tese redobro do clitico

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RICARDO MACHADO-ROCHA

O Redobro de Clítico no Português Brasileiro Dialetal

Belo Horizonte
Maio de 2016
RICARDO MACHADO-ROCHA

O Redobro de Clítico no Português Brasileiro Dialetal

Tese submetida ao Programa de Pós-graduação em


Estudos Linguísticos da Universidade Federal de Minas
Gerais, sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Jania Martins
Ramos, como requisito parcial para a obtenção do título de
Doutor em Linguística Teórica e Descritiva.

Linha de Pesquisa: (1F) Estudos em Sintaxe Formal

Belo Horizonte
Maio de 2016

2
3
Ficha catalográfica elaborada pelos Bibliotecários da Biblioteca FALE/UFMG

Machado-Rocha, Ricardo.
O redobro de clítico no português brasileiro dialetal [manuscrito] /
R672r
Ricardo Machado-Rocha. – 2016.
127p., enc. : il., tabs., p&b.

Orientadora: Jânia Martins Ramos.

Área de concentração: Linguística Teórica e Descritiva.

Linha de pesquisa: Estudos em Sintaxe Formal.

Tese (doutorado) – Universidade Federal de Minas Gerais,


Faculdade de Letras.

Bibliografia: f. 124-129.

1. Língua portuguesa – Regionalismo – Minas


Gerais – Teses. 2. Língua portuguesa – Pronomes –
Teses. 3. Língua portuguesa – Concordância – Teses.
4. Língua portuguesa – Variação – Teses. I. Ramos,
Jânia Martins. II. Universidade Federal de Minas
Gerais. Faculdade de Letras. III. Título.
CDD : 469.798

4
Agradecimentos

Agradeço imensamente à Professora Jania Ramos: pela parceria, pela amizade,


pelo privilégio de tê-la como minha orientadora durante toda minha formação
acadêmica.
A toda a equipe do Poslin, pelo apoio.
Ao professor David Adger, pela disponibilidade e orientação durante o estágio
sanduíche. Devo boa parte das ideias desta tese aos diálogos com ele.
Agradeço também ao departamento de linguística da Queen Mary University of
London, por ter me recebido e me acolhido.
Ao professor Ricardo Augusto de Souza, que leu com tanta dedicação o texto de
qualificação desta tese. Agradeço pelas sugestões.
Aos professores que se dispuseram a participar da minha banca de defesa e
enriqueceram este trabalho: Heloisa Maria Moreira Lima Salles, Maria Aparecida
Torres de Morais, Lílian Teixeira de Souza e Lorenzo Vitral. Devo agradecimentos
especiais à Professora Heloisa Salles, pelo interesse e disponibilidade sempre.
À minha família, pelo incentivo. E ao querido Marcelo: agradecimentos do
coração.

5
Resumo

Esta tese investiga estruturas de Redobro de Clítico (RC) no Português Brasileiro


(PB) dialetal, a partir de dados orais e escritos de Minas Gerais. Sob a perspectiva
da sintaxe formal, quatro problemas centrais são discutidos: (i) a opcionalidade
das construções de RC no PB; (ii) a restrição de ocorrência dessas estruturas para a
1.ª e a 2.ª pessoas pronominais, apenas; (iii) a amplitude de contextos sintáticos
que permitem o redobramento com as formas me e te; e (iv) o estatuto categorial
das formas me e te. Argumentamos que as construções de RC do PB são casos de
concordância opcional. Essa opcionalidade, no entanto, não é irrestrita, mas
condicionada por um traço formal específico, qual seja, o traço [uautor:±],
hospedado na projeção clítica ClP. É também devido a este traço que a ocorrência
de RC se dá apenas com a 1.ª e a 2.ª pessoas. Uma vez que elementos de 3.ª pessoa
não são especificados para o traço relevante da projeção clítica, eles não permitem
a presença dessa projeção na derivação. Os RC no PB dialetal podem ocorrer com
acusativos, dativos, possessivos, em construções de sujeito ECM, em miniorações e
também com objetos dentro de expressões idiomáticas. Embora haja essa
variedade de contextos, propomos que a estrutura básica do RC no PB é cl-V-DP.
Para que a estrutura de RC seja possível, dois critérios precisam ser atendidos: (a)
o DP precisa conter uma contraparte valorado do traço [autor]; e (b), é preciso que
o argumento redobrado tenha seu traço de Caso valorado. Assumimos ainda que as
formas me e te do PB dialetal não podem ser consideradas pronomes clíticos no
sentido tradicional do termo, mas se aproximam do comportamento das marcas de
concordância. A análise se filia, dessa forma, a uma corrente de propostas que
localizam os fenômenos de RC dentro do conjunto das operações gerais de
concordância.
Palavras-chave: Redobro de clítico; Pronomes; 1.ª e 2.ª pessoas; Concordância;
Variação dialetal.

6
Abstract

This dissertation investigates Clitic Doubling (CD) structures in dialectal Brazilian


Portuguese (BP), taking into account oral and written data from the state of Minas
Gerais. Under a formal syntax perspective, four core problems are discussed: (i)
the optionality of BP CD constructions; (ii) the person restriction of occurrence of
CD, limited to 1st and 2nd person pronouns only; (iii) the amplitude of syntactic
contexts that allow doubling with the forms me and te; and (iv) the syntactic status
of the forms me and te. We argue that BP CD constructions are instances of
optional agreement. This optionality is not unrestricted, however, but conditioned
by an specific formal feature, namely, [uauthor:±], which is hosted by the projection
ClP. It is also due to this feature that CD takes place only with 1st and 2nd person.
Since 3rd person elements are underspecified for the relevant feature of the clitic
projection, they do not allow for that projection to be present in the derivation.
Dialectal BP CD can occur with accusatives, datives, possessives and within ECM
subject constructions, small-clauses and idioms. Despite this variety of contexts,
we propose that the basic structure of BP CD is cl-V-DP. Two requirements must be
met, for the CD structure to obtain: (a) the DP must bear a valued counterpart of
the [author] feature; and (b) the doubled argument must have its Case feature
valued. We also assume that the dialectal BP forms me and te cannot be treated as
clitics pronouns, in traditional terms. Instead their behavior resembles agreement
marks. Therefore this analysis is affiliated to a line of approaches that situate CD
phenomena within a broader set of agreement operations.
Keywords: Clitic doubling; Pronouns; 1st and 2nd person; Agreement; Dialectal
variation.

7
Lista de símbolos e abreviações

* Sentença agramatical
? Sentença degrada/julgamento de gramaticalidade variável
1P.PL 1.ª pessoa do plural
1PS ou 1P.SG 1.ª pessoa do singular
2P.PL 2.ª pessoa do plural
2PS ou 2P.SG 2.ª pessoa do singular
ACU Acusativo
-AGR Agreement - concordância
AgrP Agreement Projection - projeção de concordância
au autor
Cl Clítico
ClP Clitic phrase - sintagma do clítico
CP Complementizer phrase - sintagma complementizador
DAT Dativo
DP Determiner phrase - sintagma determinante
ECM Exceptional case marking - marcação excepcional de caso
F Feature - traço
FF Formal Features - Traços Formais
GEN Genitivo
INF Infinitivo
IP Inflectional phrase - sintagma flexional
KP K phrase - sintagma K (sintagma de caso)
LF Logical Form - Forma Lógica
NOM Nominativo
NP Nominal phrase - sintagma nominal
nP Little n phrase - Sintagma do “enezinho” (projeção funcional de N)
Ø Marca zero default
OD Objeto direto
OI Objeto indireto
Part Participante
PASS Voz passiva
PB Português brasileiro
PE Português europeu
PF Phonological Form - Forma Fonológica

8
PP Prepositional phrase - sintagma preposicional
prep Preposição
pro little pro - “prozinho”
RC Redobro de clítico
RL Regência e Ligação
sing Singular
Spec Specifier - especificador
TP Tense phrase - sintagma de Tempo
VP Verb phrase - sintagma verbal
vP ou v*P Little v phrase - sintagma do “vezinho”
XP X phrase - sintagma X (hipotético)
φP φ phrase - sintagma φ (projeção de traços de gênero, n.º, pessoa)

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Lista de diagramas e tabelas

Diagrama 1 DP complexo vs. DP regular


Diagrama 2 Clíticos fracos vs. clíticos fortes
Diagrama 3 DP redobrado, segundo Roberts (2010b)
Diagrama 4 Projeções Clíticas de Sportiche (1996)
Diagrama 5 Fusão na Componente Morfológica
Diagrama 6 A base estrutural da (não) indicialidade
Diagrama 7 Padrões morfossintáticos previstos para pronomes D e
pronomes φ
Diagrama 8 Homofonia de pronomes D e pronomes φ
Diagrama 9 pro-DPs, pro-φPs e pro-NPs
Diagrama 10 Geometria de traços de Harley & Ritter (2002)
Diagrama 11 Estrutura dos pronomes de 1.ª e 2.ª pessoas em van Koppen
(2012)
Diagrama 12 Projeções de concordância em McCloskey (1996)
Diagrama 13 A projeção clítica no PB
Diagrama 14 Derivação da estrutura simples com clítico
Diagrama 15 Derivação da estrutura redobrada
Diagrama 16 Derivação da estrutura simples com pronome pleno
Diagrama 17 Má formação da estrutura redobrada com clítico de 3.ª pessoa
Diagrama 18 Má formação da estrutura simples com clítico de 3.ª pessoa
Diagrama 19 Derivação da estrutura simples com pronome pleno de 3.ª
pessoa
Diagrama 20 Derivação da estrutura redobrada com argumento dativo
Diagrama 21 Derivação da estrutura redobrada com um determinante
possessivo

Tabela 1 Clíticos e determinantes do galego


Tabela 2 Estruturas clíticas de acordo com Sportiche (1996)
Tabela 3 Clíticos do PE vs. Prefixos do PB
Tabela 4 Sistema de concordância de objeto no espanhol
Tabela 5 Composição de traços dos pronomes do inglês, de acordo com
Adger (2006)

10
Sumário

1. Introdução ..................................................................................................................... 13

2. Revisão da literatura sobre os RC ......................................................................... 26


2.1 O dilema movimento X inserção .........................................................................................28
2.2 RC como fracionamento de um constituinte complexo .............................................30
2.2.1 Considerações sobre as abordagens baseadas no fracionamento de um DP
complexo ...............................................................................................................................................40
2.3 RC como concordância/cadeia ............................................................................................41
2.3.1 Considerações sobre o modelo de concordância/cadeia ........................................48
2.3.2 Evidências a favor de uma hipótese de concordância para os RC do PB ...........50
2.4 Síntese do Capítulo ..................................................................................................................52

3. RC no PB, efeitos interpretativos e cadeias paralelas.................................... 54


3.1 RC como uma estrutura de “pessoa específica” ............................................................55
3.2 RC, Teoria de Cópia e cadeias paralelas...........................................................................57
3.3 Problemas da hipótese de efeito interpretativo ...........................................................62
3.4 Síntese do capítulo ...................................................................................................................64

4. Particularidades morfossintáticas dos pronomes de 1.ª e 2.ª pessoas ... 66


4.1 Clíticos de 1.ª e 2.ª pessoas como concordância ..........................................................66
4.2 Agree e concordância operador-variável com pronomes de 1.ª e 2.ª pessoas .70
4.3 Concordância independente para traços de Participante ........................................81
4.4 O traço relevante para os RC do PB ...................................................................................87
4.5 Síntese do capítulo ...................................................................................................................89

5. Os RC no PB como instâncias de concordância de objeto ............................. 91


5.1 Fundamentação da hipótese ................................................................................................95
5.1.1 Sportiche (1996): Projeções clíticas ................................................................................95
5.1.2 McCloskey (1996): Projeção de concordância opcional ..........................................97
5.1.3 Adger (2006): Sistema de traços e operações de checagem nos pronomes ....99
5.2 Estruturação da hipótese ................................................................................................... 101
5.3 Aplicação da hipótese .......................................................................................................... 103
5.4 O traço [uautor: ±] na concordância do PB .................................................................. 116
5.5 Síntese do capítulo ................................................................................................................ 119

11
Conclusões ...........................................................................................................................120

Referências ..........................................................................................................................124

12
1. Introdução

O objetivo desta tese é oferecer uma explicação formal para os Redobros de


Clíticos (RC) no português brasileiro (PB), tendo-se em conta, principalmente, dados de
falares do estado de Minas Gerais1, como exemplificado em (1):

1) Redobros de clítico no PB
Com pronomes de 1.ª pessoa
a. Ele me ajuda eu
b. tinha cinco médico lá me oinano eu assim2

Com pronomes de 2.ª pessoa


c. Eu te ajudo você
d. se cê uma hora acha um que te acerta ocê3

O redobramento de clítico é uma estrutura em que um clítico coocorre com um


DP pleno ou um pronome livre, formando uma espécie de constituinte descontínuo
(Anagnostopoulou, 2006, p. 520). Esse fenômeno é atestado em muitas línguas (para
uma revisão dos vários estudos e comparações interlinguísticas, ver principalmente
Anagnostopoulou (2006, 2015)).

2) Juan la conoce a ella. (espanhol)


Juan a conhece a ela
(“Juan a conhece.”)
(TORREGO, 1995, p. 403)

1
Os dados orais e escritos analisados neste trabalho são extraídos de RAMOS (2010) (Corpus do dialeto
mineiro: textos orais; textos escritos dos séculos XVIII, XIX e XX); MACHADO-ROCHA (2013) (Fala
espontânea - estudantes do Ensino Médio de Belo Horizonte. Corpus inédito); VITRAL (2014) (Projeto
Cartas ao Papai Noel - A escrita em Minas Gerais). Além dos dados reais, utilizamos também alguns
dados de introspecção, baseados no dialeto do autor.
2
Ramos (2010), fala de Piranga, MG.
3
Idem.

13
3) Tu to edhosa tu Jani to vivlio. (grego)
Cl-GEN Cl-ACU dei o Janis-GEN o livro-ACU
(“Eu dei o João o livro.”)
(ANAGNOSTOPOULOU, 2006, p. 545)

Na tradição formalista, as principais perguntas de pesquisa sobre os RC, desde o


modelo de Regência e Ligação (RL) até os trabalhos pré-minimalistas se relacionavam
principalmente com:

(i) Os parâmetros envolvidos na ocorrência do RC interlinguisticamente. Em outras


palavras, vários trabalhos se dedicaram a entender por que o RC ocorre, por
exemplo, no espanhol e no grego, mas não no francês (JAEGLI, 1982, 1986;
BORER, 1984); e

(ii) Quais são as estruturas especiais que licenciam o RC. Uma resposta inicial, com
grande adesão, foi a então chamada Generalização de Kayne, segundo a qual o
RC ocorreria apenas quando o DP redobrado fosse precedido de uma preposição
especial, como em (2), em que o DP é precedido da preposição a.

No entanto, não demorou muito para que esta generalização fosse desafiada. Os
dados em (3) do grego, por exemplo, mostram que o redobro é possível na ausência de
preposição. Em grego, ao contrário, a presença de preposição impede que o DP seja
redobrado:

4) *Tu edhosa to vivlio s-ton Jani.


Cl-GEN dei o livro-ACU prep- o Janis
(“Eu dei o João o livro.”)
(ANAGNOSTOPOULOU, 2006, p. 546)

Mesmo para o espanhol, Suñer (1988) mostrou que é possível encontrar RC sem
preposição:

14
5) Yo lo voy a comprar el diário justo antes de subir. (espanhol portenho)
Eu o vou prep comprar o jornal logo antes de subir
(“Eu vou comprar o jornal logo antes de subir.”)
(SUÑER, 1988, p. 180)

A maior parte da literatura sobre o assunto se concentra em fenômenos de RC


com 3.ª pessoa. O RC com pronomes de 1.ª e 2.ª pessoas não foi amplamente analisado
(cf. JAEGLI, 1982, 1986; BORER, 1984; SUÑER, 1988; DOBROVIE-SORIN, 1990;
SPORTICHE, 1996; ANAGNOSTOPOULOU, 1994, 2003, 2006; URIAGEREKA,
1988, 1995; TORREGO, 1998). Os estudos interlinguísticos sobre os RC têm
demonstrado também uma tendência para tratar RC acusativos e RC dativos
separadamente, principalmente a partir do argumento de que clíticos dativos não exibem
as mesmas restrições interpretativas típicas dos acusativos (cf. SPORTICHE, 1996;
URIAGEREKA, 1988, 1996; TORREGO, 1998; ROBERTS, 2010b).
O tratamento do RC no português brasileiro pode ser referido em quatro
trabalhos: Castilho (2005), Diniz (2007) e Machado-Rocha (2010, 2011).
Diniz (2007) analisa construções de redobro, como exemplificados em (6):

6)
a. Cê ia ajudar um camarada desse e se os camarada voltar e te matar você
também?
(Corpus de fala belo-horizontina)
(DINIZ, 2007, p. 71)

b. Tenho uma cliente de sábado que num me larga eu de jeito nenhum.


(Corpus de Venda Nova)

c. Ah... eu era menina, não tinha meio de ninguém me tratá de mim, né...
(Corpus de fala ouro-pretana)
(DINIZ, 2007, p. 49)

Diniz propõe que, por não serem argumentos verbais, os clíticos de redobro não
participariam das operações de valoração dos traços de Caso e da atribuição de papel
temático e, por essa razão, não fariam parte da sintaxe estrita. O clítico seria, então,

15
inserido diretamente no verbo, por meio de uma operação pós-Spell-out e este fato
evidenciaria, ou confirmaria, sua natureza afixal.
A autora postula que, para as construções com redobro, os pronomes clíticos
apresentariam uma natureza híbrida que permitiria classificá-los como uma espécie de
“clítico-afixo”. Diniz Sintetiza que redobros:

(i) são cópias de traços-φ do DP no verbo;


(ii) são (morfo)fonologicamente dependentes de um hospedeiro – o verbo;
(iii) não participam dos mecanismos de valoração de Caso e atribuição de
papel temático.
(DINIZ, 2007, p. 103)

Diniz assume que os redobros “não alteram o significado da sentença. É


possível a ocorrência de um clítico redobrando um D/NP no PB sem que haja alteração
do significado básico da oração” (DINIZ, 2007, p. 104).
Castilho (2005) analisa várias construções com redobramento no português
medieval. Seu interesse maior é pela relação entre o redobramento do clítico locativo hi
e a formação de perífrases com os verbos ser e estar. Ainda assim, ela propõe uma
interessante análise das formas pronominais redobradas no português medieval. Nessa
análise, a autora visa a demonstrar que o redobramento de clítico e DP com preposição
era uma possibilidade desde o português medieval. O corpus analisado é composto de
textos literários e não literários, datados dos séculos XIII e XVI.
Castilho define da seguinte maneira o redobro pronominal:

Quando duas categorias estão ligadas pelo processo de correferencialidade, elas


são pronomes e constituem um caso de duplicação pronominal. Um dos
pronomes corresponde a um pronome fraco, que pode ser representado por um
clítico acusativo, dativo ou locativo, por um pronome pessoal do tipo ele no PB,
por um pronome não realizado foneticamente, etc. O outro pronome corresponde
a um constituinte redobrado, ou seja, a um PP, a um NP, ou a um pronome
pessoal forte do tipo ELE, também existente no PB (CASTILHO, 2005, p. 32).

Note-se que a definição de Castilho é compatível com as análises de Torrego


(1995), Sportiche (1996) e Uriagereka (1988, 1995), que defendem a necessidade de se
postular um pro na posição do DP não realizado em línguas de redobro. De modo

16
semelhante, os redobros analisados por Castilho ocorrem na presença de uma
preposição. Listamos a seguir alguns exemplos:

7) Redobros no português medieval:

a. [XIII SG 325:8][…] e entom aguilharom mais de X a Paramades e matorom-lhe o


cavalo e chagarom-no a el de muitas chagas.
b. [XV CDP 276:25][…] se este he o seu filho Joane de que me a mim algũuas vezes
fallarom.
(CASTILHO, 2005, p. 33)

c. [XIII CA 754:1] Toda’-las gentes mi-a mi estranhas son, / e as terras, senhor, per u
eu ando / sen vos
(CASTILHO, 2005, p. 130)

Segundo Castilho, no redobramento pronominal em (7), um dos pronomes deve


ser fraco e o outro forte ou preposicionado; eles devem ser correferenciais e estar
contidos numa mesma fronteira sintática (abrangência da categoria CP); e o pronome e
seu redobro devem funcionar como dêiticos. Os dois pronomes estariam sempre
vinculados a um verbo e “o pronome fraco representaria uma espécie de flexão dos
objetos que o verbo possui: objeto direto, indireto ou oblíquo” (CASTILHO, 2005, p.
43). Os dois pronomes correferenciais poderiam ocorrer de três maneiras: (i) os dois
pronomes realizados, com um clítico e um DP ou PP; (ii) com apenas um dos pronomes
realizados, ou o clítico ou o sintagma pleno; e (iii) com os dois pronomes nulos. Quando
os dois pronomes são realizadas, a adjacência ao verbo pode ocorrer, mas não é
obrigatória, havendo casos de deslocamento para posições periféricas da sentença.
Como se pode perceber, Castilho também analisa os redobros como uma forma
de concordância, classificando os clíticos (pronomes fracos) como forma de “flexão dos
objetos” no verbo. Semelhantemente a Torrego (1995) e Sportiche (1996), Castilho
assume que, mesmo quando não realizado algum dos pronomes, há um redobramento
sintático com elementos nulos.
Machado-Rocha (2010, 2011) analisa a ocorrência das formas pronominais me e
te em estruturas de redobro e argumenta que, no PB, essas formas foram reanalisadas
como prefixos de concordância para os traços de pessoa [+falante] e [+destinatário].

17
Machado-Rocha argumenta que a entrada dos pronomes tardios você, a gente e o senhor
na série dos pronomes pessoais denuncia a tendência do paradigma de pronomes do PB
de se regularizar para conter apenas formas default para Caso. Essa regularização
estaria levando pronomes clíticos a perderem espaço no paradigma. Vários
pronomes clíticos deixaram de ser usados a partir da segunda metade do século
passado, como tem demonstrado extensivamente a literatura (KATO, 1993; CYRINO,
1994; GALVES & ABAURRE, 1996; CYRINO & REICH, 2002; entre vários outros).
Por outro lado, como aponta Diniz (2007), os clíticos me e te se mantêm firmes no
léxico, em estruturas simples e em estruturas de redobro. Nesse sentido, Machado-
Rocha argumenta que o uso dos redobros no PB atual começa a preencher lacunas no
sistema integrado do paradigma pronominal e das desinências de concordância. Como
atesta a literatura, uma nova marca morfológica de concordância surge historicamente
apenas em contextos do paradigma em que a marca pré-existente já não é distintiva
(FUß, 2005, retomando GIVÓN, 1976 e SIEWIERSKA, 1999). Nessa via de análise,
Machado-Rocha investigou a ocorrência de pronomes retos (default) em posição de
objeto, em oposição ao uso tradicional de forma clítica, como nos exemplos em (8):

8)
a. Ajuda eu.
b. Me ajuda.
c. Me ajuda eu.
(MACHADO-ROCHA, 2010, p. 102)

Assumindo-se que o PB está caminhando na direção de preferir pronomes DP


default, formas uniformes para Caso que podem ocorrer em todos os contextos
sintáticos, a ocorrência de redobros se coloca como um problema (8-c).
Machado-Rocha sustenta que lacunas nos traços de definitude dos pronomes DP
default eu e você, em posição de objeto, estão sendo compensadas pelas formas me e te,
que passam a compor, no paradigma integrado de pronomes e marcas de concordância,
a função de concordância de objeto para os traços [falante] / [destinatário]. Além
disso, o autor propõe que as formas me e te são sempre redobros, ora concordando com
o pronome lexical, ora concordando com pro, em conformidade com Sportiche (1996),
Torrego (1995, 1998) e Castilho (2005).

18
Embora os estudos sobre o PB, acima referidos, tenham avançado na
compreensão de alguns aspectos das construções com redobros pronominais, várias
questões permanecem em aberto. Entre os problemas presentes em Machado-Rocha
(2010, 2011), destaca-se a postulação de um efeito interpretativo para os RC que, como
veremos, parece não se sustentar. No presente trabalho, a correlação entre as formas
clíticas e as formas plenas nos pares me/eu, te/você serão tratadas como relações de
concordância puramente sintática, sem condicionamentos semânticos. Como
discutiremos, há várias evidências empíricas que determinam essa mudança de
perspectiva.
Quando comparado com os dados e análises interlinguísticas, o RC do PB é
curioso em vários aspectos. Por exemplo, o RC no PB ocorre apenas com a 1.ª e a 2.ª
pessoas pronominais, como mostrado nos exemplos em (1). A tentativa de formar RC
com a 3.ª pessoa, tendo-se em conta as variedades dialetais analisadas, é mal sucedida:

9)
a. *Eu o ajudo ele.
b. *Eu lhe falei pra ele.

Na história do português e também na variante padrão, encontramos


reduplicação de pronomes para a 3.ª pessoa. Mas essas construções são estruturalmente
diferentes da que estamos analisando aqui, para o PB dialetal.

10)
a. Português Medieval (século XIII)
e chagarom-no a el de muitas chagas
(CASTILHO, 2005, p. 33)

b. Português padrão
Viu-me a mim (e não a ele).
(CASTILHO, 2005, p. 35)

Na escrita padrão, a estrutura redobrada resulta numa interpretação contrastiva,


como exemplificado em (10-b). O redobro contrastivo estilístico ocorre com um
pronome oblíquo forte precedido da preposição a e o clítico aparece normalmente

19
enclítico, padrão muito distante do PB atual, predominantemente proclítico. Os RC
apresentados em (1), por outro lado, não permitem leituras contrastivas4.
Embora os clíticos de 3.ª pessoa ainda estejam presentes na escrita padrão, é
amplamente aceito que essas formas são usadas na fala apenas como resultado de
escolarização e em registros bastante formais (CORREA, 1991; GALVES 2001;
KATO, 2005; NUNES, 2011a). Além disso, nas falas de Minas Gerais que estamos
investigando, o RC com 3.ª pessoa não ocorre, como também não há nenhuma
ocorrência de cliticização simples de 3.ª pessoa. Para a intuição da maioria dos falantes
(inclusive a do próprio autor), RC de 3.ª pessoa são agramaticais.

11)
a. *Eu o ajudo ele.
??
b. Eu o ajudo.
c. Eu ajudo ele.

Outra propriedade do RC no PB é que ele parece ser completamente opcional.


Jaeggli (1982) mostrou que há, no espanhol, contextos em que o redobro de clítico ou a
cliticização simples são obrigatórios. Os contextos em questão são os de posse
inalienável ou construções com pronomes plenos em posição de objeto.

4
Em várias situações em que apresentei esses dados a audiências de congressos, fui questionado sobre
uma possível focalização dos pronomes livres em (1) e (2). Mas não é isso o que acontece. (1b) e (2b) são
gravações da fala de Piranga/MG e revelam que a estrutura cl-V-pronome pleno acontece sem pausa em
sem destaque prosódico para o pronome livre. É verdade que esse pronome pode, obviamente, ser
focalizado. Mas isso não tem a ver diretamente com a presença do clítico.

(i) Tinha cinco médico (me) oiano EU assim.

Em vários momentos deste trabalho, me senti tentado e de fato procurei restrições semânticas para a
ocorrência dos redobros. O desenvolvimento dessas tentativas será apresentado no capítulo 3. Mas, como
veremos, restrições semânticas são próprias dos RC acusativos de 3.ª pessoa, analisados pela literatura,
quase que unanimemente, como marca de especificidade, o que também não parece se aplicar aos dados
do PB.

20
12) Construções de posse inalienável

a. Le lavaron las manos a Luis. (todos os dialetos do espanhol)


Cl-DAT lavaram as mãos a Luis
(“Lavaram as mãos ao Luis.”)

b. Le lavaron las manos.


c. *Lavaron las manos a Luis.

13) Pronomes plenos

a. *Vimos a él. (todos os dialetos do espanhol)


vimos a ele

b. Lo vimos.
Cl-ACU vimos

c. Lo vimos a él.
Cl-ACU vimos a ele

Ainda para o espanhol, Ormazabal & Romero (2010) mostram que o RC é


obrigatório com o quantificador universal todo.

14) Ayer *(los) vimos a todos


Ontem os vimos a todos
(“Ontem, nós vimos todos eles.”)

Anagnostopoulou (2015, p. 24) também aponta que, no grego, o RC é


obrigatório com DPs definidos, funcionando como quasi-pronomes/epítetos.

21
15) Prospathisa na episkefto ton Jani tin perasmeni edvomada ala
Tentei INF visitar o Janis na última semana mas
den boresa na ?*(ton) piso ton vlaka na me dhi
não pude INF o persuadir o idiota INF me ver
(“Tentei visitar o Janis na última semana, mas não conseguir persuadir o idiota a me
ver.)

Para o italiano dialetal, Poletto (2006) mostra que os RC de sujeitos são


obrigatórios em vários contextos.

16)
a. Al pi al mangia al pom (Dialeto do Leste da Lombardia)
O garoto ele-come a maçã

b. Vargu al rierà n ritardo


Alguém ele-chegará atrasado
(POLETTO, 2006, p. 215)

O PB não parece ter nenhum contexto obrigatório de RC ou de cliticização


simples, e ora o clítico, ora o DP pós-verbal podem estar ausentes.

17)
a. Eu te ajudo você
b. Eu ajudo você
c. Eu te ajudo
d. * Eu ajudo (Em que pro é de 2.ª pessoa)5

Uma terceira propriedade do RC no PB é que ele parece desafiar a


Generalização de Kayne, ocorrendo com ou sem um elemento preposicional6:

5
Aqui não se trata, obviamente, de contextos com operadores, como em pares pergunta/resposta, do tipo
“Você me ajuda?/ Eu ajudo__ .”
6
Vamos discutir, no capítulo 5, que PPs não cliticizam no PB, e o item pra em (18-b) é uma marca de
Caso.

22
18)
a. Eu te ajudo você
b. Eu tô te falando pra você

Como se vê, o RC ocorre para acusativos e para dativos. Além disso, os clíticos
me e te aparecem em vários contextos de redobramento pronominal:

19) RC com acusativos7


a. cê pode intrá qu’eu te ajudo ocê no qu’eu pudé
b. aí começô a me xingá eu

20) RC com dativos8


a. deixa eu te perguntar ocê um negócio
b. eu tô te falando pra você

21) RC com sujeitos ECM9


a. tem vez qu’es num gosta munto de me dexá eu ficá lá não
b. ela pidiu pai pa me dexá eu ficá com ela uns tempo

22) RC com sujeito de minioração


a. aí ele cumeçô me xingá eu de maria-vai-com-as-zôta10
b. Me chama eu de moça não... qu’eu fico bravo11

23) RC com possessivos


a. argum fi que me ... que me atendê meu pedido12
b. Troca iss’aqui no banco e me paga meu dinheiro13

7
Ramos (2010), fala de Piranga.
8
Idem.
9
Idem.
10
Idem.
11
Machado-Rocha (2013), estudantes do Ensino Médio de Belo Horizonte.
12
Ramos (2010), fala de Piranga.
13
Machado-Rocha (2013), estudantes do Ensino Médio de Belo Horizonte.

23
24) RC com expressões idiomáticas
a. toda casa que ele ia, me metia ne mim o ferro14
b. num sei o quê que me deu na minha cabeça15

A possibilidade de redobramento de modo tão amplo coloca algumas questões


sobre a estrutura dos redobros no PB e sobre o estatuto categorial das formas me e te.
Em um grupo numeroso de problemas que os RC do PB levantam, vamos destacar os
seguintes:

(i) A opcionalidade do RC no PB. Pretendemos investigar a covariação entre a


estrutura redobrada e as estruturas simples, uma vez que outras línguas, como o
espanhol, o italiano e o grego, apresentam contextos de redobro obrigatório.

(ii) O fato de que, no PB dialetal, o RC não ocorre para a 3.ª pessoa, mas apenas
para a 1.ª e a 2.ª.

(iii) A amplitude de contextos sintáticos que permitem o redobramento pelas formas


me e te.

(iv) O estatuto categorial das formas redobrantes me e te.

Temos em (i-iv) um cenário bastante complexo. As partículas redobrantes me e


te podem ocorrem em posições sentencias diversas, se comportando como marcas de
concordância, num sentido amplo, hipótese que vamos perseguir neste trabalho. Nesse
sentido, a perspectiva do redobramento como condicionado por um fator interpretativo
precisa ser abandonada.
A tese está organizada da seguinte maneira: no capítulo 2, revisamos a literatura
sobre os RC, agrupada de acordo com duas grandes perspectivas de abordagens: as que
tratam redobramentos como fracionamento de um constituinte complexo, por um lado, e
as que consideram redobramentos como fenômenos de concordância, por outro; no
capítulo 3, apresentamos uma tentativa de análise, motivada por boa parte da literatura e
por dados do registro formal e da diacronia do português, em que fundamentamos

14
Ramos (2010), fala de Piranga.
15
Ramos (2010), fala de Acerburgo.

24
nossas explicações em um suposto efeito interpretativo para os RC no PB; no capítulo 4,
discutimos particularidades morfossintáticas dos elementos de 1.ª e 2.ª pessoas; o
capítulo 5 contém nossa proposta de análise central, as discussões finais e conclusões.

25
2. Revisão da literatura sobre os RC

As variações interlinguísticas quanto à possibilidade de as línguas apresentarem


ou não construções de RC receberam muita atenção nos trabalhos pioneiros. (25)
apresenta exemplos dessa variação. Em (25-a), temos uma construção de RC/OI (objeto
indireto) no espanhol e em (25-b) sua contraparte agramatical no francês (JAEGGLI,
1986, p. 32):

25)
a. Miguelito (le) regaló un caramelo a Mafalda (todos os dialetos do espanhol)
Miguelito lhe deu um doce a Mafalda

b. Jean (*lui) a donné des bonbons à Marie (francês)


Jean Cl-DAT tem dado os doces à Marie
(“Jean deu doces à Marie.”)

Nos estudos sobre os RC, dentro do modelo de Regência e Ligação, iniciados em


Strozer (1976), Rivas (1977), Aoun (1981), Jaeggli (1982, 1986), Borer (1984), entre
outros, perseguiu-se a crença em uma análise interlinguística unificada para os
fenômenos de redobramento, o que deu origem à perspectiva do “parâmetro do
redobro”, o qual seria capaz de explicar as diferenças entre (25-a) e (25-b). Mas as
investigações que se seguiram, principalmente a partir dos desenvolvimentos da teoria
sintática no fim da década de 80 e durante a década de 90, demonstraram que o rótulo
“redobro pronominal” abarcava domínios empíricos muito diversos, variando de
construção para construção e de língua para língua. Em uma síntese histórica das
análises dos RC, Anagnostopoulou (2006, 2015) apresenta tendências bem
diversificadas dos redobramentos nas línguas:

a) Os RC de objetos diretos (RC/OD) podem variar nas línguas, ocorrendo com:


i. apenas pronomes ou também com DPs;
ii. humanos, animados, ou também inanimados;
iii. com indefinidos específicos, partitivos ou apenas definidos.
26
b) Os RC de objetos indiretos (RC/OI) podem ser obrigatórios ou opcionais.

Barbiers (2008) aponta que uma análise unificada para os RC nas ínguas é
inviável, dada a heterogeneidade dos fenômenos reunidos sob este rótulo. Segundo este
autor (BARBIERS, 2008, p. 23), há três grandes grupos de abordagens para os
redobramentos de clíticos na literatura:

i. RC como a separação de elementos de um grande constituinte (a hipótese


do Grande-DP);
ii. RC como múltiplos Spell-outs de nós de uma cadeia; e
iii. RC como concordância.

Nesse agrupamento, as perspectivas das abordagens fundamentadas em (i) são


claramente discerníveis das análises baseadas em (ii) e (iii). Por outro lado, as
abordagens (ii) e (iii) compartilham muitos elementos em comum, sendo às vezes difícil
qualificar uma análise particular como pertence ao grupo (ii) ou ao grupo (iii),
especificamente.
Barbiers também aponta a inadequação de se classificar os fenômenos de RC em
termos de funções ou significados, uma vez que, em muitos casos, o RC não parece
contribuir em nada para a semântica ou a pragmática da sentença.
Nesta revisão, vamos partir da síntese oferecida em Barbiers (2008) e discutir os
trabalhos mais relevantes para a nossa proposta de análise, dentro de duas perspectivas
analíticas, ao invés de três: de um lado, as análises que adotam a hipótese do Grande-
DP, iniciada em Uriagereka (1988); e de outro, abordagens fundamentadas na noção de
cadeia/concordância, cujo representante principal é Sportiche (1996). Vamos seguir
também Anagnostopoulou (2006, 2015), para a discussão dos desenvolvimentos
teóricos e os avanços sobre o tema ao longo das últimas quatro décadas.

27
2.1 O dilema movimento X inserção

As análises mais recentes para os fenômenos de cliticização têm tentando


conciliar abordagens que durante muito tempo ficaram às voltas com duas hipóteses: (i)
de um lado, as que acreditavam que clíticos resultavam de movimento a partir da
posição de argumento; e (ii) as que defendiam que clíticos são inseridos diretamente em
suas posições clíticas. As análises baseadas na hipótese de inserção consideravam que o
complexo cl-V se formava no léxico (modelo lexicalista); abordagens de movimento
defendiam que a cliticização se dá na sintaxe (modelo transformacional).
Kayne (1975) defendeu a hipótese do movimento, baseando-se na suposição de
que, no francês, clíticos e DPs objetos estariam em distribuição complementar. Para
Kayne, o clítico era visto como morfema ligado ao verbo (KAYNE, 1975, p. 82).

26)
a. Je le vois
Eu o vejo

b. *Je le vois Jean


Eu o vejo Jean

A hipótese baseada na distribuição complementar começou a ser questionada, à


medida que surgiram vários estudos sobre os RC, incialmente para o espanhol, o
romeno e o hebraico (JAEGGLI, 1982) e (BORER, 1984).
Borer (1984) e Jaeggli (1986) viam o clítico como parte do núcleo verbal, numa
versão inicial altamente lexicalista. Como destaca Anagnostopoulou (2015, p. 12), uma
evidência forte utilizada por esses autores vem dos apontamentos de Perlmutter (1971),
sobre os dativos éticos em espanhol. Nessa língua, dativos éticos são obrigatoriamente
clíticos e não podem ser substituídos por uma contraparte livre.

28
27)
a. Me le arruinaron la vida a mi hijo (todos os dialetos do espanhol)
Me lhe arruinaram a vida a meu filho

b. *Le arruinaron la vida a mi hijo a Mí


Lhe arruinaram a vida a meu filho a mim

(ANAGNOSTOPOULOU, 2015, p. 12)

Nas análises de inserção, mesmos em construções de clíticos não redobrados


visivelmente, o clítico está associado com uma categoria vazia na posição do argumento
(JAEGGLI, 1982, 1986; BORER, 1984; BOUCHARD, 1982; BURZIO, 1986). Como
veremos na seção 2.3, essa análise será reelaborada em Sportiche (1996), que reconcilia
as hipóteses de inserção e movimento e apresenta um desenho teórico que pretende
unificar as análises para a cliticização em geral.
A hipótese inicial de Kayne (1975), baseada no movimento e na distribuição
complementar, vai ser revista por ele próprio mais recentemente (Kayne, 2000). Neste
trabalho, o autor reconhece que o francês, que serviu de argumento por tantos anos para
a teoria do movimento de clítico, por não apresentar redobramentos, possui na verdade
RC com pronomes (apenas) (Kayne, 2000, p. 164-165).

28)
a. Jean me connaît moi
Jean me conhece (a) mim

b. Jean la connaît elle


Jean a conhece ela

c. Jean me parle à moi


Jean me fala a mim

d. Jean lui parle à ele


Jean lhe fala a ela

29
29)
a. *Jean lui parle à Marie
Jean lhe fala a Marie

b. *Jean la connaît Marie


Jean a conhece Marie

Um aspecto importante da hipótese de inserção é o pressuposto de que clíticos


são núcleos funcionais ou núcleos de concordância, gerados numa posição mais alta que
a dos objetos com os quais eles se relacionam (SPORTICHE, 1996; TORREGO, 1995;
FRANCO, 1993). Porém, nesses trabalhos há também um componente de movimento.
Esses autores assumem que o argumento, seja ele visível ou nulo, se move para a
posição de Spec da projeção do clítico. Assim, essas abordagens podem ser vistas como
uma combinação entre ambas as hipóteses, a de movimento e a de inserção.

2.2 RC como fracionamento de um constituinte complexo

As análises reunidas neste grupo assumem que o que aparece na superfície como
a múltipla ocorrência de um constituinte se origina como um grande constituinte que
contém todas as ocorrências visíveis. Iniciada em Uriagereka (1988), essa abordagem
ficou conhecida como a hipótese do “Grande DP”.
Seguindo Torrego (1988), Uriagereka (1988, 1995) argumentou que clíticos de
3.ª pessoa são determinantes transitivos.

30
a. DP b. DP

(redobrado) D’ D’

D NP D NP
clítico pro Determinante nominal
regular lexical

Diagrama 1 - DP complexo vs. DP regular


(URIAGEREKA, 1995, p. 81)

Essa proposta se baseia em três argumentos: (i) Dº pode selecionar NPs


complementos nulos; (ii) DPs redobrados são especificadores em DPs complexos, que
consistem de um D e um complemento nulo; e (iii) clíticos são determinantes (com um
NP complemento nulo).
Para o argumento (i), Uriagereka (1988, p. 402; 1995, p. 81, nota 6) aponta que
determinantes podem tomar complementos nulos em sequências que correspondem às
estruturas do inglês the one he came, the one from France. Em algumas línguas
românicas, o determinante licencia um NP pro modificado pela oração relativa ou por
um PP, no lugar da forma pronominal one.

30)
a. El/la que vino (espanhol)
O/a que veio

b. El/la de Francia
O/a da França

O argumento (ii) é sustentado assumindo-se que a única diferença entre as


construções em (30) e construções com clítico é que, em (30), o determinante
permanece in situ, enquanto que, em cliticizações, o determinante se move para o
domínio funcional. Uriagereka assume que o RC seria sistematicamente atestado em
línguas que permitem que determinantes in situ selecionem complementos nulos. O
autor defende que as línguas românicas que permitem sentenças como em (30) possuem
determinantes “fortes”, ao passo que as que não aceitam tais construções possuem
determinantes “fracos”. Em línguas com determinantes fortes, um redobro pode ser

31
licenciado dentro do DP complexo, resultando em RC. Em línguas com determinantes
fracos, um redobro não pode ser licenciado, e o RC é proibido16.
Para o argumento (iii), Uriagereka (1995, p. 80-82) oferece um número de
evidências para sustentar que clíticos são determinantes. Primeiro, clíticos de 3.ª pessoa
e determinantes nas línguas românicas derivam diacronicamente da mesma fonte, qual
seja, dos demonstrativos latinos illum, illam, etc. (cf. WANNER, 1987). Segundo, do
ponto de vista sincrônico, clíticos são ou semelhantes ou idênticos aos determinantes.
No galego, por exemplo, as formas são idênticas.

Tabela 1 - Clíticos e determinantes do galego

Clítico Determinante
Masc. sing. o (ouvimo-lo) o (o neno)
Fem. sing. a (ouvimo-la) a (a nena)
Masc. pl. os (ouvimo-los) os (os nenos)
Fem. pl. as (ouvimo-las) as (as nenas)

(URIAGEREKA, 1995, p. 81)

Para Uriagereka, a identidade morfológica pode ser explicada, se clíticos e


determinantes forem considerados como sendo o mesmo item lexical projetados em
estruturas sintáticas diferentes. Além disso, no galego, determinantes podem
opcionalmente ser cliticizados ao verbo.

31)
a. Comemos o caldo
b. Comemo-lo caldo
(URIAGEREKA, 1988, p.403)

Dessa forma, determinantes também poderiam se mover para fora do DP em


direção ao verbo, assim como fazem os clíticos. Numa abordagem que trata clíticos

16
Anagnostopoulou (2015, p. 36) aponta, porém, que esta correlação não se sustenta para o grego, língua
em que os determinantes são fracos, ou seja, não permitem construções como em (30), mas mesmo assim
o redobro é largamente atestado.

32
como determinantes, as propriedades de movimento das construções com clíticos
derivam do pressuposto geral de que clíticos uniformemente saem de sua posição
interna ao VP e se movem para o domínio funcional.
Uriagereka ainda faz uma pequena menção aos clíticos de 1.ª e 2.ª pessoas.
Numa nova oposição forte X fraco, o autor propõe que clíticos de 1.ª e 2.ª são clíticos
fortes, comparando-os estruturalmente aos clíticos de 3.ª, da seguinte forma:

a. Clíticos fracos (de 3.ª pessoa) b. Clíticos fortes (de 1.ª e 2.ª pessoas)
DP DP

(redobrado) D’ (redobrado) DP=D


clítico

D NP
clítico pro
Diagrama 2 - Clíticos fracos vs. clíticos fortes
(URIAGEREKA, 1995, p. 113)

Perceba que aqui não se trata da distinção interlinguística anterior, em que


determinantes fortes podem licenciar um pro complemento, ao passo que os fracos não
o podem. Nesta oposição, Uriagereka argumenta que clíticos de 1.ª e 2.ª pessoas são
[-projetados, +máximos] e seus associados redobrados teriam o status de adjunto, como
representado no (diagr. 2-b).
Partindo da hipótese do Grande-DP, Poletto (2006) analisa redobramentos de
sujeitos no italiano, com base em Uriagereka (1995), Kayne (1994) e Belleti (2005).
Diferentemente desses autores, no entanto, ela recusa a postulação de um DP complexo.
Para Poletto, o RC é um recurso de economia, e os DPs envolvidos nesse fenômeno, são
DPs comuns, com a diferença de que um elemento interno ao DP é movido, antes do
fracionamento.
Um problema fundamental para Poletto (2006) é conciliar os aspectos
minimalistas do design da linguagem, segundo os quais “nada supérfluo deveria ser
permitido” (p. 212) e a ampla ocorrência de redobramentos em variantes não padrão. Se
encarados como redundâncias, os redobramentos não deveriam nem sequer existir e,
muito provavelmente como resultado desse tipo de perspectiva, são frequentemente
banidos de gramáticas normativas.

33
Poletto defende, porém, que a existência dos redobros se adequada a uma
exigência de economia, quando um XP precisa checar mais de um traço funcional na
sintaxe, podendo recorrer a uma forma de fracionamento do constituinte, ao invés da
realização de movimentos com pied-piping integral. O redobro ocorre, então, quando há
fracionamento dos traços do DP, para checagem separada no domínio de IP. Isso
garantiria que apenas a parte relevante da projeção funcional do DP fosse movida, sem
cópias desnecessárias de traços.
A autora sustenta que este tipo de operação não depende de nenhuma estrutura
especial ou DPs complexos, como proposto originalmente por Uriagereka (1988, 1995).
Ao contrário, o redobro estaria relacionado ao quanto de pied-piping pode ocorrer.
Segundo Poletto, as configurações que permitem o RC deveriam ser universais. Seria
então a possibilidade de realizar o fracionamento do XP e evitar a cópia completa que
estaria na base das línguas que permitem o redobro. Para trazer de volta os RC para a
esfera do DP comum, Poletto modifica levemente a estrutura proposta por Uriagereka
(1988), como apresentada no diagrama (1). De acordo com Kayne e Uriagereka, num
DP complexo, o DP redobrado é inserido no Spec do clítico, e a posição do NP
complemento é ocupada por um pro. Poletto, por outro lado, argumenta que essa
postulação não é necessária, se se assumir que o fracionamento da parte relevante da
estrutura funcional do DP é precedido de movimento do DP (do NP, na estrutura de
Uriagereka) para a posição de especificador do clítico. Poletto (2006, p. 218-219),
propõe, então, a seguinte estrutura:

32)
a. [[KP [Kº cl] [DP]]
b. [[XP DP [Xº [KP [Kº cl] [DP]]

Nesta configuração, o DP que primeiramente se moveu para o Spec-XP, criando


o KP remanescente, pode, então, ser movido independentemente do Spec-XP para uma
posição de Spec em IP ou CP, se houver mais traços a serem checados.
Para Poletto, esta estratégia de redobro é pelo menos tão econômica quanto o
Merge interno/movimento (“re-merge”) de todo o DP complexo dentro da posição
funcional do IP. Se um movimento mais curto é mais econômico que um movimento
mais longo, por questões de memória, então o redobro é até mesmo mais econômico do
que o pied-piping de todo o XP complexo para uma posição mais alta. Em outras

34
palavras, o redobro pode se visto como o oposto do pied-piping, com a adição de um
movimento interno ao DP, que cria as duas peças (no caso acima KP e DP), um dos
quais é então movido, enquanto o outro permanece no lugar (POLETTO, 2006, p. 219).
Segundo Poletto, esta análise prediz que os dois duplos não são idênticos: um
contém apenas a parte funcional, o mais alto, enquanto que outro contém a porção mais
baixa da estrutura interna do DP, incluindo-se aí o núcleo lexical. Nessa hipótese, o
redobro não depende da porção lexical da estrutura do DP, mas da porção funcional e,
portanto, de quantos traços precisam ser checados na estrutura funcional. Quanto mais
traços funcionais, mais provável se torna que o fracionamento possa ocorrer.
A autora discute que o processo de fracionamento segue uma ordem: ele vai
arrancar do item inicial um subconjunto próprio de projeções funcionais, começando da
camada mais alta (ver Cardinaletti & Starke (1999), para uma ideia similar sobre a
derivação de clíticos, pronomes fracos e pronomes fortes tônicos). Portanto, ou F1 é
arrancado e movido (ou seja, copiado) em direção a uma projeção em IP ou CP, ou
F1+F2, mas nunca F2 sozinho, ou F2+F3 deixando F1 para traz.

33) [FP1 [FP2 [FP3 [Cat. Lex.]]]

(POLETTO, 2006, p. 221)

Uma reformulação recente da hipótese de fracionamento de um constituinte


complexo é a apresentada em Roberts (2010b). Roberts explora duas possibilidades de
explicação dos RC. Na primeira, clíticos redobrantes seriam tratados como a realização
morfológica dos traços-φ da sonda v*. Nessa abordagem, ele segue a análise para
argumentos nulos proposta em Roberts (2010a), baseada em Muller (2005), que implica
que v* tem um traço-D. Quando comparados o conjunto de traços-φ da sonda e do alvo
(v* e o DP complexo, respectivamente), por possuir um traço a menos que a sonda (o
traço D de v*), o DP objeto constituiria uma instância de alvo defectivo, de acordo com
a proposta geral de Roberts (2010b) (para uma visão geral, ver Roberts (2010b) cap. 1 e
2). Nesta teoria, alvos defectivos permitem o licenciamento de argumentos nulos, e no
caso em questão, v* licencia o argumento nulo. Esse seria o caso em que o clítico não é
redobrado, como proposto por Borer (1984) e Jaeggli (1986).
Roberts aponta que o problema dessa abordagem é que ela não consegue lidar
com dois aspectos bem conhecidos do RC objeto: a Generalização de Kayne e os efeitos

35
de especificidade. Para lidar com esses problemas, Roberts propõe uma variante da
análise de Uriagereka (1988, 1995), ao invés de assumir um traço-D em v*.
Sua análise parte da reformulação da seguinte estrutura proposta em Uriagereka:

34) La oían a Paca/ à la niña / à la gata.


a ouviam a Paca a a menina a a gata
(“Ouviam a Paca / a menina / a gata.”)

(ROBERTS, 2010. Versão Kindle, posição 1716, ex. (146-a))

35) [DP [a ninã] [D’ [D la] [NP pro]]]

(ROBERTS, 2010. Versão Kindle, posição 1723, ex. (149))

Para adaptar esta estrutura à sua análise, Roberts propõe duas modificações,
como representado em (33) (acrescento um diagrama arbóreo, para clareza de
compreensão):

36) [DP [D la] [φP [nP niña] [φ la] (nP)]]

(ROBERTS, 2010. Versão Kindle, posição 1728, ex. (150))

DP

D’

D φP
[la]

[nP ninã] φ’

φ nP
[la]

Diagrama 3 - DP redobrado, segundo Roberts (2010b)

Uma das modificações introduzidas diz respeito ao NP pro. Roberts assume que
pro é o resultado do apagamento de um pronome fraco, garantidas certas condições

36
especificas (ver Roberts 2010a). No caso do DP redobrado, há duas possibilidades. Uma
delas é assumir que não há uma “fase interna” a esses DPs, ou seja, não há nP/NP.
Nesses casos haveria simplesmente D e φ (e Roberts ainda vai sugerir adiante que seria
apenas φ). A outra possibilidade é assumir que o redobro constitui a parte mais baixa
dessa fase.
Deixando de lado o status de a (em 34-35) por um momento, Roberts supõe que
o nome niña vai subir de N para D, para ser licenciado como um sintagma referencial,
conforme os critérios gerais descritos em Longobardi (1994). Essa ideia não pode ser
mantida em sua forma simples, uma vez que, como o próprio exemplo (34) demostra,
DPs plenos podem ser redobrados. A suposição então é que o elemento redobrado
corresponde à raiz NP da fase (provavelmente com subida de N para n). Após a subida
de N para n, nP sobe para o Spec-φP. Ambos φ e D são ocupados por um cacho de
traços realizado como la (3.ª P, Fem, Sing.), com a diferença de que laD também porta
um traço de definitude. Assim tem-se uma estrutura parcial para o DP com redobro de
clítico.
Nessas circunstâncias, o RC envolve explicitamente a reduplicação do formativo
la, com um ocorrendo em D e outro em φ, embora os dois tenham uma composição de
traços diferente: o primeiro tem um traço-D além de seus traços-φ, e laφ tem um
traço-N.
Roberts advoga que é possível motivar a subida do nP por meio de traços,
atribuindo um traço-N não interpretável e um traço-EPP a φ. A presença desses traços
constituiria a “força” dos determinantes em espanhol, como apontado por Uriagereka
(1995)17. Dessa forma, a subida do nP para o spec-φP seria o análogo nominal da subida
de vP para o Spec-TP na sentença (de acordo com Biberauer (2003), Richards e
Biberauer (2005) e Biberauer e Roberts (2005)). Uma vez que o redobro é
essencialmente opcional nas línguas mencionadas por Roberts (espanhol, romeno e o
dialeto napolitano, do italiano), φ em (36) precisa ter uma realização visível opcional.
A outra modificação na estrutura (35) de Uriagereka proposta por Roberts é
colocar o clítico em φ. Assim, haveria também um artigo D. De acordo com Roberts,
isso soluciona um problema. Se o clítico for colocado exclusivamente em D, ao invés de
em φ, então é preciso assumir um traço-D em v*, para que a cliticização seja possível

17
Aqui Roberts está se referindo à primeira distinção “forte X fraco”, proposta por Uriagereka (1995),
segundo a qual algumas línguas possuem determinantes fortes, que permitem o licenciamento de NPs pro
e, por isso, o RC, enquanto outras possuem determinantes fracos, que não permitem RC.

37
dentro do modelo de Roberts (2010b). Isso, por sua vez, implica a expectativa geral de
objetos nulos definidos e referenciais em línguas com larga ocorrência de redobros de
clíticos, como, por exemplo, no espanhol rio-platense. Mas não é isso que ocorre.
Essa segunda modificação altera bastante o modelo inicial de Uriagereka (1988,
1995), para quem a cliticização de OD de 3.ª pessoa é o movimento de um determinante
para fora do DP em direção ao domínio funcional do verbo. Para Uriagereka, esses
clíticos são sempre determinantes. No modelo e Roberts, há uma especialização bem
delimitada dos traços de D e dos traços de φ, e o elemento responsável pelos fenômenos
de redobramento de objeto é φ e não D.
Roberts aponta ainda que, diferentemente dos redobros de clíticos sujeitos, que
estão associados a sujeitos nulos, redobros de clíticos objetos não estão associados a
objetos nulos. Uma vez que objetos nulos definidos e referenciais não estão disponíveis
em línguas com ampla ocorrência de redobro de clítico objeto, é preciso assumir que v*
não tem nenhum traço-D. Portanto, para que a cliticização de objeto seja possível, o
sintagma correspondente ao clítico não pode ser um DP (ou seja, ele deve ser φP).
No modelo de Roberts (2010b), a cliticização é analisada como incorporação de
traços-φ em v*. v*, por sua vez, é inserido com um traço-V interpretável e traços-φ não
interpretáveis (ver Roberts 2010b, seções 3.1 e 3.2). Neste ponto, Roberts retoma a
Generalização de Kayne. Segundo ele, é preciso garantir que será laφ, e não laD nem
niña, que será sondado por v*. O problema aqui é que ambas as ocorrências de la e
também niña possuem traços-φ interpretáveis. Além disso, niña possui um traço de
Caso não interpretável e laD possui um traço-D.
Depois de subir para o Spec-φP, niña está mais perto de uma sonda-φ externa do
que laφ, uma vez que o primeiro c-comanda assimetricamente o segundo. Além disso,
laD também está obviamente mais próximo de uma sonda-φ externa do que laφ. Uma
vez que se assume que v* não tem um traço-D no espanhol, laD não representa um alvo
defectivo para v*, e portanto este elemento não pode cliticizar, embora ele ainda possa
atuar como um alvo regular. Se nada mais acontece, então laD atua como o alvo de v* e
laφ falha em cliticizar. Nesse caso, não há cliticização, mas apenas Agree entre v* e la
nina, com a consequente checagem de Caso.
Roberts prossegue e aponta que a deve ser considerado, como proposto por
Kayne e Jaeggli, essencialmente como um atribuidor de Caso. Assim sendo, pode-se
classificar essa partícula tanto como um PP quanto como um KP. Roberts usa a notação
KP.

38
37) [KP a [DP [D la] [φP [nP niña] [φ la] (nP)]]]

(ROBERTS, 2010. Versão Kindle, posição 1766, ex. (154))

Roberts assume que a tem traços-φ não interpretáveis e um traço interpretável de


Caso (uma suposição que, como aponta Roberts, pode ser uma maneira de formalizar,
em termos da operação Agree, a intuição de que a é um atribuidor18 de Caso). Dessa
forma, a valora o traços de Caso do nP, independentemente de v*, e tem seus traços-φ e
traço-D valorados por laD. Isso faz com que laφ se torne o alvo-φ mais próximo de v*,
porque laD, uma vez estabelecida a relação Agree com a sonda a, deixa de atuar como
alvo interveniente, já que seus traços não interpretáveis já foram valorados e assim não
estão mais ativos para sondagem. A presença de a, portanto, é essencial para o
licenciamento da estrutura de RC.
Como se vê, a análise de Roberts (2010b) adere à Generalização de Kayne e não
leva em conta os contraexemplos oferecidos por Suñer (1988) e por outros, em que RC
são realizados no espanhol sem a presença de preposição. Por outro lado, ele propõe
uma análise unificada, de modo que mesmo as línguas que vão na contramão da GK e
só ocorrem sem preposição, como por exemplo o grego, se enquadram na estrutura
ilustrada em (37), estabelecendo um paralelo entre a partícula a (do espanhol) e a
morfologia de caso (do grego). Roberts retoma os seguintes exemplos de
Anagnostopoulou (2006).

38)
a. Tin efage tin turta o Janis
o comeu o bolo o Janis
(“Janis comeu o bolo.”)

b. To katestrepse to vivlio enas mathitis tu


o destruiu o livro um aluno dele
(“Um aluno dele destruiu o livro.”)

18
Roberts emprega alternadamente as expressões “atribuidor de Caso” e “marcador de Caso” para se
referir à partícula a. Nesta revisão, optei, porém, por empregar sempre o termo “atribuidor de Caso”,
porque esses dois termos já renderam muita discussão na literatura, considerando-se que eles se referem a
elementos de natureza diferentes (ver, por exemplo, Bayer et al (2001), Pesetsky & Torrego (2011), entre
muitos outros). O atribuidor seria um elemento responsável pela checagem de traços não interpretáveis
em outro elemento. Assim, verbos e preposições seriam atribuidores, enquanto que o marcador
representaria uma manifestação morfológica de traços de Caso em um dado nominal, como, por exemplo,
as marcas de acusativo ou dativo em nominais e pronomes. A não distinção entre marcador e atribuidor
de Caso obscurece a análise da partícula a. Tendo-se em conta a formulação de Roberts, em que a tem
traços de Caso interpretáveis e traços-φ não interpretáveis, o que qualifica este elemento como uma
sonda-φ, julgo mais adequado tratá-lo como um atribuidor de Caso, e não como um marcador, ou marca.

39
c. *Tu edhosa to vivlio s-ton Jani
lhe dei o livro para-o Janis

(ROBERTS, 2010. Versão Kindle, posição 1797-1801, exs. (158-159))

Roberts defende que estes fatos são completamente compatíveis com sua análise.
Para ele, o grego difere do espanhol, do romeno e do napolitano, por possuir marcação
morfológica de caso em artigos e nominais. Dessa maneira, podem-se tratar formas
como ‘tin turta’ e ‘to vivlio’ em (38) como casos de incorporação de D por K em
estruturas como a em (37). Essa incorporação é presumivelmente desencadeada pelo
fato de os Ds em grego terem um traço não interpretável de Caso que não está presente
nos Ds do espanhol. Portanto, em grego, D é um alvo defectivo em relação a K (e por
isso pode ser incorporado). O clítico tin/to é incorporado por v* da mesma forma que
acontece com o clítico laφ do espanhol. A impossibilidade de RC com PP é diretamente
comparável com as situações gerais das línguas românicas, em que a cliticização de
objetos de preposição é geralmente impossível.

2.2.1 Considerações sobre as abordagens baseadas no fracionamento de um


DP complexo

Barbiers (2008) aponta que análises baseadas no fracionamento de um


constituinte complexo levanta uma série de problemas. O primeiro deles diz respeito ao
fato de o constituinte complexo nunca aparecer como tal na superfície. Outro problema
é responder por que um tal constituinte existiria, para começo de conversa. E ainda há o
problema de esse tipo de análise requerer extração de posições que, a princípio, não
permitem extrações, como, por exemplo, Spec de Spec.
Há vários fatores que nos desencorajam a perseguir uma análise dos RC no PB
baseada no fracionamento de um constituinte maior, a saber:
a. Essas análises descrevem fenômenos relacionados sempre com clíticos de 3.ª
pessoa; veja que, na proposta de Uriagereka (1995), os clíticos de 1.ª e 2.ª,

40
tratado como fortes, equivalem a um DP, e não a um D, e por isso não permitem
a operação de movimento de D para v, pré-requisito para o redobramento.

b. Em sua maioria, elas assimilam clíticos a determinantes, o que é completamente


incompatível com uma análise dos clíticos me e te, do PB.

c. A não ocorrência do suposto DP complexo na superfície é ainda mais suspeita


para os dados do PB. Na hipótese de que, em espanhol, haveria duas ocorrências
de la no DP, é possível assumir o apagamento de um deles, com a cliticização
simples, ou o movimento de um deles, no RC. Em PB, temos o complicador de
os pares pronominais que constituem o redobro serem morfologicamente
bastante distintos: me/eu, te/você. O par te/você nem sequer possui uma história
morfológica comum.

d. De uma forma geral, as análises baseadas no Grande-DP assumem um efeito


interpretativo para o RC, o que, como veremos, é uma hipótese controversa para
os dados do PB.

2.3 RC como concordância/cadeia

Dentro das abordagens do RC como nós de uma cadeia, um constituinte pode


estar associado a mais de uma posição em uma estrutura sintática, e o redobro surge
quando mais de uma dessas posições é pronunciada. Como veremos ao longo dessa
seção, vários trabalhos relacionam os conceitos de cadeia e concordância, mas, nessas
associações a noção de concordância é central.
As abordagens para os RC como uma forma de concordância encontram vários
desenvolvimentos e sustentações na literatura. Pode-se dizer que, entre as análises para
os redobramentos vistos com uma forma de concordância, há uma distinção quase
consensual: os RC/OD e os RC/OI devem ser analisados separadamente. Posto de modo
geral, RC/OI apresentam o comportamento de marcas de concordância (entendendo-se

41
aqui concordância-φ), ao passo que RC/OD envolvem a checagem de um traço de
especificidade.
Os RC/OD em várias línguas possuem a propriedade comum de apresentarem
efeitos interpretativos, codificando principalmente especificidade19 de várias formas, ao
passo que RC/OI não apresenta efeitos interpretativos.
O trabalho de Borer (1984) é visto como o primeiro a propor que clíticos são
marcas de concordância, assumindo que clíticos são [+V] em romance. Seguindo este
insight, Suñer (1988) propôs que clíticos são flexões geradas como parte de V. Para
Suñer, clíticos são listados no léxico, de modo que seus traços podem ser especificados
lá. Clíticos de OD e clíticos de OI seriam definidos para os traços [específico],
[animado], [gênero], [número] e [pessoa], sendo a diferença entre os dois o fato de que
clíticos de OD são inerentemente [+específico]. Por serem marcas de concordância,
clíticos precisam concordar em traços com o constituinte com qual eles formam cadeia
(o Princípio de Equivalência). Isso, segundo Suñer, explica o requerimento de
especificidade para os casos de RC/OD. Uma cadeia só é bem formada, quando não há
quebra na relação de traços, e um NP [-específico] não pode formar cadeia com um
clítico [+específico].

19
Especificidade é um conceito semântico que recebe vários tratamentos na literatura (ver, por exemplo,
Rijkhoff & Seibt (2005), Ionin (2006), von Heusinger (2011), que variam de perspectivas semântico-
pragmáticas a abordagens formalistas, relacionando especificidade a efeitos de escopo, topicalidade e
partitividade (von HEUSINGER, 2011). De um modo geral, pode-se distinguir entre dois tipos de
indefinidos: os específicos e os não específicos (von HEUSINGER, 2011, p. 1027):

(i) Um aluno colou no exame de sintaxe. (Eu o conheço: é o Jim Miller.)


(ii) Um aluno colou no exame de sintaxe. (Mas eu não sei quem foi.)

Em (i), “um aluno” se refere a um elemento preciso, pertencente a um conjunto saliente no contexto. Não
se trata de um estudante qualquer, mas de um elemento previamente selecionado em um conjunto que ao
menos o falante tem em mente; (i) apresenta um caso de indefinido específico. Em (ii), por outro lado,
“um aluno” é um elemento cuja existência é pressuposta, mas que não pode ser identificado prontamente
num conjunto saliente; assim, a referência de “um aluno” em (ii) é indefinida e inespecífica. Situação
semelhante ocorre numa sentença como “Estamos procurando um aluno para vaga de estágio”, em que
“um aluno” não faz referência a nenhum elemento específico de um conjunto previamente dado.

Embora a distinção “específico X inespecífico” seja mais associada a NPs indefinidos, Rijkhoff & Seibt
(2005) apontam que as oposições “definido X indefinido” e “específico X inespecífico” não estão
condicionadas, uma vez que há, também, definidos inespecíficos, com se vê em (iii):

(iii) O professor vai premiar o aluno com os melhores resultados.

(iii) É um caso de NP definido, pois pressupõe existência e unicidade. Porém, sua referência é
inespecífica, no sentido de que, embora haja um conjunto saliente no contexto do qual o elemento “o
aluno” faz parte, não é possível retornar o elemento preciso desse conjunto.

42
Em (39), temos exemplos do espanhol de RC/OD que, por redobrarem DPs
específicos, são gramaticais. (40) exemplifica tentativas mal sucedidas de redobramento
de DPs não específicos (Bleam, 1999, p. 12).

39)
a. (Lo) ví a Juan
o vi a Juan

b. (La) oían a Paca/ a la niña/ a la gata


a ouviam a Paca/ a a menina/ a a gata

40)
a. No (*lo) oyeron a ningún ladrón
Não (*o) ouviram a nenhum ladrão

b. (*La) buscaban a alguien que los ayudara


(*a) procuravam a alguém que os ajudasse

c. (*Lo) alabarán a-l niño que termine primero


(*o) elogiarão ao menino que termine primeiro

Ao contrário dos RC/OD, os RC/OI não estão sujeitos a efeitos de especificidade


(SUÑER, 1988, p. 395).

41)
[-específico, -definido]
a. Les ofrecerion queso y leche a familias de pocos medios
Lhes ofereceram queijo e leite a famílias de poucos recursos

[-específico, +definido]
b. Les dejaré todo mi dinero a los pobres
Lhes deixarei todo meu dinheiro a os pobres

43
Como aponta Bleam (1999), Suñer (1988) considera clíticos como morfemas de
concordância que, como tal, precisam se adequar à Princípio de Equivalência (Matching
Principle), como proposto originalmente em Borer (1984). Esse princípio prediz que
clíticos precisam concordar em traços com o NP pleno que eles redobram. Porque os
clíticos acusativos do espanhol são [+específico], o NP redobrado precisa ser
igualmente marcado como [+específico]. Os clíticos dativos, por outro lado, por serem
subespecificados para o traço de especificidade, podem redobrar tanto NPs específicos
com os inespecíficos.

42) Princípio de Equivalência (BLEAM, 1999, p. 13)

a. Lo ví a Juan
[+espec.] [+espec.]

b. *Lo busco a un carnicero


[+espec.] [-espec.]

Um trabalho emblemático na linha dos RC como concordância é o proposto em


Sportiche (1996). Sportiche considera que Clíticos e NPs não estão em distribuição
complementar e clíticos seriam gerados em suas posições superficiais, uma adesão
parcial ao modelo de inserção. Em sua proposta, há condições de localidade entre o
clítico e o NP, sugerindo que também há movimento envolvido. Para dar conta disso,
ele assume que é o NP redobrado que se move para o Spec do clítico em algum ponto da
derivação, seja na sintaxe ou na LF20. A estrutura geral proposta por Sportiche (1996, p.
235) é a seguinte:

20
“Forma Lógica” (de Lofical Form).

44
Diagrama 4 - Projeções Clíticas de Sportiche (1996)

Sportiche explica os redobros de acusativo e dativo de um modo muito similar


ao de Suñer (1988). Tanto o clítico dativo quanto o acusativo são núcleos de
concordância, num sentido mais geral do termo. O clítico dativo envolve checagem de
Caso e concordância, apenas, e não é restrito por considerações sobre especificidade. Os
clíticos acusativos, além de Caso e concordância (aqui entendida com concordância-φ)
ainda licenciam o traço [+específico]. A hipótese de trabalho de Sportiche é que ambos
os clíticos possuem uma sintaxe unificada. Assume-se que ambos projetam VoiceP
(Anagnostopoulou, 2006, 2015 reescreve essa projeção como ClP, em sua revisão),
projeção na qual eles entram numa relação de concordância com seus NPs associados
(NP visível ou pro). As diferenças no comportamento de um e outro são explicadas com
base nas diferenças de traços léxico-sintáticos de cada um desses núcleos flexionais.
Nessa abordagem, a sintaxe dos clíticos seria completamente assimilada à dos
outros núcleos funcionais. O XP* (que seria o DP na posição argumental) relacionado
com o clítico se moveria para a posição XP^ (que é a posição do clítico inserido) em
algum momento da derivação (na sintaxe visível ou na LF). A relação de concordância
entre o clítico e o XP* é derivada como uma relação Spec-núcleo. O RC então difere
minimante da estrutura não redobrada, no sentido de que, no RC, XP* é visível e, na
estrutura simples, XP* é nulo.
A proposta de Sportiche permite ressuscitar o parâmetro das construções com
clíticos, que podem ser sumarizadas da seguinte maneira (Sportiche, 1996, p. 237):

45
i. O movimento de XP* para XP^ pode ocorrer de modo visível ou de
modo encoberto;
ii. O núcleo (ou seja, o clítico) pode ser visível ou nulo;
iii. XP* (ou seja, DP) pode ser visível ou nulo.

Esses parâmetros variáveis seriam então capazes de explicar os fenômenos


interlinguísticos de cliticização, redobramento e scrambling. A tabela abaixo é o
panorama resumido dessas possibilidades (como descrito em Sportiche, 1996, p. 237):

Tabela 2 - Estruturas clíticas de acordo com Sportiche (1996)


XP* (DP) Movimento para XP^ Núcleo Construção resultante
clítico simples (francês, italiano,
encoberto visível ou encoberto visível
holandês)
visível encoberto visível RC (espanhol, romeno)
concordância de objeto (árabe
visível visível visível
libanês)
visível visível encoberto scrambling (holandês)

O movimento de XP* para XP^ é atribuído ao Critério do Clítico, que, por sua
vez, se encaixa no Critério Generalizado de Licenciamento (ver Rizzi (1991), para o
Critério Wh, a partir do qual Sportiche deriva o Critério do Clítico e o Critério
Generalizado de Licenciamento):

43) Critério do Clítico (SPORTICHE, 1996, p. 236)

Na LF:
a. Um clítico precisa estar numa relação Spec-núcleo com um XP [+F];
b. Um XP [+F] precisa estar numa relação Spec-núcleo com um clítico.

44) Critério Generalizado de Licenciamento (SPORTICHE, 1996, p. 236)

Na LF:
a. Um núcleo [+F] precisa estar numa relação Spec-núcleo com um XP [+F];
b. Um XP [+F] precisa estar numa relação Spec-núcleo com um núcleo [+F].

Em (44), [±F] representa um conjunto de propriedades, tais como Wh, Neg,


Foco etc., as quais acionam movimento. Para o caso das construções com clítico OD,
Sportiche propõe que o clítico licencia especificidade em seu associado. Por outro lado,
46
os clíticos de OI são tratados como marcas de concordância, uma vez que eles não
resultam em efeitos de especificidade (como em Suñer, 1988), ou seja, para os clíticos
OI, ClP é uma projeção de concordância, ao estilo de AgrP.
A abordagem de Sportiche reconcilia os modelos de movimento e de inserção,
uma vez que se tem tanto o inserção do clítico em XP^, quanto o movimento do
associado XP*.
O trabalho original de Sportiche (1996) rendeu vários desenvolvimentos e
reformulações. Bleam (1999) propõe uma análise mista Sportiche-Uriagereka, em que
ela aplica a hipótese do constituinte complexo para um grupo de clíticos e a hipótese de
concordância para outro. Ela adota Uriagereka (1988, 1995), de acordo com o qual os
clíticos acusativos lo e la e o clítico dativo le se originam de derivações diferentes.
Clíticos dativos seriam núcleos funcionais da projeção verbal (esta parte é consoante
com Sportiche (1996)), enquanto que clíticos acusativos de 3.ª pessoa são analisados
como determinantes que se movem de dentro da posição de argumento, conforme
Uriagereka (1988, 1995).
Ainda na esteira das análises de RC como concordância, Anagnostopoulou
(2006, 2015) apresenta alguns desenvolvimentos recentes, que consideram a análise de
Sportiche (1996), levando em conta principalmente que clíticos devem ser analisados
como núcleos com uma projeção funcional própria no domínio de IP.
A autora aponta que, dentro do modelo de Chomsky (2000, 2001), a relação
entre o XP* e a posição do clítico pode ser refeita como uma relação Agree, entre a
posição que hospeda o clítico, apontada por ela como sendo T, e o sintagma redobrado.
O clítico pode então ser visto como um sinal visível de Agree entre T e o objeto21. Essa
análise dispensaria o movimento de fato, mas manteria as características de localidade
do movimento.
Anagnostopoulou (2015) discute brevemente dois trabalhos representativos
sobre o tema: Preminger (2009) e Nevins (2011). A conclusão surpreendente desses
dois trabalhos é que muito do que se pensa ser concordância de objeto deveria ser
reanalisado como RC e não o contrário, diferentemente do que muito da literatura
antecedente sobre o tópico tem apontado. No entanto, essas conclusões reembaralham
as terminologias, mas não desfazem a fronteira sutil existente entre os fenômenos de
cliticização e concordância. O balanço das análises apresentadas aqui revela que, de

21
Compare esta hipótese à proposta por Roberts (2010b) (discutida na seção 2.2), em que o clítico é a
expressão morfológica de Agree em v*.

47
modo mais ou menos acentuado, assume-se que fenômenos de RC envolvem operações
de concordância.

2.3.1 Considerações sobre o modelo de concordância/cadeia

Barbiers (2008) discute a dificuldade em se discernirem redobramentos e


relações de concordância. Como ele aponta, a concordância sujeito-verbo tem sido
central no desenvolvimento da teoria sintática, figurando como um caso arquetípico de
relação de concordância. Nesse tipo de relação, traços morfossintáticos do sujeito
aparecem repetidos no verbo, o que permitiria dizer que a concordância sujeito-verbo é
uma instância de redobro sintático. O autor relembra também que a concordância de
verbos finitos é associada com uma posição sintática específica. Muitas línguas
possuem uma posição na sentença acessível apenas para verbos finitos, qual seja, T.
Essas observações levaram à assunção de que a concordância finita se origina numa
posição que precede a negação e que o sujeito precisa (em algumas línguas) se mover
para uma posição imediatamente precedente a esta, a fim de checar esses traços de
concordância. Percebemos aqui claras ressonâncias com a proposta de Sportiche (1996),
para os clíticos. Barbiers ainda relembra que relações de concordância semelhantes se
estabelecem entre elementos Qu-, negação, foco, etc., e eles são frequentemente
visíveis, porque eles podem fazer com que o constituinte se mova para a posição onde
estes traços são gerados. Mais uma vez, a análise de Sportiche parece bastante coerente
com os aspectos mais gerais da componente sintática.

45) Esquema das configurações de concordância (BARBIERS, 2008, p. 29)

a. F[x,y,...] ..... XP [x,y,...]

concordância

b. F[3sing] ..... DP [3sing]


c. F[Wh] ..... DP [Wh]

48
Neste esquema, um núcleo funcional (abstrato) F está numa relação de
concordância com um constituinte ou núcleo que compartilha traços morfossintáticos
com F. Barbiers aponta que configurações tais como a em (45) podem dar origem a dois
tipos diferentes de redobramento. Quando não há movimento, o redobro envolve um
elemento funcional alto na estrutura e um elemento concordante baixo na estrutura.
Quando há movimento, o redobro envolve o que se convencionou chamar de
configuração Spec-núcleo, na qual o constituinte movido é adjacente à esquerda do
núcleo funcional concordante.
As análises do RC como uma instância de concordância parecem mais
compatíveis com o fenômeno do PB que estamos investigando, principalmente porque:

a. A maior parte das abordagens trata como elementos de concordância clíticos


que estabelecem unicamente relações-φ. Nomeadamente, as análises
predizem que RC/OI, que não envolvem efeitos interpretativos, são marcas de
concordância. Como veremos, as partículas me e te não parecem envolver
efeitos interpretativos, mas apenas a valoração de um traço da categoria de
pessoa (como veremos, o traço [autor]).

b. Abordagens em termo de concordância predizem uma posição fixa e dedicada


para os clíticos, como é próprio de projeções de concordância. Vamos ver que
os clíticos redobrantes do PB são exclusivamente proclíticos e se fixaram em
uma única posição na sentença: a raiz verbal.

c. A hipótese de concordância abre espaço para se discutirem os redobramentos


de 1.ª e 2.ª pessoa. Traços de pessoa são traços-φ, associados principalmente a
fenômenos de concordância.

d. O fenômeno de concordância é pervasivo nas línguas e não requer nenhuma


estipulação hipotética não atestável empiricamente, como é o caso da hipótese
do constituinte complexo.

49
2.3.2 Evidências a favor de uma hipótese de concordância para os RC do PB

Em Machado-Rocha (2011), defendemos que há várias evidências sintáticas de


que as formas me e te foram reanalisadas como afixos de concordância no PB dialetal.
Na perspectiva da gramaticalização, esse parece ser um fenômeno comum nas línguas
(GIVÓN, 1976; ROBERTS & ROUSSOU, 2003; FUß, 2005; COURNANE, 2008,
2010).
No PB, podemos apontar cinco critérios que indicam esse caminho de reanálise.
São eles: (i) a restrição de adjacência ao verbo e a ausência de movimento; (ii) a
identificação de traços; (iii) a preservação da estrutura argumental; (iv) a não
distribuição complementar (ou, seja, o redobramento); e (v) a incompletude do
paradigma.
Fuß (2005, p. 140) explica que um quesito fundamental para que um elemento
pronominal seja reanalisado como marca de concordância é sua adjacência ao verbo.
Uma vez que a reanálise ocorre, a adjacência se torna mandatória e a marca não pode
mais se mover. Cournane (2008) aponta que a adjacência favorece a reanálise, porque a
concordância é sempre local na sintaxe e, por isso, espera-se que marcas de
concordância sejam incapazes de se mover independentes de seus hospedeiros. É
exatamente nesta situação que encontramos os clíticos do PB dialetal, que ocorrem
unicamente em posição proclítica e somente ligados à raiz verbal, diferentemente de
outros estágios e variedades do português.

46) PB
a. ele não quer me ajudar eu/pro
b. *ele não me quer ajudar eu/pro

O PE, ao contrário, embora seja uma língua eminentemente enclítica, aceita a


próclise e a cliticização em auxiliares e modais. Movimento é uma característica própria
dos clíticos, mas não de marcas de concordância (FUß, 2005; COURNANE, 2008).

50
47) PE:
a. Os alunos ofereceram-te todos flores.
b. Os alunos ofereceram-te também flores.
c. Todos os alunos te ofereceram flores.
d. Os alunos também te ofereceram flores.
e. O que te ofereceram os alunos?
(MAGALHÃES, 2006, pp. 14-15.)
f. Eles não te querem fazer mal.

Os critérios de identificação de traços e preservação da estrutura argumental


estão relacionados. Para que um pronome clítico possa ser reanalisado como um
morfema de concordância, é preciso que algum outro elemento passe a ocupar a posição
de argumento do verbo. Ao mesmo tempo, projeções de concordância precisam ter seus
traços não interpretáveis valorados na sintaxe, o que requer que algum elemento
recorrente com traços-φ interpretáveis sirva de alvo para essa operação de valoração.
Perceba que a estrutura redobrada oferece exatamente este tipo de configuração, em que
um pronome pleno sempre ocupa a posição de argumento e ao mesmo tempo apresenta
traços-φ interpretáveis, identificados com os traços das marcas me e te, formando
sempre os pares me/eu, te/você.

48)
a. aí começô a me xingá eu
b. cê pode intrá qu’eu te ajudo ocê no qu’eu pudé

O critério (iv) diz respeito a uma propriedade fundamental da concordância,


como vimos em Barbiers (2008), qual seja, a de que um conjunto de traços de um
elemento apareça replicado em outro. Numa perspectiva de movimento, como a
defendida em Kayne (1975), clíticos e pronomes plenos aparecem em distribuição
complementar. Fenômenos de concordância são o oposto da distribuição complementar,
e requerem que ambas as partes da relação apareçam na superfície. Também neste
quesito, os RC do PB oferecem sustentação para a hipótese da concordância, visto que
eles são constituídos exatamente na presença de dois elementos que compõem o par de
elementos cujos traços-φ são idênticos.

51
Por fim, o estudo pioneiro de Zwicky & Pullum (1983) para a distinção entre
clíticos e marcas de concordância defende que clíticos aparecem em paradigmas
completos, enquanto que marcas de concordância apresentam lacunas e sincretismos no
paradigma. Quando comparamos o quadro de clíticos do PE aos clíticos que resistem
nas variedades orais do PB, percebemos uma grande diferença:

Tabela 3 – Clíticos do PE vs. Prefixos do PB


Clíticos do PE Prefixos do PB
1ª sing me me
2ª sing te te/lhe/le
3ª sing o/a/se/lhe --
1ª pl nos --
2ª pl vos --
3ªpl os/as/lhes --

(MACHADO-ROCHA, 2010, p. 114, adaptado)

O paradigma de pronomes clíticos do PE exibe formas específicas para cada


pessoa, com especificações para gênero/caso nas séries de 3.ª pessoa, além de formas
para a 1.ª e a 2.ª pessoas do plural, ao passo que o paralelo do PB possui um número
bem menor de formas, sendo que me e te são as que resistem no léxico oral. As formas
lhe/le, quando usadas no registro oral, se referem à 2.ª pessoa (Eu le vi ontem) e assim
figuram como uma alomorfia da marca te. O pronome se é marcadamente reflexivo e
por isso não parece preencher a lacuna dos pronomes clíticos OD/OI de 3.ª pessoa.

2.4 Síntese do Capítulo

Discutimos, neste capítulo, dois grandes grupos de abordagens para os RC na


literatura: (i) as que tratam RC como fracionamento de um constituinte complexo; e (ii)
as que consideram que RC são fenômenos de concordância. Os trabalhos reunidos no
primeiro grupo associam clíticos a determinantes e procuram explicar principalmente

52
casos de RC OD. O segundo grupo é composto por análises que relacionam RC com
fenômenos de concordância mais gerais e em sua maioria atribuem ao clítico uma
projeção funcional dedicada. Comum às duas vertentes é a tendência de se elaborarem
explicações diferenciadas para RC/OD e RC/OI. Os RC/OD são, em quase todas as
análises, associados ao efeito interpretativo de especificidade. Um conceito que parece
instável através destes trabalhos é a perspectiva de um parâmetro que dê conta dos RC,
numa perspectiva interlinguística. Vimos que o modelo de RC como concordância é
mais atraente para uma análise dos dados do PB dialetal, língua que oferece várias
evidências de que as marcas me e te foram reanalisadas como afixos de concordância.

53
3. RC no PB, efeitos interpretativos e cadeias paralelas

Como vimos no capítulo 2, a maior parte da literatura sobre os RC assume


algum efeito interpretativo que restringe a ocorrência dos redobros. Entre esses efeitos,
destaca-se o que se convencionou chamar de especificidade. Jaeggli (1982, 1986) e
Borer (1984) assumiram que clíticos redobrantes garantiriam (ou tornariam explícito)
que o DP redobrado fosse definido ou específico. Nesses casos, o DP redobrado deveria
vir obrigatoriamente precedido de uma preposição especial (a no espanhol, shel no
hebraico, pe no romeno). Suñer (1988) defendeu que objetos diretos redobrados em
espanhol são limitados a contextos de NPs específicos e argumentou ainda que traços de
animacidade estariam envolvidos nos fenômenos de redobro. Sportiche (1996) propõe
que clíticos licenciam especificidade em seus DPs associados. Núcleos clíticos
relacionados a objetos indiretos, por outro lado, são tratados como marcas de
concordância, uma vez que eles não resultam em efeitos de especificidade. Uriagereka
(1988, 1995), tratando clíticos como determinantes (na hipótese do DP complexo),
assumiu que clíticos acusativos em todas as línguas se movem para um domínio
funcional e também que eles são necessariamente específicos. Bleam (1999) defendeu a
existência de restrições de animacidade em RC/OD. Torrego (1998) argumentou que
clíticos são específicos ou definidos.
Todas essas análises conduzem à expectativa de que, também no PB, as
estruturas de RC estariam relacionadas a efeitos interpretativos, tais como
especificidade e definitude. Além disso, vimos que há efeitos interpretativos em
estruturas redobradas do PB padrão e na diacronia do português. Neste capítulo,
apresento uma tentativa de análise dos RC do PB com base em efeitos interpretativos, a
partir de uma abordagem em termos de cadeias paralelas, como proposto em Chomsky
(2005), e da realização de múltiplos nós de uma cadeia, como desenvolvido em Nunes
(2011b).

54
3.1 RC como uma estrutura de “pessoa específica”

Em Machado-Rocha (2010, 2011), sugeri que a estrutura redobrada garantiria


que o referente do pronome na posição argumental seria “específica”, no sentido de ser
não genérica22. A ideia aqui é que os pronomes plenos de 1.ª e 2.ª pessoas eu e você, em
estruturas simples, permitiriam leituras ambíguas entre a genérica e não genérica,
enquanto que a estrutura redobrada cl-V-pronome seria necessariamente não genérica.

49)
a. Estrutura simples com o pronome pleno - leitura ambígua entre genérica e
específica:
E quando você tenta sair dessa vida, ninguém ajuda você não.
(Aqui, pode-se interpretar o pronome você como “qualquer pessoa”.)

b. Estrutura redobrada - apenas leitura específica:


E quando você tenta sair dessa vida, ninguém te ajuda você não.
(Aqui, a única interpretação possível do par pronominal seria você, cujo
referente deveria ser necessariamente o interlocutor do eixo discursivo em
questão.)
(MACHADO-ROCHA 2010, p. 104)

Na construção desta hipótese, destaca-se que pronomes de 1.ª e 2.ª pessoas


permitem a leitura genérica, enquanto que pronomes de 3.ª a proíbem.

50) 23
a. Hoje vê eu fumando um cigarro, amanhã pega eu experimentado coisa pior.
(Aqui, o emissor está criando uma situação hipotética. A referência do pronome
eu é arbitrária, podendo significar eu, você, qualquer pessoa.)

22
Perceba que esta aplicação na noção de especificidade para pronomes de 1.ª e 2.ª pessoas é compatível
com o conceito de especificidade que leva em conta o pertencimento a um conjunto dado no contexto.
Ver nota 18.
23
Esses exemplos são uma adaptação de exemplos apresentados em Carvalho (2008).

55
b. Hoje vê você fumando um cigarro, amanhã pega você experimentado coisa
pior.
(Leitura ambígua, entre a genérica e a específica.)

c. Hoje vê ele fumando um cigarro, amanhã pega ele experimentado coisa


pior.
(Leitura genérica proibida.)

Como pode ser visto nos exemplos (50-a) e (50-b), os pronomes de 1.ª e 2.ª
pessoas permitem uma interpretação ambígua, e a leitura genérica é permitida. Em
(50-c), por outro lado, em que o pronome é de 3.ª pessoa, a leitura é obrigatoriamente
específica, e a interpretação do pronome ele precisa de um antecedente no discurso ou
um referente dêitico. Para os pronomes de 1.ª e 2.ª, não há obrigação de antecedentes, e
mesmo a leitura dêitica desses pronomes pode ser diluída, como se vê nos casos dos
contextos genéricos/hipotéticos. Com pronomes de 3.ª pessoa, quando se quer atingir a
interpretação genérica/hipotética, é preciso usar a variante nula pro. Veja a comparação
entre (51-a) e (51-b):

51)
a. E você acha que empresa de telefone está preocupada em ajudar ele?
(O pronome pleno ele precisa de um referente no contexto. A leitura genérica é
proibida.)

b. E você acha que empresa de telefone está preocupada em ajudar ___?


(Com a variante nula pro, a situação é inversa: pro pode ser interpretado como
qualquer pessoa.)
(MACHADO-ROCHA 2010, p. 105)

Considerando essas diferenças e o fato de que pronomes de 3.ª pessoa são


subespecificados para os traços discursivos [falante] e [destinatário], a conclusão em
Machado-Rocha (2010) é que a presença das formas me e te, em estruturas de RC,
proibiria a interpretação genérica dos pronomes plenos eu e você. Dessa forma, os
argumentos redobrados pelos pares pronominais me/eu e te/você seriam
necessariamente específicos. As estruturas simples, ao contrário, compostas apenas dos

56
pronomes plenos eu e você, seriam ambíguas entre a interpretação específica e a
genérica. A não ocorrência de RC para a 3.ª pessoa se explica então, porque não há
traços de [falante] e [destinatário] nessas formas para serem redobradas. A oposição
específico/genérico para a 3.ª pessoa é feita com a alternância ele/pro.

3.2 RC, Teoria de Cópia e cadeias paralelas

Nesta abordagem em termos de efeitos interpretativos para os RC do PB, uma


intuição foi que o redobramento seria o efeito do não apagamento de cópias de uma
cadeia. Os principais fundamentos dessa hipótese foram a sintaxe de Fases de Chomsky
(2005), em que ele desenvolve a ideia de cadeias paralelas, e os desenvolvimentos de
Nunes (2011b) para a Teoria de Cópia. O objetivo principal dessa etapa da investigação
foi testar a possibilidade teórica de tratar clítico e pronome pleno, em estruturas de RC,
como elos de uma cadeia. Dessa forma, o pronome pleno seria a cauda da cadeia e o
clítico seria a cabeça. A primeira questão a ser discutida numa tal abordagem é a
anomalia do não apagamento da cauda, uma vez que, na ordem geral das operações,
todos os elos de uma cadeia são apagados na PF24, com exceção da cabeça.
Nunes (2011b) explica que a cabeça da cadeia é o candidato ótimo para ser
enviado para Spell-out, porque é ela que tem o maior número de traços
checados/valorados. Uma cadeia não poderia exibir mais de um elo com o mesmo
material fonético, porque, nessa situação, a estrutura contendo esses elos não poderia ser
linearizada. Em algumas situações particulares, no entanto, a realização fonética de mais
de um elo de uma cadeia seria possível. Nunes apresenta a seguinte estrutura:

24
“Forma Fonológica” (de Phonological Form).

57
a. Estrutura enviada para Spell-out:

b. Fusão na Componente Morfológica:

Diagrama 5 - Fusão na Componente Morfológica


(NUNES 2011b, p. 160)

Nunes salienta a presença de duas cópias de p enviadas para Spell-out no (diagr.


5-a). Porém, na Componente Morfológica, os nós terminais p e m são fundidos (no
sentido de Halle & Marantz (1993)), resultando no terminal atômico #mp# (ou #pm#),
de modo que a estrutura interna do elemento não é mais acessível para operações
morfológicas ou sintáticas posteriores. Para fins de linearização, p, r e #mp# não
representam um problema, uma vez que não há dois elementos idênticos. Nessa linha de
raciocínio, é possível a realização visível de duas cópias sintáticas numa cadeia,
garantindo-se que haja razões morfológicas para tal.
Considerando-se essas premissas, numa estrutura de RC, podemos tomar o
clítico redobrante e o pronome pleno como elementos que, embora compartilhem traços
sintáticos comuns, são morfofonologicamente distintos, e assim poderiam ser vistos

58
como a realização de mais de um elo da cadeia argumental. Além disso, associamos
essa perspectiva à postulação de Chomsky (2005) sobre cadeias paralelas.
No quadro teórico de Chomsky (2005), operações sintáticas são reduzidas a dois
tipos básicos de Merge: o Merge Externo, que toma itens da Numeração e os insere na
derivação; e o Merge Interno, que toma objetos sintáticos presentes na derivação, para
inseri-los (movê-los) em outra posição. Ambas as formas de Merge teriam por propósito
a checagem/valoração de traços não interpretáveis e, portanto, atenderiam ao Princípio
de Interpretação Plena (Full Interpretation Principle - FI).
Também os traços não interpretáveis passam a ser considerados como
pertencentes a apenas dois grupos: os Traços de Margem, os quais ou ativam a seleção
de itens da Numeração ou a cópia sintática de objetos presentes no curso da derivação; e
os Traços de Concordância (Agree Features), responsáveis pelas operações Agree, que
podem resultar ou em cópia/movimento de objetos inteiros (pied-piping), ou na
cópia/movimento de Traços Formais (FF)25, o que dá origem a Agree a longa distância,
como proposto anteriormente em Chomsky (1993, 1995).
Chomsky (2005) ainda revê alguns aspectos da Ciclicidade de Movimento.
Antes, um mesmo elemento podia passar por múltiplos movimentos e formar uma
cadeia com três ou mais elos. Abandonando essa visão tradicional, e considerando a
abordagem de cópias, Chomsky (2005, p. 16) assume que, quando um elemento parece
se mover mais de uma vez, formando cadeias do tipo A’-A-A, o que de fato está
acontecendo é a construção de cadeias distintas, a partir do mesmo elemento de base.

52)
a. C [T [who [v* [see John]]]]
b. whoi [C [whoj [T [whok v* [see John]]]]]
c. who saw John

53)
a. C [T [v [arrive who]]]
b. whoi [C [whoj [T [v [arrive whok ]]]]]
c. who arrived

25
“Traços Formais” (de Formal Features).

59
Considerando (52), Chomsky argumenta que na fase v*, a operação de
concordância entre v* e John valora todos os traços não interpretáveis. Na fase C,
ambos os traços de margem e os traços Agree de C sondam o alvo who em Spec-v*. Os
traços Agree, herdados de T por C, atraem o elemento sondado, ou seja, acionam a
operação de cópia, para o Spec-T, enquanto que os traços de margem de C atraem o
mesmo elemento (resultando numa nova operação de cópia) para o Spec-C. O resultado
dessas duas operações de cópia/movimento é representado em (52-b). Chomsky ressalta
que uma cadeia é construída com as cópias {whoi, whok}, e outra com as cópias {whoj e
whok}, sem nenhuma relação direta entre whoi e whoj.
Portanto, em (52-b), são formadas duas cadeias-A. O mesmo raciocínio se aplica
a (53), em que duas cadeias paralelas são formadas pelos traços Agree e os traços de
margem de C.
Com esse aparato em mãos, consideramos, primeiramente, que, numa estrutura
de RC, um pronome pleno e um clítico podem ser a realização de dois elos de uma
mesma cadeia.

54) Eu te ajudo você


[T [te [v ajudo [ você]]]

O problema aqui é explicar por que a cópia mais baixa você sobreviveu à
operação de redução de cadeia (NUNES, 2011b), que prediz que todas as cópias, exceto
a cabeça, devem ser apagadas. De acordo com Chomsky (2005), cadeias paralelas
podem ser construídas a partir de um único elemento de base, quando mais de um traço
não interpretável sonda o mesmo item. Relembre que estamos considerando haver um
efeito interpretativo na cliticização, o efeito de especificidade, que em Machado-Rocha
(2010, 2011) é tido como a leitura não genérica de pronomes de 1.ª e 2.ª pessoas. O
pronome pleno na posição argumental também precisa ter seus traços de Caso checados.
Então, nesta situação, temos dois traços a serem checados: [uCaso] e [uespecífico]. A
checagem desses dois traços resultaria na emergência de cadeias paralelas.
Num primeiro passo, o traço [uN] de v sonda o pronome objeto e valora seu traço
[uCaso]. Vamos assumir que esta operação ocorre como Agree à longa distância, com
movimento de traços formais (FF) apenas, e a matriz pronominal permanece in situ.
Essa operação resulta na primeira cadeia:

60
55) Cadeia I: {iFF/Caso-pronome, matriz-pronominalargumento-licenciado}

Esta primeira cadeia valora os traços de Caso do pronome, via movimento de


traços, e o argumento pronominal é licenciado, permanecendo in situ.
Mas os traços não interpretáveis de v ainda não foram exauridos. Com a raiz
verbal movida normalmente para v, o traço D de v (Chomsky, 1995, 2000, 2001),
responsável pela definitude/especificidade de objetos movidos (shifted) ou cliticizados,
sonda o mesmo elemento, o argumento pronominal, cuja matriz permaneceu in situ após
a checagem de Caso à distância. Diferentemente do traço de Caso, a operação de cópia
acionada pelo traço D resulta numa “cópia completa” que, na Componente Morfológica,
vai receber uma forma dedicada clítica. O traço D em pronomes de 1.ª e 2.ª pessoas no
PB resultaria na leitura não genérica. Nesse ponto, uma segunda cadeia emerge:

56) Cadeia II: {iD-pronome, uD-pronome}

Com essas duas cadeias enviadas para o Spell-out, temos a estrutura redobrada.
Uma primeira pergunta a ser respondida sobre essa estrutura é: Por que a cauda dessas
cadeias conseguiu escapar à redução de cadeia?
Quando consideramos a cadeia II, não haveria nenhuma razão para se manter a
cópia mais baixa, uma vez que as duas cópias são formalmente idênticas, e a cópia mais
alta tem mais traços valorados. A redução de cadeia deveria se aplicar normalmente
aqui. As condições mudam, no entanto, quando inspecionamos a cadeia I. Porque não
houve a cópia integral, mas apenas cópia/movimento de traços formais FF, a
interpretabilidade dos traços movidos dependem da cadeia como ela foi formada, e por
isso a cópia mais baixa não pode ser apagada. Por essa razão, as duas cópias do
pronome são enviadas para o Spell-out e a estrutura redobrada aparece.
Esta análise encontra ressonâncias com a proposta de Poletto (2006). Como
vimos, Poletto considera o redobro um recurso de economia, quando um XP precisa
checar mais de um traço funcional na sintaxe, embora ela adote uma perspectiva de
fracionamento do DP. Colocando de lado essa diferença teórica, podemos reconhecer os
seguintes pontos de contato entre as duas abordagens: (i) em ambas as propostas,
considera-se que a sintaxe pode operar com apenas cópias/movimentos de partes
relevantes da estrutura funcional, sem cópias desnecessárias, em respeito ao princípio de
economia; (ii) ambas abrem mão de uma projeção funcional dedicada para o clítico,

61
contrariamente ao que propõe Sportiche (1996); (iii) as duas abordagens predizem a
criação de duas peças sintáticas, uma que é movida e outra que permanece in situ; (iv)
tanto em Poletto quanto em nossa análise, os dois duplos não são idênticos.

3.3 Problemas da hipótese de efeito interpretativo

Apesar de esta hipótese apresentar certa coerência teórica interna, ela nos deixa
às voltas com alguns problemas difíceis de resolver. Basicamente, conseguimos aqui
explicar a restrição da categoria de pessoa, para a ocorrência dos RC, e associar a ela
um fator interpretativo. Entre os problemas não resolvidos, há alguns fundamentais: Por
que a estrutura redobrada é necessária? Por que a estrutura simples com apenas o clítico
não é capaz de checar ambos os traços de Caso e o traço D? E por que a opcionalidade,
se estamos lidando com um traço com implicações semânticas? Este é um problema que
demanda refinamentos dessa hipótese. Além disso, a análise dos dados do PB nos levou
a alguns contraexemplos para a hipótese do efeito interpretativo que não podemos
ignorar. Considere, por exemplo, o dado em (57) 26:

57) Aí, F, tá te tirano ocê, zé...

Em (57), a referência do pronome redobrado te/ocê é específica, não genérica.


No entanto, esse efeito semântico não parece depender da estrutura redobrada. Tanto a
estrutura clítica simples “tá te tirano” quanto a estrutura com o pronome pleno “tá
tirano ocê” seriam tão específicas quanto a construção redobrada. Essa constatação é
feita, partindo-se da situação contrária, em que verificamos haver estruturas que, mesmo
sendo redobradas, permitem a ambiguidade específico/genérico, como exemplificado
em (58)27:

26
Machado-Rocha (2013), estudantes do Ensino Médio de Belo Horizonte.
27
Ramos (2010), fala de Belo Horizonte.

62
58) Achou por bem eu fazer natação e lá é
o seguinte: ou você faz ou eles te dispensa você

O que parece estar em jogo aqui é dificuldade geral de se tentar relacionar as


análises da literatura para os RC, que tratam majoritariamente de pronomes de 3.ª
pessoa, com os dados do PB, composto unicamente de pronomes de 1.ª e 2.ª.
Quando consideramos pronomes de 3.ª pessoa do português padrão escrito,
parece ser possível um alinhamento com os resultados do espanhol, por exemplo. Para
essa variedade, os clíticos de 3.ª pessoa também parecem restritos a contextos em que os
pronomes têm referência específica28.

59)
a. Esta professora, eu a conheço.
b. * Alguma professora, eu a conheço.

Quando, porém, estamos lidando com pronomes de 1.ª e 2.ª pessoas do PB


dialetal, o efeito interpretativo não se sustenta.
Precisamos então retornar à comparação entre os exemplos (57) e (58) e nos
perguntar o que está causando a ambiguidade em (58). Perceba que, diferentemente da
sentença assertiva em (57), (58) contém o operador irrealis “ou”. Curiosamente, mesmo
pronomes de 1.ª e 2.ª pessoas do PB, quando sob o escopo de operadores irrealis, podem
exibir uma leitura ambígua entre a específica e a genérica. Observe, por exemplo, que,
em (60), a primeira ocorrência do clítico exibe uma leitura indubitavelmente específica,
ao passo que, na segunda ocorrência, em que o clítico está sob o escopo de “se”, a
leitura ambígua entre específica e genérica é permitida.

60) Tô te falando pra você: se te pegarem você colando, você tá fora!

28
Não faz sentido tentar construir a estrutura redobrada cl-V-DP no padrão escrito (*Eu a conheço (a)
esta professora), por isso vamos considerar uma construção com deslocamento de objeto à esquerda
topicalizado. Esse paralelo hipotético é também bastante complicado. Os redobros encontrados na escrita
do tipo de “viu-me a mim (e não a ele)” não refletem sequer a escrita contemporânea. Atualmente, o
padrão de colocação do clítico é principalmente a próclise (“me viu”); algo como “me viu a mim”, é
estranho, nada usual na escrita. Com pronomes de 3.ª pessoa, a situação é ainda pior (“?Eu o vi (a) ele”).

63
Essas comparações colocam alguns problemas quanto à assunção da literatura de
que clíticos seriam intrinsecamente específicos ou definidos29. Ao menos para os dados
do PB, parece que as leituras genérica ou específica dos pronomes não residem num
traço lexical dos pronomes, mas resultam de efeitos composicionais em relações com
operadores. Há aqui diversos pontos a serem analisados. No PB, alguns tempos e modos
verbais parecem permitir a leitura genérica de pronomes (como sentenças condicionais e
subjuntivas), enquanto outros a bloqueiam (como os tempos perfectivos). Esses aspectos
semânticos não compõem, obviamente, o foco de análise desta tese, e deixamos essas
questões em aberto.

3.4 Síntese do capítulo

Nas etapas inicias desta pesquisa, procuramos condicionamentos interpretativos


para as ocorrências dos RC do PB dialetal. Diante de uma profusão de possibilidades
teóricas, testamos a hipótese de que RC seriam a realização morfofonológica de
múltiplos nós de cadeias paralelas. Essa iniciativa foi motivada por uma longa tradição
na literatura de associar RC acusativos a efeitos de especificidade, e também por dados
de outras variedades do português. Assim, elaboramos uma tentativa de análise que
explica os RC como pares pronominais específicos, em posição às estruturas simples
com apenas o pronome pleno, que permitem uma interpretação genérica dos pronomes.
Nessa perspectiva, a estrutura redobrada surge da checagem de dois traços distintos,
resultando em duas cadeias paralelas, uma relacionada ao Caso do argumento e outra ao
traço de especificidade do pronome. No entanto, o avanço do projeto mostrou que essa
hipótese apresentava vários problemas. Ela não é capaz de explicar a opcionalidade das
estruturas de RC e a variação entre estruturas redobradas, simples com clítico e simples
com pronome pleno. Além disso, reconhecemos que os efeitos de especificidade não
estão, de fato, associados às estruturas de RC, mas a fatores composicionais da

29
No capítulo 4, vamos apresentar um trabalho que desafia a hipótese de que clíticos são intrinsecamente
específicos: Bleam (1999).

64
sentença. Por isso, abandonamos esta hipótese, rumo a uma análise em termos de
concordância puramente formal.

65
4. Particularidades morfossintáticas dos pronomes de 1.ª e
2.ª pessoas

4.1 Clíticos de 1.ª e 2.ª pessoas como concordância

Embora a maior parte da literatura tenha apontado os RC como codificação de


especificidade, assimilados a determinantes, há alguns trabalhos que desafiaram esta
hipótese. Um deles é o de Ormazabal & Romero (2010). O&R argumentam que, no
espanhol, a maioria dos clíticos não são determinantes. om exceção dos clíticos
acusativos de 3.ª pessoa (eles usam o termo clíticos OD de 3ª pessoa) lo(s), la(s), todos
os demais clíticos são marcas de concordância e participam de um único sistema que
não diferencia entre OD e OI, nem morfologicamente nem na sintaxe. Veja que este é o
caso dos clíticos me e te do PB, que não distinguem o caso do sintagma redobrado.
O&R (2010) ainda levantam a hipótese de que os clíticos no espanhol tenham passado o
estágio do clítico e se tornando morfemas de concordância, um fenômeno muito comum
nas línguas. Eles apontam várias similaridades entre a concordância clítica de objeto e a
concordância de sujeito. A informação morfológica dos clíticos em geral seria mais
próxima da concordância de sujeito (que leva em conta traços de pessoa e número) do
que acontece com cl-OD, pronomes e determinantes, que consideram também traços de
gênero. Além disso, Cl-OD-3.ª redobram apenas quantificadores que combinam com
determinantes definidos. Cl-OI do espanhol combinam com qualquer tipo de
quantificador, e nisso eles também se assemelham à concordância de sujeito.

61)
a. (Les) pagamos las deudas a todos los / algunos /muchos acreedores
lhes pagamos as dívidas a todos os alguns muitos credores

b. Todos los/ Algunos / Muchos acreedores cobraron las deudas


todos os alguns muitos credores cobraram as dívidas

66
O&R discutem também os clíticos de 1.ª e 2.ª pessoa e pontam que eles teriam o
mesmo comportamento dos clíticos OI: eles não exibem nenhum tipo de restrição
quanto ao tipo de argumento que eles possam redobrar. Como apontam os autores,
contextualmente é mais difícil encontrar interpretações não específicas para argumentos
de 1.ª e 2.ª pessoas; mas, quando essas dificuldades são controladas, os RC OD de 1.ª e
2.ª se agrupam ao lado dos OI, no sentido de não exibirem restrições e poderem
aparecer em contextos não específicos e com quantificadores, contrariamente aos Cl-3.ª-
OD.

62)
a. Os veré a los que vayáis pronto
vos verei a os que chegardes cedo

b. Os controlan a gente de la universidad


vos controlam a gente de a universidade
(vos controlam vocês pessoas da universidade)

c. Os he encontrado a vosotros
vos hei encontrado a vocês

d. ¿A quiénes/ cuántos nos han elegido para el puesto?


A quem quantos nos hão elegido para o posto

e. No os encontramos a nadie/ninguno
não vos encontramos a ninguém nenhum

f. Os veré a todos/algunos/muchos en el examen


vos verei a todos alguns muitos no exame

67
63)
a. Nos mandarán a algunos a resolver el problema
nos mandarão a alguns a resolver o problema

b. Si queréis, os llevo a algunos/unos cuantos a-l Pueblo


se quiséreis vos levo a alguns uns quantos ao centro

A partir desses dados, O&R defendem que esses clíticos de 1.ª e 2.ª devem ser
agrupados com as marcas de concordância. Então todos os clíticos da série dos OI e os
clíticos de 1.ª e 2.ª, que não distinguem OD e OI, seriam marcas de concordância
geradas no núcleo verbal ou flexional (podemos dizer, gerados no domínio funcional do
verbo). O sistema de concordância de objeto do espanhol, segundo O&R, é o seguinte:

Tabela 4 - Sistema de concordância de objeto no espanhol

Clíticos de concordância OD Clítico de concordância OI

Sing Pl Sing Pl

1.ª P me nos me nos

2.ª P te os te os

3.ª P --- --- le les

(ORMAZABAL & ROMERO, 2010, p. 17)

Bleam (1999) vai além e questiona o status de inerentemente específicos dos


clíticos em geral, independentemente do caso e da forma. Esta autora é abertamente
contrária à proposta de que clíticos OD possuem o traço [+específico] inerente, o qual
estaria ausente em clíticos objetos indiretos. Bleam argumenta que não há um tal traço
[+específico]. Ela defende que especificidade seria uma propriedade configuracional. E
seriam essas propriedades configuracionais as responsáveis pelo redobramento do
clítico. Para ela, especificidade não parece ser uma noção semântica unificada e,
portanto, não haveria nenhuma noção a que a sintaxe pudesse se referir por meio do uso
de um traço. Importante também é a observação feita por Bleam de que não haveria
nenhuma relação direta entre o clítico e a interpretação do sintagma que ele redobra.

68
A autora explica que, na visão de Uriagereka (1988, 1995), qualquer que seja a
propriedade inerente responsável pela interpretação específica de determinantes
definidos (veja que aqui não estão sendo considerados os definidos não específicos),
esta mesma propriedade é responsável pela interpretação específica dos clíticos. Esta
seria uma via para se explicar a interpretação dos clíticos propriamente, ou seja, dos
clíticos em estruturas simples.

64) La vi (pro)
a vi

No entanto, esta hipótese se abala, diante da assunção do próprio Uriagereka de


que o clítico se moveu de uma estrutura de DP com um NP pro na posição de
complemento. O pro, em (64), por ser um elemento pronominal, também contribui com
uma interpretação específica. Dessa maneira, é difícil determinar a contribuição do
clítico propriamente para a interpretação do objeto como específico. Bleam ainda
propõe uma comparação com o clítico dativo no espanhol. Ela aponta que, por si sós,
clíticos dativos são interpretados como específicos também, embora na teoria de
Uriagereka eles não sejam analisados como determinantes.

65)
a. Carmen le entregó el libro.
Carmen lhe entregou o livro
b. Carmen entregou o livro para ele/ela
c. * Carmem entregou o livro para alguém/ninguém

A sentença em (65) só pode ser interpretada como em (b), em que alguém


específico é referido como recebedor do livro. O clítico ali não pode ser interpretado
como inespecífico, como em (c), em que o recebedor pode ser alguém indeterminado ou
mesmo não ser ninguém. Por outro lado, esses sentidos indeterminados são compatíveis
com o clítico dativo, quando ele é acompanhado por um objeto direto visível, ou seja,
em uma estrutura redobrada, como em (66).

69
66) Le entregó el libro a alguien.
Lhe entregou o livro a alguém

Dessa forma, é razoável assumir que, em (65), o pro associado ao clítico dativo é
que está dando origem à interpretação específica, e não o clítico em si. Uma vez que se
assume que na estrutura com clítico acusativo, como em (64), há também um pro
associado ao clítico (ambos originados em um DP complexo), não é coerente atribuir a
leitura específica ao clítico propriamente.
Uma vez que no PB não estamos lidando com RC OD de 3.ª pessoa, faz sentido
que não se esperem efeitos interpretativos dessas estruturas. Como no caso dos clíticos
em geral do espanhol, tudo parece indicar que estamos diante de elementos de
concordância. Vimos, no capítulo 2, que há boas evidências sintáticas de que as formas
me e te se comportem como marcas de concordância no PB dialetal.

4.2 Agree e concordância operador-variável com pronomes de 1.ª e 2.ª


pessoas

Alguns autores defendem que o sistema de concordância dos elementos de 1.ª e


2.ª pessoas é um sistema especial. Três trabalhos são centrais aqui: Baker (2008),
Déchaine & Wiltchsko (2010) e van Koppen (2012).
Baker (2008) discute as restrições que se aplicam à concordância de 1.ª e 2.ª
pessoas em relação à concordância de 3.ª. Este trabalho separa completamente essas
duas formas de concordância.
Baker aponta alguns fatos gerais das línguas para sustentar que a concordância
de 1.ª e 2.ª pessoas não pertence à operação Agree por si mesma, mas é o resultado de
um tipo especial de concordância que se dá entre um operador e uma variável. Esta
operação está, com frequência, associada a Agree, e por isso se cria a falsa impressão
de se tratar de uma mesma operação. Baker (2008, p. 111) postula a Condição Estrutural
sobre a Concordância de Pessoa (SCOPA - Structural Condition on Person Agreement),
da seguinte maneira:

70
67) F pode concordar com XP em +1 ou +2, apenas se uma projeção de F se junta
(merges) com um elemento +1 ou +2 e F projeta.

Segundo Baker, essa condição altamente específica não é parte da teoria padrão
de concordância. Um dos fatos levantados na formulação dessa postulação é a
impossibilidade muito comum das línguas de concordância para 1.ª e 2.ª pessoas em
adjetivos. Todos os elementos de 1.ª e 2.ª pessoas, incluindo-se aí os pronomes,
precisam ser ligados por um operador mais próximo do tipo relevante. Nesse sentido,
elementos de 1.ª e 2.ª pessoas diferem dos de 3.ª, os quais não estariam sujeitos a
nenhum tipo de condição de ligação local. Considerando-se a SCOPA, a concordância
de pessoa (vista aqui como a concordância para 1.ª e 2.ª pessoas) seria relativamente
frágil, e as condições para que ela ocorra precisariam ser precisamente atendidas.
Para Baker, há pelo menos mais um tipo de concordância operando nas línguas
naturais, além da relação entre núcleos funcionais e NPs próximos. Esse segundo tipo
de concordância ocorre entre um operador e uma variável ligada a esse operador, como
ilustrado em (68).

68)
a. Every boyk hopes that hek (*shek , *theyk , *Ik ) will pass the test.
Todo garoto espera que ele (*ela *eles *eu) vai passar o teste
(“Todo garoto acredita que vai passar no teste.”)

b. Every girlk hopes that someone will hire herk (*himk , *themk , *mek ).
Toda garota espera que alguém vai contratar ela-acu (*ele-acu *eles-acu *eu-acu)
(“Toda garota acredita que alguém irá contratá-la.”)

c. Only the Yankeesk think that theyk (*hek , *wek ) will win the championship.
Apenas os Yankees acham que eles (*ele *nós) vão vencer o campeonato
(“Apenas os Yankees acham que eles vão vencer o campeonato.”)

Quando um pronome é interpretado como sendo ligado por um quantificador


masculino singular como every boy, o pronome precisa ser realizado como a forma
masculina singular he, him ou his, como em (68-a). Quando um pronome é ligado por
um quantificador feminino singular como every girl, ele precisa ser uma forma feminina

71
singular (her, em (68-b)). E quando o pronome é ligado por um quantificador plural
como only the Yankees, ele precisa ser 3.ª pessoa plural (they, em (68-c)). Baker aponta
que isso também é uma forma de concordância, num sentido amplo.
Essa operação de concordância entre operador-variável é um fenômeno
claramente diferente da concordância que se aplica aos núcleos funcionais. Por
exemplo, sabe-se que um núcleo funcional pode concordar com um NP, apenas se
ambos estão contidos no mesmo CP flexionado para Tempo (a condição de fase). Essa
restrição não se aplica para a concordância operador-variável: em todos os exemplos em
(68), o pronome ligado está contido no CP finito encaixado, uma fase que não contém o
quantificador antecedente. Mesmo assim, a concordância entre o pronome e seu
operador não apenas é possível, ela é obrigatória.
Além disso, em inglês e em várias outras línguas, a concordância de núcleo
funcional só é possível na presença de uma relação de valoração de Caso (a condição de
alvo ativo). Para a concordância operador-variável, essa restrição também não é
relevante. Por exemplo, a variável em (68-b) está no acusativo, enquanto que a
expressão quantificada está no nominativo. Ainda assim, uma concordância para
traços-φ ocorre. Esse tipo de concordância, portanto, não depende de valoração de Caso,
como pode ocorrer com outras formas de concordância.
E ainda, um núcleo funcional pode concordar com um dado NP Y apenas se não
há outro NP Z mais próximo do núcleo funcional que Y (a condição de intervenção).
(69) mostra que a concordância operador-variável também está livre dessa condição.

69) Every girlk told every boy about herk troubles with herk parents.
Toda garota contou todo garoto sobre dela problemas com dela pais
(“Toda garota contou a todo garoto sobre os problemas dela com os pais.”)

Os dois pronomes her em (69) concordam com o sujeito every girl para o traço
feminino, apesar do fato de haver um NP quantificado mais próximo (every boy) na
posição de objeto, que possui um valor diferente para o mesmo traço (masculino). A
concordância aqui é claramente com o NP que liga o pronome, independentemente de
sua posição sintática. Novamente, isso é bastante diferente da concordância com
núcleos funcionais, em que a posição sintática relativa é determinante.

72
Por fim, Baker aponta que mesmo condições de c-comando não afetam a
concordância operador-variável. Isso é ilustrado em (70), em que o NP quantificado não
c-comanda o pronome referencialmente dependente.

70) Someone in every cityk loves itsk (*theirk , *hisk ) weather.


Alguém em toda cidade adora dela (*deles *dele) clima
(“Alguém em toda cidade adora o clima dela.”)

Esses testes demonstram que nenhuma das condições sintáticas que são
características da relação Agree entre um núcleo funcional e um NP se aplicam à
concordância operador-variável. Dessa forma, essas duas operações devem ser
fundamentalmente diferentes, embora ambas façam com que traços que são inerentes
em uma expressão sejam também realizados em outra.
Baker formula então esse tipo de concordância da seguinte maneira (Baker,
2008, p. 122):

71) Se uma variável X é referencialmente dependente de um operador Y (direta ou


indiretamente), então X tem os mesmos traços-φ de Y.

A qualificação “direta ou indiretamente” é motivada por exemplos como em


(72):

72) Every boyk says that hek finished hisk (*herk , *theirk , *ourk ) homework.
Todo garoto diz que ele terminou dele (*dela *deles *nosso) dever de casa
(“Todo garoto diz que ele terminou o dever de casa dele.”)

Neste exemplo, o pronome his concorda com he, que por sua vez é dependente
do operador da sentença matriz, o que estabelece uma relação de dependência indireta
entre his e every boy, para a concordância-φ.
Baker aponta que traços de 1.ª e 2.ª pessoas também participam da concordância
operador-variável e ilustra com os exemplos em (73) (extraídos de um manuscrito de
Irene Heim).

73
73)
a. Only Ik finished myk (*hisk , *herk , *ourk ) homework.
Apenas eu terminei meu (*dele *dela *nosso) dever de casa
(“Apenas eu terminei meu dever de casa.”)
(Para x = eu, x terminou o dever de casa de x;
Para todo x, x ≠ eu, não: x terminou o dever de casa de x.)

b. All of youk are hoping that youk (*Ik , *shek , *theyk )


Todos de vocês estão esperando que vocês (*eu *ela *eles)
will win the single’s title.
vão vencer o individual-GEN título
(“Todos vocês estão acreditando que vocês vão ganhar o título do individual.”)
(Para todo x, x um de vocês, x acredita que x vai ganhar o título do individual.)

Nesses exemplos, o pronome pode ser interpretado como uma variável ligada
pelo sujeito da sentença mais alta, se e somente se o pronome concorda com aquele
sujeito em pessoa e também em número. Dessa forma, traços de pessoa participam
ativamente no sistema de concordância operador-variável.
A partir dessas evidencias, Baker adota a seguinte conjectura:

74) A operação Agree nunca coloca os traços +1 ou +2 num núcleo; os traços +1 e +2


são sempre o resultado de concordância operador-variável.

Essa conjectura é a formalização da intuição de Baker de que traços de 1.ª e 2.ª


pessoas fazem parte unicamente do sistema de concordância operador-variável. Para ele,
a concordância que ocorre com núcleos funcionais, como T, v, F, A e P são sempre
concordância “parcial”, que copiam incialmente apenas traços de número e gênero. O
fato de que traços de 1.ª e 2.ª pessoas possam ocorrer em T e v não são resultado direto
de Agree. Mas Agree cria um contexto em que concordância operador-variável pode
ocorrer, como expresso em (75):

75) Se F concorda com XP, então F conta como uma variável que depende
referencialmente de XP.

74
Dessa maneira, além de copiar traços de número e gênero de um XP em F,
Agree torna F dependente de XP. Baker relembra que é recorrente a intuição de que
morfemas de concordância possuem algo de pronominal: a correlação de traços e a
relação de diacrônica são as intuições mais discutidas. Se um núcleo funcional F numa
relação Agree é dependente do XP com o qual ele concorda, e se esse XP é um pronome
dependente de algum operador mais alto Z, então F é (indiretamente) dependente de Z e
deve concordar com ele. Se Z é um elemento de 1.ª ou 2.ª pessoa, então F também
exibirá traços de 1.ª ou 2.ª pessoa. Essa seria a maneira como um núcleo numa relação
Agree poderia vir a ter também traços de 1.ª e 2.ª pessoas, não diretamente como
resultado de Agree, mas indiretamente, como resultado da concordância operador-
variável que ela torna possível.
Essa formulação de Baker lança um pouco de luz sobre as diferenças nos
padrões de concordância para traços de 1.ª e 2.ª e também sobre o comportamento
sintático tão peculiar dos pronomes de 1.ª e 2.ª em relação aos pronomes de 3.ª.
Diante dessas considerações, Baker discute o caráter dos operadores especiais
que ligam pronomes de 1.ª e 2.ª e questões de localidade para variáveis de 1.ª e 2.ª.
Nessa discussão, ele argumenta que algumas hipóteses amplamente aceitas sobre
pronomes de 1.ª e 2.ª precisam ser revistas, a saber: (i) “pronomes de 1.ª sempre
incluem, em sua referência, a pessoa que fala (ou escreve, ou emite) a sentença”; (ii)
“pronomes de 2.ª sempre incluem, em sua referência, a pessoa para quem a sentença é
endereçada”. Baker diz que essas hipóteses enfrentam contraexemplos. Kayne (2000, p.
154), apresenta um exemplo em que um pronome de 1.ª pessoa não pode ser usado para
se fazer referência ao falante, porque o sujeito da sentença é um NP de 3.ª pessoa que,
ele próprio, se refere ao falante. Em tal contexto, o pronome me não pode ser
interpretado e a sentença é agramatical.

76) The man who is t alking to you wants you to give him/*me some money.
O homem que está falando com você quer você dar ele-DAT me-DAT algum ...
(“O homem que está falando com você quer que você dê a ele algum dinheiro.”)

Numa direção contrária, Schlenker (2003) dá exemplos do amárico, em que um


pronome de 1.ª pessoa pode ser interpretado como referente a outra pessoa que não o
falante, mais especificamente, o sujeito da oração matriz. (Baker, 2008, p. 125).

75
77)

(“John diz que ele é um herói.” Literalmente: “John diz que eu ser um herói.”)

Baker salienta que Schlenker revê várias evidencias para mostrar que a sentença
encaixada em (77) não é um caso de discurso direto. Ele ainda aponta que esse tipo de
construção é específico para o verbo ‘dizer’.
A partir desses exemplos, Baker propõe que há categorias vazias especiais
introduzidas em no nível do CP que designam o falante e o destinatário da sentença,
como formulado em (78):

78)
a. Toda sentença matriz e certas sentenças encaixadas possuem dois argumentos
nulos especiais gerados dentro da projeção CP, um designado como S (para
speaker) e outro como A (para addressee).

b. Na ausência de uma relação de controle que tenha precedência, S designa a


pessoa que produziu o CP e A designa a pessoa para quem o CP é endereçado.

A ideia aqui é que certos aspectos fundamentais do que se pode considerar como
o “ponto de vista” a partir do qual a sentença é interpretada são expressos por elementos
representados na sintaxe. Assim, todos os usos de um pronome de 1.ª pessoa devem ser
interpretados como sendo ligados pelo operador S, e todos os usos de um pronome de
2.ª pessoa devem ser interpretados como sendo ligados pelo operador A, de acordo com
a Condição de Licenciamento de Pessoa, como descrito em (79):

79) Condição de Licenciamento de Pessoa (PLC - The Person Licensing Condition)

a. Um DP/NP é 1.ª pessoa, apenas se ele é ligado localmente por um S numa


estrutura de c-comando ou por outro elemento que seja 1.ª pessoa.

76
b. Um DP/NP é 2.ª pessoa, apenas se ele é ligado localmente por um A numa
estrutura de c-comando ou por outro elemento que seja 2.ª pessoa.

c. Do contrário, um DP/NP é 3.ª pessoa.

Baker aponta que a PLC explica o fato de NPs não pronominais ordinários nunca
serem 1.ª ou 2.ª pessoa, mesmo quando eles se referem ao falante ou ao destinatário.
Exemplos em (80) mostram isso, em que DPs sujeitos ordinários não podem acionar a
concordância distintiva de 1.ª e 2.ª pessoas no verbo ser.

80)
a. The man who is talking to you is/*am hoping to get some money.
O homem que está falando com você está/*estou esperando receber algum...
(“O homem que está falando com você está esperando receber algum dinheiro.”)

b. Sorry honey, but Daddy is/*am too tired to play with you tonight.
Desculpa querido(a) mas papai está/*estou muito cansado para brincar com...
(“Desculpa, querido(a), mas o papai está muito cansado para brincar com você esta
noite.”)

c. Your honor was/*were misinformed by the counsel for the defense.


Sua honra foi-3P/foi-2P mal informado pelo advogado de defesa
(“O meritíssimo foi mail informado pelo advogado de defesa.”)

Baker explica que é um fato geral que pronomes possam ser ligados por
operadores em construções com pronome resumptivo, por exemplo, enquanto que NPs
lexicais não o podem normalmente (a menos que eles contenham um elemento
pronominal).

81)
a. ?Johnk, whok we all wonder whether hek will actually show up, . . .
John, que nós todos nos perguntamos se ele vai de fato aparecer
(“John, sobre o qual nós todos nos perguntamos se ele de fato vai aparecer...”)

77
b. *Johnk , whok we all wonder whether the boyk will actually show up, . . .
John, que nós todos nos perg. se o garoto vai de fato aparecer
(“John, sobre o qual nós todos nos perg. se o garoto de fato vai aparecer...”)

Então, se NPs lexicais não podem ser ligados por operadores, como
exemplificado em (81-b) e expressões só podem ser 1.ª ou 2.ª pessoa, se elas são ligadas
por um operador especial (79-a,b), isso explica por que NPs lexicais não podem ser
nunca 1.ª ou 2.ª pessoa. Eles sempre vão terminar na condição geral apresentada em
(79-c). (82) exemplifica uma configuração relevante, em que o pronome de 1.ª pessoa
me é ligado indiretamente pelo operador S.

82) [ CP Si [ TP [ NPi I] want you to give mei /*himi some money]]

Déchaine & Wiltchsko (2010) investigam as relações operador-variável dos


pronomes de 1.ª e 2.ª e sua estruturação sintática. Elas discutem Fillmore (1971), para
quem pronomes de 1.ª e 2.ª são exemplos genuínos de expressões indiciais, no sentido
de que a referência desses pronomes dependeria do contexto de uso: formas de 1.ª
pessoa singular indexam o falante e formas de 2.ª pessoa singular indexam o
destinatário. Essa hipótese é conhecida como a “Hipótese da Indicialidade Intrínseca”.

83)
a. I got a question from the audience
Eu recebi uma questão de a plateia
(“Eu recebi uma questão da plateia.”)

b. You did your homework


Você fez seu dever de casa
(“Você fez seu dever de casa.”)

De acordo com as autoras, um dos principais problemas dessa hipótese é o fato


de pronomes de 1.ª e 2.ª pessoas poderem ser interpretados como anáforas variáveis
ligadas, conforme (Partee, 1989), como demonstrado nos exemplos:

78
84)
a. Only I got a question that I understood (nobody else did)
Apenas eu recebi uma questão que eu entendi (ninguém mais recebeu)
= (i) λx [x recebeu uma questão que y FALANTE entendeu]
(… nenhuma outra pessoa recebeu uma questão que eu entendi)
= (ii) λx [x recebeu uma questão que x entendeu]
(… nenhuma outra pessoa recebeu uma questão que ela entendeu)

b. Only you did your homework (nobody else did)


Apenas você fez seu dever de casa (ninguém mais fez)
= (i) λx [x fez o dever de casa do FALANTE y]
(… nenhuma outra pessoa fez seu dever de casa)
= (ii) λx [x fez o dever de casa de x]
(… nenhuma outra pessoa fez o dever de casa dela)

Em (84-a), a segunda ocorrência de I pode ser interpretada como indicial (i) ou


como uma variável ligada (ii). Na leitura indicial, a pessoa que entende a questão é o
falante, não importa quem tenham recebido a questão. Por outro lado, na leitura de
variável ligada, a pessoa que entende a questão covaria com a pessoa que recebe a
questão. Portanto uma única forma pode ser usada como indicial e como variável ligada
e isso se configura como um desafio à hipótese da indicialidade intrínseca.
D&W (2010) apontam que uma conclusão óbvia poderia partir da negação de
que estamos lidando com um único item. Ao invés disso, poder-se-ia afirmar que esse
comportamento duplo reflete a existência de duas instâncias distintas dos pronomes I e
you que acabam por exibir a mesma forma. Isso equivale a dizer que, diante dos
exemplos em (83) e (84), a hipótese de indexicalidade intrínseca conduz à postulação de
homofonia, como proposto em Kaplan (1989).
Partindo principalmente de proposta anterior (D&W, 2002) para a estrutura
morfossintática dos pronomes, as autoras propõem, se afastando da literatura semântica,
uma explicação sintática para as ocorrências indiciais e de variáveis ligadas dos
pronomes de 1.ª e 2.ª, conforme o esquema apresentando a seguir:

79
a. b.
D D Indicial

D φP Não indicial D φP

φ N
[Pessoa] φ N
[Pessoa] we
my you [Pessoa]
your we
our us
you guys’s

Diagrama 6 - A base estrutural da (não) indicialidade


(D&W, 2010, p. 11)

Esse esquema ilustra que elementos de 1.ª e 2.ª podem corresponder ao nível D
ou ao nível φ da estrutura interna do DP. Quando corresponde ao D, o pronome possui
referência indicial. Quando corresponde a φ, a interpretação do elemento-φ é de uma
variável ligada.
As línguas, nessa análise, podem variar na forma como exibem elementos D e
elementos φ, da seguinte maneira:

D φP

φ N

Homofonia α α
Morfologia aditiva α- β β
Morfologia supletiva α β

Diagrama 7 - Padrões morfossintáticos previstos para pronomes D e pronomes φ


(D&W, 2010, p. 12)

80
As línguas podem apresentar homofonia entre os elementos D e φ, morfologia
aditiva D sobre φ ou itens supletivos D e φ. O inglês exemplifica casos de pronomes de
1.ª e 2.ª com o padrão da homofonia, como também é o caso do PB. Assim, a mesma
forma é mapeada para D ou φ, como no (diagr. 8). Isso faz com que a mesma forma
possa ser usada como indicial ou não indicial.

D φP

α φ N

Diagrama 8 - Homofonia de pronomes D e pronomes φ


(D&W, 2010, p. 13)

As autoras defendem que a denotação dos pronomes é determinada


sintaticamente: pronomes de 1.ª e 2.ª pessoas, quando indiciais, são pronomes D;
quando não indiciais, permitindo leitura de variável ligada, são pronomes φ.

4.3 Concordância independente para traços de Participante

Van Koppen (2010) analisa casos de concordância em C em dialetos do


holandês. Ela mostra que, nesses dialetos, o sujeito concorda com o verbo finito e com o
complementizador que introduz a sentença encaixada. A autora discute dois grupos de
dialetos, com duas realizações diferentes de concordância em C. No primeiro grupo, o
complementizador e o verbo finito exibem a mesma marca de flexão (85). No segundo,
composto por dialetos conhecidos como dialetos de concordância dupla, o
complementizador e o verbo finito não possuem o mesmo afixo (86).

81
85)
a. ... de-s/*det doow morge kum-s
que-2PS/que você amanhã vem
(“... que você vai vir amanhã”)

b. ... de-s/*? det auch doow morge kum-s


que-2PS/que também você amanhã vem
(“... que também você vai vir amanhã”)

c. DOOW denk ik de-s/*det de wedstrijd winnen zal-s


Você penso eu que-2PS/que o jogo vencer vai
(“VOCÊ, eu acho que vai vencer o jogo.”)

86) ... darr-e/*dat wiej den besten bint/*binn-e!


que-AGR/que nós os melhores somos- AGR/somos- AGR
(“... que nós somos os melhores!”)

Van Koppen argumenta que a diferença entre os dois dialetos pode ser
explicada, se C não sonda o mesmo alvo nos dois dialetos. Nos dialetos com
concordância dupla, a concordância de complementizador é resultado de uma sonda
concordando com traços de participante dentro da estrutura pronominal, enquanto que a
concordância em C em outros dialetos reflete concordância com o nó mais alto dessa
estrutura pronominal.
Assim há dois tipos de concordância:
 Tipo 1: a marca em C é igual à do verbo;
 Tipo 2: a marca em C é diferente da do verbo.

Há dois afixos que aparecem em C: -e, que van Koppen analisa como [1PSing] e
-t, que seria o afixo elsewhere (que também podemos chamar de defualt).
Para explicar essa variação, van Koppen assume que pronomes contêm traços de
participante e traços de individuação, seguindo Harley & Ritter (2002). Esses traços
seriam inseridos como grupos discretos de traços, de modo que eles podem ser alvo de
operações sintáticas como Agree independentemente de outros traços-ϕ associados aos

82
pronomes. Durante a derivação, esses traços são unidos por Merge e terminam na
projeção máxima como um conjunto de traços.
Van Koppen (2012) conjuga a proposta de Déchaine & Wiltschko (2002), para a
estrutura interna dos pronomes (D&W, 2002, p. 410), e a proposta de Harley & Ritter
(2002) para os traços presentes na projeção pronominal. Ela argumenta que traços de
participante ([falante] e [destinatário]) podem engatilhar concordância,
independentemente de outros traços pronominais. A estrutura de D&W (2002, p. 410) é
como a seguir:

a. b. c.

Diagrama 9 - pro-DPs, pro-φPs e pro-NPs

Esses três tipos de pronomes apresentam características sintáticas próprias, como


seus próprios rótulos indicam. Pro-DPs exibem sintaxe de Ds: eles não podem ser
usados em posição de predicados e se comportam como expressões-R. Pro-NPs
possuem uma sintaxe de N e só podem ser usados como predicados. Pro-PhiPs possuem
um comportamento duplo e são o que comumente se denominam como pronomes, pois
eles podem ser usados como variáveis, para a teoria de ligação.
Harley & Ritter (2002) apresentam uma estrutura para os traços presentes na
projeção pronominal em forma de uma geometria de traços, que agrupa classes naturais
de traços morfológicos e define a hierarquia entre esses traços. As categorias
fundamentais são Participante, Individuação e Classe, ao invés das categorias
tradicionais pessoa, número e gênero. A noção de participante apresenta uma pequena
diferença em relação à noção de pessoa, pois reflete os traços de participante no ato
discursivo, o que teoricamente inclui o valor de pessoa, mas que também em alguns
casos pode incluir o valor de número. Para H&R, não há dependência entre os traços de

83
participante e os traços de individuação. A geometria proposta é a seguinte (H&R, 2002,
p. 486):

Diagrama 10- Geometria de traços de Harley & Ritter (2002)

Partindo da proposta de H&R (2002), van Koppen (2012) defende que traços de
participante e traços de individuação não constituem, inicialmente, um conjunto de
traços. De acordo com van Koppen, esses grupos de traços entram na derivação em
posições discretas e são juntados posteriormente. Para van Koppen, o traço de
participante ocupa o Spec-PhiP. Os traços de individuação ocupariam uma posição
hierarquicamente mais baixa. Essa posição poderia ser NP, ou poder-se-ia assumir que o
termo PhiP é um rótulo para duas projeções mais básicas: ParticipantP e IndividuationP.
A categoria Participante tem os traços dependentes “falante” e “destinatário”. A
categoria de individuação tem os traços dependentes “grupo” e “mínimo”. E a categoria
“Classe”, dependente da Individuação, possui os traços dependentes “animado” e
“inanimado”.
Van Koppen (2012, p. 146) interpreta essa estrutura de forma que, quando a
categoria participante possui o traço dependente falante, o valor do traço participante é
1.ª pessoa singular. Isso equivaleria a dizer que ambas as formas singular e plural
conteriam uma singular: os traços de participante em si seriam sempre singular. Van
Koppen salienta que essa posição está de acordo com o sentido dos pronomes de 1.ª
pessoa plural. Um pronome de 1.ª pessoa plural não constitui uma pluralidade de 1.as
pessoas do singular (LYONS, 1968; ILJIC, 1994; BESTEN, 1996). O sentido de um
pronome de 1.ª pessoa plural é o de que há um grupo que minimamente contém o
falante. Da mesma forma, quando o traço subsequente a [participante] é o traço
[destinatário], o valor de participante é 2.ª pessoa. Van Koppen argumenta que o traço

84
de destinatário não é especificado para número, ao contrário de falante, uma vez que o
papel de destinatário não é necessariamente singular ou plural (CYSOUW, 2001).
O nó de Individuação especifica se o pronome se refere a um grupo mínimo ou a
um grupo maior. Van Koppen assume que, quando o pronome se refere a um grupo
mínimo, o valor do traço de individuação é singular, do contrário, plural.
Van Koppen (2012) associa as propostas de D&W (2002) e H&R (2002), de
modo a identificar como os traços propostos em H&R estão distribuídos na projeção
pronominal apresentada em D&W. Para van Koppen, os traços de participante são
inseridos como um conjunto discreto de traços na periferia esquerda da projeção
pronominal, mais especificamente em Spec-PhiP. A autora explica que há uma razão
interna à teoria para se acreditar que os traços de participante ocupam uma posição de
Spec ao invés de uma posição de núcleo, que tem a ver com o fato de traços de
participante não necessariamente determinarem a especificação de traços de todo o
sintagma. O fato de traços de participante serem dêiticos, no sentido de que a referência
deles muda quando o falante muda, sustentaria esta hipótese, uma vez que isso significa
que traços de participante precisam estar disponíveis no discurso. Isso levou alguns
autores a situarem tais traços na periferia esquerda. Por exemplo, Bianchi (2006) propõe
que traços de pessoa estão ligados à periferia esquerda da sentença.
A partir das propostas de D&W (2002) e H&R (2002), van Koppen apresenta os
esquemas em (86), para os pronomes de 1.ª e 2.ª pessoas (a autora não esquematiza
pronomes de 3.ª, uma vez que eles não são relevantes para sua análise). A estrutura no
(diagr. 11-a) é destacada: nela, há uma discrepância entre a especificação de traços de
participante e os outros traços do pronome completo. Nesse caso, os traços de
participante inseridos na posição de especificador de PhiP são singular (1.ª pessoa), ao
passo que a acumulação de traços nessa projeção são plural (1.ª pessoa). Van Koppen
salienta que esta estrutura captura o sentido dos pronomes de 1.ª pessoa plural: há um
falante singular inserido num grupo.

85
a) 1.ª pessoa singular b) 1.ª pessoa plural

c) 2.ª pessoa singular d) 2.ª pessoa plural

Diagrama 11 - Estrutura dos pronomes de 1.ª e 2.ª pessoas


em van Koppen (2012)

Para explicar como os conjuntos de traços do pronome como um todo são


computados, a autora adota a proposta de Dalrymple e Kaplan (1997). Os traços de
participante e individuação seriam juntados em um único conjunto de traços durante a
derivação e, como resultado disso, esses traços passam para o nó pronominal mais alto.
Esse processo, segundo a autora, é análoga à análise de Dalrymple and Kaplan (1997)
para estruturas de DPs coordenados. Esses autores propõem que, em estruturas
coordenadas, os feixes de traços, e portanto as especificações dos traços dos Ds
conjuntos, são unidos. Em terminologia sintática corrente, quando um nó é juntado a
outro, os valores dos traços desses dois nós passam por Merge (e por isso são unidos).

87) John and me love ourselves.


John e eu amamos nós mesmos
(“John e eu amamos a nós mesmos.”)
(van KOPPEN, 2010, p. 149)

86
O pronome reflexivo ourselves em (87) carrega traços e 1.ª pessoa plural. O
sujeito, porém, consiste de uma parte que é 3.ª pessoa singular (John) e outra parte que é
1.ª pessoa singular (I). A pergunta aqui seria com qual elemento o pronome reflexivo
concorda, uma vez que nenhuma das partes tem traços de 1.ª pessoa plural. Dalrymple
and Kaplan (1997) argumentam que o pronome reflexivo concorda o conjunto unificado
de traços dos dois componentes do sujeito, que constituem um conjunto de 1.ª pessoa
plural: basicamente um conjunto constituído por mais de uma entidade, incluindo-se aí
o falante. Van Koppen explica que, em termos minimalistas, pode-se dizer que, dentro
de um sintagma com coordenação, os traços das partes são unidos pela operação Merge:
quando os traços de Jonh e os traços de me passam por Merge, um conjunto de traços
mais bem representado como 1.ª pessoa plural passa a existir. Van Koppen sugere que
um mecanismo similar opera nas estruturas pronominais: os traços na projeção
pronominal, ou seja, os traços de participante e individuação, são unidos por Merge e,
dessa forma, se tornam um único conjunto de traços no nó final da projeção pronominal,
ou seja, PhiP.
É a partir dessas associações teóricas que van Koppen analisa a concordância de
complementizadores em dialetos do holandês. É central nesta análise a ideia de que os
traços de participante, por serem inseridos separadamente dos traços de individuação, e
por serem inseridos na periferia esquerda (no caso, da projeção pronominal), podem
participar de relações Agree independentemente de outros traços na projeção
pronominal. Dessa forma, os dois tipos dialetos são explicados. Os dialetos que
apresentam concordância em C idênticos à marca que aparece no verbo refletem casos
de Agree com o nó PhiP integral, mais alto. Os dialetos de concordância dupla, que
apresentam uma marca em C e outra no verbo surgem de uma relação Agree com um
alvo interno a PhiP, ou seja, com o traço de participante na periferia de PhiP.

4.4 O traço relevante para os RC do PB

O paradigma dos pronomes clíticos do PB é bastante empobrecido, quando


comparado com o PE e com outros estágios do português, como discutido no capítulo 2.
As formas amplamente atestadas em nossos dados dialetais, me e te, não parecem portar

87
muitos traços. Há algumas evidências de que os clíticos me e te não carregam mais que
um traço. Por exemplo, é possível encontrar estruturas redobradas com mismatch de
traços de número:

88)
a. Ô zé, ô te contá p’cês qui...30
b. que Deus te ilumine você e sua família

É bem verdade que essa não identidade de traços não pode ocorrer para a 1.ª
pessoa do plural, em uma estrutura do tipo “*ele me ajuda nós/ a gente”. Mas vimos,
por outro lado, o argumento de van Koppen (2012), para quem traços de participante
(associados à categoria de pessoa) e traços de individuação (associados à categoria de
número) não estão interligados. Para esta autora, o traço da série de participante que
equivale ao falante é sempre singular, e um pronome de 1.ª pessoa plural não equivale a
uma pluralidade de 1.as pessoas, mas a um conjunto que contém o falante. O traço
destinatário, porém, não seria especificado para número, uma vez que a categoria de
destinatário não é necessariamente singular ou plural. Essa perspectiva parece
conciliável com os dados em (88). Mesmo assim, um paralelo de (88-b) com a forma me
é possível: “Ele me ajudou eu e meus irmãos”.
Além disso, os clíticos me e te não estão envolvidos na checagem de Caso do
pronome associado. O caso do objeto é valorado por v, e por isso mesmo a estrutura
redobrada é possível. Se os clíticos me e te recebessem caso de v, não haveria uma fonte
atribuidora de Caso para os DPs redobrados, a menos que eles fossem sempre
preposicionados. Como vimos em todos os exemplos de RC acusativos, não é isso o que
acontece.
Embora tenhamos abandonado a hipótese apresentada no capítulo 3, há alguns
insights lá que devemos considerar. A ocorrência dos RC no PB com apenas as formas
me e te indicam que os traços [falante] e [destinatário] são determinantes nessas
estruturas. Não parece haver outros traços, além da série de participante, presentes na
realização dos RC no PB: as formas me e te não codificam outros traços-φ (número e
gênero) e não estão envolvidos com traços de Caso.

30
Machado-Rocha (2013), estudantes do Ensino Médio de Belo Horizonte.

88
O trabalho de van Koppen (2012) oferece alguns elementos para postularmos
que RC no PB, e a cliticização de objeto em geral, estão associados a um traço de
participante da fase-v. Nos dados analisados para a concordância dupla com
complementizadores do holandês, van Koppen assume que traços de participante
desencadeiam concordância de modo independente. Para os nossos dados, vamos
assumir que a projeção de concordância em questão não possui outros traços, para além
do traço da série de participante. Além disso, vamos adotar um sistema de traços
diferentes do proposto em van Koppen. Vamos assumir, baseados em Adger (2006),
apenas um traço bivalente, responsável pela codificação tanto do falante, quanto do
destinatário. Este traço será [uautor:±]. Dependo do valor atribuído a este traço na
relação de concordância, ele resulta em uma forma associada ao falante [autor:+] ou ao
destinatário [autor:-]. Vamos desenvolver esta hipótese no capítulo 5.
As abordagens de Baker (2008) e D&W (2010) criam um cenário em que a
referência de pronomes de 1.ª e 2.ª pessoas não é inerentemente específica (indicial, nos
termos de D&W), como defendido pela maior parte da literatura, mas depende da
estrutura interna da projeção do DP e da relação com operadores específicos na
sentença. Esses trabalhos formalizam a intuição de Bleam (1999), para quem a noção de
especificidade não está associada a um traço sintático. Essa perspectiva é mais
conciliável com os dados do PB que, como vimos, permite leituras genéricas de clíticos
simples e RC. Nesse sentido, temos que considerar que os clíticos me e te são elementos
φ, apenas. Essa hipótese é consonante com a maioria das análises para elementos
clíticos.

4.5 Síntese do capítulo

Neste capítulo, discutimos trabalhos que preparam o terreno para nossa hipótese
central, orientada para uma análise dos RC do PB como relações de concordância. O&R
(2010), de modo semelhante ao que propusemos para o PB, no capítulo 2, assumem que
os clíticos do espanhol participam de um sistema único de concordância de objeto, com
a exceção de que a os clíticos acusativos de 3ª pessoa que não fazem parte desse

89
sistema. Bleam (1999) questiona o status inerentemente específico de clíticos
acusativos, demonstrando que a interpretação específica é composicional e não depende
do clítico, propriamente. Baker (2008) propõe que as relações de concordância para
elementos de 1ª e 2ª pessoa fazem parte de um sistema diferente de Agree: a
concordância operador-variável. Essa hipótese encontra sustentação no trabalho de
D&W (2010), que demonstram que pronomes-φ são pronomes não indicias, ou seja, que
podem exibir comportamento de variáveis. Por fim, van Koppen oferece um exemplo de
concordância independente para traços de participante, o que oferece um paralelo para a
concordância do traço-φ envolvido nos RC do PB.

90
5. Os RC no PB como instâncias de concordância de objeto

Um conjunto representativo dos dados do PB dialetal que pretendemos analisar é


o seguinte:

89) RC com acusativos31


a. cê pode intrá qu’eu te ajudo ocê no qu’eu pudé
b. aí começô a me xingá eu
c. tinha cinco médico lá... me oiano eu assim
d. ê... te ajudo ocê
e. se cê ua hora acha um que te acerta ocê
f. ê cumeça a me xingá ô de novo
g. se fosse te entrevistá ocê sem... sem apreparo
h. e lá é o seguinte, ou você faz [natação] ou eles te dispensa você
i. Aí, F, tá te tirano ocê, zé...
j. Aí, F, te tirano ocê, doido...
k. somente uma tia que me acolheu eu e meus irmãos
l. que ele te abençoe vc
m. que Deus te ilumine você e sua família
n. se você puder me ajudar eu e meus irmãos

90) RC com dativos32


a. deixa eu te perguntar ocê um negócio
b. eu tô te falando pra você
c. que mãe todo dia me falava comigo pa mim num demorar
d. Ô zé, ô te contá p’cês qui... O cara vai voltá já...
e. Porque a hipoteca cê me devolve é pra mim...

31
Os dados de (a) a (g) são de Ramos (2010), fala de Piranga; (h) é da fala de Belo Horizonte; (i) e (j) são
de Machado-Rocha (2013), alunos de Ensino Médio de Belo Horizonte; os dados de (k) a (n) são de
Vitral (2014), projeto Cartas ao Papai Noel.
32
Os dados de (a) a (c) são de Ramos (2010), fala de Piranga; (d) e (e) são de Machado-Rocha (2013),
fala de alunos de Ensino Médio de Belo Horizonte.

91
91) RC com sujeitos ECM33
a. tem vez quês num gosta munto de me dexá eu ficá lá não
b. ela pidiu pai pa me dexá eu ficá com ela uns tempo

92) RC com sujeito de minioração34


a. aí ele cumeçô a me xingá eu de maria-vai-com-as-zôta
b. pegô e me chamô eu de Maria vai com as zôta ...
c. aí ele começô a me xingá ô de Maria vai co as zôta ...
d. Me chama eu de moça não... qu’eu fico bravo

93) RC com possessivos35


a. argum fii que me ... que me atendê meu pedido
b. Troca iss’aqui no banco e me paga meu dinheiro
c. A T tá me extorquindo ‘qui minhas coisa, uai...
d. ô véi, esses cara qué me furá meu...

94) RC com expressões idiomáticas36


a. toda casa que ele ia me metia ne mim o ferro
b. num sei o quê que me deu na minha cabeça

Esse conjunto de dados demonstra que os RC no PB podem ocorrem em


contextos bastante variados. Uma pergunta imediata aqui é se esses contextos
representam estruturas diferentes ou variações de uma mesma estrutura básica. Como
discutimos no capítulo 1, esses dados sugerem que o RC no PB é um caso de
opcionalidade sintática, visto não há contextos obrigatórios para os redobramentos. Em
todas as ocorrências de (89) a (94), as estruturas simples (ou com apenas o clítico, ou
com apenas o pronome livre) são gramaticais e intercambiáveis, sem alterações dos
sentidos das sentenças.

33
Ramos (2010), fala de Piranga.
34
De (a) a (c): Ramos (2010), fala de Piranga; (d): Machado-Rocha (2013), estudantes do Ensino Médio
de Belo Horizonte.
35
(a): Ramos (2010), fala de Piranga; (b) a (d): Machado-Rocha (2013), estudantes do Ensino Médio de
Belo Horizonte.
36
(a): Ramos (2010), fala de Piranga; (b) Ramos (2010), fala de Acerburgo.

92
95)
a. cê pode intrá qu’eu te ajudo ocê no qu’eu pudé
b. cê pode intrá qu’eu te ajudo no qu’eu pudé
c. cê pode intrá qu’eu ajudo ocê no qu’eu pudé

No capítulo 3, discutimos uma tentativa de análise para os RC do PB e nos


deparamos com um problema fundamental: os dados do PB sugerem que as estruturas
de RC não são condicionadas por efeitos interpretativos. A perspectiva de análise de RC
como associados a efeitos interpretativos segue a tradição linguística que se dedicou
prioritariamente a investigar redobros de clíticos acusativos de 3.ª pessoa. Como
discutimos, muitas análises relacionam esses clíticos a determinantes, o que é
completamente inviável para uma análise dos dados do PB, compostos por redobros dos
pares pronominais me/eu, te/(v)ocê.
No capítulo 4, porém, introduzimos a discussão de Bleam (1999) e Ormazabal &
Romero (2010), que em tudo parecem conciliados com as expectativas que pretendemos
desenvolver neste capítulo: segundo O&R, os clíticos acusativos de 3.ª pessoa do
espanhol são um sistema à parte, de fato mais próximos dos determinantes nesta língua,
e não pertencem ao sistema de concordância clítica da língua. O paradigma geral dos
clíticos no espanhol representa um sistema de marcas de concordância. Para Bleam,
mesmo os clíticos acusativos de 3.ª pessoa não seriam intrinsecamente específicos,
embora ela também assuma que a sintaxe desses elementos se diferencie dos demais
clíticos na língua.
Temos, então, um conjunto de premissas que precisamos considerar na
construção de nossa hipótese. São elas:
(i) As estruturas de RC no PB são opcionais. Covariam com essas construções as
estruturas simples com apenas o clítico e as estruturas simples com apenas o pronome
livre. Precisamos formalizar essa opcionalidade. Para tal, vamos discutir o modelo de
opcionalidade sintática desenvolvido em McCloskey (1996).
(ii) Os elementos me e te estão fixos na posição pré-verbal. Essa fixação sugere
que esses dois elementos estão perdendo a possibilidade de cliticização em várias
posições na sentença. Tal comportamento é mais próprio das marcas de concordância do
que de clíticos propriamente. Nesse sentido, o modelo de Sportiche (1996) e as análises
de Bleam (1999) e Ormazabal & Romero (2010) são conciliáveis com nossos dados, o
que os caracteriza como uma concordância de objeto.

93
(iii) Os RC no PB não estão associados a efeitos interpretativos. Isso nos leva a
acreditar que tais estruturas, então, refletem apenas instâncias de concordância. Vamos
discutir a noção de Cadeia de Concordância Pura, como proposto em Adger (2006). A
partir deste trabalho, vamos também identificar o traço envolvido na concordância dos
RC do PB, qual seja, o traço de [autor].
Vamos começar a construção de nossa hipótese, considerando que a estrutura
básica do RC no PB é cl-V-DP. Para isso, vamos assumir que, mesmo no caso dos
redobros com DPs dativos, estamos diante de um DP de fato, e os elementos pra e com
não são preposições reais, nestes contextos, mas marcas de caso. PPs no PB não aceitam
cliticização em hipótese alguma, o que faz dessa operação um diagnóstico para se
diferenciarem preposições de marcas de caso.

96)
a. A Maria falou a verdade com/pra você
b. A Maria te falou a verdade
c. A Maria te falou a verdade com/pra você
d. A Maria te falou com/pra você a verdade

97)
a. A Maria conversou com você
b. * A Maria te conversou
c. * A Maria te conversou com você

Uma propriedade patente dos clíticos me e te no PB é que eles não distinguem o


caso do DP associado, como fica claro nos exemplos de (89) a (94). Por isso, tudo
indica que o processo de cliticização dessas formas é o mesmo para as ocorrências de
acusativo e dativo. Vamos começar nossa análise a partir desses dois grupos e depois
estendê-las aos demais.
Nesta nova tentativa de análise, vamos considerar o núcleo clítico como um
núcleo opcional, seguindo as intuições de McCloskey (1996), gerado no domínio
funcional do verbo, na esteira de Sportiche (1996). A ideia central de nossa abordagem
é que este núcleo porta um único traço bivalente não valorado [uautor: ±] (Adger, 2006).
Na próxima seção, vamos revisar os trabalhos que sustentam esta hipótese.

94
5.1 Fundamentação da hipótese

5.1.1 Sportiche (1996): Projeções clíticas

Como vimos no capítulo 2, em Sportiche (1996), clíticos são tratados como


núcleos funcionais que possuem sua própria projeção. Vamos retomar aqui os aspectos
principais dessa teoria, a começar pela estrutura proposta para a sintaxe de cliticização
(Sportiche, 1996, p. 235), como apresentado no (diagr. 4), repetido abaixo:

Diagrama 4 - Projeções Clíticas de Sportiche (1996)

Nessa abordagem, o RC e a cliticização simples são estruturalmente idênticos, e


ambos realizam uma relação de concordância com um argumento, quer seja um DP ou
um objeto pro. A diferença essencial entre o RC e a cliticização simples tem a ver com
quais partes da estrutura são realizados de modo visível ou encoberto.
Todo clítico XP^ estaria relacionado com um argumento XP* e, em algum ponto
da derivação (seja antes do Spell-out ou na LF), o XP* deve ser mover para a posição
clítica XP^, para estabelecer uma configuração Spec-núcleo, requerida pela operação de
concordância.37 Um ponto importante deste modelo é que o dilema movimento X
inserção desaparece, uma vez que temos tanto a inserção do clítico quanto o movimento
37
No modelo minimalista atual (CHOMSLY, 1993, 1995) e no modelo de Fases (CHOMSKY 2005), não
precisamos estipular a necessidade de movimento para o estabelecimento e uma configuração Spec-
núcleo, mas assumir simplesmente uma relação Agree entre XP^ e XP*.

95
do argumento. De modo semelhante, o problema da distribuição complementar entre
clíticos e argumentos, como discutido inicialmente em Kayne (1975) também se
resolve.
No caso dos argumentos acusativos, o clítico seria responsável pelo
licenciamento do traço de especificidade no XP principal. Quanto aos clíticos dativos,
eles são considerados com marcas de concordância pura, uma vez que carecem do traço
de especificidade.
Para motivar o movimento de XP* para XP^, Sportiche alinha o movimento dos
clíticos à sintaxe geral do movimento. Para tal, ele propõe o Critério do Clítico, segundo
o qual o clítico e seu XP associado devem estar numa estrutura de Spec-núcleo em LF
(ver capítulo 2, p. 44). É a partir desse critério que Sportiche vai derivar as várias
possibilidades de realização de clíticos e argumentos, que podem ser visíveis ou
encobertos, de acordo com os parâmetros de construções com clíticos, que predizem
que:

i. O movimento de XP* para XP^ pode ocorrer de modo visível ou de modo


encoberto;
ii. O núcleo (ou seja, o clítico) pode ser visível ou nulo;
iii. XP* (ou seja, DP) pode ser visível ou nulo.

Com essas generalizações em mãos, Sportiche pretende explicar as variações


interlinguísticas das construções com clíticos, como apresentado na Tabela 2, repetida
abaixo:

Tabela 2 - Estruturas clíticas de acordo com Sportiche (1996)


XP* (DP) Movimento para XP^ Núcleo Construção resultante
clítico simples (francês, italiano,
encoberto visível ou encoberto visível
holandês)
visível encoberto visível RC (espanhol, romeno)
concordância de objeto (árabe
visível visível visível
libanês)
visível visível encoberto scrambling (holandês)

96
Um ponto central nesta abordagem é a assunção de que toda construção com
clítico é de fato uma construção de redobro. A cliticização simples é uma instância de
XP* não visível (um objeto pro), enquanto que a estrutura redobrada tem um DP
visível. O argumento não cliticizados, por outro lado, é um caso de XP* visível com um
XP^ (o clítico) nulo.

5.1.2 McCloskey (1996): Projeção de concordância opcional

McCloskey (1996) propõe que projeções Agr possam ser opcionais dentro de
uma dada língua, no sentido de que elas podem estar presentes ou ausentes na
derivação. Essa hipótese é elaborada a partir de formas “analíticas” de verbos do
irlandês, como exemplificado em (98). Verbos na forma analítica apresentam flexão de
Tempo, mas não são especificados para nenhum traço de concordância. Compare (98)
com (99), em que o verbo concorda normalmente com o sujeito.

98)
D' eirigh go maith leofa.
TEMPO subir.PASS bem com-eles
(“Eles agiram bem.”)

99)
Neartaigh a ghlor.
Fortaleceu dele voz
(“A voz dele se fortaleceu.”)

De acordo com McCloskey, verbos na forma analítica, como em (98), por não
serem especificados para traços de concordância, não requerem a presença de nenhuma
projeção de concordância. Projeções de concordância, por sua vez, não têm função em
LF (Chomsky, 1991) e, portanto, quando elas não são requeridas pela sintaxe, podem
ser deixadas de fora da derivação. O problema para o irlandês é explicar a alternância

97
entre os verbos regulares, que concordam normalmente, e os verbos analíticos
impessoais. A solução proposta por McCloskey é representada no (diagr. 12):

Diagrama 12 - Projeções de concordância em McCloskey (1996)


(MCCLOSKEY, 1996, p. 270)

Em irlandês, F1 seria Tempo e F2, AgrP. Em construções com verbos analíticos,


a projeção F2 seria dispensável e, por isso, não faria parte da derivação. McCloskey
relembra que é muito comum que Numerações possam variar. No caso do exemplo (98),
se F2 não é selecionado, não vai haver nenhum problema para a checagem de traço ou
para a interpretação. Por outro lado, se F2 fosse selecionado, seus próprios traços
verbais e nominais permaneceriam não valorados e a derivação iria fracassar. Então a
conclusão é que, nas construções impessoais do irlandês, apenas F1 está presente, e F2 é
deixado de fora. Se, por outro lado, na Numeração inicial há um verbo transitivo que
seleciona um DP nominativo, então F2 precisa também estar presente, como um
requisito de convergência.
Seguindo a hipótese de McCloskey, vamos argumentar que a projeção clítica do
PB, como uma instância de concordância, é também uma projeção opcional. Na

98
próxima seção, vamos discutir como a presença da projeção clítica é condicionada pela
presença de um traço-φ em particular, qual seja, o traço [uautor:±], seguindo Adger
(2006). É a partir deste trabalho também que vamos defender que o RC do PB é um
caso de cadeia de concordância pura, desvinculada de efeitos interpretativos.

5.1.3 Adger (2006): sistema de traços e operações de checagem nos


pronomes

Adger (2006) adota um sistema de traços formais bivalentes. Ele explica que um
traço bivalente expressa uma noção de contraste. Por exemplo, [singular:±] é um traço
bivalente capaz de classificar pronomes como singulares ou plurais.
Para o sistema pronominal do inglês, o autor propõe que os traços [singular:±],
[participante: ±] e [autor: ±] são suficientes para gerar todas as formas. O traço
[singular: ±] seria bastante para gerar toda a variação de número necessária, porque
nesta língua não há duais ou outras formas para número, nem na morfologia nem na
sintaxe. O traço [participante: ±] indica se o pronome se refere a um participante do ato
discursivo ou não. E o traço [autor: ±] (Halle, 1997) é responsável pela diferenciação
entre falante e destinatário. A relação entre os traços [autor: ±] e [participante: ±] é tal
que, se há uma especificação para o traço [autor: ±], consequentemente o traço
[participante: ±] tem uma especificação positiva. E o contrário também é verdadeiro: se
um pronome é especificado como [participante:+], então ele necessariamente deve ter
uma especificação para [autor: ±], ao menos em línguas como o inglês, uma vez que não
há formas pronominais que não distinguem entre falante e destinatário. Essas
observações são sintetizadas na Restrição de Coocorrência de Traços (FCR, do inglês
Feature Co-occurrence Restriction):

100) Restrição de Coocorrência de Traços (FCR)


Um item lexical é especificado para [participante:±], sse ele tem uma especificação para
[autor:±].
A partir dessas formulações, a composição de traços dos pronomes do inglês
seria como a seguir:

99
Tabela 5 - Composição de traços dos pronomes do inglês, de acordo com Adger (2006)

No que diz respeito à concordância, o autor relembra que há alguns traços no


léxico que são de natureza puramente formal: os traços não interpretáveis (u). Esses
traços não estão diretamente associados com a interpretação semântica, mas eles
precisam estar presentes em relações de concordância com certos traços interpretáveis,
caso contrário, a estrutura se torna mal formada. Duas generalizações resumem essas
ideias (Adger, 2006, p. 509):

101) Uma cadeia de concordância é um par de itens lexicais (ILs), em que os traços
não interpretáveis de um IL é um subconjunto dos traços interpretáveis do outro
IL.

102) Interpretação Plena


Todo traço não interpretável deve estar em (um item lexical em) uma cadeia
de concordância.

Por exemplo, considere (103) (Adger, 2006, p. 509):

103) *He were there.


Ele estar-PASS lá

100
O problema aqui estaria relacionado à incompatibilidade na especificação de
traços do pronome e do verbo, porque a especificação [usingular:-] em were não está
numa cadeia de concordância e, por isso, viola o princípio de Interpretação Plena, como
representado em (104):

104) He [singular:+, participante: –] were [usingular: –, …] …

Também para o sistema pronominal do PB, os traços [singular: ±],


[participante: ±] e [autor: ±] são suficientes para se explicarem todas as formas. Para os
propósitos deste trabalho, vou considerar apenas os traços [participante: ±] e [autor: ±],
uma vez que não vamos lidar com formas plurais, mas apenas as formas singulares me e
te. Será central para nossa análise também a noção de cadeia de concordância, como
proposta por Adger.

5.2 Estruturação da hipótese

Estamos agora em condições de formular nossa proposta de análise. Vamos


seguir Sportiche (1996) e considerar que clíticos possuem sua própria projeção
funcional. Essa projeção, como uma instância e Agr, é gerada logo acima de v. Embora
Sportiche utilize a nomenclatura VoiceP, vamos evitar essa terminologia, para afastar
possíveis confusões com projeções que causam alternância de vozes no verbo, e vamos
adotar a nomenclatura ClP, que é como Anagnostopoulou (2006, 2015) reinterpreta o
trabalho de Sportiche.

101
Cl

v
uautor:
±

Diagrama 13 - A projeção clítica no PB

A projeção do clítico logo acima de v atesta dois fatos empíricos:

(i) o clítico está relacionado com o domínio funcional do verbo. No PB, a cliticização é
possível unicamente com esse domínio, seja com a raiz verbalizada ou com o v:

105)
a. Ele me ajuda eu
b. ele me fez eu sair

(ii) Os clíticos associados a objetos me e te do PB nunca aparece em T, como acontece


com casos de clíticos sujeitos (ver, por exemplo, Poletto (2006), Roberts (2010b), entre
outros). Em PB a cliticização com auxiliares e modais é mal formada:

106)
a. ele não quer me ajudar eu
b. *ele não me quer ajudar eu

Os clíticos objetos não podem ocorrer com nenhum outro núcleo a não ser os
núcleos verbais, em PB. Essa fixação da posição, como discutimos, é um indício forte
de que essas marcas são elementos de concordância.
Seguindo a proposta de McCloskey, vamos assumir que a projeção do clítico é
opcional, uma vez que os dados do PB sugerem que a entrada do clítico na derivação é
opcional, condicionada pela presença de um traço valorado na sentença: o traço de
[autor]. A terceira peça de construção de nossa análise é a proposta de Adger (2006), em

102
que traços formais são tratados como bivalentes e não valorados. Na projeção clítica do
PB, o traço relevante é [uautor: ±].
Ainda com base em Adger (2006), vamos assumir que os traços relevantes na
configuração das formas clíticas são as seguintes (considerando-se também a forma de
3.ª pessoa, não atestada nas variantes orais investigadas):

107) Composição de traços das formas clíticas me e te e da forma não atestada na


variante oral o:

 [participante:+, autor:+]  me
 [participante:+, autor:-]  te
 [participante:-] o

A terminologia de Adger (2006) relaciona as interpretações de pessoa a apenas


um traço bivalente, cujos valores equivalem ao falante [autor:+] e ao destinatário
[autor:-], diferentemente de abordagens como as de Harley e Ritter (2002), em que
falante e destinatário correspondem a traços distintos. Como veremos a seguir, o traço
bivalente captura melhor os fatos do RC do PB.

5.3 Aplicação da hipótese

Propusemos ClP como uma projeção de concordância no domínio de v. Essa


projeção hospeda apenas um traço [uautor:±] que precisa ser valorado.
Como vimos em van Koppen (2012), no holandês, o traço de participante dos
pronomes pode desencadear concordância em C. A projeção ClP em PB, como uma
instância de traços-φ da sonda-v, também parece poder desencadear concordância
separadamente para este traço. A fixação sintática das formas me e te e a ausência de
formas mais especificadas para outros traços pronominais (como é o caso dos clíticos
nos, vos etc., que aparecem na diacronia do português) indicam que esses são clíticos
que sofreram empobrecimento de traços. Nossa hipótese é que agora eles representam
apenas os dois valores possíveis para o único traço de [autor].

103
Na literatura, há várias maneiras de se formalizar a operação de concordância
entre o objeto e domínio de v que gera as formas clíticas. Podemos propor uma projeção
de concordância, como estamos fazendo, seguindo Sportiche (1996) e McCloskey
(1996). De outra forma, podemos propor que as marcas me e te são a expressão
morfológica de traços-φ em v, sem a projeção dedicada para a concordância, como faz
Roberts (2010). Estamos optando pela primeira forma, por dois motivos principais: (i) o
modelo de incorporação de Roberts (2010) precisa necessariamente considerar a
Generalização de Kayne, para que o redobro possa ocorrer, visto que v está associado a
Caso e concordância. Assim, a preposição licenciadora do caso do DP é indispensável,
para que v fique livre para licenciar Caso no clítico. Como discutimos amplamente ao
longo deste trabalho, as marcas me e te do PB não estão associadas a caso; (ii) Roberts
(2010b) aponta o problema do traço D em v, que prediz definitude/especificidade para
elementos cliticizados. Nossos dados não permitem uma tal predição. Para
dispensarmos a projeção clítica, precisaríamos adaptar os mecanismos do modelo de
incorporação de Roberts (2010b). Esta é uma escolha teórica que não vamos fazer,
embora julguemos que ela não seja de todo inconciliável com nossa análise. Embora o
modelo corrente de Chomsky (1995) e Chomsky (2005) sugira que a projeção Agr seja
abandonada, vamos rever, fim desse capítulo, uma sugestão de Adger (2006), segundo
ao qual há motivos internos à teoria para se adotar esse construto teórico.
Vamos considerar, primeiro, como nossa hipótese se aplica a estrutura de
cliticização simples. Vamos ilustrar isso com um argumento de 2.ª pessoa, mas a
contraparte de 1.ª pessoa funciona da mesma forma. Relembre que, de acordo com
Sportiche (1996), todas as estruturas de clítico objeto são estruturas redobradas, sendo
que a única diferença é o tipo de DP na posição de objeto: um DP/pronome visível ou
um objeto pro.

104
108) Eu te ajudo pro

Cl

v
[au:-] = te uau: ±

v
eu

v V

ajud- pro
Part:+
au:-
sing:+

Diagrama 14 - Derivação da estrutura simples com clítico

Em (108), o objeto inserido é um pro especificado como [autor:-]. Este objeto


permite que ClP seja inserido e, mais do que isso, ele exige que o ClP seja inserido, uma
vez que pro com essas especificações não é licenciado diretamente pelo verbo, mas
precisa concordar com um núcleo que carregue traços-φ. Objetos nulos sem uma
contraparte clítica são obrigatoriamente interpretados como 3.ª pessoa. Quando o objeto
em cena é pro[autor:-], a ausência do clítico resulta numa estrutura agramatical:

109) *Eu ajudo pro-2P.

A sentença em (109) só seria gramatical se o pro em questão fosse licenciado no


discurso, em contextos de pergunta e resposta ou com outro operador. Fora desses
contextos, (109) não pode ser interpretado com eu ajudo você.
Relembre também que a análise de McCloskey (1996) para as formas verbais
analíticas impessoais dispensa a projeção de concordância F2, porque essas formas são

105
especificadas para Tempo, mas não para traços de concordância. Quando, por outro
lado, a Numeração contém um verbo transitivo, que subcategoriza para um NP
nominativo, F2 precisa ser inserido como um requisito de convergência da sentença. De
modo semelhante, (108) exemplifica uma Numeração que contem um objeto pro com
traços de 2.ª pessoa e, consequentemente, requer a presença do ClP. Uma vez inserida, a
projeção clítica entra numa relação Agree com pro e tem seu traço [uautor:±] valorado
pelos traços-φ de pro como [autor:-]. Essa operação vai resultar na forma clítica
relevante, no caso, o clítico de 2.ª pessoa te. Tal operação de concordância é possível,
quando consideramos a hipótese de van Koppen (2012), segundo a qual traços de
participante podem concordar de modo independente dos demais traços pronominais. A
diferença entre van Koppen (2012) e nossa análise é que a concordância para o traço de
participante no holandês ocorre em C e no PB, em v.
Consideremos agora que, no lugar de pro, o objeto inserido seja o pronome
visível você, como em (110):

110) Eu te ajudo você.

Cl

v
[au:-] = te uau: ±

v
eu

v V

ajud- você
Part:+
au:-
sing:+

Diagrama 15 - Derivação da estrutura redobrada

106
Aqui, embora não seja obrigatório, ClP pode ser inserido, uma vez que, na
derivação, vai haver um alvo potencial para a valoração dos traços desse núcleo. Nesse
caso, o resultado é a estrutura redobrada.
Diante dessas estruturas, surge a pergunta: Por que a projeção clítica “ignora” o
sujeito em Spec-v no momento da sondagem? Em (110), o pronome sujeito eu está mais
próximo de ClP do que o pronome objeto você. Esse pronome também possui um traço
de autor valorado [autor:+], mas, mesmo assim, ClP “salta” Spec-v e sonda o objeto
para sua valoração. Podemos aqui lançar mão de duas hipóteses.
A primeira delas leva em conta a proposta de Baker (2008) de que a
concordância de 1.ª e 2.ª pessoas depende de condições especiais e não dos critérios de
localidade da relação Agree canônica. Assim, a concordância da projeção clítica se daria
pela ligação indireta com o pronome você, vista como uma variável ligada ao operador
A da sentença, que designa o destinatário. Relembre que, de acordo com Baker, um DP
pronominal se torna uma variável no momento mesmo que ele entra numa relação
Agree, tornando-se elegível para uma relação e concordância operador-variável. Um
problema imediato dessa hipótese é que a concordância clítica do PB ocorre, ao que
tudo indica, na fase v, e os operadores S e A pertencem à fase C. Poderíamos
simplesmente assumir uma versão adaptada de Baker (2008) e propor que esses
operadores precisam estar presentes na fase v, uma vez que é na fase v que os
argumentos são inseridos na sentença e assim, é de se esperar que as referência de
falante e destinatário já estejam definidas lá. Mas há uma alternativa que dispensa o
recurso à operação de concordância operador-variável.
Como discutimos, os clíticos não estão envolvidos na checagem de Caso do
pronome associado, porque, no momento em que v é inserido, ele checa o caso do
objeto. Na sondagem que o traço não valorado da projeção clítica faz, o sujeito em
Spec-v, por possuir um traço de Caso não valorado, não conta como alvo possível.
Levando-se em conta a generalização de Adger (2006), como apresentada em (101),
uma cadeia de concordância se estabelece entre um item lexical LI1 e um item lexical
LI2, garantindo-se que os traços de um seja um subconjunto dos traços do outro. No
momento em que ClP é inserido, e assim, sonda a estrutura, o pronome sujeito em Spec-
v sempre vai apresentar um traço de Caso não valorado (e por isso, não deletado). Por
possuir mais traços que a sonda clítica, o elemento em Spec-v é opaco para a sondagem
de ClP, e dessa forma essa projeção vai sempre sondar o objeto, que tem seu caso já
valorado por v, e nunca o sujeito em Spec-v, cujo caso será valorado apenas na próxima

107
fase. Isso captura o fato de a projeção clítica no domínio verbal do PB ser uma
concordância de objeto e não de sujeito. A única situação em que os prefixos me e te
redobram um pronome sujeito é em contextos de sujeito ECM ou sujeitos de
minioração, como nos exemplos (111) e (112):

111) RC com sujeito ECM


tem vez quês num gosta munto de me dexá eu ficá lá não

112) RC com sujeito de minioração


aí ele cumeçô a me xingá eu de maria-vai-com-as-zôta

Esses redobramentos de sujeito de encaixada são possíveis exatamente porque,


em última instância, os pronomes em questão são objetos do verbo matriz e, por isso,
recebem caso acusativo do mesmo domínio verbal em que ClP é inserido. (111) e (112)
são mais evidências de que os clíticos me e te sondam elementos com Caso valorado.
Tendo-se em conta (111), embora o pronome eu seja sujeito do verbo ficar, ele recebe
caso de deixar e por isso a valoração de acusativo se dá na operação padrão estabelecida
com v. Quando o clítico é inserido na fase, eu já tem seu caso valorado e, por isso, se
torna um alvo potencial para o ClP. Isso coloca a análise dos RC em contextos de
sujeito ECM e de sujeito de minioração no mesmo rol dos RC com acusativos comuns.
Voltemos agora nossa atenção para a estrutura simples, com apenas o pronome
pleno, como em (113).

108
113) Eu ajudo você.

v
eu

v V

ajud- você
Part:+
au:-
sing:+

Diagrama 16 - Derivação da estrutura simples com pronome pleno

Uma vez que o ClP carrega apenas um traço não interpretável não valorado, a
ausência dessa projeção não possui qualquer efeito semântico e, por isso, ela pode ser
deixada de fora, como proposto em McCloskey (1996). Como vimos, este seria o
sentido da opcionalidade do clítico nos dados dialetais do PB. Diante de um objeto
visível, a projeção clítica é permitida, mas não obrigatória.
Temos ainda de lidar com a situação em que objeto presente na Numeração é um
pronome visível de 3.ª pessoa (ele). Por que, neste caso, não possível a inserção de ClP
e a estrutura em (114) é mal formada?

114) *Eu o ajudo ele

O problema aqui é que pronomes de 3.ª pessoa não são especificados para o
traço relevante da projeção clítica [uautor:±], porque a sua especificação para o traço
[participante:±] é negativa: [participante:-]. Como vimos na formulação de Adger
(2006), apenas elementos especificados como [participante:+] possuem um valor para o
traço [autor]. Por essa razão, ClP não pode ser inserido, porque não vai haver nenhum
alvo de valoração para o traço [uautor:±] e assim a derivação fracassa neste ponto.

109
Cl

v
??? uau: ±

v
eu

v V

ajud- ele
Part:-
sing:+

Diagrama 17 - Má formação da estrutura redobrada com clítico de 3.ª pessoa

O mesmo raciocínio se aplica à Numeração que contém um pro de 3.ª pessoa.


Assim, temos uma explicação para a estranheza do uso de clíticos de 3.ª pessoa em
estrutura de clítico simples e a agramaticalidade da estrutura redobrada, tendo-se em
conta a variante dialetal oral que estamos considerando.

110
?
115) Eu o ajudo

Cl

v
??? uau: ±

v
eu

v V

ajud- pro
Part:-
sing:+

Diagrama 18 - Má formação da estrutura simples com clítico de 3.ª pessoa

Dessa forma, esta análise também explica porque, quando se exclui a


possibilidade do objeto nulo, o recurso preferencial para a construção de objeto
pronominal de 3.ª pessoa no PB dialetal é com o pronome pleno, cuja estrutura não pede
ClP e não permite o clítico.

111
116) Eu ajudo ele

v
eu

v V

ajud- ele
Part:-
sing:+

Diagrama 19 - Derivação da estrutura simples com pronome pleno de 3.ª pessoa

Até aqui, discutimos os casos de RC acusativos no PB. Assumimos, além disso,


que os DPs dativos também correspondem a um caso de cl-V-DP, e que os elementos
pra e com que antecedem esses DPs são marcas de caso, e não preposições reais, uma
vez que preposições reais não aceitam cliticização no PB (e nas línguas em geral).
Dessa maneira, casos de RC dativos, com em (117), podem ser analisados a partir da
mesma estrutura proposta no diagrama (13). Como demonstramos, um critério para que
ClP sonde um elemento pronominal é que este elemento pronominal não apresente
traços de caso não valorados. No caso dos dativos, um núcleo aplicativo baixo vai
valorar o caso do pronome inerentemente, na posição em que eles são gerados
(TORRES MORAIS & SALLES, 2010), permitindo assim que o clítico sonde esse
elemento em busca de um valor para seu traço não valorado.

112
117) Eu tô te falando pra você (pro/ a verdade/que...)

Cl

v
[au:-] = te uau: ±

v
eu

v V

fal- Apl

pra você Apl


Part:+
au:-
sing:+ Apl pro/a verdade/que…

Diagrama 20 - Derivação da estrutura redobrada com argumento dativo

Os RC no PB se realizam apenas com as formas me e te, analisados aqui como


morfemas de concordância, resultado da valoração da projeção e concordância ClP. A
maioria dos nossos dados mostra que esse redobramento se dá sempre com os pronomes
de 1.ª e 2.ª pessoas eu e você, e que NPs ordinários não permitem redobramento, porque
NPs ordinários são em geral não especificados para o traço envolvido na projeção de
ClP [autor:±], sendo [participante:-] e por isso subespecificados par ao traço de pessoa,
resultando sempre em 3.ª pessoa (BAKER, 2008). No entanto, no PB dialetal, mesmo
DPs com núcleos nominais podem ser redobrados, garantindo-se que eles apresentem
um valor para o traço sondado pelo clítico. Isso é possível, como ilustrado nos exemplos
de RC com possessivos em (93). Na presença de um determinante possessivo

113
(meu/minha, seu/sua), um NP passa a ser constituído por um traço [autor] valorado, o
que permite a inserção e a valoração do traço do ClP. A existência desses casos de RC
dá grande força à nossa hipótese da projeção clítica composta apenas pelo traço
[autor:±].

118) me paga meu dinheiro

Cl

v
[au:+] = me uau: ±

v V

pag- DP

meu dinheiro
Part:+
au:+
sing:+
...

Diagrama 21 - Derivação da estrutura redobrada


com um determinante possessivo

Resta ainda o grupo dos RC com expressões idiomáticas.

119) RC com expressões idiomáticas


a. toda casa que ele ia me metia ne mim o ferro
b. num sei o quê que me deu na minha cabeça

114
Expressões idiomáticas deram margem para muita discussão na literatura a
respeito de sua interpretação semântica. Num horizonte vasto de abordagens, Nunberg,
Sag & Wasow (1994) aparecem como um marco na discussão do dilema
composicionalidade vs. não composicionalidade, mostrando que é possível encontrar
expressões idiomáticas nas duas situações. Para nossa análise, interessam apenas a as
estruturas e operações sintáticas mais fundamentais, que vão permitir ou não a inserção
da projeção de concordância clítica. Nesse sentido, as expressões em (119) se
conformam com nossa estrutura fundamental. Assumindo-se que expressões idiomáticas
entram na derivação em bloco, em (119-a) o VP meter o ferro em seria invariável, e a
pessoa alvo da ação seria variável. Quando o complemento dessa expressão é um
pronome de 1.ª ou 2.ª pessoa, a cliticização é possível, o que indica que esse
complemento pode ser visto como um DP aplicado, com caso inerente, e por isso o
clítico pode ser inserido e valorado. Dessa maneira, a valoração do clítico aqui se dá de
modo semelhante aos dativos regulares. Igualmente, a expressão dar na cabeça é
invariável, e a pessoa experienciadora pode variar. Aqui, porém, estamos diante de um
caso de DP com determinante possessivo. É curioso notar que a posse inalienável, que
permite a cliticização simples (me deu na cabeça) sugere que o determinante possessivo
aqui pode ser nulo, embora os traços de pessoa relevante ainda estejam lá. Caso
contrário, a cliticização não seria possível. Nesse sentido, a presença do clítico é um
diagnóstico para a presença desse determinante encoberto.

120)
a. num sei o quê que me deu na minha cabeça
b. num sei o quê que deu na minha cabeça
c. num sei o quê que me deu na [ ] cabeça
d. *num sei o quê que deu na cabeça

O que a análise de todas as ocorrências apresentadas neste trabalho revela é que


o RC do PB dialetal se dá sempre dentro de um domínio verbal, cuja estrutura simples
fundamental é cl-V-DP. Este DP pode ser um acusativo ou um dativo, visto aqui como
um DP aplicado. PPs não podem cliticizar, o que leva a crer que dativos baixos no PB
são sempre argumentos aplicados e PP são projeções no nível da sentença, nunca do VP.

115
5.4 O traço [uautor: ±] na concordância do PB

No desenvolvimento de nossa análise, partimos da intuição, motivada pelos


dados empíricos, de que um traço não de participante é realizado na periferia da fase v.
A realização morfológica desse traço, após sua valoração, aparece na superfície como as
marcas me e te, originadas de antigos clíticos que podiam se mover na sentença, mas
que agora parecem reanalisadas como morfologias fixas, sempre pré-verbais. Por outro
lado, embora estejamos rotulando essa projeção como ClP, a natureza dessas marcas,
como toda a discussão indica, não é a de um clítico comum propriamente, mas de uma
marca de concordância ou um clítico altamente empobrecido. Vamos, no entanto,
manter a terminologia ClP, assumindo que essas marcas representem fases finais de um
processo de empobrecimento de traços de clíticos anteriormente mais ricos (ver, por
exemplo, Givón (1976), Fuß (2005), Cournane (2008, 2010) e os trabalho basilar de
Roberts e Roussou (2003), sobre o processo de gramaticalização que leva elementos
pronominais a serem reanalisados como marcas de concordância).
Se nossa hipótese estiver correta, o desaparecimento da forma clítica de 3.ª
pessoa e das demais formas clíticas desusadas no PB oral está correlacionado com esse
processo de empobrecimento do clítico, em paralelo com sua reanálise como um
morfema de concordância.
Van Koppen (2012) argumentou, com base na concordância de Cs, no holandês
dialetal, que traços de participante podem desencadear concordância de modo
independente dos demais traços-φ da estrutura pronominal. Visto dessa maneira, a
autora ainda assume que o traço de participante é inserido separadamente na derivação e
juntado posteriormente ao resto da estrutura pronominal por Merge.
A postulação da concordância para o traço [uautor: ±] no domínio de v-V,
especificação bivalente para o traço [participante: +], nos leva a perguntar sobre a
presença deste traço na estrutura de concordância da fase C-T em PB. Em outras
palavras, haveria casos em que esse traço daria sinais morfológicos em C-T de uma
operação de concordância independente, deixando de lado outros traços-φ? Quanto a
esta questão, o retorno aos dados dialetais é revelador. Veja alguns casos de
concordância Sujeito-verbo da fala de Piranga, comparando a concordância de 1.ª
pessoa do singular com as demais:

116
121) 1.ª P.Sing
a. eu moro ca minha mãe
b. eu nem gosto de ficá per dele

122) 2.ª P.Sing


a. Cê gosta assim das coisa antiga
b. Que que cê faz lá?

123) 3.ª P.Sing


a. Ele fica cutucano a gente.
b. Ele bebe muito

124) 1.ª P.Pl


a. nós correu demais com medo
b. nós oiô pá trais e viu mais nada

125) 2.ª P.Pl


a. é porque cês tava com medo
b. cês vai correno chamá lá o Jésu

126) 3.ª P.Pl


a. eles fala que a gente topa com ele no caminho
b. os home pegô e vortô

Levando-se em conta o sistema de concordância sujeito-verbo nessa variante


dialetal, parece haver uma marca distintiva única para a 1.ª pessoa singular [autor:+] e
todas as outras formas aceitam a flexão default zero [autor:-].

117
127)
Eu fal-o
Você fala-Ø
Ele fala-Ø
A gente/nós fala-Ø
Vocês fala-Ø
Eles fala-Ø

Curiosamente, mesmo a 1.ª pessoa do plural aceita a forma default. O traço de


número parece não ser diretamente relevante para os verbos regulares. Verbos
irregulares com raiz monossilábica (constituída de apenas uma consoante), como ir, ser,
estar (na forma reduzida: tô, tá, tão) e outros, apresentam uma forma para as pessoas do
plural, diferenciada da 1.ª pessoa e da default zero.

38
128)

a. espera aí, que nois vão atrás do cê


b. agora nois vão vortá. Nois vorta pa trais
c. eles tão atrais de nois ... vão esperá eles embora primero

Ainda assim, mesmo essas formas irregulares permitem a flexão default como
em “nós vai”, “cês vai”. Essas evidências são bastante sugestivas no que diz respeito ao
sistema de concordância do PB dialetal em geral. Parece que a concordância com traço
[autor] é determinante tanto no domínio de v-V, quando no domínio C-T. Estes pontos,
no entanto, fogem ao foco do presente trabalho e deixamos essas questões em aberto
para pesquisas futuras. De toda forma, a análise de van Koppen (2012), para quem
traços de participante podem concordar independentemente parecem se confirmar no
PB.
Em nossos dados, todos os casos de concordância parecem coincidir com Agree
e por isso não precisamos lançar mão, diretamente, da conjectura de Baker (2008),
segundo a qual concordância de 1.ª e 2.ª pessoas é sempre uma concordância operador-

38
Ramos (2010), fala de Piranga.

118
variável. Mesmo em casos de objeto dativo, assumimos que não estamos diante de PPs,
mas de DPs aplicados. Mesmo assim, o fato de a concordância de objeto nos dados do
PB dialetal ocorrerem apenas para a 1.ª e a 2.ª pessoa parecem correlacionados com essa
hipótese.
Se as estruturas apresentadas por van Koppen (2012) estiverem corretas, então
podemos supor que o traço [autor] se realiza morfologicamente tanto na sonda T, quanto
na sonda v em PB dialetal. Obviamente, há a realização de outros traços-φ nessas
sondas em outros registros e variedades do PB, que possuem paradigmas mais ricos.

5.5 Síntese do capítulo

Neste capítulo, desenvolvemos nossa proposta de análise para os RC do PB


dialetal. Vimos que a variedade de contextos em que os RC ocorrem pode ser reduzida a
uma estrutura única, qual seja, cl-V-DP. Em nossa elaboração, assumimos que os RC do
PB refletem uma relação de concordância entre uma instância de traços-φ de v, que
rotulamos de ClP, e traços-φ dos objetos de 1.ª e 2.ª pessoas. Vimos que a opcionalidade
dos RC está relacionada à natureza dos objetos pronominais plenos de 1.ª e 2.ª pessoas
no PB, que permitem a entrada da projeção clítica na derivação, mas não a exigem. O
traço envolvido na realização das formas clíticas é apenas um traço da série de
participante, qual seja, [uautor:±], o que reflete o caráter altamente empobrecido da
composição de traços das formas clíticas remanescentes na variante dialetal analisada. É
a presença deste traço em ClP que permite que as formas que trazem uma contraparte
valorada possam ser realizadas, nomeadamente as formas de 1.ª e 2ª pessoa me e te, ao
passo que as formas de 3.ª pessoa, que não possuem uma especificação para [autor] não
sejam aceitas. Por fim, discutimos a presença do traço [uautor:±] na concordância de
sujeito no PB dialetal, em que este traço também parece relevante, uma vez que o
paradigma dessas variantes parecem distinguir apenas a 1.ª pessoa singular de uma
marca elsewhere default, para todas as demais pessoas do verbo.

119
Conclusões

Nesta tese, nos propusemos investigar um conjunto de quatro problemas


centrais a respeito dos RC do PB dialetal. Vamos retornar a eles.

(i) A opcionalidade do RC no PB.

Diante das evidências empíricas discutidas ao longo deste trabalho, precisamos


assumir que os RC no PB são casos de concordância opcional. Com base em
McCloskey (1996), vimos que essa opcionalidade não é irrestrita, mas condicionada
pela presença ou a ausência de um traço relevante na Numeração. Propusemos que, no
PB dialetal, as formas me e te são resultado da valoração de um único traço não
interpretável, não valorado [uautor:±], hospedado em uma projeção dedicada, o ClP,
seguindo Sportiche (1996) e Anagnostopoulou (2006, 2015). Para que essa projeção
seja inserida na derivação, é preciso que a Numeração contenha uma contraparte
valorada neste traço em outro item que possa funcionar como alvo para ClP. Esse item
pode ser um pronome pleno, um pro com uma especificação para o traço [autor] ou
ainda um determinante possessivo especificado para [autor]. Na presença de um
pronome pleno na posição de objeto, a projeção do clítico em si é opcional, uma vez que
ela carrega apenas um traço não interpretável, não valorado. Se uma dada Numeração
contém um pronome pleno de 1.ª ou 2.ª pessoa, ClP pode ser inserido, já que vai haver
um alvo potencial, mas não é obrigatório, já que o licenciamento do pronome pleno não
depende dessa relação de concordância. Nessas circunstâncias, se o ClP é inserido, o
resultado é a estrutura redobrada; se ele é deixado de fora, emerge a estrutura simples
com apenas o pronome pleno. Quando o objeto em questão é pro especificado para
[autor:+] ou [autor:-], porém, ClP precisa também ser inserido, como uma condição de
convergência. Caso contrário, pro não pode ser interpretado como sendo 1.ª ou 2.ª
pessoa. Nessas condições, a estrutura resultante é a cliticização simples.

(ii) No PB dialetal, o RC não ocorre para a 3.ª pessoa, mas apenas para a 1.ª e a 2.ª.

Vimos que a projeção clítica possui apenas um traço: [uautor:±]. Quando o ClP é
inserido, este traço precisa ser checado contra algum alvo potencial. Se o objeto é 1.ª
pessoa, o traço do clítico é valorado como [autor:+]. Se o objeto é 2.ª pessoa, ClP

120
adquire [autor:-]. Uma vez que pronomes de 3.ª pessoa são subespecificados para traços
do ato discursivo, sendo compostos basicamente por [participante: –], a projeção do
clítico não pode ser inserida quando o objeto em questão é um elemento de 3.ª pessoa,
seja ele pleno ou nulo. Se ela for, seu traço não interpretável leva a derivação a
fracassar. Por isso, os RC ocorrem apenas para elementos de 1.ª e 2.ª pessoas, e mesmo
a cliticização simples para 3ª pessoa no PB dialetal é mal formada.

(iii) A amplitude de contextos sintáticos que permitem o redobramento pelas


formas me e te.
Vimos que os RC no PB dialetal podem ocorrem com acusativos, dativos,
possessivos, em construções de sujeito ECM, em miniorações e também com objetos
dentro de expressões idiomáticas. Embora haja essa variedade de contextos, vimos que a
estrutura básica do RC no PB é cl-V-DP. Para que a estrutura de RC seja possível, dois
critérios precisam ser atendidos: (i) é preciso haver um [autor] valorado; e (ii), é preciso
que argumento redobrado tenha seu traço de Caso valorado. Isso é possível em todos os
contextos encontrados. Com os acusativos, o Caso é valorado por v; com os dativos, por
um núcleo aplicativo; em construções de ECM e miniorações, o pronome sujeito da
oração encaixada é também objeto do verbo matriz, e recebem Caso do mesmo v em
que o clítico ocorre; o mesmo se dá com as expressões idiomáticas, e o Caso do
argumento redobrado é valorado por v ou pelo núcleo aplicativo. No caso dos
redobramentos de possessivo, o traço relevante está no determinante possessivo, o que
torna possível o redobramento de DPs.

(iv) O estatuto categorial das formas redobrantes me e te.

As formas me e te do PB dialetal não podem ser consideradas como clíticos


completos. Demonstramos no capítulo 1 que elas perderam uma propriedade
característica dos clíticos, qual seja, a de poderem se hospedar em raízes verbais e em
auxiliares. Além disso, essas formas não aceitam sequer posições variadas em relação à
raiz verbal (ênclise, mesóclise), mas se fixaram exclusivamente na posição proclítica. A
fixação da posição é um indício de reanálise dessas formas como marcas de
concordância (ver Machado-Rocha, 2011, para alguns diagnósticos). Além disso, essas
formas parecem ter passado por um processo de empobrecimento de traços, de modo
que resta nelas apenas um único traço não formal não valorado. Assim, embora

121
estejamos rotulando a projeção que resulta nessas formas de ClP, me e te são analisadas
neste trabalho como marcas de concordância de objeto.
A ideia de um núcleo que carrega apenas traços-φ não interpretáveis vai contra o
argumento teórico de Chomsky (1995), para quem AgrP deveria ser banido do modelo.
No entanto, esse argumento pode ser relativizado, como nosso trabalho sugere. Núcleos
que carregam apenas traços não interpretáveis são plausíveis, do ponto de vista teórico,
mas sua instabilidade reflete uma instabilidade do sistema, do ponto de vista diacrônico.
Para o caso do PB, essa perspectiva parece correta e pode ser relacionada com a perda
gradual da riqueza de traços do sistema pronominal (cf. Nunes, 2011a). Neste sentido, o
redobro de clítico na PB é um caso de cadeia de concordância pura (Adger, 2006), não
relacionado diretamente com nenhum efeito interpretativo. De Acordo com Adger
(2006, p. 508), nas cadeias de concordância pura,

“traços puramente formais não estão diretamente associados a interpretações


semânticas, mas eles precisam estar numa relação de concordância com traços
que, estes sim, são semanticamente interpretados, caso contrário, a estrutura
seria mal formada”.

Na discussão da literatura sobre os RC nas línguas, vimos que, em vários


momentos, levantou-se a hipótese de um “parâmetro do RC”. De um ponto de vista
intralinguístico, os dados do PB nos permitiram desenvolver uma análise unificada, de
modo que vários contextos de redobramento podem ser explicados a partir de uma única
estrutura, cl-V-DP, e um único traço motivador ([uautor:±]). Vimos também que muitos
autores perseguiram uma explicação que desse conta dos fenômenos de redobramento
interlinguisticamente, como Sportiche (1996) e vários outros. No entanto, quando
comparamos a proposta desenvolvida aqui com análises desenvolvidas para outras
línguas, o parâmetro do RC não parece ser factível empiricamente. Por exemplo, os
estudos para os RC no espanhol, em sua grande maioria, propõem estruturas distintas
para os RC/OD e os RC/OI, o que afasta nossa análise desses trabalhos. Além disso, o
espanhol, os dialetos do italiano e o romeno, por exemplo, permitem RC com elementos
de 3.ª pessoa, enquanto que o PB os proíbe. Embora não seja um requisito
absolutamente obrigatório, vimos que a Generalização de Kayne desempenha um papel
importante em vários contextos de RC no espanhol. Roberts (2010b) estende essa
generalização para línguas que não possuem um elemento preposicional em contextos
de RC, mas em que uma morfologia de caso faz as vezes desse elemento, como no

122
grego. No PB dialetal, a estrutura básica do RC acusativo não requer nenhum elemento
preposicional, o que afasta mais uma vez o fenômeno de RC no PB de outras línguas
estudas para esse fenômeno.
O redobramento sintático é, como discutido em Barbiers (2008), um
propriedade comum das operações de concordância. Nesse sentido, as operações de
concordância em geral replicam traços de um elemento em outro. Como os fenômenos
de concordância são muito variados de língua para língua, é bastante improvável que
haja um parâmetro universal específico para o RC. Os RC nas línguas parecem
relacionados com as operações de concordância num sentido mais amplo. Se há que se
pensar em um parâmetro, ele estaria ligado à concordância em si, e os RC
representariam apenas um aspecto particular desse princípio geral.

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