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Medidas Protetivas de Urgência e Feminicídio: uma análise das circunstâncias das
mortes de mulheres em processos judiciais de segundo grau
Restraining orders and Femicide: analysis of the circumstances of women's deaths in judicial
proceedings
Carmen Hein de Campos*
Daniel Gasso Colman**
REFERÊNCIA
CAMPOS, Carmen Hein de; COLMAN, Daniel Gasso. Medidas Protetivas de Urgência e Feminicídio: uma
análise das circunstâncias das mortes de mulheres em processos judiciais de segundo grau. Revista da Faculdade
de Direito da UFRGS, Porto Alegre, n. 55, p. 139-156, ago. 2024. DOI: https://doi.org/10.22456/01046594.124948.
RESUMO
O artigo analisa as circunstâncias descritas em processos judiciais julgados pelo Tribunal de Justiça do estado do
Rio Grande do Sul, entre 2017 e 2021, de feminicídios íntimos cometidos contra mulheres que possuíam medidas
protetivas de urgência. O feminicídio foi incluído como qualificadora no Código Penal em 2015 e o primeiro
recurso analisado foi julgado em 2017. A pesquisa é exploratória e documental com abordagem teórico-feminista
e procura responder à pergunta sobre as circunstâncias em que mulheres (quase) morrem, mesmo tendo medida
protetiva de urgência. A análise identificou que a maioria dos crimes foi praticada com arma branca, na casa das
vítimas, por sentimento de posse ou inconformidade com o fim do relacionamento, com violência exacerbada e
crueldade e na presença de filhos. A premeditação, o elemento surpresa e a ausência de avaliação de risco
aparecem como evidências de que a simples concessão da medida protetiva não impede o crime. Essas evidências
devem ser consideradas pelas autoridades públicas para a elaboração de políticas de prevenção que devem incluir
avaliação de risco e monitoramento das medidas protetivas.
PALAVRAS-CHAVE
Medidas protetivas de urgência; feminicídio; circunstâncias das mortes.
ABSTRACT
The article analyzes the circumstances described in court cases from the Rio Grande do Sul State Court of Justice
between 2017 and 2021, in which intimate feminicide was committed against women who were under restraining
orders. Feminicide was included as a qualifier in the Criminal Code in 2015 and the first appeal analyzed was
heard in 2017. The research is exploratory and documental with a theoretical-feminist approach and seeks to
answer the question regarding the circumstances in which women (almost) die, even though they have these
urgent protective measures. The analysis identified that most of the crimes were committed using a cold weapon,
in the victims’ homes, arising out of feelings of possession or dissatisfaction at the end of the relationship, with
exacerbated violence and cruelty, and in the presence of their children. The premeditation, element of surprise,
and absence of risk assessment are evidence that the simple granting of a protective measure does not prevent
the crime. This evidence should be considered by public authorities in the development of prevention policies that
should include risk assessment and the monitoring of restraining orders.
KEYWORDS
Doutora em Ciências Criminais pela PUCRS (2013), Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC,1998) e pela Universidade de Toronto (Programa de Direitos Reprodutivos, 2007). Graduada em
Direito pela Universidade Federal de Pelotas/RS (UFPEL, 1988). É professora visitante no Programa de Mestrado
em Direitos Sociais da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e professora colaborada do Programa de PósGraduação em Direito do Centro Autônomo do Brasil - UniBrasil. http://lattes.cnpq.br/3038625843658528.
**
Bacharel em Direito - UniRitter, pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal.
*
CAMPOS, Carmen Hein de; COLMAN, Daniel Gasso. Medidas Protetivas de Urgência e
Feminicídio: uma análise das circunstâncias das mortes de mulheres em processos judiciais de
segundo grau. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, n. 55, p. 139-156, ago.
2024. ISSN: 0104-6594. E-ISSN: 2595-6884. DOI: https://doi.org/10.22456/0104-6594.124948.
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Restraining orders; feminicide; circumstances of the deaths.
SUMÁRIO
1. Introdução. 2. Femicídio e Feminicídio. 2.1 A qualificadora do feminicídio íntimo 3. A pesquisa e seus achados.
3.1 Os sinais de um crime anunciado 3.2 Motivação do crime: posse e controle 3.3 Violência anterior e tempo da
separação 3.4 Tipo de armas e relação das vítimas com os agressores 3.5 Presença de filhos e filhas 3.6 Tempo
de convivência e idade das vítimas 3.7 O elemento surpresa, premeditação, dissimulação e crueldade. 3.8 O que
os processos nos dizem sobre as medidas protetivas e os feminicídios? 4. Considerações finais. Referências.
Dados da publicação.
1 INTRODUÇÃO
O feminicídio praticado por parceiro íntimo está associado à relação de desigualdade
nas relações de gênero e é um contínuo da violência doméstica, pois a morte é o extremo de
uma violência que começa cedo nas relações íntimas de afeto. Trata-se de uma realidade
presente na vida de muitas mulheres. Em 2020 aconteceram 1.350 feminicídios no país, sendo
que 74,7% das vítimas tinham entre 18 e 44 anos, foram mortas por (ex)companheiros em
81,5% dos casos e 61,8% delas eram negras. A maior parte dos crimes foi cometida com arma
branca (55,1%) (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2021).
Os dados demonstram que a grande maioria dos feminicídios registrados é cometida por
(ex)companheiros, isto é, são feminicídios íntimos ou praticados em circunstância de violência
doméstica, que possivelmente poderiam ter sido evitados se houvesse análise de risco e se
políticas públicas de prevenção estivessem disponíveis para mulheres mais vulneráveis.
No Rio Grande do Sul, desde 2016, quando a Secretaria de Segurança Pública do estado
(SSP/RS) começou a disponibilizar esses dados, verifica-se uma tendência crescente no número
de mortes de mulheres.
Tabela 1: Feminicídios no Rio Grande do Sul
Ano
Tentado
Consumado
2021
257
95
2020
316
80
2019
359
97
2018
355
116
2017
322
83
2016
263
96
Fonte: Secretaria de Segurança Pública do Rio Grande do Sul, 2022
CAMPOS, Carmen Hein de; COLMAN, Daniel Gasso. Medidas Protetivas de Urgência e
Feminicídio: uma análise das circunstâncias das mortes de mulheres em processos judiciais de
segundo grau. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, n. 55, p. 139-156, ago.
2024. ISSN: 0104-6594. E-ISSN: 2595-6884. DOI: https://doi.org/10.22456/0104-6594.124948.
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Em 2021, em plena pandemia no RS, enquanto os crimes violentos, de modo geral,
diminuíram, os feminicídios aumentaram em 225%, comparativamente ao mesmo mês do ano
anterior. Em agosto de 2020 foram registrados 4 feminicídios consumados e 27 tentados e em
agosto de 2021, o número de feminicídios consumados saltou para 14 enquanto que as tentativas
caíram de 27 para 22 (RIO GRANDE DO SUL, 2022). A permanência das mulheres em casa
durante a pandemia pode explicar a alta dos feminicídios.
Muitas mulheres que foram vítimas de feminicídio possuíam medidas protetivas de
urgência (MPUs) previstas na lei Maria da Penha. No entanto, mesmo com medidas protetivas,
houve a morte ou a sua tentativa. Diante disso, este artigo indaga em que circunstâncias as
mulheres que possuíam MPUs foram mortas ou quase mortas.
O objetivo do artigo é, portanto, analisar as circunstâncias em que ocorreram
feminicídios, consumados e tentados entre 2015 e 2021, julgados pelo Tribunal de Justiça do
estado do Rio Grande do Sul (TJRS) nos quais as vítimas possuíam medidas protetivas de
urgência. O lapso temporal da pesquisa (2015 a 2021) considera o fato de que a qualificadora
do feminicídio foi incluída no Código Penal em 2015.
A maioria dos feminicídios aconteceu no interior do estado e não na capital. Entre anos
de 2016 a 2021, a soma resultante dos feminicídios consumados na capital Porto Alegre foi de
63, e de tentados, 420. Já no interior, os feminicídios consumados totalizaram 504 e os tentados
1.452 (RIO GRANDE DO SUL, 2022). A interiorização dos feminicídios é um fato que
dificulta a realização de pesquisas, pois a busca de processos em primeiro grau demandaria
percorrer diversos municípios na busca dos processos originais. Esse é um aspecto limitador
desta pesquisa. Por isso, a análise aqui proposta foi feita em processos que tramitaram no
segundo grau (Tribunal de Justiça do estado do Rio Grande do Sul) acessíveis por meio digital.
Para tanto, foi realizada busca no endereço eletrônico do TJRS com os descritores "feminicídio;
medidas protetivas de urgência'', em dois momentos: o primeiro, em 21 de setembro de 2021 e
o segundo em 15 de maio de 2022. Foram encontradas 122 decisões cujos fatos ocorreram entre
2015 e 2021, que, em sua maioria, referem-se a julgamentos de Habeas Corpus, Recursos em
Sentido Estrito e Agravos de Execução Penal. Considerando o foco da pesquisa, elegeu-se, para
análise, decisões proferidas em Recursos em Sentido Estrito (RSE), pois esses recursos
forneciam mais informações sobre as circunstâncias e o contexto das mortes. Feito esse filtro
inicial, a amostra totalizou 24 decisões proferidas entre 2017 a 2021. Dessas, foram analisadas
19, pois uma estava em segredo de justiça e as demais referiam-se a medidas protetivas ou seu
descumprimento, sem que houvesse o cometimento do feminicídio em sua modalidade tentada
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Feminicídio: uma análise das circunstâncias das mortes de mulheres em processos judiciais de
segundo grau. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, n. 55, p. 139-156, ago.
2024. ISSN: 0104-6594. E-ISSN: 2595-6884. DOI: https://doi.org/10.22456/0104-6594.124948.
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ou consumada. Para facilitar a comparação, as decisões foram catalogadas numericamente.
Sabe-se que decisões de segundo grau são em número inferior às de primeiro grau, pois nem
todos os réus recorrem, ou nem sempre o processo está disponível, pois pode estar com segredo
de justiça decretado, ou pode não estar ainda disponibilizado na página eletrônica do tribunal.
Desse modo, as decisões de segundo grau que foram objeto de análise representam uma
pequena amostra dos crimes de feminicídio em grau de recurso. Metodologicamente, trata-se
de pesquisa exploratória e documental com abordagem crítico-feminista.
A análise considerou as variáveis de crime tentado ou consumado, relação entre as partes
(matrimônio, união estável, namoro), instrumento utilizado para efetuar o feminicídio ou
tentativa (arma branca, arma de fogo ou outro meio), o tempo da relação entre as partes, o local
do crime (residência, via pública ou trabalho), presença de filhos ou filhas e motivação do
crime.
Aspecto que chama a atenção é que não foi possível verificar nas decisões analisadas, a
raça/etnia das mulheres, embora as pesquisas indiquem que a maioria dos feminicídios é
cometido contra mulheres negras. A ausência desse marcador revela que há uma invisibilidade
que começa no boletim de ocorrência e prossegue no inquérito policial e é reproduzida nas
decisões judiciais, demonstrando como o racismo estrutural e institucional opera nas
instituições do sistema de justiça. A ausência dessa variável impossibilita traçar um perfil
completo das vítimas e agressores.
O artigo está dividido em duas partes, além da introdução e das considerações finais. Na
primeira parte, discute-se o feminicídio e sua tipificação e na segunda, os achados da pesquisa.
2 FEMICÍDIO E FEMINICÍDIO
Os termos femicídio e feminicídio têm origem sociológica diferenciada. O primeiro foi
utilizado por Diana Russel (1976) para referir a morte de mulheres por homens pelo fato de
serem mulheres como uma alternativa feminista ao termo homicídio que invisibiliza aquele
crime letal. Posteriormente, a mesma autora e Joan Radford (1992) redefinem o termo femicídio
como o fim extremo de um continuum de terror contra as mulheres incluindo diversos abusos
físicos e psicológicos, tais como o estupro, a tortura, a escravidão sexual (particularmente a
prostituição), o incesto, o abuso sexual contra crianças, agressão física e sexual, operações
ginecológicas desnecessárias, assédio sexual, mutilação genital, heterossexualidade forçada,
esterilização forçada, maternidade forçada (pela criminalização do aborto), cirurgia cosmética
CAMPOS, Carmen Hein de; COLMAN, Daniel Gasso. Medidas Protetivas de Urgência e
Feminicídio: uma análise das circunstâncias das mortes de mulheres em processos judiciais de
segundo grau. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, n. 55, p. 139-156, ago.
2024. ISSN: 0104-6594. E-ISSN: 2595-6884. DOI: https://doi.org/10.22456/0104-6594.124948.
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e outras cirurgias estéticas (CAMPOS, 2015, p. 105). O femicídio é então uma forma de
terrorismo que resulta em morte. No entendimento de Ana Carcedo e Montserrat Sargot (2002),
o femicídio1 é o assassinato de mulheres por razões de gênero. A feminista mexicana Marcela
Lagarde ao afirmar que o termo femicidio (femicide) em espanhol significaria apenas morte de
mulheres, cunhou o termo feminicídio para referir as mortes de mulheres por razões de gênero
como crimes de Estado. Sustenta Lagarde que ocorre feminicídio quando há conivência das
autoridades, impunidade e omissão do estado em proporcionar segurança para as mulheres.
Nesse sentido, para a autora o feminicídio é um crime de Estado (LAGARDE, 2005; TOLEDO,
2009; CAMPOS, 2015).
Nas legislações da América Latina, os termos femicídio, feminicídio ou homicídio
agravado por razões de gênero são utilizados como sinônimos para referir o mesmo fenômeno:
a morte de mulheres por razões de gênero. Portanto, não há distinção teórica, o que varia é a
tipificação em cada país como tipo penal autônomo, qualificadora, legislação especial
(VASQUEZ, 2009; MACHADO, 2015; ONU, 2020).
No Brasil, o debate em torno das mortes de mulheres está na agenda feminista desde a
década de 1970 e ganhou os holofotes da imprensa com o assassinato de Ângela Diniz, uma
mulher branca, de camada alta que foi morta por seu ex-companheiro, Doca Street, que não
aceitava o fim do relacionamento e o comportamento “liberal” de Ângela. A defesa do agressor
utilizou a tese da “legítima defesa da honra masculina” na tentativa de absolver o homicida, que
foi condenado a pena de dois anos de detenção, com direito a sursis (PAULO FILHO, 2019),
gerando inúmeros protestos feministas.
Trinta anos depois, a criação da Lei Maria da Penha (lei 11.340/2006) representou uma
importante alteração legal no tratamento da violência baseada no gênero nas relações
domésticas, familiares e íntimas de afeto. E, em 2015, a qualificadora do feminicídio ingressa
no sistema jurídico brasileiro. O projeto de lei constou no Relatório Final da Comissão
Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) que investigou a violência contra as mulheres no Brasil
(CAMPOS, 2015). O relatório foi aprovado em 2013 e o projeto de lei tramitou por dois anos,
sendo aprovado em 2015 (lei 13.104/2015).
O feminicídio/femicídio é um crime de gênero, pois desnuda a violência sistemática e
extrema contra as mulheres, fruto da discriminação, opressão e desigualdade entre homens e
1
Utiliza-se o termo femicídio porque é como as autoras mencionadas o definem.
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mulheres. É, portanto, dentro de uma ordem de gênero patriarcal que o femicídio/feminicídio
deve ser compreendido.
2.1 A qualificadora do feminicídio íntimo
O feminicídio, assim como o homicídio, é um crime doloso contra a vida, sendo julgado
pelo tribunal do júri (art. 5º, inc. XXXVIII, “d”, da Constituição Federal de 1988). Nos casos
de condenação em que há recurso por parte da defesa do réu ou do ministério público, o
julgamento é realizado pelos tribunais de justiça. Os condenados podem, dentre outros motivos,
apelar para aguardar o julgamento definitivo em liberdade ou contra a pronúncia ou a aplicação
da qualificadora.
O feminicídio é uma qualificadora do crime de homicídio, sendo definido como a morte
por razões do sexo feminino nas circunstâncias de violência doméstica, menosprezo ou
discriminação à condição de mulher (art. 121, VI § 2o, I e II). Embora a qualificadora tenha
denominação específica, o feminicídio não constitui um tipo penal autônomo. A pena prevista,
reclusão de 12 a 30 anos.
Conforme a norma penal, há razões de condição do sexo feminino quando o crime
envolver violência doméstica (inciso I), menosprezo ou discriminação à condição do sexo
feminino (inciso II). Segundo o § 7°, a pena pode ser aumentada de 1/3 (um terço) até a metade
se o crime for praticado, contra pessoa menor de 14 (catorze) anos, maior de 60 (sessenta) anos
(inciso I), com deficiência ou portadora de doenças degenerativas que acarretem condição
limitante ou de vulnerabilidade física ou mental (inciso II), na presença física ou virtual de
descendente ou de ascendente da vítima (inciso III) e em descumprimento de medidas protetivas
de urgência previstas no artigo 22 da lei Maria da Penha (inciso IV) (BRASIL, 2006).
A circunstância da violência doméstica caracteriza tanto o feminicídio íntimo, aquele
praticado por parceiro íntimo (CARCEDO; SAGOT, 2002) quanto as mortes nas relações
domésticas ou familiares, conforme a definição de violência doméstica prevista na lei Maria da
Penha.
Embora os termos femicídio e feminicídio tenham se originado de perspectivas teóricas
distintas e hoje tais diferenças sejam irrelevantes, é importante destacar que alguns autores
brasileiros entendem que a caracterização do feminicídio doméstico, familiar ou íntimo exige
menosprezo ou discriminação à condição de mulher, do contrário a situação seria de femicídio
(CUNHA, 2020, p.3). Consideramos essa perspectiva incorreta, pois traça uma distinção entre
CAMPOS, Carmen Hein de; COLMAN, Daniel Gasso. Medidas Protetivas de Urgência e
Feminicídio: uma análise das circunstâncias das mortes de mulheres em processos judiciais de
segundo grau. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, n. 55, p. 139-156, ago.
2024. ISSN: 0104-6594. E-ISSN: 2595-6884. DOI: https://doi.org/10.22456/0104-6594.124948.
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femicídio e feminicídio que a lei não faz e que não se justifica. O feminicídio íntimo, doméstico
ou familiar remete ao conceito de violência doméstica e familiar previsto na lei Maria da Penha
como qualquer ação ou omissão baseada no gênero que cause morte (...) (art.5o) que ocorra na
unidade doméstica, na família ou nas relações íntimas de afeto (I, II, III). Desta forma, o
conceito de violência baseada no gênero no âmbito dessas três relações (domésticas, familiares
e íntimas de afeto) não exige menosprezo ou discriminação, porque, nos termos da Convenção
sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), a
violência é um ato de discriminação (art. 1o, CEDAW). Portanto, a discriminação é intrínseca
ao ato de violência e não dependente dela. O entendimento contrário exige comprovar que a
violência doméstica decorreu de discriminação ou menosprezo. A exigência dessa
comprovação revela uma incompreensão sobre a violência de gênero como estrutural, isto é,
enraizada nas relações sociais hierárquicas. A violência doméstica, familiar e nas relações
íntima de afeto é um ato de discriminação estrutural contra as mulheres porque pressupõe que
as mulheres devam comportar-se conforme as exigências masculinas. Além disso, ao atrelar o
inciso I (violência doméstica) ao inciso II (discriminação ou menosprezo) corre-se o risco de
limitar a possibilidade da ocorrência de feminicídio por discriminação ou menosprezo não
vinculado à violência doméstica, como por exemplo, a morte de uma mulher trans
(transfeminicídio) ou de uma mulher lésbica (lesbocídio) porque o agressor não aceita a
identidade de gênero ou a orientação sexual.
Decorre do conceito de gênero e de violência baseada no gênero presentes na Lei Maria
da Penha, na Convenção CEDAW e em sua Recomendação Geral 33, a aplicabilidade da lei
aos casos de feminicídio contra mulheres trans. O transfeminicídio é um feminicídio cometido
contra mulheres trans cuja motivação é o desprezo ou a discriminação contra um corpo
femininizado. Há um ódio contra o corpo trans (BENTO, 2018). Esses feminicídios podem
ocorrer nas relações íntimas de afeto, na unidade doméstica ou na família, mas também fora
dessas relações. Os transfeminicídios, via de regra, ocorrem em via pública e em geral, não são
classificados como (trans)feminicídio (BENTO, 2018) por incompreensão sobre o conceito de
gênero e violência baseada no gênero.
Mas também é feminicídio a morte de uma mulher por um colega de trabalho porque
ele não aceita que ela esteja em uma posição superior à dele (discriminação). Há menosprezo à
mulher, quando ela é estuprada e morta. Ou ainda, quando uma mulher é morta e seu corpo é
alvo de crueldade, seus seios são queimados, sua face é desfigurada, etc.
Nesse sentido, a qualificadora do feminicídio tem por objeto nomear as mortes de
CAMPOS, Carmen Hein de; COLMAN, Daniel Gasso. Medidas Protetivas de Urgência e
Feminicídio: uma análise das circunstâncias das mortes de mulheres em processos judiciais de
segundo grau. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, n. 55, p. 139-156, ago.
2024. ISSN: 0104-6594. E-ISSN: 2595-6884. DOI: https://doi.org/10.22456/0104-6594.124948.
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mulheres (CAMPOS, 2015; MACHADO, 2020), explicitando as especificidades que são
decorrentes da desigualdade de gênero, mas ocultadas no termo homicídio.
Os casos de feminicídio examinados neste artigo envolvem os feminicídios íntimos, ou
seja, os praticados nas relações íntimas de afeto. Desse modo, são excluídos da análise os
ocorridos na família ou na unidade doméstica e nas circunstâncias de discriminação ou
menosprezo. Portanto, o recorte da pesquisa é específico, pois procura entender como as
medidas protetivas previstas na lei Maria da Penha não foram suficientes para proteger as
mulheres de seus (ex-)companheiros, (ex)maridos, (ex)namorados.
O artigo não examina o mérito das decisões, diferentemente da análise processual de
feminicídios realizada por Adriana Mello (2018), embora se aproxime dessa quanto à dinâmica
dos fatos. Tampouco discute a pena imposta ou as circunstâncias agravantes, pois interessa
observar as circunstâncias em que as mortes ocorreram considerando como variáveis o tipo de
arma utilizada, o tempo existente da relação, a presença de filhas ou filhos, dentre outras.
A análise corrobora os achados de pesquisas como a do Fórum Brasileiro de Segurança
Pública cuja fonte é o Sistema de Mortalidade (Ministério da Saúde) e o sistema de segurança
pública e também as que investigam fluxos processuais (FERREIRA, 2020; MELLO, 2018;
MACHADO, 2015). No entanto, a pesquisa inova ao olhar especificamente os feminicídios
tentados e consumados de mulheres com medidas protetivas.
3 RESULTADOS ENCONTRADOS E DISCUSSÃO
A pesquisa envolveu a análise de 19 decisões judiciais, sendo 13 de feminicídios
tentados, o que corresponde a 68,42% e 06 de feminicídios consumados, perfazendo 35,29%
dos casos. A maioria dos feminicídios (13) ocorreu em municípios do interior do estado e cinco
deles, na capital (Porto Alegre). Esse achado está em conformidade com as estatísticas da
segurança pública que apontam uma maioria de feminicídios tentado e praticados em
municípios do interior do estado. A seguir, discutimos os achados da pesquisa conforme as
seguintes aspectos: a) motivação do crime; b) violência anterior e tempo da separação; c) tipo
de armas utilizadas e a relação da vítima com o agressor; d) presença de filhas ou filhos; e)
tempo de convivência e idade das vítimas;
CAMPOS, Carmen Hein de; COLMAN, Daniel Gasso. Medidas Protetivas de Urgência e
Feminicídio: uma análise das circunstâncias das mortes de mulheres em processos judiciais de
segundo grau. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, n. 55, p. 139-156, ago.
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3.1 Os sinais de um crime anunciado, previsível e evitável
O feminicídio como continuum da violência doméstica contra as mulheres evidencia
que por trás da violência letal há um histórico anterior de violências. Em geral, o feminicídio
ocorre após decorrido um tempo curto de separação. O agressor manifesta sua intenção de matar
a mulher quando diz que não aceita o fim do relacionamento. Frases como “se não for minha
não será de ninguém”, “tirar o que mais gosta”, que irá matar a ela e seus familiares, “hoje você
não sai viva daqui”, anunciam a morte.
Esses sinais denunciam o risco de um feminicídio. Prestar atenção e avaliar esse risco é
um dever das instituições do estado para prevenir o desfecho fatal. Para as mulheres,
compreender que estão um risco é um aprendizado importante para não serem surpreendidas
com a ação feminicida. O feminicídio íntimo é, portanto, anunciado (BRAZÃO, 2009),
previsível (MACHADO, 2015) e evitável (FERREIRA, 2020; SÁ, 2021).
3.2 Motivação do crime: posse e controle
No que se refere à motivação dos crimes, a maior parte refere-se a não aceitação da
separação ou do rompimento da relação. A insatisfação frente ao fim do relacionamento
totalizou 11 casos (1, 2, 3, 6, 7, 8, 9, 10, 12, 13, 15), o que correspondeu a 57,89% deles. Em
um caso, a inconformidade foi com a não aceitação da partilha de bens (caso 14) e em outro,
pelo fato da vítima não ter temperado a salada do jeito que ele gostava (caso 11).
A não aceitação da separação revela o sentimento de posse e desejo de controle sobre o
corpo feminino. Ou seja, o machismo escancarado que não aceita a autonomia feminina,
especialmente no que se refere ao exercício da sexualidade. No caso 7, por exemplo, o autor
não aceitava o fim do relacionamento e proferia ameaças contra a vítima, dizendo “Se não ficar
comigo não vai ficar com ninguém”.
Na data da tentativa de feminicídio, a vítima que tinha MPU, teria concordado que o réu
fosse a sua casa para buscar seus pertences, momento em que foi surpreendida com os golpes
de faca. No momento do crime, ele disse que iria tirar dela “o que mais gosta” (referindo-se à
filha). Ela reagiu e ele desferiu uma facada contra ela e depois outras facadas no abdômen e
braço. A filha de 03 anos presenciou o crime. A mãe da vítima ouviu os gritos da filha e saiu
em seu socorro. A vítima foi hospitalizada e ficou sem poder trabalhar por dois meses.
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Feminicídio: uma análise das circunstâncias das mortes de mulheres em processos judiciais de
segundo grau. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, n. 55, p. 139-156, ago.
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Em outro caso (11) também com histórico de violência e uma série de agressões, o
agressor discutiu com a vítima porque ela não havia temperado a salada do jeito que ele gostava,
xingando-a de vagabunda e ameaçando-a de morte. Voltou à tarde e disse “hoje você não sai
viva daqui”. Ela correu para a rua e foi alcançada pelo acusado que a derrubou e desferiu os
golpes de faca, e quando caída golpeou-a mais ainda. Os primeiros golpes foram efetuados no
interior da residência da vítima que, mesmo ferida, fugiu correndo em direção à rua, local em
que foi alcançada e agarrada pelo denunciado, que a segurou pelo braço e desferiu novos golpes
de faca, agora, na região do tórax.
A vítima já tinha solicitado MPUs um ano antes, mas o processo foi arquivado por
renúncia à representação. O crime foi presenciado pelos dois filhos da vítima de 16 e 07 anos
de idade.
3.3 Violência anterior e tempo da separação
Em todos os casos (100%) havia violência anterior. Como afirmamos, o feminicídio é
um contínuo da violência doméstica. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos no Caso
Maria da Penha v Brasil afirmou que há um padrão de violência sistemática contra mulheres
no país e uma negligência das autoridades no dever de devida diligência para a prevenção dessa
violência.
O tempo em que as vítimas estavam separadas dos réus variou de 3 meses a 1 ano. Ou
seja, o pouco tempo em que as vítimas estavam separadas do agressor aparece como elemento
importante de avaliação de risco.
No caso 6, a vítima conviveu com o agressor durante 28 anos e sempre era agredida.
Quando se separou, o agressor não se confirmou com o fim do relacionamento e manifestava
sentimento de posse, dizendo que a vítima não ficaria com ninguém. Sempre afirmava que “o
dia que nós se separar [sic], tu não vai ficar com mais ninguém, porque tu morre”. No dia do
fato, ele tentou esfaquear a ex-companheira e seu namorado. Entrou na residência da vítima e
desferiu uma facada no abdômen do namorado e um golpe de faca na vítima que atingiu o
antebraço, depois nova facada no namorado. Depois, atentou contra o filho dele e da vítima.
Ela tinha MPU proibindo aproximação e contato.
Em outro caso (caso 4), a relação conjugal durou 31 anos e ela sempre foi agredida.
Houve uma tentativa de atropelamento e só não houve a consumação do feminicídio porque ela
percebeu e se jogou na calçada, ficando lesionada. Ela sofria ameaças porque tinha uma medida
CAMPOS, Carmen Hein de; COLMAN, Daniel Gasso. Medidas Protetivas de Urgência e
Feminicídio: uma análise das circunstâncias das mortes de mulheres em processos judiciais de
segundo grau. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, n. 55, p. 139-156, ago.
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protetiva contra o agressor em virtude de ameaças e lesões corporais anteriores. Alguns dias
antes da tentativa de feminicídio ela disse que “não iria retirar a queixa”. O casal frequentava
igrejas diferentes, o que dava origem a brigas. No dia do fato, ela discutiu com o investigado,
pois ele havia pego R$ 500,00 (quinhentos reais) destinados à compra de medicamentos e doado
para a igreja. Durante a discussão foi agredida com socos e tapas e, por arremessos vasos de
barro e de porcelana que lhe causaram diversas lesões no rosto e na cabeça. Em razão disso,
procurou a autoridade policial para registrar ocorrência e pedir a concessão de medidas
protetivas. Por sua vez, o agressor afirmou que a vítima sofria de problemas psicológicos e tinha
surtos, o que originava autolesões.
No caso 14, de feminicídio consumado, a motivação foi a insatisfação do agressor com
a partilha dos bens. Ele arrastou a vítima pelos cabelos até o quarto e a esfaqueou na região do
pescoço. Ela tinha uma MPU de afastamento do lar que foi flexibilizada pelo judiciário para
que o agressor retirasse seus pertences da casa. O réu não aceitava a partilha de bens pactuada
em audiência de conciliação na vara de família, pois não queria que a mulher ficasse com a
casa. Argumentou que agiu em legítima defesa e entrou em luta corporal com a vítima. O pai
da vítima afirmou que o réu enganava a vítima e ajuizou ação de divórcio. A mãe dela disse
que a vítima era agredida pelo réu e que ele havia tentado vender a casa de forma oculta. Foram
casados por 03 anos.
No caso 18, a vítima foi agredida com uma serra e houve tentativa de feminicídio por
asfixia, que só não se consumou porque a filha de 11 anos chamou a Polícia Militar. Havia
MPU de afastamento do lar e o agressor não poderia manter nenhum tipo de contato com a
vítima e só poderia frequentar a casa nos dias de visita, conforme regulamentação da Vara de
Família.
3.4 Tipo de armas e relação das vítimas com os agressores
Dos 19 crimes, 12 foram cometidos por arma branca (faca, serra, barra de ferro), o que
corresponde a 63,15% dos casos. Esse achado está de acordo com outras pesquisas (SÁ, 202;
FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2020; MELLO, 2020; MACHADO,
2015;)
A maioria dos casos foi cometida contra ex-companheiras (10 dos 19 casos), o que
corresponde a 58,8%; 4 deles contra esposas (23,52%), um contra ex-namorada e dois contra
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companheiras. Esse fato também é corroborado pelas pesquisas já mencionadas e indica que a
separação é um ‘gatilho’ para o feminicídio, face à não aceitação do rompimento da relação.
No caso 15, a vítima e o agressor estavam separados porque ele não aceitava o fim do
relacionamento e que a vítima trabalhasse fora de casa porque “os filhos eram pequenos”. Ela
havia arrumado um emprego e ele não aceitava, razão pela qual ela rompeu o relacionamento.
Ele então passou a ameaçá-la, inclusive de não ver as crianças caso não reatasse com ele. O
agressor aproximou-se, de carro, da casa da vítima que estava na porta e atirou contra ela. Só
não a matou porque errou o tiro. O casal teve um relacionamento de 20 anos. Havia MPU de
afastamento do lar.
3.5 Presença de filhos e filhas
A maioria dos crimes foi cometida na presença de crianças e adolescentes. Em 10 casos,
o crime foi cometido na frente de filhos ou filhas do casal, o que corresponde a 52,63%. A
presença ou não de crianças na cena do crime não foi uma preocupação dos agressores. Esse
achado confronta o encontrado por Adriana Mello (2020) em processos judiciais do Rio de
Janeiro.
No caso 3, o agressor invadiu a casa e dissimulou que queria conversar. A vítima tinha
medidas protetivas para que o agressor não se aproximasse dela e da casa, mas mesmo
separados há seis meses, o agressor durante a madrugada invadiu a residência da vítima. Estava
inconformado com a separação e com o fato de que a vítima havia registrado ocorrência e ter
solicitado medida protetiva, passando a agir de forma mais agressiva e controladora. A filha de
7 anos do casal estava dormindo na mesma cama em que a vítima foi asfixiada e morta.
No caso 20, o agressor era dependente químico e vendia pertences para sustentar o vício
com drogas ilícitas. Houve uma discussão relacionada à alienação de objetos de propriedade do
casal pelo agressor. A vítima solicitou que o companheiro deixasse a moradia. Nesse momento,
ele teria tomado nas mãos o cabo do carregador do celular e tentado enrolá-lo no pescoço da
companheira. Ela se desvencilhou e ele advertiu que voltaria para matá-la. A filha do casal de
3 anos de idade do casal presenciou o fato. O casal esteve junto por 6 anos.
No caso 9, a filha de 11 anos do casal presenciou a morte da mãe por golpes de facão e
ficou com problemas psicológicos.
No caso 11, o agressor discutiu com a vítima porque ela não havia temperado a salada
do jeito que ele gostava, xingando-a de vagabunda e ameaçando-a de morte. Ele saiu e voltou
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à tarde e disse “hoje você não sai viva daqui”. Os primeiros golpes foram efetuados no interior
da residência da vítima, que, mesmo ferida, correu para a rua e foi alcançada pelo acusado que
a derrubou e desferiu outros golpes de faca, e quando caída golpeou-a mais ainda, atingindo as
regiões torácica, mamária e costas.
A vítima já tinha solicitado medidas protetivas um ano antes e o processo foi arquivado
por renúncia à representação. O crime foi presenciado pelos dois filhos da vítima, de 16 e 07
anos de idade.
3.6 Tempo de convivência e idade das vítimas
Em sete casos, a convivência entre as vítimas e os agressores foi longa, variando de 3
anos a 31 anos, como por exemplo, no caso 4. No caso 12, foram 28 anos. No caso 15, o
relacionamento durou 20 anos e no caso 8, a relação foi de 16 anos. A agressão em
relacionamento mais curto foi contra ex-namorada, após 3 meses de relacionamento.
A longa permanência em uma relação violenta demonstra que os valores do casamento
e da manutenção da família são obstáculos sociais para a preservação da vida das mulheres. As
dificuldades que as mulheres encontram para romper relações violentas logo quando a violência
se manifesta indica que valores morais operam para manter as mulheres em relações abusivas.
Por outro lado, a violência iniciada no namoro indica a possibilidade de se prolongar ao longo
da relação.
3.7 O elemento surpresa, premeditação, dissimulação e crueldade
Em 100% dos casos, as vítimas foram surpreendidas pelo agressor. A crueldade também
esteve presente em 13 dos feminicídios, o que corresponde a 68,42%. Várias facadas, asfixia,
barra de ferro, fogo foram algumas das formas de atacar as mulheres que ficaram hospitalizadas.
No caso 1, a mulher foi surpreendida pelo agressor em via pública e esfaqueada várias
vezes, na bicicleta em que estava com a filha do casal de 03 anos, quando parou para conversar
com duas amigas. O réu levou a filha e a deixou na casa da sogra. Ele não aceitava a separação
e o acordo verbal de visitas à filha comum. A relação era de 04 anos, mas estavam separados
de fato por 6 meses face a diversas brigas e agressões. O agressor perseguia a vítima, inclusive
no trabalho. Ela havia comentado com a mãe que ele iria lhe matar. Ela possuía medidas
protetivas de não aproximação.
CAMPOS, Carmen Hein de; COLMAN, Daniel Gasso. Medidas Protetivas de Urgência e
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segundo grau. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, n. 55, p. 139-156, ago.
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No caso 9, a vítima sofreu tentativa de feminicídio por golpes de faca e facão. Ele
arrombou a porta da casa da vítima munido de faca e facão e desferiu facadas no pescoço, região
cervical e mão. O filho conseguiu fugir e pedir ajuda. A vítima foi atendida e sobreviveu. O
agressor estava embriagado e após a tentativa colidiu o carro causando lesões corporais em
outra vítima. A defesa do réu alegou imputabilidade por embriaguez e legítima defesa. O filho
de 11 anos que presenciou ficou traumatizado e passou a fazer tratamento psicológico.
No caso 10, a vítima foi surpreendida em seu local de trabalho. O réu pulou o muro e
invadiu o local de trabalho da vítima (um lar de idosos) e empurrando-a contra a parede,
desferiu-lhe golpes de faca. Ela possuía MPU, proibindo-o de se aproximar do local de trabalho.
Ela ficou uma semana hospitalizada.
No caso 12, o agressor provocou múltiplas lesões na ex-namorada por meio de facadas,
cujo relacionamento era de apenas 3 meses. Ele foi ao colégio onde a vítima estudava, discutiu
com ela e desferiu 15 golpes de faca. Fugiu do local, deixando-a caída no chão. Ele não
concordava com o fim do relacionamento. Havia histórico de violências, pois quando a vítima
ia à casa dele, ele não a deixava ir embora, e a agredia se ela quisesse ir para a sua casa. Ela
registrou ocorrência e solicitou medida protetiva. Ficou 8 dias internada na Unidade de
Tratamento Intensivo.
No caso 17, após uma discussão o acusado passou a agredir a vítima, com chutes e
socos. Ato contínuo, jogou álcool na vítima e tentou atear fogo. Ela se jogou na piscina. Após
foi agredida com uma barra de ferro e o acusado só parou porque o filho interveio. Após o fato,
ele ateou fogo na casa em que moravam. O agressor era ciumento, não deixava a vítima ir
sozinha a nenhum lugar. Alegou que se defendeu da agressão da vítima com uma faca.
No caso 16, o feminicídio consumado foi cometido à noite. O agressor dirigiu-se à casa
da vítima; escondeu-se no pátio e esperou que uma visita saísse e entrou na casa e desferiu um
golpe no pescoço da vítima e fugiu. A vítima tinha 67 anos e o réu era agressivo, inclusive com
os vizinhos. Ela possuía medida protetiva de afastamento do lar e de não aproximação.
No caso 8, a vítima estava em casa e ao atender à porta da sua residência, foi
surpreendida pelo agressor que tentou entrar na residência e não conseguindo, quebrou uma
janela e desferiu disparos de arma de fogo contra ela, atingindo-a na região do hemitórax. Ainda
tentou efetuar mais disparos, mas não conseguiu, porque o carregador de munições caiu e a
pistola não mais funcionou. A vítima foi socorrida e levada para o atendimento médico. O
crime foi cometido na presença das filhas e do filho do casal. O réu alegou que o crime foi
CAMPOS, Carmen Hein de; COLMAN, Daniel Gasso. Medidas Protetivas de Urgência e
Feminicídio: uma análise das circunstâncias das mortes de mulheres em processos judiciais de
segundo grau. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, n. 55, p. 139-156, ago.
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cometido por outra pessoa.A vítima foi casada com o réu por 16 anos e estavam separados há
quatro anos, mas mantinham contato em virtude dos filhos.
Além da premeditação, há também dissimulação, pois muitos fingem que querem
conversar com a mulher, ficam à espreita e invadem as residências.
No caso 3, o agressor dissimulou que queria conversar e invadiu a casa da vítima que
possuía medidas protetivas para que o agressor não se aproximasse dela e da casa. No entanto,
mesmo separados há seis meses, o agressor durante a noite/madrugada invadiu a residência da
vítima, pois estava inconformado com a separação e com o fato de que a vítima havia registrado
ocorrência e ter solicitado medida protetiva, passando a agir de forma mais agressiva e
controladora.
No caso 13, a dissimulação contou com o auxílio da nova companheira do agressor, que
disse querer falar com a vítima e entrou. A porta ficou aberta e o agressor ingressou e desferiu
tiros contra a vítima e a mãe dela. O réu não aceitava o fim do relacionamento e também pelo
fato de que a vítima havia solicitado medida protetiva e isso iria prejudicá-lo, pois estava em
prisão domiciliar.
3.8 A medidas protetivas e as evidências de mortes evitáveis
Em todos os processos analisados, as medidas protetivas não impediram o cometimento
do crime, porque os agressores agiram de modo premeditado e para surpreender as mulheres.
Isso significa que a simples concessão da medida protetiva pouco ajuda na prevenção do crime,
pois os agressores estavam decididos a cometer o crime.
Alguns elementos presentes em todos os casos são um alerta para o aumento do risco,
como por exemplo, existência de violência anterior, ciúme excessivo, o pouco tempo da
separação, as ameaças de morte pela inconformidade com o término da relação são evidências
de feminicídio. A correta avaliação de risco deve ser feita tanto pela autoridade policial quanto
pelo juiz ou juíza. O formulário de risco é um mecanismo importante para a avaliação de risco.
No entanto, em nenhum processo encontramos menção à existência de avaliação de risco. Além
disso, medidas protetivas concedidas a mulheres em situação de risco devem ser monitoradas.
A ampliação das Patrulhas Maria da Penha deve ser considerada como medida preventiva. Além
disso, há iniciativas da sociedade civil que devem ser estimuladas, a exemplo do
acompanhamento de mulheres que possuem medidas protetivas pelas Promotoras Legais
Populares em parceria com o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (THEMIS, 2022).
CAMPOS, Carmen Hein de; COLMAN, Daniel Gasso. Medidas Protetivas de Urgência e
Feminicídio: uma análise das circunstâncias das mortes de mulheres em processos judiciais de
segundo grau. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, n. 55, p. 139-156, ago.
2024. ISSN: 0104-6594. E-ISSN: 2595-6884. DOI: https://doi.org/10.22456/0104-6594.124948.
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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise processual permitiu verificar que a maioria dos crimes: a) foi praticada com
arma branca; b) na casa das vítimas; c) foi motivada por sentimento de posse (ciúmes, não
aceitação de término de relacionamento ou de que a mulher se relacionasse com outra pessoa,
d) com violência exacerbada e com sinais de crueldade; e) na presença dos filhos. Esses achados
são corroborados pelas pesquisas anteriormente mencionadas, exceto o último, cujo resultado
difere do encontrado por Mello (2020).
Embora os processos judiciais dificilmente mencionem a profissão de vítimas e
agressores, sabe-se que a precária condição econômica das mulheres, por vezes, leva à
manutenção de uma relação abusiva, o que eleva o risco de morte.
No que se refere às medidas protetivas e a prevenção do feminicídio, o que a análise
permitiu compreender é que a simples existência da medida protetiva não impediu o
cometimento do crime, pois a premeditação do crime e o elemento surpresa foram o modus
operandi dos agressores. Elementos comuns a todos os processos são evidências que indicam o
risco de feminicídio e devem ser consideradas na avaliação de risco e na elaboração de políticas
públicas de prevenção.
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DADOS DA PUBLICAÇÃO
Categoria: artigo submetido ao double-blind review.
Recebido em: 31/05/2022.
Aceito em: 16/04/2023
CAMPOS, Carmen Hein de; COLMAN, Daniel Gasso. Medidas Protetivas de Urgência e
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