Pedro Alecrim PDF Tempo Trindade 5
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Dados do documento
Este texto é um relato sobre a vida de estudantes…
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PEDRO ALECRIM António Mota
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Terminaram as aulas e começa a confusão. Parecemos carreiros de formigas a
correr para dentro das camionetas, quase sempre velhas e a largar fumaradas de
gasóleo queimado.
Não há respeitinho por ninguém, como costuma dizer a dona Judite, a contínua
plantada à entrada da escola que, dentro daquele cubículo, faz-me lembrar um
pássaro numa gaiola com telefone. O que importa é arranjar lugar sentado. Quem não
E-mail
chega a tempo faz a viagem de regresso a casa de pé.
O Luís nunca corre e é o último a chegar. Vem com muita calma porque sabe que
tem sempre lugar nos bancos de trás. Há um grupinho que se encarrega de lhe marcar
o assento.
Você considera estebem
Muito alto, sempre documento
vestido, de cabelosútil?
compridos e encaracolados, o Luís
pesa o dobro de mim e nunca está calado. Não sei onde aprendeu tantas anedotas e
adivinhas, nem como consegue inventar tantas piadas.
Em dias de prova de avaliação aparece sempre de gravatinha e cinto largo. A
principio era uma grande risota vê-lo assim encadernado. Havia piadas. Mas o Luís
não se aborrecia. E avisava:
– Podem rir mais, muito mais! Riam muito!... Mas fiquem sabendo que tenho muito
respeitinho pelas avaliações…
Este conteúdo é inapropriado?
Não demorei muito tempo a descobrir a razão daquela estranha forma de vestir em
dias de prova escrita. O Luís serve-se da gravata, do cinto e das mangas da camisa
para colocar copianços.
Ontem começámos a rir quando a professora de Português ameaçou que se
Relatório
descobrisse alguém a copiar, o punha logo fora da sala e lhe dava zero.
E o Luís, o gordo Luís, com o ar mais sério do mundo:
–Ó stôra! Copiar? Nós?!... Era o que faltava… A gente não sabe fazer destas
coisas… Ainda somos muito novinhos…
Não gosto muito do Luís porque, um dia, já lá vão alguns meses, resolveu por toda
a gente a rir na camioneta, afirmando que eu andava ali por engano. Que o meu lugar
era na escola primária, junto dos copinhos de leite, a fazer redacções sobre as
melhor preço
O Martinho entra na loja da mãe, um pomar ali perto da paragem da camioneta,
A camioneta vai ficando vazia, paragem após paragem. Quando eu e o Nicolau, e
sempre cheio de abelhas que se fartam de reinar sobre a fruta.
também a Rita, a Joana e o Martinho, descemos, o motorista tem a acompanhá-lo
Ficámos eu e o Nicolau. Para chegarmos a casa temos de andar um bom pedaço
apenas o silêncio da camioneta, que arranca aos solavancos, engasgada em fumo
por entre campos e montes. De vez em quando, assustamo-nos quando, saído duma
negro.
lura, salta um coelho bravo e foge a grande velocidade, ou vemos as perdizes a
A Joana não se cansa. Entra logo em casa, que fica rente à estrada. Espera-a um
levantar voo, assustadas com a nossa presença.
cão minúsculo, o Belói, que nos cumprimenta com meia dúzia de ladridos.
E lá vamos nós a subir, sempre a subir. Que ideia tola foi essa dos nossos pais em
Já com a motorizada a trabalhar, bem acelerada, sem guarda-lamas e bastante
terem resolvido morar numa aldeia tão pequena! São vinte casas, contadas e
amolgada, o Afonso, irmão da Rita, aguarda-a com impaciência, prestes a começar
recontadas, com cinco lâmpadas públicas quase sempre fundidas, dois fontanários e
uma corrida louca. Não sei como é que a Rita ainda não nos apareceu com um braço
engessado, ou com a cara toda pintada com tintura! O Afonso Dora correr. Só não
treina a sério para campeão nacional de motocrosse porque não tem dinheiro para
comprar uma máquina potente.
O Martinho entra na loja da mãe, um pomar ali perto da paragem da camioneta,
sempre cheio de abelhas que se fartam de reinar sobre a fruta.
Ficámos eu e o Nicolau. Para chegarmos a casa temos de andar um bom pedaço
dias
mãe, que não é para brincadeiras, começa a ralhar e obriga-o a estar em frente dela,
sentado à mesa, com os livros abertos.
A mãe do Martinho mal sabe ler, mas de contas percebe ela! Faz mais depressa
OU
uma conta de cabeça que o freguês com uma máquina de calcular. De vez em
quando, deita uma olhadela ao livro que o filho está a ler, a ver se ainda não virou a
página. Na ideia dela um quarto de hora é mais que suficiente para se estudar uma
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página… esta página após um anúncio 8
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O Martinho conta essas coisas rindo muito. E eu calo-me. A minha vida é diferente.
Mal entro em casa, pouso a pasta e corro para o campo cortar erva tenra para os
Continua Para
vitelos, que se fartam de reclamar no estábulo. Vou a outro campo buscar as ovelhas e
as cabras que me aguardam, presas a estacas. Corto lenha e acarreto-a para a
Para que a mãe possa tratar da lida da casa, o Martinho toma conta do pomar até
cozinha; vou à fonte buscar regadores de água, e encho as pias dos porcos que não
serem horas de fechar a porta. À noite apetece-lhe muito quieto a ver televisão. Mas a
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param de foçar no estrume, sempre sujos e esfomeados.
mãe, que não é para brincadeiras, começa a ralhar e obriga-o a estar em frente dela,
Só depois do jantar é que começo a fazer os deveres de casa.
sentado à mesa, com os livros abertos.
Apesar dessas canseiras, não me tenho saído mal. Claro que não sou bom aluno;
A mãe do Martinho mal sabe ler, mas de contas percebe ela! Faz mais depressa
de vez em quando, tenho negativas, mas lá me vou aguentando.
uma conta de cabeça que o freguês com uma máquina de calcular. De vez em
Difícil foi o primeiro ano. Eu ia da escola primária com os olhos tapados, e toda
quando, deita uma olhadela ao livro que o filho está a ler, a ver se ainda não virou a
aquela barafunda confundiu-me. Sobretudo as salas de aula. Sala A, pavilhão C, Sala
página. Na ideia dela um quarto de hora é mais que suficiente para se estudar uma
D no pavilhão A, agora numa, depois noutra, em baixo, em cima… que grande
página…
confusão para entender aquilo!
O Martinho conta essas coisas rindo muito. E eu calo-me. A minha vida é diferente.
Numa parede estava afixada uma lista com os nomes dos livros e dos materiais
Mal entro em casa, pouso a pasta e corro para o campo cortar erva tenra para os
que era preciso comprar. Quanto tempo não estive ali a passar para um caderno, com
vitelos, que se fartam de reclamar no estábulo. Vou a outro campo buscar as ovelhas e
a letra muito bem feitinha, aquele batalhão de palavras intermináveis?!…
as cabras que me aguardam, presas a estacas. Corto lenha e acarreto-a para a
Depois o dinheiro não chegava para tudo. E a mãe dizia, aflita:
cozinha; vou à fonte buscar regadores de água, e encho as pias dos porcos que não
– Já estou arrependida de te pôr a estudar. Se ficasses aqui talvez fosse melhor;
param de foçar no estrume, sempre sujos e esfomeados.
podias aprender uma profissão. Então fica assim tudo tão caro? Não andarás a jogar
Só depois do jantar é que começo a fazer os deveres de casa.
Abrir
numas máquinas que só sabem comer moedas?
Apesar dessas canseiras, não me tenho saído mal. Claro que não sou bom aluno;
Eu jurava que não, que era mesmo assim: tudo caro.
de vez em quando, tenho negativas, mas lá me vou aguentando.
O meu pai suspirava fundo uma série de vezes. E em seguida desabafava:
Difícil foi o primeiro ano. Eu ia da escola primária com os olhos tapados, e toda
– Está muito bem! O baile anda a ficar cada vez mais lindo! Hum, se continua
aquela barafunda confundiu-me. Sobretudo as salas de aula. Sala A, pavilhão C, Sala
assim, acaba-se depressa a dança… E dizem eles que o ensino é de graça.
D no pavilhão A, agora numa, depois noutra, em baixo, em cima… que grande
Conversas… Só conversas…
confusão para entender aquilo!
Numa parede estava afixada uma lista com os nomes dos livros e dos materiais
que era preciso comprar. Quanto tempo não estive ali a passar para um caderno, com
a letra muito bem feitinha, aquele batalhão de palavras intermináveis?!…
Depois o dinheiro não chegava para tudo. E a mãe dizia, aflita:
– Já estou arrependida de te pôr a estudar. Se ficasses aqui talvez fosse melhor;
podias aprender uma profissão. Então fica assim tudo tão caro? Não andarás a jogar
E para termos a certeza de que não estávamos a ser roubados, todos os dias
enfiávamos os braços no buraco do carvalho, retirávamos a lata, sacávamos a tampa
e contávamos o dinheiro acumulado.
Um dia ficámos desolados! Os agriões tinham desaparecido, alguém os cortara
para dar ao gado.
– Lá se foi a nossa mina, acabou-se o nosso tesouro! – lamuriou-se o Nicolau.
Mas como tínhamos de continuar a juntar dinheiro para ganharmos a fortuna, e
depois de darmos muitas voltas ao miolo, resolvemos levar para o pomar da mãe do
Martinho molhos de nabos sempre bem atados quatro a quatro com folhas de piteira.
Nabos era coisa que não faltava nos campos do Nicolau, tantos eles eram que até os
arrancavam para dar aos animais.
Vendemos castanhas mais serôdias, grelos e pencas. E fartámo-nos de juntar
dinheiro com os cogumelos comestíveis que achávamos nas bordas dos campos e
entre as bouças.
Um dia, contámos e recontámos o dinheiro – algumas notas já tresandavam a mofo
– e começámos a saltar, loucos de alegria.
– Eu não disse? Conseguimos! O dinheiro chega e sobra!
E o meu coração batia com muita força quando entrámos na papelaria Sandra e
pedimos que nos vendesse quatro fracções do bilhete da lotaria do Natal que estava
exposto na montra.
–São para o meu tio! – disse o Nicolau, para não haver desconfianças.
– Calha bem ter mandado estes trocadinhos todos! – disse a empregada, toda
contente.
Sobraram duas moedinhas.
– Duas chicletes? – perguntou o Nicolau.
– Manda vir! – sussurrei eu, admirando os papelinhos mágicos que tinha na mão.
Entretanto, começaram as férias e eu esperei ansiosamente que o dia do sorteio
chegasse.
Na noite em que o sonho se desfez, senti-me o mais infeliz de todos os rapazes do
mundo! Inventei uma dor de barriga e deitei-me cedíssimo.
Tanto trabalho para nada! Que grande injustiça! Pensava eu, amargurado, com
uma vontade muito grande de chorar o mais possível, de gritar até ficar rouco, de
ferrar as mãos!
Que grande desilusão!
Claro que a sociedade se desfez. Eu e o Nicolau nunca mais levámos nada para o
pomar da mãe do Martinho. Ela, de vez em quando, dizia:
– Então?! Agora nem salsa trazem?!...
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