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Medidas Protetivas de Urgencia e feminicidio

2024, Revista da Faculdade de Direito da UFRGS

https://doi.org/10.22456/0104-6594.124948

Medidas Protetivas de Urgência e Feminicídio: uma análise das circunstâncias das mortes de mulheres em processos judiciais de segundo grau Restraining orders and Femicide: analysis of the circumstances of women's deaths in judicial proceedings

139 Medidas Protetivas de Urgência e Feminicídio: uma análise das circunstâncias das mortes de mulheres em processos judiciais de segundo grau Restraining orders and Femicide: analysis of the circumstances of women's deaths in judicial proceedings Carmen Hein de Campos* Daniel Gasso Colman** REFERÊNCIA CAMPOS, Carmen Hein de; COLMAN, Daniel Gasso. Medidas Protetivas de Urgência e Feminicídio: uma análise das circunstâncias das mortes de mulheres em processos judiciais de segundo grau. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, n. 55, p. 139-156, ago. 2024. DOI: https://doi.org/10.22456/01046594.124948. RESUMO O artigo analisa as circunstâncias descritas em processos judiciais julgados pelo Tribunal de Justiça do estado do Rio Grande do Sul, entre 2017 e 2021, de feminicídios íntimos cometidos contra mulheres que possuíam medidas protetivas de urgência. O feminicídio foi incluído como qualificadora no Código Penal em 2015 e o primeiro recurso analisado foi julgado em 2017. A pesquisa é exploratória e documental com abordagem teórico-feminista e procura responder à pergunta sobre as circunstâncias em que mulheres (quase) morrem, mesmo tendo medida protetiva de urgência. A análise identificou que a maioria dos crimes foi praticada com arma branca, na casa das vítimas, por sentimento de posse ou inconformidade com o fim do relacionamento, com violência exacerbada e crueldade e na presença de filhos. A premeditação, o elemento surpresa e a ausência de avaliação de risco aparecem como evidências de que a simples concessão da medida protetiva não impede o crime. Essas evidências devem ser consideradas pelas autoridades públicas para a elaboração de políticas de prevenção que devem incluir avaliação de risco e monitoramento das medidas protetivas. PALAVRAS-CHAVE Medidas protetivas de urgência; feminicídio; circunstâncias das mortes. ABSTRACT The article analyzes the circumstances described in court cases from the Rio Grande do Sul State Court of Justice between 2017 and 2021, in which intimate feminicide was committed against women who were under restraining orders. Feminicide was included as a qualifier in the Criminal Code in 2015 and the first appeal analyzed was heard in 2017. The research is exploratory and documental with a theoretical-feminist approach and seeks to answer the question regarding the circumstances in which women (almost) die, even though they have these urgent protective measures. The analysis identified that most of the crimes were committed using a cold weapon, in the victims’ homes, arising out of feelings of possession or dissatisfaction at the end of the relationship, with exacerbated violence and cruelty, and in the presence of their children. The premeditation, element of surprise, and absence of risk assessment are evidence that the simple granting of a protective measure does not prevent the crime. This evidence should be considered by public authorities in the development of prevention policies that should include risk assessment and the monitoring of restraining orders. KEYWORDS Doutora em Ciências Criminais pela PUCRS (2013), Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC,1998) e pela Universidade de Toronto (Programa de Direitos Reprodutivos, 2007). Graduada em Direito pela Universidade Federal de Pelotas/RS (UFPEL, 1988). É professora visitante no Programa de Mestrado em Direitos Sociais da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e professora colaborada do Programa de PósGraduação em Direito do Centro Autônomo do Brasil - UniBrasil. http://lattes.cnpq.br/3038625843658528. ** Bacharel em Direito - UniRitter, pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal. * CAMPOS, Carmen Hein de; COLMAN, Daniel Gasso. Medidas Protetivas de Urgência e Feminicídio: uma análise das circunstâncias das mortes de mulheres em processos judiciais de segundo grau. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, n. 55, p. 139-156, ago. 2024. ISSN: 0104-6594. E-ISSN: 2595-6884. DOI: https://doi.org/10.22456/0104-6594.124948. 140 Restraining orders; feminicide; circumstances of the deaths. SUMÁRIO 1. Introdução. 2. Femicídio e Feminicídio. 2.1 A qualificadora do feminicídio íntimo 3. A pesquisa e seus achados. 3.1 Os sinais de um crime anunciado 3.2 Motivação do crime: posse e controle 3.3 Violência anterior e tempo da separação 3.4 Tipo de armas e relação das vítimas com os agressores 3.5 Presença de filhos e filhas 3.6 Tempo de convivência e idade das vítimas 3.7 O elemento surpresa, premeditação, dissimulação e crueldade. 3.8 O que os processos nos dizem sobre as medidas protetivas e os feminicídios? 4. Considerações finais. Referências. Dados da publicação. 1 INTRODUÇÃO O feminicídio praticado por parceiro íntimo está associado à relação de desigualdade nas relações de gênero e é um contínuo da violência doméstica, pois a morte é o extremo de uma violência que começa cedo nas relações íntimas de afeto. Trata-se de uma realidade presente na vida de muitas mulheres. Em 2020 aconteceram 1.350 feminicídios no país, sendo que 74,7% das vítimas tinham entre 18 e 44 anos, foram mortas por (ex)companheiros em 81,5% dos casos e 61,8% delas eram negras. A maior parte dos crimes foi cometida com arma branca (55,1%) (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2021). Os dados demonstram que a grande maioria dos feminicídios registrados é cometida por (ex)companheiros, isto é, são feminicídios íntimos ou praticados em circunstância de violência doméstica, que possivelmente poderiam ter sido evitados se houvesse análise de risco e se políticas públicas de prevenção estivessem disponíveis para mulheres mais vulneráveis. No Rio Grande do Sul, desde 2016, quando a Secretaria de Segurança Pública do estado (SSP/RS) começou a disponibilizar esses dados, verifica-se uma tendência crescente no número de mortes de mulheres. Tabela 1: Feminicídios no Rio Grande do Sul Ano Tentado Consumado 2021 257 95 2020 316 80 2019 359 97 2018 355 116 2017 322 83 2016 263 96 Fonte: Secretaria de Segurança Pública do Rio Grande do Sul, 2022 CAMPOS, Carmen Hein de; COLMAN, Daniel Gasso. Medidas Protetivas de Urgência e Feminicídio: uma análise das circunstâncias das mortes de mulheres em processos judiciais de segundo grau. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, n. 55, p. 139-156, ago. 2024. ISSN: 0104-6594. E-ISSN: 2595-6884. DOI: https://doi.org/10.22456/0104-6594.124948. 141 Em 2021, em plena pandemia no RS, enquanto os crimes violentos, de modo geral, diminuíram, os feminicídios aumentaram em 225%, comparativamente ao mesmo mês do ano anterior. Em agosto de 2020 foram registrados 4 feminicídios consumados e 27 tentados e em agosto de 2021, o número de feminicídios consumados saltou para 14 enquanto que as tentativas caíram de 27 para 22 (RIO GRANDE DO SUL, 2022). A permanência das mulheres em casa durante a pandemia pode explicar a alta dos feminicídios. Muitas mulheres que foram vítimas de feminicídio possuíam medidas protetivas de urgência (MPUs) previstas na lei Maria da Penha. No entanto, mesmo com medidas protetivas, houve a morte ou a sua tentativa. Diante disso, este artigo indaga em que circunstâncias as mulheres que possuíam MPUs foram mortas ou quase mortas. O objetivo do artigo é, portanto, analisar as circunstâncias em que ocorreram feminicídios, consumados e tentados entre 2015 e 2021, julgados pelo Tribunal de Justiça do estado do Rio Grande do Sul (TJRS) nos quais as vítimas possuíam medidas protetivas de urgência. O lapso temporal da pesquisa (2015 a 2021) considera o fato de que a qualificadora do feminicídio foi incluída no Código Penal em 2015. A maioria dos feminicídios aconteceu no interior do estado e não na capital. Entre anos de 2016 a 2021, a soma resultante dos feminicídios consumados na capital Porto Alegre foi de 63, e de tentados, 420. Já no interior, os feminicídios consumados totalizaram 504 e os tentados 1.452 (RIO GRANDE DO SUL, 2022). A interiorização dos feminicídios é um fato que dificulta a realização de pesquisas, pois a busca de processos em primeiro grau demandaria percorrer diversos municípios na busca dos processos originais. Esse é um aspecto limitador desta pesquisa. Por isso, a análise aqui proposta foi feita em processos que tramitaram no segundo grau (Tribunal de Justiça do estado do Rio Grande do Sul) acessíveis por meio digital. Para tanto, foi realizada busca no endereço eletrônico do TJRS com os descritores "feminicídio; medidas protetivas de urgência'', em dois momentos: o primeiro, em 21 de setembro de 2021 e o segundo em 15 de maio de 2022. Foram encontradas 122 decisões cujos fatos ocorreram entre 2015 e 2021, que, em sua maioria, referem-se a julgamentos de Habeas Corpus, Recursos em Sentido Estrito e Agravos de Execução Penal. Considerando o foco da pesquisa, elegeu-se, para análise, decisões proferidas em Recursos em Sentido Estrito (RSE), pois esses recursos forneciam mais informações sobre as circunstâncias e o contexto das mortes. Feito esse filtro inicial, a amostra totalizou 24 decisões proferidas entre 2017 a 2021. Dessas, foram analisadas 19, pois uma estava em segredo de justiça e as demais referiam-se a medidas protetivas ou seu descumprimento, sem que houvesse o cometimento do feminicídio em sua modalidade tentada CAMPOS, Carmen Hein de; COLMAN, Daniel Gasso. Medidas Protetivas de Urgência e Feminicídio: uma análise das circunstâncias das mortes de mulheres em processos judiciais de segundo grau. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, n. 55, p. 139-156, ago. 2024. ISSN: 0104-6594. E-ISSN: 2595-6884. DOI: https://doi.org/10.22456/0104-6594.124948. 142 ou consumada. Para facilitar a comparação, as decisões foram catalogadas numericamente. Sabe-se que decisões de segundo grau são em número inferior às de primeiro grau, pois nem todos os réus recorrem, ou nem sempre o processo está disponível, pois pode estar com segredo de justiça decretado, ou pode não estar ainda disponibilizado na página eletrônica do tribunal. Desse modo, as decisões de segundo grau que foram objeto de análise representam uma pequena amostra dos crimes de feminicídio em grau de recurso. Metodologicamente, trata-se de pesquisa exploratória e documental com abordagem crítico-feminista. A análise considerou as variáveis de crime tentado ou consumado, relação entre as partes (matrimônio, união estável, namoro), instrumento utilizado para efetuar o feminicídio ou tentativa (arma branca, arma de fogo ou outro meio), o tempo da relação entre as partes, o local do crime (residência, via pública ou trabalho), presença de filhos ou filhas e motivação do crime. Aspecto que chama a atenção é que não foi possível verificar nas decisões analisadas, a raça/etnia das mulheres, embora as pesquisas indiquem que a maioria dos feminicídios é cometido contra mulheres negras. A ausência desse marcador revela que há uma invisibilidade que começa no boletim de ocorrência e prossegue no inquérito policial e é reproduzida nas decisões judiciais, demonstrando como o racismo estrutural e institucional opera nas instituições do sistema de justiça. A ausência dessa variável impossibilita traçar um perfil completo das vítimas e agressores. O artigo está dividido em duas partes, além da introdução e das considerações finais. Na primeira parte, discute-se o feminicídio e sua tipificação e na segunda, os achados da pesquisa. 2 FEMICÍDIO E FEMINICÍDIO Os termos femicídio e feminicídio têm origem sociológica diferenciada. O primeiro foi utilizado por Diana Russel (1976) para referir a morte de mulheres por homens pelo fato de serem mulheres como uma alternativa feminista ao termo homicídio que invisibiliza aquele crime letal. Posteriormente, a mesma autora e Joan Radford (1992) redefinem o termo femicídio como o fim extremo de um continuum de terror contra as mulheres incluindo diversos abusos físicos e psicológicos, tais como o estupro, a tortura, a escravidão sexual (particularmente a prostituição), o incesto, o abuso sexual contra crianças, agressão física e sexual, operações ginecológicas desnecessárias, assédio sexual, mutilação genital, heterossexualidade forçada, esterilização forçada, maternidade forçada (pela criminalização do aborto), cirurgia cosmética CAMPOS, Carmen Hein de; COLMAN, Daniel Gasso. Medidas Protetivas de Urgência e Feminicídio: uma análise das circunstâncias das mortes de mulheres em processos judiciais de segundo grau. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, n. 55, p. 139-156, ago. 2024. ISSN: 0104-6594. E-ISSN: 2595-6884. DOI: https://doi.org/10.22456/0104-6594.124948. 143 e outras cirurgias estéticas (CAMPOS, 2015, p. 105). O femicídio é então uma forma de terrorismo que resulta em morte. No entendimento de Ana Carcedo e Montserrat Sargot (2002), o femicídio1 é o assassinato de mulheres por razões de gênero. A feminista mexicana Marcela Lagarde ao afirmar que o termo femicidio (femicide) em espanhol significaria apenas morte de mulheres, cunhou o termo feminicídio para referir as mortes de mulheres por razões de gênero como crimes de Estado. Sustenta Lagarde que ocorre feminicídio quando há conivência das autoridades, impunidade e omissão do estado em proporcionar segurança para as mulheres. Nesse sentido, para a autora o feminicídio é um crime de Estado (LAGARDE, 2005; TOLEDO, 2009; CAMPOS, 2015). Nas legislações da América Latina, os termos femicídio, feminicídio ou homicídio agravado por razões de gênero são utilizados como sinônimos para referir o mesmo fenômeno: a morte de mulheres por razões de gênero. Portanto, não há distinção teórica, o que varia é a tipificação em cada país como tipo penal autônomo, qualificadora, legislação especial (VASQUEZ, 2009; MACHADO, 2015; ONU, 2020). No Brasil, o debate em torno das mortes de mulheres está na agenda feminista desde a década de 1970 e ganhou os holofotes da imprensa com o assassinato de Ângela Diniz, uma mulher branca, de camada alta que foi morta por seu ex-companheiro, Doca Street, que não aceitava o fim do relacionamento e o comportamento “liberal” de Ângela. A defesa do agressor utilizou a tese da “legítima defesa da honra masculina” na tentativa de absolver o homicida, que foi condenado a pena de dois anos de detenção, com direito a sursis (PAULO FILHO, 2019), gerando inúmeros protestos feministas. Trinta anos depois, a criação da Lei Maria da Penha (lei 11.340/2006) representou uma importante alteração legal no tratamento da violência baseada no gênero nas relações domésticas, familiares e íntimas de afeto. E, em 2015, a qualificadora do feminicídio ingressa no sistema jurídico brasileiro. O projeto de lei constou no Relatório Final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) que investigou a violência contra as mulheres no Brasil (CAMPOS, 2015). O relatório foi aprovado em 2013 e o projeto de lei tramitou por dois anos, sendo aprovado em 2015 (lei 13.104/2015). O feminicídio/femicídio é um crime de gênero, pois desnuda a violência sistemática e extrema contra as mulheres, fruto da discriminação, opressão e desigualdade entre homens e 1 Utiliza-se o termo femicídio porque é como as autoras mencionadas o definem. CAMPOS, Carmen Hein de; COLMAN, Daniel Gasso. Medidas Protetivas de Urgência e Feminicídio: uma análise das circunstâncias das mortes de mulheres em processos judiciais de segundo grau. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, n. 55, p. 139-156, ago. 2024. ISSN: 0104-6594. E-ISSN: 2595-6884. DOI: https://doi.org/10.22456/0104-6594.124948. 144 mulheres. É, portanto, dentro de uma ordem de gênero patriarcal que o femicídio/feminicídio deve ser compreendido. 2.1 A qualificadora do feminicídio íntimo O feminicídio, assim como o homicídio, é um crime doloso contra a vida, sendo julgado pelo tribunal do júri (art. 5º, inc. XXXVIII, “d”, da Constituição Federal de 1988). Nos casos de condenação em que há recurso por parte da defesa do réu ou do ministério público, o julgamento é realizado pelos tribunais de justiça. Os condenados podem, dentre outros motivos, apelar para aguardar o julgamento definitivo em liberdade ou contra a pronúncia ou a aplicação da qualificadora. O feminicídio é uma qualificadora do crime de homicídio, sendo definido como a morte por razões do sexo feminino nas circunstâncias de violência doméstica, menosprezo ou discriminação à condição de mulher (art. 121, VI § 2o, I e II). Embora a qualificadora tenha denominação específica, o feminicídio não constitui um tipo penal autônomo. A pena prevista, reclusão de 12 a 30 anos. Conforme a norma penal, há razões de condição do sexo feminino quando o crime envolver violência doméstica (inciso I), menosprezo ou discriminação à condição do sexo feminino (inciso II). Segundo o § 7°, a pena pode ser aumentada de 1/3 (um terço) até a metade se o crime for praticado, contra pessoa menor de 14 (catorze) anos, maior de 60 (sessenta) anos (inciso I), com deficiência ou portadora de doenças degenerativas que acarretem condição limitante ou de vulnerabilidade física ou mental (inciso II), na presença física ou virtual de descendente ou de ascendente da vítima (inciso III) e em descumprimento de medidas protetivas de urgência previstas no artigo 22 da lei Maria da Penha (inciso IV) (BRASIL, 2006). A circunstância da violência doméstica caracteriza tanto o feminicídio íntimo, aquele praticado por parceiro íntimo (CARCEDO; SAGOT, 2002) quanto as mortes nas relações domésticas ou familiares, conforme a definição de violência doméstica prevista na lei Maria da Penha. Embora os termos femicídio e feminicídio tenham se originado de perspectivas teóricas distintas e hoje tais diferenças sejam irrelevantes, é importante destacar que alguns autores brasileiros entendem que a caracterização do feminicídio doméstico, familiar ou íntimo exige menosprezo ou discriminação à condição de mulher, do contrário a situação seria de femicídio (CUNHA, 2020, p.3). Consideramos essa perspectiva incorreta, pois traça uma distinção entre CAMPOS, Carmen Hein de; COLMAN, Daniel Gasso. Medidas Protetivas de Urgência e Feminicídio: uma análise das circunstâncias das mortes de mulheres em processos judiciais de segundo grau. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, n. 55, p. 139-156, ago. 2024. ISSN: 0104-6594. E-ISSN: 2595-6884. DOI: https://doi.org/10.22456/0104-6594.124948. 145 femicídio e feminicídio que a lei não faz e que não se justifica. O feminicídio íntimo, doméstico ou familiar remete ao conceito de violência doméstica e familiar previsto na lei Maria da Penha como qualquer ação ou omissão baseada no gênero que cause morte (...) (art.5o) que ocorra na unidade doméstica, na família ou nas relações íntimas de afeto (I, II, III). Desta forma, o conceito de violência baseada no gênero no âmbito dessas três relações (domésticas, familiares e íntimas de afeto) não exige menosprezo ou discriminação, porque, nos termos da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), a violência é um ato de discriminação (art. 1o, CEDAW). Portanto, a discriminação é intrínseca ao ato de violência e não dependente dela. O entendimento contrário exige comprovar que a violência doméstica decorreu de discriminação ou menosprezo. A exigência dessa comprovação revela uma incompreensão sobre a violência de gênero como estrutural, isto é, enraizada nas relações sociais hierárquicas. A violência doméstica, familiar e nas relações íntima de afeto é um ato de discriminação estrutural contra as mulheres porque pressupõe que as mulheres devam comportar-se conforme as exigências masculinas. Além disso, ao atrelar o inciso I (violência doméstica) ao inciso II (discriminação ou menosprezo) corre-se o risco de limitar a possibilidade da ocorrência de feminicídio por discriminação ou menosprezo não vinculado à violência doméstica, como por exemplo, a morte de uma mulher trans (transfeminicídio) ou de uma mulher lésbica (lesbocídio) porque o agressor não aceita a identidade de gênero ou a orientação sexual. Decorre do conceito de gênero e de violência baseada no gênero presentes na Lei Maria da Penha, na Convenção CEDAW e em sua Recomendação Geral 33, a aplicabilidade da lei aos casos de feminicídio contra mulheres trans. O transfeminicídio é um feminicídio cometido contra mulheres trans cuja motivação é o desprezo ou a discriminação contra um corpo femininizado. Há um ódio contra o corpo trans (BENTO, 2018). Esses feminicídios podem ocorrer nas relações íntimas de afeto, na unidade doméstica ou na família, mas também fora dessas relações. Os transfeminicídios, via de regra, ocorrem em via pública e em geral, não são classificados como (trans)feminicídio (BENTO, 2018) por incompreensão sobre o conceito de gênero e violência baseada no gênero. Mas também é feminicídio a morte de uma mulher por um colega de trabalho porque ele não aceita que ela esteja em uma posição superior à dele (discriminação). Há menosprezo à mulher, quando ela é estuprada e morta. Ou ainda, quando uma mulher é morta e seu corpo é alvo de crueldade, seus seios são queimados, sua face é desfigurada, etc. Nesse sentido, a qualificadora do feminicídio tem por objeto nomear as mortes de CAMPOS, Carmen Hein de; COLMAN, Daniel Gasso. Medidas Protetivas de Urgência e Feminicídio: uma análise das circunstâncias das mortes de mulheres em processos judiciais de segundo grau. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, n. 55, p. 139-156, ago. 2024. ISSN: 0104-6594. E-ISSN: 2595-6884. DOI: https://doi.org/10.22456/0104-6594.124948. 146 mulheres (CAMPOS, 2015; MACHADO, 2020), explicitando as especificidades que são decorrentes da desigualdade de gênero, mas ocultadas no termo homicídio. Os casos de feminicídio examinados neste artigo envolvem os feminicídios íntimos, ou seja, os praticados nas relações íntimas de afeto. Desse modo, são excluídos da análise os ocorridos na família ou na unidade doméstica e nas circunstâncias de discriminação ou menosprezo. Portanto, o recorte da pesquisa é específico, pois procura entender como as medidas protetivas previstas na lei Maria da Penha não foram suficientes para proteger as mulheres de seus (ex-)companheiros, (ex)maridos, (ex)namorados. O artigo não examina o mérito das decisões, diferentemente da análise processual de feminicídios realizada por Adriana Mello (2018), embora se aproxime dessa quanto à dinâmica dos fatos. Tampouco discute a pena imposta ou as circunstâncias agravantes, pois interessa observar as circunstâncias em que as mortes ocorreram considerando como variáveis o tipo de arma utilizada, o tempo existente da relação, a presença de filhas ou filhos, dentre outras. A análise corrobora os achados de pesquisas como a do Fórum Brasileiro de Segurança Pública cuja fonte é o Sistema de Mortalidade (Ministério da Saúde) e o sistema de segurança pública e também as que investigam fluxos processuais (FERREIRA, 2020; MELLO, 2018; MACHADO, 2015). No entanto, a pesquisa inova ao olhar especificamente os feminicídios tentados e consumados de mulheres com medidas protetivas. 3 RESULTADOS ENCONTRADOS E DISCUSSÃO A pesquisa envolveu a análise de 19 decisões judiciais, sendo 13 de feminicídios tentados, o que corresponde a 68,42% e 06 de feminicídios consumados, perfazendo 35,29% dos casos. A maioria dos feminicídios (13) ocorreu em municípios do interior do estado e cinco deles, na capital (Porto Alegre). Esse achado está em conformidade com as estatísticas da segurança pública que apontam uma maioria de feminicídios tentado e praticados em municípios do interior do estado. A seguir, discutimos os achados da pesquisa conforme as seguintes aspectos: a) motivação do crime; b) violência anterior e tempo da separação; c) tipo de armas utilizadas e a relação da vítima com o agressor; d) presença de filhas ou filhos; e) tempo de convivência e idade das vítimas; CAMPOS, Carmen Hein de; COLMAN, Daniel Gasso. Medidas Protetivas de Urgência e Feminicídio: uma análise das circunstâncias das mortes de mulheres em processos judiciais de segundo grau. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, n. 55, p. 139-156, ago. 2024. ISSN: 0104-6594. E-ISSN: 2595-6884. DOI: https://doi.org/10.22456/0104-6594.124948. 147 3.1 Os sinais de um crime anunciado, previsível e evitável O feminicídio como continuum da violência doméstica contra as mulheres evidencia que por trás da violência letal há um histórico anterior de violências. Em geral, o feminicídio ocorre após decorrido um tempo curto de separação. O agressor manifesta sua intenção de matar a mulher quando diz que não aceita o fim do relacionamento. Frases como “se não for minha não será de ninguém”, “tirar o que mais gosta”, que irá matar a ela e seus familiares, “hoje você não sai viva daqui”, anunciam a morte. Esses sinais denunciam o risco de um feminicídio. Prestar atenção e avaliar esse risco é um dever das instituições do estado para prevenir o desfecho fatal. Para as mulheres, compreender que estão um risco é um aprendizado importante para não serem surpreendidas com a ação feminicida. O feminicídio íntimo é, portanto, anunciado (BRAZÃO, 2009), previsível (MACHADO, 2015) e evitável (FERREIRA, 2020; SÁ, 2021). 3.2 Motivação do crime: posse e controle No que se refere à motivação dos crimes, a maior parte refere-se a não aceitação da separação ou do rompimento da relação. A insatisfação frente ao fim do relacionamento totalizou 11 casos (1, 2, 3, 6, 7, 8, 9, 10, 12, 13, 15), o que correspondeu a 57,89% deles. Em um caso, a inconformidade foi com a não aceitação da partilha de bens (caso 14) e em outro, pelo fato da vítima não ter temperado a salada do jeito que ele gostava (caso 11). A não aceitação da separação revela o sentimento de posse e desejo de controle sobre o corpo feminino. Ou seja, o machismo escancarado que não aceita a autonomia feminina, especialmente no que se refere ao exercício da sexualidade. No caso 7, por exemplo, o autor não aceitava o fim do relacionamento e proferia ameaças contra a vítima, dizendo “Se não ficar comigo não vai ficar com ninguém”. Na data da tentativa de feminicídio, a vítima que tinha MPU, teria concordado que o réu fosse a sua casa para buscar seus pertences, momento em que foi surpreendida com os golpes de faca. No momento do crime, ele disse que iria tirar dela “o que mais gosta” (referindo-se à filha). Ela reagiu e ele desferiu uma facada contra ela e depois outras facadas no abdômen e braço. A filha de 03 anos presenciou o crime. A mãe da vítima ouviu os gritos da filha e saiu em seu socorro. A vítima foi hospitalizada e ficou sem poder trabalhar por dois meses. CAMPOS, Carmen Hein de; COLMAN, Daniel Gasso. Medidas Protetivas de Urgência e Feminicídio: uma análise das circunstâncias das mortes de mulheres em processos judiciais de segundo grau. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, n. 55, p. 139-156, ago. 2024. ISSN: 0104-6594. E-ISSN: 2595-6884. DOI: https://doi.org/10.22456/0104-6594.124948. 148 Em outro caso (11) também com histórico de violência e uma série de agressões, o agressor discutiu com a vítima porque ela não havia temperado a salada do jeito que ele gostava, xingando-a de vagabunda e ameaçando-a de morte. Voltou à tarde e disse “hoje você não sai viva daqui”. Ela correu para a rua e foi alcançada pelo acusado que a derrubou e desferiu os golpes de faca, e quando caída golpeou-a mais ainda. Os primeiros golpes foram efetuados no interior da residência da vítima que, mesmo ferida, fugiu correndo em direção à rua, local em que foi alcançada e agarrada pelo denunciado, que a segurou pelo braço e desferiu novos golpes de faca, agora, na região do tórax. A vítima já tinha solicitado MPUs um ano antes, mas o processo foi arquivado por renúncia à representação. O crime foi presenciado pelos dois filhos da vítima de 16 e 07 anos de idade. 3.3 Violência anterior e tempo da separação Em todos os casos (100%) havia violência anterior. Como afirmamos, o feminicídio é um contínuo da violência doméstica. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos no Caso Maria da Penha v Brasil afirmou que há um padrão de violência sistemática contra mulheres no país e uma negligência das autoridades no dever de devida diligência para a prevenção dessa violência. O tempo em que as vítimas estavam separadas dos réus variou de 3 meses a 1 ano. Ou seja, o pouco tempo em que as vítimas estavam separadas do agressor aparece como elemento importante de avaliação de risco. No caso 6, a vítima conviveu com o agressor durante 28 anos e sempre era agredida. Quando se separou, o agressor não se confirmou com o fim do relacionamento e manifestava sentimento de posse, dizendo que a vítima não ficaria com ninguém. Sempre afirmava que “o dia que nós se separar [sic], tu não vai ficar com mais ninguém, porque tu morre”. No dia do fato, ele tentou esfaquear a ex-companheira e seu namorado. Entrou na residência da vítima e desferiu uma facada no abdômen do namorado e um golpe de faca na vítima que atingiu o antebraço, depois nova facada no namorado. Depois, atentou contra o filho dele e da vítima. Ela tinha MPU proibindo aproximação e contato. Em outro caso (caso 4), a relação conjugal durou 31 anos e ela sempre foi agredida. Houve uma tentativa de atropelamento e só não houve a consumação do feminicídio porque ela percebeu e se jogou na calçada, ficando lesionada. Ela sofria ameaças porque tinha uma medida CAMPOS, Carmen Hein de; COLMAN, Daniel Gasso. Medidas Protetivas de Urgência e Feminicídio: uma análise das circunstâncias das mortes de mulheres em processos judiciais de segundo grau. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, n. 55, p. 139-156, ago. 2024. ISSN: 0104-6594. E-ISSN: 2595-6884. DOI: https://doi.org/10.22456/0104-6594.124948. 149 protetiva contra o agressor em virtude de ameaças e lesões corporais anteriores. Alguns dias antes da tentativa de feminicídio ela disse que “não iria retirar a queixa”. O casal frequentava igrejas diferentes, o que dava origem a brigas. No dia do fato, ela discutiu com o investigado, pois ele havia pego R$ 500,00 (quinhentos reais) destinados à compra de medicamentos e doado para a igreja. Durante a discussão foi agredida com socos e tapas e, por arremessos vasos de barro e de porcelana que lhe causaram diversas lesões no rosto e na cabeça. Em razão disso, procurou a autoridade policial para registrar ocorrência e pedir a concessão de medidas protetivas. Por sua vez, o agressor afirmou que a vítima sofria de problemas psicológicos e tinha surtos, o que originava autolesões. No caso 14, de feminicídio consumado, a motivação foi a insatisfação do agressor com a partilha dos bens. Ele arrastou a vítima pelos cabelos até o quarto e a esfaqueou na região do pescoço. Ela tinha uma MPU de afastamento do lar que foi flexibilizada pelo judiciário para que o agressor retirasse seus pertences da casa. O réu não aceitava a partilha de bens pactuada em audiência de conciliação na vara de família, pois não queria que a mulher ficasse com a casa. Argumentou que agiu em legítima defesa e entrou em luta corporal com a vítima. O pai da vítima afirmou que o réu enganava a vítima e ajuizou ação de divórcio. A mãe dela disse que a vítima era agredida pelo réu e que ele havia tentado vender a casa de forma oculta. Foram casados por 03 anos. No caso 18, a vítima foi agredida com uma serra e houve tentativa de feminicídio por asfixia, que só não se consumou porque a filha de 11 anos chamou a Polícia Militar. Havia MPU de afastamento do lar e o agressor não poderia manter nenhum tipo de contato com a vítima e só poderia frequentar a casa nos dias de visita, conforme regulamentação da Vara de Família. 3.4 Tipo de armas e relação das vítimas com os agressores Dos 19 crimes, 12 foram cometidos por arma branca (faca, serra, barra de ferro), o que corresponde a 63,15% dos casos. Esse achado está de acordo com outras pesquisas (SÁ, 202; FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2020; MELLO, 2020; MACHADO, 2015;) A maioria dos casos foi cometida contra ex-companheiras (10 dos 19 casos), o que corresponde a 58,8%; 4 deles contra esposas (23,52%), um contra ex-namorada e dois contra CAMPOS, Carmen Hein de; COLMAN, Daniel Gasso. Medidas Protetivas de Urgência e Feminicídio: uma análise das circunstâncias das mortes de mulheres em processos judiciais de segundo grau. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, n. 55, p. 139-156, ago. 2024. ISSN: 0104-6594. E-ISSN: 2595-6884. DOI: https://doi.org/10.22456/0104-6594.124948. 150 companheiras. Esse fato também é corroborado pelas pesquisas já mencionadas e indica que a separação é um ‘gatilho’ para o feminicídio, face à não aceitação do rompimento da relação. No caso 15, a vítima e o agressor estavam separados porque ele não aceitava o fim do relacionamento e que a vítima trabalhasse fora de casa porque “os filhos eram pequenos”. Ela havia arrumado um emprego e ele não aceitava, razão pela qual ela rompeu o relacionamento. Ele então passou a ameaçá-la, inclusive de não ver as crianças caso não reatasse com ele. O agressor aproximou-se, de carro, da casa da vítima que estava na porta e atirou contra ela. Só não a matou porque errou o tiro. O casal teve um relacionamento de 20 anos. Havia MPU de afastamento do lar. 3.5 Presença de filhos e filhas A maioria dos crimes foi cometida na presença de crianças e adolescentes. Em 10 casos, o crime foi cometido na frente de filhos ou filhas do casal, o que corresponde a 52,63%. A presença ou não de crianças na cena do crime não foi uma preocupação dos agressores. Esse achado confronta o encontrado por Adriana Mello (2020) em processos judiciais do Rio de Janeiro. No caso 3, o agressor invadiu a casa e dissimulou que queria conversar. A vítima tinha medidas protetivas para que o agressor não se aproximasse dela e da casa, mas mesmo separados há seis meses, o agressor durante a madrugada invadiu a residência da vítima. Estava inconformado com a separação e com o fato de que a vítima havia registrado ocorrência e ter solicitado medida protetiva, passando a agir de forma mais agressiva e controladora. A filha de 7 anos do casal estava dormindo na mesma cama em que a vítima foi asfixiada e morta. No caso 20, o agressor era dependente químico e vendia pertences para sustentar o vício com drogas ilícitas. Houve uma discussão relacionada à alienação de objetos de propriedade do casal pelo agressor. A vítima solicitou que o companheiro deixasse a moradia. Nesse momento, ele teria tomado nas mãos o cabo do carregador do celular e tentado enrolá-lo no pescoço da companheira. Ela se desvencilhou e ele advertiu que voltaria para matá-la. A filha do casal de 3 anos de idade do casal presenciou o fato. O casal esteve junto por 6 anos. No caso 9, a filha de 11 anos do casal presenciou a morte da mãe por golpes de facão e ficou com problemas psicológicos. No caso 11, o agressor discutiu com a vítima porque ela não havia temperado a salada do jeito que ele gostava, xingando-a de vagabunda e ameaçando-a de morte. Ele saiu e voltou CAMPOS, Carmen Hein de; COLMAN, Daniel Gasso. Medidas Protetivas de Urgência e Feminicídio: uma análise das circunstâncias das mortes de mulheres em processos judiciais de segundo grau. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, n. 55, p. 139-156, ago. 2024. ISSN: 0104-6594. E-ISSN: 2595-6884. DOI: https://doi.org/10.22456/0104-6594.124948. 151 à tarde e disse “hoje você não sai viva daqui”. Os primeiros golpes foram efetuados no interior da residência da vítima, que, mesmo ferida, correu para a rua e foi alcançada pelo acusado que a derrubou e desferiu outros golpes de faca, e quando caída golpeou-a mais ainda, atingindo as regiões torácica, mamária e costas. A vítima já tinha solicitado medidas protetivas um ano antes e o processo foi arquivado por renúncia à representação. O crime foi presenciado pelos dois filhos da vítima, de 16 e 07 anos de idade. 3.6 Tempo de convivência e idade das vítimas Em sete casos, a convivência entre as vítimas e os agressores foi longa, variando de 3 anos a 31 anos, como por exemplo, no caso 4. No caso 12, foram 28 anos. No caso 15, o relacionamento durou 20 anos e no caso 8, a relação foi de 16 anos. A agressão em relacionamento mais curto foi contra ex-namorada, após 3 meses de relacionamento. A longa permanência em uma relação violenta demonstra que os valores do casamento e da manutenção da família são obstáculos sociais para a preservação da vida das mulheres. As dificuldades que as mulheres encontram para romper relações violentas logo quando a violência se manifesta indica que valores morais operam para manter as mulheres em relações abusivas. Por outro lado, a violência iniciada no namoro indica a possibilidade de se prolongar ao longo da relação. 3.7 O elemento surpresa, premeditação, dissimulação e crueldade Em 100% dos casos, as vítimas foram surpreendidas pelo agressor. A crueldade também esteve presente em 13 dos feminicídios, o que corresponde a 68,42%. Várias facadas, asfixia, barra de ferro, fogo foram algumas das formas de atacar as mulheres que ficaram hospitalizadas. No caso 1, a mulher foi surpreendida pelo agressor em via pública e esfaqueada várias vezes, na bicicleta em que estava com a filha do casal de 03 anos, quando parou para conversar com duas amigas. O réu levou a filha e a deixou na casa da sogra. Ele não aceitava a separação e o acordo verbal de visitas à filha comum. A relação era de 04 anos, mas estavam separados de fato por 6 meses face a diversas brigas e agressões. O agressor perseguia a vítima, inclusive no trabalho. Ela havia comentado com a mãe que ele iria lhe matar. Ela possuía medidas protetivas de não aproximação. CAMPOS, Carmen Hein de; COLMAN, Daniel Gasso. Medidas Protetivas de Urgência e Feminicídio: uma análise das circunstâncias das mortes de mulheres em processos judiciais de segundo grau. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, n. 55, p. 139-156, ago. 2024. ISSN: 0104-6594. E-ISSN: 2595-6884. DOI: https://doi.org/10.22456/0104-6594.124948. 152 No caso 9, a vítima sofreu tentativa de feminicídio por golpes de faca e facão. Ele arrombou a porta da casa da vítima munido de faca e facão e desferiu facadas no pescoço, região cervical e mão. O filho conseguiu fugir e pedir ajuda. A vítima foi atendida e sobreviveu. O agressor estava embriagado e após a tentativa colidiu o carro causando lesões corporais em outra vítima. A defesa do réu alegou imputabilidade por embriaguez e legítima defesa. O filho de 11 anos que presenciou ficou traumatizado e passou a fazer tratamento psicológico. No caso 10, a vítima foi surpreendida em seu local de trabalho. O réu pulou o muro e invadiu o local de trabalho da vítima (um lar de idosos) e empurrando-a contra a parede, desferiu-lhe golpes de faca. Ela possuía MPU, proibindo-o de se aproximar do local de trabalho. Ela ficou uma semana hospitalizada. No caso 12, o agressor provocou múltiplas lesões na ex-namorada por meio de facadas, cujo relacionamento era de apenas 3 meses. Ele foi ao colégio onde a vítima estudava, discutiu com ela e desferiu 15 golpes de faca. Fugiu do local, deixando-a caída no chão. Ele não concordava com o fim do relacionamento. Havia histórico de violências, pois quando a vítima ia à casa dele, ele não a deixava ir embora, e a agredia se ela quisesse ir para a sua casa. Ela registrou ocorrência e solicitou medida protetiva. Ficou 8 dias internada na Unidade de Tratamento Intensivo. No caso 17, após uma discussão o acusado passou a agredir a vítima, com chutes e socos. Ato contínuo, jogou álcool na vítima e tentou atear fogo. Ela se jogou na piscina. Após foi agredida com uma barra de ferro e o acusado só parou porque o filho interveio. Após o fato, ele ateou fogo na casa em que moravam. O agressor era ciumento, não deixava a vítima ir sozinha a nenhum lugar. Alegou que se defendeu da agressão da vítima com uma faca. No caso 16, o feminicídio consumado foi cometido à noite. O agressor dirigiu-se à casa da vítima; escondeu-se no pátio e esperou que uma visita saísse e entrou na casa e desferiu um golpe no pescoço da vítima e fugiu. A vítima tinha 67 anos e o réu era agressivo, inclusive com os vizinhos. Ela possuía medida protetiva de afastamento do lar e de não aproximação. No caso 8, a vítima estava em casa e ao atender à porta da sua residência, foi surpreendida pelo agressor que tentou entrar na residência e não conseguindo, quebrou uma janela e desferiu disparos de arma de fogo contra ela, atingindo-a na região do hemitórax. Ainda tentou efetuar mais disparos, mas não conseguiu, porque o carregador de munições caiu e a pistola não mais funcionou. A vítima foi socorrida e levada para o atendimento médico. O crime foi cometido na presença das filhas e do filho do casal. O réu alegou que o crime foi CAMPOS, Carmen Hein de; COLMAN, Daniel Gasso. Medidas Protetivas de Urgência e Feminicídio: uma análise das circunstâncias das mortes de mulheres em processos judiciais de segundo grau. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, n. 55, p. 139-156, ago. 2024. ISSN: 0104-6594. E-ISSN: 2595-6884. DOI: https://doi.org/10.22456/0104-6594.124948. 153 cometido por outra pessoa.A vítima foi casada com o réu por 16 anos e estavam separados há quatro anos, mas mantinham contato em virtude dos filhos. Além da premeditação, há também dissimulação, pois muitos fingem que querem conversar com a mulher, ficam à espreita e invadem as residências. No caso 3, o agressor dissimulou que queria conversar e invadiu a casa da vítima que possuía medidas protetivas para que o agressor não se aproximasse dela e da casa. No entanto, mesmo separados há seis meses, o agressor durante a noite/madrugada invadiu a residência da vítima, pois estava inconformado com a separação e com o fato de que a vítima havia registrado ocorrência e ter solicitado medida protetiva, passando a agir de forma mais agressiva e controladora. No caso 13, a dissimulação contou com o auxílio da nova companheira do agressor, que disse querer falar com a vítima e entrou. A porta ficou aberta e o agressor ingressou e desferiu tiros contra a vítima e a mãe dela. O réu não aceitava o fim do relacionamento e também pelo fato de que a vítima havia solicitado medida protetiva e isso iria prejudicá-lo, pois estava em prisão domiciliar. 3.8 A medidas protetivas e as evidências de mortes evitáveis Em todos os processos analisados, as medidas protetivas não impediram o cometimento do crime, porque os agressores agiram de modo premeditado e para surpreender as mulheres. Isso significa que a simples concessão da medida protetiva pouco ajuda na prevenção do crime, pois os agressores estavam decididos a cometer o crime. Alguns elementos presentes em todos os casos são um alerta para o aumento do risco, como por exemplo, existência de violência anterior, ciúme excessivo, o pouco tempo da separação, as ameaças de morte pela inconformidade com o término da relação são evidências de feminicídio. A correta avaliação de risco deve ser feita tanto pela autoridade policial quanto pelo juiz ou juíza. O formulário de risco é um mecanismo importante para a avaliação de risco. No entanto, em nenhum processo encontramos menção à existência de avaliação de risco. Além disso, medidas protetivas concedidas a mulheres em situação de risco devem ser monitoradas. A ampliação das Patrulhas Maria da Penha deve ser considerada como medida preventiva. Além disso, há iniciativas da sociedade civil que devem ser estimuladas, a exemplo do acompanhamento de mulheres que possuem medidas protetivas pelas Promotoras Legais Populares em parceria com o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (THEMIS, 2022). CAMPOS, Carmen Hein de; COLMAN, Daniel Gasso. Medidas Protetivas de Urgência e Feminicídio: uma análise das circunstâncias das mortes de mulheres em processos judiciais de segundo grau. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, n. 55, p. 139-156, ago. 2024. ISSN: 0104-6594. E-ISSN: 2595-6884. DOI: https://doi.org/10.22456/0104-6594.124948. 154 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS A análise processual permitiu verificar que a maioria dos crimes: a) foi praticada com arma branca; b) na casa das vítimas; c) foi motivada por sentimento de posse (ciúmes, não aceitação de término de relacionamento ou de que a mulher se relacionasse com outra pessoa, d) com violência exacerbada e com sinais de crueldade; e) na presença dos filhos. Esses achados são corroborados pelas pesquisas anteriormente mencionadas, exceto o último, cujo resultado difere do encontrado por Mello (2020). Embora os processos judiciais dificilmente mencionem a profissão de vítimas e agressores, sabe-se que a precária condição econômica das mulheres, por vezes, leva à manutenção de uma relação abusiva, o que eleva o risco de morte. No que se refere às medidas protetivas e a prevenção do feminicídio, o que a análise permitiu compreender é que a simples existência da medida protetiva não impediu o cometimento do crime, pois a premeditação do crime e o elemento surpresa foram o modus operandi dos agressores. Elementos comuns a todos os processos são evidências que indicam o risco de feminicídio e devem ser consideradas na avaliação de risco e na elaboração de políticas públicas de prevenção. REFERÊNCIAS BENTO, Berenice. Necrobiopoder: Quem pode habitar o Estado-nação? Cadernos Pagu, [S. l.], n. 53, 2018. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/8653413. Acesso em: 29 mai. 2022. BRASIL. Lei 11.340, de 07 de agosto de 2006. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm. Acesso em: 28 mai. 2022. BRAZÃO, Analba. Nunca você sem mim. São Paulo: Annablume, 2009. CAMPOS, Carmen Hein de. Feminicídio no Brasil: uma análise crítico-feminista. 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