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COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

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COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

Coletânea de estudos de direito financeiro.


Coordenador Ronaldo Chadid.
Campo Grande: TCE-MS, 2016.

Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso do Sul


Campo Grande, MS

Editado e impresso por Agilità Propaganda


Projeto gráfico desenvolvido por Agilità Propaganda
Revisão gramatical: Agilità Propaganda

IMPRESSO NO BRASIL

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

341.38 Mato Grosso do Sul (Estado). Tribunal de Contas


M433a
Coletânea de estudos de direito financeiro. Coordenador Ronaldo
Chadid. Campo Grande: TCE-MS, 2016.

154p.; 21x29,7cm

ISBN: 978-85-66564-05-1

1. Direito Financeiro-Coletânea. 2. Direito financeiro na administra-


ção pública. 3. II. Congresso Internacional de Direito Financeiro - 10 a
12 jun./2015 - TCE-MS. I. Chadid, Ronaldo; coord. II. Título.

Cecília Luna CRB 1/1202


Bibliotecária

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COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

Corpo Deliberativo
Conselheiro Waldir Neves Barbosa
PRESIDENTE

Conselheiro Ronaldo Chadid


VICE-PRESIDENTE

Conselheiro Iran Coelho das Neves


CORREGEDOR-GERAL

Conselheiro Osmar Domingues Jeronymo


OUVIDOR

Conselheira Marisa Joaquina Monteiro Serrano


CONSELHEIRA

Conselheiro José Ricardo Pereira Cabral


CONSELHEIRO

Conselheiro Jerson Domingos


CONSELHEIRO

Auditores (Conselheiros Substitutos)

Auditor Célio Lima de Oliveira

Auditora Patrícia Sarmento dos Santos

Auditor Leandro Lobo Ribeiro Pimentel

Ministério Público de Contas

Procurador José Aêdo Camilo


PROCURADOR-GERAL DE CONTAS

Procurador João Antônio de Oliveira Martins Júnior


PROCURADOR-GERAL ADJUNTO

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COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

Escoex

Conselheira Marisa Joaquina Monteiro Serrano


DIRETORA-GERAL DA ESCOEX

Eurídio Ben-Hur Ferreira


COORDENADOR-GERAL DA ESCOEX

Cecília Luna
COORDENADORIA DA BIBLIOTECA

Cezar L. V. Galhardo
COORDENADORIA DE PUBLICAÇÕES

Danielle Sá Antonelli
SECRETARIA GERAL

Conselheiro Ronaldo Chadid


COORDENADOR DO 2º CONGRESSO INTERNACIONAL DE DIREITO FINANCEIRO

Prof. Dr. Francisco Pedro Jucá


PATRONO E HOMENAGEADO

Dr. Régis Fernandes de Oliveira


IDEALIZADOR

Dr. Ives Gandra da Silva Martins


APOIO

Dr. José Maria Lago Monteiro


APOIO

Tiragem: 500 exemplares

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COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

APRESENTAÇÃO
Na condição de coordenador do II CONGRESSO INTERNACIONAL DE DIREITO FI-
NANCEIRO, realizado de 10 a 12 de junho de 2015, em Campo Grande, MS, e por ter a honra
de integrar as instituições promotoras: Sociedade Paulista de Direito Financeiro – SPDF, Aca-
demia Paulista de Letras Jurídicas – APLJ e Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo –
FADISP, e ser o Vice-Presidente da anfitriã, Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso do
Sul, apresento a coletânea dos estudos, conferências e intervenções, com o repositório das
conferências e intervenções realizadas no evento.

Registro a importância do congresso, já na sua segunda edição, acompanhado do


anúncio do terceiro, no próximo ano, marcando a evolução do Direito Financeiro, em razão
da importância e da qualidade das abordagens aos diversos temas, como o revela o sumário,
mas, principalmente pelo crescente interesse que vem despertando este ramo do Direito para
os estudiosos, para as instituições, para a academia e para a sociedade em geral.

O primeiro congresso, acontecido em São Paulo, capital, no ano de 2014, apresen-


tou a Sociedade Paulista de Direito Financeiro à comunidade jurídica, inspirado, motivado
e apoiado pelo eminente jurista e homem público Dr. Régis Fernandes de Oliveira, Profes-
sor Titular de Direito Financeiro da tradicional Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo, desembargador aposentado do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo,
ex-presidente da Associação dos Magistrados Brasileiro, deputado federal por dois mandatos,
e prefeito da capital paulista, transitando, assim, pelos três poderes, e, haurindo experiência e
variada visão sobre a matéria, e, mais do que isto, generosamente compartilhando as luzes do
seu saber e prestando relevantes serviços à sociedade e ao país.

Coube ao Estado de Mato Grosso do Sul a honra e a responsabilidade de realizar o


segundo, que alcançou real sucesso, por envolver numeroso público e provocar o interesse
alargado da comunidade jurídica especializada, com o mérito adicional de motivar o segui-
mento do projeto com a previsão da realização do III Congresso que se avizinha. O exercício
deste honroso encargo, inspirado do espírito bandeirante da Sociedade Paulista de Direito
Financeiro, nos levou a eleger como patrono e homenageado do evento o Prof. Dr. Francisco
Pedro Jucá, arauto de primeira hora junto com o Dr. Régis Fernandes de Oliveira na idealiza-
ção deste projeto de revitalização do Direito Financeiro entre nós, repondo-o no lugar que
por direito lhe cabe. O homenageado exerce o magistério jurídico há mais de trinta anos.
Primeiro na Universidade Federal do Pará e na Universidade da Amazônia, e, posteriormen-
te, desde a segunda metade dos anos 90 em São Paulo, capital, onde é professor titular da
Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo - FADISP. Tem biografia marcada pelo Direito,
no Magistério e na Magistratura Trabalhista, esta desde 1987, na qual ingressou após exercer
o mister de conselheiro da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Pará. Seus estudos e
reflexões sobre o Direito Público são reconhecidos, e sua obra “Finanças Públicas e Democra-
cia” constitui-se em importante contribuição para a disciplina.

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COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

Destaco nesta apresentação, que três juristas do mais alto nível, apoiadores de pri-
meira hora do projeto, fazem-se presentes, contribuindo com esta coletânea, dando a honra
de sua participação com importantes trabalhos. Trata-se do Dr. Régis Fernandes de Oliveira,
patrono da Sociedade Paulista de Direito Financeiro, e do Dr. Ives Gandra da Silva Martins, cujo
apoio e participação no I Congresso foi essencial, e o jurista espanhol (salmantino) Dr. José
Maria Lago Montero.

Tenho a um só tempo a sensação confortável do dever cumprido, com o apoio vital do


Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso do Sul, da Associação dos Membros dos Tribu-
nais de Contas do Brasil - ATRICON e do entusiasmo de seguir, esperando contribuir para os
próximos congressos.

RONALDO CHADID

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COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

A CONTABILIDADE PÚBLICA EM MUTAÇÃO E OS TRIBUNAIS DE CONTAS 10

• INALDO DA PAIXÃO SANTOS ARAÚJO

A GESTÃO PÚBLICA DA SAÚDE E A LEI COMPLEMENTAR 141/2012 16

• REGIS FERNANDES DE OLIVEIRA

AS TRÊS LEIS ORÇAMENTÁRIAS NA CONSTITUIÇÃO 35

• IVES GANDRA DA SILVA MARTINS

DIREITO FINANCEIRO NO SÉCULO XXI - PERSPECTIVAS 45

• FRANCISCO PEDRO JUCÁ

ALGUNAS MEDIDAS PARA REDUCIR LA LITIGIOSIDAD TRIBUTARIA LOCAL 62

• JOSÉ MARÍA LAGO MONTERO

JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE E LIMITAÇÕES ORÇAMENTÁRIAS 73

• MARCUS ABRAHAM

O CONTROLE DA IMPESSOALIDADE ADMINISTRATIVA NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO 93

• TARCISIO VIEIRA DE CARVALHO NETO

O CONTROLE DA RENÚNCIA DE RECEITA 109

• JOSÉ DE RIBAMAR CALDAS FURTADO

O PRECATÓRIO E O SEQUESTRO HUMANITÁRIO EM FACE DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA 120

• LAURO ISHIKAWA

ORÇAMENTO, PLANEJAMENTO E GESTÃO: DESAFIOS E PERSPECTIVAS 134

• JOSÉ MAURICIO CONTI

UNIÃO EUROPEIA, SOBERANIA E FINANÇAS PÚBLICAS 144

• PROF. PAULO FERREIRA DA CUNHA

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COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

A CONTABILIDADE PÚBLICA
EM MUTAÇÃO E OS TRIBUNAIS
DE CONTAS
Por Inaldo da Paixão Santos Araújo*
(*) Mestre em Contabilidade. Conselheiro-presidente do Tribunal de Contas do Estado da Bahia.
Professor. Escritor. inaldo_paixao@hotmail.com

01. DO NOVO PADRÃO CONTÁBIL NO SETOR PRIVADO

A Contabilidade Societária, no Brasil, convergiu para as Normas Internacionais de


Contabilidade (IFRS) emitidas pelo International Accounting Standards Board (IASB) ou, em
livre tradução, Comitê de Normas Internacionais de Contabilidade, observando o padrão in-
ternacional dominante.

Esse processo contribuiu para a qualidade, transparência e comparabilidade das in-


formações financeiras, ampliando a governança corporativa e possibilitando uma linguagem
contábil universal no mundo dos negócios.

O IASB, com sede em Londres, tem como missão estudar, preparar e emitir normas de
padrões internacionais de contabilidade. O Instituto Brasileiro de Contadores (IBRACON) e o
Conselho Federal de Contabilidade (CFC) representam o Brasil no IASB.

O processo de convergência possui como respaldo legal o art. 177, §5º, da Lei n.º
6.404/1976 (Lei das Sociedades Anônimas). Esse dispositivo estabelece que as normas ex-
pedidas pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) devem ser elaboradas em consonância
com os padrões internacionais de contabilidade. Fato inevitável, pois se torna cada vez mais
necessária nesse “mundo plano”, tão somente para usar expressão de Thomas Friedman, a
adoção de um único padrão contábil.

Nesse diapasão, ressalte-se o esforço do CFC na criação e efetivação do Comitê de


Pronunciamentos Contábeis (CPC). Esse órgão multi-institucional traduz e adapta as IRFS
para o português. Até o presente momento, já foram editados 48 pronunciamentos.

Esse processo de convergência foi tão relevante no meio contábil societário que, nos
últimos anos, foram sancionadas duas leis ordinárias (Lei n.º 11.638/2007 e Lei n.º 11.941/2008),
alterando significativamente a Lei das Sociedades Anônimas de 1976.

Em resumo, as principais mudanças havidas na contabilidade societária foram: classifi-


cação dos ativos e passivos em circulante e não-circulante; introdução da Demonstração dos
Fluxos de Caixa e da Demonstração do Valor Adicionado; necessidade de as normas da CVM

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COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

estarem em consonância com os padrões internacionais; introdução do conceito de empre-


sas de grande porte; segregação do Ativo Intangível do Ativo Imobilizado; novo conceito para
o Ativo Imobilizado; extinção da Reserva de Reavaliação e do Ativo Diferido; novos critérios
de avaliação de ativos e passivos; e a criação do subgrupo Ajustes de Avaliação Patrimonial.
Os comentários específicos sobre esses temas fogem dos propósitos deste artigo.

02. DO NOVO PADRÃO CONTÁBIL NO SETOR PÚBLICO

No setor público brasileiro, alguns fatos foram marcantes para a evolução da Conta-
bilidade Pública, tais como o Alvará de 28 de junho de 1808; o Código de Contabilidade de
1922; a Lei n.º 4.320/1964 (Lei de orçamento e balanço públicos) e a Lei de Responsabilidade
Fiscal (LRF), de 2000.

A LRF, em especial, preconiza em seu art. 50 que a escrituração das contas públicas,
além de observar regras específicas, deve também obedecer às demais normas de Contabili-
dade Pública.

Ao comentar esse dispositivo, Figueiredo et al. (2001, p. 246) preconizam que “o artigo
50 reforça e explicita normas de Contabilidade Pública já previstas pela Constituição de 1988
e pela Lei n.º 4.320/64, algumas das quais ainda não aplicadas em sua plenitude”.

Razão assiste aos autores em seus comentários, pois as demais normas de Contabili-
dade Pública podem ser encontradas de forma esparsa na Constituição Federal, e em vários
dispositivos da Lei n.º 4.320/1964, em especial no seu título IX – Da Contabilidade, e até mes-
mo na própria LRF.

Embora a LRF tenha definido que a escrituração das contas públicas deve também
obedecer às normas de Contabilidade Pública, o Brasil se ressentia de procedimentos contá-
beis específicos pautados pelo consenso profissional.

Ciente dessa lacuna, a partir de 2004 o CFC envidou esforços para apresentar suges-
tões de reforma da Lei n.º 4.320/1964, que, como dito, estabelece normas para elaboração e
controle dos orçamentos e dos balanços, assim como elaborar um conjunto normativo espe-
cífico para a Contabilidade Pública, pautado em parâmetros internacionais.

As ações foram desenvolvidas por grupos de trabalho compostos de especialistas da


Academia, dos Tribunais de Contas e do Governo para idealizar proposta de modernização
dos procedimentos da Contabilidade Pública.

Assim é que foi aprovada a Resolução n.º 1.111/2007 do CFC, que apresenta a inter-
pretação dos Princípios Fundamentais de Contabilidade sob a perspectiva do Setor Público.
Também foi aprovado um novo padrão contábil, denominado de Normas Brasileiras de Con-
tabilidade Aplicadas ao Setor Público (NBC TSP).

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COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

Registre-se, por importante, que esse novel arcabouço foi incorporado aos manuais
de procedimentos contábeis da Secretaria do Tesouro Nacional (STN), enquanto órgão cen-
tral de Contabilidade Pública do Governo Federal. A adoção definitiva desses novos parâme-
tros foi estabelecida para 2014.

O processo de modernização da Contabilidade Pública iniciou-se, portanto, com a


Resolução n.º 1.111/2007 do CFC. Posteriormente, com a edição da Portaria n.º 184/2008,
do Ministério da Fazenda, foram estabelecidas as diretrizes a serem observadas quanto aos
procedimentos, práticas, elaboração e divulgação das demonstrações contábeis, de forma a
torná-los convergentes com as Normas Internacionais de Contabilidade Aplicadas ao Setor
Público.

Contudo, o processo de convergência com padrões internacionais se consolidou e


um novo padrão contábil passou a ser adotado no Brasil, com a aprovação, a partir de 2008,
das Normas Brasileiras de Contabilidade Aplicadas ao Setor Público pelo CFC e com a tradu-
ção das Normas de Contabilidade do Setor Público da Federação Internacional de Contadores
(IFAC), em face do IASB não possuir normas específicas para esse setor.

As 11 normas de Contabilidade Pública do CFC objetivam demonstrar adequadamente


a posição patrimonial e o resultado da execução orçamentária, contribuir para instrumentali-
zar o controle social e aprimorar o processo de prestação de contas e de tomada de decisão
no Setor Público e estão assim configuradas: Res. n.º 1.128/2008 – NBC T 16.1: Conceituação,
objeto e campo de aplicação; Res. n.º 1.129/2008 – NBC T 16.2: Patrimônio e Sistemas Con-
tábeis; Res. n.º 1.130/2008 – NBC T 16.3: Planejamento e seus Instrumentos sob o Enfoque
Contábil; Res. n.º 1.131/2008 – NBC T 16.4: Transações no Setor Público; Res. n.º 1.132/2008
– NBC T 16.5: Registro Contábil; Res. n.º 1.133/2008 – NBC T 16.6: Demonstrações Contá-
beis; Res. n.º 1.134/2008 – NBC T 16.7: Consolidação das Demonstrações Contábeis; Res. n.º
1.135/2008 – NBC T 16.8: Controle Interno; Res. n.º 1.136/2008 – NBC T 16.9: Depreciação,
Amortização e Exaustão; Res. n.º 1.137/2008 – NBC T 16.10: Avaliação e Mensuração de Ati-
vos e Passivos em Entidades do Setor Público e Res. n.º 1.366/11 – NBC T 16.11 – Sistema de
Informação de Custos do Setor Público.

Essas normas se aplicam às entidades do setor público, entendidas como tais aquelas
que recebam recursos públicos. Todavia, de forma integral pelos entes governamentais, pe-
los órgãos do sistema “S”, pelos conselhos profissionais e, parcialmente, por todas as outras,
de modo a favorecer a prestação de contas e o controle social. Elas – as normas – também
definiram que o objeto da Contabilidade Pública é o patrimônio público, que compreende o
conjunto de bens tangíveis e intangíveis e os direitos, onerados ou não, que geram benefício
econômico.

Esse processo de mudança na Contabilidade Pública tem acarretado os seguintes im-


pactos: apresentação de demonstrações contábeis mais compreensíveis para os interessados,
ampliação da transparência das contas públicas, aumento das pesquisas acadêmicas sobre o
tema, maior profissionalização dos serviços contábeis, principalmente no âmbito municipal,

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COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

reestruturação das cadeiras de Contabilidade Pública nas universidades, maior responsabi-


lização de contadores e gestores públicos, ampliação dos investimentos em face da maior
credibilidade das demonstrações, aprimoramento das auditorias contábeis realizadas pelos
Tribunais de Contas.

Embora seja ponto pacífico a importância da adoção dessas normas, em face da cul-
tura jurídica estritamente positivista do nosso país, não se entende a demora em se aprovar
na Casa Legislativa Federal as mudanças na Lei n.º 4.320/1964. Frise-se que essa lei de orça-
mento e balanço públicos, apesar de não impedir a citada adoção dos padrões internacionais,
necessita de ajustes, até mesmo em face dos seus 51 anos de vigência.

Tudo o mais constante, em face do processo de convergência revestir-se de evento


significativo para o aprimoramento da Contabilidade Pública brasileira e para o amadureci-
mento da transparência governamental, tem-se observado, pelo menos empiricamente, uma
maior mobilização dos atores interessados, materializada na produção de artigos, realização
de seminários, congressos, simpósios, cursos, entre outros, em torno das novas Normas de
Contabilidade Aplicadas ao Setor Público.

É verdade, em suma, que nunca na história brasileira se escreveram tantos artigos,


ensaios e livros sobre a Contabilidade Pública.

O processo de transformação da Contabilidade Aplicada ao Setor Público está apenas


começando. A senda é longa e é sabido que a tarefa de se implantar novos paradigmas na
área contábil demandará esforços em modernização de sistemas, capacitação de pessoal,
revisão de métodos e modificação da cultura organizacional. Portanto urge valorizar a cons-
tante busca da qualidade, da transparência da informação e do bom uso da coisa pública, o
que ocasionará, entre outros benefícios:

• demonstração da verdadeira composição patrimonial;


• a correta apuração de custos dos serviços prestados;
• a identificação da necessidade de se repor ativos;
• melhoria das práticas de planejamento, da tomada de decisão e do controle;
• definição de indicadores mais realísticos em relação às políticas públicas; e
• demonstração da capacidade de se prestar e continuar prestando serviços públicos.

03. O PAPEL DOS TRIBUNAIS DE CONTAS FRENTE À NOVA CONTABILIDADE PÚBLICA

O atual padrão normativo para a Contabilidade Aplicada ao Setor Público brasileiro


contribui, ainda mais, quer se crer, para a melhoria do processo de accountability (obrigação
do gestor dos recursos do povo de prestar contas com transparência).

Esse aprimoramento no processo de dizer ao povo o que é do povo deve-se, princi-


palmente, à ênfase em se demonstrar, de forma clara, adequada e oportuna, informações so-

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COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

bre a execução orçamentária, a origem e destinação dos recursos, a composição patrimonial,


os resultados econômicos e financeiros alcançados, o grau de endividamento e a capacidade
de se prestar serviço de forma continuada, tudo em conformidade com padrões internacio-
nais de relatórios financeiros.
Em outras palavras, a nova Contabilidade Aplicada ao Setor Público exige, não somen-
te, um novo plano de contas, mas também a adoção de procedimentos que permitam uma
melhor visão da composição patrimonial, sem descuidar dos aspectos orçamentários e fiscais.

Entre as mais relevantes inovações do novo padrão contábil para o setor público, po-
de-se destacar: adoção integral do Princípio da Competência (com o reconhecimento das re-
ceitas em face do fato gerador, dos pagamentos antecipados, provisão de férias, gratificação
natalina, licença-prêmio, entre outros); classificação como circulante do almoxarifado; regis-
tro da equivalência patrimonial, da depreciação, amortização, exaustão e reavaliação; registro
da redução ao valor recuperável de ativos; reconhecimento do intangível e dos bens de uso
comum; tratamento contábil adequado de arrendamentos, concessões e contingências; além
de novos modelos de demonstrações contábeis.

Se, por um lado, as demonstrações contábeis no Setor Público passam a observar


critérios normativos internacionalmente reconhecidos, é preciso, de igual modo, que os Tri-
bunais de Contas ou Casas de Auditoria digam à sociedade – de maneira tempestiva e trans-
parente – que esses relatórios contábeis representam com adequação a execução orçamen-
tária, a situação patrimonial e as movimentações havidas nesse patrimônio, o fluxo financeiro,
o resultado das operações, bem como se as políticas públicas foram efetivas.

Contudo, para que essa importante missão constitucional dos Tribunais de Contas seja
desenvolvida, torna-se necessária a realização de auditorias contábeis (abarcando aspectos
orçamentários, financeiros e patrimoniais) e operacionais (abrangendo questões de econo-
micidade, eficiência, eficácia e efetividade), também em observância a padrões internacionais
já incorporados – frise-se – pelas Normas Brasileiras de Auditoria Governamental aprovadas
pelo Instituto Rui Barbosa (IRB).

Sobre essa questão, impende registrar o pensar de Paulo Henrique Feijó, que, em en-
trevista publicada na Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais (4º trimestre
2012), assim se manifestou:

Como fazer uma boa avaliação de uma prestação de contas sem uma contabilidade
bem feita? Sem uma contabilidade que apresente todos os ativos e passivos? No novo modelo
a análise das contas será mais complexa e os Tribunais precisarão capacitar fortemente seus
servidores, senão teremos um contador no futuro e um auditor no passado.
Assim, os Tribunais de Contas, além da tradicional análise da execução dos gastos e
dos aspectos de legalidade, precisarão ampliar o escopo de sua atuação. As auditorias reali-
zadas pelos Tribunais de Contas necessitam, cada vez mais, abarcar aspectos da propriedade,
existência e realização de ativos; da ocorrência de transações; da devida abrangência dos
registros; do reconhecimento tempestivo da receita; da correta avaliação e mensuração de

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COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

ativos; do reconhecimento de todos os passivos; da devida apresentação e divulgação dos


componentes patrimoniais, assim como da avaliação da efetividade das políticas públicas.

Dessa forma, resta evidenciado que essas práticas modificam significativamente o le-
que dos procedimentos auditoriais adotados pelos Tribunais de Contas brasileiros, de modo a
fundamentar as decisões relacionadas às prestações de contas.

Nesse caminho, sabiamente trilhou o saudoso professor Lino Martins da Silva, ao afir-
mar, em sua última postagem em blog pessoal, que o reconhecimento de todos os ativos
possibilitará que os Tribunais de Contas ultrapassem a “zona de conforto” do exame orçamen-
tário para verificar se os administradores:

Atuaram para melhorar, manter ou substituir ativos; Identificaram ou


eliminaram ativos excedentes; Preveniram perdas devido a roubo ou
danos; Conheceram o impacto do uso de ativos fixos na prestação de
serviços públicos; Consideraram formas alternativas de gerenciamento
de custos e os serviços de entrega (remédio em casa, por exemplo).

Em relação ao passivo, o professor relembrou que cabe aos Tribunais verificar:

Os critérios de reconhecimento dos passivos e estabelecer planos


para a sua liquidação; O impacto dos passivos sobre recursos futuros;
As responsabilidades pelo gerenciamento de passivos; A capacidade
de fornecer os serviços atuais e a implementação de novos serviços.

Indubitável reconhecer a pertinência dos ensinamentos do professor Lino (eterno


mestre), que devem ser encarados como um constante desafio, como uma verdadeira ban-
deira a ser levantada por aqueles que acreditam na auditoria governamental e que sabem que,
sem uma Contabilidade Aplicada ao Setor Público transparente e que reflita corretamente
os componentes do patrimônio, nenhuma forma de controle será efetiva. E, em uma gestão
pública sem controle, o único derrotado será o povo.

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COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

A GESTÃO PÚBLICA DA SAÚDE


E A LEI COMPLEMENTAR 141/2012
Regis Fernandes de Oliveira*
(*) Professor Titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo - USP. Desembargador
aposentado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo/TJSP. Patrono da Sociedade Paulista
de Direito Financeiro - SPDF. Titular da Academia Paulista de Letras Jurídicas - APLJ. Foi Patrono e
Homenageado do I Congresso Internacional de Direito Financeiro, SP, Junho/2014.

01. AS NECESSIDADES PÚBLICAS E SUA DISTRIBUIÇÃO ENTRE OS ENTES


FEDERATIVOS.

Uma vez criado o Estado (seja por que versão se entenda que ele é instituído – pacto
ou dominação) ele passa a titularizar uma série de intervenções junto à sociedade. Este é o
outro lado da moeda. Como Juno, com duas faces cada qual olhando para um lado. Rara-
mente os olhares convergem.

A atuação do Estado junto à sociedade ocorre diretamente ou de forma indireta. Na


primeira hipótese, é o Estado que age, por seus próprios mecanismos, seus funcionários. In-
diretamente, exerce suas atribuições através de entidades que ele cria. Até aqui é a máquina
pública funcionando. Ocorre que o complexo estatal é limitado e seus recursos (financeiros,
de pessoal e de estrutura) são finitos. Daí não prescindir da participação de terceiros (empre-
sas existentes na sociedade) que passam a partilhar os interesses do Estado e a desempenhar
atribuições que são definidas no ordenamento jurídico.

As necessidades públicas são definidas na Constituição ou nas leis. Ora são atribui-
ções do próprio Estado (atendimento dos interesses da sociedade) ora que ele monopoliza. A
Constituição Federal, ao dispor sobre as necessidades públicas, distribui seu atendimento pe-
los três entes federativos. À União reserva interesses nacionais (art. 21, em seus diversos itens
e outros, esparsos, tais como educação, art. 215, saúde, art. 196 etc.). Aos Municípios aponta
atribuições locais, tal como prevê o art. 30 e aos Estados, a competência remanescente (pa-
rágrafo 1º do art. 25).

Os entes federativos devem, a partir daí, exercer suas atribuições específicas, dentro
da regra de competência. Por isso é que se diz que competente não é quem quer, mas aquele
a quem a norma designa.

Fecha-se, então, o ordenamento em torno de fixação de competências. Ocorre que,


para algumas das necessidades, as atribuições estão bem definidas (conceitos teoréticos),
enquanto que para outras, os valores albergados são de tal ordem importantes, que apenas
uma entidade federativa não pode dela cuidar e o texto constitucional prevê competência
cumulativa (art. 23).

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COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

É o caso dos serviços de saúde. Dispõe o art. 23 ser devido à União, aos Estados-mem-
bros, ao Distrito Federal e aos Municípios a competência para “cuidar da saúde e assistência
pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência” (inciso I).

A saúde é, pois, necessidade pública tida como primária, no linguajar preciso de Rena-
to Alessi. A secundária não atende a um interesse essencial do Estado, mas propicia recursos
para aquisição de bens e servidores para atender ao interesse primário. É o que se passa a ver
pela análise de dispositivo constitucional.

02. A VIDA “LÍQUIDA” DE ZYGMUNT BAUMAN.

Para o notável autor polonês, a vida líquida ”é uma vida precária, vivida em condições
de incerteza constante” (“Vida líquida”, ed. Zahar, 2ª. ed., 2009, pág. 8). Não há segurança nem
garantias de que teremos emprego, atendimento médico, escola, creche, etc. O ser humano
permanece instável em sua vida. Não tem sequer a garantia do emprego em que está. Depen-
de de qualquer alteração na China, nos Estados Unidos ou na Comunidade Europeia que seu
emprego pode desaparecer no dia seguinte.

As pessoas buscam, então, diante das incertezas da vida, da economia, da estabilidade


das relações humanas, uma determinada comunidade. Pode ser uma associação, um sindica-
to ou mesmo uma comunidade menor onde possa buscar amparo e um mínimo de garantia.
Mesmo tais agrupamentos são frágeis e vulneráveis. Dependem das estruturas políticas. Do
cabo eleitoral. De relacionamento com pessoas importantes. De qualquer forma, são vínculos
inconsequentes e não duradouros.

Criam-se, então, rótulos que podem ser úteis para demandas futuras. Hoje, os deno-
minados direitos humanos outra coisa não significam senão “o direito a ter a diferença reco-
nhecida e a continuar diferente sem temor a reprimendas ou punição” (Bauman (“Comunida-
de” – a busca por segurança no mundo atual”, Zahar, 2001, pág. 71). Somente a luta coletiva
pode garanti-los, ainda que sejam meros rótulos. Mas, concretamente, significam o direito à
diferença.

Daí pode originar-se o que se denomina sociedade justa, ou seja, “a eliminação dos
impedimentos à distribuição equitativa das oportunidades uma a uma, à medida que se reve-
lam e são trazidas à atenção pública graças à articulação, manifestação e esforço das suces-
sivas demandas por reconhecimento” (ob. Cit., pág. 73).

No caso da saúde, as palavras calham à perfeição. É que em primeiro lugar já há uma


diferença em relação aos serviços de saúde: pobres e ricos. Em segundo, a discriminação das
receitas que são destinadas a tais ações. Em terceiro, a proximidade de locais de risco, tais
como córregos não drenados ou canalizados, incidência de serviços de prevenção contra
moléstias, serviços de prevenção do aparecimento de epidemias, proximidade de insetos e
pequenos animais transmissores de moléstias, etc.

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COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

Há sonora diferença entre situações descritas e outras em que pessoas abastadas vi-
vem em locais de total canalização, serviços de água e esgoto, prevenção de risco, hospitais
de boa qualidade, etc.

Diferenças flagrantes, não?

A busca da felicidade torna-se, assim, um ponto fundamental na vida das pessoas.


Felicidade em seu sentido amplo, não apenas de alegria pelas coisas da vida, mas o bom
tratamento médico, a segurança garantida, a escola de bom nível, a proteção dos filhos, o
transporte facilitado e de boa qualidade, etc.

Dentro de tal felicidade enquadra-se a busca pela boa prestação dos serviços e ações
de saúde. A garantia do pertencimento a uma sociedade de garantia de igualdade de oportu-
nidades.

03. O ART. 196 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.

Além de ser de competência comum dos entes federativos sua prestação, a prestação
dos serviços de saúde constitui-se em dever do Estado. A Constituição, ao utilizar o conceito
Estado, nele engloba todas as entidades federadas. É o Estado que é rotulado como “Repúbli-
ca Federativa do Brasil”. É a pessoa jurídica de direito público que identifica o Brasil.

O dever vem previsto ao longo da Constituição e das leis e identifica uma posição jurí-
dica, ou seja, uma atribuição que não ingressa em relações jurídicas e não se esgota pelo uso.
Dever e poder são correlatos. Mantêm-se sobranceiros. Diferem do direito e da obrigação.
Estes são relacionais e se exaurem quando exercidos. Esta é a preciosa classificação de Santi
Romano em seus “Frammenti di un dizionario giuridico”.

Por isso é que a saúde é um direito de todos, o que consagra a prerrogativa que todos
têm de serem atendidos pelo Poder Público, dentro de suas possibilidades, evidentemente,
mas, por ser um direito primário, pode e deve ser exercido não apenas na via administrativa
como também mediante ingresso junto ao Poder Judiciário.

O direito deve ser exercido em face do Estado (aqui englobando todos os entes fede-
rativos). Do outro lado está a segunda face de Juno, ou seja, a obrigação de atender, especi-
ficamente, aquele indivíduo.

Assume, de outro lado, um dever, ou seja, atendido determinado indivíduo que exer-
ceu seu direito e, ainda que o Estado tenha satisfeito sua obrigação, o dever prossegue, não
apenas em relação àquele indivíduo, mas também genericamente a toda coletividade (socie-
dade) porque se cuida de dever de destinatário anônimo.

A garantia do atendimento de serviços de saúde se faz mediante políticas sociais e


econômicas. A especificação destas será feita no item seguinte.

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COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

Como disse Bobbio “o problema grave de nosso tempo, com relação aos direitos do
homem, não era mais o de fundamentá-los, e sim o de protegê-los” (Norberto Bobbio, “A era
dos direitos”, 4ª. reimpressão, ed. Campus, 1992, pág. 25).

04. AS POLÍTICAS PÚBLICAS SOCIAIS E ECONÔMICAS NA ÁREA DE SAÚDE.

A previsão constitucional está no art. 196. Como diz Jürgen Habermas,: “O Estado é
necessário como poder de organização, de sanção e de execução, porque os direitos têm
que ser implantados, porque a comunidade de direito necessita de uma jurisdição organizada
e de uma força para estabilizar a identidade, e porque a formação da vontade política cria
programas que têm que ser implementados” (‘Direito e democracia”, ed. Tempo brasileiro, Rio
de Janeiro, 2010, vol. 1º., pág. 171). E complementa: “O poder político só pode desenvolver-se
através de um código jurídico institucionalizado na forma de direitos fundamentais” (idem,
ibidem).
Os direitos estão consagrados em normas jurídicas constitucionais e legais. Há, pois,
dever do Estado em atender às determinações normativas. Por política social entende-se o
dever do Estado de propiciar aos indivíduos, às coletividades e à sociedade em geral mecanis-
mos de atender a suas necessidades. Coletivamente, pode-se falar em segurança, em infraes-
trutura urbana, em vias de circulação, em estradas não apenas para o lazer ou movimentação,
mas também para destinação das safras, etc. Individualmente, cada ser humano tem seus
problemas pessoais. Quando e enquanto tem condições de resolvê-los direta e pessoalmen-
te, deve fazê-lo.

Ocorre que a sociedade é desigual. No exator dizer de Rousseau há duas espécies de


desigualdade. “Uma, que chamo de natural ou física, porque é estabelecida pela natureza e
que consiste na diferença das idades, da saúde, das forças do corpo e das qualidades do es-
pírito ou da alma. A outra, que pode ser chamada de desigualdade moral ou política porque
depende de uma espécie de convenção e que é estabelecida ou pelo menos autorizada pelo
consentimento dos homens” (“Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens”,
segundo parágrafo do começo do livro).

A sociedade é desigual, repita-se. Como tal as necessidades individuais pelos serviços


sociais que deve o Estado prestar resolvem-se em políticas sociais. Estas atendem à coletivi-
dade como um todo. Buscam amenizar os males causados pelas diferenças individuais (que
Rousseau chamou de natural) ou de diferenças outras (que chama de moral).

As políticas públicas buscam reduzir as desigualdades naturais e morais.

O exercício da política é uma forma de ação. É interferir na pólis. É envolver-se na


estrutura do Estado e idear e executar ações que melhorem a vida das pessoas. Estas vivem
na cidade, elegem seus governantes e têm a esperança de que alguma coisa eles farão para
resolver problemas do convívio em coletividade.

Em relação à política de saúde busca reduzir as diferenças existentes na sociedade

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COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

entre os diversos indivíduos. Alguns, bem aquinhoados pela natureza ou pela riqueza, têm
condições de realizar o atendimento a problemas de saúde em hospitais, centros de saúde e
clínicas particulares, pagando planos de saúde. No mais das vezes, cargos. A maioria da so-
ciedade, no entanto, não dispõe de recursos para ter suas deficiências ou meros problemas
físicos atendidos por planos particulares. Logo, dependem dos serviços públicos. Estes devem
ser estruturados de molde a propiciar felicidade aos indivíduos. A felicidade se reflete por pro-
piciar conforto a cada um. Pode consistir na mera diminuição da dor ou em sua eliminação.

Como já me referi, “se a felicidade é sentida de forma individual, se a finalidade é ínsita


no ser humano, se ela se retrata em cada um, apenas ouvindo a sociedade em sua inteireza é
que se poderão definir as políticas públicas” (Regis Fernandes de Oliveira, “Gastos públicos”,
ed. RT, 2012, pág. 27).

De outro lado, nada se faz de política econômica para abastecer os cofres dos hos-
pitais, creches, centros de saúde, unidades básicas, etc. para que a estrutura seja adequada e
suficiente para propiciar a redução dos incômodos, das dores e dos desconfortos que atin-
gem o indivíduo em seu corpo ou na sua mente.

A disponibilidade de recursos é absolutamente imprescindível para que o Estado es-


truture sua rede de atendimento público de serviços de saúde. Modernas construções, lim-
peza interna, higiene, profissionais preparados, instalações confortáveis, transporte adequado
em caso de remoção, remédios suficientes, modernos aparelhos, tudo faz parte de uma pa-
rafernália de instrumentos que buscar propiciar à coletividade e individualmente o máximo de
conforto a celeridade no atendimento das moléstias que afligem o povo brasileiro.

Em sua forma preventiva, da mesma forma, deve o Estado manter número de pessoal
suficiente, viaturas, remédios, etc. para evitar ou impedir que sobrevenha qualquer doença,
seja em forma individual, seja por transmissão coletiva de males, epidemias, etc. A redução do
risco é dever do Estado.

Instaura-se, pois, o complexo da necessidade. De um lado o interesse que deve ser


atendido e, de outro, a necessidade de recursos para atender a prestação da atividade imposta
como dever.

A busca das atividades, então, torna-se universal e igualitária, ou seja, os serviços pú-
blicos de saúde devem atender a todos que dele necessitarem e deve tratar a todos de forma
igual.

Este é o conteúdo jurídico do art. 196 da Constituição Federal. O importante, então, é


buscar as normas complementares que propiciarão os recursos necessários ao Estado para a
prestação das atividades e serviços de saúde e também defini-los em termos que permitam o
imperioso desenvolvimento deles.

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COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

05. A POLÍTICA DE SAÚDE E A LEI COMPLEMENTAR N. 141/2012.


A UNIVERSALIDADE, A IGUALDADE E A GRATUIDADE.

Dependendo da importância que o constituinte originário dá a determinada matéria


que deva ser tratada por lei posterior à constituição, atribui-lhe status de lei complementar
ou ordinária. A segunda pode ser aprovada por qualquer quorum de parlamentares presentes.
A primeira necessita de quorum especial, ou seja, maioria absoluta de votos do número de
parlamentares.

A lei é complementar, também, porque invade a intimidade dos demais entes da fe-
deração. Caso fosse lei ordinária não poderia atingir Estados-membros, Distrito Federal e
Municípios. Como lei complementar ela alcança as demais entidades federativas. Assim, às
disposições da lei complementar n. 141/12, todos estão subordinados.

A referida lei complementar veio atender ao comando do parágrafo 3º do art. 198 da


Constituição Federal que determinou a expedição dela para estabelecer percentuais, critérios
e normas que atendem à sua execução.

Requisito primeiro instituído pela lei é que os “serviços públicos de saúde” sejam “de
acesso universal, igualitário e gratuito” (inciso I do art. 2º da lei em comento). Referido dispo-
sitivo busca cumprir o que determina o art. 196 caput da Constituição da República.

Acesso universal significa que ninguém pode ficar fora dos serviços de saúde propi-
ciados pela estrutura governamental. Todos, sem distinção de raça, sexo e idade poderá ser
excluído do sistema gerador das políticas públicas de saúde.

Evidente está que se busca atender àquele que não tem condições de pagar por um
plano particular de saúde. Não é necessariamente o desvalido, o farrapo humano, o pária,
mas aquele que não tem condições de pagar um plano particular. Como ensina Amartya Sen,
“muitas pessoas têm pouco acesso a serviços de saúde, saneamento básico ou água tratada,
e passam a via lutando contra uma morbidez desnecessária, com frequência sucumbindo à
morte prematura” (“Desenvolvimento como liberdade”, Cia. das Letras, São Paulo, 2002, pág.
29).

É que a falta do acesso universal significa a castração da cidadania. Aquele que não
tem acesso a certos serviços públicos sente a sociedade desequilibrada. O Estado é o pêndulo
que equilibra a sociedade. Deve ser, pelo menos. Daí a conclusão de Amartya Sen de que “a
pobreza deve ser vista como privação de capacidades básicas em vez de meramente como
baixo nível de renda, que é critério tradicional de identificação da pobreza” (ob. cit., pág. 109).

Vê-se que o afastamento dos bens da vida significa desequilíbrio social. Daí a impor-
tância de que o serviço de saúde tenha acesso universal. Num país em que a camada mais
pobre da população convive com baixa infraestrutura urbana, com poluição, com insetos

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COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

transmissores de moléstias, contato com portadores de doenças transmissíveis, é evidente


que é essencial o acesso universal aos serviços de saúde.

Tratamento igualitário é também imprescindível, não apenas como programa de ação,


mas como de efetividade de sua ocorrência, para que não haja proteção, discriminação racial
ou étnica. A Constituição Federal deixa bastante claro que todos são iguais perante a lei (art.
5º) “sem distinção de qualquer natureza”.

Aqui, a lei busca equiparar o que a natureza desequilibrou, como disse Rousseau.

A gratuidade é outro aspecto essencial da previsão de determinados serviços públicos.


É o Estado benfeitor, o Estado protetor. Em sociedade como a brasileira, repleta de desequi-
líbrios, como cuidou Gilberto Freire, é importante que o Estado reponha os níveis dos pratos
sociais em níveis de igualdade.

Desnecessário grande esforço para demonstrar as fortes disparidades existentes em


nossa sociedade. Há um grupo pequeno de ricos (milionários), uma classe média que sobre-
vive e uma massa enorme de necessitados. Ainda que se possa dizer alguma coisa sobre a
inclusão de parte da classe desfavorecida naqueles que podem buscar e obter os bens da vida,
a maioria ainda encontra dificuldades de obter os serviços públicos do Estado.

Daí o Estado tem que exercitar seu poder para intervir na sociedade. Antigamente o
poder era utilizado para a morte. O domínio, as guerras que se fizeram, os conflitos perma-
nentes para a conquista do poder mantinham a afirmativa de que havia um direito de fazer
morrer. Era quase um direito de matar para subsistir. Mas, como afirma Foucault, “o poder é
cada vez menos o direito de fazer morrer e cada vez mais o direito de intervir para fazer viver,
e na maneira de viver, e no “como” da vida, sobretudo nesse nível para aumentar a vida, para
controlar seus acidentes, suas eventualidades, suas deficiências, daí por diante a morte, como
termo da vida, é evidentemente, o termo, o limite, a extremidade do poder” (“Em defesa da
sociedade”, ed. Martins Fontes, 2005, pág. 296).

Como bem diz Hanna Arendt, “a tarefa, a finalidade última, da política é salvaguardar a
vida em seu sentido mais amplo” (“A promessa da política”, 2ª. ed., Rio de Janeiro, Difel, 2009,
pág. 169).

Vê-se, pois, que a norma inserida no inciso I do art. 2º da lei em exame outra coisa não
faz senão retratar a essência da política na modernidade, ou seja, proteger a vida em todo seu
sentido.

06. OS OBJETIVOS DA LEI COMPLEMENTAR PREVISTA NO PARÁGRAFO 3º DO


ART. 198 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. A REAVALIAÇÃO PERIÓDICA.

Referido dispositivo determina que a lei seja reavaliada pelo menos a cada cinco anos
estabelecerá: a) os percentuais de aplicação de tributos; b) critérios de rateio entre os entes

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COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

federativos, c) as normas de fiscalização, avaliação e controle das despesas na área de saúde


e d) as normas de cálculo do montante a ser aplicado pela União.

Este o conteúdo formal da lei. O parágrafo 3º do art. 198 não se confunde com o
disposto no parágrafo 10 do art. 195, ambos da Constituição Federal. Neste, a previsão é de
transferência de recursos para o denominado SUS (Serviço único de Saúde). Parte dos recur-
sos arrecadados pelo INSS deve ser transferido para o serviço de saúde, porque o INSS tem,
em seu objeto social também a prestação de serviços de saúde. Os critérios de tal repasse
vêm dispostos em lei ordinária. Aqui, exige o constituinte a lei complementar e cuida do mon-
tante a ser repassado pela União a Estados e Municípios. De igual maneira, cuida da transfe-
rência de recursos dos Estados que devem ser transferidos aos Municípios. A explicação de
José Afonso da Silva é bastante esclarecedora (“Comentário contextual á Constituição”, 4ª.
ed., Malheiros, pág. 771).

A lei complementar em análise elabora quase um fundo, ou seja, um transpasse de


verbas entre os entes federativos para que cada qual possa desempenhar seus serviços de
forma a atender o que resulta determinado pela Constituição Federal.

A reavaliação aludida no parágrafo 3º do art. 198 da Constituição diz respeito à alte-


ração dos critérios dos percentuais que devem ser repassados. É que tais critérios objetivam
“a progressiva redução das disparidades regionais” (parte final do inciso II do parágrafo 3º do
art. 198 da Constituição). A saber, o atendimento de determinadas situações específicas pode
resultar no desaparecimento ou na diminuição de determinada desigualdade então existente.
Logo, impõe-se a revisão dos critérios (a Constituição fala em reavaliação) para que os recur-
sos possam ser destinados a outra situação de fato mais premente que deva ser atendida.

Em determinado momento histórico, é imperiosa a construção de um hospital ou


centro de saúde para atender a determinada região. Terminada a obra e dotado o hospital
de todos os aparelhos imprescindíveis para o combate a determinada moléstia e atendida a
emergência local, deixam de ser necessárias novas ações.

Se o problema tópico foi superado, justo é e legítimo que os recursos sejam então
destinados a outro local ou região que exija mais pronta atuação do poder público. Daí a ne-
cessária revisão a que alude o preceito normativo.

A cada cinco anos será feita reavaliação da lei. Não significa que deva ser feita uma
nova lei com todos os requintes formais de aprovação. O que o texto está exigindo é que seja
feita avaliação administrativa. Verificados equívocos na distribuição dos recursos ou a impe-
riosidade de sua alteração, exige-se, então, a edição de nova lei para redistribuição equitativa
dos recursos.

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COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

07. A DISCRIMINAÇÃO DO QUE SÃO “DESPESAS” COM AÇÕES E SERVIÇOS PÚ-


BLICOS DE SAÚDE OU NÃO.

O art. 3º da lei em comento traça uma série de ações para identificar o que sejam ou não
os serviços de saúde e onde devam ser alocados recursos e se possam efetuar a despesas.

É de conhecimento empírico que os serviços devem atender a uma série de requisi-


tos. Identificar o que seja necessário para os serviços de saúde, isto é, construções, aquisi-
ção de aparelhos, preparação de pessoal, vigilância sobre os gastos, atendimento a situações
de emergência, desenvolvimento científico, saneamento básico em residências, inclusive em
comunidades específicas, remuneração condigna do pessoal, tudo identifica o que deve ser
objeto de atuação administrativa.

De outro lado, a lei (art. 4º) aponta o que não é considerado para que possa haver
alocação de recursos previstos na lei em tela. Pagamento de pessoal inativo (próprio de outra
atribuição do INSS) ou de pessoal afastado da área (sem identificar o desvio de função), me-
renda escolar, saneamento básico (que deve ser atendido com recursos adequados em outro
item orçamentário), limpeza pública (vale o mesmo argumento anterior entre parêntesis), pre-
servação do meio ambiente, ações de assistência social, obras de infraestrutura.

Há clara distinção entre as despesas públicas.

Tais itens se resolvem quando da edição da lei orçamentária anual. Nela é que são
discriminadas as despesas que se referem aos serviços específicos de saúde ou não. O legis-
lador, no entanto, foi prudente, ou seja, preferiu discriminar logo o que é serviço que deve
ser atendido pelas verbas discriminadas na lei complementar em comento e o que não deve
ser carreado a ela. Evita-se que haja deturpação dos recursos que podem esvaziar o objetivo
específico da lei.

08. OS RECURSOS MÍNIMOS. O ORÇAMENTO E A DOMINAÇÃO.

O art. 5º estabelece o mínimo que deverá ser aplicado pela União, ou seja, “o montan-
te correspondente ao valor empenhado no exercício financeiro anterior, apurado nos termos
da lei complementar, acrescido de, no mínimo percentual correspondente à variação nominal
do Produto Interno Bruto (PIB) ocorrida no ano anterior ao da lei orçamentária anual”.

Cabem, aqui, algumas palavras sobre o orçamento e a dominação dos grupos parla-
mentares na aprovação das emendas e da alocação de recursos.

Em primeiro lugar, o orçamento é de iniciativa exclusiva do Presidente da República


(art. 165 da Constituição Federal). Mas cede, hoje, a um caráter evidentemente humanista de
superação das condições formais de sua existência. O que era uma peça meramente adminis-
trativa ou contábil de distribuição de receitas e previsão de despesas passa a ser instrumento

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COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

fundamental na distribuição de justiça efetiva.

O que é justiça efetiva? O justo não se define, mas decorre de um sentimento preva-
lente na sociedade de que as coisas não podem se passar de determinada maneira. Se alguém
(autoridade policial ou não) agride outrem em um grupo (cinco pessoas) e nele batem com
socos e pontapés e este se mostra absolutamente indefeso, há um sentimento de repulsa
sobre tal conduta.
Ganha o justo este aspecto subjetivo de forma a ser perquirido naquela sociedade e
naquele instante. O conjunto das normas vigentes, como vive a população reprimida ou aten-
dida pelo Poder Público, como ela se sente, é isso que dá o sentido do justo. O problema do
justo decorre dos valores imperantes ou recebidos pela comunidade em determinado mo-
mento histórico. Não se trata de ter ideais, mas de detectar na sociedade aquele sentimento
de adequação dos comportamentos aos resultados buscados.

Deixa o orçamento, então, de ser analisado pela ótica meramente formal. Há uma
essência. Esta é a destinação adequada dos recursos aos objetivos maiores que devem ser
atingidos.

À iniciativa do Presidente da República de propor ou encaminhar o projeto de lei orça-


mentária segue-se um procedimento exaustivo no interior do Parlamento que é o de adequar
a proposta às realidades sociais.

Normalmente, o que ocorre é que o Congresso é dominado por uma maioria parla-
mentar que busca dar sustentação ao governo para se beneficiar da liberação de recursos de
seu interesse individual ou do partido a que pertença. São maiorias ocasionais e, pois, ocasio-
nalmente mudam as soluções.

Ao se falar, pois, em recursos mínimos estes devem corresponder ao montante míni-


mo para dar garantias efetivas de atendimento à saúde. O mínimo é a garantia de que a di-
ferença será atendida em termos de direitos fundamentais. Dissemos, calçados em Bauman,
que os direitos humanos significam o respeito à diferença em que cada um se encontra na
sociedade. Os serviços de saúde são prestados àqueles que estão ao avesso do direito, isto é,
aos desamparados. Estes são os destinatários das normas que prevêm os recursos mínimos.

É possível que o Congresso faça o reexame e deve fazê-lo a cada cinco anos dos
montantes transferidos para o sistema de saúde. Mas, como fazê-lo se está sob dominação
do Executivo e a este cabe encaminhar o projeto de lei?

Fácil a solução. O Congresso Nacional, embora possa ter, ao longo da história, cenas e
episódios de independência, normalmente está subjugado e dominado pelo Executivo. O que
deveria ser uma relação de independência e autonomia, revela-se numa relação de sujeição.
Logo, a proposta que é encaminhada é aprovada ou se houver qualquer alteração é porque
houve um diálogo com o Executivo e este, movido por sentimentos altruístas ou políticos
concordou com a alteração proposta pelo Parlamento.

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COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

O relacionamento entre os órgãos de exercício de poder é de estrita dominação.

Saliente-se que os órgãos jurisdicionais têm entendido que a falta de previsão orça-
mentária de recursos para o atendimento de situações com moléstias não desobriga o Poder
Público de atender as demandas em tal sentido (VER DECISÕES DO STF.)

O art. 6º da lei em tela estabelece que Estados e Distrito Federal aplicarão 12% dos
impostos que lhes são próprios (incisos I a III do art. 155 da Constituição Federal) e também
dos tributos transferidos (art. 157 e 159,§ 3º da Constituição da República). O Distrito Federal,
como recolhe tributos estaduais e municipais, deve aplicar percentual de ambos. Os Municí-
pios aplicarão 15% dos recursos próprios e transferidos, de acordo com o art. 7º da lei com-
plementar ora apreciada.

09. DO FUNDO NACIONAL DE SAÚDE.

Tal como prevê o art. 12 os recursos da União são repassados a um fundo. Os recursos
vão, posteriormente, somar-se aos depósitos de Estados, Distrito Federal e Municípios para
formar um só item e se constitui em unidade orçamentária e gestora dos recursos.

Sabidamente o Fundo Nacional de Saúde não é pessoa jurídica (toda a explicação e


estudo sobre o que são fundos, como se constituem e como funcionam consta de estudo
inserto no capítulo 16 de meu livro: Regis Fernandes de Oliveira, “Curso de Direito Financeiro”,
RT. 5ª. Ed., capítulo 16, págs. 356 a 368).

O fundo se constitui em mera movimentação financeira. Capta os recursos que lhe


são destinados, tem gerenciamento próprio e aplica os recursos. Subordina-se, evidentemen-
te, à fiscalização dos órgãos técnicos competentes e também do Tribunal de Contas.

10. DA APLICAÇÃO DOS RECURSOS.

Cuida-se aqui de parte executiva e administrativa da gestão dos fundos. A lei em seu
art. 17 traça critérios para o desembolso dos recursos tendo em vista as necessidades da saú-
de da população, “as dimensões epidemiológica, demográfica, socioeconômica, espacial e de
capacidade de oferta de ações e de serviços de saúde” (art. 17).

Cabe ao Conselho Nacional de Saúde definir os montantes a serem transferidos a Es-


tados e a Municípios, além do Distrito Federal.

Pressupõe-se que haja seriedade e honestidade no desempenho de tais atribuições


relevantíssimas para população brasileira, especialmente a mais carente. Podem surgir surtos
ou epidemias de malária, dengue e moléstias transmissíveis, o que obriga imediata ação dos
setores ligados à área. É altamente sensível. É primordial que as pessoas que ali exercem suas
funções públicas tenham a sensibilidade necessária para gerir de forma responsável os recur-
sos arrecadados. Deles depende o alívio do desespero que gera uma moléstia.

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COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

A lei estabelece toda uma série de procedimentos para o uso dos recursos e sua ade-
quada aplicação. Diga-se o mesmo em relação aos recursos dos Estados e dos transferidos
aos Municípios.

Assegura-se a Estados e Municípios que possam celebrar consórcios e outras formas legais de
cooperativismo (art. 21) para melhor desenvolver a execução das ações e serviços de saúde.

Claro que os mecanismos de relacionamento entre os entes federativos são permi-


tidos, independente da previsão legal específica. É que existe lei genérica que estabelece
requisitos para que os entes federativos possam vincular-se mediante acordos bilaterais que
permitam facilitar a aplicação de recursos públicos em benefícios das respectivas coletivida-
des.

Como o bem jurídico protegido pela lei é essencial, ela não admite qualquer protela-
ção na operacionalização dos repasses e das despesas (art. 22 da lei). Por ser fundo de desti-
nação e funcionando este como mera conta corrente a legitimar os recursos, não deve haver
qualquer obstáculo na arrecadação e entrega dos recursos. É automático.

Claro está que o fundo deve estar já em funcionamento, o que elimina a restrição pre-
vista no inciso I do parágrafo único do art. 22 e a elaboração do plano de saúde (inciso II do
parágrafo único do art. 22) já deve ter sido elaborado pelos entes federativos.

Caso os agentes públicos negligenciem na estruturação de tais providências, poderão


e deverão ser duramente responsabilizados, como veremos adiante.

11. DAS PAIXÕES.

Claro que o ser humano é quem regerá tais providências. Logo, sujeito a toda sorte de
afecções. O ser humano está em contato permanente com o mundo que o afeta e é por ele
afetado. Move-o o desejo (conatus na expressão de Spinoza) e este significa que o homem
quer cada vez mais. Seja em termos de poder, de dinheiro, posição social e bens de consumo.
O capital passou a ser uma nova religião, na feliz expressão de Walter Benjamin.

Em sendo assim, não há como dominar as paixões através da razão. A legislação es-
tabelece uma série de procedimentos que devem ser atendidos, prevê o processo licitatório,
a celebração de contratos, a prestação de contas e diversos tipos de atos de controle e de
fiscalização. Tudo elaborado de forma a minimizar a atuação do comportamento desviante.

Shakespeare em suas peças históricas dá bem a visão do que é a maldade, do que é a


cobiça por cargos e dinheiro. Hamlet é bem a expressão triste dos desejos. É o tio que mata
o irmão para dormir com a mãe e o pobre Hamlet que é perseguido pelo fantasma de seu pai
que exige vingança. Situações dramáticas são vividas em Macbeth em que o desejo da mulher
de Macbeth faz com que ele perca a razão, mate o rei para tentar apossar-se da coroa. São
peças candentes que demonstram como é o comportamento dos humanos.

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COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

Nenhum agir humano fica imune a tais desvios. O Fundo Nacional de Saúde é abas-
tecido por recursos dos entes federativos. Terá que utilizá-los em prol das ações em prol do
indivíduo. Logo, alguém terá que lidar com estes recursos e, pois, estará propenso a desviá-
-los em seu prol. Cuidei do tema. Entendi que “se entendermos os direitos humanos como
aqueles bens da vida consagrados nas Constituições e que permitem uma vida digna, inequí-
voca a conclusão de que a corrupção impede a plena preservação dos direitos sagrados do
indivíduo” (Regis Fernandes de Oliveira, “Curso de direito financeiro”, citado, capítulo 14, item
14.11, pág. 310).

Conclui que: “Indisputável, em conclusão, que a corrupção impõe pesadas perdas na


arrecadação pública. Os desvios são trágicos no desvio de recursos que poderiam estar sen-
do destinados à consecução dos objetivos primeiros do Estado. No entanto, alimentam triste
mercado paralelo da dignidade humana” (ob. Cit., pág. 312).

A ambição do ser humano é desmedida. Busca o poder, o dinheiro, o destaque social


e para tanto passa por cima de elementares comportamentos humanos de solidariedade.

12. DA FINITUDE DOS RECURSOS E A INFINITUDE DAS NECESSIDADES.

Sabidamente, os recursos públicos são finitos e as necessidades da população infinitas.


Claramente, os serviços públicos de saúde, educação, transportes, vias públicas, saneamento
básico estão deficitários. A população reclama e começa a ir às ruas para fazer exercer seus
direitos. Chega à “quebradeira” geral porque somente assim serão ouvidos e, quiçá, atendidos.

Diante de tal problema, como proceder? O que prevalece? Cede-se ante a finitude e
nada se atende ou o governo há que atender tais serviços básicos que deve prestar, sob pena
de falência das instituições.

Em excelente artigo, Horacio G. Corti escreveu: “Dado un derecho fundamental, no


es una razón válida para justificar su lesión la existencia de carencias presupuestarias. Lo
contrario implica, de acuerdo con la contundente expresión de la Corte, subvertir el Estado
de Derecho” (“Ley de presupuesto y derechos fundamentales: los fundamentos de un nuevo
paradigma jurídico-financiero”, na obra coletiva (“El derecho constitucional presupuestario en
el derecho comparado”, tomo I, ed. Abeledo-Perrot, Buenos Aires, 2010, pág. 663).

A Suprema Corte brasileira já analisou o assunto (RE 271.286/RS, rel. Celso de Melo) e
esclareceu que “o direito público subjetivo à saúde representa uma prerrogativa jurídica não
disponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art.
196). Traduz o bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de
maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular e implementar políticas so-
ciais e econômicas idôneas que tendam a garantir aos cidadãos, inclusive àqueles portadores
do vírus HIV, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar”.
E acrescenta que “o direito à saúde ademais de qualificar-se como direito fundamental que
assiste a todas as pessoas, representa a consequência constitucional indissociável do direito

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COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

à vida”.

Vê-se, pois, que não se pode furtar o Poder Público de cumprir a determinação cons-
titucional e prestar os serviços de saúde, de forma equitativa, universal e isonômica.

A Constituição da República, por força de emenda constitucional, destina recursos


obrigatórios aos serviços de saúde. Ocorre que o mau uso da máquina pública pode significar
que os agentes minem tais recursos ou os destinem de forma deturpada a outras atividades,
frustrando, assim, o objetivo primeiro, qual seja o de prestar efetivos serviços e ações de saú-
de.

Diante das reiteradas intervenções do Poder Judiciário em obrigando o Executivo a


atender particulares que ingressam com demandas postulando o atendimento médico ou a
entrega de medicamentos, houve uma adaptação orçamentária para atender a tais decisões
do Judiciário. Diz-se que isso é ativismo judiciário ou sua politização. Seja o que for, a saúde
é tida como direito do indivíduo e dever do Estado. Logo, não há o que discutir, o Estado tem
que prestar serviços de forma completa.

Não pode ficar a critério do governante o atendimento a tal direito básico equiparado
à vida. Não se cuidar de matéria discricionária que possa eleger seu cumprimento. Não, a de-
corrência do atendimento da norma é obrigatória.

Como disse Horácio Corti “la violación de un derecho fundamental como consecuen-
cia de una asignáción insuficiente de recursos torna inequitativa a la ley de presupuesto” (ob.
cit., pág. 690).

Em nosso meio, a lei orçamentária anual seria inconstitucional, por não alocar, nos
itens adequados, recursos suficientes para cumprir o mandamento constitucional. Não po-
dendo descumprir a lei constitucional, sob pena de responsabilidade política do governante,
evidente que dotar a menor as necessidades relativas aos serviços de saúde, invalida o item
orçamentário, obrigando a intervenção judicial.

Estaria o juiz extrapolando sua competência ao ingerir no complexo normativo orça-


mentário para obrigar o atendimento a serviço básico em benefício de um indivíduo que foi
a juízo demandar o pagamento de seu tratamento médico ou a entrega de medicamentos?
Entende-se que se os recursos são finitos, não há como o Judiciário intervir para obrigar o pa-
gamento de despesas relativas a qualquer moléstia. É opinião plausível, mas não convincente.
Também se diz que como a dotação orçamentária é de competência exclusiva do Chefe do
Poder Executivo, descabe ao Judiciário determinar novos pagamentos, ao arrepio das previ-
sões orçamentárias.

Ora, são desculpas incompreensíveis. A Constituição contém norma explícita de que a


saúde é um dever do Estado. Logo, gera um direito ao indivíduo de exigir prestação adequada
de tais serviços. Irrelevante é a falta de previsão orçamentária. O que resulta, então? O Poder

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COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

Executivo tem a possibilidade do uso dos créditos adicionais e suplementares para atender a
demanda postulada.

Sabidamente, as normas em direito não são de mera recomendação. Todas têm efi-
cácia jurídica e, pois, são imperativas ao destinatário. Na hipótese, o Executivo não se pode
furtar a cumpri-la. Se o fizer, cabível a intervenção judicial para sanar a incompetência ou a
previsão insuficiente de recursos.

13. DAS PROVIDÊNCIAS ADMINISTRATIVAS.

Os arts. 23 a 30 estabelecem procedimentos aplicáveis aos quatro entes federativos


para que tomem providências a respeito da arrecadação, repasse e aplicação dos recursos
encaminhados ao Fundo Nacional de Saúde.

O art. 23 cuida da fixação inicial dos valores. O art. 24 estabelece dispositivos sobre
o cálculo dos recursos mínimos e aponta o que deve ser considerado. O art. 25 prevê como
se resolve eventual diferença no repasse dos recursos por parte de algum ente federativo.
O parágrafo único do art. 25 explicita a competência do Tribunal de Contas para “verificar a
aplicação dos recursos mínimos” de cada ente federativo, sob sua jurisdição. A explicitação
significa que deverão agir os Tribunais de Contas da União, dos Estados, do Distrito Federal e
dos Municípios onde houver.

O art. 26 cuida de delicado problema que é o de retenção das receitas transferidas. O


art. 160 prevê a possibilidade de a União e Estados condicionarem os repasses a algumas exi-
gências. Ora, a previsão coloca em xeque o relacionamento federativo. No entanto, a norma
existe, mas deve ser interpretada de forma a criar o menor constrangimento possível para as
esferas federativas de menor dimensão.

O § 1º. Do art. 26 estabelece a providência que pode ser adotada pela União, Estados
e Distrito Federal no caso de não cumprimento dos repasses nos percentuais legais que pode
envolver a restrição do repasse previsto no art. 198 da Constituição Federal. É o exercício de
faculdade de retaliação, mas que pode equilibrar ou constranger ou forçar o ente a cumprir o
compromisso constitucional e legal com relação aos serviços de saúde.

O art. 27 prevê a possibilidade de aplicação de recursos em ações ou serviços diver-


sos dos de saúde. Tem razão a lei em buscar cercear de todas as formas os comportamentos
desviantes dos agentes públicos. É fruto da denominada teoria das paixões como já procurei
deixar claro anteriormente. Os sentimentos humanos são inescrutáveis, são recônditos e por
vezes explodem em atos absolutamente inconsequentes e desconectados com a previsão do
comportamento adequado.

Daí que a lei deve procurar limitar os desvios.

O art. 28 elimina a possibilidade de limitação de empenho e de movimento financeiro

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COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

que possa comprometer a aplicação contínua e fluente dos recursos afetos ao Fundo. A Lei
de Responsabilidade Fiscal proíbe, taxativamente, a limitação de recursos em determinadas
hipóteses. Aqui, a lei explicita a proibição constitucional e legal.

O art. 30 contém disposição de cunho orçamentário, de forma a obrigar os entes fe-


derativos a cumprir a lei em suas três leis orçamentárias. Assim, o Plano Plurianual, a Lei de
Diretrizes Orçamentárias e o Orçamento Anual deverão atender ao contido na lei comple-
mentar em comento.

Sabidamente, as leis orçamentárias vinculam as demais. O Plano Plurianual, por traçar


o plano quadrienal dos recursos públicos, vincula a Lei de Diretrizes Orçamentárias que é
anual, mas amarra o Orçamento Anual. Deve haver sintonia entre todas.

14. TRANSPARÊNCIA, VISIBILIDADE, FISCALIZAÇÃO, AVALIAÇÃO E CONTROLE.


MANIPULAÇÃO DE RESULTADOS E DE AUDIÊNCIAS. COOPERAÇÃO TÉCNICA.

Os arts. 31 a 42 da lei ora comentada cuidam do controle dos recursos afetos e vincu-
lados às ações e serviços de saúde.

A transparência e a visibilidade significam que os órgãos gestores de tais atividades


devem dar a maior divulgação possível, inclusive por meios eletrônicos, de todos os recursos
arrecadados, do destino dado ao dinheiro, das prestações de contas e respectivos relatórios
obrigatórios.

É imprescindível que seja estimulada a sociedade a participar do controle de tudo.


Não há democracia sem participação da população. O agente público que irá praticar atos de
corrupção, ao saber que terá fiscalização de pessoas da comunidade já pensará duas vezes
em atentar com a lisura e a correção do comportamento exigido. Não só isso. A participação
popular é também importante nas audiências que devem ser realizadas.
As audiências não podem ser manipuladas. Fiz tal advertência quando estudei o orça-
mento participativo (Regis Fernandes de Oliveira, “Curso” citado, capítulo 18, item 18.20, págs.
452/460).

Como em todo comportamento administrativo, surgem as divergências políticas. Cada


entidade, então, terá interesse em manipular o resultado das audiências. Cada partido político
utilizará todos os meios para influenciar positiva ou negativamente os debates e as votações,
bem como manipulará eventuais discussões sobre não utilização de recursos. Eventual grupo
que queira positivar ingerências na participação, poderá ser desestimulado a fazê-lo por meio
de presentes, dádivas, tentações e dinheiro e até mesmo promessa de cargos públicos. Tudo
vale quando o problema é fazer prevalecer uma opinião que possa gerar alguma vantagem
indevida para alguém ou para um grupo.

A prestação de contas (art. 34) decorrerá de relatórios, auditorias. São papéis e cabe

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COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

aos Tribunais de Contas apreciar a parte técnica de sua exposição.

O Conselho de Saúde deve emitir parecer a respeito (§ 1º. Do art. 36).

A fiscalização incide sobre a prestação de contas (art. 37) para saber se as normas
constitucionais e legais foram cumpridas. O Poder Legislativo controlará, juntamente com o
Tribunal de Contas, todas as despesas efetuadas.

O ideal seria o controle não apenas dos papéis que acompanham a prestação de con-
tas, ou, pior, o relatório eletrônico (portanto sem as notas fiscais e os contratos e as notas de
empenho, as liquidações e os pagamentos), mas dos contratos enquanto vigentes. Auditorias
seriam ótimas para apurar se, no curso do contrato, remédios, consultas, internações, etc.
estão sendo feitos na medida adequada e correta. Fiscalizações presenciais pelos agentes
públicos a qualquer hora e dia, sem aviso prévio, apanhando os executores das despesas e
contratos durante a flagrância dos fatos. Aí sim, os resultados seriam melhores.

Assinalei em meu livro “Gastos públicos” que o grande problema agora são os peque-
nos gastos. É por aí que se pode detectar condutas desviadas e desaparecimento de dinheiro.
É a conferência de quantas drágeas foram consumidas, de quantos vidros de Mertiolate foram
utilizados. Nos pequenos frascos os grandes perfumes. Os desvios ocorrem à luz do dia e não
nos desvãos e descaminhos das madrugadas e das noites.

Uma delegação de deputados e senadores poderia se deslocar para verificar in loco


o uso dos recursos públicos. Deveriam ir acompanhados de técnicos que pudessem conferir
as quantias despendidas e as pessoas atendidas. Uma visita a um hospital público seria ótima
para dignificar o papel dos agentes que trabalham adequadamente, mas também serviria de
aviso para os maquiadores da boa-fé pública.

De se ressaltar que a ação fiscalizadora pode se operar internamente, por controle


interno, na forma prevista na Constituição e pelo controle externo exercido pelos Tribunais de
Contas e pelo Congresso Nacional (art. 70 da Constituição Federal).

Deverá haver, também, cooperação técnica e financeira entre os entes federativos (art.
43 da lei em comento).

15. DAS SANÇÕES.

A lei não traz rol de infrações e sanções. Nem havia necessidade que o fizesse. Como
disse Norberto Bobbio (“A era dos direitos”) os direitos já estão devidamente declarados. O
importante, agora, é dar-lhes execução.

Os comportamentos estão previstos na norma legal. As infrações estão esparsas ao


longo de um sem número de leis. Há toda uma sorte de legislação punitiva à disposição dos
agentes públicos. Há códigos infracionais e a previsão das respectivas punições. É o que vem

31
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

previsto no art. 46 da lei em tela. A legislação esparsa dá guarida a todos os atos infracionais
que forem praticados.

Como disse Hans Kelsen, não há norma sem sanção. Toda norma impõe um compor-
tamento, seja obrigatório, seja proibido ou, então, permitido. Para a conduta contrária àquela
prevista pela norma (infração) a lei prevê uma reação do ordenamento jurídico que se destina
a obrigar a prática do comportamento exigido, que é a sanção.

A reação pode ser mais ou menos forte, dependendo da gravidade do comportamento


contrário ao comportamento exigido. Há uma valoração de comportamentos ou uma grada-
ção de valores que são albergados pelo sistema de direito positivo. Dependendo da gravidade
da infração nasce a gravidade da sanção.

A sociedade só subsiste e convive se os comportamentos desviantes forem punidos,


com o que se preserva a normalidade da vida e a convivência dos indivíduos. A sanção deses-
timula a prática de condutas ilegais, infracionais e contravencionais. O desestímulo permite o
prosseguimento do convívio humano.

Ressalte-se, apenas, do texto em tela, a possibilidade de, na hipótese do descum-


primento do previsto no art. 39 a possibilidade de “suspensão das transferências voluntárias
entre os entes da federação”. O que isso significa.

Não pode haver a suspensão das transferências obrigatórias, ou seja, as previstas nos
arts. 157/162 da Constituição Federal. Nestas, o ente federativo maior é apenas o arrecadador
dos tributos tendo a obrigação de repassar parte deles aos entes menores. Cuida-se de direito
de Estados e Municípios, sem que a União possa reter recursos ou criar dificuldades no repas-
se. Diga-se o mesmo em relação aos Estados e Municípios.

O que a lei está prevendo é a suspensão de transferências voluntárias, isto é, aquelas


que não impõem qualquer obrigação ao Poder Público, mas decorrem da vontade do ente,
tais como caminhões, ambulâncias, artigos de esporte, tratores, etc., que são atos de dispo-
nibilidade do agente arrecadador.

Existem, pois, receitas obrigatórias transferidas e receitas voluntárias (que podem ser
transferidas). As primeiras são obrigatórias e não podem ser recusadas. As segundas são atos
de disponibilidade de um ente federativo a outro ou a particulares. Apenas estas últimas que
podem ser suspensas.

16. OBSERVAÇÕES FINAIS.

O valor saúde é dos mais caros e importantes dentro de qualquer sociedade. Esta
nasce com uma reunião de pessoas que delibera abrir mão da subjugação de outras pessoas
ou tribos, sujeitando-se a um Estado que logrará, por estar acima dos interesses individuais
em jogo, manter a paz social. Tal garantia permite o desenvolvimento das potencialidades de

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COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

todos os indivíduos e da coletividade. Pode nascer, também, não do pacto, mas da dominação
de um grupo por outro e imposição de suas regras.

De qualquer forma, o importante, no primeiro impacto é a garantia da segurança (im-


pedimento da morte violenta ). Posteriormente, com o desenvolvimento da sociedade, outras
necessidades vão surgindo, como se viu ao início deste trabalho, e a vida em coletividade
obriga à garantia da saúde, da infraestrutura urbana, de vias de acesso e desaguadouro da
produção, de saneamento básico, de educação, etc.

Elabora-se, então, um pacto escrito (Constituição) que irá dirigir a vida em sociedade
e garantir os bens primeiros e essenciais da vida. Um desses bens é a saúde.

É o serviço de saúde que se desenvolve por meio de ações e serviços que garantem o
bem estar da coletividade. Num Estado Federal como o nosso, é absolutamente importante
que os serviços sejam integrados entre os três entes federativos. Daí ser imprescindível que
uma lei complemente (que por força de ser complementar atinge e obriga as três entidades
que integram a federação) que discipline a forma do atendimento de tal bem essencial.

O advento da lei complementar n. 141/2012 resolve pendências, soluciona conflitos,


disciplina a forma de comportamento dos entes que compõem a federação brasileira.

Resta que os envolvidos na execução da lei estejam atentos para as dolorosas carên-
cias dos brasileiros, especialmente aqueles marginalizados dos bens da vida, os abandonados,
os coitados, os desesperados, os humilhados e ofendidos (Dostoiévski).

É passada a hora de estas pessoas poderem encontrar nos agentes encarregados da


aplicação da lei homens e mulheres probos e dignos que se sintam condoídos com seus se-
melhantes e estendam suas mãos para ampará-los.

Tomara, é um gesto ainda de esperança (Pandora), que os agentes encarregados de


tal execução não se corrompam e que os recursos destinados a solucionar as carências dos
serviços de saúde possam ser corretamente aplicados. Que eles não se deixem envolver com
o clima de impunidade e de vergonha que toma conta dos homens públicos brasileiros e que
a população possa respirar aliviada de ter, enfim, encontrado um ponto de apoio que minore
seu sofrimento.

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COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

AS TRÊS LEIS ORÇAMENTÁRIAS


NA CONSTITUIÇÃO
Ives Gandra da Silva Martins*
(*) Professor Emérito das Universidades Mackenzie, UNIP, UNIFIEO, UNIFMU, do CIEE/O ESTADO
DE SÃO PAULO, das Escolas de Comando e Estado-Maior do Exército - ECEME, Superior de Guerra
- ESG e da Magistratura do Tribunal Regional Federal – 1ª Região; Professor Honorário das Univer-
sidades Austral (Argentina), San Martin de Porres (Peru) e Vasili Goldis (Romênia); Doutor Honoris
Causa das Universidades de Craiova (Romênia) e da PUC-Paraná, e Catedrático da Universidade do
Minho (Portugal); Presidente do Conselho Superior de Direito da FECOMERCIO - SP; Fundador e
Presidente Honorário do Centro de Extensão Universitária - CEU/Instituto Internacional de Ciên-
cias Sociais - IICS.

Embora, infelizmente, não tenha tido condições de participar do II Congresso Inter-


nacional de Direito Financeiro coordenado pelos amigos Francisco Pedro Jucá e Ronaldo
Chadid, é com grande honra que venho contribuir com o tema, abordando a disciplina cons-
titucional das leis orçamentárias.

Transcrevo o início do artigo 165 da CF/88 sobre o qual me debruçarei neste breve
artigo, ou seja, o caput e os incisos I, II e III:

Art. 165. Leis de iniciativa do Poder Executivo estabelecerão:


I - o plano plurianual;
II - as diretrizes orçamentárias;
III - os orçamentos anuais.

01. INTRODUÇÃO

Assim, a seção da Constituição Federal de 1988, referente aos orçamentos (artigo 165)
principia por outorgar, como nas Constituições anteriores, a iniciativa legislativa ao Poder
Executivo.

O princípio se justifica. As Casas Legislativas estão preparadas para o exercício de fun-


ções pertinentes à produção de leis, mas não possuem o nível de informações pertinente à
Administração. Conhecem as questões administrativas a distância, exercendo, de um lado, ní-
tido papel de fiscalização e de representação popular, mas estando inabilitadas para o conhe-
cimento próprio das necessidades cotidianas da Administração, inclusive no que diz respeito
aos problemas que lhe são peculiares¹.

¹Sobre o Texto pretérito, José Celso de Mello Filho escreveu: “Em consequência, disciplinam-no as seguintes regras: a) é da competência do
Presidente da República a iniciativa do projeto de lei que disponha sobre o orçamento plurianual de investimentos; b) o poder de emenda dos
parlamentares submete -se às mesmas restrições e limitações estipuladas nos §§ 1.º e 2.º do art. 65 do texto constitucional; c) o projeto de
lei, dispondo sobre o orçamento plurianual de investimentos, deverá ser remetido ao Legislativo até 4 meses (31 de agosto) antes do início do
exercício financeiro seguinte; d) o Congresso Nacional apreciará esse projeto no prazo máximo de 90 dias, sob pena deste vir a ser tacitamente
aprovado e promulgado como lei” (Constituição Federal anotada, Saraiva, 1984, p. 178).

34
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

Até mesmo no sistema parlamentar, em que o Legislativo nomeia o gabinete executi-


vo, a iniciativa pertence ao Executivo, detentor do poder delegado de indicar as despesas e as
receitas públicas, a serem juridicizadas pelo Legislativo, para execução no exercício seguinte.

Um dos problemas mais sérios que a Assembleia Nacional Constituinte não conseguiu
contornar foi o relacionado não à técnica orçamentária constante do capítulo que se está
examinando, mas às atribuições de funções, encargos, distribuição de receitas tributárias e
de benefícios funcionais por texto superior. O completo desconhecimento da realidade ad-
ministrativa e financeira das pessoas jurídicas de direito público fez com que a iniciativa do
constituinte se revelasse inadequada e desfiguradora dos caminhos indicados nesta seção por
alguns outros dispositivos povoando outras seções².

O pernicioso retrato desse desconhecimento do legislador supremo provocou dan-


tesca deformação do Poder Público, com sensível redução da performance da Administração
pelos obstáculos criados em nível de lei maior³.

Do ponto de vista técnico, todavia, bem agiu o constituinte outorgando a iniciativa


legislativa para definir os orçamentos nacionais para o ano seguinte ao Poder Executivo. É
este que conhece a realidade sobre a qual atua, com o que oferta elementos de melhor julga-
mento para que o legislador aprove ou não a peça orçamentária, impedindo, por outro lado,
que projetos de ocasião, populares ou demagógicos, sejam apresentados, desestimulando-se
a máquina administrativa sobre a qual cabe ao Poder Público atuar.

Uma observação adicional se impõe, qual seja, a de que o orçamento é, simultanea-


mente, um instrumento técnico, jurídico, político e econômico⁴.

²Manoel Gonçalves Ferreira Filho nem por isso deixa de criticar o Texto passado ao dizer sobre o art. 65: “Competência do Poder Executivo. O
preceito em exame é um dos exemplos irretorquíveis da má qualidade técnica da Constituição vigente. Em primeiro lugar, está mal colocado.
Dispõe sobre processo legislativo e, sem embargo de a Constituição prever toda a seção anterior para regular essa matéria, está inscrito na
que versa sobre o orçamento. Em segundo lugar, praticamente repete o que já foi estabelecido, e melhor, no lugar próprio. E, com efeito,
as matérias que aqui se enumeram já estão mais sinteticamente compreendidas no art. 57, I e II (vide supra), que pertencem à seção sobre o
Processo Legislativo. A única utilidade deste dispositivo é explicitar qual é a ‘matéria financeira’ a que se refere o art. 57, I, e o que se entende
por aumento da despesa pública, mencionado pelo art. 57, II. Deve -se concluir que a matéria financeira abrange as leis orçamentárias, as
aberturas de crédito, as concessões de subvenções ou auxílios. Igualmente, que o aumento da despesa pública compreende também as auto-
rizações e criações da mesma, além do aumento propriamente dito. Não resta dúvida alguma, outrossim, que o aumento de vencimentos dos
servidores públicos que o art. 57, II, reserva à iniciativa exclusiva do Presidente da República envolve a fixação de vantagens. Em terceiro lugar,
como se lembrou logo acima, o art. 57, caput, reserva à iniciativa exclusiva do Presidente da República as matérias enumeradas em seus itens.
Esquecido disso, o constituinte, no dispositivo em tela, as atribui à competência do Poder Executivo... Sem dúvida, o chefe do Poder Executivo
é o Presidente da República, o que retira caráter prático à imperfeição, conquanto não desculpe o constituinte de 1967 ou o revisor de 1969”
(Comentários à Constituição brasileira, 6. ed., Saraiva, 1986, p. 335).

³Ricardo Lobo Torres ensina: “A Constituição Orçamentária é um dos subsistemas da Constituição Financeira, ao lado da Constituição Tri-
butária e da Monetária. Não é uma Superconstituição, mas uma das Subconstituições que compõem o quadro maior da Constituição do
Estado de Direito, em equilíbrio e harmonia com outros subsistemas, especialmente a Constituição Econômica e a Política. É materialmente
constitucional, posto que essencial ao Estado de Direito, que se constitui na via fiscal e na dos gastos públicos. A disciplina básica da receita
e da despesa estabelece -a a Constituição, que deve estampar os princípios e as normas que tratam simultaneamente de ambas as faces da
mesma moeda — as entradas e os gastos públicos. São de natureza meramente constitucional o prever o equilíbrio orçamentário, o distribuir a
competência para autorizar a cobrança de impostos e a realização de gastos, o exigir a periodicidade do controle legislativo e o estabelecer as
diretrizes para a redistribuição das rendas. Do ponto de vista formal a Constituição Orçamentária brasileira não se esgota na Seção II do Cap.
II do Titulo VI, denominada ‘Dos Orçamentos’ (arts. 165 a 169), pois abrange também as normas sobre o controle da execução orçamentária
(arts. 70 a 75), o orçamento do Poder Judiciário (art. 99) e a fiscalização orçamentária dos Municípios (art. 31)” (Comentários à Constituição
financeira, Freitas Bastos, p. 8 -9 do original — no prelo).

⁴Como instrumento econômico, há de se relembrar a lição de Jesse Burkhead: “La aportación keynesiana a la teoría y a la práctica presupues-
tarias puede reducirse a la proposición de que la actividad pública debe emplearse para estabilizar el nivel de la actividad económica total. Los
clásicos subrayaron el control presupuestario; los keyne-sianos, los efectos del presupuesto. Desgraciadam ente, la atención keynesiana a los
efec-tos del presupuesto ha ido acompañada de una falta de atención al problema del control. Esta podría ser la tarea a emprender por los
críticos de la política fiscal conservadora: proporcionar una guía par la formación del presupuesto que atendiese simultáneamen¬te a las dos
finalidades. La primera consiste en guiar la transferencia de recursos del sector privado al público; la segunda consiste en guiar la selección de
los neveles globales de ingresos y gastos con vistas a la estabilización. Las directrices han de ser fácilmente inteligibles y capaces de instrumen-
tación política” (Lecturas sobre política fiscal, Revista de Occidente, Madrid, Biblioteca de la Ciencia Económica, 1959, p. 33).

35
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

Como instrumento técnico, torna público de que maneira deve ser administrado o
País no exercício seguinte, na linha de imposição dos barões ao Rei João Sem Terra, em 1215.
Naquela ocasião, embora o princípio da anualidade tributária tenha sido consagrado, objeti-
varam os senhores feudais ingleses muito mais ter um controle do orçamento real, que se fa-
zia pela coluna das receitas programadas e previsíveis, mas também pela coluna das despesas
vinculadas àquelas.

Aliás, a boa regra da Administração impõe a vinculação das despesas às receitas, e não
como se tem feito, no Brasil, das receitas às despesas programadas⁵.

O instrumento técnico torna-se mais evidente à medida que o aperfeiçoamento de sua


exteriorização permite que o Legislativo, em sua análise, e o povo, depois de aprovado, saibam
de que forma serão administrados o País, o Estado, o Município e o Distrito Federal.

É um instrumento jurídico, pois apenas ganha forma e obriga quando aprovado nos termos
do processo legislativo, tornando -se lei e tendo a eficácia de qualquer lei.

É ainda um instrumento político, já que se define a política governamental para o exercício


seguinte. À evidência, as linhas contidas no orçamento implicam maior ou menor presença do Es-
tado na atividade dos cidadãos, razão pela qual, em todas as democracias, o ponto alto de atuação
legislativa se dá na discussão do orçamento, quando as Casas de Representação debatem, alteram e
aprovam a propositura executiva.

Por fim, é um instrumento econômico, uma vez que, conforme a sua maior ou menor
pressão sobre a sociedade, ter-se-á o perfil da atuação do Estado e dos cidadãos na economia,
sendo que os traços mestres da atividade dos cidadãos vinculam-se à política da presença gover-
namental nessa matéria⁶.

Por todas essas razões é que a iniciativa legislativa não poderia deixar de ser dada ao
Executivo, embora a aprovação seja feita pelos representantes da sociedade, vale dizer, pelos
parlamentares.
⁵Em conferência no Congresso Nacional da OAB de Advogados Pró-Constituinte, disse: “A boa regra do planejamento exige que as despesas
públicas sejam programadas a partir da estimativa das receitas. A boa regra do planejamento exige, também, que mecanismos constitucionais
sejam criados para que os planejadores governamentais não invertam a fórmula para projeção de receitas em função de despesas. Por fim, a
boa regra do planejamento exige, nas Federações, que as unidades federativas tenham condições de viver autonomamente, no plano finan-
ceiro, por força dos ingressos próprios derivados da imposição tributária. À evidência, a boa regra do planejamento não existe no Brasil. Em
relação à programação de despesas, não obstante as sucessivas imposições de sacrifícios sobre o segmento privado da Nação, responsável
por mais de 40 milhões de empregos, o Governo Federal, que se utiliza de pouco mais de 1 milhão de brasileiros, tem-nas projetado sem qual-
quer preocupação com a receita. E, por via de consequência, a contrapartida ao sacrifício imposto aos governados é o desperdício permitido
aos governantes” (Anais do Congresso Nacional de Advogados Pró -Constituinte, OAB/SP, 1983, p. 151).

⁶O ainda atual Alberto Deodato ensina:


“I — O Orçamento é, na sua mais exata expressão, o quadro orgânico da Economia Pública. É o espelho da vida do Estado e, pelas cifras, se
conhecem os detalhes de seu progresso, da sua cultura e da sua civilização. Cada geração de homens públicos deixa impressa, nos orça-
mentos estatais, a marca de suas tendências, o selo dos seus credos políticos, o estigma da sua ideologia. É fotografia do próprio Estado e o
mais eficiente cartaz de sua propaganda. Tal seja ele, será uma alavanca de prosperidade ou uma arma para apressar a decadência do Estado.
II — Entre as inúmeras definições de orçamento, a de René Stourm é a mais citada por ser a mais simples e a mais sintética: ‘o orçamento do
Estado é um ato contendo a aprovação prévia das receitas e das despesas públicas’. Tal definição, completada pelo nosso Amaro Cavalcante,
pode ser adotada pela cadeira: ‘o orçamento do Estado é um ato contendo a aprovação prévia da despesa e receita públicas para um período
determinado’.
III — O orçamento é um ato ou uma lei? O orçamento, também chamado lei de meios ou lei ânua, não é, entretanto, uma lei, no sentido
rigoroso. Como bem argumenta Carvalho de Mendonça: ‘os atos orçamentários não têm as condições de generalidade, constância ou per-
manência que dão cunho à verdadeira lei; não encerram declaração de direito; não são mais do que medidas administrativas tomadas com
a intervenção do aparelho legislativo’. Outros acham que o orçamento, não tendo uma lei material, é lei formal ou lei ‘sui generis’. De fato,
o orçamento não vigora senão durante um ano. Não consigna tributos, senão autorizados por lei anterior. Não derroga leis fundamentais. O
orçamento, em síntese, é, apenas, a aprovação de uma conta. As Constituições brasileiras, quer a de 1934, quer a de 1937, quer a de 1946,
embora chamando-o de lei, prescreveram que ‘a lei orçamentária não conterá dispositivo estranho à receita prevista e à despesa fixada para
os serviços anteriormente criados’” (Manual de ciência das finanças, 4. ed., Saraiva, 1952, p. 287 -8).

36
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

02. PLANO PLURIANUAL

A Constituição anterior já cuidava de planos orçamentários plurianuais de investimento,


sem, todavia, pormenorizá-los no nível que a atual Constituição o fez⁷.

Poder-se-ia dizer que o primeiro grande plano de metas plurianuais que o Brasil hos-
pedou, na esfera federal, surgiu com Juscelino Kubitschek, tendo o Governador Carvalho Pinto
adotado para o Estado de São Paulo idêntica concepção⁸.

O plano plurianual de investimentos permite à sociedade dimensionar suas pretensões


e seu perfil econômico, integrando-se nas projeções governamentais ou adotando critério pró-
prio para desenvolvimento de suas atividades. O desenho da política oficial também é lá traça-
do.

Os governos socialistas, a partir dos planos quinquenais soviéticos, pretenderam, em


economia totalmente planejada, adotar projeção futura, rígida e inflexível, de desenvolvimento
econômico e justiça social, à luz da presença do Estado, como promotor do desenvolvimento
e seu único explorador em benefício do povo⁹.

Os ideólogos da economia socialista entendiam que as cíclicas crises do capitalismo


mundial decorreriam da liberdade que se outorgava aos empreendedores do progresso, os
quais objetivavam muito mais o lucro que o próprio desenvolvimento, com o que bolsões de
miséria e áreas de descompassos produtivos terminavam, de tempos em tempos, por gerar
desacertos que Marshall explicava como forma de purificar a economia de doenças não fatais,
mas incômodas.

Os insucessos dos planos quinquenais dos soviéticos durante toda a sua história demons-
traram que sua “verdade” era falsa e que mesmo a crise de 1929, a de 1973 ou as de 1979 e 1982

⁷O art. 63 da Emenda Constitucional n. 1/69 tinha a seguinte dicção: “Art. 63. O orçamento plurianual de investimento consignará dotações
para a execução dos planos de valorização das regiões menos desenvolvidas do País”.

⁸Pontes de Miranda, ao comentar o art. 63, escreve: “Orçamento anual e orçamento de investimento para pluriênio. Se o projeto, o programa, a
obra ou a despesa implica destinação de verba para mais de um ano, somente pode constar do orçamento anual se o projeto ou programa foi
iniciado, ou se a obra foi contratada depois de inclusão no orçamento para o pluriênio, ou com prévia lei que o estabeleça e fixe o montante
das verbas que têm de constar do orçamento, durante todo o prazo para a execução. Assim, se se tratar de projeto ou programa, tem de ter
havido a) lei que o autorizou e fixou o quanto das verbas anuais, para todo prazo para a execução, b) a inclusão no orçamento plurienal de
investimento, c) ainda não se ter iniciado. Se se trata de obra, o início depende de lei, que a autorize e fixe o quanto das verbas anuais, até que
se leve a termo o contrato, e de ter havido o contrato antes de qualquer inserção no orçamento plurienal, pois somente após isso é que se
pode incluir em cada orçamento anual” (Comentários à Constituição de 1967, Forense, 1987, t. 3, p. 207).

⁹Os governos avançavam mais, visto que seus planos plurianuais eram inclusive orientados pelo Conselho de Assistência Mútua Econômica,
decantado por Altshúler, como alavanca de desenvolvimento do Leste europeu:
“El fortalecimiento de la comunidad socialista y el crecimiento de su poderío económi¬co y político se exteriorizan tanto en los factores ob-
jetivos, que despejan el camino ante esta tendencia, como en la actividad consciente de los partidos comunistas y obreros dirigentes, cuya
política permite a todos los países de la comunidad socialista conjugar los intereses nacionales e internacionales y contribuir a una interacción
más profunda y completa en la solución de los cardinales problemas de su desenvolvimiento interior y en la palestra internacional. Estos
problemas se resuelven con eficacia por el Consejo de Asistencia Mutua Económica, y gracias a la coordinación más y más estrecha de la
polí¬tica exterior socialista.
La labor del CAME tiene mucha importancia en cuanto a la organización de la colabo¬ración económica y científico -técnica de los países
socialistas y a la aplicación de me¬didas trazadas por el Programa Complejo de integración económica socialista, com-prendidas las referentes
al sucesivo desarrollo y perfeccionamiento de los vínculos monetario-financieros.
El Programa Complejo estipula que al Consejo de Asistencia Mutua Económica se le irá atribuyendo un papel cada vez mayor en el ahonda-
miento de la colaboración multilate¬ral de sus países miembros.
A los organismos del CAME les incumbe ayudar activamente a esta colaboración eco-nómica, estudiar y sintetizar sus resultados y preparar
las recomendaciones para su constante perfeccionamiento. Los Estados miembros del Consejo resolvieron asimismo e hicieron constar, en
el Programa Complejo, que ellos aplicarán las medidas tendentes a elevar más aún el papel del CAME en la organización y realización de su
colaboración multilateral” (La integración económica socialista: las divisas y el derecho financiero, URSS, Ed. Progreso, 1978, p. 15-6).

37
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

foram mais facilmente controladas em economia de mercado que nas economias estatizadas, sem-
pre desestimuladas em criatividade e interesses¹⁰.

A própria crise de 2008 até o presente é mais sentida nos países bolivarianos ou simpatizan-
tes que nas economias de mercado, exceção feita ao descalabro grego.

As teorias conciliatórias de Keynes de um Estado Capitalista Intervencionista apenas re-


sistiram enquanto o preço do principal impulsionador energético do Ocidente ficou aviltado,
tendo sofrido profunda reformulação após 1973 e, principalmente, nas décadas posteriores,
nada obstante a queda do valor do petróleo em meados de 2015. Os países socialistas ingres-
sam, hoje, na luta por adquirir uma economia competitiva, apenas possível na medida em que
abandonem o mito de que o Estado Empresário é sempre melhor que o Empresário privado e
que as leis do mercado são inferiores às leis da economia totalmente programada. Os resulta-
dos demonstraram ser melhores que os ideais nas economias capitalistas, e os ideais, melhores
que os resultados nas economias socialistas.

É que o mercado, quanto mais cresce, mais livre fica, e os interesses capitalistas vivem
do crescimento do mercado, o que vale dizer, geram desenvolvimento, emprego, condição de
vida e justiça social¹¹.

Parece-me, feitas essas considerações, todavia, que o nosso constituinte, ao falar em


plano plurianual, não pretendeu apenas impor um plano de metas para o desenvolvimento, mas
teve ambição maior, qual seja, a de planejar a economia e as finanças públicas como um todo,
sempre submetendo tal projeto às linhas mestras dos arts. 170, 171 e 174 da Constituição Fede-
ral, principalmente este, que impõe planejamento obrigatório apenas para o setor público.

Em outras palavras, o plano plurianual a que faz menção o legislador não cuida somente
de meras sugestões desenvolvimentistas, mas impõe ao Poder Público limites à sua atuação in-
tervencionista e parâmetros à programação que implique despesas e receitas, vinculadas a mais
de um exercício¹².

Por essa razão, tais planos, por serem mais amplos, prevalecem sobre as leis orçamen-
tárias anuais naquilo em que cuidar da mesma matéria, sendo a ordem de indicação do art. 165
preferencial. Vale dizer, a sociedade, a partir do plano plurianual, sabe o comportamento que
espera do governo no concernente aos projetos de longo alcance, sendo os orçamentos mero

¹⁰Esta realidade, muitas vezes, leva os economistas de formação socialista a procurar justificações de natureza global para o realinhamento
conceitual a uma economia mais flexível: “The change of epoch in the world economy raises a new aspect of space in economic thinking.
Up to now space has occurred in economic thinking only as a relative notion, namely as the distance between the place of production and
consumption...”. “... induces also the belief that the rational statements made by economics may come to a role in national and international
political decisions more rapidly and more efficiently than it has happened in the past” (E. Kemenes, Cyclical and secular changes in the world
economy, in Trends in world economy, Budapest, v. 35).

¹¹“Os apologistas intelectuais do planejamento econômico centralizado cantaram loas à China de Mao até que seus sucessores trombetearam
o atraso do país e lamentaram a falta de progresso nacional nos últimos 25 anos” (Milton e Rose Friedman, Liberdade de escolher, Record Ed.,
1981, p. 68).

¹²A equipe da Price Waterhouse assim o comenta: “Do plano plurianual, chamado pela Constituição de 1967 de ‘Orçamento Plurianual de
Investimento’, devem constar as despesas cuja execução avance por mais de um exercício financeiro. Tais despesas consistem basicamente
nas chamadas despesas de capital, cujo objetivo é, na maioria das vezes, a construção de grandes obras públicas, necessárias para a promoção
do desenvolvimento econômico” (A Constituição do Brasil 1988, Price Waterhouse, 1989, p. 698).

38
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

reflexo daquela parte do planejamento que se esgota no exercício. E essa parece ter sido a grande
evolução em relação ao Texto anterior, que os limitava, de rigor, a mera sugestão sobre o desen-
volvimento nacional.

É de lembrar que a Lei n. 9.989, de 21 de julho de 2000, dispôs sobre o Plano Plurianual
para o período 2000 -2003. Já para o período de 2004-2007 o tema foi disciplinado pela Lei n.
10.933, de 11 de agosto de 2004. Tais diplomas foram modificados pela Lei 11.653/2008 (perío-
do de 2008 a 2011) e pela Lei 12.593/12 (período de 2012 a 2015).

03. AS DIRETRIZES ORÇAMENTÁRIAS

As diretrizes orçamentárias precedem também aos orçamentos anuais. Devem elas


conter as regras orçamentárias fundamentais, a serem seguidas pelo governo, no período de
tempo a que foi guindado, num Estado Democrático, a exercer as funções de comando¹³.

Em meu entendimento, na tríplice colocação do constituinte, pela qual o plano pluria-


nual estabelece as regras fundamentais de todo o projeto econômico financeiro do governo, as
diretrizes orçamentárias indicam — para o mesmo período — as regras que norteiam a prepa-
ração dos orçamentos, e estes, a projeção anual de gastos e despesas públicas, neles incluídos
o crédito público, segue uma concepção moderna do papel do Estado em sua inserção na vida
societária. A interpretação, todavia, dominante é de que há necessidade de uma lei de diretrizes
para cada exercício.

O Estado se compõe de três elementos dominantes (povo, território e governo), sendo,


em verdade, mera ficção jurídica para ordenar a vida social de uma comunidade pelo instru-
mento maior do direito¹⁴.

Nessa ordenação, o custo de sua atuação reguladora deve ser suportado pela socieda-
de, que, nos regimes democráticos, determina o nível de sua presença e da participação que
deseja. Em outras palavras, a sociedade, por seus representantes, deve impor as linhas funda-
mentais dos gastos oficiais, que pretende suportar para que o Estado, meio e não fim, preencha
suas finalidades essenciais de serviço ao povo, por intermédio do governo. E, à evidência, em
matéria de despesas, as finanças públicas esclarecem tal dimensão¹⁵.

Essa é a razão pela qual a iniciativa do Executivo, que conhece de perto a Administração,
ao apresentar a proposta da lei de diretrizes orçamentárias, busca ofertar respaldo à discussão
da conveniência de adotar este ou aquele projeto orçamentário para exercício subsequente.

¹³Ricardo Lobo Torres escreve: “A CF 88 introduziu uma novidade, inspirada em parte nas Constituições da República Federal da Alemanha e
da França: a lei de diretrizes orçamentárias, que compreenderá as metas e prioridades da administração pública federal, incluindo as despesas
de capital, para o exercício financeiro subsequente, orientará a elaboração da lei orçamentária anual, disporá sobre as alterações na legislação
tributária e estabelecerá a política de aplicação das agências financeiras oficiais de fomento” (Comentários à Constituição financeira, Freitas
Bastos, no prelo).

¹⁴Helmut Kuhr, em seu livro El Estado (Ed. Rialp), chega a afirmar que não existem Estados, mas governos, alicerçado na doutrina de Carl
Schmit.

¹⁵Sobre a lei de diretrizes orçamentárias, assim comenta a equipe da Price Waterhouse: “Não havia previsão no texto constitucional anterior a
respeito das diretrizes orçamentárias. O estabelecimento de diretrizes na questão orçamentária é a ela inerente, principalmente levando -se em
conta que o orçamento é, antes de tudo, uma previsão” (A Constituição do Brasil 1988, Price Waterhouse, 1989, p. 699).

39
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

O constituinte, portanto, bem andou em oferendar um tríplice patamar ao Executivo, na


iniciativa do processo legislativo-financeiro, e ao Legislativo para decidir sobre o plano plurianu-
al, amplo e geral, as diretrizes orçamentárias, que são as regras que nortearão os orçamentos, e
os próprios orçamentos anuais, sobre os quais falarei adiante¹⁶.

As diretrizes orçamentárias de um período, portanto, representam as regras previamente


conhecidas sobre a Administração Pública, no concernente às receitas e despesas, que condi-
cionarão os orçamentos.

Tal categoria intermediária entre os planos plurianuais e os orçamentos anuais não exis-
tia no passado, tendo, a meu ver, representado evidente avanço¹⁷.

As cíclicas conjunturas negativas, não poucas vezes, podem levar os governos à tenta-
ção de buscar mudanças nas regras orçamentárias, sendo o governo destes últimos anos triste
exemplo do exercício de tal “tentação”. As bruscas mudanças, sobre se terem revelado inúteis
e de consequências desastrosas, trouxeram como complemento a insegurança econômica,
que é aquele elemento que mais deve um governo evitar. As rápidas mudanças geram incon-
fiabilidade, principalmente se, em curto espaço de tempo, revelam -se frustradas. E nenhuma
economia avança, e nenhum país sai da crise, com governos sem credibilidade.

Esse é o motivo pelo qual mais importantes que as linhas dos orçamentos anuais são
aquelas das diretrizes orçamentárias, capazes de estabelecer confiabilidade e impor regras fir-
mes aos governos¹⁸.

04. OS ORÇAMENTOS ANUAIS

Como já me referi atrás, o orçamento é um instrumento político, jurídico, econômico e


técnico. Apresenta a proposta de despesas e receitas que o governo pretende executar no ano
seguinte, com o que a sociedade, em o aceitando, por sua Casa Legislativa, prepara -se para su-
portar os planos a serem executados pelo Poder, com sua participação material, principalmente
através dos tributos.

16
José Afonso da Silva ensina:
“A lei de diretrizes orçamentárias compreenderá as metas e prioridades da Administração Pública federal, incluindo as despesas de capital para
o exercício financeiro subsequente, orientará a elaboração da lei orçamentária anual, disporá sobre as alterações na legislação tributária e es-
tabelecerá a política de aplicação das agências financeiras oficiais de fomento (art. 165, § 2.º). Trata -se de lei anual. Não se estabelece quando
ela deve ser submetida à consideração do Congresso Nacional. Dispôs-se apenas que o seu projeto, assim como os da lei do plano plurianual e
do orçamento anual, seja enviado pelo Presidente da República ao Congresso Nacional, nos termos da lei complementar de caráter financeiro
já indicada. Mas por sua natureza ela deve preceder à elaboração orçamentária, porque ela é que vai dar as metas e prioridades que hão de
constar do orçamento anual” (Curso de direito constitucional positivo, 5. ed., Revista dos Tribunais, 1989, p. 613).
17
Wolgran Junqueira Ferreira esclarece:
“Leis de iniciativa do Poder Executivo estabelecerão o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias e os orçamentos anuais da União. São três
previsões distintas de três fatos distintos mas que se interligam, necessariamente” (Comentários à Constituição de 1988, Ed. Julex, 1989, v. 2,
p. 920).'
18
O art. 47 da Constituição francesa tem a seguinte dicção: “Le Parlement vote les projets de loi de finances dans les conditions prévues par une
loi organique. Si l’Assemblée Nationale ne s’est pas prononcée en première lecture dans le délai de qua¬rante jours après le dépôt d ’un projet,
le Gouvernement saisit le Sénat qui doit statuer dans un délai de quinze jours. II est ensuite procédé dans les conditions prévues à l’article 45.
Si le Parlement ne s’est pas prononcé dans un délai de soixante -dix jours, les disposi¬tions du projet peuvent être mises en vigueur par ordon-
nance. Si la loi de finances fixant les ressources et les charges d ’un exercice n’a pas été déposée en temps utile pour être promulguée avant
le début de cet exercice, le Gouvernement demande d’urgence au Parlement 1’autorisation de percevoir les impôts et ouvre par décret les
crédits se rapportant aux services votés. Les délais prévus au présent article sont suspendus lorsque le Parlement n’est pas en session. La Cour
des Comptes assiste le Parlement et le Gouvernement dans le contrôle de l’exécution des lois de finances” (La Constitution française, p. 32).

40
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

O orçamento inclui toda a projeção de receitas e despesas19.

No passado, discutiu-se muito se o orçamento anual retrataria as finanças públicas do


País, por inteiro. O Brasil conviveu nestes anos da ideologia lula-petista com três orçamentos: o
fiscal, o monetário e o das estatais. Apenas o primeiro estava submetido, pela Constituição an-
terior, ao Congresso, visto que o monetário era de exclusiva responsabilidade do Banco Central,
embora supervisionado pelo Parlamento, e o orçamento das estatais20 revelou-se instrumento
de fantástica corrupção para os enquistados no poder, liderada pela PETROBRAS.

Grande parte dos descontroles financeiros e a inflação, que recomeçou no país, apesar
do brilhantismo do Plano Real, decorrem dessa tripartição orçamentária e, principalmente, do
desequilíbrio provocado pelas denominadas pedaladas fiscais, ou seja, gastar sem recursos or-
çamentários, utilizando-os de recursos dos Bancos oficiais para cobrir tais juros vedados pela
lei maior.

No passado, a indisciplina dessas empresas da Administração indireta chegara ao ponto de


que inúmeros créditos externos ou tomados em empréstimos internos eram assumidos sem autori-
zação — e, às vezes, contra as diretrizes governamentais —, porque tais empresas tinham densidade
suficiente para contraí-los, muito embora, repetidas vezes, tivessem que se socorrer do Tesouro
Nacional em suas dificuldades21.

19
Aliomar Baleeiro, de forma clássica, ensina:
“Os orçamentos documentam expressivamente a vida financeira de um país ou de uma circunscrição política em determinado período, geral-
mente de um ano, porque contêm o cálculo das receitas e despesas autorizadas para o funcionamento dos serviços públicos ou para outros
fins projetados pelos governos. A sua importância, sob vários pontos de vista, é imensa, como a própria evolução das ideias orçamentárias o
testifica. Nos Estados democráticos, o orçamento é considerado o ato pelo qual o Poder Legislativo prevê e autoriza ao Poder Executivo, por
certo período e em pormenor, as despesas destinadas ao funcionamento dos serviços públicos e outros fins adotados pela política econômica
ou geral do país, assim como a arrecadação das receitas já criadas em lei” (Uma introdução à ciência das finanças, 6. ed., Forense, 1969, p. 397).
20
Escrevi:
“Por representar um retrato futuro do comportamento econômico nacional, deve ser sopesado, discutido e aprovado pelos representantes do
povo que o suportará. Ora, no Brasil, apenas o orçamento fiscal é submetido ao Congresso Nacional. O orçamento monetário somente o é na
medida dos estouros ocorridos em sua dinâmica, para efeitos de suplementação de verba. Finalmente, o orçamento vulgarmente denominado
‘das estatais’ está fora de qualquer controle ou aprovação pelo Legislativo, sendo, de direito, auto independente e auto -outorgado. Por essa
razão, se fora dos controles do Legislativo, é ainda administrável pelo Executivo, servindo o Tribunal de Contas da União de mero indicador
moral, destituído de força, dos caminhos que deveriam ser seguidos e normalmente não o são na gestão da coisa pública.
Ora, a deformação provocada pelo tríplice orçamento, sobre tornar inócuo o exame de apenas um deles pelo Legislativo, torna impossível um
controle racional do déficit público, em face da autonomia gerada pelos descompassos compartimentalizados, com o que o país tem três or-
çamentos e, a rigor, não tem nenhum. São os orçamentos as projeções de receitas e despesas futuras. As variações, no curso de sua execução,
nos países civilizados são pequenas. No Brasil são assustadoras, carecendo de elementos de estabilização pela desastrosa independência de
sua execução simultânea e, muitas vezes, conflitante. Samuelson escreve na introdução de seu mais famoso livro, Foundations of economic
analysis, que: ‘as obras econômicas são repletas de falsas generalizações’. Diríamos que as execuções econômicas, no Brasil, estão também
repletas de falsas generalizações e — o que é pior — sem que o erro detectado seja corrigido, pois, muitas vezes, as falsas generalizações são
tidas por verdadeiras.
Assim é que o tríplice orçamento, a título de dar maior flexibilidade à política econômica, permite, de um lado, maior irresponsabilidade, e,
de outro lado, menor concentração de objetivos, tornando-os inatingíveis e conflitantes. Urge, pois, o retorno à teoria clássica de um único
orçamento, submetido e aprovado, por inteiro, pelo Legislativo, e controlado, simultaneamente, pelo Legislativo e pelo Tribunal de Contas,
aquele no concernente às metas propostas e este no que diz respeito ao cumprimento dos roteiros técnicos, despesas e receitas” (O poder,
Saraiva, 1984, p. 80-1).
21
José Luís de Carvalho, cético, sobre o controle do déficit público e a participação das estatais, escreve:
“Até o momento, decorridos 40 dias da publicação do Plano Collor, o setor público não passou pelo ajustamento necessário ou mesmo
prometido. As medidas provisórias ativadas instantaneamente provocarão apenas um aumento de arrecadação. Os cortes nos gastos públicos
ainda são bastante tímidos e se concentram nas chamadas mordomias, que têm impacto publicitário grande, porém muito pequeno em ter-
mos de orçamento. A reforma administrativa que extingue ou funde instituições públicas ainda não foi implementada, e a eficiência do setor
público deve ter -se reduzido ainda mais, pela confusão quanto às atribuições dos órgãos remanescentes. Aparentemente a máquina pública
parou, embora os custos de sua manutenção não tenham sido reduzidos. A reforma administrativa contém, pelo menos em tese, dois grandes
erros: o de fundir o IAPAS com o INPS, duas instituições com funções inteiramente diversas, e o de agregar na Companhia Nacional de Abas-
tecimento a CFP, a Cobal e a Cibrazem. Estes dois exemplos atestam que a reforma administrativa foi feita sem um conhecimento adequado
do papel de cada órgão público na produção dos serviços que são de atribuição do Estado. Isso explica a extinção de alguns órgãos como
a CAPES ou o INEP, para citar apenas dois exemplos, e a sua recriação quase que instantaneamente. A proposta de privatização contida nas
medidas provisórias 155 (Programa Nacional de Desestatização) e 157 (Certificados de Privatização) é autoritária e fadada ao insucesso. Todos
os exemplos históricos de privatização bem-sucedida fundamentaram -se no funcionamento do mercado de capitais como instrumento
indispensável para tal privatização. Na realidade, acredito que teríamos um sucesso maior em termos de redução da atividade empresarial do
Estado, pela simples eliminação dos privilégios que qualquer empresa de economia mista tenha. Como estas empresas, hoje, estão sujeitas à
mesma legislação que as empresas privadas, sem a proteção dos privilégios concedidos pelo Estado, tais empresas se tornariam eficientes ou
entrariam em processo de falência” (Plano Collor — avaliações e perspectivas, LTC Ed., 1990, p. 226-7).

41
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

À evidência, os descompassos que tal realidade trazia obrigavam o governo a gastar,


em sua falta de vocação empresarial, o que arrecadava e deveria ser destinado às finalidades
essenciais, que fazem parte de sua vocação natural, quais sejam a administração de Justiça,
segurança interna e externa, saúde, educação e assistência social, nesta incluída a previdência,
na concepção que formulo de assistência social como sinonímia da seguridade, nos termos em
que plasmada está no atual Texto.

Gastando o que não tinham, à falta de controle orçamentário, no que não sabem fazer
e deixando de gastar, à falta de recursos, no que sabem fazer, exigiram os governos passados
esforços superiores ao que a sociedade podia ofertar para atender sua notória incapacidade
empresarial.

A isto se acrescenta o apadrinhamento de 115.000 “comissionados” e a fantástica cor-


rupção que a Operação Lava Jato desvendou.

O atual Texto Constitucional corrigiu as reticências, mas não corrigiu os hábitos políti-
cos, infelizmente. O orçamento é um só. Já a legislação ordinária anterior pretendeu a unifica-
ção, nada obstante a prática demonstrar que tal unificação fora incorretamente projetada22.

Pelo atual Texto Constitucional, necessária se faz a projeção unificada de todas as des-
pesas da Administração direta e indireta do governo federal e dos diversos entes federados, nos
termos de suas leis maiores, desde que obedecidas as regras deste dispositivo, de tal forma que
as Casas Legislativas poderão exercer sua fiscalização absoluta sobre todos os gastos, assim
como a discussão ampla do que se pretende executar no ano seguinte23.

Lamenta -se apenas que não se tivesse dado aos Tribunais de Contas a dimensão que
propugnei no livro Roteiro para uma Constituição, ou seja, integrá-los como parte do Poder
Judiciário e não como órgão vicário do Poder Legislativo. Por tal proposta, poder-se-ia aprovar
o orçamento nas Casas Legislativas e controlá-lo, com poderes de execução, via Judiciário,

22
Nesta linha, leia -se a lição de Antonio Luciano de Sousa Franco, ao dizer:
“a) Noção e origem
I.Em sentido amplo, orçamento será qualquer previsão de receita e despesa a realizar por um sujeito (durante um período de tempo; ou
com determinados empreendimentos e finalidades). Não basta isso, porém, para caracterizar o orçamento do Estado, pois este surgiu como
instituição jurídico -política típica do constitucionalismo liberal, designadamente na prática constitucional inglesa, depois progressivamente
acolhida por todo o mundo. O constitucionalismo estruturou -se com base em duas ideias nucleares: o equilíbrio dos poderes do Estado (não
necessariamente na forma de separação de poderes) e a defesa dos direitos individuais (designadamente a propriedade privada). Dessas duas
preocupações, numa ordem liberal burguesa, nasceu o orçamento (infra, cap. XII).
II. Este é uma instituição consistente na autorização política para cobrar receitas e efetuar despesas durante um certo período (em regra anual),
a qual condiciona a atividade de toda a administração durante o ano financeiro.
Assim, o orçamento nasceu como: a) uma previsão cada vez mais perfeita de receitas e despesas; e b) uma autorização política das assem-
bleias legislativas. Por esta autorização se limitam os poderes do Executivo em função da competência própria do Legislativo; e se garantem
os direitos individuais, pois os representantes dos contribuintes votam autorizando a cobrança de impostos.” (Manual de finanças públicas e
direito financeiro, Lisboa, Tipografia Guerra -Viseu, 1974, v. 1, p. 367-8).
23
Celso Bastos ensina:
“A lei orçamentária anual é aquela que prevê de forma estimativa as receitas da União, assim como autoriza a realização das despesas. A lei
orçamentária é anual, isto é, válida para o exercício financeiro que tem a duração de um ano. Conterá um orçamento fiscal, é dizer, uma peça
prevendo as receitas fiscais da União, de seus fundos, de órgãos e entidades da Administração direta e indireta. Deverá conter também um
orçamento de investimento daquelas empresas em que a União detenha a maioria do capital votante. E finalmente um orçamento da seguri-
dade social, com abrangência de todos os órgãos a ela vinculados. A lei orçamentária anual não pode conter dispositivo estranho à previsão
da receita e à fixação da despesa. Ficam proibidas o que ficou conhecido como caldas orçamentárias, matérias de natureza não financeira,
cuja aprovação era forçada por via da aprovação da lei orçamentária. A Constituição permite, no entanto, que na lei orçamentária se inclua a
autorização para a abertura de créditos orçamentários bem como a contratação de crédito por antecipação” (Curso de direito constitucional,
11. ed., Saraiva, 1989, p. 356).

42
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

através das Cortes de Contas, verdadeiro poder responsabilizador que, de rigor, é. Certamente
haveria sensível melhora da moral pública, se tal ocorresse24.

De qualquer forma, pelo novo Texto, os orçamentos anuais devem ser elaborados com
a inclusão de todas as despesas e receitas programadas para o ano seguinte, seja da Adminis-
tração direta, seja da indireta.

Infelizmente, na prática dos últimos 12 anos, a teoria é outra e o respeito à Constituição


obrigatório apenas para os “cidadãos não governamentais”. A “Operação Lava Jato” assim o
demonstrou.

“Por fim, transformar-se-iam os Tribunais de Contas de órgãos de assessoria do Poder Legislativo para órgãos do Poder Judiciário, com o
24

direito de executar as suas decisões. Tornar-se-iam, portanto, os Tribunais de Contas verdadeiro poder responsabilizador dos atos do Poder
Executivo e Legislativo.
Esta terceira vertente do Poder Judiciário reduziria sensivelmente a absoluta irresponsabilidade que o atual sistema propicia, obrigando as
autoridades a profunda reflexão na prática de todos os seus atos” (Roteiro para uma Constituição, cit., Forense, 1987, p. 54).

43
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

DIREITO FINANCEIRO NO
SÉCULO XXI - PERSPECTIVAS
Francisco Pedro Jucá*
(*) Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Pará – UFPA. Doutor em Direi-
to das Relações Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Doutor em
Direito do Estado pela Universidade de São Paulo - USP. Livre Docente em Direito Financeiro pela
USP. Pós Doutorado pela Universidad de Salamanca. Professor Titular da Faculdade Autônoma de
Direito de São Paulo – FADISP nos Programas de Doutorado e Mestrado. Pesquisador da Fundação
Nacional de Desenvolvimento do Ensino Superior Particular - FUNADESP. Juiz do Trabalho da 2ª
Região, Titular da 14ª Vara do Trabalho de São Paulo. Membro da Academia Paulista de Magistra-
dos e da Academia Paulista de Letras Jurídicas, Sociedade Paulista de Direito Financeiro e Socie-
dade Hispanobrasileira de Direito Comparado.

As reflexões que se vai fazer e que significam de certa forma a redescoberta do Direito
Financeiro têm a motivação mais importante na realização do II CONGRESSO INTERNACIO-
NAL DE DIREITO FINANCEIRO acontecido em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, e que teve
como locomotiva o Tribunal de Contas do Estado e o esforço incomparável do Cons. Ronaldo
Chadid, também Vice-Presidente da Sociedade Paulista de Direito Financeiro, e Diretor da
Sociedad Hispanobrasileña de Derecho Comparado. É significativo ser a segunda experiência,
sucedendo a acontecida em 2014, em São Paulo e que contou com apoio decisivo do Tribunal
Regional do Trabalho da 2º Região.

Dois eventos reunindo especialistas de países diversos, neste ramo do Direito Público, o
qual se vê amadurecendo progressivamente, mobilizando corações e mentes, despertando inte-
resse da comunidade jurídica e tornando possíveis debates cada vez mais substanciosos, eviden-
ciando-se, assim, a fundamental importância da compreensão e do estudo das finanças públicas
e sua regulação jurídica, mormente do seu estatuto constitucional, com especial destaque para o
fato de, em nossos dias, de intensas relações econômicas, com dinâmica própria e antes inexis-
tente, envolver cada vez mais o Estado, exigindo que seja repensado o processo de criação, cons-
trução e hermenêutica do Direito Público, impondo a compreensão sistêmica dele e albergando
em especial espaço o Direito Financeiro.

O caminho a percorrer é imenso, imensurável, até. Porém, é preciso ter claro que toda
a grande caminhada começa com um primeiro passo e que dois já foram dados, avizinhando-
-se o terceiro, previsto para 2016. Vem-se notando cada vez maior e mais intensa participa-
ção das Cortes de Contas no processo, ativa nas discussões e reflexões, naquilo que sempre
se cogitou de construção do novo tempo, por imperativo de necessidade social inadiável;
afinal, o tempo é agora.

Desde a consolidação da figura da organização política da sociedade, com a elabo-


ração do estatuto de organização do poder, surgiu a necessidade da disposição de recursos
para o desenvolvimento das atividades deste aparelho de exercício de poder que, ao longo do

44
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

tempo, vem progressivamente ganhando cada vez mais complexidade, e vendo ser ampliadas
suas atribuições e encargos, resultando deste processo a inclusão no estatuto do poder de
disposições relativas à obtenção destes recursos e, mais adiante, da disposição concreta de-
les.

O importante a destacar desde logo nestas brevíssimas reflexões é que a organização


da sociedade implica na divisão social do trabalho e lança as bases, tanto da divisão em si
como do cimento de coesão, na solidariedade entre os indivíduos, que reconhecem a vanta-
gem da convivência cooperativa e da vida em associação entre si. Ora bem, com fundamento
nesta solidariedade se constrói e consolida ao longo do tempo a convicção de que cabe a
todos contribuir para a vida em comum, compartilhando os encargos e ônus do conjunto da
sociedade, dando-se, assim, o necessário suporte à manutenção da organização.

Com efeito, decorrendo disto, é imperioso registrar que, desde o período embrionário
do que chamamos de constitucionalismo, identifica-se a preocupação com o problema dos
recursos, envolvendo não apenas a sua obtenção, como também seu dispêndio ou gasto,
como se vê nas raízes anglo saxônicas: “não tributos sem consentimento”. Desde aí, percebe-
-se a associação profunda entre o exercício do poder político e o que se convencionou mais
adiante chamar de vida financeira do Estado.

A primeira preocupação se dá no que respeita à obtenção dos recursos feita pela cria-
ção da figura dos tributos, desde a antiguidade, e que apenas depois se volta ou se estende
até o dispêndio ou os gastos destes recursos. As primeiras ações foram no sentido de limitar
ou condicionar o pagamento destes tributos, observando-se ao longo da história sucessivos
conflitos entre governantes e governados exatamente sobre o binômio: cobrar/pagar.

Na leitura que se faz, o ponto nodal está na inclusão do que chamamos de poder tri-
butário ou fiscal no quadro do poder político exercido pelo Estado através do Governo e dos
governantes. Em sendo manifestação clara e inquestionável de poder político, por óbvio que
se incorpora à necessidade de limitação e controle, nos moldes que dão origem e sustenta-
ção ao movimento político e jurídico do constitucionalismo, no contexto do qual surge o Es-
tado Moderno e acerca do qual o saudoso jurista pernambucano Nelson Saldanha comenta¹:

“No meio daquelas transformações, surgia o Estado Moderno, como


concentração de poder e absorção das forças históricas. Com ele, se
fariam políticas as questões culturais e as econômicas. Com ele, as
nações assumiram forma e papel na história, pondo-se o problema
da soberania e, logo depois, o do direito das gentes. Com ele, e com
a unificação das fontes e do ordenamento, fez-se possível o moder-
no juspositivismo, com diversas variantes e conexões. E é no Estado
Moderno, ou sobre o seu arcabouço, que se darão as alterações cons-
titucionais trazidas pelas revoluções demoliberais burguesas, cujo

¹in Formação da Teoria Constitucional, Ed. Renovar, RJ, 2000, pp.18-19

45
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

acompanhamento doutrinário forma, precisamente, o pensamento


constitucional em sua acepção própria, correspondente aos séculos
contemporâneos.”

É no contexto deste processo que resulta a concepção de Estado de Direito, acerca


do qual o mesmo autor leciona²: “Temos então o Estado de Direito como aquele em que o
limite e o fundamento da ação estatal se encontram na ordem jurídica e essencialmente na
base desta, a constituição.”

A ação estatal limitada e condicionada pelo direito evoluiu no tempo, e para abreviar,
destacamos dois aspectos.

Num primeiro estágio, tivemos o processo e sistema normativo tendo como destina-
tário o Estado, com mandamentos negativos ou vedatórios, onde se continham proibições
ou restrições, estabelecendo “o que não poderia ser feito”. Releva notar que, considerada a
historicidade do direito, este elabora respostas para problemas e questões que a sociedade
formula diante de necessidades reais postas pelas circunstâncias na etapa do processo evolu-
tivo. Ora, originariamente, e mesmo durante largo período, a necessidade posta era a da limi-
tação, condicionamento e regulação do poder político e do seu exercício. Daí, a preocupação
central ser a de restringir, limitar, deter.

É exatamente a este período que corresponde a figura do Direito Político, visto que,
no seu cerne, as Constituições se ocupavam da organização e exercício do poder político,
estabelecendo limitações e condições, consistindo em estatuto jurídico do poder político.

Em etapa mais posterior, com a superação do liberalismo clássico abstencionista, vai-


-se constatando o alargamento pronunciado “do político” e o surgimento do que foi o consti-
tucionalismo social, com a incorporação ao pacto político que a constituição instrumenta de
elementos outros, mais amplos, alcançando o campo do econômico e do social, mormente
como resposta à Questão Social advinda da Revolução Industrial, prenhe de conflitividade
social, para a qual o Estado Liberal não estava habilitado e instrumentado para lidar, especial-
mente pela superação da demanda original da igualdade formal (perante a lei) fundante da
autonomia da vontade e pelo surgimento de outra necessidade, a da igualdade substancial,
esta relativa às condições dos indivíduos.

O Estado assim evolui da abstenção, da conformação estrita de manutenção da ordem


interna através da política e justiça, com a tutela do contrato (pacta sunt servanda) e da pro-
priedade; e da ordem externa pela defesa, com manutenção de exercício e diplomacia, para a
intervenção nas relações privadas, notadamente econômicas, editando regramento capaz de
lidar com a conflitividade, como se viu na Constituição Mexicana, com os primeiros dispositi-
vos sobre direitos de trabalhadores, e mais maduramente na Constituição Alemã de Weimer,
que trouxe todo um capítulo voltado para a ordem econômica e social, inaugurando a idade

²op.cit.p.20

46
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

do estatuto constitucional dos fatores de produção, capital e trabalho, como observa Manoel
Gonçalves Ferreira Filho no seu Direito Constitucional Econômico³, que lançam as bases para
os irmãos, Direito Econômico e Direito do Trabalho, conforme explica Geraldo Vidigal no seu
Princípios de Direito Econômico⁴.

A mutação apontada é importante de ser destacada porque significa viragem subs-


tancial no processo evolutivo do constitucionalismo e que reflete hoje na etapa em que vi-
vemos, iniciada no pós-2ª Guerra, em que se tem a centralidade dos Direitos Fundamentais.
Tudo isso ora se consolida, como aponta Jacques Schrams, no seu estudo sobre o princípio
da legalidade, em que ensina que esta não é a observância tradicional da norma jurídica pura
e simples porque a liberdade de ação ou a autonomia da vontade do Estado não é igual a do
particular, na qual tudo o que não está juridicamente proibido, está juridicamente permitido.
Consequentemente, o Estado e os Governantes não estão autorizados a fazer tudo aquilo que
o direito não proíbe, mas apenas o que esteja de acordo com a conformidade jurídica, ou seja,
somente o autorizado, e, mesmo assim, nos limites e condições da limitação e autorização
dados pela ordem jurídica. É a chamada legalidade em nossos dias.

Esta concepção mais contemporânea se reflete em todo o sistema jurídico e políti-


cos, eis que os conceitos são progressivamente revistos e seus conteúdos redefinidos, gerando
compreensão mais diversa.

Particularmente para o que nos interessa neste brevíssimo estudo, consideramos a exis-
tência de um Sistema de Direito Público aproximadamente em afinidade com o que propõe
Maurice Duverger no seu Institutions de Droit Publique⁵, consistindo na formulação integrada e
interativa entre: Direito Constitucional, Administrativo, Financeiro, Tributário e Econômico, dan-
do forma à regulação jurídica da ação estatal no universo da economia e das relações sociais,
sobressaindo principalmente o papel de agente que objetiva manter relativo equilíbrio nas rela-
ções privadas, de sorte a imprimir o conteúdo de justiça norteador do direito para, mais adiante,
buscar a preservação da estabilidade das instituições e do processo social.

Para cumprir este papel que toca ao Estado na contemporaneidade, a formulação acima
referida tem a utilidade de permitir compreender a ordem jurídica como um sistema amplo, in-
tegrado por diversos subsistemas, articulados entre si, que se amoldam aos campos da atividade
e das necessidades humanas e sociais dando-lhes forma jurídica, unificados e harmonizados
pela Constituição que desempenha o papel de base, porque fundamento de todo o sistema,
como também de cúpula, quando o harmoniza e unifica. Assim, em tal leitura, tem razão Ricar-
do Lobo Torres⁶ quando observa que:

“A Constituição já não é um documento que apenas regula os aspec-

³Ed. Saraiva, SP, 1993


⁴Ed.SP d.
⁵Ed. Pres Universitaires de France, Paris, 1982
⁶in. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário, vol.I, p. 9, ed. Renovar, RJ, 2009

47
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

tos formais dos direitos fundamentais e as regras do jogo; as neces-


sidades do Estado Democrático obrigam-na a apresentar conteúdos
também abertos, para a positivação da liberdade, da justiça e da segu-
rança jurídica.”

Nesta concepção vamos constatar que há enorme relevo dado à idéia de Serviço Pú-
blico, entendido como ação permanente do Estado e dos seus agentes no atendimento das
necessidades coletivas públicas, e que aí ganha guarida a intervenção do Estado na economia,
direta ou indiretamente; a regulação de atividades; a disciplina das relações de mercado, de
trabalho, de consumo e a tecnização da gestão pública com o imperativo do planejamento de
ação estatal nestes campos.

Ora, neste quadro, cresce o volume dos recursos financeiros necessários a custear as
atividades e incumbências estatais, sejam em investimentos ou em custeio de atividades, para
a realização das políticas públicas, projetos e programas de atividades governamentais, com
incorporação de tecnologia e sofisticação crescente de mão de obra para fazer frente às novas
demandas.

É neste cenário que se pretende vislumbrar o Direito Financeiro do século XXI, trazendo
a idéia da cidadania fiscal como conseqüência para participação da soberania popular e cidadã
na vida financeira do Estado, e o estabelecimento de regras fortes disciplinando-a, dando azo
ao surgimento neste subsistema de uma “constituição financeira”, que no dizer lúcido de Ri-
cardo Lobo Torres⁷: “Compõem basicamente a subconstituição Financeira propriamente dita a
limitação do poder financeiro do Estado ou, especificamente, a limitação do poder de gastar.”

Durante largo tempo, a parte da vida financeira do estado que mais diretamente refletia
(de forma realmente perceptível) na vida social e do cidadão (indivíduo), dizia respeito à obten-
ção dos recursos pela via da tributação. A atenção era mais fixada na receita estatal porque a
consciência da obrigação de pagar (compulsoriamente) os tributos atingia diretamente o indi-
víduo.

Daí, durante larguíssimo tempo, o centro das atenções, quando se tratava do tema, era
a tributação: formas, tipos, modo, quantidade, freqüência, etc. Com isso, ganhou impulso sig-
nificativo o ramo do direito que de tal se ocupava, qual seja o Direito Tributário, de importância
fundamental no sistema, vez que disciplina a arrecadação e, sobretudo, a relação entre o Fisco e
o cidadão, sendo assim útil valer-se do magistério de Regina Helena Costa quando diz: “o con-
ceito de Direito Tributário como o conjunto de normas jurídicas que disciplinam a instituição, a
arrecadação e a fiscalização de tributos.” No mesmo sentido Luciano Amaro, no seu premiado
Direito Tributário Brasileiro pontua⁸:

“Preferimos, por amor à brevidade, dizer que o direito tributário é a dis-


ciplina jurídica dos tributos. Com isso abrange todo o conjunto de prin-
⁷op.cit.p.497
8
op.cit. p.2

48
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

cípios e normas reguladoras da criação, fiscalização e arrecadação das


prestações de natureza tributária.”

Fixando o objeto e finalidade do Direito Tributário, Sacha Calmon Navarro Coelho⁹, le-
ciona com maestria:

“O Direito Tributário cuida especificamente das receitas derivadas do


patrimônio particular transferidas para o tesouro público mediante
“obrigações tributárias” previstas em lei. A ênfase do Direito Tributário
encontra-se na relação jurídica e não na atividade estatal de obtenção
de receitas. Não é Direito do Estado, é relação jurídica entre sujeitos
de direito sob os auspícios da legalidade e da igualdade.”

No mesmo sentido, Hugo Brito Machado10 aponta:

“O Direito Tributário existe para limitar o poder de tributar, transfor-


mando a relação tributária, que antigamente foi uma relação simples-
mente de poder, em relação jurídica. A finalidade essencial do Direito
Tributário, portanto, não é a arrecadação do tributo, até porque esta
sempre aconteceu, e acontece independentemente da existência da-
quele. O Direito Tributário surgiu para delimitar o poder de tributar e
evitar os abusos no exercício deste.”

Está desde logo muito claro o caráter e natureza de garantia de direitos do cidadão atri-
buído ao Direito Tributário, considerando-se que a atividade arrecadatória atinge diretamente o
indivíduo e sua atividade na sociedade, restringindo-lhe o direito e a possibilidade de apreender,
apropriar-se e conservar riqueza, já que compulsoriamente, ao fundamento da solidariedade
social, abre mão de parte não desprezível desta riqueza em favor do Estado, com a finalidade de
atender aos interesses maiores da coletividade. Ora, a formulação é simples e explícita. Exercí-
cio do poder de cobrar, necessidade de limitação e controle (proteção), valendo lembrar a lição
de Aliomar Baleeiro11, clássica entre nós: “O tributo é vetusta e fiel sombra do poder político, há
mais de 20 séculos. Onde se ergue um governante, ela se projeta sobre o solo de sua domina-
ção.”

Evidenciado o exercício de poder político (governo) e a necessidade de limitação e con-


trole, como assinala o mesmo autor:

“A defesa do sistema tributário e do próprio regime político do apis


processar-se por um conjunto de limitações ao poder ativo de tribu-

9
in Curso de Direito Tributário Brasileiro, Ed. Forense, RJ, 2006, p.34
10
in Curso de Direito Tributário, 36ª Ed., Malheiros, SP, 2015, p.52
11
in Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar, Ed. Forense, RJ, 1974, p.1 e 3

49
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

tar. Delas a mais importante, por suas implicações políticas e jurídicas


é o da legalidade dos tributos. Em geral, essas limitações se endere-
çam ao poder ativo de tributar. Mas, existe, a nosso ver, também, a
limitação do poder de não tributar, ou isentar.”

De certa forma, aconteceu durante muito tempo desenvolvimento intenso e justificado


do Direito Tributário. Ao mesmo tempo, o Direito Financeiro como que hibernou, quedou em
patamar mais baixo e se o remeteu a quase como que alguma coisa secundária e de importân-
cia menor. Mesmo no campo didático acadêmico, salvo exceções, ficou menos em evidência,
funcionando como “etapa antecedente” do estudo do Direito Tributário.

Há quem especule, inclusive, que este eclipse do Direito Financeiro em relação ao Di-
reito Tributário possa ter um quê de conveniência, de neutralização de eventual exame crítico
sobre a destinação e forma de aplicação dos recursos públicos, e até mesmo no que respeita à
gestão da máquina estatal. Isto porque se passa ao largo da regulação. Afinal, sendo conside-
rado secundário e quase “burocrático” e mascarando-se sua real importância, muitas respostas
embaraçosas não precisam ser dadas, muitas explicações podem ser omitidas e muitos erros
podem ganhar o perdão tácito do silêncio; até porque, o que os olhos não vêem, o coração não
sente.

Mas, tudo tem o seu tempo.

Este quadro começa a mudar quando a sociedade começa a perceber e tomar consci-
ência de que as finanças públicas são fundamentais para a sobrevivência da organização social,
para o Estado de Bem Estar Social, para o desenvolvimento econômico, para a redistribuição
das riquezas e para o atendimento das demandas sociais. Exatamente assim, configurando que
o poder de utilização, destinação e gestão dos recursos é igualmente exercício, e forte, de po-
der político, e com o mesmo fundamento, tem-se que ele demanda de limitação, controle e
responsabilidade, vindo a constituir em limitações ao poder do Estado de gastar, como antes se
mencionou, referindo a Lobo Torres.

Começa, então, a reflexão sobre as finanças e sua regulação. Ganha espaço no noticiá-
rio da imprensa e nas discussões públicas, problemas como dívida pública, pagamento de juros
e serviço da dívida, necessidade de investimentos públicos, custo de funcionalismo, problema
previdenciário, déficit público e seus reflexos. Isto porque a sociedade começa a tomar cons-
ciência das implicações e efeitos das finanças públicas sobre a vida cotidiana, o que significa
dizer, os olhos passam a procurar porque o coração começa a sentir, como antes acima se
referiu.

É o começo da grande virada que agora vivemos. O sistema arrecadação (sujeita a con-
troles e limitações)/dispêndio (igualmente sujeito a controles e limitações) vem ganhando os
contornos jurídicos preconizados no sistema constitucional, correspondendo ao direito funda-
mental ao Bom Governo.

50
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

Daí resulta que, como nunca, começam a ser discutidos temas como Orçamento, des-
pesas públicas, relações do Estado com a economia, responsabilidade fiscal de governantes e
controle de gastos: forma, volume e destinação começam a figurar na pauta da sociedade.

É o surgimento da nova idade do Direito Financeiro. Este vetusto segmento da ordem


jurídica retoma o lugar devido. Retoma a posição de importância no sistema do Direito Público
porque se constata que a arrecadação de recursos é fundamental, mas a gestão dos recursos
arrecadados, o controle do processo, a destinação dos recursos e as escolhas políticas de desti-
nação efetivamente dizem, e sempre disseram, respeito direto aos interesses de todos e de cada
um, e o relativo olvido do passado recente trouxe muito mais conseqüências negativas do que
se imaginou a princípio.

Eis aí que no âmbito acadêmico se retomam os estudos sobre a matéria financeira. As


Cortes de Conta retomam a posição para a qual foram concebidas e a sociedade civil reivindica
participação no trato dos assuntos das finanças. Começam a ser postos questionamentos antes
inexistentes sobre a destinação de recursos. Ao lado disso, vigorosamente ressurge a preocu-
pação ética com a gestão dos recursos e da máquina pública, patenteando a exigência de con-
trole e fiscalização de responsabilização de gestores, como coisa que realmente é de interesse
público.

É a etapa que começamos a viver. Efetivamente é um momento histórico.

O fenômeno não é apenas nacional, brasileiro; no mundo inteiro levantam-se as questões e


debatem-se os problemas. Buscam-se soluções.

O mais importante para as respostas às questões postas vem exatamente do Direito


Financeiro, porquanto a maioria dos problemas encontra caminho de solução, ou pelo menos
de tratamento, através de regulação adequada, missão clássica e típica deste ramos do Direito
Público, tão nobre, útil e necessário; até porque, como acentua o grande Régis Fernandes de
Oliveira12, o: “Direito Financeiro é o estudo dos princípios e normas que regem a atividade finan-
ceira do Estado.”

E o mesmo autor observa a complementação do quadro ou subsistema, tal como o


fazemos, assinalando que:

“Em sendo assim, as finanças púbicas cuidam não só da tributação,


ou seja, dos recursos que ingressam nos cofres públicos pela via do
constrangimento sobre os particulares ou daqueles que neles entram
por exploração do patrimônio público ou dos serviços que prestam.”

E, mais adiante completa13: “Quando se fala em finanças alude-se aos fins, isto é, o tér-

in Curso de Direito Financeiro, Ed. RT, SP, 2013, p.99


12

in. Tratado de Direito Financeiro, Coord. Ives Gandra da Silva Martins, Gilmar Ferreira Mendes e Carlos Valder do Nascimento, Ed. Saraiva, SP,
13

2013, p.10

51
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

mino, o fim, o pagamento. Em sentido amplo, haveria de se ter o aumento da dimensão a ser
alcançada na compreensão da matéria.”

O disciplinar, o regular a atividade financeira do Estado, ganha relevo especial em nossos


dias, como mostra o jurista Marcus Abraham14, ao explicar o conceito:

“O Direito Financeiro é o ramo do direito público destinado a discipli-


nar a atividade financeira do Estado, ou seja, é o conjunto das normas
que regula o relacionamento do Estado com o cidadão para arrecadar,
gerir e aplicar os recursos financeiros, de acordo com o interesse pú-
blico. Importante ressaltar que o Direito Tributário é considerado ramo
autônomo do Direito Financeiro, responsável por disciplinar todos os
aspectos relativos à receita pública originária dos tributos, que é, ape-
nas, uma das inúmeras fontes de financiamento do Estado regulada
pelo Direito Financeiro, já que, como veremos adiante, existem outras
fontes de receitas públicas, tais como aquelas originárias do próprio
patrimônio estatal, da exploração de petróleo e de energia elétrica, do
recebimento de heranças e legados e do pagamento de multas.

Assim, além do Direito Financeiro englobar o Direito Tributário, tra-


ta também do Direito Patrimonial Público, que disciplina a utilização
dos bens do Estado como fonte de receitas; do Direito do Crédito
Público, que regula a emissão dos títulos públicos e da captação de
empréstimos no mercado de capitais; do Direito da Dívida Pública,
que disciplina o empenho até o pagamento; das obrigações do Esta-
do; do Direito Orçamentário, que traz as regras para a elaboração dos
orçamentos, e, finalmente, do Direito das Prestações Financeiras, que
regula as transferências de recursos do Tesouro Nacional, como as
subvenções a governos e a particulares, as participações no produto
da arrecadação e os incentivos fiscais.”

É quando se atenta para a extensão do conteúdo que se tem a noção clara da importân-
cia do Direito Financeiro no quadro do Direito Público, contextualizado ao Estado Democrático
de Direito constitucionalmente gizado entre nós pela Constituição Brasileira de 1988.

Como é possível perceber, a repercussão da regulamentação da atividade financeira


do Estado nos Direitos Fundamentais e na conformação do Estado Social não apenas são ex-
cepcionalmente grandes, como também principalmente fundamentais, porque a efetivação e
a concretização de Direitos estão condicionadas à disponibilização de recursos que, por seu
turno, está condicionada às escolhas políticas da sociedade e de seus governantes na eleição
e fixação de ordem de prioridades, passando, obrigatoriamente pelo binômio receita/despesa.

14i
n Curso de Direito Financeiro Brasileiro, Ed. Campus Elsevier, RJ, 2015, p. 29

52
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

Destaca-se aqui que a capacidade de realizar despesas se condiciona à capacidade de gerar


receitas, o que envolve a capacidade contributiva da sociedade, consideradas famílias e em-
presas, sendo pressuposto essencial o equilíbrio entre ambas, valendo recorrer ao jurista Regis
Fernandes de Oliveira15, mais uma vez:

“Como se apura, é uma constante entre os autores, e outros vere-


mos, que trata-se da matéria como afeta ao desenvolvimento de al-
guma atividade do Estado que possa interferir na vida das pessoas.
Referida atividade envolve tanto a exigência dos tributos, o que invade
o bolso do contribuinte, quando a cobrança de outros recursos que
dizem respeito ao patrimônio público e aos serviços que presta. Do
lado oposto das receitas há a obrigação de atender as necessidades
estabelecidas no ordenamento normativo, o que alcança as despesas,
e, entre tais procedimentos, há o balanceamento entre ambas através
do orçamento. De igual forma o direito financeiro alcança o crédito/
débito público. Por fim, a forma de gerenciamento de todos os recur-
sos afetados por meio de gestão pública responsável.”

Além disso, a obrigação de contribuir e o direito de usufruir de benefícios e serviços,


que constituem a solidariedade social, é o binômio cujo equilíbrio é essencial à sociedade e aos
indivíduos e demanda de regulação cuidadosa. Aliás, mais do que isto, demanda estrita obser-
vância desta regulação, impondo a necessidade de fiscalização e controle. O norte referencial
deste processo está em que a definição dos interesses aos quais é atribuída a responsabilidade
do estado e que, portanto, por sua natureza essencial são políticos, estão incorporados à ordem
jurídica. Estes interesses são, assim, juridicamente reconhecidos e declarados, ganhando, des-
sarte, imperatividade, e, não suprimindo a discricionariedade necessária e inerente a função de
governo, mas, estabelecendo linhas gerais e fundamentais de limitação e orientação, intranspo-
níveis por serem jurídicas, às quais o governante está vinculado, e, portanto, deve obedecer ao
sentido e dar cumprimento, como assim o explica Aliomar Baleeiro16 no seu clássico quando diz:

“Os serviços públicos, em última análise, como instrumento do Esta-


do, têm por alvo a realização prática daqueles fins que moralizam e
racionalizam o fenômeno social do poder político: a defesa da nação
contra agressões externas, a ordem interna como condição de se-
gurança e liberdade de cada indivíduo, a elevação material, moral e
intelectual de todas as pessoas, o bem-estar e a prosperidade gerais, a
igualdade de oportunidades etc., para todos os componentes do gru-
po humano. São, pois, os serviços públicos os meios técnicos e jurídi-
cos pelos quais, através de seus agentes e suas instalações, a pessoa
de Direito Público interno, usando do poder estatal, busca atingir os
fins que lhe atribuem as idéias políticas e morais da época. Cada épo-

15
op.cit. p.10-11
16
Uma Introdução à Ciência das Finanças, Ed. Forense, RJ, 2010 p. 7

53
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

ca escolhe politicamente os objetivos imediatos que devem constituir


a tarefa dos serviços públicos”.

Como se vê, como nunca, destaca-se a importância de compreender, interpretar, aplicar


e aperfeiçoar este sistema normativo, e todo este processo significa o renascimento do Direito
Financeiro, deixando entrever o reconhecimento da sua real importância para a democracia e
no Estado de Direito, ganhando neste contexto importância o Princípio do Planejamento, ema-
nação direta do que Lobo Torres17 chama de “estado orçamentário”, apontando que é aquele
que:

“(...) pelo orçamento fixa a receita fiscal e patrimonial, autoriza a en-


trega de prestações de educação, saúde, seguridade transportes e
orienta a promoção do desenvolvimento econômico, o equilíbrio da
economia e da redistribuição de renda, é um Estado de Planejamento.
A receita pública, os investimentos e as despesas se fazem segundo
planos anuais ou plurianuais.”

Já vai longe o tempo em que se considerava a normatização da vida financeira do Es-


tado como “burocracia” formal, destinada, apenas, a cumprir um rito de aparência porque seu
conteúdo era assunto que dizia respeito apenas àqueles com responsabilidade de governo, ou a
funcionários públicos algo especializados; de qualquer sorte, não guardando nenhuma relação
direta com a sociedade em geral ou com o indivíduo em particular.

Agora assistimos a redescoberta do Direito Financeiro exatamente porque salta aos


olhos o significado político e o quanto de poder a vida financeira contém e encerra, porquanto,
através do processo do estabelecimento e da arrecadação de impostos, bem como da aplica-
ção das verbas arrecadadas, resta claro o exercício do poder político, uma vez que, através da
gestão destes recursos no sistema receita/despesa, os governantes exercem real poder, deter-
minam condutas e movimentos, que, se em princípio eram pouco perceptíveis, hoje são cada
vez mais constatados pela sociedade.

Tal quadro impôs a revisão. Esta revisão vai aos poucos acontecendo, principalmente e
em primeiro lugar no campo da arrecadação. A matéria tributária, já há algum tempo, vem sen-
do discutida com intensidade; questiona-se os tributos, as formas arrecadatórias e já se cogita
de pôr em pauta dois aspectos fundamentais a este respeito: a capacidade contributiva, real
possibilidade de pagar dos indivíduos e entes; e o caráter não confiscatório da tributação, cone-
xo a isto, reconhecendo-se que, em não raras hipóteses, a tributação subtrai riqueza exagerada
do particular. Toda esta temática é importante e vem sendo tratada.

O importante é destacar que o aspecto antes desconsiderado, relativo à gestão e empre-


go dos recursos arrecadados, vem assumindo o seu devido lugar porque a sociedade começa
a questionar, através das suas estruturas, com ênfase especial no mundo da academia, o modo
17
op.cit. vol.V, p.76-79

54
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

da gestão destes recursos, a destinação deles e principalmente o controle da sua utilização,


sempre com racionalidade, pois, como observa o multicitado Lobo Torres18, é indispensável o
planejamento, cuja atividade:

“(...) passa a depender da efetiva realização da receita orçamentária e


dos resultados positivos da economia. As políticas públicas dependem
de dinheiro, e não apenas de verba. Os direitos sociais e a ação gover-
namental vivem sob a reserva do possível, isto é, da arrecadação dos
ingressos previstos nos planos anuais e plurianuais"

Com isto, inicia-se o processo de busca pela efetivação da democracia constitucional-


mente estabelecida na vida financeira do Estado e é posto em pauta o tema da relação indis-
sociável entre o pagamento de tributos, fundado na solidariedade que embasa a organização
social como antes referido, e a apropriação dos benefícios e dos serviços públicos, pondo-se
em questão a relação custo benefício, apontando-se o sentido de que o dever de contribuir tem
correspondência no dever de dispor de serviços públicos com grau de qualidade minimamente
razoável.

Abrem-se as portas para a discussão dos investimentos públicos, seus objetivos e resul-
tados. As autoridades governantes começam a prestar contas reais da gestão; tal dimensão da
vida política escapa da situação antes “quase exotérica” e desembarca no cotidiano das pessoas.

Anuncia-se a etapa da exigência de bom governo como sendo aquela capaz de atender
adequadamente as demandas da sociedade, o que passa pela utilização correta e séria dos re-
cursos públicos.

Neste cenário já se percebe que o controle das contas públicas começa a reocupar a
devida importância, e, com isso, as Cortes de Contas e o Ministério Público que autuam junto a
elas ganham valorização e visibilidade, têm a sua atividade mais compreendida pela sociedade
e, em conseqüência, crescem em valorização.

Surge a idéia da Responsabilidade Fiscal, que podemos sintetizar como a obrigação de


gestão cuidadosa, eficiente e correta dos recursos públicos, o dever de manutenção de equilí-
brio nas contas, de limitação no endividamento, a preocupação com a pontualidade para com
os credores, o cuidado na condução do processo de administração na gestão da coisa pública.

Tudo isso passa pelo cuidado permanente com os recursos públicos, porquanto está na
ordem do dia a repulsa aos desperdícios e aos desmandos que, lamentavelmente, estavam na
tradição brasileira. Todos são passos importantes da longa caminhada da maturação no com-
preender a coisa pública.

E, se depreende da leitura do Programa do Congresso, a importância da contribuição

18
op.cit.vol.V,p.79

55
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

que ora se constrói em favor desta evolução, recorrendo, inclusive, ao conhecimento da ex-
periência em outros países, que certamente auxiliará em muito esta caminhada de todos nós,
estudantes do Direito Financeiro.

Vem de Portugal a experiência europeia, na palavra autorizada do Jurista Paulo Ferreira


da Cunha, que versou sobre: União Européia, Soberania e Finanças Públicas; seguida a abalizada
análise do Min. Tarcísio Vieira de Carvalho Neto, sobre o Controle da Impessoalidade.

O jurista de São Paulo, José Maurício Conti, nos expôs sobre o Planejamento e a Res-
ponsabilidade Fiscal, e o Min. Benjamim Zymler nos trouxe a reflexão sobre A Governança Pú-
blica na perspectiva do TCU: a contratação como instrumento de gestão, fazendo a preciosa
intersecção entre o Direito Financeiro e o Direito Administrativo, compartilhando o domínio que
tem de ambos os ramos do Direito.

O Cons. Valdeci Pascoal, voz de Pernambuco, noticia o Aprimoramento dos Tribunais de


Contas: O Programa de Qualidade e Agilidade, evidenciando o estágio evolutivo do controle e
fiscalização das contas públicas.

Da nação irmã República Argentina, o Dr. Daniel Reposo incorpora a experiência latino-
-americana, dissertando sobre o Controle Externo na Argentina feito pela Sindicatura General
de La Nación.

Aprofundando a reflexão sobre a conexão entre o Direito Financeiro e os Direitos Fun-


damentais, ouvimos, desde a terra bandeirante, o eminente jurista Luiz Rodolfo Souza Dantas
sobre as Interfaces entre Direitos Humanos e Finanças Públicas: Problemáticas doutrinárias,
legislativas e jurisprudenciais; seguido do ilustre jurista Lauro Ishikawa que expôs sobre o tema
tormentoso dos Precatórios e Seqüestro Humanitário.

A Lei de Responsabilidade Fiscal, que completa 15 anos, foi brilhantemente analisada


pelo Cons. Edilberto Carlos Pontes Lima, que refletiu sobre seus avanços e percalços, reviven-
do o brilho da Padaria Espiritual da Praça do Ferreira em Fortaleza; e o reputado jurista carioca
Marcos Abraham dissertou sobre a Judicialização da Saúde e Limitações Orçamentárias.

Da Bahia veio a contribuição preciosa do Cons. Inaldo da Paixão Santos Araujo que, com
o talento da Terra Boa, fez portentoso exame da Lei de Contabilidade Pública, a n.4.320/64, que
completa 51 anos; e, também do norte, da Atenas brasileira, o Cons. José Ribamar Caldas Fur-
tado expôs sobre o Controle da Renúncia Fiscal.

Vale uma atrevida reflexão. À riqueza e variedade da temática abordada, que ao mesmo
tempo guarda conexão e estrutura sistemática na ordem dos trabalhos, nos fornece um painel
precioso para a meditação atenta e cuidadosa. Juntam-se os aspectos teóricos e a conside-
ração sobre as vicissitudes cotidianas, hauridas da experiência e dos estudos, que nos aponta
o sentido do caminhar do processo – a evolução gradativa e sólida – da ascensão do Direito
Financeiro à sua posição e à sua inserção justa no subsistema do Direito Público, como antes se

56
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

referiu, tudo em um painel rico porque percorre o fundo e forma das questões postas.

Exatamente em razão disto, torna-se possível compreender com clareza os passos evo-
lutivos que vão sendo dados gradativamente pelo Direito Financeiro e com o adicional de que
se o faz com a adequada inserção no sistema do Direito Público, como já visto, porque em ar-
ticulação com o Direito Constitucional, base e unificação sistêmica do conjunto, mas também
do Direito Administrativo, do Econômico e do Tributário. Isto nos permite, ainda, compreender
melhor o papel desempenhado pelo Direito Financeiro, a nobreza e a importância da sua fun-
ção no Estado de Direito Democrático, deixando ver que também desempenha mister relevante
para a consolidação da democracia e seu aprofundamento, precisamente, pela submissão ade-
quada à ordem jurídica.

Atrevo-me a considerar o II Congresso Internacional de Direito Financeiro como fato


histórico, não apenas sob o aspecto científico e doutrinário, mas político e administrativo tam-
bém, na medida em que acorrem confluindo para o mesmo leito de tendências, visões e expe-
riências, auxiliadas pela reflexão maturada, e daí resultando, sem nenhuma dúvida, contribuição
decisiva para a evolução do processo.

Assim, estamos assistindo, testemunhando até, o quase patinho feio converter-se no


cisne altaneiro; estamos assistindo a borboleta ensaiar seus vôos mais ambiciosos.

Tais vôos significam a reinterpretação da função e do papel político do Orçamento e,


partindo desta percepção, aumentar o grau de consciência quanto às escolhas políticas, avaliar
mais claramente a fixação das prioridades, aprofundar o nível da cobrança pela observância das
normas de boa governança, incluída, aí, sem dúvida, a probidade como pré-requisito.

O horizonte que se pode já divisar daqui é o da maior substanciação da cidadania fiscal,


a expansão para o campo fiscal no binômio dever/direito, no que respeita à vida financeira do
Estado, exatamente compreendendo as implicações concretas desta no cotidiano de todos e
de cada um.

Neste horizonte também está a percepção mais clara da relação entre as finanças pú-
blicas e a economia, vez que a conduta estatal na gestão de suas finanças, com manutenção
ou não de equilíbrio de contas, com atos de gestão adequados e consequentes, traz consigo
aumento ou diminuição da repartição das riquezas e das rendas, enriquecendo ou empobre-
cendo as pessoas, produzindo efeitos diretos e imediatos na vida real, com inflação, capacidade
de compra ou consumo, preservação de poupança ou não, intensidade de carga tributária, ca-
pacidade de previdência social e extensão de políticas e serviços públicos.

Todo este universo de questões passa necessária e inafastavelmente pelas finanças pú-
blicas porque a inserção do Estado no processo da economia é profunda e intensa, e, como
ator neste painel, suas ações repercutem, estando aí a sede daquilo que usamos qualificar como
renascimento do Direito Financeiro, com a compreensão do seu papel político e de sua função
social no Estado Democrático de Direito, o que elevará, a seu turno, ao aprofundamento da

57
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

democracia no processo decisório a ele relativo, incorporando-lhe cada vez mais a cidadania,
valendo colacionar a observação sempre rica de Lobo Torres19 a respeito:

“A participação popular, que estrutura a cidadania ativa, se transforma


em participação política, passando a influir no processo normativo,
entendido no sentido do processo legislativo, administrativo e judicial,
como excelentemente demonstra Diogo de Figueiredo Moreira Neto
que, após definir “por participação política, a atuação formal e infor-
malmente admitida, dos indivíduos e dos grupos sociais secundários,
na ação juspolítica do Estado”, averba que “tanto a condução política
da sociedade exercida pelo Estado, como participação política de in-
divíduos e grupos, tem a mesma e única natureza jurídica fundamen-
tal: são, ambas, modos de exercício de poder.”

Tudo isto a que sumariamente se refere sempre existiu, embora com percepção ex-
cessivamente tênue. Ocorre que nos nossos dias de economia mais complexa, globalizada e
interdependente, agigantam-se, mostram-se com bem mais clareza a sua conexão como o
“leviathan hobbesiano’, impondo novo modo de enfrentar estas questões como imperativo de
sobrevivência, conduzindo a viver no mundo novo do século XXI, ao qual corresponde neste
particular o papel renovado, a releitura, a revalorização do Direito Financeiro, incluindo aí o
controle técnico das Cortes e político dos parlamentos, mas também da sociedade, com a
redução da discricionariedade administrativa da gestão orçamentária que vem ganhando nova
feição, mais ajustada ao Estado de Direito Democrático, mais sensível à cidadania e menos ex-
cludente dela, superando etapa anterior, como observa Lobo Torres20:

“Predominou durante muito tempo, na teoria financeira, a tese da


discricionariedade da Administração na gestão do orçamento. O or-
çamento público seria lei simplesmente formal, mas que não criava
direito para ninguém. Hoje, a Administração continua com a palavra
final para fechar o balanço anual, contingenciar dotações orçamentá-
rias e promover o equilíbrio da gestão orçamentária. Mas outros atores
e procedimentos ingressaram na prática orçamentária para moderar a
discricionariedade administrativa:
a) as titulações ou criação de direitos subjetivos pela legislação e pelo
poder judiciário;
b) as vinculações constitucionais de receitas e despesas previamente
indicadas;
c) as despesas necessárias definidas pelo art. 17 da LRF;
d) tributos finalísticos e pré-ponderação do constituinte ou do legis-
lador.”

19
op.cit.vol.V, p.125
20
op. cit.

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COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

O processo de alteração das coisas, a experiência que se vai adquirindo na prática dos
institutos, toda esta vivência nos traz, a seu turno, uma carga de responsabilidade imensa e de-
safiante, mas a um só tempo gratificante e compensadora porque a tarefa que nos atribuímos,
malgrado seja imensa e complexa, é enriquecedora, tanto para quem a desempenhe, quanto
para a sociedade e as gerações vindouras.

Certamente não nos iremos daqui da mesma forma que chegamos. Saímos muitíssimo
mais enriquecidos e motivados a seguir nas reflexões que apenas se iniciaram há pouco. Saímos
em condições de formular novas perguntas e de elaborar novas problematizações, e, assim,
com nossa reflexão e pesquisa, buscar as respostas que significarão novos passos.

O norte da governança qualificada, da responsabilidade fiscal, da consciência do dever de pres-


tar contas, de atentar para a utilidade e eficiência das ações do poder público, do dever cida-
dão de acompanhar, fiscalizar e cobrar são elementos fundamentais para as categorias recém
identificadas do direito fundamental ao Bom Governo e da cidadania fiscal, e ganham espaço
privilegiado no rol das nossas ocupações, do que resultará imperativamente a perquirição da
ordem jurídica no que respeita a esta temática, bem como a identificação das necessidades de
readequação e ajuste.

Neste quadro precariamente debuxado é possível entender, como se propõe ao norte, o


Direito Financeiro como o Direito Público do Século XXI, como capítulo fundamental na orga-
nização e no funcionamento do Estado de Direito Democrático, inclusive oportunizando o des-
pertar da inclusão social no processo decisório sobre os aspectos fundamentais e estruturantes
do sistema e da consciência da importância do Bom Governo como Direito Fundamental, o
qual é parte essencial a boa governança das finanças.

Podemos ter a consciência de que estamos dando contribuição significativa para o


aperfeiçoamento das instituições e à melhora da vida das pessoas na medida e proporção em
que vamos procurando o aperfeiçoamento do Estado, a qualificação do Governo, a melhora
nas relações jurídicas, a substanciação da democracia brasileira, e, assim, dando real cumpri-
mento ao mandamento constitucional de construir uma sociedade justa e solidária.

É fato que muito a caminhar ainda resta. O horizonte que se tem não é tão imediato e
próximo como desejamos, mas é fato também que os primeiros passos estão dados e são ir-
reversíveis, que antecedem a outros tantos incontáveis e que certamente serão dados; isto nos
consola, motiva, aquece o coração e aguça as mentes porque seguramente estamos contri-
buindo para a construção de um mundo melhor, e, consequentemente, de homens melhores.

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COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

BIBLIOGRAFIA

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COELHO, Sacha Calmon Navarro. in Curso de Direito Tributário, 36ª Ed., Malheiros, SP, 2015,
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DUVERGER. Maurice, in Institutions de Droit Publique, Ed. Pres Universitaires de France, Paris,
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VIDIGAL. Geraldo. in Princípios de Direito Econômico, Ed.SP d.

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COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

ALGUNAS MEDIDAS PARA


REDUCIR LA LITIGIOSIDAD
TRIBUTARIA LOCAL¹
José María Lago Montero
Catedrático de Derecho Financiero y Tributario de la Universidad de Salamanca²

ÍNDICE

Introducción. I. Las causas de la elevada litigiosidad en materia tributaria, en general y espe-


cialmente en el ámbito local. II. Algunos remedios que se proponen para reducir el volumen de
litigiosidad tributaria, general y local. Bibliografía.

01. LAS CAUSAS DE LA ELEVADA LITIGIOSIDAD EN MATERIA TRIBUTARIA, EN GE-


NERAL Y ESPECIALMENTE EN EL ÁMBITO LOCAL.

La existencia de cientos de miles de recursos pendientes de resolver en los órganos re-


visores administrativos y judiciales es cuestión que preocupa tanto a las autoridades tributarias
de los Gobiernos como a las asociaciones de asesores fiscales. A las primeras, porque tal embal-
samiento de asuntos suele llevar aparejada una notable dilación en el cobro de las deudas, sus-
pendidas en buena parte de los casos. Y a las segundas porque tal dilación lo es en su derecho a
la tutela judicial efectiva, en su versión de derecho a obtener una respuesta en tiempo razonable
a las pretensiones que se formulan en vía de revisión. La existencia de tribunales administrativos
fiscales, ideados como filtros que eviten el acceso masivo a la jurisdicción contencioso admi-
nistrativa, no está sirviendo, en los países que conocemos, para solucionar el problema de la liti-
giosidad creciente. También estos filtros se colapsan, almacenando reclamaciones por millares,
que son resueltas en tiempos no cortos³.

A la hora de identificar las causas de este fenómeno de la litigiosidad tributaria creciente


se suele distinguir entre causas mediatas e inmediatas⁴. Sería la causa última y más mediata,
a nuestro juicio, la tensión intrínseca entre el deber de contribuir y el derecho a hacerlo de la

¹Trabajo que se realiza amparado por el I MAS D del que el autor es investigador principal: LA REDUCCIÓN DE LA LITIGIOSIDAD ADMINISTRA-
TIVA, FINANCIERA Y TRIBUTARIA, DER2012 34413, del Ministerio de Economía y Competitividad del Gobierno de España.

²Actúa como Magistrado de refuerzo en el Tribunal Superior de Justicia de Castilla y León, adscrito a la Sala de lo Contencioso Administrativo
de Valladolid, de la que emanan buena parte de sus reflexiones, vertidas en la conferencia seguida de coloquio celebrada en la Facultad de
Derecho F.A.D.I.S.P. de Sao Paolo (Brasil) el 28 de agosto de 2014.

³A favor de los tribunales económico-administrativos introducidos recientemente también en la esfera local se muestra ESEVERRI MARTÍNEZ,
Ernesto: “Aspectos litigiosos del sistema tributario local”, Tributos Locales número 117/2014, página 11. HUELÍN MARTÍNEZ DE VELASCO, Jo-
aquín: “La creación de una jurisdicción fiscal en España. Reflexiones previas”, Intervención en el Seminario del Centro de Investigación sobre
Justicia Administrativa”, Universidad Autónoma, Madrid, 2014, cree innecesaria la creación de una jurisdicción fiscal independiente de la con-
tencioso administrativa, pero sí cree viable una sección separada dentro de ésta y servida por jueces crecientemente especializados.
4
De ellas nos ocupamos hace ya años en LAGO MONTERO, José María: “De la litigiosidad y la justicia tributaria”, Revista Técnica Tributaria
número 69/2005, páginas 53-94. De las conclusiones del Seminario recién citado da cuenta VELASCO CABALLERO, Francisco: “La creación
de una jurisdicción fiscal en España. Conclusiones”, Seminario del Centro de Investigación sobre Justicia Administrativa”, Universidad Autóno-
ma, Madrid, 2014, para quien las cifras de litigiosidad no son elevadas en comparación con el altísimo número de resoluciones que dictan las
Administraciones Tributarias, si bien, una vez superada la vía administrativa, cuadriplican en términos relativos a las de Alemania, superan en un
tercio a las de Francia y son 20 veces superiores a las de Inglaterra y Galés.

61
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

manera menos onerosa legalmente posible. De este choque de trenes es natural que resulten
conflictos. Y las causas más mediatas, la tantas veces denunciada, por excesiva, complejidad
normativa, prolija en regímenes especiales y beneficios fiscales que excepcionan el general
cumplimiento del deber de contribuir; la proliferación incesante de conceptos jurídicos inde-
terminados, de presunciones limítrofes con ficciones, de claúsulas antiabuso colindantes con el
abuso mismo; la agobiante, sólo para algunos, presión fiscal directa e indirecta, hoy informáti-
camente extenuante a veces⁵, pero verdaderamente onerosas ambas, en estos tiempos de crisis
económica y fiscal, para con aquellos grupos de contribuyentes más fácilmente controlables
por las Agencias Tributarias.

Las causas más inmediatas de la litigiosidad las fijan los operadores y comentaristas en
la prepotencia de los administradores tributarios, presentes y pasados, que malentienden el
interés público y lo identifican con la consecución de la mayor recaudación posible. A nuestro
juicio, es la incapacidad de las Administraciones Tributarias para reducir el fraude a niveles tole-
rables, a la media europea o de la O.C.D.E., lo que genera en sus responsables una catarata den-
sa e interminable de malas mañas en la aplicación diaria de los tributos, que desemboca en la
litigiosidad⁶. La plantilla decreciente no se corresponde con las necesidades crecientes, lo que
genera frustración, antesala de la prepotencia, de una Administración conceptuada doctrinal y
jurisprudencialmente como potentior personae. Y tanto que lo es en su actuación diaria…⁷.

En el ámbito de la Hacienda Local la litigiosidad se achaca con frecuencia a la supuesta


doble imposición en que incurren los tributos locales respecto de otros estatales o regionales,
doble imposición que generaría resistencia al pago y conflictividad. Así, se señala a menudo que
el impuesto inmobiliario (I.B.I. en España) es un impuesto sobre el patrimonio que se superpone
al impuesto general sobre el patrimonio (I.P. en España). Pero tal superposición, siendo cierta,
afectaría al limitadísimo número de contribuyentes que lo son hoy de ese impuesto sobre el
patrimonio general (en España, con mínimos exentos de 700.000 euros por persona y 300.000
por vivienda habitual, se ha reducido notablemente el elenco de sujetos pasivos efectivos del
impuesto patrimonial). Otros comentaristas apuntan que realmente el I.B.I. es un gravamen más
sobre la renta, siquiera sea potencial, que el inmueble es capaz de producir, ya sea en aprove-
chamiento por el propietario ya sea cedido a terceros. En este caso, se apreciaría una doble

5
Cfr. GAMERO CASADO, Eduardo: “Las relaciones obligatorias por medios electrónicos en la Administración Tributaria”, en Estudios sobre el
sistema tributario actual y la situación financiera del sector público. Homenaje al Profesor Dr. D. Javier Lasarte Álvarez, que coordinan Francisco
Adame Martínez y Jesús Ramos Prieto, I.E.F., Madrid, 2014, páginas 2.169.2.196.
6
Según el estudio realizado por el sindicato de técnicos de Hacienda G.E.S.T.H.A. y coordinado por Jordi SARDÁ, de la Universidad Rovira i
Virgili “La economía sumergida pasa factura. El avance del fraude en España durante la crisis”, localizable en internet desde enero de 2014, la
economía sumergida la cifra en España la O.C.D.E. en 2012 en el 19,2 %, pero los estudios más recientes la estiman entre un 20% y un 25%
del P.I.B. Destacan que “España es el país con menor número de trabajadores a tiempo completo en funciones tributarias generales, ya sea
respecto al número total de ciudadanos o ya sea respecto a la población activa. En España por cada trabajador en funciones tributarias le
corresponden 1.928 ciudadanos, mientras que para países como Alemania, Luxemburgo, Francia o Dinamarca les corresponden 729, 551, 860
o 719, respectivamente…Solo Estonia dedica menos recursos a la Administración Tributaria que España”. PULIDO ALBA, Emilio: “El fraude fiscal
en España. Una estimación con datos de contabilidad nacional”, ponencia en Seminario de la Universidad de Salamanca, 15 de mayo de 2014,
cree que la percepción de que el sistema es injusto y los casos de corrupción alientan la destrucción de la barrera moral antifraude. Cree que
la A.E.A.T. se está descapitalizando y cifra el fraude en el I.V.A. en un escandaloso 35,35%, y en el I.R.P.F. en el 26,26%.
7
Con el peligro de incurrir en los abusos denunciados por CASADO OLLERO, Gabriel: “La impugnación jurisdiccional de las vías de hecho en
los procedimientos de aplicación de los tributos”, en Estudios sobre el sistema tributario actual y la situación financiera del sector público.
Homenaje al Profesor Dr. D. Javier Lasarte Álvarez, que coordinan Francisco Adame Martínez y Jesús Ramos Prieto, I.E.F., Madrid, 2014, pá-
ginas 2063-2083. Sostiene que la litigiosidad fiscal creciente la desencadena la propia Administración al comprobar las autoliquidaciones, en
procedimientos que son reglados e insoslayables. Aunque la estadística judicial es “enjuta y testimonial”, se producen con más frecuencia de
la deseable actuaciones materiales que carecen de la necesaria cobertura jurídica, en un hacer desmesurado y abusivo, sin amparo en las ya
de por si exorbitantes potestades de que disfrutan las Administraciones Tributarias.

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COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

imposición con los impuestos sobre la renta, en los que ya se gravan los rendimientos de capital
inmobiliario efectivos y los presuntos, a través de la figura de las imputaciones inmobiliarias de
renta. A mi juicio, el objeto imponible, la riqueza gravada en los impuestos inmobiliarios y en
los impuestos sobre la renta es distinta, estática en los primeros y dinámica en los segundos,
y no creo que deba fincarse en ello la litigiosidad que padece la aplicación de estos tributos8.
Lo que realmente irrita a los contribuyentes son las revisiones de valor desproporcionadas y las
deficiencias en las motivaciones y notificaciones de las mismas, amén de las subidas tarifarias
no anunciadas y aprobadas recién transcurridas unas elecciones...

En doble imposición incurre también el impuesto sobre actividades económicas, que


padeció una notable litigiosidad a raíz de su implantación en España en los años 1989 y siguien-
tes, pues buena parte de los contribuyentes no entendían que se gravara una renta sólo pre-
sunta cuando podía demostrarse la no realidad de su obtención efectiva, por ejemplo con los
mismos medios de prueba que sí se admiten en el I.R.P.F. e I.S. Que T.C. y T.S. hayan validado los
gravámenes sobre rentas potenciales, virtuales y presumidas por existentes, en la generalidad de
los casos, no significa que no dejen de chirriar en un sistema tributario que presume del princi-
pio de capacidad económica y del derecho a la tutela judicial efectiva. A nuestro juicio, este tipo
de impuestos, de mantenerse al servicio de la Hacienda Local, debe homogeneizarse en sus
parámetros con sus hermanos de la imposición sobre la renta estatal (régimen de estimación
objetiva singular por signos, índices y módulos) y como en ellos, gozar de carácter facultativo
en cuanto a la renta que se estima indiciariamente, para que le quepa siempre al contribuyente
la opción de tributar por una renta efectiva y probada por los medios de prueba habituales en
Derecho, hoy ausentes del impuesto⁹.

La litigiosidad en el Impuesto sobre Circulación de Vehículos viene dada por las com-
probaciones de domicilio real y efectivo que realizan las Administraciones Tributarias a los su-
jetos pasivos que huyen de tributar en el municipio de su residencia habitual y dicen residir en
otro, ya sea en el que tienen una segunda residencia, un local de negocio o un familiar que los
acoge. Estas prácticas de gamberrismo fiscal las fomentan algunos ayuntamientos con sus tipos
de gravamen extraordinariamente bajos, y el propio legislador que las permite, bajo una sacrali-
zada concepción de la autonomía local. Como ya llevamos 37 años de desarrollo constitucional
autonómico, creo que va siendo hora de que revisemos y abandonemos ciertos dogmatismos
propios de creyentes conversos, y reconduzcamos la autonomía local a cauces que no generen
situaciones histriónicas de desimposición10.

8
También es objeto de polémica frecuente la valoración de los llamados B.I.C.E.S., bienes inmuebles de características especiales (centrales
eléctricas y petrolíferas, autopistas, puertos y aeropuertos) enormemente valiosos y llamados a contribuir más que ninguno en el impuesto
inmobiliario. Concentran una gran riqueza estática, razón por la que el legislador los ha convertido en un objeto imponible de especial rele-
vancia. Si su valoración es proporcionada, no hay por qué rasgarse las vestiduras por que tengan un tipo de gravamen un poco más alto. Pero
tampoco debe perderse de vista que cualquier gravamen a estos grandes contribuyentes termina siendo repercutido en el precio del producto/
servicio que prestan, y soportado a la postre por los contribuyentes de a pie, pequeños, grandes y medianos.
9
Permítasenos de nuevo la autocita pues a éstas cuestiones me he referido más ampliamente en LAGO MONTERO, José María: La reordena-
ción de la Hacienda Local en la Segunda Descentralización, Thomson Reuters Aranzadi, Cizur Menor, 2013, páginas 245-251. Recientemente
GARCÍA-FRESNEDA GEA, Francisco: “El principio constitucional de capacidad económica en el I.A.E. Nuevas perspectivas y análisis crítico”, en
Estudios sobre el sistema tributario actual y la situación financiera del sector público. Homenaje al Profesor Dr. D. Javier Lasarte Álvarez, que
coordinan Francisco Adame Martínez y Jesús Ramos Prieto, I.E.F., Madrid, 2014, páginas 2.991-3.022.
10
Clarividente el estudio de Andrés GARCÍA MARTÍNEZ en la obra colectiva electrónica Unión Europea, armonizacióny coordinación fiscal tras
el Tratado de Lisboa, dirigida por el profesor Javier Lasarte Álvarez y coordinada por los profesores Francisco Adame Martínez y Jesús Ramos
Prieto, Universidad Pablo Olavide de Sevilla-Scuola di Alto Studi Tributari de la Universidad de Bolonia.

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COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

En el impuesto sobre construcciones, instalaciones y obras sigue siendo litigiosa la fija-


ción de la base imponible, pese a los esfuerzos de la jurisprudencia, asumidos paulatinamente
por el legislador, por delimitarla. El recurso a valorar el coste de la obra mediante índices o
módulos debiera complementarse en la ley con la indicación de cuales sean éstos y su impacto
económico. Dejar en manos de los ayuntamientos la fijación de los mismos genera situaciones
conflictivas, en un impuesto que, no lo olvidemos, es un coste para el constructor, y lógicamen-
te va a intentar resarcirse de él repercutiéndolo económicamente en el precio de lo construido.
Será, pues, el comprador final quien lo soporte en su pecunio.

En el impuesto sobre el incremento del valor de los terrenos de naturaleza urbana está
generando alarma y litigiosidad la práctica diaria de la exigencia del impuesto por razón de
plusvalías inexistentes, o inferiores a las legalmente estimadas. Como hemos señalado en otro
lugar, en estos tiempos de crisis en que tantas personas han tenido que vender sus inmuebles a
precio semejante o inferior al de adquisición (más o menos inflado por la burbuja inmobiliaria)
chirría la imperatividad legal en el cálculo de la plusvalía, que se presume existente en todo caso
y valorada en un porcentaje del valor catastral. Algunos órganos judiciales están declarando,
previa práctica de prueba suficiente, que no se produce el hecho imponible si el transmitente
demuestra esa inexistencia de ganancia, lo que da al traste con la presunción legal de incre-
mento de valor existente en toda transmisión. La solución judicial hace justicia obviando la letra
y el espíritu de la ley, que es el de no dejar sin gravamen transmisión alguna por entender que
todas las transmisiones generan plusvalía11.

En materia de tasas y precios crece la preocupación entre los operadores acerca de la


litigiosidad. La verdad es que el legislador hace poco por reducirla, y a veces parece que la acre-
cienta deliberadamente, según hemos explicado en otro lugar. No otra cosa puede deducirse de
la nefasta supresión, por mor de la Ley de Economía Sostenible (Ley 2/2011, de 5 de marzo) del
segundo párrafo del artículo 2.2 L.G.T., que dejaba bien a las claras, que la prestación de servi-
cios con destinatarios singulares en régimen de Derecho Público genera tasas, apreciación que
no debiera verse oscurecida por que medien cualesquiera de las formas de gestión previstas en
la legislación administrativa, ya sea empresas privadas, públicas o mixtas. Al suprimirse la aclara-
ción poco ha faltado para que retorne la confusión, y ya hay quien sostiene que esta supresión
quiso tornar en precios privados algunas de las indiscutibles tasas. No es éste nuestro parecer,
que se alinea con el carácter de tasa en todo caso para las prestaciones de servicios públicos
que reúnan los caracteres de obligatoriedad y/o monopolio que establece la ley, sea quien sea

El legislador ha sido sensible, por fin, a la especial situación económica de quienes pierden su casa en esta crisis económica de larga duración:
11

el Real Decreto-Ley 8/2014, de 4 de julio, de aprobación de medidas urgentes para el crecimiento, la competitividad y la eficiencia (B.O.E. del
5 siguiente), incorpora una nueva exención en el Impuesto sobre el Incremento del Valor de los Terrenos de Naturaleza Urbana, añadiendo
una letra c al artículo 105.1 L.H.L., para liberar de gravamen a las presuntas plusvalías que se produzcan con ocasión de la transmisión de la
vivienda habitual que sea dada en pago por el deudor hipotecario o su garante, o entregada en procedimiento de ejecución hipotecaria notarial
o judicial. El elemento objetivo de la exención aparece así perfectamente delimitado y vinculado al pago, mediante la entrega de la vivienda
habitual, de deuda garantizada con hipoteca que recayera sobre la propia vivienda que más tarde se entrega para saldar la deuda. Se entrega la
vivienda hipotecada, ya sea mediante acuerdo voluntario de dación en pago, ya sea en procedimiento forzoso que la ejecuta. Se considerará
vivienda habitual, dice el precepto, aquella en la que hubiera estado empadronado el contribuyente de forma ininterrumpida durante, al menos,
los dos años anteriores a la transmisión o desde el momento de la adquisición si dicho plazo fuese inferior. Se establece, pues, un concepto
de vivienda habitual ad hoc para esta exención de este impuesto, cuando más lógico hubiera sido que se siguiera el asentado concepto de
vivienda habitual del que ya disfrutamos desde hace décadas en la ley del I.R.P.F. El legislador tributario local no se fía del legislador tributario
estatal (¡como si fueran personas distintas!), lo cual es chocante viniendo este beneficio local precisamente de la ley del I.R.P.F. que lo adoptó
primero, declarando exenta la plusvalía de marras –Disposición Adicional trigésimo sexta de la Ley 35/2006, de 28 de noviembre, añadida por
Real Decreto Ley 6/2012, de 9 de marzo, de medidas urgentes de protección de deudores hipotecarios sin recursos-. Parece obvio que el
precepto local quiere circunscribir el beneficio fiscal a la vivienda habitual y más actual del contribuyente del impuesto que nos ocupa, que es
el transmitente en las transmisiones onerosas.

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COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

el prestador intermediario. Así lo ha refrendado el T.S. en Sentencias recientes y esperemos que


no cambie de criterio a consecuencia de la desafortunada supresión del segundo párrafo del
artículo 2.2 L.G.T. Pero pareciera, como decimos, que el legislador desea que haya litigios por
esta causa…mientras sigue sin esclarecer suficientemente que la tasa es un tributo retributivo
del coste del servicio que se presta y que no puede excederse en su cuantía, liquidación por
liquidación, caso por caso…12

02. ALGUNOS REMEDIOS QUE SE PROPONEN PARA REDUCIR EL VOLUMEN DE


LITIGIOSIDAD TRIBUTARIA, GENERAL Y LOCAL.

No son pocos los comentaristas que inciden en la importancia de la educación fiscal


como antídoto frente a la litigiosidad. Qué duda cabe de que una mayor cultura tributaria cal-
maría las ansias reaccionales de buena parte de los contribuyentes, bastante confundidos por
los medios de comunicación sobre el uso y destino del dinero público. Si todos los ciudadanos
supieran que el 80% del dinero público se emplea en pagar las pensiones, la sanidad pública y la
educación, en niveles éstas últimas de gratuidad para el usuario muy elevados, quizá se rebajaría
el nivel de tensión existente a umbrales más moderados. La transparencia en el manejo del di-
nero público por toda clase de órganos y organismos, empresas y entidades beneficiarias de él,
es imprescindible para que los ciudadanos soporten con menos acritud los elevados niveles de
presión fiscal que se les exigen. Cortar de raíz y sancionar con ejemplaridad y rapidez los casos
de corrupción, es asimismo una exigencia insoslayable para que la ciudadanía contribuya con
menor grado de resistencia al sostenimiento de los gastos públicos13.

La inseguridad jurídica que padece el sistema es combatible con una decidida volun-
tad de simplificar el ordenamiento tributario, aligerándolo de piezas anacrónicas, de regímenes
especiales, de beneficios fiscales que han perdido su fundamento y eficacia –si alguna vez tu-
vieron uno u otra-, de conceptos jurídicos indeterminados e indeterminables pacíficamente, de
normas singulares para casos supuestamente específicos. Es una cuestión de talante y talento.
Una sección de Derecho Financiero y Tributario en la Comisión General de Codificación quizá con-
tribuiría a poner algo de sosiego y claridad en las reformas, a veces atropelladas, de textos funda-
mentales como las leyes de los grandes tributos del sistema o la propia Ley General Tributaria14.

12
Le dedicamos a esto especial atención en nuestra monografía LAGO MONTERO, J.M.-GUERVÓS MAÍLLO, M.A.: Tasas Locales: cuantía, Marcial
Pons, Madrid, 2004. La Sentencia del Tribunal Supremo de 24 de febrero de 2014, recogida en Tributos Locales nº 115/2014 ratifica el criterio
del Tribunal Superior de Justicia de Castilla y León (Sala de Burgos aunque nos consta que la de Valladolid sostiene el mismo) acerca del papel
esencial que la memoria económico-financiera juega en la vida de las tasas. La memoria ha de acompañar inseparablemente a la ordenanza
fiscal establecedora o modificadora de la tasa, explicando cómo se reparte el coste previsible del servicio entre los previsibles usuarios, y razo-
nando cómo se adopta el criterio cuantificador de las cuotas, necesariamente vinculado a la intensidad del uso que realiza cada cual. Cuando
se aprueban coeficientes multiplicadores para usos concretos hay que motivarlos justificando el por qué de los mismos. No basta con hacer un
estudio genérico de costes sino que ha de fundamentarse el criterio de distribución de los mismos entre los usuarios, justificando la presencia
de factores multiplicadores, que no pueden ser voluntaristas so riesgo de arbitrarios. Cuando en la memoria no se explican suficientemente
las razones de la composición de la tarifa, de las diferencias de trato que se adoptan en virtud de índices correctores no motivados, el informe
económico-financiero preceptivo no cumple con su función, por lo que se tiene por inexistente y por viciada la aprobación de la ordenanza a
la que necesariamente debe acompañar, que debe ser por ello anulada. Ahorramos la cita de las ya numerosas Sentencias en el mismo sentido
dictadas por T.S. y Tribunales Superiores de Justicia.
13
Interesantes reflexiones vierten MARTÍNEZ ÁLVAREZ, J.A.-MIQUEL BURGOS, A.B.: “Instrumentos clave en la lucha contra el fraude: la impor-
tancia de la educación fiscal”, Crónica Tributaria número 146/2013, páginas 179-192, acerca del despilfarro como enemigo a combatir para
mejorar la percepción que los ciudadanos tienen del sistema tributario y del gasto público social que con él se financia. Educación cívico-tri-
butaria y tolerancia cero con los defraudadores, claves para la aplicación efectiva de ambos.
14
Me consta que insta su creación Antonio MARTINEZ LAFUENTE, egregio tributarista, jurista lígrimo y mejor persona. En el estudio coordinado
por Alejandro MENÉNDEZ MORENO: “Consenso fiscal. La reforma tributaria y su efecto en las empresas”, PWC, Madrid, 2014, se valora como
baja (53%) o muy baja (23%) la seguridad jurídica en el sistema tributario español; alto (45%) o muy alto (9%) el nivel de conflictividad, que se
piensa aumentará en los próximos años (69%). Crece el escepticismo sobre la conveniencia de introducir instancias arbitrales o de mediación
pre-contenciosas. Se considera que el sistema es nada efectivo (29%) o poco efectivo (46%) para la resolución de los conflictos, superando
quienes piensan que favorece a la posición de los contribuyentes (54%) respecto a los que opinan que favorece a la posición de la Adminis-
tración (46%).

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COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

Aliviar la presión fiscal directa que soportan las rentas medias del trabajo, exprimidas
hasta la extenuación durante la crisis, reduciría en modo notable la tensión en que se está de-
senvolviendo el cumplimiento de las obligaciones tributarias en estos últimos años, sin que las
reformas últimas aprobadas aligeren el peso de las contribuciones de forma apreciable más que
para las rentas muy modestas. La simplificación de los deberes formales y el establecimiento
de su cumplimiento por medios electrónicos sólo con carácter facultativo mejoría también
notablemente el clima enrarecido en que se desarrolla la presentación ordinaria y millonaria de
autoliquidaciones, declaraciones y comunicaciones de un sinfín de datos, particularmente por
los pequeños empresarios y profesionales15.

Para reducir la litigiosidad en sede judicial se han adoptado dos medidas a cual más
contundente, la regla general del vencimiento objetivo como determinante de la condena en
costas y el endurecimiento de las tasas jurisdiccionales, en medio de una sonora polémica. En
mi opinión, y sin perjuicio de cuanto avanzaremos en otro lugar merced al estudio detenido que
de esta última figura llevamos a cabo en nuestro proyecto de investigación, se está jugando de
manera frívola a favor y en contra de las tasas judiciales. La exigencia de tasas moderadas y de
cobro aplazado, como las costas, al final del procedimiento, no cercena el derecho a la tutela
judicial efectiva. La fijación de cuantías superadoras del coste del servicio que se presta y que le
es imputable al usuario, y, sobre todo, su cobro por adelantado, sí. Es menester reformarlas, si
bien es previsible que el Tribunal Constitucional diga algo sobre el particular en breve16.

La doctrina no se cansa de reclamar la introducción de mecanismos de acuerdo (ya sean


de mediación, arbitraje o conciliación) como fórmulas al servicio de la reducción de la litigio-
sidad. A nuestro juicio, y cómo desarrollaremos en otro lugar, es menester reformar la vía eco-
nómico-administrativa para dotar a los órganos revisores de composición mixta y de funciones
conciliadoras, mediadoras y arbitrales. Dar entrada a los representantes de los contribuyentes,
designados por las asociaciones de asesores y colegios de abogados y economistas, a los pro-
fesores de las universidades, a los jueces o notarios excedentes, al modo de las comisiones
tributarias francesas, británicas, alemanas e italianas. Y otorgar a estos órganos de composición
mixta amplias facultades para lograr acuerdos acerca de los hechos, las valoraciones, los con-
ceptos jurídicos indeterminados y los asuntos de pequeña cuantía17. De esta manera la denosta-
da vía económico-administrativa adquiriría pleno sentido, adaptada a los tiempos, como instru-
mento al servicio de la solución de conflictos tributarios sin necesidad de acudir al formalista y

En la necesidad de simplificar el ordenamiento tributario incide especialmente ROZAS VALDÉS, J.A.: “La pacificación del sistema tributario”,
15

Blog elEconomista.es, 28 de mayo de 2014: “Con la generalidad de los ciudadanos que contribuimos razonablemente con normalidad, el
esfuerzo de la Administración se habría de volcar en simplificarnos la vida. Es mucho y bueno, por cierto, lo que la A.E.A.T. ha hecho en este
sentido, desde el borrador de la declaración hasta la cita previa o el programa INFORMA. Hay mucho, con todo, por hacerse al respecto”.
16
Mientras tanto Isabel GIL RODRÍGUEZ está poniendo orden, con su destreza habitual, en este desbocado mundo de las tasas. Su estudio
“Tasas Jurisdiccionales: proporcionalidad” se publicará en breve el libro que genera nuestro I MAS D. Lamentablemente, la STC 71/2014, de
21 de mayo ha admitido la compatibilidad de la tasa autonómica catalana con la tasa estatal, gravadoras ambas de la recepción de servicios
jurisdiccionales, con el artificioso argumento de que financian servicios distintos. Para el sujeto pasivo, las tasas se cualifican y distinguen por
su hecho imponible, no por los servicios que sufragan. Y el hecho imponible de la tasa jurisdiccional catalana se solapa contundentemente
con el hecho imponible de la tasa jurisdiccional estatal, como bien esclarece el voto particular del magistrado OLLERO TASSARA, vulnerando
la prohibición contenida en el artículo 7 L.O.F.C.A. Ahondando en el confuso criterio mayoritario del T.C, AGULLÓ AGÜERO, Antonia: “Tasas y
Autonomías”, en la obra electrónica Estudios sobre el sistema tributario actual y la situación financiera del sector público, Homenaje al Profesor
Doctor Don Javier Lasarte Álvarez, dirigida por Francisco Adame Martínez y Jesús Ramos Prieto, I.E.F., Madrid, 2014.
17
CHICO DE LA CÁMARA, Pablo: “La revisión de actos tributarios en la esfera local”, Tributos Locales monografía número 1-noviembre 2012,
páginas 16-17, propone para reducir la litigiosidad y la dilación en el fallo de las resoluciones y sentencias juicios breves y sumarísimos que no
produjeran fuerza de cosa juzgada, tal como existe en el Derecho Francés con los referé provision. Cree que los tribunales económico-admi-
nistrativos locales deberían integrarse en las Diputaciones Provinciales. Son un filtro adecuado dada su desvinculación del órgano revisado, su
carácter colegiado, servido por expertos y gratuito.

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COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

costoso procedimiento contencioso-administrativo judicial, que ha de quedar reservado para lo


que realmente lo necesite18. Las actas con acuerdo, la revocación de oficio y la seudoreposición
en vía económico-administrativa, fueron tres parches introducidos por la L.G.T.-2003 que han
tenido, como era previsible, muy poquita relevancia al servicio de la reducción efectiva de las
altas tasas de litigiosidad.

En el ámbito local entiendo que la litigiosidad en el I.B.I. es reducible a medida que las
revisiones catastrales vayan conviertiéndose en rítmicas y proporcionadas al valor del mercado.
El catastro no debe dejar que los valores se anquilosen y luego actualizarlos repentinamente.
También se puede mejorar aún bastante en materia de notificaciones y motivaciones, menos
jeroglíficas, que den cuenta comprensible de las razones de los nuevos valores. Y en materia de
tarifas o tipos de gravamen, creo que el impuesto ganaría en aceptación popular si distinguiera
tres tarifas: una muy reducida para la vivienda habitual de las familias de baja renta; otra reducida
para el resto de viviendas habituales hasta cierto valor e inmuebles rústicos; y una ordinaria para
el resto de los inmuebles, ya sean vivienda habitual cara, segunda residencia o local de negocio.

La doble imposición y la litigiosidad consiguiente que produce el I.A.E. la ha paliado el


legislador con reformas recientes que exentan del gravamen a todas las personas físicas resi-
dentes, y a las personas jurídicas que facturen menos de un millón de euros. Con esto consiguió
acallar numerosas protestas en vísperas de unas elecciones. Pero lo prometido era suprimir el
gravamen y ahí sigue, gravando efectiva y doblemente a las empresas, sujetos pasivos del I.S.,
que facturen más de un millón de euros. A mi juicio, no es éste de la facturación un criterio váli-
do para excluir o incluir sujetos a gravamen. Creo que el impuesto es suprimible aumentando la
participación que las entidades locales ya tienen en el I.R.P.F. O mejor aun desdoblando la tarifa
y creando un pequeño tramo de tarifa local/provincial en los términos que hemos explicado en
otros lugares19.

La litigiosidad que padece el impuesto municipal de circulación de vehículos por causa


de la comprobación de maniobras de deslocalización, en simulación o fraude de ley, se evitaría
si la ley elevara sustancialmente los mínimos imponibles obligatorios en todos los municipios, y
redujera igual de sustancialmente los márgenes para aumentar los tipos de gravamen, que bien
podrían quedar como una potestad de las diputaciones provinciales y no de los ayuntamientos.
Está subida de este impuesto es algo a lo que están abocadas las autoridades españolas, pues
desde instancias comunitarias y empresariales no deja de reclamarse la supresión del impuesto
de matriculación y la elevación sustancial de la contribución por este impuesto municipal, que
debe asumir un papel protagonista y homogéneo en todo el territorio nacional20.

18
Ideas siempre atinadas en TEJERIZO LÓPEZ, José Manuel: “Algunas reflexiones sobre el proceso contencioso administrativo en materia tri-
butaria”, Civitas Revista Española de Derecho Financiero nº 140/2009. Por nuestra parte, y defendiendo el extraordinario papel que desarrollan
los jueces contencioso-tributarios, LAGO MONTERO, José María: “La Sentencia Contenciosa Tributaria. Pronunciamientos y efectos”, Estudios
sobre el sistema tributario actual y la situación financiera del sector público. Homenaje al Profesor Dr. D. Javier Lasarte Álvarez, I.E.F., Madrid,
2014, dirigida por los profesores Francisco Adame Martínez y Jesús Ramos Prieto.

LAGO MONTERO, José María: La reordenación de la Hacienda Local en la Segunda Descentralización, Thomson Reuters Aranzadi, Cizur
19

Menor, 2013, páginas 244-251. Decíamos entonces que no se comprende la desfiscalización regalada a los profesionales por cuenta propia en
este tributo, sector de por sí muy propenso a la defraudación, que bien podría ser incluido en el régimen de módulos del I.R.P.F., con cesión
de una parte de su contribución a la Hacienda Local.

La introducción de tarifas más severas para los vehículos más contaminantes es algo que ya tiene asumida la ciudadanía y que no generará
20

especial litigiosidad, tal y como hemos explicado en LAGO MONTERO, José María: La reordenación…, cita, páginas 258-9.

67
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

La litigiosidad que acecha al impuesto sobre construcciones, instalaciones y obras se


reduciría si la ley fijara con mayor precisión cual es la base imponible, incorporando con mayor
vigor y contundencia los criterios que el Tribunal Supremo le ha ido señalando. La ley debiera de
incluir una regulación somera de cuáles son los módulos utilizables para valorar cuando no hay
presupuesto visado por colegio, pues de otra manera la discrecionalidad del reglamento y/o del
perito local resultan excesivas y peligrosas.

En el impuesto sobre el incremento del valor de los terrenos se reduciría la litigiosidad


si el legislador introdujera alguna reforma para adecuar el impuesto al principio de capacidad
económica que no puede desconocer y que obliga a gravar la riqueza allí donde se encuentre y
cuando se encuentre y a no gravarla allí donde no se encuentra y cuando no se encuentra… De
tal manera que cuando pueda demostrarse, mediante medios de prueba admisibles en Dere-
cho, que la plusvalía presunta no ha existido o es de menor entidad que la estimada, la liquida-
ción se reconduzca a sus justos términos o a cero si es menester. No es soportable una ficción
legal de plusvalía en un Estado de Derecho21.

Para reducir la ligiosidad en materia de tasas y precios nada mejor que suprimir estos
últimos, lamentable figura que en mala hora algún iluminado/iluminati incorporó a nuestro or-
denamiento jurídico, y que ha llenado las Salas de lo Contencioso de miles de pleitos, a cual
más absurdo. Todos los servicios públicos singularmente receptibles por un usuario deberían
devengar tasas, retributivas del coste del servicio que se presta que nunca pueden exceder,
proporcionadas en su cuantía y ponderadas, cuando su naturaleza lo permita, con criterios de
capacidad económica de los usuarios. Sobran los precios y siguen faltando memorias económi-
co-financieras acreditativas de la realidad de los costes y de los criterios de distribución de los
mismos entre los usuarios previsibles, en función de la intensidad del uso de cada cual22.

Aprecio cierta preocupación entre los operadores y comentaristas acerca de la prolife-


ración de beneficios fiscales, fundamentalmente deducciones y bonificaciones en los tributos
locales. He tenido oportunidad de debatir sobre ello recientemente en un Seminario Interna-

Cfr. GARCÍA MORENO, Alberto: “Últimas tendencias de los tribunales sobre la existencia y la cuantía del incremento del valor de los terrenos
21

en la base imponible del impuesto sobre el incremento del valor de los terrenos de naturaleza urbana”, en el libro electrónico Estudios sobre
el sistema tributario actual y la situación financiera del sector público. Homenaje al Profesor Doctor Don Javier Lasarte Álvarez, I.E.F., Madrid,
2014, que coordinan Francisco Adame Martínez y Jesús Ramos Prieto, páginas 1.443-1.465. Y en esta misma obra colectiva LUQUE MATEO,
Miguel Ángel: “Cuestiones problemáticas del impuesto sobre el incremento del valor de los terrenos de naturaleza urbana”, páginas 1.571-1.603.
22
Quizá las más litigiosas, en términos de deuda tributaria recurrida, en estos últimos años hayan sido las tasas por utilización privativa del do-
minio público por empresas no propietarias de la red. Aunque ya han pasado más de dos años, todavía colean los efectos de la Sentencia del
Tribunal de Justicia de la Unión Europea de 12 de junio de 2012, que declaró contrarias al Derecho Comunitario las tasas exigibles por aprove-
chamiento especial del dominio público a los operadores no propietarios de las redes de telefonía móvil. Y ello porque el Tribunal consideró
contrario al artículo 13 de la Directiva 2002/20, de autorización de redes y servicios de comunicaciones electrónicas esta exigencia de presta-
ciones, que el Tribunal llama cánones y que en España son tasas, a quienes no aprovechan directamente el dominio público por no ser titulares
de las redes sino operadores con derecho de conexión. La Sentencia ha sido tan aplaudida por éstos como criticada por los Ayuntamientos y
parte de la doctrina, que ven en el T.J.U.E. una visión demasiado estrecha de lo que es aprovechamiento especial, olvidadiza de que además
de con la propiedad se puede disfrutar de los derechos de instalación por otros títulos, como lo son los acuerdos de interconexión. A nuestro
juicio, en este conflicto ha faltado respeto al inexcusable principio de proporcionalidad, tanto por el legislador español, que no discrimina entre
aprovechamientos no iguales, el del propietario y del operador conectado, como por las ordenanzas fiscales empeñadas en gravar a ambos
por igual con una tasa que se desliza hacia el impuesto cuando se cuantifica con tan desbordante alegría. Como hemos explicado en otros
lugares, ni esta tasa ni ninguna tasa se puede cuantificar atendiendo al volumen de negocio o cifra de facturación pues éste no es un indicador
fiable de la intensidad del uso que realiza cada cual. El Tribunal anula lo que tenía que anular. Si se hubiera legislado y reglamentado con tino
y proporcionalidad la fijación de la cuantía, probablemente el resultado impugnatorio hubiera sido otro. Esto es lo que ocurre cuando se ceba
uno con la gallina de los huevos de oro, que acaba reventado la pobre…Al Tribunal Supremo, después de haber abierto el melón con sus Autos
de 28 de octubre, 29 de octubre y 3 de noviembre de 2010, planteando la cuestión de ilegalidad al T.J.U.E., no le queda otra que acatar el fallo
y dictar Sentencias anulatorias en consecuencia y en ristra, siguiendo la estela de la S.T.S. de 10 de octubre de 2012 (recurso de casación nº
4.307/2009, Ar. 9656) y las dos S.T.S. de 15 de octubre de 2012 (recurso de casación nº 1085/2010, Ar. 9668 y nº 861/2009), anulatorias todas
de ordenanzas fiscales descarriadas.

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COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

cional sobre Litigiosidad en los Tributos Locales, celebrado en la F.A.D.I.S. brasileña, Facultad de
Derecho de la ciudad de Sao Paolo, y a todos preocupaba el uso y abuso de tales beneficios por
parte de las autoridades tributarias locales. Ciertamente, la delimitación de cualquiera clase de
beneficio fiscal debería de desarrollarse en el nivel legislativo, para así garantizar su utilización
con criterios de generalidad e igualdad. Hemos advertido en otros lugares que la espita abierta
por la Ley de Haciendas Locales en favor de bonificaciones potestativas, de establecimiento
facultativo por cada ente local, es una trampa saducea para la Hacienda de éste, que en uso de
su autonomía puede hacer de su capa un sayo agujereado…como ya hemos advertido en otros
lugares. Porque las deducciones y las bonificaciones agujerean la recaudación y crean proble-
mas de aplicación efectiva e igualitaria. Problemas que se acrecientan cuando el beneficio fiscal
es de los de carácter potestativo, vista la presión que ejercen los grupos de presión sobre las
autoridades locales para conseguir ese trato favorable a cambio de no se sabe bien qué cosas…

El paradigma de la conflictividad lo alcanzan esas bonificaciones establecidas para las


actividades declaradas de especial interés municipal, que lamentablemente han pasado del
I.C.I.O., en el que nunca debieron aparecer, a las tasas, al I.B.I., al I.A.E. y al I.I.V.T.N.U.. Cuándo
una actividad es de especial interés para el municipio, y cuándo no, es cuestión que sólo pueden
adivinarla especialistas en la sicología social de los alcaldes y concejales de turno, a los que se
brinda un concepto jurídico indeterminado que se presta a ser usado no ya con discrecionalidad
sino arbitrariamente. Cierto es que el Pleno de la Corporación Local debe aprobar las declara-
ciones de especial interés una por una, expresamente y nunca por silencio. Pero con eso y con
todo, ¿qué pleno de qué corporación está libre del peligro de contagio de la emoción que supo-
ne el advenimiento de una inversión millonaria? ¿Y a toda inversión millonaria hay que liberarla
de gravámenes de toda clase? ¿Entonces dónde queda el principio de capacidad económica?
¿Sirve para que paguen sólo los que hagan inversiones no millonarias?

Son reflexiones que me hago al hilo de algunas lecturas y debates recientes y que ya he
vertido parcialmente en otros lugares, y que me sirven para concluir esta pequeña colaboración
sobre la litigiosidad en los tributos locales.

03. BIBLIOGRAFÍA

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dimientos de aplicación de los tributos”, en Estudios sobre el sistema tributario actual y la si-
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Madrid, 2014, dirigida por Francisco Adame Martínez y Jesús Ramos Prieto.

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GARCÍA MARTÍNEZ, Andrés: en la obra colectiva electrónica Unión Europea, armonización y


coordinación fiscal tras el Tratado de Lisboa, Universidad Pablo Olavide Sevilla-Scuola Euripea di
Alti Studi Tributari Universidad de Bolonia, que dirige el Profesor Javier Lasarte Álvarez y coordi-
nan los profesores Francisco Adame Martínez y Jesús Ramos Prieto, Universidad Pablo Olavide
de Sevilla-Scuola di Alto Studi Tributari de la Universidad de Bolonia.

GARCÍA MORENO, Alberto: “Últimas tendencias de los tribunales sobre la existencia y la cuantía
del incremento del valor de los terrenos en la base imponible del impuesto sobre el incremento
del valor de los terrenos de naturaleza urbana”, en Estudios sobre el sistema tributario actual y la
situación financiera del sector público. Homenaje al Profesor Dr. D. Javier Lasarte Álvarez, I.E.F.,
Madrid, 2014, dirigida por Francisco Adame Martínez y Jesús Ramos Prieto.

GARCÍA-FRESNEDA GEA, Francisco: “El principio constitucional de capacidad económica en el


I.A.E. Nuevas perspectivas y análisis crítico”, en Estudios sobre el sistema tributario actual y la
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coordinan Francisco Adame Martínez y Jesús Ramos Prieto, I.E.F., Madrid, 2014.

GIL RODRÍGUEZ, Isabel: “Tasas Jurisdiccionales: proporcionalidad”, en la obra colectiva dirigida


por José María LAGO MONTERO La reducción de la litigiosidad administrativa, financiera y tri-
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HUELÍN MARTÍNEZ DE VELASCO, Joaquín: “La creación de una jurisdicción fiscal en España.
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La Sentencia Contenciosa Tributaria. Pronunciamientos y efectos”, Estudios sobre el sis-


tema tributario actual y la situación financiera del sector público. Homenaje al Profesor Dr. D.
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COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

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71
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE E
LIMITAÇÕES ORÇAMENTÁRIAS

JUDICIAL REVIEW IN PUBLIC


HEALTH CARE AND BUDGET
LIMITATION
Marcus Abraham*
(*)Desembargador Federal do TRF2. Doutor em Direito Público - UERJ. Professor de Direito Finan-
ceiro da UERJ. Diretor da Escola da Magistratura Federal - EMARF.

Resumo: O artigo, fruto de palestra proferida no II Congresso Internacional de Direito Fi-


nanceiro, trata do polêmico tema da intervenção judicial nas políticas públicas na área de saúde
no Brasil. Investiga os fundamentos possíveis para tal judicialização, seu papel na conferência
de eficácia normativa ao direito social à saúde previsto na Constituição de 1988, seu impacto na
teoria tradicional de separação de poderes em matéria de políticas públicas, as atuais posições
dos Tribunais nacionais sobre o tema e sua relação com a alocação de recursos orçamentários,
especialmente quanto ao argumento da limitação orçamentária pela teoria da reserva do pos-
sível.

Abstract: The paper, adapted from a speech delivered to the II International Seminary of
Fiscal Law, deals with the controversial issue of judicial intervention in public health care policy
in Brazil. It investigates the possible grounds for such judicialization, its role in conferring effec-
tiveness to the social right to health laid down in the Constitution, its impact on the traditional
theory of separation of powers in the field of public policies, the current positions of national
courts on the matter and its relation to the allocation of budgetary resources, especially regar-
ding the topic of budget limitation.

Palavras-chave: Judicialização - Políticas públicas - Saúde - Recursos orçamentários.

Keywords: Judicialization - Public policies - Health care - Budgetary resources.

01. INTRODUÇÃO

Na última década, vivenciamos no Brasil o fenômeno do ativismo judicial nas políti-


cas públicas, sobretudo na área da saúde, em que se multiplicam, em progressão geométrica,
as ações judiciais propostas por cidadãos em face do Estado, buscando o fornecimento de

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COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

medicamentos, a realização de exames e tratamentos médicos, procedimentos cirúrgicos, in-


ternação hospitalar, dentre outros, seja por estes não integrarem o rol de produtos e serviços
presentes no Sistema Único de Saúde (SUS) ou, simplesmente, por não terem sido regularmente
disponibilizados devido à deficiência de recursos humanos ou materiais em determinada insti-
tuição médica pública.

Tais medidas judiciais, comumente denominadas de "judicialização da saúde", são base-


adas no artigo 196 da Constituição Federal de 1988, que prescreve ser a saúde um direito de to-
dos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução
do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços
para sua promoção, proteção e recuperação. E as demandas são promovidas em face de qual-
quer um dos entes federativos, uma vez que o artigo 23, inciso II, da Constituição, estabelece a
responsabilidade solidária entre União, Estados e Municípios para "cuidar da saúde e assistência
pública".

Segundo relatório de demandas judiciais relacionadas à saúde, elaborado pelo Conselho


Nacional de Justiça (CNJ), até 2014 tramitavam mais de 330 mil ações nos Tribunais de Justiça
estaduais e mais de 60 mil ações nos Tribunais Regionais Federais, todas envolvendo a temática
da assistência à saúde. Nos últimos cinco anos, foram desembolsados cerca de 2,3 bilhões de
reais pelo Ministério da Saúde para cumprir as respectivas decisões judiciais. Apenas em 2014, o
valor destinado ao cumprimento de determinações judiciais, no âmbito da União, foi de cerca
de 871 milhões de reais.¹

Este cenário pode ser justificado por algumas razões: primeiro, porque a Constituição
Federal de 1988, ao mesmo tempo em que foi pródiga ao arrolar e assegurar os direitos sociais,
inclusive o da saúde, garantiu maior acesso à justiça, em ambas as concepções – formal e ma-
terial; segundo, porque na visão jurídica moderna esses direitos, constitucionalmente previstos,
passam a ter efetividade, criando para o Estado um poder-dever de oferecê-los ao cidadão;
terceiro, devido ao amadurecimento da democracia brasileira, com a inquestionável conscien-
tização da população dos seus direitos de cidadania; quarto, porque o administrador público
nem sempre dimensiona corretamente ou confere prioridade a certas rubricas orçamentárias,
especialmente, como infelizmente temos visto, para a área da saúde; e, finalmente, em quinto
lugar, por incapacidade de gestão da Administração Pública ou ineficiência na aplicação dos
recursos destinados à saúde, revelando a precariedade do sistema de saúde brasileiro.

Não obstante, de nada adiantam exaustivos debates sobre a efetividade e o alcance dos
direitos fundamentais e sociais, sobre a possibilidade de judicializar estes direitos ou sobre as
atribuições mínimas e máximas do Estado perante a coletividade se não houver recursos finan-
ceiros suficientes para atender aos anseios de uma sociedade mais consciente e ativa. Afinal,
não basta arrecadar o necessário, de forma equitativa e equilibrada, uma vez que a adminis-

¹De acordo com dados do Ministério da Saúde obtidos pela Folha de São Paulo por meio da Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527/2011)
e publicados em matéria jornalística intitulada "Ação judicial para acesso ao SUS explode em cinco anos". Segundo a mesma reportagem, os
gastos do Ministério da Saúde com a judicialização da saúde apenas no âmbito da União foram assim distribuídos: 2010 - 183 milhões; 2011
- 272 milhões; 2012 - 408 milhões; 2013 - 607 milhões; 2014 - 871 milhões. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/03/
1599582-acao-judicial-para-acesso-ao-sus-explode-em-cinco-anos.shtml> Acesso em: 06.04.2015.

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COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

tração dos recursos deve ser feita de forma eficiente, e a sua aplicação precisa ser realizada
criteriosamente para que se possa atender às necessidades públicas da maneira mais ampla e
satisfatória possível, em todos os cantos deste imenso país, de dimensões continentais e repleto
de desigualdades regionais, demográficas, econômicas e sociais.

Reconhece-se que essa problemática não é nova e muito menos simples, sendo o as-
sunto já componente de inúmeros estudos, inclusive objeto do "Fórum da Saúde" criado pelo
CNJ². Por isso pretende-se, a partir deste singelo estudo, promover reflexões sobre o tema, par-
tindo-se de uma revisão geral da questão para a análise específica da situação perante a Justiça
Federal brasileira.

02. A JUDICIALIZAÇÃO NA ÁREA DE SAÚDE

A Constituição de 1988 relaciona e assegura uma série de direitos sociais, que criam
direitos para os cidadãos e fixam deveres para o Estado nessas áreas. Isso porque, como ensina
Luís Roberto Barroso³,

"As normas constitucionais deixaram de ser percebidas como inte-


grantes de um documento estritamente político, mera convocação
à atuação do Legislativo e do Executivo, e passaram a desfrutar de
aplicabilidade direta e imediata por juízes e tribunais. Nesse ambiente,
os direitos constitucionais em geral, e os direitos sociais em particular,
converteram-se em direitos subjetivos em sentido pleno, comportan-
do tutela judicial específica. (...) Sempre que a Constituição define um
direito fundamental ele se torna exigível, inclusive mediante ação ju-
dicial."

Barroso⁴ denomina esses direitos que o cidadão pode exigir em face do Estado de "direi-
tos subjetivos públicos". Segundo o constitucionalista, um direito subjetivo cumula três carac-
terísticas: a) corresponde sempre a um dever jurídico; b) é violável; c) a ordem jurídica coloca à
disposição de seu titular um meio jurídico - que é a ação judicial - para exigir-lhe o cumprimen-
to, deflagrando os mecanismos coercitivos e sancionatórios do Estado.

Ao analisar esse novo contexto do Direito Constitucional contemporâneo, considerado


pela doutrina como neoconstitucionalismo, Ana Paula de Barcellos esclarece que:

"Um dos traços fundamentais do constitucionalismo atual é a norma-


tividade das disposições constitucionais, sua superioridade hierárqui-

²Resolução CNJ nº 107 instituiu o Fórum Nacional do Judiciário para monitoramento e resolução das demandas de assistência à Saúde –
Fórum da Saúde.

³BARROSO, Luís Roberto. Da Falta de Efetividade à Judicialização Excessiva: Direito à Saúde, Fornecimento Gratuito de Medicamentos e
Parâmetros para Atuação Judicial. In: SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Direitos Sociais: Fundamentos, Judicialização e
Direitos Sociais em Espécie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 875-904.

⁴BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 99-100.

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COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

ca e centralidade no sistema e, do ponto de vista material, a incorpo-


ração de valores e opções políticas, dentre as quais se destacam, em
primeiro plano, aquelas relacionadas com os direitos fundamentais⁵."

A partir dessa conformação jurídica, ao se identificar que o texto constitucional prevê


um direito ou uma garantia de natureza fundamental, assentado como sendo um dever do Esta-
do de fornecê-lo individual ou coletivamente, surgiria, para o cidadão necessitado daquele bem
ou serviço, a legitimidade para demandar judicialmente tal prestação estatal, ainda que esta não
se encontrasse prevista no orçamento público como sendo uma despesa pública devidamente
programada. Segundo Flávio Galdino⁶, "essa exigibilidade chama-se sindicabilidade (justicialida-
de ou justiciabilidade) e representa a possibilidade de acesso ao aparato estatal jurisdicional para
tutela de direitos."

Haveria, em caso de omissão ou inação do Poder Público, um deslocamento da escolha


da realização da despesa pública, que, naqueles casos específicos demandados judicialmente,
deixaria a esfera decisória do administrador público e passaria para a do Poder Judiciário. A de-
cisão judicial, então, obrigaria a Administração Pública a oferecer o bem ou o serviço ao cidadão
beneficiado pelo provimento jurisdicional.

Registre-se que a terminologia "judicialização" se destaca mundialmente com a obra


"The Global Expansion of Judicial Power"⁷ de Neal Tate e Torbjorn Vallinder, que estabelecem
como condições essenciais para a sua efetivação: um ambiente de regime democrático esta-
belecido; uma clara separação de poderes; e a existência de uma política de direitos inequivo-
camente posta.

Se há algumas poucas décadas tais previsões constitucionais eram consideradas como


meros parâmetros a serem seguidos e objetivos a serem atingidos pelo administrador público,
indicando as prioridades na programação da realização das políticas e despesas públicas, hoje,
com a efetividade normativa da Constituição e com a ampliação e o fortalecimento do exercí-
cio dos direitos de cidadania, permite-se que a sociedade possa exigir judicialmente do Estado
a realização dessas despesas públicas, desde que se referiram a Direitos Sociais e Fundamentais.
É a hoje amplamente denominada judicialização dos direitos constitucionais.

A saúde é um direito fundamental, e as políticas públicas nesta área são consideradas,


no Brasil, de acesso universal e igualitário, e de atendimento integral. Isso porque a Constitui-
ção Federal de 1988, ao utilizar no artigo 196 a expressão "direito de todos e dever do Estado",
estabeleceu que o acesso à saúde independe da condição financeira do cidadão, tratando-se
de um direito social e não de natureza assistencial.

A base normativa das políticas públicas em saúde apresenta-se na denominada Lei Or-

⁵BARCELLOS, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, Direitos Fundamentais e Controle das Políticas Públicas. In: QUARESMA, Regina; OLIVEI-
RA, Maria Lucia de Paula; OLIVEIRA, Farlei Martins Riccio de (Org.). Neoconstitucionalismo. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 803.

⁶GALDINO, Flávio. Introdução à teoria dos custos dos direitos: direitos não nascem em árvores. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 160.

⁷TATE, C. Neal; VALLINDER, Torbjorn (Org.). The Global Expansion of Judicial Power. New York: New York University Press, 1995.

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COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

gânica da Saúde – LOS (Lei 8.080/90), que regula, em todo o território nacional, as ações e
serviços de saúde, estabelecendo que a execução poderá ser realizada de forma isolada ou
em conjunto e que a organização do sistema será regionalizada e hierarquizada em níveis de
complexidade crescente. Fixa, ainda, regras de distribuição da competência entre a direção
nacional, a direção estadual e a direção municipal do SUS. Juntamente com a LOS, existe a Lei
nº 8.142/90, tratando da participação da comunidade na gestão e planejamento da saúde, das
transferências intergovernamentais e do financiamento do sistema.

No contexto do Sistema Único de Saúde (SUS), a União é a principal financiadora do sis-


tema. Porém, como não possui uma estrutura organizada em todo o território nacional, distribui
aos entes regionais, em especial aos Municípios (mais próximos dos usuários), a responsabilida-
de pela execução de grande parte das ações.

Para tanto, os recursos financeiros da saúde são movimentados por meio de fundos
contábeis, cabendo à direção do SUS em cada esfera de governo a sua utilização e ordenação
de despesa. Tais fundos são: o Fundo Nacional de Saúde (FNS), gerido pelo Ministério da Saúde;
o Fundo Estadual de Saúde (FES), administrado pelo Secretário Estadual de Saúde; e o Fundo
Municipal de Saúde (FMS), conduzido pelo Secretário Municipal de Saúde ou pelo Diretor de
Saúde quando não houver Secretaria.

A partir dos conceitos de universalidade e integralidade, entende-se que o acesso à saú-


de não se limita aos procedimentos e medicamentos aprovados e disponibilizados pelas políti-
cas públicas existentes, devendo também ser assegurados aos cidadãos outros procedimentos
e medicamentos não contemplados mas que se revelam necessários à manutenção da vida.

A esse respeito, o Poder Judiciário tem sido constantemente procurado para manifes-
tar-se na garantia e obtenção do acesso a medicamentos e procedimentos na área da saúde,
pronunciado-se no sentido de que as ações e serviços de saúde devem ser assegurados de
forma integral de modo que não estarão limitados àqueles procedimentos e aos medicamentos
introduzidos nas políticas públicas, mas decidiu que, em geral, deve ser privilegiado o tratamen-
to fornecido e os medicamentos disponibilizados nas políticas públicas, ressalvadas as hipóte-
ses específicas nas quais estiver comprovado que o tratamento não é eficaz (STA n. 175).

Não obstante já amplamente disseminada e acolhida no Brasil, a judicialização dos di-


reitos fundamentais recebe constantemente uma série de questionamentos. A grande maioria
destas críticas se revela nas contestações e defesas apresentadas pelos entes públicos deman-
dados nas milhares de ações que tramitam hoje no Poder Judiciário brasileiro.

O primeiro argumento crítico baseia-se no suposto caráter programático das normas


constitucionais, que, em lugar de conter comandos específicos e concretos, atribuiria abstrata-
mente aos órgãos públicos (de modo discricionário e com certa liberdade) a tarefa de realizar
as políticas públicas nelas contidas. Nesta concepção, os direitos sociais seriam desprovidos de
eficácia normativa, representando meras sugestões ou indicações de um "estado ideal" a ser
atingido, sem o poder de vincular o administrador público.

76
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

O segundo aspecto contrário residiria numa possível violação ao princípio da separação


de poderes, uma vez que o Poder Judiciário estaria exercendo função privativa do Poder Exe-
cutivo. Este argumento conduz a outra consideração: que a judicialização acarretaria decisões
desprovidas de tecnicidade, uma vez que não levaria em consideração os protocolos clínicos e
as diretrizes terapêuticas estabelecidas pelo Ministério da Saúde.

O terceiro argumento crítico parte da lógica de que a judicialização da saúde privile-


giaria o cidadão considerado isoladamente, em detrimento do direito de toda a sociedade, no
entrechoque do interesse individual versus o interesse coletivo, beneficiando, especialmente,
aqueles com maior acesso ao Judiciário, malferindo-se, por fim, a isonomia e o interesse públi-
co.

Já o quarto questionamento é de ordem financeira e orçamentária, no que se refere ao


equilíbrio fiscal e à limitação dos recursos públicos, pois uma vez determinado judicialmente o
fornecimento de um bem ou serviço, o custo para a sua realização recairá sobre uma previsão
orçamentária que não o contemplava originariamente, gerando uma despesa pública sem a
respectiva fonte de financiamento e esbarrando na questão da "reserva do possível" ou "teoria
dos custos dos direitos". Esta ideia sugere que a judicialização poderá comprometer a previsibi-
lidade e o planejamento orçamentários, além de redirecionar recursos de uma área para outra,
sem a necessária visão holística, a partir de um comando judicial isolado.

Esta crítica financeira ainda se potencializaria pelo argumento de que o fornecimento


de medicamentos e tratamentos de saúde gera gastos imediatos e imprevistos, não sujeitos aos
procedimentos concorrenciais e licitatórios ordinários, onerando ainda mais o sistema de saúde
pública.

Por sua vez, o quinto argumento censura a concessão de medicamentos ou de trata-


mentos de alto custo, inclusive no exterior ou ainda em caráter experimental, sem compro-
vação de eficácia ou sem ganhos ou vantagens terapêuticas em relação aos já existentes e
oferecidos pelo SUS. Neste aspecto, desdobra-se a crítica para suscitar possível lobby ou influ-
ência de interesses corporativos em fomentar as demandas judiciais para a aquisição de seus
medicamentos, inclusive as tecnologias de saúde ainda sem registro na ANVISA, a partir de um
interesse meramente pecuniário: o lucro.

03. O PAPEL DO PODER JUDICIÁRIO NA JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE

A incapacidade do Estado brasileiro em garantir a todos o acesso às ações e serviços


de saúde, aliada à conscientização da sociedade brasileira dos seus direitos de cidadania, jun-
tamente com a facilitação do amplo acesso à Justiça, conduziram ao cenário de um excessivo
ativismo judicial na área da saúde, alçando o Poder Judiciário a posição de protagonista e de-
mandando deste providências mais amplas e efetivas.

Assim, ciente do seu papel e responsabilidade neste processo, passou o Judiciário a


buscar uma atuação mais pró-ativa, indo além da função jurisdicional, promovendo debates

77
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

públicos, internos e externos, na busca por mais esclarecimentos técnicos e aperfeiçoamento


prático na realização da sua atividade, diante de seara específica como a da saúde.

Nesta linha, o Supremo Tribunal Federal realizou, no ano de 2009, uma audiência públi-
ca para discutir com a sociedade civil, juntamente com a participação de profissionais da área,
o tema da saúde. A Audiência Púbica subsidiou, em especial, a relevante decisão na Suspensão
de Tutela Antecipada – STA nº 175-CE.

Por sua vez, o Conselho Nacional de Justiça – CNJ editou a Recomendação nº 31/2010,
sugerindo, dentre outras providências, a criação de uma interlocução do Poder Judiciário com
os órgãos gestores da saúde. Na Recomendação nº 31, o CNJ sugere aos órgãos do Poder
Judiciário que evitem o deferimento do fornecimento de medicamentos não aprovados pela
ANVISA, assim como os que estiverem em fase experimental.

Em momento seguinte, o CNJ editou a Resolução nº 107/2010, criando o Fórum Nacio-


nal do Judiciário para a Saúde, com a tarefa de monitorar as ações judiciais que envolvam pres-
tações de assistência à saúde, assim como para propor medidas concretas e normativas volta-
das à otimização de rotinas processuais e para prevenção de conflitos, a partir da integração e
interlocução entre gestores públicos, profissionais da saúde, do Ministério Público Federal, dos
Estados e do Distrito Federal, das Defensorias Públicas, da Ordem dos Advogados do Brasil, de
universidades e outras instituições de pesquisa.

A judicialização da saúde vem encontrando acolhida nos Tribunais Superiores. Argu-


menta-se que, na omissão do Poder Público em atender ao cidadão, caberia ao Judiciário, uma
vez reconhecido o seu direito, ampará-lo e determinar a materialização da prestação estatal
devida. Ademais, não há que se ponderar entre o direito coletivo em detrimento do individual
quando a vida e a saúde estão em iminente risco. Além disso, a judicialização permite identificar
falhas e estimular, por vias transversas, a criação e ampliação das políticas públicas na saúde. E,
ainda, o direito ao mínimo existencial se imporia perante o argumento da escassez de recursos
e da reserva do possível.

Ricardo Perlingeiro, após analisar precedentes do Tribunal Constitucional Federal ale-


mão que originaram a teoria da reserva do possível, conclui que:

"A reserva do possível (Vorbehalt des Möglichen) está intrinsecamente


relacionada com a prerrogativa do legislador de escolher quais bene-
fícios sociais considera prioritários para financiar, sem que isso impli-
que limitação ou restrição de direitos subjetivos existentes e exigíveis.
Portanto, não se cogita da reserva do possível em face de um mínimo
existencial e tampouco da justiciabilidade de direitos sociais derivados
e instituídos por lei. Nestes casos, é zero a margem de discricionarie-
dade do legislador, inclusive o orçamentário, sob pena de ofensa ao
princípio do Estado de Direito."8
8
PERLINGEIRO, Ricardo. É a reserva do possível um limite à intervenção jurisdicional nas políticas públicas sociais? Revista de Direito Adminis-
trativo Contemporâneo, ano 1, v. 2, set./out. 2013. p. 184-185.

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COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

O Superior Tribunal de Justiça enfrentou o argumento da reserva do possível em pon-


deração com o mínimo existencial no REsp 1.185.474-SC e, com muita propriedade, assim se
manifestou:

"A tese da reserva do possível assenta-se em ideia que, desde os roma-


nos, está incorporada na tradição ocidental, no sentido de que a obri-
gação impossível não pode ser exigida (Impossibilium nulla obligatio
est– Celso, D. 50, 17, 185). Por tal motivo, a insuficiência de recursos
orçamentários não pode ser considerada uma mera falácia. (...) Ob-
serva-se que a realização dos Direitos Fundamentais não é opção do
governante, não é resultado de um juízo discricionário nem pode ser
encarada como tema que depende unicamente da vontade política.
Aqueles direitos que estão intimamente ligados à dignidade humana
não podem ser limitados em razão da escassez quando esta é fruto
das escolhas do administrador. Não é por outra razão que se afirma
que a reserva do possível não é oponível à realização do mínimo exis-
tencial."

A propósito, o Ministro Celso de Mello, no julgamento da ADPF nº 45 (29/04/2004), já


havia conjugado a coexistência dos argumentos, ao afirmar categoricamente que "o mínimo
existencial, como se vê, associado ao estabelecimento de prioridades orçamentárias, é capaz
de conviver produtivamente com a reserva do possível". Segundo o Ministro:

"O caráter programático das regras inscritas no texto da Carta Política


não pode converter-se em promessa constitucional inconsequente,
sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele de-
positadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cum-
primento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de
infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental
do Estado. (...)

A limitação de recursos existe e é uma contingência que não se pode


ignorar. O intérprete deverá levá-la em conta ao afirmar que algum bem
pode ser exigido judicialmente, assim como o magistrado, ao determinar
seu fornecimento pelo Estado.

Por outro lado, não se pode esquecer que a finalidade do Estado ao


obter recursos para, em seguida, gastá-los sob a forma de obras, pres-
tação de serviços, ou qualquer outra política pública, é exatamente
realizar os objetivos fundamentais da Constituição."

Ponderando a necessidade de implantação dos direitos fundamentais de caráter social

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COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

constitucionalmente assegurados e o princípio da proibição ao retrocesso com as limitações


orçamentárias e a competência conferida ao Poder Executivo para definir as políticas públicas,
o Ministro Celso de Mello, no julgamento do ARE 639.337-SP, em 23/08/2011, assim se mani-
festou:

"Embora inquestionável que resida, primariamente, nos Poderes Le-


gislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas
públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, ainda
que em bases excepcionais, determinar, especialmente nas hipóte-
ses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam es-
tas implementadas, sempre que os órgãos estatais competentes, por
descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem
em caráter impositivo, vierem a comprometer, com a sua omissão, a
eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de
estatura constitucional. (...) O Poder Público – quando se abstém de
cumprir, total ou parcialmente, o dever de implementar políticas pú-
blicas definidas no próprio texto constitucional – transgride, com esse
comportamento negativo, a própria integridade da Lei Fundamental,
estimulando, no âmbito do Estado, o preocupante fenômeno da ero-
são da consciência constitucional. (...) A inércia estatal em adimplir as
imposições constitucionais traduz inaceitável gesto de desprezo pela
autoridade da Constituição e configura, por isso mesmo, comporta-
mento que deve ser evitado. É que nada se revela mais nocivo, peri-
goso e ilegítimo do que elaborar uma Constituição, sem a vontade de
fazê-la cumprir integralmente ou, então, de apenas executá-la com o
propósito subalterno de torná-la aplicável somente nos pontos que se
mostrarem ajustados à conveniência e aos desígnios dos governantes,
em detrimento dos interesses maiores dos cidadãos. (...) O princípio
da proibição do retrocesso impede, em tema de direitos fundamentais
de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcança-
das pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive. A cláusula
que veda o retrocesso em matéria de direitos a prestações positivas
do Estado (como o direito à educação, o direito à saúde ou o direito à
segurança pública, v.g.) traduz, no processo de efetivação desses di-
reitos fundamentais individuais ou coletivos, obstáculo a que os níveis
de concretização de tais prerrogativas, uma vez atingidos, venham a
ser ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo Estado. Doutrina. Em
consequência desse princípio, o Estado, após haver reconhecido os
direitos prestacionais, assume o dever não só de torná-los efetivos,
mas, também, se obriga, sob pena de transgressão ao texto constitu-
cional, a preservá-los, abstendo-se de frustrar – mediante supressão
total ou parcial – os direitos sociais já concretizados⁹."

9
STF: ARE 639.337 AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 23/08/2011, 2a Turma, DJE de 15/09/2011.

80
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

E, da mesma maneira, entendendo que o Poder Público não pode se desonerar do


cumprimento de suas obrigações por motivo financeiro, o mesmo Ministro Celso de Mello, no
julgamento em 22.11.2005 do Recurso Extraordinário 410.715-SP, entendeu que embora resi-
da, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar
políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário determinar, ainda que em
bases excepcionais, o cumprimento de tais políticas - especialmente nas hipóteses de políticas
públicas definidas pela própria Constituição. Poderia, assim, o Judiciário determinar que sejam
tais políticas públicas implementadas pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão, por
importar descumprimento dos encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em cará-
ter mandatório, mostra-se apta a comprometer a eficácia e a integridade de direitos sociais e
culturais impregnados de estatura constitucional. Reconheceu que o direito fundamental de
índole social e cultural caracteriza-se "pela gradualidade de seu processo de concretização -
depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilida-
des orçamentárias do Estado". Apesar disso, o voto do relator não admite que o Poder Público
possa desvencilhar-se da obrigação que sobre ele recai de satisfazer as pretensões surgidas de
normas jusfundamentais dessa espécie pela mera invocação da cláusula do financeiramente
possível. Nas palavras do Ministro Celso de Mello:

"A cláusula da "reserva do possível" — ressalvada a ocorrência de justo


motivo objetivamente aferível — não pode ser invocada pelo Estado
com a finalidade de exonerar-se, dolosamente, do cumprimento de
suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa condu-
ta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo,
aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de
essencial fundamentalidade."

O Plenário do Supremo Tribunal Federal analisou com profundidade a matéria, ao man-


ter a decisão do Ministro Gilmar Mendes, que entendeu pela possibilidade de determinação
judicial ao fornecimento de prestações estatais positivas para o cidadão relativas a direitos
sociais, no julgamento do Agravo Regimental na Suspensão de Tutela Antecipada no 175-CE
(18/09/2009).10 Destacamos trechos do voto do Presidente do STF no referido julgado, que
reputamos sobremaneira relevantes:

"As contribuições de Stephen Holmes e Cass Sunstein para o reco-


nhecimento de que todas as dimensões dos direitos fundamentais
têm custos públicos, dando significativo relevo ao tema da "reserva do
possível", especialmente ao evidenciar a "escassez dos recursos" e a
necessidade de se fazerem escolhas alocativas, concluindo, a partir da
perspectiva das finanças públicas, que "levar a sério os direitos signifi-
ca levar a sério a escassez" (Holmes, Stephen; Sunstein, Cass. The Cost
of Rights: Why Liberty Depends on Taxes. Nova Iorque: W. W. Norton
& Company, 1999).
10
Julgamento em definitivo da STA 175 pelo Plenário do STF em 17/03/2010. AgR – Rel. Min. Gilmar Mendes. Plenário, DJE de 30/04/2010.

81
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

Embora os direitos sociais, assim como os direitos e liberdades


individuais, impliquem tanto direitos a prestações em sentido estrito
(positivos) como direitos de defesa (negativos), e ambas as dimensões
demandem o emprego de recursos públicos para a sua garantia, é
a dimensão prestacional (positiva) dos direitos sociais o principal ar-
gumento contrário à sua judicialização. A dependência de recursos
econômicos para a efetivação dos direitos de caráter social leva parte
da doutrina a defender que as normas que consagram tais direitos
assumem a feição de normas programáticas, dependentes, portanto,
da formulação de políticas públicas para se tornarem exigíveis. Nesse
sentido, também se defende que a intervenção do Poder Judiciário,
ante a omissão estatal quanto à construção satisfatória dessas polí-
ticas, violaria o princípio da separação dos Poderes e o princípio da
reserva do financeiramente possível.

Dessa forma, em razão da inexistência de suportes financeiros sufi-


cientes para a satisfação de todas as necessidades sociais, enfatiza-se
que a formulação das políticas sociais e econômicas voltadas à im-
plementação dos direitos sociais implicaria, invariavelmente, escolhas
alocativas. Essas escolhas seguiriam critérios de justiça distributiva (o
quanto disponibilizar e a quem atender), configurando-se como tí-
picas opções políticas, as quais pressupõem "escolhas trágicas" pau-
tadas por critérios de macrojustiça. É dizer, a escolha da destinação
de recursos para uma política e não para outra leva em consideração
fatores como o número de cidadãos atingidos pela política eleita, a
efetividade e a eficácia do serviço a ser prestado, a maximização dos
resultados etc.

Nessa linha de análise, argumenta-se que o Poder Judiciário, o qual


estaria vocacionado a concretizar a justiça do caso concreto (micro-
justiça), muitas vezes não teria condições de, ao examinar determina-
da pretensão à prestação de um direito social, analisar as consequên-
cias globais da destinação de recursos públicos em benefício da parte,
com invariável prejuízo para o todo (Amaral, Gustavo. Direito, Escassez
e Escolha. Rio de Janeiro: Renovar, 2001). Por outro lado, defensores
da atuação do Poder Judiciário na concretização dos direitos sociais,
em especial do direito à saúde, argumentam que tais direitos são in-
dispensáveis para a realização da dignidade da pessoa humana. Assim,
ao menos o "mínimo existencial" de cada um dos direitos – exigência
lógica do princípio da dignidade da pessoa humana – não poderia
deixar de ser objeto de apreciação judicial.

O fato é que o denominado problema da "judicialização do direito à


saúde" ganhou tamanha importância teórica e prática, que envolve

82
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

não apenas os operadores do direito, mas também os gestores pú-


blicos, os profissionais da área de saúde e a sociedade civil como um
todo. Se, por um lado, a atuação do Poder Judiciário é fundamental
para o exercício efetivo da cidadania, por outro, as decisões judiciais
têm significado um forte ponto de tensão entre os elaboradores e os
executores das políticas públicas, que se veem compelidos a garantir
prestações de direitos sociais das mais diversas, muitas vezes con-
trastantes com a política estabelecida pelos governos para a área de
saúde e além das possibilidades orçamentárias. (...)

A Constituição brasileira não só prevê expressamente a existência de


direitos fundamentais sociais (art. 6o), especificando seu conteúdo e
forma de prestação (arts. 196, 201, 203, 205, 215, 217, entre outros),
como não faz distinção entre os direitos e deveres individuais e coleti-
vos (Capítulo I do Título II) e os direitos sociais (Capítulo II do Título II),
ao estabelecer que os direitos e garantias fundamentais têm aplicação
imediata (art. 5o, § 1o, CF/88). Vê-se, pois, que os direitos fundamen-
tais sociais foram acolhidos pela Constituição Federal de 1988 como
autênticos direitos fundamentais. Não há dúvida – deixe-se claro – de
que as demandas que buscam a efetivação de prestações de saúde
devem ser resolvidas a partir da análise de nosso contexto constitu-
cional e de suas peculiaridades. (...)"

Finalmente, em relação à solidariedade existente entre os entes - União, Estados e Mu-


nicípios - no que se refere à saúde, materializada no dever de prestar atendimento e fornecer
medicamentos, o Supremo Tribunal Federal, no recente julgamento em 05/03/2015, de rela-
toria do Ministro Luiz Fux, reconheceu a existência de repercussão geral na matéria, através do
Recurso Extraordinário nº 855.178, assim ementado:

"RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATI-


VO. DIREITO À SAÚDE. TRATAMENTO MÉDICO. RESPONSABILIDADE
SOLIDÁRIA DOS ENTES FEDERADOS. REPERCUSSÃO GERAL RECO-
NHECIDA. REAFIRMAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA. O tratamento médi-
co adequado aos necessitados se insere no rol dos deveres do Esta-
do, porquanto responsabilidade solidária dos entes federados. O polo
passivo pode ser composto por qualquer um deles, isoladamente, ou
conjuntamente."

04. OS RECURSOS ORÇAMENTÁRIOS E SUA ALOCAÇÃO

Como vimos, ocorre uma assunção, pelo Judiciário, de uma alocação de recursos que
tradicionalmente deve ser feita pelo Executivo, quando este último não chega a ofertar as ações
necessárias à garantia da saúde dos cidadãos. Esta atuação do Judiciário é subsidiária, ou seja,

83
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

somente entra em cena quando há falha na prestação a contento do serviço público de saúde
pelo Executivo (ou ao menos quando o cidadão reputa que a prestação que lhe fora dada não
é suficiente). Sendo a preservação e restauração da saúde necessárias a uma vida digna, o Ju-
diciário tende a buscar garantir a dignidade do cidadão-paciente, por entender que o Executivo
descumpriu a função constitucional a que foi chamado de ser, em primeiro lugar, o provedor
das políticas públicas de saúde. Subjaz a esta posição a noção de um mínimo existencial que,
acaso negado pelo Executivo, deve ser afiançado pelo Judiciário.

Analisando o princípio da integralidade na saúde11, registram Clenio Schulze e Graciella


Chiarelli12 que “o Brasil possui a sétima economia mundial e a carga tributária representa mais
de um terço do total da produção nacional, contudo, o orçamento destinado à saúde anual-
mente pelos entes públicos não é suficiente para a cobertura completa de todas as ocorrências
no âmbito da saúde”. Porém, são categóricos ao afirmar que “tais limitações não podem e não
devem, contudo, servir de escudo ao Estado para negar genericamente a concretização dos
direitos fundamentais”.

Neste sentido, Élida Graziane Pinto13, ao reconhecer que a execução de políticas pú-
blicas é dever estatal inserido na sistemática constitucional de condensação de direitos fun-
damentais, afirma que, “por mais que a tutela desses direitos passe por uma via complexa de
fixação do ‘mínimo existencial’ (garantidor do fundamento da dignidade da pessoa humana) e
de respeito à ideia de ‘reserva do possível’, tais políticas públicas não podem simplesmente ser
preteridas”.

Assim, da perspectiva do Direito Financeiro, diante da escassez de recursos, há um dile-


ma a ser solvido. José Casalta Nabais14 recorda que de nada adiantará uma Carta Maior repleta
de direitos, e, igualmente, não terá qualquer valia uma abalizada teoria dos direitos fundamen-
tais, se o Estado não dispuser de recursos financeiros suficientes para realizá-los, já que para
todo direito há, inequivocamente, um custo financeiro:

"Daí que uma qualquer teoria dos direitos fundamentais, que pretenda
naturalmente espelhar a realidade jusfundamental com um mínimo
de rigor, não possa prescindir dos deveres e dos custos dos direitos.
Assim, parafraseando Ronald Dworkin, tomemos a sérios os deveres
fundamentais e, por conseguinte, tomemos a sério os custos orça-
mentais de todos os direitos fundamentais. Pois, somente com uma
consideração adequada dos deveres fundamentais e dos custos dos di-
reitos, poderemos lograr um estado em que as ideias de liberdade e de

O princípio refere-se ao conjunto de ações e serviços necessários para o tratamento integral da saúde, com foco nas medidas preventivas
11

mas sem prejuízo das assistenciais.

SCHULZE, Clenio Jair; CHIARELI, Graziella. O Princípio da Integralidade na Saúde e sua Compatibilidade com a Escassez de Recursos. Revista
12

CEJ, Brasília, Ano XVIII, n. 64, p. 20-25, set./dez. 2014. p. 21.

PINTO, Élida Graziane. Financiamento dos Direitos à Saúde e à Educação: Uma Perspectiva Constitucional. Belo Horizonte: Forum, 2015. p.
13

45.
14
NABAIS, José Casalta. A face oculta dos direitos fundamentais: os deveres e os custos dos direitos. In: NABAIS, José Casalta (Org.) Por uma
Liberdade com Responsabilidade – Estudos sobre Direitos e Deveres Fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 2007. p. 24.

84
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

solidariedade não se excluam, antes se completem. Ou seja, um estado


de liberdade com um preço moderado."

Uma tentativa possível de resposta poderia estar na análise dos tipos de gastos que figu-
ram no orçamento público. Embora todas as despesas públicas, em regra, atendam a finalidades
públicas, é inegável reconhecer que há uma hierarquia de prioridades nos gastos. Já é conso-
lidada na doutrina publicista a distinção feita entre os interesses públicos primários e os inte-
resses públicos secundários. Enquanto os primeiros estão relacionados à atuação estatal para
o atendimento de necessidades dos cidadãos, como educação, saúde, segurança, os segundos
voltam-se para o atendimento de necessidades internas da máquina burocrática, de modo que
a Administração Pública possa funcionar devidamente. É que a noção contemporânea de Es-
tado o vê não como um fim em si mesmo, mas como um instrumento a serviço do cidadão,
para que este detenha as condições mínimas para seu florescimento humano. O Estado está
ordenado ao ser humano, e não ao revés.

Deste modo, por exemplo, as prestações estatais na área de saúde atendem a um inte-
resse público primário. Já gastos com locomoção de servidores públicos ou com publicidade
institucional de ações governamentais, por sua vez, atendem a um interesse público interno
da burocracia estatal (aquilo que Diogo de Figueiredo Moreira Neto chamou de Administração
introversa):

"Para que o Estado possa servir adequadamente à sociedade que o ins-


titui, os seus órgãos de representação definem, pela atribuição constitu-
cional e legal de competências, quais os interesses que deverão ser sa-
tisfeitos administrativamente, qualificando-os como interesses públicos,
identificados como interesses públicos primários, ou interesses públicos
materiais. Tais funções desempenhadas pelo Estado e seus delegados
para a satisfação desses interesses públicos primários que, por atende-
rem a necessidades da própria sociedade, caracterizam as atividades-fim
da Administração Pública, e que, por se referirem à gestão externa dos
interesses dos administrados, conformam a administração extroversa.

Todavia, como condição para desempenhá-la, é necessário que o Es-


tado satisfaça seus próprios interesses institucionais, conotados a seus
atos, pessoas, bens e serviços, desdobrando, desse modo, outra e distinta
classe de interesses a serem atendidos, a dos interesses públicos secun-
dários, ou interesses públicos instrumentais, ou, ainda, derivados, carac-
terizando, por seu turno, as atividades-meio da Administração Pública as
quais, por atenderem à gestão interna de seu pessoal, de seus bens, de
seus atos e de seus serviços, conformam a administração introversa.15"

MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. Edição eletrônica. nº. 25.1 - Ad-
15

ministração Pública extroversa e introversa.

85
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

Conquanto estes interesses secundários não sejam irrelevantes, não se pode equipará-
-los às ações estatais que atendem diretamente a população, sob pena de se perder de vista o
fim ou objetivo para o qual o próprio Estado é constituído, a saber, prover necessidades concre-
tas da coletividade em primeiro lugar.

Atendo-nos aos dados do orçamento público federal, é possível fazer uma interessante
constatação: embora as despesas realizadas para atender a demandas judiciais na área de saúde
(interesse primário) sejam reconhecidamente elevadas, outros interesses públicos meramente
secundários também são igualmente responsáveis por consideráveis dotações de recursos.

Em 2013, segundo dados da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da Re-


pública, os órgãos da Administração Direta federal empregaram cerca de R$ 761,4 milhões em
ações de publicidade institucional de programas governamentais nos meios de comunicação.16
Em 2014, foram aplicados cerca de R$ 1,282 bilhão em passagens e despesas de locomoção no
serviço público federal, cerca de R$ 385 milhões em serviços de consultoria e por volta de R$
59 milhões em premiações culturais, artísticas, científicas e desportivas.17 O somatório destes
gastos chega a uma cifra considerável.

Não se está a dizer que as despesas acima são ilegais. Apenas se chama a atenção de
que, embora relevantes, não atendem a um interesse primário, nem podem ser equiparadas a
ações de atendimento à população na área de saúde, as quais estão diretamente relacionadas
à preservação da vida ou da manutenção de uma vida digna. A racionalização do gasto público,
sobretudo em um país que ainda apresenta várias demandas sociais a serem satisfeitas, passa
também por uma análise criteriosa da prioridade da despesa a ser executada.

Tal singela demonstração de uso elevado de recursos públicos em atividades secundá-


rias corrobora a afirmação feita pelo Judiciário, sobretudo por intermédio dos Tribunais Supe-
riores, de que o Estado não pode opor a reserva do possível ao mínimo existencial, mormente
quando se vê a alocação de dotações orçamentárias relevantes em atividades não-prioritárias.

Mas existe uma interrogação ainda mais contundente em torno da alocação de recursos
na área de saúde: estaria o Judiciário, de fato, retirando recursos orçamentários de outras áreas
da saúde para deferi-los aos cidadãos que se valeram de medidas judiciais, em prejuízo de todos
aqueles que não possuem tutela jurisdicional em seu favor? Ou, em tom mais popularesco, o
"cobertor" da saúde no Brasil é curto, e o Judiciário só agravaria ainda mais o problema ao "pu-
xá-lo" apenas para um lado?

Segundo relatório de 2013 do Tribunal de Contas da União, de fiscalização do sistema


de saúde (TC 032.624/2013-1)18, ao menos no âmbito federal, apresenta-se um dado surpreen-
Dado disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/04/1441349-dilma-bate-recorde-em-gastos-publicitarios.shtml . Acesso em:
16

06.04.2015.
17
Dados do Portal da Transparência. Disponíveis em: http://www.portaldatransparencia.gov.br/PortalComprasDiretasEDDespesas.asp?A-
no=2014&Pagina=5 Acesso em: 06.04.2015.
18
BRASIL. TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. Relatório Sistêmico de Fiscalização da Saúde 2013. TC 032.624/2013-1 Disponível em: <http://por-
tal2.tcu.gov.br/portal/page/portal/TCU/imprensa/noticias/noticias_arquivos/032.624-2013-1%20Fisc%20Saude.pdf > Acesso em: 06.04.2015.
p. 7.

86
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

dente: as dotações orçamentárias na área de saúde não são integralmente utilizadas pelo Poder
Executivo. À página 7 do referido relatório, constata-se (Tabela 2 - Função Saúde - execução
orçamentária 2012 e 2013) que a dotação orçamentária federal de 2012 para a saúde foi de R$
89,015 bilhões, mas só houve empenho efetivo de R$ 79,917 bilhões. Ou seja, cerca de 9 bilhões
de reais deixaram de ser empenhados (empenho de cerca de 90% da dotação orçamentária
autorizada).

Também no ano de 2012, os gastos federais com ações judiciais apenas para forneci-
mento de medicamentos foram de R$ 355.825.334,93.19 Ora, o valor despendido por ordem
judicial representa pouco mais de 3% do valor de 9 bilhões de reais que sequer chegou a ser
utilizado pelo Executivo federal. Esta constatação indica que, na verdade, ocorre uma omissão
do Executivo, em área bastante sensível de política pública (por lidar com o bem vida), quanto à
utilização de recursos que lhe são disponibilizados para este fim.

A situação tampouco passou despercebida ao Ministro do TCU Benjamin Zymler: "Cabe


registrar que, nos últimos cinco anos, deixaram de ser aplicados na Função Saúde R$ 20,4 bi-
lhões, em valores atualizados, em relação ao que fora previsto nos orçamentos da União, sendo
R$ 9,6 bilhões somente no exercício de 2012".20 Diante deste quadro, é de se perguntar se a
omissão do Executivo em realizar despesas já autorizadas não legitimaria a atuação do Judiciá-
rio, pois, de qualquer forma, há recursos disponíveis que não estão a ser usados a contento.

Neste ponto, importante destacar novamente o entendimento de Élida Graziane Pinto21


que, com base na ideia da máxima eficácia dos direitos fundamentais e no seu caráter diretivo-
-vinculante, afirma que, “diferentemente do usualmente alegado pelos gestores públicos – as
prescrições legais de obrigações de fazer em saúde e educação são muitas, criam vinculações
substantivas inafastáveis para o conteúdo do gasto mínimo e reclamam eficácia imediata”. Se-
gundo a Procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo:

"Emerge o controle judicial do ciclo orçamentário como exigência de


coerência do sistema jurídico. Se o único modo constitucionalmente
adequado e legítimo de alocar os recursos públicos no Brasil passa
pela natureza normativa das leis de plano plurianual, diretrizes orça-
mentárias e orçamento anual, a execução de tais leis não pode des-
bordar dos limites legais, nem frustrar aquela normatividade, impon-
do-lhe mero sentido retórico. [...]

O gasto matemático (gasto mínimo formal) é referido a ações vincula-


das (gasto mínimo material), ou seja, não há ampla discricionariedade
na eleição de como dar consecução ao mínimo, porque também in-

BRASIL. ADVOCACIA GERAL DA UNIÃO (Consultoria Jurídica / Ministério da Saúde). Intervenção judicial na saúde pública: panorama no âm-
19

bito da Justiça Federal e apontamentos na seara das Justiças Estaduais. Brasília, 2012. Disponível em: http://u.saude.gov.br/images/pdf/2014/
maio/29/Panorama-da-judicializa----o---2012---modificado-em-junho-de-2013.pdf . Acesso em: 06.04.2015. p. 16.
20
BRASIL. TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. op. cit. p. 50.
21
PINTO, Élida Graziane. op. cit. p. 26.

87
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

tegra o núcleo mínimo intangível do direito à educação e à saúde o cumprimento das obri-
gações legais de fazer."

Ademais, importante registrar a constatação do Ministro Celso de Mello no Recurso


Extraordinário nº 581.352, para quem “a omissão do Poder Público representava um inaceitável
insulto a direitos básicos assegurados pela própria Constituição da República”. Segundo o Mi-
nistro, “o dever estatal de atribuir efetividade aos direitos fundamentais, de índole social, quali-
fica-se como expressiva limitação à discricionariedade administrativa”. Nas suas palavras:

"Isso significa que a intervenção jurisdicional, justificada pela ocorrên-


cia de arbitrária recusa governamental em conferir significação real ao
direito à saúde, tornar-se-á plenamente legítima (sem qualquer ofen-
sa, portanto, ao postulado da separação de poderes), sempre que se
impuser, nesse processo de ponderação de interesses e de valores em
conflito, a necessidade de fazer prevalecer a decisão política funda-
mental que o legislador constituinte adotou em tema de respeito e de
proteção ao direito à saúde. [...]

Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da “reserva do possível”


– ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível –
não pode ser invocada pelo Estado com a finalidade de exonerar-se,
dolosamente, do cumprimento de suas obrigações constitucionais,
notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder
resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitu-
cionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade [...]
em situações nas quais a omissão do Poder Público representava um
inaceitável insulto a direitos básicos assegurados pela própria Consti-
tuição da República, mas cujo exercício estava sendo inviabilizado por
contumaz (e irresponsável) inércia do aparelho estatal."

Finalmente, este cenário que vivemos na área da saúde no Brasil pode ser avaliado a
partir da Teoria do “Estado de Coisas Inconstitucional”, conceito criado pela Corte Constitucio-
nal da Colômbia, que legitimaria a atuação do Poder Judiciário diante de um quadro extremo
de inércia estatal e de omissões sistêmicas e recorrentes de outros poderes. O assunto foi pro-
fundamente analisado por Carlos Alexandre de Azevedo Campos22, o qual explica que uma vez
“presente a violação massiva de direitos fundamentais decorrente de omissões caracterizadas
como falhas estruturais, a Corte Constitucional colombiana declara a vigência de um estado de
coisas inconstitucional. Ao assim decidir, a Corte passa a adotar remédios estruturais dirigidos a
superar esse quadro negativo”. Mas, para tanto, revela o constitucionalista a necessidade de três
pressupostos: a) o primeiro pressuposto é o da constatação de um quadro não simplesmente

22
CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Da Inconstitucionalidade por Omissão ao “Estado de Coisas Inconstitucional”. Tese de Doutoramen-
to apresentada no ano de 2015 na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Texto resumido publicado em 04/05/2015 no sítio eletrônico
WWW.JOTA.INFO. (http://jota.info/jotamundo-estado-de-coisas-inconstitucional).

88
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

de proteção deficiente, e sim de violação massiva e generalizada de direitos fundamentais que


afeta a um número amplo de pessoas; b) o segundo pressuposto é o da omissão reiterada e per-
sistente das autoridades públicas no cumprimento de suas obrigações de defesa e promoção
dos direitos fundamentais. A ausência de ou falta de coordenação entre medidas legislativas,
administrativas e orçamentárias representaria uma “falha estrutural” que gera tanto a violação
sistemática dos direitos, quanto a perpetuação e agravamento da situação; c) o terceiro pressu-
posto tem a ver com as medidas necessárias para a superação do quadro de inconstitucionali-
dades. Haverá, assim, o Estado de Coisas Inconstitucional quando a superação de violações de
direitos exigir a expedição de remédios e ordens dirigidas não apenas a um órgão, e sim a uma
pluralidade destes, levando o juiz constitucional a interferir sobre funções tipicamente executi-
vas e legislativas, incluindo a de estabelecer exigências orçamentárias.

05. CONCLUSÕES

Não há mais espaço para escolhas políticas ou discricionárias pelos governantes na ini-
ciativa e na implementação das políticas públicas, pois elas já estão pré-estabelecidas no texto
e no espírito da Carta Maior, como um dever prioritário que urge ser cumprido pelo Estado
perante o cidadão que tem pressa em ver e usufruir o resultado da efetivação dos seus direitos,
e que não pode mais ficar alijado de tão relevante processo.

Isto foi possível devido ao instrumental de efetivação dos direitos públicos subjetivos
assegurado pela Constituição cidadã de 1988. Embora a posição de intervenção judicial nestas
políticas não seja a mais ortodoxa, de acordo com a teoria tradicional da repartição de poderes,
o Judiciário se viu constrangido a, na omissão do Executivo, avançar sobre áreas classicamente
afetas a este último, sobretudo diante do dilema moral que lhe era colocado de negar tratamen-
to e ver o cidadão falecer.

Aos olhos da população, esta reação positiva da maior parte dos magistrados configu-
rou um verdadeiro atalho judicial para a obtenção de prestações estatais de saúde, gerando um
novo desafio: o tema tornou-se uma verdadeira questão de demandas de massa, com aumento
a cada ano das ações judiciais que buscam este tipo de tutela, concorrendo com as atividades
ordinariamente programadas de atenção à saúde.

As soluções para esta delicada situação que cotidianamente bate às portas dos Tribunais
ainda estão por ser construídas. A judicialização das políticas públicas nasce da resposta de um
dos poderes da República aos anseios de uma população que, durante séculos, viu suas carên-
cias básicas negligenciadas pelo Estado e que agora vislumbra, nos mecanismos democráticos
de acesso à Justiça, uma via mais célere de acesso a serviços públicos essenciais, dentre os
quais aqueles da área de saúde, intimamente ligados à necessidade humana mais basilar de
preservar a própria vida.

É, pois, dentro deste cenário que se propõe oferecer uma crítica inicial ao recorrente
argumento da reserva do possível como limitação financeira estatal ao cumprimento dos seus
deveres constitucionais, e validar, dentro dos parâmetros e condições abordados, o controle

89
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

judicial nos casos em que se verificar uma efetiva e recorrente omissão do Poder Público nas
políticas públicas na área da saúde.

Justifica-se tal controle judicial diante de leis orçamentárias que desconsideram a pre-
ponderância das despesas com a saúde e minimizam os recursos a ela direcionados em face de
outros gastos de menor casta valorativa, ou mesmo diante dos repetidos contingenciamentos
financeiros fundados na necessidade de obtenção de superávits, o que beira, a nosso ver, a
imoralidade administrativa, desbordando para o absurdo de tornar o objetivo de realização de
economia financeira governamental (superávit primário) um valor hierarquicamente superior ao
direito constitucional à saúde e à vida.

O homem é capaz de inúmeras superações. No último século, separamos o átomo,


decodificamos os genes humanos, percorremos o espaço, desenvolvemos novas ciências e
criamos tecnologias antes inimagináveis. Esses grandes avanços, especialmente na área da me-
dicina, representam a diferença entre a vida e a morte. Por isso, precisamos de um compromis-
so nacional no sentido de se ampliar a capacidade governamental em melhor administrar os
recursos destinados à saúde.

06. BIBLIOGRAFIA

BARCELLOS, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, Direitos Fundamentais e Controle das Polí-
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COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

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New York University Press, 1995.

91
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

O CONTROLE DA IMPESSOALIDA-
DE ADMINISTRATIVA NO ESTADO
DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Tarcisio Vieira de Carvalho Neto1
1
Ministro Substituto do Tribunal Superior Eleitoral, Mestre e Doutor em Direito do Estado pela Fa-
culdade de Direito da Universidade de São Paulo – FD/USP, Professor da Faculdade de Direito da
Universidade de Brasília – FD/UnB, Subprocurador-Geral do Distrito Federal e advogado.

SUMÁRIO: I – Estado de Direito e controle do poder; II – Pós-positivismo e o julgamento por


princípios; III – Impessoalidade administrativa como princípio; IV – Conceito jurídico de impes-
soalidade administrativa; V – Controle da impessoalidade administrativa no Estado Democrático
de Direito; VII – Conclusões; VIII – Bibliografia.

01. ESTADO DE DIREITO E CONTROLE DO PODER

O Estado de Direito representa a superação da ideia de centralização do poder em tor-


no de um soberano. Com ele suplanta-se a (autoritária) compreensão de que o Estado, sendo
criador da ordem jurídica, a ela não se submete.

No Absolutismo, o soberano, de vontade indiscutível, não era juridicamente demandável


pelo indivíduo. O Estado absolutista era, pois, juridicamente irresponsável. Na Idade Contempo-
rânea, porém, verificou-se radical transformação na regulação do poder político. Tornaram-se
insustentáveis os dogmas absolutistas, sedimentando-se a compreensão de que também o Es-
tado está sujeito às leis, realizando as suas atividades com observância à ordem jurídica.

No Estado de Direito, o Estado se subordina por inteiro ao Direito. Nele, há respeito aos
limites de sua atuação e também à esfera da liberdade dos indivíduos, não mais tratados como
súditos. Algumas das suas características básicas são facilmente percebidas. Nele há supre-
macia da Constituição, separação de poderes, superioridade da lei e, finalmente, garantia dos
direitos individuais.

A Supremacia da Constituição é característica intuitiva porque acima das leis, produzi-


das pelo Estado, deve existir uma norma política fundamental, plena de direitos e deveres, ao
Estado e ao particular. A Constituição é, pois, o fundamento de validade de todas as normas do
ordenamento jurídico. Em razão da supremacia, descortina-se a necessidade de um controle de
constitucionalidade, justamente para aquilatar a compatibilidade vertical das normas derivadas
ao figurino constitucional, o qual, aliás, deve ser rígido, insuscetível de ser modificado à míngua
de processo legislativo com procedimento e quórum qualificados.

A separação de poderes é característica marcante do Estado de Direito porque erode o

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COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

cerne do Absolutismo, em que todo o poder estava reunido nas mãos dos déspotas. No Estado
de Direito, cada poder exerce funções principais, embora não exclusivas.

A superioridade da lei está em que, sendo ela a expressão da vontade geral, deve ser
observada por todos, inclusive pelo próprio Estado. Por ser superior, a lei condiciona atos admi-
nistrativos e jurisdicionais.

Não menos importante é a Garantia dos Direitos Individuais, razão maior da existência
do próprio Estado de Direito. Enquanto produto da Constituição, o Estado deve respeitar os
direitos individuais assegurados na Constituição e nas leis com ela amalgamadas. O particular
está protegido do arbítrio, até mesmo em forma de legislação.

É forçoso dar concretude à Constituição, o que automaticamente atrai a questão do con-


trole da atividade administrativa, controle que se fará com base na obrigatória observância de prin-
cípios constitucionais que vinculam a Administração Pública.

Em boa hora, relembra Odete Medauar² (2014, p. 426) que a Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão, de 1789, contém no art. 15 o seguinte preceito: “A sociedade tem o
direito de pedir conta, a todo agente público, quanto à sua administração”.

Os direitos só estarão efetivamente assegurados no Estado de Direito se houver contro-


le. E de nada adianta condicionar a atuação estatal à estrita observância das regras legais, se sua
atividade não puder ser controlada de forma efetiva e seus desvios rigorosamente apurados e
censurados com a devida proporcionalidade.

Assim é que o grau de eficácia do Estado de Direito depende do grau de controle da


atividade pública.

02. PÓS-POSITIVISMO E O JULGAMENTO POR PRINCÍPIOS

Luís Roberto Barroso3 tem inteira razão ao dizer que o direito constitucional contempo-
râneo só pode ser bem compreendido a partir dos valores e da ética, deve ser lido pelas lentes
da filosofia moral.

Segundo Barroso, na pós-modernidade deparamos com o colapso dos projetos eman-


cipatórios abrangentes, com a fragmentação de ideias e com uma onda de pragmatismo. N o
quadro de erosão da dogmática tradicional do direito constitucional, cujos traços marcantes
eram o formalismo e o positivismo, ganhou relevo a teoria crítica do direito, responsável em
grande medida pela desmistificação do conhecimento convencional, que encobria, sob o dis-
curso da imparcialidade do direito, forte carga ideológica em favor do status quo.

²Direito Administrativo Moderno. 18ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 426.

³O Novo Direito Constitucional Brasileiro: contribuições para a construção teórica e prática da jurisdição constitucional no Brasil. Belo Hori-
zonte: Fórum, 2012, p. 99 e seguintes.

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COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

A partir das insuficiências do jusnaturalismo e do positivismo jurídico, ganhou contorno


o pós-positivismo, e com ele a crença na normatividade dos princípios. E a ideia de justiça pas-
sou a fazer parte da essência do discurso jurídico.

Por pós-positivismo deve ser compreendido um novo contexto constitucional em mar-


cha de edificação. Como assinala Barroso, “é a designação provisória e genérica de um ideário
difuso, no qual se incluem a definição da relação entre valores, princípios e regras, aspectos da
chamada nova hermenêutica e a teoria dos direitos fundamentais”.

No pós-positivismo, valores condensam-se em princípios. E os princípios, agasalhados


pelo texto constitucional, explícita ou implicitamente, revestem-se de normatividade⁴.

Julgar com princípios, então, é traço marcante da contemporaneidade jurídica. Inúme-


ras situações concretas são equacionadas pelo Poder Judiciário e também pela Administração
Pública a partir da invocação pura e simples de princípios jurídicos, notadamente os constitu-
cionais.
Julgar com princípios, no entanto, não é tarefa fácil. E traz riscos. Como explica Jorge
Galvão⁵, em interessante obra sobre os riscos (e exageros!) do chamado neoconstitucionalismo
para o Estado de Direito:

"Se a constitucionalidade das normas for constantemente questiona-


da pelos intérpretes – utilizando-se princípios e ponderação como
técnica – elas perderão sua capacidade de guiar as condutas dos in-
divíduos, além de dar ensejo a uma atuação mais subjetiva por parte
dos agentes públicos. Explica-se: ao se constatar que os princípios
constitucionais se irradiam por todo o ordenamento jurídico, torna-se
possível argumentar, em qualquer caso, por mais ordinário que seja,
a favor do resultado que se considera o mais correto, uma vez que o
texto fundamental alberga uma infinidade de valores contraditórios
em sua essência”.

Se se pretende julgar (bem) com o princípio constitucional da impessoalidade, é preciso


bastante cuidado. Uma aplicação altamente subjetiva do princípio, para fins decisórios, pode
variar justamente para o mal que se pretende evitar: a impessoalidade às avessas.

03. IMPESSOALIDADE COMO PRINCÍPIO

O princípio da impessoalidade ostenta arquétipo aberto. E é bom que assim seja.

4
No pós-positivismo, como assinala Barroso (O Novo Direito Constitucional Brasileiro..., p. 122-123): “os princípios constitucionais, portanto,
explícitos ou não, passam a ser a síntese dos valores abrigados no ordenamento jurídico. Eles espelham a ideologia da sociedade, seus postu-
lados básicos, seus fins. Os princípios dão unidade e harmonia ao sistema, integrando suas diferentes partes e atenuando tensões normativas.
De parte isso, servem de guia para o intérprete, cuja atuação deve pautar-se pela identificação do princípio maior que rege o tema apreciado,
descendo do mais genérico ao mais específico, até chegar à formulação da regra concreta que vai reger a espécie".

⁵O Neoconstitucionalismo e o Fim do Estado de Direito. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 46.

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COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

Comparável às noções de imparcialidade (Itália e Portugal), de objetividade (Espanha) e


de neutralidade política (França), o Princípio da Impessoalidade, porém, com elas não se con-
funde. É o resultado da soma das ideias encetadas em cada uma das noções acima reveladas.
E, por isso mesmo, em relação a cada uma, é mais completo e abrangente, conferindo maiores
cobertura e proteção aos valores tutelados pelo texto constitucional.

Revelar sua textura aberta é comprovar sua natureza de princípio e permitir ao exegeta
uma atuação construtiva de maior envergadura, compatível com os desafios hermenêuticos da
contemporaneidade.

A impessoalidade, assim nominada, surgiu pela vez primeira na Constituição de 1988⁶.


Está referida, de modo expresso, em várias passagens do texto. Exemplificativamente, é princí-
pio geral, regedor de toda a atividade administrativa, tanto em termos de ação como de orga-
nização administrativa, no caput do art. 37. Vem revelada, como regra, no art. 100, na exigência
de precatório para pagamentos das dívidas do poder público e no § 1º, do mencionado art. 37,
como forma de proibição de promoção pessoal na publicidade institucional.

No caput do art. 37, da CF/88, indiscutivelmente, a impessoalidade assume a forma de


princípio. Não se aplica a partir de fórmulas textuais mais fechadas, à base do “tudo ou nada”.
Exige aplicação ponderada, contextualizada, dialogada com as especificidades dos fatos da
vida.

Como princípio, em razão de sua inegável capilaridade, informará o sistema de Direito


Administrativo como um todo. Cobrirá seus recôncavos e será extremamente importante para
que se exija da Administração Pública uma organização administrativa voltada a um agir natu-
ralmente impessoal e a um agir impessoal despido de subjetivismos e preferências pessoais do
administrador.

04. CONCEITO JURÍDICO DE IMPESSOALIDADE ADMINISTRATIVA

Se impessoalidade, imparcialidade, objetividade e neutralidade política fossem círculos,


teriam tamanhos distintos. A impessoalidade seria o círculo maior, abrangente dos demais.

Em interessante estudo, fincado na comparação entre os sistemas italiano e espanhol e


no cotejo entre imparcialidade e objetividade, Massimo Monteduro⁷ explora o caráter multidi-
mensional da matéria e acaba por conceber um campo de incidência que pode ser aproveitado
para a realidade brasileira na designação do princípio da impessoalidade.

Monteduro identifica a imparcialidade como um princípio multidimensional, um “princí-


pio de princípios”. Metaforicamente, seria um “polítopo” multidimensional que apresenta diver-
sos lados axiológicos e prescritivos, com várias dimensões:

⁶Conforme Maria Sylvia Zanella di Pietro (Direito Administrativo..., p. 68).

⁷El carácter multidimensional de la imparcialidad administrativa y el principio de objetividad: reflexiones sobre la experiencia italiana. In: DA.
Revista Documentación Administrativa nº 289, enero-abril 2011, p. 305-366.

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COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

1ª Dimensão: I) imparcialidade estrutural ou organizativa: impõe o de-


ver à Administração Pública de se estruturar de forma a conduzir uma
ação objetiva e imparcial. Nessa perspectiva, o autor entende que essa
dimensão da imparcialidade permite estabelecer critérios para distin-
guir a atividade política da atividade administrativa; II) imparcialidade
funcional: desenvolve-se na ação administrativa. Essa concepção se
aplica a um espectro amplíssimo de cânones, tais como transparência,
igualdade de trato, motivação etc.⁸.

2ª Dimensão: I) imparcialidade subjetiva: conjunto de normas que


condicionam e limitam o comportamento e as atividades de titulares
de funções públicas; II) imparcialidade objetiva: ação e organização
administrativas consideradas em si mesmas, independentemente das
pessoas físicas que intervenham em concreto⁹.

3ª Dimensão: I) imparcialidade negativa: proibição de discriminações,


favoritismos, preferências e/ou desigualdades injustificadas; II) impar-
cialidade positiva ou inclusiva: abertura institucional da Administração
Pública para considerar e comparar todos os interesses envolvidos
e protegidos pela ordem jurídica em concreto. Busca de equilíbrio e
composição de interesses. Tal aspecto da imparcialidade é instrumen-
talizado pela participação dos interessados na esfera do processo ad-
ministrativo.

A imparcialidade também é referida por Monteduro como critério de distinção entre


política (direção) e administração (gestão). As escolhas político-partidárias, tomadas no plano
abstrato, possuem o filtro em concreto da imparcialidade. As escolhas políticas não devem levar
a discriminações nem a favoritismos na esfera pública. Os problemas, nessa seara, residem em
questões como as relativas a cargos comissionados e escolhas de entidades para cooperarem
com o Poder Público.

Relevante considerar a participação procedimental como corolário do princípio da im-


parcialidade, com foco na ideia de justo procedimento administrativo, a qual abrange: I) partici-
pação procedimental como garantia de contraditório e ampla defesa do administrado; II) parti-
cipação procedimental como colaboração com o Poder Público, a fim de que este tenha uma
ampla percepção dos interesses em jogo e possa tomar uma decisão com maior legitimidade
após análise e avaliação de todos eles.

Para Monteduro, “em virtude dos princípios em questão, os órgãos administrativos en-

⁸Apesar da separação teórica entre imparcialidade organizativa e funcional, estas estão interconectadas de forma inseparável, como faces da
mesma moeda.

⁹Em outros termos, a imparcialidade em sentido subjetivo gera normas sobre quem, de forma legítima, deve tomar as decisões administrativas,
e a imparcialidade em sentido objetivo regula como devem ser tomadas as referidas decisões.

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COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

carregados da instrução e decisão devem conhecer, comprovar e valorar todos os interesses


pertinentes, na medida em que sejam significativos para o interesse público concreto que se
deve satisfazer, de modo a permitir a mais ampla compreensão possível de todos os aspectos
relativos ao caso”.

Correlato ao princípio da participação procedimental é o dever de motivação dos atos


administrativos. Segundo o autor, não é possível haver efetiva participação procedimental dos
cidadãos se o Poder Público não fundamenta e motiva suas decisões. Ao proteger quaisquer in-
teresses in concretu, a Administração deve demonstrar, à luz da proporcionalidade e da razoa-
bilidade, o porquê da escolha de um interesse específico em detrimento de outros. Tal explicita-
ção dos motivos confere transparência à ação administrativa e permite eventuais impugnações
por parte dos cidadãos prejudicados pelo ato.

A imparcialidade, na visão mais alargada de Monteduro, que se aproxima da nossa ideia


de impessoalidade, tem forte relação com publicidade e transparência. Sob a sua óptica, o
fundamento constitucional primário dos princípios da transparência e da publicidade está justa-
mente na imparcialidade. Um e outra são garantias indispensáveis à possibilidade e à efetividade
da participação procedimental e, portanto, da imparcialidade em sua dimensão positiva.

Imparcialidade também diz respeito à integridade na ação administrativa. A integridade


ganha relevo como conjunto de medidas de combate à corrupção na esfera pública, não no
plano punitivo, mas no preventivo como meios de controle (vocação preventiva do controle). A
integridade, nessa perspectiva, também se mostra como corolário da imparcialidade.

Ao comparar a imparcialidade (contexto italiano) com a objetividade (contexto espa-


nhol), Monteduro arrola traços comuns e traços diferenciados. Considerando que a impessoa-
lidade (contexto brasileiro) é abrangente das duas, convém tecer considerações sobre a segun-
da, com base nos estudos desenvolvidos pelo mesmo autor.

Eis as diferentes compreensões do princípio da objetividade pela doutrina italiana, se-


gundo Monteduro:

1ª Forma de Compreensão: Objetividade é um corolário do princípio


da legalidade. Nessa perspectiva, o administrador público está vincu-
lado à finalidade geral estabelecida na lei. Ao atuar conforme tal fina-
lidade estará realizando uma conduta objetiva.

2ª Forma de Compreensão: Objetividade como um caráter de iden-


tidade da Administração Pública em sua organização e ação. Nessa
perspectiva, objetividade e imparcialidade se confundem (planos es-
trutural e funcional da imparcialidade), no sentido de estabelecer a
“forma de dever ser da Administração Pública”.

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COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

3ª Forma de Compreensão: A objetividade materializa-se em aspectos


como: I) fixação de parâmetros de referência para a ação administrati-
va; II) critérios para limitação da discricionariedade administrativa.

A objetividade da ação administrativa pode então ser considerada como princípio deri-
vado da imparcialidade. Para Monteduro, a atuação objetiva do Poder Público representa ape-
nas uma das facetas do “polítopo” multidimensional do princípio da imparcialidade e, portanto,
mais próxima da 3ª forma de compreensão.

A objetividade pode ser vista como uma técnica de redução da parcialidade, ao estabe-
lecer parâmetros para a dessubjetivização das valorações discricionárias realizadas pela Admi-
nistração Pública. De acordo com Monteduro, não se trata de abstrair das escolhas do adminis-
trador toda e qualquer valoração subjetiva, mas definir, do ponto de vista dos destinatários da
decisão ou ato administrativos, critérios que não os julguem ou qualifiquem por suas caracte-
rísticas ou atributos pessoais. Para tanto deve haver um estabelecimento prévio dos métodos
e cânones que levarão à formação do juízo discricionário. Nas suas palavras, eis uma síntese
da ideia: “Dessa forma, a Administração Pública, ao se caracterizar como parte interessada en-
tre sujeitos interessados, não privilegiará quaisquer destes e não será privilegiada, encontrando
seus critérios de objetividade numa abertura plena e integral a intersubjetividade, segundo um
modelo que encontra sua fórmula conceitual mais acertada na expressão “parte imparcial”.

A visão italiana de imparcialidade, bastante moderna, aberta e abrangente, se conecta


com o alcance que se quer conferir ao princípio da impessoalidade, próprio do regime cons-
titucional brasileiro. No direito brasileiro, não tem havido uma preocupação maior em retirar
uma ação administrativa impessoal de uma organização administrativa naturalmente voltada a
tal desiderato.

O princípio da impessoalidade, em sua correta acepção, impõe à Administração Pú-


blica uma dupla preocupação. Em primeiro lugar, a Administração Pública deve se organizar,
do ponto de vista de sua estrutura, para ser impessoal. De outro lado, a Administração Pública,
devidamente organizada, deve ser impessoal em suas ações.

Entrelaçam-se, então, garantias instrumentais e substanciais de impessoalidade. As ga-


rantias instrumentais estão ligadas ao primeiro aspecto, de organização administrativa impes-
soal, ao passo que as garantias substanciais estão relacionadas ao agir administrativo impessoal,
incluído o agir decisório.

05. CONTROLE DA IMPESSOALIDADE ADMINISTRATIVA NO ESTADO DEMOCRÁ-


TICO DE DIREITO

A identificação de um conteúdo autônomo para o princípio da impessoalidade no Bra-


sil – que sirva de parâmetro para uma atuação administrativa decisória juridicamente hígida e
responsável – passa pelo reconhecimento do interesse público em cada caso concreto.

98
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

Ana Paula Oliveira Ávila10, com apoio em Humberto Ávila, esclarece que “o interesse pú-
blico somente restará definido após um processo de ponderação concreta e sistematicamente
orientada, com padrões de decisão flexíveis e adaptáveis a cada caso concreto, dos interesses
públicos com todos os demais interesses individuais que residam nas circunstâncias do caso
concreto”. Em percuciente observação, a autora revela que “sendo o interesse público o resul-
tado dessa operação de ponderação, produzido, portanto, ao final, sua determinação ocorre
sempre a posteriori e in concreto, e nunca a priori e in abstrato”.

Decisão administrativa impessoal é, pois, aquela que se apresenta como produto de


uma criteriosa iteração entre os interesses envolvidos numa disputa.

Cogita-se, assim, de garantias preventivas de impessoalidade, de mecanismos tenden-


tes a assegurar que os titulares de órgãos ou agentes administrativos não se comportem de
modo parcial. As garantias implicam impedimentos e suspeições. David Duarte11, propugnando
por uma maior concretização do princípio da imparcialidade, ora tomado como impessoalida-
de, como parâmetro decisório, realça a importância da procedimentalização, da participação e
da fundamentação.

Os três deveres acima referidos se vinculam reciprocamente. A fundamentação de de-


cisões relevantes deve ter lugar em ambiente processual no qual é assegurada a participação
do administrado. A processualização (conceito mais amplo do que o de simples procedimen-
talização), de sua vez, existe para assegurar participação do administrado e fundamentação. E a
participação do administrado implica processo e fundamentação.

Para ser impessoal, a decisão deve conter fundamentação suficiente e adequada. Tal
exigência é consectário lógico do Estado Democrático de Direito. Deve ser convincente, sob
pena de comprometimento do controle e de malferimento do desígnio de justiça da decisão.
Também deve haver transparência, publicidade, por meio da qual se exterioriza a impessoalida-
de.

Decisões impessoais relevantes demandam ambiente processual. Concepções processuais


e procedimentais da própria democracia, para fins de legitimação dos atos de poder, rechaçam de-
cisões tomadas sem racionalidade, imparcialidade e equilíbrio, denotados pelo processo adminis-
trativo. Promove-se, assim, “dessubjetivação” do poder, evitando-se que motivos espúrios, obscu-
ros, de índole pessoal e fins alheios ao interesse público contaminem a decisão impessoal tomada
pelo Estado.

A participação, como direito, advém do princípio democrático. É pedra angular da de-


mocracia participativa. Sem participação não há impessoalidade decisória. O administrado tem
direito de fazer os seus aportes. De somar esforços na edificação de uma decisão que leve em
consideração todos os interesses legítimos, inclusive os seus.

10
O princípio da impessoalidade da administração pública: para uma administração imparcial. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 132.

Procedimentalização, participação e fundamentação: para uma concretização do princípio da imparcialidade administrativa como parâmetro
11

decisório. Coimbra: Almedina, 1996.

99
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

O ordenamento jurídico também deve dotar a Administração Pública de outras garantias


e requisitos para uma natural adoção de decisões administrativas impessoais. Já se disse que
um decidir naturalmente impessoal passa, necessariamente, por uma organização administra-
tiva inteligente, por uma Administração Pública estruturada de forma a permitir que decisões
impessoais sejam decisões corriqueiras, comuns.

Para que isso ocorra é necessário, por exemplo, que o julgador (decisor) seja uma pes-
soa qualificada e motivada. De preferência, servidor efetivo, menos infenso a pressões ilegíti-
mas. Por outro lado, o decisor não pode nutrir interesse primário sobre o objeto do litígio, isto
é, não pode ser suspeito ou impedido.

Tanto quanto possível, também devem ser estabelecidas rotinas administrativas estáveis,
baseadas em critérios objetivos. Procedimentos ad hoc e critérios subjetivos conduzem mais
facilmente a resultados vedados e, por isso mesmo, devem ser rechaçados.

Idealmente, devem ser produzidas súmulas administrativas sobre matérias repetitivas. E


devem ser trilhados procedimentos para a eliminação de burocracias inúteis ou desproposita-
das.

Uma (boa) decisão administrativa impessoal pressupõe a adoção de comportamentos


administrativos obsequiosos da ponderação e da conciliação de interesses legítimos em dispu-
ta.

E uma inadequada ponderação dos diferentes interesses em disputa, suscetível de me-


dição pela fundamentação, traduz um vício de decisão. Assiste inteira razão a Diogo Freitas do
Amaral12 ao dizer que:

“A ausência de ponderação dos diferentes interesses em jogo – a qual, na maioria dos casos, é
detectada pela fundamentação – é, pois, o vício em que o princípio da imparcialidade aparece
a suportar, ao lado dos restantes princípios jurídicos, a injunção de racionalidade decisória,
caracterizando-se, justamente, ‘por não reflectir a decisão que não é sustentada numa pon-
deração. A ausência de ponderação é, portanto, um vício da decisão que traduz a realização
de um processo de decisão aleatório, no qual não são ponderados os interesses’ em jogo”.

Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos13 confessam que o princípio da im-
parcialidade não permite dizer o resultado correto da ponderação de interesses, nem sequer se
contém os critérios de tal ponderação. Mostram que “os critérios e resultados de ponderação
decorrerão de outras normas, designadamente do princípio da proporcionalidade, mas não
pelo princípio da imparcialidade”, já que dele resulta “apenas uma proibição da ponderação dos
interesses irrelevantes e uma prescrição da ponderação dos interesses relevantes”. Acrescem
que a afirmação do princípio da imparcialidade não contradiz a parcialidade como característica

12
Curso de Direito Administrativo. 2ª ed. 2ª reimp. – 2º v. Coimbra: Almedina, 2013, p. 145.
13
Direito Administrativo Geral - introdução e princípios fundamentais. Tomo I. 3ª ed. Alfragide: Dom Quixote, 2008, p. 217.

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COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

inerente do agir administrativo, já que ambas atuam em planos diferentes. Assim, “a adminis-
tração é necessariamente parcial na prossecução do interesse público, mas é também neces-
sariamente imparcial na ponderação dos interesses públicos e privados sobre os quais a sua
actuação repercute”.

Em duas palavras, o julgador administrativo deve ponderar e conciliar interesses. A deci-


são administrativa impessoal requesta ponderação e conciliação dos vários interesses relevan-
tes e legítimos, públicos e/ou privados, envolvidos numa situação concreta14.

Adverte Humberto Ávila15, merece revisão a própria análise do Direito Administrativo de-
senvolvida sob o influxo da contraposição entre o Estado e o cidadão e entre o interesse público
e o interesse privado. Diferentemente, a realidade do Direito Administrativo se projeta sobre
uma multiplicidade de relações jurídicas, também definidas como “relações jurídicas multipola-
res (‘multipolare Verwaltungsrechtsverhältnisse’)”. Num tal contexto, novidadeiro e desafiador:
“Em vez de uma relação bipolar, esclarece SCHMIDT-PREUSS sobre a relação administrativa,
‘direciona-se esta para a forma de [relações administrativas poligonais], nas quais direitos
subjetivos se defrontam entre si (‘untereinander in Frontstellung stehen’). A seguir aumentam
as vozes que partem da orientação global do Direito Administrativo baseada na relação bipo-
lar-clássica Estado-cidadão e de seus decorrentes limites para referirem-se à compreensão
de relações multipessoais’. A contraposição de ambos os interesses não ocorre nesses casos,
muito menos, e por consequência, uma relação de prevalência.”16

Em sentido amplo, ponderar é medir e pesar, para equilibrar. E conciliar é extrair a máxi-
ma efetividade possível – com o mínimo sacrifício – de todos os interesses envolvidos em uma
decisão administrativa.

Como adverte José Mª Rodríguez de Santiago17, a ponderação não é só um método ju-


rídico, mas uma forma de pensar e de atuar, em geral. Qualquer um que tenha de decidir se vê
obrigado, muitas vezes, a ponderar. Em comum têm os conceitos vulgar e jurídico de ponderar
serem, antes de tudo, uma “forma de decidir”. Assim: “un órgano estatal (en sentido amplio) tie-
ne que ponderar cuando debe adoptar una decisión en la que ha de tener en cuenta dos o más
principios, bienes, valores, intereses, eventuales perjuicios, etc., contrapuestos”.

Paulo Otero18 aponta os traços da Administração Pública contemporânea: (I) Perso-

14
Como assinala Humberto Ávila (Repensando..., p. 207-208): “...na definição de interesse público estão também contidos interesses privados.
ISENSEE esclarece: ‘na prática política é bastante discutido o que proporciona o interesse público numa concreta situação, se ele obtém
primazia frente a interesses particulares colidentes ou como deve ser obtido um ajuste. Mas não se trata de medidas inconciliáveis ou anti-
nômicas. Então o bem comum inclui o bem de suas partes (...) Interesses privados podem transformar-se em públicos. Bonum commune e
bonum particulare exigem-se reciprocamente. Essa principal coordenação exclui uma irreconciliável contraposição. A tensão entre ambos é,
no entanto, evidente’”.
15
Repensando..., p. 209.

Na mesma trilha exegética, confira-se o pensamento de Paulo Otero (Manual..., p. 429): “A existência de uma relação administrativa multipolar
16

ou poligonal, envolvendo conflitos de interesses tendencialmente inconciliáveis protagonizados por privados perante a Administração Pública,
gera uma decisão assente numa verdadeira relação trilateral ou triangular, expressa num ‘triângulo jurídico’ que compreende a autoridade
administrativa decisória, o destinatário da decisão e um (ou vários) terceiro (s)”.
17
La ponderación de bienes e intereses en el derecho administrativo. Madrid/Barcelona: Marcial Pons, 2000, p. 9-10.
18
Manual de Direito Administrativo, p. 409-496.

101
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

nalização (Administração Pública Personalizada); (II) Complexificação (Administração Pública


Gestora de Conflitos); (III) Ponderação (Administração Pública de Balanceamento); (IV) Espe-
cialização (Administração Pública Técnico-Científica); (V) Privatização (Administração Pública
Privatizada); (VI) Informatização (Administração Pública Eletrônica).

Interessa-nos o traço nº 03. Ao tratar da “Administração Pública de Balanceamento” o


autor assinala que, cada vez mais, é preciso ponderar. Por ponderação, na visão de Otero, en-
tenda-se:

“A ponderação – ou balancing, na terminologia norte-americana -,


envolvendo um contrapesar, um balanceamento ou um equilibrar
equitativo do peso relativo de realidades jurídicas conflituais em pre-
sença (bens, interesses ou valores), pode-se dizer que é um método,
estabelecendo um enunciado racional de preferência e afastando a
radicalidade de um ‘tudo ou nada’. A ponderação surge como uma
forma de decidir com um duplo significado:

(I) A ponderação é um procedimento decisório, traduzindo uma meto-


dologia de construir, por via argumentativa e mediante fundamentação
adequada, decisões jurídicas de prioridade alicerçadas em bens, interes-
ses ou valores conflituantes;
(II) A ponderação é também o resultado ou conteúdo da solução de-
cisória alcançada, sabendo-se que quanto maior for o grau de contra-
ção aplicativa ou não satisfação do bem, interesse ou valor sacrificado,
maior será a importância da satisfação ou cumprimento do outro bem,
interesse ou valor que, por isso, assume prevalência ponderativa”.
A ponderação, explica Otero19, ultrapassando a sua origem ju-

dicial em torno de conflitos entre privados ou de colisões normativas envolvendo direitos fun-
damentais, transformou-se numa técnica decisória comum às diversas áreas do ordenamento
jurídico positivo, podendo dizer-se que todo o Direito é ponderação, já que, segundo o seu
pensamento: (I) pondera-se a solução abstrata a adotar na feitura da norma20; (II) pondera-se na
determinação do sentido interpretativo da norma21; (III) pondera-se no momento da aplicação
da norma ao caso concreto22.
Se assim é, não pode a Administração Pública, subordinando-se ao Direito, ficar imune à

19
Manual..., p. 432-433.

Eis os exemplos de Paulo Otero: “deve preferir-se uma diminuição das despesas públicas através da redução dos salários dos funcionários
20

públicos ou da redução do montante das reformas dos aposentados e reformados? Face à ausência de verbas para a contratação de novo
pessoal docente para a Faculdade de Direito, deve reduzir-se o numerus clausus ou aumentar o número de alunos em aulas práticas?”

Para Paulo Otero, como exemplos de ponderação interpretativa, dentre muitos outros: “o conceito constitucional de ‘ambiente familiar nor-
21

mal’, nos termos do art. 69º, nº 2, compreende casais homossexuais? O conceito constitucional de ‘casamento’ compreende a união de duas
pessoas do mesmo sexo ou o designado casamento poligâmico?”

Eis os exemplos de Paulo Otero: “o exame oral realizado pelo aluno A merece a classificação de aprovado ou de reprovado e, em qualquer
22

dos casos, qual a classificação entre zero e vinte valores? Deve a polícia dispersar a manifestação ilegal e violenta que está a ocorrer junto à
A.R., usando uma simples ordem verbal, recorrer a canhões de água ou avançar com bastonadas e disparar balas de borracha?”

102
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

ponderação23. A ponderação na atividade administrativa, mormente na decisória, é tributária da


adoção do Estado de Direito.

Ponderar é difícil, por ser difícil eleger o interesse público em cada caso concreto sub-
metido ao descortino do decisor (julgador). Por duas razões: (I) o interesse público não é sequer
determinável objetivamente24; (II) o julgador é uma pessoa humana, dotada de razão e emoção.

Para ponderar, necessário ter em mente que não há uma norma-princípio da suprema-
cia do interesse público sobre o interesse particular, ou melhor, como revela Humberto Ávila25,
“a Administração não pode exigir um comportamento do particular (ou direcionar a interpreta-
ção das regras existentes) com base nesse ‘princípio’”, sobretudo em relação às atividades que
imponham restrições ou obrigações. Segundo o autor:
(...) a única ideia apta a explicar a relação entre interesses públicos e interesses particulares,

ou entre o Estado e o cidadão, é o sugerido postulado da unidade da


reciprocidade de interesses, o qual explica uma principal ponderação
entre interesses reciprocamente relacionados (interligados) funda-
mentada na sistematização das normas constitucionais”.
Não se trabalha com um cenário ideal, de cientificidade indu-
vidosa, mas com o pano de fundo possível, mormente com uma im-

pessoalidade de propósito multifacetada, para dar maior cobertura aos valores constitucional-
mente protegidos e, por isso mesmo, dada a algumas imprecisões, juridicamente toleráveis, se
exercitada com critérios e procedimentos objetivados.

Impõe-se considerar uma metodologia decisória baseada em “ponderações possíveis”26.


E só se pondera em casos concretos27.

23
Para Paulo Otero (Manual..., p. 433-434): “Se todo o Direito assenta numa metodologia de ponderação, a Administração Pública – subordi-
nando-se ao Direito, criando Direito, interpretado Direito e aplicado Direito – não pode deixar de também usar uma metodologia decisória
assente em ponderações: (i) Tal como se diz existir um “Estado de ponderação”, pode falar-se numa Administração Pública de balanceamento
ou de ponderação; (ii) A normatividade reguladora da Administração Pública encontra-se “minada” de “cláusulas de ponderação”, tal como
o resultado da atividade administrativa assenta em procedimentos e decisões de ponderação; (iii) A ponderação administrativa de interesse
assume-se como exigência decorrente do próprio Estado de Direito”.
24
É de Humberto Ávila (Repensando..., p. 211-212) a seguinte lição: “(...) é importante lembrar que ‘o’ interesse público não é determinável ob-
jetivamente. Há muitas dificuldades para a determinação do significado de ‘interesse’: ele representa, antes de tudo, um fenômeno psíquico,
cuja descrição deve ser necessariamente feita com referência ao ordenamento jurídico. Igualmente a expressão ‘público’. (...) A possibilidade
de uma definição abstrata mínima sem o recurso à concretização das normas constitucionais apresenta-se da mesma forma questionável. A
mesma dificuldade apresenta-se na aplicação das normas (...)”.
25
Repensando..., p. 214.
26
Para Paulo Otero (obra citada, p. 433-434): “Se todo o Direito se assenta numa metodologia de ponderação, a Administração Pública – subor-
dinando-se ao Direito, criando Direito, interpretando Direito e aplicando Direito – não pode deixar de também usar uma metodologia decisória
assente em ponderações: (i) Tal como se diz existir um ‘Estado de ponderação’, pode falar-se numa Administração Pública de balanceamento
ou de ponderação; (ii) A normatividade reguladora da Administração Pública encontra-se ‘minada’ de ‘cláusulas de ponderação’, tal como
resultado da atividade administrativa assenta em procedimentos e decisões de ponderação; (iii) A ponderação administrativa de interesses
assume-se como exigência decorrente do próprio Estado de Direito”.
27
Correto Gustavo Binenbojm (Da Supremacia..., p. 143) quando afirma que “não há como conciliar no ordenamento jurídico um ‘princípio’ que,
ignorando as nuances do caso concreto, preestabeleça que a melhor solução consubstancia-se na vitória do interesse público”.

103
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

06. CONCLUSÕES

A constitucionalização dos direitos no cenário do pós-positivismo implica a irradiação


dos princípios constitucionais com efeitos amplos a todos os ramos do direito, e no campo do
Direito Administrativo não é diferente. A Constituição é a régua interpretativa de todas as ativi-
dades intelectivas de cunho jurídico. Toda a ordem jurídica extrai sua legitimidade dos progra-
mas da Carta Política Maior.

Todos os dias, em nome do interesse público, a Administração julga com princípios, o


que não é tarefa simples. O julgamento com princípios, marca da contemporaneidade jurídica,
impõe desafios colossais, sendo forçoso evitar exageros decorrentes do subjetivismo e do ca-
suísmo.

A impessoalidade, como princípio, desempenha papel fundamental nas decisões admi-


nistrativas. Confere significativa cobertura e proteção aos valores tutelados pelo texto constitu-
cional. É noção que supera a imparcialidade, a objetividade e a neutralidade política próprias de
ordenamentos estrangeiros.

Uma impessoalidade que se preste a dar cabo das numerosas tarefas estatais endere-
çadas no texto constitucional não pode desconsiderar o seu caráter abrangente, policefático,
multifacetado. A não ser assim, sua cobertura seria irrisória.

O princípio da impessoalidade impõe à Administração uma dupla preocupação. Deve


organizar-se, do ponto de vista da sua estrutura, para ser impessoal. Demais disso, desde que
devidamente organizada, deve ser impessoal em suas ações, em seu relacionamento jurídico
com os administrados.

Imprescindível ter na decisão administrativa impessoal o resultado final, o produto de


uma criteriosa iteração entre os interesses envolvidos numa disputa. Só pode ser fruto de uma
mui criteriosa avaliação, por parte do julgador, de todo e qualquer interesse legítimo, público e/
ou privado, livre de preconceitos e pré-compreensões, sem preferências ou predileções pré-
vias. Em suma, sem subjetivismos. Tudo apurado com seu peso e importância. Com método e
cientificidade.

Decisões administrativas impessoais precisam observar ao menos três deveres funda-


mentais, implicados reciprocamente. Deve haver fundamentação (motivação), deve eclodir em
ambiente processual (processualização) e pressupor-se a contribuição do interessado (partici-
pação).

A impessoalidade administrativa decisória atrai a necessidade de adoção de técnicas.


Descortinam-se as técnicas da ponderação e da conciliação. Uma inadequada avaliação dos
interesses em disputa traduz um vício da decisão.

104
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

Ponderar é medir e pesar, para equilibrar. A ponderação não é apenas um método, mas
uma forma racional de atuar e de decidir.

Embora seja tarefa complexa, a ponderação administrativa pode ser determinável cir-
cunstancialmente, desde que executada com critérios e procedimentos objetivados. As ponde-
rações administrativas são as “ponderações possíveis” e só se revelam em casos concretos.

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107
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

O CONTROLE DA RENÚNCIA DE
RECEITA
José de Ribamar Caldas Furtado*
(*)Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Maranhão. Mestre em Direito pela UFPE. Pós-
-graduado em Políticas Públicas e Gestão Governamental pela Escola Nacional de Administração
Pública (ENAP). Professor de Direito Financeiro da UFMA. Professor convidado da Escola Superior
da Magistratura do Maranhão e da Escola Superior do Ministério Público do Maranhão. Ex-Auditor
Substituto de Conselheiro do TCE-MA. Ex-Auditor-Fiscal da Receita Federal. Ex-Analista de Finan-
ças e Controle do Ministério da Fazenda. Autor do livro Direito Financeiro, publicado pela Editora
Fórum. Autor de vários artigos publicados em revistas especializadas.

Ao delinear a atuação do sistema de controle político-administrativo, o constituinte pre-


viu a fiscalização das renúncias de receitas pelo Poder Legislativo, mediante controle externo, e
pelo sistema de controle interno (CF, art. 70, caput).

Renúncia de receita é o benefício fiscal concedido à pessoa física ou jurídica, consubs-


tanciado em dispensa (ou redução) de pagamento de tributo ou multa, tratamento diferenciado
ou auxílio em dinheiro (subsídio), por meio de lei específica, assim entendida aquela que regule
exclusivamente as matérias referidas ou o correspondente tributo, aí incluídas as contribuições
(CF, art. 150, §6º). Por esse expediente, o Poder Público abre mão de parte das receitas que po-
deria arrecadar, ou incorre em despesas mediante auxílios financeiros, promovendo justiça fis-
cal, em face da capacidade contributiva do contribuinte, ou executando políticas econômicas,
institucionais ou administrativas, através do fomento de determinados setores da economia, do
incentivo ao desenvolvimento de certas regiões do País ou do estímulo à competitividade de
segmentos estratégicos do setor produtivo.

Para que se tenha ideia da importância desse tipo de controle, basta informar que a
União deixou de arrecadar cerca de R$ 216,5 bilhões em 2012, em razão de benefícios fiscais
concedidos.1

Em tema de renúncia de receita, a Constituição Federal preceitua que:

a) qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito pre-


sumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas ou contribuições, só poderá ser con-
cedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as
matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição, sem prejuízo do que
dispuser a lei complementar sobre a forma como os Estados e o Distrito Federal concederão e
revogarão isenções, incentivos e benefícios fiscais relativos ao ICMS (art. 150, §6º);

b) o projeto de lei orçamentária será acompanhado de demonstrativo regionalizado do

1
TCU, Plenário, TC 018.259/2013-8, Rel. Min. Raimundo Carreiro, 14/05/2014, Ata de Sessão nº 16/2014, publicada em 30/05/05.

108
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

efeito, sobre as receitas e despesas, decorrente de isenções, anistias, remissões, subsídios e


benefícios de natureza financeira, tributária e creditícia (art. 165, §6º).

Para os efeitos da incidência de seu artigo 14, a Lei Complementar nº 101/00 (LRF)
expressa que a renúncia compreende a anistia2, remissão3, subsídio, crédito presumido, con-
cessão de isenção em caráter não geral4, alteração de alíquota ou modificação de base de cál-
culo que implique redução discriminada de tributos ou contribuições, e outros benefícios que
correspondam a tratamento diferenciado (art. 14, §1º). Como se vê, em razão dessa expressão
constante na parte final do citado parágrafo, o elenco desses institutos é meramente exempli-
ficativo.

É oportuno, agora, conceituá-los:

a) isenção é a dispensa do pagamento de tributo ainda não lançado (CTN, art. 175, I).5 A
Lei Complementar nº 101/00 (LRF) excluiu do conceito de renúncia de receita a isenção con-
cedida em caráter geral (art. 14, §1º);

b) anistia é a dispensa do pagamento de crédito tributário ainda não lançado relativo à


penalidade pecuniária, isto é, multa (CTN, art. 175, II);6

c) remissão é a dispensa do crédito tributário já constituído pelo lançamento7 (CTN, art.


156, IV), seja proveniente de tributo, seja proveniente de penalidade pecuniária (multa);

d) subsídio é a concessão de dinheiro feita pelo governo às empresas para lhes aumen-
tar a renda ou abaixar os preços, ou para estimular as exportações do País. Pode também haver
concessão diretamente ao consumidor. Em termos orçamentários, caracteriza uma subvenção
econômica.8 Observa-se que o conceito de renúncia de receita alcança também benefícios fi-
nanceiros que operam na vertente da despesa. Exemplo é o denominado subsídio do trigo, que
tinha como objetivo a redução do preço do produto no mercado interno;

2
Note-se que a LRF não faz distinção entre anistia em caráter geral ou não (CTN, arts. 181 e 182).
3
Da mesma forma, a LRF não faz distinção entre remissão em caráter geral ou não (CTN, art. 172).
4
Cabe observar que:
a) a isenção, ainda quando prevista em contrato, é sempre decorrente de lei que especifique as condições e requisitos exigidos para a sua
concessão, os tributos a que se aplica e, sendo caso, o prazo de sua duração (CTN, art. 176, caput); a isenção pode ser restrita a determinada
região do território da entidade tributante, em função de condições a ela peculiares (parágrafo único);
b) a isenção, quando não concedida em caráter geral, é efetivada, em cada caso, por despacho da autoridade administrativa, em requerimento
com o qual o interessado faça prova do preenchimento das condições e do cumprimento dos requisitos previstos em lei ou contrato para sua
concessão (CTN, art. 179, caput).
5
Existem muitas teorias sobre a natureza da isenção. Aqui se utilizou a que foi adotada pelo Código Tributário Nacional, que é fruto da mente
prodigiosa de Rubens Gomes de Sousa. Sobre o assunto, boa exposição é feita por Sacha Calmon Navarro Coêlho (COÊLHO, Sacha Calmon
Navarro. Curso de direito tributário brasileiro. 9ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 176-182).
6
A obrigação tributária principal tem por objeto o pagamento de tributo ou penalidade pecuniária e extingue-se com o crédito dela decorrente
(CTN, art. 113, §1º). A obrigação acessória, pelo simples fato de sua inobservância, converte-se em obrigação principal relativamente à penali-
dade pecuniária (§3º).
7
Lançamento tributário é o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente,
determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da pena-
lidade cabível (CTN, art. 142, caput). Em outras palavras, lançamento é o ato da repartição competente, que verifica a procedência do crédito
tributário e a pessoa que lhe é devedora e inscreve o débito desta (Lei nº 4.320/64, art. 53). O crédito tributário é constituído pelo lançamento.
8
Conceito extraído do site www.tesouro.fazenda.gov.br/serviços/glossário/, em 28/06/06.

109
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

e) crédito presumido é o benefício fiscal típico da sistemática de débito (dos valores de


impostos recebidos nas vendas de mercadorias, no caso do ICMS, e produtos, tratando-se de
IPI) e crédito (das importâncias pagas com impostos nas aquisições para venda de mercadorias
ou de insumos para o processo industrial) dos impostos não cumulativos.9 Ocorre quando a
legislação tributária autoriza o contribuinte, a título de favor fiscal — em razão da política tribu-
tária —, a registrar como crédito contra a Fazenda Pública, no livro de apuração do respectivo
imposto, valores que efetivamente não foram pagos nas operações anteriores, mas que serão
abatidos do saldo do imposto a recolher verificado no final do período de apuração, como se
tivessem sido pagos;

f) alíquota é a razão entre o valor do tributo e a base tributada. Expressa em percenta-


gem a parte que o Estado exige para si toda vez que se concretizar a hipótese de incidência
tributária;

g) base de cálculo é o valor sobre o qual incidirá a alíquota para se obter o quantum do
tributo.

Note-se que o controle das renúncias de receitas contempla a fiscalização de benefícios


tributários (anistia, remissão, crédito presumido, isenções específicas, alterações de alíquotas e
modificações na base de cálculo) e de benefícios financeiros (subsídios).

Com efeito, o tema renúncia de receita está no cerne do regime de gestão fiscal respon-
sável, preconizado pela Lei Complementar nº 101/00 (LRF), que pressupõe a ação planejada e
transparente, em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das
contas públicas, mediante — dentre outros aspectos — a obediência a condições no que tange
a renúncia de receita (art. 1º, §1º).

A transparência, para potencializar o controle político-administrativo das renúncias de


receitas, é imposta pela ordem jurídica pátria, através dos seguintes mecanismos:

a) o Anexo de Metas Fiscais, constante do projeto de lei de diretrizes orçamentárias,


conterá demonstrativo com a quantificação da estimativa e compensação da renúncia de re-
ceita (LRF, art. 4º, §2º, V);

b) a renúncia será sempre ex lege, vale dizer, qualquer subsídio ou isenção, redução de
base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, ta-
xas ou contribuições, só poderá ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou mu-
nicipal, que regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo
ou contribuição, sem prejuízo do disposto no artigo 155, §2º, XII, g, da Constituição Federal (CF,
art. 150, §6º);10
9
Diz-se que um imposto é não cumulativo quando é possível compensar o que for devido em cada operação com o montante cobrado nas
anteriores. A não cumulatividade sucede, por exemplo, com o ICMS (CF, art. 155, §2º, I), o IPI (CF, art. 153, §3º, II), com os impostos da compe-
tência residual (CF, art. 154, I) e também com as contribuições da competência residual (CF, art. 195, §4º).
10
No mesmo sentido, Resolução do Senado Federal estabelece que é vedado aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios conceder qual-
quer subsídio ou isenção, redução da base de cálculo, concessão de crédito presumido, incentivos, anistias, remissão, reduções de alíquotas
e quaisquer outros benefícios tributários, fiscais ou financeiros, não autorizados na forma de lei específica, estadual ou municipal, que regule
exclusivamente as matérias retroenumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição (Resolução SF nº 43/01, art. 5º, V, com a redação
dada pela Resolução SF nº 3/02).

110
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

c) o projeto de lei orçamentária anual será acompanhado de demonstrativo regionaliza-


do do efeito, sobre as receitas e despesas, decorrente de isenções, anistias, remissões, subsídios
e benefícios de natureza financeira, tributária e creditícia (LRF, art. 5º, II, c/c art. 165, §6º, da CF).11

Por outro lado, o planejamento na concessão de renúncia de receitas, para salvaguardar


o maior objetivo da Lei Complementar nº 101/00 (LRF), que é o equilíbrio fiscal, decorre dos
freios estabelecidos no artigo 14, caput, I e II. Determina esse dispositivo que a concessão ou
ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária da qual decorra renúncia de receita
deverá satisfazer os seguintes requisitos:

I) estar acompanhada de estimativa do impacto orçamentário-financeiro12 no exercício


em que deva iniciar sua vigência e nos dois seguintes;

II) atender ao disposto na lei de diretrizes orçamentárias (LDO);13

III) satisfazer a, pelo menos, uma das seguintes condições:

a) demonstração pelo proponente de que a renúncia foi considerada na estimativa de


receita da lei orçamentária, na forma do artigo 12 da Lei Complementar nº 101/00 (LRF), e de
que não afetará as metas de resultados fiscais previstas no anexo próprio da lei de diretrizes
orçamentárias (Anexo de Metas Fiscais – LRF, art. 4º, §1º);

b) estar acompanhada de medidas de compensação, no período acima mencionado,


por meio do aumento de receita, proveniente da elevação de alíquotas, ampliação da base de
cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuição. Se o ato de concessão ou ampliação
do incentivo ou benefício decorrer desta condição, o benefício só entrará em vigor quando
implementadas as medidas referidas (LRF, art. 14, §2º).

A Lei Complementar nº 101/00 (LRF), artigo 14, §1º, submeteu apenas as isenções em
caráter não geral (específicas) ao regime de concessão de renúncia de receita. A contrario sen-
su, as outorgas de isenções gerais não estão submetidas às condições estipuladas nos inci-
sos do mencionado dispositivo. Nesse aspecto, a LRF sobrevalorizou as funções extrafiscais
da tributação — resguardando seu objetivo de indutor do desenvolvimento econômico e sua
missão de redistribuir renda, promovendo justiça fiscal, mediante a concretização do princípio
tributário da capacidade contributiva —, deixando em menor patamar o interesse pelo equilíbrio
orçamentário.

Ricardo Lobo Torres narra que “o trabalho dos americanos Stanley S. Surrey e Paul R. Mc Daniel, ao denominar de ‘gasto tributário’ (tax expen-
11

diture) o incentivo sediado na receita e equipará-lo ao verdadeiro gasto representado na despesa (subvenção), contribuiu decisivamente para
clarear o assunto, repercutindo sobre a doutrina, a legislação e a jurisprudência de diversos países e fazendo com que o próprio orçamento
dos Estados Unidos, após 1975, passasse a conter uma análise especial intitulada ‘Tax Expenditures’, que motivou o art. 165, §6º, da CF” (TOR-
RES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional financeiro e tributário. Orçamento na Constituição. Vol. V. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar,
2000, p. 260).

Nesse caso, por estimativa do impacto orçamentário-financeiro deve-se entender a quantificação da queda na arrecadação de receitas,
12

em valores aproximados, que resultará do implemento da renúncia (impacto financeiro), indicando-se a parte desse valor que já consta no
orçamento em execução, bem como a origem dos recursos que irão ocorrer à diferença (impacto orçamentário), e ainda a forma como será
compensada a redução de receitas nos anos fiscais subsequentes.
13
A CF, art. 165, §2º, prevê que a LDO disporá sobre as alterações na legislação tributária.

111
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

Cabe, então, distinguir a isenção concedida em caráter geral daquela outorgada em


caráter específico. A primeira surge diretamente da lei — e extingue-se com a revogação da lei
concessiva —, não carecendo de pedido do interessado nem de qualquer ato administrativo;
a segunda é efetivada, em cada caso, por despacho da autoridade administrativa, em requeri-
mento com o qual o interessado faça prova do preenchimento das condições e do cumprimen-
to dos requisitos previstos em lei para sua concessão (CTN, art. 179).

Ante a literalidade do §1º do artigo 14 da Lei Complementar nº 101/00 (LRF), exsurge a


dúvida: a anistia e a remissão quando concedidas em caráter geral estão também submetidas
às exigências do caput do artigo 14? Pela leitura restrita dos termos da lei, a resposta será sim.
Entretanto, é fácil perceber, pelo conjunto do dispositivo, que seu objetivo é coibir tratamento
diferenciado na concessão de renúncia de receita; é o que se extrai das expressões "isenção em
caráter não geral", "alteração de alíquota que implique redução discriminada de tributo", "mo-
dificação de base de cálculo que implique redução discriminada de tributo", "benefícios com
tratamento diferenciado", além do que o crédito presumido e o subsídio constituem tipos de
renúncia de receita que traduzem tratamento diferenciado pela própria natureza. São benefícios
desiguais que no médio e longo prazo corroem a receita pública provocando desequilíbrios
estruturais.

Nesse passo, pode-se concluir que a remissão concedida em caráter geral não está
sujeita às restrições do caput do artigo 14, mormente quando consubstancia mera estratégia
adotada para estimular o pagamento do tributo. É o que ocorre quando a Fazenda Pública mu-
nicipal concede abatimento para os contribuintes que pagarem, no início do ano, o IPTU em
cota única.14

Com efeito, a Lei Complementar nº 101/00 (LRF) impõe para as renúncias de receitas
a mesma regra determinada para a geração ou ampliação de despesas: a necessidade da res-
pectiva compensação pela adoção de medidas que aumentem a receita tributária ou diminuam
permanentemente outras despesas, de modo a manter o equilíbrio fiscal. Assim, a LRF, da mes-
ma forma que busca conter a geração descompensada de despesa (arts. 15, 16 e 17), pretende
sofrear as perdas de receita, não raro produtos de decisões político-administrativas inconse-
quentes, igualmente danosas ao equilíbrio orçamentário.

Vale ressaltar que o dispositivo legal em tela cuida de condições restritivas para novas
concessões ou novas ampliações de incentivo ou benefício de natureza tributária anteriormen-
te outorgado do qual decorra renúncia de receita. Isso significa que situações já constituídas por
ocasião da publicação da Lei Complementar nº 101/00 (LRF) ou renúncias de receitas, conce-
didas ou ampliadas, em exercícios financeiros anteriores, que já foram incorporadas ao sistema
orçamentário, estão imunes às restrições do artigo 14 da LRF. Sendo assim, o ente da Federação
pode, sem essas restrições, continuar cumprindo as leis concessivas de benefícios fiscais edita-
das antes da vigência da LRF; e a observância do procedimento previsto no mencionado artigo
é necessária apenas no período que compreende o exercício em que deva iniciar sua vigência e
os dois seguintes.
14
Nesse ponto, houve evolução em relação ao texto constante até a 4ª edição.

112
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

O certo é que o Poder Executivo, ao encaminhar ao Legislativo projeto de lei que esta-
beleça renúncia de receita, deve demonstrar, em documento anexo, que as exigências impostas
no artigo 14 da Lei Complementar nº 101/00 (LRF) serão atendidas, em caso de aprovação da
proposta.15 A demonstração de que a renúncia de receita não comprometerá as metas fiscais
estabelecidas na LDO, observam Carlos Maurício Figueiredo e outros, “deve pautar-se por pro-
jeções de comportamento da economia e estratégias governamentais.16 É claro que esse inciso
I (do art. 14 da LRF) refere-se a uma estimativa que pode, evidentemente, não se realizar. Caso
as premissas explicitadas no inciso I se frustrem, a renúncia de receita somente poderá ser con-
cedida via mecanismo de compensação, inspirada no Budget Enforcement Act (BEA – 1990)
dos Estados Unidos,17 que parte do princípio de que novos gastos deverão ser compensados ou
pelo aumento da receita ou pela diminuição da despesa”.18

Se a proposta de compensação for mediante aumento de receita, proveniente da eleva-


ção de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribui-
ção, o benefício só entrará em vigor quando implementadas as medidas referidas (LRF, art. 14,
§2º). Isso é importante em face do princípio tributário da anterioridade,19 20 que impede, salvo
exceções, os efeitos imediatos das citadas alterações na legislação tributária. Evidentemente, a
compensação de renúncia de receita com aumento de arrecadação tributária só pode ocorrer
através dos tributos não vinculados (impostos), visto que os demais (taxas, contribuições de me-
lhoria, contribuições especiais e empréstimos compulsórios) estão vinculados a uma atividade
estatal específica, sob pena de desvio de finalidade.

A Lei Complementar nº 101/00 (LRF), artigo 14, §3º, I, estabelece que não serão neces-
sárias medidas de compensação quando o benefício fiscal se referir à alteração de alíquota do

15
Note-se que, conforme consta no item 3.7.2, o Supremo Tribunal Federal firmou jurisprudência no sentido de que o disposto no artigo 61,
§1º, II, b, da Carta da República (são de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que disponham sobre organização administrativa e
judiciária, matéria tributária e orçamentária, serviços públicos e pessoal da administração dos Territórios) tem aplicação circunscrita às iniciati-
vas privativas do Chefe do Poder Executivo Federal na órbita exclusiva dos territórios federais (STF, Plenário, ADI 2.464-7 / AP, Rel. Min. Ministra
Ellen Gracie, 11/04/07, D.J. 25/05/07).

Esses autores observam que a melhoria da arrecadação, inclusive resultante do combate à sonegação, poderá estar contemplada dentre es-
16

sas estratégias governamentais, fato que prejudica o argumento de inconstitucionalidade do art. 14 da LRF em razão da lei não mencionar uma
possível compensação resultante do combate à sonegação, o que determinaria a oneração do contribuinte (FIGUEIREDO, Carlos Maurício et
al. Comentários à Lei de Responsabilidade Fiscal. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 105 e 106).
17
Lei, editada em 1990, que estabelece normas rígidas, onde o Congresso americano fixa antecipadamente metas de superávit e mecanismos
de controle de despesas, no âmbito do Governo Federal, objetivando o combate do déficit no orçamento da União, mediante dois instrumen-
tos fundamentais:
a) o sequestration, que consiste em critérios de limitações de empenho (proibição de gastos) para as despesas discricionárias;
b) o pay as you go, que se traduz no uso de medidas compensatórias diante do aumento de despesas obrigatórias de caráter continuado,
mediante a diminuição de outros gastos ou aumento de receitas.
18
FIGUEIREDO, Carlos Maurício et al. Comentários à Lei de Responsabilidade Fiscal. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p.
105 (o parêntese não consta do original).

É vedado cobrar tributos:


19

a) no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou (CF, art. 150, III, b);
b) antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, observado o disposto na alínea
anterior (CF, art. 150, III, c).
A vedação do art. 150, III, b, não se aplica aos tributos previstos nos arts. 148, I, 153, I, II, IV e V; e 154, II; e a vedação do art. 150, III, c, não se
aplica aos tributos previstos nos arts. 148, I, 153, I, II, III e V; e 154, II, nem à fixação da base de cálculo dos impostos previstos nos arts. 155, III,
e 156, I (CF, art. 150, §1º).
20
Paulo de Barros Carvalho explica que, com as alterações da EC nº 42/03, “podemos afirmar a existência de quatro regimes para vigência
das leis que instituem ou aumentam tributos, decorrentes da conjugação dos princípios da anterioridade e da noventena, bem como suas
exceções: (i) a regra geral é a aplicação cumulada desses dois princípios; (ii) em se tratando de empréstimos compulsórios motivados por
calamidade pública ou guerra externa, imposto de importação, imposto de exportação, imposto sobre operações de crédito, câmbio e seguro,
ou relativas a títulos ou valores mobiliários, e impostos extraordinários, não se aplica a anterioridade nem o prazo nonagesimal; (iii) o imposto
sobre a renda e a fixação da base de cálculo dos impostos sobre a propriedade de veículos automotores e sobre a propriedade predial e ter-
ritorial urbana sujeitam-se à anterioridade, mas estão excluídas da exigência de vacância legislativa por noventa dias; e (iv) ao imposto sobre
produtos industrializados e às contribuições sociais destinadas ao financiamento da seguridade social, conquanto excepcionados da anteriori-
dade, aplica-se a noventena” (CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 161)

113
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

imposto de importação (II), do imposto de exportação (IE), do imposto sobre operações de


crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários (IOF) e do imposto so-
bre produtos industrializados (IPI). Nesse caso, prevaleceu a função extrafiscal desses impostos
(vide item 5.7.2.3).

Em verdade, esse dispositivo da Lei Complementar nº 101/00 (LRF) tem harmonia com
o artigo 153, §1º, da Lei Suprema, que excepciona esses impostos do princípio da legalidade,
quando dispõe que é facultado ao Poder Executivo, atendidas as condições e limites estabe-
lecidos em lei, alterar suas alíquotas. Também está em sintonia com o artigo 150, §1º, do Texto
Constitucional, que excepciona tais impostos do princípio da anterioridade, quando prevê que
o II, o IE e o IOF podem ser cobrados no mesmo exercício em que haja sido publicada a lei que
os instituiu ou aumentou e antes de decorridos noventa dias da data da referida publicação, e
que o IPI pode ser cobrado no mesmo exercício em que haja sido publicada a lei que o instituiu
ou aumentou, observada, entretanto, a anterioridade nonagesimal.

As restrições à concessão de renúncia de receita previstas no artigo 14, caput, I e II, da


Lei Complementar nº 101/00 (LRF) também não se aplicam nos casos de cancelamento de
débito, cujo montante seja inferior ao dos respectivos custos de cobrança (LRF, art. 14, §3º, II).
Dessa feita, prevaleceu o princípio da razoabilidade (ou da materialidade, como invocam os
contabilistas), uma vez que as despesas resultantes da operacionalização da cobrança suplan-
tariam as receitas arrecadadas, com prejuízo para o equilíbrio fiscal, que é o que se pretende
preservar no caput desse artigo da LRF.

Pode-se, então, apontar o caminho a ser percorrido na autorização legal dessas conces-
sões. O primeiro passo é incluir na lei de diretrizes orçamentárias a previsão de que a legislação
tributária será alterada no sentido de conceder o correspondente benefício fiscal (CF, art. 165,
§2º). Além disso, o Anexo de Metas Fiscais que integrará essa lei deverá conter a estimativa dessa
renúncia de receita (LRF, art. 4º, §2º, V). O segundo passo é demonstrar, por ocasião do projeto
de lei orçamentária anual, o efeito sobre as receitas — no caso de isenções, anistias, remissões
e outros benefícios de natureza tributária — ou sobre as despesas — tratando-se de subsídio ou
qualquer outro benefício de natureza financeira ou creditícia —, decorrente da renúncia (LRF,
art. 5º, II, e CF, art. 165, §6º). A última providência é a aprovação do favor fiscal, por meio de lei
específica, que regule exclusivamente a matéria ou o correspondente tributo (CF, art. 150, §6º).

Nesse tema, uma questão é recorrente: pode o ente da Federação, unicamente com o
fito de aumentar a arrecadação de determinado tributo, estimular o seu pagamento, mediante
a redução do valor devido do tributo, condicionada ao seu recolhimento? Acredita-se que sim.
Não se deve perder de vista que a vontade da norma é justamente bloquear perda de receita, em
favor do equilíbrio fiscal. Medidas que comprovadamente estimulem o crescimento da arreca-
dação devem ser sempre bem-vindas. Essa comprovação será evidenciada com o efeito positi-
vo no crescimento da arrecadação, no exercício financeiro no qual entrar em vigor o incentivo.
Não se pode admitir que o gestor público seja punido por promover o crescimento da receita
do ente que administra. Seria um contrassenso. Também não estão sujeitas a controle pelo
comando do artigo 14 da Lei Complementar nº 101/00 (LRF) outras medidas de administração

114
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

tributária, tais como a prorrogação do prazo para pagamento do tributo e o parcelamento de


débito. Nesses casos, não haverá desoneração do contribuinte pela extinção (CTN, art. 156),
nem pela exclusão (CTN, art. 175) do crédito tributário, mas, apenas, a suspensão pela moratória
(CTN, art. 151, I), no primeiro caso, ou pelo parcelamento (CTN, art. 151, VI), na segunda hipóte-
se.

Cumpre, agora, uma reflexão sobre a denominada guerra fiscal.

Convencionou-se chamar de guerra fiscal a competição exacerbada, mediante con-


cessão de benefícios fiscais, que os entes da Federação realizam com o objetivo de atrair para
seus territórios novos investimentos privados do setor industrial. Esses incentivos, concedidos
pelo prazo de 10 a 15 anos, acabam por prejudicar todo o sistema orçamentário brasileiro, com
graves prejuízos para a Fazenda Pública.

“Esse mecanismo”, assinalam Carlos Maurício Figueiredo e outros, “à primeira vista, pa-
rece trazer benefícios. Onde (praticamente) inexiste atividade econômica — portanto, nenhuma
arrecadação de ICMS —, a instalação de uma indústria, conquanto, ela mesma, isenta do impos-
to, traz consigo, a seu redor, iniciativa comercial ou industrial, serviços. A renda gerada por essas
novas atividades não é isenta e o Estado, isoladamente, desfruta do ganho líquido de receita. O
problema surge quando os outros Estados da Federação descobrem que esse mecanismo pode
ser um bom negócio (...). Como todos concedem benefícios semelhantes, as indústrias instalar-
-se-ão onde existirem condições mais favoráveis, como boas estradas, mercado consumidor,
fornecimento de matéria-prima (...). Nesse momento, a guerra fiscal acaba punindo os Estados
mais pobres e exacerbando a concentração industrial”.21

No mesmo sentido, Sérgio Guimarães Ferreira pontifica que é questionável a prática da


guerra fiscal como instrumento para desenvolvimento das regiões mais pobres. “O mais prová-
vel é que a medida em que incentivos são disseminados, inclusive com a participação crescente
dos Estados mais desenvolvidos, o efeito final redistributivo da guerra fiscal torna-se neutro. Es-
tatísticas recentes do PIB por Estado não evidenciam uma desconcentração da renda nacional.
Alguns Estados menos desenvolvidos e que notoriamente foram mais agressivos na guerra fiscal
chegaram a sofrer perdas em suas participações no PIB nacional, inclusive industrial. Se todos
os Estados parassem de conceder incentivos, todos ganhariam; mas, se um se abstém e outro
continua, aquele que se absteve perde. Nessas circunstâncias, perdem força meras proibições
legais. É necessário alterar a sinalização tributária e econômica percebida pelos Estados para
evitar que suas ações individuais contrariem o interesse nacional”.22

É muito importante salientar que, em face do disposto no artigo 155, §2º, XII, g, da Lei
Fundamental, a concessão ou revogação de isenções, incentivos e benefícios fiscais relativos
ao ICMS deverá ser precedida de deliberação dos Estados e do Distrito Federal, no âmbito do
Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ).
FIGUEIREDO, Carlos Maurício et al. Comentários à Lei de Responsabilidade Fiscal. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p.
21

98 e 99.
22
Estudo veiculado no Informe-sf nº 04 do BNDES (FERREIRA, Sérgio Guimarães. Guerra fiscal: competição tributária ou corrida ao fundo do
tacho? INTERNET: http://federativo.bndes.gov.br/f_palavra.html – 24/08/06, p. 1).

115
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

Essa é a interpretação do Supremo Tribunal Federal, que, em decisão plenária, nos autos
da ADI nº 3.246/PA,23 declarou inconstitucional parte da lei estadual do Pará, que permitia a
concessão de benefícios fiscais a empresas participantes da política de incentivos ao desenvol-
vimento do Estado. Os Ministros julgaram inconstitucional o inciso I do artigo 5º da Lei Estadual
nº 6.489/02. Essa norma prevê a possibilidade de concessão de isenção, redução da base de
cálculo, diferimento, crédito presumido e suspensão do ICMS relativo aos empreendimentos.
Na ação, a Procuradoria Geral da República sustentou que os benefícios concedidos de forma
unilateral pela Lei paraense ferem o artigo 155, §2º, XII, g, da Constituição Federal, que exige a
celebração de convênio entre os Estados-Membros da Federação e o Distrito Federal para a
concessão de incentivos fiscais. Ao analisar a ação, o Relator, Ministro Carlos Ayres Britto, enfa-
tizou a necessidade de decisão conjunta dos Estados para a concessão dos incentivos, “de for-
ma a evitar a competição predatória entre os entes federados, usualmente chamada de guerra
fiscal”. Diante disso, o Ministro votou pela inconstitucionalidade, com efeito retroativo (ex tunc),
do dispositivo da Lei estadual. Entendeu o Relator que deve ser dada à parte questionada da Lei
estadual a interpretação conforme o artigo 155, §2º, XII, g, da Constituição. Tal interpretação
é no sentido de que sejam excluídos os créditos fiscais relativos ao ICMS, decorrentes de in-
centivo fiscal não previsto em convênio entre os Estados, mais o Distrito Federal. A decisão foi
unânime.24

Em 2015, a Suprema Corte voltou a ratificar o entendimento de que a concessão unila-


teral de benefícios fiscais relativos ao ICMS sem a prévia celebração de convênio intergoverna-
mental, nos termos da Lei Complementar nº 24/75, afronta a Constituição Federal, art. 155, §2º,
XII, g; entretanto, inovou ao modular os efeitos da decisão, que somente passou a valer a partir
da data do julgamento da respectiva ação.25

Essa posição da Suprema Corte atinge frontalmente a guerra fiscal, uma vez que a con-
cessão de benefícios do ICMS é a sua principal fonte. Ressalte-se que a concessão de benefí-
cios, resultante de convênios aprovados no âmbito do CONFAZ, dependerá sempre de decisão
unânime dos Estados-Membros representados (Lei Complementar nº 24/75, art. 2º, §2º).

A bem dizer, a concessão de isenções do ICMS, no âmbito do CONFAZ, mediante o me-


canismo previsto no artigo 4º, caput e §2º, da Lei Complementar nº 24/74 — segundo o qual,
dentro de 15 (quinze) dias, contados da publicação dos convênios no Diário Oficial da União,
e independentemente de qualquer outra comunicação, o Poder Executivo de cada unidade da
Federação publicará decreto ratificando, ou não, os convênios celebrados, considerando-se
ratificação tácita dos convênios a falta de manifestação no prazo assinalado nesse artigo —, não

23
STF, Plenário, ADI 3.246 / PA, Rel. Min. Carlos Ayres Britto, 19/04/06, D.J. 27/04/06.
24
De acordo com notícia divulgada no site do STF, http://www.stf.gov.br/noticias/imprensa/ultimas, em 19/04/2006. Na mesma direção, o STF
já havia declarado inconstitucional, por unanimidade, a Lei nº 6.004/98 do Estado de Alagoas (STF, Plenário, ADI 2.458 / AL, Rel. Min. Ilmar
Galvão, 23/04/03, D.J. 02/05/03). Esse dispositivo concedia créditos presumidos, isenção e benefícios fiscais em favor de usineiros do setor
sucroalcooleiro na arrecadação do ICMS. Na ação, o autor (governador de Alagoas) declarou que as finanças do Estado sofreram graves preju-
ízos depois da edição da Lei. Em 1997, por exemplo, a arrecadação era de R$ 6,6 milhões; em 1998, baixou para R$ 180 mil e em 2000 chegou
a R$ 33 mil. A receita bruta do setor canavieiro, no entanto, atingiu R$ 1,3 bilhão em 2000, sendo maior que a receita do Estado. Segundo o
Relator, Ministro Ilmar Galvão, ao editar a Lei, a Assembleia Legislativa do Estado não previu a assinatura de convênios com os outros Estados
para conceder os privilégios quanto ao ICMS, o que fere a Constituição Federal (art. 155, §2º, XII, g). A vedação de concessão unilateral de
isenções em matéria de tributo estadual serve para evitar a guerra fiscal entre os Estados (conforme notícia propagada no site do STF, http://
www.stf.gov.br/noticias/imprensa/ultimas, em 23/04/2003).
25
STF, Plenário, ADI 4481 / PR, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, 11/03/2015, D.J.E. 19/05/2015.

116
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

tem conformidade com o artigo 150, §6º, do Texto Supremo, o qual, como já foi dito, prevê, para
que se conceda benefício tributário ou financeiro, a edição de lei específica, federal, estadual ou
municipal.

Esse entendimento não prejudica a efetividade do artigo 155, §2º, XII, g, que estabelece
que cabe à lei complementar regular a forma como, mediante deliberação dos Estados e do
Distrito Federal, isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados. Como
bem explica Sacha Calmon Navarro Coelho, “o que cabe à lei complementar é regular o modo
como (modus faciendi) se processarão os convênios. Evidentemente, a lei complementar não
poderá deferir a um colegiado interestadual de funcionários públicos poderes para dar e tirar
tributação (isenção e reduções e suas revogações) sem lei, contra o princípio da legalidade (...).
Nestas assembleias, são gestados os convênios, ou melhor, as ‘propostas’ de convênios. Em
verdade, o conteúdo dos convênios só passa a valer depois que as Assembleias Legislativas —
casas onde se faz representar o povo dos estados — ratificam os convênios pré-firmados nas
assembleias”.26

Conclui-se, portanto, que o artigo 4º da Lei Complementar nº 24/75 constitui afronta ao


artigo 150, §6º, da Lei Suprema, não estando mais vigente no ordenamento pátrio. Logo, após a
celebração dos convênios no âmbito do CONFAZ, necessário se faz que o Poder Legislativo dos
Estados e o Distrito Federal editem lei específica para conceder benefícios fiscais relativos ao
ICMS. Não custa lembrar que, no caso, cuida-se de necessidade de lei específica, não podendo,
portanto, o Poder Legislativo aprovar lei que, genericamente, autorize o Executivo a ratificar os
convênios celebrados no CONFAZ.

Pelo exposto, é possível fixar as etapas a serem seguidas na concessão de benefícios


tributários referentes ao ICMS. De início, deve haver convênio pactuado na esfera do CONFAZ;
depois, em nível estadual, é necessário, como em qualquer caso, percorrer o caminho imposto
pela ordem jurídica brasileira:

a) incluir na lei de diretrizes orçamentárias a previsão de que legislação tributária estadu-


al será alterada no sentido de conceder o correspondente benefício fiscal (CF, art. 165, §2º);

b) fazer constar no Anexo de Metas Fiscais, que integrará essa lei, a estimativa dessa re-
núncia de receita (LRF, art. 4º, §2º, V);

c) demonstrar, por ocasião do projeto de lei orçamentária anual, o efeito sobre as recei-
tas decorrente da renúncia (LRF, art. 5º, II, e CF, art. 165, §6º);

d) aprovar a correspondente lei específica (CF, art. 150, §6º). Desse modo, alguns Esta-
dos-Membros poderão conceder o benefício aprovado no CONFAZ e outros não.

Vale registrar que os tributaristas resistem aos termos do artigo 14 da Lei Complementar

26
COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro. 9ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 223.

117
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

nº 101/00 (LRF). Roque Antônio Carraza aduz que, “sem embargo da oportunidade destas dis-
posições, que visam, incontendivelmente, a coibir a multiplicação, sem critério nem método, de
benefícios e incentivos tributários, temos para nós que elas não podem alcançar a competência
para isentar, que é a contrapartida da competência para tributar (...). Ocorre que o Brasil é uma
Federação, na qual os Estados Federados, os Municípios e o Distrito Federal, observada a parti-
lha constitucional de competências, gozam de prerrogativas legislativas e administrativas, que
a União não pode anular, nem mesmo por meio de lei complementar (...). Deu-se, pois, in casu,
inconstitucionalidade material, por vulneração do princípio federativo. Enfim, instituindo, ou
não, os tributos de sua competência e concedendo, a seu talante, isenções, benefícios e incen-
tivos fiscais, as pessoas políticas exercitam sua autonomia. Para que fiquem dentro da ordem
jurídica basta que observem as diretrizes e restrições contidas na própria Carta Magna”.27

Por outro lado, sabe-se que a concessão de renúncia de receita somente tem sentido se
estiver vinculada a objetivos a serem perseguidos na execução de determinada política pública;
daí a necessidade de o sistema de controle externo aferir se os resultados alcançados justificam
a respectiva perda de receita, por meio de auditoria operacional a ser efetivada a partir da iden-
tificação dos objetivos, metas e indicadores relacionados às políticas públicas financiadas pelas
renúncias de receita.

À míngua desses elementos, que são imprescindíveis no planejamento e execução de


auditorias de desempenho (vide item 8.2.4), podem-se investigar as seguintes fontes com o
objetivo de obtê-los:

a) a lei específica (incluindo a exposição de motivos) que instituiu a renúncia de receita;28

b) as leis orçamentárias (PPA, LDO e LOA) da entidade federativa concedente;

c) a legislação que regulamenta a política pública ou programa governamental financia-


do pela renúncia de receita;

d) a norma de organização do órgão gestor associado à renúncia.

De qualquer sorte, a Lei Complementar nº 101/00 (LRF), em combinação com as nor-


mas constitucionais preexistentes, pretende prover de racionalidade as concessões de favores
fiscais, mediante a exigência de planejamento e a transparência no procedimento de conceder
benefício tributário, financeiro ou creditício. Espera-se, com isso, que a ordem jurídica seja ca-
paz de arrefecer a prática perniciosa da guerra fiscal.

27
CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de direito constitucional tributário. 22ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 645.

28
A LDO da União para 2014 (Lei nº 12.919/13) afirma que as proposições que tratem de renúncia de receita, ainda que sujeitas a limites globais,
devem ser acompanhadas de estimativa do impacto orçamentário-financeiro e correspondente compensação, consignar objetivo, bem como
atender às condições do art. 14 da LRF (art. 95, §3º).

118
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

O PRECATÓRIO E O SEQUESTRO
HUMANITÁRIO EM FACE DA
DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
Lauro Ishikawa*
(*)Doutor e Mestre em Direito pela PUC/SP; Docente Titular e Coordenador Adjunto dos Cursos
de Doutorado e Mestrado em Direito do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da Faculdade
Autônoma de Direito (FADISP); Docente do Curso de Graduação em Direito e Coordenador de
Extensão das Faculdades Integradas Rio Branco; Docente da Escola de Direito da Universidade
Anhembi Morumbi; Bolsista da Fundação Nacional de Desenvolvimento do Ensino Superior Parti-
cular (FUNADESP); Advogado em São Paulo. E-mail: lauro.ishikawa@alfa.br.

01. RESUMO

No presente artigo discute-se sobre a possibilidade do sequestro humanitário na or-


dem dos precatórios, consoante estabelecido pela Constituição Federal de 1988, em face da
jurisprudência dos Tribunais de Justiça, do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de
Justiça brasileiros. Para tanto, primeiramente discorreremos, a título de introdução, de forma
breve sobre o conceito de precatório, para em seguida, trazermos as principais alterações ins-
tituídas pela Emenda Constitucional 62/2009 nesta temática. Posteriormente, analisaremos al-
guns ditames da jurisprudência brasileira sobre o sequestro humanitário e, logo, a relação entre
este tipo de sequestro e a dignidade da pessoa humana antes e depois da EC 62/2009. Por fim,
concluímos pela necessária observância da dignidade da pessoa humana pelo Poder Judiciário
ao julgar casos de sequestro humanitário, como também ao aplicar dita Emenda.

PALAVRAS-CHAVE: Sequestro Humanitário; Dignidade da Pessoa Humana; Precatórios.

02. ABSTRACT

In this article we discuss the possibility of humanitarian restraint in the order of court-or-
der debt security, as established by the 1988 Federal Constitution in view of the jurisprudence
of the Brazilian Courts of Justice, Supreme and Superior Courts. Therefore, first we will discuss,
as introduction, briefly on the concept of a court-order debt security, for then bringing the
main changes introduced by Constitutional Amendment 62/2009 on this theme. Later, we will
analyze some decisions of Brazilian jurisprudence on humanitarian restraint and therefore the
relationship between this kind of restraint and human dignity before and after Constitutional
Amendment 62/2009. Finally, we conclude the necessary observance of human dignity by the
judiciary to try cases of humanitarian restraint, as well as to apply the Amendment.t

KEYWORDS: HUMANITARIAN RESTRAINT; HUMAN DIGNITY; COURT-ORDER DEBT SECURITY.

119
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

03. INTRODUÇÃO

Por ser vedada a realização de despesas ou a assunção de obrigações diretas que excedam
os créditos orçamentários ou adicionais, conforme enunciado no artigo 167, II, da Constituição
Federal de 1988, os débitos da Fazenda Pública só podem ser satisfeitos se previsto no orçamento
respectivo, atingindo diretamente o detentor do direito de crédito (precatório) em face do Estado.

O presente artigo tenciona enfrentar o problema da insegurança jurídica que o deten-


tor do precatório possui frente à regra geral do pagamento que determina o respeito à ordem
cronológica, a afastar qualquer teoria que analise o custo financeiro da decisão judicial, por
impropriedade, para não dizer, desumanidade.

Evidentemente, o processo de execução para a realização do resultado obtido em sen-


tença judicial já alcançada pelo trânsito em julgado, segue rito diverso daquele previsto para as
execuções de títulos (em geral) posto à disposição do jurisdicionado.

A repercussão do princípio da dignidade da pessoa humana, in casu, sobre o jurisdicio-


nado que possui o seu crédito reconhecido em sentença judicial transitada em julgado e que,
por um motivo mais relevante que os demais, diga-se, em comparação com o credor "comum",
em razão da idade ou por estar acometido de grave doença, revela a necessidade da urgência
da verba correspondente para satisfazer não só o seu direito ao recebimento, mas para garantir,
no mais das vezes, a sua própria sobrevivência.

Encontrar um mecanismo juridicamente plausível e sustentável é tarefa do intérprete,


provocando a transcendência do texto normativo para a aplicação prática, sem configurar des-
cumprimento da norma, antes o contrário, reforçando o preceito de tornar eficazes as normas
garantidoras de direitos individuais fundamentais.

Neste diapasão, inverter a ordem cronológica do pagamento do precatório é medida


equanime para a realização da justiça em respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana.

04. O PRECATÓRIO E O SEQUESTRO HUMANITÁRIO

Conceituando o mecanismo de satisfação do crédito que alguém detém perante o Po-


der Público, Regis Fernandes de Oliveira explica que precatório, ou ofício precatório, "é a soli-
citação que o juiz da execução faz ao presidente do tribunal respectivo para que ele requisite
verba necessária ao pagamento de credor de pessoa jurídica de direito público, em face de
decisão judicial transitada em julgado"1.

É importante elucidar que este mecanismo afeta somente a pessoa jurídica de direito
público – compreendendo esta os entes de direito público interno, ou seja, a União, os Estados,
os Municípios, o Distrito Federal, suas respectivas autarquias e fundações públicas. Como res-
salta Regis Fernandes de Oliveira, "as empresas públicas exploradoras de atividade econômica
1
OLIVEIRA, Regis Fernandes. Curso de Direito Financeiro. 5. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, 1p. 669.

120
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

estão excluídas do regime dos precatórios, ou seja, seus credores devem promover 'execução
comum', para haver seus respectivos créditos"2.

Para satisfazer o direito de receber crédito da Fazenda Pública, o exequente, assim le-
gitimado, ajuizará a execução judicial do título, cujo procedimento, porém, tramitará de forma
diversa das regras previstas para a execução comum. Independentemente do título ser judicial
ou extrajudicial, cita-se a Fazenda Pública (CPC, art. 730), para opor embargos e, ao final do
procedimento, é expedido o precatório.

Isto porque, os bens da Fazenda Pública no ordenamento pátrio são regidos por norma-
tivas distintas daquelas referentes aos bens particulares, sendo inviáveis a penhora e a alienação
judicial indiscriminadas de seus bens, ipso facto, a sua responsabilidade patrimonial acaba por
assumir feição diversa, sendo inapto o procedimento padrão de execução patrimonial.

Considerando tais peculiaridades, a Constituição Federal brasileira dedicou regime es-


pecial ao pagamento de condenações judiciais devidas pela Fazenda Pública. Assim, consoante
prescrito no seu artigo 1003, todas as suas dívidas devem ser pagas via precatório.

Desde as determinações instituídas pela redação original da Constituição Federal de


1988 tem-se prolongado debate no que diz respeito ao pagamento de precatórios, tanto na
doutrina quanto na jurisprudência, especialmente em face da prelação de uns sobre outros,
exceção, assim, à ordem cronológica inicialmente estabelecida pelo texto constitucional.

A esse respeito, explica Fredie Didier:

"Sendo o devedor a Fazenda Pública, não se aplicam as regras próprias


da execução por quantia certa contra devedor solvente, não havendo
a adoção de medidas expropriatórias para a satisfação do crédito. Os
pagamentos feitos pela Fazenda Pública são despendidos pelo erá-
rio, merecendo tratamento específico a execução intentada contra as
pessoas jurídicas de direito público, a fim de adaptar as regras perti-
nentes à sistemática do precatório. Não há, enfim, expropriação na
execução intentada contra a Fazenda Pública, devendo o pagamento
submeter-se ao regime jurídico do precatório (ou da Requisição de
Pequeno Valor, se o valor for inferior aos limites legais [...])4"

2
OLIVEIRA, Regis Fernandes. Curso de Direito Financeiro. 5. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 669.
3
A Constituição Federal brasileira dispõe sobre o pagamento de precatórios em seu art. 100, in verbis: Art. 100. À exceção dos créditos de
natureza alimentícia, os pagamentos devidos pela Fazenda Federal, Estadual ou Municipal, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusi-
vamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pes-
soas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim. § 1º - É obrigatória a inclusão, no orçamento das entidades de
direito público, de verba necessária ao pagamento de seus débitos constantes de precatórios judiciários, apresentados até 1º de julho, data em
que terão atualizados seus valores, fazendo-se o pagamento até o final do exercício seguinte. § 2º - As dotações orçamentárias e os créditos
abertos serão consignados ao Poder Judiciário, recolhendo-se as importâncias respectivas à repartição competente, cabendo ao Presidente
do Tribunal que proferir a decisão exeqüenda determinar o pagamento, segundo as possibilidades do depósito, e autorizar, a requerimento do
credor e exclusivamente para o caso de preterimento de seu direito de precedência, o seqüestro da quantia necessária à satisfação do débito.
4
DIDIER JUNIOR, Fredie; CUNHA, Leonardo José C. da; BRAGA, Paula S. (et. al.). Curso de Direito Processual Civil. Execução. Vol. 5. 4. ed.
Salvador: JusPODIVM, 2012, p. 723, 724.

121
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

Determinada pelo juiz, a expedição do precatório é realizada pelo Presidente do respec-


tivo tribunal, requisitando às autoridades administrativas, assim, para que estas incluam o débito
no orçamento geral, com a consequente predisposição ao pagamento no próximo exercício
financeiro.

Como se vê do texto constitucional, excepcionaram-se os precatórios de natureza ali-


mentícia, com a necessária explicitação pelo Supremo Tribunal Federal na Súmula 655, que
enuncia: “a exceção prevista no art. 100, caput, da Constituição, em favor dos créditos de na-
tureza alimentícia, não dispensa a expedição de precatório, limitando-se a isentá-los da obser-
vância da ordem cronológica dos precatórios decorrentes de condenações de outra natureza”.

Dessa maneira, tanto os créditos de natureza alimentícia quanto os demais, deveriam ser
realizados mediante a expedição de precatórios, diferenciando-se ambos somente pela prela-
ção dos primeiros diante da regra da ordem cronológica. Explica-se o destaque: - quais são os
créditos de natureza alimentícia?

Essa questão somente foi esclarecida com a edição da Emenda Constitucional nº 30/2000,
com a introdução do § 1º no artigo suprarreferido, o qual enunciava que os débitos de natureza
alimentícia compreendiam “aqueles decorrentes de salários, vencimentos, proventos, pensões e
suas complementações, benefícios previdenciários e indenizações por morte ou invalidez, fundadas
na responsabilidade civil, em virtude de sentença transitada em julgado”; para então se consolidar,
com pequena alteração, na redação dada pela Emenda Constitucional nº 62, de 2009: “Os débitos
de natureza alimentícia compreendem aqueles decorrentes de salários, vencimentos, proventos,
pensões e suas complementações, benefícios previdenciários e indenizações por morte ou por
invalidez, fundadas em responsabilidade civil, em virtude de sentença judicial transitada em julgado,
e serão pagos com preferência sobre todos os demais débitos, exceto sobre aqueles referidos no §
2º deste artigo".

A Emenda Constitucional nº 62, de 2009, trouxe relevantes alterações no procedimento dos


precatórios, não alheias a críticas, como já se pode observar. Uma delas que cabe aqui salientar diz
respeito ao novo grau de preferência por ela instituído. Assim, explicando, cabe a seguinte assertiva
de Humberto Theodoro Junior:

"Dessa maneira, a Constituição, após a Emenda nº 62/2009, criou


três graus de preferência a serem observados no cumprimento dos
precatórios: (I) em primeiro lugar serão pagos os credores alimen-
tícios de 60 anos ou mais e os portadores de doença grave; (II) em
seguida virão os demais credores de verbas alimentícias (inclusive
do saldo superveniente ao pagamento do teto previsto para os
sexagenários e doentes); e (III) por último, serão pagos todos os
demais credores.5"

5
THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Execução. Vol. II. 49. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 409.

122
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

Era corrente, anteriormente à Emenda Constitucional nº 62, de 2009, a existência de pe-


didos de sequestro de rendas públicas para a satisfação de credores cuja dignidade humana estava
sendo ameaçada pela demora do pagamento dos precatórios. Tais pedidos fundamentavam-se na
situação fragilizada do credor, portador de doença grave e/ou em idade avançada, não normatiza-
das expressamente até o advento da referida Emenda Constitucional. Esse é o denominado “se-
questro humanitário”.

Aguardar a longa ordem de pagamento dos precatórios acarretou na criação do procedi-


mento que possibilitou o sequestro humanitário, dando início a intenso debate acerca do sope-
samento, de um lado, do princípio da igualdade e de outro, do princípio da dignidade da pessoa
humana, aqui individualmente considerada ante a peculiaridade de sua situação, seja em razão da
idade, seja da moléstia que o acometia.

05. PRINCIPAIS MUDANÇAS INTRODUZIDAS PELA EMENDA CONSTITUCIONAL


Nº 62/2009: COTEJO JURISPRUDENCIAL

Cabe considerar o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, anteriormente à


entrada em vigor da Emenda Constitucional nº 62, de 2009, que negava a possibilidade de se-
questro humanitário, conforme ressaltado na decisão da Relatora no Recurso em Mandado de
Segurança nº 33.388/SP, Ministra Eliana Calmon:

"Até a edição da EC 62/2009, o sequestro de verbas públicas


para pagamento de precatórios estava previsto somente nas seguin-
tes hipóteses: a) preterição ao direito de precedência do credor (art.
100, § 2º, da CF/88), de aplicação irrestrita aos créditos submetidos a
pagamento mediante precatório; b) vencimento do prazo ou omissão
no orçamento ou preterição ao direito de precedência do credor (art.
78, § 4º, do ADCT), para os precatórios pendentes de pagamento na
data de promulgação da EC 30/2000 e os que decorressem de ações
iniciais ajuizadas até 31 de dezembro de 1999.6"

Nesse sentido, a decisão do Ministro Mauro Campbell Marques, Relator do Recurso em


Mandado de Segurança 31.823/SP, na mesma Corte Superior:

"Logo, ilegal o ato impugnado, pois, à época de sua edição,


não havia autorização constitucional para fazer prevalecer os créditos
de natureza alimentícia dos portadores de doenças graves sobre os
demais créditos alimentares.7"

6
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Mandado de Segurança 33.388/SP. Relatora Ministra Eliana Calmon . Brasilia, 17 out. 2013.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Ordinário em Mandado de Segurança 31.823/SP. Relator Ministro Mauro Campbell Marques.
7

Brasilia, 08 fev. 2011.

123
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

Dita posição do Superior Tribunal de Justiça se encontrava em harmonia com a jurispru-


dência do Supremo Tribunal Federal, consoante julgamento do Agravo Regimental na Suspen-
são de Segurança nº 3.539-8/PR, exarado pelo Ministro Gilmar Mendes:

"O pagamento imediato do precatório alimentar, em desacordo


com o comando do art. 100 da Constituição, desconsidera a situação
de outras várias pessoas em situação similar que também aguardam
o pagamento de seus precatórios. O respeito à ordem cronológica,
nesse caso, é a única forma de garantir a igualdade entre os credores
da Fazenda Pública, sendo a quebra dessa ordem a única hipótese ad-
missível de sequestro da verba pública. Ressalte-se que não vislumbro
propriamente um conflito entre o direito fundamental à saúde e a
regra para o pagamento de precatórios. Isto porque, o direito à saúde
da agravante não se encontra desamparado, devendo ser garantido
na forma do art. 196 da Constituição Federal.8 (Grifo nosso).

Torna-se relevante o cotejo jurisprudencial ao se verificar que essa linha de argumenta-


ção do STF, contrária ao sequestro humanitário, é relativamente recente, já que o Supremo Tri-
bunal Federal, em 2006, havia decidido por sua aplicação, como demonstra a seguinte decisão
do então Ministro Eros Grau, no Agravo Regimental na Reclamação 30.034-2/PB:

"O estado de exceção é uma zona de indiferença entre o caos


e o estado da normalidade, uma zona de indiferença capturada pela
norma. De sorte que não é a exceção que se subtrai à norma, mas ela
que, suspendendo-se, dá lugar à exceção --- apenas desse modo ela
se constitui como regra, mantendo-se em relação com a exceção. A
esta Corte, sempre que necessário, incumbe decidir regulando tam-
bém essas situações de exceção. Ao fazê-lo, não se afasta do orde-
namento, eis que aplica a norma à exceção desaplicando-a, isto é,
retirando-a da exceção.9"

Desta forma, a mutação da perspectiva hermenêutica do STF sobre os casos de seques-


tro humanitário se deu, aparentemente, com a vigência da Emenda Constitucional 62/2009, já
que esta tornou constitucional o que antes era construção jurisprudencial e doutrinária.

Porém, mesmo após essa mudança de entendimento do STF, alguns Tribunais de Justiça
continuaram a conceder pedidos de sequestro humanitário, fundamentando pela inconstitu-
cionalidade da EC 62/2009 mormente no que diz respeito aos precatórios já expedidos, em
face da necessidade de garantir o direito adquirido e a coisa julgada. É do Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo, por exemplo, a seguinte decisão:

8
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental na Suspensão de Segurança nº 3.539-8/PR. Relator Ministro Gilmar Mendes. Brasilia,
01 jul. 2009.
9
CONJUR. Fila do precatório pode ser furada se credor estiver muito doente. Revista Consultor Jurídico. 22 set. 2006. Disponível em: <http://
www.conjur.com.br/2006-set-22/stf_mantem_sequestro_verbas_determinado_tj-pb>. Acesso em 05 mai. 2015.

124
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

"No mais, estão documentalmente comprovadas, nos autos, a


gravidade da saúde do impetrante, idoso com mais de 70 anos por-
tador de cardiopatia grave, que, por essa razão, é até mesmo isento
do imposto de renda, e a insuficiência económica frente aos elevados
custos do tratamento de saúde, mostrando-se, assim, o "mandamus"
adequado ao objetivo almejado. Dessa forma, como reiteradamente já
decidiu este r Colendo Órgão Especial, justificável o sequestro huma-
nitário, necessário para respeitar a dignidade da pessoa humana, nos
termos do art. Io , inciso III, da Constituição Federal, não importando,
na hipótese, por essa razão, violação à ordem cronológica de apre-
sentação dos precatórios ou aos princípios norteadores da adminis-
tração pública e da organização dos Poderes.10" – (Grifo nosso).

A concretização do princípio da dignidade da pessoa humana, enquanto norteador de


tais decisões judiciais é também conformada no Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catari-
na, como se observa na ementa a seguir:

"O conflito presente nos autos do mandamus é de princí-


pios e não de regras. Do intérprete é exigida a ponderação entre
os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, dos
direitos à saúde e à vida, de uma parte, e os princípios da igualdade
e da isonomia, de outra. Diga-se ainda que os princípios consagram
direitos fundamentais que se contrapõem: direito à vida/saúde e
direito à igualdade/impessoalidade.11"

A decisão acima, que salvaguardou a procedência do pedido de sequestro humanitário,


concluiu pela prevalência da dignidade humana em face do princípio da igualdade. Isso porque,
conforme fundamentado na decisão, enquanto a dignidade do credor do precatório se encon-
trava fragilizada, tendo em vista a saúde debilitada e a idade avançada, o princípio da igualdade
impunha que fosse respeitada a ordem cronológica, ou, no mais das vezes, consoante a EC
62/2009, o pagamento do referente ao triplo do “pequeno valor” determinado infraconstitucio-
nalmente.

O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, na decisão do ADI 4357/DF, ADI 4425/DF, ADI
4400/DF e ADI 4372/DF, que tinham como matéria a referida Emenda Constitucional, declarou,
por maioria de votos, ser constitucional o ditame de pagamento preferencial até o triplo do
pequeno valor definido infraconstitucionalmente. Dito de outra forma, o sequestro humanitário
teria perdido o seu fundamento a partir do momento em que a Constituição Federal dispôs
sobre mecanismos e critérios de desequiparação para expressamente conferir o direito dos

10
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.Mandado de Segurança nº 0079665-22.2010.8.26.0000. Relator: Desembargador Xavier
de Aquino. São Paulo, 22 jun. 2011.

BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina. Mandado de Segurança 2011.021550-2. Relator: Carlos Prudêncio. Santa Catarina,
11

19 jun. 2013.

125
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

sexagenários e dos portadores de grave doença12.

Dessa forma, apesar das diversas inconstitucionalidades da Emenda Constitucional nº


62/2009, na visão do Supremo Tribunal Federal, especificamente sobre os precatórios, a intro-
dução do parágrafo § 2º no artigo 100 da Constituição Federal fora tida como constitucional,
com exceção de que fosse excluído o termo “na data de expedição do precatório”, sobre os
titulares de 60 anos ou mais.

A Emenda Constitucional nº 62/2009 cunhou o denominado “regime especial”, que diz


respeito à submissão dos devedores de precatórios ao disposto em seus enunciados, vigorando
tal regime até o prazo de 15 anos ou enquanto o valor dos precatórios devidos for superior ao
valor dos recursos vinculados (ADCT, art. 97, II, § 14). Esse período de 15 anos foi declarado in-
constitucional por decisão do STF, conforme será indicado mais adiante.

A Emenda Constitucional nº 62/2009 enunciou, ainda, sobre o instituto da compensa-


ção, na letra da norma:

Art. 100. §9º. No momento da expedição dos precatórios, in-


dependentemente de regulamentação, deles deverá ser abatido, a
título de compensação, valor correspondente aos débitos líquidos e
certos, inscritos ou não em dívida ativa e constituídos contra o credor
original pela Fazenda Pública devedora, incluídas parcelas vincendas
de parcelamentos, ressalvados aqueles cuja execução esteja suspensa
em virtude de contestação administrativa ou judicial.

Consoante entendimento do STF, o regime de compensação obrigatória também é in-


constitucional, já que viola a garantia do devido processo legal, do contraditório e da ampla
defesa, pois estabelece inegavelmente uma superioridade processual da Fazenda Pública sobre
o credor do precatório.

Seguindo, o referido art. 100 da Constituição Federal previa, na redação original, em seu
§2º, hipótese de sequestro de verba pública no caso de preterição na ordem de inscrição do
precatório. A Emenda Constitucional nº 62/2009 trouxe, ainda, a hipótese de sequestro tam-
bém em face da ausência de alocação orçamentária do valor determinado no precatório para
pagamento, como se vê no seu §6º:

§6º. As dotações orçamentárias e os créditos abertos serão


consignados diretamente ao Poder Judiciário, cabendo ao Presidente

12
Cita-se o argumento do Ministro Dias Toffoli, na decisão do processo 4357/DF, ressaltando os dizeres da Procuradoria Geral da República,
nestes termos: Já em relação à limitação da preferência ao triplo das obrigações consideradas de pequeno valor, admitido o fracionamento
para essa finalidade, como bem defende a Procuradoria-Geral da República: “Num quadro de escassez de recursos, é proporcional e razoável
que, ao mesmo tempo em que se assegura prioridade a tais pessoas, outras tantas, também credoras de prestações de natureza alimentar,
não fiquem ao desamparo. O limite, portanto, tem em conta o postulado da sociedade fraterna, que é atenta à diferença, acolhedora de seus
idosos e doentes, mas consciente também de outras urgências, e que e necessário equilibrar” (BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São
Paulo.Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4357. Relator Ministro Ayres Britto. Distrito Federal, 11 abr. 2013)

126
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

do Tribunal que proferir a decisão exeqüenda determinar o pagamen-


to integral e autorizar, a requerimento do credor e exclusivamente
para os casos de preterimento de seu direito de precedência ou de
não alocação orçamentária do valor necessário à satisfação do seu
débito, o sequestro da quantia respectiva. – (Grifo nosso).

O sequestro pode ser requerido por qualquer credor preterido, não podendo ser deter-
minado de ofício, sendo necessário o seu requerimento prévio. Após a requisição, há a necessi-
dade de ser ouvido o chefe do Ministério Público para que, então, em seguida, seja determinada
a medida executiva do precatório.

Mais uma inovação trazida pela Emenda Constitucional nº 62/2009 diz respeito à atua-
lização dos valores devidos referentes ao precatório, conforme se verifica em parágrafo especí-
fico introduzido no artigo 100 da Constituição:

§12. A partir da promulgação desta Emenda Constitucional,


a atualização de valores de requisitórios, após sua expedição, até o
efetivo pagamento, independentemente de sua natureza, será feita
pelo índice oficial de remuneração básica da caderneta de pou-
pança, e, para fins de compensação da mora, incidirão juros sim-
ples no mesmo percentual de juros incidentes sobre a caderneta de
poupança, ficando excluída a incidência de juros compensatórios.
(grifo nosso)

Dito termo acima grifado foi declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal,
tendo em vista ferir o direito fundamental de propriedade tão logo o índice de remuneração da
poupança não preserva o valor real do crédito devido ao titular do precatório. Assim, nos termos
do voto do então Ministro Ayres Britto:

"Se há um direito subjetivo à correção monetária de deter-


minado crédito, direito que, como visto, não difere do crédito ori-
ginário, fica evidente que o reajuste há de corresponder ao preciso
índice de desvalorização da moeda, ao cabo de um certo período;
quer dizer, conhecido que seja o índice de depreciação do valor
real da moeda – a cada período legalmente estabelecido para a
respectiva medição – , é ele que por inteiro vai recair sobre a ex-
pressão financeira do instituto jurídico protegido com a cláusula
de permanente atualização monetária. É o mesmo que dizer: me-
dido que seja o tamanho da inflação num dado período, tem-se,
naturalmente, o percentual de defasagem ou de efetiva perda de
poder aquisitivo da moeda que vai servir de critério matemático
para a necessária preservação do valor real do bem ou direito cons-
titucionalmente protegido. 34. O que determinou, no entanto, a

127
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

Emenda Constitucional nº 62/2009? Que a atualização monetária


dos valores inscritos em precatório, após sua expedição e até o efe-
tivo pagamento, se dará pelo “índice oficial de remuneração básica
da caderneta de poupança”. Índice que, segundo já assentou este
Supremo Tribunal Federal na ADI 493, não reflete a perda de poder
aquisitivo da moeda.13" (grifos do original)

Apontou o STF o IPCA-E (Índice de Preços ao Consumidor Amplo Especial, calculado


pelo IBGE) como eficaz para a garantia de um efetivo reajuste dos valores em precatório, por se
tratar de índice que melhor reflete a inflação acumulada do período14 e, portanto, valendo para
todas as condenações impostas em face da Fazenda Pública.

A referida Emenda Constitucional nº 62/2009 determinou ainda, entre outras altera-


ções, em seu art. 100, § 2º, o que segue:

Os débitos de natureza alimentícia cujos titulares tenham


60 (sessenta) anos de idade ou mais na data de expedição do pre-
catório, ou sejam portadores de doença grave, definidos na forma
da lei, serão pagos com preferência sobre todos os demais débitos,
até o valor equivalente ao triplo do fixado em lei para os fins do
disposto no § 3º deste artigo, admitido o fracionamento para essa
finalidade, sendo que o restante será pago na ordem cronológica
de apresentação do precatório. (grifo nosso)

Vale salientar que o valor limite estabelecido neste parágrafo para pagamento preferen-
cial sobre todos os demais débitos é equivalente, em seu valor máximo, ao triplo do valor esta-
belecido no disposto no § 3º, parágrafo este que delega a lei infraconstitucional a definição de
“pequeno valor” – por exemplo, no caso do Estado de São Paulo, quando inferior a 1.135,2885
Unidades Fiscais do Estado (UFESP), conforme disposição da Lei Estadual nº 11.377/03. Até o tri-
plo deste valor é pago preferencialmente, ficando o restante da quantia total, assim, a ser pago
na ordem cronológica convencionada15.

06. O SEQUESTRO HUMANITÁRIO E O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HU-


MANA

Inicialmente, destaca-se a posição de Fábio Ulhoa Coelho em face de situação comum


enfrentada no Poder Judiciário e que serve de sustento a críticas em face do denominado “ati-

13
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1270439/PR. Relator Ministro Castro Meira, 02 ago. 2013.
14
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1270439/PR. Relator Ministro Castro Meira, 02 ago. 2013.
15
A possibilidade de serem constituídos diferentes valores para diferentes entidades de direito público consta no §4º do artigo 100 da Consti-
tuição, também introduzido pela Emenda Constitucional nº 62/2009 da seguinte maneira: § 4º Para os fins do disposto no § 3º, poderão ser
fixados, por leis próprias, valores distintos às entidades de direito público, segundo as diferentes capacidades econômicas, sendo o mínitmo
igual ao valor do maior benefício do regime geral de previdência social.

128
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

vismo judicial”. Tal argumento, para o autor, segue pari passu à necessidade de crítica a deci-
sões que condenem o Poder Público a “adquirir medicamentos caros, matricular crianças com
menos de 6 anos no ensino fundamental, abrir posto de saúde em comunidade indígena, arcar
com o custo de alimentos especiais a menor com distúrbio que o impede de se alimentar nor-
malmente”16. Fundamenta, enfim, o autor, nestas linhas:

"O do alimento especial, então, pode levar a injustiça de ain-


da maior envergadura: a criança necessitada de alimentação especial
acabará recebendo tratamento muito privilegiado, quando comparado
à situação de milhões de brasileirinhos desnutridos. Mas, sabemos to-
dos, para ser juiz é necessário ter coragem, muita coragem. A negativa
de certos privilégios pleiteados com base no princípio da dignidade da
pessoa importará, quase certamente, a morte do doente. Diante dessa
quase certeza, raciocinar com o foco mais alargado exige fria raciona-
lidade e absoluto distanciamento.17"

A dignidade da pessoa humana é fundamento do Estado Democrático de Direito e o Po-


der Público não pode se eximir de garantir a vida individualmente considerada sob o argumento
de que o bem coletivo assim demanda. Menos ainda, se for utilizado como um dos argumen-
tos a inexistência de instrumentos constitucionais para tanto, e isso porque, assim o fazendo,
estar-se-á limitando o processo de hermenêutica da Constituição enquanto sistema, vindo a
legitimar a interpretação isolada dos enunciados.

Conquanto, pela prelação absoluta ao interesse coletivo, negar-se-ia o princípio da pro-


porcionalidade em sentido estrito. Nessa esteira, a lição de Willis Santiago Guerra Filho18:

"A proporcionalidade em sentido estrito importa na corres-


pondência (Angemessenheit) entre meio e fim, o que requer o exame
de como se estabeleceu a relação entre um e outro, com o sopesa-
mento (Abwagung) de sua recíproca apropriação, colocando, de um
lado, o interesse no bem-estar da comunidade, e de outro, as garan-
tias dos indivíduos que a integram, a fim de evitar o beneficiamento
demasiado de um em detrimento do outro."

Assim, conforme Willis Santiago Guerra Filho, o princípio da proporcionalidade se con-


substancia em um direito fundamental com dimensão processual, “visando a consecução da
finalidade maior de um Estado Democrático de Direito, que é o respeito à dignidade humana”19.

COELHO, Fábio U. Dignidade da Pessoa na Economia Globalizada. In: MIRANDA, Jorge; SILVA, Marco Antonio M. da. (coord.) Tratado Luso-
16

-Brasileiro da Dignidade Humana. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 1246


17
COELHO, Fábio U. Dignidade da Pessoa na Economia Globalizada. In: MIRANDA, Jorge; SILVA, Marco Antonio M. da. (coord.) Tratado Luso-
-Brasileiro da Dignidade Humana. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 1246
18
GUERRA FILHO, Willis S. Dignidade Humana, Princípio da Proporcionalidade e Teoria dos Direitos Fundamentais. In: MIRANDA, Jorge; SILVA,
Marco Antonio M. da. (coord.) Tratado Luso-Brasileiro da Dignidade Humana. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 313.

GUERRA FILHO, Willis S. Dignidade Humana, Princípio da Proporcionalidade e Teoria dos Direitos Fundamentais. In: MIRANDA, Jorge; SILVA,
19

Marco Antonio M. da. (coord.) Tratado Luso-Brasileiro da Dignidade Humana. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 313.

129
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

É de se concluir, portanto, que as decisões dos Tribunais de Justiça que acolhiam a de-
manda do sequestro humanitário estão muito mais próximas da concreção dos ditames consti-
tucionais do que aquelas do STF e do STJ que negavam tal pedido. Conforme já referido acima,
os portadores de grave doença e as pessoas com 60 anos ou mais de idade entram numa fila
para receber preferencialmente, no máximo, o pagamento do referente ao triplo do “pequeno
valor” determinado infraconstitucionalmente20, ficando o restante do débito a ser incluído na fila
cronológica ordinária de apresentação do precatório.

Ademais, apesar do entendimento do Supremo Tribunal Federal, na modulação21 dos


efeitos da decisão sobre a inconstitucionalidade parcial da Emenda Constitucional nº 62/2009,
ter reduzido o lapso de tempo do prazo para o devedor saldar o precatório (na ordem cro-
nológica ordinária) de 15 anos – enunciado pela redação da referida emenda que modificou
o artigo 97 do ADCT – para 5 exercícios financeiros a contar de primeiro de janeiro de 2016,
efetivamente, reduziu-se somente para 11 anos (pois contado desde o início da vigência da dita
Emenda Constitucional nº 62/2009), período extremamente alongado para a quitação total
pelo devedor, especialmente em situação de idade avançada e/ou de doença grave do credor
do precatório.

Espera-se com tal alteração que se efetive o princípio da dignidade da pessoa humana, es-
pecialmente naqueles casos mais sensíveis em que a necessidade do recurso financeiro do detentor
do precatório visa custear os problemas oriundos de doença ou da própria idade, sem depender do
atendimento público de saúde, no mais das vezes. Essa expectativa é o que já referimos, juntamente
com Francisco Pedro Jucá, se dá com fundamento a todas as pessoas "que têm o bom governo
como direito fundamental, essencial ao serviço do homem e da cidadania, donde a aplicação dos
recursos financeiros de maneira adequada, séria e eficiente é colorário"22.

Toda a questão, como se vê, encontra-se balizado pela própria dignidade da pessoa
humana, fundamento da República Federativa do Brasil como enuncia o art. 1º, inc. III da Cons-
tituição Federal brasileira.

07. CONCLUSÃO

Eis o desafio do Estado, posto exigir, no caso concreto, a eficácia imediata dos direitos
fundamentais ante o risco de vida do detentor do precatório, justificando o que se convencio-

O pequeno valor é definido por cada Unidade Pública Devedora e estabelecido em lei própria. Como exemplo, no Estado de São Paulo, a
20

quantia varia de R$ 5.000,00 (Prefeitura Municipal de Araras, Lei 3.289/2001) até R$ 30.000,00 (Prefeitura Municipal de Cajati, Lei 1.042/2010),
observando-se, assim, uma enorme discrepância de valores mesmo entre Unidades de um mesmo Estado. Sobre a União, o valor é, atual-
mente, de R$ 47.280,00 (sessenta salários mínimos, conforme art. 3º e art. 17, § 1º, da Lei 10.259/2001). E, nos casos em que a lei não fixar, em
180 dias, valor igual ou superior a 40 salários mínimos para os Estados e Distrito Federal e 30 salários mínimos para os Municípios, estes serão
observados, conforme o §12 do art. 97 do ADCT (art. 2º da EC).
21
A possibilidade de modulação dos efeitos está prescrita na lei 9.868/1999 nos seguintes termos: “art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade
de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Fede-
ral, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu
trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado”. Com dito instrumento, o Supremo tem a capacidade de adotar medidas
diferentes à declaração de nulidade total da norma, preservando a segurança jurídica e tendo sob o seu controle os efeitos da decisão sobre
a constitucionalidade.

JUCÁ, Francisco Pedro; ISHIKAWA, Lauro. Responsabilidade Fiscal, Algumas Reflexões. In: Revista Brasileira de Direito Tributário e Finanças
22

Públicas. Porto Alegre: Magister, v. 50, p. 56-66, mai./jun.2015, p. 65.

130
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

nou chamar de sequestro humanitário, cujo instrumento, de majoritária aceitação nos Tribunais
de Justiça, reverbera no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça com certa
divergência ao longo do tempo desde que fora instituído na Constituição Federal de 1988.

Afigura-se desde a Emenda Constitucional nº 62/2009 uma dinâmica de inclusão nos


ditames constitucionais daqueles principais casos antes prelacionados mediante a forma de se-
questro, quais sejam, a situação de crédito de natureza alimentícia de pessoa de idade avançada
e de portador de grave doença.

Outrossim, reduziu-se pelo mesmo diploma, comparativamente à jurisprudência dos


Tribunais, o valor a ser creditado imediatamente como cumprimento da decisão judicial ataca-
da, não mais possibilitando o sequestro integral do débito da Fazenda naqueles casos de valor
superior ao definido infraconstitucionalmente, demandando que o restante dos credores en-
trasse na fila ordinária cronológica de pagamento dos precatórios.

Nessa seara, as decisões das Cortes Suprema e Superior que negam o sequestro huma-
nitário, quando este se encontra devidamente fundamentado nos casos apresentados acima,
não caminham condizentes aos ditames do princípio da dignidade da pessoa humana, que
exigem, pela sua própria natureza hermenêutica, tratamento diferenciado a casos em que sua
proteção transparece de maior urgência, assim como para o consequente atendimento à ga-
rantia dos direitos humanos fundamentais e do mínimo existencial, indiscutível dever do Estado
nas relações verticais.

Ademais, importa que seja ampliado o debate sobre o parcelamento em dois momentos
do pagamento de precatórios nos casos previstos pela EC 62/2009, e decididos como constitu-
cionais, de prelação do pagamento do débito fazendário, tendo em vista mormente o respeito à
celeridade no cumprimento das ordens judiciais, à segurança jurídica e à real eficácia temporal
dos efeitos da decisão.

08. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COELHO, Fábio Ulhoa. Dignidade da Pessoa na Economia Globalizada. In: MIRANDA, Jorge;
SILVA, Marco Antonio M. da. (coord.) Tratado Luso-Brasileiro da Dignidade Humana. São Paulo:
Quartier Latin, 2008.

CONJUR. Fila do precatório pode ser furada se credor estiver muito doente. Revista Consultor
Jurídico. 22 set. 2006. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2006-set-22/stf_mantem_
sequestro_verbas_determinado_tj-pb>. Acesso em 05 mai.2015.

DIDIER JUNIOR, Fredie; CUNHA, Leonardo José C. da; BRAGA, Paula S. (et. al.). Curso de Direito
Processual Civil. Execução. Vol. 5. 4ª ed. Salvador: JusPODIVM, 2012.

131
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

GUERRA FILHO, Willis Santiago. Dignidade Humana, Princípio da Proporcionalidade e Teoria


dos Direitos Fundamentais. In: MIRANDA, Jorge; SILVA, Marco Antonio M. da. (coord.) Tratado
Luso-Brasileiro da Dignidade Humana. São Paulo: Quartier Latin, 2008.

JUCÁ, Francisco Pedro; ISHIKAWA, Lauro. Responsabilidade Fiscal, Algumas Reflexões. In: Re-
vista Brasileira de Direito Tributário e Finanças Públicas. Porto Alegre: Magister, v. 50, p. 56-66,
mai./jun.2015.

OLIVEIRA, Regis Fernandes. Curso de Direito Financeiro. 5. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2013, p. 669.

THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil, Vol. II, Processo de Exe-
cução e Cumprimento da Sentença. Processo Cautelar e Tutela de Urgência. 49ª ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2014.

132
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

ORÇAMENTO, PLANEJAMENTO
E GESTÃO: DESAFIOS E
PERSPECTIVAS1
José Mauricio Conti*
(*)Professor de Direito Financeiro da Faculdade de Direito da USP. Doutor e Livre-docente em
Direito Financeiro pela USP. Bacharel em Direito e em Economia pela USP. Juiz de Direito em São
Paulo.

O orçamento é “a lei materialmente mais importante do ordenamento jurídico logo


abaixo da Constituição”, nas bem lançadas palavras do Ministro Carlos Ayres Brito2. Nela estão
contempladas as decisões da sociedade sobre os recursos públicos, definindo no que o Estado
os utilizará. Dentre as importantes funções da lei orçamentária, destacam-se as de planeja-
mento, gestão e controle. Foi-se tempo em que a lei orçamentária tinha funções de mera peça
contábil, registrando ingressos e saídas de recursos.

Hoje é instrumento fundamental para o planejamento, o que, no ordenamento jurídico


brasileiro, a insere em um sistema mais amplo, que abrange também outras leis de natureza
orçamentária: o plano plurianual, a lei de diretrizes orçamentárias e a lei orçamentária anual – o
orçamento propriamente dito.

Viabiliza o controle, ao especificar objetivamente os gastos, permitindo que sejam trans-


parentes aos olhos de todos e ao sistema de fiscalização, contendo informações que devem ser
cada vez mais claras e precisas, e, principalmente, úteis, a fim de que todos saibam o que se faz
com o dinheiro público.

E se inter-relaciona com os instrumentos de gestão pública, uma vez ser indissociável a


administração dos recursos, que devem necessariamente estar contemplados nos orçamentos
públicos, com as técnicas de gestão voltadas a obter melhores resultados nas ações governa-
mentais.

Cada vez mais a preocupação com o bom uso dos recursos públicos se intensifica. Não
somente em razão do cuidado e atenção para evitar desvios de toda ordem, mas também e princi-
palmente pela aplicação eficiente dos recursos, sempre escassos. A disputa pelos recursos é cada
vez maior, pois não se concebe mais aumento na arrecadação que pressione a carga tributária, que
já atingiu seu limite, nem crescimento da dívida pública, que também não tem mais espaço para se
expandir.

Resta apenas melhor aplicar os recursos existentes, como único meio de atender as

1
Texto baseado em outras publicações do autor, conforme indicações bibliográficas ao final.
2
STF, ADI-MC 4048-1/DF, j. 14.5.2008, p. 92 dos autos.

133
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

sempre crescentes necessidades públicas. Sabe-se que muito dinheiro público é desperdiçado
por falta de uma melhor gestão, tornando imprescindível que a administração pública seja mais
eficiente, com técnicas mais modernas, associadas a mecanismos de contabilização orçamen-
tária das despesas que favoreçam o gasto público voltado a atender as finalidades para a qual
foi destinado.

O sistema de fiscalização financeira e orçamentária, nos termos previstos em nossa


Constituição Federal, artigo 70, preconiza a fiscalização da legitimidade e economicidade do
dinheiro público, e o texto constitucional, no art. 37, caput, erige a eficiência à condição de
princípio que rege a administração pública, que já está há muito tempo desenvolvendo técnicas
voltadas a uma fiscalização da qualidade do gasto público.

No mesmo sentido está a preocupação em adequar os orçamentos públicos a esta nova


situação, tornando-os coerentes e compatíveis com a modernização da gestão pública, como
se vê dos projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional voltados a substituir a Lei 4320,
de 1964, já alcunhados de “Lei de Qualidade Fiscal” e “Lei de Responsabilidade Orçamentária”.
Pretendem tornar as regras sobre os orçamentos públicos mais modernas, contendo novos
dispositivos que aperfeiçoam o sistema orçamentário brasileiro, consolidando técnicas voltadas
a favorecer a qualidade do gasto público, permitindo mais investimentos públicos e despesas na
área social.

Modificações na contabilização orçamentária, com o aperfeiçoamento dos programas,


construídos de forma que sejam voltados a resultados claros e mensuráveis por indicadores
precisos e confiáveis, contextualizados em um sistema de planejamento da ação governamen-
tal que permita aos atores públicos e privados terem uma visão segura do que se espera do
poder público, são algumas das medidas que integram esse necessário avanço na legislação
vigente. Tornar definitivas regras de elaboração e execução orçamentárias, por norma aplicá-
vel de maneira uniforme a todos os entes da federação, garantindo maior segurança jurídica a
regras que são atualmente veiculadas por leis de diretrizes orçamentárias (individualizadas para
cada unidade federada e de caráter temporário), são também medidas importantes da nova
legislação.

São necessárias normas voltadas a uniformizar e estabelecer limites para a execução


orçamentária, especialmente nos restos a pagar, evitando que os pagamentos se prorroguem
para o exercício seguinte e prejudiquem o planejamento, controle e transparência dos gastos.
Ainda na execução orçamentária, há que se definir com mais clareza e precisão o grau de im-
positividade dos nossos orçamentos, criando mecanismos para tornar o orçamento executado
o mais próximo possível daquele que foi aprovado, como será explicitado mais adiante.

Definir e padronizar a contabilização das receitas e despesas, seguindo padrões inter-


nacionais e estabelecendo limites e regras claras, de modo a dificultar ao máximo manobras
de “contabilidade criativa” que contornem a legislação por caminhos tortuosos, é outra medida
que se impõe.

134
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

Outra questão que exige atenção relaciona-se à adaptação de nosso sistema orçamentário
ao federalismo fiscal cooperativo, especialmente por se constatar que as principais políticas públicas
exigem a participação dos vários entes da federação.

Neste ponto, é importante a criação, aperfeiçoamento e sistematização de mecanis-


mos de cooperação intergovernamental, cada vez mais necessários à execução de políticas
públicas que dependem da ação conjunta de vários entes da federação, tanto no financiamento
quanto na operacionalização, evitando que o interesse público fique sujeito às alternâncias de
governos, muitas vezes de partidos e ideologias diferentes, que são transitórios, e cujos atritos
possam impedir, dificultar e atrasar a implementação de políticas públicas voltadas a atender
necessidades fundamentais da população.

Aperfeiçoar a qualidade do gasto público é fazer mais com menos, ou seja, produzir
mais benefícios públicos com menos recursos, o que exige, entre outras medidas além das já
mencionadas, a modernização da gestão, aumento da participação popular nas decisões sobre
o gasto público, maior transparência e controle. São inúmeras as providências a serem tomadas
nesse sentido, que exigem não somente uma nova legislação, adaptada aos novos tempos e
técnicas, mas também, e principalmente, uma mudança de cultura na administração pública.

Todas essas medidas dependem, em um primeiro momento, de um planejamento ade-


quado, sendo a função de planejamento, juntamente com a de gestão e controle, fundamental
para um sistema financeiro governamental bem estruturado.

O planejamento governamental no Brasil é constituído por um sistema complexo, e tem


no PPA seu principal instrumento jurídico. Não é o único, uma vez que as demais leis orçamen-
tárias, como a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a própria Lei Orçamentária Anual (LOA)
compõem esse sistema, que abrange também muitas outras leis importantes, especialmente
aquelas destinadas a setores específicos da ação governamental, como é o caso do Plano Na-
cional de Educação.

Embora não se possa conceber atualmente a gestão de administrações públicas com-


plexas, como é o caso dos entes que compõem nossa federação - União, Estados, Distrito Fe-
deral e Municípios -, e de órgãos e instituições públicas que os integram, como o Poder Judiciá-
rio, Ministério Público, Universidades Públicas e tantos outros, sem um sistema de planejamento
governamental bem elaborado e executado, parece que esta cultura ainda não está plenamente
consolidada entre nós.

Vê-se que técnicas de planejamento e orçamento que começaram a surgir há um sé-


culo, voltadas a buscar maior eficiência na administração pública, com orçamentos elaborados
por programas, contabilizando-se as despesas de forma a buscar resultados, medindo e ava-
liando desempenho, incorporaram-se à administração pública apenas formalmente. Definições
de estratégias, materializando-as nos instrumentos de planejamento governamental, com o
estabelecimento de objetivos e metas de curto, médio e por vezes até longo prazo, parecem
ficar apenas no papel e na boa intenção daqueles que elaboram os documentos, pois, na práti-

135
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

ca, nem sempre são executados, nem fiscalizados com o devido rigor, mitigando a credibilidade
que deveriam merecer.

Planos plurianuais municipais, especialmente de municípios menores, são elaborados


com base em modelos que se repetem ano a ano, sem uma efetiva preocupação dos prefeitos
de nele incorporarem as previsões para o que se vai fazer no decorrer do mandato. Mudam-se
os prefeitos, alternando-se o partido e a ideologia de quem governa, com o povo esperançoso
de mudanças, mas da leitura do PPA pouco ou nada se consegue constatar, deixando transpa-
recer que nada vai se alterar.

Nota-se descaso com a cooperação federativa no planejamento, como se pode verifi-


car na área de educação, em que o próprio governo federal demorou quatro anos para aprovar
o Plano Nacional de Educação (Lei 13.005, de 2014), após cessada a vigência do anterior (Lei
10.172, de 2001), para o período 2001-2010. E muitos Estados e Municípios, que deveriam ela-
borar os respectivos Planos Estaduais e Municipais de Educação, para completar sistema de
planejamento neste setor fundamental para o desenvolvimento econômico e social do país,
permanecem inertes, apesar de decorrido o prazo de um ano que dispunham para aprová-los.

Um bom planejamento, dotado de clareza e transparência, é imprescindível para uma


gestão eficiente e uso proveitoso dos recursos públicos. Planejar é escolher prioridades, ainda
que essas escolhas sejam difíceis, e importem em deixar de lado muitas ações importantes –
afinal, é para isto que os governantes são eleitos, esse é seguramente o maior ônus que pesa
sobre seus ombros. Mas esta clareza e transparência nem sempre interessa aos que estão no
alto comando da administração pública, que hesitam em desagradar a quem quer que seja,
preferindo a opção política de, ainda que aparentemente, atender a todos, sem deixar claras as
prioridades, até para não tornar transparente o que e quem não foi contemplado.

Daí porque muitas vezes nos deparamos com planos plurianuais genéricos, excessiva-
mente abrangentes, incluindo praticamente tudo e para todos, deixando para a fase de execu-
ção, de forma opaca, a efetiva escolha do que vai ou não ser feito, tornando inúteis os instru-
mentos de planejamento para os fins a que se destinam. Muitas vezes elaborados sem estudos
e análises prévias sobre a realidade do município e seus problemas, transformam-se em do-
cumentos que não apontam as soluções adequadas e os meios para resolvê-los. Mais do que
isso, deixam a critério do governante decidir ao sabor dos acontecimentos, tomando decisões
aleatoriamente, para resolver problemas imediatos, de forma descoordenada e sem critérios, o
que só tende a agravar as distorções da administração pública no médio e longo prazo.

Ainda no âmbito do planejamento, é fundamental destacar o papel da lei de diretrizes


orçamentárias, que tem exercido funções cada vez mais relevantes na organização das finanças
públicas, especialmente após a Lei de Responsabilidade Fiscal, que lhe acrescentou atribuições.

A lei de diretrizes orçamentárias – a LDO – foi uma inovação da legislação brasileira,


cujo desenho surgiu durante os trabalhos da Assembleia Constituinte, sendo introduzida em
nosso ordenamento jurídico pela Constituição de 1988.

136
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

Prevista no art. 165, parágrafo 2º da Constituição Federal, tem por função estabelecer
anualmente as metas e prioridades da administração pública para as despesas de capital (essen-
cialmente investimentos públicos) e programas de duração continuada. Trata-se de verdadeiro
“elo de ligação” entre o plano plurianual, com previsão para quatro anos, e a lei orçamentária,
que fixa as receitas e despesas de cada ano. Cumpre função relevante no sistema de planeja-
mento da ação governamental, pois obriga os administradores públicos a definir, a cada ano,
quais programas previstos no plano plurianual serão contemplados, e quanto se pretende re-
alizar. Evita-se, com isto, o irresistível hábito de “deixar para a última hora”, de modo a poster-
gar o cumprimento dos programas para o final do plano plurianual, o que no mais das vezes
inviabiliza alcançar as metas fixadas, até porque, no último ano do PPA, em regra quem está no
exercício do mandato é outro governante.

Desde a promulgação da Constituição, passando pela Lei de Responsabilidade Fiscal,


em 2000, até os dias atuais, a lei de diretrizes orçamentárias foi tendo suas atribuições amplia-
das, representando um papel cada vez mais importante na organização das finanças públicas,
exercendo hoje funções bem maiores do que aquelas inicialmente estabelecidas, de orientação
da lei orçamentária e fixação das diretrizes e metas da administração pública.

Já no próprio texto original da Constituição de 1988, vê-se, no artigo 99, §1º, que com-
pete à LDO, em ação conjunta dos Poderes, estipular os limites financeiros para a apresentação
das propostas orçamentárias dos Tribunais. Trata-se de um dos mais, se não o mais, relevante
instrumento para a plena eficácia da autonomia financeira do Poder Judiciário, pois retira do
Poder Executivo a possibilidade de interferir no orçamento do Poder Judiciário, uma vez que,
ao elaborar sua proposta dentro dos limites da LDO, aprovada pelo Poder Legislativo, não po-
dem ter os valores reduzidos ou modificados por ato do Poder Executivo; o mesmo vale para o
Ministério Público (CF, art. 127, § 3º). Com a Emenda Constitucional 45, de 2009, essa função da
LDO estendeu-se também à Defensoria Pública (CF, art. 134, § 2º).

O artigo 165, § 9º, da Constituição Federal, previu a edição de lei complementar para
dispor sobre o exercício financeiro, a vigência, os prazos, a elaboração e a organização do plano
plurianual, da lei de diretrizes orçamentárias e da lei orçamentária anual, além de estabelecer
normas de gestão financeira e patrimonial da administração direta e indireta, bem como as con-
dições para instituição e funcionamento de fundos. Tal lei complementar ainda não foi publica-
da, não obstante os vários projetos em andamento, como já se referiu anteriormente, deixando
muitas lacunas, pois estes assuntos ainda estão sendo regulados pela Lei 4320, de 1964. Suprir
essas lacunas tem sido uma função inúmeras vezes cumprida pelas leis de diretrizes orçamen-
tárias, como se tem notado ao longo dos últimos anos.

Além disso, em 2000, com a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101, de
5 de maio), que estabeleceu normas de finanças públicas voltadas a responsabilidade na gestão
fiscal, a LDO passou a ser importante instrumento de viabilização de normas que pudessem
regular e limitar os gastos públicos, o que ampliou sobremaneira seu papel no ordenamento
jurídico das finanças públicas.

137
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

Entre eles, várias merecem destaque.

Regulamentar e estabelecer critérios e forma de limitação de empenho (LRF, art. 4º,


I, b), por exemplo, permite que se organize, estabelecendo regras e limites, ao contingencia-
mento, evitando que o Poder Executivo, no exercício de sua função de comando na execução
orçamentária, venha a descumprir a lei orçamentária, desviando-a de seu curso, e frustrando a
aplicação da lei que havia sido legitimamente aprovada. Coloca, assim, freios aos abusos de há
muito observados em matéria orçamentária, em que o Poder Executivo, fazendo uso do con-
tingenciamento, superpõe-se indevida e não democraticamente aos demais Poderes e entes da
federação, subjugando-os pela não liberação dos recursos previstos no orçamento.

Estabelecer normas para controle de custos e avaliação dos resultados dos programas
orçamentários (LFR, art. 4º, I, c) é fundamental para que se consolide um sistema eficaz de pla-
nejamento e orçamento preocupado com o bom desempenho da administração pública, pois
permite que se estabeleçam regras claras para avaliação do cumprimento das metas, asfixiando
os desvios ilegítimos de recursos públicos pela sua destinação a programas de difícil mensura-
ção, o que sempre facilitou a malversação de dinheiro público.

Fixar condições e exigências para transferências de recursos a entidades públicas e pri-


vadas (LRF, art. 4º, I, d) é outro papel da maior relevância, pois a entrega de recursos orçamen-
tários a terceiros, a fim de que atendam a finalidades públicas, é ato que tem se intensificado
cada vez mais, da mesma forma que as fraudes que a ele se associam. Nada mais relevante que
estabelecer e aperfeiçoar as normas que coíbam esses desvios, no que as LDO têm representa-
do importante papel.

O Anexo de Metas Fiscais (LRF, art. 4º, § 1º), com a fixação de metas para o exercício em
curso e os dois subsequentes, a cada ano, é um avanço da legislação em matéria de planeja-
mento, institucionalizando o sistema de “planejamento deslizante” da ação governamental, em
que as necessárias alterações e adaptações dessas normas passam a ser feitas de forma gradual
e formal, mantendo a segurança jurídica e confiabilidade do sistema. Com a avaliação e acom-
panhamento das metas estabelecidas, por métodos precisos e transparentes, os gestores ficam
impedidos de fazer delas números voltados apenas a cumprir formalidades burocráticas.

O Anexo de Riscos Fiscais (LRF, art. 4º, § 3º) obriga também os administradores públicos
a pensar nos problemas futuros, exigindo que se preparem antecipadamente a eles e antecipem
as medidas a serem tomadas caso venham a se concretizar, evitando as sempre presentes ações
imediatas e improvisadas, resolvendo problemas ocorridos e que só tenderão a aumentar, fato
mais que conhecido em toda a burocracia estatal.

A exigência de que se divulguem os objetivos das políticas monetária, creditícia e cam-


bial e as metas de inflação (LRF, art. 4º, § 4º) tem se mostrado fundamental para a transparência
que se espera da administração pública, deixando claro, para o setor público, privado e a socie-
dade em geral, dos rumos que se pretende dar à ação governamental, o que é fundamental para
que todos possam se orientar de forma coordenada e planejada.

138
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

No que tange à lei orçamentária anual, que também exerce um papel relevante em ma-
téria de planejamento, sendo o documento responsável pelo planejamento de curto prazo, há
alguns pontos que merecem maior atenção.

É o caso, por exemplo, da adaptação de uma lei cuja vigência é anual, pelo princípio da
anualidade orçamentária, às novas situações com as quais se depara a administração pública,
cujas atividades se realizam continuamente, e no mais das vezes de forma que não se compa-
tibiliza com a rigidez do exercício financeiro.

A anualidade orçamentária, erigida à condição de princípio pelos doutrinadores, é, de


um lado, uma necessidade, uma vez que os orçamentos públicos, como já mencionado, exer-
cem as funções de controle, gestão e planejamento, e para isso torna-se imprescindível que se
estabeleça um período determinado para que sejam previstas e autorizadas as receitas e despe-
sas, a fim de que possam ser controladas.
Por outro lado, a existência de um prazo fixo para a vigência da lei orçamentária causa alguns
problemas e distorções, dadas as características e particularidades da atividade financeira do
setor público.

Daí porque a necessidade de mecanismos que permitam adaptar a necessária tempo-


rariedade da lei orçamentária com a diversidade de situações que decorrem da atividade finan-
ceira ininterrupta do setor público.

É o caso, por exemplo, dos “restos a pagar”, instrumentos que permitem a postergação
de pagamentos para o exercício financeiro subsequente, mas que se nota haver uso abusivo,
generalizando-se a inscrição de valores em restos a pagar, fazendo com que o ano se inicie
com expressivos valores já empenhados, criando-se um verdadeiro “orçamento paralelo”, que
dificulta o planejamento e a gestão e torna menos transparentes os gastos públicos.

Intensifica-se ainda a disputa pela liberação desses recursos no exercício seguinte, em


um jogo sujeito a interferências políticas e de toda ordem, com regras pouco claras e transpa-
rentes.

Trata-se de aspecto que merece maior atenção e regulamentação, a fim de que sejam
corrigidos os atuais problemas. Não obstante as várias limitações hoje impostas para a inscrição
em restos a pagar, com vedações voltadas a evitar abusos e descontrole das contas públicas,
além da previsão de relatórios que procuram dar maior transparência, não se tem logrado os
resultados esperados.

É necessário um aperfeiçoamento da legislação que contemple a revisão da ideia de


anualidade orçamentária, a fim de tornar nossas leis orçamentárias mais coerentes com a mo-
dernização da administração pública.

Note-se que muitas obras da maior relevância, como as voltadas a favorecer a mobi-
lidade urbana, problema crescente nas grandes metrópoles, exigem altos investimentos em

139
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

transportes coletivos de massa, como o metroviário, vias rápidas e outros; obras voltadas à pro-
dução de energia, como usinas hidrelétricas, são fundamentais para o país, e sua implantação
ultrapassa em muito o período do exercício financeiro. Os contratos com o Estado cada vez
menos se esgotam no curto prazo, e é necessário assegurar o seu cumprimento pelo poder
público. Nosso sistema jurídico precisa estar preparado e adequado para dar segurança jurídica,
em todos os aspectos, especialmente financeiros, para esses investimentos que ultrapassam a
vigência da lei orçamentária.

A lei orçamentária, como se pode constatar, insere-se no contexto de um sistema orça-


mentário, coordenando-se com as outras leis que abrangem períodos mais amplos da atividade
financeira do Estado, como a lei de diretrizes orçamentárias, o plano plurianual, plano nacional
de educação e outras, que vêm exercendo funções cada vez mais relevantes. A ideia de pluria-
nualidade está cada vez mais presente em matéria de gestão pública, e o sistema orçamentário
deve ser compatível com essa nova realidade, criando instrumentos jurídicos que a ele se adap-
tem e deem a segurança jurídica que dele se espera.

Ainda no que tange à lei orçamentária, já reconhecida como a lei mais importante de-
pois da Constituição, como mencionado no início deste texto, há que se dar maior ênfase à sua
execução, de modo a torná-la um instrumento que dê segurança jurídica a todos, dando-lhe a
merecida credibilidade, e espancando a tese de que se trata de uma peça de ficção.

Para isso, é importante que a lei executada seja a mais próxima possível da lei aprovada.
A fase de execução orçamentária torna-se, assim, da maior relevância.

A eficácia, credibilidade e respeito à lei orçamentária exige que, uma vez aprovada, sua
execução deva pautar-se pela busca do fiel cumprimento de seus dispositivos.

O papel do processo de execução do orçamento é cumprir, com a maior fidelidade


possível, o orçamento aprovado, de modo que se façam apenas os ajustes necessários, no
montante imprescindível para adequar a aplicação das receitas arrecadadas no atendimento às
necessidades públicas. Os instrumentos de flexibilidade, necessários em face das peculiaridades
da lei orçamentária, devem ser utilizados de modo a cumprir o que foi nela estabelecido, sem
descaracterizá-la.

Créditos adicionais, margem de remanejamento e contingenciamento são instrumentos


úteis e necessários para o processo de execução orçamentária, mas devem ser utilizados com
parcimônia, sem desviar a execução da lei orçamentária de seu curso, levando o orçamento
executado a diferir substancialmente do que foi aprovado – e tornando-o, portanto, uma lei
com pouco ou nenhum conteúdo material, incapaz de produzir os efeitos que lhe são próprios,
como o de dar segurança jurídica ao sistema de planejamento governamental e gestão pública.

Não é o que se tem observado, dada a frequência com a qual os Poderes Executivos de
todas as esferas de governo abusam desses instrumentos, contingenciando dotações de modo
a impedir que sejam executadas antes de findo o exercício, realocando recursos com base em

140
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

margens de remanejamento pré-aprovadas e de forma excessiva, e utilizando-se de outras tan-


tas manobras orçamentárias que descaracterizam a lei orçamentária aprovada.

Daí porque são necessárias medidas voltadas a fazer com que a lei orçamentária venha a
cumprir efetivamente seu papel constitucional, de condutora da atividade financeira do Estado,
como é o caso da recente aprovação da “PEC do orçamento impositivo”, que resultou na Emen-
da Constitucional 86, de 2015, tornou obrigatória a execução orçamentária, mas restringiu-se
a pequena parte do conteúdo da lei orçamentária, limitando-se aos valores nela inseridos pelas
emendas parlamentares individuais.

Um avanço, sem dúvida, mas muito menor do que poderia, uma vez que nas propostas
originais previa-se a inclusão de dispositivo que considerava a programação constante da lei
orçamentária de execução obrigatória, exigindo autorização prévia e expressa do Congresso
Nacional para eventual cancelamento ou contingenciamento, parcial ou total, da dotação, não
se restringindo às emendas parlamentares.

Reduziu, mas muito pouco, a excessiva discricionariedade do Poder Executivo no uso


desses instrumentos de flexibilidade orçamentária, que passariam a ser submetidos à aprova-
ção pelo Poder Legislativo, a quem caberia decidir sobre aspectos importantes do processo de
execução do orçamento público. O orçamento, se aprovada a versão inicial das propostas de
emenda voltadas a instituir o “orçamento impositivo”, tornar-se-ia mais previsível e capaz de
conferir maior segurança jurídica à administração pública e a todos que dela dependem e com
ela se relacionem.

Ainda estamos longe do ideal, que seria da máxima “impositividade” do orçamento, o


que contribuiria sobremaneira para o respeito à democracia, à vontade popular expressa por
ocasião da aprovação da lei orçamentária, à independência e autonomia dos poderes e ao pla-
nejamento e gestão eficiente da administração pública, elementos essenciais para o desenvol-
vimento econômico e social.

Vê-se que há muito que fazer em matéria de aperfeiçoamento da legislação orçamen-


tária, e a importância cada vez maior dos orçamentos públicos torna urgentes as várias medidas
sobre as quais se fez referência, exigindo de todos maior atenção a esta lei tão importante para
a sociedade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CONTI, José Mauricio (coord.) Orçamentos públicos. A Lei 4320/1964 comentada. 2ª edição.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

CONTI, José Mauricio. Planejamento e responsabilidade fiscal. In SCAFF, Fernando F.; CONTI,
José Mauricio (coords.). Lei de Responsabilidade Fiscal. 10 anos de vigência – questões atuais.
Florianópolis: Conceito Editorial - IBDF, pp. 39-56, 2010.

141
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

CONTI, José Mauricio. Não falta dinheiro à administração pública brasileira. Falta gestão. In Re-
vista Consultor Jurídico, publicada em 31 de julho de 2012.

CONTI, José Mauricio. Aspectos jurídicos do planejamento pelo setor público. In

COSTA, José Augusto F.; ANDRADE, José Maria A.; MATSUO, Alexandra M. H. (orgs.). Direito:
Teoria e Experiência. Estudos em homenagem a Eros Roberto Grau. São Paulo: Malheiros, p.
494-511, 2013.

CONTI, José Mauricio. Responsabilidade orçamentária precisa de melhorias. In Revista Consul-


tor Jurídico, publicada em 12 de março de 2013.

CONTI, José Mauricio. LDO é instrumento eficiente para a administração pública. In Revista
Consultor Jurídico, publicada em 9 de abril de 2013.
CONTI, José Mauricio. Orçamento impositivo é avanço para a administração. In Revista Consul-
tor Jurídico, publicada em 7 de maio de 2013.

CONTI, José Mauricio. Planejamento municipal precisa ser levado a sério. In Revista Consultor
Jurídico, publicada em 24 de setembro de 2013.

CONTI, José Mauricio. O final de ano, as dívidas e os “restos a pagar”. In Revista Consultor Jurí-
dico, publicada em 17 de dezembro de 2013.

CONTI, José Mauricio; PINTO, Élida G. Lei dos orçamentos públicos completa 50 anos de vi-
gência. In Revista Consultor Jurídico, publicada em 17 de março de 2014.

CONTI, José Mauricio. Aprovação do orçamento impositivo não da credibilidade à lei orçamen-
tária. In Revista Consultor Jurídico, publicada em 10 de março de 2015.

142
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

UNIÃO EUROPEIA, SOBERANIA


E FINANÇAS PÚBLICAS
Prof. Paulo Ferreira da Cunha
Doutor das Universidades de Paris 2 e Coimbra, Pós-Doutor da USP, Agregado da UM, Braga.
UAM (Laureate International Universities), bolsista FUNADESP na FADISP, Catedrático Fundador
do IJI da FDUP, Comité ad hoc para o Tribunal Constitucional Internacional.

"Ora bem, o instrumento mais relevante ao cumprimento do seu papel,


como desdobramento concretizador da Constituição, é o Orçamento."
Francisco Pedro Jucá¹

01. UNIÃO EUROPEIA, SÍMBOLOS E LIÇÕES

A Europa comunitária originária baseou-se em elementos econômicos materiais: carvão


e aço, e depois energia atômica (esta de uma diferente, mas real, materialidade). Optou, depois
de muitas divergências (por entre muitas querelas), por começar por ser uma "comunidade
econômica", baseada em pequenos passos graduais, e bem solidificados, sem aventureirismos,
sem voluntarismos maximalistas.

Já a União Europeia, que viria a seguir-se-lhe realmente, teria um pendor muito mais
político². E naturalmente institucional. Mas curiosamente (ou nem tão curiosamente assim, por-
que uma coisa tem tudo a ver com a outra) foi construída sobre as Finanças. Continuam a ser
as Finanças a sua sustentação... E, eventualmente, a sua perdição: o futuro dirá.

O Engenheiro António Guterres, então Primeiro Ministro de Portugal, teria de algum


modo batizado a unidade monetária europeia única num gesto (num rasgo) voluntarista, e in-
vocando um tópico bíblico, mutatis mutandis: teria dito algo como "Tu és Euro, e sobre esta
moeda construiremos a nova Europa"³. Simbólico que tal haja ocorrido, na melhor das inten-
ções (estamos disso persuadidos: poucos poderiam certamente prever o que viria a seguir...).
Mas não poderemos esquecer que a moeda é, biblicamente também, o tributo a César, o tributo
de César, que a ele pertence. E por isso Jesus manda que lhe seja devolvido⁴. Uma Europa baseada
numa moeda arrisca-se também a poder ser (ainda que simbolicamente) cesarista e argentarista.

¹Francisco Pedro Jucá. Finanças Públicas e Democracia. São Paulo: Atlas, 2013, p. 63.

²Sobre aspetos constitucionais já da União Europeia, cf. o nosso livro Novo Direito Constitucional Europeu, Coimbra, Almedina, 2005. Evi-
dentemente, o Tratado de Lisboa viria a trazer ainda mais novidades, assim como a prática, a chamada “constituição real”. Mais recentemente,
sublinhe-se a proposta do presidente francês, François Hollande, do estabelecimento de uma espécie de "governo europeu", composto por
apenas seis países... Proposta que nos parece em si muito eloquente, e não comentamos.

³In the same vein the Portuguese Prime Minister Guterres is reported to have made the following statement at the summit in Madrid at the end
of 1995: "when Jesus Christ decided to found a church, he said to Peter: thou art Peter, and upon this rock I will build my church. You are the
euro, and on this new currency, the euro, we will build our new Europe" (Frankfurter Allgemeine Zeitung, 13 December 1995)”, apud Professor
Dr. Dr. h.c. mult. Otmar Issing Mitglied des Direktoriums der Europäischen Zentralbank, Rede zur Verleihung der Würde eines Ehrendoktorsdes
Fachbereichs Wirtschaftswissenschaftender Johann Wolfgang Goethe-Universität, Frankfurt am Main, am 15. April 1999, in https://www.ecb.
europa.eu/press/key/date/1999/html/sp990415_2.de.html (consultado em 14 de junho de 2015), agradecemos a indicação por parte do Prof.
Doutor Vasco Pereira da Silva.

⁴Mc. 12, 17.

143
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

02. SOBERANIA TOUT COURT E SOBERANIA ESTRATÉGICA


OU EM SETORES ESTRATÉGICOS.

Como todas as palavras políticas e jurídicas sonantes, a Soberania tem sido muito utili-
zada, quantas vezes de forma imprecisa, e até mesmo demagógica. É algo de conatural a estes
conceitos e expressões esse uso e mau uso, corrupção. Contudo, como sublinhou o malogrado
constitucionalista português Francisco Lucas Pires, a metodologia jurídica baseia-se grande-
mente na palavra e na sua conotação e denotação conceituais⁵, pelo que precisamos, como
diria aliás Confúcio, tratar antes de mais da retificação das palavras⁶, para que, tendo-as claras
com as suas ideias, se possa bem governar.

Quando Jean Bodin⁷ (de algum modo miticamente, é certo) "cunhou" o conceito de so-
berania, os problemas político-jurídicos em presença eram bem claros. Tratava-se sobretudo de
(em boa medida) ultrapassar a feudalidade, a desagregação ou inorganicidade da comunidade
política (e ele pensava especialmente na França). Por isso, a soberania é expressa como poder
que não tem par nem superior intra muros, embora com algumas limitações que não têm sido
devidamente sublinhadas no didatismo ulterior.

Na verdade, o monarca, o "soberano" concebido por Bodin, não está acima da lei, pelo
contrário, talvez até tivesse mais leis a limitá-lo que os atuais governantes constitucionais (pelo
menos em teoria, claro). Deveria obedecer, a mais que estes, à lei divina, certamente tanto
quanto estes deveriam, para alguns, seguir os ditames da lei natural e / ou lei racional (ou da ra-
zão; autonomizadas ou não, conforme os autores). Além de, evidentemente, deverem também
obediência às leis fundamentais do Estado (então ditas, fundamentalmente, dos reinos...), que
correspondem à formalização da Constituição material⁸, e ainda a várias leis humanas comuns
a todos os povos, o que dá uma excelente abertura para a cooperação internacional e não para
o isolacionismo sempre potencialmente belicista⁹.

E contudo não é bem assim que se aprende normalmente. Não é mesmo nada assim.
Não foi assim que eu aprendi, já nem me lembro com quem pela primeira vez, para falar verda-
de... Falava-se e ainda se fala muito frequentemente de um poder enorme, absoluto, quer do
ponto de vista interno, quer no plano externo. Enorme e em grande medida arbitrário (ou pelo
menos fica a sensação de que tal assim poderia ser, sem problemas). O rei estaria, pois, simul-
taneamente em luta (por vezes aparecendo associado à burguesia) quer contra os senhores
feudais, quer contra o Papa, que constituiria a ameaça ao seu poder no plano externo, repre-
sentando o pólo internacional da teorização.

⁵Francisco Lucas Pires. Teoria da Constituição de 1976. A Transição dualista, Coimbra: edição do autor, 1988.

⁶Confucius. Entretiens de…, trad. do chinês de Anne Cheng. Paris: Seuil, 1981, p. 102 (XIII, 3). Comentando, Simon Leys (dossier coordenado
por Minh Tran Huy). De -551 à Aujourd’hui. Confucius les voies de la sagesse. "Le Magazine Littéraire", novembro de 2009, n.º 491, p. 66. Anne
Cheng. Histoire de la Pensée Chinoise. Paris: Seuil, 1997, pp. 82 ss..

⁷Uma excelente síntese do que Bodin realmente disse (em 1576, nos Seis Livros da República, I, 8) sobre o assunto da soberania foi recolhida
na obra de Simone Goyard-Fabre. Qu-est-ce que la politique. Bodin, Rousseau et Aron. Paris: vrin, 1992, p. 56 ss..

⁸Cf. uma síntese em J. L. Brierly. The Law of Nations, ed. by Sir Humphrey Waldock, 6.a ed.. Oxford: The Clarendon Press, 1963, trad. port. de
M. R. Crucho de Almeida, prefácio de A. Rodrigues Queiró, Direito Internacional, 4.a ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1979, p. 9.

⁹Jean Touchard (org.). História das Ideias Politicas, trad. port.. Lisboa: Edições Europa-América, 1970 (vários vols.), vol. 3, p. 63.

144
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

Talvez o tom haja sido como que contaminado pela visão hobbesiana do soberano, com
um estilo ou fraseologia totalmente antidemocrática, de que respigamos, só para exemplo, de
entre as epígrafes à margem de um capítulo fulcral do Leviathã:

"Os súbditos não podem mudar a forma de governo", "não se


perde o direito ao poder absoluto", "não há justiça nas acusações que
o súbdito faça aos atos do soberano", "nada que o soberano faz pode
ser punido pelo súbdito", "Também a ele - soberano - pertencem a au-
toridade judicial e a decisão das controvérsias", "E de fazer a guerra e
a paz como lhe parecer melhor", concluindo-se destas e outras teses
que: "O poder e a honra dos súbditos se desvanece na presença do po-
der soberano", sendo ainda que (curioso discurso legitimador) "O poder
soberano não é tão prejudicial como a sua falta, e prejuízo deriva na sua
maior parte de não haver pronta aceitação de um prejuízo menor"10.

Contudo, é muito curioso observar que clássicos de várias áreas do saber e de diversos
quadrantes geográficos há bastante tempo que não seguiam essa teorização atribuída a Jean
Bodin. Paremos um pouco. Na verdade, parece tratar-se de uma teorização que, partindo do
clássico jurista francês e invocando-o, vai muito mais longe. Passa para uma absolutização de
uma categoria - a Soberania - que deixa (pelo menos ao nível do pressuposto, do não-dito) de
ser uma perspetiva ou ponto de vista de um autor ou grupo de autores para encarnar o que se
pressupõe como essência, com algo de universal e dificilmente discutível, ou mesmo indiscutí-
vel. Tanto mais que convocando, por vezes, ou sendo associado por vezes, a questões de honra,
Nação, sangue, Pátria.

O clássico historiador das ideias políticas francês Jean Touchard, ou o consagradíssimo


especialista britânico em Direito Internacional J. L. Brierly, só para dar dois relevantes exemplos,
ambos já apontavam para uma compreensão muito menos totalizante (ou totalitária) do pen-
samento de Bodin. E o curioso é que, tendo lido e relido as obras de ambos, nós e certamente
muitos como nós não o apercebemos, imbuídos que estávamos pelo preconceito imperante:
uma adesão às interpretações anteriormente assimiladas.

Essa definição simples, da dupla exclusão de poderes concorrentes, internos e externos,


foi decerto excelente para a formação do Estado Moderno, e para o ulterior (bastante ulterior)
advento dos nacionalismos românticos, etc., etc. Mas com os processos de integração interna-
cional, começou a claudicar, e a partir daí nunca mais se conseguiu ter ideias claras e distintas
neste aspecto. Alguns, como o antigo presidente do Parlamento Português António de Almeida
Santos, prolífico autor sobre temas políticos atuais, parecem ter considerado que a partir do
momento que se perde uma pequena parcela de soberania já se entrou no caminho do federa-
lismo. Outros falam em tertium genus, sobretudo para a União Europeia. Esta parece ser, aliás,
não diríamos a fórmula juridicamente correta, mas juridicamente confusa e politicamente cor-
retíssima. Cremos que o que está principalmente em causa é uma inadaptação do conceito, na

10
Thomas Hobbes (org. de Richard Tuck), Leviathan. 3. ed. port.. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 143 ss.. (parte 2, Cap. XVII).

145
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

sua inteireza, aos tempos contemporâneos. Pelo menos uma dificuldade de transposição cabal
e plácida. E um aproveitamento político muito perigoso por parte de hiper-nacionalismos de
um lado, a par de desvalorizadores de qualquer sentido de independência, por parte de outros.

A virtude estará algures no equilíbrio de um meio termo11: Soberania (ou algo como ela),
numa versão de autonomia e independência também internacionais, é importantíssima para as
questões vitais (chamemos-lhe, por exemplo, "soberania estratégica"): militar, educativa, cultu-
ral e de finanças, pelo menos. O grande educador António Sérgio dizia que a educação do Povo
equivalia a opor resistência a uma invasão estrangeira. Mas há muitas outras (e até certos aspe-
tos destas, o que complica as coisas) em que pode ser nociva aos próprios interesses nacionais.
Há assim que repensar este aspeto, com a maior atenção e cuidado. Um excesso solipsista de
soberania leva ao "orgulhosamente sós", talvez pobre e honrado (na mais idílica das versões),
mas pequeno e triste; uma ingénua ou laxista abertura em exagero e dissolução nacional são
ruína e aniquilamento certos, a prazo.

03. AS MÁS LEIS EXPULSAM AS BOAS. CONSTITUCIONALIZAÇÃO DAS DÍVIDAS


PÚBLICAS?12

1. Depois de já em 2009 aquele sistema a que alguns chamam "ordoliberalismo germâ-


nico" (o nome tem pouco interesse, o quid sim...) ter sido pioneiro nessa senda13, no início de
dezembro de 2011 ventos de uma certa União Europeia (porque ela não é una, nunca o foi, e
parece que os projetos que nela confluíram hoje claramente estão à vista como contraditórios)
trouxeram-nos a alegada magna necessidade de introduzir expressamente nas Constituições
limites ao endividamento dos respetivos Estados. Uma Constituição polícia da dívida, pois. Ve-
remos adiante que poderá não ser afinal tanto assim...

A meio de 2013, de novo a questão era ainda atual para alguns, e pelos vistos até mesmo
premente. Deveríamos por isso (referimo-nos a países como Portugal) fazer mais uma revisão
constitucional, ainda que, a exemplo de tantas em curso de há pelos menos alguns anos, de
alguma forma pela técnica do fait accompli? E ao fazê-la, se viesse a ser feita, não seria ela uma
revisão constitucional inconstitucional? Estamos em crer que sim.

Hoje de novo voltam alguns até a querer uma nova Constituição, obviamente por pro-
cedimento inconstitucional. E como os ventos que fazem soprar, por exemplo em Portugal,
estas ideias (que não são os mesmos por toda a parte: há que ter o maior cuidado quanto à di-
ferença de causas e de métodos de uns países para os outros - que fará de uns continentes para
os outros... como tantas coisas podem mudar...) são estrangeirados, de certo estrangeiramento
(porque o há vivificante, inspirador, também, desde sempre: no caso lusitano, desde o Bolonhês

No sentido da Ética aristotélica. Cf., v.g., Giorgios Iliopoulos. Mesotes und Erfahrung in der Aristotelischen Ethik. N.º 33, Atenas, 2003, p. 194
11

ss..

Para a elaboração desta síntese, fizemos questão de previamente consultar especialistas de diversos quadrantes. Agradecemos, entre outros
12

que nos comentaram, aos nossos amigos Prof. Dr. Jorge Bateira (professor de Economia Política na Universidade de Coimbra) e Dr. Rui Pedro-
to (administrador-executivo de uma Fundação), a leitura de uma anterior versão deste texto e as suas observações. Dos seus eventuais erros e
imperfeições assumimos naturalmente a exclusiva paternidade.

Cf., v.g., Achim Truger. The German Debt Brake – A shining Example for Europe?, in http://www.social-europe.eu/2012/03/the-german-de-
13

bt-brake-a-shining-example-for-europe.

146
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

ao Príncipe das Sete Partidas, D. Pedro)14, certamente nessa nova constituição inconstitucional
viria a amarra financeira anti-soberania, ou, se preferirmos, contrária ao princípio da indepen-
dência nacional.

2. Sejamos razoáveis. Usemos desse bom senso que é a grande chave hermenêutica e
"pressuposto indescartável do direito, se não de todo o conhecimento humano", como escre-
veu o ministro Francisco Rezek15. É óbvio que nenhuma Constituição, e isso pela própria natu-
reza das coisas (natura rerum), especialmente pela sua própria natureza de magna carta em prol
do interesse e da felicidade de um Estado, poderia permitir endividamentos ruinosos.

Não queremos estar todos falidos em dez anos, como afirma o sugestivo título de Ja-
cques Atali, cuja tradução portuguesa já conta com metade desse tempo16. Tal parece uma
evidência. E assim não se precisa de marcar um limite quantitativo no texto da Constituição
formal (o limite, cautelar e não quantificado, está no coração e na cabeça das pessoas de bom
entendimento e boa fé, na constituição material), como quem determina o nível de alcoolemia
permitido num « bafômetro ». Nem é necessário explicitar muito esta elementar regra de bom
senso. Quantas mais teria que conter, então, uma pobre Constituição, e pior ainda uma Consti-
tuição de países não abastados? Não tem de o fazer, e não deve fazê-lo. Seria algo de contrário
à própria dignidade de uma Constituição, uma banalização.

A enumeração concreta (assim como a definição17) nos textos legais é uma técnica jurí-
dica primitiva. Todos os juristas o sabem.

Claro que disso não são obrigados a saber oficiais de outros ofícios: deviam era ter mais
respeito pelas áreas alheias, porque se metem e intrometem em técnicas que não dominam.
Então no Direito, não só toda a gente parece tudo saber, como os próprios juristas de novas
levas ou formadas em muitos casos trocaram a sua velha racionalidade, testada por séculos,
para aderirem a modas que levam, em não poucas situações, não apenas a renegar de tradição
(porque poderiam ser lufada de ar fresco), mas a enxertos que não resultam, porque colocando
água no fogo, e produzindo só fumaça.

Recordemos, a propósito, que uma das últimas aflorações da pré-história legislativa


desse detalhismo, ainda no séc. XVIII, foi o Allgemeine Landrecht für die Preußischen Staaten,
código que, segundo o mito à sua volta criado, para determinar, por exemplo, o que pertencia
a uma quinta, enumeraria coisas imensas: como cercas, com suas chaves e cadeados, todos os
tipos de construções, animais e alfaias, num texto interminável, e mesmo assim sempre sujeito
a omissões. Por desconhecer cláusulas gerais, conceitos indeterminados e técnicas normati-
vas afins que apelam para o raciocínio do intérprete. Desde então, a hermenêutica jurídica e a
técnica legislativa, de mãos dadas, evoluíram muito, e permitem ler o que não necessita estar
explicitamente escrito com todas as minúcias.
14
Jorge Borges de Macedo. Estrangeirados. Um conceito a rever. Braga: Separata de "Bracara Augusta", vol. XXVIII, fasc. 65-66 (77-78), 1974.
15
Francisco Rezek. Prefácio do autor à 12.a ed. de Direito Internacional Público. Curso Elementar. São Paulo: Saraiva, 2010, p. XXI.
16
Cf. Jacques Atalli. Estaremos Todos Falidos Dentro de 10 Anos?. trad. port., Lisboa: Alêtheia, 2010, obra plena de questões que dão que pensar.
17
D. 50. 17. 202.

147
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

Agora, em retrocesso para a Jurisprudência, quer-se preto no branco a determinação


constitucional das dívidas públicas. A tal alteração da Constituição (e há quem se deleite à sim-
ples ideia de dar nova estocada no texto constitucional: objeto de ódio de estimação) se opõem,
porém, ainda muitas reservas de princípio.

3. Desde logo, pela génese da mudança não provir do Povo ou de seus representan-
tes diretos e para tal mandatados, no exercício de genuíno poder constituinte nacional (nem
europeu), mas de uma cúpula, para mais, ao que tudo indica, com o fito de (certamente mais
uma vez em vão) acalmar uma insaciável entidade afinal juridicamente inexistente (além de que
não legitimada) no universo constitucional democrático: os “Mercados”. Não deixa de ser in-
teressante que um argumento soberanista (ou pelo menos de soberania) poderia ser invocado
contra tal intromissão no poder constituinte nacional.

A questão parece ser dos "Mercados". Sempre os “Mercados”, o grande protagonista


de toda a crise (pais e mães de todas as crises recentes), não “mão invisível” (pelo contrário, a
sua mão tem sido visibilíssima), mas rosto velado do poder real, do poder efetivo. Lembrando a
lição da célebre conferência de Lassalle, Ueber das Verfassungswesen, proferida em 1862, diría-
mos hoje, mutatis mutandis que, afinal, os “Mercados” ditam a verdadeira “constituição real”. As
constituições nacionais tornaram-se, ao pé deles, pedaço de papel (ein Stueck Papier). E assim
os orçamentos, que deveriam ter mais participação, pelo contrário tendem, na Europa, a ter
menos. Como afirma Francisco Pedro Jucá:

"A sociedade inteira não tem como participar da elaboração do


orçamento, até por impossibilidade material. Mas entende-se que deve
ser ouvida obrigatoriamente sobre os pontos fundamentais dele, até
para que possa legitimar e adequadamente assumir a corresponsabili-
dade, inclusive pelas consequências das decisões"18.

Mas os ventos da concentração de poderes e decisões sobretudo não abrem mão das
decisões essenciais sobre a recolha e afetação de recursos financeiros. Aliás, a mentalidade
economicista imperante na política esquece tudo o mais. E procede como se nada mais existis-
se senão o seu bezerro de ouro19.

Acresce que a matéria dos limites expressos ao endividamento não é, para mais che-
gando a este pormenor quantitativo, de índole especificamente constitucional, mas de natureza
política e econômica. Assim, não adianta de nada estar a introduzir nela a alteração em causa,
apesar de saída da cimeira europeia de 9 de dezembro de 2011 como grande panaceia para os
males da União, que viria a ver e continua a presenciar grandes males sem os correspondentes
remédios grandes que se requereriam. A Grécia, para alguns, parece ser uma grande ameaça à
saúde das finanças europeias. E contudo a Grécia é a grande mártir... Independentemente de
ser necessário um dia apurar realmente todas as componentes da dívida helênica, portuguesa,

18
Francisco Pedro Jucá. Op. cit., p. 55.
19
Ex. 32; Deut. 9.

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COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

espanhola... e de países de que se não fala com alarmismo ou escândalo, mas que a têm vultu-
osíssima. Interessante é notar como a linguagem politicamente correta inverte as situações... E
o público não está advertido para essa prestidigitação.

Entretanto, a inclusão de um elemento da racionalidade não jurídica (antes contabi-


lística), e de apenas uma certa forma de encarar as Finanças, enfraqueceria a Constituição,
retirar-lhe-ia credibilidade e força normativa ao estar a banalizá-la ao ponto de a tentar tornar
polícia das opções dos políticos, financeiros e economistas. E não se sabe que sanção teriam
os responsáveis (certamente nenhuma, como até aqui) pelo endividamento excessivo. Assim
como nas Finanças “a má moeda expulsa a boa”, assim também as normas não cumpridas (e
impossíveis de cumprir) dificultam o cumprimento das exequíveis (já o vira Montesquieu). É que
não adianta, pelo contrário só agrava as coisas, pensar-se em sanções para os Estados incum-
pridores se quem compromete os Estados não tem sanções para si, pessoalmente. Não foram
os povos que criaram dívidas gigantescas, em muitos casos foram pessoas concretas, agindo
em seu nome.

E, por outro lado, é muito complicado e perigosíssimo começar a instituir uma caça às
bruxas penalizando políticos por atos de liberdade política. A sanção por atos que não sejam
delituais (designadamente de corrupção) é, para eles, em democracia representativa, a do voto
popular.

Efabular um novo sistema não é utopicamente proibido, mas correr-se-ia o risco (que
já é real em alguns aspectos) de apenas se abalançarem a cargos públicos os muito ricos (para
poderem pagar eventuais e muito plausíveis multas e indemnizações) ou os muito atrevidos
(aqueles desprovidos de capacidade de previsão do que lhes poderia acontecer), ou ambos.

Finalmente, uma razão econômica e social a ter em conta neste debate: tal inclusão
muito plausivelmente seria invocada contra os prejudicados do costume pela crise, podendo
muito possivelmente revelar-se um garrote - mais um - ao desenvolvimento econômico e ao
Estado social, por via da autoasfixia de fundos. É que, como é por demais sabido (mas ainda
assim alguns se negam a reconhecer, não na teoria, quiçá, mas evidentemente na prática) as
economias precisam, para funcionar, da seiva dos meios financeiros, assim como da aceleração
propiciada pelo consumo.

O texto da aludida cimeira europeia deixava, apesar de tudo, uma tímida e formal aber-
tura, falando na possibilidade de consagração desse limite de forma equivalente ou análoga à
constitucional (no fundo, um texto materialmente constitucional ainda que não formalmente?
Mas como tal poderia ocorrer, se por natureza essa medida não poderia ser materialmente
constitucional?). Embora pensemos que se estaria a ter em mente a singularidade constitucio-
nal do Reino Unido (que contudo se afastaria das decisões do conclave), também já foi inter-
pretada esta fórmula como uma possibilidade de inscrição em documento jurídico formal ou
aparentemente infraconstitucional (porque não há realmente alternativa no plano da pirâmide
normativa).

149
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

Alguns pensaram, certamente, que se poderia incluir o princípio nalguma lei de valor re-
forçado ou diploma afim, e assim se poderia fazer a experiência, como que "para tirar teimas". E
cremos que aqui, mais uma vez, a lógica economicista se iria enganar (oxalá não...). Até porque
se intromete em terreno que lhe é desconhecido e até de algum modo avesso, o constitucio-
nal. Que não é uma banalidade instrumental ao serviço de qualquer poder, mas (como alguém
classicamente disse) a question of art and time, profundamente ligada à alma dos Povos.

Porque a Economia, aliás uma excelente episteme, deve ser ciência (scientia) antes de
mais de saber, conhecimento de fatos, enquanto o Direito Constitucional deve ser arte de nor-
mas. Uma lidando rigorosa, escrupulosamente, com o domínio do ser (sein), o outro com não
menos rigor curando do dever-ser que quer ser (o sollen). Só não visando usurpar a dimensão
normativa as ciências do dinheiro e da riqueza e suas relações (crematísticas e cataléticas) po-
derão informar bem as artes da decisão sobre o que fazer. A decisão última é da política, isso se
sabe. Mas não olvidemos o contributo das ciências políticas, em que o direito tem parte, em-
bora uma parte muito especial. E nobre. Um economista reputado afirmou um dia que os da
sua classe são excelentes a prever as crises que passaram. Essa blague denota a ainda escassa
capacidade de previsão, mas ao mesmo tempo a tentação política dos economistas... Contudo,
há uma grande diferença entre Economics e a Economia Política.

Portanto, e encurtando razões, as concessões e as misturas, nestas matérias, seriam


uma má concessão... Misturar água com fogo (entidades de natureza diversa) só tem como
consequência, pela natureza das coisas, que se produza fumaça... É uma regra de ouro.

Esperemos que os opinion makers sempre consultados pelos media (e estes mesmos)
não venham a curvar-se - ainda que por inércia - perante a moda, os poderes, ou a “força nor-
mativa dos fatos”. O economista francês Généreux já advertiu para um certo laxismo jornalístico
(no mínimo), que tende a dizer o que a opinião corrente diz. Corrente, ou dominante20... Seja ela
qual for, acrescentaríamos nós, que já vimos várias modas. Basta, aliás, deixar passar o tempo.

Como todos sabemos, nós juristas somos os primeiros dos nossos críticos. Não se trata,
pois, de defender corporativamente um terreno ou uma casta, mas de preservar a Constituição
de uma profanação, para mais sem nenhum efeito útil e muitas plausíveis consequências ad-
versas. E a Constituição é a última barreira que ainda resiste às investidas dos fantasmas e dos
monstros de que já falava Juncker, atual presidente da Comissão Europeia: “Die Dämonen sind
nicht weg, sie schlafen nur."21

Por isso é a Constituição (são muitas Constituições) tão atacada(s), ela(s) e os seus de-
fensores. As crises em que mais ou menos por toda a parte se vive hoje levam-nos frequente-
mente a um enorme descontentamento e ao desejo de mudar. Mas apenas a mudança segura
nos termos constitucionais nos livra de pecados originais que seriam pais e mães de múltiplos
pecados derivados, e maculariam o futuro. E as nossas constituições, hoje em dia, possuem

20
Jacques Généreux. Nous, on peut! Manuel anticrise à l’usage du citoyen, ed. rev. e atualizada. Paris: Seuil, 2012 (1.ª ed. 2011), p. 12.

Jean-Claude Juncker. Entrevista a “Der Spiegel”: Euro-Krise: Juncker spricht von Kriegsgefahr in Europa, in http://www.spiegel.de/politik/
21

ausland/juncker-spricht-von-kriegsgefahr-in-europa-a-887923.html (acesso em 1 de abril de 2013).

150
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

aberturas mais que suficientes para todas as regenerações. Assim haja pessoas e haja projetos.

Voltemos ao nosso tema, mais especificamente.

Colocar aqueles números frios e abstratos na Constituição é desconhecer que ela é,


como dissemos já, uma questão de tempo e arte, que a breve trecho subverteriam o seu signi-
ficado, ainda que meramente percentual. Fixações concretas de cifras na Constituição, sobre-
tudo em matérias econômicas e afins, são caminho certo e seguro para um rol interminável de
emendas constitucionais. Pela simples razão que o mundo não para. E que o numérico é apenas
expressão desse mundo, de relações e razões que podem ter padrões comuns, mas ganham
expressões novas com frequência. Apesar de todos os esoterismos, esses números que vemos
e são manipulados nas estatísticas são mutáveis e não nos salvam.

4. Em síntese: As propostas a que nos vimos referindo são anticonstitucionais e uma sua
consagração normativa seria inconstitucional. É que, por um lado, "tornariam constitucional" o
que não só o não é materialmente (sem possuir dignidade constitucional), como assim se vio-
lariam limites implícitos de revisão constitucional.

Entre estes limites, de grande importância, se devem contar as regras lógicas (como a
que não permite a dupla revisão: por muito que Charlot entre na porta proibida simplesmente
removendo o cartaz que o proíbe, como lembrou Gomes Canotilho) e as de dignidade consti-
tucional (relevância, pertinência, estilo e tradição até).

A matéria não tem dignidade constitucional, está fora da tradição constitucional moder-
na de Constituições como grandes metanarrativas sobre o Político e não questões técnicas e
neste caso proprio sensu, contabilísticas.

Por outro lado, a asfixia ou garrote financeiro, seja no próprio texto da Constituição, seja
em lei de valor reforçado (mas a fortiori no primeiro caso) põe em causa o modelo ou projeto
constitucional das Constituições vigentes na Europa do modelo social europeu, nunca revoga-
do de jure em país nenhum. E que foi inspirador de muitos mais.

Ora o Estado Social de tipo democrático ocidental (pois outros são e foram possíveis,
como lembrou, por exemplo, e antes de mais, Paulo Bonavides22), de democracia representativa
e participativa, num Estado de Direito (portanto Estado de direito democrático, de social e de
cultura - ou Estado Constitucional moderno, como afirma Peter Haeberle23), tem frequente-
mente sido baseado em políticas que latamente poderíamos classificar como keynesianas, em
que o Estado assume o protagonismo (embora de forma articulada, moderada e pluralista, sem
totalitarismos) de dinamizar a economia, o que frequentemente leva a endividamento.

Endividamento virtuoso, porém, porque gerador de emprego, de desenvolvimento eco-

22
Paulo Bonavides. Do Estado Liberal ao Estado Social, 10.ª ed., São Paulo, Malheiros, 2011.
23
Peter Haeberle. El Estado Constitucional, estudo introdutório de Diego Valadés, trad. e índices de Héctor Fix-Fierro. México: Universidad
Nacional Autónoma de México, 2003.

151
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

nômico, de progresso social. E ao mesmo tempo de liberdade econômica e política. Porque


a clausura da austeridade não leva ao livre comércio, leva à economia de subsistência, se não
mesmo à economia de guerra. E nestas situações autoritarismos e até totalitarismos espreitam.
A fome nunca é boa conselheira, e raramente é conselheira de moderação, pluralismo e demo-
cracia.

Como o Estado Social democrático ainda não terá encontrado, sobretudo em tempos
de estagnação ou recuo da iniciativa privada, soluções muito diferentes das referidas, por uma
via aparentemente inócua de números e por um meio em teoria consensual de imprimir rigor e
parcimônia às contas públicas se poderá enfim estar a inviabilizar todo o projeto constitucional
europeu (geral e dos diferentes países) ao nível da Constituição Econômica e Social24.

Mais uma vez, são precisos constitucionalistas e cidadãos que defendam a Constituição.
E que compreendam como ela nos pode defender. E deveria de finalmente entender-se que
não são os números que devem mandar. Faz falta quem, como De Gaulle, afirme: A Intendência
seguirá! Primeiro estão o Direito e os Direitos das Pessoas.

E quando tudo, na Europa do Sul, sobretudo, se pretende cortar em austeridade, haveria


também que recordar o conservador (e antigo liberal) Winston Churchill, que se oporia termi-
nantemente a qualquer corte na Cultura durante a II Guerra Mundial, porque é ela a razão de ser
(e a forma de ser) de um Povo, de uma Civilização, a sua differentia specifica.

Nem De Gaulle nem Churchill eram dinossauros, e muito menos "dinossauros verme-
lhos". Aliás, o que hoje parece ocorrer, na Europa, é um fenômeno curioso de coincidentia
oppositorum, de concordância até entre os contrários, uma quase unanimidade político-ide-
ológica que coincide na prática num diagnóstico negativo sobre o rumo de descaminho dos
últimos anos na União Europeia, em real risco de se desagregar. Ou de continuar agregada, mas
com profundos descontentamentos, sobretudo "periféricos".

Dos tradicionalistas monárquicos e dos conservadores mais extremistas que não se


converteram em neocons, até aos coletivistas mais convictos e os libertários mais convictos,
passando por todas as moderações democrata-cristãs, social-cristãs, social-liberais, social-de-
mocratas, trabalhistas, socialistas democráticas, verdes, ecologistas e comunistas clássicos (ou
menos clássicos), poucos serão os que não concordam (com mais ou menos perífrases e reti-
cências garantidoras da sua identidade, mas o que importa agora é a concordância, para além
dela) que o modelo social europeu era uma eutopia, uma utopia positiva, não no sentido de
quimera, mas agora de uma cidade ideal quase perdida, em grande medida por via de uma di-
tadura financeira, que teve o euro como instrumento normalizador.

Só alguns que se dizem, ou diziam, ou os disseram "liberais" não estarão de acordo, e


teimam em tentar convencer-nos, nos escombros da nossa Pátria comum, entre miséria e o

A qual não se encontra isolada dos demais aspetos constitucionais e assim pode levar, com o agravamento da crise, a déficits democráticos
24

mais ou menos acentuados. Em suma, o que poderia parecer uma modesta cedência a uma exigência de economicistas, mais ou menos
supérflua, poderia redundar, na bola de neve das consequências, em graves danos à aplicação concreta da Constituição vigente. V. o nosso
Constituição & Política, Lisboa, Quid Juris, 2012, em que também apontamos já as grandes linhas do que aqui dizemos.

152
COLETÂNEA DE DIREITO FINANCEIRO

rondar dos espectros de novos totalitarismos (e até velhos, que renascem), que "tudo vai bem,
e não podia ir melhor". Salvo talvez a culpa desses PI(I)GS preguiçosos, a começar pelos endi-
vidados Gregos. A quem, contudo, jamais pagaremos todos, o mundo inteiro, a dívida ancestral
da Civilização. Mesmo que nos perdoassem os justos juros compostos.

Liberais, se dizem, os dizem? Não nos parece. Basta ler o esquecido clássico Thomas Hill
Green, além da síntese de John Gray25.

Um dos grandes problemas nesta matéria foi já colocado por Bertrand Russel. Uma das
grandes questões políticas do nosso tempo é saber ou não saber Finanças, e, naturalmente,
Direito Financeiro. Evidentemente, neste Congresso de Direito Financeiro estamos num local
privilegiado, com um altíssimo índice desse conhecimento por metro quadrado.

Mas Russel achava, nesse belo livro que comprei em edição brasileira num sebo de São
Paulo, O Elogio do Lazer26, que o grande problema seria, na condução dos negócios públicos,
que poucos da opinião pública saberiam de duas questões todavia politicamente vitais: quer
de guerra, quer de Finanças. E nós acrescentaríamos que a muitos parece que nem mesmo os
especialistas, em sede política, muitas vezes posam muito bem para a História como conhece-
dores do seu ofício.

Esperamos que no futuro mais pessoas, dentro e fora dos Governos, saibam ao menos
mais de Finanças. Apesar do poema de Fernando Pessoa que termina, e à sua sombra nos aco-
lhemos nós, pessoalmente,

"E mais que isto é Jesus Cristo


Que não sabia nada de Finanças
Nem consta que tivesse biblioteca".

Paulo Ferreira da Cunha


Doutor das Universidades de Paris 2 e Coimbra,
Pós-Doutor da USP, Agregado da UM, Braga.
UAM (Laureate International Universities),
bolsista FUNADESP na FADISP, Catedrático
Fundador do IJI da FDUP, Comité ad hoc
para o Tribunal Constitucional Internacional.

John Gray. Liberalism. 1986, trad. cast. de Maria Teresa de Mucha, Liberalismo, 1.ª reimp.. Madrid: Alianza Editorial, 2002, máx. p. 9, p. 57 ss.,
25

p. 113 ss..
26
Bertrand Russell. In Praise of Idleness, trad. port. de Luiz Ribeiro de Sena, O Elogio do Lazer, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1957.

153

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