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Why Read Nietzsche Oswaldo Giacoia

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INTRODUÇÃO: POR QUE LER NIETZSCHE HOJE

Dentre os clássicos da filosofia moderna, Nietzsche talvez seja o pensador mais


incômodo e provocativo. Sua vocação crítica cortante o levou ao submundo de nossa
civilização, sua inflexível honestidade intelectual denunciou a mesquinhez e a trapaça
ocultas em nossos valores mais elevados, dissimuladas em nossas convicções mais
firmes, renegadas em nossas mais sublimes esperanças. Essa atitude deriva do que
Nietzsche entendia por filosofia.
Para ele, filosofar é um ato que se enraíza na vida e um exercício de liberdade.
O compromisso com a autenticidade da reflexão exige vigilância crítica permanente,
que denuncia como impostura qualquer forma de mistificação intelectual. Por isso,
Nietzsche não poupou de exame nenhum de nossos mais acalentados artigos de fé. O
destino da cultura, o futuro do ser humano na história, sempre foi sua obsessiva
preocupação. Por causa dela, submeteu à crítica todos os domínios vitais de nossa
civilização ocidental: científicos, éticos, religiosos e políticos.
Nietzsche é um dos grandes mestres da suspeita, que denuncia a moralidade e
a política moderna como transformação vulgarizada de antigos valores metafísicos e
religiosos, numa conjuração subterrânea que conduz ao amesquinhamento das
condições nas quais se desenvolve a vida social. Nesse sentido, ele é um dos mais
intransigentes críticos do nivelamento e da massificação da humanidade. Para ele, isso
era uma conseqüência funesta da extensão global da sociedade civil burguesa, tal como
esta se configurou a partir da Revolução Industrial.
Nietzsche se opõe a supressão das diferenças, a padronização de valores que,
sob o pretexto de universalidade, encobre, de fato, a imposição totalitária de interesses
particulares; por isso, ele é também um opositor da igualdade entendida como
uniformidade. Assim, denunciou a transformação de pessoas em peças anônimas da
engrenagem global de interesses e a manipulação de corações e mentes pelos grandes
dispositivos formadores de opinião.
O esforço filosófico de Nietzsche o levou a se confrontar com as grandes
correntes históricas responsáveis pela formação do Ocidente: a tradição paga greco-
romana e a judaico-cristã; e o que resultou da fusão entre as duas.
Ao longo desse seu confronto com o conjunto da herança cultural de nossa
tradição, Nietzsche forjou conceitos e figuras do pensamento que até hoje impregnam
nosso vocabulário e povoam nosso imaginário político e artístico. Tais são, por exemplo,
as noções de Apoio e Dionísio, transformadas em categorias estéticas, os conceitos de
vontade de poder, além-do-homem (Übermensch), eterno retomo e niilismo e a figura da morte
de Deus.
É impossível se colocar à altura dos principais temas e questões de nosso
tempo sem entender o pensamento de Nietzsche. Ateísta radical, ele atribui ao homem a
tarefa de se reapropriar de sua essência e definir as metas de seu destino. Dele afirma o
filósofo Martin Heidegger: "Nietzsche é o primeiro pensador que, perante a história
universal pela primeira vez aflorada em seu conjunto, coloca a pergunta decisiva e a
reflete internamente em toda a sua extensão metafísica. Essa pergunta reza: como
homem, em sua essência até aqui, está o homem preparado para assumir o domínio da
terra?"1
Nesse sentido, Nietzsche é o pensador de nossas angústias, que não poupou
nenhuma certeza estabelecida — sobretudo as suas próprias convicções — e desvendou
os mais sinistros labirintos da alma moderna. Com a paixão que liga a vida ao
pensamento, Nietzsche refletiu sobre todos os problemas cruciais da cultura moderna,
sobre as perplexidades, os desafios, as vertigens no fim do século 19. Dessa sua
condição, postado entre o final e o início de duas eras, Nietzsche esboçou um quadro
que, em todos os seus matizes, nos concerne ainda, na passagem a um novo milênio, em
direção a um destino que ainda não se pode discernir.
A despeito de sua visão sombria, Nietzsche tentou ser, ao mesmo tempo, um
arauto de novas esperanças. Sua mensagem definitiva — a criação de novos valores, a
instituição de novas metas para a aventura humana na história — é também um cântico
de alegria. Essa é uma das razões pelas quais o estilo de Nietzsche resulta da
combinação paradoxal de elementos antagônicos: sombra e luz, agonia e êxtase,
gravidade e leveza.
Isso explica por que, para ele, o riso e a paródia são operadores filosóficos
inigualáveis: eles permitem reverter perspectivas fossilizadas. Nietzsche, o impiedoso
crítico das crenças canônicas, é também um mestre da ironia. Sua ambição consiste em
tomar superfície o que é profundidade, restituir a graça ao peso da seriedade filosófica.
Opositor ferrenho da dialética socrática, Nietzsche reedita, no mundo
moderno, o gesto irônico do pai fundador da filosofia ocidental. Decisivo adversário de
Platão, sua filosofia talvez possa ser caracterizada como uma inversão paródica do
platonismo. Definindo-se como o mais intransigente anticristão, dá, no entanto, á sua
autobiografia intelectual, escrita no final de sua vida, o título Ecce Homo ("Eis o
Homem") — expressão empregada por Pilatos ao apresentar Jesus a seus algozes, pouco
antes da Paixão.
Nietzsche, o filósofo-artista, um poeta que só acreditava numa filosofia que
fosse expressão das vivências genuínas e pessoais, vendo na experiência estética uma
espécie de êxtase e redenção, é, por isso mesmo, um precursor da crítica a um tipo de
racionalidade meramente técnica, fria e planificadora. A despeito da profundidade e da
gravidade das questões com que se ocupa, sempre as tratou em estilo artístico,
poeticamente sugestivo; só acreditava na autenticidade de um pensamento que nos
motivasse a dançar. Ele mesmo imagina sobre sua porta a inscrição:
Moro em minha própria casa
Nada imitei de ninguém
E ainda ri de todo mestre
Que não riu de si também.2

Sem extravasar os limites dos livros desta série, Folha Explica Nietzsche se
propõe a ser uma apresentação geral do homem e do filósofo Friedrich Nietzsche. Seu
objetivo é fazer com que o leitor se familiarize com os conceitos, as figuras e o estilo de
Nietzsche — não para depois encerrá-los em qualquer câmara da memória, mas sim
para despertar seu interesse e estimulá-lo a seguir adiante. Aceitar o desafio de
Nietzsche implica, sobretudo, pensar independentemente; e por isso, ás vezes, também
contra Nietzsche.

1Heidegger. "Wer ist Nietzsches Zarathustra?"; em: Vorträge und Aufsätze. Pfullingen: Neske Verlag, 1954; p. 102.
2 Epígrafe de A Gaia Ciência; em Nietzsche. Obra Incompleta. Trad. Rubem Rodrigues Torres Filho. Col. Os
Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1974: p 195.
1. A CRISE DOS VALORES

O pensamento filosófico de Nietzsche pode ser comparado a uma espécie de


sensor que registra e antecipa questões e desafios de nosso século. Sua ambição é
realizar um diagnóstico fiel da situação do homem moderno. Para ele, não resta dúvida
de que, herdeiro dos progressos do Iluminismo, julgamo-nos liberados das cadeias da
ignorância e da superstição. Confiantes nas possibilidades advindas da utilização
industrial da ciência e da técnica, estamos certos de poder descobrir todos os segredos
do universo e construir uma sociedade expurgada de todas as formas de opressão,
violência, exploração. Afinal, somos devotos do deus Logos,3 confiantes em sua
onipotência.
Nietzsche, porém, meditou sobre o lado obscuro, as conseqüências que
poderiam resultar do otimismo desenfreado embutido nessa convicção. Esse otimismo
representa, para ele, a face resplandecente de um avesso sombrio: o mesmo progresso
conduz inexoravelmente à exaustão dos valores herdados da tradição, à sua
impossibilidade de dar sustentação a futuros projetos viáveis, no campo quer do
conhecimento, quer da ética, quer da política.
Nietzsche se encontrava no limiar de uma experiência do mundo em que, como
conseqüência dos progressos do conhecimento, noções como Verdade, Falsidade,
Justiça, Bem, Mal, Virtude tinham sido relativizadas, não podendo mais responder a
nossa eterna pergunta pelo sentido da existência. Para ele, não cabia ao filósofo
justificar ou condenar esse estado de coisas, mas constatá-lo; essa constatação seria,
então, o único caminho que permite vislumbrar uma saída. Toda tentativa de negar essa
condição representa não apenas uma desonestidade intelectual e moral, mas sobretudo
o risco da catástrofe; ou seja, a possibilidade de que o esvaziamento de valores
autênticos nos conduza de volta á barbárie, á destruição daquilo que de mais precioso a
humanidade conquistou ao longo da história: a dignidade da pessoa humana.
Por essa razão, Nietzsche dedicou sua vida a realizar três tarefas principais:
compreender a lógica desse movimento contraditório ao longo do qual o progresso do

3Logos: palavra grega que significa "palavra", "discurso" e "razão"; termo que dá origem à palavra lógica e que, em
sentido amplo, é equivalente à racionalidade.
conhecimento leva á perda de consistência dos valores absolutos; a partir daí, denunciar
todas as formas de mistificação pelas quais o homem moderno oblitera sua visão dos
perigos de sua condição; por fim, destruídos os falsos ídolos — e esses são os valores
mais venerados pelo homem moderno — assumir corajosamente o risco de pensar novos
valores, abrir novos horizontes para a experiência humana na história.
Nietzsche viveu e pensou em profundidade a crise que se abatia sobre a
Europa ao final do século 19. Filha de seu próprio tempo, sua obra submete a uma
crítica impiedosa todas as esferas da cultura. Porém, ao exigir do homem moderno que
tome consciência das conseqüências, das possibilidades e dos limites de seu saber e agir,
Nietzsche coloca questões que até hoje prosseguem conosco. Num de seus mais belos e
célebres textos, põe em cena o drama de nossa condição:
"Não ouvistes falar daquele homem louco que, em plena manha clara, acendeu
um candeeiro, correu para o mercado e gritava incessantemente: 'Procuro Deus!
Procuro Deus?'— E, como lá se reunissem justamente muitos daqueles que não
acreditavam em Deus, provocou ele então grande gargalhada. 'Perdeu-se ele, então?',
dizia um. 'Ter-se-ia extraviado, como uma criança?', dizia outro.'Ou se mantém oculto?
Tem ele medo de nós? Embarcou no navio? Emigrou?' — desse modo gritavam e riam
entre si. O homem louco saltou em meio a eles e trespassou-os com o oUiar. 'Para onde
foi Deus?', clamou ele,'eu vos quero dízê-lo! Nós o matamos, vós e eu! Nós todos somos
seus assassinos? Como, porém, fizemos isso? Como pudemos tragar o oceano? Quem
nos deu a esponja para remover o horizonte inteiro? Que fizemos nós quando
desprendemos esta Terra de seu sol? Para onde se move ela, então? Para onde nos
movemos nós? Longe de todos os sóis? Não nos precipitamos sem cessar? E para trás,
para o lado, para frente, de todos os lados? Há ainda um alto e um baixo? Não erramos
como através de um nada infinito? Não nos bafeja o espaço vazio? Não ficou mais frio?
Não vem, sem cessar, sempre a noite e mais noite? Não se tem que acender candeeiros
pela manhã? Nada ouvimos ainda do rumor dos coveiros,que sepultam Deus? Nada
sentimos ainda do cheiro da decomposição divina? — também os deuses se
decompõem! Deus morreu! Deus permanece morto! E nós o matamos! Como é que nos
consolamos, nós os assassinos de todos os assassinos? Aquilo de mais santo e poderoso
que o universo possuiu até agora sangrou sob nossos punhais — quem enxuga de nós
esse sangue? Com que água poderíamos nos purificar? Que cerimônias de expiação,
que divinos jogos teríamos de inventar? A grandeza desse feito não é demasiado grande
para nós? Não teríamos que nos tomar, nós próprios, deuses, para apenas parecer
dignos dele? Jamais houve um feito maior — e sempre quem tenha apenas nascido
depois de nós pertence, por causa desse feito, a uma história mais elevada do que foi
toda história até agora!' — “Aqui, calou-se o homem louco e mirou de novo seus
ouvintes. Também estes silenciavam e olhavam-no com estranhamento. Finalmente, ele
arrojou o candeeiro ao solo, de modo que este se estilhaçou e apagou.'Chego cedo
demais', disse ele então; 'não estou ainda no tempo oportuno. Esse acontecimento
formidável está ainda a caminho e peregrina — ele ainda não penetrou nos ouvidos dos
homens. Relâmpago e trovão precisam de tempo, a luz dos astros precisa de tempo,
feitos precisam de tempo, mesmo depois de consumados, para serem vistos e ouvidos.
Este feito está ainda mais distante deles do que os astros mais remotos —, e todavia eles
o consumaram'. Conta-se ainda que, no mesmo dia, o homem louco teria entrado em
diversas igrejas e nelas entoado seu requiem aetemam Deo. Conduzido para fora e instado
a falar, teria ele replicado sempre apenas isto: 'O que são, então, as igrejas, se não criptas
e mausoléus de Deus?” 4
A passagem descreve o sentimento de abandono que, como vazio opressivo,
esmaga a consciência do homem moderno. Os cínicos escarnecedores, reunidos na
praça do mercado, somos também nós, vencedores do combate da ciência contra as
trevas da ignorância. Apenas nós, homens modernos, não estávamos conscientes da
dimensão épica de nosso próprio feito, nada sabíamos da tragédia que
desencadeáramos, nela precipitando nosso mundo.
Friedrich Nietzsche é o pensador a quem coube apreender filosoficamente a
experiência intelectual que marca nosso destino, ao tentar levar até suas conseqüências
extremas o impulso crítico que anima o pensamento filosófico da modernidade. Não se
pode, porém, extrair as últimas conclusões desse impulso crítico sem retomar á sua
origem, isto é, para Nietzsche, á metafísica de Platão. Por essa razão, uma das primeiras
e mais fundamentais tarefas que Nietzsche se atribui é a de refutar e destruir a
metafísica platônica.

4 Nietzsche, Gaia Ciência; aforismo 125: O Homem louco


2. NIETZSCHE E O FIM DA METAFÍSICA

Para Nietzsche, pode-se tomar a filosofia de Platão como modelo da metafísica.


Esta se fundamenta numa concepção dualista do universo, estabelecendo uma oposição
de valores entre duas esferas distintas da realidade ou do ser: de um lado, existe um
domínio ideal, considerado como o verdadeiro mundo ou a realidade verdadeira, assim
denominado por ser o plano das essências, isto é, aquilo que, em todo e qualquer
fenômeno constitui sua pura forma ou conceito. Assim, por exemplo, a humanidade
constitui a essência de cada ser humano particular, ou a triangularidade determina a
natureza de toda e qualquer figura triangular que vemos ou traçamos. Todos os
indivíduos humanos concretos são limitados e finitos, mas a humanidade é uma
entidade intelectual, que em nada se altera em virtude da sucessão dos indivíduos
singulares.
Tais formas puras, denominadas tecnicamente idéias por Platão, teriam sua
origem na idéia do Bem — ou de Deus — que é a causa produtora de todas as outras
idéias que são as formas gerais do universo.Tais entidades são inacessíveis a nossos
órgãos dos sentidos; e imutáveis, uma vez que não estão submetidas às leis do espaço e
do tempo. Por serem as responsáveis pela realidade de todo real, foram
tradicionalmente denominadas realidade inteligível, em contraposição a uma segunda
ordem de realidade, a realidade aparente ou sensível, que é aquela de que temos
experiência ordinária.
Contraposto ás essências inteligíveis, o mundo sensível é tradicionalmente
considerado um plano de realidade deficitária, enganosa, mera aparência ou simulacro
das formas puras, que são como originais ou modelos dos quais toda realidade
empírica, sensível, constitui uma cópia, necessariamente imperfeita e corruptível. E a
essa realidade degradada, sujeita ás condições do espaço e do tempo, que pertence
nossa existência terrena e corporal.
Nossa alma ou espírito, nossa verdadeira essência e princípio inteligível, estaria
como se prisioneira de nosso corpo, sendo por isso induzida ao erro e ao engano pelos
sentidos, que nos arrastam para o plano das aparências, desviando-nos do que seria
nossa verdadeira destinação: a contemplação das formas puras. Em virtude de nossa
akna racional, imortal, somos aparentados com as puras idéias e participantes do
mundo inteligível.
Todo conhecimento verdadeiro seria, pois, uma espécie de recordação do que
outrora, antes do cativeiro de nossa alma pelo corpo e no mundo terrestre,
contempláramos do verdadeiro e divino mundo das idéias. Um espírito, ou razão pura,
e um bem em si (um bem ou valor cuja vigência é universal e necessária) constituem as
referências metafísicas que dão sustentação tanto ao conhecimento científico quanto ás
ações morais do ser humano no mundo.
O anúncio, por Nietzsche, da morte de Deus significa o fim do modo
tipicamente metafísico de pensar, na medida em que, para ele, o cristianismo, tanto
como religião quanto como doutrina moral, constitui uma versão vulgarizada do
platonismo, adaptada às necessidades e anseios de amplas massas populares. Por sua
vez, o cristianismo constitui, para Nietzsche, a medula ética do mundo ocidental; é da
seiva moral do cristianismo que se nutrem todas as esferas importantes de nossa
cultura, desde a mais abstrata e rarefeita investigação das ciências formais até o plano
material de organização da vida e do trabalho.
Para Nietzsche, a morte de Deus é uma expressão simbólica do
desaparecimento desse horizonte metafísico, baseado na oposição entre aparência e
realidade, verdade e falsidade, bem e mal. Isso significa que não podemos mais
sustentar a crença num conhecimento objetivo, que ultrapasse a particularidade de
nossos afetos.
Para Nietzsche, todo conhecimento é inevitavelmente guiado por interesses e
condicionamentos subjetivos, ideológicos; o conhecimento resulta da projeção de nossos
impulsos e anseios, razão pela qual Nietzsche o considera sempre determinado por
certa perspectiva, seja individual, seja sócio-culturalmente determinada. Se, como
resultado do desenvolvimento das ciências e do aprofundamento do esclarecimento,
chegamos ã experiência da morte de Deus, então é lícito colocar também em questão o
único valor absoluto que ainda permanece reconhecido pela consciência científica
contemporânea: o valor absoluto da verdade. A morte de Deus implica, portanto, a
possibilidade de colocar em questão a crença na origem divina e no valor absoluto da verdade.
Fazer com que a verdade apareça como um problema implica, para Nietzsche,
problematizar também conceitos como o bem e o mal, o justo e o injusto, o lícito e o
proibido, na medida em que verdade, beleza e bondade (justiça) sempre foram termos
que mantiveram íntima correlação. Nietzsche é, pois, o filósofo que ousa colocar em
questão o valor dos valores. Sua preocupação consiste em trazer ã luz as condições
históricas das quais emergiram nossos supostos valores absolutos, colocando em
dúvida a pretensa sacralidade de sua origem. Em sua genealogia da moral, Nietzsche
pretende também submeter a julgamento o valor desses mesmos valores: foram eles
propícios ou nocivos ao florescimento e intensificação da vida humana na terra?
A EXPLICAÇÃO GENEALÓGICA

De acordo com esse método, a explicação de um fenômeno qualquer depende


sempre da reconstituição dos momentos constitutivos de seu vir-a-ser, de tal maneira
que o sentido atual desse fenômeno não pode ser obtido sem o conhecimento da série
histórica de suas transformações e deslocamentos.
Aplicando-o á gênese dos sentimentos morais, Nietzsche afirma que aquilo
que, a um olhar não suficientemente adestrado, pode aparecer como uma oposição
entre contrários — por exemplo, entre bom e mau, egoísta e altruísta, mas também entre
belo e feio, verdadeiro e falso, objetivo e subjetivo —, sempre se revela, á luz de sua
consideração histórico-genealógica, como uma transformação do oposto em seu outro.
Sugestivamente, Nietzsche dá a isso o nome de "química cios conceitos e dos
sentimentos", na medida em que o ilustra a partir do fenômeno químico da sublimação:
"A filosofia histórica que, de modo algum, pode mais ser pensada
separadamente da ciência natural, o mais jovem de todos os métodos filosóficos,
revelou em casos singulares (c supostamente será este seu resultado em todos os casos)
que não existem contrários, a não ser no habitual exagero da concepção popular ou
metafísica, e que um erro da razão subjaz a essa contraposição: nos termos de sua
explicação, não existe, rigorosamente falando, nem um agir não-egoísta, nem uma
contemplação desinteressada; ambos são sublimações, nas quais o elemento
fundamental, quase volatilizado, demonstra-se como existente apenas para a mais
refinada observação".15
Dessa maneira, não somente desaparecem as antíteses entre pólos opostos,
como também se dissolvem as entidades estáveis, as substâncias fixas e permanentes. O
conjunto inteiro dos fenômenos, seja no domínio da natureza, seja no do espírito,
constitui-se como um universo em constante transformação, um vir-a-ser (ou "devir"). O
caráter específico da abordagem histórico-genealógica nietzscheana é constituído pela
direção de seu olhar investigativo: a perspectiva se orienta de cima para baixo, das
figuras mais solenes e refinadas — onde não se percebe a matéria grosseira - a suas
condições de possibilidade.
A partir de Humano, Demasiado Humano, Nietzsche passa a proceder
metodicamente nesse sentido, sempre escavando os subterrâneos das mais requintadas
formações culturais, especialmente da moral.
"Quem contempla aqueles temíveis despenhadeiros escarpados onde geleiras
se acumulam considera impossível que venha um tempo em que, no mesmo sítio, se
instale um vale de relvado e floresta, com regatos. Assim é também na história da
humanidade: as forças mais selvagens abrem caminho, e, embora destrutivas, de início
a atividade delas foi necessária para que, mais tarde, um modo de vida mais suave aí
erguesse sua morada. As energias terríveis — aquilo que se chama o Mal — são os
ciclópicos arquitetos e construtores de caminho da humanidade." 16
Percebe-se atuando aqui um ideal de filosofia histórica que não pode prescindir
da colaboração das demais ciências, na medida em que, para estar à altura de seu
tempo, o filósofo deve ser capaz de fazer uso dos mais avançados resultados das
disciplinas científicas, com o propósito de se elevar a uma concepção de mundo
liberada das fantasias e superstições engendradas pela religião, pela moral e pela
metafísica. Nesse sentido, o homem teórico não representa apenas o desenvolvimento
do artista, mas, sobretudo, a passagem da infância religioso-metafísica, através do
período de adolescência representado pela arte, para a plena maturidade conferida pelo
espírito científico.
Retomando uma metáfora comum ao pensamento clássico, que põe em
correspondência as fases de desenvolvimento da cultura de cada indivíduo com as
etapas de evolução histórico-cultural da humanidade, Nietzsche dá a seguinte
expressão á sua própria idéia do desenvolvimento humano:
"Os homens retomam cada vez mais rápido as fases costumeiras da cultura
espiritual que foram alcançadas ao longo da história. Eles atualmente começam por
fazer seu ingresso na cultura como crianças religiosamente motivadas e desenvolvem
essa sensibilidade em sua suprema vivacidade até o décimo ano de viela; passam,
então, por formas cada vez mais enfraquecidas (panteísmo), enquanto se aproximam da
ciência; superam inteiramente Deus, imortalidade e coisas similares, mas sucumbem á
magia de uma filosofia metafísica; por fim, esta também se tona desacreditada; a arte
parece, ao contrário, cada vez mais confiável, de modo que, durante algum tempo, a

15 Humano, demasiado humano, I, 1


16 ld..246; em: KSA vol. 2: p. 205.
metafísica apenas pode permanecer e seguir vivendo numa espécie de transmutação em
arte, ou numa disposição artístico-transfiguradora. Todavia, o senso científico se toma
cada vez mais imperioso e conduz o homem para a ciência natural, a história e,
nomeadamente, para os mais severos modos de conhecimento, ao passo que á arte é
atribuída uma significação cada vez mais leve e despretensiosa. Isso tudo costuma
ocorrer agora nos primeiros 30 anos de um homem. E a recapitulação de uma tarefa
para a qual a humanidade trabalhou sobre si durante talvez 30 mil anos".17
Pode-se afirmar, considerando o nível de generalidade exigido por esta
apresentação, que os dois livros publicados a seguir — Aurora: Pensamentos Sobre os
Preconceitos Morais (1881) e A Gaia Ciência (1882) — permanecem sob a influência do
mesmo espírito intelectualista que descrevemos como característico do segundo período
da filosofia nietzscheana.18

AURORA E A GAIA CIÊNCIA

Em Aurora, Nietzsche lança mão cia penetração psicológica, do rigor de sua


filosofia histórica, para escavar o campo da moralidade e da religião, com o propósito
de examinar as fundações sobre as quais foram erigidos os majestosos edifícios éticos da
tradição ocidental. Esse trabalho de topeira no subsolo insalubre dos sentimentos
morais visa trazer à superfície de um conhecimento livre de preconceitos as condições e
os propósitos, as motivações inconfessáveis, que estão na origem dos valores éticos
prctensamente absolutos. Trata-se de um livro marcado por uma disposição de ânimo
ao mesmo tempo grave e libertária: um livro das profundezas sombrias, que aspira pela
luz da superfície.
Nele Nietzsche se considera a si mesmo representante e legítimo herdeiro da
tradição metafísica ocidental; trata-se, porém, daquele herdeiro em cujo pensamento
essa tradição tomou consciência de si, por meio do conhecimento de sua própria
origem. For isso, ela não pode mais se furtar á confissão franca das condições
problemáticas de surgimento de seus valores mais elevados. A honestidade intelectual,

17Id., 272; p. 224s.


18 Aqui seria impossível excluir o livro V A Gaia Ciência, escrito em 1886 e acrescido à obra na segunda edição,
ocorrida naquele ano. Tanto cronológica quanto tematicamente, esse livro V A Gaia Ciência pertence ao terceiro
característica da moderna consciência científica, é a instância que impõe, como um
dever, a tarefa paradoxal de superar as formas e valores da moralidade ocidental.
Aurora sugere, pois, o surgimento de uma nova luz para a humanidade, um novo
tempo, que pode sonhar com a esperança brotada da liberdade espiritual.
A Gaia Ciência (1882), por sua vez, pode ser considerado um livro que, mesmo
ainda permanecendo no interior da "filosofia para espíritos livres", já anuncia a
transição para a terceira etapa do filosofar nietzscheano. Nele permanece dominante a
perspectiva de valorização da racionalidade científica, mas de uma ciência alegre
("gaia"), que pode se dar ao luxo intelectual de percorrer, com graça e leveza, os
caminhos mais pedregosos, levar sobre os ombros os mais penosos fardos de nossa
tradição, sem negatividade ou rancor, esforçando-se por multiplicar as perspectivas,
para poder compor uma imagem mais plena das coisas, embora nunca total.
Em A Gaia Ciência - ao lado dos temas sempre presentes na filosofia de
Nietzsche, como a crítica do conhecimento, da arte, da religião, da metafísica e da moral
—, pode-se perceber claramente um aprofundamento e intensificação das preocupações
pedagógicas, a intenção de organizar o pensamento de forma tal que uma leitura
conveniente da obra seja o caminho para a libertação suprema. Para esse leitor ideal, o
livro não visa ensinar uma doutrina; sua lição fundamental é a responsabilidade do
pensamento independente. O mestre é aqui, sobretudo, aquele que prepara o discípulo
para abandoná-lo, para que este empreenda por si mesmo a aventura do espírito.
A filosofia dos espíritos livres se toma, em A Gaia Ciência, uma ascese e
preparação para o surgimento da personalidade autêntica que, pela disciplina crítica,
aprendeu a discriminar entre as necessidades e aspirações que brotam de sua natureza
singular e aquelas que lhe são impostas do exterior, afastando-a do caminho que a
poderia conduzir a si mesma. Nietzsche acredita que esse caminho está reservado apenas
para aqueles poucos que têm a ousadia de pensar e responder por si próprios.

período da filosofia de Nietzsche.

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