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Feitiçaria e Alquimia na China Antiga

2023, Magia, encantamentos e feitiçaria

Nosso objetivo neste breve ensaio será apresentar um pouco sobre esse tema tão rico nas tradições culturais chinesas - feitiçaria e alquimia -, fazendo um pequeno percurso histórico na antiguidade e apresentando algumas de suas práticas mais conhecidas.

CONSELHO EDITORIAL ACADÊMICO Luna Antunes Costa Monalisa Dias de Siqueira Cláudio Umpierre Carlan Cultura Acadêmica Editora Praça da Sé, 108 CEP 01001-900 – São Paulo, SP www.culturaacademica.com.br Semíramis Corsi Silva Flávia Regina Marquetti Pedro Paulo A. Funari organizadores MAGIA, ENCANTAMENTOS E FEITIÇARIA Copyright © 2023 organizadores CIP – Brasil. Catalogação na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ _____________________________________________ M194 Magia, encantamentos e feitiçaria/ organização Semíramis Corsi Silva ... [et al.]. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2023. 594 p.: il.; 16 x 23 cm. Vários autores. ISBN 978-65-5954-401-1 (DIGITAL) 1. Antiguidade Clássica. 2. Antropologia - História. 3. Diversidade Cultural. 4. Rituais. 5. Práticas mágicas. 6. Oráculos. I. Silva, Semíramis Corsi, 1982- II. Marquetti, Flávia Regina, 1960- III. Funari, Pedro Paulo Abreu, 1959 CDD 930 _____________________________________________ Índices para catálogo sistemático: Praça da Sé, 108 01001-900- São Paulo – SP Tel. (0xx11)3242-7171 Fax. (0xx11) 3242-7172 www.editoraunesp.com.br feu@editora.unesp.br SUMÁRIO Prefácio Ivan Esperança Rocha ------------------------------------------------------------------------1 Introdução Semíramis Corsi Silva, Flávia Regina Marquetti e Pedro Paulo A. Funari ----------18 Parte 1 Rituais, oráculos e objetos mágicos Amuletos Mágicos Mesopotâmicos: entre religião e arte Katia Maria Paim Pozzer -------------------------------------------------------------------21 Íynx: o feitiço de amor e a religião de Afrodite e Eros na iconografia dos vasos ápulos (séc. IV AEC) Fábio Vergara Cerqueira --------------------------------------------------------------------44 Feitiçaria e Alquimia na China Antiga André da Silva Bueno ----------------------------------------------------------------------92 Escravidão e adivinhação no Império Romano: uma aproximação a partir das Sortes Astrampsychi Filipe Noé da Silva ------------------------------------------------------------------------119 Magia como Fenômeno transcultural: Lição I – como fazer um anel mágico (Libro de Astromagia, séc. XIII) Aline Dias da Silveira ---------------------------------------------------------------------133 Pomadas, poções e unguentos: as reuniões secretas diabólicas em manuscritos Alpinos do século XV Lívia Guimarães Torquetti dos Santos --------------------------------------------------165 Magia, truque e feitiço: as muitas faces do encantamento na literatura oral de Ifá Rogério Athayde ---------------------------------------------------------------------------194 Raios e ventos: narrativas mágicas sobre Santa Bárbara e Iansã Debora Simões de Souza -----------------------------------------------------------------214 Mulheres encantadas e os lagos mágicos: as estatuetas femininas das estearias do Maranhão Alexandre Guida Navarro ----------------------------------------------------------------231 O uso da magia egípcia no ensino: os amuletos em sala de aula Raquel dos Santos Funari -----------------------------------------------------------------263 Parte 2 Magos, feiticeiras e suas práticas O Corpo encantado. Do mito aos contos maravilhosos Flávia Regina Marquetti ------------------------------------------------------------------287 Gênero e Magia em Roma: as feiticeiras Canídia e Ságana na Sátira I, 8 de Horácio Semíramis Corsi Silva---------------------------------------------------------------------327 Maria, a mãe de Jesus, como uma maga: gênero, poder e magia entre os primeiros cristãos Juliana Batista Cavalcanti ----------------------------------------------------------------361 As tabellae defixionum de Nomento, no Lácio (I AEC – I EC): um estudo de caso sobre as inscrições e os lugares de depósito Carlos Eduardo da Costa Campos -------------------------------------------------------376 Sem perdão: em busca de justiça (ou vingança?) usando defixiones na antiga Mogontiacum (Mainz) Renata Cazarini de Freitas ----------------------------------------------------------------398 Druidismo e Magia: Rituais Sagrados entre os Celtas Silvana Trombetta -------------------------------------------------------------------------434 Barrados no baile. A Península Ibérica e a festa das bruxas Carlos Roberto Figueiredo Nogueira ----------------------------------------------------466 “Essa é a mais perfeita e principal ciência, a mais sagrada e sublime espécie de filosofia”: reflexões sobre as relações entre magia e scientia nos renascimentos dos séculos XV-XVI Francisco de Paula Souza de Mendonça Júnior----------------------------------------501 O Catimbó Nordestino Sandro Guimarães de Salles --------------------------------------------------------------534 “Evoé”: do delírio dionisíaco em Eurípides à macumba antropofágica na obra Bacantes do Teatro Oficina Dolores Puga -------------------------------------------------------------------------------559 Feitiçaria e Alquimia na China Antiga André da Silva Bueno1 Introdução Em 91 AEC, um sinistro caso de bruxaria iria abalar profundamente a casa imperial de Han 漢. Wudi 武帝 [156-87 AEC], monarca longevo que já governava a China havia décadas, estava ficando velho e desconfiado. Ele já sentia que seu tempo de vida estava acabando, mas continuava agarrado ao poder, e seguia agastado pelos rumores de conspirações que apareciam ocasionalmente na corte. Foi quando o ministro dos espiões Jiang Chong 江充 levou até o imperador a suspeita de que atos de magia estavam sendo praticados contra ele e, possivelmente, contra outros membros do governo. Wudi autorizou uma busca no palácio por objetos que pudessem indicar a prática da feitiçaria, e vários bonecos [‘Tongmu ouren’ 桐⽊偶⼈] foram desenterrados no jardim, junto com pequenos retalhos de seda com imprecações escritas. O soberano ficou apavorado: faziam anos que ele tinha pesadelos recorrentes com fantoches mágicos que vinham atacá-lo, e encontrar esses objetos apenas confirmava seus receios mais profundos. Anos antes, Wudi já decretara leis mais Tem graduação em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1997), mestrado em História pela Universidade Federal Fluminense (2002), doutorado em Filosofia pela Universidade Gama Filho (2005) e Pós-Doutorado em História Antiga pela UNIRIO. É professor adjunto de História Oriental na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). 1 92 Fei=çaria e Alquimia na China An=ga severas para regular e supervisionar a prática da magia, e sentia que isso deixara muitos feiticeiros descontentes, relegando-os a um papel de segundo plano no cenário religioso. Parecia, pois, que o momento de uma grande vingança ou golpe se desenhava. A histeria tomou conta da corte, e as investigações tomaram proporções inimagináveis. Acusações foram feitas contra a imperatriz Wei Zifu 衛⼦夫 e seu filho, o príncipe herdeiro Liuju 刘据, e o processo descambou numa guerra civil aberta pelas ruas da capital imperial, que culminou na morte da imperatriz, do príncipe e de Jiang Chong, além de milhares de pessoas. Pouco tempo depois, Wudi descobriu que as concubinas do seu harém faziam avidamente os mais diversos tipos de feitiços para serem favorecidas e prenderem sua atenção. Com a ajuda de bruxos especialmente convocados para debelar esse ataque mágico, foram identificadas as mulheres e outros membros da corte envolvidos no caso, e mais centenas de pessoas – e até mesmo alguns clãs inteiros – foram condenados e executados. Antes de falecer poucos anos depois, Wudi ainda endureceria um pouco mais as leis contra feitiçaria, praticamente afastando-a da esfera imperial durante um bom tempo. Esse episódio ficou bastante conhecido não apenas por suas implicações políticas, mas por revelar a dimensão que a magia possuía no imaginário chinês antigo. Ele foi extensamente analisado por especialistas como Michael Loewe (1974), Hu Xinsheng 胡新⽣ 93 André da Silva Bueno (1997), Xin Deyong ⾟德勇 (2016) e Chen Chao 陈超 (2017), que concordam que a feitiçaria teve aí um papel fundamental na definição das acusações, medos e paranoias que conduziram o processo de investigação do caso. Embora houvesse uma série de outras conspirações envolvidas nessa trama, os atos mágicos serviram como a grande causa e o problema fundamental a ser resolvido. Esse episódio mostra um aspecto pouco conhecido pelos leitores ocidentais sobre a história chinesa: a importância das práticas de feitiçaria [Wushu 巫术]. Como veremos, elas estavam intimamente ligadas às origens da civilização, e compunham um elemento importantíssimo na construção das crenças religiosas. Seria no período Qin 秦 - Han 漢 que uma mudança gradual se imporia na relação da sociedade com a feitiçaria, pelos mais diversos motivos. Nosso objetivo neste breve ensaio será, pois, apresentar um pouco sobre esse tema tão rico nas tradições culturais chinesas, fazendo um pequeno percurso histórico na antiguidade e apresentando algumas de suas práticas mais conhecidas. Origens históricas A feitiçaria é indissociável da história chinesa desde suas origens. Os termos ‘feitiçaria’, ‘magia’ e ‘bruxaria’ [Wushu 巫术] são usados de forma sinonímica, na China, para designar as tradições 94 Fei=çaria e Alquimia na China An=ga mágico-xamânicas herdadas e desenvolvidas desde o neolítico, e que continuam a acompanhar a sociedade até os dias de hoje [um outro termo, ‘Mofa’ 魔法 tem sido usado para indicar ‘mágica’ ou ‘magia’ ocidental, tendo surgido somente no século 19 ou 20 EC, e por isso não será usado aqui]. A historiografia tradicional chinesa produziu trabalhos importantes sobre o tema (LIN, 2016; YANG, 2018), mas a fundação da República em 1912 e depois, a ascensão do Marxismo em 1949 na China continental relegou as pesquisas sobre feitiçaria a um segundo plano. Foi no final do século 20 que estudos como ‘Feitiçaria na dinastia Han’ 漢代的巫者 de Lin Fujin 林富⼠ [1987], ‘Bruxaria Chinesa’ 中国巫术 de Zhang Zichen 张紫晨 (1990) ou ‘História da Feitiçaria Chinesa’ 中国巫术史 de Gao Guofan ⾼国藩 (1999) marcaram uma renovação nas pesquisas sobre as conexões entre as crenças mágicas chinesas e as origens ancestrais da cultura chinesa; mais recentemente, o mesmo Lin Fuji publicou ‘O Mundo dos Feiticeiros’ 巫者的世界 (2016), considerado o mais completo e seminal trabalho sobre o tema na historiografia contemporânea, no qual ele apresentava uma radiografia completa sobre a história e as práticas da bruxaria na China. Dois anos depois, o destacado pensador Li Zehou 李泽厚 publicou um importante estudo sobre as relações entre o desenvolvimento da filosofia chinesa e o xamanismo, 95 André da Silva Bueno ampliando esse campo em novas e férteis direções (LI, 2018; ROSKER, 2021). O que esses trabalhos têm em comum? Eles exploram como a feitiçaria estava na base da organização cultural desde os primórdios da civilização chinesa. Para eles, os xamãs contribuíram significativamente para a construção do imaginário social e religioso, elaborando as primeiras crenças religiosas e explicando suas implicações no cotidiano da comunidade. Obras como O Xamanismo e as técnicas arcaicas do êxtase, de Mircea Eliade (1998), serviram para nortear nossa compreensão epistêmica sobre o papel dos xamãs nas comunidades antigas; mas no caso chinês, elas precisam ser modificadas e ampliadas em certa medida. Li Yujie 李禹阶 (2020) mostrou como o crescente número de achados arqueológicos em tumbas neolíticas revela uma forte identidade entre as lideranças comunitárias e os xamãs, expressa por ornamentos e objetos ritualísticos como joias de jade, ossos e marfins esculpidos, máscaras e cerâmicas com pinturas de cunho mágico. Esses objetos integravam o arsenal do qual o bruxo se valia para desempenhar seu papel junto à sociedade, que se desdobrava em várias atividades diferentes [mas integradas], como veremos agora. Em primeiro lugar, cabia ao xamã a tarefa crucial de manter contato com o mundo espiritual, tanto no nível divinal [manifesta nas forças e símbolos naturais, como a Lua, o Sol, os rios, os ventos, o 96 Fei=çaria e Alquimia na China An=ga trovão, os animais] quanto com as almas desencarnadas dos membros da comunidade. Para isso, ele entrava em transe mediúnico, que podia se dar de duas formas diferentes: saindo do corpo físico para conversar diretamente com os espíritos e divindades, ou deixando que as mesmas assumissem seu corpo para manifestar suas vontades e avisos [usualmente conhecido como ‘possessão’]. Note-se que nesse momento da história chinesa – que os especialistas estimam entre o 8.000 a 7.000 anos atrás – as pessoas escolhidas para serem xamãs manifestavam desde a infância sinais de sensibilidade especial, e iniciavam cedo o treino na tarefa de se tornarem especialistas em artes mágicas, estudando-as ao longo de vários anos. Por isso, não havia distinção de sexo, e tanto mulheres quanto homens podiam ser xamãs, em chinês designados genericamente pelo termo ‘Wu’. Mas continuemos com as atividades dos xamãs: o intercâmbio com o mundo espiritual era fundamental para administrar a vida comunitária. Zhao Rongjun (2004) afirmou que o contato com as divindades servia para garantir a proteção e a continuidade da vida, expressa pelo conhecimento dos ritmos da natureza [a variação das estações, os ciclos dos astros], o desempenho das cerimônias e sacrifícios às divindades, e pela invocação da chuva. Em uma sociedade agrícola, tais conhecimentos eram cruciais para a sobrevivência. No mesmo sentido, as divindades podiam ajudar em processos de cura; elas podiam orientar o uso e a fabricação de remédios e poções a partir de materiais naturais [dando partida a 97 André da Silva Bueno milenar farmacopeia chinesa], ou auxiliar no tratamento de doenças espirituais. Numa delas, por exemplo, a alma de uma pessoa ‘fugia’ para o mundo espiritual, e cabia ao xamã ir buscá-la em transe, guiado pelas divindades e espíritos familiares, trazendo-a novamente para seu próprio corpo. No dia-a-dia, xamãs também interpretavam sonhos, aconselhavam as pessoas em suas dúvidas particulares, davam orientações e agiam como uma espécie de ‘psicanalista’. Quanto aos espíritos que foram membros da comunidade, eles continuavam a supervisionar e auxiliar a vida de suas famílias, desenvolvendo-se aí a base do culto aos ancestrais, que se tornaria um pilar da mentalidade chinesa. Não raramente, eles vinham em sonhos dar avisos, ajudavam no processo de cura das doenças espirituais e auxiliavam os xamãs em suas tarefas. Ocasionalmente, eles podiam interferir [até certo ponto] na vida cotidiana, atuando sobre os indivíduos de modo benéfico ou maléfico, o que mantinha uma relação contínua do mundo material com o espiritual. Isso teria profundas implicações éticas, gradualmente delineando padrões de moralidade e ritualidade que estruturaram as regras sociais (CHU, 2008; ROSKER, 2021). Se xamãs podiam ser curandeiros, também podiam defender a comunidade ou servir a interesses particulares por meio de ações mágicas. Um dos conhecimentos que precisavam dominar era o da produção de venenos e poções mágicas, como filtros amorosos ou 98 Fei=çaria e Alquimia na China An=ga estimulantes para guerreiros. Também realizavam predições por meio dos mais variados oráculos, tais como o transe, sonho, o jogo de ossos, leitura de sinais da natureza, entre muitas outras formas. Além disso, eles expulsavam fantasmas e espíritos malévolos da comunidade, mas também sabiam como convocá-los para prejudicar alguém; e os chineses já conheciam o feitiço de imantação, no qual uma pequeno boneco de madeira [Tongmu ouren 桐⽊偶⼈] era produzido como réplica de alguém para gerar efeitos mágicos indiretos mediante a aplicação de agulhas, facas ou calor [o mesmo que teria sido usado contra Wudi, como citamos no início]. A compreensão dos ciclos naturais lhes permitiria, ainda, realizar feitiços para invocar pragas, pestes, secas, inundações, provocar tempestades ou causar desastres aos inimigos em meio a uma guerra. Como podemos notar, a feitiçaria xamânica abrangia os mais variados aspectos da vida, articulando as crenças em uma existência espiritual após a morte com a condução dos negócios cotidianos. Xamãs contribuíam dentro da comunidade para organizar os costumes, definir conceitos éticos norteadores, estabelecer relações políticas e econômicas e interpretar o imaginário religioso (WU, 1999; LI, 2020, p. 170). Podemos conectar as raízes de várias tradições chinesas com essas expressões da feitiçaria, tal como o culto aos ancestrais, derivado do contato com os espíritos familiares; a tradição fitoterápica herdada das experiências de curandeirismo; ou o pensamento cosmológico, 99 André da Silva Bueno inferido pela gradual construção de sistemas que explicassem o ritmo da natureza. Wu Jindong (2002) defendeu que a feitiçaria seria a base das concepções religiosas e sociais da China antiga, e que teria continuamente servido de alicerce para o imaginário religioso dessa civilização; no mesmo sentido, Li Tiandao (2009) propôs que a estruturação estética dos elementos culturais chineses teria uma profunda conexão com a mundivisão cósmica do xamanismo chinês, estabelecendo padrões simbólicos que se reproduziriam nos mais diversos campos como música, poesia, arte e ciências naturais. Entre o popular e o institucional Em torno do terceiro milênio AEC, o processo de urbanização levou a uma complexificação das relações sociais, com o surgimento de novos grupos, classes e estamentos em ambientes cada vez mais diversos. O surgimento de clãs governantes nessas cidades gradualmente deslocou o espaço de poder do campo para as áreas urbanas, embora a China se mantivesse uma civilização agrária. O desenvolvimento tecnológico deu um grande salto, com um manejo sofisticado de metais, escultura e cerâmica que deu aos chineses, em torno do séc. 17 AEC, a capacidade de produção em massa de vários objetos (LEDDEROSE, 2000, p. 25-50). Os efeitos do surgimento das cidades e da formação de uma classe política reconfigurou a relação da sociedade com os xamãs100 Fei=çaria e Alquimia na China An=ga feiticeiros. Como vimos, a escolha desses especialistas se dava desde a infância a partir de um perfil específico, e esse processo de identificação-iniciação era evidentemente mais fácil de ser realizado dentro de uma comunidade aldeã. Nas cidades, a situação tornara-se diferente. O grande número de pessoas, bem como a formação de um corpo administrativo com bases clânicas, ensejou mudanças nas relações com os especialistas no sagrado. Eles mantiveram um prestígio significativo, e continuaram a ser convocados nas cortes para prestar sua assistência em assuntos mágicos, mas sua capacidade de atuação e influência ficou reduzida, em face do seu número limitado. Um dos resultados mais evidentes desse conjunto de mudanças foi o surgimento da escrita e seu oracular em carapaças de tartaruga e patelas bovinas no período Shang 商朝 [1500-1027 AEC], o que transferiu a capacidade de realizar augúrios para as mãos de nãofeiticeiros (Keightley, 1985). Vários dos conhecimentos xamânicos, como a astronomia, o calendário, o cerimonial e a farmacopeia se disseminaram na sociedade, e passaram por um processo de institucionalização [ainda que lento e relativamente limitado] que transferia, para o governo, a sua manutenção, difusão e reprodução. Ao longo da extensa dinastia Zhou [1027-221 AEC], a feitiçaria cedeu espaço à formação de uma religião oficial governamental, que pretendia conectar as divindades diretamente a classe governante, instituindo uma visão racionalizada da natureza que a compreendia como um sistema ecológico complexo, mas não 101 André da Silva Bueno necessariamente mágico (BUENO, 2014). A atuação de xamãs ficou bastante restrita aos ambientes extra-urbanos, e suas concepções religiosas mantiveram-se mais presentes nos meios popular e rural. Um texto do séc. 5 AEC, o Guoyu 國語, explicava numa breve passagem como o desenvolvimento histórico da civilização chinesa havia dissipado a importância dos xamãs, através da mudança dos padrões religiosos: Antigamente, pessoas e espíritos não se misturavam. Nessa época, havia pessoas que eram sensíveis, determinadas e reverentes, e elas conseguiam alcançar a compreensão do que está acima e do que está abaixo, do que estava longe e do que é profundo. Por essa razão, os espíritos desciam neles. Os possuidores de tais poderes eram, se homens, chamados Xi 覡, e, se mulheres, Wu 巫. Eles cuidavam dos espíritos nos rituais, sacrificavam a eles e ensinavam as coisas espirituais. [...] Assim, o mundo dos espíritos e o mundo das pessoas permaneciam separados. Os espíritos enviavam suas bênçãos sobre as pessoas e aceitavam suas oferendas. Não havia calamidades naturais, e os pedidos eram atendidos. Mas no tempo do famigerado Shaohao 少昊 [imperador que teria reinado no século 26 AEC] os Jiuli 九黎 [tribos antigas semi-lendárias que teriam se tornado célebres por suas práticas de feitiçaria malévola] transformaram a virtude em desordem. Pessoas e espíritos começaram a se misturar, e cada família começou a fazer rituais que até então só os xamãs faziam. As pessoas passaram a desrespeitar os espíritos, e os espíritos passaram a incomodar as pessoas, surgindo aí as calamidades naturais. O sucessor de Shaohao, Zhuanxu 顓頊 [2514 AEC? – 2436 AEC?] [...] encarregou Chong, Governador do Sul, de cuidar dos assuntos do céu para determinar o lugar apropriado dos espíritos, e Li, Governador do Fogo, de cuidar dos assuntos da Terra, a fim de determinar o lugar próprio dos humanos. E é isso que significa ‘cortar a comunicação entre o Céu e a Terra’ (Guoyu 國語, 楚語下 10). 102 Fei=çaria e Alquimia na China An=ga Como podemos notar, o xamãs teriam tido um papel importante numa Era idealizada do passado chinês, mas a corrupção dos costumes e do uso da magia havia feito sua posição declinar, e fora necessário a intervenção de oficiais da corte para instituir o monopólio sobre a conexão com o mundo espiritual, o ato de ‘cortar a comunicação entre o Céu e a Terra’ [Jueditiantong 绝地天通]. Esse conceito se tornaria uma peça chave nas políticas públicas sobre a bruxaria no futuro, como veremos adiante. Mesmo assim, é preciso cuidado em delimitar radicalmente essas diferenças; como podemos perceber, mesmo a cultura ritual urbana derivava, em muitos aspectos, das tradições surgidas na feitiçaria, e a religiosidade chinesa antiga pode ser apropriadamente denominada como ‘Wujiao’ 巫教 [Ensinamento dos Xamãs] ou ‘Shenjiao’ 神教 [Ensinamento dos Espíritos]. O que começaria a mudar então a partir do século 3 AEC, durante o período Qin-Han? A feitiçaria no período Qin e Han A dinastia Qin [221-206 AEC] constituiu um breve, porém importantíssimo, período da história chinesa. Após uma demorada guerra civil, que se arrastou de 481 até 221 AEC [Zhanguo 戰國], o estado de Qin conseguiu reunificar o país em torno de um estado centralizado, imprimindo uma nova ordem burocrática de poder no 103 André da Silva Bueno país. Nesse meio tempo, a China atravessou momentos importantes, como a revolução do pensamento ético-político promovida por pensadores como Laozi ⽼⼦[séc. 6 AEC], Confúcio 孔⼦[551-479 AEC], Mozi 墨⼦[470-391 AEC] e Hanfeizi 韓⾮⼦[280-233 AEC], entre outros, que trouxeram a luz o problema da racionalização filosófica sobre o conhecimento e a existência humana. Esse movimento contribuiu fortemente para a formação de uma intelectualidade atuante, que se distinguia dos xamãs por entender que os problemas do mundo se situavam em um plano imanente, ou seja, voltado para as relações entre os seres humanos e a natureza no plano físico da existência. Ainda que o primeiro monarca de Qin, Qinshi Huangdi 秦始皇 帝 [260-210 AEC] perseguisse as divergências políticas e filosóficas ao seu regime (Bueno, 2015), o princípio fundamental de manter o monopólio de uma razão de estado em suas mãos consolidou-se, e suas políticas públicas se conduziram a partir de um pensamento filosófico legalista. Isso significou um afastamento cada vez maior entre a esfera religiosa tradicional e popular, representada pela feitiçaria, e as instâncias governamentais urbanizadas. Qinshi Huangdi tentou construir para si uma dimensão messiânica, pretendendo reformular-se divinamente no imaginário chinês em um projeto malsucedido, mas que gerou impactos significativos na ideologia de governança (PINES, 2014). Mesmo assim, o soberano Qin não 104 Fei=çaria e Alquimia na China An=ga desprezava a magia de forma alguma, e investiu assiduamente em poções e remédios que pudessem estender sua vida [e que foram provavelmente, a causa de sua morte] (NEEDHAM, 1970). Foi nesse período que o governo imperial começou também a impor legislações mais severas sobre as práticas mágicas, pretendendo controlar seus efeitos e sua influência. Aparentemente, no desejo de controlar a sociedade, Qinshi Huangdi entendia que os feiticeiros poderiam agir de forma sutil contra o Estado e seu aparelho, e por isso, precisavam ser vigiados de perto (DUAN, 2014; YANG, 2018). Essas ações revelam que a elite burocrática imperial, apesar de intelectualizada, continuava a acreditar firmemente na feitiçaria, e é provável que recorressem a ela usualmente. A pressão política e social sobre os feiticeiros pode ter sido responsável pela disseminação mais intensa, nesse período, da magia Gu 蠱, um conjunto de práticas e feitiços malévolos que se tornaram muito comuns na China, como analisado por Li Hongru 李鸿儒, 2021, cujo trabalho explica a cultura do veneno Gu na antiguidade. As evidências da existência de Gu remontam ao período Shang e Zhou, e aparecem pontualmente nos oráculos e textos, mas sem uma explicação mais detalhada (LI, 2021; DU, 2016). É em Qin que começamos a saber no que consistia exatamente a prática Gu: acreditava-se que era possível produzir um veneno terrível a partir da mistura de várias toxinas naturais. Para isso, os magos despejavam em 105 André da Silva Bueno um mesmo recipiente fechado animais peçonhentos como cobras, sapos, aranhas e escorpiões e deixavam que eles exterminassem uns aos outros. No final, o animal que sobrevivesse deveria ser o mais resistente, o mais venenoso, e seu corpo conteria uma mistura letal de toxinas. Sua peçonha [ou seu sangue] seria então retirada, guardada e usada em poções ou administrada contra as possíveis vítimas. Gu podia ser usado para envenenar inimigos e eliminá-los de modo fulminante, mas também podia ser diluído para criar feitiços de amarração amorosa. Supõe-se que o veneno Gu podia ser usado para dominar a mente das pessoas ou criar zumbis/vampiros [Jiangshi 殭 屍] sobre o controle do feiticeiro; para isso, deixava-se que lesmas nascessem dos corpos dos animais mortos na produção da peçonha. Elas eram recolhidas e então buscava-se um meio para que uma delas fosse inserida no corpo da vítima, fosse por alimentos ou por uma cavidade do corpo. Esse parasita, controlado magicamente a distância pelo feiticeiro, passaria a habitar dentro da pessoa infectada, tomando sua consciência e tornando-a submetida à vontade do mestre Gu. Para combater o feitiço Gu, havia dezenas de meios diferentes, que envolviam desde exorcismos aos mais diversos tipos de remédios herbais e minerais, mas o tratamento era considerado difícil e sofrido (YUAN, 1995). É possível que o grande número de parasitoses causadas por alimentos contaminados fosse o principal subsídio para a crença na efetiva ação dos feitiços Gu; seja como for, essa prática se 106 Fei=çaria e Alquimia na China An=ga consolidou como uma das principais ameaças mágicas na civilização chinesa. O potencial de perigo representado pela magia Gu atravessou o período Qin e chegou a dinastia Han [221 AEC – 206 EC], período em que viveu Wudi, o soberano citado na abertura deste capítulo. Embora a dinastia Han fosse muito mais condescendente e liberal do que Qin, em grande parte graças a adoção do Confucionismo com ideologia imperial, a feitiçaria continuou a ser uma preocupação central nas instâncias políticas. Uma legislação severa foi criada e aplicada após o incidente com o imperador, aumentando o controle e a supervisão sobre xamãs e pessoas que praticassem bruxaria (XIN, 2016, p. 122-124). Pessoas que fossem pegas praticando Gu deveriam ser executadas e esquartejadas, e as partes de seu corpo queimadas – descobriu-se, com o tempo, que os praticantes de magia tentavam obter partes desses mesmos corpos para realizar seus encantamentos e poções, por acreditar que eles continham o poder acumulado em vida, o Qi 氣[energia, pneuma] do feiticeiro. Ao mesmo tempo, a burocracia incorporou feiticeiros ‘oficiais’ na corte, especialistas em detectar e evitar ataques mágicos aos soberanos. Apesar deles serem recrutados entre os tradicionais xamãs, a magia continuaria sobrevivendo cada vez mais nos meios rurais, sendo rigorosamente filtrada nas práticas religiosas institucionalizadas. Como Lin Fuji [1987] observou, a teoria ‘Jueditiantong’ [Cortar a comunicação entre o Céu e a Terra] se 107 André da Silva Bueno tornaria o centro de uma mudança nas atitudes estatais em relação à magia, marcando uma nova fase na vivência religiosa dessas crenças. A dinastia Han demarca o mais baixo nível de status da bruxaria na antiguidade chinesa frente a burocracia e as camadas intelectualizadas da sociedade [HU, 1996; MA, 2001]. Wang Chong 王充 [27-100 EC], uma dos críticos mais ativos desse longo período, afirmava que ‘quando se fala de exorcismos e sacrifícios, ele são inúteis; quando se fala de feiticeiros, eles não têm poder; tudo depende do ser humano e de suas virtudes, e não de fantasmas e de sacrifícios’ [Lunheng 論衡, 解除:12]. Tamanho desprestígio não era o único problema com que os feiticeiros teriam que lidar. Eles ainda enfrentariam uma nova ameaça a sua já combalida autoridade: os ‘Fangshi’ ⽅⼠. Da Feitiçaria à Alquimia Os eventos que atingiram a corte Han durante o reinado de Wudi não apontavam somente para um ‘declínio’ da magia, mas envolviam também a ascensão do ‘Fangshi’ ⽅⼠, um novo tipo de especialista mágico que começou a frequentar as altas rodas da sociedade chinesa. Desde a época de Qin, surgira um interesse renovado em métodos para prolongamento da vida e manutenção da saúde. Esse movimento vinha tanto da racionalização intelectual, que ensejou a 108 Fei=çaria e Alquimia na China An=ga construção de uma ciência médica, quanto da preocupação palpável contra conspirações e envenenamentos, uma prática comum nos meios políticos. Enquanto isso, o período de guerra civil que precedera a ascensão de Qin havia lançado ao mundo milhares de pensadores que estavam agora desempregados, com exceção daqueles que haviam se submetido ao regime severo da nova burocracia imperial. Isso significou um importante movimento de disseminação de saberes na sociedade, disponibilizando ao público um imenso acervo de conhecimentos e preocupações filosóficas, que permitiram a uma vasta parcela de pessoas repensar suas relações com o imaginário cultural e religioso. Os Fansghi surgiram na esteira desses acontecimentos. Embora seja difícil rastrear ou construir um perfil social de suas origens, sabemos que eles compartilhavam um conjunto de saberes estruturados de forma muito similar [para isso, podemos consultar o ainda referencial trabalho de De Woskin, 1983]. Não por acaso, os sinólogos ocidentais começaram a traduzir o termo como ‘alquimista’, já que algumas das propostas dos Fangshi iriam coincidir, inclusive, com seus homólogos da Europa. A concepção geral que permeava as ações e ideias desse grupo era de uma racionalização cientificizada das crenças e sistemas propostos pelos xamãs, afastando-as da esfera espiritual para a do mundo material (ELIADE, 1995, p. 63-65). Ou seja: segundo eles, seria possível elaborar medicamentos ou métodos de cuidado com a saúde que não envolvessem relações com os 109 André da Silva Bueno espíritos ou qualquer tipo de compromisso moral. Essa proposta atendia diretamente a uma camada privilegiada da sociedade que pretendia viver mais e melhor, mas sem ter que se preocupar com deveres e ofícios religiosos mais austeros. Os Fangshi ainda elevaram ao máximo o expoente do curandeirismo, afirmando que seria possível obter alguma forma de imortalidade física [Xian 仙] pelos métodos por eles defendidos; e isso, nem mesmo os feiticeiros ou os médicos foram capazes de propor em qualquer momento. Qinshi Huangdi permitiu que alguns Fangshi frequentassem sua intimidade, e experimentou algumas de suas fórmulas. Depois dele, o mundo chinês entrou na dinastia Han mais aberto e tolerante, mas não menos desejoso de soluções miraculosas. O imperador Wudi, de quem já falamos antes, foi também um vívido interessado nos métodos Fangshi, e recebeu a visita de um mestre famoso, Li Shaojun 李少君, que teria explicado a ele alguns dos segredos da longevidade, conforme nos conta Sima Qian 司⾺遷 (145-86 AEC) no capítulo 28 do Shiji 史記; contudo, a morte de Li alguns anos depois deixou no ar a impressão de que os Fangshi poderiam ser charlatões. Parece improvável para nós, hoje, que alguém realmente acreditasse ser possível tornar-se imortal; mas naquela época a ciência ainda engatinhava, e os relatos folclóricos de pessoas que haviam conseguido obter esse privilégio abundavam na literatura. Por exemplo, o livro Biografias dos imortais (Liexian Zhuan 列仙傳), de 110 Fei=çaria e Alquimia na China An=ga Liu Xiang 劉向 (77-6 AEC) trazia uma série de relatos e personagens históricos que teriam conseguido alcançar a longevidade ou a imortalidade através de métodos secretos. Os Fangshi formavam uma espécie de rede iniciática que compartilhava seus conhecimentos com discípulos seletos e vendia suas artes a quem pudesse pagar bem; apesar disso, temos algumas evidências de como funcionavam suas ideias centrais, expressas no primeiro manual de alquimia chinesa, o Cantongqi 參同契 (também chamado de Zhouyi Cantongqi 周易參同 契), de Wei Boyang 魏伯陽 (séc. 3 EC). A diferença marcante entre a feitiçaria Wu e essa mesma alquimia era o ponto de partida teleológico. Como vimos, a feitiçaria entendia uma série de eventos físicos [como as doenças e as dificuldades da vida] atrelados à influência dos espíritos, e somente mediados pela intervenção dos xamãs/bruxas. Os Fangshi agiam de forma diferente; para eles, a maior parte desses problemas poderia ser resolvida pelo uso de técnicas que podiam ser compartilhadas com pessoas sem qualquer habilidade mágica especial, e que se atinham essencialmente à existência material. A busca pela imortalidade era um processo físico, que pretendia reproduzir condições análogas a da natureza. Isso ficava evidente pelo objetivo central dos sistemas Fangshi, a criação de um ‘elixir de ouro’ [Jindan ⾦丹]. Assim como o ouro tinha qualidades especiais, como pureza e durabilidade, pretendia-se 111 André da Silva Bueno uma transmutação do corpo físico em uma condição análoga a do metal precioso. Isso podia ser feito de forma literal, com a ingestão de pó de ouro; mas essa era apenas uma entre centenas de opções que esses especialistas desenvolveram. Para uma descrição mais ampla dos métodos alquímicos, veja meu texto (BUENO, 2022), sobre os quais faremos um breve resumo a seguir. Uma das formas mais comuns de produzir o elixir era a cozedura de elementos herbais e minerais para a produção de pílulas ou poções que conseguissem produzir o efeito de transformação do corpo físico. Ouro, prata, cinábrio e jade eram apenas algumas das muitas substâncias empregadas, além da vasta farmacopeia importada dos xamãs e dos médicos. Uma teoria central no processo de cozimento era tentar produzir um elemento novo que congregasse todos os cinco estados da matéria – água, fogo, metal, madeira e terra – e sua aparência deveria ser, ao final, similar ao dourado. Outra proposta defendida pelos Fangshi era de que a harmonia corporal poderia ser atingida pela combinação equilibrada das essências yin 陰 e yang 陽 através de uma série de exercícios físicos especiais, como as respirações Qigong 氣功, ou pela alquimia sexual, que consistia em uma espécie de cópula técnica entre parceiros com o fim de permutar energias. Uma notável literatura sobre essas técnicas foi encontrada nas tumbas Han de Mawangdui ⾺王堆, e tem sido 112 Fei=çaria e Alquimia na China An=ga continuamente estudada pelos seus aspectos inovadores no campo da educação física, das artes marciais e da sexualidade. Como podemos notar, os métodos alquímicos chineses iam bastante além dos seus congêneres posteriores da Europa medieval, e estiveram na raiz de várias formas e modalidades de conhecimento nas ciências chinesas tradicionais. Um amplo diálogo com áreas como a medicina e a química permitiram que algumas experiências alquímicas fossem incorporadas aos saberes comuns, transformando-se numa importante herança imaterial. Desdobramentos históricos E o que aconteceu com esses Fangshi? Apesar de inúmeros ensaios e tentativas malsucedidas, os alquimistas chineses conseguiam emprestar uma aura de credibilidade a suas ideias, oferecendo-as como uma espécie de ‘magia racional’ ou ‘medicina sutil’, sem exigir contrapartidas morais. É notável pensar que, apesar do seu desejo em afastar-se dos feiticeiros, a alquimia acabou sendo gradualmente absorvida pela religião daoísta, profundamente interessada nos métodos de equilíbrio natural do corpo. Assim, quando Zhang Daoling 张道陵 [34?-156? EC] fundou o primeiro movimento religioso do Daoísmo, o Caminho dos Mestres Celestias [Tianshidao 天師道], a alquimia era já um elemento presente no corpo dos conhecimentos religiosos, junto a uma série de práticas – como exorcismos – 113 André da Silva Bueno emprestados diretamente da feitiçaria (BUENO, 2021, p. 30-33). As crises no século 3 EC que envolveram a dinastia Han não diminuíram o interesse pelas experiências alquímicas, ao contrário: elas se tornaram um assunto profundamente estudado pelos intelectuais das dinastias posteriores, se tornando um importante ramo do conhecimento sagrado da civilização chinesa. Quanto à feitiçaria, apesar de ter cedido muito de seus conhecimentos para a construção de todas essas vertentes religiosas, continuou a sofrer com um esvaziamento sistemático de seu poder por parte das camadas privilegiadas da população. Para muitas pessoas, era profundamente incômoda a sensação de depender de um especialista ‘escolhido pelas divindades’ para resolver problemas que pareciam não ter fundamento na esfera humana. Nas áreas rurais, porém, onde o acesso à escola era reduzido, os xamãs continuaram a desfrutar de certo prestígio, mas sem um papel de liderança como o vivenciado do neolítico até o período Shang. Esses feiticeiros angariaram para si uma função/imagem muito parecida com o que conhecemos aqui no Brasil como o dos curandeiros e benzedeiras, herdando e preservando tradições antigas e conhecimentos da natureza que não foram filtrados pela cultura urbanizada e pela religiosidade institucional. Por outro lado, os estudos de Zhao Xiaohuan 赵晓欢 [2016] e Yang Qianqian 杨千千 (2018) mostram um endurecimento das leis, ao longo da história, contra a bruxaria, colocando-a em um 114 Fei=çaria e Alquimia na China An=ga entrelugar problemático de marginalização e ao mesmo tempo, de poder oculto e latente. Foi no período Han, por fim, que se delineariam esses espaços de bruxos, alquimistas e das doutrinas religiosas no imaginário chinês, fomentando uma estrutura relacional que atravessaria os séculos e teria profundas implicações nas leis e na sociedade. Referências Documentação2 Guoyu 國語. Disponível em: https://ctext.org/guo-yu. Acesso em: 21 jul. 2022. Shiji 史記. Disponível em: https://ctext.org/shiji. Acesso em: 21 jul. 2022. Lunheng 論衡. Disponível em: https://ctext.org/lunheng. Acesso em: 21 jul. 2022. Liexian Zhuan 列仙傳. Disponível em: https://ctext.org/lie-xianzhuan. Acesso em: 21 jul. 2022. Cantongqi 參同契. Disponível em: https://www.goldenelixir.com/ jindan/ctq_index.html. Acesso em: 21 jul. 2022. Bibliografia BUENO, André. Abolir o passado, reinventar a história: a escrita histórica de Hanfeizi na China do século III a.C. História da Historiografia: International Journal of Theory and History of Historiography, Ouro Preto, v. 8, n. 18, p. 29-42, 2015. BUENO, André. 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