A Menina no Quarto - Davi Vale
A Menina no Quarto - Davi Vale
A Menina no Quarto - Davi Vale
MENINA
N O
Q U A R T O
D A V I V A L E
DAVI VALE
A MENINA
NO QUARTO
Copyright © 2017
O sintoma da doença nada é senão a
manifestação disfarçada da potência do
amor; e toda doença é apenas amor
transformado.
DAVI VALE
— Ah, é? O anúncio não menciona o nome da
família. O senhor os conhece?
— Todos os conhecem — disse o homem com
indiferença, em seguida explicou o caminho como se já o
conhecesse muito bem.
Agradeci. Já estava saindo do prédio quando, ao
olhar para trás, percebi que o homem ainda me
observava. No entanto, não me olhava por estar distraído,
mas me fitava com uma estranha persistência.
No lado de fora, quando já pisava sobre os
paralelepípedos da rua fronteira, cedendo ao meu hábito
de admirador da arquitetura dos edifícios públicos dei
meia-volta e olhei para a fachada da Estação Rebouças. Já
havia visto belas estações de trem, mas aquela despertou
em mim uma simpatia imediata. Era um prédio de um
único pavimento, coroamento barroco, paredes amarelas e
ornamentos brancos. Logo abaixo do coroamento, bem no
centro do edifício, localizava-se o pórtico da entrada
principal que se salientava na parede, e sobre ele a placa
branca onde se lia “REBOUÇAS”. Diante da entrada
principal, uma escadinha de dois degraus dava para a
calçada. Havia ao longo da fachada oito janelas que se
dividiam em quatro pares, dois em cada lado do pórtico,
como quatro casais de namorados. Percebi que eram as
janelas o motivo de minha admiração, por estarem
dispostas em pares de forma tão adorável.
Retomei meu caminho. Seguindo a orientação do
senhor sisudo da estação, fiz uma longa caminhada pelo
vilarejo até alcançar uma rua em aclive, já quase no fim
A MENINA NO QUARTO
da região urbanizada. O bairro estava silencioso, exceto
pelo farfalhar das árvores que dançavam com o vento
gelado e interminável. Nenhuma das casas no entorno
tinha qualquer sinal de vida, e por um instante tive a
sensação de que todas estavam abandonadas. Na
vizinhança predominavam exuberantes residências e
terrenos extensos. Segui nessa rua até a última casa,
depois da qual a pavimentação em paralelepípedos dava
lugar a uma estrada de terra. Ali, afastado das
propriedades circundantes, destacava-se o meu destino.
Aproximei-me com certo nervosismo, pois a
propriedade era imponente. Da calçada, olhei por entre as
grades de ferro. Primeiro, vi um grande jardim maltratado
que se estendia a perder de vista, repleto de caminhos
ladrilhados que serpenteavam em direção ao bosque,
margeados por bancos e luminárias francesas. Além do
jardim, erguia-se uma antiga casa de estilo vitoriano,
telhados cobertos de musgos, chaminés fumegantes e
paredes de topázio de uma cor incerta que pairava entre o
bege e o cinza. Havia um bosque nos fundos da
propriedade, cujas árvores formavam uma parede verde
no horizonte. Embora a propriedade não tivesse mais do
que três ou quatro hectares, a existência do bosque a fazia
parecer muito mais extensa do que realmente era.
Entrei através do portão e caminhei receosamente
por uma ruela que cortava o jardim ao meio. Meus pés
faziam um barulho ruidoso no cascalho, e esse som
parecia ser o único que se dava ao direito de existir
naquele ambiente. Respirei fundo, inalando o aroma
DAVI VALE
floral que emanava do jardim. O vento havia diminuído e
o sol brilhava intensamente, no entanto continuava a fazer
frio. Ultrapassei a fonte sem água, subi as escadas e parei
em frente à porta principal. Prestei atenção ao som
ambiente e fiquei espantado com o silêncio que parecia
reinar no interior da casa, indicativo de que não havia
crianças, tampouco animais de estimação.
Por fim, toquei a aldrava de bronze. O eco do meu
chamado se fez ouvir no vestíbulo. Pus no chão minha
maleta e tentei ajeitar a gola do casaco, mas quase não
tive tempo. Fui atendido sem demora por uma simpática
adolescente de uns 16 anos, de pele branca como um
floco de neve, que apareceu de supetão pela fresta da
porta, lenço na cabeça e avental no ventre.
— Pois não? — disse ela. Sua voz era graciosa,
quase infantil. Estava ofegante, como se tivesse corrido
para me atender.
— Vim interessado na vaga de jardineiro divulgada
no jornal…
— Pode entrar — interferiu a moça, arreganhando
a porta a fazendo-a produzir um ranger azucrinante. Se
fosse contratado, pensei, uma de minhas metas seria
lubrificar aquelas dobradiças.
A moça ajudou-me a retirar o casaco e pendurou-o
no mancebo ao lado da porta. Conduziu-me à sala
principal e indicou-me um assento perto da lareira.
— Fique à vontade — ela falou. — A madame logo
virá atendê-lo, senhor…
— Victor Silva.
A MENINA NO QUARTO
Ela assentiu com um gesto de cabeça, em seguida
saiu do cômodo e deixou-me sozinho. Escutei seus passos
ecoando no vazio do vestíbulo e em seguida na escada,
antes de sumirem no andar de cima. Seguiu-se um
silêncio sepulcral, a total ausência de ruídos, como se
naquela casa reinasse a absoluta paz. Prestando mais
atenção, entretanto, percebi ao longe o som do vento e o
cantar de algum pássaro.
Larguei a maleta ao lado da poltrona onde havia me
sentado. Olhei em volta e observei a mobília, os vasos, os
quadros, as luminárias, as paredes ornamentadas e o piso.
Todos os móveis eram de estimável antiguidade e
estavam em ótimo estado de conservação. Tudo estava
admiravelmente limpo, impecavelmente arrumado.
Imaginei quantos empregados seriam necessários para
manter tão limpa uma casa grande como aquela.
Um dos quadros pendurados na parede do saguão
exibia o retrato de um homem fardado, dono de uma
fisionomia austera tipicamente militar. Ele tinha na pele o
bronzeado encardido de quem passou tempo demais ao
sol. Os olhos castanhos da pintura, de um brilho realista e
intenso, estiveram direcionados a mim desde que eu
entrara na sala, dando-me a impressão de estar sendo
observado a todo instante. Mesmo sem olhar para aquele
retrato, eu sabia instintivamente que aqueles olhos
estavam cravados em mim e, embora não fossem mais
que uma representação, me incomodavam. Os demais
quadros exibiam imagens interessantes da natureza —
montanhas cobertas de neve, árvores peladas em pleno
DAVI VALE
inverno, um lago congelado sob o entardecer e (o que era
mais intrigante) uma mulher sozinha no meio da neve. A
julgar pela escolha dos quadros, parecia que os donos da
casa tinham certo fascínio pela paisagem nórdica.
A casa tinha um odor de pedra úmida ou algo
assim. Não que fosse um cheiro desagradável, era aliás
até agradável, muito suave e desaparecia quando o olfato
se acostumava a ele, o que acontecia em menos de um
minuto — mas eu não me recordava de ter sentido aquele
odor em qualquer outra casa. No mais, era o silêncio que
reinava naquele ambiente, a amplidão dos cômodos, a
beleza vitoriana dos ornamentos e da mobília e os
quadros nas paredes que me traziam uma sensação servil,
um sentimento de inferioridade ou até mesmo indigência.
Olhei ao redor com sincera reverência. Fiquei encolhido
na poltrona, como se demonstrasse à casa que reconhecia
minha posição perante ela. Como se a casa tivesse vida
própria e estivesse a me observar. Esse sentimento de
reverência, no entanto, não me assustava — ao contrário,
chegava até mesmo a fortalecer meu desejo de ser
contratado por aquela família.
Por fim, após dez minutos de espera, minha anfitriã
desceu as escadas e veio me receber. Quando a vi emergir
na sala, minha primeira impressão a seu respeito foi de
que ela era uma mulher austera, o tipo de fanática
religiosa que obriga os filhos a repetir a Ave Maria como
castigo às suas desobediências. Possuía uma elegância
rígida, os passos decididos, o pescoço hirto e o olhar
sobranceiro que somente a fortuna pode proporcionar a
A MENINA NO QUARTO
uma mulher. Media cerca de 1m70, mas seu penteado a
fazia parecer mais alta. Trajava um pulôver preto e
comprido, tinha o pescoço adornado com diamantes e
liames de prata, os cabelos castanhos e ondulados presos
em coque, o rosto branco e os olhos cinzentos como o céu
tempestuoso.
— Me desculpe fazê-lo esperar — disse a mulher
com uma voz inexpressiva. — Muito prazer, sou Nadia
Vukmir.
— O prazer é todo meu, senhora — respondi,
tentando parecer polido. — Sou Victor Silva.
Fiquei de pé para cumprimentá-la. Embora
tivéssemos a mesma estatura, me senti muito menor,
como se ela preenchesse toda a sala.
— Tem experiência em jardinagem? — perguntou
a Sra. Vukmir. Seu tom de voz incutia autoridade. Seu
sotaque era peculiar, mas não o consegui definir, embora
soubesse que certamente vinha de alguma parte da
Europa.
— Sim. Permita-me mostrar minhas referências. —
Fiz menção de abrir a maleta, mas com um gesto ela me
impediu.
— Não será necessário, Sr. Silva. Espero que goste
de trabalhar, pois há muito que fazer no jardim. Por isso
no anúncio especifiquei que desejava um rapaz forte e de
pouca idade.
Falei a ela que podia contar comigo para o trabalho
pesado. Nadia Vukmir então me avaliou dos pés à cabeça,
detendo o olhar principalmente em meus braços. Eu sabia
DAVI VALE
que meu físico não deixava a desejar, pois as atividades
manuais de meu ofício garantiam que eu me mantivesse
em forma. Ainda assim, a forma fria como ela me
avaliava com o olhar me deixava constrangido.
— É casado? Tem filhos? — perguntou, quando
seus olhos voltaram a encontrar os meus.
— Não, senhora.
— Qual a sua idade?
— Vinte e seis.
— Ótimo. Vou lhe mostrar seu aposento, Sr. Silva
— anunciou a mulher, então virou-se e fez sinal para que
eu a seguisse.
Então era só isso? Fiquei admirado com a
praticidade daquela entrevista, pois mal me apresentara e
já estava contratado. Aparentemente, havia surgido tão
poucos candidatos à vaga que ela não poderia se dar ao
luxo de fazer exigências — o que era estranho, pois o
salário generoso devia atrair muitos candidatos. Mas eu
podia estar fazendo deduções equivocadas, isto é, a
família talvez tivesse recebido muitos outros candidatos
antes de mim, de modo que nenhum deles houvesse se
encaixado aos requisitos que ela fizera questão de
ressaltar, aos quais que eu tivera a sorte de me enquadrar.
Neste caso, eu talvez estivesse diante de patrões
extremamente exigentes. Essa consideração me trouxe à
memória a figura austera do quadro na sala, onde era
retratado quem eu deduzi ser o marido de Nadia Vukmir.
Eu nunca tivera dificuldades em lidar com meus patrões,
embora alguns deles houvessem sido austeros e por vezes
A MENINA NO QUARTO
detestáveis — entretanto, a simples imagem daquele
retrato me deixava apreensivo.
Caminhamos em direção à parte traseira da casa,
onde se localizava o único dormitório do primeiro
pavimento. A Sra. Vukmir abriu a porta do quarto e
deixou que eu entrasse antes dela. Logo ao entrar no
cômodo, via-se uma cama de solteiro em frente à porta. À
direita da cabeceira havia uma janela e, à direita da
janela, uma cômoda de madeira. Havia uma poltrona de
couro entre a cômoda e a cama, e um pequeno roupeiro
fora encostado na parede oposta à janela. Todos os
móveis eram do mesmo tipo de madeira, talvez cumaru,
pareciam novos e combinavam entre si — exceto a cama,
que era de uma madeira mais escura e de aspecto
envelhecido. O piso era coberto por um tapete de sisal cor
de argila. As paredes eram brancas, numa das quais se via
uma pequena grade de passagem de ar do sistema de
calefação.
Apesar da mobília bem posicionada, era muito fácil
perceber que o cômodo não fora projetado originalmente
para ser um dormitório, mas antes um depósito ou algo
dessa espécie. Era pequeno e mal localizado para um
quarto — embora, pensando bem, fosse grande para um
depósito.
— Este será seu aposento, Sr. Silva — anunciou
Nadia Vukmir após entrarmos.
— Aqui dentro? — não pude evitar a demonstração
de surpresa, pois esperava que ela fosse me levar a um
abrigo externo.
DAVI VALE
— A cabana do jardineiro foi destelhada durante
uma ventania há algumas semanas. Como já era uma
construção muito antiga, não considerei viável consertá-
la, de maneira que será melhor demoli-la. Por fim, não
pretendo desperdiçar dinheiro em reformas ou
construções dispendiosas. Desta forma, decidi te instalar
no interior da casa. Espero que isso não seja um
problema.
Respondi que não. Lembrei-me da fonte sem água
na entrada da casa. Talvez os Vukmir estivessem em más
condições financeiras.
— Bem, antes de mais nada, é bom inteirar-lhe de
algumas regras — prosseguiu ela, e começou a enunciar
de modo solene: — Não quero ver o senhor
bisbilhotando. Não temos telefone. Também não temos
aparelho de rádio, pois o silêncio é algo que aprecio
muito, e por isso quero que trabalhe fazendo o mínimo de
barulho. O senhor só deve subir ao segundo piso quando
for chamado, mas de forma alguma deverá subir sem que
alguém o esteja acompanhando. Alguma dúvida?
— Não, senhora — respondi rapidamente.
Claro que isso não era bem verdade, pois eu estava
cheio de perguntas, mas acreditei que qualquer
questionamento poderia soar demasiadamente curioso,
além de inconveniente. Seja como for, eu realmente tinha
ficado curioso. Achei particularmente esquisito o fato de
a casa não possuir telefone, o que dava certa impressão de
isolamento.
A MENINA NO QUARTO
Também estranhei que ela tivesse avisado que não
gostava de bisbilhotices, informação que, a meu ver, era
redundante: tratava-se de algo tão elementar que não
havia porque se dar ao trabalho de dizê-lo. Por que,
porém, ela o dissera? Talvez o fato de eu estar proibido
de subir sozinho ao piso superior fosse pista da resposta:
tal proibição fazia parecer que ali fosse mantido algum
segredo. Guardei esses pensamentos comigo e busquei
não alimentá-los. Afinal, eram assuntos que não me
diziam respeito.
Nadia Vukmir me guiou até o jardim frontal e
definiu suas exigências com relação ao trabalho: altura
ideal da grama, horário de regar as flores, dentre outros
detalhes. Explicou que o jardim não era devidamente
cuidado há alguns meses, desde a morte do Sr.
Gonçalves, o antigo jardineiro, pois suas empregadas não
tinham tempo para se dedicarem a isso. Depois, explicou
que, além de cuidar do jardim, eu deveria cuidar dos
aquecedores da casa, abastecendo a caldeira com lenha
durante o inverno, e realizar as tarefas pesadas que
eventualmente fossem necessárias — que não seriam
poucas, já que eu seria o único empregado homem na
propriedade. Disse ainda que aos domingos eu não
precisaria me preocupar com o jardim porque esses
seriam os meus dias de folga. Finalizou fazendo algumas
considerações acerca do salário.
— Seu salário será de 480 mil réis. O pagamento
será realizado retroativamente no primeiro dia de cada
mês — ela explicou, enquanto caminhávamos de volta ao
DAVI VALE
interior da casa. — Caso precise de algum adiantamento,
basta me avisar.
Voltamos à sala principal, onde eu havia deixado
minha maleta, mas não nos sentamos.
— Pode se mudar para cá hoje mesmo se assim te
apetecer — ela avisou. — Basta trazer os seus pertences.
Vou mandar uma das meninas deixar seu quarto
preparado.
— Obrigado pela oportunidade, Sra. Vukmir.
Estarei de volta de tardezinha com minhas malas.
Caminhamos em silêncio até o vestíbulo. Nadia
Vukmir me ajudou com o casaco. Abriu a porta, fazendo-
a ranger.
— Até mais tarde, Sr. Silva — disse ela, e fechou a
porta assim que saí.
Enquanto caminhava rumo ao portão, observei a
paisagem no entorno da propriedade com certa
reverência. Como a propriedade se localizasse em região
elevada, no horizonte era possível avistar os montes
distantes tingidos de azul baço e, antes deles, as matas e
os campos verdejantes, cuja beleza era intensificada pela
luz daquele dia ensolarado. Dei uma última olhada para
trás, em direção à casa dos Vukmir, com suas numerosas
janelas cujos vidros refletiam o brilho do sol. Perguntei-
me se alguém estaria me olhando através de uma delas.
Começava a fazer calor, portanto fiz o percurso até
a estação com o casaco pendurado no braço. Minhas
ventas estremeciam de felicidade. Eu estava contente com
meu novo emprego e satisfeito porque o salário estava
A MENINA NO QUARTO
acima das minhas expectativas. Sentia-me disposto a
fazer toda sorte de obséquios e desejava cumprimentar a
todos que cruzassem meu caminho. Embarquei no trem
pouco antes das onze horas e voltei à casa de pensão onde
morava. Chegando lá, paguei ao proprietário o valor
proporcional ao mês incompleto de estadia. Juntei meus
pertences, que de tão poucos cabiam em uma única mala,
e parti para meu novo quarto.
Já era final da tarde quando desembarquei na
Estação Rebouças pela segunda vez naquele dia.
Caminhei pela plataforma vazia e desci a escadinha que
dava para a calçada. Na rua, dei uma rápida olhada para
os quatro pares de janelas na fachada do prédio antes de
seguir meu caminho. Aquela estação parecia-me ainda
mais agradável ao final da tarde.
Eu estava com fome porque não havia almoçado,
por isso decidi parar num pequeno restaurante próximo.
Sentei-me a uma mesa perto da janela e pedi um prato.
Após anotar meu pedido, o garçom ficou algum tempo
me olhando. Olhei-o de volta. Seu olhar vago e sua
expressão curiosa deu-me a impressão de que ele tinha
algum tipo de deficiência mental leve. Devia ter
aproximadamente a minha idade, baixa estatura, a pele
muito branca e os cabelos cacheados tão negros que,
embora secos, aparentavam estar molhados. Como se
meu olhar o despertasse, saiu andando e entrou na
cozinha.
Naquele momento eu era o único cliente. O
restaurante estava absolutamente silencioso. Aliás, todo o
DAVI VALE
vilarejo parecia emudecido. Enquanto eu comia, o
garçom manteve-se sentado perto do balcão, olhando-me
de esguelha quando eu não o olhava e desviando o olhar
quando eu me voltava em sua direção. Por que ele tanto
me olhava? Terminei de comer e pedi a conta. O garçom
veio até a mesa e recebeu o dinheiro, quieto, mas
olhando-me de um modo esquisito, como se quisesse me
dizer algo. Aquilo me incomodou.
— Algum problema? — perguntei, já irritado.
Ele negou com a cabeça, fazendo movimentos tão
curtos e rápidos que eram quase convulsivos. No entanto,
pouco antes que eu me virasse em direção à porta e saísse
do estabelecimento, pude notar, numa fração de segundo,
uma espécie de medo em seu olhar, como se ele tentasse
me dizer alguma coisa, mas lhe faltasse coragem.
Quando cheguei à casa dos Vukmir, já além das 19
horas, quem me atendeu foi a própria Sra. Vukmir.
Convidou-me a jantar, mas avisei que já havia comido.
Ela então me conduziu ao meu quarto, dizendo que eu
ficasse à vontade e que poderia ir à cozinha se sentisse
fome ou sede. Estaria no andar de cima e logo mais
dormiria, mas que eu mandasse chamá-la se fosse preciso.
Era habitual que dormissem cedo naquela casa, por isso
me deitei logo após guardar a bagagem. Embalado pelo
silêncio e pelo cansaço do dia, peguei no sono
rapidamente, entretanto tive uma noite longa e cheia de
sonhos confusos.
A MENINA NO QUARTO
2.
16 DAVI VALE
de alguém perto de mim. Não ouvi qualquer barulho,
simplesmente percebi que alguém estava à minha
retaguarda, observando-me em silêncio.
Olhei para trás. Uma garota estava de pé no limiar
da portinha do depósito, imóvel como uma estátua.
Consegui disfarçar o susto, mas meu coração havia
disparado. Estava escuro e quase não dava para ver seu
rosto, e mesmo assim eu pude reconhecê-la com
facilidade: era a garota que me atendera em minha
chegada. Já não usava um lenço na cabeça tal como da
primeira vez, e tinha os cabelos negros soltos sobre os
ombros. Estava séria, mas sorriu quando a olhei.
— Sr. Silva, o jantar está à mesa — ela disse,
emitindo aquela voz doce e graciosa. — Não quer se
sentar conosco?
— Será um prazer — respondi, tentando não
demonstrar excessivamente meu contentamento. Buscava
comedir minha demonstração de alegria com medo da
impressão que poderia causar.
— Mas não demore — ela advertiu, porém de uma
forma descontraída. Depois saiu, e eu saí atrás dela.
— Espere! — avisei.
Ela parou de andar e olhou para mim. Pude ver
então seu rosto iluminado pelo entardecer. Apesar de tê-la
visto na manhã anterior, senti como se a olhasse pela
primeira vez.
— Qual é o seu nome?
A MENINA NO QUARTO 17
— Sou Helena, a camareira — ela respondeu com
sua forma meiga de falar, sorrindo sem sorrir, como se
sorrisse com os olhos.
Era dona de uma espécie rara de beleza, talvez por
causa de seus olhos absolutamente pretos, gigantes e
penetrantes, através dos quais o observador tinha a
impressão de poder enxergar o reflexo de seu próprio
rosto, ou talvez por seus lábios bem delineados, macios e
cheios de vida, ou ainda por seu nariz de ventas delicadas,
levemente arrebitado, que visto defronte parecia
minúsculo — mas, na verdade, era a união de todas essas
características que a tornava tão raramente linda, e
certamente elas não teriam sido tão perfeitamente casadas
entre si se fossem desenhadas pelas mãos de um artista.
Tinha por volta de 1m65 de estatura. Com certeza ainda
não tinha dezoito anos, mas possuía, apesar disso, uma
malícia no olhar que a tornava sedutora. Na primeira vez
em que a vi, minha apreensão com a conquista do
emprego me impedira de prestar atenção em sua beleza,
mas agora a notava com outros olhos. Não que eu tivesse
intenções maliciosas, mas sentia uma admiração por seu
jeito de ser, uma afeição singular, como se já a
conhecesse de outras vidas. Não sabia explicar, na
verdade não entendia, mas me sentia tão bem quando a
via que era dominado pela vontade de conhecê-la melhor,
saber seus gostos, seus anseios e sua história de vida.
Sim, era isso: ela despertava minha curiosidade.
Na sala de jantar, sentei-me ao seu lado, na cadeira
que ela própria me indicara, e notei que meu prato já
18 DAVI VALE
estava posicionado à minha espera. Também achavam-se
ao redor da mesa outras duas moças.
Uma delas era a empregada loira que eu tinha visto
mais cedo, a mesma que, por timidez ou desprezo, evitara
cruzar seu caminho com o meu. Trocamos olhares, mas
ela rapidamente desviou os olhos dos meus e pareceu
acanhada. Na verdade, fiquei decepcionado: não era tão
bonita quanto me parecera antes. Á luz artificial das
lâmpadas, sua tez se tornava opaca e pálida como a face
de uma mulher morta, aparentando insalubridade, os
lábios esbranquiçados e o olhar cansado e tristonho.
Cheguei a questionar se era a mesma garota. Talvez isso
pudesse se explicar pelo fato de que, quando eu a vi no
jardim, não notara amiúde seus defeitos, mas olhando-a a
não mais que um metro de distância, sua aparência
estiolada se tornava notável. Além disso, naquele instante
havia algo de diferente, uma espécie de cansaço
estampado no rosto que talvez fosse indício de uma gripe.
Helena, que evidentemente era a mais desacanhada
de todas, tratou de me apresentar suas companheiras. A
loira chamava-se Caroline, era a arrumadeira da casa e se
encarregava da limpeza geral. A outra moça era Raquel, a
cozinheira. Raquel aparentava ser a mais velha das três,
com 26 ou 27 anos, a pele naturalmente bronzeada, os
cabelos cacheados e seios protuberantes que pareciam
desproporcionais ao seu corpo. Era de um tipo comum,
braços espessos, quadris estreitos e uma pequena pança
que dava impressão de desleixo. Possuía, entretanto, um
sorriso bonito e um olhar carismático, e a simpatia
A MENINA NO QUARTO 19
sempre embeleza as pessoas. Era o tipo de mulher que se
torna bonita na medida em que se a conhece melhor —
diferentemente de Caroline que em mim causava o efeito
inverso.
O jantar foi tomado, inicialmente, por um silêncio
tenso. Na timidez dos meus primeiros dias na casa,
preferi não iniciar um assunto. Passados alguns minutos,
as três empregadas começaram a conversar sobre coisas
que não me diziam respeito, o que me deixou um tanto
alheio aos diálogos. Falaram do trabalho, do que tinha
ficado pendente naquele dia, de quanto urgia a
contratação de uma segunda arrumadeira. Entretanto, não
tardaram a me incluírem na conversa. Disseram o quanto
estavam aliviadas por agora terem um homem para ajudá-
las, considerando que, no intervalo entre a morte do
antigo jardineiro e a minha contratação, eram elas que se
dedicavam aos cuidados do jardim. Perguntaram-me se eu
era casado e se tinha filhos, e quando respondi que não a
ambas as perguntas quiseram logo saber mais detalhes
sobre minha vida. Uma onda de interesse pareceu
preencher todo o diálogo e, quando me dei conta, havia
contado tanto sobre mim que nem conseguira saber muita
coisa acerca delas.
Já havíamos terminado de comer quando
mencionaram casualmente uma mulher chamada Sra.
Milovan. A expressão de todas diante desse nome foi
carregada de certo receio, como se o mencionassem em
segredo.
— Quem é essa senhora? — perguntei.
20 DAVI VALE
— A Sra. Milovan é a governanta — explicou
Helena em tom grave, inclinando-se levemente sobre a
mesa em minha direção e abaixando a voz. — Na
ausência da madame, é ela quem dá as ordens.
Senti que havia nestas palavras algum
descontentamento.
— Governanta? — repeti, franzindo o cenho. —
Então existem crianças na casa?
As moças se entreolharam com um ar estranho,
como que perdido. Notei um brilho de temor no olhar de
Caroline. Helena respondeu:
— Sim: Júlia, a filha da madame.
— Pois eu nunca a vi — constatei, com surpresa.
Assustava-me pensar que uma criança pudesse residir
naquela casa, mas que dentro de dois dias eu não a tivesse
visto, ouvido ou encontrado seus vestígios.
— Ninguém a vê — disse Raquel, quase
sussurrando. — Nós também nunca a vemos. Ela nunca
sai daquele quarto. A única que a vê é a Sra. Milovan,
que passa horas no quarto da menina. A Sra. Milovan é
também sua professora, visto que Júlia não frequenta
escola.
— Como isto é possível? — indaguei revoltado,
deixando que minha voz se elevasse um pouco. — Que
tipo de mãe mantém a filha em confinamento dentro de
um quarto?
— Não sabemos, Sr. Silva — disse Caroline, com a
voz tão amena que fez parecer que eu tinha gritado —,
mas acreditamos que talvez a menina seja… — olhou em
A MENINA NO QUARTO 21
volta, como se procurasse a palavra mais adequada —
que não seja uma criança normal.
22 DAVI VALE
3.
24 DAVI VALE
O som não poderia ter vindo de longe. Abri a porta
do quarto e olhei o corredor escuro em direção à sala de
estar, mas ela estava mergulhada no mais completo
silêncio. A luz baça e azulada do luar penetrava as janelas
da sala, formando em todas as partes estranhas silhuetas
que a imaginação transformava no que bem quisesse. Eu
me encontrava descalço, sentindo sob meus pés o chão
gelado de madeira e as fissuras entre os pisos.
Caminhei lentamente até alcançar a sala de estar,
onde eu podia enxergar com um pouco mais de clareza.
Olhei para a porta do porão, que se localizava entre a sala
de estar e a sala de jantar. Fui até ela e a abri, deparando-
me com o breu absoluto do subsolo, em seguida dei um
passo até o limiar da porta. Lá embaixo, havia um
silêncio absoluto. Certamente, a origem do choro não
estava naquele porão, especialmente pela impossibilidade
de que qualquer som produzido lá embaixo chegasse até
meu quarto.
Fechei a porta com cuidado e voltei a caminhar,
atravessando a sala de jantar em direção ao saguão da
casa, onde se localizava a escada que levava aos quartos
principais. No entanto, lembrando-me das advertências
feitas pela madame, não ousei subir sequer o primeiro
degrau. Parei ao pé da escada e olhei para cima. No
segundo, piso as luzes apagadas indicavam que todos
deviam estar dormindo. Se a moça que ouvira estivesse
em perigo, provavelmente teria pedido por ajuda a
alguma das empregadas ou à madame. Além disso, seria
ilógico supor que qualquer choro ou gemido de alguém
A MENINA NO QUARTO 25
no piso superior pudesse ser ouvido em meu quarto, já
que, para transpassar tantas paredes e portas até meus
ouvidos, seria necessário no mínimo um grito. Ainda me
ocorreu que, se alguém estivesse em apuros lá em cima,
eu não seria o único a estar acordado.
Comecei em seguida a considerar a hipótese de que
eu não houvesse escutado qualquer choro ou gemido, mas
que tivesse tomado como realidade algo que acontecera
em meus sonhos. Pensando bem, existia razão para que
eu acreditasse que havia imaginado tudo. Não seria a
primeira vez que eu tomava como real um evento onírico,
de modo que eu só compreendesse isso após algum tempo
de reflexão. E esse pensamento me serviu de consolo.
Esbarrei em algum móvel, produzindo um ruído
que em comparação ao silêncio da casa pareceu
estrondoso, depois quase fiz cair um vaso de de cima do
aparador. Escutei uma rajada de vento no lado de fora. O
chão estava tão gelado que me dava a impressão de estar
pisando sobre algo úmido. Comecei a olhar em volta,
detendo meus olhos nas sombras negras que se formavam
nos cantos. A sombra das árvores dançava nos vidros das
janelas e frequentemente me assustavam. Comecei a
sentir certa impaciência. Pensei ter visto algum
movimento na cozinha, mas quando caminhei até lá notei
que eram apenas as sombras das árvores projetadas pelo
luar. Voltei para o meu quarto com muito cuidado. De
alguma forma, a casa parecia me acuar, dizer-me em
silêncio que não era para eu estar acordado. Eu quase
podia escutá-la sussurrar. Foi um alívio quando passei
26 DAVI VALE
pela porta e emergi no ambiente apertado e familiar de
meu quarto.
— Estou me impressionando muito facilmente —
sussurrei, tentando rir de mim mesmo. — Estou sendo um
tolo, ora essa!
Respirei com calma e me recompus. Apaguei a luz
do abajur, deitei na cama e fechei os olhos.
Ainda com os sentidos aguçados por conta do
susto, fiquei algum tempo acordado antes que o sono
retornasse. Escutei o barulho do vento agitando as árvores
do lado de fora, e ao longe o som do motor de uma
camionete que provavelmente estava percorrendo a rua
fronteira. Acompanhei o som do veículo se afastar até que
não pudesse mais ser ouvido, e então apenas o uivo do
vento permaneceu.
De repente, um novo som surgiu em meus ouvidos,
mas este não vinha do lado de fora do quarto. Antes
fosse! Tive a assustadora impressão escutá-lo perto da
minha cama, bem ao meu lado. De fato, era o choro de
uma menina! Pareceu-me que, de alguma forma
inexplicável, essa menina se agachara ao lado de minha
cama e se pusera a chorar. Entretanto, daquela vez eu
tinha certeza de que não estava dormindo. No escuro, abri
os olhos. Mesmo de olhos bem abertos eu o escutava.
Aquilo era real.
Saltei da cama imediatamente. Percebi em seguida
que o choro havia cessado. Meu coração batia em
disparada, assombrado não pela curiosidade, mas pelo
medo. Acendi o abajur e olhei em volta. Devo admitir que
A MENINA NO QUARTO 27
cheguei a verificar embaixo da cama. Tive a sensação de
que havia mais alguém em meu quarto, embora eu
atestasse com meus olhos que estava sozinho. Trêmulo,
tentei recobrar a calma.
— Já olhei todos os cantos e nada encontrei, então
não há razão para ter medo — eu disse a mim mesmo,
embora não tivesse certeza se havia dito em voz alta ou
apenas pensado.
Mas era inútil: embora não houvesse alguém no
quarto comigo, a parte mais irracional de meu espírito
ainda me convencia do contrário, como se existisse algo
que meus olhos não pudessem ver, tampouco meu tato
pudesse sentir, mas que por um instante eu pude escutar
da mesma forma como escutaria o som de minha própria
voz. Com isso, meu sono parecia ter sumido. Permaneci
acordado, decidido a ficar de vigília até que pudesse ter
ensejo de averiguar a questão à luz do abajur, e acordado
esperei que o som se repetisse, mas despertei no dia
seguinte com o cantar dos pássaros e descobri que tinha
dormido na poltrona.
28 DAVI VALE
4.
30 DAVI VALE
ela andava. Como demonstrasse certa dificuldade, me
ofereci para ajudá-la.
— Obrigada — respondeu ela, e entregou-me o
balde para que eu o carregasse, não disfarçando seu
alívio. — Ainda bem que o senhor apareceu.
— Para onde? — perguntei.
— Para cima — disse ela com indiferença, e saiu
caminhando adiante de mim.
— Não sei se posso acompanhá-la.
Caroline parou e me olhou, perplexa. De manhã, o
azul de seus olhos se tornava vívido, clareando-se na
medida em que se afastava das bordas externas, causando
assim um severo contraste com o negro das pupilas
contraídas. Ocorreu-me, de chofre, que afora os olhos ela
não tinha beleza alguma no rosto. Esse pensamento era
estranho porque, nos padrões convencionais, sem dúvida
ela seria considerada uma linda moça: tinha a pele lisa, de
uma brancura agradável, e o rosto possuía formas suaves
e delicadas. Os lábios eram pequenos, rosados e
simétricos, e os olhos eram um pouco próximos entre si,
postos sob sobrancelhas arcadas de tom castanho-claro.
Sim, pensando bem, ela era uma bela moça. Entretanto,
era como se sua beleza estivesse ali, mas não para mim.
— Por que não? — perguntou ela com um leve
sorriso irônico.
— É que não devo subir as escadas, por
determinação da Sra. Vukmir.
— Madame — Caroline corrigiu, em tom de
repreensão.
A MENINA NO QUARTO 31
— Desculpe?
— Mme. Vukmir prefere que se refiram a ela como
“madame”, não como “senhora”.
— Me desculpe.
— Enfim, o senhor não deve subir a menos que
seja necessário, e esta me parece uma situação de
necessidade. Além disso, o senhor está me
acompanhando, portanto não se preocupe. — Caroline
mal terminou de dizer e voltou a caminhar. Dei alguns
passos largos para alcançá-la, então nossos passos se
emparelharam. Tínhamos quase a mesma estatura, mas
ela era um pouco mais baixa que eu.
— Deve haver muito trabalho por aqui — supus.
Tentava puxar assunto porque achava insuportável que
caminhássemos em silêncio.
— O senhor nem imagina o quanto!
— Quando precisar de ajuda, não hesite em me
pedir. Não é justo que uma moça delicada fique se
esforçando com baldes cheios e coisas desse tipo.
— É muito gentil — ela sorriu, direcionando-me
um olhar carinhoso —, mas já estou acostumada. De
qualquer forma, vou me lembrar disso.
— Então suponho que já trabalhe nesta casa há
muito tempo.
— Sim, desde a minha adolescência.
— Se me permite observar, sua função de
arrumadeira parece ser a mais carregada de todas. A casa
não é pequena e, ainda assim, está impecavelmente limpa.
32 DAVI VALE
— O senhor tem razão. Originalmente esta casa foi
projetada para abrigar mais pessoas, mas foi se
esvaziando até que ficaram apenas a madame e sua filha,
remanescentes de uma família que já teve seus momentos
de glória. Apesar do tamanho da casa, eu não fico
sobrecarregada. Tanto a Helena quanto Raquel me
ajudam na limpeza. Seria exaustivo mantê-la limpa se não
fosse pela ajuda delas.
— Deve haver muitos quartos vazios lá em cima.
— Hoje, não muitos. A Sra. Milovan conta que
antigamente todas as empregadas ficavam no único
quarto do terceiro andar, um cômodo grande e de teto
inclinado, mais parecido com um sótão do que com um
quarto. Dormiam em camas amontoadas e muito
próximas entre si, de modo que bastava esticar o braço
para alcançar a cama vizinha. Com o esvaziamento da
casa, a madame concedeu generosamente às empregadas
os quartos do segundo andar.
Subimos as escadas e, lá em cima, fiquei tão
distraído na contemplação dos detalhes arquitetônicos que
não soltei palavra. Emergimos numa sala ampla, com
paredes brancas repletas de portas e uma janela que se
voltava em direção ao nascer do sol. Caroline ia adiante
de mim, então meu olhar se deteve por um instante no seu
quadril, nas linhas das nádegas sob a roupa, nas curvas da
cintura e na alvura das pernas abaixo do vestido. Seus
cabelos estavam presos em coque e um lenço amarelo os
enfeitava. Olhei para seu pescoço delicado, observando a
pelugem loira que brilhava com a claridade matinal. Num
A MENINA NO QUARTO 33
instante ela interrompeu seus passos de forma súbita,
então eu quase esbarrei o balde em sua perna.
— O senhor pode deixar o balde aqui — avisou, e
me agradeceu. Apanhou-o, entrou num dos quartos e
fechou a porta atrás de si.
Achei-me sozinho naquele lugar silencioso,
atingido pela sensação de que não devia estar ali. O que
Nadia Vukmir pensaria se me visse sozinho no segundo
piso? Voltei rapidamente pelo mesmo caminho por onde
tinha vindo, mas no meio do salão ocorreu algo
inesperado. Uma das portas se abriu de supetão, de onde
emergiu Helena e, como todo seu vigor juvenil, esbarrou
em mim. Estava com pressa e parecia ter acabado de
acordar.
— Me desculpe! — disse eu, e recuei um passo.
Ao vê-la de corpo inteiro, não pude evitar minha
surpresa. Helena usava uma camisola curta de seda, e por
debaixo dessa peça de roupa não usava absolutamente
nada. Os mamilos espetavam o tecido liso e branco, cuja
transparência permitia discernir a brancura da pele dos
seios. Todo seu corpo era demarcado sob a camisola, o
quadril de linhas perfeitas, a barriga lisa e até as curvas
pubianas. Congelei instantaneamente, embaraçado. Meus
lábios ficaram petrificados enquanto meus olhos
percorreram, num movimento involuntário, todo o seu
corpo até as pernas brancas e intocadas, e então, numa
reação tardia de pudor, desviaram-se para um ponto
qualquer da parede contígua.
34 DAVI VALE
Esperei pela bofetada ou pelo grito, mas nenhum
dos dois se sucedeu. Helena tão somente se afastou do
caminho e me deu passagem. Sua reação era tão natural e
despudorada quanto seria se ela estivesse vestida com
uma roupa qualquer. Retomei meu caminho sem olhar
para trás, desci as escadas o mais rápido que pude e fui
direto para o jardim.
A MENINA NO QUARTO 35
5.
38 DAVI VALE
— E gosta daqui?
— Se refere à Rebouças?
— Me refiro a esta casa, e esta família.
— Sim. É um lugar bonito e agradável, e a madame
é muito generosa.
A resposta pareceu-me um tanto sem convicção.
Ela poderia ter mentido ao dizer que gostava do lugar, ou
mentido sobre a generosidade da madame. Ou talvez
fosse apenas uma impressão equivocada de minha parte.
— Nunca sentiu medo?
— Como assim? — Helena franziu o cenho.
Percebi então que minha pergunta, da maneira que a
dirigi, não fazia o menor sentido.
— É que esta casa parece tão…
— Sombria? — ela se antecipou. — Já me
acostumei, mas devo concordar que algumas vezes ela me
dá calafrios, especialmente à noite. Dá impressão de que
a casa tem vida própria. Sabe, é uma construção antiga, às
vezes os encanamentos e as tubulações fazem barulho
atrás das paredes. Mas não se assuste, a madame sempre
diz que todas as casas antigas são assim — deu uma
risadinha, embora eu não entendesse onde estava a graça.
— E quanto ao senhor, o que está achando daqui?
— Estou gostando muito. O jardim é bonito e
favorecido pela geografia local. Tem muito trabalho
acumulado, mas em uma semana tudo estará em ordem. E
eu gosto deste ar, é fresco e agradável, imagino que por
causa do riacho que há nos fundos.
A MENINA NO QUARTO 39
— No verão, esta é a propriedade mais fresca da
rua. Porém, no inverno ela se torna insuportavelmente
fria.
— Permita-me uma pergunta: onde estão seus pais?
Helena pareceu incomodada. Demorou a responder,
abaixou o olhar e entrelaçou os dedos.
— Peço desculpa se fui inconveniente — tentei me
eximir.
Ela olhou para mim de um jeito melancólico.
— Não conheci meus pais, Sr. Silva. Morei num
orfanato até os treze anos, quando a madame me trouxe
para cá.
Considerando que Helena havia sido trazida há
quatro anos, calculei que ela tinha 17.
— Sinto muito por isso.
— Obrigada — ela respondeu com um sorriso
triste.
Ambos ficamos em silêncio. Helena parecia refletir
sobre o peso das próprias palavras. O vento soprou por
um instante, agitando as folhas das árvores, depois cessou
e tudo voltou à quietude de antes. Olhei para o céu, que
estava tão azul quanto se pode imaginar. O dia pareceu-
me mais agradável do que nunca.
— Aparentemente, a madame é uma boa pessoa —
comentei.
— Ela me tirou do orfanato — falou Helena, meio
alheia, com os olhos fixados melancolicamente a uma
pedra qualquer no chão.
40 DAVI VALE
— Imagino que deve ser horrível viver em um
orfanato.
— O senhor está enganado — afirmou ela,
direcionando-me um olhar sincero. — Eu gostava de lá.
Ficávamos numa ala só para meninas. Sabe, tinha as
minhas amigas, muitas das quais cresceram comigo, elas
eram como irmãs para mim. Eu as adorava, mas o desejo
de ter uma família de verdade, de ter alguém que
possamos chamar de mãe, de ter um quarto só nosso, esse
desejo é mais forte. Infelizmente, grande parte delas
acabou não tendo essa oportunidade porque, depois de
certa idade, nenhuma família mais se interessa. O tempo
inteiro eu via novas meninas chegando, e semanas depois
sendo adotadas por algum casal sorridente, apenas porque
estavam na “melhor idade para a adoção” — sinalizou as
aspas com os dedos e engrossou a voz, como se imitasse a
fala de outra pessoa —, mas nós que já tínhamos passado
dessa idade ficávamos à margem. Eu tive sorte por ter
sido adotada. Quando a madame me escolheu, ela deixou
bem claro que eu seria sua criada, e não sua filha, mas
isso não fazia diferença. A diretoria do orfanato não se
importava com o que as pessoas fariam conosco, contanto
que nos adotassem. Os quartos estavam lotados, e
algumas das meninas dividiam a mesma cama, sabe?
Então, sempre que surgia um adulto interessado na
adoção, contanto que apresentasse comprovação de suas
condições financeiras, a diretoria fazia vista grossa.
— Então, ter vindo para cá não foi exatamente
como você esperava?
A MENINA NO QUARTO 41
— Mais ou menos. Claro que foi uma decepção
para mim quando descobri que a madame não me via
como uma filha, mas como uma criada. Por outro lado, eu
tinha enfim uma família. Não era exatamente a família
que eu tinha sonhado, mas provavelmente não seria
adotada nunca. E tem Carol, que é mais do que uma irmã
para mim.
— Caroline também veio de um orfanato? —
perguntei, tentando parecer indiferente.
— Sim — respondeu de um jeito seco. Parecia não
querer continuar o assunto.
Olhei para o céu e observei a altura do sol. A tarde
encurtava-se. Era preciso trabalhar.
— Preciso voltar ao trabalho — falei.
Ela concordou com um gesto de descontentamento.
— Te espero no jantar — ela avisou, antes que eu
me afastasse.
— Se não for incômodo.
— Claro que não será — Helena sorriu, e mais uma
vez meu coração disparou. Seu sorriso parecia me
hipnotizar.
Voltei ao trabalho e Helena ficou me observando
por quase meia hora, provavelmente porque não tinha
mais nada para olhar. Em seguida, se levantou e entrou na
casa. Observei-a se afastar, subir os degraus da escada de
mármore e passar pela porta do vestíbulo. Esperava que
ela desse uma última olhada para trás, que me sorrisse
uma última vez antes de entrar, mas isso não aconteceu.
42 DAVI VALE
Logo que Helena sumiu de vista, olhei casualmente
para uma das janelas do segundo piso, onde notei uma
silhueta a me observar. Não era a madame, a julgar pelo
porte físico, tampouco poderia ser Caroline ou Raquel.
Com a luz do sol refletindo no vidro, não era possível
reconhecê-la, mas pelo porte aparentava não possuir mais
que um metro e meio de altura. Era uma criança. Uma
menina magra, a pele clara quase translúcida, os cabelos
escuros que escorriam sobre os ombros até o meio do
tronco. Usava um vestido de cor clara que acentuava sua
palidez. Quando percebeu que eu a olhava, afastou-se da
janela como se tentasse se esconder de mim.
A MENINA NO QUARTO 43
6.
A MENINA NO QUARTO 45
gordura e os cabelos tinham sido presos com um coque
malfeito. Além disso, suas roupas tinham cheiro de alho.
— Fiquei satisfeita com seu trabalho — falou
Mme. Vukmir, logo que Raquel se retirou.
— Fico feliz em saber, madame — respondi, muito
aliviado em perceber que meus esforços estavam sendo
reconhecidos.
— Nunca foi casado, Sr. Silva?
Respondi que não, surpreso com o assunto
repentino. Falei que, se lhe aprouvesse, ela podia me
chamar pelo meu primeiro nome. Ela sorriu e concordou.
Por ser tão raro vê-la sorrir, fiquei algum tempo a admirar
seu sorriso. Era elegante, ameno e um pouco contido, não
por timidez, mas por comedimento. Ela então se recostou
à cadeira, pondo-se à vontade, e disse:
— Me conte sobre seus pais e sua família.
— Eu era filho único — comecei. — Meu pai, que
também era jardineiro, me ensinou a cuidar de jardins
ainda na minha infância. Meus pais morreram durante um
surto de tuberculose quando eu tinha dezesseis anos. A
partir de então fui criado por meus tios.
Parei de falar, mas prossegui ao perceber que ela
aguardava que eu continuasse.
— Pouco antes do meu aniversário de 21 anos, meu
tio faleceu no meio de uma noite quente de verão. Os
médicos disseram que foi derrame. Naquele mesmo mês,
minha tia adoeceu e morreu. Dizem que ela adoeceu
porque ela não suportou o luto. Os dois eram muito
apegados, tinham aquele tipo de conexão rara e intensa.
46 DAVI VALE
Haviam passado cinquenta anos casados, e minha tia não
encontrava razão para viver mais um ano que fosse sem
ele. É algo lindo de se pensar, embora triste. A morte de
minha tia, na verdade, não foi tão inesperada: ela já era
fraca, entregou-se à morte como se a desejasse, e eu a vi
definhar lentamente até o fim. Depois disso, vendi a casa
porque não suportava mais a sensação de luto que ela me
trazia. A senhora me perguntou sobre minha família.
Meus tios eram minha única família, os únicos parentes
com quem eu mantive contato após a morte dos meus
pais. Minha verdadeira família morreu com eles.
Quando terminei, me perguntei como Nadia
Vukmir conseguira me fazer falar tais coisas. Ela sequer
precisara insistir: bastou dirigir a mim seus olhos
cinzentos e eu, como que enfeitiçado, me vi falando pelos
cotovelos. Era como se seu olhar me transmitisse
tamanha confiança e simpatia que, sem perceber, eu me
visse forçado a retribuir. Fiquei melancólico. Meus olhos
ardiam, estavam úmidos, então fiquei um pouco inquieto
na tentativa de conter o choro. Era a primeira vez que eu
contava todas essas coisas a alguém numa única tacada.
Não pude evitar a sensação de ter me exposto em
excesso. Sentia como se tivesse revirado meu próprio
vômito. Por outro lado, estava aliviado, como se
descarregasse das costas um peso do qual já houvesse me
esquecido.
— Sinto muito! — disse ela com o olhar
sinceramente condolente. — No entanto, aqueles que
A MENINA NO QUARTO 47
passam por momentos difíceis acabam por se tornar mais
fortes, e eu vejo que você é um homem forte.
Enquanto falava, Nadia Vukmir mantinha o
pescoço hirto e movia sutilmente as sobrancelhas
castanhas. Gesticulava com as mãos e, vez ou outra,
acariciava a ponta dos cabelos ondulados com seus dedos
compridos. Quanto aos cabelos, naquela tarde ela optara
por desfazer o coque habitual e os prendera com um laço
em forma de rosa, deixando que as ondulações dos fios
negros lhe cingissem o pescoço.
— Desculpe minha intromissão — disse eu,
quebrando o curto silêncio —, mas onde está seu marido?
— Bem… — direcionou o olhar para as mãos —
Ele foi chamado para uma missão e nunca mais voltou.
— Levantou a face, mas seu olhar estava triste. — Já faz
treze anos. Dan era major do exército. Foi enviado com a
tropa em 1929 e sua última carta chegou a mim em 1930.
Depois disso, nunca mais tive notícias.
— Sinto muito. Deve ter sido difícil para senhora.
— O mais difícil foi me convencer de que meu
marido estava morto sem poder ver seu corpo como
evidência. Confesso que às vezes penso ouvir sua voz, e
me levanto assustada pensando que ele está de volta, mas
então percebo que não passa de uma ilusão: ele está
morto e seus restos repousam no campo de batalha.
Eu não soube o que dizer, apenas digeri as
palavras. A escolha de “restos” como expressão parecera-
me um tanto mórbida. Agora ambos nos sentíamos
melancólicos. Os olhos da madame brilharam com
48 DAVI VALE
lágrimas que pareciam prestes a lhe escorrer pelas
bochechas. Suas mãos estavam apoiadas sobre a mesa, e
eu coloquei minha mão sobre elas num gesto de consolo.
Ela me olhou de um jeito terno, então fez com que minha
mão ficasse entre as suas. Estavam quentes e tinham uma
textura sedosa e macia. O toque das nossas peles causou
em mim uma estranha sensação que misturava o
desconforto e o prazer.
A madame recolheu-as logo em seguida, mas não
ficou claro se ela fez isso porque estava incomodada.
Pegou a xícara e bebeu um gole de seu chá. Ofereceu-me
os biscoitos, dizendo que eu não precisava me acanhar.
Comi alguns. Voltamos a ficar em silêncio, e parecia que
o barulho dos biscoitos sendo triturados no interior de
minha boca era estrondoso. Ela observou-me enquanto eu
mastigava, e seu olhar possuía uma espécie de
expectativa. Como se os biscoitos estivessem
envenenados, eu pensei. De fato, ela não tinha comido
nenhum. Mas por que ela me envenenaria? Não faria
sentido algum. Afastei logo esse pensamento tolo da
cabeça.
Então, lembrei-me de Júlia. Decidi fazer a pergunta
que havia planejado horas antes. Tentei pensar na melhor
forma de abordar o assunto sem parecer demasiado
curioso.
— A madame teve filhos? — perguntei, mantendo
o tom mais casual possível.
— Sim — respondeu ela.
A MENINA NO QUARTO 49
Levantei as sobrancelhas na tentativa de parecer
surpreso. Perguntei-lhe então quantos filhos ela teve.
— Tenho uma única filha. Chama-se Júlia. Dan foi
embora algumas semanas após o parto, por isso eu a criei
sozinha.
Recordando-me de que ela dissera que seu marido
havia ido à sua última batalha em 1929, calculei que a
menina teria 13 anos de idade.
— E onde está sua filha agora? — indaguei com
naturalidade, mas logo em seguida temi que a pergunta
pudesse irritá-la de alguma forma. Ela fitou-me com
frieza até que, constrangido, eu desviasse meu olhar para
a xícara de chá.
— Júlia está em seu quarto, como sempre —
respondeu, afinal, num tom de voz neutro.
— Eu ainda não a vi. Gostaria de conhecê-la.
— Quem sabe um dia, Victor. Mas por ora, isso
será impossível.
— Impossível? Como assim?
— Natural que o senhor não compreenda. Mas não
se esqueça de que é apenas meu jardineiro.
A forma como ela encerrou o assunto deixou-me
encabulado. Houve um silêncio tenso. Nadia Vukmir
tomou um pouco de chá, em seguida me olhou
diretamente nos olhos por longos cinco segundos.
— Você tem belos olhos — observou. — À luz da
tarde adquirem um tom dourado, embora na verdade eles
sejam castanhos. Gosto de olhos que parecem mudar de
cor.
50 DAVI VALE
O elogio me pegou de surpresa. Ela parecia ser um
tanto imprevisível: mal acabara de me dar uma bronca e
agora estava me elogiando.
— Herdei os olhos de meu pai — disse eu. — E,
dizia minha tia, o caráter de minha mãe.
Ela sorriu, e então comeu seu primeiro biscoito.
Conversamos por mais algum tempo. Mme.
Vukmir falou-me de sua família, dos pais que haviam
ficado na Europa, das propriedades que possuíam e de
como ela havia se afastado deles após seu casamento.
Era agradável estar ali naquela tarde ensolarada,
contemplando as nuvens brancas no horizonte enquanto
aquela elegante mulher me concedia sua atenção. Eu me
sentia privilegiado, como se ela fosse uma personalidade
ilustre. Descobri, afinal, que todas as minhas impressões
iniciais a seu respeito eram pura ilusão, que na verdade
ela era uma mulher não só muito inteligente, mas dona de
uma mente livre. Não parecia mais ser uma religiosa
fanática, tal como me pareceu no princípio, mas dona de
si, livre de tudo o que pudesse estorvar a razão ou o
discernimento da vida. Sozinha naquela casa e em posse
de toda a fortuna de seu falecido marido, ela levava uma
vida de luxo comedido. Desfrutava de uma solidão que eu
próprio não sei se suportaria levar sem que desejasse, por
força da necessidade, preenchê-la com uma nova relação
amorosa. A ela parecia, porém, tão natural a solidão da
viuvez quanto pareceria a uma idosa que já se tivesse
convencido de que a morte estava a sua espera num
futuro demasiadamente próximo. Ela me contou que não
A MENINA NO QUARTO 51
voltou a se envolver com outro homem depois de seu
marido. Espantava-me que uma mulher que ficou viúva
em tão curta idade não tivesse amado outro homem, mas
ela realmente parecia imune ao amor. Demonstrou-se
uma mulher forte e independente; era esta a nova imagem
que ela me transmitia, à qual passei a admirar.
A despeito de todas essas revelações, Nadia
Vukmir ainda me parecia abstrusa. Tive a impressão de
que, por mais que soubesse os detalhes de sua vida
pessoal, a parte mais essencial de seu caráter
permaneceria oculta. Até mesmo quando sorria, seus
olhos cinzentos como nuvens de chuva conservavam uma
frieza misteriosa.
Naquela tarde, quando retomava meu trabalho
poucos minutos após meu diálogo com Nadia Vukmir, vi
o contorno de alguém de pé em uma das janelas do
segundo piso. O vulto estava diante do vidro, imóvel, me
observando. Não pude ver seu rosto, mas não tive dúvida
de que era uma menina. A mesma que eu vira da primeira
vez. O que mais me intrigava era a forma como ela se
afastava da janela quando percebia que eu a tinha visto,
como se, amedrontada, tentasse se esconder de mim.
Todavia, ocorreu-me que a timidez era, afinal, a
característica mais previsível, em se tratando de uma
criança que fosse mantida presa daquela maneira.
Espantava-me que a mesma mulher com quem uma
hora antes eu tomara chá e conversara, tão educada,
inteligente e agradável, fosse, todavia, capaz de isolar a
própria filha do mundo. Somente duas explicações me
52 DAVI VALE
pareceram plausíveis: que Júlia tivesse alguma
deformidade física tão horrível que sua mãe preferisse
escondê-la das pessoas, ou que sofresse de alguma
doença mental. Ambas as hipóteses explicavam o fato de
a Sra. Milovan estar sempre no quarto com a menina, pois
Júlia precisaria de cuidados muito especiais. Em todo
caso, o isolamento me parecia cruel até mesmo em tais
circunstâncias.
A MENINA NO QUARTO 53
7.
56 DAVI VALE
na face aquela expressão que temos quando somos
flagrados em momento inoportuno. Saíram caminhando,
cada uma para um lado diferente, sem nem ao menos
terminarem o que falavam. Senti que minha chegada
havia sido intempestiva. Mais do que isso, pareceu-me
evidente que elas falavam de algo que eu não poderia
saber, ou talvez até falassem sobre mim. Claro que não
havia qualquer motivo para supor que era de mim que
elas falavam (poderiam estar a discutir um assunto de
mulheres, por exemplo), mas minha imaginação sempre
foi muito fértil. De qualquer forma, ignorei-as e fui
escolher um livro na prateleira para ler. Escolhi Morte no
Nilo, então me sentei numa de couro preto que fazia
barulho quando eu me movia sobre ela, mas que, apesar
disso, era bastante confortável.
Comecei a ler. Poucos minutos bastaram para que
eu mergulhasse na história. Embalado pelo silêncio e a
paz corriqueira da casa, avançava página por página, lia
rapidamente enquanto tentava prever os acontecimentos
seguintes. De repente, algo me despertou da leitura: tive a
súbita impressão de que havia mais alguém na biblioteca
além de mim. Olhei para trás, em direção à estante nos
fundos, e tive quase certeza de que alguém se escondia do
meu olhar. Havia no fundo da biblioteca uma porta que
dava para outro cômodo, a qual estava semiaberta; tive
certeza de que alguém me espionava através da fresta.
Levantei-me da poltrona, larguei o livro no assento e
caminhei até a porta. Ia empurrá-la, mas antes que eu a
tocasse ela sozinha se moveu. Paralisei assombrado
A MENINA NO QUARTO 57
enquanto a porta foi se abrindo e revelando aos poucos a
imagem que se ocultava atrás dela.
Primeiro vi seus olhos grandes e profundos, quase
cadavéricos, que me fitaram tão arregalados quanto os
meus. Pertenciam a uma idosa de feição severa, cabelos
prateados e tez pálida. Com as sobrancelhas grossas e
emendadas, o nariz pontudo, as bochechas muxibentas e
uma terrível verruga sobre a boca murcha, na ponta da
qual cresciam pelos espessos e grisalhos, ela era
provavelmente a mulher mais feia que eu já tinha visto.
Tinha por volta de 1m60 de altura. Seus cabelos finos e
frágeis estavam presos de forma displicente e vários fios
soltos caíam-lhe na testa enrugada. Seu pescoço parecia
pré-histórico com tantas e tão profundas rugas, e com a
pele tão cheia de pelotas repugnantes. Os olhos eram de
um azul pálido, embaciado. Escuras e pesadas bolsas de
pele se formavam sob os olhos, especialmente no lado
direito. Usava um vestido preto daqueles que as
governantas costumavam usar, gola e avental brancos, e
era sem dúvida a única coisa nela que não estava
tremendamente envelhecida.
— Que susto o senhor me deu! — disse a velha,
revelando a rouquidão gutural de sua voz. Seu hálito
parecia sepulcral, não exatamente o mau hálito de quem
não escova os dentes, mas o tipo de halitose que só têm
os doentes. Seus dentes pareciam perfeitos, mas logo se
via que eram na verdade uma dentadura.
— Desculpe por tê-la assustado, senhora — falei,
já começando a me recuperar do meu próprio susto.
58 DAVI VALE
Suspeitei que o susto dela não tinha sido nem
metade do meu. Na penumbra daquele início de noite,
não era de surpreender que eu me assustasse com ela.
— Deve ser o novo jardineiro — observou a
senhora, ríspida. — Sou Vera Milovan, a governanta — e
apertamos as mãos.
— Muito prazer. Sou Victor Silva.
— Sim, já estou sabendo. Agora, se o senhor me
der licença, preciso passar pela porta.
— Claro — respondi, afastando-me do caminho.
Ela então passou por mim e foi andando pela
biblioteca, enquanto eu a observava. Andava de um jeito
quase cômico, como se suas pernas não tivessem
articulações, fazendo com que seus passos fossem muito
curtos. Deixava no ar o cheiro estonteante de pomada
para dor.
A MENINA NO QUARTO 59
8.
60 DAVI VALE
sensível. Sobretudo Helena, que não parava de me avaliar
com aqueles olhos brilhantes.
— O que houve com o Sr. Gonçalves, o antigo
jardineiro? — perguntei, a propósito do assunto.
— O Sr. Gonçalves faleceu há um ano —
respondeu Helena com certa melancolia.
— Foi encontrado morto ao amanhecer — rematou
Caroline com a voz carregada de mistério, como se
narrasse um conto de suspense. — Morreu enquanto
dormia. No dia de sua morte, ele demorou a sair para
trabalhar, e como isso não era habitual, a Sra. Milovan foi
saber o motivo da demora. Ela o encontrou deitado na
cama com o ventre para cima, gelado como uma pedra,
mas os olhos fechados e a face serena demonstravam que
não havia sofrido.
— Poupe-nos dos detalhes, Carol — protestou
Helena.
— Pois o Sr. Silva parece bem interessado.
— Pois ele vai ficar muito mais interessado quando
souber que dorme na mesma cama onde o homem
morreu.
— Helena! — Raquel a repreendeu. — Você
precisava dizer uma coisa dessas?
— Como é? — indaguei, ainda digerindo a
informação.
— Como não tinha cama disponível para ser
colocada em seu quarto, trouxemos a que estava na velha
cabana — explicou Helena.
A MENINA NO QUARTO 61
Lembrei-me de como a cama não combinava com o
restante da mobília em meu quarto. Realmente, parecia
ter sido trazida de outro lugar.
— Não se preocupe — acudiu Caroline. —
Logicamente os lençóis e os cobertores foram queimados.
Eu mesma os queimei. Até mesmo o colchão foi
substituído. Apenas a cama foi trazida, logicamente
depois de ser limpa. A madame não queria gastar com
uma nova cama. Mas por acaso o senhor tem medo de
fantasmas?
Eu não soube se ela estava sendo sarcástica, pois
seu olhar foi neutro. Em todo caso, a forma como me
dirigiu a pergunta fez parecer que ela não acreditava em
fantasmas, tampouco em qualquer outra coisa que
remetesse ao sobrenatural.
— Claro que não! — retorqui com uma convicção
suspeita. Ocorria que, depois da noite anterior, eu já não
sabia em que acreditar.
Como ninguém mais quisesse falar do morto,
mudamos de assunto. Helena não parava de me olhar, e
como estávamos defronte um do outro, era inevitável
olhá-la também. Caroline e Raquel também me olhavam
com certa frequência, embora não tanto quanto Helena, e
no caso da primeira, era sempre com o olhar dotado de
alguma timidez.
Caroline era uma de natureza mais reservada, de
sorriso contido e gestos cuidadosos. Era de poucas
palavras e, quando falava, emitia tão pouco som que era
preciso prestar bastante atenção para entendê-la. Já
62 DAVI VALE
Helena era de natureza totalmente oposta. Quanto a mim,
no que se referia à Helena, por vezes me vi confuso
diante de suas atitudes: seus modos sorridentes e sua
natureza comunicativa tornavam difícil discernir se ela
estava me dando algum tipo de atenção especial, ou se era
apenas sua forma carismática de tratar todas as pessoas.
Conversamos ali durante um bom tempo, e foi
bastante agradável. Eu sentia que estava me tornando
mais íntimo das moças. Começávamos a nos entender
melhor e perdíamos a vergonha de dizer certas coisas e
agir de certas maneiras. Comecei a me soltar, a ser mais
natural, na medida em que ia me sentindo seguro de ser
eu mesmo.
Após o jantar, sucedeu-se uma coisa incomum. Era
já perto da hora de dormir e as luzes da maioria dos
cômodos estavam apagadas. Eu caminhava em direção ao
meu quarto quando encontrei Nadia Vukmir na sala
principal. Havia apenas um abajur aceso ao lado de sua
poltrona, cuja luz lhe incidia pela direita. Todo o restante
do cômodo estava escuro, ainda mais que as cortinas se
achavam fechadas. Nadia Vukmir olhava fixamente para
frente, para o breu. Como não esboçasse qualquer reação
em resposta à minha chegada supus que não havia me
notado.
— Madame? — eu chamei, mas ela não respondeu,
apenas continuou ali estagnada, as pernas juntas e os
braços caídos sobre os apoios da poltrona. Usava vestido
preto de lã e seus cabelos estavam soltos. Não era comum
vê-la de cabelos soltos. Aproximei-me um pouco mais.
A MENINA NO QUARTO 63
— Está tudo bem? — voltei a dizer, e novamente
não obtive qualquer reação.
A ausência de retorno começava a me deixar muito
preocupado. Cheguei ainda mais perto dela e pude ver
que suas unhas estavam cravadas no couro da poltrona.
Eu estava já ao seu lado. Conseguia escutar sua
respiração, que estava curta e pesada. Seus olhos
lacrimejavam um pouco. O que realmente me assustou,
porém, foi sua fisionomia: tinha os olhos arregalados e
vidrados, os dentes cerrados com força, o sobrolho
franzido e os lábios deformados por uma espécie de
pranto contido, como se sentisse ódio de si própria ou se
arrependesse profundamente de algo. Parecia que não
estava em si, mas mergulhada numa espécie de transe,
desligada do próprio corpo. Para mim, foi inédito vê-la
naquele estado espantoso. Fiquei tão preocupado que tive
vontade de tocá-la. E foi exatamente o que fiz: toquei-a
no ombro esquerdo com muita cautela — mas tão logo a
toquei, ela voltou subitamente seu rosto soturno em
minha direção, fitando-me com o olhar mais sombrio que
eu já tinha visto em uma mulher.
— Me deixe em paz! — disse ela de forma ríspida,
com uma rouquidão lacrimosa.
Recuei, embaraçado, e fiquei olhando de longe para
ela por alguns segundos, sem saber exatamente se ia
embora ou se continuava ali para prestar algum tipo de
auxílio. Ela continuou me fitando com um olhar sombrio
até que eu saísse da sala, como que a dizer-me que não
me queria por perto.
64 DAVI VALE
9.
66 DAVI VALE
verifiquei se estava trancada e confirmei que permanecia
da mesma forma como eu a havia deixado — fato que me
assombrou ainda mais, pois, diante da sensação de que
havia mais alguém em meu quarto, minha mente só
conseguia chegar à conclusão de que eu acabara de ser
visitado por um fantasma.
Naquela noite, eu não conseguiria dormir. Aliás,
sequer apaguei a luz. Fiquei de vigília por toda a
madrugada, esperando pelo reaparecimento do espectro,
ou fosse o que fosse aquilo que me atormentava,
completamente convencido de que alguém — ou alguma
coisa — estivera chorando no interior do meu quarto,
bem perto de mim, tão perto que até pude sentir sua
respiração. Dada a clareza com que minha audição havia
captado o choro, não era possível que eu estivesse
enganado e tudo não passasse de imaginação — não,
aquilo era real. Eu escutara o choro tão nitidamente
quanto escutaria o som de minha própria voz. O pranto
lamentoso ainda retumbava em minha memória e, por
vezes, eu me enganava ao confundir essa recordação com
um som real. Nesses momentos de devaneio, assomava-se
em mim tamanho assombro que eu sentia vontade de ir
embora daquela casa.
No decorrer da noite, tomado pela obcessão, saí
várias vezes do quarto e perambulei pela casa escura.
Novamente fui até a entrada do porão, considerando a
hipótese de descer a escada e dar uma olhada lá embaixo
— mas eu estava certo de que aquele choro não poderia
ter vindo dali. Caminhei até a cozinha, a biblioteca, o
A MENINA NO QUARTO 67
gabinete, as salas e todos os cômodos do primeiro piso,
sempre muito silenciosamente, cm os sentidos aguçados e
o coração acelerado.
De certo modo, o medo me incentivava a buscar
ainda mais ensejos para o medo. O lado cético de minha
consciência me dizia que tudo devia ter alguma
explicação razoável, que eu precisava averiguar a questão
com calma, que seria um retrocesso intelectual entregar-
me à crença em fantasmas. Entretanto, um impulso ainda
maior me induzia ao exato oposto. Tentei me manter
apegado à minha razão, reconhecendo que a superstição é
fruto da ignorância.
Assim, pus-me a tentar analisar a questão da forma
mais sensata possível. Primeiramente, indaguei se apenas
eu escutava aquele choro ou se ele era ouvido pelas outras
ocupantes da casa — isto é, se apenas meu quarto em
particular tinha o privilégio desse espetáculo assombroso.
Tomei a resolução de, ao amanhecer, perguntar a alguma
das empregadas acerca disso.
Mas então me ocorreu que não dava para confiar —
não ainda — na resposta que elas me dariam, visto que
meu instinto me dizia que nenhuma das empregadas havia
sido completamente sincera comigo. Era preciso
descobrir a verdade de uma forma indireta, tentar arrancar
informações das empregadas sem que elas se dessem
conta disso. Obviamente, essa desconfiança quanto à
sinceridade das empregadas se originava não de um
instinto puramente irracional, tampouco numa espécie de
pressentimento abstrato, mas de pequenos acontecimentos
68 DAVI VALE
que eu presenciara no decorrer dos últimos dias. Por
exemplo, notei que todas as vezes que lhes falava acerca
de Júlia, elas desviavam o olhar num impulso comum aos
mentirosos. Isso sem contar com a maneira como sempre
se esquivavam do assunto, como se quisessem me
desencorajar a averiguar a questão. Somava-se a isso a
forma como Caroline e Raquel interromperam o diálogo
na biblioteca quando as surpreendi. Parecia inegável que
estavam mantendo confidências de mim.
Lembrei-me então de quando Helena me revelou
que eu dormia na mesma cama onde faleceu o Sr.
Gonçalves. Por alguma razão, a ideia de ocupar a cama de
um morto me incomodava. Minha mãe sempre dizia que
os móveis e utensílios de uma pessoa morta costumam
aprisionar parte de sua energia vital, como se tudo o que
possuímos durante nossa existência se tornasse parte de
nosso ser, como se fôssemos não apenas o que somos,
mas o que temos. Contava-me a história de uma amiga
sua que comprou um móvel usado, do qual não sabia a
procedência, instalou-o em seu aposento e, ao cabo de um
mês, ficou louca e se matou com uma corda no pescoço.
Embora não fosse possível estabelecer qualquer relação
entre a morte da mulher e a posse daquele móvel, a uma
pessoa facilmente impressionável como minha mãe era
inevitável chegar a semelhante conclusão. Ela era
supersticiosa e tinha centenas de histórias semelhantes
gravadas na memória, as quais fazia questão de contar
sempre que se tornavam propícias à ocasião de alguma
bronca. Não que eu acreditasse naquilo — para ser
A MENINA NO QUARTO 69
franco, nunca acreditei. Ao menos, não até aquele dia.
Meu insucesso na busca por explicações plausíveis para
os choros assombrosos em meu quarto me fazia ceder a
explicações alternativas que eram, naturalmente, menos
racionais.
Cochilei algumas vezes no decorrer da madrugada,
mas eu sempre acordava assustado. Por volta das três
horas da manhã, despertei de uma espécie de pesadelo
bizarro, então fiquei ainda mais perturbado e não
consegui cerrar os olhos. Perambulei pelo quarto e bati
nas paredes em busca de partes ocas, esperando encontrar
qualquer coisa que pudesse dar uma explicação racional
aos acontecimentos, ou alguma evidência de que alguém
estava pregando uma peça em mim com o propósito de
me ver amedrontado. Poderia eu estar sendo vítima de
uma brincadeira de mau gosto? Duvidava profundamente
dessa hipótese, já que ninguém na casa parecia ser do tipo
que se diverte com brincadeiras mofinas. Em todo caso,
precisava descansar, pois um homem não pode viver bem
sem ter as merecidas horas de sono que seu organismo
exige. Voltei a me deitar, porém demorei bastante tempo
para conseguir pegar no sono.
70 DAVI VALE
10.
72 DAVI VALE
sentimento de impotência. Era possível escutar o som
ambiente do vento, das árvores e até dos pássaros, mas
antes de me acalmarem, esses sons só recrudesciam meu
desejo de poder me livrar daquela paralisia. Tentei
acreditar que estava sonhando, mas eu sabia que não era
um sonho. Tive a assombrosa sensação de que ficaria
paralisado pelo resto da vida. Num instante de alívio,
consegui mexer um dos dedos da mão, em seguida todo o
braço e então o corpo. Por fim, eu estava livre.
Minha camisa grudara-se ao meu corpo e, na nuca,
o suor encharcava a borda dos meus cabelos. Minhas
mãos ainda estavam trêmulas. Tentei recobrar a calma.
Com o máximo de cautela, reconsiderei o que acabara de
me acontecer. Quanto tempo aquela paralisia havia
durado? Poderiam ter se passado alguns segundos ou
algumas horas, e no entanto eu não saberia dizer.
Paralisado como eu estivera, o tempo me transcorrera
sem forma definida, tornara-se incalculável. Eu já tinha
lido a respeito da paralisia do sono, condição em que a
mente acorda antes do corpo e, só por um momento, a
pessoa se encontra incapaz de realizar qualquer
movimento, pois seu corpo ainda está em estado de
hibernação. Seria isso então que me acontecera? Era
difícil dizer, já que nunca antes havia experimentado
coisa tão terrível. Ademais, podia muito bem ser possível
que as experiências de paralisia do sono fossem
completamente diferentes daquela que senti, e no entanto
isso nunca poderia ser confirmado, uma vez que a
experiência individual é subjetiva.
A MENINA NO QUARTO 73
Seja como for, minha experiência talvez pudesse
ser colocada lado a lado à sensação da morte. No instante
em que se está morrendo, o que se sente não pode ser
muito diferente: perceber a consciência se perder num
abismo escuro, sentir que a mente se desconectou do
corpo, que romperam-se as linhas que nos mantêm presos
a nós mesmos.
Como de hábito, naquele dia almocei sozinho. Em
seguida, fui para a biblioteca para matar a próxima meia
hora enquanto meu organismo fazia a digestão. Sentei-me
no sofá e me esparramei. Embora tivesse tirado um
cochilo no jardim, ainda me sentia sonolento. A casa
permanecia silenciosa como de costume, sem sinal das
empregadas ou da madame. Me perguntei onde elas
estariam.
Resolvi ler um livro, pois talvez fosse bom distrair
a mente. Escolhi um romance policial e me pus a ler o
resumo, conferindo se a história me interessaria. Porém,
fui interrompido antes mesmo de me decidir.
— Aí está o senhor — ouvi alguém dizer atrás de
mim.
Como estivesse de costas para a porta, tive de olhar
por sobre os ombros. Helena entrava no cômodo com seu
jeito de andar, sorrindo. Invadiu-me um sentimento
agradável e reconfortante, pois já me familiarizava com
ela mais do que com as outras. Helena usava um vestido
rosa que lhe batia acima dos joelhos, um tanto curto para
aquela época do ano. A luz intensa da tarde penetrava
74 DAVI VALE
pelas janelas da biblioteca e lhe incidia na face, corando
seu rosto e fazendo brilhar seus cabelos negros.
Sentou-se no braço do sofá onde eu estava, e por
pouco não se sentou em meu braço. Suas pernas brancas
encostaram-se às minhas. Estavam cálidas. Trouxe
consigo um suave cheiro floral que emanava da pele ou
da roupa.
— Está descansando? — perguntou-me ela.
— Estou apenas matando hora antes de voltar ao
jardim. Acabei de almoçar.
Helena sentou então ao meu lado. Com sua maneira
faceira de se sentar, seu vestido se moveu pelas pernas e
foi parar quase no meio das coxas. Suas pernas eram
brancas, a pele lisa e os joelhos delicados. Não usava
meias, e nem precisaria, pois sua pele era perfeita.
Lembrei-me de quando a vi de camisola, de seu corpo
quase nu, e de que agora aquele corpo estava perto do
meu.
— Está tudo bem? — ela perguntou. Eu estava tão
distraído com esses pensamentos que nem escutei a
pergunta, então ela a repetiu.
— Sim — respondi. — Por quê?
— É que o senhor parece… cansado. — Ela olhou
meu livro e, sem nada dizer, levantou-o de modo que
pudesse ver a capa. — Fico surpresa em saber que o
senhor tem o hábito da leitura — disse, e largou-o da
mesma forma brusca como o levantou.
— Eu não a culpo por sua surpresa, pois sou de
origem modesta.
A MENINA NO QUARTO 75
— Deve-se então afirmar que a leitura é um hábito
exclusivamente dos ricos?
— No geral, eu diria que sim. Por questões
históricas e sociais, é comum que os ricos se dediquem ao
estudo, enquanto os pobres ao trabalho braçal.
— Talvez seja verdade. — Helena refletiu por
alguns instantes. — Isso me entristece. Digo, pensar em
como a vida é mais fácil para uns e difícil para outros.
— Nascer é uma questão de sorte ou azar. Como
num jogo, você não controla se vai nascer rico ou pobre.
— A vida é tão injusta!
— Não creio que a vida seja injusta. A vida é
indiferente. O funcionamento do sistema social é que é
injusto.
Houve então um breve silêncio. Olhei para Helena,
que parecia ter se entristecido repentinamente com a
nossa conversa.
— Qual o problema? — perguntei a ela.
— Me entristece pensar nessas coisas… digo, na
injustiça do mundo.
Ela ajeitou os cabelos, fazendo emanar deles o
cheiro agradável de xampu, em seguida mudou de
posição e fez com que seu braço tocasse o meu. Sob a
ação do seu toque, minha respiração ficou mais curta e
meu pulso disparou. Eu sentia como se entre nós, por
intermédio daquele leve contato corporal, se
estabelecessem sutis conexões de energia.
Após um curto período em silêncio, decidi
perguntar:
76 DAVI VALE
— Durante o tempo em que mora aqui, você já
escutou algum som incomum durante a noite?
— Que tipo de som?
— Qualquer som que te deixasse assustada. Uma
voz, talvez. Qualquer coisa que não pudesse ser explicada
racionalmente.
— Acho que não — ela respondeu sem muita
convicção. Então, olhou para mim e sorriu, franzindo a
testa e inclinando a cabeça, como se lhe ocorresse uma
ideia engraçada. — Por acaso o senhor ouviu alguma
coisa estranha? — perguntou em tom levemente
sarcástico.
Refleti antes de dar a resposta. Tentava decidir se
era razoável contar a verdade.
Helena me olhou diretamente nos olhos, virando o
corpo em minha direção e apoiando uma das pernas no
assento. Estava ainda a sorrir, mas então assumiu uma
fisionomia muito grave, de preocupação.
— É sério? — indagou, como se eu já tivesse
respondido. — O que escutou?
— Eu não disse que escutei.
— Nem precisa. Seus olhos já disseram.
— Nada muito importante, para ser franco.
— Se fosse “nada muito importante”, o senhor nem
teria se dado ao trabalho de falar a respeito, hã?
— São apenas alguns barulhos esquisitos que tenho
escutado em meu quarto durante a noite.
— Eu acho que sua imaginação o está assustando
— disse ela, tocando a mão em meu ombro. — Não se
A MENINA NO QUARTO 77
esqueça de que a casa é antiga e faz barulhos de vez em
quando. Às vezes os rangidos até parecem vozes. Mas
não deixe que sua imaginação o assuste.
Eu sabia que aquilo não se aplicava ao meu caso,
mas não quis discutir com ela. A informação de que
precisava eu já tinha conseguido: Helena não havia
escutado os choros. Seria impossível que encanamentos
velhos fizessem semelhante barulho, e ela saberia disso
caso houvesse escutado o que escutei.
— Acho que você tem razão — concordei. — Da
próxima vez me lembrarei disso. Em todo caso, o que
sinto não é medo, mas apenas curiosidade.
— O senhor não é o único a se incomodar com os
sons da casa. Todos passamos por isso no começo. Às
vezes, eu tinha a impressão de que a casa possuía vida
própria. Odiava dormir sozinha, temia o escuro… Minha
sorte era que a Carol vinha dormir comigo quando eu
estava assustada. Mas não se preocupe, Sr. Silva, com o
tempo o senhor vai se acostumar.
O relógio anunciou 13 horas, espalhando pela sala
um barulho agudo, então silenciou-se. Restou apenas seu
tiquetaquear cadenciado que, passados alguns segundos,
tornava-se apenas um som ambiente imperceptível.
Helena recostou-se à poltrona e ficou quieta. Meu
sono havia sumido. Iniciei a leitura do livro. Pouco
depois, senti o peso de sua cabeça em meu ombro. Fui
envolvido por uma sensação agradável de desejo, o
coração acelerado e um sutil arrepio. Desejei abraçá-la,
mas, temendo pela fragilidade daquele instante, mantive-
78 DAVI VALE
me imóvel. Fingi ainda ler, mas já não prestava atenção
em nada que não fosse sua cabeça em meu ombro e o
cheiro dos seus cabelos. Helena parecia ler o livro junto
comigo. Ficamos assim por alguns minutos. Acabei por
retomar a leitura, não deixando, porém, de sentir
profundamente cada instante, cada segundo que se
passava, absorvendo a imagem de nós dois como se a
desenhasse, desejando que o tempo estagnasse.
Começava a ser dominado por um forte desejo de
beijá-la. Simultaneamente, pensava no fato de sermos
ambos funcionários da família. Se eu a beijasse e isso
chegasse aos ouvidos de Nadia Vukmir, certamente seria
demitido — e eu precisava do trabalho.
No entanto, era impossível não querer arriscar.
Sentindo o calor de seu corpo, seu cheiro doce e o toque
de sua mão macia em meu peito, resistir ao impulso de
desejar beijá-la era como resistir à fome ou à sede. Tomei
então a resolução de beijá-la — sim, eu a beijaria! Já não
me importava com as consequências. Naquele instante,
todas as coisas se tornaram insignificantes, exceto aquela
garota de olhos negros, à qual eu estava prestes a beijar
— talvez não a beijasse ali, mas em algum outro
momento. Talvez eu me arrependesse daquilo. Porém, a
meu ver, é preferível se arrepender de algo que se fez do
que de algo que se deixou de fazer.
E então, no instante em que fui dominado por essa
ideia, Helena levantou a cabeça do meu ombro, deixando
nele um vazio incômodo, como se houvessem tirado um
pedaço de mim.
A MENINA NO QUARTO 79
— Creio que já seja hora de voltar ao trabalho —
disse ela, levantando-se do sofá.
Quando me levantei para cumprir a regra da
cortesia, ela me deu um beijo no rosto. O movimento foi
tão inesperado que cheguei a me assustar. Ela saiu
caminhando com aquela sua maneira ao mesmo tempo
sensual e faceira de andar. Pude sentir aquele beijo em
minha bochecha pelo resto da tarde.
80 DAVI VALE
11.
82 DAVI VALE
espelho colossal se posicionava atrás de uma cômoda,
sobre a qual havia o solitário retrato de uma criança.
A menina do retrato era, simultaneamente, familiar
e estranha: mesmo nunca a tendo visto, sentia como se a
conhecesse de alguma forma. Estava de pé em um
gramado, usando vestido branco e sapatinhos pretos, as
mãos para trás do corpo, os cabelos bagunçados pelo
vento e os olhos semicerrados diante da luz do sol. Estava
sorrindo e tinha as bochechas gordinhas e salubres. Seus
olhos eram claros e brilhantes, aparentemente azuis,
semelhantes a um par de opalas.
Apesar de ter visto, horas antes, Júlia na janela de
seu quarto, não consegui ter certeza de que fosse a mesma
menina que se via na fotografia. Não obstante, não
acreditei que assim não o fosse. Salvo a palidez, a menina
na janela e a menina da foto pareciam a mesma. O
confinamento a fizera mal, evidentemente.
— É Júlia? — perguntei, apontando para a
imagem.
— Sim — respondeu a madame, sem cerimônia e
sem me olhar. — Deixe as sacolas aqui. Obrigada, agora
pode se retirar.
Saí do aposento da madame e ouvi atrás de mim o
baque da porta. Fiquei um instante parado ali, defronte da
escada, observando a forma como a luz cinzenta do céu
nublado tornava a casa sombria. A ventania fez com que
as gotas da garoa batessem no vidro da janela. Ao longe,
escutei o som das árvores agitadas com o vento.
A MENINA NO QUARTO 83
Naquele instante, ocorreu-me uma ideia
mirabolante. Era arriscado, mas eu não queria desperdiçar
a oportunidade. Ao invés de ir às escadas, fui em direção
aos demais aposentos. Todas as portas estavam fechadas,
o que causava uma impressão sinistra. Saí apoiando a
orelha nas portas, uma a uma, na tentativa de escutar
qualquer som no interior dos cômodos. Se havia algo de
imoral em minha atitude, naquele momento eu não estava
me importando — tudo o que me interessava era
descobrir qual daquelas portas acessava o quarto de Júlia.
Infelizmente, não obtive qualquer resultado. Não
importava o quanto eu pressionasse a orelha contra as
portas, não conseguia escutar qualquer ruído no interior
dos quartos. Era como se todos eles estivessem vazios.
Mas eu sabia, ou pensava saber que Júlia estava em um
daqueles quartos. Tinha de estar. Nada faria sentido se
todos os quartos estivessem desocupados.
84 DAVI VALE
12.
A MENINA NO QUARTO 85
investigar mais. Uma garotinha inocente poderia estar
precisando de ajuda e eu não podia ignorar isso.
Fui alimentando essa ideia por toda a tarde até que,
durante o jantar, eu não conseguisse pensar em outra
coisa. Tinha planos de interrogar as empregadas no
decorrer da refeição, mas como ninguém podia saber que
eu estava investigando, era preciso engendrar uma forma
de fazer isso sem que elas desconfiassem. Introduziria as
perguntas nos diálogos à mesa de forma discreta, sem
demonstrar muito interesse pelo assunto, de modo que
elas me dessem as informações gradualmente, então eu as
reuniria até que tivesse material suficiente para fazer
deduções.
— Por que está tão calado hoje? — Helena me
perguntou de repente.
As criadas conversavam sobre alguma coisa, mas
eu nem estava prestando atenção. De fato, estava mesmo
muito quieto. Frequentemente fico calado quando estou
preocupado, e isso logo me denuncia.
— Estive pensando: por que a Sra. Milovan não se
senta conosco? — esquivei-me da pergunta. — Quer
dizer, ela também é uma empregada, não?
— A governanta come junto com a madame —
respondeu Raquel.
— E somente as duas se sentam à mesa? Isto é, a
filha da madame não se senta com elas?
— A Srta. Júlia nunca sai daquele quarto — disse
Caroline com naturalidade, e enfiou um pedaço de frango
na boca.
86 DAVI VALE
— Isso é verdade — confirmou Helena. — Por
exemplo, eu, sendo camareira, arrumo todos os quartos da
casa, exceto o quarto da Srta. Júlia, o único no qual não
posso entrar. A governanta é quem arruma a cama da
menina.
— Isso não faz sentido! Quer dizer, ninguém sabe
se ela é uma criança saudável e tudo. Por que a madame a
mantém oculta?
Lá estava eu sendo impulsivo novamente. Sem
querer, estava abrindo o jogo. Planejara fazer perguntas
indiretas, mas acabava de me precipitar.
— O senhor realmente ficou curioso com isso —
observou Helena. E, inclinando-se, falou sussurrando: —
Eu não o culpo. Mas tome cuidado, porque a madame te
expulsaria daqui se descobrisse que está bisbilhotando.
Claro que o alerta me deixou assustado. Eu estava
muito curioso e preocupado com a criança. No entanto,
eu precisava daquele trabalho e não queria ser expulso.
— Não pretendo me intrometer nos assuntos da
família — expliquei. — Se passei essa impressão, me
perdoe. Só que a situação da criança me intriga.
— Algum motivo deve existir para isso — disse
Raquel. — A madame não faria coisa parecida se a tanto
não fosse forçada. Quem garante que a menina não tenha
uma doença contagiosa?
— Se isso fosse verdade, a governanta também não
poderia entrar no quarto — observou Caroline.
A MENINA NO QUARTO 87
Olhei-a nesse instante, contente por sua
observação. Ela dissera exatamente o que eu pretendia
dizer.
— É fato que ela não deve ter uma doença
contagiosa — confirmei. — Mas quem sabe, uma
deformidade?
— É uma boa hipótese — disse Caroline. — Mas
não é isso, pois sua aparência é tão normal quanto a de
qualquer criança.
— Então vocês já a viram — constatei.
— Não dissemos que nunca a vimos — interveio
Helena —, só que não a podemos ver atualmente. Não foi
sempre assim. Houve tempos em que ela brincava no
quintal, livremente.
— O que aconteceu para que as coisas mudassem?
— indaguei, interessado.
— Quem sabe? — Helena deu de ombros.
Um silêncio se sucedeu.
— Talvez ela tenha desenvolvido uma doença
mental — sugeri.
— Em uma idade tão tenra? — Caroline soergueu a
sobrancelha.
— Seja como for, deve haver alguma explicação —
insistiu Raquel, com um olhar ameaçador na direção de
Caroline. — E não cabe a nós sabê-la.
Raquel me pareceu resoluta em sua posição. O
assunto acabou se encerrando, e começamos a falar de
outra coisa.
88 DAVI VALE
Falávamos de um tema qualquer, não me recordo
qual, quando Helena, que estava sentada ao meu lado, ao
expor sua opinião, apoiou a mão em minha coxa enquanto
falava, aparentemente distraída. Sua mão permaneceu ali
por vários segundos, muito próxima da virilha, até que de
repente se afastou, deixando em minha pele o calor
remanescente. Aquilo despertou meus desejos mais viris.
O toque daquela mão quente sobre o tecido liso das calças
fez meu sangue fervilhar, e passei o resto dos minutos
seguintes me perguntando se ela faria aquilo novamente.
Mas isso não voltou a acontecer.
Me dei conta então de que meus pensamentos a seu
respeito haviam se modificando completamente. Helena
já não despertava em mim aquela mesma admiração
inócua que despertara no começo, mas eu passara a
desejá-la de uma forma muito mais intensa. Tudo
começou quando, por acidente, eu a vi de camisola, e essa
visão plantou em mim uma semente de malícia que foi
crescendo até dominar minha mente. Nosso encontro
daquela tarde só aumentou esse desejo.
Por outro lado, Caroline perdia espaço em meus
pensamentos. A admiração que ela me despertara no
início ia se atenuando na medida em que meus
pensamentos eram dominados pela imagem de Helena.
Olhei Caroline por algum tempo enquanto ela permanecia
atenta ao que Helena dizia. Estava, observei, com o
semblante mais salubre, pois decerto havia se curado da
gripe. As maçãs do rosto estavam coradas novamente, e
A MENINA NO QUARTO 89
seus olhos pareciam mais atentos ao que se passava ao
redor.
Subitamente ela olhou para mim e percebeu que era
avaliada, o que a princípio me deixou embaraçado, mas
em seguida percebi que ela não estava incomodada com
minha avaliação. Sorriu quando percebeu que eu a
olhava. Havia em seu olhar e no rubor de suas bochechas
algo de voluptuoso. Ela não era, afinal, tão bela quanto
me parecera à primeira vista, e no entanto eu começava a
notar certa sensualidade que não havia percebido antes,
embora continuasse sendo a mesma Caroline de sempre,
com o mesmo nariz protuberante, a mesma pele rosada,
os mesmos olhos cor do céu de verão, os mesmos cabelos
dourados e bem tratados, e os mesmos lábios rosados e
delicados. Percebi, pois, que a mudança não ocorrera
nela, mas em mim. Era minha perspectiva a seu respeito
que havia mudado.
Retribuí o sorriso, em seguida voltei a me
concentrar nas palavras de Helena. Naquela noite, a
camareira estava empolgada e falava feito um papagaio.
90 DAVI VALE
13.
92 DAVI VALE
— Por que não?
— Nunca tive interesse — ela falava sem parar de
trabalhar.
— É sempre bom se divertir.
— Não há nada de interessante para se fazer neste
vilarejo.
— De fato — concordei. E, depois de uma pequena
pausa: — Sua família é daqui?
— Minha família? — Ela soltou uma risada
forçada, carregada de sarcasmo. — Não tenho família.
Esta é a minha família — e estendeu a mão, indicando a
extensão da casa.
— Mas, e antes daqui? — insisti. — Você me disse
que mora aqui desde a adolescência, então onde passou a
infância?
— Digamos que a minha “família” — fez sinal de
aspas com os dedos — não seja o tipo de família da qual
eu me orgulhe de falar.
— Por quê?
Caroline parou o que estava fazendo. Olhou-me
com certo receio, como se tentasse decidir se respondia à
minha pergunta.
— Não gosto de falar muito sobre isso —
respondeu.
— Tudo bem. Me desculpe.
Ficamos alguns segundos em silêncio, mas ela não
voltou aos seus afazeres. Em vez disso, ficou pensativa,
olhar nostálgico e distante, como se minha pergunta a
A MENINA NO QUARTO 93
tivesse induzido a recordar coisas há muito tempo
esquecidas.
— Minha mãe tinha problemas psiquiátricos —
Caroline disse de repente, olhando para o chão.
Em seguida, olhou para mim como se aguardasse
qualquer comentário de minha parte. Apenas fiquei em
silêncio, espantado com a revelação inesperada, não
sabendo o que dizer. Observando meu silêncio, ela
prosseguiu:
— Tenho nítidas lembranças de vê-la falando
sozinha na varanda, ou vagando pela casa enquanto
sussurrava coisas delirantes. Não sei ao certo quando isso
começou (meu pai nunca me disse), mas com o passar do
tempo estava piorando. Ela tinha convicção de estar
sendo perseguida por pessoas que, segundo ela, se
escondiam em todos os lugares. Frequentemente pensava
que meu pai e eu queríamos matá-la, então ficava
desconfiada e se isolava. Com o tempo, ela se tornou
mais hostil e alucinada.
— Onde está seu pai agora?
— Não tenho a mínima ideia. Meu pai não
suportava mais lidar com a loucura da minha mãe e por
isso foi embora. Ele nos abandonou quando eu tinha dez
anos, não se dando ao trabalho de se despedir de mim,
tampouco deixando algum dinheiro, e eu nunca mais
voltei a vê-lo.
— Que absurdo!
— Sim! Foi uma covardia horrível da parte dele.
Ficamos numa situação financeira difícil, especialmente
94 DAVI VALE
porque minha mãe não podia trabalhar e eu ainda era
muito criança para conseguir um emprego.
Olhou por um instante as próprias mãos,
melancólica.
— Ás vezes eu tinha medo dela — revelou. —
Após o sumiço de meu pai, ela só piorou. Se antes seus
surtos delirantes eram intercalados a momentos de
sanidade em que ela voltava a ser ela mesma, após a saída
de meu pai vê-la sã tornou-se cada vez mais raro. Ela
emagreceu muito, parou de dormir e abandonou os
medicamentos. Aos poucos foi se tornando estranha para
mim, como se sua personalidade tivesse sendo substituída
por uma nova completamente diferente. Já não era mais
minha mãe, era agora outra pessoa que habitava seu
corpo. Várias vezes acordei no meio da madrugada e a vi
ao meu lado, observando-me com aqueles olhos enormes,
os cabelos soltos em volta do rosto e a feição deformada,
tal como ficava nos momentos mais agudos de
insanidade. Era estranho sentir medo da mesma mulher
que eu chamava de mãe. Após a saída de meu pai, nós
duas convivemos por cerca de dois meses nessa situação.
Até que ela surtou de vez.
Os olhos de Caroline brilharam e as lágrimas
molharam seus cílios. Mesmo à beira do choro, ela
continuou:
— Os vizinhos escutaram seus gritos e vieram
saber o que estava acontecendo. Minha mãe estava
descontrolada, seminua, destruindo tudo dentro de casa.
Eu havia me trancado em meu quarto e só saí de lá
A MENINA NO QUARTO 95
quando a polícia arrombou a porta. Vi quando minha mãe
foi conduzida para uma ambulância. Vestia camisa de
força e os cabelos estavam espalhados sobre todo o rosto.
Essa foi a última vez que a vi.
— O que houve com ela?
— Minha mãe foi internada num manicômio e não
tive mais notícias de seu estado. Ouvi dizer, tempos
depois, que faleceu durante uma lobotomia mal sucedida.
As lágrimas que brotaram em seus olhos agora
escorriam por suas bochechas, deixando nelas uma linha
brilhante como rastro de lesma. Caroline não se
preocupou em secá-las.
— Venha cá — disse eu, ficando de pé para abraçá-
la. — Está tudo bem.
Mantivemos um abraço longo e sincero, deixando
que o calor de nossos corpos emanasse um ao outro. Seu
corpo era macio e sua pele tinha uma textura agradável.
Senti seu ombro sob meu queixo e um odor que lembrava
flores silvestres e roupa limpa. Envolvi suas costas com
meus braços. Percebi o movimento de sua respiração e
constatei que ela chorava. Acariciei sua cabeça para
acalmá-la.
— Me desculpe — disse Caroline, após o abraço,
fungando.
Apanhou o pano de chão, como se pretendesse
voltar ao trabalho, mas em vez disso ficou parada e
pensativa, segurando o pano numa das mãos, como se
quisesse permanecer ali comigo, de modo que voltar ao
trabalho lhe fosse desagradavelmente forçoso.
96 DAVI VALE
— Quando levaram sua mãe, para onde você foi?
— perguntei.
— Eu não tinha contato com meus parentes e
acabei sendo enviada para um orfanato. Meses depois, a
madame me trouxe para cá.
— Qual era a sua idade?
— Doze.
— Então, foi adotada na mesma idade de Helena
— constatei.
— Sim — respondeu ela, retomando afinal os seus
afazeres. — E que importância isso tem?
— Nenhuma importância. Só que a maioria das
pessoas prefere adotar crianças mais novas. Mas a
madame, diferentemente, opta por meninas mais velhas.
Caroline não fez qualquer comentário, mas pareceu
que minha constatação a tinha incomodado. Ficou quieta
e concentrou-se em seu trabalho, então nosso diálogo
encerrou-se aí.
Não voltei a ler. Fiquei um bom tempo a refletir
acerca das coisas que Caroline me contara. Ao tomar
conhecimento dessas informações, desenvolvi por ela um
sentimento mais profundo. A arrumadeira passara por
experiências terríveis, e admirava o fato de ela não ter
enlouquecido. Perder os pais não era uma experiência
estranha para mim, mas não havia dúvida de que a
história de Caroline era mais sofrida que a minha.
Talvez ambos termos perdido nossos pais, ou
talvez por sentir que ela revelara a mim informações tão
A MENINA NO QUARTO 97
íntimas — o fato é que, daquele momento em diante,
desenvolvi por ela uma grande afeição.
Mais tarde, fui à cozinha e lá me encontrei com
Raquel. Eu estava com sede e a cozinheira me serviu um
copo de água.
— Obrigado — agradeci após me saciar,
devolvendo-lhe o copo.
— Não por isso — respondeu Raquel, e olhou-me
de uma forma estranha. — O senhor é um homem
incomum.
— Incomum? — indaguei sorrindo, surpreso pela
palavra que ela tinha escolhido para me definir.
— O senhor parece ser um bom rapaz — explicou
ela, mas não retribuiu o sorriso. — Parece ser honesto e
respeitoso. E inteligente também. Nunca pensou em
buscar um trabalho melhor?
— Não entendo o que há de errado em ser um
jardineiro.
— Nada de errado, não. É que talvez o senhor
pudesse ter um salário melhor se trabalhasse nos correios
ou em algum escritório de contabilidade, ou coisa do tipo.
— Nisso você tem razão, Raquel. No entanto, meu
pai era jardineiro e vejo essa profissão como uma herança
de família. E gosto muito do que faço.
— Evidente que gosta, logo se nota. E o faz muito
bem. Talvez o senhor tenha razão, Sr. Silva, de fazer o
que lhe dá prazer ao invés do que lhe dê dinheiro. Mas
talvez devesse pensar no que eu disse, pois sei que seria
98 DAVI VALE
capaz de exercer um ofício que lhe exigisse mais da
mente.
Na hora não entendi o motivo daquele assunto, mas
fiquei contente pelos elogios que tinha recebido. Disse-
lhe que pensaria a respeito, mas repeti que gostava do que
fazia, e que não mudaria de opinião por causa de um
pouco a mais de dinheiro. E era mesmo verdade. Nunca
fui um homem ambicioso e, ademais, sendo eu solteiro e
não tendo gastos adicionais, bastava-me um pouco de
dinheiro para levar uma boa vida. Tinha guardado no
banco uma quantia considerável, que adquirira com a
venda da propriedade de meus falecidos tios, e não tinha
muitos planos para gastá-la.
Por outro lado, sempre vi a arquitetura como um
ofício interessante, não apenas por tratar-se de uma área
próxima àquela que eu exercia, mas porque sentia uma
inclinação natural a admirá-la. Essa admiração ficava
explícita quando eu me delongava na contemplação dos
detalhes arquitetônicos dos prédios públicos. Era talvez
uma inclinação que vinha do mais profundo de meu
espírito, como se a arquitetura estivesse impregnada em
minha natureza. Portanto, se me ocorresse pensar em
mudar de ofício, seria na arquitetura que reinaria meu
interesse.
Em todo caso, as palavras de Raquel guiaram-me
não a questionar minha satisfação profissional, mas as
motivações de sua abordagem. Ocorria-me que alguma
razão devia haver para que o assunto fosse abordado,
especialmente pela forma aparentemente injustificada
A MENINA NO QUARTO 99
como a cozinheira o iniciara: isso dava a entender que ela
estivera pensando a esse respeito antes mesmo que eu
entrasse na cozinha. Por quê, entretanto, abordar tal
assunto? Talvez ela quisesse que eu fosse embora — essa
era minha dedução. Em suma, parecia-me que Raquel
apenas expressara seu desejo de que eu abandonasse não
meu ofício de jardineiro, mas meu serviço na casa dos
Vukmir. E, como não pudesse dizê-lo de forma direta,
expandiu o assunto ao campo de minha profissão para
que a verdadeira raiz do problema ficasse oculta.
12 de janeiro de 1940
Caro diário
A MENINA
NO QUARTO