A Menina no Quarto - Davi Vale

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 310

A

MENINA
N O
Q U A R T O

D A V I V A L E
DAVI VALE

A MENINA
NO QUARTO
Copyright © 2017
O sintoma da doença nada é senão a
manifestação disfarçada da potência do
amor; e toda doença é apenas amor
transformado.

THOMAS MANN, A MONTANHA MÁGICA


1.

Tudo começou numa manhã de outono de 1942, dia em


que desembarquei no vilarejo de Rebouças atraído por
uma vaga de trabalho divulgada em um anúncio de jornal.
Lembro-me de que o céu estava limpo e tinha um azul
intenso, o sol ainda brilhava baixo e o vento seco e gelado
parecia já anunciar a chegada antecipada do inverno.
Assim que emergi do vagão, fechei o casaco ao
sentir uma rajada de vento. Olhei ao redor, constatando
que eu fora o único passageiro a desembarcar. A Maria
Fumaça recomeçou seu movimento atrás de mim,
enquanto me pus a caminhar pela pequena plataforma,
passando em frente às portas estreitas que se enfileiravam
ao longo da parede amarela da estação, até alcançar a
passagem principal que dava acesso ao saguão onde
ficavam os guichês.
— Bom dia — falei a um senhor que achava-se na
saída da plataforma. — Por gentileza, eu gostaria de saber
qual direção devo tomar para chegar a este endereço — e
mostrei-lhe a página de jornal que carregava comigo.
O homem trouxe seus óculos aos olhos e apanhou a
folha de minhas mãos. Ao olhar para a página, franziu a
testa.
— É o endereço dos Vukmir — observou ele,
falando mais para si mesmo do que para mim.

DAVI VALE
— Ah, é? O anúncio não menciona o nome da
família. O senhor os conhece?
— Todos os conhecem — disse o homem com
indiferença, em seguida explicou o caminho como se já o
conhecesse muito bem.
Agradeci. Já estava saindo do prédio quando, ao
olhar para trás, percebi que o homem ainda me
observava. No entanto, não me olhava por estar distraído,
mas me fitava com uma estranha persistência.
No lado de fora, quando já pisava sobre os
paralelepípedos da rua fronteira, cedendo ao meu hábito
de admirador da arquitetura dos edifícios públicos dei
meia-volta e olhei para a fachada da Estação Rebouças. Já
havia visto belas estações de trem, mas aquela despertou
em mim uma simpatia imediata. Era um prédio de um
único pavimento, coroamento barroco, paredes amarelas e
ornamentos brancos. Logo abaixo do coroamento, bem no
centro do edifício, localizava-se o pórtico da entrada
principal que se salientava na parede, e sobre ele a placa
branca onde se lia “REBOUÇAS”. Diante da entrada
principal, uma escadinha de dois degraus dava para a
calçada. Havia ao longo da fachada oito janelas que se
dividiam em quatro pares, dois em cada lado do pórtico,
como quatro casais de namorados. Percebi que eram as
janelas o motivo de minha admiração, por estarem
dispostas em pares de forma tão adorável.
Retomei meu caminho. Seguindo a orientação do
senhor sisudo da estação, fiz uma longa caminhada pelo
vilarejo até alcançar uma rua em aclive, já quase no fim

A MENINA NO QUARTO
da região urbanizada. O bairro estava silencioso, exceto
pelo farfalhar das árvores que dançavam com o vento
gelado e interminável. Nenhuma das casas no entorno
tinha qualquer sinal de vida, e por um instante tive a
sensação de que todas estavam abandonadas. Na
vizinhança predominavam exuberantes residências e
terrenos extensos. Segui nessa rua até a última casa,
depois da qual a pavimentação em paralelepípedos dava
lugar a uma estrada de terra. Ali, afastado das
propriedades circundantes, destacava-se o meu destino.
Aproximei-me com certo nervosismo, pois a
propriedade era imponente. Da calçada, olhei por entre as
grades de ferro. Primeiro, vi um grande jardim maltratado
que se estendia a perder de vista, repleto de caminhos
ladrilhados que serpenteavam em direção ao bosque,
margeados por bancos e luminárias francesas. Além do
jardim, erguia-se uma antiga casa de estilo vitoriano,
telhados cobertos de musgos, chaminés fumegantes e
paredes de topázio de uma cor incerta que pairava entre o
bege e o cinza. Havia um bosque nos fundos da
propriedade, cujas árvores formavam uma parede verde
no horizonte. Embora a propriedade não tivesse mais do
que três ou quatro hectares, a existência do bosque a fazia
parecer muito mais extensa do que realmente era.
Entrei através do portão e caminhei receosamente
por uma ruela que cortava o jardim ao meio. Meus pés
faziam um barulho ruidoso no cascalho, e esse som
parecia ser o único que se dava ao direito de existir
naquele ambiente. Respirei fundo, inalando o aroma

DAVI VALE
floral que emanava do jardim. O vento havia diminuído e
o sol brilhava intensamente, no entanto continuava a fazer
frio. Ultrapassei a fonte sem água, subi as escadas e parei
em frente à porta principal. Prestei atenção ao som
ambiente e fiquei espantado com o silêncio que parecia
reinar no interior da casa, indicativo de que não havia
crianças, tampouco animais de estimação.
Por fim, toquei a aldrava de bronze. O eco do meu
chamado se fez ouvir no vestíbulo. Pus no chão minha
maleta e tentei ajeitar a gola do casaco, mas quase não
tive tempo. Fui atendido sem demora por uma simpática
adolescente de uns 16 anos, de pele branca como um
floco de neve, que apareceu de supetão pela fresta da
porta, lenço na cabeça e avental no ventre.
— Pois não? — disse ela. Sua voz era graciosa,
quase infantil. Estava ofegante, como se tivesse corrido
para me atender.
— Vim interessado na vaga de jardineiro divulgada
no jornal…
— Pode entrar — interferiu a moça, arreganhando
a porta a fazendo-a produzir um ranger azucrinante. Se
fosse contratado, pensei, uma de minhas metas seria
lubrificar aquelas dobradiças.
A moça ajudou-me a retirar o casaco e pendurou-o
no mancebo ao lado da porta. Conduziu-me à sala
principal e indicou-me um assento perto da lareira.
— Fique à vontade — ela falou. — A madame logo
virá atendê-lo, senhor…
— Victor Silva.

A MENINA NO QUARTO
Ela assentiu com um gesto de cabeça, em seguida
saiu do cômodo e deixou-me sozinho. Escutei seus passos
ecoando no vazio do vestíbulo e em seguida na escada,
antes de sumirem no andar de cima. Seguiu-se um
silêncio sepulcral, a total ausência de ruídos, como se
naquela casa reinasse a absoluta paz. Prestando mais
atenção, entretanto, percebi ao longe o som do vento e o
cantar de algum pássaro.
Larguei a maleta ao lado da poltrona onde havia me
sentado. Olhei em volta e observei a mobília, os vasos, os
quadros, as luminárias, as paredes ornamentadas e o piso.
Todos os móveis eram de estimável antiguidade e
estavam em ótimo estado de conservação. Tudo estava
admiravelmente limpo, impecavelmente arrumado.
Imaginei quantos empregados seriam necessários para
manter tão limpa uma casa grande como aquela.
Um dos quadros pendurados na parede do saguão
exibia o retrato de um homem fardado, dono de uma
fisionomia austera tipicamente militar. Ele tinha na pele o
bronzeado encardido de quem passou tempo demais ao
sol. Os olhos castanhos da pintura, de um brilho realista e
intenso, estiveram direcionados a mim desde que eu
entrara na sala, dando-me a impressão de estar sendo
observado a todo instante. Mesmo sem olhar para aquele
retrato, eu sabia instintivamente que aqueles olhos
estavam cravados em mim e, embora não fossem mais
que uma representação, me incomodavam. Os demais
quadros exibiam imagens interessantes da natureza —
montanhas cobertas de neve, árvores peladas em pleno
DAVI VALE
inverno, um lago congelado sob o entardecer e (o que era
mais intrigante) uma mulher sozinha no meio da neve. A
julgar pela escolha dos quadros, parecia que os donos da
casa tinham certo fascínio pela paisagem nórdica.
A casa tinha um odor de pedra úmida ou algo
assim. Não que fosse um cheiro desagradável, era aliás
até agradável, muito suave e desaparecia quando o olfato
se acostumava a ele, o que acontecia em menos de um
minuto — mas eu não me recordava de ter sentido aquele
odor em qualquer outra casa. No mais, era o silêncio que
reinava naquele ambiente, a amplidão dos cômodos, a
beleza vitoriana dos ornamentos e da mobília e os
quadros nas paredes que me traziam uma sensação servil,
um sentimento de inferioridade ou até mesmo indigência.
Olhei ao redor com sincera reverência. Fiquei encolhido
na poltrona, como se demonstrasse à casa que reconhecia
minha posição perante ela. Como se a casa tivesse vida
própria e estivesse a me observar. Esse sentimento de
reverência, no entanto, não me assustava — ao contrário,
chegava até mesmo a fortalecer meu desejo de ser
contratado por aquela família.
Por fim, após dez minutos de espera, minha anfitriã
desceu as escadas e veio me receber. Quando a vi emergir
na sala, minha primeira impressão a seu respeito foi de
que ela era uma mulher austera, o tipo de fanática
religiosa que obriga os filhos a repetir a Ave Maria como
castigo às suas desobediências. Possuía uma elegância
rígida, os passos decididos, o pescoço hirto e o olhar
sobranceiro que somente a fortuna pode proporcionar a
A MENINA NO QUARTO
uma mulher. Media cerca de 1m70, mas seu penteado a
fazia parecer mais alta. Trajava um pulôver preto e
comprido, tinha o pescoço adornado com diamantes e
liames de prata, os cabelos castanhos e ondulados presos
em coque, o rosto branco e os olhos cinzentos como o céu
tempestuoso.
— Me desculpe fazê-lo esperar — disse a mulher
com uma voz inexpressiva. — Muito prazer, sou Nadia
Vukmir.
— O prazer é todo meu, senhora — respondi,
tentando parecer polido. — Sou Victor Silva.
Fiquei de pé para cumprimentá-la. Embora
tivéssemos a mesma estatura, me senti muito menor,
como se ela preenchesse toda a sala.
— Tem experiência em jardinagem? — perguntou
a Sra. Vukmir. Seu tom de voz incutia autoridade. Seu
sotaque era peculiar, mas não o consegui definir, embora
soubesse que certamente vinha de alguma parte da
Europa.
— Sim. Permita-me mostrar minhas referências. —
Fiz menção de abrir a maleta, mas com um gesto ela me
impediu.
— Não será necessário, Sr. Silva. Espero que goste
de trabalhar, pois há muito que fazer no jardim. Por isso
no anúncio especifiquei que desejava um rapaz forte e de
pouca idade.
Falei a ela que podia contar comigo para o trabalho
pesado. Nadia Vukmir então me avaliou dos pés à cabeça,
detendo o olhar principalmente em meus braços. Eu sabia
DAVI VALE
que meu físico não deixava a desejar, pois as atividades
manuais de meu ofício garantiam que eu me mantivesse
em forma. Ainda assim, a forma fria como ela me
avaliava com o olhar me deixava constrangido.
— É casado? Tem filhos? — perguntou, quando
seus olhos voltaram a encontrar os meus.
— Não, senhora.
— Qual a sua idade?
— Vinte e seis.
— Ótimo. Vou lhe mostrar seu aposento, Sr. Silva
— anunciou a mulher, então virou-se e fez sinal para que
eu a seguisse.
Então era só isso? Fiquei admirado com a
praticidade daquela entrevista, pois mal me apresentara e
já estava contratado. Aparentemente, havia surgido tão
poucos candidatos à vaga que ela não poderia se dar ao
luxo de fazer exigências — o que era estranho, pois o
salário generoso devia atrair muitos candidatos. Mas eu
podia estar fazendo deduções equivocadas, isto é, a
família talvez tivesse recebido muitos outros candidatos
antes de mim, de modo que nenhum deles houvesse se
encaixado aos requisitos que ela fizera questão de
ressaltar, aos quais que eu tivera a sorte de me enquadrar.
Neste caso, eu talvez estivesse diante de patrões
extremamente exigentes. Essa consideração me trouxe à
memória a figura austera do quadro na sala, onde era
retratado quem eu deduzi ser o marido de Nadia Vukmir.
Eu nunca tivera dificuldades em lidar com meus patrões,
embora alguns deles houvessem sido austeros e por vezes
A MENINA NO QUARTO
detestáveis — entretanto, a simples imagem daquele
retrato me deixava apreensivo.
Caminhamos em direção à parte traseira da casa,
onde se localizava o único dormitório do primeiro
pavimento. A Sra. Vukmir abriu a porta do quarto e
deixou que eu entrasse antes dela. Logo ao entrar no
cômodo, via-se uma cama de solteiro em frente à porta. À
direita da cabeceira havia uma janela e, à direita da
janela, uma cômoda de madeira. Havia uma poltrona de
couro entre a cômoda e a cama, e um pequeno roupeiro
fora encostado na parede oposta à janela. Todos os
móveis eram do mesmo tipo de madeira, talvez cumaru,
pareciam novos e combinavam entre si — exceto a cama,
que era de uma madeira mais escura e de aspecto
envelhecido. O piso era coberto por um tapete de sisal cor
de argila. As paredes eram brancas, numa das quais se via
uma pequena grade de passagem de ar do sistema de
calefação.
Apesar da mobília bem posicionada, era muito fácil
perceber que o cômodo não fora projetado originalmente
para ser um dormitório, mas antes um depósito ou algo
dessa espécie. Era pequeno e mal localizado para um
quarto — embora, pensando bem, fosse grande para um
depósito.
— Este será seu aposento, Sr. Silva — anunciou
Nadia Vukmir após entrarmos.
— Aqui dentro? — não pude evitar a demonstração
de surpresa, pois esperava que ela fosse me levar a um
abrigo externo.
DAVI VALE
— A cabana do jardineiro foi destelhada durante
uma ventania há algumas semanas. Como já era uma
construção muito antiga, não considerei viável consertá-
la, de maneira que será melhor demoli-la. Por fim, não
pretendo desperdiçar dinheiro em reformas ou
construções dispendiosas. Desta forma, decidi te instalar
no interior da casa. Espero que isso não seja um
problema.
Respondi que não. Lembrei-me da fonte sem água
na entrada da casa. Talvez os Vukmir estivessem em más
condições financeiras.
— Bem, antes de mais nada, é bom inteirar-lhe de
algumas regras — prosseguiu ela, e começou a enunciar
de modo solene: — Não quero ver o senhor
bisbilhotando. Não temos telefone. Também não temos
aparelho de rádio, pois o silêncio é algo que aprecio
muito, e por isso quero que trabalhe fazendo o mínimo de
barulho. O senhor só deve subir ao segundo piso quando
for chamado, mas de forma alguma deverá subir sem que
alguém o esteja acompanhando. Alguma dúvida?
— Não, senhora — respondi rapidamente.
Claro que isso não era bem verdade, pois eu estava
cheio de perguntas, mas acreditei que qualquer
questionamento poderia soar demasiadamente curioso,
além de inconveniente. Seja como for, eu realmente tinha
ficado curioso. Achei particularmente esquisito o fato de
a casa não possuir telefone, o que dava certa impressão de
isolamento.

A MENINA NO QUARTO
Também estranhei que ela tivesse avisado que não
gostava de bisbilhotices, informação que, a meu ver, era
redundante: tratava-se de algo tão elementar que não
havia porque se dar ao trabalho de dizê-lo. Por que,
porém, ela o dissera? Talvez o fato de eu estar proibido
de subir sozinho ao piso superior fosse pista da resposta:
tal proibição fazia parecer que ali fosse mantido algum
segredo. Guardei esses pensamentos comigo e busquei
não alimentá-los. Afinal, eram assuntos que não me
diziam respeito.
Nadia Vukmir me guiou até o jardim frontal e
definiu suas exigências com relação ao trabalho: altura
ideal da grama, horário de regar as flores, dentre outros
detalhes. Explicou que o jardim não era devidamente
cuidado há alguns meses, desde a morte do Sr.
Gonçalves, o antigo jardineiro, pois suas empregadas não
tinham tempo para se dedicarem a isso. Depois, explicou
que, além de cuidar do jardim, eu deveria cuidar dos
aquecedores da casa, abastecendo a caldeira com lenha
durante o inverno, e realizar as tarefas pesadas que
eventualmente fossem necessárias — que não seriam
poucas, já que eu seria o único empregado homem na
propriedade. Disse ainda que aos domingos eu não
precisaria me preocupar com o jardim porque esses
seriam os meus dias de folga. Finalizou fazendo algumas
considerações acerca do salário.
— Seu salário será de 480 mil réis. O pagamento
será realizado retroativamente no primeiro dia de cada
mês — ela explicou, enquanto caminhávamos de volta ao
DAVI VALE
interior da casa. — Caso precise de algum adiantamento,
basta me avisar.
Voltamos à sala principal, onde eu havia deixado
minha maleta, mas não nos sentamos.
— Pode se mudar para cá hoje mesmo se assim te
apetecer — ela avisou. — Basta trazer os seus pertences.
Vou mandar uma das meninas deixar seu quarto
preparado.
— Obrigado pela oportunidade, Sra. Vukmir.
Estarei de volta de tardezinha com minhas malas.
Caminhamos em silêncio até o vestíbulo. Nadia
Vukmir me ajudou com o casaco. Abriu a porta, fazendo-
a ranger.
— Até mais tarde, Sr. Silva — disse ela, e fechou a
porta assim que saí.
Enquanto caminhava rumo ao portão, observei a
paisagem no entorno da propriedade com certa
reverência. Como a propriedade se localizasse em região
elevada, no horizonte era possível avistar os montes
distantes tingidos de azul baço e, antes deles, as matas e
os campos verdejantes, cuja beleza era intensificada pela
luz daquele dia ensolarado. Dei uma última olhada para
trás, em direção à casa dos Vukmir, com suas numerosas
janelas cujos vidros refletiam o brilho do sol. Perguntei-
me se alguém estaria me olhando através de uma delas.
Começava a fazer calor, portanto fiz o percurso até
a estação com o casaco pendurado no braço. Minhas
ventas estremeciam de felicidade. Eu estava contente com
meu novo emprego e satisfeito porque o salário estava
A MENINA NO QUARTO
acima das minhas expectativas. Sentia-me disposto a
fazer toda sorte de obséquios e desejava cumprimentar a
todos que cruzassem meu caminho. Embarquei no trem
pouco antes das onze horas e voltei à casa de pensão onde
morava. Chegando lá, paguei ao proprietário o valor
proporcional ao mês incompleto de estadia. Juntei meus
pertences, que de tão poucos cabiam em uma única mala,
e parti para meu novo quarto.
Já era final da tarde quando desembarquei na
Estação Rebouças pela segunda vez naquele dia.
Caminhei pela plataforma vazia e desci a escadinha que
dava para a calçada. Na rua, dei uma rápida olhada para
os quatro pares de janelas na fachada do prédio antes de
seguir meu caminho. Aquela estação parecia-me ainda
mais agradável ao final da tarde.
Eu estava com fome porque não havia almoçado,
por isso decidi parar num pequeno restaurante próximo.
Sentei-me a uma mesa perto da janela e pedi um prato.
Após anotar meu pedido, o garçom ficou algum tempo
me olhando. Olhei-o de volta. Seu olhar vago e sua
expressão curiosa deu-me a impressão de que ele tinha
algum tipo de deficiência mental leve. Devia ter
aproximadamente a minha idade, baixa estatura, a pele
muito branca e os cabelos cacheados tão negros que,
embora secos, aparentavam estar molhados. Como se
meu olhar o despertasse, saiu andando e entrou na
cozinha.
Naquele momento eu era o único cliente. O
restaurante estava absolutamente silencioso. Aliás, todo o
DAVI VALE
vilarejo parecia emudecido. Enquanto eu comia, o
garçom manteve-se sentado perto do balcão, olhando-me
de esguelha quando eu não o olhava e desviando o olhar
quando eu me voltava em sua direção. Por que ele tanto
me olhava? Terminei de comer e pedi a conta. O garçom
veio até a mesa e recebeu o dinheiro, quieto, mas
olhando-me de um modo esquisito, como se quisesse me
dizer algo. Aquilo me incomodou.
— Algum problema? — perguntei, já irritado.
Ele negou com a cabeça, fazendo movimentos tão
curtos e rápidos que eram quase convulsivos. No entanto,
pouco antes que eu me virasse em direção à porta e saísse
do estabelecimento, pude notar, numa fração de segundo,
uma espécie de medo em seu olhar, como se ele tentasse
me dizer alguma coisa, mas lhe faltasse coragem.
Quando cheguei à casa dos Vukmir, já além das 19
horas, quem me atendeu foi a própria Sra. Vukmir.
Convidou-me a jantar, mas avisei que já havia comido.
Ela então me conduziu ao meu quarto, dizendo que eu
ficasse à vontade e que poderia ir à cozinha se sentisse
fome ou sede. Estaria no andar de cima e logo mais
dormiria, mas que eu mandasse chamá-la se fosse preciso.
Era habitual que dormissem cedo naquela casa, por isso
me deitei logo após guardar a bagagem. Embalado pelo
silêncio e pelo cansaço do dia, peguei no sono
rapidamente, entretanto tive uma noite longa e cheia de
sonhos confusos.

A MENINA NO QUARTO
2.

O dia seguinte amanheceu ensolarado e com muito vento.


Comecei a trabalhar no jardim logo ao nascer do sol,
quando a grama ainda estava molhada e o ar gelado
remanescente da madrugada fazia arder as narinas. A
partir desse horário, trabalhei ininterruptamente. Desejava
causar uma primeira impressão positiva acerca do meu
trabalho, por isso tentei aproveitar ao máximo cada
minuto e, assim, não me dei ao luxo de qualquer
distração.
Ou pelo menos, não até que o relógio marcasse
nove horas. Por volta desse horário, enquanto me
dedicava a recolher as folhas secas do gramado, avistei
sair da casa uma moça. Até aquele momento eu tinha
conhecido apenas uma das empregadas — a jovem de
cabelos negros que me atendera em minha chegada —,
mas supunha que haviam outras e, portanto, estava
curioso e ansioso para conhecê-las, não porque me
agradassem as apresentações, mas para que me sentisse
mais familiarizado com o novo ambiente. E eis que,
inesperadamente, eu avistava uma delas saindo da casa.
Parei o que estava fazendo para observá-la. Deduzi logo
que era uma das empregadas, a julgar pelo lenço na
cabeça e o vestido modesto. Ela aparentava não ter muito
mais do que vinte anos, talvez vinte e um. Seus cabelos
loiros esvoaçavam com o vento, cujas pontas iam
ricochetear no pescoço alvo e nos ombros pelados. O
14 DAVI VALE
vestido creme, leve e singelo, batia-lhe na altura dos
joelhos e era apertado na cintura com um cinto. Seu rosto
era delicado, de maçãs coradas, nariz reto e os lábios
finos e rosados, na cor das tulipas.
No início ela não notou que eu a observava.
Emergiu pela porta do vestíbulo com uma cesta de palha
na mão e, antes de descer a escada, parou e respirou o ar
matinal. Com os olhos fechados, deixou que o sol tímido
da manhã banhasse seu rosto; respirou fundo, chegou até
mesmo a sorrir, então desceu a escada de pedra e
caminhou em direção ao jardim, onde eu estava. Num
instante, porém, quando olhou em minha direção levou
um susto. Era evidente que não esperava me ver, pois
arregalou os olhos, que eram tão azuis quanto aquele céu
de outono, e elevou a mão ao peito.
— Bom dia! — apressei-me em dizer, tentando
parecer amigável.
Ela respondeu com outro bom-dia, o ar tímido e o
tom de voz inseguro. Parecia envergonhada. Passou por
mim com certo acanhamento e continuou seu caminho,
sequer me dando oportunidade de me apresentar
formalmente. Pude sentir sua fragrância no ar, o cheiro do
xampu nos cabelos recém lavados e o perfume suave de
alguma loção hidratante em sua pele. Observei-a se
afastar, sem saber exatamente o que tinha acontecido.
Evidente que era uma garota muito tímida.
Após um tempo de reflexão, a timidez da
empregada e sua reação encabulada me pareceram
compreensíveis. A casa provavelmente recebia poucos
A MENINA NO QUARTO 15
homens, portanto para as empregadas devia ser incômodo
ver um estranho no jardim. Eu reconhecia o quanto minha
presença ali as devia constranger. O incômodo decerto
haveria de desaparecer com o passar dos dias, na medida
em que fossem se acostumando.
Nas horas que se seguiram, ela não voltou a
aparecer. Busquei vê-la novamente, procurei-a pelo
jardim com os olhos, mas ela devia ter tomado outro
caminho para voltar à casa, de modo a não se cruzar
comigo novamente. Talvez fosse tímida demais, ou talvez
não tivesse gostado de mim e, por isso, me evitara.
Aborrecido com a segunda possibilidade, voltei a me
concentrar no trabalho e tentei não pensar mais nela. Nos
primeiros minutos, o simples esforço de não pensar na
garota de olhos azuis tinham o efeito exatamente oposto,
mas não demorou para que a elevada quantidade de
tarefas me distraísse.
Adiantei boa parte do serviço atrasado e, ao cabo
daquela tarde, eu já tinha alcançado um bom resultado.
Nadia Vukmir veio me parabenizar pela minha eficiência,
embora ela fizesse algumas observações de melhoria.
Senti que ela encontrava defeito no meu trabalho não por
se desagradar dele, mas porque isso lhe dava certo prazer.
O céu já migrava do azul-avermelhado do
entardecer ao azul-escuro da noite, e as primeiras estrelas
começavam a brilhar. Esfriava rapidamente e voltava a
ventar. Eu estava a guardar minhas ferramentas no
depósito, achava-me de costas para a pequena porta de
madeira e defronte do armário, quando senti a presença

16 DAVI VALE
de alguém perto de mim. Não ouvi qualquer barulho,
simplesmente percebi que alguém estava à minha
retaguarda, observando-me em silêncio.
Olhei para trás. Uma garota estava de pé no limiar
da portinha do depósito, imóvel como uma estátua.
Consegui disfarçar o susto, mas meu coração havia
disparado. Estava escuro e quase não dava para ver seu
rosto, e mesmo assim eu pude reconhecê-la com
facilidade: era a garota que me atendera em minha
chegada. Já não usava um lenço na cabeça tal como da
primeira vez, e tinha os cabelos negros soltos sobre os
ombros. Estava séria, mas sorriu quando a olhei.
— Sr. Silva, o jantar está à mesa — ela disse,
emitindo aquela voz doce e graciosa. — Não quer se
sentar conosco?
— Será um prazer — respondi, tentando não
demonstrar excessivamente meu contentamento. Buscava
comedir minha demonstração de alegria com medo da
impressão que poderia causar.
— Mas não demore — ela advertiu, porém de uma
forma descontraída. Depois saiu, e eu saí atrás dela.
— Espere! — avisei.
Ela parou de andar e olhou para mim. Pude ver
então seu rosto iluminado pelo entardecer. Apesar de tê-la
visto na manhã anterior, senti como se a olhasse pela
primeira vez.
— Qual é o seu nome?

A MENINA NO QUARTO 17
— Sou Helena, a camareira — ela respondeu com
sua forma meiga de falar, sorrindo sem sorrir, como se
sorrisse com os olhos.
Era dona de uma espécie rara de beleza, talvez por
causa de seus olhos absolutamente pretos, gigantes e
penetrantes, através dos quais o observador tinha a
impressão de poder enxergar o reflexo de seu próprio
rosto, ou talvez por seus lábios bem delineados, macios e
cheios de vida, ou ainda por seu nariz de ventas delicadas,
levemente arrebitado, que visto defronte parecia
minúsculo — mas, na verdade, era a união de todas essas
características que a tornava tão raramente linda, e
certamente elas não teriam sido tão perfeitamente casadas
entre si se fossem desenhadas pelas mãos de um artista.
Tinha por volta de 1m65 de estatura. Com certeza ainda
não tinha dezoito anos, mas possuía, apesar disso, uma
malícia no olhar que a tornava sedutora. Na primeira vez
em que a vi, minha apreensão com a conquista do
emprego me impedira de prestar atenção em sua beleza,
mas agora a notava com outros olhos. Não que eu tivesse
intenções maliciosas, mas sentia uma admiração por seu
jeito de ser, uma afeição singular, como se já a
conhecesse de outras vidas. Não sabia explicar, na
verdade não entendia, mas me sentia tão bem quando a
via que era dominado pela vontade de conhecê-la melhor,
saber seus gostos, seus anseios e sua história de vida.
Sim, era isso: ela despertava minha curiosidade.
Na sala de jantar, sentei-me ao seu lado, na cadeira
que ela própria me indicara, e notei que meu prato já

18 DAVI VALE
estava posicionado à minha espera. Também achavam-se
ao redor da mesa outras duas moças.
Uma delas era a empregada loira que eu tinha visto
mais cedo, a mesma que, por timidez ou desprezo, evitara
cruzar seu caminho com o meu. Trocamos olhares, mas
ela rapidamente desviou os olhos dos meus e pareceu
acanhada. Na verdade, fiquei decepcionado: não era tão
bonita quanto me parecera antes. Á luz artificial das
lâmpadas, sua tez se tornava opaca e pálida como a face
de uma mulher morta, aparentando insalubridade, os
lábios esbranquiçados e o olhar cansado e tristonho.
Cheguei a questionar se era a mesma garota. Talvez isso
pudesse se explicar pelo fato de que, quando eu a vi no
jardim, não notara amiúde seus defeitos, mas olhando-a a
não mais que um metro de distância, sua aparência
estiolada se tornava notável. Além disso, naquele instante
havia algo de diferente, uma espécie de cansaço
estampado no rosto que talvez fosse indício de uma gripe.
Helena, que evidentemente era a mais desacanhada
de todas, tratou de me apresentar suas companheiras. A
loira chamava-se Caroline, era a arrumadeira da casa e se
encarregava da limpeza geral. A outra moça era Raquel, a
cozinheira. Raquel aparentava ser a mais velha das três,
com 26 ou 27 anos, a pele naturalmente bronzeada, os
cabelos cacheados e seios protuberantes que pareciam
desproporcionais ao seu corpo. Era de um tipo comum,
braços espessos, quadris estreitos e uma pequena pança
que dava impressão de desleixo. Possuía, entretanto, um
sorriso bonito e um olhar carismático, e a simpatia
A MENINA NO QUARTO 19
sempre embeleza as pessoas. Era o tipo de mulher que se
torna bonita na medida em que se a conhece melhor —
diferentemente de Caroline que em mim causava o efeito
inverso.
O jantar foi tomado, inicialmente, por um silêncio
tenso. Na timidez dos meus primeiros dias na casa,
preferi não iniciar um assunto. Passados alguns minutos,
as três empregadas começaram a conversar sobre coisas
que não me diziam respeito, o que me deixou um tanto
alheio aos diálogos. Falaram do trabalho, do que tinha
ficado pendente naquele dia, de quanto urgia a
contratação de uma segunda arrumadeira. Entretanto, não
tardaram a me incluírem na conversa. Disseram o quanto
estavam aliviadas por agora terem um homem para ajudá-
las, considerando que, no intervalo entre a morte do
antigo jardineiro e a minha contratação, eram elas que se
dedicavam aos cuidados do jardim. Perguntaram-me se eu
era casado e se tinha filhos, e quando respondi que não a
ambas as perguntas quiseram logo saber mais detalhes
sobre minha vida. Uma onda de interesse pareceu
preencher todo o diálogo e, quando me dei conta, havia
contado tanto sobre mim que nem conseguira saber muita
coisa acerca delas.
Já havíamos terminado de comer quando
mencionaram casualmente uma mulher chamada Sra.
Milovan. A expressão de todas diante desse nome foi
carregada de certo receio, como se o mencionassem em
segredo.
— Quem é essa senhora? — perguntei.

20 DAVI VALE
— A Sra. Milovan é a governanta — explicou
Helena em tom grave, inclinando-se levemente sobre a
mesa em minha direção e abaixando a voz. — Na
ausência da madame, é ela quem dá as ordens.
Senti que havia nestas palavras algum
descontentamento.
— Governanta? — repeti, franzindo o cenho. —
Então existem crianças na casa?
As moças se entreolharam com um ar estranho,
como que perdido. Notei um brilho de temor no olhar de
Caroline. Helena respondeu:
— Sim: Júlia, a filha da madame.
— Pois eu nunca a vi — constatei, com surpresa.
Assustava-me pensar que uma criança pudesse residir
naquela casa, mas que dentro de dois dias eu não a tivesse
visto, ouvido ou encontrado seus vestígios.
— Ninguém a vê — disse Raquel, quase
sussurrando. — Nós também nunca a vemos. Ela nunca
sai daquele quarto. A única que a vê é a Sra. Milovan,
que passa horas no quarto da menina. A Sra. Milovan é
também sua professora, visto que Júlia não frequenta
escola.
— Como isto é possível? — indaguei revoltado,
deixando que minha voz se elevasse um pouco. — Que
tipo de mãe mantém a filha em confinamento dentro de
um quarto?
— Não sabemos, Sr. Silva — disse Caroline, com a
voz tão amena que fez parecer que eu tinha gritado —,
mas acreditamos que talvez a menina seja… — olhou em
A MENINA NO QUARTO 21
volta, como se procurasse a palavra mais adequada —
que não seja uma criança normal.

22 DAVI VALE
3.

Não importava o quanto eu tentasse me distrair, meus


pensamentos não se afastavam daquele diálogo. Tentei ler
um livro na biblioteca, mas não consegui mais do que
correr os olhos pelas palavras sem encontrar nelas
qualquer sentido. Minha mente não conseguia se desligar
do que ouvira no jantar, sobre Nadia Vukmir manter, sem
nenhuma explicação, sua filha presa em um quarto.
Imaginei o quanto a criança devia ser solitária e
deprimida. Teria ela alguma doença muito grave ou
contagiosa? Tentei imaginar sua aparência, sua voz, sua
risada — mas tudo o que consegui imaginar foi o choro
de uma criança triste e raquítica, confinada no escuro de
um quarto, tendo como companhia apenas uma velha
governanta que, aparentemente, não era a pessoa mais
agradável para se ter por perto — e esses pensamentos me
perturbaram muito.
Aquela casa subitamente me pareceu melancólica
demais para uma criança. Pensei na fonte sem água, no
silêncio cavernoso dos cômodos, na arquitetura fria e
sombria. Caminhando pela penumbra do vestíbulo,
observei a forma como a luz das luminárias parecia
escassa, e os móveis, com suas formas ostentosas,
desenhavam sombras estranhas nas paredes. Olhei as
janelas negras, atrás das quais a noite repousava com sua
calma habitual, e tive a sensação de estar sendo
observado. Tentei não olhar para o retrato do homem
A MENINA NO QUARTO 23
fardado na parede, pois sabia que o encontraria a me fitar.
Fui logo para o meu quarto e me fechei lá dentro, pois já
começava a ver aquele cômodo como meu espaço
particular e, portanto, meu refúgio.
Garoou no início da noite, mas só fui me dar conta
disso quando olhei através da janela e vi o jardim
molhado. Entre as grossas paredes da casa dificilmente
notávamos as mudanças do tempo no lado de fora. A
umidade esfriou ainda mais a noite que já estava fria, mas
o sistema de calefação da casa tratou de manter todos no
conforto de uma temperatura condicionada. Eu havia
trazido um livro da biblioteca e tentei começar a leitura
pela segunda vez. Por volta das 21 horas me bateu o sono,
então larguei o livro sobre o criado-mudo, apaguei o
abajur e me deitei na cama. Era minha segunda noite
naquela residência, e eu não poderia supor que teria
qualquer alteração no rumo das coisas, ou que qualquer
evento estranho pudesse acontecer antes que o sol raiasse.
Mas estava enganado.
Não sei definir exatamente quanto tempo se passou
desde que me deitara, mas num dado momento algo me
fez despertar. Tratava-se de uma voz feminina, chorando
ou gemendo de dor — por princípio, eu não soube definir
qual dos dois. Pareceu-me tão próximo que pensei se
originar dentro de meu quarto. Saltei da cama e pus-me
de pé imediatamente. De tão rápido que me levantei, a
cama chegou a se arrastar com um rangido. Percebi então
que o choro havia cessado.

24 DAVI VALE
O som não poderia ter vindo de longe. Abri a porta
do quarto e olhei o corredor escuro em direção à sala de
estar, mas ela estava mergulhada no mais completo
silêncio. A luz baça e azulada do luar penetrava as janelas
da sala, formando em todas as partes estranhas silhuetas
que a imaginação transformava no que bem quisesse. Eu
me encontrava descalço, sentindo sob meus pés o chão
gelado de madeira e as fissuras entre os pisos.
Caminhei lentamente até alcançar a sala de estar,
onde eu podia enxergar com um pouco mais de clareza.
Olhei para a porta do porão, que se localizava entre a sala
de estar e a sala de jantar. Fui até ela e a abri, deparando-
me com o breu absoluto do subsolo, em seguida dei um
passo até o limiar da porta. Lá embaixo, havia um
silêncio absoluto. Certamente, a origem do choro não
estava naquele porão, especialmente pela impossibilidade
de que qualquer som produzido lá embaixo chegasse até
meu quarto.
Fechei a porta com cuidado e voltei a caminhar,
atravessando a sala de jantar em direção ao saguão da
casa, onde se localizava a escada que levava aos quartos
principais. No entanto, lembrando-me das advertências
feitas pela madame, não ousei subir sequer o primeiro
degrau. Parei ao pé da escada e olhei para cima. No
segundo, piso as luzes apagadas indicavam que todos
deviam estar dormindo. Se a moça que ouvira estivesse
em perigo, provavelmente teria pedido por ajuda a
alguma das empregadas ou à madame. Além disso, seria
ilógico supor que qualquer choro ou gemido de alguém
A MENINA NO QUARTO 25
no piso superior pudesse ser ouvido em meu quarto, já
que, para transpassar tantas paredes e portas até meus
ouvidos, seria necessário no mínimo um grito. Ainda me
ocorreu que, se alguém estivesse em apuros lá em cima,
eu não seria o único a estar acordado.
Comecei em seguida a considerar a hipótese de que
eu não houvesse escutado qualquer choro ou gemido, mas
que tivesse tomado como realidade algo que acontecera
em meus sonhos. Pensando bem, existia razão para que
eu acreditasse que havia imaginado tudo. Não seria a
primeira vez que eu tomava como real um evento onírico,
de modo que eu só compreendesse isso após algum tempo
de reflexão. E esse pensamento me serviu de consolo.
Esbarrei em algum móvel, produzindo um ruído
que em comparação ao silêncio da casa pareceu
estrondoso, depois quase fiz cair um vaso de de cima do
aparador. Escutei uma rajada de vento no lado de fora. O
chão estava tão gelado que me dava a impressão de estar
pisando sobre algo úmido. Comecei a olhar em volta,
detendo meus olhos nas sombras negras que se formavam
nos cantos. A sombra das árvores dançava nos vidros das
janelas e frequentemente me assustavam. Comecei a
sentir certa impaciência. Pensei ter visto algum
movimento na cozinha, mas quando caminhei até lá notei
que eram apenas as sombras das árvores projetadas pelo
luar. Voltei para o meu quarto com muito cuidado. De
alguma forma, a casa parecia me acuar, dizer-me em
silêncio que não era para eu estar acordado. Eu quase
podia escutá-la sussurrar. Foi um alívio quando passei

26 DAVI VALE
pela porta e emergi no ambiente apertado e familiar de
meu quarto.
— Estou me impressionando muito facilmente —
sussurrei, tentando rir de mim mesmo. — Estou sendo um
tolo, ora essa!
Respirei com calma e me recompus. Apaguei a luz
do abajur, deitei na cama e fechei os olhos.
Ainda com os sentidos aguçados por conta do
susto, fiquei algum tempo acordado antes que o sono
retornasse. Escutei o barulho do vento agitando as árvores
do lado de fora, e ao longe o som do motor de uma
camionete que provavelmente estava percorrendo a rua
fronteira. Acompanhei o som do veículo se afastar até que
não pudesse mais ser ouvido, e então apenas o uivo do
vento permaneceu.
De repente, um novo som surgiu em meus ouvidos,
mas este não vinha do lado de fora do quarto. Antes
fosse! Tive a assustadora impressão escutá-lo perto da
minha cama, bem ao meu lado. De fato, era o choro de
uma menina! Pareceu-me que, de alguma forma
inexplicável, essa menina se agachara ao lado de minha
cama e se pusera a chorar. Entretanto, daquela vez eu
tinha certeza de que não estava dormindo. No escuro, abri
os olhos. Mesmo de olhos bem abertos eu o escutava.
Aquilo era real.
Saltei da cama imediatamente. Percebi em seguida
que o choro havia cessado. Meu coração batia em
disparada, assombrado não pela curiosidade, mas pelo
medo. Acendi o abajur e olhei em volta. Devo admitir que
A MENINA NO QUARTO 27
cheguei a verificar embaixo da cama. Tive a sensação de
que havia mais alguém em meu quarto, embora eu
atestasse com meus olhos que estava sozinho. Trêmulo,
tentei recobrar a calma.
— Já olhei todos os cantos e nada encontrei, então
não há razão para ter medo — eu disse a mim mesmo,
embora não tivesse certeza se havia dito em voz alta ou
apenas pensado.
Mas era inútil: embora não houvesse alguém no
quarto comigo, a parte mais irracional de meu espírito
ainda me convencia do contrário, como se existisse algo
que meus olhos não pudessem ver, tampouco meu tato
pudesse sentir, mas que por um instante eu pude escutar
da mesma forma como escutaria o som de minha própria
voz. Com isso, meu sono parecia ter sumido. Permaneci
acordado, decidido a ficar de vigília até que pudesse ter
ensejo de averiguar a questão à luz do abajur, e acordado
esperei que o som se repetisse, mas despertei no dia
seguinte com o cantar dos pássaros e descobri que tinha
dormido na poltrona.

28 DAVI VALE
4.

Mesmo após o amanhecer, a simples recordação da


nebulosa experiência da noite anterior me intrigava. Tudo
parecia, de certo modo, muito distante de mim, como se
fosse um sonho. Era difícil fazer com que tudo não
parecesse inverossímil demais para ser real. Algo em
mim me induzia a duvidar de minha própria memória,
teria aliás sido um alívio constatar que imaginara a coisa
toda, mas no fundo eu sabia que não podia fazer isso.
Claramente, se aquele evento não tivesse acontecido
comigo, eu próprio duvidaria de tudo e diria tratar-se de
um delírio. Só eu que vivenciara aquilo poderia saber o
quanto fora real. Da mesma forma, era improvável que
alguém acreditasse em mim. Não desejando me passar
por louco ou por alguém facilmente impressionável,
tomei a resolução de manter a história em segredo.
Ainda em meu quarto, dediquei-me a reconsiderar
os acontecimentos à luz da razão. Eu calculava que a voz
que ouvi não poderia ter vindo de fora do quarto, pois
estava muito nítida e demasiadamente próxima para que
tivesse atravessado a parede ou a porta fechada. Eu já
tinha escutado as vozes das empregadas no corredor
quando estas passavam em frente ao meu quarto durante
seus afazeres; pudera constatar o quanto a porta de
madeira maciça era eficaz no abafamento do som externo,
pois as vozes chegavam abafadas e ininteligíveis, e
mesmo os diálogos mais exaltados não podiam ser
A MENINA NO QUARTO 29
ouvidos senão como distantes murmúrios.
Definitivamente, qualquer barulho no corredor não
chegaria aos meus ouvidos com tanta nitidez. O mesmo
se podia dizer quanto ao lado externo da casa — até
porque, aliás, seria absurdo supor que uma criança se
pusesse a chorar perto de minha janela, na grama úmida,
sob o frio e o vento cortante da noite. Neste caso, não
havia (ou ao menos eu desconhecia) uma explicação
racional para a voz que me acordou, o que acabava por
me induzir a recorrer a explicações sobrenaturais. É
relevante mencionar que eu nunca tinha acreditado em
fantasmas, mas naquela ocasião senti uma forte
inclinação a isso.
Naquela manhã, quando saí do quarto, a primeira
pessoa que avistei foi Caroline. Bastou-me ver seu rosto
pálido ainda sonolento e seus olhos semicerrados diante
da luz matinal para que, associando sua aparência doentia
ao choro esquisito que eu escutara em meu quarto,
ocorresse-me a ideia de que o choro talvez fosse dela. Ele
poderia ser em decorrência de alguma dor noturna, pois
seu rosto parecia mesmo pertencer a alguém que sente
dores frequentes. Sim, ela tinha um olhar de sofrimento
contido. Mas essa suposição imediatamente me pareceu
inverossímil, pois, supondo que Caroline chorasse de dor
durante a noite, sua voz não poderia se tornar audível
para mim em meu quarto, dada a distância entre nossos
aposentos.
Caroline carregava numa das mãos um balde e, na
outra mão, um rodo que encostava-se ao chão conforme

30 DAVI VALE
ela andava. Como demonstrasse certa dificuldade, me
ofereci para ajudá-la.
— Obrigada — respondeu ela, e entregou-me o
balde para que eu o carregasse, não disfarçando seu
alívio. — Ainda bem que o senhor apareceu.
— Para onde? — perguntei.
— Para cima — disse ela com indiferença, e saiu
caminhando adiante de mim.
— Não sei se posso acompanhá-la.
Caroline parou e me olhou, perplexa. De manhã, o
azul de seus olhos se tornava vívido, clareando-se na
medida em que se afastava das bordas externas, causando
assim um severo contraste com o negro das pupilas
contraídas. Ocorreu-me, de chofre, que afora os olhos ela
não tinha beleza alguma no rosto. Esse pensamento era
estranho porque, nos padrões convencionais, sem dúvida
ela seria considerada uma linda moça: tinha a pele lisa, de
uma brancura agradável, e o rosto possuía formas suaves
e delicadas. Os lábios eram pequenos, rosados e
simétricos, e os olhos eram um pouco próximos entre si,
postos sob sobrancelhas arcadas de tom castanho-claro.
Sim, pensando bem, ela era uma bela moça. Entretanto,
era como se sua beleza estivesse ali, mas não para mim.
— Por que não? — perguntou ela com um leve
sorriso irônico.
— É que não devo subir as escadas, por
determinação da Sra. Vukmir.
— Madame — Caroline corrigiu, em tom de
repreensão.
A MENINA NO QUARTO 31
— Desculpe?
— Mme. Vukmir prefere que se refiram a ela como
“madame”, não como “senhora”.
— Me desculpe.
— Enfim, o senhor não deve subir a menos que
seja necessário, e esta me parece uma situação de
necessidade. Além disso, o senhor está me
acompanhando, portanto não se preocupe. — Caroline
mal terminou de dizer e voltou a caminhar. Dei alguns
passos largos para alcançá-la, então nossos passos se
emparelharam. Tínhamos quase a mesma estatura, mas
ela era um pouco mais baixa que eu.
— Deve haver muito trabalho por aqui — supus.
Tentava puxar assunto porque achava insuportável que
caminhássemos em silêncio.
— O senhor nem imagina o quanto!
— Quando precisar de ajuda, não hesite em me
pedir. Não é justo que uma moça delicada fique se
esforçando com baldes cheios e coisas desse tipo.
— É muito gentil — ela sorriu, direcionando-me
um olhar carinhoso —, mas já estou acostumada. De
qualquer forma, vou me lembrar disso.
— Então suponho que já trabalhe nesta casa há
muito tempo.
— Sim, desde a minha adolescência.
— Se me permite observar, sua função de
arrumadeira parece ser a mais carregada de todas. A casa
não é pequena e, ainda assim, está impecavelmente limpa.

32 DAVI VALE
— O senhor tem razão. Originalmente esta casa foi
projetada para abrigar mais pessoas, mas foi se
esvaziando até que ficaram apenas a madame e sua filha,
remanescentes de uma família que já teve seus momentos
de glória. Apesar do tamanho da casa, eu não fico
sobrecarregada. Tanto a Helena quanto Raquel me
ajudam na limpeza. Seria exaustivo mantê-la limpa se não
fosse pela ajuda delas.
— Deve haver muitos quartos vazios lá em cima.
— Hoje, não muitos. A Sra. Milovan conta que
antigamente todas as empregadas ficavam no único
quarto do terceiro andar, um cômodo grande e de teto
inclinado, mais parecido com um sótão do que com um
quarto. Dormiam em camas amontoadas e muito
próximas entre si, de modo que bastava esticar o braço
para alcançar a cama vizinha. Com o esvaziamento da
casa, a madame concedeu generosamente às empregadas
os quartos do segundo andar.
Subimos as escadas e, lá em cima, fiquei tão
distraído na contemplação dos detalhes arquitetônicos que
não soltei palavra. Emergimos numa sala ampla, com
paredes brancas repletas de portas e uma janela que se
voltava em direção ao nascer do sol. Caroline ia adiante
de mim, então meu olhar se deteve por um instante no seu
quadril, nas linhas das nádegas sob a roupa, nas curvas da
cintura e na alvura das pernas abaixo do vestido. Seus
cabelos estavam presos em coque e um lenço amarelo os
enfeitava. Olhei para seu pescoço delicado, observando a
pelugem loira que brilhava com a claridade matinal. Num
A MENINA NO QUARTO 33
instante ela interrompeu seus passos de forma súbita,
então eu quase esbarrei o balde em sua perna.
— O senhor pode deixar o balde aqui — avisou, e
me agradeceu. Apanhou-o, entrou num dos quartos e
fechou a porta atrás de si.
Achei-me sozinho naquele lugar silencioso,
atingido pela sensação de que não devia estar ali. O que
Nadia Vukmir pensaria se me visse sozinho no segundo
piso? Voltei rapidamente pelo mesmo caminho por onde
tinha vindo, mas no meio do salão ocorreu algo
inesperado. Uma das portas se abriu de supetão, de onde
emergiu Helena e, como todo seu vigor juvenil, esbarrou
em mim. Estava com pressa e parecia ter acabado de
acordar.
— Me desculpe! — disse eu, e recuei um passo.
Ao vê-la de corpo inteiro, não pude evitar minha
surpresa. Helena usava uma camisola curta de seda, e por
debaixo dessa peça de roupa não usava absolutamente
nada. Os mamilos espetavam o tecido liso e branco, cuja
transparência permitia discernir a brancura da pele dos
seios. Todo seu corpo era demarcado sob a camisola, o
quadril de linhas perfeitas, a barriga lisa e até as curvas
pubianas. Congelei instantaneamente, embaraçado. Meus
lábios ficaram petrificados enquanto meus olhos
percorreram, num movimento involuntário, todo o seu
corpo até as pernas brancas e intocadas, e então, numa
reação tardia de pudor, desviaram-se para um ponto
qualquer da parede contígua.

34 DAVI VALE
Esperei pela bofetada ou pelo grito, mas nenhum
dos dois se sucedeu. Helena tão somente se afastou do
caminho e me deu passagem. Sua reação era tão natural e
despudorada quanto seria se ela estivesse vestida com
uma roupa qualquer. Retomei meu caminho sem olhar
para trás, desci as escadas o mais rápido que pude e fui
direto para o jardim.

A MENINA NO QUARTO 35
5.

Helena não esperava que eu pudesse estar no segundo


andar da casa. Se aquilo chegasse aos ouvidos da
madame, como eu poderia explicar minha presença ali?
Não era difícil perceber minha posição embaraçosa e a
desvantagem dos meus argumentos. Mesmo que Caroline
dissesse que me pediu para ajudá-la, eu temia pelas
consequências daquele encontro imprevisto.
Trabalhei sem conseguir pensar em outra coisa,
mas a certa altura percebi que, na verdade, eu pensava
mais no corpo de Helena do que nas possíveis
consequências de tê-lo visto. Ocorria que, sob aquela
camisola fina, todas as suas curvas haviam ficado em
evidência: os seios firmes, as pernas saudáveis, a cintura
delicada e até mesmo as curvas da virilha. Obviamente, já
tinha visto a nudez de uma mulher, mas fiquei surpreso
com o fato de que uma garota que acabara de sair da
puberdade pudesse ter o corpo tão mais atraente do que
qualquer outro que eu me lembrasse. Ocorreu-me que ela
até poderia ter mais idade do que seu rosto aparentava.
Embora eu não a tivesse visto nua de fato, para mim isso
não fazia muita diferença, pois, a meu ver, ela estava tão
nua com aquela camisola quanto estaria sem ela.
Naquela manhã ensolarada, as horas demoraram a
passar. A madame me cumprimentou por volta das dez, e
logo pude perceber em seu olhar cordial que a camareira
não lhe contara nada. Se ela fosse contar, já o teria feito.
36 DAVI VALE
Ademais, se tivesse contado, a madame com certeza não
teria me cumprimentado com uma cordialidade tão
sincera.
Aliviado, minha nova preocupação era rever
Helena e pedir-lhe desculpas. Passei a planejar as
melhores palavras para exprimir meu arrependimento e
explicar minha presença intempestiva. Falei em voz alta a
fim de escutar as palavras de minha própria boca e fiquei
admirado com o resultado. Após o almoço, porém,
quando avistei Helena no jardim, todas essas palavras
previamente ensaiadas desapareceram de minha memória
e eu me arrependi de não tê-las escrito num papel.
A camareira estava sentada num dos bancos, na
lateral esquerda da casa, e se aquecia sob sol vespertino.
Mesmo sem saber as palavras a dizer, mas tendo em
mente o que, em essência, eu desejava lhe falar, tomei
coragem e fui em sua direção. Ao notar minha
aproximação, ela se arrastou no banco de modo que eu
coubesse ao seu lado.
— Sente-se aqui — convidou-me ela, com seu jeito
meigo de falar. Olhava-me de baixo para cima, de
maneira que sua cabeça se inclinasse sutilmente, e puxava
para trás da orelha uma mecha de cabelo solto.
Não pude recusar o convite, embora, em meu
planejamento de tudo, eu estaria de pé. Helena usava um
vestido de uma cor incerta, algo entre o cinza e o pardo,
adornado com uma cinta preta que formava um laço sob o
busto. Em comparação com a camisola transparente que
usara mais cedo, parecia estar coberta por quilos de pano.
A MENINA NO QUARTO 37
— Bela tarde, não? — observei ao me sentar, na
tentativa de preparar o terreno para o assunto que estava
por vir.
— Sim, realmente — respondeu ela, a testa
franzida e os olhos semicerrados por causa do sol. — E
aqui fora está muito mais agradável. — Ajeitou os
cabelos e os trouxe sobre um dos ombros, expondo o
pescoço branco. Era tão branco que parecia feito de
porcelana.
— Quero me desculpar pelo que ocorreu esta
manhã — as palavras saíram sem nenhum planejamento,
mas o tom de minha voz foi tão decidido que eu mesmo
fiquei surpreso.
— Se desculpar por quê?
— Por ter te surpreendido lá em cima.
— Não foi sua culpa — disse ela, enquanto
acariciava os próprios cabelos.
— Então não está brava?
— Claro que não — ela sorriu. — Por que estaria?
Fiquei aliviado com sua maneira natural de falar.
Ocorreu-me um forte sentimento de gratidão. Olhei-a e
ela sorriu para mim. Era como se Helena fosse uma velha
amiga, como se nos conhecêssemos há muito mais tempo.
Pensei que poderia ficar ali o resto da tarde, apenas
sentado ao seu lado sob o sol agradável daquele fim de
outono, sem precisar acrescentar palavras àquele diálogo.
Mas logo me senti forçado a puxar um assunto qualquer:
— Faz muito tempo que você trabalha nesta casa?
— Quatro anos — respondeu Helena.

38 DAVI VALE
— E gosta daqui?
— Se refere à Rebouças?
— Me refiro a esta casa, e esta família.
— Sim. É um lugar bonito e agradável, e a madame
é muito generosa.
A resposta pareceu-me um tanto sem convicção.
Ela poderia ter mentido ao dizer que gostava do lugar, ou
mentido sobre a generosidade da madame. Ou talvez
fosse apenas uma impressão equivocada de minha parte.
— Nunca sentiu medo?
— Como assim? — Helena franziu o cenho.
Percebi então que minha pergunta, da maneira que a
dirigi, não fazia o menor sentido.
— É que esta casa parece tão…
— Sombria? — ela se antecipou. — Já me
acostumei, mas devo concordar que algumas vezes ela me
dá calafrios, especialmente à noite. Dá impressão de que
a casa tem vida própria. Sabe, é uma construção antiga, às
vezes os encanamentos e as tubulações fazem barulho
atrás das paredes. Mas não se assuste, a madame sempre
diz que todas as casas antigas são assim — deu uma
risadinha, embora eu não entendesse onde estava a graça.
— E quanto ao senhor, o que está achando daqui?
— Estou gostando muito. O jardim é bonito e
favorecido pela geografia local. Tem muito trabalho
acumulado, mas em uma semana tudo estará em ordem. E
eu gosto deste ar, é fresco e agradável, imagino que por
causa do riacho que há nos fundos.

A MENINA NO QUARTO 39
— No verão, esta é a propriedade mais fresca da
rua. Porém, no inverno ela se torna insuportavelmente
fria.
— Permita-me uma pergunta: onde estão seus pais?
Helena pareceu incomodada. Demorou a responder,
abaixou o olhar e entrelaçou os dedos.
— Peço desculpa se fui inconveniente — tentei me
eximir.
Ela olhou para mim de um jeito melancólico.
— Não conheci meus pais, Sr. Silva. Morei num
orfanato até os treze anos, quando a madame me trouxe
para cá.
Considerando que Helena havia sido trazida há
quatro anos, calculei que ela tinha 17.
— Sinto muito por isso.
— Obrigada — ela respondeu com um sorriso
triste.
Ambos ficamos em silêncio. Helena parecia refletir
sobre o peso das próprias palavras. O vento soprou por
um instante, agitando as folhas das árvores, depois cessou
e tudo voltou à quietude de antes. Olhei para o céu, que
estava tão azul quanto se pode imaginar. O dia pareceu-
me mais agradável do que nunca.
— Aparentemente, a madame é uma boa pessoa —
comentei.
— Ela me tirou do orfanato — falou Helena, meio
alheia, com os olhos fixados melancolicamente a uma
pedra qualquer no chão.

40 DAVI VALE
— Imagino que deve ser horrível viver em um
orfanato.
— O senhor está enganado — afirmou ela,
direcionando-me um olhar sincero. — Eu gostava de lá.
Ficávamos numa ala só para meninas. Sabe, tinha as
minhas amigas, muitas das quais cresceram comigo, elas
eram como irmãs para mim. Eu as adorava, mas o desejo
de ter uma família de verdade, de ter alguém que
possamos chamar de mãe, de ter um quarto só nosso, esse
desejo é mais forte. Infelizmente, grande parte delas
acabou não tendo essa oportunidade porque, depois de
certa idade, nenhuma família mais se interessa. O tempo
inteiro eu via novas meninas chegando, e semanas depois
sendo adotadas por algum casal sorridente, apenas porque
estavam na “melhor idade para a adoção” — sinalizou as
aspas com os dedos e engrossou a voz, como se imitasse a
fala de outra pessoa —, mas nós que já tínhamos passado
dessa idade ficávamos à margem. Eu tive sorte por ter
sido adotada. Quando a madame me escolheu, ela deixou
bem claro que eu seria sua criada, e não sua filha, mas
isso não fazia diferença. A diretoria do orfanato não se
importava com o que as pessoas fariam conosco, contanto
que nos adotassem. Os quartos estavam lotados, e
algumas das meninas dividiam a mesma cama, sabe?
Então, sempre que surgia um adulto interessado na
adoção, contanto que apresentasse comprovação de suas
condições financeiras, a diretoria fazia vista grossa.
— Então, ter vindo para cá não foi exatamente
como você esperava?
A MENINA NO QUARTO 41
— Mais ou menos. Claro que foi uma decepção
para mim quando descobri que a madame não me via
como uma filha, mas como uma criada. Por outro lado, eu
tinha enfim uma família. Não era exatamente a família
que eu tinha sonhado, mas provavelmente não seria
adotada nunca. E tem Carol, que é mais do que uma irmã
para mim.
— Caroline também veio de um orfanato? —
perguntei, tentando parecer indiferente.
— Sim — respondeu de um jeito seco. Parecia não
querer continuar o assunto.
Olhei para o céu e observei a altura do sol. A tarde
encurtava-se. Era preciso trabalhar.
— Preciso voltar ao trabalho — falei.
Ela concordou com um gesto de descontentamento.
— Te espero no jantar — ela avisou, antes que eu
me afastasse.
— Se não for incômodo.
— Claro que não será — Helena sorriu, e mais uma
vez meu coração disparou. Seu sorriso parecia me
hipnotizar.
Voltei ao trabalho e Helena ficou me observando
por quase meia hora, provavelmente porque não tinha
mais nada para olhar. Em seguida, se levantou e entrou na
casa. Observei-a se afastar, subir os degraus da escada de
mármore e passar pela porta do vestíbulo. Esperava que
ela desse uma última olhada para trás, que me sorrisse
uma última vez antes de entrar, mas isso não aconteceu.

42 DAVI VALE
Logo que Helena sumiu de vista, olhei casualmente
para uma das janelas do segundo piso, onde notei uma
silhueta a me observar. Não era a madame, a julgar pelo
porte físico, tampouco poderia ser Caroline ou Raquel.
Com a luz do sol refletindo no vidro, não era possível
reconhecê-la, mas pelo porte aparentava não possuir mais
que um metro e meio de altura. Era uma criança. Uma
menina magra, a pele clara quase translúcida, os cabelos
escuros que escorriam sobre os ombros até o meio do
tronco. Usava um vestido de cor clara que acentuava sua
palidez. Quando percebeu que eu a olhava, afastou-se da
janela como se tentasse se esconder de mim.

A MENINA NO QUARTO 43
6.

Minha dedução, e não creio haver outra possível, foi de


que aquela menina na janela era a misteriosa filha de
Nadia Vukmir — o que significava, portanto, que
realmente havia uma criança na casa. Eu ainda não tinha
acreditado totalmente que Júlia fosse mantida presa
naquele quarto, pois a situação parecia-me inverossímil.
Vê-la através do vidro era a confirmação que me faltava.
Por que aquela pobre criança ficava presa em seu quarto?
Eu precisava compreender tal mistério, e enquanto não o
desvendasse não me daria por satisfeito. Pensei em
perguntar à própria madame se ela tinha algum filho ou
filha, a fim de analisar sua reação diante da pergunta. No
entanto, como qualquer demonstração de curiosidade
poderia incomodá-la, precisava ser muito cauteloso em
minha abordagem. Esperaria por um momento oportuno.
Outro fato intrigante era que, até então, eu não
ouvira qualquer menção ao marido de Nadia Vukmir.
Não existiam sinais de que algum homem residisse
naquela casa. Nenhum dos porta-retratos dava pista de
que a madame fosse uma mulher casada, exceto o quadro
pendurado na parede do saguão, no qual se via o retrato
de um major fardado — mas nessa pintura também não
havia qualquer indicação sobre a identidade do homem,
tampouco se estava vivo ou morto. Eu admitia que duas
residentes da casa haviam passado despercebidas por
mim nos últimos dias e, não fosse pelos comentários das
44 DAVI VALE
empregadas à mesa de jantar, eu talvez ainda as
ignorasse. Pareceu-me impossível, todavia, que eu
pudesse não ter notado também a existência do meu
próprio chefe. Sem dúvida, o marido da madame, se é que
ele existia, não estava na casa, pois se estivesse eu já o
teria notado. Estaria talvez na guerra. Se este era o caso,
eu mal podia imaginar o quanto aquilo devia estar sendo
difícil para sua esposa.
Oportunamente, naquela mesma tarde fui
convidado por Nadia Vukmir a tomar chá na varanda. Já
devia se passar das 15 horas. Sentamo-nos ao redor de
uma mesinha branca e circular de madeira. Ventava
bastante, as folhas soltas dançavam no ar e as árvores
balançavam em seu ritmo lento e pesaroso. O brilho do
sol intensificava a cor das flores, do gramado viçoso e do
céu limpo. Perto do horizonte, algumas nuvens rarefeitas
pareciam fumaça branca de uma locomotiva invisível.
Enquanto nos acomodávamos, Raquel trouxe numa
bandeja um bule fumegante de porcelana, duas xícaras,
açúcar e biscoitos. A cozinheira se inclinou para depositar
a bandeja, tocando meus ombros com seus seios. Serviu-
nos com delicadeza e sorriu para mim quando agradeci.
Caminhou de volta para o interior da casa com um andar
dançante. Olhando-a, imaginei que ela talvez ficasse mais
atraente se cuidasse da própria aparência, mas parecia não
estar preocupada com isso. Era displicente. Não usava
qualquer tipo de maquiagem, tinha as sobrancelhas
grossas e sem forma, o vestido estava manchado de

A MENINA NO QUARTO 45
gordura e os cabelos tinham sido presos com um coque
malfeito. Além disso, suas roupas tinham cheiro de alho.
— Fiquei satisfeita com seu trabalho — falou
Mme. Vukmir, logo que Raquel se retirou.
— Fico feliz em saber, madame — respondi, muito
aliviado em perceber que meus esforços estavam sendo
reconhecidos.
— Nunca foi casado, Sr. Silva?
Respondi que não, surpreso com o assunto
repentino. Falei que, se lhe aprouvesse, ela podia me
chamar pelo meu primeiro nome. Ela sorriu e concordou.
Por ser tão raro vê-la sorrir, fiquei algum tempo a admirar
seu sorriso. Era elegante, ameno e um pouco contido, não
por timidez, mas por comedimento. Ela então se recostou
à cadeira, pondo-se à vontade, e disse:
— Me conte sobre seus pais e sua família.
— Eu era filho único — comecei. — Meu pai, que
também era jardineiro, me ensinou a cuidar de jardins
ainda na minha infância. Meus pais morreram durante um
surto de tuberculose quando eu tinha dezesseis anos. A
partir de então fui criado por meus tios.
Parei de falar, mas prossegui ao perceber que ela
aguardava que eu continuasse.
— Pouco antes do meu aniversário de 21 anos, meu
tio faleceu no meio de uma noite quente de verão. Os
médicos disseram que foi derrame. Naquele mesmo mês,
minha tia adoeceu e morreu. Dizem que ela adoeceu
porque ela não suportou o luto. Os dois eram muito
apegados, tinham aquele tipo de conexão rara e intensa.

46 DAVI VALE
Haviam passado cinquenta anos casados, e minha tia não
encontrava razão para viver mais um ano que fosse sem
ele. É algo lindo de se pensar, embora triste. A morte de
minha tia, na verdade, não foi tão inesperada: ela já era
fraca, entregou-se à morte como se a desejasse, e eu a vi
definhar lentamente até o fim. Depois disso, vendi a casa
porque não suportava mais a sensação de luto que ela me
trazia. A senhora me perguntou sobre minha família.
Meus tios eram minha única família, os únicos parentes
com quem eu mantive contato após a morte dos meus
pais. Minha verdadeira família morreu com eles.
Quando terminei, me perguntei como Nadia
Vukmir conseguira me fazer falar tais coisas. Ela sequer
precisara insistir: bastou dirigir a mim seus olhos
cinzentos e eu, como que enfeitiçado, me vi falando pelos
cotovelos. Era como se seu olhar me transmitisse
tamanha confiança e simpatia que, sem perceber, eu me
visse forçado a retribuir. Fiquei melancólico. Meus olhos
ardiam, estavam úmidos, então fiquei um pouco inquieto
na tentativa de conter o choro. Era a primeira vez que eu
contava todas essas coisas a alguém numa única tacada.
Não pude evitar a sensação de ter me exposto em
excesso. Sentia como se tivesse revirado meu próprio
vômito. Por outro lado, estava aliviado, como se
descarregasse das costas um peso do qual já houvesse me
esquecido.
— Sinto muito! — disse ela com o olhar
sinceramente condolente. — No entanto, aqueles que

A MENINA NO QUARTO 47
passam por momentos difíceis acabam por se tornar mais
fortes, e eu vejo que você é um homem forte.
Enquanto falava, Nadia Vukmir mantinha o
pescoço hirto e movia sutilmente as sobrancelhas
castanhas. Gesticulava com as mãos e, vez ou outra,
acariciava a ponta dos cabelos ondulados com seus dedos
compridos. Quanto aos cabelos, naquela tarde ela optara
por desfazer o coque habitual e os prendera com um laço
em forma de rosa, deixando que as ondulações dos fios
negros lhe cingissem o pescoço.
— Desculpe minha intromissão — disse eu,
quebrando o curto silêncio —, mas onde está seu marido?
— Bem… — direcionou o olhar para as mãos —
Ele foi chamado para uma missão e nunca mais voltou.
— Levantou a face, mas seu olhar estava triste. — Já faz
treze anos. Dan era major do exército. Foi enviado com a
tropa em 1929 e sua última carta chegou a mim em 1930.
Depois disso, nunca mais tive notícias.
— Sinto muito. Deve ter sido difícil para senhora.
— O mais difícil foi me convencer de que meu
marido estava morto sem poder ver seu corpo como
evidência. Confesso que às vezes penso ouvir sua voz, e
me levanto assustada pensando que ele está de volta, mas
então percebo que não passa de uma ilusão: ele está
morto e seus restos repousam no campo de batalha.
Eu não soube o que dizer, apenas digeri as
palavras. A escolha de “restos” como expressão parecera-
me um tanto mórbida. Agora ambos nos sentíamos
melancólicos. Os olhos da madame brilharam com

48 DAVI VALE
lágrimas que pareciam prestes a lhe escorrer pelas
bochechas. Suas mãos estavam apoiadas sobre a mesa, e
eu coloquei minha mão sobre elas num gesto de consolo.
Ela me olhou de um jeito terno, então fez com que minha
mão ficasse entre as suas. Estavam quentes e tinham uma
textura sedosa e macia. O toque das nossas peles causou
em mim uma estranha sensação que misturava o
desconforto e o prazer.
A madame recolheu-as logo em seguida, mas não
ficou claro se ela fez isso porque estava incomodada.
Pegou a xícara e bebeu um gole de seu chá. Ofereceu-me
os biscoitos, dizendo que eu não precisava me acanhar.
Comi alguns. Voltamos a ficar em silêncio, e parecia que
o barulho dos biscoitos sendo triturados no interior de
minha boca era estrondoso. Ela observou-me enquanto eu
mastigava, e seu olhar possuía uma espécie de
expectativa. Como se os biscoitos estivessem
envenenados, eu pensei. De fato, ela não tinha comido
nenhum. Mas por que ela me envenenaria? Não faria
sentido algum. Afastei logo esse pensamento tolo da
cabeça.
Então, lembrei-me de Júlia. Decidi fazer a pergunta
que havia planejado horas antes. Tentei pensar na melhor
forma de abordar o assunto sem parecer demasiado
curioso.
— A madame teve filhos? — perguntei, mantendo
o tom mais casual possível.
— Sim — respondeu ela.

A MENINA NO QUARTO 49
Levantei as sobrancelhas na tentativa de parecer
surpreso. Perguntei-lhe então quantos filhos ela teve.
— Tenho uma única filha. Chama-se Júlia. Dan foi
embora algumas semanas após o parto, por isso eu a criei
sozinha.
Recordando-me de que ela dissera que seu marido
havia ido à sua última batalha em 1929, calculei que a
menina teria 13 anos de idade.
— E onde está sua filha agora? — indaguei com
naturalidade, mas logo em seguida temi que a pergunta
pudesse irritá-la de alguma forma. Ela fitou-me com
frieza até que, constrangido, eu desviasse meu olhar para
a xícara de chá.
— Júlia está em seu quarto, como sempre —
respondeu, afinal, num tom de voz neutro.
— Eu ainda não a vi. Gostaria de conhecê-la.
— Quem sabe um dia, Victor. Mas por ora, isso
será impossível.
— Impossível? Como assim?
— Natural que o senhor não compreenda. Mas não
se esqueça de que é apenas meu jardineiro.
A forma como ela encerrou o assunto deixou-me
encabulado. Houve um silêncio tenso. Nadia Vukmir
tomou um pouco de chá, em seguida me olhou
diretamente nos olhos por longos cinco segundos.
— Você tem belos olhos — observou. — À luz da
tarde adquirem um tom dourado, embora na verdade eles
sejam castanhos. Gosto de olhos que parecem mudar de
cor.

50 DAVI VALE
O elogio me pegou de surpresa. Ela parecia ser um
tanto imprevisível: mal acabara de me dar uma bronca e
agora estava me elogiando.
— Herdei os olhos de meu pai — disse eu. — E,
dizia minha tia, o caráter de minha mãe.
Ela sorriu, e então comeu seu primeiro biscoito.
Conversamos por mais algum tempo. Mme.
Vukmir falou-me de sua família, dos pais que haviam
ficado na Europa, das propriedades que possuíam e de
como ela havia se afastado deles após seu casamento.
Era agradável estar ali naquela tarde ensolarada,
contemplando as nuvens brancas no horizonte enquanto
aquela elegante mulher me concedia sua atenção. Eu me
sentia privilegiado, como se ela fosse uma personalidade
ilustre. Descobri, afinal, que todas as minhas impressões
iniciais a seu respeito eram pura ilusão, que na verdade
ela era uma mulher não só muito inteligente, mas dona de
uma mente livre. Não parecia mais ser uma religiosa
fanática, tal como me pareceu no princípio, mas dona de
si, livre de tudo o que pudesse estorvar a razão ou o
discernimento da vida. Sozinha naquela casa e em posse
de toda a fortuna de seu falecido marido, ela levava uma
vida de luxo comedido. Desfrutava de uma solidão que eu
próprio não sei se suportaria levar sem que desejasse, por
força da necessidade, preenchê-la com uma nova relação
amorosa. A ela parecia, porém, tão natural a solidão da
viuvez quanto pareceria a uma idosa que já se tivesse
convencido de que a morte estava a sua espera num
futuro demasiadamente próximo. Ela me contou que não
A MENINA NO QUARTO 51
voltou a se envolver com outro homem depois de seu
marido. Espantava-me que uma mulher que ficou viúva
em tão curta idade não tivesse amado outro homem, mas
ela realmente parecia imune ao amor. Demonstrou-se
uma mulher forte e independente; era esta a nova imagem
que ela me transmitia, à qual passei a admirar.
A despeito de todas essas revelações, Nadia
Vukmir ainda me parecia abstrusa. Tive a impressão de
que, por mais que soubesse os detalhes de sua vida
pessoal, a parte mais essencial de seu caráter
permaneceria oculta. Até mesmo quando sorria, seus
olhos cinzentos como nuvens de chuva conservavam uma
frieza misteriosa.
Naquela tarde, quando retomava meu trabalho
poucos minutos após meu diálogo com Nadia Vukmir, vi
o contorno de alguém de pé em uma das janelas do
segundo piso. O vulto estava diante do vidro, imóvel, me
observando. Não pude ver seu rosto, mas não tive dúvida
de que era uma menina. A mesma que eu vira da primeira
vez. O que mais me intrigava era a forma como ela se
afastava da janela quando percebia que eu a tinha visto,
como se, amedrontada, tentasse se esconder de mim.
Todavia, ocorreu-me que a timidez era, afinal, a
característica mais previsível, em se tratando de uma
criança que fosse mantida presa daquela maneira.
Espantava-me que a mesma mulher com quem uma
hora antes eu tomara chá e conversara, tão educada,
inteligente e agradável, fosse, todavia, capaz de isolar a
própria filha do mundo. Somente duas explicações me

52 DAVI VALE
pareceram plausíveis: que Júlia tivesse alguma
deformidade física tão horrível que sua mãe preferisse
escondê-la das pessoas, ou que sofresse de alguma
doença mental. Ambas as hipóteses explicavam o fato de
a Sra. Milovan estar sempre no quarto com a menina, pois
Júlia precisaria de cuidados muito especiais. Em todo
caso, o isolamento me parecia cruel até mesmo em tais
circunstâncias.

A MENINA NO QUARTO 53
7.

Antes do ocaso, recolhi lenha para abastecer a caldeira. O


sol declinava tão lentamente que, a certa altura, pareceu-
me que havia estagnado no horizonte. A tarde rendia
como nunca. Enquanto recolhia a lenha, eu observava o
céu, admirando o tom arroxeado das nuvens que se
espalhavam no horizonte. Naquele instante, eu sentia um
imenso prazer pela vida: estava em ambiente novo, entre
pessoas agradáveis, exercendo o ofício que amava. Ao
mesmo tempo, tinha a sensação de que essa felicidade era
frágil, como se pudesse se desfazer a qualquer instante.
O sol avermelhado declinava à minha direita e,
defronte de mim, a casa dos Vukmir se elevava com a
imponência de um castelo. Sua sombra se alongava em
direção à entrada da propriedade, alcançando a rua
fronteira. As árvores do bosque cintilavam à luz do sol
como se resplandecessem. Em toda parte, pássaros
cantavam como se anunciassem a chegada da noite.
Certa vez, perguntei à minha mãe por que os
pássaros cantam ao pôr do sol. “Toda a natureza sabe que
este é o momento mais importante do dia”, respondeu ela.
Percebendo que a resposta não me fora satisfatória, ela
complementou: “No Éden, Deus se reunia com sua
criação quando o dia estava terminando; por isso os
pássaros cantam ao entardecer, eles anunciam o momento
de seu encontro diário com Deus.” Sempre achei
estranho, porém, que Deus tivesse tanta preferência pelas
54 DAVI VALE
aves. Parecia-me que esse sentimento estava mais nos
desejos humanos do que nos desejos divinos, pois a
capacidade de voar representa a liberdade que não temos
e, assim, cedendo a um impulso psicológico, acabamos
por divinizar as aves como se representassem a utópica
realização do nosso desejo de liberdade, uma liberdade
que, no fundo, só Deus pode ter.
Coloquei a lenha em um cesto e o carreguei para o
subsolo da casa. Embora estivéssemos em um país
tropical, aquela casa fora construída à moda das casas
vitorianas. Possuía um sistema de calefação que
interligava todos os cômodos, aquecido por uma caldeira
localizada debaixo da cozinha. Para acessar a caldeira, era
preciso entrar por um alçapão no lado de fora, à beira da
parede, e descer uma escada de madeira ruidosa que
levava a um cômodo apertado e quente. Uma vez tendo
descido a lenha para o pequeno porão, eu abastecia a
caldeira e controlava a pressão por meio de válvulas.
Embora se tratasse de um sistema antigo, não havia riscos
de explosão, entretanto era recomendável manter a
pressão sempre estável. Uma pequena lâmpada amarelada
era a única fonte de iluminação lá embaixo. Podia-se ver,
emergindo da parede, um cano de água fria que entrava
na caldeira por baixo, e outro que emergia dela por cima
com água quente. Um termostato indicava a temperatura
da água, e eu a controlava através de torneiras que
aumentavam ou diminuíam o fluxo da água, ou de
válvulas que controlavam pressão da caldeira. Era preciso
observar, simultaneamente, a temperatura do sistema de
A MENINA NO QUARTO 55
calefação e a temperatura da água, mantendo ambas em
um nível razoável, o que tornava essa tarefa um pouco
complexa.
Quando, após terminar esse serviço, saí ao ar livre,
percebi que uma súbita ventania gelada anunciava a
queda brusca da temperatura. A alteração do tempo
obrigou-me a entrar mais cedo, e mesmo dentro da casa
ainda era possível escutar o uivo melancólico do vento no
lado de fora. As árvores se encurvavam em toda sua
capacidade e suas folhas se soltavam e fugiam em
disparada para longe. Todo o bosque agora era uma
fuzarca de copas dançantes e folhas voadoras. Através da
janela da sala, observei por alguns minutos a revolta do
vento, mas na verdade o que eu observava era a minha
própria revolta, pois a ventania sempre recrudescia meu
trabalho: ao amanhecer, o jardim estaria coberto pelas
folhas que ora voavam sem rumo, e eu as teria de
recolher. Não que isso devesse me enraivecer, já que
limpar o jardim era nada mais que minha função, mas eu
me sentia como quem observa impotente alguém que
destrói o fruto de seu trabalho.
Caminhei em direção à biblioteca, onde pretendia
ficar para matar o tempo — o jantar só sairia em uma
hora. Quando passei pelo limiar da porta branca e
arqueada, através da qual se via as prateleiras cheias de
livros, encontrei Caroline e Raquel de pé no meio da
biblioteca em pleno diálogo. Elas não me viram entrar de
imediato, mas quando notaram minha presença a
conversa se interrompeu de forma súbita. Ambas tinham

56 DAVI VALE
na face aquela expressão que temos quando somos
flagrados em momento inoportuno. Saíram caminhando,
cada uma para um lado diferente, sem nem ao menos
terminarem o que falavam. Senti que minha chegada
havia sido intempestiva. Mais do que isso, pareceu-me
evidente que elas falavam de algo que eu não poderia
saber, ou talvez até falassem sobre mim. Claro que não
havia qualquer motivo para supor que era de mim que
elas falavam (poderiam estar a discutir um assunto de
mulheres, por exemplo), mas minha imaginação sempre
foi muito fértil. De qualquer forma, ignorei-as e fui
escolher um livro na prateleira para ler. Escolhi Morte no
Nilo, então me sentei numa de couro preto que fazia
barulho quando eu me movia sobre ela, mas que, apesar
disso, era bastante confortável.
Comecei a ler. Poucos minutos bastaram para que
eu mergulhasse na história. Embalado pelo silêncio e a
paz corriqueira da casa, avançava página por página, lia
rapidamente enquanto tentava prever os acontecimentos
seguintes. De repente, algo me despertou da leitura: tive a
súbita impressão de que havia mais alguém na biblioteca
além de mim. Olhei para trás, em direção à estante nos
fundos, e tive quase certeza de que alguém se escondia do
meu olhar. Havia no fundo da biblioteca uma porta que
dava para outro cômodo, a qual estava semiaberta; tive
certeza de que alguém me espionava através da fresta.
Levantei-me da poltrona, larguei o livro no assento e
caminhei até a porta. Ia empurrá-la, mas antes que eu a
tocasse ela sozinha se moveu. Paralisei assombrado
A MENINA NO QUARTO 57
enquanto a porta foi se abrindo e revelando aos poucos a
imagem que se ocultava atrás dela.
Primeiro vi seus olhos grandes e profundos, quase
cadavéricos, que me fitaram tão arregalados quanto os
meus. Pertenciam a uma idosa de feição severa, cabelos
prateados e tez pálida. Com as sobrancelhas grossas e
emendadas, o nariz pontudo, as bochechas muxibentas e
uma terrível verruga sobre a boca murcha, na ponta da
qual cresciam pelos espessos e grisalhos, ela era
provavelmente a mulher mais feia que eu já tinha visto.
Tinha por volta de 1m60 de altura. Seus cabelos finos e
frágeis estavam presos de forma displicente e vários fios
soltos caíam-lhe na testa enrugada. Seu pescoço parecia
pré-histórico com tantas e tão profundas rugas, e com a
pele tão cheia de pelotas repugnantes. Os olhos eram de
um azul pálido, embaciado. Escuras e pesadas bolsas de
pele se formavam sob os olhos, especialmente no lado
direito. Usava um vestido preto daqueles que as
governantas costumavam usar, gola e avental brancos, e
era sem dúvida a única coisa nela que não estava
tremendamente envelhecida.
— Que susto o senhor me deu! — disse a velha,
revelando a rouquidão gutural de sua voz. Seu hálito
parecia sepulcral, não exatamente o mau hálito de quem
não escova os dentes, mas o tipo de halitose que só têm
os doentes. Seus dentes pareciam perfeitos, mas logo se
via que eram na verdade uma dentadura.
— Desculpe por tê-la assustado, senhora — falei,
já começando a me recuperar do meu próprio susto.

58 DAVI VALE
Suspeitei que o susto dela não tinha sido nem
metade do meu. Na penumbra daquele início de noite,
não era de surpreender que eu me assustasse com ela.
— Deve ser o novo jardineiro — observou a
senhora, ríspida. — Sou Vera Milovan, a governanta — e
apertamos as mãos.
— Muito prazer. Sou Victor Silva.
— Sim, já estou sabendo. Agora, se o senhor me
der licença, preciso passar pela porta.
— Claro — respondi, afastando-me do caminho.
Ela então passou por mim e foi andando pela
biblioteca, enquanto eu a observava. Andava de um jeito
quase cômico, como se suas pernas não tivessem
articulações, fazendo com que seus passos fossem muito
curtos. Deixava no ar o cheiro estonteante de pomada
para dor.

A MENINA NO QUARTO 59
8.

Naquela noite, Raquel cozinhou uma sopa maravilhosa.


Fazia tempo que eu não experimentava algo assim, e tive
de elogiá-la até que suas bochechas se enrubescessem,
não de vergonha, mas de contentamento. Qual cozinheira
não fica assim quando elogiam sua comida? O caso foi
que meus elogios a conquistaram de tal modo que, ao
cabo de dez minutos, ela já me tratava como se eu fosse a
pessoa mais importante daquela mesa. Era muito
simpática, por isso realmente gostei dela. Percebi que seu
sorriso era muito amigável e sincero. Aliás, era um
sorriso um tanto cômico de se ver: quando ela ria deixava
a língua encostada aos dentes, como se os empurrasse
para fora com força. Tinha uma voz robusta e, quando
falava, movia os lábios com tanta desenvoltura que nem
era preciso ouvi-la para entender o que dizia.
— Sabe de uma coisa? — disse ela com certa
cerimônia. — Acho que todas nós estamos de acordo que
o senhor é um jardineiro bem mais caprichoso que o
anterior. Por exemplo, as flores parecem mais coloridas
agora do que nunca antes. É preciso muita sensibilidade
para cuidar das flores tão bem quanto o senhor cuida.
Deve ser um homem muito sensível, não?
Não entendi exatamente se aquilo era bom ou ruim,
mas não discordei. Claro que não quis ser presunçoso. O
caso é que elas pareciam adorar a ideia de um homem ser

60 DAVI VALE
sensível. Sobretudo Helena, que não parava de me avaliar
com aqueles olhos brilhantes.
— O que houve com o Sr. Gonçalves, o antigo
jardineiro? — perguntei, a propósito do assunto.
— O Sr. Gonçalves faleceu há um ano —
respondeu Helena com certa melancolia.
— Foi encontrado morto ao amanhecer — rematou
Caroline com a voz carregada de mistério, como se
narrasse um conto de suspense. — Morreu enquanto
dormia. No dia de sua morte, ele demorou a sair para
trabalhar, e como isso não era habitual, a Sra. Milovan foi
saber o motivo da demora. Ela o encontrou deitado na
cama com o ventre para cima, gelado como uma pedra,
mas os olhos fechados e a face serena demonstravam que
não havia sofrido.
— Poupe-nos dos detalhes, Carol — protestou
Helena.
— Pois o Sr. Silva parece bem interessado.
— Pois ele vai ficar muito mais interessado quando
souber que dorme na mesma cama onde o homem
morreu.
— Helena! — Raquel a repreendeu. — Você
precisava dizer uma coisa dessas?
— Como é? — indaguei, ainda digerindo a
informação.
— Como não tinha cama disponível para ser
colocada em seu quarto, trouxemos a que estava na velha
cabana — explicou Helena.

A MENINA NO QUARTO 61
Lembrei-me de como a cama não combinava com o
restante da mobília em meu quarto. Realmente, parecia
ter sido trazida de outro lugar.
— Não se preocupe — acudiu Caroline. —
Logicamente os lençóis e os cobertores foram queimados.
Eu mesma os queimei. Até mesmo o colchão foi
substituído. Apenas a cama foi trazida, logicamente
depois de ser limpa. A madame não queria gastar com
uma nova cama. Mas por acaso o senhor tem medo de
fantasmas?
Eu não soube se ela estava sendo sarcástica, pois
seu olhar foi neutro. Em todo caso, a forma como me
dirigiu a pergunta fez parecer que ela não acreditava em
fantasmas, tampouco em qualquer outra coisa que
remetesse ao sobrenatural.
— Claro que não! — retorqui com uma convicção
suspeita. Ocorria que, depois da noite anterior, eu já não
sabia em que acreditar.
Como ninguém mais quisesse falar do morto,
mudamos de assunto. Helena não parava de me olhar, e
como estávamos defronte um do outro, era inevitável
olhá-la também. Caroline e Raquel também me olhavam
com certa frequência, embora não tanto quanto Helena, e
no caso da primeira, era sempre com o olhar dotado de
alguma timidez.
Caroline era uma de natureza mais reservada, de
sorriso contido e gestos cuidadosos. Era de poucas
palavras e, quando falava, emitia tão pouco som que era
preciso prestar bastante atenção para entendê-la. Já

62 DAVI VALE
Helena era de natureza totalmente oposta. Quanto a mim,
no que se referia à Helena, por vezes me vi confuso
diante de suas atitudes: seus modos sorridentes e sua
natureza comunicativa tornavam difícil discernir se ela
estava me dando algum tipo de atenção especial, ou se era
apenas sua forma carismática de tratar todas as pessoas.
Conversamos ali durante um bom tempo, e foi
bastante agradável. Eu sentia que estava me tornando
mais íntimo das moças. Começávamos a nos entender
melhor e perdíamos a vergonha de dizer certas coisas e
agir de certas maneiras. Comecei a me soltar, a ser mais
natural, na medida em que ia me sentindo seguro de ser
eu mesmo.
Após o jantar, sucedeu-se uma coisa incomum. Era
já perto da hora de dormir e as luzes da maioria dos
cômodos estavam apagadas. Eu caminhava em direção ao
meu quarto quando encontrei Nadia Vukmir na sala
principal. Havia apenas um abajur aceso ao lado de sua
poltrona, cuja luz lhe incidia pela direita. Todo o restante
do cômodo estava escuro, ainda mais que as cortinas se
achavam fechadas. Nadia Vukmir olhava fixamente para
frente, para o breu. Como não esboçasse qualquer reação
em resposta à minha chegada supus que não havia me
notado.
— Madame? — eu chamei, mas ela não respondeu,
apenas continuou ali estagnada, as pernas juntas e os
braços caídos sobre os apoios da poltrona. Usava vestido
preto de lã e seus cabelos estavam soltos. Não era comum
vê-la de cabelos soltos. Aproximei-me um pouco mais.
A MENINA NO QUARTO 63
— Está tudo bem? — voltei a dizer, e novamente
não obtive qualquer reação.
A ausência de retorno começava a me deixar muito
preocupado. Cheguei ainda mais perto dela e pude ver
que suas unhas estavam cravadas no couro da poltrona.
Eu estava já ao seu lado. Conseguia escutar sua
respiração, que estava curta e pesada. Seus olhos
lacrimejavam um pouco. O que realmente me assustou,
porém, foi sua fisionomia: tinha os olhos arregalados e
vidrados, os dentes cerrados com força, o sobrolho
franzido e os lábios deformados por uma espécie de
pranto contido, como se sentisse ódio de si própria ou se
arrependesse profundamente de algo. Parecia que não
estava em si, mas mergulhada numa espécie de transe,
desligada do próprio corpo. Para mim, foi inédito vê-la
naquele estado espantoso. Fiquei tão preocupado que tive
vontade de tocá-la. E foi exatamente o que fiz: toquei-a
no ombro esquerdo com muita cautela — mas tão logo a
toquei, ela voltou subitamente seu rosto soturno em
minha direção, fitando-me com o olhar mais sombrio que
eu já tinha visto em uma mulher.
— Me deixe em paz! — disse ela de forma ríspida,
com uma rouquidão lacrimosa.
Recuei, embaraçado, e fiquei olhando de longe para
ela por alguns segundos, sem saber exatamente se ia
embora ou se continuava ali para prestar algum tipo de
auxílio. Ela continuou me fitando com um olhar sombrio
até que eu saísse da sala, como que a dizer-me que não
me queria por perto.

64 DAVI VALE
9.

Ao entrar em meu quarto, tranquei a porta e


verifiquei se estava realmente segura. Eu precisava ter
certeza de que ninguém conseguiria entrar enquanto eu
dormia. Apesar de essa preocupação soar paranoica, em
vista das coisas estranhas que eu andava observando
naquela casa crescia em mim uma urgência por
segurança. Ainda tentei ler um pouco, mas com tantas
informações na mente eu não conseguia me concentrar na
leitura, então larguei o livro e resolvi me deitar. O
problema era que eu ainda não estava com muito sono,
apesar de não sentir a mínima disposição para ler. Apenas
apaguei a luz e deitei na cama, mas permaneci com os
olhos abertos.
De repente, me flagrei pensando novamente no que
acabara de acontecer. Veio-me à memória o instante em
que Mme. Vukmir me fitou com aqueles olhos tristes e
desesperados. Parecia tomada de um sentimento
nostálgico, de uma melancolia irremediável. Um detalhe
que me incomodava era a maneira como ela me pediu
para que a deixasse em paz, não pela rispidez, mas pela
expressão de seus olhos. Tive a sensação de que suas
palavras não se dirigiam a mim. Era uma impressão vaga
e confusa, algo como uma percepção abstrata ou um
devaneio, mas senti como se ela tivesse falado a outra
pessoa, como se houvesse mais alguém naquela sala. Tal
suposição soava tão implausível que, pensando bem, era
quase delirante.
A MENINA NO QUARTO 65
Enquanto minha mente divagava com esses
pensamentos, estive tão absorto que fiquei aéreo à
realidade, de forma que demorei a observar que algo
incomum estava acontecendo: meus ouvidos captavam
um som diferente, e isso me fez voltar a mim
imediatamente. Tratava-se de um choro idêntico ao que
eu escutara na noite passada, e desta vez eu estava certo
de não estar sonhando ou delirando.
Era minha primeira oportunidade de avaliar a
situação à luz da razão. Mantive a calma. Fiquei
escutando por algum tempo, ali no escuro do quarto,
resistindo ao impulso de acender a luz ou me levantar da
cama. A voz pairava no ar, às vezes parecia estar tão
perto de mim que me causava arrepios, e às vezes se
distanciava e parecia ir para além das paredes. De súbito,
o volume do choro se elevou, causando a exata impressão
de que quem chorava havia se aproximado de mim.
Inclusive, tive a impressão de sentir o sopro de uma
respiração em minha nuca, sensação que me fez saltar da
cama às cegas no breu do aposento e, na confusão do meu
desespero, despencar no chão com um baque surdo.
Antes mesmo que eu pudesse recobrar a orientação
e me levantar, constatei que o choro havia cessado,
aparentemente interrompido no exato momento em que
caí no chão. Um silêncio sepulcral dominou o ambiente,
de maneira que eu podia escutar meu próprio coração —
e como ele batia acelerado! Eu realmente tremia de medo.
Levantei-me bem devagar, em silêncio, e tateei a parede
até encontrar o interruptor. Acendi a luz. Fui até a porta,

66 DAVI VALE
verifiquei se estava trancada e confirmei que permanecia
da mesma forma como eu a havia deixado — fato que me
assombrou ainda mais, pois, diante da sensação de que
havia mais alguém em meu quarto, minha mente só
conseguia chegar à conclusão de que eu acabara de ser
visitado por um fantasma.
Naquela noite, eu não conseguiria dormir. Aliás,
sequer apaguei a luz. Fiquei de vigília por toda a
madrugada, esperando pelo reaparecimento do espectro,
ou fosse o que fosse aquilo que me atormentava,
completamente convencido de que alguém — ou alguma
coisa — estivera chorando no interior do meu quarto,
bem perto de mim, tão perto que até pude sentir sua
respiração. Dada a clareza com que minha audição havia
captado o choro, não era possível que eu estivesse
enganado e tudo não passasse de imaginação — não,
aquilo era real. Eu escutara o choro tão nitidamente
quanto escutaria o som de minha própria voz. O pranto
lamentoso ainda retumbava em minha memória e, por
vezes, eu me enganava ao confundir essa recordação com
um som real. Nesses momentos de devaneio, assomava-se
em mim tamanho assombro que eu sentia vontade de ir
embora daquela casa.
No decorrer da noite, tomado pela obcessão, saí
várias vezes do quarto e perambulei pela casa escura.
Novamente fui até a entrada do porão, considerando a
hipótese de descer a escada e dar uma olhada lá embaixo
— mas eu estava certo de que aquele choro não poderia
ter vindo dali. Caminhei até a cozinha, a biblioteca, o
A MENINA NO QUARTO 67
gabinete, as salas e todos os cômodos do primeiro piso,
sempre muito silenciosamente, cm os sentidos aguçados e
o coração acelerado.
De certo modo, o medo me incentivava a buscar
ainda mais ensejos para o medo. O lado cético de minha
consciência me dizia que tudo devia ter alguma
explicação razoável, que eu precisava averiguar a questão
com calma, que seria um retrocesso intelectual entregar-
me à crença em fantasmas. Entretanto, um impulso ainda
maior me induzia ao exato oposto. Tentei me manter
apegado à minha razão, reconhecendo que a superstição é
fruto da ignorância.
Assim, pus-me a tentar analisar a questão da forma
mais sensata possível. Primeiramente, indaguei se apenas
eu escutava aquele choro ou se ele era ouvido pelas outras
ocupantes da casa — isto é, se apenas meu quarto em
particular tinha o privilégio desse espetáculo assombroso.
Tomei a resolução de, ao amanhecer, perguntar a alguma
das empregadas acerca disso.
Mas então me ocorreu que não dava para confiar —
não ainda — na resposta que elas me dariam, visto que
meu instinto me dizia que nenhuma das empregadas havia
sido completamente sincera comigo. Era preciso
descobrir a verdade de uma forma indireta, tentar arrancar
informações das empregadas sem que elas se dessem
conta disso. Obviamente, essa desconfiança quanto à
sinceridade das empregadas se originava não de um
instinto puramente irracional, tampouco numa espécie de
pressentimento abstrato, mas de pequenos acontecimentos

68 DAVI VALE
que eu presenciara no decorrer dos últimos dias. Por
exemplo, notei que todas as vezes que lhes falava acerca
de Júlia, elas desviavam o olhar num impulso comum aos
mentirosos. Isso sem contar com a maneira como sempre
se esquivavam do assunto, como se quisessem me
desencorajar a averiguar a questão. Somava-se a isso a
forma como Caroline e Raquel interromperam o diálogo
na biblioteca quando as surpreendi. Parecia inegável que
estavam mantendo confidências de mim.
Lembrei-me então de quando Helena me revelou
que eu dormia na mesma cama onde faleceu o Sr.
Gonçalves. Por alguma razão, a ideia de ocupar a cama de
um morto me incomodava. Minha mãe sempre dizia que
os móveis e utensílios de uma pessoa morta costumam
aprisionar parte de sua energia vital, como se tudo o que
possuímos durante nossa existência se tornasse parte de
nosso ser, como se fôssemos não apenas o que somos,
mas o que temos. Contava-me a história de uma amiga
sua que comprou um móvel usado, do qual não sabia a
procedência, instalou-o em seu aposento e, ao cabo de um
mês, ficou louca e se matou com uma corda no pescoço.
Embora não fosse possível estabelecer qualquer relação
entre a morte da mulher e a posse daquele móvel, a uma
pessoa facilmente impressionável como minha mãe era
inevitável chegar a semelhante conclusão. Ela era
supersticiosa e tinha centenas de histórias semelhantes
gravadas na memória, as quais fazia questão de contar
sempre que se tornavam propícias à ocasião de alguma
bronca. Não que eu acreditasse naquilo — para ser
A MENINA NO QUARTO 69
franco, nunca acreditei. Ao menos, não até aquele dia.
Meu insucesso na busca por explicações plausíveis para
os choros assombrosos em meu quarto me fazia ceder a
explicações alternativas que eram, naturalmente, menos
racionais.
Cochilei algumas vezes no decorrer da madrugada,
mas eu sempre acordava assustado. Por volta das três
horas da manhã, despertei de uma espécie de pesadelo
bizarro, então fiquei ainda mais perturbado e não
consegui cerrar os olhos. Perambulei pelo quarto e bati
nas paredes em busca de partes ocas, esperando encontrar
qualquer coisa que pudesse dar uma explicação racional
aos acontecimentos, ou alguma evidência de que alguém
estava pregando uma peça em mim com o propósito de
me ver amedrontado. Poderia eu estar sendo vítima de
uma brincadeira de mau gosto? Duvidava profundamente
dessa hipótese, já que ninguém na casa parecia ser do tipo
que se diverte com brincadeiras mofinas. Em todo caso,
precisava descansar, pois um homem não pode viver bem
sem ter as merecidas horas de sono que seu organismo
exige. Voltei a me deitar, porém demorei bastante tempo
para conseguir pegar no sono.

70 DAVI VALE
10.

Como de costume, acordei cedo. Vesti meu casaco, tomei


um café reforçado e fui trabalhar. Eu não me sentia
sonolento — para minha surpresa, estava até me sentindo
muito bem, a despeito de ter dormido tão pouco. Mas isso
não passava de efeito da cafeína, pois, três horas mais
tarde, meu corpo deu demonstrações de que a noite em
claro havia me roubado muita energia. Fui acometido de
uma exaustão e uma sonolência insuportáveis, mal
conseguia manter os olhos abertos. Era mister tirar um
tempo de sono.
Dei uma adiantada no serviço mais óbvio, de modo
que o jardim ao menos não parecesse tão descuidado, e
fui me deitar em algum banco mais afastado da casa.
Escolhi um banco à sombra de uma árvore do bosque,
onde eu sabia que não seria incomodado. Como já não
fazia frio, dobrei meu casaco e o fiz de travesseiro. Fechei
os olhos e, escutando o som das folhas secas que se
arrastavam pelo chão, o murmúrio do vento e o cantar
aleatório de um ou outro pássaro, fui de pouco a pouco
pegando no sono.
Senti que havia alguém diante de mim,
observando-me silenciosamente. Percebi que meus olhos
estavam fechados, mas quando os abri tive a súbita
constatação de que não era capaz de enxergar
corretamente. Meu olho esquerdo apontava
aleatoriamente para uma direção enquanto meu olho
A MENINA NO QUARTO 71
direito apontava para outra, ambos não respondiam bem
ao meu comando. Assim, era impossível identificar a
pessoa que estava a me observar: eu podia senti-la, mas
não era capaz de congelar meus olhos em sua imagem.
Não importava o quanto eu me esforçasse, tudo o que
enxergava era uma fuzarca de luzes e cores sem forma
definida. Decidi ir em rumo do meu observador, mas
quando comecei a andar tropecei em alguma coisa pesada
que me impediu de prosseguir, algo semelhante a um saco
de areia. A essa altura já não conseguia enxergar
absolutamente nada, estava cego. Tateei a coisa com as
mãos: com pavor, constatei que eu não tocava um saco de
areia, mas um cadáver! Soube, mesmo sem poder
enxergá-lo, que era o cadáver de uma criança, como se
esse conhecimento estivesse dentro de mim, como se eu
já o soubesse antes mesmo de notar que o corpo estava
ali. Tateei o rosto frio do cadáver, cuja pele rija lembrava
a textura do couro. Um terror negro crescia dentro de
mim. Tentei gritar, mas faltou-me a voz. O que estava
acontecendo comigo? Então acordei e percebi, com
grande alívio, que tinha apenas sonhado.
No entanto, se o desespero do sonho se esvaiu
quando despertei, outro desespero ainda maior me atingiu
em seguida. Percebi que estava deitado naquele banco no
jardim, a cabeça apoiada sobre o casaco enrolado, o
ventre voltado em direção ao céu e os braços caídos sobre
o peito — no entanto, embora acordado, era incapaz de
me mover. Estava com o corpo inteiro paralisado, exceto
os olhos. Fui tomado por uma sensação agonizante, um

72 DAVI VALE
sentimento de impotência. Era possível escutar o som
ambiente do vento, das árvores e até dos pássaros, mas
antes de me acalmarem, esses sons só recrudesciam meu
desejo de poder me livrar daquela paralisia. Tentei
acreditar que estava sonhando, mas eu sabia que não era
um sonho. Tive a assombrosa sensação de que ficaria
paralisado pelo resto da vida. Num instante de alívio,
consegui mexer um dos dedos da mão, em seguida todo o
braço e então o corpo. Por fim, eu estava livre.
Minha camisa grudara-se ao meu corpo e, na nuca,
o suor encharcava a borda dos meus cabelos. Minhas
mãos ainda estavam trêmulas. Tentei recobrar a calma.
Com o máximo de cautela, reconsiderei o que acabara de
me acontecer. Quanto tempo aquela paralisia havia
durado? Poderiam ter se passado alguns segundos ou
algumas horas, e no entanto eu não saberia dizer.
Paralisado como eu estivera, o tempo me transcorrera
sem forma definida, tornara-se incalculável. Eu já tinha
lido a respeito da paralisia do sono, condição em que a
mente acorda antes do corpo e, só por um momento, a
pessoa se encontra incapaz de realizar qualquer
movimento, pois seu corpo ainda está em estado de
hibernação. Seria isso então que me acontecera? Era
difícil dizer, já que nunca antes havia experimentado
coisa tão terrível. Ademais, podia muito bem ser possível
que as experiências de paralisia do sono fossem
completamente diferentes daquela que senti, e no entanto
isso nunca poderia ser confirmado, uma vez que a
experiência individual é subjetiva.
A MENINA NO QUARTO 73
Seja como for, minha experiência talvez pudesse
ser colocada lado a lado à sensação da morte. No instante
em que se está morrendo, o que se sente não pode ser
muito diferente: perceber a consciência se perder num
abismo escuro, sentir que a mente se desconectou do
corpo, que romperam-se as linhas que nos mantêm presos
a nós mesmos.
Como de hábito, naquele dia almocei sozinho. Em
seguida, fui para a biblioteca para matar a próxima meia
hora enquanto meu organismo fazia a digestão. Sentei-me
no sofá e me esparramei. Embora tivesse tirado um
cochilo no jardim, ainda me sentia sonolento. A casa
permanecia silenciosa como de costume, sem sinal das
empregadas ou da madame. Me perguntei onde elas
estariam.
Resolvi ler um livro, pois talvez fosse bom distrair
a mente. Escolhi um romance policial e me pus a ler o
resumo, conferindo se a história me interessaria. Porém,
fui interrompido antes mesmo de me decidir.
— Aí está o senhor — ouvi alguém dizer atrás de
mim.
Como estivesse de costas para a porta, tive de olhar
por sobre os ombros. Helena entrava no cômodo com seu
jeito de andar, sorrindo. Invadiu-me um sentimento
agradável e reconfortante, pois já me familiarizava com
ela mais do que com as outras. Helena usava um vestido
rosa que lhe batia acima dos joelhos, um tanto curto para
aquela época do ano. A luz intensa da tarde penetrava

74 DAVI VALE
pelas janelas da biblioteca e lhe incidia na face, corando
seu rosto e fazendo brilhar seus cabelos negros.
Sentou-se no braço do sofá onde eu estava, e por
pouco não se sentou em meu braço. Suas pernas brancas
encostaram-se às minhas. Estavam cálidas. Trouxe
consigo um suave cheiro floral que emanava da pele ou
da roupa.
— Está descansando? — perguntou-me ela.
— Estou apenas matando hora antes de voltar ao
jardim. Acabei de almoçar.
Helena sentou então ao meu lado. Com sua maneira
faceira de se sentar, seu vestido se moveu pelas pernas e
foi parar quase no meio das coxas. Suas pernas eram
brancas, a pele lisa e os joelhos delicados. Não usava
meias, e nem precisaria, pois sua pele era perfeita.
Lembrei-me de quando a vi de camisola, de seu corpo
quase nu, e de que agora aquele corpo estava perto do
meu.
— Está tudo bem? — ela perguntou. Eu estava tão
distraído com esses pensamentos que nem escutei a
pergunta, então ela a repetiu.
— Sim — respondi. — Por quê?
— É que o senhor parece… cansado. — Ela olhou
meu livro e, sem nada dizer, levantou-o de modo que
pudesse ver a capa. — Fico surpresa em saber que o
senhor tem o hábito da leitura — disse, e largou-o da
mesma forma brusca como o levantou.
— Eu não a culpo por sua surpresa, pois sou de
origem modesta.
A MENINA NO QUARTO 75
— Deve-se então afirmar que a leitura é um hábito
exclusivamente dos ricos?
— No geral, eu diria que sim. Por questões
históricas e sociais, é comum que os ricos se dediquem ao
estudo, enquanto os pobres ao trabalho braçal.
— Talvez seja verdade. — Helena refletiu por
alguns instantes. — Isso me entristece. Digo, pensar em
como a vida é mais fácil para uns e difícil para outros.
— Nascer é uma questão de sorte ou azar. Como
num jogo, você não controla se vai nascer rico ou pobre.
— A vida é tão injusta!
— Não creio que a vida seja injusta. A vida é
indiferente. O funcionamento do sistema social é que é
injusto.
Houve então um breve silêncio. Olhei para Helena,
que parecia ter se entristecido repentinamente com a
nossa conversa.
— Qual o problema? — perguntei a ela.
— Me entristece pensar nessas coisas… digo, na
injustiça do mundo.
Ela ajeitou os cabelos, fazendo emanar deles o
cheiro agradável de xampu, em seguida mudou de
posição e fez com que seu braço tocasse o meu. Sob a
ação do seu toque, minha respiração ficou mais curta e
meu pulso disparou. Eu sentia como se entre nós, por
intermédio daquele leve contato corporal, se
estabelecessem sutis conexões de energia.
Após um curto período em silêncio, decidi
perguntar:

76 DAVI VALE
— Durante o tempo em que mora aqui, você já
escutou algum som incomum durante a noite?
— Que tipo de som?
— Qualquer som que te deixasse assustada. Uma
voz, talvez. Qualquer coisa que não pudesse ser explicada
racionalmente.
— Acho que não — ela respondeu sem muita
convicção. Então, olhou para mim e sorriu, franzindo a
testa e inclinando a cabeça, como se lhe ocorresse uma
ideia engraçada. — Por acaso o senhor ouviu alguma
coisa estranha? — perguntou em tom levemente
sarcástico.
Refleti antes de dar a resposta. Tentava decidir se
era razoável contar a verdade.
Helena me olhou diretamente nos olhos, virando o
corpo em minha direção e apoiando uma das pernas no
assento. Estava ainda a sorrir, mas então assumiu uma
fisionomia muito grave, de preocupação.
— É sério? — indagou, como se eu já tivesse
respondido. — O que escutou?
— Eu não disse que escutei.
— Nem precisa. Seus olhos já disseram.
— Nada muito importante, para ser franco.
— Se fosse “nada muito importante”, o senhor nem
teria se dado ao trabalho de falar a respeito, hã?
— São apenas alguns barulhos esquisitos que tenho
escutado em meu quarto durante a noite.
— Eu acho que sua imaginação o está assustando
— disse ela, tocando a mão em meu ombro. — Não se
A MENINA NO QUARTO 77
esqueça de que a casa é antiga e faz barulhos de vez em
quando. Às vezes os rangidos até parecem vozes. Mas
não deixe que sua imaginação o assuste.
Eu sabia que aquilo não se aplicava ao meu caso,
mas não quis discutir com ela. A informação de que
precisava eu já tinha conseguido: Helena não havia
escutado os choros. Seria impossível que encanamentos
velhos fizessem semelhante barulho, e ela saberia disso
caso houvesse escutado o que escutei.
— Acho que você tem razão — concordei. — Da
próxima vez me lembrarei disso. Em todo caso, o que
sinto não é medo, mas apenas curiosidade.
— O senhor não é o único a se incomodar com os
sons da casa. Todos passamos por isso no começo. Às
vezes, eu tinha a impressão de que a casa possuía vida
própria. Odiava dormir sozinha, temia o escuro… Minha
sorte era que a Carol vinha dormir comigo quando eu
estava assustada. Mas não se preocupe, Sr. Silva, com o
tempo o senhor vai se acostumar.
O relógio anunciou 13 horas, espalhando pela sala
um barulho agudo, então silenciou-se. Restou apenas seu
tiquetaquear cadenciado que, passados alguns segundos,
tornava-se apenas um som ambiente imperceptível.
Helena recostou-se à poltrona e ficou quieta. Meu
sono havia sumido. Iniciei a leitura do livro. Pouco
depois, senti o peso de sua cabeça em meu ombro. Fui
envolvido por uma sensação agradável de desejo, o
coração acelerado e um sutil arrepio. Desejei abraçá-la,
mas, temendo pela fragilidade daquele instante, mantive-

78 DAVI VALE
me imóvel. Fingi ainda ler, mas já não prestava atenção
em nada que não fosse sua cabeça em meu ombro e o
cheiro dos seus cabelos. Helena parecia ler o livro junto
comigo. Ficamos assim por alguns minutos. Acabei por
retomar a leitura, não deixando, porém, de sentir
profundamente cada instante, cada segundo que se
passava, absorvendo a imagem de nós dois como se a
desenhasse, desejando que o tempo estagnasse.
Começava a ser dominado por um forte desejo de
beijá-la. Simultaneamente, pensava no fato de sermos
ambos funcionários da família. Se eu a beijasse e isso
chegasse aos ouvidos de Nadia Vukmir, certamente seria
demitido — e eu precisava do trabalho.
No entanto, era impossível não querer arriscar.
Sentindo o calor de seu corpo, seu cheiro doce e o toque
de sua mão macia em meu peito, resistir ao impulso de
desejar beijá-la era como resistir à fome ou à sede. Tomei
então a resolução de beijá-la — sim, eu a beijaria! Já não
me importava com as consequências. Naquele instante,
todas as coisas se tornaram insignificantes, exceto aquela
garota de olhos negros, à qual eu estava prestes a beijar
— talvez não a beijasse ali, mas em algum outro
momento. Talvez eu me arrependesse daquilo. Porém, a
meu ver, é preferível se arrepender de algo que se fez do
que de algo que se deixou de fazer.
E então, no instante em que fui dominado por essa
ideia, Helena levantou a cabeça do meu ombro, deixando
nele um vazio incômodo, como se houvessem tirado um
pedaço de mim.
A MENINA NO QUARTO 79
— Creio que já seja hora de voltar ao trabalho —
disse ela, levantando-se do sofá.
Quando me levantei para cumprir a regra da
cortesia, ela me deu um beijo no rosto. O movimento foi
tão inesperado que cheguei a me assustar. Ela saiu
caminhando com aquela sua maneira ao mesmo tempo
sensual e faceira de andar. Pude sentir aquele beijo em
minha bochecha pelo resto da tarde.

80 DAVI VALE
11.

Quando voltei ao jardim, ocorreu algo interessante. Eram


duas e meia da tarde e ainda fazia calor, mas a
temperatura começava a cair. Olhei casualmente na
direção da casa e vi um movimento numa das janelas do
segundo piso: lá estava novamente a silhueta de alguém
diante do vidro, a mesma que eu havia visto antes.
Daquela vez, porém, tive oportunidade de vê-la com mais
nitidez. Era uma garotinha magra, branca e de cabelos
escuros, os quais lhe escorriam em volta do rosto. Usava
um vestido de cor clara. Olhei-a por algum tempo e tive
certeza de que ela também me olhava. Tocou o vidro com
a mão e eu pude ver sua palma branca e miúda. Cheguei a
acenar para ela, mas ela não esboçou resposta, apenas
manteve-se na mesma posição, fitando-me com certa
insistência. Subitamente, a menina afastou-se da janela e
olhou para trás. Caminhou então para o fundo do quarto
até que sumisse de vista, deixando no vidro a impressão
quase imperceptível da palma de sua mão.
Não restava dúvida de que aquela menina era Júlia.
Quem mais poderia ser? Através do vidro, pareceu-me ser
uma garota normal. Não havia em seu rosto qualquer
deformação aparente. Parecia ser um rosto perfeito, por
sinal muito bonito, mas de um branco pálido e quase
doentio. Ademais, pude captar em seu olhar, ainda que à
distância, a melancolia decorrente do confinamento. Eu
estava comovido com sua situação, estava aliás
A MENINA NO QUARTO 81
atarantado, sentindo que precisava fazer algo — mas não
me ocorria saber o quê.
Nadia Vukmir havia saído após o almoço. Ela
raramente se ausentava da casa, mas em algumas ocasiões
isso se fazia forçoso. Retornou por volta 16h30,
estacionou o carro e desembarcou com algumas sacolas.
Exatamente nesse instante, começou a ventar forte.
— Precisa de ajuda, madame? — Perguntei à
distância. Ela fez que sim, e eu corri para ajudá-la.
Apanhei as sacolas e as carreguei para dentro de casa.
Não perguntei o que havia nelas, mas o fato de estarem
pesadas me deixou curioso. — Onde eu as deixo?
— Preciso que as suba.
Saiu na minha frente e se dirigiu às escadas. Eu a
segui. Tinha um jeito elegante de pisar nos degraus,
sempre com a postura ereta e os movimentos perfeitos.
Nunca havia visto uma mulher que tivesse tanta elegância
para subir uma escada.
O quarto da madame localizava-se fronteiro à
balaustrada das escadas. Ela abriu a porta e eu entrei com
as sacolas. Era óbvio que aquele era o aposento mais
luxuoso da casa. Um dossel com ornamentos dourados
encaixava-se entre dois grandes quadros de pesadas
molduras. A cama era tão larga que podiam dormir ali
três pessoas com conforto. Os móveis eram de uma
suntuosidade única, de madeira avermelhada e adornados
com ouro, e pareciam casarem-se perfeitamente entre si,
como se tivessem sido construídos unicamente para
aquele quarto, para a forma como eram dispostos ali. Um

82 DAVI VALE
espelho colossal se posicionava atrás de uma cômoda,
sobre a qual havia o solitário retrato de uma criança.
A menina do retrato era, simultaneamente, familiar
e estranha: mesmo nunca a tendo visto, sentia como se a
conhecesse de alguma forma. Estava de pé em um
gramado, usando vestido branco e sapatinhos pretos, as
mãos para trás do corpo, os cabelos bagunçados pelo
vento e os olhos semicerrados diante da luz do sol. Estava
sorrindo e tinha as bochechas gordinhas e salubres. Seus
olhos eram claros e brilhantes, aparentemente azuis,
semelhantes a um par de opalas.
Apesar de ter visto, horas antes, Júlia na janela de
seu quarto, não consegui ter certeza de que fosse a mesma
menina que se via na fotografia. Não obstante, não
acreditei que assim não o fosse. Salvo a palidez, a menina
na janela e a menina da foto pareciam a mesma. O
confinamento a fizera mal, evidentemente.
— É Júlia? — perguntei, apontando para a
imagem.
— Sim — respondeu a madame, sem cerimônia e
sem me olhar. — Deixe as sacolas aqui. Obrigada, agora
pode se retirar.
Saí do aposento da madame e ouvi atrás de mim o
baque da porta. Fiquei um instante parado ali, defronte da
escada, observando a forma como a luz cinzenta do céu
nublado tornava a casa sombria. A ventania fez com que
as gotas da garoa batessem no vidro da janela. Ao longe,
escutei o som das árvores agitadas com o vento.

A MENINA NO QUARTO 83
Naquele instante, ocorreu-me uma ideia
mirabolante. Era arriscado, mas eu não queria desperdiçar
a oportunidade. Ao invés de ir às escadas, fui em direção
aos demais aposentos. Todas as portas estavam fechadas,
o que causava uma impressão sinistra. Saí apoiando a
orelha nas portas, uma a uma, na tentativa de escutar
qualquer som no interior dos cômodos. Se havia algo de
imoral em minha atitude, naquele momento eu não estava
me importando — tudo o que me interessava era
descobrir qual daquelas portas acessava o quarto de Júlia.
Infelizmente, não obtive qualquer resultado. Não
importava o quanto eu pressionasse a orelha contra as
portas, não conseguia escutar qualquer ruído no interior
dos quartos. Era como se todos eles estivessem vazios.
Mas eu sabia, ou pensava saber que Júlia estava em um
daqueles quartos. Tinha de estar. Nada faria sentido se
todos os quartos estivessem desocupados.

84 DAVI VALE
12.

Mesmo durante o jantar, eu ainda pensava muito sobre o


mistério da filha de Nadia Vukmir. Mais cedo, quando
tentei escutar através das portas dos quartos, não havia
considerado que as portas eram de madeira maciça —
talvez por isso não poderia escutar qualquer som que não
fosse relativamente alto. Portanto, seguia com a
convicção de que a criança estava em um daqueles
aposentos.
Eu julgava ser importante saber qual das portas
dava para o quarto de Júlia. Não que fosse meu plano
simplesmente entrar no quarto, pois certamente a
governanta estaria lá — mas talvez pudesse fazer bom
proveito da informação. Um dia talvez, quando tivesse
certeza de que a governanta não estaria com Júlia, eu
poderia me arriscar a fazer uma visita à garota, mas para
isso era preciso primeiramente saber qual era a porta de
seu quarto, a fim de que não me equivocasse e desse de
cara com uma das empregadas.
Todavia, apesar da improdutividade de minha
investigação — era essa a definição que eu tomava a
liberdade de dar às minhas bisbilhotices —, estava
bastante empolgado com aquele pequeno mistério. Meus
instintos me diziam que havia alguma coisa errada
naquela história, e eu confiava neles o suficiente para que
não tivesse dúvidas quanto ao que deveria ser feito:

A MENINA NO QUARTO 85
investigar mais. Uma garotinha inocente poderia estar
precisando de ajuda e eu não podia ignorar isso.
Fui alimentando essa ideia por toda a tarde até que,
durante o jantar, eu não conseguisse pensar em outra
coisa. Tinha planos de interrogar as empregadas no
decorrer da refeição, mas como ninguém podia saber que
eu estava investigando, era preciso engendrar uma forma
de fazer isso sem que elas desconfiassem. Introduziria as
perguntas nos diálogos à mesa de forma discreta, sem
demonstrar muito interesse pelo assunto, de modo que
elas me dessem as informações gradualmente, então eu as
reuniria até que tivesse material suficiente para fazer
deduções.
— Por que está tão calado hoje? — Helena me
perguntou de repente.
As criadas conversavam sobre alguma coisa, mas
eu nem estava prestando atenção. De fato, estava mesmo
muito quieto. Frequentemente fico calado quando estou
preocupado, e isso logo me denuncia.
— Estive pensando: por que a Sra. Milovan não se
senta conosco? — esquivei-me da pergunta. — Quer
dizer, ela também é uma empregada, não?
— A governanta come junto com a madame —
respondeu Raquel.
— E somente as duas se sentam à mesa? Isto é, a
filha da madame não se senta com elas?
— A Srta. Júlia nunca sai daquele quarto — disse
Caroline com naturalidade, e enfiou um pedaço de frango
na boca.

86 DAVI VALE
— Isso é verdade — confirmou Helena. — Por
exemplo, eu, sendo camareira, arrumo todos os quartos da
casa, exceto o quarto da Srta. Júlia, o único no qual não
posso entrar. A governanta é quem arruma a cama da
menina.
— Isso não faz sentido! Quer dizer, ninguém sabe
se ela é uma criança saudável e tudo. Por que a madame a
mantém oculta?
Lá estava eu sendo impulsivo novamente. Sem
querer, estava abrindo o jogo. Planejara fazer perguntas
indiretas, mas acabava de me precipitar.
— O senhor realmente ficou curioso com isso —
observou Helena. E, inclinando-se, falou sussurrando: —
Eu não o culpo. Mas tome cuidado, porque a madame te
expulsaria daqui se descobrisse que está bisbilhotando.
Claro que o alerta me deixou assustado. Eu estava
muito curioso e preocupado com a criança. No entanto,
eu precisava daquele trabalho e não queria ser expulso.
— Não pretendo me intrometer nos assuntos da
família — expliquei. — Se passei essa impressão, me
perdoe. Só que a situação da criança me intriga.
— Algum motivo deve existir para isso — disse
Raquel. — A madame não faria coisa parecida se a tanto
não fosse forçada. Quem garante que a menina não tenha
uma doença contagiosa?
— Se isso fosse verdade, a governanta também não
poderia entrar no quarto — observou Caroline.

A MENINA NO QUARTO 87
Olhei-a nesse instante, contente por sua
observação. Ela dissera exatamente o que eu pretendia
dizer.
— É fato que ela não deve ter uma doença
contagiosa — confirmei. — Mas quem sabe, uma
deformidade?
— É uma boa hipótese — disse Caroline. — Mas
não é isso, pois sua aparência é tão normal quanto a de
qualquer criança.
— Então vocês já a viram — constatei.
— Não dissemos que nunca a vimos — interveio
Helena —, só que não a podemos ver atualmente. Não foi
sempre assim. Houve tempos em que ela brincava no
quintal, livremente.
— O que aconteceu para que as coisas mudassem?
— indaguei, interessado.
— Quem sabe? — Helena deu de ombros.
Um silêncio se sucedeu.
— Talvez ela tenha desenvolvido uma doença
mental — sugeri.
— Em uma idade tão tenra? — Caroline soergueu a
sobrancelha.
— Seja como for, deve haver alguma explicação —
insistiu Raquel, com um olhar ameaçador na direção de
Caroline. — E não cabe a nós sabê-la.
Raquel me pareceu resoluta em sua posição. O
assunto acabou se encerrando, e começamos a falar de
outra coisa.

88 DAVI VALE
Falávamos de um tema qualquer, não me recordo
qual, quando Helena, que estava sentada ao meu lado, ao
expor sua opinião, apoiou a mão em minha coxa enquanto
falava, aparentemente distraída. Sua mão permaneceu ali
por vários segundos, muito próxima da virilha, até que de
repente se afastou, deixando em minha pele o calor
remanescente. Aquilo despertou meus desejos mais viris.
O toque daquela mão quente sobre o tecido liso das calças
fez meu sangue fervilhar, e passei o resto dos minutos
seguintes me perguntando se ela faria aquilo novamente.
Mas isso não voltou a acontecer.
Me dei conta então de que meus pensamentos a seu
respeito haviam se modificando completamente. Helena
já não despertava em mim aquela mesma admiração
inócua que despertara no começo, mas eu passara a
desejá-la de uma forma muito mais intensa. Tudo
começou quando, por acidente, eu a vi de camisola, e essa
visão plantou em mim uma semente de malícia que foi
crescendo até dominar minha mente. Nosso encontro
daquela tarde só aumentou esse desejo.
Por outro lado, Caroline perdia espaço em meus
pensamentos. A admiração que ela me despertara no
início ia se atenuando na medida em que meus
pensamentos eram dominados pela imagem de Helena.
Olhei Caroline por algum tempo enquanto ela permanecia
atenta ao que Helena dizia. Estava, observei, com o
semblante mais salubre, pois decerto havia se curado da
gripe. As maçãs do rosto estavam coradas novamente, e

A MENINA NO QUARTO 89
seus olhos pareciam mais atentos ao que se passava ao
redor.
Subitamente ela olhou para mim e percebeu que era
avaliada, o que a princípio me deixou embaraçado, mas
em seguida percebi que ela não estava incomodada com
minha avaliação. Sorriu quando percebeu que eu a
olhava. Havia em seu olhar e no rubor de suas bochechas
algo de voluptuoso. Ela não era, afinal, tão bela quanto
me parecera à primeira vista, e no entanto eu começava a
notar certa sensualidade que não havia percebido antes,
embora continuasse sendo a mesma Caroline de sempre,
com o mesmo nariz protuberante, a mesma pele rosada,
os mesmos olhos cor do céu de verão, os mesmos cabelos
dourados e bem tratados, e os mesmos lábios rosados e
delicados. Percebi, pois, que a mudança não ocorrera
nela, mas em mim. Era minha perspectiva a seu respeito
que havia mudado.
Retribuí o sorriso, em seguida voltei a me
concentrar nas palavras de Helena. Naquela noite, a
camareira estava empolgada e falava feito um papagaio.

90 DAVI VALE
13.

Eu estava na biblioteca logo após o jantar, absorto na


leitura do livro que havia iniciado naquela tarde, quando
Caroline surgiu no cômodo e pôs-se a varrer o chão que
já estava aparentemente limpo. Como não estivesse
conseguindo me concentrar na leitura com ela
perambulando pelo cômodo, decidi fingir que estava
lendo. Na verdade, entretanto, eu a observava
disfarçadamente por sobre as páginas.
Caroline usava um vestido branco estampado com
bolinhas carmim, sem manga, cujas alças posicionavam-
se à beira do ombro e escorregavam para o braço na
medida em que ela trabalhava. Cada vez que a alça do
vestido descia, os seios se faziam parcialmente visíveis
— porém, Caroline a subia de novo à sua posição
original. Continuei a observando varrer o chão,
camuflado em minha falsa leitura. Ela se inclinava para
manusear a vassoura, fazendo os seios se tornarem
visíveis no decote do vestido. Uma ou duas vezes olhou
para mim e me flagrou a observá-la, então sorriu e
continuou a trabalhar, indiferente à minha presença. Com
efeito, toda aquela faxina era mais um hábito do que uma
necessidade real. Prossegui em minha observação,
disfarçando-a com o livro. De repente, Caroline se
inclinou perto dos meus pés e começou a esfregar um
pano no piso, como se tentasse remover uma mancha. Por
desmazelo, deixou que as alças escorregassem dos
A MENINA NO QUARTO 91
ombros para os braços, e de onde eu estava pude ver até
seus mamilos. Tive a impressão de que ela fazia aquilo de
propósito, que tentava chamar minha atenção.
— Aproveitando bastante, Victor? — disse
subitamente a madame, que chegara à biblioteca de
mansinho.
Sua chegada intempestiva ocorrera no momento
mais inoportuno possível. Teria ela notado o que eu
estava a fazer? Teria percebido que eu olhava os seios de
Caroline?
— Desculpe, madame… aproveitando o quê?
— Ora, querido: o livro.
— Ah! — disfarcei, aliviado. — Se não se importa,
tomei a liberdade de pegar este livro emprestado.
— Morte no Nilo — ela leu na capa. — Então o
senhor gosta dos policiais? Boa escolha! — E voltando-se
à empregada: — Termine isso logo, Carol. Preciso de
você lá em cima.
A madame foi para outro cômodo. Fiquei
novamente sozinho com Caroline. Larguei o livro de lado
e tentei puxar um assunto.
— Vocês nunca saem? — perguntei.
— Oi? — Caroline demorou um pouco a perceber
que eu falava com ela, embora não tivesse outra pessoa
no cômodo além de nós dois.
— Perguntei se vocês não costumam sair. Sabe, se
distrair, ir a alguma festa, ao teatro etc.
— Não. — A resposta foi tão franca que tive a
sensação de que ela não estava disposta a conversar.

92 DAVI VALE
— Por que não?
— Nunca tive interesse — ela falava sem parar de
trabalhar.
— É sempre bom se divertir.
— Não há nada de interessante para se fazer neste
vilarejo.
— De fato — concordei. E, depois de uma pequena
pausa: — Sua família é daqui?
— Minha família? — Ela soltou uma risada
forçada, carregada de sarcasmo. — Não tenho família.
Esta é a minha família — e estendeu a mão, indicando a
extensão da casa.
— Mas, e antes daqui? — insisti. — Você me disse
que mora aqui desde a adolescência, então onde passou a
infância?
— Digamos que a minha “família” — fez sinal de
aspas com os dedos — não seja o tipo de família da qual
eu me orgulhe de falar.
— Por quê?
Caroline parou o que estava fazendo. Olhou-me
com certo receio, como se tentasse decidir se respondia à
minha pergunta.
— Não gosto de falar muito sobre isso —
respondeu.
— Tudo bem. Me desculpe.
Ficamos alguns segundos em silêncio, mas ela não
voltou aos seus afazeres. Em vez disso, ficou pensativa,
olhar nostálgico e distante, como se minha pergunta a

A MENINA NO QUARTO 93
tivesse induzido a recordar coisas há muito tempo
esquecidas.
— Minha mãe tinha problemas psiquiátricos —
Caroline disse de repente, olhando para o chão.
Em seguida, olhou para mim como se aguardasse
qualquer comentário de minha parte. Apenas fiquei em
silêncio, espantado com a revelação inesperada, não
sabendo o que dizer. Observando meu silêncio, ela
prosseguiu:
— Tenho nítidas lembranças de vê-la falando
sozinha na varanda, ou vagando pela casa enquanto
sussurrava coisas delirantes. Não sei ao certo quando isso
começou (meu pai nunca me disse), mas com o passar do
tempo estava piorando. Ela tinha convicção de estar
sendo perseguida por pessoas que, segundo ela, se
escondiam em todos os lugares. Frequentemente pensava
que meu pai e eu queríamos matá-la, então ficava
desconfiada e se isolava. Com o tempo, ela se tornou
mais hostil e alucinada.
— Onde está seu pai agora?
— Não tenho a mínima ideia. Meu pai não
suportava mais lidar com a loucura da minha mãe e por
isso foi embora. Ele nos abandonou quando eu tinha dez
anos, não se dando ao trabalho de se despedir de mim,
tampouco deixando algum dinheiro, e eu nunca mais
voltei a vê-lo.
— Que absurdo!
— Sim! Foi uma covardia horrível da parte dele.
Ficamos numa situação financeira difícil, especialmente

94 DAVI VALE
porque minha mãe não podia trabalhar e eu ainda era
muito criança para conseguir um emprego.
Olhou por um instante as próprias mãos,
melancólica.
— Ás vezes eu tinha medo dela — revelou. —
Após o sumiço de meu pai, ela só piorou. Se antes seus
surtos delirantes eram intercalados a momentos de
sanidade em que ela voltava a ser ela mesma, após a saída
de meu pai vê-la sã tornou-se cada vez mais raro. Ela
emagreceu muito, parou de dormir e abandonou os
medicamentos. Aos poucos foi se tornando estranha para
mim, como se sua personalidade tivesse sendo substituída
por uma nova completamente diferente. Já não era mais
minha mãe, era agora outra pessoa que habitava seu
corpo. Várias vezes acordei no meio da madrugada e a vi
ao meu lado, observando-me com aqueles olhos enormes,
os cabelos soltos em volta do rosto e a feição deformada,
tal como ficava nos momentos mais agudos de
insanidade. Era estranho sentir medo da mesma mulher
que eu chamava de mãe. Após a saída de meu pai, nós
duas convivemos por cerca de dois meses nessa situação.
Até que ela surtou de vez.
Os olhos de Caroline brilharam e as lágrimas
molharam seus cílios. Mesmo à beira do choro, ela
continuou:
— Os vizinhos escutaram seus gritos e vieram
saber o que estava acontecendo. Minha mãe estava
descontrolada, seminua, destruindo tudo dentro de casa.
Eu havia me trancado em meu quarto e só saí de lá
A MENINA NO QUARTO 95
quando a polícia arrombou a porta. Vi quando minha mãe
foi conduzida para uma ambulância. Vestia camisa de
força e os cabelos estavam espalhados sobre todo o rosto.
Essa foi a última vez que a vi.
— O que houve com ela?
— Minha mãe foi internada num manicômio e não
tive mais notícias de seu estado. Ouvi dizer, tempos
depois, que faleceu durante uma lobotomia mal sucedida.
As lágrimas que brotaram em seus olhos agora
escorriam por suas bochechas, deixando nelas uma linha
brilhante como rastro de lesma. Caroline não se
preocupou em secá-las.
— Venha cá — disse eu, ficando de pé para abraçá-
la. — Está tudo bem.
Mantivemos um abraço longo e sincero, deixando
que o calor de nossos corpos emanasse um ao outro. Seu
corpo era macio e sua pele tinha uma textura agradável.
Senti seu ombro sob meu queixo e um odor que lembrava
flores silvestres e roupa limpa. Envolvi suas costas com
meus braços. Percebi o movimento de sua respiração e
constatei que ela chorava. Acariciei sua cabeça para
acalmá-la.
— Me desculpe — disse Caroline, após o abraço,
fungando.
Apanhou o pano de chão, como se pretendesse
voltar ao trabalho, mas em vez disso ficou parada e
pensativa, segurando o pano numa das mãos, como se
quisesse permanecer ali comigo, de modo que voltar ao
trabalho lhe fosse desagradavelmente forçoso.

96 DAVI VALE
— Quando levaram sua mãe, para onde você foi?
— perguntei.
— Eu não tinha contato com meus parentes e
acabei sendo enviada para um orfanato. Meses depois, a
madame me trouxe para cá.
— Qual era a sua idade?
— Doze.
— Então, foi adotada na mesma idade de Helena
— constatei.
— Sim — respondeu ela, retomando afinal os seus
afazeres. — E que importância isso tem?
— Nenhuma importância. Só que a maioria das
pessoas prefere adotar crianças mais novas. Mas a
madame, diferentemente, opta por meninas mais velhas.
Caroline não fez qualquer comentário, mas pareceu
que minha constatação a tinha incomodado. Ficou quieta
e concentrou-se em seu trabalho, então nosso diálogo
encerrou-se aí.
Não voltei a ler. Fiquei um bom tempo a refletir
acerca das coisas que Caroline me contara. Ao tomar
conhecimento dessas informações, desenvolvi por ela um
sentimento mais profundo. A arrumadeira passara por
experiências terríveis, e admirava o fato de ela não ter
enlouquecido. Perder os pais não era uma experiência
estranha para mim, mas não havia dúvida de que a
história de Caroline era mais sofrida que a minha.
Talvez ambos termos perdido nossos pais, ou
talvez por sentir que ela revelara a mim informações tão

A MENINA NO QUARTO 97
íntimas — o fato é que, daquele momento em diante,
desenvolvi por ela uma grande afeição.
Mais tarde, fui à cozinha e lá me encontrei com
Raquel. Eu estava com sede e a cozinheira me serviu um
copo de água.
— Obrigado — agradeci após me saciar,
devolvendo-lhe o copo.
— Não por isso — respondeu Raquel, e olhou-me
de uma forma estranha. — O senhor é um homem
incomum.
— Incomum? — indaguei sorrindo, surpreso pela
palavra que ela tinha escolhido para me definir.
— O senhor parece ser um bom rapaz — explicou
ela, mas não retribuiu o sorriso. — Parece ser honesto e
respeitoso. E inteligente também. Nunca pensou em
buscar um trabalho melhor?
— Não entendo o que há de errado em ser um
jardineiro.
— Nada de errado, não. É que talvez o senhor
pudesse ter um salário melhor se trabalhasse nos correios
ou em algum escritório de contabilidade, ou coisa do tipo.
— Nisso você tem razão, Raquel. No entanto, meu
pai era jardineiro e vejo essa profissão como uma herança
de família. E gosto muito do que faço.
— Evidente que gosta, logo se nota. E o faz muito
bem. Talvez o senhor tenha razão, Sr. Silva, de fazer o
que lhe dá prazer ao invés do que lhe dê dinheiro. Mas
talvez devesse pensar no que eu disse, pois sei que seria

98 DAVI VALE
capaz de exercer um ofício que lhe exigisse mais da
mente.
Na hora não entendi o motivo daquele assunto, mas
fiquei contente pelos elogios que tinha recebido. Disse-
lhe que pensaria a respeito, mas repeti que gostava do que
fazia, e que não mudaria de opinião por causa de um
pouco a mais de dinheiro. E era mesmo verdade. Nunca
fui um homem ambicioso e, ademais, sendo eu solteiro e
não tendo gastos adicionais, bastava-me um pouco de
dinheiro para levar uma boa vida. Tinha guardado no
banco uma quantia considerável, que adquirira com a
venda da propriedade de meus falecidos tios, e não tinha
muitos planos para gastá-la.
Por outro lado, sempre vi a arquitetura como um
ofício interessante, não apenas por tratar-se de uma área
próxima àquela que eu exercia, mas porque sentia uma
inclinação natural a admirá-la. Essa admiração ficava
explícita quando eu me delongava na contemplação dos
detalhes arquitetônicos dos prédios públicos. Era talvez
uma inclinação que vinha do mais profundo de meu
espírito, como se a arquitetura estivesse impregnada em
minha natureza. Portanto, se me ocorresse pensar em
mudar de ofício, seria na arquitetura que reinaria meu
interesse.
Em todo caso, as palavras de Raquel guiaram-me
não a questionar minha satisfação profissional, mas as
motivações de sua abordagem. Ocorria-me que alguma
razão devia haver para que o assunto fosse abordado,
especialmente pela forma aparentemente injustificada
A MENINA NO QUARTO 99
como a cozinheira o iniciara: isso dava a entender que ela
estivera pensando a esse respeito antes mesmo que eu
entrasse na cozinha. Por quê, entretanto, abordar tal
assunto? Talvez ela quisesse que eu fosse embora — essa
era minha dedução. Em suma, parecia-me que Raquel
apenas expressara seu desejo de que eu abandonasse não
meu ofício de jardineiro, mas meu serviço na casa dos
Vukmir. E, como não pudesse dizê-lo de forma direta,
expandiu o assunto ao campo de minha profissão para
que a verdadeira raiz do problema ficasse oculta.

100 DAVI VALE


14.

Como a noite se apresentasse tão amena, resolvi tomar


um ar no jardim. Sentei-me a um banco perto das flores
para relaxar. O vento havia afastado as nuvens e quase
não restara uma sequer. Valia a pena observar aquele céu
límpido, a lua cheia e dourada, a silhueta das árvores no
bosque e a escuridão do horizonte.
A solidão que reinava naquele lugar, o silêncio
ambiente e a beleza do luar me induziam à reflexão, e de
repente me flagrei devaneando acerca do horizonte.
Olhando o horizonte, senti vontade de estar lá. Claro que,
se eu estivesse lá e de lá visse o lugar onde ora estou,
teria a mesma vontade de estar aqui. Trata-se de desejar o
desconhecido, o distante e o inalcançável. É algo como
desejar poder voar até as nuvens quando, na verdade, é
manifesto que lá em cima não há nada além de um frio
insuportável e um ar quase irrespirável. É de nossa
natureza querer o que está fora de nosso alcance,
aspiração pelo que nos parece belo simplesmente porque
é intocável.
Estava ainda mergulhado nessa percepção quando,
ao fundo, escutei um farfalhar áspero, cadenciado — som
de pés a pisar sobre o cascalho. Meu coração disparou.
Virei-me rapidamente e olhei para trás. Era uma silhueta
humana, mas a luz de uma das luminárias lhe incidia
pelas costas e ocultava sua identidade de minha visão.
Atrás dela elevavam-se os contornos negros da casa. A
A MENINA NO QUARTO 101
silhueta vinha caminhando em minha direção a passos
firmes.
— Te vi de minha janela — ouvi-a dizer.
Era a voz reconfortante de Helena. Ela parou a
minha frente, então dei-lhe um espaço no banco onde
estava sentado. Ela sentou-se a um palmo de mim.
— O que faz aqui fora? — perguntou.
— Estou tomando um ar e pensando na vida. Veja:
a lua brilha intensamente, como uma grande esfera de
pura luz, e o céu está claro como se já fosse quase manhã.
Helena olhou para cima. Olhei-a de perfil, o
contorno de seu nariz pequeno, os lábios cerrados, o
brilho de seus olhos na escuridão da noite. Usava um
casaco pardo sobre o vestido claro, do qual no escuro eu
não conseguia identificar a cor. Cruzou as pernas,
suspirou e disse:
— O céu está perfeito.
Na penumbra, não dava para enxergar muito mais
do que os contornos de seu rosto. Mesmo assim, pude ver
seus olhos brilhantes como se refletissem as estrelas.
Percebi que eu estava levemente inclinado em sua
direção, mas era inevitável. Helena voltou a olhar para
mim e observou-me em silêncio. Sua face esboçava um
quase sorriso, enquanto ela inclinava a cabeça de um jeito
ameno e ajeitava os cabelos.
— É engraçado — disse ela, olhando para meu
olho esquerdo e depois para o direito. — Parece até que te
conheço há muito tempo.

102 DAVI VALE


— Eu também sinto isso. Isso não é incrível? —
sorri, entusiasmado. — Desde a primeira vez que te vi
também tive uma simpatia imediata. Quem sabe não nos
conhecíamos em uma vida anterior?
— Acredita em reencarnação?
— Talvez eu acredite. E você?
— Bem… — ela refletiu. — Não sei se acredito.
Mas não nego que existe certa beleza na ideia.
— Para ser franco, não me recordo de ter sentido
tão imediata simpatia por alguém tal como sinto por você.
É como se nossas vidas já estivessem conectadas. Que
outra explicação se encontraria para sentimento tão
instantâneo? Você também não tem a sensação de que já
nos conhecíamos?
Enquanto eu falava, ela prestava atenção aos
movimentos dos meus lábios. Repetiu que sim, depois
ficou pensativa. Ficamos em silêncio por um momento,
então o barulho suave da noite se fez audível. Perto de
nós, ou talvez longe, ouvimos o coaxar de uma rã, então
Helena encolheu-se e deu uma olhadela para a escuridão
entre as árvores.
— Acho que a reencarnação explica uma questão
filosófica importante — falei, olhando para o céu
novamente.
— Qual? — perguntou Helena.
— Acerca da natureza da alma. Não consigo aceitar
a ideia de que tenhamos uma alma eterna, mas que só
vivamos uma única vez no mundo. Quer dizer, a ideia
parece absurda. Se assim fosse, imagine que quantidade
A MENINA NO QUARTO 103
infinita de almas deveria ter existido para tantas pessoas
que já nasceram e morreram no decorrer da história da
humanidade.
Enquanto me escutava, Helena deixava a cabeça
levemente inclinada para frente de modo a me olhar de
baixo para cima, e seu olhar vagava entre meus olhos e
meus lábios. Parecia profundamente interessada por tudo
o que eu tinha a dizer, como se naquele instante sua
atenção fosse completamente minha.
— Concordo! — disse ela. — Na verdade nunca
tinha pensado por esse ângulo. Por favor, fale-me mais.
— Somos ensinados pela Igreja que nossa alma
sobrevive à morte, mas pouco se fala acerca do que a
alma era antes de encarnar em nosso corpo. Quer dizer, a
alma nasce com o corpo ou já existia antes dele? A
primeira hipótese é incompatível com a ideia de
imortalidade, veja bem: o que é eterno não tem fim e
também não tem começo, pois, pela lógica, tudo o que
tem um início irremediavelmente tem um fim. Assim, só
nos resta dizer que a alma já existia antes do nascimento
do corpo e que sempre existiu desde os confins dos
tempos. Isso faz sentido para você?
— Sim. Se o nascimento é o oposto da morte, não
faz sentido dizer que algo nasça, mas não morra.
— Exatamente. É aqui que surge uma questão
importante: onde estaria a alma antes do nascimento? Não
é possível afirmar que ela estava simplesmente no vazio
da existência durante toda a eternidade. Não, seria um
desperdício. Em algum lugar ela tinha de estar. Mas

104 DAVI VALE


onde? Se a alma já existia, não devemos concluir que ela
estava em outros corpos? Pois não parece haver outra
conclusão possível. É por isso que a reencarnação é uma
explicação tão conveniente à existência das almas
imortais: ela é a única que responde a essa questão.
— O senhor concluiu isso sozinho? — perguntou
Helena, entre fascinada e perplexa. Seus olhos esboçavam
a empolgação de uma criança que acaba de entender algo
incrível.
— Mais ou menos. Li muito Schopenhauer. E se
pensar bem, acho que qualquer um acaba por chegar à
mesma conclusão, não acha?
— Sim, a menos que… — iniciou ela, mas hesitou.
— Sim?
— Bem… a menos que as almas não sejam
imortais.
— Que nascem e morrem com o corpo?
— Sim — confirmou, empolgada. — Por que não?
— É uma boa hipótese, embora soe um tanto
desesperadora. Mas, assim como seu contrário, ela não
pode ser corroborada.
— Nada pode ser corroborado, se pensarmos bem
— rematou Helena com um sorriso malicioso. — Cada
pessoa tem suas próprias convicções, e quem tem o
direito de dizer que ela está certa ou errada? — Olhou
para o céu: — Se eu acreditar que a lua é uma deusa,
então ela é uma deusa. Mesmo assim, não deixará de ser
uma esfera de pedra que flutua no céu. O que quero dizer
é que não existe certo ou errado, verdadeiro ou falso;
A MENINA NO QUARTO 105
todas as crenças são verdadeiras ao mesmo tempo. Num
sentido filosófico, dentro de cada um.
Ficamos quietos então, contemplando longamente
o céu estrelado enquanto, em nossas mentes, ecoavam as
palavras recém proferidas. Pensávamos na existência, no
sentido da vida, na eternidade da alma. Helena deixou
que seu ombro tocasse o meu, enquanto eu era tomado
pelo desejo crescente de aproximar-me dela tanto quanto
pudesse. Olhei-a novamente e admirei as linhas perfeitas
de seu rosto. Era tão linda quanto o nascer do sol, tão
perfeita quanto o equilíbrio do mundo.
— O que foi? — Helena indagou, quando notou
que eu a olhava. Ajeitou os cabelos que lhe caíam na
bochecha e sorriu.
— Você está linda.
— O senhor é muito amável — ela disse, tocando
em minha bochecha. — Bem… talvez seja bom
entrarmos, Sr. Silva. Está ficando tarde.
— Pode me chamar de Victor.
Ela sorriu cordialmente, e então pensei: é o sorriso
mais lindo que eu me lembro de ter visto em uma garota.
Levantei-me e ofereci a mão para auxiliá-la. Percorremos
emparelhados o caminho ladeado de pingos de ouro em
direção à casa. Nossos passos nas pedras eram secos e
varavam o silêncio da noite. Uma brisa fria assoprava-nos
pelas costas.
— Não gosto de Schopenhauer — disse ela de
repente, já perto da porta. — O mundo segundo ele é um
lugar de sofrimento.

106 DAVI VALE


— E se ele estiver certo?
— Neste caso, prefiro não saber. O mundo é o que
você espera que ele seja.
Abri a porta para que Helena entrasse antes de
mim. Nossos olhos se encontraram mais uma vez. Nos
despedimos ao pé da escada, de onde fiquei olhando-a
subir até desaparecer na escuridão do piso superior.
Eu estava ainda a sorrir quando adentrei meu
quarto, dominado por uma alegria jovial. A figura de
Helena tomava meus pensamentos, sua voz ainda ecoava
em minha memória. Entretanto, assim que me encontrei
sozinho no quarto, fui logo tomado por certo nervosismo
angustiado. Arrumei a cama, apaguei a luz e me deitei,
mas a escuridão me trazia a forte sensação de que havia
mais alguém ali. Me vi forçado a reacendê-la. Pelo menos
a claridade atenuava minha ansiedade; assim, tal como
uma criança que teme o escuro, naquela noite sequer
apaguei a lâmpada. No entanto, a noite passada em claro
me era cobrada: eu quase não conseguia manter os olhos
abertos, era tomado por um sono crescente que
gradualmente entorpecia meus sentidos, afastava-me dos
meus raciocínios mais lúcidos e mergulhava num estado
quase onírico. De repente, eu já não estava mais em meu
quarto, mas em outro lugar qualquer — e descobri que na
verdade sonhava.

A MENINA NO QUARTO 107


15.

Acordei com o cantar dos pássaros. Verifiquei a hora no


relógio sobre o criado-mudo e, preocupado por estar
atrasado, saltei da cama, troquei de roupa e comecei a
vestir minhas botas. Logo em seguida, lembrei-me de que
era manhã de domingo e eu não precisava me preocupar
com o jardim.
Decidi aproveitar a folga para caminhar pelo
vilarejo, distrair um pouco a mente. Antes, fui até a
cozinha para tomar o café da manhã. Todas as manhãs,
Raquel preparava um café maravilhoso e dispunha à mesa
várias frutas, pães, geleias e outros variados itens, e ao
redor se reuniam as três criadas que, ao som de risadas,
entregavam-se a um estado de humor contagiante
enquanto comiam fartamente. Na casa dos Vukmir, a
primeira refeição era quase sagrada. Naquela manhã, tal
como nas anteriores, encontrei a mesa farta e colorida,
arrumada de modo que o apetite fosse despertado ao
simples olhar. No entanto, nenhum sinal das criadas.
Mesa cheia e ao mesmo tempo vazia. Aonde estariam
todos?
O sol matinal penetrava a janela e banhava a mesa
arrumada. Sentei-me sozinho ali, imaginando que a
qualquer momento as criadas irromperiam pela porta e se
sentariam à mesa com estardalhaço — mas isso não
aconteceu. Minha solidão prolongou-se por todo o tempo
em que estive ali. Escutei longe o cantar de um pássaro,
108 DAVI VALE
um som que em muito se parecia com uma risada. A
princípio era um belo canto, mas gradualmente começou
a me incomodar, transformando-se numa risada diabólica,
aguda, por vezes vibrando e assemelhando-se então a um
engasgo agoniado — um som que remetia à lenta morte
de uma mulher sufocada. Comi rapidamente duas fatias
de pão com geleia de amora, uma xícara de café com leite
e uma fatia de queijo branco. Devorei tudo com pressa,
ansioso para sair logo daquela cozinha.
Voltei ao meu quarto e vesti minhas roupas de sair
— chapéu Fedora, paletó chumbo de listras discretas,
calças pretas e sapatos que, embora velhos, aparentavam
estar quase novos por conta do pouco uso. Em dias de
frio, eu usava também meu sobretudo preto, mas o dia
prometia ser quente e dispensava seu uso.
Defronte do espelho, observei meu semblante. Sob
meus olhos formavam-se bolsas azuladas, de aspecto
gorduroso, que davam ao meu olhar um peso doentio.
Observei como meu olho direito parecia ainda mais
cansado que o esquerdo, envolvido por um círculo
arroxeado. Me senti mais velho, mais gasto. Havia dois
dias que eu não fazia a barba, o que acentuava minha
aparência displicente. Ainda assim, naquele dia eu não
tive vontade de fazê-la. Penteei meus cabelos pretos e
ondulados para trás e ajeitei o colarinho da camisa. Lavei
o rosto mais uma vez, esperando assim atenuar as
olheiras.
Quando saí pela porta do vestíbulo, escutei os
pássaros que cantavam nas árvores das redondezas,
A MENINA NO QUARTO 109
comemorando o dia ensolarado. Eram agora cantos
alegres, variados, uma verdadeira festa; embora, ao fundo
de tudo isso, eu ainda escutasse uma risada diabólica. O
sol revigorava o verde do gramado e o azul intenso do
céu limpo. Tudo me convidava a uma caminhada ao ar
livre. Ventava pouco, e a brisa calma tinha o cheiro das
flores e o frescor do relento. Percebi que já não saía
daquela casa há dias, que me sentia preso. Ansiava por
um momento de liberdade. Queria muito conhecer o
vilarejo, interagir com seus moradores, visitar a loja de
conveniência, a livraria, o café, caminhar a esmo pelas
praças — tudo pelo simples prazer do ócio.
Eu já saía pela porta quando escutei alguém me
chamar. Olhei para trás e vi que era Helena. Ela ainda
estava estremunhada, sequer tinha trocado as roupas de
dormir, como se tivesse saltado da cama há poucos
segundos. Estava de camisola, e vê-la vestida daquela
maneira deixou-me um pouco embaraçado, pois a roupa
era escandalosamente curta e expunha-lhe as coxas
macias, os ombros brancos e o pescoço delicado, além de
ser quase transparente e expor o contorno de seus
mamilos.
— Vai sair? — perguntou, um pouco ofegante.
— Sim — respondi, olhando acidentalmente para
sua camisola. Sua maneira despreocupada de expor o
corpo ainda me deixava encabulado. Me perguntei se ela
aparecia para mim vestida daquela maneira
propositalmente. — Pretendo fazer uma caminhada pela
vizinhança.

110 DAVI VALE


— Quando você volta?
— Não tenho certeza, mas não devo demorar —
respondi. — Talvez umas duas horas.
— Quando voltar, quero falar com você.
— Pois diga agora mesmo, então — provoquei,
elevando uma das sobrancelhas.
— Não. Agora não é boa hora. Me procure quando
retornar de sua caminhada. E seja discreto.
Fiquei muito curioso. Cheguei até a pensar em não
sair, interessado em saber logo o que ela tinha a me dizer,
mas eu precisava me distrair porque há quase uma
semana não via o mundo lá fora, e o isolamento não faz
bem à mente. Helena voltou para dentro da casa. Pude vê-
la subir as escadas com suas pernas lisas e brilhantes, e
seu corpo nunca me parecera tão sensual. Subia de um
jeito saltitante, os cabelos presos balançando
nervosamente, a barra da camisola subindo e descendo
por trás das coxas até o início das nádegas. Havia em seus
movimentos certa alegria. Não fosse o corpo mulheril,
por sua vivacidade se confundiria facilmente com uma
criança.

A MENINA NO QUARTO 111


16.

Não havia muitas coisas interessantes para se observar


nas ruas, especialmente porque, naquele horário, a
maioria das pessoas estava na missa. Era o ano da bênção
de Dom José Gaspar e os fiéis estavam mais devotos do
que nunca, graças à recente visita do arcebispo ao vilarejo
de Rebouças. Não se falava em outra coisa. A Paróquia
estava lotada e, consequentemente, o vilarejo estava
vazio.
Aborrecido, decidi dar um tempo num café perto da
estação, um dos poucos lugares que estavam funcionando
àquela hora — especialmente porque era domingo. O café
era pequeno e escuro, tinha apenas duas mesas e alguns
bancos à beira do balcão. O piso de madeira estava gasto
e o gesso do teto era amarelado. Pedi uma xícara de café
ao dono do estabelecimento, então me sentei na frente do
balcão.
Havia um senhor num banco ao lado, casa dos 70
anos, cabelos brancos e fartos, bigode espesso e enrolado
nas pontas, sobrancelhas revoltas e nariz abatatado. Seu
chapéu marrom estava jogado sobre o balcão ao lado de
sua xícara. Sua camisa branca estava suja na gola, e logo
notei que também havia uma horrenda mancha amarelada
em cada uma das axilas. Suas calças pretas tinham
pequenas manchas esbranquiçadas feitas por respingos de
alvejante.
Cumprimentei-o cordialmente com bom-dia, e ele
me respondeu com a mesma benevolência. A despeito da
112 DAVI VALE
displicência, havia em seus modos algo de cavalheiresco.
Imaginei que, antes de entregar-se à falta de higiene à
qual os idosos por vezes se entregam, ele devia ser um
homem polido. Ignorei-o por alguns segundos, tomando
calmamente o meu café, mas o velho ficou me encarando
insistentemente.
— O senhor é novo por aqui? — perguntou-me
afinal, enquanto eu bebia um gole do café. Tinha a voz
áspera, como se fosse obstruída por um pigarro. Seu
hálito misturava o odor do café com o cheiro fétido que
os fumantes têm na boca quando dispensam a higiene.
— Sim. Comecei a trabalhar esta semana na casa
dos Vukmir.
O velho arregalou os olhos castanhos ao ouvir o
nome da família, em seguida fingiu indiferença e voltou a
beber seu café.
— A propósito, sou Victor Silva — apresentei-me.
— Muito prazer, sou João de Souza Pereira. —
Apertamos as mãos. — O que o senhor faz lá? Digo, em
que trabalha?
— Sou jardineiro.
— Ah! Uma profissão importante. Um bom
jardineiro é um artista, mas seu pincel é a tesoura. A
jardinagem é uma arte, não concorda? Ah sim, uma arte.
Mas diga-me, Sr. Silva, o que tem achado deste nosso
pedacinho de mundo?
João Pereira falava de um jeito solto, as palavras
lhe fluíam livres e seu tom de voz era convidativo. Dava
gosto ouvi-lo.
A MENINA NO QUARTO 113
— O pouco que conheci já me agrada — respondi.
— É uma região isolada, logo se nota. Até mesmo a
maneira como vocês falam é diferente, se me permite
dizer. Fico impressionado que estejamos á poucos
quilômetros de minha cidade natal e, apesar disso, eu
tenha a impressão de estar muito mais longe.
— Fique à vontade para falar, não é ofensivo. Pelo
contrário, o isolamento daqui é um privilégio, embora
muitos não concordem. Rebouças tem crescido
rapidamente, sabe? E isso me entristece um pouco. Minha
família veio de Portugal na década de 1840 e esteve
amplamente envolvida na construção de estradas que dão
acesso às cidades do entorno. Somos da época em que
este lugar era composto basicamente por fazendas, as
quais foram sendo divididas em pequenos sítios que eram
então ocupadas pelos imigrantes cada vez mais
numerosos, enquanto a produção rural ia sendo
substituída pelo comércio e pela indústria. O crescimento
da região se deu especialmente após a construção da
estação de Rebouças em 1875, que, aliás, foi o ano em
que nasci. Minha família assistiu ao crescimento da
população enquanto se estabelecia. Costumamos dizer
que os Pereira cresceram com Rebouças, e Rebouças
cresceu com os Pereira.
— Então sua família faz parte da história deste
lugar — comentei, expondo minha admiração.
— De fato. Juntamente com algumas outras,
geralmente italianas e portuguesas, mas não apenas.
— Os Vukmir, por exemplo — comentei.

114 DAVI VALE


João Pereira pigarreou secamente.
— Os Vukmir vieram da Iugoslávia em 1918, se
não me falha a memória — informou ele, tomando certo
ar frio de quem entra em assunto delicado. —
Construíram aquela casa de estilo europeu no alto da
encosta e ali se estabeleceram. Era uma grande família,
sim, era.
— O que houve?
— Na década de 1920 sobreveio sobre os Vukmir
uma terrível onda de azar, e em poucos anos todos
estavam mortos, exceto a pequena Nadia, ainda jovem, e
sua governanta húngara que servia à família desde antes
da imigração. As duas viveram sozinhas naquela casa
enorme por quatro anos, até que Nadia casou-se com um
major.
— Como todos morreram? — perguntei, muito
curioso.
— Não se sabe ao certo. Os Vukmir sempre foram
uma família fechada, as coisas aconteciam sem que
ninguém se desse conta. O fato é que mistérios sempre
rondaram aquela casa. Primeiro, morreram os avós de
Nadia, logo que chegaram ao Brasil; eram velhos e talvez
não tenham se adaptado ao clima tropical. A mãe morreu
alguns anos mais tarde em um estranho acidente
doméstico. O pai, dominado pela angústia da viuvez,
adoeceu e morreu pouco tempo depois. Peço desculpas
por ser vago quanto ao tempo, mas não me recordo dos
anos.

A MENINA NO QUARTO 115


O Sr. Pereira elevou o dedo para o alto, como se
lembrasse algo importante, e disse:
— Aliás, havia também uma criada negra que veio
da Europa com os Vukmir. Ela desapareceu cerca de um
ano antes da morte do pai de Nadia. Pois é, nunca mais
foi vista. Algumas pessoas acreditam que homem abusava
da criada, e que depois da morte da esposa passou a
abusar também de Nadia, a própria filha.
— O senhor acha que isso é verdade?
— Talvez, Sr. Silva. Quem sabe? Mas não me
surpreenderia se fosse.
Interrompeu seu relato por um instante, refletiu
como se estivesse diante de uma dúvida terrível, então
falou:
— Não quero assustá-lo, mas correm alguns boatos
a respeito daquele lugar. Imagino que o senhor já os
conheça.
— Que tipo de boatos? — indaguei, franzindo o
cenho.
O Sr. Pereira tomou mais um gole de seu café, que
já estava quase no fim, depois disse:
— Claro que não convém confiar em boatos… —
deu uma tossida, e o bafo quente e fétido de seu hálito
bateu em meu rosto — mas há quem acredite que Nadia
Vukmir tenha pacto com o diabo.
— Ora essa! Pacto com o diabo?
— É o que dizem.
— O senhor vai me desculpar, mas não acredito
nessas coisas.

116 DAVI VALE


— Aham… — resmungou ele, acenando
positivamente com a cabeça. — O senhor é um homem
sensato. Mas diga-me: nunca notou qualquer coisa
estranha naquela mulher?
Refleti. Vinha à minha memória a atitude esquisita
da viúva na noite retrasada, seu olhar sombrio e a forma
como me expulsou do cômodo. Com exceção disso,
porém, não me recordava de qualquer coisa que se
encaixasse aos boatos.
— O senhor tem todo o direito de ser cético —
disse o Sr. Pereira, percebendo minha demora em
responder. — Os filósofos dizem que a dúvida é a virtude
dos sábios. Mas faça apenas uma coisa: observe.
Voltando-se ao dono do café, entregou-lhe uma
moeda, então levantou-se do banco e pôs o chapéu na
cabeça.
— Com licença. Tenho de ir.
— À vontade — respondi, fazendo um movimento
de mesura com a cabeça.
Antes de sair, porém, acrescentou:
— Se eu fosse o senhor, tomaria muito cuidado
naquele lugar.
No início, achei até graça naquele conselho.
Depois, porém, recordei-me dos recentes acontecimentos,
especialmente do choro que eu andava escutando durante
a noite. Talvez ele pudesse me esclarecer algo sobre esse
estranho evento. Levantei-me do banco e fui no encalço
do Sr. Pereira, no entanto não o encontrei na rua — o
velho já havia sumido.
A MENINA NO QUARTO 117
No caminho de volta, as ruas já estavam mais
movimentadas do que antes. Algumas crianças brincavam
com uma bola na rua principal, e na esquina seguinte um
pequeno grupo de adolescentes conversava com
entusiasmo. Todos os pedestres que passaram por mim
me encararam, os adolescentes me acompanharam com
olhar desconfiado e as crianças pararam de brincar.
Tentando parecer agradável, acenei com a cabeça para
cada um deles e desejei bom-dia a quem estivesse
suficientemente perto para me escutar. Não pude evitar,
porém, a sensação de ser um intruso. Num vilarejo
pequeno onde todos os moradores se conheciam, ver um
homem diferente caminhando por suas ruas lhes devia ser
tão incômodo quando vê-lo caminhando em seu próprio
quintal.

118 DAVI VALE


17.

O sol já se elevava a um terço do céu quando voltei para a


casa dos Vukmir. Já fazia um pouco de calor e eu ansiava
por despir-me do paletó. Domingos quentes sempre
costumavam levantar meu ânimo, mas naquele dia eu me
sentia nostálgico. Enquanto o mistério da filha de Nadia
Vukmir não fosse elucidado, qualquer tempo seria ruim
para mim. Entrei no vestíbulo e pendurei o paletó e o
chapéu no mancebo. O vestíbulo estava frio como uma
caverna. A calefação devia estar sem lenha. Mais tarde eu
resolveria isso, mas por enquanto eu precisava encontrar
Helena. Me pus a procurá-la pela casa, mas não a
encontrei.
Entrementes, ocorreu algo relevante. Decidi
procurar Helena na cozinha, mas chegando lá não a
encontrei. Em vez disso, flagrei Vera Milovan e Raquel
conversando. No entanto, quando me viram, as duas
pararam imediatamente de falar. Eu apenas bebi um
pouco de água para justificar minha ida até a cozinha —
já que minha busca por Helena devia ser discreta —,
então as deixei novamente sozinhas.
Ia já saindo pelo acesso que se comunica à sala de
jantar, quando me recordei de ter visto Raquel
conversando com Caroline na biblioteca, e que com a
minha chegada elas tiveram aquela mesma reação
suspeita, interrompendo subitamente o assunto como se
eu não pudesse saber o que diziam. Eu já tinha minhas
A MENINA NO QUARTO 119
desconfianças com relação à Raquel, tanto pela forma
como ela se opôs a qualquer tipo de especulação acerca
de Júlia quanto pela maneira como estava sempre
demonstrando em seu olhar uma espécie de culpa, como
se guardasse um segredo que fosse grande demais, ou
ficasse em estado de alerta o tempo inteiro. Eu suspeitava
que ela soubesse muito mais sobre Júlia do que afirmava
saber. Pela maneira como ela e a Sra. Milovan
interromperam o diálogo quando cheguei, evidentemente
não queriam que eu as ouvisse, e isso me encorajou a
espioná-las. Ao invés de sair da sala de jantar, voltei para
perto da porta da cozinha e parei ao lado da ombreira, de
maneira que pudesse escutá-las sem que elas me vissem.
— Até agora tudo estava bem — escutei Raquel
dizer. — Até a chegada dele.
— Ele é muito curioso, de fato! — concordou a
Sra. Milovan em tom de irritação. — De qualquer
maneira, não tem como ele descobrir.
— Mas não se esqueça do que houve ao Sr… —
Raquel repentinamente parou de falar.
— Qual o problema? — indagou a governanta.
As duas ficaram quietas. Num instante notei uma
sombra crescendo no chão e percebi que uma delas se
aproximava da porta. Lancei-me para trás da mesa de
jantar e me escondi. Raquel surgiu no limiar da porta e
parou ali por alguns segundos. Em seguida, voltou para
dentro da cozinha.
— Pensei ter escutado alguma coisa — ouvi-a
dizer.

120 DAVI VALE


Voltei para perto da porta, mas então não as escutei
mais. Ou tinham parado de conversar, ou falavam muito
baixo. De qualquer maneira, não era mais seguro espioná-
las.
Dentre tantos sentimentos simultâneos que aquele
pequeno diálogo me causou, um deles foi o de tristeza.
Raquel sorrira-me tantas vezes, olhara-me sempre de
forma tão amigável, mas agora falava a meu respeito
como se não tivesse por mim qualquer afeição. Quanta
aleivosia! A Sra. Milovan nunca demonstrara afeto por
mim, mas Raquel realmente havia me surpreendido com a
deslealdade de suas ações. Sentia-me traído, e esse
sentimento me aborrecia. Raquel realmente não merecia
minha confiança, e certamente a Sra. Milovan também
não.
Mas um detalhe em especial naquele diálogo
chamou minha atenção. Não se esqueça do que houve ao
Sr., Raquel disse. Sim, eu tinha escutado perfeitamente, e
parecia fácil presumir que elas falavam acerca do Sr.
Gonçalves. Alguma coisa havia acontecido a ele, e com
certeza poderia acontecer a mim também. Talvez por isso
o Sr. Pereira tinha me recomendado cuidado. Que eu
soubesse, o antigo jardineiro havia morrido enquanto
dormia. E se, na verdade, ele tivesse descoberto alguma
coisa que não deveria?
Enquanto refletia acerca desse estranho diálogo, saí
da casa pela porta do vestíbulo e fui caminhar pelo
jardim. Logo que saí, encontrei Caroline debaixo de um
arvoredo, sentada a um banco e lendo um pequeno livro
A MENINA NO QUARTO 121
vermelho. Quando passei por ela, cumprimentei-a com
“bom-dia” e ela retribuiu com um sorriso. Me indaguei se
ela merecia minha confiança. Quais segredo guardaria de
mim? Também manteria confidências com a Sra.
Milovan, assim como Raquel?
— Foi conhecer o vilarejo? — perguntou ela
quando me notou, observando minhas roupas.
— Na verdade, acabei de retornar.
— O que achou?
— É um lugar muito agradável — respondi. —
Embora eu ainda precise me acostumar ao ritmo pacato
deste lugar.
— O senhor vai se acostumar — Caroline fechou o
livro, marcando com o dedo a página onde havia parado.
Observei que não havia título impresso na capa.
— É bom? — perguntei, em referência ao livro.
— Vermelho: 32!, do Faccini. Estou gostando
bastante.
— Esse eu ainda não conheço.
— Acabou de ser publicado.
Pedi licença e deixei-a novamente sozinha. Assim
que saí, Caroline retomou a leitura.
Continuei caminhando até me encontrar na lateral
esquerda da casa. Foi quando vi Helena sentada num
banco perto da parede, no mesmo lugar onde ela
costumava se sentar todas as manhãs para tomar sol. Eu
já devia ter previsto que ela estaria ali, em seu banco
predileto, especialmente numa manhã de domingo. Estava
usando um vestido florido decotado, sem mangas e

122 DAVI VALE


adornado com um cinto vermelho sob o busto. Estava
com as pernas cruzadas e os joelhos expostos. Olhava
para mim com os olhos semicerrados, enquanto uma
mecha de cabelos lhe cruzava o rosto trazida pelo vento.
— Tinha algo a me dizer? — perguntei assim que
me aproximei.
Antes de responder, Helena olhou em volta. Era
possível ver o banco onde Caroline estava sentada e, por
conseguinte, Caroline também podia ver-nos.
— Não devemos ser vistos a conversar — disse ela.
— Vistos por quem?
— Por todos.
— O que está acontecendo? — indaguei, já
impaciente.
Helena fez um sinal com a cabeça, indicando o
lugar onde Caroline estava, e depois disse:
— Aqui não é seguro. Encontre-me em meia hora
no antigo abrigo.
Só disse isso, depois se levantou e, antes que eu
fizesse qualquer pergunta, saiu andando e entrou na casa.

A MENINA NO QUARTO 123


18.

Eu sabia que o antigo abrigo só podia ser a cabana onde o


Sr. Gonçalves faleceu. Não havia outro. A princípio,
parecia um lugar estranho para se marcar um encontro,
pois se achava muito afastado da casa. Porém, tendo em
vista que Helena buscava discrição, aquele era o ponto de
encontro perfeito porque ali certamente ninguém nos
veria.
Sentei-me a um banco qualquer no jardim e esperei
alguns minutos, dez ou vinte talvez — não estava com o
relógio para saber e, além disso, nossa percepção do
tempo tende a se distorcer quando estamos pensando
nele. Fui afinal para o ponto de encontro, pois não
suportava mais esperar. Devo ter comparecido à cabana
uns dez minutos antes do combinado.
Poucas vezes estive naquela parte da propriedade.
Sempre tentava evitar aquele lugar, na maioria das vezes
inconscientemente. A cabana havia sido construída à
beira de uma encosta verdejante, numa das entradas do
bosque em um ponto mais baixo do terreno. Bastou-me
vê-la para que eu me sentisse nostálgico, tomado de um
sentimento lutuoso, uma sensação de desconforto e um
aperto angustiante no coração. Era um lugar soturno, em
parte porque eu sabia que ali se tinha passado a morte de
um homem e, ademais, pelo estado de abandono que a
tornava tão sombria e solitária.

124 DAVI VALE


A cabana tinha uma varanda que se estendia de
canto a canto, e uma escada de madeira apodrecida, de
três degraus, que se posicionava de frente com a porta de
entrada. As duas janelas estavam fechadas, mas logo se
notava que as persianas de madeira, de tão apodrecidas,
estavam prestes a se desprender das ombreiras. As
paredes estavam cobertas de musgo esverdeado e o piso
tornara-se escuro de lodo.
Num dos pilares da varanda, uma grande aranha
verde, de abdome retangular e pernas longas, segurava-se
em sua teia. Olhei-a de perto, fascinado por sua beleza.
Era uma daquelas espécies comuns nas matas tropicais,
em geral inofensivas ao ser humano, a despeito do
tamanho. O vento fez a teia balançar, e com isso a aranha
moveu-se bruscamente. Levei um susto e afastei o rosto.
Em seguida, subi até a varanda e abri a porta. O
odor da madeira podre e úmida fundia-se ao cheiro
penetrante de urina de rato. O interior da cabana estava
claro, pois parte do telhado havia sido arrancada. Quando
se pisava no chão, o piso rangia de uma maneira
assombrosa e o barulho ecoava pelo cômodo como numa
caverna. Entrei na sala principal e comecei a observar a
mobília. Havia apenas uma poltrona muito velha e
rasgada no meio da sala, e defronte dela uma mesinha
circular sobre a qual uma barata parecia não se preocupar
com a minha presença. Muitas folhas secas estavam
espalhadas pelo chão. No fundo, uma porta dava para a
cozinha. A cozinha também estava igualmente imunda e
fedorenta, e eu nem quis entrar nela. A outra porta dava
A MENINA NO QUARTO 125
para o quarto. Fui até ela e a empurrei, mas estava
trancada. Por que trancada?
Saí da cabana e dei a volta por fora até a janela do
quarto. Também estava trancada. Segurei as duas folhas e
forcei, e bastou um pouco de força para que a persiana se
desmontasse em minhas mãos. O interior do quarto estava
escuro, pois ali o telhado não havia sido arrancado pela
ventania. Um roupeiro achava-se encostado a uma das
paredes, com as portas arreganhadas, e nele algumas
peças de roupa do falecido Sr. Gonçalves ainda estavam
penduradas em cabides. Um criado-mudo achava-se em
outro canto e, sobre ele, um abajur tombado e um copo de
vidro vazio.
Na parede do fundo havia um quadro com um texto
escrito em letras pretas. Estava escuro demais para ler,
então forcei um pouco mais a vista e consegui entender
pelo menos o começo da inscrição:

O que habita no esconderijo do Altíssimo […]

Foi o suficiente. Tratava-se do Salmo 91, e eu o conhecia


de cor. Lembrei-me imediatamente da casa dos meus
pais. Minha mãe tinha feito questão de colocar o Salmo
91 numa moldura e pendurá-la na parede da sala, e todos
os dias ela o lia em silêncio. Naquela época, eu não
compreendia o motivo de ela insistir nesse ritual, e até
hoje continuo não entendendo. Há coisas que nunca
podemos saber ao certo.

126 DAVI VALE


O salmo na parede me trouxe a lembrança dos
meus pais e, com ela, veio certa tristeza. Perdi meus pais
quando ainda era um adolescente. Morreram de
tuberculose. O surto de tuberculose estava em seu auge
quando minha mãe adoeceu, mas eu nunca acreditei que
ela fosse morrer. A morte me parecia uma coisa distante e
improvável, a despeito de os jornais relatarem
diariamente os números assombrosos de vítimas da
tuberculose em Campinas, e mesmo apesar da morte de
um dos nossos vizinhos com suspeita da doença. Levantei
certa manhã e não encontrei minha mãe na cozinha. Ela
sempre acordava antes de todos e, como não tínhamos
empregada, preparava o café com suas próprias mãos —
mas naquela manhã ela não estava lá. Eu soube,
instantaneamente, que alguma coisa estava errada.
Quando cruzei a porta de seu quarto, senti logo o cheiro
da morte. Meu pai estava ajoelhado ao lado da cama,
tomado por uma tristeza que eu nunca vira em seu
semblante. Aproximei-me da cama com receio e vi minha
mãe com aquele rosto cadavérico e sofrido. Estava magra,
lívida e transpirava um suor pegajoso. Obviamente, sua
aparência não ficara assim de uma hora para outra: esteve
abatida durante toda a semana, mas só naquela manhã eu
me dei conta de seu real estado de saúde. Tossiu em um
lenço e eu pude ver, quando ela o afastou dos lábios, uma
mancha de sangue. Meu pai sabia que ela estava prestes a
morrer, seu olhar era já uma espécie de adeus. Não tive a
oportunidade de me despedir dela. Meus tios foram me
buscar naquela mesma manhã porque não queriam que eu
A MENINA NO QUARTO 127
contraísse a doença. Aquela foi a última vez que a vi
viva. Recebi a notícia de sua morte na semana seguinte.
Aliás, há um detalhe que até hoje mantenho
guardado comigo. O fato é que sempre menti sobre a
causa da morte de meu pai. Embora eu costumasse dizer
que tanto minha mãe quanto meu pai haviam morrido de
tuberculose, na verdade meu pai nunca contraiu a doença.
Ocorreu que, com a morte de minha mãe, ele se deprimiu
tanto que, três dias depois, laçou uma corda ao pescoço e
se matou. Dizem que meu pai se enforcou na sala de
estar. Fico imaginando seu corpo pendurado na viga do
teto, balançando como o pêndulo de um relógio, tendo
defronte de si o Salmo 91 que estava na parede. Me
pergunto se ele o leu antes da morte.
Eu ainda estava debruçado sobre o peitoril sujo da
janela quando escutei passos na mata. Dei a volta na
cabana e, assim que dobrei pela lateral, pude ver Helena
chegando pela trilha que cortava o gramado. Andava com
receio, desviava-se dos obstáculos e parecia com medo de
ser picada por um bicho qualquer. Convidei-a a se sentar
comigo no primeiro degrau da escada de madeira, eu à
esquerda e ela à direita. Ela sentou-se em silêncio. Tinha
no semblante um ar estranho, melancólico. Perguntei-me
se ela estava assim por causa do que tinha a me dizer.
Ficamos um minuto em silêncio. Não querendo forçá-la a
falar e, além disso, sentindo que ela estava se preparando,
esperei.
— Você precisa ir embora — anunciou de repente
enquanto olhava para o chão.

128 DAVI VALE


— Não estou entendendo.
Helena me fitou com seus olhos negros. Havia
medo em seu olhar.
— Vá embora daqui. Apronte suas malas e saia.
— E por que eu devo fazer isso?
— Você sempre quer saber tudo! O fato é que aqui
não é seguro.
— Se você não me disser o motivo, eu não vou
embora.
Helena tocou em minha face esquerda com a mão.
Pude sentir o atrito de sua pele lisa contra os pelos
ásperos de minha barba.
— Estou dizendo isso porque me preocupo com
você — ela falou, olhando-me de uma forma tão
preocupada que tinha algo de materno.
— Receio não poder fazer o que você está me
pedindo; por dois motivos: primeiro, porque preciso deste
trabalho, e segundo, porque sinto que Júlia precisa de
ajuda. Não posso ir embora sabendo que ela está naquele
quarto, isolada do mundo, pois não poderia conviver com
a consciência de não ter feito nada para ajudá-la.
— Esqueça essa menina! Você não sabe… — ela
parou de falar de repente, como se tivesse dito algo que
não deveria dizer. Observou as próprias mãos enquanto
entrelaçava os dedos.
— O que eu não sei?
Helena voltou a me olhar, elevando a cabeça
apenas um pouco, olhando-me de baixo para cima.

A MENINA NO QUARTO 129


— Mesmo que eu soubesse, não poderia te contar.
Juro que não!
— Acontece que eu não irei embora. Você diz que
se preocupa comigo. Por acaso isso significa que corro
algum perigo? Se você quer me ajudar, diga-me a verdade
para que eu possa me prevenir.
— É tão teimoso quanto imaginei — disse ela,
desviando o olhar para qualquer coisa além de mim,
como se falasse a uma terceira pessoa. — Já lhe disse,
Victor, que não posso contar. Por favor, pare de querer
saber sobre essas coisas.
— Conte-me a verdade, Helena. Eu juro que
ninguém saberá que você me contou. O que estão
escondendo de mim? Por que todas vocês parecem
mentir?
— Tudo o que sei é que você pode estar em perigo
— e voltou seu olhar para o chão. Olhava um pequeno
besouro que se aproximava. Empurrei-o para longe dela
com meu pé, então perguntei:
— Isso tem a ver com Júlia?
Helena não respondeu. Segurei seus ombros e a fiz
olhar para mim.
— Por favor, conte-me de uma vez! Não suporto
tanto suspense!
— Está me machucando! — ela reclamou, e então
eu percebi que a havia segurado com muita força. Larguei
seus ombros, mas minhas mãos deslizaram até seu rosto.
— Perdoe-me, mas estou tão confuso!
— Eu sei que está. Isso é injusto para você.

130 DAVI VALE


— Por que está querendo me ajudar?
Ela esquivou o olhar por algum tempo antes de
responder:
— Por que eu gosto de você.
Ao ouvir isso, senti um desejo intenso de beijá-la.
Trocamos olhares por algum tempo, e seus olhos estavam
tristes. Mas mesmo triste, ela era linda de tirar o fôlego.
Nossos rostos estavam tão perto que eu podia sentir o
calor do ar que saía de suas narinas. Talvez eu devesse
beijá-la naquele instante — mas se a beijasse, talvez ela
não reagisse positivamente, quem sabe até me desferisse
um tapa na face, indignada e ofendida. Seu olhar
transmitia afabilidade e parecia que ela também desejava
me beijar, mas como eu poderia ter certeza? Como eu
poderia saber se não interpretava mal suas ações e
entendesse como sinal de atração amorosa um simples
afeto amigável e desinteressado? E se, ao tentar beijá-la,
eu estragasse tudo?
Não obstante todos os meus receios, num impulso
irracional me flagrei inclinando-me em sua direção,
aproximando minha boca da dela. Subitamente, porém,
Helena se afastou de mim. Não deu para saber se ela
havia percebido que eu pretendia beijá-la. Ela não estava
chateada comigo, logo se via — no entanto, alguma outra
coisa a incomodava. Ficou de pé, e eu percebi que seus
olhos estavam cheios de lágrimas.
— Não quero que se machuque — foi só o que ela
disse, e em seguida saiu andando em direção à casa.

A MENINA NO QUARTO 131


Fiquei parado em frente àquela cabana, observando
até que Helena sumisse de vista na curvatura do terreno.
Naquele momento, constatei que ela era a única pessoa
em quem eu podia confiar.

132 DAVI VALE


19.

Eu me sentia como uma criança que, abandonada à mercê


do acaso em lugar estranho, procura desesperadamente
pelos pais. Perdido em minhas próprias deduções eu
percebia, num assomo de desesperança, que todo o
caminho que havia percorrido até ali convergia em si
próprio, formando assim um círculo.
Senti que segredos terríveis eram confidenciados
entre as empregadas e que, de alguma forma, todos eles
convergiam em Nadia Vukmir e sua filha. Vários detalhes
me vieram à memória. Considerei o fato de não haver
telefone ou rádio na casa e me perguntei se haveria
alguma razão para isso, ou se era apenas a repugnância de
minha patroa à modernidade. Ocorreu-me, além disso,
que as empregadas pareciam nunca sair da propriedade,
como se estivessem aprisionadas ali — e eu me
perguntava se aquilo podia ser relacionado aos demais
mistérios da casa.
Também me recordei de que, algumas noites antes,
a madame demonstrara-se atormentada, sozinha naquela
sala escura. Quanto a isto, se eu fosse um pouco mais
supersticioso, poderia concluir facilmente que o mesmo
fantasma que chorava em meu quarto também a estaria
atormentando — mas eu me recusava a aceitar
semelhante coisa, sobretudo porque não acreditava em
fantasmas. É sempre mais fácil buscar explicações
sobrenaturais às coisas que não compreendemos — e eu
A MENINA NO QUARTO 133
não desejava, porém, ir pelo caminho mais fácil, mas pelo
caminho da verdade. Definitivamente, devia existir uma
explicação racional.
Caminhando pelo jardim a passos lentos, sentindo
o vento no rosto e ouvindo o farfalhar das árvores,
engendrei um plano, fruto de uma ideia que me atingiu
subitamente como um fleche de luz. Subitamente, me vi
tomado de grande expectativa. Se por um lado eu estava
apreensivo por ter sido alertado três vezes acerca do risco
que estava correndo na casa dos Vukmir, por outro eu me
sentia empolgado pela possibilidade de solucionar aquele
mistério e salvar uma criança do cativeiro. A primeira
parte desse plano consistia em descobrir a exata
localização do aposento de Júlia. Eu sabia qual janela
pertencia a ele, pois Júlia havia aparecido nela algumas
vezes — restava-me descobrir qual porta acessava aquele
quarto. Decidi desenhar uma planta da casa e mapeá-la
minuciosamente, o que não me seria tarefa muito difícil,
visto que sempre tive certa facilidade com desenhos.
A segunda parte consistia em entrar no quarto de
Júlia sem ser visto. Meu intento era conversar com a
menina, perguntar-lhe pessoalmente se ela era maltratada
e por que razão estava aprisionada. Escolher o melhor
momento para fazer isso era uma questão importante:
fazê-lo à noite seria demasiadamente arriscado, pois Júlia
se assustaria com minha visita intempestiva e poderia
gritar, chamando atenção de toda a casa. Esperar que a
Sra. Milovan estivesse fora do aposento no decorrer do
dia parecia ser uma opção mais razoável. No entanto, se

134 DAVI VALE


eu entrasse no quarto de Júlia durante o dia também
estaria me arriscando muito, pois poderia ser flagrado por
uma das empregadas, ou a governanta poderia retornar ao
quarto antes que eu tivesse tempo de sair de lá, ou ainda
eu poderia ser visto a subir ou descer as escadas e assim
levantar muitas suspeitas. Eram muitos os riscos e eu
precisava considerar todos. Em todo caso, eu já vinha
observando a rotina das empregadas e estava seguro de
que existia uma forma de despistá-las.
Já seriam três da tarde quando avistei Nadia
Vukmir sentada à mesa da varanda com a Sra. Milovan.
Eu encontrava-me longe delas e, enquanto conversavam,
fui tomado por uma onda de curiosidade. Sobre o que
estariam falando? Tentei uma leitura labial, mas descobri
que minhas habilidades nesse sentido não eram
suficientes. De qualquer forma, vê-las tomando chá na
varanda, despreocupadas, distraídas com algum assunto
aparentemente importante, gesticulando e às vezes até
rindo, as pernas cruzadas e os cotovelos à mesa, me
serviu para confirmar que meu plano tinha chances de ser
executado: após descobrir a exata localização do quarto
de Júlia, eu deveria esperar a próxima vez que elas
decidissem tomar chá juntas e aproveitaria esse momento
para subir.
Fui até o meu quarto e tranquei a porta. Peguei
algumas folhas, uma régua e um lápis, e comecei o
esboço do meu desenho. Iniciei pelo primeiro piso.
Todavia, não conseguindo me recordar da disposição
exata de todas as paredes, acabei tendo de caminhar pela
A MENINA NO QUARTO 135
casa várias vezes, saindo e entrando em meu quarto,
fazendo anotações e medindo o tamanho dos cômodos
com base em meus passos. Evitei ao máximo ser visto
pelas empregadas naquelas perambulações a fim de não
levantar suspeitas. Demorei pouco mais de uma hora para
finalizar o primeiro piso. Por fim, identifiquei os
cômodos mais importantes com seus respectivos nomes,
anotando-os diretamente sobre a planta. A proporção das
medidas talvez não estivesse perfeita, mas o desenho
serviria bem aos meus propósitos.
Todavia, a parte mais difícil seria mapear a planta
do segundo pavimento, isso porque eu havia subido lá
apenas duas vezes. Conseguia me lembrar da disposição
das paredes no salão que dava acesso aos aposentos, mas
talvez não conseguisse me recordar da quantidade de
portas que havia lá. Precisava subir novamente para
contá-las.
Saí do meu quarto, fui até a porta da varanda e
confirmei que Nadia Vukmir ainda estava sentada na
varanda com a Sra. Milovan. Sem perder tempo, subi as
escadas até o último degrau e, lá em cima, memorizei o
posicionamento de todas as portas e paredes. À minha
frente havia uma grande janela que dava para a parte
frontal da casa, e perto dessa janela havia duas portas,
uma defronte da outra. À minha esquerda havia uma porta
de duas folhas que dava para o quarto da madame, atrás
de mim existiam mais duas portas, e à minha direta havia
um corredor que se findava em uma porta. Contei seis
portas, todas de mogno e com maçanetas de bronze.

136 DAVI VALE


Ocorria-me, porém, que uma daquelas portas devia dar
para o terceiro piso, o qual, segundo as descrições de
Caroline, era na verdade um sótão onde antigamente
dormiam as criadas. A própria casa, quando vista pelo
lado externo, ostentava um pavimento superior muito
próximo ao telhado, provido de janelas. Eu não poderia
saber qual das portas dava para a escada que subia para o
sótão, embora soubesse que determinadas portas sem
dúvida acessavam aposentos, pois eu discernia serem
esses locais inviáveis para a construção de uma escada.
Entretanto, a localização do acesso ao sótão não me
parecia importante ao caso. Uma das portas devia
pertencer ao quarto de Júlia — essa era a informação que
me importava.
Tentei memorizar a disposição das portas. Uma
delas em particular parecia ser a correta, pois, por meus
cálculos, era naquele lado que estava a janela para o
quarto de Júlia. Cheguei a cogitar tentar abri-la naquele
momento mesmo, antes de mapear a casa — mas estaria
me malparando muito, correndo o risco de abrir a porta
errada e dar de cara com uma das criadas, o que sem
dúvida seria um desastre. Era preciso ter paciência.
De volta ao meu quarto, desenhei os detalhes dos
quais ainda me recordava antes que me fugissem da
memória. Utilizando como base a planta que fizera do
primeiro piso, aperfeiçoei a posição das paredes. Por
último, saí do meu quarto e caminhei ao redor da casa,
observando a posição de todas as janelas do segundo piso,
e posicionei cada janela em seu lugar no desenho. Por
A MENINA NO QUARTO 137
fim, identifiquei qual das janelas dava para o quarto de
Júlia.
Observei o resultado com satisfação. Embora
minhas informações sobre o segundo piso fossem
limitadas, com base no posicionamento da janela onde
Júlia aparecera já era possível discernir qual das portas
acessava seu quarto. Não havia dúvida: o quarto da
menina localizava-se imediatamente ao lado do aposento
da madame, pois era a porta mais próxima da janela em
questão. Agora que tinha essa informação, precisava
cuidar para aproveitá-la bem. Saber a exata localização
do aposento de Júlia havia sido um grande progresso.

138 DAVI VALE


A MENINA NO QUARTO 139
140 DAVI VALE
20.

O relógio da sala anunciava 17 horas. Saí do meu quarto


com a mente fatigada pelo longo período desenhando e
fui aproveitar a sol ameno daquela tarde dominical.
Passando pela sala de estar, vi Nadia Vukmir trabalhando
numa toalha de tricô.
— Victor — disse ela ao me ver. — Esteve sumido
hoje.
— Creio que tenhamos nos desencontrado.
— Está uma bela tarde, não? — ela disse, olhando
através janela da sala. — O que acha de uma caminhada
pelo jardim?
— É uma ideia magnífica, madame.
— Você me faria companhia? — perguntou-me
com um sorriso, então largou a toalha e as agulhas sobre a
mesinha.
— Será um prazer.
Saímos pela varanda, descemos a escada e
começamos a caminhar a um ritmo lento, desapressado. O
céu estava límpido e o sol nos banhava com seus raios
alaranjados. As nuvens no horizonte pareciam repousar
sobre os as montanhas distantes, como montes de algodão
muito brancos, embora nas extremidades tivessem uma
cor que migrava do laranja ao roxo. A temperatura
começava a baixar por causa do vento. Um coral de
pássaros completava a beleza quase onírica daquela tarde
de domingo.
A MENINA NO QUARTO 141
O jardim compunha-se de caminhos que
serpenteavam entre roseiras, gramados verdejantes e
arvoredos. Depois, eles conduziam ao arco que servia de
portal à entrada do bosque. Dali em diante, quase não se
podia ver o céu ensolarado, pois as árvores cobriam a
alameda e formavam um túnel verde. No bosque, os
ladrilhos de pedra davam lugar a um chão de terra batida
e cascalho, que na ocasião estava coberto pelas folhas
amareladas do outono que se findava. O bosque era a
parte mais extensa da propriedade, abrigava um riacho,
algumas ladeiras, pedregulhos milenares e tocas de tatus e
lagartos. Nas árvores acima de nós, os pássaros
anunciavam que o dia estava chegando ao fim.
Nadia Vukmir estava vestida confortavelmente,
sem adornos, e parecia bastante à vontade em minha
presença. De cara, elogiou novamente meu trabalho no
jardim, admirada com a forma como eu conseguia manter
as plantas sempre tão saudáveis.
— Muito simples — expliquei. — O segredo é
sempre podar as folhas amareladas, e assim permitir que
outras nasçam no lugar. Além disso, cada espécie de
planta exige uma maneira diferente de cuidado, portanto é
útil um pequeno conhecimento em botânica. Por último,
costumo adicionar à terra uma porção moderada de
substratos, humo e materiais orgânicos, conforme as
necessidades de cada solo.
— E como você sabe identificar essa necessidade?
— perguntou ela, muito interessada.

142 DAVI VALE


— É preciso calcular o índice de acidez do solo —
respondi com o entusiasmo de quem fala de um assunto
que domina bem. — Normalmente faço isso utilizando
bicarbonato de sódio ou vinagre, e pela efervescência
resultante calculo se o solo é ácido, neutro ou alcalino.
Assim, busco equilibrar o pH conforme as necessidades
de cada planta, acrescentando determinados compostos ao
solo.
— Vejo que é um homem erudito — observou a
madame, diminuindo seus passos e me olhando
diretamente nos olhos. Nesse momento, adentrávamos o
bosque através do arco. — Deve ter lido muitos livros de
botânica.
— Li alguns, não muitos, mas li os certos —
respondi, prolongando nosso contato visual, sem me
sentir, entretanto, desconfortável. — Meu pai me ensinou
parte do que sei, mas ele não sabia ler, e todos os seus
conhecimentos eram adquiridos através da experiência.
Foi depois de sua morte que tomei gosto pelos livros,
especialmente porque meus tios possuíam uma bela
coleção na estante da sala. Minha tia era datilógrafa do
cartório municipal, e meu tio tornara-se leitor assíduo de
livros depois que um acidente de trabalho tornou-o
inválido para o mercado. Ele tinha em sua estante quase
todos os clássicos da literatura, além dos mais
importantes didáticos de cada área do conhecimento.
— Confesso que estou impressionada. Não
querendo ofendê-lo, mas geralmente não se espera tanta

A MENINA NO QUARTO 143


erudição em um homem de origens mais humildes. Logo
se vê que você é muito inteligente.
— Ora, madame, não creio que seja merecedor de
tantos elogios. Sou um simples jardineiro que gosta de ler
livros. Não há grande glória nisso.
— Ah, a modéstia é outra de suas qualidades — ela
sorriu.
Continuamos a andar. Caminhamos algum tempo
em silêncio.
— Madame, se me permite a pergunta, por que não
voltou a se casar?
— Preferi ficar sozinha. Meu marido foi o único
homem que amei, de certa forma ainda amo. Entende?
— Sim, compreendo. Mas acredito que não lhe
deva ter faltado pretendentes.
— Por que diz isso? — ela olhou-me com um
sorriso de perplexidade, mas logo se notava que já sabia a
resposta, e que a esperava com certa apreensão prazerosa.
— Com todo o respeito, a madame é uma mulher
atraente e elegante.
Nadia Vukmir sorriu, inclinando a cabeça de modo
a exibir o pescoço e se deixando corar levemente.
— Já recebi propostas de casamentos praticamente
irrecusáveis — contou ela —, mas para mim em nada
foram interessantes. Como eu disse, só amei um homem
em minha vida, e depois dele não pretendo amar mais
nenhum.
— Ele deve ter sido um ótimo homem.

144 DAVI VALE


— O melhor homem que já conheci — respondeu
Nadia Vukmir, com os olhos brilhantes. — Era atencioso,
forte e protetor. Lembro-me do cheiro de seu perfume
predileto e do odor que ficava em sua pele quando esse
perfume se misturava ao suor de um dia de trabalho. É
engraçado, mas eu adorava senti-lo dessa maneira. Sim,
pode acreditar. — Sorriu, assumindo um ar nostálgico. —
Dan chegava sempre muito cansado e, apesar disso, ao
direcionar ordens aos empregados, mantinha aquela
postura militar que tantos anos de adestramento no
exército lhe conferiram. Somente eu o conhecia por
debaixo daquela máscara de autoridade, e isso era um
privilégio. Assim como você, Victor, ele gostava dos
livros. O gabinete era a sua parte predileta da casa. Nos
dias de folga, ele sentava-se atrás daquela mesa, lia, ouvia
as notícias no rádio, bebia uísque e fumava charuto. Mas
esses dias foram se tornando cada vez mais raros na
medida em que ia se dedicando mais ao seu trabalho, e eu
sentia que ele estava cada vez mais distante de mim. Sei
que talvez eu não estivesse sendo compreensiva, mas
sabia que estávamos nos afastando de pouco em pouco, e
mesmo quando estávamos juntos eu sentia esse
afastamento, não físico, mas psicológico. Dan estava
sempre com o pensamento ausente. Dizia que via coisas
horríveis em seu trabalho, que fazia coisas horríveis, e
aquilo o estava mudando. A guerra muda as pessoas.
— Isso foi antes de a senhora engravidar?
— Sim. Quando engravidei de Júlia, tive
esperanças de que as coisas ficariam melhores, que ele
A MENINA NO QUARTO 145
voltaria a ser o que era no começo do casamento. A
princípio, pareceu que sim. Ele estava empolgado, já
tinha escolhido o nome para a criança e fizera vários
planos. Era ótimo vê-lo daquele jeito, sempre a sorrir,
demonstrando preocupação com meu bem estar e com a
saúde do bebê. Só havia um problema: Dan esperava que
tivéssemos um filho menino. Ele sentia isso e agia como
se tivesse certeza. Quando, porém, soubemos que
teríamos uma menina, Dan ficou muito frustrado. Acho
que foi por isso que ele aceitou aquela missão. Ele me
disse que não tinha escolha, que precisava ir porque era
uma questão de segurança nacional, mas eu sabia que ele
estava infeliz e por isso precisava se afastar por um
tempo. Ele que não precisava ir, mas queria ir. Ter um
filho homem era a meta de sua vida, mas não fui capaz de
dar essa alegria a ele.
Os olhos de Nadia Vukmir brilharam com uma
camada de lágrimas, e eu tive a impressão de que ela
estava prestes a desabar em prantos. Mas isso não se
sucedeu. Ela olhou diretamente para o caminho à frente,
parecia tentar conter sua demonstração de tristeza.
— Não é culpa sua, madame. Não tinha como
escolher.
Ela ficou em silêncio, refletindo profundamente.
Caminhamos mais um tempo sem conversar. Me flagrei
pensando nas palavras de João Pereira. Teria Nadia
Vukmir sido abusada pelo pai? Não, isso só podia ser
mentira. Não que eu fosse capaz de saber disso
simplesmente conversando com ela, mas duvidava que

146 DAVI VALE


uma mulher pudesse passar por tanta desgraça na vida —
a morte inesperada da mãe, o afastamento dos parentes e,
ainda por cima, o abuso do pai — e ainda conservar a
mente em estado de sanidade. Não, uma pessoa que
passasse por tantas coisas na vida haveria de enlouquecer.
Senti no peito o estremecimento de uma risada
interior quando recordei-me das palavras de João Pereira
acerca de um possível pacto com o diabo. Ora essa! Era
só o que faltava! A imaginação das pessoas supera todos
os limites, pensei comigo. Não obstante, eu não podia
negar que um pedaço de mim se inclinava ao desejo de
reconsiderar a hipótese, por mais absurda que fosse.
Todavia, ainda que os boatos fossem verdadeiros, ela
faria pacto com o diabo com qual propósito? Pois, que eu
soubesse, as pessoas fazem isso com metas específicas.
Riqueza ela já tinha, e a ambição não parecia ser uma de
suas qualidades. Seria em busca de uma beleza perfeita e
infindável, tal como Elizabeth Bathory? Dei mais uma
risada interior, caçoando do rumo dos meus pensamentos.
Não nos afastamos muito da entrada do bosque,
pois a tarde já declinava e a noite começava a se impor.
Voltamos por um caminho alternativo e saímos no lado
oposto do jardim, perto da cabana destelhada. Esfriava. A
brisa fresca da tarde dava lugar a um vento mais intenso e
mais frio.
— E quanto às meninas? — perguntou-me a
madame enquanto nos aproximávamos da casa. — Estão
te tratando bem?
— Sim. Todas são sempre muito gentis.
A MENINA NO QUARTO 147
— Se algum dia elas fizerem algo que te aborreça,
não deixe de me contar para que eu possa repreendê-las.
Já as deixei prevenidas de que você deve ser bem tratado.
— Não creio que será preciso, madame.
— Elas se simpatizaram contigo, especialmente
Helena.
Nadia Vukmir estreitou o olhar, como se
procurasse qualquer sinal em mim que pudesse resultar da
menção do nome da camareira. No entanto, consegui me
manter indiferente.
— Por que a senhora diz isso, madame?
— Ora, eu conheço minhas criadas tão bem quanto
uma mãe conhece suas filhas. A forma como Helena te
olha não deixa dúvidas, e teu olhar me diz que esse
sentimento é recíproco.
— Nós nos simpatizamos bastante, de fato.
Ela parou de andar, lançou-me um olhar penetrante
e disse:
— Espero que você a respeite. Ela é como uma
filha para mim, compreende?
— Perfeitamente, madame. Eu lhe asseguro de que
minhas intenções nunca foram escusas…
— Não o estou acusando, Victor. Mas não custa
esclarecer as coisas, não é verdade?
Ao fim da caminhada, ela agradeceu-me pela
companhia. Disse que tinha sido muito agradável, e que
pretendia repetir o passeio. Separamos nossos caminhos
no vestíbulo, quando ela subiu as escadas em direção ao
segundo piso e eu caminhei em direção à biblioteca.

148 DAVI VALE


Chegando à biblioteca, flagrei uma cena inusitada.
Caroline e Helena estavam sentadas a uma das poltronas
e ambas ocupavam o mesmo assento, a arrumadeira à
direita e a camareira à esquerda, o braço esquerdo de
Helena passava por cima do pescoço de Caroline e o
direito apoiava-se em seu colo, enquanto Caroline tinha o
corpo inclinado em direção à Helena. As duas estavam
com os lábios muito próximos, quase a se tocarem, e
falavam em cochichos inaudíveis enquanto seus olhos
brilhantes se direcionavam à boca alheia. Estagnei na
porta quando percebi a cena. Quando me viram,
interromperam o assunto que cochichavam e me olharam
com certo embaraço. No entanto, não se afastaram.
Fiquei algum tempo estagnado na soleira, depois
retomei meus passos e entrei na biblioteca, agindo como
se a muita proximidade entre as duas em nada me
surpreendesse.
— Com licença — pedi ao entrar.
— Sente-se conosco — Helena indicou a poltrona
contígua. — Vai continuar a leitura daquele livro?
— Sim — respondi, já o apanhando na prateleira.
Caminhei até perto delas e sentei-me na poltrona. — E
vocês, o que fazem?
As duas se entreolharam e deram risadinhas. Não
entendi bem o significado daquele movimento, mas tive
impressão de que havia nele certa malícia.
— Falávamos de você — disse Caroline, e voltou a
olhar para Helena com um sorrisinho malicioso.

A MENINA NO QUARTO 149


— E eu posso saber o que diziam? — perguntei,
num tom descontraído.
— Helena dizia o quanto você é um homem bonito.
O rubor subiu às minhas faces. Era a última
resposta que eu esperava ouvir.
— Carol! — repreendeu-a Helena, dando um
tapinha em sua perna que provocou um estalo seco.
Caroline sorriu e voltou a me olhar. Seus olhos
azuis brilhavam de uma forma sugestiva.
— Você não nos acha bonitas? — perguntou, em
seguida mordiscou o lábio inferior sem desviar de mim
seus olhos.
Respondi que sim, ainda embaraçado, tentando
entender o que estava acontecendo.
Em seguida, a cena tornou-se ainda mais estranha.
Helena acariciou o pescoço de Caroline enquanto olhava
em minha direção. Ambas tinham as feições lascivas, os
lábios úmidos e as faces coradas. Senti meu sangue
fervilhar, e meu pulso disparou. A mão de Helena
escorregou até o decote da amiga, então deslizou a ponta
do dedo indicador pela cova entre os seios. A pelugem
dos braços de Caroline pareceu se arrepiar. Esta, em
resposta, voltou a mordiscar o lábio inferior.
De repente, percebi que era avaliado pelas duas.
Elas agora me observavam, como se analisassem minha
reação ante aquele pequeno instante de insinuação. De
fato, era inevitável demonstrar meu estado de completa
alteração. Estava inquieto, tinha a respiração quase

150 DAVI VALE


ofegante e mantinha o livro no colo, como se escondesse
algo sob ele.
— Em que você está pensando? — perguntou-me
Caroline com um tom de voz provocante, e sorriu com o
canto da boca.
Imaginei-me entre as duas, aquecido pelo calor de
seus corpos, as respirações arfantes, as carícias intensas.
Perguntei-me se elas estavam tentando provocar em mim
algum desejo. Pareceu-me, aliás, uma conclusão
inevitável. Eu era, afinal, o único homem na casa, e assim
acabava por ser a vítima de suas fantasias.
Antes que eu pudesse responder à pergunta, sons de
passos fizeram com que as duas se endireitassem na
poltrona. Vera Milovan descia as escadas. Como a casa
era silenciosa, os passos podiam ser ouvidos com bastante
antecedência. A velha passou em frente à porta, mas não
entrou, apenas olhou desconfiada e continuou seu
caminho para a cozinha.
— Já está quase na hora do jantar — observou
Caroline, levantando-se. — Precisamos tomar banho, ou
nos atrasaremos. Até mais tarde, Victor.
Helena sorriu para mim e acompanhou Caroline.
Pude escutá-las subir as escadas, aos risos. Permaneci
algum tempo sentado ali, tentando entender o que acabara
de acontecer.

A MENINA NO QUARTO 151


21.

No refeitório, entretive as três empregadas com minhas


anedotas. Helena, provavelmente pela jovialidade de sua
idade, ria de todas as minhas histórias e realmente
demonstrava interesse por elas. Já as demais, embora
também rissem, não tinham todo aquele entusiasmo que
tinha a primeira. De qualquer forma, como as três não
conhecessem quase nada do mundo exterior àquela casa,
tudo o que eu contava lhes instigava a curiosidade. Por
exemplo, Caroline demonstrou-se muito interessada em
saber qual era a sensação de se viajar em um trem, pois
sempre escutava os trens assobiarem à distância e ficava
encantada quando descia ao vilarejo e flagrava a chegada
ou a partida de um, mas nunca tivera a oportunidade de
embarcar.
— Quer dizer que vocês nunca saíram deste
vilarejo? — perguntei-lhes, surpreso.
Era uma dedução fácil: se nunca haviam andado de
trem, decerto nunca haviam saído do vilarejo, porquanto
naquela época o único meio de transporte público entre o
vilarejo e as demais localidades da região era o
ferroviário.
— Nem mesmo podemos sair desta casa — revelou
Helena com um suspiro de desânimo.
— Não podem?
— Somos muito ocupadas durante o dia —
explicou Raquel —, e não nos sobra tempo.
152 DAVI VALE
Tive a súbita impressão de que a justificativa da
cozinheira tinha o propósito de esconder uma verdade
maior, isto é, Helena revelou que não podiam sair da
casa, o que certamente resultaria de uma proibição. Por
que Nadia Vukmir as manteria presas na casa? E por que
Raquel se preocupara em não me deixar saber a verdade?
— Se vocês não saem da casa, quem compra os
mantimentos? — perguntei, curioso.
— Creio que Helena tenha exagerado — disse
Raquel. — Evidentemente, nós saímos para fazer
compras quando é necessário.
— Ir ao mercado não é válido, Raquel — replicou
Helena com a boca cheia de comida. — Além do mais, a
madame praticamente só pede para você ir ao mercado
porque “só você sabe o que comprar, já que é a
cozinheira” — reclamou ela, fazendo beicinho e afinando
a voz ao reproduzir as palavras de Nadia Vukmir.
Helena tinha no olhar o brilho da curiosidade.
Caroline e Raquel não pareciam, porém, possuir essa
mesma energia. Era como se lhes bastasse aquela vida
reclusa entre os muros da propriedade, como se
houvessem lhes sugado toda a curiosidade e o desejo de
aventura de seus espíritos, sobrando apenas a carcaça de
uma máquina programada para servir. Não esboçavam
profundidade nas expressões e seus olhos não brilhavam
ante as maravilhas reservadas além daquele vilarejo. Em
Caroline talvez restasse um pequeno brilho de interesse,
mas ele era reprimido por um receio que certamente lhe
havia sido implantado no decorrer de muito tempo.
A MENINA NO QUARTO 153
Quanto à Raquel, esse brilho havia se apagado por
completo.
Fiquei bastante comovido com a situação das três
empregadas, especialmente de Helena. De certa forma,
elas assemelhavam-se à Júlia. Estavam, em menor grau,
isoladas do mundo. Mas por que a madame fazia isso
com elas? Que tipo de vantagem ou prazer o isolamento
dessas moças poderia lhe trazer?
Foi dito qualquer coisa acerca dos bares com
música ao vivo, dança e luzes. Helena comentou que viu
uma vez num filme e perguntou se na realidade os bares
eram assim. Raquel disse, em tom de impaciência, que os
filmes sempre exageram, que tais lugares são feios e
fedorentos.
— Mesmo assim — Helena insistiu —, tenho
vontade de dançar numa boate dessas. Só para saber
como é. Se eu pelo menos soubesse dançar…
— Nem todos os bares são feios e fedorentos —
comentei. — Há muitos bons bares. Gosto especialmente
dos que tocam jazz: a música, o ambiente, a sensação de
se estar em Chicago…
— Já esteve em Chicago? — perguntou Caroline.
— Não, mas imagino a sensação.
— Você já dançou em um baile? — perguntou
Helena com olhos brilhantes, empolgada.
— Sim, muitas vezes — respondi, tentando não
soar presunçoso. — Modéstia à parte, sou um bom
dançarino.
— Me ensina a dançar?

154 DAVI VALE


— Será um prazer! Posso ensinar todas vocês, se
quiserem.
Caroline deu um sorrisinho e desviou o olhar.
Raquel pareceu levemente irritada com o pedido de
Helena, talvez por ciúmes, ou talvez apenas por
implicância.
— Como você é oferecida, Helena! — disse-lhe
com a voz carregada de reprovação.
— Qual o problema?! — indagou Helena, com um
movimento de indignação.
— Pensa que eu não percebi que você está toda
atiradinha para o lado dele?
— Que audácia! — replicou a menina, enraivecida.
— Não se pode fazer mais nada nesta casa!
Não me manifestei, pois temi pelas consequências
de qualquer palavra. Apenas esperei que as duas
terminassem a discussão. Caroline também se manteve
quieta, e eu não pude discernir se concordava ou se
discordava de Raquel.
Enquanto o jantar prosseguia no seu ritmo habitual
e os assuntos se desenrolavam, meus pensamentos eram
dominados por uma única imagem: Caroline e Helena
juntas na poltrona da biblioteca. Elas teriam tentado me
aliciar se nos encontrássemos num lugar mais reservado?
Parecia-me que, se eu assim quisesse, lograria levar
ambas para a cama, e essa possibilidade me espantava.
Todo meu corpo entrava em ebulição com desejo e
expectativa, enquanto eu me perguntava que tipo de
garotas elas eram. Para acentuar meu estado de agitação,
A MENINA NO QUARTO 155
Caroline e Helena se sentaram ao lado uma da outra, de
maneira que eu as pudesse ver defronte, e vendo-as não
conseguia evitar as fantasias que me passavam pela
cabeça.
Após o jantar, fui à biblioteca, sentei-me na
poltrona e dei sequência à leitura daquele livro. Embalado
pela paz que reinava na casa, uma paz que nem nos
cemitérios se poderia encontrar, viajei na estória por um
longo período. Havia no ambiente um silêncio alpino que
por vezes oprimia a alma, como se acentuasse a solidão
existencial que sentimos quando estamos nos adaptando a
um lugar. Naquela ocasião, entretanto, a ausência de
ruídos era exatamente propícia à leitura: eu poderia ler
centenas de livros naquele ambiente, podia me concentrar
até mesmo nos volumes mais abstratos e compreendê-los
com clareza, pois não seria interrompido pelos sons
poluídos da cidade, tampouco por vizinhos
inconvenientes; teria ao fundo somente aquele farfalhar
distante das árvores que eventualmente eram alvejadas
por uma rajada. Éramos o livro e eu naquela sala, e
poderíamos ser só nós no mundo inteiro.
Estava a ler quando, subitamente, percebi que
alguém bloqueava a luz com o corpo. Levei um susto e
quase saltei da poltrona.
— Desculpe se o assustei — falou a recém-
chegada.
— Helena, puxa vida! Não te ouvi chegar.

156 DAVI VALE


Me perguntei como ela conseguia aparecer nos
lugares de forma tão repentina e silenciosa, como se
flutuasse até mim.
— Me ensina a dançar? — perguntou ela, quase
sussurrando.
Virei em sua direção e larguei o livro.
— Agora?
— Sim. Por que não?
Fiquei de pé defronte dela. Logo percebi que
Helena usava um vestido diferente, de corte bustier e cor
azul-celeste, que caía-lhe muito bem no corpo.
— Você está linda.
Ela sorriu e suas faces ficaram coradas. Até mesmo
sua maneira tímida de reagir aos elogios era encantadora.
Meu coração disparou. Por que tudo naquela garota
despertava meu coração? Por que o simples ato de olhá-la
me induzia a tal estado?
— Obrigada — respondeu ela. — Achei que fosse
um vestido adequado para dançar.
— É perfeito — anunciei, aproximando-me.
Pedi licença, toquei em suas mãos e senti que
estavam frias. Minha respiração mudou, e pude notar o
mesmo na respiração dela. Seus olhos brilharam quando
nossos rostos se aproximaram, e ela ficou tensa e nervosa,
um pouco trêmula talvez. Meu coração batia forte e
parecia não caber dentro do peito. Tive quase certeza de
que ela também sentia aquilo.
Mostrei-lhe os primeiros movimentos que ela
deveria fazer com os pés, enquanto segurava-lhe as mãos
A MENINA NO QUARTO 157
como se segurasse o objeto mais delicado do mundo. Sua
pele era sedosa como uma pétala de rosa, e eu sentia
como se minhas mãos fossem ásperas como a madeira
recém cortada. Podia escutar meu próprio coração
disparado, pensei que talvez ela também o escutasse.
— Consegue imaginar alguma música? —
perguntei.
— Sim.
— Tente dançar no ritmo dela, fazendo o que
acabei de te ensinar.
Helena começou a mover os pés. Tinha aprendido
alguns movimentos com facilidade.
— Isso! Muito bem! — Eu fazia a cada acerto.
Ela foi ganhando mais liberdade, parecia estar se
divertindo, mas então tropeçou e se desequilibrou,
apoiando-se em meu peito. Segurei-a, então numa fração
de segundo estávamos com os corpos colados. Ela elevou
os olhos em direção aos meus e sorriu, mas não se afastou
de mim. Minhas mãos escorregaram até sua cintura. Eu
estava agitado pela proximidade, e a julgar pela
respiração acelerada de Helena, ela também sentia o
mesmo. Parecia que tudo ao redor havia desaparecido.
Seus olhos enormes e negros pareciam absorver minhas
forças, deixando-me à mercê de sua vontade,
completamente vulnerável. Pensei que tudo aquilo
parecia uma espécie de sonho, e que se eu estivesse
dormindo desejaria não acordar nunca. Quis beijá-la mais
do que um dia quis algo na vida. Realmente a teria

158 DAVI VALE


beijado se alguém não tivesse entrado de supetão na
biblioteca e nos interrompido.
Assustados, nos afastamos um do outro — mas era
tarde demais para disfarçar. Caroline estagnou à porta,
encarando-nos com olhar de suspeita.
— Victor está me ensinando a dançar — explicou
Helena. — Não quer que ele te ensine também?
Caroline olhou por sobre o ombro em direção ao
corredor, em seguida aproximou-se de nós e sussurrou:
— Já imaginou se a madame entra aqui?
— Não estávamos fazendo nada de errado —
retorquiu Helena.
— Não foi o que pareceu.
— Helena está certa — interferi. — Eu apenas a
estava ensinando a dançar, não há nada de errado nisso.
Caroline lançou um olhar de desconfiança.
Examinou Helena por alguns segundos. Seu olhar não era
de reprovação, mas de ciúmes.
— Não seja desagradável, Carol — disse a
camareira. — Deixe que ele te ensine também. — Pegou-
lhe a mão e a puxou para junto de si. As duas encostaram
os seios um ao outro. Eram quase da mesma estatura, mas
Caroline era um pouco mais alta. — Poderíamos dançar
juntas, seria tão divertido!
— Já disse que não! — Caroline repetiu com
ênfase, e afastou-se. Em seguida, saiu da biblioteca.
— Ela ficou irritada? — perguntei à Helena logo
que Caroline se afastou.
— Não se preocupe com isso, ela é boba.
A MENINA NO QUARTO 159
— Pareceu enciumada. E se ela contar à madame?
— Não vai contar, não. Mas esqueça isso. Venha
comigo, quero te mostrar uma coisa.

160 DAVI VALE


22.

Helena pegou em minha mão e me conduziu para fora da


biblioteca. Atravessamos o vestíbulo e fomos em direção
à sala de estar, Helena à frente esquivando-se das paredes
e dos móveis com sua agilidade faceira. Quando
chegamos em frente à entrada do porão, a camareira
parou de andar, largou minha mão e fez menção de abrir a
porta.
— Aonde está me levando, Helena?
Ela nada disse, apenas elevou o dedo aos lábios
indicando que eu ficasse quieto, então esticou o braço e
abriu a porta do porão. Entramos através dela e Helena a
fechou atrás de si. Uma escuridão completa tomou conta
da escada que descia para o subsolo, mas Helena logo
acionou o interruptor e uma lâmpada amarelada iluminou
o caminho.
Era minha primeira vez no porão da casa dos
Vukmir. Logo percebi um odor suave de madeira
envelhecida que pairava no ar. Quando terminamos de
descer, caminhamos entre as caixas poeirentas e os
móveis velhos que haviam sido cobertos por lençóis.
Helena parou perto de um desses lençóis, já quase no
final do porão, à beira de uma parede de tijolos à vista,
onde as lâmpadas quase não iluminavam.
— O que você quer me mostrar? — indaguei,
curioso.
Helena deu um sorriso malicioso e, à guisa de
resposta, puxou o lençol e o deixou cair no chão. Sob ele,
A MENINA NO QUARTO 161
revelou-se um gramofone em perfeito estado de
conservação.
— Às vezes venho aqui para ouvir música — disse
ela, ligando-o a uma tomada no canto da parede.
— Confesso que estou surpreso! Um gramofone?
Quem diria! Pensei que a madame detestasse música.
— Ela detesta, mas nem sempre foi assim.
— O som não pode ser ouvido lá em cima? —
perguntei, olhando para o teto do porão.
— Não, contanto que não aumentemos muito o
volume — respondeu Helena, esticando o fio do
gramofone em direção a uma tomada na parede. — Além
disso, a porta está fechada.
Assim que o aparelho foi conectado, acendeu-se no
painel uma luz vermelha. Helena apertou o botão de
energia e as caixas de som deram um estalo sutil.
— Diga-me, por que razão a madame não gosta de
música?
— Ela odeia qualquer tipo de barulho.
— Até mesmo música?
— Aham… — Helena respondeu, então colocou a
agulha sobre um disco que já estava no aparelho.
Era um disco de Glenn Miller. Logo que a música
começou, Helena esticou os braços e, sorrindo, me
convidou à dança. Começamos de modo tímido, mas logo
nos soltamos. Arriscamos novos passos e, como
estávamos no porão, nos demos à liberdade das risadas
mais descontraídas.

162 DAVI VALE


O disco acabou em um piscar de olhos, mas
ficamos abraçados mesmo após o término da última
música, ofegantes pela dança, rostos avermelhados, peles
aquecidas. Os olhos dela estavam direcionados aos meus
lábios, brilhantes e expressivos. Senti novamente o desejo
de beijá-la, um desejo ainda mais intenso que o anterior.
Me perguntei se ela também tinha esse mesmo desejo.
Minhas mãos estavam trêmulas. O tempo parecia
transcorrer incerto e todas as coias pareciam distantes,
como se fôssemos só nós dois no vazio do universo.
Não dissemos nada. Qualquer palavra poderia
quebrar o delicado encanto do momento. Somente
inclinei meu rosto em sua direção, num movimento
decidido, até que meus lábios tocassem os dela. E assim
nos beijamos. Senti suas mãos em meu peito, acariciando-
me sobre a camisa, enquanto as minhas envolviam sua
frágil cintura. Eu pensava em como seus lábios eram
macios, cálidos e tinham um sabor adocicado.
O beijo se transformou em uma emanação
descontrolada de anseio, todo pensamento racional se
esvaindo, e fomos dominados pelo impulso da libido. O
beijo era insuficiente, desejávamos mais. Ela saltou em
meu colo e travou as pernas ao redor de minha cintura,
então eu a carreguei até um canto e a fiz sentar-se sobre
uma mesa que estava coberta por um lençol. Rapidamente
ela desabotoou minha camisa e, quando me dei conta, já
estava a levantar seu vestido azul-celeste e a acariciar
suas coxas cálidas. Respirávamos alto, como se
estivéssemos a correr.
A MENINA NO QUARTO 163
Eu me sentia como se flutuasse sobre o mundo, ou
como se não houvesse sequer o mundo e eu flutuasse no
infinito. As pequenas mãos de Helena abriram minhas
calças e, num movimento gradual, tocaram meu pênis.
Puxei seu quadril em direção ao meu, e com esse
movimento penetrei em seu corpo quente. Perguntei-me
se havia chance de alguém nos flagrar ali, mas esse
pensamento se perdeu nas profundezas de minha mente.
Naquele momento, não conseguia me concentrar em
qualquer pensamento que não fosse a beleza daqueles
seios redondos, a maciez daquela pele e o calor úmido
entre suas pernas. Eu mergulhava nela e ela em mim.
Com os movimentos que fazíamos, a mesa rangia sobre o
chão áspero enquanto Helena gemia cada vez mais
enérgica. Só desejei que a porta do porão pudesse conter
o barulho. No instante seguinte eu também comecei a
gemer, perdendo o controle de meu corpo e me deixando
levar por aquele impulso prazeroso.
— Não me ponha um filho — sussurrou ela em
meu ouvido, enquanto suas unhas deslizavam em minhas
costas.
Como eu não lhe desse atenção, ela repetiu:
— Victor, não vai gozar em mim!
E foi então que, recobrando a razão, interrompi o
coito no último instante e ejaculei na parede atrás da
mesa.
Em seguida, nos abraçamos e ficamos sentindo a
pele alheia por longos minutos, acariciando um ao outro,
os corações ainda palpitantes, a respiração acelerada.

164 DAVI VALE


— Devemos sair logo daqui — disse a camareira
após alguns minutos de silêncio, e começou a arrumar o
vestido.
Concordei e comecei a me vestir.
— Por favor, ninguém deve saber o que aconteceu
— avisou ela, séria. — Entendeu?
— Sim, entendi.
Ela se foi antes de mim, subiu a escada e saiu do
porão. Terminei de vestir minha camisa e saí logo em
seguida.
Em meu quarto, eu me deleitava numa sensação
incrível de realização, enquanto meu coração fervilhava
de alegria. Ao mesmo tempo, uma constatação me
intrigava: a de que Helena já não era virgem antes de
transar comigo, pois a sua desenvoltura indicava que ela
já havia tido outras relações sexuais. Somente uma
mulher com alguma experiência poderia saber quando um
homem está prestes a ejacular. Ademais, a penetração
fácil era mais um indício de que aquele corpo já tinha
sido tocado por outro homem. Não sabia exatamente o
motivo, mas aquilo me incomodava. Teria ela se
relacionado sexualmente com o antigo jardineiro? Eu
imaginava que o Sr. Gonçalves falecera de velhice, e não
concebia a ideia de que Helena pudesse manter relações
amorosas com ele. Então, com quem mais ela poderia ter
transado, já que tinha apenas dezessete anos e vivia
isolada entre os muros daquela casa? Ao mesmo tempo, o
ciúme de Caroline e a proximidade entre as duas me

A MENINA NO QUARTO 165


sugeria que elas mantinham algum tipo de relação
lesbiana. Tudo era muito confuso.
Percebi, de repente, que eu queria ter tirado sua
virgindade. Estava apaixonado e queria ser o único
homem da vida dela, e pensar que outro já a houvesse
tocado antes de mim me incomodava. Ocorreu-me que
meu sentimento por ela tinha ganhado raízes, tornava-se
agora maior que eu, e eu perdia todo o controle sobre ele.
Havia acontecido sem que o percebesse, gradual e
lentamente, e quando me dei conta já não podia mais
remediá-lo. Relembrei dos momentos de prazer e sorri,
elevando ao peito uma das mãos como se tentasse sentir o
pulsar de meu coração. Deitei-me à cama e imaginei que
Helena estava entre meus braços. Apaguei a luz, fechei os
olhos e, extasiado com a lembrança de Helena, me
perguntei se ela sentia o mesmo que eu estava sentindo.
Estaria pensando em mim naquele instante? Imaginei-a
deitada em sua cama, abraçada a um travesseiro e
imaginando-me entre seus braços, tal como costumam
fazer as garotas apaixonadas.
Todos os acontecimentos das últimas horas
pareciam conduzir-me a um estado de perfeita paz de
espírito. O desfecho do dia não podia ser mais perfeito.
Repassei mentalmente cada instante, cada sensação, o
calor do corpo de Helena envolvendo o meu, seu cheiro,
sua textura — na esperança de sonhar com aqueles
instantes e assim sentir tudo outra vez. No entanto,
inesperadamente, esses pensamentos tão belos e perfeitos
foram interrompidos da forma mais horrível.

166 DAVI VALE


23.

As árvores farfalhavam no lado de fora e, vez ou outra, as


rajadas de vento faziam a janela tremer. Entre os barulhos
do vento, distingui um som familiar. Meu pulso disparou
e senti que meu rosto ficava lívido. Aquele choro voltava
a me assombrar! Saí da cama com as pernas trêmulas e,
sem fazer barulho, embora meu intento mais íntimo fosse
o do grito, acendi o abajur com lentidão silenciosa.
Todavia, para minha surpresa, mesmo com a luz acesa o
choro não parou. Nas vezes anteriores em que me levantei
da cama e acendi o abajur, ele cessara como que
afugentado pela claridade — mas daquela vez foi
diferente.
O choro retumbava pelo quarto, lamentoso e
sussurrante, parecia vir de todos os lugares ao mesmo
tempo, mas em algum momento tive a sensação de que
podia distinguir exatamente o local de sua origem: o
canto onde estava a cômoda. Olhei nessa direção e não
enxerguei nada além do que já tinha visto antes. Intentei
caminhar até lá e tatear o vazio em busca de um corpo
invisível, mas meu medo me impedia de fazer isso.
Creio que poucos experimentaram na vida o terror
que senti naquela noite de vento. Algo dentro de mim
gritava, ainda que eu me mantivesse em silêncio. Via
todas as minhas convicções se desfazendo, enquanto
questionava a natureza daquela experiência. Talvez eu
houvesse enlouquecido — mas não conseguia identificar
A MENINA NO QUARTO 167
em mim qualquer sintoma de loucura, salvo a capacidade
de escutar aquele choro. E, embora não fosse a primeira
vez que o escutava, era justamente a repetição que
recrudescia meu tormento, como se o terror das outras
vezes fosse somado a esta.
— Me deixe em paz! — falei, talvez gritando,
talvez apenas sussurrando.
Imediatamente o som cessou. Fiquei parado no
mesmo lugar por algum tempo, olhando insistentemente
para o canto do quarto, esperando que o fantasma — ou o
que fosse aquilo — voltasse a chorar, mas, como de
costume, o som não se repetiu. Em vez disso, eram os
estalos da persiana sob ação do vento que preenchiam o
ambiente.
Atormentado, saí do meu quarto e comecei a
perambular pela casa escura. Estava silenciosa como uma
tumba, mas dava para escutar o vento impetuoso no lado
de fora. Parei no vestíbulo e fiquei olhando para o alto da
escada, sem saber exatamente o que fazer. Estava
confuso. Meu coração ainda batia acelerado, e minhas
pernas estavam bambas. Eu quase não conseguia andar
em linha reta, tal era meu estado.
De repente, no meio das trevas da casa avistei uma
silhueta. O vulto vinha em minha direção, silencioso
como uma brisa. Estagnei e, assombrado, fiquei olhando
a imagem se aproximar de mim. Não era possível ver
nada além do contorno de um corpo feminino dentro de
uma roupa branca, longa e leve. A luz do luar que

168 DAVI VALE


penetrava a janela lhe incidia do busto para baixo, de
forma que seu rosto permanecia oculto nas sombras.
É um fantasma, pensei, que vem agora me
assombrar também fora do meu quarto. Notei que sua
mão se adiantava, que foi se aproximando de mim até
tocar em meu braço. Sim, eu senti aquele contato. Era
real, ou ao menos eu o sentia como se fosse. Tive a
intenção de gritar, mas não consegui fazer com que a voz
saísse. Uma onda de choque tomou meu corpo. Recuei
um passo cambaleante, tropecei no degrau da escada e me
apoiei no corrimão para não cair.
— Victor? — disse o vulto.
A voz familiar logo me abriu a mente, e então eu a
reconheci. Era Raquel.
— O que faz fora de seu quarto a essa hora? — ela
perguntou, enquanto eu recobrava o equilíbrio.
— Eu… estava com sede.
— Eu também. Desculpe se o assustei.
— A culpa não foi sua. Fui pego de surpresa.
— Volte a dormir, Victor.
— Bem, então boa noite. — E subiu as escadas,
desaparecendo na escuridão.
Senti o suor frio escorrendo de minha testa, e
minhas mãos quase sem forças tremiam como que afetado
pelo Parkinson. Eu queria poder rir daquela situação, mas
não estava com disposição para achar graça de qualquer
coisa.
De volta ao quarto, sentei-me na poltrona e
comecei a pensar. Aquela casa parecia ocultar algum
A MENINA NO QUARTO 169
mistério terrível. Eu escutava o choro de uma criança para
o qual não havia, aparentemente, qualquer explicação
lógica. Ocorreu-me duvidar de minha sanidade mental. O
medo de estar enlouquecendo me assombrava, mas em
vista das circunstâncias eu começava a considerar
seriamente esta possibilidade. Talvez estivesse tendo
alucinações, de modo que o choro não fosse captado
pelos meus ouvidos, mas imaginado por minha mente
insana.
A possibilidade de estar louco assustou-me a tal
ponto que fui tomado por uma crise nervosa. Fiquei
trêmulo e meu coração disparou, queimando como que
em brasa. Faltava-me fôlego. Num instante, comecei a
enfiar os dedos entre os cabelos, puxando-os tão forte que
meu couro cabeludo chegava a doer. Através do espelho,
vi meu rosto retorcido, meus olhos injetados e minha pele
opaca como a de um enfermo. Ver o estado deplorável de
minha aparência só agravou meu nervosismo. Nunca
antes havia experimentado tal estado de nervos, e por um
momento tive medo de perder o controle da mente e
enlouquecer de vez. Sentia o peito vibrar, o coração
batendo em disparada e um tremor que se espalhava pelo
corpo como se eu sentisse frio. Meus ouvidos começaram
a zunir, e meu coração batia de tal maneira que tive medo
de ter um ataque cardíaco.
Agachei-me em um canto e fechei os olhos com
força. Quando os abri novamente, enxerguei todo o
quarto distorcido. A cama parecia ter se arrastado para
longe de mim e todo o cômodo crescera em tamanho e

170 DAVI VALE


tornara-se imenso. As paredes pareciam se reclinar sobre
minhas costas. Fiquei de pé, mas me senti impotente, e
todo o mundo me esmagava com sua imensidão. Tentei
caminhar até a janela, que parecia inalcançável, e fiquei
aliviado quando a alcancei com dois ou três passos. Abri
as persianas de par em par e coloquei minha cabeça
através dela com tanto ímpeto que quase lancei todo meu
corpo por sobre o peitoril à grama no lado de fora. O
vento gelado bateu em meu rosto suado. O choque
térmico me trouxe de volta à realidade, e aos poucos
recobrei a calma.

A MENINA NO QUARTO 171


24.

Despertei na manhã seguinte com a impressão


assustadora de ter escutado a voz da Sra. Milovan dentro
do meu quarto, então olhei em volta a procura da
governanta. O impulso de procurá-la logo se desfez: na
noite anterior eu havia trancado a porta, portanto a
governanta não poderia ter entrado em meu quarto. Eu
provavelmente sonhara.
Levantei-me da cama, troquei as roupas e fui ao
banheiro. Estava com a aparência péssima, pois não
conseguira dormir direito. Lavei o rosto duas vezes, mas
meus olhos permaneciam avermelhados, envoltos em
bolsas escuras de cansaço. Nada que eu fizesse poderia
melhorar minha aparência, exceto uma boa noite de sono,
e a única forma de conseguir isso seria dormindo fora
daquela casa.
Encontrei a Sra. Milovan descendo as escadas com
um cesto de roupas sujas. Ela tinha os cabelos presos com
um coque displicente, fios brancos soltos pela testa,
mechas caídas no pescoço. Olhou-me com seus olhos
azuis esbranquiçados, estreitou o olhar e pareceu
incomodada com o fato de eu ficar parado ao pé da
escada, olhando para ela.
— A senhora precisa de ajuda? — perguntei-lhe.
— Não, obrigada — respondeu, embora
evidentemente tivesse dificuldades.

172 DAVI VALE


Continuou descendo com sua pose arrogante, e eu a
deixei passar por mim. Olhei discretamente para o
interior da cesta e vi, entre as roupas, um pequeno vestido
que só poderia servir em uma garotinha de dez ou onze
anos. A Sra. Milovan dirigiu-se para a área de serviço.
Eu acabara de descobrir que as roupas de Júlia
eram lavadas pela Sra. Milovan, o que significava que a
velha demoraria algum tempo na lavanderia. Achei-me
então diante de uma oportunidade única de visitar o
quarto de Júlia sem ser incomodado pela governanta.
Rapidamente subi as escadas, saltando de três em
três degraus. Lá em cima, olhei cuidadosamente em volta
e, não vendo sinal das empregadas, caminhei até a porta
do quarto de Júlia e encostei a orelha na madeira fria.
Tudo estava em silêncio. Uma onda de expectativa
apertou meu peito. Eu estava prestes a conhecer Júlia,
saber como era aquela criança e descobrir o porquê de ela
ser mantida em reclusão. Ao mesmo tempo, era assomado
por alguma incerteza, pois me questionava se estava
fazendo a coisa certa. Qual seria a reação da menina ao
me ver em seu quarto?
Me perguntei se Júlia podia ser perigosa de alguma
forma. Era difícil conceber que tipo de risco uma criança
poderia representar a um adulto, mas me ocorreu que
talvez ela fosse mantida no quarto para a segurança dos
demais ocupantes da casa. Rejeitei logo essa ideia, pois
era inverossímil. Qualquer que fosse a razão de ela estar
presa, certamente não era esta.

A MENINA NO QUARTO 173


Hesitei por um minuto diante da porta, mas então,
percebendo que já havia chegado muito longe em ter
subido até o segundo piso, e sabendo também que me
arrependeria muito mais se abortasse aquela espionagem
do que poderia me arrepender de levá-la a cabo, decidi
prosseguir com o plano. Segurei a maçaneta gelada, girei-
a e empurrei a porta.
Porém, a porta não se moveu. Estava trancada.
Escutei um barulho próximo. Alguém abria a porta
de um dos quartos. Uma fisgada de pânico percorreu todo
meu corpo. Numa reação impensada, saltei para a escada
por cima da grade balaustrada e fui cair nos degraus, mais
de um metro abaixo. Pisei em falso, me desequilibrei e
quase caí, mas agarrei-me ao corrimão e recobrei o
equilíbrio. Desci muito rapidamente e ocultei-me atrás da
porta da biblioteca. Esperei algum tempo, então escutei os
passos de alguém descendo pelos degraus. Era Caroline,
que aparentava ter acabado de acordar, os cabelos
desgrenhados e o rosto deformado pelo sono. Ela
caminhou em direção à cozinha sem perceber minha
presença.
Caroline não tinha me notado lá em cima, mas
havia sido por pouco. Após recobrar a calma, reconsiderei
minha nova descoberta: Vera Milovan mantinha a porta
trancada sempre que se ausentava. Essa informação só me
deixou ainda mais desanimado, pois isso me
impossibilitaria de conseguir entrar nos aposentos de
Júlia. Em outras palavras, meu plano de interrogar a
menina não poderia dar certo, a menos que eu roubasse a

174 DAVI VALE


chave da governanta, algo inexequível sem que ela o
percebesse. A despeito disso, a simples informação de
que a porta era mantida trancada já me era útil, pois agora
eu tinha motivo para acreditar que a menina era mantida
no quarto contra sua própria vontade.
Decepcionado com o fiasco do meu plano, saí da
casa e fui caminhar pelo bosque, tentando pensar em
outro plano. Todavia, não obtive êxito. O caso era que eu
não sairia da estaca zero se continuasse tentando
descobrir as coisas sozinho, e também não poderia
descobrir nada através das empregadas porque precisava
investigar em completo sigilo.
Por acaso, me encontrei caminhando em direção à
cabana destelhada. Não sabia ao certo o que pretendia
fazer naquele lugar horroroso, mas era atraído pela ideia
de que alguma coisa estava esperando para ser
descoberta. Talvez encontrasse alguma coisa que desse
rumo às minhas investigações. Devia ser umas 8h30
quando surgiu diante de mim a conhecida imagem da
construção em pedaços, o átrio de morte do Sr.
Gonçalves.
Iluminada pela luz áurea daquela manhã, a cabana
possuía certa beleza. O lodo brilhante nas paredes, a cor
esverdeada dos musgos, as telhas remanescentes com sua
cor castanha envelhecida, as ripas que se sobressaíam nas
partes onde o telhado se quebrara, as trepadeiras que
abraçavam lentamente os pilares de madeira da varanda
— tudo parecia agora dar ao lugar um aspecto de
perfeição artística.
A MENINA NO QUARTO 175
Um gavião estava pousado sobre a cabana, imóvel
como uma estátua, como se demarcasse ali seu território
de ave suprema. Ao me ver, abriu as asas escuras como se
ameaçasse voar, mas voltou a se aquietar. Observou-me
atentamente com seus olhos redondos conforme eu ia me
aproximando. Seu bico curvo tinha um tom amarelo,
acentuado pelo sol matinal, e suas penas castanhas
clareavam na medida em que se aproximavam do peito.
Seus olhos pareciam agora tão maiores e mais penetrantes
que me vi forçado a desviar o olhar, estabelecendo assim
a superioridade daquela ave. Quando cheguei perto
demais, o gavião por fim levantou voo, certo de que eu
representava alguma ameaça. Observei-o se afastar no
céu azul, sumindo entre as árvores vicejantes do bosque.
Rodeei a cabana e saltei a janela que dava para o
quarto. Tão logo meus pés tocaram o chão, um odor
repugnante penetrou minhas narinas. A umidade, a sujeira
e os insetos pareciam fundir-se naquele ar pesado. Evitei
olhar para o salmo 91 pendurado à parede, mas sua
imagem pairava na extremidade do meu campo de visão.
No chão, o lodo resultante das infiltrações formava um
tapete escuro e liso.
Meu coração começou a acelerar. Havia naquele
quarto algo de opressivo: ao mesmo tempo que ele me
fazia pensar na morte do Sr. Gonçalves, trazia-me
também a recordação do suicídio de meu pai. A
penumbra do cômodo só acentuava minha sensação de
desamparo, como se eu penetrasse em minhas próprias
entranhas e as revirasse, remexendo pedaços de mim há

176 DAVI VALE


muito tempo esquecidos. Desejei sair de lá o mais
rapidamente possível.
Fui até o roupeiro e comecei a revirá-lo. As
camisas penduradas em cabides se aglomeravam a um
canto, a maioria branca. Tinham um odor fétido de sujeira
e umidade, mas no fundo havia um cheiro de suor
envelhecido. Eram roupas sujas de uso, guardadas sem
terem sido lavadas, que traziam consigo os vestígios
corporais de um homem morto há meses. Um par de
botas repousava no fundo do móvel, cujo couro ressecado
perdia a cor. Ali não havia mais nada a procurar.
Quatro gavetas posicionadas no centro do roupeiro
se achavam fechadas. Arreganhei uma a uma com certo
receio, esperando me surpreender com a saída de um
bicho qualquer. Não encontrei bicho algum, tampouco
objeto interessante. Chegando a última delas, já não tinha
esperança de que houvesse algo a ser encontrado. Abri-a
lentamente e, mais uma vez, estava vazia. Mas então,
olhando com mais atenção, notei um pequeno pedaço de
papel perdido no fundo. Apanhei-o e tentei ver o que era,
mas o quarto estava escuro demais.
Levei o papel até a janela para aproveitar a luz. O
que eu tinha em mãos era uma pequena fotografia
envelhecida de um homem na casa dos vinte e oito anos,
fisionomia bondosa, olhos negros, nariz adunco e lábios
estreitos, vestido com uma camisa branca que, devido à
condição da foto, estava amarelada. Seus cabelos fartos
na cabeça, de um tom que beirava o loiro, completavam
sua aparência jovial. No verso achava-se a data da
A MENINA NO QUARTO 177
fotografia, indicando que ela tinha sido tirada há pouco
mais de um ano.
Meus olhos observavam aquela imagem com certo
espanto: havia nela uma informação aterradora, uma
descoberta muito importante. Desiludia-me de algo que
havia acreditado desde o início: o Sr. Gonçalves não
havia sido um senhor de idade avançada, mas um homem
na mais inteira condição física. Até aquele instante, eu
carregava comigo a imagem de um Sr. Gonçalves
macróbio, de olhar cansado e pele enrugada, um velho
cuja a morte fora apenas um evento natural da idade —
nada parecido com aquele moço de boa aparência, olhar
vivo e rosto cheio de saúde. O que me espantava era
imaginar aquele homem tendo uma morte natural.
Raramente uma pessoa na flor da idade poderia morrer de
um ataque cardíaco, a menos que a isso fosse propensa, o
que, diga-se de passagem, é relativamente raro. E, como
não havia menos repugnância em supor essa
improbabilidade do que em se suspeitar de um
assassinato, meus raciocínios só poderiam seguir um
caminho.
Diante da nova descoberta, só me restava uma
coisa a fazer.

178 DAVI VALE


25.

Nadia Vukmir que me desculpasse, mas eu não


trabalharia no jardim naquela manhã. Vesti um casaco e
saí da casa sem dar satisfação. Embora fosse um dia
ensolarado, o vento sul assoprava intensamente, trazendo
consigo o frio. Caminhei contra o vento até o vilarejo,
cabeça baixa, gola do casaco levantada e mãos nos
bolsos. Entrei no café perto da estação e sentei-me num
dos bancos. Em relação à temperatura exterior, aquele
estabelecimento parecia um forno, por isso tirei o casaco
e o pendurei atrás da cadeira. Eu tinha saído sem comer e
estava com uma fome enorme, então pedi ao dono do café
que me servisse alguns pães de queijo e um pingado
quente.
Minha intenção era voltar a encontrar o Sr. Pereira.
Obviamente, minhas chances eram ordinárias, mas o
vilarejo não era grande. Eu contava com a possibilidade
de que ele fosse um frequentador assíduo daquele
estabelecimento. Esperei por mais de uma hora, mas ele
não apareceu.
Decepcionado, paguei pelo que tinha consumido e
saí caminhando a esmo pelos arredores da estação,
esperando ter a sorte de encontrar o Sr. Pereira em
alguma praça, ou caminhando por alguma calçada — o
que era ainda mais improvável. Encontrei, tal como da
última vez, alguns olhares atentos cravados em mim. As
crianças me ignoravam, mas os adultos quase sempre me
A MENINA NO QUARTO 179
observavam com certa curiosidade. Evitei encará-los.
Vaguei pela rua principal até parar em uma banca de
jornal.
— Bom dia — eu disse para o senhor que estava
sentado ao lado de um expositor de jornais. Era,
aparentemente, o dono da banca. Escolhi um dos jornais
e, lendo as manchetes, perguntei: — Nenhuma novidade
sobre a Guerra?
— Há rumores de que o Japão obteve êxito na
ocupação de algumas ilhas do Alasca — respondeu o
velho, as pernas cruzadas, os braços caídos no colo e o
olhar amigável.
Era provavelmente italiano. Tinha um bigode
branco que se curvava para cima nas bordas, cujas
extremidades ostentavam um tom amarelado, e os cabelos
eram igualmente brancos. Usava boina surrada, camisa
listrada, calças pardas e botas de couro marrom-escuro.
— O senhor é novo por aqui? — perguntou-me
após me avaliar por alguns instantes, ajeitando os óculos
na cara bronzeada.
— Sim. Semana passada comecei como jardineiro
na casa dos Vukmir.
O homem me direcionou um olhar desconfiado, e
fiquei surpreso que fosse a mesma expressão que eu tinha
visto no Sr. Pereira quando contei-lhe a mesma coisa.
— O senhor não é o primeiro que reage assim —
comentei. — Digo, que se espanta quando menciono o
nome dos Vukmir. Outro homem, quando soube que
trabalho naquela casa, teve essa mesma reação.

180 DAVI VALE


Ele não respondeu, embora seus olhos verdes
parecessem muito expressivos. Apenas maneou a cabeça
em um gesto de assentimento, à guisa de comentários.
— A propósito — prossegui —, ouvi um boato
sobre Nadia Vukmir ter pacto com o diabo, e isso me
deixou intrigado.
O homem soltou uma risada forçada, como se
gracejasse do fato de eu estar intrigado com aquilo.
— Não acredita nestas coisas, hã? — indagou ele
com um olhar sarcástico.
— Não acredito, mas também não duvido —
revelei. — Há todo tipo de louco neste mundo. Mesmo,
porém, que seja mentira, eu queria entender a origem de
tal boato. Não creio que as pessoas possam levantar
semelhantes comentários sem que para isso haja uma
motivação.
— Então o senhor ainda não sabe?
— Desculpe, do que o senhor está falando? —
redargui, impaciente.
— Logo se nota que o senhor não está informado
sobre a sua patroa.
— Conte-me, por favor.
Assumindo um ar mais grave, ele contou:
— Desde que se tornou viúva, a Sra. Vukmir
isolou-se naquela casa. Os modos reservados e o
recolhimento dos residentes da casa alimentaram essas
crendices. A principal delas era de que a Sra. Milovan
fosse na verdade uma bruxa, e o cargo de governanta não
passasse de disfarce. Esses boatos se deviam
A MENINA NO QUARTO 181
especialmente ao aspecto sombrio da casa e ao fato de
suas criadas serem muito reservadas. Por exemplo,
quando alguém lhes perguntava, nunca revelavam
qualquer pormenor do dia-a-dia na casa. Era como se lá
dentro acontecessem coisas que precisassem ser mantidas
em segredo. Com a morte major Daniel Araújo, a Sra.
Vukmir vestiu-se de preto por anos, numa espécie de luto
prolongado, o que só agravou os comentários a seu
respeito. Voltou então a usar o nome de solteira. No
entanto, com o passar do tempo os boatos foram sendo
gradualmente esquecidos, até que algo aconteceu e
reavivou-os.
— O que aconteceu? — provoquei, curioso.
Ele refletiu. Parecia se preparar para uma longa
história.
— Foi em meados de 1940, há dois anos. Júlia
tinha 11 anos de idade quando Mme. Vukmir foi à
delegacia para relatar o seu sumiço. Ao que tudo indica, a
criança havia desaparecido sem deixar vestígios. A
polícia procurou pela menina em toda a propriedade, em
seguida na vizinhança, e por fim no vilarejo inteiro e nos
arredores, mas ao fim de uma semana inteira de buscas
não encontraram pista de seu paradeiro. Nem nunca a
encontrariam, até hoje.
— Quer dizer que Júlia está desaparecida há dois
anos?
— Sim — respondeu o homem como se dissesse
algo óbvio, não compreendendo o motivo do meu
espanto. — O senhor não sabia disso? Enfim… o

182 DAVI VALE


desaparecimento da filha abalou muito aquela mulher, e
ela passou a vagar pelos parques, a observar as mães com
suas filhas como se se imaginasse no lugar delas. Era de
dar pena. Passou um ou dois meses nessa situação, mas
depois ela se isolou em sua casa e passou a viver assim
desde então. Como a Sra. Vukmir já era vítima dos
antigos boatos, não foi difícil para que as pessoas
começassem a falar que o sumiço de sua filha era culpa
dela. Chegaram até a afirmar que ela tinha oferecido a
alma da própria filha ao diabo, sob influência da Sra.
Milovan. Logicamente, nenhum desses boatos foi levado
a sério pelas autoridades, e até hoje o desaparecimento de
Júlia continua sendo um mistério.
Ele parou de falar e uma luz surgiu em seu olhar.
— Acho que tenho algo que será de seu interesse!
— anunciou, empolgado.
O velho levantou-se da cadeira e entrou na banca.
Revirou um armário, onde tinha uma porção de jornais
velhos e amassados, e depois de dez minutos voltou com
um deles na mão.
— Eu sabia! — disse ele com ar de triunfo. —
Tenho o hábito de guardar os jornais que contenham
notícias sobre Rebouças. São, na minha opinião,
documentos importantíssimos sobre a história do nosso
vilarejo.
Entregou-me o jornal, e eu o peguei com o maior
cuidado. Depois, folheou-o em minha mão até encontrar a
página onde estava uma notícia intitulada Sumiço
misterioso de criança intriga a polícia. Dizia o seguinte:
A MENINA NO QUARTO 183
A polícia investiga o desaparecimento de Júlia Sophia
Vukmir Araújo, de 11 anos, no vilarejo de Rebouças,
interior de São Paulo. Ela foi vista pela última vez
enquanto brincava no jardim de casa na manhã de
ontem, e não foi mais vista desde então. Até agora
não se sabe o paradeiro da criança nem a motivação
de seu desaparecimento. A família está oferecendo
uma recompensa em dinheiro para quem tiver
informações que ajudem a localizar a menina.

A reportagem prosseguia com algumas notas acerca da


família, e depois sobre as características físicas de Júlia e
sua personalidade. Em resumo, era uma criança saudável,
amável e dócil, e não tinha problemas na escola.
— Não acontecem muitos casos assim por aqui,
percebe? — disse o homem, quando notou que eu
terminara de ler. — Por isso, este ganhou muito destaque.
Ainda mais que, naquele mesmo ano, outra criança
desapareceu no vilarejo, e a polícia também nunca soube
o que aconteceu a ela. Nunca estabeleceram qualquer
ligação entre os dois sumiços, mas nós sabemos que
coincidências não existem. Foi isso que acabou por tirar
as suspeitas de sobre Nadia Vukmir: passaram a
considerar a existência de algum aliciador de meninas na
região. Qualquer homem estranho que fosse visto
vagando pelas redondezas era interrogado pela polícia.
— Chegaram a descobrir quem era?

184 DAVI VALE


— Não. Chegaram a prender um senhor, mas ele
foi considerado inocente alguns dias depois. As
investigações não foram frutíferas, percebe? O caso
acabou arquivado.
— O senhor se importa se eu levar esta página
comigo?
— Pode levar — concordou ele, maneando a
cabeça. — Tenho outro exemplar guardado.
Agradeci e lhe paguei pelo outro jornal que tinha
escolhido antes. Disse-lhe que podia ficar com o troco.
Falei-lhe meu nome, numa tardia apresentação formal. O
homem apresentou-se como Mário Ferrante.
— Só uma coisa — acrescentou ele quando eu ia
me retirando. — Não dê confiança aos boatos. O senhor
parece ser um homem inteligente, então não julgue aquela
mulher com base nas coisas que dizem esses ignorantes.
— O senhor tem razão — respondi com um sorriso
cordial, condescendente.
Eu pensei, naquele momento, que, fossem quais
fossem as razões de o Sr. Ferrante suspender seu
julgamento sobre Nadia Vukmir, ele devia estar
profundamente enganado.
De volta ao meu quarto, sentei-me na poltrona e
voltei a ler a reportagem. Observei a fotografia de Júlia
acima da manchete e me recordei do porta-retratos que
vira no quarto da madame. Sem dúvida, era a mesma
menina da foto, com aquele mesmo sorriso doce, as
mesmas bochechas coradas e os mesmos olhos claros
como o céu primaveril.
A MENINA NO QUARTO 185
Todos estavam enganados, eu pensava comigo.
Júlia nunca sumira. Do contrário, por que ela continuava
naquele quarto?
— Mas então — falei para mim mesmo —, que
motivação obscura existe para que a menina seja mantida
escondida? O sumiço de Júlia foi relatado pela própria
mãe. Tudo isso não faz o menor sentido, considerando
que Júlia sempre esteve na casa. Por que ela relataria o
sumiço da filha se ela não houvesse desaparecido? Não
há lógica, ou ao menos eu não consigo encontrá-la. Mas e
se… sim, Helena talvez… — e parei de falar.
Levantei-me da poltrona e saí em busca de Helena.
Considerando que a camareira era a única pessoa em
quem eu confiava, achei que era hora de pressioná-la.
Procurei-a pela casa, mas não a encontrei no primeiro
piso. Caroline fazia faxina no gabinete, então fui até ela.
— Você sabe onde está Helena? — perguntei assim
que entrei no cômodo.
— Acredito que esteja arrumando o quarto da
madame — respondeu sem desviar os olhos da tarefa. —
Mas o que você quer com ela?
— Nada muito importante — tentei parecer
indiferente. — Mas será que você não poderia chamá-la,
por favor?
Caroline me examinou com um olhar desconfiado,
mas fez o que pedi sem questionar. Subiu as escadas, e
logo depois escutei seus passos pelo piso de madeira lá
em cima. Ouvi algumas palavras, e em seguida ela
retornou com Helena logo atrás. As duas desceram as

186 DAVI VALE


escadas juntas, mas Caroline voltou ao gabinete e Helena
parou na minha frente.
— Quer falar comigo? — perguntou, levemente
impaciente. Certamente tentava imaginar o que era tão
importante que justificasse interrompê-la em seus
afazeres.
— Venha comigo — eu pedi, e sem mais delongas
saí caminhando em direção à varanda dos fundos.
Helena veio em meu reboque, mas segurou meu
braço quando emergimos através porta e nos deparamos
com a luz do dia.
— O que está havendo? — perguntou. — Seja
rápido, não posso demorar. Se a madame…
— O que aconteceu à Júlia?
— Do que você está falando? — indagou ela,
franzindo o cenho e deixando transparecer certa
preocupação.
— Por que todos acham que a filha da madame está
desaparecida, sendo que na verdade ela se encontra
dentro daquele quarto?
Helena recuou um passo. Seus olhos estavam tão
arregalados quanto estariam se ela tivesse visto um
fantasma. Franziu o cenho e balançou negativamente a
cabeça, indicando não saber do que eu estava falando.
— Helena, eu sei que, para polícia, Júlia está
desaparecida há dois anos, então não adianta mentir para
mim.
— Como soube? — rumorejou ela, e olhou em
volta como se temesse a chegada inoportuna de alguém.
A MENINA NO QUARTO 187
— Não importa. O fato é que eu sei. Até saiu nos
jornais. Quanto tempo vocês pensaram que eu fosse
demorar a descobrir?
Helena calou-se e voltou o olhar para o chão.
— Por favor — eu insisti. — Conte-me o que
aconteceu!
— Eu não sei, Victor. E mesmo que soubesse, não
poderia contar. É mais complicado do que você imagina.
— Helena… — eu toquei suas bochechas com as
mãos e a fiz olhar para mim. — Você é a única pessoa em
quem confio! Me ajude a entender o que está acontecendo
nesta casa. Me diga por que a polícia acha que Júlia
desapareceu, se na verdade ela está naquele quarto.
— Por favor, não vá à polícia — disse ela.
— Por que eu iria?
Ela desviou o olhar.
— O que aconteceu aqui? — insisti. — Houve um
crime? Por isso eu não devo envolver a polícia? Hã?
Ela não respondeu, apenas de desvencilhou de mim
e saiu andando. Segurei-a pelo braço. Ela parou, olhou-
me por sobre o ombro e disse:
— Você não entenderia.
Deixei-a ir. O que eu não entenderia? Se Júlia não
estivesse desaparecida, mas tivesse sido escondida no
quarto, seria tão simples que Helena revelasse a verdade!
Certamente havia mais coisa nessa história, e eu
precisava continuar investigando. Ela pareceu preocupada
com a possibilidade de que eu fosse até a polícia, o que

188 DAVI VALE


indicava que algum crime devia ter acontecido naquela
casa.

A MENINA NO QUARTO 189


26.

Começava a fazer calor, embora o vento amenizasse a


sensação térmica. Pouco antes do almoço, quando
comecei a trabalhar no jardim, Nadia Vukmir veio me
procurar. Ela usava com um vestido branco, e na cabeça
um chapéu florido protegia seu rosto do sol. Quando a vi
se aproximando, apoiei-me no rastelo para descansar e
enxuguei o suor da testa. A despeito de minha reação
natural, meu interior era tomado pela inquietude
resultante da antecipação do que estava por vir: ou ela me
repreenderia por eu ter saído sem avisar, ou me diria que
eu pegasse minhas coisas e fosse embora da casa porque
ficara sabendo de minhas bisbilhotices.
— Olá, Victor — disse ela, mirando em mim um
olhar penetrante e ameaçador. — Onde esteve por toda a
manhã?
— Tive algumas coisas para resolver — respondi, e
em seguida notei que meu tom de voz receoso talvez
denunciasse minha apreensão.
Levei o dedo ao lábio num movimento instintivo,
como se desejasse coçá-lo. Troquei o peso do corpo entre
as pernas.
— Da próxima vez, deixe avisado — disse ela,
sisuda.
— Peço desculpas, madame. Isso não se repetirá.

190 DAVI VALE


— Tomara que não, Victor. Preciso ser avisada da
sua ausência, para o caso de precisarmos de você.
Entende isso?
— Perfeitamente.
Ela avaliou-me por algum tempo, em seguida
perguntou:
— Você não parece bem. O que há de errado?
— Nada de errado, madame.
Ela não pareceu muito convencida, mas não insistiu
na pergunta. Deixou-me então sozinho novamente. Meu
rosto devia estar péssimo, tanto que até ela o tinha
notado. Evidentemente, eu necessitava de uma boa noite
de sono.
Fiquei me perguntando por que eu não questionara
a Mme. Vukmir acerca de Júlia. Entretanto, bastava um
pouco de reflexão para perceber que minha escolha fora a
mais sensata. Primeiramente porque ela detestava
bisbilhotice. Além disso, muito provavelmente ela não
me responderia.
Apanhei o rastelo e continuei recolhendo as folhas
do chão. No entanto, não consegui me concentrar no que
fazia. Era como estar a fazer algo contra a própria
vontade, como se o trabalho me fosse um peso
insuportável, porquanto havia questões que, a meu ver,
urgiam ser resolvidas em detrimento da limpeza do
jardim. Sabia que meu trabalho estava se acumulando,
mas precisava continuar a investigar, mesmo que
arriscando o meu emprego.

A MENINA NO QUARTO 191


Num ímpeto de coragem e resolução, larguei tudo e
caminhei até a varanda. Espiei pela janela e vi a madame
sentando-se à sala de estar para retomar o trabalho em sua
toalha de tricô. A Sra. Milovan surgiu no cômodo,
sentou-se ao seu lado e começou a falar alguma coisa,
mas eu não podia escutar àquela distância. Caminhei mais
um pouco em volta da casa e espiei através da janela da
biblioteca. Vi que Caroline estava tirando pó das estantes
e percebi que falava alguma coisa a alguém, entretanto
não consegui ver a pessoa com quem ela conversava, pois
de onde eu estava só dava para ver metade do cômodo.
Aproximei a orelha da fresta da janela e tentei escutar a
conversa.
— E se ele descobrir o corpo? — perguntou
Caroline.
Tais palavras provocaram um reboliço em minhas
ideias. Então era por isso que a polícia não podia ser
envolvida: havia um cadáver em algum lugar na
propriedade!
Instantaneamente fui alvejado por uma série de
questionamentos: de quem era o cadáver? A morte se
dera por assassinato? Haveria alguma relação entre o
cadáver e os inexplicáveis choros que eu andara
escutando em meu quarto? Percebi que a única pergunta
que poderia, por princípio, ser respondida por dedução
era a segunda, uma vez que não existe motivo para se
ocultar um cadáver a menos que ele seja produto de um
assassínio.

192 DAVI VALE


— Ele não vai descobrir — respondeu a outra, e eu
reconheci que era a voz de Raquel. — É impossível. A
única coisa que demarca o local é uma pedra comum, de
maneira que não há como saber.
— Apesar disso, tenho medo — disse Caroline, e
inesperadamente olhou para a janela onde eu estava.
Abaixei-me imediatamente, mas tive medo que ela tivesse
me visto.
Abaixado, corri rente à parede até estar longe da
janela, então voltei ao jardim, apanhei o rastelo e comecei
a trabalhar. Considerei que, se ela tivesse me visto na
janela, talvez acreditasse que fosse apenas um engano
quando me visse trabalhando. Do contrário, eu estaria em
maus lençóis. Mas provavelmente ela não me viu, pois
não apareceu no jardim pelo resto da manhã.
Não tive vontade de almoçar. Tendo tomado
conhecimento da existência de um corpo escondido em
algum lugar na propriedade, minha mente estava mais
inquieta que nunca. A conversa entre Caroline e Raquel
tinha sido muito clara para me confirmar isso.
De repente, me ocorreu um pensamento
assombroso. Bastou-me juntar os fatos e tudo me pareceu
tão óbvio que não havia outra explicação. Sim, eu talvez
estivesse começando a entender tudo! Júlia estaria morta,
e de alguma forma Nadia Vukmir era culpada. Ela teria
decidido esconder o corpo e mentido à polícia, dizendo
que a criança havia desaparecido, a fim de ocultar seu
crime. Era essa a minha suposição, e pareceu-me que

A MENINA NO QUARTO 193


nunca estivera tão perto da verdade quanto naquele
momento.
Todavia, bastou um instante de reflexão para que
essa suposição ruísse. Como explicar as aparições na
janela? Seriam aparições do fantasma de Júlia? Pensei
nos choros que escutava em meu quarto durante a noite e
na ausência de explicações plausíveis para sua ocorrência.
Talvez existisse alguma ligação entre eles o mistério da
menina no quarto. Talvez, pensei, ela tenha morrido
naquele cômodo que eu ocupava para dormir. Seu espírito
estaria então aprisionado ali. Talvez seus choros fossem
uma tentativa de me passar alguma mensagem.
Olhei para a janela do quarto de Júlia, mas não a vi.
Parecia, porém, que ela ainda estava ali, diante do livro
que refletia o azul do céu, olhos vidrados em mim, rosto
pálido e expressão melancólica. Todas as vezes que a vi,
ela me olhava. E todas as vezes que percebeu que eu a
olhava, ela desapareceu, escondendo-se nas sombras do
quarto. Ou nas sombras de minha imaginação — pois,
desde o princípio, eu resistia a uma forte inclinação de
duvidar de minha própria sanidade. Eis o meu terrível
dilema: se eu não estava enlouquecendo, então fantasmas
existiam, ao passo que, se fantasmas não existissem, eu
estava enlouquecendo.
Pela primeira vez, eu estava diante de uma situação
capaz de abalar todas as minhas convicções. Desde a
adolescência, e especialmente após a morte dos meus
pais, duvidara da existência de qualquer coisa além do
que os olhos podem ver. Talvez Deus estivesse em algum

194 DAVI VALE


lugar na vastidão do universo, mas ele não se importava
com a sequência insignificante das nossas vidas. Era um
ser impessoal ou uma energia primordial que antecedeu a
existência do espaço-tempo. Talvez sequer existisse
qualquer tipo de Deus, e o mundo seria essa união de
eventos aleatórios sem propósito, salvo o impulso da
vida; simples acidente da matéria. Esse pensamento me
dominou quando perdi meus pais, enchendo-me de uma
sensação de desamparo. Embora eu quisesse acreditar que
um dia voltaria a ver meus pais no paraíso, ou onde quer
que fosse o além-túmulo, pensava que talvez não existisse
nada além da morte, que nossas almas morressem junto
com nossos corpos — assim como Helena me dissera
outro dia.
No entanto, ali estava eu diante de uma situação
que mudaria tudo. Pela primeira vez desde a morte dos
meus pais, começava a perceber que estava errado: existia
vida após a morte. Mais do que isso, havia a possibilidade
de que uma pessoa morta vagasse entre os vivos. Eu tinha
analisado cuidadosamente todas as possibilidades
tangíveis e as descartara com a minúcia de um detetive.
Concluí que não havia explicação lógica para os choros
que ouvira em meu quarto, assim como não havia
explicação lógica para as aparições na janela. O que eu
via através daquele vidro não era Júlia, era o espírito que
um dia esteve dentro de seu corpo.
Neste caso, por que todas as empregadas mentiam?
Se Júlia estava morta, elas certamente sabiam, mas
estariam tentando esconder de mim esse fato. Daí a razão
A MENINA NO QUARTO 195
para que elas não me permitissem entrar no quarto de
Júlia: eu o encontraria vazio e, destarte, começaria a fazer
questionamentos. Tais questionamentos haveriam de
causar grande incômodo em todos os envolvidos no
assassinato da criança.
Pensei no antigo jardineiro e no comentário que
escutei a seu respeito na sala. Considerando que o Sr.
Gonçalves prestava serviço para os Vukmir na época do
suposto sumiço de Júlia, era possível que ele tivesse
descoberto, de alguma maneira, que Júlia na verdade
estava morta, e que esse conhecimento tivesse lhe custado
a vida.
Não obstante, a suposição de que Júlia estava morta
parecia possuir algum engano em sua essência, como a
peça de um quebra-cabeça que por um milímetro não se
encaixasse às demais — e tudo isso por um detalhe.
Pareceu-me forçoso deduzir que o relato do
desaparecimento de Júlia tivera o propósito de desviar os
olhos da polícia de um homicídio; nesse caso, por que a
madame e suas criadas se dariam ao trabalho de me dizer
que Júlia estava viva? Por que não me diriam, desde o
começo, que a menina havia realmente desaparecido,
assim como haviam contado à polícia na época? Aí estava
mais uma incongruência. Tal atitude não se encaixava em
minha dedução, mas eu tinha convicção de que elas não
teriam mentido para mim em vão. Algum detalhe devia
ter passado despercebido por mim, algum raciocínio
estava fora do lugar.

196 DAVI VALE


Reconsiderei os fatos. Em primeiro lugar, a menos
que as empregadas soubessem que eu estava a escutá-las
e quisessem que eu acreditasse no que diziam, era
evidente que havia um corpo enterrado na propriedade.
Como não me parecesse razoável supor que elas teriam
algum proveito ao me fazer acreditar nessa informação —
ao contrário, isso só acentuara minha curiosidade —, eu
podia definir que a existência do corpo era verdadeira.
Quanto à sua identidade, eu tinha deduzido antes por
intuição que o corpo pertencia a Júlia — mas talvez eu
tivesse me equivocado. Existiam no mínimo duas razões
para crer que Júlia permanecia viva. A primeira era a
forma como a governanta agia, lavando regularmente as
roupas de uma criança, e permanecendo várias horas por
dia dentro do quarto da menina, dando-lhe aulas
didáticas. Eu duvidava que houvesse um motivo
suficiente para que a governanta se desse ao trabalho de
encenar a coisa toda. A segunda razão era a menina que
eu via na janela. Supor que fosse um fantasma não
parecia mais razoável do que supor que aquela fosse a
menina viva. Mas a que isso me conduzia? A nada,
percebi imediatamente. E além de tudo, eu continuava
sem ter explicação lógica para os choros que andava
escutando à noite.
Pensando nessas coisas, um calafrio percorreu
minha espinha. Eu estava no jardim, sob a sombra de uma
árvore frondosa, sentindo o vento ameno e escutando o
silêncio delicioso daquele lugar, quando comecei a me
sentir vulnerável ali. Passei a olhar para todos os lados de
A MENINA NO QUARTO 197
uma maneira quase frenética. Por várias vezes tive a
impressão de que um vulto passava perto de mim, tão
rápido quanto um pensamento, e que quando olhava em
sua direção ele desaparecia antes que eu pudesse vê-lo.
Escutei passos, e em algum momento pensei escutar até a
voz de uma criança, mas percebia depois que era apenas o
barulho do vento. Tomado por sentimentos que beiravam
a paranoia, constatei que, quanto mais fortalecemos
nossas crenças, mais ensejos de aumentá-las se
apresentam a nós, como numa espécie de círculo em que
crença sempre leva à mais crença. Assim, ao invés de
alimentar meus medos, tentei recobrar a calma, como se,
girando num círculo fechado que me entorpecesse a
percepção, eu me pusesse a prestar atenção às coisas do
lado de fora.

198 DAVI VALE


27.

Estive tanto tempo absorto em meus devaneios que não


percebi o passar das horas, e quando, entretanto, uma
fome me atingiu de súbito, constatei que já se passava do
meio da tarde e eu ainda não havia almoçado. Decidi ir à
cozinha para comer qualquer coisa que suprimisse a fome
até a hora do jantar. Chegando lá, escolhi algumas frutas
e biscoitos, coloquei tudo numa bandeja e fui comer no
jardim. Em qualquer outra ocasião eu teria sentado à
mesa para comer, mas naquela tarde tudo o que eu queria
era estar fora da casa. Em seu interior, tudo me
atribulava, desde as paredes até o cheiro amadeirado no ar
e o silêncio cavernoso dos cômodos. Ao menos no lado
de fora, escutando o farfalhar das árvores e o cantar dos
pássaros, eu conseguia manter-me calmo e racional.
Ao sair, notei que Helena estava sentada em seu
banco predileto do jardim. Decidi me sentar com ela. No
entanto, quando me aproximei, logo notei que não era
bem vindo.
— Posso te fazer companhia? — perguntei.
Ela se afastou e me deu espaço, mas não disse
nada. Sentei-me ao seu lado e ofereci biscoitos, mas ela
recusou com um movimento apático. Ficamos algum
tempo em silêncio.
— Está chateada comigo? — eu disse após algum
tempo de hesitação.
— Não — respondeu ela num tom de voz neutro.
A MENINA NO QUARTO 199
Sua atitude soava ligeiramente infantil. Mas afinal,
pensei comigo, o que mais eu poderia esperar?
— Eu sei que está chateada. Posso perceber isso
em seu tom de voz, no tremor de seus lábios e até em seu
olhar evasivo. É óbvio que há alguma coisa te
incomodando.
— Você não entende — ela fitou-me com seus
olhos túmidos, como se tivesse acabado de chorar.
Voltamos a ficar em silêncio. Coloquei um biscoito
na boca. Ambos nos encolhemos quando um vento mais
frio nos atingiu.
— Eu sei que ela está morta — falei em seguida,
lançando as palavras no ar de maneira a causar um
impacto inesperado.
— De quem você está falando? — Ela me olhou
com as sobrancelhas arqueadas, fingindo perplexidade,
mas seus olhos denunciavam que ela sabia exatamente o
que eu queria dizer.
— Estou falando de Júlia.
A confirmação fez toda sua face se enrijecer numa
onda de surpresa, mas logo em seguida ela tentou
disfarçar seu espanto e falou com indiferença:
— Depois de dois anos desaparecida, eu também
duvido que ela esteja viva.
— Ela foi assassinada aqui nesta casa, e acho que
você sabe disso tanto quanto eu.
A camareira voltou a arregalar os olhos, e pequenas
gotas de suor brotaram na ponta de seu nariz delicado.

200 DAVI VALE


— Mesmo que fosse verdade, como você poderia
saber disso? — perguntou.
— Não importa como eu sei. No entanto, nós dois
sabemos que é verdade. Júlia morreu aqui, nesta
propriedade.
A camareira maneou a cabeça negativamente, mas
não disse palavra.
— Por favor, conte-me a verdade. Eu prometo que
não vou à polícia.
— Não posso! — insistiu ela. E, olhando-me de um
jeito soturno, tocou em meu rosto e disse: — Você vai se
machucar se não parar com isso.
A despeito de todos os mistérios, sentir o calor de
sua mão em minha face fazia meu coração bater mais
forte. Seu carinho e sua preocupação causavam em mim
um efeito alentador.
— Como eu poderia me machucar? Quem me faria
mal?
— Não se deve subestimar a madame.
— Foi ela quem matou Júlia?
Helena virou a face. Aproximei meu rosto do dela,
colocando-me no caminho de sua visão, e repeti:
— Ela matou a própria filha?
Nesse instante, notei que a camareira estava
chorando.
— Por favor, não me pergunte mais isso! — ela
pediu, secando as lágrimas com o dedo indicador.
Acariciei seus cabelos negros num movimento de
consolo, e ela descansou a cabeça em meu ombro. Senti
A MENINA NO QUARTO 201
que estava sendo cruel com ela ao fazer tantas perguntas.
Não tinha me perguntado o quanto aquilo a teria afetado.
Pobre Helena, pensei comigo, tomando consciência de
que toda a situação devia ser muito difícil para ela. Passei
meu braço ao redor de seus ombros, como se isso pudesse
me redimir.
Embora Helena não tivesse dito muita coisa, ela
havia confirmado minhas suspeitas. Sua reação
corroborava que Júlia estava morta, e pude ver em seus
olhos que havia um segredo terrível envolvendo essa
morte. Além disso, era evidente que Helena correria
perigo se me dissesse qualquer coisa, por isso não queria
me contar a verdade. Sem dúvida, Nadia Vukmir a
forçava a manter segredo.
— Quer mesmo que eu vá embora? — perguntei-
lhe após algum tempo de silêncio, e estávamos tão
próximos que bastavam sussurros para que nos
entendêssemos.
— Sim. — Levantou a cabeça de meu ombro,
olhou-me e, ao notar em meu rosto um sinal de mágoa,
acrescentou: — Não é que eu deseje sua partida, mas
você precisa ir para o seu próprio bem. Você se tornou
muito especial para mim. Se lhe digo para ir embora é
exatamente por gostar tanto de você. Sei que estarei triste
com sua partida, mas vai ser pior se algo ruim lhe
acontecer.
— Neste caso, fujamos juntos!

202 DAVI VALE


Helena afastou o rosto subitamente, como se minha
proposta lhe atingisse com um impacto físico. Seus olhos
brilharam com uma fusão de surpresa, desejo e medo.
— Não posso! — respondeu tristemente. — Além
do mais, para onde iríamos?
— Tenho dinheiro guardado. É suficiente para
comprarmos uma casa e arranjarmo-nos por um tempo.
Posso conseguir facilmente um bom trabalho, pois tenho
boas referências. Tudo está encaminhado, como pode ver.
Helena voltou a fitar-me. Em seus olhos havia uma
faísca de esperança que afastava de seu rosto toda a
tristeza. Mas então, essa faísca se apagou subitamente, e
ela voltou à expressão melancólica de antes.
— Por que está me propondo isso? — indagou,
enfim.
— Porque eu te amo! — respondi num instante de
impulso, e então apanhei sua mão entre as minhas. No
mesmo instante, minha temperatura corporal pareceu
subir exorbitantemente. — Todas as vezes que a vejo,
cresce em mim este sentimento. Percebo que você está
em meus pensamentos a todo instante, que penso mais em
você do que em mim mesmo. Cogitar em ir embora daqui
e deixá-la é algo que não posso suportar.
Helena já não conseguia manter os olhos fixados
aos meus, e desviava-os para qualquer lugar quando eu a
olhava. O que significaria sua estranha reação evasiva?
Ela nada disse em resposta à minha declaração, mas
apenas mergulhou em seus próprios pensamentos, como
se tentasse com dificuldade se decidir entre dois
A MENINA NO QUARTO 203
caminhos. Fiquei esperando para saber o que ela falaria,
então houve um silêncio que me pareceu infinitamente
longo. Meu coração era atingido, entrementes, por uma
fisgada de ansiedade. Através de pequenos movimentos
corporais que ela realizava inconscientemente, eu podia
perceber que sentia alguma coisa por mim, que minha
declaração a atingira de forma profunda, que estava
desconcertada e ainda revolvia em sua mente a ideia que
eu acabara de lhe lançar. Mas seu silêncio aumentava
infinitamente o meu sofrimento.
— Por favor, venha comigo — insisti, ainda tendo
suas mãos entre as minhas. — Posso sentir que é isso que
deseja. Deixe-me te fazer feliz. Existe todo um mundo
além destes muros a ser explorado.
— Não posso — disse ela, por fim. Um fio de
lágrima brotou num de seus olhos e escorreu pela
bochecha até o canto dos lábios.
— Por quê? Você não sente por mim o mesmo que
sinto por você, é por isso?
— Não é isso. Eu sinto sim, e é forte.
— E então!
— É mais complicado do que você supõe, Victor.
Nesse instante, recolheu as mãos.
— Diga que não quer fugir comigo, então saberei
que meu amor por você não é correspondido, e embora
não possa te esquecer nunca, ao menos não terei mais
esperanças. E assim, não mais a importunarei.
— Não é isso. Eu quero, mas não posso. Vou
entender se não acreditar em mim, mas essa é a verdade.

204 DAVI VALE


— Por que não pode?
Helena nada respondeu. O pequeno fio de lágrima
deixara uma marca em seu rosto, e ela apenas mantinha
os olhos distantes dos meus sem nada dizer. Estava
melancólica e confusa. Ficou de pé e olhou-me com a
feição de quem quer falar muitas coisas, mas por alguma
razão não pode. Fiquei de pé também. Nós dois ficamos
defronte um do outro, em silêncio. O vento jogou uma
mexa de cabelos no seu rosto e ela os puxou com os
dedos. Olhou para o chão, depois voltou seu olhar para
mim. O brilho triste dos seus olhos carregava, apesar de
tudo, um desejo oculto, contido, a afeição que ela tinha
por mim, mas que temia demonstrar. Estávamos muito
perto um do outro e ao mesmo tempo muito longe. Senti
vontade de tocá-la. Peguei sua mão entre as minhas.
Pareciam trêmulas, ou talvez fosse um tremor em minhas
próprias mãos.
— Vou lhe dar um tempo para pensar — falei,
inseguro de minha própria voz.
Helena permaneceu em silêncio e desviou o olhar,
mas não recolheu a mão dentre as minhas. Lágrimas
brotaram novamente em seus olhos. Falei-lhe que ia
voltar ao trabalho, que tinha passado a manhã fora e
precisava adiantar o serviço atrasado. Ela concordou,
quase não emitindo palavras.
Para a minha frustração, não tentou me impedir
quando comecei a andar para longe dela. Lutei contra o
desejo de olhar para trás, sabendo que isso poderia
significar fraqueza.
A MENINA NO QUARTO 205
28.

O diálogo com Helena, antes de me dispersar dos


pensamentos sobre o mistério da morte de Júlia, só
aumentou em mim a curiosidade. A reação da camareira
dava-me uma noção da complexidade dos segredos que
permeavam a vida daquelas mulheres. Eu podia notar nos
olhos e nas reações de Helena que ela me desejava tanto
quanto eu a ela, no entanto algo parecia impedi-la de
ceder aos seus desejos. Mas o que tanto a segurava
naquele lugar que, a meu ver, só a oprimia?
Pouco após nossa conversa, quando começava a
trabalhar no jardim, mais uma coisa interessante
aconteceu. Casualmente, elevei meu olhar para a janela
do quarto de Júlia e deparei-me com a silhueta da menina
de pé diante do vidro, pálida e imóvel. Fechei os olhos
com força e voltei a abri-los, apenas para me certificar de
que não estava sendo enganado por uma ilusão de ótica
ou pela ação de minha imaginação — mas não era este o
caso, pois a menina continuava no mesmo lugar. Ela
olhou para mim através do vidro, e senti um calafrio
quando notei que seus olhos me fitavam. A luz do céu
ensolarado de outono a tornava ainda mais
fantasmagórica, pálida como uma boneca de louça, e
apesar disso eu conseguia vê-la com uma clareza inédita,
como se não houvesse na janela qualquer vidro. Caminhei
para mais perto, mas na medida em que eu ia me
aproximando um reflexo branco surgia no vidro e me
206 DAVI VALE
impedia de vê-la. Afastei-me, retomando a posição
anterior, da qual eu a conseguira ver sem a obstrução da
luz, mas então ela já havia sumido.
Percebi que minhas mãos estavam trêmulas e
minha testa transpirava. Pareceu-me que o vulto
desaparecera num milésimo de segundo, não por afastar-
se de meu campo de visão, mas por sumir da mesma
forma que uma luz que é apagada. Passou pela minha
cabeça novamente a ideia de que não existisse fantasma
algum, tampouco uma criança viva, mas que na verdade
eu tivesse alucinações. Todavia, como eu poderia saber?
Uma pessoa que sofre alucinações nunca sabe, e por isso
não consegue evitá-las ou distingui-las sozinha. Se eu
sofresse de alucinações, decerto não poderia corroborar
isso pela minha observação de mim mesmo. Tive medo
de estar enlouquecendo e, o que é pior, de não conseguir
perceber.
Mais tarde, à hora do jantar, reinou entre nós um
clima esquisito. Na mesa, as três empregadas quase não
conversaram, pareciam todas igualmente melancólicas e
preocupadas, embora apenas Helena soubesse que eu
estava perto de descobrir a verdade sobre a madame e sua
filha — ou assim eu supunha. A camareira teria
conversado com as demais empregadas a meu respeito?
Isso seria uma contradição, pois ela se demonstrava muito
preocupada com meu bem estar, dizendo-me para tomar
cuidado e me alertando dos perigos que eu estava
correndo com minhas investigações; e revelar meus
segredos às outras mulheres da casa, porém, só me poria
A MENINA NO QUARTO 207
em risco. Além disso, naquela tarde sua afeição por mim
havia se revelado, e isso era suficiente para que não me
restasse dúvidas quanto a que, se existia alguém naquela
casa em quem eu podia confiar, esse alguém era ela.
Supus, assim, que Helena não poderia ter me denunciado.
Havia naquela mesa, apesar disso, um silêncio opressivo
e suspeito. Os olhares que Caroline e Raquel me dirigiam
eram ameaçadores, como se me avaliassem em cada um
dos meus movimentos, como se pensassem coisas
terríveis enquanto me olhavam. Elas se entreolharam
várias vezes, pareciam se comunicar apenas por olhares.
Me senti vulnerável, misantrópico.
Apenas Helena não fazia parte daquela conspiração
— ao menos, eu esperava que não. Obviamente ela sabia
muito mais do que afirmava saber, mas isso não a tornava
uma traidora; quando muito, uma mentirosa. Quanto aos
seus sentimentos por mim, havia sempre tanta sinceridade
em seu olhar e autenticidade em suas demonstrações de
afeto que era impossível serem simulados. Todos os que
mentem pecam em alguma ação inconsciente, seja a
contração ou dilatação involuntária das pupilas, o tremor
nos lábios, no movimento da garganta ou a tensão sutil
dos músculos, de modo a darem pequenos indícios de que
não estão sendo sinceros — mas quando Helena afirmou
seus sentimentos por mim, não encontrei demonstrações
involuntárias de insinceridade em suas ações. Olhei-a por
alguns segundos enquanto ela mastigava a comida e
novamente senti por ela uma imensa afeição. Como, em
tão pouco tempo, eu a amava tanto! E não só amor, o que

208 DAVI VALE


senti por ela foi também comiseração. Ela tinha, pensei,
apenas 15 anos quando Júlia morreu (eu já considerava
indubitável o fato de que Júlia fora assassinada). Teria
presenciado o assassinato? Ou então, teria sido forçada a
ajudar na ocultação do cadáver, ou na limpeza da cena do
crime? Visualizei aquela garota, tão frágil e indefesa,
diante do sangue de Júlia, com um balde e um esfregão
nas mãos. Quanto sangue poderia sair de uma criança?
Isso ia depender, concluí, do tamanho e do tipo da ferida.
Eu pensava nisso enquanto comia, tal era minha
situação. Senti gosto de sangue na comida e pareceu-me
que um odor de defunto pairava no ar. Perdi o apetite.
Larguei o prato quase cheio, pedi licença e saí. As três me
olharam, espantadas com minha atitude, mas não me
fizeram pergunta. Quando me afastei pela sala, escutei
Caroline perguntar:
— Qual é o problema dele?
No entanto, se o afastamento delas me causava
certo alívio, achar-me em meu quarto me causava medo.
E se aquele fantasma voltasse a me atormentar? Ninguém
pode imaginar o quão aterrorizante é a sensação de
vulnerabilidade que nos atinge quando pensamos ter visto
uma assombração, até que experimente por si mesmo. Eu
próprio achava que, se um dia me deparasse com algo
parecido, não sentiria medo, sentiria quando muito
curiosidade — mas estava enganado. A verdade é que
todo meu corpo parecia estar sendo afetado pelo medo.
Qualquer estalo despertava em mim uma série de reações
automáticas de autodefesa, como se eu corresse risco de
A MENINA NO QUARTO 209
vida. Pensava escutar passos, vozes e até risos, mas sabia
que tudo não passava de imaginação. Imaginava coisas
macabras e por um instante perdia a noção da realidade,
como se fosse incapaz de diferir minha imaginação do
que de fato acontecia à minha volta. Um zumbido agudo
e constante começou a crescer dentro dos meus ouvidos.
Escutei um choro ecoar pelo quarto, mas reconheci que
ele só acontecia dentro de minha mente. Talvez estivesse
começando a delirar. Acometido pela mania de
perseguição, ficava o tempo inteiro procurando um
observador que talvez se escondesse atrás dos móveis.
Um estrondo me fez saltar de susto. Alguém batia à
porta. Será que estou imaginando isso também? Tive
medo de abri-la e me deparar com a imagem de Júlia, os
ossos expostos pela putrefação, o olhar vingativo, os
cabelos desgrenhados cheios de terra, o vestido imundo e
os vermes passeando pelos orifícios de seu corpo, ora
entrando, ora saindo, enquanto devoravam os restos de
sua carne apodrecida. Ela andaria em minha direção,
rosnando como uma besta maligna, e eu seria incapaz de
correr ou me defender, pois me faltariam forças.
Novamente bateram à porta. Um sobressalto
disparou meu coração. Não me vinha coragem para abri-
la. Fiquei imóvel, sentado em minha cama, ouvindo meu
próprio coração disparado. Por fim, uma voz soou do
outro lado:
— Victor, está tudo bem?

210 DAVI VALE


Era a voz Helena. Recobrei a razão quando a
escutei, como se ela fosse o fio que me ligasse à
realidade.
Abri a porta e Helena entrou. Era a primeira vez
que ela entrava em meu quarto desde que eu me mudara
para lá. Era estranho vê-la ali.
— O que está acontecendo? — Caminhou em
minha direção e tocou em minha testa. — Você está
febril! E seu olhar…
— Feche a porta — disse eu.
Helena empurrou a porta atrás de si, e ela se fechou
com um baque.
— Ei, o que foi? — ela quis saber ao perceber
minha perturbação.
— Eu a vejo — sussurrei, soturno.
— Quem você vê? — ela perguntou enquanto nós
dois sentávamos na cama.
— Eu vejo Júlia.
Helena arregalou os olhos.
— Do que está falando, Victor?
— E se eu lhe dissesse que vejo o fantasma de
Júlia, que o escuto chorar todas as noites?
— Pare com isso, Victor. Meu Deus! Você está me
assustando!
— Não estou mentindo, Helena. Eu a ouço todas as
noites. É ali — apontei em direção à cômoda. — É onde
ela fica chorando. Normalmente depois das dez ou onze
horas, quando todos já estão dormindo, ela vem me
atormentar. Eu não estou louco, não estou!
A MENINA NO QUARTO 211
Helena olhou para onde eu apontei. Seu olhar
denunciava o tamanho de seu medo. Ela estava tremendo
levemente, quase imperceptivelmente. Correu os olhos
pela cômoda, depois subiu pela parede. Fitou o alto da
parede perto do teto por algum tempo. Por fim, olhou
novamente para a cômoda.
— Foi neste cômodo que Júlia morreu? —
perguntei.
— Não — respondeu a camareira, como se
despertasse de um devaneio.
— O que foi este lugar antes de se tornar meu
quarto?
— Era uma sala de música. O piano ficava naquele
canto, onde está a cômoda, e tinha uma poltrona também.
O gramofone ficava ali, perto da janela. Uma vez Júlia
ganhou de presente um piano sem cauda. Tocava com
perfeição e passava bastante tempo nesta sala.
— E o que houve depois?
— Quando Júlia desapareceu, a madame entrou em
depressão. Ela dizia que escutava o piano tocar sozinho,
então o vendeu. Foi nessa época que qualquer música
passou a incomodá-la, e ela mandou que levássemos o
gramofone para o porão. O cômodo ficou abandonado
desde então, até ser transformado em quarto.
Eu entendia agora. Sim, entendia a razão pela qual
Nadia Vukmir repugnava toda espécie de música, pela
qual proibia rádios e aparelhos sonoros pela casa. A
música devia despertar nela as lembranças da filha, ou

212 DAVI VALE


talvez acionasse algum sentimento em seu interior que ela
desejava manter no esquecimento.
— Você diz que Júlia desapareceu. Mas ela está
morta, e você sabe disso.
A camareira não argumentou. Olhava meus olhos,
mas não como antes — não, ela os olhava com alguma
pressa e desviava logo o olhar para outra direção, como
se não se sentisse muito confortável. Esboçava um misto
de medo e preocupação.
— Helena, ela tem me visitado. Por algum motivo,
acho que seu espírito não está em paz. E aquele choro…
ele é de profunda melancolia. Algo terrível aconteceu a
ela, eu posso sentir.
Helena me abraçou de súbito. Talvez ela achasse
que eu estava enlouquecendo, ou talvez houvesse
acreditado em mim. Não tinha como saber. Uma coisa era
certa: também estava assustada. Me perguntei se estava
assustada comigo ou com a história do fantasma.
— Estou preocupada com você — disse ela, num
tom de voz tão doce e agradável que me fez lembrar
minha mãe. — Precisa parar de pensar em Júlia. — Deu
um beijo em meu rosto e acariciou minha bochecha,
fazendo sua pele macia tocar os pelos de minha barba que
já começavam a crescer. — Tente descansar, sim?
— Você acredita em mim? Seja sincera: você acha
que estou enlouquecendo, não é?
— Eu acredito em você, Victor. Acredito que há
alguma coisa te atormentando, e seja o que for não pode
ser apenas imaginação. Mas você precisa manter o
A MENINA NO QUARTO 213
controle. Se há um fantasma, ele não te fará mal a menos
que você permita. Diga a ele para ir embora, e ele irá.
Você me entendeu?
— Acho que sim…
— Diga-o para ir embora. E não fique dizendo que
está louco, porque você não está.
Assenti com a cabeça.
— Helena, obrigado por se importar tanto comigo.
Em resposta, ela sorriu afavelmente. Tocou meu
rosto com sua mão macia e quente, e eu também toquei o
dela. Estávamos sentados na beira da cama, e ali mesmo
começamos a nos beijar. Deitamo-nos enquanto nos
beijávamos e despíamos um ao outro sem pressa. Em
decorrência de nosso estado de espírito, antes daquele
impulso cego e impetuoso que nos dominara em nossa
primeira vez, o que sentíamos era uma necessidade de
carinho que suprisse nossas melancolias, nossos medos e
o sentimento de desamparo. Trocamos carícias suaves e
nos beijamos lentamente. Eu prestava atenção ao seu
cheiro, que era suave e adocicado, à textura de sua pele,
ao calor de seu corpo. Observava os movimentos da sua
barriga, o ritmo da sua respiração e o jeito como ela
mordiscava o lábio inferior nos momentos de êxtase.
Prestei atenção até à sua forma de fechar os olhos
enquanto gemia, abrindo-os sutilmente e revelando a
esclera. Quando atingia picos de prazer, para conter o
barulho de seu gemido ela prendia a respiração, mas
então soltava-a subitamente, emitindo um som
semelhante a um sussurro, e todo seu corpo estremecia.

214 DAVI VALE


Eu queria absorvê-la em mim. Se possível, uniria até
mesmo as nossas almas. Sentia como se o amor que nos
ligasse fosse frágil e, exatamente por isso, precioso
demais. Quando por fim atingimos o clímax e nos
desfalecemos sobre o colchão, senti que a amava
inúmeras vezes mais do que antes.
Ficamos abraçados, encostados a uma pilha de
travesseiros, sentindo nosso calor corporal sendo
transmitido um ao outro. Ela acariciava meu peito e eu
acariciava seus cabelos brilhantes e macios.
— Já pensou sobre minha proposta? — perguntei a
ela, após algum tempo em silêncio.
— Preciso de mais tempo para pensar.
— Não entendo o porquê de tanta relutância. Teme
não ser feliz? Do que tem medo?
— Não tenho dúvidas de que seríamos felizes
juntos — respondeu ela, e então encarou-me com seus
grandes olhos negros. — Mas, por favor, não me exija
dizer mais do que eu posso. Não me coloque em tal
condição.
Quando Helena se levantou para sair e caminhou
em direção à porta, fui sendo dominado por um vazio que
parecia recrudescer dentro de mim na medida em que ela
se afastava. Tive a impressão de que não resistiria ficar
sozinho de novo, que enlouqueceria de vez. Helena
olhou-me novamente antes de fechar a porta, e senti como
se fosse a última vez que a veria. Porém, não a impedi de
ir.

A MENINA NO QUARTO 215


29.

As horas foram passando lentamente. Era uma noite de


temperatura amena e não ventava, portanto a casa estava
em absoluto silêncio. Coloquei meu relógio de bolso
sobre a mesa de cabeceira e fiquei observando os
ponteiros. Nove horas. Nove e meia. Nove e quarenta.
O choro se iniciou como um som distante e foi
aumentando gradualmente. O abajur estava aceso,
fornecendo uma tenra iluminação amarelada ao quarto e
projetando longas sombras nas paredes, mas nem a
claridade podia impedir aquela alma infeliz de me
atormentar, pois ela devia estar ganhando força. Dizem
que nosso medo fortalece as entidades do outro mundo, e
eu estava tremendamente amedrontado. Lembrei-me de
que Helena me dissera que o fantasma não me faria mal a
menos que eu permitisse, mas isso não me acalmou.
O choro daquela menina parecia retumbar por todo
o quarto. Tive, no entanto, a impressão de que o choro
vinha mesmo de perto da cômoda, lugar onde ficava antes
o piano de Júlia. Olhei nessa direção e, num impulso
impensado, chamei:
— Júlia?
Imediatamente, o choro cessou. Houve um silêncio
completo no quarto, exceto pelo barulho da minha
respiração curta. O tempo parecia transcorrer mais
devagar.
Eu poderia tê-la mandado ir embora, tal como me
sugerira Helena. No entanto, algo dentro de mim me
216 DAVI VALE
induzia a explorar a situação. Estabelecer contato com um
fantasma poderia parecer loucura, mas mandá-lo embora
sem antes tentar contato era algo que eu não poderia
fazer.
— Júlia, é você? — voltei a dizer.
Eu não sabia exatamente se teria uma resposta. Não
sabia se estava cometendo um grande erro ao contatar um
espírito, se ao contatá-lo estava dando-lhe, desta forma,
permissão para algo mais do que aqueles sons noturnos
de melancolia. Uma fisgada de arrependimento me
atingiu. E se, ao fazer aquilo, eu estivesse dando força
àquele espírito? E se esse fosse o maior erro da minha
vida?
Para a minha surpresa, uma voz veio em minha
direção.
— Júlia está morta — disse ela, soando como se
viajasse por um longo cano.
Um calafrio percorreu todo meu corpo. A resposta
foi proferida pela voz de uma menina, como se falasse de
dentro de um buraco. O buraco de uma tumba, eu
imaginei. Apesar disso, a voz carregava uma doçura
infantil. Fiquei surpreso que a voz de um espectro
pudesse ser tão humana, tão real, quase palpável, por
assim dizer.
— O senhor pode me ouvir? — o fantasma voltou a
dizer.
Estremeci, então. Falar com o espírito tinha sido
meu erro. Já não eram mais choros que eu escutava. Eram
palavras. Ele agora podia conversar comigo. Quanto
A MENINA NO QUARTO 217
demoraria até que pudesse aparecer diante de mim,
tornar-se visível, materializar-se?
— S-sim — gaguejei, ainda descrente do que
estava acontecendo.
Houve um silêncio. Eu tremia de medo. Pensei que
estivesse dormindo, que acordaria na manhã seguinte e
perceberia que tudo não passara de um sonho. Mas era, de
longe, o sonho mais real que eu já experimentara.
Tomei coragem. Uma fisgada de descrença
percorreu minhas veias. Eu podia estar conversando com
um espírito, podia estar sonhando, podia até mesmo estar
delirando. Não parecia mais fazer diferença, de qualquer
forma.
— Você é o fantasma de Júlia?
— Fantasma? — respondeu a voz com certa
perplexidade.
Fiquei de pé e comecei a caminhar lentamente em
direção à cômoda. Tateei o ar em busca de qualquer
coisa. Claro que, se houvesse um fantasma ali, era
provável que eu não o conseguiria tatear, mas tentei
mesmo assim. A penumbra que o abajur incidia no quarto
não me permitia enxergar com muita clareza e, além
disso, a sombra que os móveis lançavam nas paredes
parecia dar ensejo para que alguma coisa pudesse se
esconder de minha visão. A todo instante eu tinha a
impressão de ter visto um vulto na sombra da cômoda,
atrás da poltrona ou no canto entre o roupeiro e a parede
contígua, mas bastava olhar com mais atenção para
constatar que não havia ninguém nesses locais.

218 DAVI VALE


— Como é possível que o senhor esteja me
ouvindo? — a voz perguntou, e nesse instante tive a
impressão de que ela estava pairando acima de minha
cabeça. — Eu não sabia que podia me ouvir.
— Eu também não acreditava que fosse possível
ouvir alguém que está morto.
— Não estou morta! — disse ela, e falou com tanta
convicção que sua voz soou mais aguda.
Recuei um passo, assustado. Claro que ela diria que
não estava morta. Não sabia que estava morta, pois
desconhecia seu estado verdadeiro. Não dizem que é por
isso que um espírito fica preso neste plano, por não
reconhecer a própria morte, por pensar que ainda está
vivo?
— Eu a ouço, mas não a vejo — expliquei. — Se
você estivesse viva, eu a poderia enxergar, não? Além
disso, como você consegue entrar em meu quarto se eu
tranquei a porta?
Houve um silêncio. Aparentemente, ela refletia
sobre o que eu acabara de dizer.
— O senhor entendeu tudo errado — falou, afinal.
— Como assim?
— Não estou em seu quarto — afirmou, e a voz
veio do alto, como se o fantasma flutuasse perto do teto.
Olhei para cima, esperando vê-lo pairando sobre mim.
Pensei sobre sua afirmação que, a meu ver, não
tinha sentido algum. Aparentemente, além de
desconhecer que achava-se morta, Júlia também parecia
não conseguir perceber em que cômodo estava.
A MENINA NO QUARTO 219
— O senhor está me ouvindo através da tubulação
— prosseguiu ela.
No começo, essas palavras não significaram nada
para mim. Tubulação? Foi então que me lembrei do
sistema de calefação da casa. Olhei para o alto da parede,
acima da cômoda, e vi a silhueta da grade através do qual
passava o ar. Apesar da pouca luz não me permitir ver
mais do que um quadrado escuro, que poderia ser
facilmente confundido com a moldura de um quadro, eu
já tinha observado aquela grade outras vezes: tratava-se
uma grade de bronze com cerca de trinta centímetros de
largura. Minha mente começou a se revirar. Súbita luz
clareou minhas ideias, dando-me uma nova perspectiva.
Comecei a rir, uma risada convulsiva que emanou pelo
meu peito em descontrole, até que doessem as minhas
entranhas.
Desde o começo, o choro que escutava em meu
quarto parecia soar abafado, como se viesse através de
um cano. Tinha percebido que o choro vinha de perto da
cômoda, e em minha imaginação havia ali uma entidade
invisível aos olhos, sempre no mesmo lugar, pois talvez
fosse aquele canto o palco de sua morte. Também notara
como a voz parecia pairar acima de mim, pois a grade da
calefação localizava-se no alto da parede, perto do teto.
No entanto, eu estava tão iludido pelo medo que nunca
me dei conta desses detalhes. Como eu havia sido tolo!
Teria me bastado chegar mais perto daquela parede para
discernir a origem do choro, então bastaria que eu usasse
um pouco do bom senso para saber a tubulação de ar que

220 DAVI VALE


interligava os cômodos servia também como condutora
de som. Lembrei-me de que, naquela mesma manhã, eu
acordara com o som da voz da Sra. Milovan —
certamente sua voz chegara ao meu quarto pelo mesmo
caminho pelo qual também chegava o choro da menina.
Aliás, também me recordei de outra informação: na
planta que eu fizera da casa, o quarto de Júlia ficava logo
acima do meu, de modo que meu teto estava sob o seu
chão. Com efeito, agora tudo se encaixava.
— O senhor ainda está aí? — perguntou a menina,
estranhando meu silêncio.
— Sim, estou aqui. Então quer dizer que… puxa
vida! Como não percebi antes? Realmente, o que me diz
parece ser verdade. Porém, por que eu escuto você chorar,
mas não ouço outros barulhos que, eventualmente,
presumo que você deva fazer?
— Deve ser porque a grade fica bem ao lado da
cabeceira da minha cama. Assim, o senhor só pode me
escutar se eu estiver deitada na cama.
— Por que você chora todas as noites?
Ela demorou a responder. Parecia hesitar.
— Porque tenho medo; porque sinto saudades dos
meus amigos; e porque, na hora de dormir, ela vem e me
diz coisas assustadoras.
— Quem?
— A madame.
— Espere um momento! Você mesma disse que
Júlia está morta. Então, você não é Júlia?
— Não, senhor.
A MENINA NO QUARTO 221
— Quem é você?
— Eu me chamo Sophia.
— Sophia? — repeti, descrente.
Reconsiderei tudo. Júlia estava morta, mas quem
vivia aprisionada naquele quarto era outra menina. Daí a
razão de ela nunca sair do quarto; daí a razão de a
governanta continuar a lavar as roupas de uma criança
mesmo após a morte de Júlia. Entretanto, parecia que essa
revelação só me acrescentava ainda mais perguntas. Por
que, afinal, aquela criança era mantida presa? Por que
todos insistiam em mentir sobre sua identidade? E, afinal,
quem exatamente era Sophia e como ela acabara naquela
situação?
— Por favor — disse Sophia —, mantenha segredo
sobre esta conversa. Se alguém souber que falei com o
senhor…
— Ninguém vai saber, Sophia. Eu lhe asseguro.
— Ela sempre sabe — sussurrou.
— Sophia, por favor, me conte o que aconteceu
com você e porque está presa nesse quarto. Vou ajudá-la
a sair, mas antes preciso saber a verdade.
Ela ficou em silêncio. Minha orelha estava tão
próxima da grade que eu podia escutá-la respirar. Ou
seria a respiração de uma terceira pessoa? Não podia ser:
segundo a planta, nenhum outro aposento estava tão
próximo ao meu quanto o de Júlia. A respiração com
certeza era de Sophia. Decerto ela está viva, pensei
comigo, pois supõe-se que fantasmas não respirem.

222 DAVI VALE


— Todas as vezes — disse Sophia — a Sra.
Milovan tranca a porta e as janelas do quarto. É
impossível sair.
— Por que ela te prende aí?
A menina começou a chorar. Desejei poder
oferecer-lhe um abraço.
— Não sei. Ela é louca! — afirmou, em prantos. —
Me tire daqui, por favor!
— Ei, Sophia! Agora mesmo vou até aí para te
salvar. Eu prometo.
— Mas estou trancada. Sem as chaves é impossível
entrar ou sair do quarto.
— Posso arrombar a porta.
— O senhor não conseguiria, ela é muito forte.
Ela tinha razão: as portas daquela casa eram como
as portas de uma masmorra. Ademais, mesmo que eu
conseguisse depois de muito esforço abri-la, o barulho
teria chamado atenção de todos na casa e eu seria
impedido. Era preciso pensar numa maneira de realizar o
resgate com discrição.
— Darei um jeito de conseguir as chaves —
prometi. — Garanto que vou descobrir uma maneira, mas
por enquanto preciso que você tenha paciência. Pode
esperar mais um dia?
— Sim. Por favor, não se esqueça de mim!
— Não vou me esquecer. Eu prometo.

A MENINA NO QUARTO 223


30.

A manhã seguinte foi uma terça-feira cinzenta e fria. Uma


camada de nuvens cobrira todo o céu no decorrer da
madrugada, atraídas pelo tempo abafado do dia anterior, e
estava tão escuro quando acordei que pensei que ainda
fosse madrugada.
Eu havia dormido muito bem e me sentia
revigorado. Não era de se surpreender, pois estava sem
dormir tranquilamente há uma semana inteira e só agora,
sabendo que não existia um fantasma na casa, tinha
conseguido descansar. Até resolvi fazer a barba que se
acumulara em meu rosto nos últimos três dias. Defronte
do espelho, constatei que minha aparência havia
melhorado. Meus olhos pareciam mais atentos e a barba
feita parecia me rejuvenescer.
Comecei então a tomar coragem para o passo que
estava prestes a dar. Tinha um plano para resgatar Sophia
— sim, eu já o havia engendrado. Ocorrera-me logo ao
amanhecer, quando acordei. Estaria me arriscando,
perderia certamente o meu emprego, mas eu precisava
tentar.
Outro dia, quando vi a Sra. Milovan na área de
serviço lavando as roupas de Sophia — as quais ela
convenientemente diria pertencer à filha morta da
madame —, observei que a velha costumava pendurar as
chaves na lateral direita do corpo, na borda do avental
branco. O molho de chaves ficava preso a um gancho de
224 DAVI VALE
metal, e este por sua vez prendia-se ao avental. Se eu
discretamente surrupiasse as chaves, teria tempo de subir
e salvar a menina antes que a governanta desse pela falta.
Com base em minhas observações, notei que a Sra.
Milovan costumava lavar as roupas de Sophia todas as
manhãs às oito, o que significava que dentro de alguns
minutos ela estaria se dirigindo à lavanderia. Por volta
das oito horas eu me posicionei perto da escada,
atabafado na entrada da biblioteca. Como previsto, não
demorou para que Vera Milovan surgisse no topo da
escada e começasse sua lenta descida. Quando a avistei,
caminhei em sua direção, fingindo estar disperso, olhando
a um lugar qualquer. No momento em que ela terminava
de descer o primeiro degrau, fingi tropeçar e esbarrei em
seu ombro. A velha cambaleou e quase derrubou o cesto,
mas se apoiou na barra do corrimão.
— Me desculpe! — eu disse, ajudando-a a retomar
o equilíbrio.
— Tome mais cuidado! — advertiu, irritada. —
Pode deixar, estou bem — e se esquivou de mim.
Ela continuou seu caminho e eu a observei até que
sumisse no próximo cômodo. Em seguida, abri a mão e
olhei para o meu prêmio. Tinha surrupiado as chaves com
sucesso durante o esbarrão, e a velha nem percebera.
Restava pouco tempo até que ela sentisse falta das
chaves, se recordasse de nosso encontro e deduzisse que
eu as havia roubado; a velha subiria rapidamente ao
quarto e, pelos meus cálculos, o encontraria já vazio.

A MENINA NO QUARTO 225


Corri escada acima. Tive sorte de não me deparar
com qualquer uma das empregadas, ou com a própria
madame. Surpreendentemente, tudo estava correndo
conforme o planejado. Fui até a porta do quarto de Sophia
e tentei a primeira chave. Não serviu. Tentei mais uma, e
outra, e outra. Tinha umas vinte chaves no molho. Por
fim, encontrei uma que servia, girei-a e o ferrolho se
moveu com um estalido seco. Respirei fundo, tomei
coragem e abri a porta lentamente.
O quarto de Sophia — ou de Júlia — era bem
iluminado por duas janelas e tinha os móveis dispostos de
maneira organizada, embora fossem numerosos demais
para o tamanho do cômodo. Uma cama, localizada ao
fundo do aposento perto de uma das janelas, estava
arrumada com perfeição. Uma mesa de cabeceira tinha
sobre si um porta-retratos. Olhei a fotografia e nela
reconheci Júlia. À esquerda da entrada do quarto, havia
uma escrivaninha e, na parede contígua à direita, um
roupeiro. No meio do cômodo havia um tapete bege,
cujas bordas alcançavam os pés da cama e da cadeira que
ficava defronte da escrivaninha.
Olhei todo o cômodo atentamente, mas, para minha
surpresa, não encontrei qualquer sinal de Sophia. Com
exceção da mobília, o quarto estava vazio. Perguntei-me
se ela teria se escondido. Procurei-a no banheiro, mas lá
não a encontrei. Aliás, o lavatório completamente seco
aparentava não ser utilizado há muito tempo. Fui até o
roupeiro e encontrei-o cheio de roupas de criança,
vestidos de todas as cores, saias e camisas infantis,

226 DAVI VALE


sapatos e casacos. Sophia não estava dentro do roupeiro,
tampouco debaixo da cama. Não estava em lugar algum.
A confusão voltou a me atormentar. Se Sophia não
estava no quarto, por que a governanta se daria ao
trabalho de trancá-lo? Como era possível que não
houvesse criança no quarto, sendo que na noite anterior
eu a ouvira através do sistema de calefação?
De repente, me perguntei se Sophia não seria fruto
da minha imaginação. Todo aquele diálogo através da
tubulação teria sido uma alucinação? Observei a cama
impecavelmente arrumada, a pia do banheiro seca, as
roupas do roupeiro organizadas e todo o resto do quarto
em perfeito estado, como se não fosse ocupado por uma
criança há meses. Talvez Sophia não passasse de um
delírio. Talvez eu tivesse enlouquecido de vez. Comecei a
ficar assustado com essa possibilidade, perdendo-me no
meu próprio medo, mergulhando numa escuridão que
crescia dentro de mim.
Subitamente, todas as coisas de que eu me
lembrava da última semana me pareceram suscetíveis à
dúvida. Eu já tinha lido acerca dos transtornos psicóticos
e conhecia os sintomas; e, naquele instante, eu os podia
reconhecer em mim. Reconsiderei meus primeiros dias na
casa, as primeiras impressões que tive acerca da madame
e suas criadas, a sensação de estar entre pessoas estranhas
e em lugar estranho. Talvez essa condição hostil houvesse
acionado algo dentro da minha mente. Os choros
noturnos, as aparições de uma menina na janela, a
conversa das criadas acerca de um corpo — eu teria
A MENINA NO QUARTO 227
imaginado tudo. Minha memória poderia ter distorcido
até mesmo alguns aspectos dos diálogos à mesa, de modo
que eu me recordasse de ter escutado coisas que nunca
escutei. Quanto mais pensava a esse respeito, mais
verossímil a hipótese me parecia.
Recuei até perto da entrada do quarto. Esses
pensamentos eram assombrosos. Fiquei mais algum
tempo tentando entender o que estava acontecendo
comigo. Olhava para o quarto vazio como se esperasse o
aparecimento de uma criança que me diria, a rir, ter me
pregado uma peça. Mas eu sabia que isso não iria
acontecer. Percebi que tremia, assustado com a
possibilidade de estar louco. Esfreguei os olhos com
força. Senti meu coração disparado, e um desespero
cresceu em meu peito e se alastrou pelo corpo. Senti
vertigem. Pensei ter escutado um grito agudo e distante,
mas notei que era um zumbido dentro da minha cabeça.
Eu estaria louco? Não, não podia ser! Eu precisava
manter a calma. Ouvi passos atrás de mim. Passos! Tive
medo de olhar para trás.
— Não há nada para ver aqui — alguém disse em
minha retaguarda.
Virei-me com um movimento sobressaltado. Quem
estava de pé na soleira da porta era a Sra. Milovan. Foi
como se o tempo houvesse estagnado. De repente, o
espaço à minha volta parecia tornar-se ligeiramente mais
amplo e distorcido, e a Sra. Milovan recrudescia de
tamanho, crescia diante de mim, causava-me uma
estranha sensação de vulnerabilidade.

228 DAVI VALE


— Eu… — comecei a dizer, incerto.
— Veio atrás de Júlia, suponho — completou ela
com a voz surpreendentemente amena.
— Eu não compreendo! Ontem mesmo…
— Ontem o senhor conversou com Júlia, eu sei.
Franzi o cenho. Devo ter resmungado alguma coisa
como expressão de minha profunda perplexidade.
— Não! — exclamei, e direcionei a ela um olhar
decidido. — Júlia está morta, e a senhora sabe disso. Mas
tinha outra garota aqui, disso eu não tenho dúvida. O que
a senhora fez com ela? Se a tiver machucado, eu juro
que…
— Você está enganado, Sr. Silva. Está confuso.
Melhor se acalmar.
Ela era capaz de manter uma frieza assustadora.
Seu tom de voz era neutro.
Olhei para trás e avistei a grade do sistema de
calefação bem ao lado da cabeceira da cama.
— Não vou me acalmar — avisei, e dei um passo
na direção da governanta direção, ficando a não mais que
um metro de seu rosto. — Diga-me onde está Sophia, ou
irei à polícia agora mesmo!
— Sophia? — perguntou ela, e em seguida deu
uma risada medonha, lançando no ar seu hálito fedorento
e nauseabundo. — Então ela usou o segundo nome! —
concluiu, soblevando as sobrancelhas.
— O que a senhora está querendo dizer?

A MENINA NO QUARTO 229


A governanta parou de rir subitamente e sua
fisionomia alterou-se do riso à sisudez em menos de um
segundo.
— Não existe outra criança — falou, encarando-me
com um olhar sombrio. — Sempre foi ela.
— Quem? De quem a senhora está falando?
— Estou falando de Júlia Sophia.

230 DAVI VALE


31.

A verdade assomou à minha mente como um murro,


fazendo-me estremecer. Julia Sophia. Sophia era nada
mais que o segundo nome de Júlia. Mas isso não podia…
não, não era verdade! A Sra. Milovan com certeza estava
blefando.
— A senhora está mentindo — acusei-a com um
sorriso de descrença. — Eu sei que Júlia está morta, sei
que ela foi assassinada, e sei ainda que uma criança
chamada Sophia estava presa neste quarto até a noite
passada, e não era Júlia.
Sem nada dizer, a governanta passou por mim,
caminhou até a mesa de cabeceira, abriu uma gaveta e
retirou de lá um pequeno caderno de capa rosada. Um
diário, como eu logo pude constatar. A velha parecia
segurá-lo com receio. Entregou-o em minha mão, e eu
abri na primeira página assim que o peguei. Escritas com
as letras delicadas de uma criança estavam as seguintes
palavras:

Júlia Sophia Vukmir Araújo

O jota esticava ostentosamente, feito nos traços suaves de


quem se acostumou a desenhá-lo com frequência, e era
seguido de letras pequenas e sem inclinação para
qualquer lado. As letras se uniam com suavidade e

A MENINA NO QUARTO 231


pareciam feitas sem interrupção. Os pontos das letras “i”
eram pequenas pintas quase imperceptíveis no papel
branco, colocados exatamente no devido lugar. Passei
para a próxima página, e então a inscrição prosseguia
com a mesma caligrafia:

12 de janeiro de 1940

Caro diário

Esta manhã está chovendo de novo. Odeio dias


chuvosos, não posso sair para brincar no jardim, e
mamãe sempre fica triste quando está chovendo,
acho que ela fica assim porque papai foi embora num
dia como este, um dia úmido e frio, como ela sempre
me conta. Desço para ensaiar piano, é a única coisa
interessante para se fazer dentro de casa, mas mamãe
se irrita com o barulho e por isso preciso parar de
tocar. Acho que ela está ficando doente de novo.
Volto ao meu quarto e tranco a porta, não sei porque
eu tranquei, acho que é porque mamãe me dá medo,
não é sempre que ela me dá medo, na maioria das
vezes eu não sinto medo dela, mas é só quando ela
fica desse jeito estranho, intolerante a qualquer ruído
pela casa, com o olhar esquisito e os cabelos soltos. É
horrível só de pensar. Fico bem quietinha para não
irritá-la, talvez assim ela não faça comigo o que fez da
última vez.

232 DAVI VALE


Eu não sabia em que acreditar. Estava quase
delirante, sentia-me febril. Minha mente estava sendo
alvejada de todas as direções. Joguei o diário na cama,
enfiei os dedos entre meus cabelos despenteados e puxei-
os com nervosismo. Desejei gritar e em minha própria
cabeça, como se isso pudesse desfazer a confusão que me
atordoava.
Vera Milovan me observava com a indiferença de
um juiz no tribunal. Parecia aguardar meu lento processo
de enlouquecimento. Como ela conseguia ser tão fria?
— O quarto está exatamente como Júlia o deixou
— disse após um longo silêncio, caminhando lentamente
pelo cômodo. Eu achava-me no meio do quarto, de
maneira que a Sra. Milovan caminhava ao meu redor
enquanto eu a acompanhava com o olhar, virando meu
corpo em sua direção e não deixando que ela ficasse em
minha retaguarda. — Ela se sentava naquela cadeira para
escrever — indicou a cadeira de madeira fronteira à
escrivaninha perto da entrada do quarto.
Sobre a escrivaninha havia um livro fechado com o
marcador de páginas quase no fim, de título Almas
Mortas. Um peso de papéis de bronze dividia espaço com
um lápis preto. Uma fotografia com moldura retangular
retratava a imagem de Nadia Vukmir abraçada a Júlia,
ambas sentadas no gramado durante um piquenique, e
outra fotografia com moldura oval exibia o rosto de Júlia,
com um grande sorriso e os olhos semicerrados.
Pendurado à parede atrás da escrivaninha, havia um
quadro com a representação de uma paisagem, a qual
A MENINA NO QUARTO 233
consistia de um riacho pedregoso que descia uma ladeira
no meio das árvores, e acima de tudo o céu nublado e
rubro do entardecer.
— Júlia está morta? — indaguei.
— Eu gostaria de dizer que não — respondeu a
governanta, olhando com expressão triste para o diário
sobre a cama.
Eu não sabia se ela estava sendo honesta comigo,
pois era uma mulher fria e difícil de ler. No entanto, notei
que, ao dizer essas palavras, seus olhos haviam brilhado.
— Na escova sobre a penteadeira — continuou a
governanta —, ainda podemos encontrar seus fios de
cabelos castanhos. O guarda-roupas está arrumado da
forma como ela gostava que ficasse, e o colchão ainda
preserva a marca do seu pequeno corpo. Tudo neste
cômodo está inalterado, e eu mesma faço a limpeza para
assegurar que tudo permanecerá exatamente como está.
— Mme. Vukmir matou Júlia?
Vera Milovan recuou, sentou-se na cama e olhou
para o porta-retratos sobre a mesa de cabeceira com um
semblante desesperadamente melancólico.
— Foi um acidente — ela contou. — Sim, um
terrível acidente. Mas a polícia nunca entenderia, não só
por todos os boatos injustos que corriam acerca da
madame, mas pela infelicidade das circunstâncias; então
eu a ajudei a inventar uma história convincente. Sr. Silva,
o senhor precisa saber que a madame não é uma má
pessoa. Eu não podia deixá-la ir para a cadeia. Não podia!

234 DAVI VALE


No leito de morte de seu pai, eu prometi que cuidaria
dela. Precisava cumprir minha promessa.
— Então, as empregadas a ajudaram com a história
do desaparecimento?
— Sim, mas elas não tiveram culpa. São fiéis à sua
patroa, e isso não pode ser censurado.
Eu negava com a cabeça, tentando dizer a mim
mesmo que não acreditasse naquela história, mas essa
negação não passava de um movimento de perplexidade.
A Sra. Milovan continuou falando:
— A madame a chamava de Sofia quando estava
brava. Mais ninguém a chamava assim, a maioria das
pessoas sequer sabia seu segundo nome. É uma estratégia
de autoridade, o senhor deve saber: quando Júlia escutava
sua mãe a chamando pelo segundo nome, imediatamente
percebia que estava encrencada. Como governanta, eu sei
o quanto esse método é eficaz para reprimir o mau
comportamento.
A governanta mexeu-se sobre a cama, como se
procurasse a posição mais cômoda. Olhou para a janela,
imersa em lembranças horríveis. Seus olhos tinham o
brilho da tristeza.
— A morte de Júlia — disse ela — foi um
infortúnio que atingiu a todos, sobretudo a madame. E
sabe de uma coisa? Na mesma semana de sua morte, Júlia
começou a dar sinais de que não tinha ido embora. Ela
sempre esteve aqui, e acho que sempre estará. O senhor
mesmo é prova disso. A forma prematura e repentina

A MENINA NO QUARTO 235


como ela morreu deve tê-la deixado presa neste plano,
coitadinha!
— A senhora reconhece que, se a polícia souber do
assassinato, a madame irá para a cadeia, não reconhece?
E provavelmente a senhora também irá.
— Por favor, não a denuncie! — pediu
encarecidamente, inclinando-se para frente num
movimento que visava acentuar sua súplica. — A
madame já sofrendo castigo suficiente. O senhor precisa
saber que foi um acidente, precisa acreditar em mim. A
polícia nunca entenderia. A madame sempre foi austera
com a filha, pouco bastava para desencadear nela um
ímpeto de raiva, e ela punia a criança de uma maneira
exagerada. Sei que isso não é certo, mas a madame não
fazia de propósito e sempre se arrependia, serodiamente,
do exagero de suas punições. Embora fosse uma criança
maravilhosa, Júlia era desobediente e frequentemente
recebia severos castigos da mãe, os quais variavam entre
broncas, bofetadas, imposição de jejuns e duradouros
confinamentos no quarto. A despeito de minha
discordância com os métodos da madame de educar a
filha, estava muito além de minha alçada interferir neles,
e eu me limitava a dizer, da maneira mais cuidadosa e
casual possível, que ela estava exagerando.
“Mas naquela tarde, pela primeira vez, e também
pela última, Júlia se encorajou a enfrentar a autoridade da
mãe. Tudo começou horas antes, quando a madame
encontrou entre as folhas do caderno de Júlia a carta
amorosa de um garoto da escola e percebeu que a carta

236 DAVI VALE


vinha em resposta a uma outra que ela o enviara. Saber
que a filha andava a trocar cartas de amor com um garoto
em tão tenra idade de doze anos foi o suficiente para que
a madame, não satisfeita em rasgar o papel em
pedacinhos, desferisse um forte tapa no rosto da filha,
deixando sua bochecha vermelha. Enraivecida com a
atitude da mãe e influenciada pela paixão que seu coração
nutria pelo garoto, Júlia ameaçou fugir de casa. O que não
faz uma pessoa, mesmo que criança, quando as chamas
de sua raiva são alimentadas pelo amor? As duas, mãe e
filha, passaram a tarde a trocar palavras duras, e a
madame estava cada vez mais irritada com a maneira
desrespeitosa com que a filha lhe respondia às censuras,
sempre acusando a mãe de ser cruel e injusta. A madame,
por sua parte, lhe dizia que fazia aquilo para o seu próprio
bem, que garoto nenhum merecia confiança, que não era
do feitio de uma garota descente trocar cartinhas de amor
às escondidas com os meninos da escola, ainda mais com
apenas doze anos de idade, e que ela acabaria por tornar-
se uma vagabunda se continuasse a proceder assim. Júlia
disse que a mãe não podia impedi-la de amar, e então,
não encontrando outra alternativa, a madame resolveu
que a filha não mais estudaria na escola e passaria a
receber aulas particulares a domicílio. Diante da
desastrosa notícia, Júlia gritou que a odiava. Estavam no
quarto da menina quando isso aconteceu. Ao escutar o
berro imprudente da filha, assomou-se na madame uma
ira feroz, e ela apanhou com a mão o primeiro objeto que
encontrou ao alcance do braço e o lançou com a força de
A MENINA NO QUARTO 237
sua raiva. O objeto atingiu de chofre a cabeça de Júlia
com uma força tremenda, fazendo-a cair desacordada no
chão com um baque.
“Eu ouvia a discussão do lado de fora do quarto.
Quando escutei o grito de Júlia e o som surdo que seu
corpo emitiu ao cair, corri até a porta para ver o que
estava acontecendo. Encontrei a madame parada no meio
do quarto, imóvel. — Nesse momento, a governanta
levantou-se da cama e posicionou-se no exato lugar ao
qual se referia. — Em sua frente, o corpo de Júlia deitado,
olhos esbugalhados e boca semiaberta, e no meio da testa
uma ferida da qual jorrava um sangue escuro que
empoçava no piso de madeira. Ao lado da cabeça da
menina estava o objeto que a madame arremessara: um
peso de papéis feito de bronze, que ela apanhara de sobre
a escrivaninha, e que atingira a testa de Júlia com uma
das pontas.”
A Sra. Milovan relatava tudo com certa aflição e
seus olhos azulados tinham um brilho lacrimoso. Embora
falasse sem se embaralhar, sua voz por vezes tremia ou
falhava, como se ela tentasse conter o choro.
Quando mencionou a forma como Nadia Vukmir
repudiava o sexo masculino e como queria manter sua
filha longe daquele garoto, recordei-me de quando João
de Souza Pereira me contou acerca dos boatos segundo os
quais ela teria sofrido abuso do pai. Talvez por isso a
madame pensasse dessa maneira: ela generalizava os
homens com base no exemplo do pai.

238 DAVI VALE


Vera Milovan caminhou até a escrivaninha,
apanhou um objeto e mostrou-o a mim: o peso de papéis
que atingiu a cabeça de Júlia e provocou sua morte era
justamente aquele que estava na escrivaninha. Ali estava
a arma do crime. Estivera o tempo todo ali, diante dos
meus olhos.
— Quando olhei para o corpo imóvel de Júlia —
prosseguiu Vera Milovan, caminhando agora até a janela
e olhando através do vidro —, todo o mundo pareceu
perder a forma. Tive a sensação de estar em um sonho.
Desejei que fosse, mas não era. A tarde chegava ao fim, o
sol começava a se tornar dourado e seu brilho iluminava o
sangue vermelho-escuro no chão. A madame, que estava
em estado de choque, com os olhos cheios de lágrimas e o
rosto deformado pelo pânico, não desviava um só instante
o olhar da vítima de sua ira. Suas mãos tremiam
visivelmente. Agachei-me ao lado do corpo e, me
esquivando do sangue, tentei encontrar sinais vitais, mas
a menina já estava morta. Não havia mais nada que
pudéssemos fazer.
“Eu soube naquele instante o que havia acontecido,
e soube, por conseguinte, tudo o que aconteceria quando
a polícia descobrisse. Fui eu quem tomou a resolução de
não deixar que a verdade chegasse às autoridades, pois,
embora eu soubesse que a madame não fizera aquilo por
mal, ela seria acusada por homicídio doloso. Graças à
obediência e discrição das meninas e o controle
emocional que a madame conseguia ter diante de
estranhos, logramos salvá-la da prisão.
A MENINA NO QUARTO 239
“Apesar de termos conseguido guardar segredo
sobre o que aconteceu à Júlia, o remorso da madame já
foi um castigo da pior espécie para ela, pior do que a
justiça dos homens poderia lhe proporcionar. Ela nunca
mais foi a mesma, a tristeza dominou sua alma, vê-la
sorrir tornou-se uma raridade, e mesmo quando por força
da conveniência ela sorria, percebíamos em seu olhar que
seu espírito estava triste. Depois da trágica morte de Júlia,
não houve um só momento de alegria em sua vida.
Duvido que alguém possa ter sido mais infeliz que essa
pobre mulher nestes últimos dois anos, pois não creio
haver pior culpa que a de ter assassinado, num momento
de impulso, a criança que foi gerada em seu próprio
ventre. Ser atormentado por essa culpa é o pior castigo
possível. Ela está destinada a viver com o fantasma de
Júlia a lhe atormentar a mente, a lhe fazer lembrar do
instante em que aquele objeto, atirado com suas próprias
mãos, afundou o crânio de sua filha, e do som daquele
pequeno corpo caindo ao chão, já sem vida. Essa imagem
se repetirá em sua mente pelo resto de seus anos.”
A governanta estava diante da janela ao terminar
esse relato mórbido. Quando voltou-se em minha direção,
percebi que as lágrimas lhe escorriam pelas faces
enrugadas. Sim, havia sinceridade nas palavras que
acabara de dizer. Com efeito, ao ouvir o relato, senti certa
pena da madame. Não obstante o crime cometido e as
mentiras que foram contadas à polícia, e apesar de
repugnar o assassinato de uma criança indefesa, eu sentia
certa comiseração pela assassina. Não que sua atitude

240 DAVI VALE


impulsiva e desequilibrada no momento da ira fosse algo
aceitável, mas eu sabia, por experiência própria, o quanto
podemos ser irracionais num assomo repentino de cólera,
e como nos arrependemos depois que recobramos a
calma. Imaginei-me em seu lugar, diante de minha
própria filha morta, sabendo que fora eu mesmo que a
matara, tentando acreditar que apenas estava sonhando e
que logo acordaria aliviado. Mas para a infelicidade de
Nadia Vukmir, aquilo não era um sonho, e não havia
como voltar no tempo e reparar o erro. Que cruel
arrependimento ela sentira!
Por outro lado, senti por Nadia Vukmir,
simultaneamente, um assomo de repulsa. Percebi que
todo o seu sofrimento era merecido. Ela matou a própria
filha! — e, apesar de ter se deixado levar pelo impulso de
uma raiva irracional, o ato de lançar na direção da filha
um objeto de bronze, que obviamente a feriria, era de
uma crueldade inaceitável.
Não havia dúvida de que ir à polícia era o certo a
fazer. Denunciar a madame acarretaria, todavia, em
prejudicar todas as suas criadas, inclusive Helena, pois
haviam sido cúmplices do crime e feito a ocultação do
cadáver. Eu não seria capaz prejudicar Helena porque a
amava. Não me perdoaria nunca se ela sofresse por minha
causa. Foi por isso que decidi que não iria à polícia. Por
Helena, somente por Helena.
Todavia, não era tanto a situação de minha patroa
que me incomodava, mas a minha própria condição
psicológica. No período de pouco mais de um dia, eu
A MENINA NO QUARTO 241
migrara da descrença à superstição, e da superstição à
descrença. Mas agora, não sabia se acreditava ou
duvidava, não sabia em que pensar. Se Júlia e Sophia
eram a mesma, então o fantasma de Júlia havia me
enganado ardilosamente, brincando com minha mente e
me fazendo de idiota? Aparentemente, sim. Quem fazia
isso não podia ser aquela garota doce da fotografia sobre
a mesa de cabeceira, mas outra Júlia, a que ela se tornou
após ser morta pela própria mãe. Uma Júlia atormentada,
uma garota morta que ainda desconhecia seu verdadeiro
estado.
Saí do quarto e deixei a Sra. Milovan sentada na
cama. Ela não me impediu de sair, mas ficou me
acompanhando com seus olhos avermelhados.
Enquanto descia a escada, perdido em meus
devaneios, olhando para os degraus sem vê-los, fui
tomado por uma resolução. Juntaria meus pertences, faria
minha mala e iria embora daquela casa. Antes, porém,
havia algo que eu precisava fazer.

242 DAVI VALE


32.

Desci as escadas lentamente. Havia dois possíveis


caminhos entre o vestíbulo e meu quarto: pela biblioteca,
ou pela sala de estar. Optei ir pelo segundo caminho.
Quando passava em frente à porta que dá para o porão,
notei algo que chamou minha atenção: no umbral direito
havia quatro ranhuras. Observei-as de perto e percebi que
eram marcas de unhas. Eu não as tinha visto antes, e
suspeitei que fossem recentes.
As marcas poderiam sugerir que alguém tentara se
segurar ali enquanto era puxado para dentro do porão.
Essa suposição me deixou intrigado. Teriam aquelas
marcas me passado despercebidas durante a última
semana? Se eu tinha uma qualidade, era de bom
observador: podia identificar com facilidade qualquer
detalhe novo em qualquer coisa — o penteado de uma
mulher, a posição de um móvel, ou quatro marcas de
unhas em uma porta. Se as marcas estavam ali antes,
achei improvável que não as tivesse percebido. Mas meu
senso de observação estava sujeito a falhar,
evidentemente — e eu logo presumi que era esse o caso,
pois minha mente estivera muito ocupada nos últimos
dias.
Fui ao meu quarto e vesti minhas botas, depois me
dirigi ao depósito de ferramentas e apanhei uma pá. Saí
caminhando a passos largos em direção ao bosque e nem
me importei em saber se era observado. Meu plano era

A MENINA NO QUARTO 243


encontrar, a qualquer custo, o local onde o cadáver de
Júlia estaria enterrado.
Eu sabia, com base na conversa das empregadas,
que o corpo estava enterrado na propriedade. Sabia
também que uma pedra demarcava o local. No entanto,
considerando que havia milhares de pedras no bosque,
dificilmente eu poderia identificar qual delas era a
correta.
Como poderia descobrir o túmulo da menina sem a
ajuda de um mapa? Talvez pudesse, por meio de dedução,
estabelecer algumas características para o túmulo. Devia
se tratar de uma clareira onde fosse possível cavar o
buraco do tamanho de um corpo, e na qual houvesse uma
pedra que aparentasse ter sido colocada ali por alguém. A
pedra, por sua vez, seria grande o suficiente para
demarcar bem o local, mas não tão grande ao ponto de
que uma mulher não a conseguisse carregar. E, ademais,
deveria haver uma única pedra em destaque nessa
clareira, já que tratava-se de uma demarcação.
Considerando essas características, era muito provável
que eu encontrasse o local se o procurasse com paciência.
Estava uma manhã cinzenta, escura. O sol nem
dava sinais de sua localização. Naquele instante não havia
vento algum. O ar parecia completamente parado.
Nenhum pássaro cantava. Não me lembro de ter
observado uma manhã mais sombria.
Caminhei até o bosque com a pá no ombro.
Percorri todas as alamedas até o riacho, mas não
encontrei perto delas qualquer lugar que se encaixasse às

244 DAVI VALE


características que eu imaginara para o túmulo de Júlia. O
bosque não era assim tão grande, mas a densidade da
vegetação dificultava bastante. Enquanto fazia minha
busca, uma ventania começou a agitar as árvores e o céu
tornou-se mais escuro. Uma chuva estava por vir, mas eu
não me importei. Continuei minha busca. Não obtendo
resultados positivos nas alamedas, comecei a caminhar
pelas trilhas mais discretas que se formavam no meio da
vegetação, a maioria das quais acabava em lugar-nenhum,
obstruída por plantas densas e ganhos pontiagudos que
impediam a passagem. Voltava então pelo mesmo
caminho e partia para a próxima. Repeti isso várias vezes,
por talvez duas horas, até que uma dessas trilhas me
levou a um lugar interessante.
A trilha findava-se num pequeno espaço de terra
sem vegetação. Era uma área com não mais de dois
metros de diâmetro, cercada de árvores em todos os
lados, de maneira que o único acesso possível era a trilha
por onde eu tinha entrado. Havia uma pedra negra perto
da entrada, um pouco maior que a cabeça de um ser
humano, de formato oval e coberta de musgo. Com algum
esforço a pedra poderia ser levantada por uma mulher.
Levantei-a do chão para medir seu peso, e nesse instante
uma lacraia cor de fogo emergiu de sob ela, correu entre
minhas pernas e sumiu na vegetação. Com o susto larguei
a pedra, que caiu no chão com um baque surdo. Não pude
evitar imaginar que aquele som lembrava o impacto de
um corpo sem vida.

A MENINA NO QUARTO 245


Olhei para o alto. Não era possível ver o céu
porque as árvores o tampavam. Senti gotas de água
caírem em minha face. Começava a chover. Peguei a pá e
comecei a revirar a terra perto da pedra. Inicialmente, não
encontrei coisa alguma. Se tivesse um corpo ali,
certamente estava enterrado a mais de dois palmos da
superfície. Era preciso cavar mais fundo. As gotas
geladas de chuva foram engrossando, e de repente
despencaram com veemência sobre minhas costas. Um
trovão estupendo veio logo após o clarão de um
relâmpago. Eu não estava, evidentemente, em bom lugar
para uma tempestade — porém, não desistiria. Continuei
cavando a terra, e cada vez que um buraco se abria a água
o enchia. Logo, estava formada uma poça marrom de
água lamacenta.
O vento começou a assoprar forte e as árvores se
envergaram acima de minha cabeça. Minhas roupas
grudavam em meu corpo e pareciam agora ter o dobro do
peso. Ouvi em algum lugar o estalo de um galho se
partindo. Continuei cavando, parando de vez em quando
para recobrar o fôlego, e por vezes precisando limpar os
olhos que eram atingidos pela água da chuva. Numa
dessas pausas, olhei em volta e pensei ter visto alguém.
Entretanto, ao observar melhor percebi que tinha sido
apenas uma ilusão. Estava tão escuro que parecia estar
anoitecendo, embora ainda fosse manhã. Trovejou mais
uma vez, e eu me encolhi com o barulho estrondoso.
Continuei a cavar. De repente, quando puxei uma
porção de barro com a pá, emergiu do meio da água um

246 DAVI VALE


objeto branco que depois voltou a afundar. Parei de cavar
imediatamente. Voltei a revirar a água com a pá e percebi
que havia alguma coisa solta no meio da lama. Agachei
ao lado do buraco e mergulhei o braço, fazendo-o
submergir até o cotovelo, então apalpei o objeto, segurei-
o e o puxei para fora. Quando minha mão saiu da água,
fiquei horrorizado com o que trouxe consigo: um osso. Eu
conhecia o suficiente da anatomia humana para saber que
aquele osso era humano, provavelmente do braço ou
antebraço. Larguei-o rapidamente e, como se tivesse
tocado em um bicho peçonhento, recolhi a mão, deixando
o osso cair na terra ao meu lado. Fiquei olhando para ele
enquanto era banhado pela chuva intensa. A julgar pelo
tamanho, não poderia pertencer a um adulto, decerto era o
osso de uma criança. Se havia ali parte de um braço
humano, com certeza existia um corpo inteiro — mas eu
não estava disposto a conferir. Um osso estava de bom
tamanho para confirmar que eu havia encontrado o
cadáver de Júlia, última evidência que precisava.

A MENINA NO QUARTO 247


33.

Exausto, larguei a pá no chão e voltei para a casa. Na


janela do quarto de Júlia eu vi uma silhueta, mas daquela
vez não era o fantasma da menina. Era a Sra. Milovan.
Ela devia ter discernido o motivo de eu ter saído naquela
chuva, embora certamente não supusesse que eu lograra
encontrar o que procurava. De todo modo, não fazia mais
diferença.
Quando entrei pelo vestíbulo, encontrei Nadia
Vukmir de pé ao lado da porta. Ela usava o pulôver preto
que lhe caía tão bem, estava com os braços cruzados na
frente do busto e tinha um olhar de reprovação. Parecia
estar a minha espera, pois assim que entrei ela começou a
falar.
— O que deu em você, Victor? — disse,
repreendendo-me como se fosse minha mãe. — Sair
numa tempestade dessas é loucura! O que fazia lá fora?
Queria ser atingido por um raio?
— Precisamos… — eu comecei a dizer, mas um
espirro me interrompeu. — Precisamos fazer um velório
descente para sua filha.
Nadia arregalou os olhos.
— Do que… o que… como assim?
— Enquanto não fizermos uma homenagem
fúnebre adequada, o espírito de Júlia não estará em paz.

248 DAVI VALE


Ela cambaleou para trás até esbarrar no corrimão
da escada. Todo seu rosto se contorceu numa espécie de
assombro terrível.
— Não! — disse ela. — Minha filha não está…
não está… — E de repente me olhou de um jeito
diferente. — Você veio roubá-la de mim!
Nadia Vukmir começou a caminhar em minha
direção, olhos injetados, feição insana de ódio. Recuei um
passo, e ela continuou a se aproximar. Seu olhar me
deixou assustado e, pela primeira vez, tive medo daquela
mulher.
— Eles te mandaram aqui, não foi? — ela
perguntou num tom de voz áspero.
Estava praticamente gritando, falava de uma
maneira que me assustava. Recordei-me das palavras no
diário de Júlia, de como às vezes ela sentia medo da
própria mãe.
— Eles quem? — indaguei. — Que conversa é
essa?
— Não se faça de desentendido — deu uma risada
medonha, de um sarcasmo sombrio. — Vamos, diga a
verdade. Eles te mandaram aqui. Eu já sei, não adianta
continuar com essa farsa.
— Acalme-se — falei, notando que ela não parava
de vir em minha direção. — Não sei do que a madame
está falando.
— Pare com isso! — disse alguém no alto da
escada.

A MENINA NO QUARTO 249


Olhei e vi a Sra. Milovan, que descia rapidamente
os degraus. A madame assustou com a chegada da
governanta, mas ao reconhecê-la lançou em sua direção
um olhar desesperado, tal como um filho que encontra a
mãe após muito tempo perdido entre estranhos.
— Ele foi mandado aqui para roubar minha filha!
— disse, e seus olhos se inundaram de lágrimas. — Por
favor, não deixe que a levem outra vez!
— Está tudo bem, querida — respondeu a Sra.
Milovan, calmamente, impondo uma autoridade sobre a
madame que me deixou surpreso. — Ele não vai tocar
nela. — Olhou-me e disse: — Sr. Silva, pegue suas coisas
e vá embora daqui.
— O que está acontecendo? — indaguei, perplexo.
— Que história é essa de “levar ela embora”? Por acaso
estão tentando me fazer de idiota? Eu já sei a verdade,
encontrei os restos mortais no bosque!
Nesse instante, a madame soltou um grito horrível
que pareceu ecoar por toda a casa.
— Pelo amor de Deus! — insistiu a governanta. —
Vá embora!
— Não! — me impus com veemência. — Não até
entender o que está acontecendo.
— Você nunca vai tocar nela! Nunca! — berrou
Nadia Vukmir, em seguida se afastou até um canto da
parede, agachou e abraçou as próprias pernas. Encostou o
queixo aos joelhos e ficou repetindo em murmúrios a
palavra “nunca”.

250 DAVI VALE


Observei-a enquanto tentava entender o que estava
havendo. Aparentemente, ela estava convencida de que
eu intentava exumar o cadáver de Júlia para roubá-lo. A
madame agora sussurrava coisas delirantes, dizia palavras
desconexas, enquanto balançava o corpo para frente e
para trás, olhos vidrados, veias salientes nas têmporas.
Escutei-a dizer “mamãe está aqui, querida”, e também
“foi só um sonho ruim”. Mas no geral, as palavras não
faziam muito sentido.
— Veja o que fez com ela! — disse a Sra. Milovan,
abaixando o tom de voz para que a madame não a
escutasse. — Não piore ainda mais as coisas. Vá embora
e nos deixe em paz.
— Ao menos me explique por que ela ficou assim.
— O senhor nunca devia ter lhe dito que sua filha
está morta — disse a governanta, abaixando o tom de voz
de modo que só eu a ouvisse. — Não podia tê-la feito se
deparar com a realidade de forma tão inesperada.
— Ela não reconhece que matou sua filha?
— Ela nem sequer reconhece que Júlia está morta
— sussurrou a governanta, e olhou de relance para Nadia
Vukmir. — A tragédia foi um choque muito grande para
ela, e esta é a forma como sua mente lida com esse
choque. Ela simplesmente duvida da verdade. Age como
se tudo não passasse de um sonho. Está convencida de
que Júlia está viva. É um mecanismo de defesa da sua
mente, a única forma que ela tem para se manter sã.
Quando a forçamos a encarar a verdade, tal como o
senhor fez agora, ela entra em crise. A madame acredita
A MENINA NO QUARTO 251
profundamente que sua filha ainda está viva dentro
daquele quarto, e o melhor que fazemos é deixa-la em paz
com sua ilusão. O senhor compreende?
— Então é por isso que a senhora lava as roupas de
Júlia como se ela ainda as usasse, isto é, age como se ela
de fato estivesse viva a fim de alimentar as crenças
delirantes da madame.
A governanta assentiu.
— A madame precisa de um tratamento
psiquiátrico — afirmei, mas minha sugestão pareceu
enfurecer a Sra. Milovan.
— Eu nunca permitiria que ela fosse enviada a um
manicômio. O senhor faz ideia dos tipos horríveis de
tortura a que os pacientes desses sanatórios são
submetidos? Na maioria dos casos, os pacientes não só
não melhoram, mas até pioram. Não, definitivamente isso
está fora de cogitação.
— Mas é preciso fazer alguma coisa.
— Não há nada a fazer.
— Veja o estado dela! — falei, apontando para a
madame.
— Apenas precisamos esperar, e ela vai se
recuperar gradualmente. No entanto, enquanto o senhor
não for embora ela não terá progressos. Ela não confia
mais no senhor, e se sente ameaçada com sua presença.
Por favor, faça o que estou dizendo. Vá até seu quarto,
tire essas roupas molhadas e tome um banho quente.
Baterei na porta dentro de meia hora para entregar-lhe os

252 DAVI VALE


honorários proporcionais ao seu trabalhado. Eu insisto: se
não quer que ela piore, faça o que estou lhe dizendo.
Dei uma última olhada para a madame. Ela
continuava agachada no canto da parede, os olhos
vidrados em minha direção, sussurrando coisas delirantes.
Ocorreu-me que ela escutava vozes, pois parecia falar
sozinha. Conforme fui me afastando, ela me acompanhou
com aquele olhar alucinado até que eu sumisse de vista.
Entrei no quarto, tirei as roupas e me enrolei num
roupão. Fui ao banheiro e me enfiei debaixo da água
quente. Enquanto me banhava, refletia sobre a estranheza
dos fatos. Recordava-me do fantasma de Júlia, daquele
osso humano no bosque, dos choros noturnos e do olhar
alucinado de Nadia Vukmir. Mamãe está aqui, querida.
Foi só um sonho ruim. As palavras ecoavam em minha
memória como se reverberassem nas paredes do crânio. É
espantoso, pensei comigo, o que a consciência pode fazer
com uma pessoa que se sente culpada. Concluí, afinal,
que a governanta estava certa em sua exigência. Minha
presença na casa só pioraria as coisas, e eu precisava ir
embora para o bem de todos, inclusive o meu próprio.
Não desejava voltar a ver ou ouvir o fantasma daquela
menina, muito menos presenciar os surtos de insanidade
de Nadia Vukmir. Não restava mais nada a fazer naquela
casa.
Limpei o espelho embaçado com as mãos, de modo
a poder enxergar meu reflexo. Minha aparência estava
péssima. Olhei para meus próprios olhos e os vi

A MENINA NO QUARTO 253


avermelhados. Tive vontade de esmurrar o espelho, como
se desejasse, na verdade, esmurrar meu próprio reflexo.
Após vestir minhas roupas secas, ouvi baterem à
porta do quarto. Era a Sra. Milovan, que trazia na mão um
envelope.
— Seus honorários — ela anunciou, entregando-me
o envelope. — Aí tem um valor maior do que sua
remuneração, mas considere isso como um
agradecimento pela sua discrição. Não queremos que essa
história se espalhe, compreende?
— Perfeitamente, Sra. Milovan. Mas não é preciso
comprar minha discrição com dinheiro.
— Aceite, por favor. É também para compensar
tudo o que o senhor passou.
Sem conferir o dinheiro, guardei o envelope no
bolso do casaco.
— Deixe-me ao menos me despedir de alguém —
disse eu, enquanto terminava de arrumar minha mala.
A governanta hesitou, mas acabou por ceder ao
meu desejo.

254 DAVI VALE


34.

Encontrei Helena na sala, sentada em uma das poltronas,


as pernas cruzadas e os braços no colo. Usava um vestido
creme e tinha os cabelos presos para trás. Quando me viu
chegar, acompanhou-me com um semblante de receio,
como se, após ser flagrada em plena infração, esperasse
para descobrir qual seria seu castigo. Olhava-me como se
tentasse prever minhas palavras e as respostas que me
daria. Sentei-me na poltrona perpendicular à dela.
— Estou indo embora — anunciei.
— Você fez uma escolha sensata.
Ela falava com tristeza contida, como se não
quisesse demonstrá-la.
— Sei agora a razão de você não ter me contado.
Peço desculpas por ter te pressionado, sei que deve ter
sido difícil passar pelo que você passou.
— Está tudo bem, Victor. Não tinha como você
saber.
Fiquei algum tempo em silêncio, olhando para um
enfeite sobre a mesinha de centro.
— Helena, preciso te dizer uma coisa — falei,
inclinando-me em sua direção.
Ela me olhou nos olhos, depois nos lábios. Peguei
em suas mãos com cuidado, como se temesse machucá-
las, e falei:
— Venha comigo, caminhemos em direção a um
futuro só nosso. Vamos construir juntos os nossos sonhos
A MENINA NO QUARTO 255
mais perfeitos. Há um mundo maravilhoso à nossa espera
além destes muros. Case-se comigo para que juntos
possamos desbravá-lo.
Seus olhos estavam brilhantes, cheios de
expectativa, mas em seguida ela desviou-os de mim.
Mordeu o lábio inferior. Parecia prestes a chorar.
— Você virá comigo? — insisti, deixando
transparecer minha insegurança.
— Não — respondeu ela, mas sem olhar para mim.
Suas palavras me cortaram como lâmina.
— Por quê?
— Porque eu não quero!
— Eu sei que isso não é verdade — afirmei. —
Está mentindo.
— Não estou mentindo.
— Então por que, apesar de se esforçar para dizer
que não quer, seus olhos se desviam dos meus como
prova de sua insinceridade? Seus movimentos a traem.
Ela mergulhou num instante de introspecção.
Pareceu render-se.
— Por que você é assim? — perguntou-me, e
apertou minha mão entre seus dedos macios. — Por que é
tão… diferente?
— Diferente em que sentido?
— Antes de te conhecer, fui ensinada a ver os
homens de uma maneira hostil. A madame sempre disse
que o homem é um ser naturalmente egoísta. Contou-nos
tantas histórias horríveis sobre a imposição masculina de
poder, histórias de mulheres acusadas de bruxaria por

256 DAVI VALE


reivindicarem sua liberdade intelectual, uma liberdade
que os homens querem exclusivamente para eles porque
temem perder o poder que mantêm sobre nós. Passei a
detestar os homens. Mas quanto a você, Victor, não
consigo detestá-lo, por mais que eu tente não consigo, e
isso torna as coisas tão mais difíceis para mim!
— Por que difíceis?
— Porque não vou mais conseguir te esquecer.
— Pois então, venha comigo. Eu te amo! Se você
me escapar ficarei sem chão, a vida perderá o sentido.
— Eu não mereço! — respondeu ela, recolhendo
sua mão dentre as minhas para tampar o rosto. Os
movimentos de seus ombros demonstraram que ela estava
chorando. Um choro convulsivo, descontrolado.
Tentei consolá-la, mas ela esquivou o corpo de meu
toque.
— Vá embora, Victor. Será melhor assim. Sinto
muito.
— Tem certeza disso? Tem certeza de que não quer
vir comigo? Diga que sim, e nunca mais voltará a me ver.
Ela dirigiu-me um olhar melancólico, as
sobrancelhas caídas, os lábios trêmulos, e respondeu:
— Sim.
A resposta me atingiu na forma de uma vertigem,
como se milhares de sons distintos soassem
simultaneamente em meus ouvidos, zunindo,
reverberando nas profundezas da minha alma. Todo meu
mundo pareceu desabar. Meu coração se apertou no peito

A MENINA NO QUARTO 257


e derreteu em angústia. Senti um fio de lágrima escapar
do meu olho esquerdo e escorrer pelo rosto até o queixo.
— Neste caso, adeus — falei, grave.
Ela não respondeu. Desviou o olhar para o chão. As
lágrimas voltaram a molhar seu rosto, pingando no
vestido.
Afastei-me muito devagar, olhando uma ou duas
vezes por sobre o ombro para ver se Helena mudava de
ideia, desejando que ela me impedisse, nem que fosse
para me dar um abraço antes da minha partida, mas isso
não aconteceu. Nem sequer me olhou. A tristeza
dominou-me de vez quando a perdi de vista e percebi que
aquela era a última vez que a veria.
Vesti o chapéu, apanhei a mala. A Sra. Milovan
estava de pé ao lado da porta e ficou me olhando em
silêncio enquanto eu saía, fitando-me com seus olhos cor
de hortênsia, frios e sem brilho. Passei através da porta.
Senti que me desprendia de todos os laços que me uniam
à casa dos Vukmir, que me libertava.
Havia parado de chover, mas o céu continuava
escuro. Nenhum pássaro cantava nas árvores, todos eles
estavam mergulhados num silêncio lutuoso. Senti que
observavam meu sofrimento, milhares de olhinhos negros
vidrados em mim, como se estivessem de luto por minha
causa, como se eu estivesse morto. Parte de mim talvez
estivesse morrendo naquele instante.
Desci a escada e voltei a olhar para trás. Tinha
alguma coisa muito estranha na expressão da governanta,
uma preocupação obscura. Na certa, temia que eu não

258 DAVI VALE


cumprisse minha promessa, isto é, que fosse à polícia e
desse com a língua nos dentes. Era presumível que
pensasse isso. Eu podia apostar que, após minha saída da
propriedade, ela correria até o bosque e desenterraria o
corpo de Júlia para escondê-lo em outro lugar, para o
caso de a polícia aparecer. Era a medida mais lógica a se
tomar.
Caminhei pela calçada úmida enquanto a casa da
família Vukmir ia diminuindo atrás de mim. Olhei-a por
sobre os ombros, despedindo-me em silêncio. A casa, que
antes era linda e ostentosa, para mim se tornara um lugar
horrível, sombrio, deturpado pela tragédia. Todo brilho da
casa lhe escapara, despindo-a de seu manto de beleza e
revelando, em sua nudez, a face do horror e da tristeza.
Era ainda um lugar belo, mas agora sua beleza mais se
assemelhava à beleza de um luxuoso funeral.
Não ir à polícia teria sido a melhor escolha? Ainda
havia tempo para mudar de ideia. Pensei várias vezes em
conversar com o delegado, mas, me lembrando do que
tinha prometido à Sra. Milovan, mantive-me a caminho
da estação, firme na minha promessa. Nunca fui homem
de promessas vazias. Ademais, reconheci que a polícia
também puniria as empregadas pela cumplicidade no
assassinato — coisa que eu não desejava. A consciência
daquelas mulheres já estava sendo castigo suficiente pelo
crime cometido. O que eu devia fazer era esquecer aquela
história e seguir com minha vida.
Esquecer com certeza eu não conseguiria. Mas não
era apenas por causa do assassinato da criança — pois,
A MENINA NO QUARTO 259
com muito pesar eu sentia que havia perdido o amor da
minha vida. Ainda estava viva em minha memória
aqueles grandes olhos negros, nos quais eu mergulhava
hipnotizado cada vez que os olhava — mas já sentia que a
imagem começava a escapar de minha memória,
iniciando seu triste processo de dissipação. O que eu
poderia fazer se ela não quisera vir comigo? O caso é que
eu não conseguia compreender sua atitude. Helena se
contradizia, parecia confusa, perdida nos próprios
sentimentos. Meu pai costumava dizer que as mulheres
são complexas porque precisam despertar o interesse dos
homens, pois é da natureza masculina se apegar ao que é
difícil, misterioso e intrigante, ao que lhe represente, em
suma, um desafio ao seu amor próprio. Me perguntei se
toda essa contradição era puro instinto feminino de
complicar as coisas, como diria meu pai, ou se ela havia
mentido sobre algo.
Foi então que me ocorreu um pensamento
extraordinário. Parei de andar imediatamente. Era como
se minha mente fosse atingida por uma luz divina. De
repente, tudo ficou claro como as águas de um lago
sereno numa tarde de verão. Voltei a caminhar, mas já
não estava mais indo em rumo à estação. Meu destino
agora era outro.

260 DAVI VALE


35.

A porta do vestíbulo não demorou a ser aberta, e Helena


surgiu na fresta com seu delicado rosto rosado. Ao
constatar, porém, que era eu quem batia a aldrava,
arregalou os olhos e ficou lívida. Hesitou e segurou a
porta. Parecia temer que eu entrasse à força.
Dava para perceber que tinha chorado. Os olhos
injetados estavam intumescidos, levemente irritados, e a
pele do rosto parecia sensível, sobretudo perto dos olhos,
onde se formavam olheiras. Já não havia em seu
semblante a mesma receptividade e a mesma afeição por
mim — não, aquilo havia se esvaído no instante em que
saí da casa. Agora era apenas um constrangimento
receoso. Talvez eu devesse ficar aborrecido ao perceber
que, não obstante tudo o que passáramos juntos, Helena
nem sequer me direcionara um sorriso espontâneo — mas
eu não estava surpreso. Na verdade, em vista das coisas
que tinha acabado de descobrir, essa era exatamente a
reação prevista.
— Pensei que… — ela começou a dizer, mas parou
de falar. — A Sra. Milovan não vai gostar de te ver aqui.
— Eu sei disso, Helena. Mas há uma última coisa
que desejo dizer a ela, e prometo que depois disso vocês
nunca mais voltarão a me ver.
— Vou chamá-la. — Helena fez menção de fechar
a porta, mas eu obstruí com o pé.

A MENINA NO QUARTO 261


— Está voltando a chover e eu prefiro esperar na
sala. Não é nem um pouco gentil deixar uma visita
esperando no lado de fora.
— Mas ela não vai gostar… — começou,
preocupada.
— Creio que você não tenha muita escolha,
Helena. Pode dizer que eu te forcei a me deixar entrar,
não importa.
A porta foi liberada e eu entrei no vestíbulo.
Helena correu escada acima, certamente para avisar a
governanta sobre minha chegada. Caminhei até a sala e
sentei-me numa poltrona perto da lareira. A casa estava
escura como se o sol houvesse se posto, embora fosse
apenas o meio da tarde. No lado de fora, a chuva voltava
a cair em forma de garoa. Abri minha maleta, tirei dela
alguns papéis e os depositei sobre a mesa de centro. Em
seguida, arrumei os cabelos com os dedos e recostei-me
na poltrona, tentando parecer calmo.
Logo, os passos curtos e secos da Sra. Milovan
surgiram no cômodo. Veio andando rápido, passos
pesados, impaciente. Sua irritação já ficava explícita em
seu jeito de andar.
— Pensei que tivesse sido clara quando disse para
ir embora — falou ela, numa visagem de cólera e
perplexidade.
— Sim, foi clara como o sol de verão. No entanto,
há uma última coisa que preciso dizer antes de pegar o
trem.

262 DAVI VALE


— Pois então diga logo — falou, cruzando os
braços e mantendo-se de pé.
— Por favor, preciso que chame aqui as três
empregadas também. Elas precisam escutar o que tenho a
dizer.
— Está brincando comigo, Sr. Silva? — A velha
corou de indignação.
— Não estou brincando, senhora, e não vou
embora daqui enquanto não fizer o que estou pedindo.
Veja bem, faça o que lhe peço e assim irei embora mais
rápido. Qualquer resistência só adiará minha saída.
A Sra. Milovan refletiu. Descruzou os braços,
passou a mão no rosto. Por fim, após um suspiro
profundo e impaciente, disse:
— O senhor promete que irá embora se eu chamá-
las?
— Sim, eu prometo.
Cruzei as pernas, recostei-me na poltrona e esperei.
A governanta mandou que Helena chamasse as outras
duas moças para que se sentassem conosco na sala de
estar. As três vieram com a perplexidade estampada na
face, os cenhos franzidos e os olhares curiosos. Vê-las
assim me deu uma fisgada de prazer. Isso não é nada,
pensei comigo, pois o que eu estava prestes a dizer faria
suas feições ficarem contorcidas pelo espanto.
As três se sentaram juntas no sofá de três lugares
defronte de mim, e a Sra. Milovan ficou na poltrona
perpendicular. Eu estava de costas para a lareira, de modo
a sentir o calor agradável do fogo na nuca. Elas me
A MENINA NO QUARTO 263
olharam por algum tempo e ficaram esperando que eu
dissesse a primeira palavra, apreensivas, quase
amedrontadas. Então, após o opressivo silêncio que durou
quase meio minuto, a Sra. Milovan observou os papéis
que eu deixara sobre a mesinha e arregalou os olhos.
Havia uma página de jornal com a notícia do
desaparecimento de uma criança, mas não era de Júlia. Eu
havia deixado a notícia à vista de propósito. Bastou-me
ver o olhar espantado que a governanta direcionou à
página, e tive certeza de que ela sabia o significado
daquilo. Era a confirmação que eu precisava. Só então
falei:
— Eu realmente planejava ir embora, mas minha
mente resolveu juntar os fatos no último instante. Antes
tarde do que nunca, não é o que dizem?
A governanta solevou as sobrancelhas com um
sarcasmo forçado, evitando demonstrar sua preocupação.
Continuei falando, dirigindo-me a ela:
— Acreditei, a princípio, que a senhora tinha sido
sincera comigo ao me contar sobre o triste destino de
Júlia, mas a verdade é que a senhora foi parcialmente
sincera. O que a senhora fez foi modificar a história,
omitindo detalhes cruciais, de maneira a me convencer de
que não precisava ir à polícia. Confesso que cheguei a ser
convencido, mas alguma coisa havia de errado, e só fui
perceber isso depois que já estava a caminho da estação.
A Sra. Milovan se mexeu desconfortavelmente na
poltrona. Abriu a boca como se desejasse falar alguma
coisa, mas se manteve quieta.

264 DAVI VALE


— Vou começar pelo choro que eu escutava quase
todas as noites em meu quarto. Creio que não seja preciso
entrar em detalhes, pois Helena já deve ter contado tudo a
vocês. — Direcionei meu olhar à camareira, e esta
desviou os olhos de mim, constrangida. — Lembro-me
com perfeição da primeira vez que ouvi aquele choro
ecoando misteriosamente em meu quarto. Lembro do
sobressalto que tive, da forma como saltei da cama e
(vejam só) como o choro foi interrompido imediatamente.
Não percebi isso antes, mas agora sei que o choro
“fantasmagórico” em meu quaro se interrompia sempre
que eu fazia algum barulho. O arrastar da cama, um
esbarrão desastrado ou qualquer outro barulho
relativamente alto o fazia desaparecer. Outra noite, vejam
bem, quando não fiz barulho algum, o choro continuou
mesmo após eu ter acendido a luz. Talvez vocês estejam
se perguntando: Que importância isso tem, afinal?
Garanto que logo entenderão.
“Quando lhe contei, Helena, que podia escutar o
choro de um fantasma, você ficou muito assombrada com
a história. Por um instante acreditou que eu estivesse de
fato lidando com um fantasma. Todavia, logo que
expliquei de onde o choro parecia vir, referindo-me ao
canto onde fica a cômoda, sua reação a essa informação
me deixou intrigado. Vou explicar: Helena olhou para a
grade que dá para o sistema de calefação, na parede logo
acima da cômoda, e ficou pensativa, como se tivesse
descoberto alguma coisa. Isso não me prendeu a atenção

A MENINA NO QUARTO 265


na hora, mas depois foi importantíssimo para a elucidação
de todo o mistério.
“Pois bem: naquela mesma noite, quando escutei o
choro novamente, resolvi tentar falar com o suposto
fantasma, e qual não foi a minha surpresa quando o
espectro me respondeu! Mais do que isso, ele me revelou
que não era um fantasma de Júlia, que sequer estava
morto, mas que se chamava Sophia. Fiquei aliviado em
saber que não estava ficando louco. A existência dessa
criança na casa, embora fosse algo quase inimaginável,
explicava muitas coisas. Aparentemente, eu estava perto
de saber toda a verdade. Mas essa ilusão durou pouco.
Para a minha decepção, na manhã seguinte, quando entrei
naquele quarto para tentar salvar Sophia, descobri que na
verdade o quarto estava vazio.
“Confesso que quase me convenci de estar louco. É
incrível como podemos nos autodiagnosticar de loucura
com tanta facilidade quando nos faltam explicações
racionais para os fatos que presenciamos. Porém, a Sra.
Milovan me convenceu (e devo admitir que foi muito
audaz de sua parte) de que o fantasma de Júlia tinha me
enganado ao usar seu segundo nome, como se brincasse e
se divertisse com a minha ignorância. Afinal, não haveria
no mundo dos mortos alguns que se ocupariam
unicamente em atormentar os vivos? Sim, isso me foi
convincente. É verdade que eu ainda tinha dúvidas de que
Júlia estivesse morta, mas quando encontrei aquele corpo
enterrado no bosque, essa dúvida se esvaiu
imediatamente. Se Júlia estava enterrada no bosque, que

266 DAVI VALE


outra explicação eu encontraria para os choros noturnos e
as aparições na janela, se não fosse a de que se tratava de
um fantasma? Então era isso: Júlia estava morta e seu
espírito havia me atormentado por todo esse tempo.”
Parei de falar por um instante, deixando que um
silêncio opressivo tomasse o ambiente. Pude escutar as
respirações pesadas de cada uma das mulheres que me
assistiam. Helena, Caroline e Raquel estavam curiosas —
mais do que isso, estavam assustadas. Talvez esperando
para ver até onde eu levaria aquela história. Eu próprio,
apesar da confiança que tentava demonstrar, sentia às
vezes uma insegurança quanto às minhas conclusões,
temia ter me enganado e estar fazendo papel de tolo —
mas tentava não deixar essa insegurança crescer dentro de
mim. A Sra. Milovan se mantinha indiferente, protegida
em seu semblante de austeridade, portanto seu rosto não
me dava muitas pistas sobre o que se passava em sua
cabeça.
— Então vamos ao que interessa — prossegui,
tentando me manter coerente. — O que me fez voltar
aqui? Eis a resposta. Quando eu ia caminhando rumo à
estação, já decidido a não ir à polícia, uma hipótese
interessante me passou pela mente. Recordei-me do
instante em que Helena foi ao meu quarto, quando lhe
falei que podia escutar o fantasma de Júlia, e de seu olhar
para a grade do sistema de calefação. Nesse momento,
percebi que ela já sabia que era através da tubulação que
eu podia escutar o choro antes mesmo de eu mesmo
descobrir. Lembrei-me, além disso, de como o choro se
A MENINA NO QUARTO 267
interrompia todas as vezes que eu fazia algum barulho, o
que significava que o som do meu quarto podia ser
escutado no quarto de Júlia assim como o dela no meu.
Tudo parecia me conduzir à conclusão de que não fora
com um fantasma que eu conversara, mas com uma
criança de verdade. E essa criança que se chamava
Sophia.
“Simultaneamente, me recordei de que, quando
Mário Ferrante, o vendedor de jornais da banca perto da
estação, me revelou que Júlia estava desaparecida há dois
anos, acabou por me dizer que uma outra criança também
havia desaparecido no vilarejo naquele mesmo ano. Seria
apenas uma coincidência que duas crianças com a mesma
idade desaparecessem no intervalo de um ou dois meses,
considerando que nunca antes se tinha registrado
desaparecimentos de crianças no vilarejo de Rebouças? O
Sr. Ferrante me disse: Nunca estabeleceram qualquer
ligação entre os dois sumiços, mas nós sabemos que
coincidências não existem. E ele tinha razão. A princípio,
eu próprio não conseguia entender a dedução complexa
que se formava, quase que de forma espontânea, em
minha mente enquanto eu tentava estabelecer conexão
entre os fatos, por isso voltei àquela banca de jornais:
esperava encontrar lá alguma coisa que me ajudasse a
corroborar minhas suspeitas. Fui imensamente ajudado
por um hábito excêntrico que Mário Ferrante tem: o de
guardar exemplares de jornais antigos. E eis que
encontrei o que procurava.”

268 DAVI VALE


Apontei para a página de jornal sobre a mesa, na
qual havia uma reportagem intitulada Novo
desaparecimento de criança no Vilarejo de Rebouças.
Iniciava-se da seguinte maneira:

Mais um desaparecimento amedronta os moradores


do vilarejo de Rebouças, interior de São Paulo.
Sophia Ramalho, de 10 anos, desapareceu na tarde de
ontem enquanto brincava em um parque, e ninguém
sabe explicar o que aconteceu. Bastou um momento
de distração da mãe para que a criança fosse perdida
de vista. […]

Anexada a reportagem, via-se a imagem de uma criança


de cabelos castanho-escuros, olhos claros, pele muito
branca e bochechas gordinhas, esbanjando saúde e
vivacidade.
Ao lado da página de jornal, eu havia deixado uma
outra reportagem publicada anteriormente, na qual era
noticiado o desaparecimento da filha de Nadia Vukmir.
Nessa página, via-se a foto de Júlia, a qual eu
propositalmente deixara posicionada de modo que se
pudesse comparar as duas crianças das reportagens. Era
fácil perceber a semelhança física, especialmente no tom
claro dos olhos e no formato do sorriso espontâneo, entre
Sophia Ramalho e Júlia Sophia Vukmir Araújo.
Observei o arregalar de olhos da Sra. Milovan, que
só não se demonstrou mais espantada porque já tinha
reconhecido as reportagens sobre a mesa antes de eu
mencioná-las. Já a reação das outras empregadas foi
A MENINA NO QUARTO 269
desconcertante. Elas se entreolhavam assustadas e, por
fim, dirigiam à governanta um olhar suplicante de
preocupação. A Sra. Milovan, todavia, mantinha os olhos
fixos na foto de Sophia Ramalho.
— Aí está o ponto mais importante de todo o
mistério — prossegui, elevando acidentalmente a voz,
entusiasmado. — Vamos convir que, antes de 1940, a
madame já era uma mulher psicologicamente
desequilibrada. O diário de Júlia menciona o quanto ela
temia a própria mãe, pois esta frequentemente perdia o
controle de suas ações, tornava-se agressiva e explodia
numa ira irracional. Considerando isso, a trágica morte de
sua filha com certeza piorou sua situação psicológica.
“Esse declínio foi observado pelos próprios
vizinhos. Após declarar o desaparecimento de Júlia,
Mme. Vukmir era vista vagando pelos parques e
observando melancolicamente as mães a brincar com suas
filhas, como se almejasse estar no lugar delas. Talvez
todas as mães se sintam assim após tamanha perda e,
submetidas a esse desgosto, mergulhem na própria
escuridão interior e desapareçam nela, perdendo aí até
mesmo a sua identidade. No caso da madame, porém, era
diferente: ela estava sendo atormentada não só pelo luto,
mas também pela consciência de ter matado a própria
filha.
“Imaginem pois qual não foi a sua surpresa quando,
numa dessas tristes observações, viu uma criança muito
semelhante a sua falecida filha, e que assombro não a
dominou quando escutou a mãe da criança (ou talvez os

270 DAVI VALE


amiguinhos) a chamando de Sophia, mesmo nome que ela
própria costumava usar para chamar por Júlia quando
estava brava. Era o suficiente para que seu desejo de que
a morte de Júlia tivesse sido um sonho fosse tomado
como realidade em sua mente insana. Imagino que a
madame tenha se convencido instantaneamente de que
aquela era de fato a sua filha, chegando à delirante
conclusão de que a criança lhe fora roubada. Ela estaria
enganada o tempo todo, teria apenas sonhado que matara
a criança. Os psicólogos sabem como, por vezes, as
pessoas se convencem da irrealidade de determinados
eventos porque são incapazes de conviver com aquela
lembrança, protegendo-se assim da loucura. Da mesma
maneira, Mme. Vukmir se convenceu, aliviada, de que a
morte de Júlia havia sido um sonho, passando a acreditar
que lhe haviam implantado a lembrança de ter matado a
própria filha, que fora vítima de uma conspiração, cujo
propósito era surrupiar Júlia e entregá-la à uma outra
mulher que agora se passava por sua mãe. A propósito,
sua crença numa conspiração ficou evidente quando ela
surtou hoje na minha frente e afirmou que eu fora enviado
para roubar sua filha outra vez. Ao dizer outra vez, ela
demonstrou sua crença de que sua filha já havia sido
roubada antes.
“Segundo a reportagem, Sophia foi deixada a
brincar no parquinho enquanto, distraída, sua mãe
cuidava do filho mais novo. Quando foi procurá-la nos
brinquedos, a pobre mãe descobriu que a havia perdido.
Nenhuma testemunha, nenhum suspeito. De alguma
A MENINA NO QUARTO 271
forma, Mme. Vukmir conseguiu sequestrar Sophia sem
que ninguém testemunhasse, trazendo-a para esta casa e
trancando-a no quarto de sua falecida filha.
“Todas as noites, a madame ia ao quarto da menina
e, convencida de seus próprios delírios, chamava Sophia
Ramalho de filha, afirmava ser sua legítima mãe,
tentando convencê-la de suas loucuras. Horrorizada,
Sophia chorava de angústia até que o choro lhe fosse
roubado pelo sono. E era esse choro que eu escutava
através do sistema de calefação nas minhas noites mais
atormentadas.”
— Se o que diz é verdade, então por que, quando
entrou no quarto de Júlia, o senhor não encontrou Sophia?
— perguntou a Sra. Milovan em tom de desafio. — O
senhor tem uma grande imaginação, é um homem muito
criativo. Mas como podemos ver, tudo isso não passa de
especulação.
— Eu também me perguntei o porquê de não
encontrar Sophia no quarto — confessei, recostando-me
na poltrona. — Foi então que lembrei de uma coisa.
Helena havia descoberto, na noite de ontem, que eu podia
escutar o choro de uma criança através do sistema de
calefação; constatou, assim, que eu podia ouvir o choro
de Sophia. Ela sabia que, mais cedo ou mais tarde, eu
acabaria descobrindo que aquilo não era um fantasma.
Por isso, assim que saiu de meu quarto, Helena avisou a
senhora sobre o que estava acontecendo. Vocês
providenciaram, portanto, que Sophia fosse retirada do

272 DAVI VALE


quarto antes que eu a procurasse, e esconderam-na no
porão.
“Devem estar se perguntando como sei para onde a
levaram. Muito simples: encontrei ranhuras de unhas na
porta do porão, as quais me indicaram que Sophia foi
carregada para lá e, nesse processo, tentara se segurar na
porta e deixara ali sua marca. Vocês escolheram o porão
porque sabiam que eu não tinha motivos para descer lá, e
isso o tornava um bom esconderijo.”
— Ha, ha! — fez a Sra. Milovan, cheia de
sarcasmo. — É uma bela história, rapaz — disse, e
aplaudiu com quatro ou cinco palmas. — Só revela o
quanto sua imaginação é fértil. Pois então, vá até o porão
e procure por Sophia. Faça isso. Mas eu lhe aviso: não a
encontrará lá. E sabe por quê? Porque tudo o que o senhor
acaba de nos dizer não passa de delírio.
— Ora, Sra. Milovan, eu imaginava que diria algo
parecido. Obviamente, se eu descer agora ao porão, não
encontrarei Sophia. Ocorre que, após me convencer de
sua história, a senhora pôde levar a criança de volta ao
quarto, uma vez que não imaginava que eu voltaria aqui.
Mas veja bem: se eu descer ao porão, talvez ali vocês me
encurralem. É uma boa armadilha, e vocês estão em
quatro. Embora sejam mulheres, eu estaria em óbvia
desvantagem.
— Vejo que é um homem prevenido — disse Vera
Milovan, levantando-se de sua poltrona. — Mas
certamente não estava esperando que eu também fosse
uma mulher prevenida.
A MENINA NO QUARTO 273
Com um movimento repentino, ela enfiou a mão no
bolso do avental e retirou dele um revólver preto, calibre
38, cano curto, que parecia brilhar diante da luz trêmula
do fogo.

274 DAVI VALE


36.

A Sra. Milovan tinha no rosto um meio sorriso de vitória.


Apontou o revólver em minha direção com certa
imperícia, sem destravá-lo, levemente trêmula. Eu tinha
notado, quase que inconscientemente, que havia algo
pesado no bolso de seu avental, mas não me passara pela
cabeça que se tratasse de um revólver.
— Quando Helena veio me dizer que o senhor
estava de volta, eu não poderia me arriscar e descer essas
escadas sem antes pegar a arma — acrescentou,
triunfante.
Eu estava sentado na poltrona, e no momento em
que vi a arma na mão da governanta, levantei-me. Ela
também se levantou, ficando frente a frente comigo, a
arma apontada para meu peito. As criadas se mantiveram
sentadas, imóveis e amedrontadas.
— Devo admitir que o senhor é um homem esperto
— disse a Sra. Milovan —, e muito curioso também.
Devia pensar em ser detetive ao invés de jardineiro. Pena
que seja tarde para isso, Sr. Silva. Ter voltado aqui foi um
grande erro.
Essas palavras me fizeram engolir seco. Senti que
meu rosto estava lívido, e um suor frio brotava em minha
testa e na ponta do meu nariz. Era como se, tendo
mergulhado em um lago e nadado para o fundo, eu
constatasse que não tinha mais tempo de retornar à
superfície antes de perder o fôlego. Tentei não

A MENINA NO QUARTO 275


demonstrar meu desespero e me mantive o mais calmo
possível.
— O senhor acertou em quase tudo, devo admitir
— disse a governanta —, embora tenha ignorado
pequenos detalhes.
— Me diga o que eu ainda não descobri — pedi, no
intuito de prolongar o diálogo.
— Suponho que deva ter gostado de transar com
Helena, não? — disse ela, e suas palavras fizeram a
camareira arregalar os olhos. — E gostaria de ter transado
com Carol também, sem sombra de dúvida. Homens são
tão previsíveis! Mas é isso que os torna tão fracos. Basta
um belo par de pernas bonitas para que sejam facilmente
seduzidos. — Deu mais uma risada, soprando seu hálito
em meu rosto. — Desde o começo, nós notamos o quanto
Helena despertava interesse no senhor e, embora
percebêssemos também isso com relação a Carol, era com
Helena que o senhor demonstrava mais afeição. Então,
tudo o que Helena fez foi transformar isso em paixão,
pois nada pode ser mais previsível do que um homem
apaixonado. O senhor precisava ser vigiado, em vista das
coisas que acontecem nesta casa. Bastava que o senhor
confiasse nela, e certamente a contaria suas suspeitas e
suas intenções.
Helena parecia inquieta em seu assento. Fez
menção de que ia interromper a governanta, mas não teve
coragem. Olhei-a mais uma vez e nossos olhares se
cruzaram. Pude ver que ela me olhava não com raiva ou
medo, mas com piedade. Parecia ter comiseração por

276 DAVI VALE


mim. E, no fundo desse olhar de comiseração, reinava
uma tristeza amarga.
— Então foi isso que aconteceu ao Sr. Gonçalves?
— perguntei à governanta, quase não conseguindo
desviar os olhos do revólver. — Uma das criadas se
deitou com ele para conquistar sua confiança?
— Não tínhamos muita escolha, Sr. Silva. Os
homens costumam ser muito curiosos, e nada como um
belo par de seios para monitorá-los. A princípio, tudo
estava indo bem, e o Sr. Gonçalves, apesar de não ser
burro, também não era tão inteligente. Mas sua maior
qualidade era a obediência, porque ele sim, Sr. Silva, ele
sabia reconhecer seu lugar. Quando a madame lhe dizia
que ele não devia se intrometer nos assuntos da família,
ele simplesmente fazia seu trabalho sem questionar. É por
isso que eu gostava dele. Tínhamos, em todo caso, as
meninas a monitorá-lo. Aliás, ele era um homem bem
mais lascivo que o senhor, o que facilitava as coisas.
Além disso, o fato de ele residir naquela cabana o
mantinha distante dos nossos segredos.
— E apesar disso, ele descobriu alguma coisa que
não devia — supus.
— Foi um pequeno incidente, na verdade, mas de
consequências desastrosas. Por um descuido nosso,
Sophia escapou de seu quarto e correu para o jardim. A
menina foi apanhada no bosque, mas o Sr. Gonçalves a
viu antes que a trouxéssemos de volta. Quis saber quem
era a criança. Ele havia conhecido Júlia antes de seu
suposto sumiço, e soube portanto que aquela criança que
A MENINA NO QUARTO 277
vira no bosque não era Júlia. Não demorou para que ele
percebesse que ela era a outra menina desaparecida.
Afinal, todos no vilarejo haviam visto a foto de Sophia no
jornal e não era difícil reconhecê-la. O Sr. Gonçalves
ameaçou então ir à polícia. Como não queríamos a polícia
envolvida, o envenenamos naquele mesmo dia e fizemos
parecer que morrera de ataque cardíaco. Claro que uma
autópsia teria revelado a verdade; mas, num vilarejo
como este, é inviável mandar um corpo para o IML de
Campinas a menos que haja um bom motivo; e, como
aquele parecia só mais um caso de morte natural (havia
histórico de problemas cardíacos na família do Sr.
Gonçalves), as autoridades fizeram vista grossa.
Recordei-me de como Helena pareceu ser
sexualmente experiente, a despeito de ser tão nova e ficar
isolada naquela casa desde que fora adotada. De fato, ela
não era virgem antes de se relacionar comigo. Havia se
relacionado com o Sr. Gonçalves, tal como eu suspeitara.
Ainda assim, era difícil de acreditar. Mas a Sra. Milovan
estava prestes a me matar, portanto não tinha porque
mentir. Não mais.
— Mas isso é um absurdo! — explodi, tomado de
súbito pela revolta. — Usar Caroline e Helena como
“iscas sexuais” ou coisa que o valha, isso é inaceitável, é
o cúmulo! Sobretudo em se tratando Helena, que naquela
época tinha apenas quinze anos!
— Meça suas palavras, Sr. Silva — advertiu a
governanta, destravando a arma. — Além do mais, não se

278 DAVI VALE


esqueça de que o senhor mesmo se deitou com essa moça
que supõe ser tão inocente.
— Não é a mesma coisa…
— Como não poderia ser? O senhor imaginava que
ela fosse virgem, inocente e frágil, e todavia não hesitou
em seduzi-la. Não acha, Sr. Silva, que, avantajado por sua
idade, o senhor exerceria uma influência injusta sobre
uma garota que estivesse em tal estado de “inocência”? O
senhor é tão criminoso quanto nós por ter usado a
experiência e a superioridade fornecidas por sua
maturidade para persuadi-la.
— Mas não é este o caso — retorqui, irritado. —
Não fui eu quem a seduzi, mas foi ela quem
deliberadamente me seduziu com o propósito de me
vigiar.
— O senhor não sabia disso, portanto isso não faz
diferença.
Talvez seja verdade, pensei comigo. Isto é, havia
sido um erro envolver-me com uma garota que eu
pensava ser virgem, especialmente considerando sua
idade, e de fato eu não havia considerado por esse ponto
de vista. Logo em seguida, pensei que Helena não poderia
ser inocente. Desde o começo ela se empenhou em me
seduzir, não hesitou em me enganar de maneira ardilosa e
aproveitou situações de aparente casualidade para
despertar meu interesse. Ela fazia parte daquela
conspiração, não era uma vítima, mas uma criminosa. E
eu tinha sido traído por ela. Era eu a vítima.

A MENINA NO QUARTO 279


De chofre, me arrependi profundamente de ter
retornado àquela casa. Fora uma escolha muito
imprudente. Por que não fui à polícia? Imaginei a Sra.
Milovan atirando em minha cabeça, pude até visualizar o
meu próprio corpo caindo sem vida.
O que ela faria depois? Como se livraria de meu
corpo sem levantar suspeitas quanto ao meu
desaparecimento? Claro que ela esconderia o cadáver,
assim como fizera com Júlia, mas desta vez não iria à
polícia relatar meu desaparecimento, pois não seria
preciso: tão somente fingiria que nada tinha acontecido.
Provavelmente ninguém daria queixa de meu
desaparecimento, pois eu não tinha familiares próximos
que pudessem notar minha ausência. Além disso, se
perguntassem sobre mim, elas diriam que saí com minha
mala numa manhã de terça-feira, carregando no bolso um
envelope com meus honorários, e nunca mais voltei. Com
efeito, alguns vizinhos deviam ter me visto caminhando
pela rua com a mala na mão e testemunhariam a favor dos
Vukmir. Meu peito se apertou de angústia com essa ideia.
Percebi que estava prestes a morrer e que ninguém
sentiria a minha falta. Ninguém sentirá minha falta, repeti
em minha mente, sendo atingido por uma amarga
sensação de desamparo.

280 DAVI VALE


37.

Mergulhei num sentimento misantrópico, fruto da


sensação de completo desamparo, da desesperança.
Olhando para Helena, sentia-me traído não por ela, mas
pela humanidade, que agora era transfigurada na imagem
dela, como se houvesse naquela garota a última esperança
de beleza no mundo. Senti que estava prestes a chorar. Se
me entregassem um revólver naquele instante, talvez eu
fosse capaz de matá-la. Daria um tiro em seu peito,
dilaceraria seu coração da mesma forma como ela
dilacerara o meu.
Desde que fui iluminado pela verdade e assomou-
se em minha mente a possibilidade de que Helena tivesse
me monitorado, uma insuportável sensação de impotência
dominou meu coração. Não só havia perdido o amor da
minha vida, na verdade nem sequer o tivera: tudo fora
uma ilusão cruel. Helena nunca me amara, nunca me
desejara, tudo não passara de estratégia de dominação fria
e calculista e eu fora apenas mais uma vítima de suas
mentiras dissimuladas. E naquele instante, confirmavam-
se os meus maiores medos. Como alguém poderia ser
capaz de semelhante crueldade? Toda a beleza do mundo
parecia se desfazer naquele instante sombrio. Meu mundo
desabava.
Voltei a olhar Helena, ainda atordoado por esses
terríveis pensamentos. Seus olhos, apesar de tudo,
carregavam o mesmo brilho que me fizera amá-la. Eu
A MENINA NO QUARTO 281
nunca seria capaz de matá-la. Nem mesmo estando
tomado pela raiva e pela tristeza, eu poderia fazer
semelhante coisa — porque, a despeito de tudo, eu sentia
ter conhecido ao menos uma parte verdadeira daquela
moça. Estaria ela arrependida? Teria ela sido coagida a
me enganar? Tão logo pensei nessas coisas, afastei-as de
meus pensamentos. Eu queria acreditar que as palavras
que ela me dissera tivessem sido reais, mas sabia,
entretanto, que era tudo mentira. As palavras ditas, falei
em pensamento, são como a lâmina afiada de uma
espada, cujo corte sempre deixa uma cicatriz.
— Como você foi capaz? — escutei as palavras
saindo da minha boca.
Era estranho ouvir minha voz e sentir, porém, que
não era eu quem falava, como se observasse a mim
mesmo do lado de fora de meu corpo. Como se pudesse
ver-me sofrer. Senti um fio de lágrima morna rolando em
meu rosto. Meu coração se espremia de angústia, como se
o apertassem dezenas de arames farpados, pressionando-o
em todas as direções.
— Sinto muito — disse ela, a voz fraca e
suplicante.
— E pensar que eu acreditei em você.
— Não era tudo mentira — defendeu ela,
inclinando-se em minha direção. — No começo eu
confesso que menti, mas depois tudo mudou.
Hesitou, olhou a governanta de relance com certo
temor, mas foi atingida de chofre por uma coragem e,
decidida, se convenceu a enfrentar os riscos. Olhou-me,

282 DAVI VALE


olhos brilhantes e profundos, tão negros quanto se pode
imaginar, e declarou:
— Eu me apaixonei por você. Nos últimos dias,
nada do que eu te disse foi mentira. Por isso insisti para
que fosse embora, eu me importava com você, não queria
que se machucasse. Não peço que acredite em mim, eu
não mereço sua confiança, fui uma pessoa terrível e
machuquei seu coração. Quero que saiba, apesar disso,
que eu o amo de verdade. Você foi o único homem que já
amei. Me desculpe por tudo.
Cobriu então o rosto com as mãos e começou a
chorar, agitando os ombros convulsivamente, angustiada.
Suas narinas se congestionaram e sua respiração ficou
pesada e alta, como se lhe faltasse o ar.
Observei-a chorar enquanto tentava entender meus
próprios sentimentos. Suas palavras haviam me atingido
de surpresa. Meu coração era esmagado por um conflito
interno. Ainda não sabia se a odiava ou se a amava.
Talvez as duas coisas.
A Sra. Milovan olhava para Helena, indignada com
o que julgava ser uma fraqueza emocional.
— Eu sabia! — disse ela, em tom sarcástico. —
Pude ver nos seus olhos que você estava se deixando
levar. — Seu rosto afigurou asco e um sorriso de
desprezo. — Sua tola! — E, dizendo isso, abaixou o
revólver enquanto olhava para a camareira. Repetiu o
insulto, como se tentasse acentuar o tom de sua
reprovação.

A MENINA NO QUARTO 283


Subitamente me vi diante de um ensejo que
certamente não se repetiria. Achava-me a cerca de um
metro da governanta quando ela abaixou a arma e olhou
para Helena. Quando percebi sua distração, fui movido
por um impulso impensado, puro exercício do reflexo e
do instinto de sobrevivência: avancei com um movimento
brusco em sua direção, agarrando a arma na tentativa de
arrancá-la de sua mão. O revólver ficou apontado para o
teto enquanto eu lutava para fazê-la soltá-lo. Apesar da
idade avançada da Sra. Milovan, sua mão tinha uma força
inacreditável. Um tiro foi disparado para o alto, fazendo
com que o cheiro de pólvora emanasse no ambiente. A
governanta cerrava os dentes com força enquanto sua face
ia se tornando cada vez mais rubra e suas veias se
salientavam no pescoço e nas têmporas. Outro tiro foi
disparado em direção ao teto, fazendo precipitar sobre
nós uma poeira de gesso. Escutei gritos das criadas e
percebi que elas já estavam de pé, olhares assustados de
quem quer ajudar de alguma maneira. Temi que viessem
em auxílio da governanta e me impedissem de desarmá-
la, então me lancei com força sobre a velha e fiz com que
nós dois caíssemos ao chão, eu por cima e ela por baixo.
Bati sua mão no piso algumas vezes, e por fim consegui
fazê-la soltar o revólver. Apanhei-o do chão e o mirei
para o rosto da Sra. Milovan, mas nesse instante senti
uma forte pancada na cabeça, acompanhada do barulho
seco de madeira se partindo.
Uma dor aguda emanou da parte anterior de minha
cabeça, alastrando-se para todo o crânio. Minhas vistas se

284 DAVI VALE


embaralharam e meus ouvidos zuniram. Lutei para não
perder a consciência, mantendo a mão firme no revólver.
Virei meu corpo bruscamente para trás e vi, num instante
confuso, a silhueta baça de alguém que estava de pé na
minha retaguarda com uma vassoura de palha na mão,
preparando-se para desferir um novo golpe. Atordoado,
não tive tempo de reconhecê-la, sequer olhei para o seu
rosto, apenas mirei o revólver em sua direção e disparei
duas vezes. A silhueta cambaleou, largou a vassoura e
desabou no chão com um baque surdo.

A MENINA NO QUARTO 285


38.

Ouvi gritos. Uma fisgada de preocupação me atingiu.


Tinha plena consciência de haver atirado em alguém, mas
não sabia quem, tampouco tinha noção da gravidade
desse ferimento. Eu a teria matado, fosse quem fosse?
Percebi, como se acordasse de um sonho, que a
governanta tentava arrancar a arma de minha mão.
Desferi então uma joelhada em sua barriga com toda
minha força, fazendo-a cair afogada ao meu lado.
Levantei-me num pulo e mirei a arma em sua direção.
— Não se mexa! — ordenei em alto tom, mas nem
era preciso, pois a velha se contorcia na tentativa de
recobrar o fôlego, indefesa.
Senti uma dor imensa na parte anterior da cabeça,
onde tinha sido golpeado. Pus a mão esquerda no local da
dor a fim de verificar se ali encontrava sangue, mas meus
dedos tocaram apenas os cabelos secos e um inchaço que
começava a se formar. Pisquei com força, tentando me
livrar do torpor que atrapalhava minha visão.
Gradualmente, minha vista foi se desembaralhando,
permitindo-me enxergar, com horror, a cena ao meu
redor.
Havia uma poça de sangue, sobre a qual eu pisava,
uma densa mancha vermelho-escura que crescia sob meus
pés. O sangue impregnou em minhas narinas, um odor de
ferrugem que se misturava ao cheiro de pólvora. Atingiu-
me novamente a constatação de que havia atirado em uma
286 DAVI VALE
das empregadas, como se até então não a tivesse
percebido senão como um sonho. Todas essas coisas
passavam por minha mente em pouquíssimos segundos,
mas eu sentia que o tempo se distorcia, minutos e
segundos se confundiam.
Horrorizado, olhei o corpo de onde escorria o
sangue que chegava aos meus pés. Estava caído atrás de
uma poltrona que ocultava a parte superior de seu tronco
de minha visão, de modo que eu não o pudesse
reconhecer. Era uma das empregadas, mas quem? A moça
havia caído de lado, os braços diante do corpo e as pernas
levemente dobradas. As canelas brancas sob o vestido
parcialmente levantado pareciam pertencer à Helena.
Senti uma vertigem e a dor em minha cabeça
pulsou com ímpeto. Um silêncio pairava no ambiente,
mas meus ouvidos estavam zunindo.
— O que eu fiz? — eu disse, já não conseguindo
discernir se estava pensando ou falando.
Não conseguia acreditar que tivesse atirado em
Helena, recusava-me a aceitar isso. Essa dúvida, no
entanto, parecia ser apenas uma maneira de adiar meu
próprio sofrimento, temendo que, ao encará-lo num único
golpe, não o pudesse suportar — pois no fundo eu já
esperava pelo pior. Pensei no desespero de Nadia Vukmir
ao constatar que havia matado a própria filha. Lá estava
eu, experimentando a mesma sensação de angústia
daquela mulher.
Aproximei-me mais do corpo, de maneira que
pudesse ver a parte oculta pela poltrona. Por fim, vi sua
A MENINA NO QUARTO 287
cabeça. A imagem demorou a se materializar em minha
mente, pois eu ainda estava atordoado. Não foi pelo rosto
que a identifiquei, mas pelos cabelos que estavam caídos
no chão e grudados no sangue escarlate, espalhados ao
redor de sua cabeça. A vassoura partida ao meio estava
caída ao seu lado, sobre a poça de sangue. O primeiro tiro
atingira sua barriga, formando no vestido branco um
círculo vermelho de sangue. O segundo tiro atingira sua
testa, deixando nela um buraco negro e profundo, de onde
o sangue ainda escorria. O projétil mergulhou em seu
cérebro e emergiu na parte superir da cabeça,
aproximadamente entre o osso frontal e o parietal. Seus
olhos estavam abertos, vidrados no teto. A boca
semiaberta expressava dor, como se a morte tivesse sido
repelida até o último milésimo de vida. O rosto parecia
ainda estar se empalidecendo, tornando-se cinzento na
medida em que lhe incidia a luz baça daquele dia
nebuloso.
Apoiei-me na poltrona, horrorizado. Entretanto,
havia em meu horror um tom de alívio, quase uma alegria
lúgubre, porque aquele corpo não pertencia a Helena. Eu
havia matado Caroline.
Ver o cadáver de Caroline acabou por me despertar
de vez. Seu corpo era como uma réplica malfeita, um
boneco de cera deformado, a casca vazia de um inseto.
Parecia não ser real. Era difícil acreditar que aquele
mesmo corpo, desprovido de brilho e movimento,
minutos antes estivera vivo, movendo-se por conta

288 DAVI VALE


própria, ouvindo, pensando e falando. Agora não passava
de um cadáver.
De súbito, tomei consciência de que continuava em
perigo, pois qualquer uma das empregadas poderia tentar
me atacar. Olhei em volta, mas não as encontrei. Onde
estariam? Apenas a Sra. Milovan estava à vista, sentada
no chão, ainda recobrando o fôlego. Caminhei para o
meio da sala a procura das demais moças, mas de súbito
estagnei: descobri que havia mais um corpo caído no
chão, ao lado do sofá.
Reconheci Raquel rapidamente, pois seus seios
protuberantes e seu porte robusto eram inconfundíveis.
Ela estava caída com o ventre para cima. Seu rosto
parecia inexpressivo, olhos fechados e lábios semiabertos.
Vê-la caída me deixou intrigado, pois, que eu me
lembrasse, só havia atirado em Caroline. Teria me
esquecido de ter disparado também em Raquel? Não me
pareceu uma hipótese absurda, pois a pancada em minha
cabeça poderia ter me provocado algum lapso de
memória. Ou talvez, um dos tiros a tivesse atingido após
varar o corpo de Caroline — sim, isso era possível.
Observei-a com atenção, percebendo, porém, que não
havia sinal de sangramento em parte alguma.
Aparentemente, nenhum tiro a atingira. Neste caso, o que
lhe tinha acontecido?
Enquanto olhava o corpo de Raquel, escutei um
choro abafado, contido, que parecia vir da cozinha.
Caminhei lentamente em direção ao som. Aos poucos,
enquanto caminhava, os acontecimentos foram se
A MENINA NO QUARTO 289
materializando em minha memória. Recobrava
gradualmente a minha sanidade. Recordei-me de minha
luta com a Sra. Milovan, quando tentei arrancar de sua
mão a arma, de quando caímos ao chão, dos gritos das
outras empregadas. Lembrei-me de que Caroline havia
corrido até o fundo da sala e apanhado a vassoura;
enquanto isso, veio-me à mente a imagem de Raquel se
apoiando no sofá, como se se sentisse enjoada.
Entrementes, Helena corria para a cozinha e se escondia
atrás do balcão. Todas essas lembranças se assomaram a
minha memória subitamente. Senti que retomava o
controle sobre minha mente, como um equilibrista que
retoma, após um instante de hesitação, o equilíbrio que
lhe mantém sobre a corda bamba.
Encontrei Helena agachada atrás do balcão,
amedrontada. Olhou-me com certo temor, como se eu
fosse fazer a ela algum mal.
— Você a matou — disse, a voz trêmula e fraca, o
rosto pálido, a testa franzida.
Inicialmente, pareceu-me que ela se referia à
Raquel, mas em seguida percebi que era de Caroline que
ela falava. Abaixei a arma e afastei-me da porta. Diante
de seu olhar amedrontado, me senti uma espécie de
monstro. Helena se levantou, ainda olhando para a arma
em minha mão, e caminhou em direção ao corpo de
Caroline. Foi andando pela sala, mas paralisou quando
viu o corpo, tomada pelo horror. Olhava para o cadáver
com uma espécie de desespero angustiado e, a despeito
do sofrimento que aquela cena lhe causava, insistia em

290 DAVI VALE


manter os olhos fixados a ela, como quando tocamos uma
parte dolorida do nosso próprio corpo, embora saibamos
que aquilo aumentará a nossa dor. Por fim, ajoelhou-se e
tocou a mão no rosto inerte e pálido, deixando que suas
lágrimas gotejassem sobre a bochecha do cadáver. Beijou
na face pálida de Caroline, acariciou seus cabelos
ensanguentados e, numa espécie de despedida, fechou os
olhos que estavam vidrados no nada com seus dedos.
Raquel fez um pequeno movimento. Parecia se
recuperar de um desmaio. A Sra. Milovan parecia se
recuperar também, e tentava se levantar. Olhei para o
revólver em minha mão. Abri o tambor e constatei que
não restava mais munição. Fechei-o novamente e,
certificando-me de que elas não haviam notado que o
revólver estava descarregado, mirei-o para a Sra. Milovan
e ordenei:
— Fique onde está! — Depois, apontei a arma em
direção para a cozinheira: — Raquel, venha até aqui.
Raquel caminhou com certa dificuldade e se juntou
a governanta. As duas me olhavam com medo, em
seguida voltavam o olhar para o corpo de Caroline, ao
qual Helena em prantos ainda acariciava, como se a morte
dela lhes servisse de intimidação. Tentei pensar em
alguma maneira de manter as três mulheres sob meu
comando sem me arriscar a ser atacado por alguma delas.
Lembrei-me de que no segundo piso estavam Nadia
Vukmir e Sophia, e reconheci o risco de a primeira surgir
de surpresa na sala. Foi então que tive uma ideia.
— Sra. Milovan, me entregue as chaves.
A MENINA NO QUARTO 291
Ela obedeceu imediatamente. Retirou do avental o
molho de chaves e entregou-me.
— Agora, caminhem até o porão. Helena, você
também. Vamos!
As três foram até o porão e entraram com
hesitação, primeiro Raquel, depois a Sra. Milovan e por
último Helena. Antes de entrar, Helena me olhou com um
ar de súplica.
— Me desculpe — eu lhe disse —, mas preciso que
você também entre.
— O que você vai fazer? — perguntou-me com sua
voz de criança confusa e os olhos injetados.
— Vou deixar vocês aí até a chegada da polícia —
respondi, enquanto empurrava Helena pelo ombro.
Ela ainda olhava para mim quando fechei a porta.
Tranquei-a e guardei as chaves comigo. Por fim, larguei a
arma sobre o aparador ao lado da porta, enquanto
reconhecia a sorte de nenhuma das empregadas ter
percebido que ela estava descarregada. Por um instante
fiquei aliviado, mas esse alívio logo se dissipou quando
escutei um grito terrível.

292 DAVI VALE


39.

Tudo o que aconteceu a seguir se passou como se fosse


um sonho, pois, ao recordar-me dos acontecimentos,
percebo que tudo parece muito irreal, que o tempo se
anuvia e se dissipa na sequência dos fatos.
Escutei um grito que vinha do segundo piso, alto e
longo, desesperado, atingindo meus tímpanos como
lâmina afiada. Num instante, eu me precipitava em
direção às escadas, saltava os degraus, subia a toda
velocidade que minhas pernas me permitiam.
Entrementes, o grito parecia se transformar em um
gemido abafado. Quando emergi no segundo piso, corri
em direção ao quarto de Sophia. Entrei no cômodo
através da porta aberta, mas me vi forçado a estagnar,
horrorizado diante do que se passava ali.
Uma garotinha estava deitada na cama, debatendo-
se em desespero. Com toda a força, Nadia Vukmir
pressionava contra a cabeça da menina um travesseiro
branco. Estava sentada sobre a barriga dela, restringindo-
lhe os movimentos do tronco. As pequenas pernas
brancas e magras da menina se agitavam em desespero,
tentando empurrar o colchão para baixo e arrastar o corpo
para cima, mas em vão. A menina tentava se livrar das
garras daquela mulher, agarrando os pulsos de sua
agressora com suas mãos pequenas e tentando afastá-la.
— Você não vai roubá-la de mim! — vociferou
Nadia Vukmir ao me ver entrar no quarto.
A MENINA NO QUARTO 293
Corri até a cama e tentei fazê-la soltar sua vítima,
agarrando seus pulsos e tentando puxá-los para cima, mas
faltou-me força. Pareciam pesar toneladas. Ela
permanecia sobre o corpo da garotinha, apertando a
cabeça frágil com uma energia monstruosa. Os espasmos
da menina tinham se tornado mais curtos e rápidos. Eram
já movimentos convulsivos que beiravam a inconsciência,
tremores desesperados que precediam a morte.
Percebendo que não conseguia afastar Nadia
Vukmir da criança, agarrei-a pela cintura e puxei-a junto
de mim, fazendo com que caíssemos ambos no chão. Ela
trouxe consigo o travesseiro, ao qual segurava com
tremenda força. Reagiu violentamente, saltando como
uma fera, afastando-se de mim com os movimentos
selvagens da loucura. Levantei-me num salto igualmente
instintivo. Olhei para Sophia e observei que os espasmos
convulsivos haviam parado. Revelou-se, porém, a face
serena e sem brilho de uma criança aparentemente morta.
Com um rosnado, Nadia Vukmir direcionou-me um
olhar ameaçador. Seu olhar alucinado tinha agora o
aspecto de loucura que eu já havia visto em outra ocasião,
quando a encontrei sozinha na sala escura alguns dias
antes, um olhar ao mesmo tempo melancólico e
desconfiado, repleto de confusão e raiva. Seus cabelos
estavam soltos e desgrenhados, a tez pálida, o rosto
marcado por olheiras arroxeadas. Seus lábios estavam
ressecados e o interior de sua boca estava cheio de uma
saliva espessa, espumante.

294 DAVI VALE


Ela disparou a correr em minha direção, soltando
um rosnado de fera, tomada por um impulso de completa
insanidade. Seus olhos tinham um brilho raivoso, uma
cólera sombria. Nesse instante, eu me achava perto da
escrivaninha, e conforme a mulher foi vindo em minha
direção, recuei até esbarrar na cadeira. Quando apoiei a
mão esquerda na mesa para recobrar o equilíbrio, senti
meus dedos se encostarem num objeto gelado. Nadia
Vukmir já estava muito perto de mim, de maneira que
nem tive tempo de pensar — apenas segurei o objeto com
minha mão esquerda e desferi um golpe certeiro em sua
têmpora. Não refleti sobre a imoralidade de meu ato, não
levei em consideração que eu era um homem que agredia
uma mulher, apenas reagi instintivamente, considerando
que aquela mulher estava num acesso de ira insana e
perigosa. Só posteriormente fui perceber o que havia
apanhado na escrivaninha: era justamente o peso de
bronze, a arma que ela usara para matar Júlia. Apesar de
ser destro, meu golpe de esquerda foi forte o suficiente
para produzir um baque surdo. A mulher apagou no
mesmo instante e seu corpo caiu estrepitosamente sobre a
escrivaninha ao meu lado, rolando depois até despencar
no chão.
Agitei seus ombros, verificando que ela realmente
estava desacordada. Estaria morta? Seria irônico, pensei,
que eu a tivesse matado com a mesma arma que ela usou
para matar sua filha.
Lembrei-me então de Sophia. Fui até a cama e
olhei para a criança que jazia inerte, o ventre para cima, o
A MENINA NO QUARTO 295
pijama branco ainda preservando as impressões feitas
pelo peso do corpo de Nadia Vukmir. As unhas da
menina estavam sujas pelo sangue que arrancara dos
pulsos de sua agressora na tentativa de se libertar. Os
cabelos castanho-escuros se espalhavam desgrenhados ao
redor de sua cabeça, e algumas mechas estavam grudadas
no pescoço úmido pela transpiração que decorria do
esforço supremo.
— Você realmente é Sophia Ramalho — falei,
acariciando seus cabelos. Sim, eu a reconhecia da foto no
noticiário. — Pobre criança!
Não me restaram dúvidas de que Sophia havia
morrido, e uma onda de tristeza e remorso atingiu-me
naquele instante. Olhei para sua assassina, que
permanecia deitada, ainda desacordada, e notei que sua
barriga se movimentava. Ela está viva. Tive vontade de
apanhar novamente o peso de bronze e golpeá-la na testa,
da mesma maneira como, dois anos antes, ela golpeara
sua própria filha. Senti por ela um ódio instintivo e
desejei matá-la. Mas meu desejo de vingança — vingança
sim, porque eu não era hipócrita ao ponto de fingir que se
tratava apenas de desejo de justiça, como fazem as
pessoas comuns —, esse desejo vinha somente de um
impulso bruto, selvagem, e a única coisa que me
diferenciava daquela mulher era a capacidade de não
ceder a ele, mesmo quando era tomado por uma cólera
corrosiva.
De súbito, Sophia movimentou a cabeça e os
braços. Estava recuperando a consciência. A cor de sua

296 DAVI VALE


pele começou a voltar ao normal, e ela tossiu algumas
vezes antes de se sentar na cama. Segurei suas costas com
minha mão esquerda e afastei os cabelos de seu rosto com
a outra mão. Quando conseguiu respirar com mais calma,
voltou o olhar em minha direção e, num movimento de
gratidão, abraçou-me. Abracei-a também, um abraço forte
e longo, não apenas para consolá-la, mas para consolar a
mim mesmo.
— Acabou — sussurrei. — O pesadelo terminou.
Tudo vai ficar bem, agora.
Eu sabia, porém, que ainda não havia acabado. Não
importava o que fizéssemos, os dois anos traumatizantes
que Sophia passara naquele quarto, sequestrada por uma
mulher louca que afirmava ser sua mãe, que dizia que
todas as suas lembranças lhe haviam sido implantadas
com o propósito de que ela esquecesse deste fato, isso a
traumatizaria pelo resto da vida. Ela passaria a
adolescência sob acompanhamento de psicólogos e, não
obstante, nunca superaria completamente tal experiência.
Nunca seria capaz de levar uma vida normal.
A tarde declinava lentamente e os raios amenos do
sol penetravam pelas janelas numerosas e forneciam à
casa um tom alaranjado. A chuva havia se dissipado e as
nuvens começavam a ser levadas pelo vento. O céu, agora
lavado pela chuva, ostentava um azul vivo. No bosque,
pássaros cantavam em alvoroço.
Nadia Vukmir soltou um estranho rosnado pela
boca, mas não acordou. Não demoraria, todavia, a
recobrar a consciência. Ajudei Sophia a se levantar,
A MENINA NO QUARTO 297
coloquei a colcha de cama sobre seus ombros para
aquecê-la e a conduzi com minha mão esquerda apoiada
em suas costas. Desviamos de Nadia Vukmir e saímos do
quarto sem dizer nenhuma palavra, como se temêssemos
acordá-la com o barulho. A colcha se arrastava no chão
conforme Sophia andava. Olhávamos por sobre os
ombros, temendo que a madame acordasse a tempo de
nos alcançar antes que saíssemos da casa. Descemos as
escadas quase a correr, e então me lembrei que Sophia
estava descalço, mas não era viável voltar e buscar um
calçado para ela vestir. Decidi carregá-la no colo. Ao
passar pelo vestíbulo, evitando olhar em direção à sala
onde jazia o corpo de Caroline, o cheiro de sangue
penetrou nossas narinas. Atravessamos a porta do
vestíbulo. Foi um grande alívio sentir o ar fresco da tarde
e ver diante de nós o caminho que conduzia à rua. Ao
mesmo tempo, eu tinha a estranha impressão de que
Nadia Vukmir conseguiria nos alcançar antes que
chegássemos ao portão, como se fosse impossível escapar
ileso daquela casa. E de fato era. Apesar de nossa pressa
— e exatamente por causa dela, o caminho entre a casa e
o portão parecia interminável. Comecei a correr. Sophia
permanecia quieta em meu colo, como se dormisse.
Quando menos esperei, já estávamos rodeados pelos
moradores da vizinhança, e uma viatura da polícia subia
às pressas a rua após ser acionada pelos vizinhos que
escutaram os tiros. Não obstante, mesmo rodeado de
pessoas e sob a proteção da polícia, não consegui me
sentir aliviado.

298 DAVI VALE


40.

Nadia Vukmir foi encontrada pela polícia já acordada,


mas ainda desorientada. Afirmava não saber o que lhe
tinha acontecido, mas pareceu particularmente
preocupada com a ausência de sua filha Júlia.
— Alguém viu minha filha? — perguntava ela ao
delegado, causando neste uma grande perplexidade, pois
acabara de se revelar, por meio do relato do jardineiro,
que a filha de Nadia Vukmir estava morta há dois anos.
Todavia, quando tentaram explicar a ela este fato, ela foi
tomada pelo desespero, recusando-se a acreditar no que
lhe diziam, como se todos estivessem conspirando contra
ela. Gritou, agrediu um policial e recusou-se a ser levada
para a ambulância. Mesmo após ser algemada, foram
necessários dois paramédicos e três policiais para colocá-
la na viatura.
Foi diagnosticado que Nadia Vukmir sofria de
esquizofrenia e estava em um surto psicótico. Ficou
internada num hospício, onde a ideia delirante de que o
governo roubara sua filha amadureceu em sua mente até
dominá-la. Conforme previsto pela Sra. Milovan, a
internação agravou seu quadro. Toda sua beleza foi
surrupiada pela loucura, os olhos cinzentos perderam o
brilho e afundaram em meio a olheiras escuras, as
bochechas se tornaram esqueléticas, o corpo galgaz
envergou com fraqueza e os cabelos, outrora saudáveis,
tornaram-se quebradiços e opacos. Passava a maior parte
A MENINA NO QUARTO 299
das horas encolhida a um canto escuro do quarto do
hospício, onde rosnava palavras delirantes sobre lavagem
cerebral e uma filha roubada. Recusava-se a comer e
frequentemente feria a si própria, até que acabaram por
prendê-la na cama, tanto para sua própria segurança
quando para a dos médicos. E foi assim que ela passou o
resto de sua curta vida, até que morreu numa noite fria de
inverno.
Das três empregadas sobreviventes, a Sra. Milovan
foi a única condenada a cumprir pena em regime fechado.
Dizem, porém, que ela sequer conseguiu durar três
semanas na prisão. Ao que tudo indica, os detentos não
apenas repudiam os assassinos de crianças, como também
aqueles que tiveram cumplicidade em tal crime. Dizem
que ela foi envenenada durante o almoço, mas nunca
souberam quem administrou o veneno. O caso acabou por
cair no esquecimento, pois todos pareciam de acordo que
o que lhe aconteceu era merecido.
Quanto à Raquel, não tive mais notícias a seu
respeito. Pelo que me consta, ela pode estar viva até hoje.
Talvez tenha recomeçado a vida longe daqui. Porém,
sinto-me inclinado a duvidar que, depois de tudo, ela
possa ter levado uma vida feliz. Às vezes me pergunto se
não acredito, ou se não o desejo — afinal, é tão tênue a
linha que separa os nossos desejos das nossas crenças
que, não raro, acabamos por acreditar em mentiras que
nós mesmos inventamos. O caso, porém, é que o destino
que tomou Raquel em sua vida é um mistério que não me
dei ao trabalho de averiguar.

300 DAVI VALE


Naquela tarde trágica eu não encontrei Helena. Fui
levado à delegacia para prestar depoimento, ao passo que
ela foi encaminhada para um hospital porque estava em
estado de choque. Tão logo fui liberado pela polícia,
tomei um trem para Campinas e voltei a me instalar na
casa de pensão onde morava anteriormente. Após o
ocorrido, achei por bem não ir mais atrás de Helena e
fiquei decidido a esquecê-la. Percebi com o passar do
tempo, todavia, que isso seria impossível: sua lembrança
nunca saiu de minha cabeça, e com certeza não sairá até
que eu morra. Por noites consecutivas ela esteve em meus
sonhos, e uma saudade dilacerava meu coração a cada dia
que se passava. Forcei-me a crer que o tempo diminuiria
meu sofrimento, mas na medida em que sua imagem, seu
cheiro, a textura de sua pele e o som de sua voz iam se
tornando mais vagos, contra todas as expectativas minha
tristeza só aumentava. Descobri que, apesar de tudo o que
ela fizera e a despeito das mentiras que me contara, eu
seria capaz de perdoá-la, de amá-la de novo — porque, na
verdade, eu nunca havia deixado de amá-la. Porém, eu
não conseguia vencer meu orgulho. Perdi as contas de
quantas vezes pensei tê-la visto no meio da multidão, mas
perdido-a de vista como se de mim ela houvesse fugido.
Se em meu apartamento o telefone tocava, meu coração
disparava na expectativa tola de que era ela quem me
ligava, embora eu soubesse que isso jamais aconteceria.
O restante do ano de 1942 foi a época mais triste da
minha vida. Numa noite úmida de sexta-feira, quando
passava em frente a um bar de Campinas, escutei tocar a
A MENINA NO QUARTO 301
música de Glenn Miller, ao som da qual Helena e eu
dançamos naquele porão minutos antes de entrelaçarmos
nossos corpos pela primeira vez. Fui tomado por um
sentimento nostálgico e me deixei cair numa tristeza
escura. Entrei no estabelecimento e, movido por um
impulso de melancolia, bebi até perder noção de tudo.
Acordei à beira da calçada na manhã seguinte, e então
percebi que tinha me tornado um resto de gente, cuja vida
triste e melancólica se resumia a lamentar a garota que
me havia escapado. Eu era nada mais que a sombra de
Helena, e nem sequer podia saber se ela ainda pensava
em mim.
Resolvi procurá-la para poder me livrar de uma vez
por todas daquele sentimento de dúvida. Voltei ao
vilarejo de Rebouças no início do ano seguinte. Como se
minha volta não fosse desejada, desembarquei do trem
sob uma chuva fria e interminável. Ao sair da estação,
quando já pisava nos paralelepípedos da rua fronteira, dei
meia volta e, tal como fizera um ano antes, contemplei a
fachada do prédio: observei a cornija, o coroamento
barroco, o telhado de quatro águas e as oito janelas
dispostas em quatro pares, como quatro casais de
namorados. Quatro casais, sim! — lembrei-me de que
fora isso que me viera à mente da primeira vez, e o
mesmo me vinha agora. Era a mesma estação de um ano
atrás, embora eu sentisse como se houvessem se passado
décadas.
No vilarejo, tudo parecia exatamente igual a antes,
mas qualquer coisa no ambiente já não me trazia a mesma

302 DAVI VALE


sensação de paz de outrora. Senti que as pessoas me
olhavam com desconfiança, e me perguntei se elas
sabiam quem eu era. Mas elas não sabiam, pois tudo não
passava de impressão minha. O lugar era o mesmo, as
pessoas eram as mesmas, e eu era a única diferença.
Dominado por um misto de curiosidade e obsessão,
subi a encosta por aquela rua deserta e arborizada que
dava na a casa dos Vukmir, seguindo o mesmo caminho
que tantas vezes percorrera durante meus dias de
jardineiro. Avistei a casa ao fim da rua. Parecia, à
primeira vista, a mesma casa de antes, mas na medida em
que me aproximava eu começava a perceber que algo
havia mudado. Era como se o lugar houvesse morrido.
Parei à beira da grade de ferro fundido. Através
dela, olhei para o extenso jardim descuidado, as plantas
que cresciam em desproporção e invadiam os caminhos,
as folhas secas que se espalhavam em todas as direções.
Ao fundo desse jardim abandonado, a casa se elevava
com sua sombria imponência, os ornamentos vitorianos
das paredes e os telhados cobertos de musgo. Daquela
vez, porém, não se via fumaça nas chaminés. O reflexo
do céu no vidro das janelas estava mais baço, e dava para
notar que todas as cortinas estavam cerradas.
O portão estava trancado e era adornado por uma
grossa corrente e um cadeado. Tudo indicava que o
cadeado não era manuseado há vários meses. O aspecto
de abandono já se fazia evidente em toda a propriedade.
Até mesmo as pedras da ruela que conduzia à fonte
estavam mais escurecidas, e entre elas cresciam vários
A MENINA NO QUARTO 303
tufos de grama. Em meio ao silêncio sepulcral do lugar,
escutei ao longe o canto familiar de uma ave, semelhante
a uma risada diabólica. Atingido por lembranças ruins e
por sentimentos que não queria despertar, afastei-me
daquela casa pela última vez.
De volta ao vilarejo, fiz várias perguntas a um
bocado de pessoas na esperança de que pudesse descobrir
onde Helena estava morando. Desejava ir ao seu encontro
e resolver definitivamente nossa situação. Estava, com
efeito, disposto a perdoá-la. Apenas a previsão de que
voltaria a vê-la apertava meu coração, como se cada
minuto que se passava até que essa previsão se
concretizasse fosse uma tortura. Eu temia que ela não
pensasse mais em mim, ou pior, que outro homem tivesse
entrado em sua vida a tempo de fazê-la obliterar-se de
minha memória. Me perguntava, neste caso, se poderia
suportar semelhante choque de realidade. Apesar disso,
acreditava que, independentemente de qual fosse a
verdade, preferia sabê-la a ser mortificado pela dúvida.
Havia, porém, uma possibilidade, ainda que
pequena, de que ela ficasse feliz ao me ver novamente, e
me apegando a essa possibilidade meu coração era
tomado pela esperança. Perguntei-me o quanto ela teria
mudado, se ainda teria aquela alegria faceira, aquele
sorriso repleto de inocência. Lembrei-me dos seus olhos
negros e penetrantes, de seu olhar curioso e desconfiado.
Tentei me recordar do som de sua voz, mas ele me havia
escapado da memória, embora ainda o pudesse
reconhecer se voltasse a escutá-lo. Prometi a mim mesmo

304 DAVI VALE


que, da próxima vez que a encontrasse, iria abraçá-la tão
forte quanto possível, beijá-la sem pensar, e beijando-a
sentir seu corpo entre meus braços e nunca mais deixar
que se afastasse de mim. Planejei as palavras que diria.
Para não esquecê-las, anotei tudo numa folha, reli,
decorei e aperfeiçoei o texto até que ficasse tão belo
quanto os sentimentos que dominavam meu coração.
Todavia, quando descobri o que tinha acontecido a
Helena, fui esmagado num só golpe, lançado às trevas de
uma tristeza amarga. Segundo o que me contaram, Helena
foi internada num sanatório, onde ficou em repouso por
alguns meses até completar a maioridade. Uma semana
após receber alta, ela se matou ao cortar os pulsos com
uma navalha.

A MENINA NO QUARTO 305


DAVI VALE

A MENINA
NO QUARTO

Você também pode gostar

pFad - Phonifier reborn

Pfad - The Proxy pFad of © 2024 Garber Painting. All rights reserved.

Note: This service is not intended for secure transactions such as banking, social media, email, or purchasing. Use at your own risk. We assume no liability whatsoever for broken pages.


Alternative Proxies:

Alternative Proxy

pFad Proxy

pFad v3 Proxy

pFad v4 Proxy