas de espíritos
e lugares de origem de seres humanos; alguns deles são também sítios

6 Referindo-se aos Yecuana, Guss (1998: 168) escreve: “O cesto deriva muito de seu poder metafórico de sua
relação estrutural com a casa”.

149
CONHECIMENTOS E LUGARES: ANÁLISES ETNOGRÁFICAS

arqueológicos e de assentamentos antigos. Além disso, uma vez que a


maloca é identificada com o mundo e que o mundo é visto como uma
casa, decorre que montanhas são colunas de casas, afloramentos rocho-
sos, as vigas horizontais delas, e as cachoeiras, suas portas. Seguindo essa
lógica, petroglifos nas pedras das cachoeiras são de fato os desenhos nas
fachadas das malocas; em alguns casos eles efetivamente repetem esses
desenhos e são explicitamente identificados como pinturas de casa. ~Bi-
nowü wii ou “La cueva de las golondrinas” na região do Pirá-Paraná é um
bom exemplo: a caverna é a casa de ~Robi ~Kubu e um petroglifo gravado
no chão da caverna representa a pintura na fachada da casa dela.
Enfim, cestaria, rios e petroglifos estão diretamente conectados.
Ipanoré, o nome da cachoeira que compõe o local de origem de todos os
tukano, quer dizer “cesto”; na língua tukano, as cachoeiras são chamadas
thompa duri, “pedras, cestos” (Ribeiro 1995: 93), um nome também dado
a uma pilha imensa de pedras no centro da grande cachoeira de Iauaretê
ou “Casa do Jaguar”, localizada logo rio acima. As pedras-cesto são aqui os
cestos que o ancestral Diroá deu aos jaguares, donos do local, na primeira
troca cerimonial ou dabucuri.7 De modo mais geral, os desenhos sinuosos
na cestaria do alto rio Negro são reminiscentes de rios semelhantemen-
te sinuosos e, como observa Ribeiro (ibidem: 93-96), muitos petroglifos
representam cestos inteiros ou repetem desenhos de cestaria. A legenda
para uma fotografia de um petroglifo representando um cesto, reprodu-
zida no livro de Romero Raffo (2003: 269), destaca as funções mnemôni-
cas de petroglifos e desenhos de cestaria. Um fragmento diz o seguinte:
“Petroglifo: Caminos del malirri, recorrido del malirri para aprender partes
de la historia. Raudal Venado”. Há portanto evidência linguística para uma
conexão mais genérica entre cestos e cachoeiras: nas línguas dos Barasa-
na e seus vizinhos tukano, o mesmo classificador nominal –bo aplica-se
a ambos. Assim temos wühü-bo e biheri-bo como os nomes dos grandes
cestos rasos usados no processamento de mandioca brava, ao passo que
~Seda bo ou “Cachivera Piña” (Cachoeira Abacaxi) é o nome da grande
queda d’água próxima às cabeceiras do rio Pirá-Paraná.
Os sistemas de memória estão baseados em princípios psicológi-
cos gerais de ordem e saliência: relações ordenadas entre sequências de
linguagem ritual e elementos gráficos correspondentes dão ao sistema
seu poder lógico, ao passo que a saliência desses elementos gráficos con-
fere ao sistema seus poderes expressivos (Severi 2007: 26-7; 2009: 478).
Para que tais sistemas operem os elementos precisam ser memoráveis:
algo impressionantes ou surpreendentes, eles devem capturar o olho ou
engajar a imaginação. O que lhes dá qualidade? Severi sugere que é a

7 Geraldo Andrello, comunicação pessoal

150
Escrever na pedra, escrever no papel

qualidade ambígua, ou quimérica, dos elementos iconográficos nos sis-


temas de memória que faz deles ao mesmo tempo visualmente salientes
e memoráveis. Ele define como quimérica “toda imagem que, ao designar
um ser plural por meio de uma única representação, mobiliza suas partes
invisíveis por meios puramente óticos ou por um conjunto de inferên-
cias” (2011: 29)8. Dito de maneira mais simples: uma quimera é um animal
especial, cujo corpo combina parte de dois ou mais animais normais di-
ferentes, e uma imagem quimérica, aquela que representa tal ser plural,
especial e paradoxal.
Isso funciona para os petroglifos? Alguns deles representam de
fato seres plurais e poderiam ser apresentados como quiméricos nesse
sentido, mas isso não é verdadeiro para todos eles; tampouco a saliência
puramente visual dá conta das características das pedras e cachoeiras nas
quais os petroglifos estão gravados. Temos de prestar atenção em outras
coisas. No ambiente amazônico onde a pedra é geralmente escassa, ro-
chas e cachoeiras nos rios tornam-se salientes pela sua própria natureza.
A presença de petroglifos faz as pedras ainda mais salientes, mas rochas
não marcadas, por seu tamanho ou arranjo impressionante, podem ser
tratadas como dotadas de mesma significância.9 Soma-se a isso o fato de
que a água corrente faz as pedras acusticamente salientes. Como o baru-
lho do trovão e o som gritado dos trompetes jurupari o som das cachoei-
ras é ~übüari oka, o “discurso do universo”, outro tipo de keti oka.
Pedra e rochas andam juntas com outras substâncias duráveis e du-
ras, como ossos e certos tipos de madeira que têm conotações ancestrais.
Assim, os instrumentos Jurupari, feitos de madeira dura de palmeira, são
identificados aos ossos de ancestrais imortais. Como explica um homem
tariano de Iauaretê, os primeiros seres foram gente de pedra “não porque
fossem feitos de pedra, mas porque a duração de sua vida é indetermina-
da” (Iphan, 2007: 56). Enfim, conforme passam as estações, a água dos rios
sobe e forma cachoeiras, e os petroglifos que representam espíritos e an-
cestrais parecem emergir delas assim como, nas histórias de origem tukano,
os ancestrais emergiram das águas para se tornarem seres humanos. Esse
padrão sazonal de emergência e submersão também repete a revelação e
ocultação periódica das flautas e trompetes Jurupari. Cada ano, assim que
termina a estação seca, as chuvas se intensificam e as águas sobem, os ins-
trumentos Jurupari são retirados de seus esconderijos subaquáticos, são
exibidos na casa, e então novamente escondidos. Muitos dos petroglifos
pareceriam representar os instrumentos Jurupari, mas aos olhos indígenas

8 No original: “Toute image qui, désignant à travers une seule représentation un être pluriel, mobilise, par
des moyens purement optiques ou par un ensemble d’inférences, ses parties invisibles”.
9 Ver também Xavier, neste volume.

151
CONHECIMENTOS E LUGARES: ANÁLISES ETNOGRÁFICAS

eles não são representações; eles são a coisa real. Petroglifos são Jurupari
em uma outra forma.10 Isso explica a necessidade de desviar o olhar para
não encará-los. Por isso mesmo, para os Tukano, os seus ancestrais anacon-
da não chegaram meramente pelos rios; os rios são aqueles ancestrais e
foram criados conforme as anacondas se movimentavam.
Este material conduz-me a uma conclusão mais ampla: petroglifos
e cachoeiras não são apenas uma forma de história materializada; eles
sintetizam modos diferentes de pensar o tempo. Petroglifos são os traços
dos ancestrais impressos nas pedras quando essas pedras eram ainda jo-
vens e moles; eles são aspectos ou dimensões do passado imutável que se
intrometem no presente mutável e, portanto, fornecem uma ponte entre
os dois tempos. Estendidas em sequências lineares ao longo dos cursos
dos rios como contas em um cordão, cachoeiras indicam a passagem do
tempo em narrativas e cantos, bem como em viagens, histórias e proces-
sos de transformação aos quais se referem essas narrativas e cantos. Nos
desenhos indígenas, as cachoeiras são representadas como uma suces-
são de casas, as paragens da canoa anaconda ancestral, cujos passageiros
saíram para a terra seca a fim de dançar, e então voltaram novamente
para o fundo das águas à medida que viajavam rio acima, movendo-se de
leste a oeste (ver figura 3). Mais uma vez, ancestrais deslocavam-se entre
a água e a terra assim como petroglifos emergem das águas e então de-
saparecem, e assim como as águas sobem na viagem que vai de leste a
oeste, viagem de transformação que conduz do espírito ao humano e do
passado ao presente. Ao recapitular em seus cantos essa viagem rio aci-
ma, os cantadores comparam a ascensão de seus ancestrais pela cadeia
de cachoeiras à sua escalada de uma série de degraus que conduzem da
água à terra.

TEMPO E GENEALOGIA

Debrucei-me, até então, principalmente sobre a mito-história, mas


recordemos que, em sua disposição como ciclos cronologicamente orde-
nados, as narrativas mito-históricas do alto rio Negro deslizam facilmente
do mito à história. Cachoeiras, casas e locais oferecem a base para pensar
o tempo humano e a história comum, assim como para a construção de
genealogias. Hoje em dia todo antropólogo sabe – ou pensa que sabe –
que os índios amazônicos não têm genealogias. Gow discorreu sobre esse
assunto (2002:148): “Se há algo que aprendemos sobre os povos indíge-
nas da Amazônia é o fato de que genealogia e descendência partilhadas
não são certamente um assunto que lhes interessa. Mesmo em poucas

10 Ver Xavier, neste volume.

152
Escrever na pedra, escrever no papel

partes da Amazônia indígena onde encontramos grupos de descendên-


cia, estes têm pouco a ver com a genealogia propriamente dita”. De fato,
e como Andrello (2006) mostrou entre os Tariano de Iauaretê, os povos
do alto rio Negro, especialmente os membros de clãs de alta hierarquia,
©FELICIANO LANA

Fig. 3 - Casas de Transformação ao longo do rio Tiquié: lugares de parada da Cobra-


-Canoa. [Fonte: Umúsin Panlõn Kumu & Tolamãn Kenhíri (1995). Antes o mundo
não existia. p. 79.]

153
CONHECIMENTOS E LUGARES: ANÁLISES ETNOGRÁFICAS

podem produzir genealogias bem extensas. As longas narrações tukano,


que começam com a criação dos primeiros seres (equivalentes aos Kuwai
e Amáru dos arawak) e então passam para a vinda das pessoas na canoa
anaconda ancestral, terminam tipicamente com um relato sobre a criação
e dispersão subsequente dos clãs constituintes do grupo ao qual o narra-
dor pertence – novamente, tudo isso pode ser verificado claramente nos
livros da Coleção Narradores Indígenas do Rio Negro. Esses relatos contam
sobre a fundação de diferentes malocas, ou como os grupos-de-parentes-
co-baseados-em-malocas e comunidades mudavam de um lugar a outro,
e como se dividiam ao longo do tempo conforme a população crescia e
as gerações se renovavam. Para as pessoas que vivem em malocas e, com
o passar dos anos, abandonam suas antigas casas para construir novas, a
cronologia de suas vidas é marcada por uma série de casas e por desloca-
mentos periódicos rio acima ou rio abaixo. É portanto bem natural que as
memórias se conectem com os lugares em que essas pessoas viveram e
que genealogias sejam estruturadas como uma sequência de casas – isso
reflete a experiência diária.
Escrevendo contra a visão de uma suposta uniformidade nas prá-
ticas culturais relativas à morte e ao pós-vida, Chaumeil (2007) enfatiza a
diversidade de atitudes e práticas entre diferentes povos ameríndios – al-
guns sofrem para esquecer de seus mortos, mas nem todos. Referindo-se
às flautas sagradas e ao interesse na ancestralidade entre povos como
os Yagua e os Tukano, Chaumeil (ibid: 272) destaca “um deslocamento
de uma temporalidade cíclica para uma concepção mais cumulativa de
tempo – não verdadeiramente histórica no sentido de que costumamos
entender, mas outra em que os elementos dispõem-se em camadas um
sobre o outro. Em outras palavras, um tipo indígena de ‘cronologia’”. Con-
cordo com ele, no entanto, gostaria de acrescentar dois comentários. Em
primeiro lugar, em histórias orais que tratam de guerras e invasões inter-
grupais, bem como do contato com traficantes de escravos, seringueiros
e outros agentes da sociedade branca, vemos de fato uma concepção
de história bem semelhante ao sentido ocidental ou não-indígena.11 Em
segundo lugar, na mito-história xamânica da região do alto rio Negro o
que vemos é menos o deslocamento de um tempo cíclico para um tempo
cumulativo e mais uma aproximação ou fusão de ambos de modo que a
sucessão linear de gerações é alinhada com a sucessão circular e repe-
titiva das estações. O rio linear com suas águas que sobem e correm de
modo sazonal ou cíclico é uma imagem potente desta fusão. A reconci-
liação desses dois modos de tempo é também um tema dominante dos
mitos e rituais relativos ao Jurupari.

11 Ver também S. Hugh-Jones (1988).

154
Escrever na pedra, escrever no papel

LINHAS, CÍRCULOS E NÚMEROS

As metáforas lineares e circulares para o tempo usadas pelos povos


ocidentais e não-indígenas conduzem-me a uma consideração dos ob-
jetos lineares e circulares que os Tukano usam para dar forma a noções
abstratas de tempo e espaço, bem como da razão pela qual uma discus-
são sobre canto, memória e escrita deveria incluir também uma reflexão
sobre números e formas de contagem. Posso apenas oferecer aqui algu-
mas muito breves observações que foram concebidas para acrescentar
dimensões suplementares ao material discutido nas páginas anteriores.
Permitam-me começar com o quipo andino, um dos exemplos oferecidos
por Severi (2009). Já vimos que cachoeiras em rios, efetivamente pontos
em uma linha, são usados como dispositivos mnemônicos ou quipos no
alto rio Negro, mas também encontramos quipos reais na Amazônia. Fei-
to de cordões com nós e por vezes incorporando estatuetas, penas, ossos,
e outros objetos, esses quipos amazônicos servem para representar se-
quências de tempo, pontos em viagens ou várias operações sequenciais,
ou para indicar séries ordenadas de cantos, sequências rituais ou uma su-
cessão de eventos passados. Os Yagua usam tais cordões com nós para
memorizar sequências rituais e cantos, os últimos detalhando histórias
clânicas, genealogias e histórias de guerras (Chaumeil 2005).
Nunca presenciei o uso de tal cordão com nós ou quipo entre os
povos tukano, mas ouvi falar de especialistas dançadores (baya) que en-
sinavam outros a memorizar sequências de cantos de dança usando cor-
dões de contas com cores alternadas. Nos mitos do noroeste amazônico
sobre as origens da noite – portanto, do tempo propriamente dito – há
também algumas referências de pessoas desfazendo nós em cordões
de contas para pôr o tempo em movimento, para contar sequências de
contas de modo a lembrar sequências musicais que medem o tempo,
e para colocar e tirar ornamentos corporais como um dispositivo mne-
mônico para sequências temporais.12 Esses quipos amazônicos, cordões
com nós ou com contas coloridas, devem portanto ocupar um lugar ao
lado das cachoeiras, petroglifos, casas e cestos acima discutidos. Como
observa Chaumeil (2007: 272 e passim), tais dispositivos implicam uma
ideia particular de cronologia, de tempo cumulativo e de ligações entre
os vivos e seus ancestrais. Como se pode esperar, o uso desses quipos
amazônicos é frequentemente (ainda que não exclusivamente) associa-
do a uma forma particular de sociedade na qual a consciência genealó-
gica e alguma forma de cálculo “unilinear” está presente – tal é o caso
do alto rio Negro.

12 Ver, por exemplo, Diakuru & Kisibi (1996: 94).

155
CONHECIMENTOS E LUGARES: ANÁLISES ETNOGRÁFICAS

Passemos agora aos cestos. Se o cordão linear e o quipo de contas


podem ser usados para registrar e memorizar vários tipos de sequên-
cias temporais, cestos pareceriam fornecer imagens prontas do tempo
linear e cíclico. A cestaria do alto rio Negro aparece tanto na forma cir-
cular da bandeja plana, ou balaio, como na forma alongada e linear do
tipiti. Balaios circulares também integram elementos lineares, ora na
forma das tiras de arumã13, da qual são feitas, ora nos desenhos criados
a partir dessas tiras; e já vimos que os elementos lineares e repetidos
desses padrões podem ser usados como dispositivos mnemônicos. Em
barasana, o tipiti é chamado ~hido-bü, um termo composto por ~hido,
palavra para “anaconda”, mais -bü, um sufixo classificador aplicado para
todo tubo fechado e alongado. Para os Barasana, o tipiti é identificado
com a mudança de pele da anaconda, com a anaconda-canoa ancestral
e com sua transformação como ancestral ou divindade ~Kii Rükü ~Hido,
Anaconda-Maniva. O beiju (pão de mandioca) colocado em seu cesto
redondo é também o corpo enrolado da Anaconda-Maniva. Enrolados
ou estirados, anacondas e cestos consistem, portanto, em outros modos
de pensar sobre linhas e círculos.
De modo mais geral, podemos notar que as línguas tukano agru-
pam objetos aparentemente dessemelhantes em classes genéricas de
acordo com a sua forma, distinguindo classes por sufixos nominais. Esses
classificadores nominais predispõem os falantes de tais línguas a usar ob-
jetos do dia-a-dia como protoformas para pensar princípios mais abstra-
tos de tempo, espaço e organização social. Boa parte da monografia de C.
Hugh-Jones (1979) é dedicada a uma discussão extensa sobre as linhas e
círculos evidentes na organização do corpo, da maloca e do cosmos, que
funcionam como princípios organizacionais na sociedade tukano. Já vi-
mos como ~ba, “linha, objeto linear”, aproxima os rios lineares e a cestaria
linear do tipiti das sequências temporais de narrativas e cantos; a seguir,
e em um contexto mais moderno, veremos diagramas e cestos circulares
representando ciclos sazonais e calendários ecológico-culturais.
Citando Guss (1990), Severi explica que o mito yecuana é mais fre-
quentemente evocado como uma lista finita de espíritos e lugares nome-
ados em cantos rituais do que contado como uma narrativa conectada, e
que esses cantos são evocados pelos padrões trabalhados nas bandejas
de cestaria. Isso também é verdadeiro para os Arawak e Tukano do alto
rio Negro e lança nova luz sobre a razão de a produção de cestos ser uma
parte tão importante da educação dada aos jovens durante o período de
reclusão, que sucede os rituais de iniciação associados ao Jurupari (ver
Hugh-Jones 2009). Ao aprender a fazer cestos, os iniciados aprendem as

13 Ichnosiphon sps.

156
Escrever na pedra, escrever no papel

habilidades que definem um marido competente e que o permitem fa-


zer o equipamento que possibilita à sua esposa produzir a comida. Ao
mesmo tempo, conforme aprendem a fazer cestos, os iniciados também
aprendem mitos e cantos. Essa é uma razão pela qual, de maneira mais
ampla, há fortes ligações entre o conhecimento da cestaria e o conheci-
mento xamânico (Ribeiro, 1995: 90-92).
Quipos e cestos conduzem-me, ademais, ao problema da conta-
gem. Não se pode fazer cestaria ou padrões de cestaria sem contar os
fios, e os cantos que os cestos evocam envolvem também a contagem
de listas de lugares e os poderes espirituais a eles associados. Em por-
tuguês e espanhol, o verbo “contar” aplica-se igualmente à enumeração
de objetos e à narração de histórias. Do mesmo modo, o verbo barasana
~koiare, literalmente “ver ou examinar quantidade”, aplica-se igualmente
à contagem de objetos, dias, gerações, lugares e listas, e aos cantos, adi-
vinhações e benzimentos, nos quais o cantador ou xamã deve assegurar
que sejam enumerados todos os lugares, espíritos, espécies, objetos etc.
relevantes, e que estes estejam na ordem certa.14 Tudo isso sugere que as
ideias indígenas sobre forma geométrica, número e ordem devem ser in-
cluídas como uma parte integral das tradições orais, da iconografia e das
técnicas de memória que estamos considerando, algo que já foi sinaliza-
do nos ciclos tripartites da mito-história do noroeste amazônico, como
destacamos anteriormente.
Comecemos com as mãos. O modo de contar dos Tukano opera na
base cinco, com a contagem alternando-se entre o desequilíbrio e o equi-
líbrio: um dedo, um par, um par mais um, dois pares e, então, uma mão,
algo completo mas potencialmente desequilibrado; então uma mão mais
um, e assim por diante, até chegar a duas mãos – um par mais equilibra-
do; então duas mãos mais um dedo do pé, e assim por diante, até chegar
a vinte – duas mãos, dois pés, isto é, dois pares, mas uma só pessoa. Como
os números quéchua, os números tukano são também conceitualizados
em termos de relações sociais. No caso quéchua, o cinco é uma mãe com
seus quatro filhos, o polegar e os quatro dedos (Urton, ibidem: 75 ff.); isso
se aplica também à divindade tukano ~Romi ~Kubu e seus quatro filhos
Ayawa~ (ver Hugh-Jones, 1979: 267). Em outros contextos, um e cinco
(uma única mão) são equivalentes: o corpo de um ancestral anaconda
unitário torna-se seus cinco filhos hierarquizados pela sua ordem de nas-
cimento, os ancestrais clânicos com seus cinco papéis especializados de
chefe, cantor, guerreiro, xamã e servo. A identidade entre pais e filhos, um
e cinco, pode ser vista no fato de que Yeba ~Bedi ~Hido, “Anaconda Yeba
~Bedi”, o ancestral barasana, é também referido como Yeba ~Bedi ~Hido

14 Comparar com o quéchua yupay – ver Urton (1997: 96, ff.).

157
CONHECIMENTOS E LUGARES: ANÁLISES ETNOGRÁFICAS

~Bakü, “Filho da Anaconda Yeba ~Bedi”. O número cinco tem também


grande evidência em diversas outras áreas da cultura tukano: a maloca,
um modelo do cosmos, tem duas fileiras com cinco colunas centrais –
cinco pares que representam os ancestrais de diferentes grupos; o banco
do xamã, outro modelo do cosmos, tem quatro pernas e um assento, os
quatro pontos cardeais mais o zênite que juntos fazem cinco, os cinco
trovões primordiais em suas cinco casas (ver S. Hugh-Jones, 1995). Como
no caso quéchua (Urton ibidem: 80), entre os Tukano, o número cinco
tem também conotações de hierarquia e sucessão – cinco filhos hierar-
quizados – e serve como um modelo para a organização de sequências
ordinais em geral.
Uma mão com seus cinco dedos esticados e as veias divergentes
em uma folha de coca são duas imagens utilizadas para indicar relações
de parentesco entre ancestrais e seus descendentes ou entre um pai e
seus filhos. Essas imagens dizem respeito a dois modos indígenas de pen-
sar a genealogia e a descendência, ora como rios que convergem à me-
dida que fluem do oeste ao leste – eis parte da lógica que está por trás
da história da viagem rio acima da Anaconda-Canoa; ora como cipós que
divergem conforme vão crescendo a partir do mesmo cepo – tais os cipós
de yagé e as parreiras ~kada (Sabicea amazonensis), ambos fornecendo
imagens de ligações umbilicais entre mães e filhos ou ancestrais e seus
descendentes.
Até então, os antropólogos que estudam sociedades amazônicas
prestaram pouca atenção à questão da numeração – por extensão, povos
“carentes de escrita” seriam também carentes ou deficientes em números
e em modos de contar. Essas observações sobre os números tukano são
intencionalmente especulativas e incompletas. Menciono-as para sugerir
uma via interessante para pesquisas sobre noções de tempo, mito, histó-
ria, genealogia e memória capazes de lançar nova luz sobre as culturas
do alto rio Negro e também deslindar suas conexões com as civilizações
da Amazônia pré-histórica. Nesse contexto destacamos a observação de
Brotherson (2000:11), para quem o Jurupari de Stradelli “oferece dados
numéricos e técnicos que, considerados em conjunto, sugerem uma or-
dem de conhecimento comparável em certos aspectos com a matemáti-
ca e a astronomia presentes nos textos mesoamericanos e andinos, e que
até as iluminam, reciprocamente”.
Para resumir o que foi apresentado até então: seguindo as discus-
sões sobre a escrita dos mitos e a memória histórica indígena na paisa-
gem do noroeste amazônico, argumentei que, em vez de perguntar se
petroglifos ou outras formas de inscrição são ou não “escrita verdadeira”,
renderia mais perguntar como formas gráficas e não gráficas, senão arqui-
teturais e espaciais, operam em conjunto com tradições orais. Os contras-

158
Escrever na pedra, escrever no papel

tes radicais entre povos com ou sem escrita não são produtivos, uma vez
que obscurecem o fato de que modos orais, visuais, gráficos, materiais,
arquiteturais e geográficos trabalham juntos em sistemas integrados de
memória e enumeração.

ESCREVER NO PAPEL

Gostaria, por ora, de me concentrar brevemente nos programas de


etnoeducação e escola indígena, que cresceram nas últimas décadas nos
dois lados da fronteira que divide a Colômbia e o Brasil. Não poderei fazer
aqui um grande apanhado; meu objetivo é simplesmente explorar algu-
mas das continuidades entre o velho e o novo, entre a escrita na pedra
e a escrita no papel. Podemos deduzir, a partir do que foi dito até agora,
que os povos do alto rio Negro revelam uma predisposição para escrever
sua própria história e para registrar vários modos de conhecimento em
papel. Um extraordinário boom de publicações indígenas, associado aos
programas de etnoeducação e exclusivo à região do alto rio Negro, seria
um indicativo de que esse é de fato o caso (ver Hugh-Jones 2010).
Apesar da diversidade nacional (Colômbia, Brasil) e linguística
(Arawak, Tukano), os projetos de etnoeducação da região do alto rio
Negro 15compartilham muitas características. Eles envolvem a partici-
pação de todos os membros da comunidade – pais, professores, alunos,
especialistas rituais, seniores –; com eles, a escola e as questões comuni-
tárias conectam-se por um feedback mútuo entre conhecimento obtido
em sala de aula e problemas coletivos; e a educação é combinada com
programas que lidam com saúde e manejo ambiental em um projeto
holista e unificado, batizado como “manejo do mundo”. Há também
uma forte ênfase em assegurar a continuidade do conhecimento tra-
dicional e das línguas locais, que se reflete no engajamento de jovens
professores-líderes em programas ativos de pesquisa tanto com espe-
cialistas da comunidade – xamãs, cantadores, dançadores, artesãos –,
como com especialistas de fora dela – antropólogos, educadores, ecólo-
gos, profissionais da saúde etc. A ênfase no conhecimento tradicional e
a intervenção dos mais velhos e especialistas rituais – curadores, prote-
tores da comunidade e gerenciadores de recursos ecológicos – revelam
que tais projetos representam uma transformação dos cantos e benzi-
mentos (málikai / keti oka) acima discutidos. Os resultados da pesquisa
destinam-se tanto ao ensino em sala de aula como à preparação de li-

15 Estão incluídos aqui o Proyecto Educativo Indígena de ACAIPI e o Proyecto Educativo Indígena Maîrike
de ASATRIZY na Colômbia, a Escola Indígena Kotiria Khumuno Wu’u; Escola Indígena Tuyuka Utapinopona; e
a Escola Indígena Tukano Yupuri no Brasil.

159
CONHECIMENTOS E LUGARES: ANÁLISES ETNOGRÁFICAS

vros que registram a mitologia e a história, livros escolares de ensino de


matemática e outros assuntos, mapas do território e da distribuição de
recursos, calendários cultural-ecológicos que servem para coordenar o
ano escolar com mudanças ecológicas, atividades de subsistência, ca-
lendário ritual e vários outros ciclos. Devo me concentrar aqui apenas
nesses documentos escritos e nas continuidades entre eles e os siste-
mas orais-iconográficos discutidos anteriormente.

LIVROS

Nas últimas duas décadas autores indígenas do alto rio Negro pro-
duziram mais de vinte livros devotados à mitologia, história e conheci-
mento tradicional. Alguns dos volumes tukano publicados na série Nar-
radores Indígenas do Rio Negro16 foram organizados visando reproduzir a
estrutura tripartite da mitologia do noroeste amazônico acima mencio-
nada. Começam com uma versão da narrativa de origem tukano parti-
cular ao grupo ao qual pertencem os autores, narrativa que termina com
um relato da dispersão e dos sucessivos deslocamentos residenciais dos
clãs constituintes do grupo em questão, relato que é efetivamente uma
genealogia no sentido acima mencionado. A segunda seção dos livros é
devotada a um compêndio de mitos, cujas versões são bem conhecidas
em outros lugares da Amazônia. A seção final é devotada a histórias orais
de escravidão e guerras inter-grupais, movimentos messiânicos, depre-
dações feitas por seringueiros e a chegada de missionários.
Além dessa continuidade entre a mito-história oral e sua contra-
partida editorial em termos dessa estrutura tripartite global e desse con-
teúdo generalizado, uma versão da narrativa de origem tukano publicada
num livro desana reproduz, em forma escrita, o paralelismo característico
dos cantos e sistemas mnemônicos do noroeste amazônico. Ao longo de
170 páginas (pp. 73-248), o Livro dos Antigos Desana – Guahari Diputiro
Porã (2004) repete um texto mais ou menos idêntico, verso por verso,
como parte de um relato de quatro viagens de origem ancestral repeti-
das. O texto como um todo, que é com efeito um canto ou benzimento
transposto à forma escrita, lê as cachoeiras no curso do rio Negro e seus
afluentes como uma lista de casas de transformação ancestrais. Cada pa-
rágrafo reproduz uma estrutura padronizada: nome de lugar (em negrito
para ficar mais visível), canto/benzimento; ou nome de lugar, canto/ben-
zimento, aquisição de conhecimento ritual/objeto ritual. Isso pode ser
imediatamente observado nos excertos seguintes:

16 Para uma discussão mais extensa sobre esses textos, ver S. Hugh-Jones (2010).

160
Escrever na pedra, escrever no papel

1. (pp. 215-218):
Eles prosseguiram a viagem até Dia Waña Wi’í, onde encosta-
ram. Kisibi e Deyubari Gõãmü começaram a benzer: Dia Waña
Wi’í masá suri wereri wi’í masá ehari wi’í masá suri wereri seka
masá ehari seka masá suri wereri yuhiro masá ehari yuhiro masá
suri wereri muruyukü masá ehari muruyukü masásuri wereri poga
kua masá ehari poga kua masá suri wereri waigõã masá ehari
waigõã. Os ancestrais da humanidade pegaram os seus bancos
e entraram na casa. Sentaram no seu banco, mascando ipadu
e fumando o cigarro, desmanchando um pouco a sua roupa de
invisibilidade. Enquanto eles embarcavam de novo, Kisibi e Deyu-
bari Gõãmü recomeçaram a benzer a Canoa de Transformação:
Pumüri Yuküsiro masá suri wereri yuküsiro masá ehari yuküsiro
masá gamesüri metapuri doahayuma.
Eles prosseguiram a viagem até Dia Nima Üta Wi’í, onde encos-
taram. Kisibi e Deyubari Gõãmü começaram a benzer: Dia Nima
Üta etc..
Eles prosseguiram a viagem até Dia Doe Wi’í Miriá Pora Wi’í, etc.
Eles prosseguiram a viagem até Dia Gãma Imikaya Wi’í, etc.

2. (pp. 271-272):
Eles embarcaram de novo e prosseguiram a viagem até Dia Wera
Paga Wi’í. Os ancestrais dos povos do rio Negro pegaram os seus
bancos, entraram na casa, sentaram, mascando ipadu e fuman-
do o cigarro, e ficam pensando. Enquanto isso Kisibi e Deyubari
Gõãmü começaram a benzer Dia Wera Paga Wi’í, kumuari wi’í,
bAiari wi’í weri wi’í kumuari seka bAiari seka weri sek kumuari
yuhiro bAiari yuhiro weri yuhiro kumuari koasoro bAiari koasoro
wei koasoro kumuari muruyukü byari muruyukü weri muruyukü
kuuari poga kua bAiari poga kua wei poga kua kumuari wai wai-
gõã. Por meio de um benzimento, Kisibi e Deyubari Gõãmü fize-
ram aparecer um beiju de tapioca para os ancestrais dos povos do
rio Negro, que já tinham tomado a planta de sabedoria bayapika
e caapi, comeram pela primeira vez. Até nesta casa, eles viviam
somente de fumo e pó de ipadu. Foi nesta casa que eles comeram
beiju de tapioca pela primeira vez. Eram como iniciantes.
Eles embarcaram de novo e prosseguiram a viagem até Dia
Mome Wi’í Bayiriko Wi’í onde encostaram. Os ancestrais dos
povos do rio Negro pegaram os seus bancos, entraram na casa,
sentaram, mascando ipadu e fumando o cigarro, e ficam pensan-
do. Enquanto isso Kisibi e Deyubari Gõãmü começaram a benzer
para transformar a casa em casa de mel: Dia Mome Wi’í Bayiriko

161
CONHECIMENTOS E LUGARES: ANÁLISES ETNOGRÁFICAS

Wi’í mome seka yuhiro mome koasaroparu mome muruyukü


mome poga kua mome waigõã.
De tanto cantar e tocar as flautas sagradas os ancestrais dos
povos do rio Negro não tinham mais força. Por meio de um ben-
zimento, Kisibi e Deyubari Gõãmü fortaleceram o coração deles
com mel. Benzeram também com mel as tangas de dança para
matar os micróbios e aliviar a coceira de entrecasca de planta
tururi e para eles não pegarem a doença chamada em desana
wasuru (coceira) quando eles fossem usá-los. Ensinaram-lhes
também esses dois benzimentos.
Eles embarcaram de novo e prosseguiram a viagem até Dia Umu
Wi’í onde encostaram. Os ancestrais dos povos do rio Negro
pegaram os seus bancos, entraram na casa, sentaram, mascan-
do ipadu e fumando o cigarro, e ficam pensando. Enquanto isso
Kisibi e Deyubari Gõãmü começaram a benzer Dia Umu Wi’í wi’í,
bAiari wi’í weri wi’í kumuari seka bAiari seka weri seka kumuari
yuhiro bAiari yuhiro weri yuhiro kumuari koasoro bAiari koasoro
weri koasoro kumuari muruyukü byari muruyukü weri muruyukü
kuuari poga kua bAiari poga kua wei poga kua kumuari wai wai-
gõã. Nesta casa, eles enfeitaram com o cocar umu pisi feito com o
rabo de japu. Kisibi e Deyubari Gõãmü ensinaram-lhes o benzi-
mento umu pigõri bayari para tirar o pitiú das penas do rabo de
japu. Ensinaram também o benzimento umu bayari para impedir
o japu de fugir da casa quando ele cresce.

Nessa transposição muito literal e propriamente indígena de um


canto oral para um texto escrito, as convenções da transmissão e da me-
mória oral ganham clara precedência sobre aquelas normalmente asso-
ciadas com a linguagem impressa e editorial.
Cada um dos seis livros da série Narradores Indígenas do Rio Negro,
relativos aos grupos tukano, é publicado em nome de dois autores indivi-
duais, um xamã sênior (~kubu), como informante, e um jovem professor-
-líder, que atua como uma espécie de copista do primeiro. Cada um des-
ses livros inclui também um prefácio, que fornece uma breve informação
biográfica sobre ambos os autores. Os títulos dos livros e outras carac-
terísticas deixam claro, no entanto, que eles devem ser compreendidos
mais como uma autobiografia coletiva, as histórias de origem do clã em
nome do qual o livro foi publicado.
A mito-história do alto rio Negro é uma história política em um du-
plo sentido. Por um lado, fazendo referência a estrangeiros, as narrativas
de todos os grupos da região refletem uma longa história de resistência
à dominação externa e servem para legitimar reivindicações indígenas

162
Escrever na pedra, escrever no papel

©FOIRN / ISA.

Fig. 4 - Cestaria utilizada no ensino de matemática. [Fonte: Escola Indígena Tuyuka


Utapinopona (2004) Keore. Utapinopona saiña hoa bauaneriputi. São Gabriel
da Cachoeira]

pelo território. Por outro lado, histórias particulares servem também para
legitimar reivindicações pelo território, bem como o status de um gru-
po particular em face aos demais. Isso significa que, quando um grupo
publica a sua história, isso acaba por provocar o outro a fazer o mesmo.
Um exemplo seriam os quatro livros da série Narradores Indígenas do Rio
Negro publicados em nome de diferentes clãs desana. Essa corrida de pu-
blicações começou, em parte, como resposta ao Desana (1968) de Rei-
chel-Dolmatoff. Na colaboração entre Antonio Guzman e Reichel estava
implícita uma reivindicação pela autoridade do conhecimento por parte

163
CONHECIMENTOS E LUGARES: ANÁLISES ETNOGRÁFICAS

©STEPHEN HUGH-JONES, 1998


Fig. 5 - Rufino Marín, yoabü (cantor/dançarino) barasana utilizando um mapa na
areia das corredeiras ao longo do rio para explicar a estrutura dos cantos rituais

de um indivíduo pertencente a um clã desana específico; os sucessivos


volumes desana da série Narradores Indígenas do Rio Negro podem ser
compreendidos, assim, como uma sequência de contra-reinvindicações.
Com referência aos livros escolares, e em relação às conexões entre
cestos, cantos e numeração acima discutidas, eu simplesmente atentaria
ao uso difundido da cestaria e de sua confecção no ensino de matemáti-
ca nas escolas indígenas. Este ponto está vivamente ilustrado em Keore:
Utapinopona saiña hoa bauaneriputi, livro usado na Escola Indígena Uta-
pinopona Tuyuka no Uaupés brasileiro (ver figura 4).

MAPAS

Depois do que foi dito acima, não deve surpreender o fato de os


povos do alto rio Negro possuírem habilidades cartográficas notáveis.
Uma manifestação disso é a produção espontânea de mapas e diagramas
na areia, e agora em papel, no contexto de explicação e ensino. Registrei
mapas de constelações (Hugh-Jones, 1982) e vi um especialista em cantos
barasana (~yoabü) usando um mapa de areia para explicar a relação dos

164
Escrever na pedra, escrever no papel

cantos com sequências de cachoeiras (figura 5); as ilustrações nas capas


do livro de Correa (1996) e dos volumes 33 e 126-128 da revista L’Homme
(1993) fornecem dois exemplos mais antigos de publicação de mapas
indígenas produzidos na interação com a investigação antropológica.
Como “cartografia social”, mapas assumem um papel central nas iniciati-
vas participativas que conduziram aos programas atuais de etnoeduca-
ção, e continuam a assumir um papel muito proeminente nas atividades
atuais desses programas. Veja-se a maneira como os grupos indígenas,
aliados a ONGs, apropriam-se de imagens de satélite e da tecnologia di-
gital para produzir mapas de territórios, de distribuição de recursos, de
locais sagrados e de migrações ancestrais. Muitos desses mapas repre-
sentam transformações dos sistemas mnemônicos acima discutidos, pois
modos orais e gráficos ainda operam de forma combinada, de modo que,
para um observador indígena, esses mapas aparentemente novos po-
dem ser lidos não apenas como representações do espaço e do território,
mas também como sequências de cantos e benzimentos.
Ao relacionar histórias indígenas e representação espacial por meio
de uma tecnologia emprestada e de um modo prontamente compreen-
dido pelas pessoas de fora, esses mapas e os programas de autodemarca-
ção com os quais estão associados assumem um papel-chave no reforço
de reivindicações territoriais. Os mapas também têm uma agenda expli-
citamente política. Usando a mesma tecnologia e formato, uma nova car-
tografia indígena responde, em seus próprios termos, à cartografia oficial
produzida por agências estatais no Brasil e na Colômbia. Mapas oficiais
brasileiros e colombianos dividem o território contínuo, que os povos do
alto rio Negro consideram ser o centro do mundo, em duas partes desco-
nectadas, cada qual situada bem nas bordas do Estado-nação, uma zona
fronteiriça remota e marginal. Em contraste, os mapas indígenas situam a
sociedade e o território indígena no palco central.17

CALENDÁRIOS

Desenvolvido em ambos os lados da fronteira Brasil-Colômbia, o


currículo dos programas de educação costuma centrar-se na elaboração
de calendários ecológico-culturais. Esses calendários, frequentemente
apresentados de modo sumário em um pedaço circular de papel18, con-
densam e integram a informação relativa ao que pessoas de fora identi-
ficariam como campos discretos – astronomia, ecologia, subsistência e
produção, saúde e dieta, vida social, religião e o ano escolar. Este esque-

17 Ver também Arvelo-Jimenez (2000), Medina (2003) e Vidal (2003).


18 Ver, por exemplo, Cabalzar (org., 2010: 21, 27).

165
CONHECIMENTOS E LUGARES: ANÁLISES ETNOGRÁFICAS

ma educacional unificado e explicitamente intencional reflete a qualida-


de holística do pensamento e da experiência indígena, e está baseado na
informação que é oralmente codificada nos cantos e benzimentos acima
discutidos. Na sua forma mais elaborada, esse conhecimento costuma ser
de acesso exclusivo a poucos velhos e especialistas rituais. Trabalhando
junto com esses indivíduos, jovens professores-líderes letrados anotam
esse conhecimento em cadernos e o apresentam em calendários que
combinam texto e imagem.
Um modelo para esses calendários vem dos diagramas circulares,
que relacionam os ciclos ecológicos sazonais aos produtivos, tornados
familiares aos povos do alto rio Negro graças à pesquisa de campo e às
publicações dos antropólogos. Mas se livros, mapas e calendários fazem
todos uso de tecnologias e formatos que são tomados de empréstimo do
mundo exterior, isso não faz dessas formas aparentemente novas inau-
tênticas. Como já sugeri, todas elas constroem-se sobre e estendem for-
mas gráficas e verbais e modos de pensamento preexistentes. Isso torna-
-se muito claro com relação às várias metáforas faladas de linhas, círculos
e segmentos que os povos do alto rio Negro empregam para se referirem
ao tempo. Essas mesmas linhas, círculos e segmentos reaparecem em for-
ma visível e material no mundo doméstico e familiar, no qual porções de
beiju são obtidas a partir de tubérculos de mandioca. O tipiti e o balaio
sugerem aqui linhas e círculos, ao passo que os padrões trançados divi-
dem balaios em segmentos, assim como cada beiju é dividido em quatro
segmentos nítidos e guardados num balaio. Os calendários cultural-eco-
lógicos do alto rio Negro baseiam-se também nessas fontes indígenas. É
portanto especialmente apropriado que cestos redondos sejam por ve-
zes usados como estrutura de suporte desses calendários.
Nesse contexto, é interessante notar, ademais, o contraste entre
dois seminários recentes em etnoeducação que aproximaram os povos
rionegrinos do Brasil e da Colômbia. O primeiro seminário, cujo tema
era O Manejo do Mundo19, dedicou-se bastante aos calendários cultural-
-ecológicos e às metáforas circulares. O seminário seguinte20, como que
para recobrar o equilíbrio, foi devotado ao registro e mapeamento das
rotas de origem sob o tema Narrativas de origem, rotas de transformação
(ISA, FOIRN, 2010). Essas rotas de origem são o tema dos cantos acima
discutidos. Mais uma vez, as continuidades entre a “escrita na pedra” e
suas transformações mais recentes, como a “escrita no papel”, tornam-se
evidentes.

19 FOIRN/ISA, São Gabriel da Cachoeira, 11-15 de abril de 2010. Ver Cabalzar (org., 2011).
20 FOIRN/ISA, São Gabriel da Cachoeira, 24 de novembro de 2010, do qual reulta o presente volume.

166
Escrever na pedra, escrever no papel

CONCLUSÃO

Neste capítulo, tentei mostrar que, no alto rio Negro, as tradições


orais de mito e história podem ser consideradas também como “tradições
escritas” no sentido de que elas são inerentemente iconográficas. Ao mes-
mo tempo, tentei evidenciar continuidades entre uma tradição mais an-
tiga de escrita na pedra e suas transformações mais recentes, a escrita no
papel. Devo concluir com mais duas transformações recentes entre o oral
e o escrito, entre pedra e papel ou entre imaterial e material. Em 2007, no
Uaupés brasileiro, as cachoeiras, as pedras, os petroglifos e as tradições
verbais associadas à Cachoeira de Iauaretê foram declaradas Patrimônio
Imaterial do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacio-
nal do Brasil (ver Iphan, 2007). Em 2011, o Hee Yaia Kéti Oka (“conocimento
de los Tigres de Yurupari para el manejo del mundo”) dos habitantes da
região do Pirá-Paraná do Vaupés colombiano foi pela primeira vez incluí-
do na Lista Representativa de Patrimônio Cultural Imaterial da Colômbia
e, então, reconhecido como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanida-
de pela Unesco. As sofisticadas tradições orais do alto rio Negro foram
agora inscritas na legislação nacional e internacional, outro marco históri-
co importante para esses povos extraordinários que ali habitam.

Tradução: Renato Sztutman

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