A Literatura e a Formacao Do Homem (1)
A Literatura e a Formacao Do Homem (1)
A Literatura e a Formacao Do Homem (1)
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Conferência pronunciada na XXIV Reunião Anual da SBPC, São Paulo, julho de 1972.
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pensamos imediatamente (1) em função da literatura como um todo; (2) em
função de uma determinada obra; (3) em função do autor, tudo referido aos
receptores.
Ora, uma característica do enfoque estrutural é não apenas
concentrar-se na obra tomada em si mesma (o que aliás ocorria em outras
orientações teóricas anteriores), mas relacioná-la a um modelo virtual abstrato,
que seria a ultima instância heurística. Isto provém do desejo de chegar a um
conhecimento de tipo cientifico que supera o conhecimento demasiado
contingente da obra singular em proveito de tais modelos genéricos, a que ela
se subordina e de que é uma manifestação particular; e que portanto a
explicam. Eles não seriam a-históricos, mas talvez trans-históricos porque
possuem generalidade e permanência muito maiores, em relação às
manifestações particulares (obras) que passam para segundo plano como
capacidade explicativa. Através da mudança das manifestações particulares,
eles permanecem, como sistemas básicos e como princípios de organização,
escapando até certo ponto à história, na medida em que são modelos; mas
integrando-se nela, quando vistos em suas manifestações particulares.
O ponto de vista estrutural consiste em ver as obras com referência
aos modelos ocultos, pondo pelo menos provisória e metodicamente entre
parênteses os elementos que indicam a sua gênese e a sua função num
momento dado, e que portanto acentuam o seu caráter de produto contingente
mergulhado na história.
Isto é dito para justificar a afirmação inicial: que os estudos modernos
de literatura se voltam mais para a estrutura do que para a função. Privada dos
seus apoios tradicionais mais sólidos (o estudo da gênese, a aferição do valor,
a relação com o público), a noção de função passa de fato por uma certa crise.
Seria possível, no entanto, focalizá-la? É claro, desde que não
queiramos substituir um enfoque pelo outro. O enfoque estrutural (inclusive
sob a modalidade mais recente, conhecida como estruturalismo) é responsável
pelo maior avanço que os estudos literários conheceram em nosso tempo. Mas
vai ficando cada dia mais claro que uma visão íntegra da literatura chegará a
conciliar num todo explicativo coerente a noção de estrutura e a de função,
que aliás andaram curiosamente misturadas e mesmo semanticamente
confundidas em certos momentos da Antropologia inglesa dos anos de 1930 e
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1940. E nós sabemos que a Antropologia é, com a Lingüística, uma das
grandes fontes do estruturalismo contemporâneo.
Voltando aos pontos de referência mencionados acima: na medida em
que nos interessa também como experiência humana, não apenas como
produção de obras consideradas projeções, ou melhor, transformações de
modelos profundos, a literatura desperta inevitavelmente o interesse pelos
elementos contextuais. Tanto quanto a estrutura, eles nos dizem de perto,
porque somos levados a eles pela preocupação com a nossa identidade e o
nosso destino, sem contar que a inteligência da estrutura depende em grande
parte de se saber como o texto se forma a partir do contexto, até constituir
uma independência dependente (se for permitido o jogo de palavras). Mesmo
que isto nos afaste de uma visão científica, é difícil pôr de lado os problemas
individuais e sociais que dão lastro às obras e as amarram ao mundo onde
vivemos.
Digamos então, para encerrar esta introdução: há no estudo da obra
literária um momento analítico, se quiserem, de cunho científico, que precisa
deixar em suspenso problemas relativos ao autor, ao valor, à atuação psíquica
e social, a fim de reforçar uma concentração necessária na obra como objeto
de conhecimento; e há um momento crítico, que indaga sobre a validade da
obra e sua função como síntese e projeção da experiência humana.
Tendo assim demarcado os campos, vejamos alguma coisa sobre a
literatura como força humanizadora, não como sistema de obras. Como algo
que exprime o homem e depois atua na própria formação do homem.
II
Um certo tipo de função psicológica é talvez a primeira coisa que nos
ocorre quando pensamos no papel da literatura. A produção e fruição desta se
baseiam numa espécie de necessidade universal de ficção e de fantasia, que
decerto é coextensiva ao homem, pois aparece invariavelmente em sua vida,
como individuo e como grupo, ao lado da satisfação das necessidades mais
elementares. E isto ocorre no primitivo e no civilizado, na criança e no adulto,
no instruído e no analfabeto. A literatura propriamente dita é uma das
modalidades que funcionam como resposta a essa necessidade universal,
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cujas formas mais humildes e espontâneas de satisfação talvez sejam coisas
como a anedota, a adivinha, o trocadilho, o rifão. Em nível complexo surgem
as narrativas populares, os cantos folclóricos, as lendas, os mitos. No nosso
ciclo de civilização, tudo isto culminou de certo modo nas formas impressas,
divulgadas pelo livro, o folheto, o jornal, a revista: poema, conto, romance,
narrativa romanceada. Mais recentemente, ocorreu o boom das modalidades
ligadas à comunicação pela imagem e à redefinição da comunicação oral,
propiciada pela técnica: fita de cinema, radionovela, fotonovela, história em
quadrinhos, telenovela. Isto, sem falar no bombardeio incessante da
publicidade, que nos assalta de manhã à noite, apoiada em elementos de
ficção, de poesia e em geral da linguagem literária.
Portanto, por via oral ou visual, sob formas curtas e elementares, ou
sob complexas formas extensas, a necessidade de ficção se manifesta a cada
instante; aliás, ninguém pode passar um dia sem consumi-la, ainda que sob a
forma de palpite na loteria, devaneio, construção ideal ou anedota. E assim se
justifica o interesse pela função dessas formas de sistematizar a fantasia, de
que a literatura é uma das modalidades mais ricas.
A fantasia quase nunca é pura. Ela se refere constantemente a
alguma realidade: fenômeno natural, paisagem, sentimento, fato, desejo de
explicação, costumes, problemas humanos etc. Eis por que surge a indagação
sobre o vínculo entre fantasia e realidade, que pode servir de entrada na
função da literatura.
Sabemos que um grande número de mitos, lendas e contos são
etiológicos, isto é, são um modo figurado ou fictício de explicar o aparecimento
e a razão de ser do mundo físico e da sociedade. Por isso há uma relação
curiosa entre a imaginação explicativa, que é a do cientista, e a imaginação
fantástica, ou ficcional, ou poética, que é a do artista e do escritor. Haveria
pontos de contato entre ambas? A resposta pode ser uma especulação lateral
no problema da função, que nos ocupa.
Interessado em estudar a formação do espírito cientifico, Gaston
Bachelard procurou investigar como ele ia surgindo duma espécie de
progressiva depuração, a partir da ganga imaginativa do devaneio, que seria
um estado de passividade intelectual a ser anulado. Mas aos poucos o
devaneio lhe foi aparecendo, não apenas como etapa inevitável, ou solo
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comum a partir do qual se bifurcam reflexão científica e criação poética, mas a
condição primária de uma atividade espiritual legítima. O devaneio seria o
caminho da verdadeira imaginação, que não se alimenta dos resíduos da
percepção e portanto não é uma espécie de resto da realidade; mas
estabelece séries autônomas coerentes, a partir dos estímulos da realidade.
Uma imaginação criadora para além, e não uma imaginação reprodutiva ao
lado, para falar como ele.
O devaneio (rêverie) se incorpora à imaginação poética e acaba na
criação de semelhantes imagens; mas o seu ponto de partida é a realidade
sensível do mundo, ao qual se liga assim necessariamente. Para Bachelard,
esta espécie de carga inicial da imaginação é formada pelos quatro elementos
da tradição eleática; os simples do mundo, segundo a visão de tantos séculos:
terra, água, ar e fogo.
Independente de aceitarmos ou não o ponto de vista de Bachelard, a
referência a ele serve neste contexto sobretudo como amostra do laço entre
imaginação literária e realidade concreta do mundo. Serve para ilustrar em
profundidade a função integradora e transformadora da criação literária com
relação aos seus pontos de referência na realidade.
Ao mesmo tempo, a evocação dessa impregnação profunda mostra
como as criações ficcionais e poéticas podem atuar de modo subconsciente e
inconsciente, operando uma espécie de inculcamento que não percebemos.
Quero dizer que as camadas profundas da nossa personalidade podem sofrer
um bombardeio poderoso das obras que lemos e que atuam de maneira que
não podemos avaliar. Talvez os contos populares, as historietas ilustradas, os
romances policiais ou de capa e espada, as fitas de cinema, atuem tanto
quanto a escola e a família na formação de uma criança e de um adolescente.
Isto leva a perguntar: a literatura tem uma função formativa de tipo
educacional?
Sabemos que a instrução dos países civilizados sempre se baseou
nas letras. Daí o elo entre formação do homem, humanismo, letras humanas e
o estudo da língua e da literatura. Tomadas em si mesmas, seriam as letras
humanizadoras, do ponto de vista educacional?
Seja como for, a sua função educativa é muito mais complexa do que
pressupõe um ponto de vista estritamente pedagógico. A própria ação que
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exerce nas camadas profundas afasta a noção convencional de uma atividade
delimitada e dirigida segundo os requisitos das normas vigentes. A literatura
pode formar; mas não segundo a pedagogia oficial, que costuma vê-la
ideologicamente como um veículo da tríade famosa - o Verdadeiro, o Bom, o
Belo -, definidos conforme os interesses dos grupos dominantes, para reforço
da sua concepção de vida. Longe de ser um apêndice da instrução moral e
cívica (esta apoteose matreira do óbvio, novamente em grande voga), ela age
com o impacto indiscriminado da própria vida e educa como ela, com altos e
baixos, luzes e sombras. Daí as atitudes ambivalentes que suscita nos
moralistas e nos educadores, ao mesmo tempo fascinados pela sua força
humanizadora e temerosos da sua indiscriminada riqueza. E daí as duas
atitudes tradicionais que eles desenvolveram: expulsá-la como fonte de
perversão e subversão, ou tentar acomodá-la na bitola ideológica dos
catecismos (inclusive fazendo edições expurgadas de obras-primas, como as
denominadas ad usum Delphini, destinadas ao filho de Luís XIV).
Dado que a literatura, como a vida, ensina na medida em que atua
com toda a sua gama, é artificial querer que ela funcione como os manuais de
virtude e boa conduta. E a sociedade não pode senão escolher o que em cada
momento lhe parece adaptado aos seus fins, enfrentando ainda assim os mais
curiosos paradoxos, - pois mesmo as obras consideradas indispensáveis para
a formação do moço trazem freqüentemente o que as convenções desejariam
banir. Aliás, essa espécie de inevitável contrabando é um dos meios por que o
jovem entra em contacto com realidades que se tenciona escamotear-lhe.
Vejamos um exemplo apenas. Todos sabem que a arte e a literatura
têm um forte componente sexual, mais ou menos aparente em grande parte
dos seus produtos. E que age, portanto, como excitante da imaginação erótica.
Sendo assim, é paradoxal que uma sociedade como a cristã, baseada na
repressão do sexo, tenha usado as obras literárias nas escolas, como
instrumento educativo. Basta lembrar, na venerável tradição clássica, textos
como a Ilíada, o Canto IV da Eneida, o Canto IX dos Lusíadas, os idílios de
Teócrito, os poemas apaixonados de Catulo, os versos provocantes, de
Ovídio, - tudo lido, traduzido, comentado ou explicado em aula. Esta situação
curiosa chegou até os nossos dias de costumes menos rígidos, e vive gerando
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brigas entre pais e professores, por causa da leitura de Aluísio Azevedo ou
Jorge Amado.
O revestimento ideológico de um autor pode dar lugar a contradições
realmente interessantes - os poderes da sociedade ficando inibidos de
restringir a leitura de textos que deveriam ser banidos segundo os seus
padrões, mas que pertencem a um autor ou a uma obra que, por outro lado,
reforçam esses padrões. Nada mais significativo do que a voga, até há poucos
anos, de Olavo Bilac, poeta que em muitos versos apresentava o sexo sob
aspectos bastante crus, perturbando a paz dos ginasianos, cujos mestres não
ousavam todavia proscrevê-los porque se tratava de um escritor de
conotações patrióticas acentuadas - pregador de civismo e do serviço militar,
autor de obras didáticas adotadas e cheias de "boa doutrina".
Paradoxos, portanto, de todo lado, mostrando o conflito entre a idéia
convencional de uma literatura que eleva e edifica (segundo os padrões
oficiais) e a sua poderosa força indiscriminada de iniciação na vida, com uma
variada complexidade nem sempre desejada pelos educadores. Ela não
corrompe nem edifica, portanto; mas, trazendo livremente em si o que
chamamos o bem e o que chamamos o mal, humaniza em sentido profundo,
porque faz viver.
III
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autônomos. Sabemos que as três coisas são verdadeiras, mas o problema é
determinar qual o aspecto dominante e mais característico da produção
literária. Sem procurar decidir, limitemo-nos a registrar as três posições e
admitir que a obra literária significa um tipo de elaboração das sugestões da
personalidade e do mundo que possui autonomia de significado, mas que esta
autonomia não a desliga das suas fontes de inspiração no real, nem anula a
sua capacidade de atuar sobre ele.
Isto posto, podemos abordar o problema da função da literatura como
representação de uma dada realidade social e humana, que faculta maior
inteligibilidade com relação a esta realidade. Para isso, vejamos um único
exemplo de relação das obras literárias com a realidade concreta: o
regionalismo brasileiro, que por definição é cheio de realidade documentária.
Trata-se de um caso privilegiado para estudar o papel da literatura
num país em formação, que procura a sua identidade através da variação dos
temas e da fixação da linguagem, oscilando para isto entre a adesão aos
modelos europeus e a pesquisa de aspectos locais. O Arcadismo, no século
XVIII, foi uma espécie de identificação com o mundo europeu através do seu
homem rústico idealizado na tradição clássica. O Indianismo, já no século XIX,
foi uma identificação com o mundo não-europeu, pela busca de um homem
rústico americano igualmente idealizado. O Regionalismo, que o sucedeu e se
estende até os nossos dias, foi uma busca do tipicamente brasileiro através
das formas de encontro, surgidas do contacto entre o europeu e o meio
americano. Ao mesmo tempo documentário o idealizador, forneceu elementos
para a auto-identificação do homem brasileiro e também para uma série de
projeções ideais. Nesta palestra, o intuito é mostrar que a sua função social foi
ao mesmo tempo humanizadora e alienadora, conforme o aspecto ou o autor
considerado.
Mas antes de ir além, um parêntese para dizer que hoje, tanto na
crítica brasileira quanto na latino-americana, a palavra de ordem é "morte ao
regionalismo", quanto ao presente, e menosprezo pelo que foi, quanto ao
passado. Esta atitude é criticamente boa se a tornamos como um "basta!" à
tirania do pitoresco, que vem a ser afinal de contas uma literatura de
exportação e exotismo fácil. Mas é forçoso que, justamente porque a literatura
desempenha funções na vida da sociedade, não apenas da opinião crítica, que
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o regionalismo exista ou deixe de existir. Ele existiu, existe e existirá enquanto
houver condições como as do subdesenvolvimento, que forçam o escritor a
focalizar como tema as culturas rústicas mais ou menos à margem da cultura
urbana. O que acontece é que ele se vai modificando e se adaptando,
superando as formas grosseiras até dar a impressão de que se na
generalidade dos temas universais, é normal em toda obra bem feita. E pode
mesmo chegar à etapa onde os temas rurais são tratados com um requinte
que em geral só é dispensado aos temas urbanos, como é o caso de
Guimarães Rosa, a cujo propósito seria cabível falar num super-regionalismo.
Mas ainda aí estamos diante de uma variedade da malsinada corrente.
Fechando o parêntese, voltaremos ao assunto com uma consideração
de ordem geral: o regionalismo estabelece uma curiosa tensão entre tema e
linguagem. O tema rústico puxa para os aspectos exóticos e pitorescos e,
através deles, para uma linguagem inculta cheia de peculiaridades locais; mas
a convenção normal da literatura, baseada no postulado da inteligibilidade,
puxa para uma linguagem culta e mesmo acadêmica. O regionalismo deve
estabelecer uma relação adequada entre os dois aspectos, e por isso se torna
um instrumento poderoso de transformação da língua e de revelação e auto-
consciência do país; mas pode ser também fator de artificialidade na língua e
de alienação no plano do conhecimento do país. As duas coisas ocorrem nas
diversas fases do regionalismo brasileiro, e eventualmente em obras
diferentes.do mesmo autor. Tomemos como exemplo dois autores da mesma
fase, que se conheceram e se estimaram: Coelho Neto (1864-1934) e Simões
Lopes Neto (1865-1916).
Ambos escreveram num momento de grande voga da literatura
regionalista, quando ela parecia mais autêntica do que outras modalidades,
porque se ocupava de tipos humanos, paisagens e costumes considerados
tipicamente brasileiros. No conjunto, foi uma tendência falsa, correspondendo
a modalidades superficiais de nacionalismo, baseada numa distância
insuperada entre o escritor e o seu personagem, que ficava reduzido ao nível
da curiosidade e do pitoresco. Não obstante, alguns escritores conseguiram
posição bem mais humanizadora. Os dois exemplos abaixo procuram sugerir
as duas posições.
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O regionalismo de Coelho Neto (cuja obra se desenvolveu na maior
parte em outros rumos) mostra a dualidade estilística predominante entre os
regionalistas, que escreviam como homens cultos, nos momentos de discurso
indireto; e procuravam nos momentos de discurso direto reproduzir não
apenas o vocabulário e a sintaxe, mas o próprio aspecto fônico da linguagem
do homem rústico. Uma espécie de estilo esquizofrênico, puxando o texto para
dois lados e mostrando em grau máximo o distanciamento em que se situava o
homem da cidade, como se ele estivesse querendo marcar pela dualidade de
discursos a diferença de natureza e de posição que o separava do objeto
exótico que é o seu personagem.
O conto "Mandovi", de seu livro Pelo Sertão, pode ser tomado como caso típico
dessa concepção alienadora. Vejamos um trecho:
"- Não vou? ocê sabi? pois mió. Dá cá mais uma derrubada ai
modi u friu, genti. Um dos vaqueiros passou-lhe o copo e Mandovi bebeu
com gosto, esticando a língua para lamber os bigodes. Té aminhã, genti.
-Adeus!
-Eh! Tigre... livanta. Com a ponta do pé espremeu o ventre de um cão negro que se
levantou ligeiro e, rebolindo-se a acenar com a cauda, pôs-se a mirá-lo rosnando. Bamu! Adeu,
genti. E, da porta, para rir, bradou: -Dá um tombu nesse queixada comedô, genti.
Fora a noite ia esplêndida, fresca e de lua. A estrada, muito branca, insinuava-se
pelo arvoredo e perdia-se nas sombras quietas. O caboclo lançou os olhos ao céu estrelado
onde a lua brilhava e, passando o cajado pelas costas, à altura dos ombros, vergou os braços
sobre ele deixando as mãos pendentes e pôs-se a caminho, precedido pelo cão que seguia
com o focinho baixo, em zig-zagues, a fariscar a erva e o pó “
A primeira coisa que se nota neste centauro estilístico é a injustificável
dualidade de notação da fala, que não pode ser explicada senão por motivos
de ideologia. Do contrário, por que tentar uma notação fonética rigorosa para a
fala do rústico e aceitar para a do narrador culto o critério aproximativo
normal? Com efeito, supondo no narrador Coelho Neto uma performance
fônica do tipo da que é corrente entre as pessoas cultas no Rio de Janeiro e
nas cidades do Litoral Norte do país, o lógico seria (levando o critério adotado
até às últimas conseqüências), que a escrita se apresentasse assim:
“ – Não vô? Ocê sabi? Pois mio. Dácá mai zuma dirrubada aí módiu friu, genti.
Unduch vaqueiruch passôlhocópo i Mandovi com gôchto, chticando a língua pra lambe ruch
bogodich” etc.
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Isto não poderia ocorrer, porque na verdade o procedimento
exemplificado com o texto de Coelho Neto é uma técnica ideológica
inconsciente para aumentar a distância erudita do autor, que quer ficar com o
requinte gramatical e acadêmico, e confiar o personagem rústico, por meio de
um ridículo patuá pseudo-realista, no nível infra-humano dos objetos
pitorescos, exóticos para o homem culto da cidade. Digo pseudo-realista,
porque na verdade o que ocorre é uma dualidade de critérios. Com efeito, ao
narrador ou personagem cultos, de classe superior, é reservada a integridade
do discurso, que se traduz pela grafia convencional, indicadora da norma culta.
Nos livros regionalistas, o homem de posição social mais elevada nunca tem
sotaque, não apresenta peculiaridades de pronúncia, não deforma as palavras,
que, na sua boca, assumem o estado ideal de dicionário. Quando, ao
contrário, marca o desvio da norma no homem rural pobre, o escritor dá ao
nível fônico um aspecto quase teratológico, que contamina todo discurso e
situa o emissor como um ser à parte, um espetáculo pitoresco como as
árvores e os bichos, feito para contemplação ou divertimento do homem culto,
que deste modo se sente confirmado na sua superioridade. Em tais casos, o
regionalismo é uma falsa admissão do homem rural ao universo dos valores
éticos e estéticos.
No entanto, o seu propósito consciente era o contrário. Ele se
apresentou como um humanismo, uma recuperação do homem posto à
margem; e de fato pode ser assim; quando a deliberação temática, isto é, a
decisão de escolher e tratar como tema literário o homem rústico, é seguida de
uma visão humana autêntica, que evite o tratamento alienante dos
personagens. Esta visão se traduz pelo encontro de uma solução lingüística
adequada; e dependendo dela é que o regionalismo pode ter um sentido
humanizador ou um sentido reificador. Dito de outro modo: pode funcionar
como representação humanizada ou como representação desumanizada do
homem das culturas rurais.
Contrastando com o caso negativo de Coelho Neto, vejamos o caso
positivo de Simões Lopes Neto, escritor cuja ficção, quantitativamente parca,
mas qualitativamente elevada, se desenvolveu toda dentro do regionalismo.
Simões Lopes Neto começa por assegurar uma identificação máxima
como universo da cultura rústica, adotando como enfoque narrativo a primeira
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pessoa de um narrador rústico, o velho cabo Blau Nunes, que se situa, dentro
da matéria narrada, e não raro do próprio enredo, como uma espécie de
Marlowe gaúcho. Esta mediação - nunca usada por Coelho Neto, encastelado
numa terceira pessoa alheia ao mundo ficcional, que hipertrofia ( ângulo do
narrador culto) - atenua ao máximo o hiato entre criador e criatura, dissolvendo
de certo modo o homem culto no homem rústico. Este deixa de ser um ente
separado e estranho que o homem culto contempla, para tornar-se um homem
realmente humano, cujo contacto humaniza o leitor .
Veja-se o final do conto "Contrabando":
“Era já Iusco-fusco. Pegaram a acender as luzes. E nesse mesmo tempo parava no
terreiro a comitiva; mas num silêncio, tudo.
E o mesmo silêncio foi fechando todas as bocas e abrindo todos os olhos.
Então vimos os da comitiva descerem de um cavalo o corpo entregue de um
homem, ainda de pala enfiado...
Ninguém perguntou nada, ninguém informou de nada; todos entenderam tudo... ;
que a festa estava acabada e a tristeza começada...
Levou-se o corpo pra sala da mesa, para o sofá enfeitado, que ia ser o trono dos
noivos. Então um dos chegados disse:
A guarda nos deu em cima... tomou os cargueiros... E mataram o capitão, porque ele
avançou sozinho pra mula ponteira e suspendeu um pacote que vinha solto... e ainda o
amarrou no corpo... Aí foi que o crivaram de balas... parado...Os ordinários!... Tivemos que
brigar, pra tomar o corpo!
A sia-dona mãe da noiva levantou o balandrau do Jango Jorge e desamarrou o
embrulho; e abriu-o.
Era o vestido branco da filha, os sapatos brancos, o véu branco, as flores de
laranjeira...
Tudo numa plastada de sangue... tudo manchado de vermelho, toda a alvura
daquelas coisas bonitas como que bordada de colorado, num padrão esquisito, de feitios
estrambólicos... como flores de cardo solferim esmagadas a casco de bagual!...
Então rompeu o choro na casa toda "...
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extremos possíveis: ou deformar as palavras e grafar toda a narrativa segundo
a falsa convenção fonética usual em nosso regionalismo, de que vimos um
exemplo em Coelho Neto; ou adotar um estilo castiço registrado segundo as
convenções da norma culta. Simões Lopes Neto rejeitou totalmente o primeiro
e adaptou sabiamente o segundo, conseguindo um nível muito eficiente de
estilização. Graças a isto, o universo do homem rústico é trazido para a esfera
do civilizado. O leitor, nivelado ao personagem pela comunidade do meio
expressivo, se sente participante de uma humanidade que é a sua e, deste
modo, pronto para incorporar à sua experiência humana mais profunda o que o
escritor lhe oferece como visão da realidade.
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