PRÓXIMO
ORIENTE
André Bueno [org.]
Reitora
Gulnar Azevedo e Silva
Vice-reitor
Bruno Rêgo Deusdará Rodrigues
Produção
Obra produzida e vinculada pelo Projeto
Orientalismo, Proj. Extens. UERJ Reg.
6876, coordenado pelo Prof. André Bueno
[Dept. História]
Conselho Editorial
Bony Schachter ● Edgard Leite ● Emiliano
Unzer ● Gerald Cipriani ● Giorgio Sinedino
● Jana Rosker ● Julio Gralha ● Lia R. de
La Veja ● Paulo André Leira Parente ●
Qiao Jianzhen (Ana Qiao) ● Xulio Rios
Rede
www.orientalismo.net
Seção Brasil
https://aladaainternacional.com/aladaabrasil/
Ficha Catalográfica
Bueno, André [org.]
Oriente 24: Estudos em Próximo Oriente. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Proj.
Orientalismo/UERJ, 2024.
ISBN: 978-65-01-27039-5
Estudos Orientais; Orientalismo; Próximo Oriente; Antiguidade; Medievo
Apresentação
Oriente 24 é a nova coleção de livros dedicada aos estudos
orientais no Brasil. Construída a partir dos debates realizados no 8º
Simpósio internacional de Estudos Orientais, organizado pelo
Projeto Orientalismo da UERJ, Oriente 24 é formada de maneira
interdisciplinar e transversal, conjugando as mais diversas
experiências no campo dos estudos das civilizações do oriente
próximo e do extremo oriente. Fazendo uma abordagem
multitemporal e intercultural, a coleção emprega estratégias
decoloniais no estudo do orientalismo, das civilizações asiáticas e
dos trânsitos culturais entre os muitos orientes possíveis,
procurando compreender suas características originais e sua
recepção no imaginário e na intelectualidade ocidental. Nesse
sentido, a coleção Oriente 24 é formada por uma série de volumes
que compreendem cada uma dessas dimensões espaçogeográficas e culturais, buscando transmitir ao público uma nova
perspectiva de conhecimento, capaz de ampliar os horizontes
intelectuais, acadêmicos e educacionais do contexto cultural
brasileiro. Estão aqui presentes estudos dos mais diversos campos,
que tentam apreender a variedade das expressões das culturas
asiáticas, de moda torná-las inteligíveis ao público brasileiro. Seja
bem-vindo a nossa coleção!
Volumes de Oriente 24:
Orientalismos: Pensamento e Literatura
Orientalismos: Mídias e Arte
Orientalismos e Brasil
Estudos sobre Próximo Oriente
Estudos Chineses
Estudos Japoneses
Estudos Coreanos
Estudos Asioindianos
SUMÁRIO
O PODER EPISCOPAL NO ORIENTE PRÓXIMO DA PRIMEIRA IDADE
MÉDIA. DEBATES A PARTIR DA VIDA DE MACRINA (SÉC. IV)
Wendell dos Reis Veloso
9
A MATERIALIDADE DA PRIMEIRA GUERRA ROMANO-JUDAICA
Ana Beatriz Siqueira Bittencourt
18
MANIPULANDO TECLA: A SANTIDADE COMO ARTIFÍCIO DE
CONSOLIDAÇÃO EPISCOPAL E CONTROLE DAS MULHERES
Cainã Lima
27
EPÍSTOLAS DE PLINIO O JOVEM A TRAJANO: RECEPÇÃO DOS
MOVIMENTOS DO CRISTIANISMO NO IMPÉRIO ROMANO NOS SÉCULOS I
E II
Elois Alexandre de Paula
36
RAMSÉS II FOI O MAIOR FARAÓ DO EGITO ANTIGO OU UM MESTREDA
PROPAGANDA? UMA ANÁLISE CRÍTICA À FIGURA DE RAMSÉS II E
COMPARAÇÃO DO SEU REINADO COM O DE AMENHOTEP III
José Raimundo Neto
46
DE MESQUITA A CATEDRAL: MEMÓRIA DA CONQUISTA E AMBIENTE
CONSTRUÍDO NA MESQUITA-CATEDRAL DE CÓRDOBA
Luiza Santana Locatel Araújo e Pietro Enrico Menegatti de Chiara
54
O ESPELHO HONORÁVEL DA JUVENTUDE COMO UM ELEMENTO
OCIDENTALIZANTE NA RÚSSIA DE PEDRO O GRANDE
Maria Carolina Stelzer Campos
63
É HORA DE BRINCAR: AS BONECAS DOS INFANTES EGÍPCIOS DO
MUNDO ANTIGO
Maura Regina Petruski
71
A BALADA DE JOHN WARD, O PIRATA QUE VIROU TURCO (1552-1622)
Nelson Rocha Neto
78
IBN KHALDUN, A MUQADDIMAH E AS MADRASSAS: BREVES
APONTAMENTOS SOBRE OS PRINCÍPIOS BÁSICOS PARA UMA
INSTRUÇÃO DE QUALIDADE
Renata Ary
86
A VIDA DE MARINA/MARINO: A GÊNESE DE UM PROJETO DE PESQUISA
SOBRE VIRIARCADO, PODER PASTORAL E GÊNERO A PARTIR DE
HAGIOGRAFIAS DO ORIENTE PRÓXIMO DURANTE A PRIMEIRA IDADE
MÉDIA
Ricardo Russo Carvalho
92
RELIGIÃO NO ANTIGO ORIENTE MÉDIO: CRENÇAS FUNERÁRIAS
MESOPOTÂMICAS NO ÉPICO DE GILGAMESH
Ryckel Mynackson Farias Barbosa
98
A CONVERSÃO DA RUS DE KYIV POR BIZÂNCIO: CRISTIANISMO E RITO
ORIENTAL
Talita Seniuk
107
EXORCISMO E IDEALIZAÇÃO NA ÍNDIA MÉDIA: A RELIGIOSIDADE
POROSA NA ETIÓPIA E O ATRITO LUSITANO NA PRIMEIRA
MODERNIDADE
Wallace de Oliveira Machado
114
8
O PODER EPISCOPAL NO ORIENTE PRÓXIMO DA
PRIMEIRA IDADE MÉDIA. DEBATES A PARTIR DA VIDA
DE MACRINA (SÉC. IV)
Wendell dos Reis Veloso
Algumas primeiras palavras sobre lideranças cristãs nos primeiros
séculos
Desde o século I da Era Comum que o exercício de poder episcopal, por
homens e mulheres que se entendiam como cristãos é um daqueles fatos
históricos incontestes. Contudo, desde que os filósofos da linguagem
colocaram os significantes em suspensão, e privilegiaram os diferentes
significados, que muitos historiadores começaram a pensar as diferentes
concepções do que seria o exercício de poder do bispo ou da bispa ao longo
dos séculos.
José Fernández Ubina, um dos grandes especialistas no assunto, argumenta
que as comunidades cristãs do final do primeiro e do início do segundo séculos
da Era Comum teriam sido lideradas por bispos carismáticos cuja autoridade
derivaria diretamente do divino. Neste contexto, no qual verifica-se o processo
de distanciamento gradual entre judaísmo e cristianismo se impõem dois fatos
cruciais para o que estamos tratando, a saber, que por volta do século II a
maioria das comunidades eclesiásticas espalhadas pelo Império Romano já se
estruturavam hierarquicamente no tripé bispos, presbíteros e diáconos; e que
não se conhece os pormenores do processo que conduziu uma organização
rudimentar a uma instituição como o episcopado monárquico [Ubina, 2016, p.
40-41]. Embora o modo como indicamos o plural na língua portuguesa [e no
espanhol, idioma original do historiador] seja no masculino, e, por isso, não
podemos desconsiderar que nas assertivas de Ubina estariam incluídas as
mulheres, devemos reforçar que no conjunto de líderes das comunidades
cristãs dos primeiros séculos encontramos diaconisas, presbíteras, bispas e até
mesmo apóstolas. Acerca disso afirmou Rosa Mentxaka:
“[...], são bastantes numerosas as mulheres que se comprometeram com o
cristianismo desde as suas origens, tomando parte ativa no movimento, do qual
se destaca especialmente a Ásia Menor como um dos lugares onde ocorreu um
maior protagonismo; algumas dessas mulheres gozaram de uma certa
9
capacidade econômica, a qual possibilitou que desde o princípio colaborassem
com a expansão da nova religião e, em algumas ocasiões, presidissem as
comunidades domésticas.” [Mentxaka, 2016, p. 560. Tradução livre de nossa
autoria]
Um dos testemunhos mais evocados sobre a organização das comunidades
cristãs dos primeiros séculos advém de uma epístola atribuída a Gaius Plinius
Caecillius Secundus [61-113 EC], mais conhecido como Plínio, o Jovem. Tal
epíteto se deu em referência ao seu tio e pai adotivo Plínio, o Velho [23-79 EC].
Seguindo o cursus honorum próprio de alguém ligado à ordem dos equestres,
Plínio, o Jovem, embora não pertencesse à nobilitas romana tradicional, desde
o início da última década do primeiro século integrou-se à burocracia imperial
romana, sendo já no final desse período e durante as duas primeiras décadas
do século II EC o momento no qual ocupou os mais importantes cargos, dentre
eles o de governador da província da Bitínia sob o governo de Trajano.
[Stadler, 2018, p. 7]
É desse contexto a carta que nos interessa. Já no início da correspondência
endereçada ao imperador Trajano encontramos a afirmação de que, quando
em Roma, nunca havia participado de nenhum processo contra os cristãos e
que desconhecia o crime do qual os mesmos estariam sendo acusados, daí
recorrer ao imperador sobre a diligência devida. [Plínio, o Jovem, Cartas, Livro
X, Epístola 96, 1] Mais à frente, relata ter inquirido os acusados se de fato
seriam cristãos e, diante da assertiva, mesmo ante a ameaça de punições,
Plínio considerou os cristãos fanáticos, obstinados e intransigentes [Plínio, o
Jovem, Cartas, Livro X, Epístola 96, 3], de modo que teria sido necessário
maior cuidado com a questão:
“Por esta razão, considerei necessário investigar quanto há de verdade em
tudo isso e, assim, submeti à tortura duas escravas as quais os cristãos
denominam de ministras. Mas não encontrei nada além de uma tola e
extravagante superstição.” [Plínio, o Jovem, Cartas, Livro X, Epístola 96, 8.
Grifos nossos]
Nesse texto nos valemos da tradução do historiador Thiago David Stadler, o
qual optou por traduzir ministrae, a atribuição das duas ancillis, como ministras,
o que também defendemos ser a melhor escolha. No entanto, por exemplo, na
tradução para a língua inglesa publicada pela editora da Universidade de
Oxford [2006] a escolha foi pelo vocábulo deaconesses, em língua portuguesa,
diaconisas. Não se trata de um erro crasso, mas defendemos não ser a melhor
escolha, posto que Plínio traduzia a realidade grega no qual se encontrava
através do termo latino ministrae, o que provavelmente, deveria indicar algo
como diaconisa, mas que nos aponta para uma realidade que se impunha, a
instabilidade da semântica em torno dos cargos eclesiásticos nos primeiros
séculos.
Dos trechos da epístola pliniana que evocamos podemos sustentar os
argumentos de que na Ásia Menor do início do século II EC havia pessoas que
10
se reconheciam como cristãs; essas práticas causavam certa estranheza ao
ponto de gerarem denúncias ao governo local; as comunidades cristãs ao redor
do Império Romano e os seus assuntos não eram de conhecimento
generalizado, posto que um governador de província afirma cabalmente não ter
tal ciência; na Ásia Menor do início do século II EC havia comunidades cristãs
dirigidas por mulheres, inclusive aquelas escravizadas; neste período a
perseguição e potencial punição aos cristãos parece ser algo reativo e
localizado; e, por último, não havia clareza quanto às esferas de jurisdição dos
líderes das comunidades cristãs, de modo que as atribuições de
presbíteros/presbíteras,
diáconos/diaconisas,
bispos/bispas
e
apóstolos/apóstolas, provavelmente eram imbricadas.
Ao que nos parece, portanto, as mulheres tinham bastante agência no
movimento de Jesus com Jesus e teriam continuado a ter nas comunidades
cristãs. Temos referência da existência de presbíteras, diaconisas, bispas e até
mesmo apóstolas ao longo dos séculos I e II EC especialmente, mas,
provavelmente, durante os séculos II e III EC, nos quais verificamos o
fortalecimento do poder dos bispos esse cargo foi paulatinamente coaptado
pelas elites romanas. Fato é que no século IV já encontramos bispos
poderosos, esse cargo já é prestigioso e quase que exclusivamente masculino
tal qual uma magistratura romana, embora não seja de fato uma magistratura
romana. Ou seja, os bispos fazem parte do espaço público, espaço esse que
tradicionalmente se confunde com o que nós denominamos de masculino, um
espaço naturalizado como pertencente aos animais humanos machos.
Mas então, as mulheres deixam de ter importância no cristianismo dos séculos
III e IV EC? Definitivamente não. As mulheres são fundamentais em muitos
aspectos. Temos evidências de que, considerando as mulheres ricas, elas
continuam a liderar grupos religiosos, ainda que de modo informal, posto que
as igrejas nesse período ainda se confundem com ambientes domésticos; elas
financiam a construção de templos públicos dedicados à fé cristã, como
basílicas; também financiam casas monásticas e, sobretudo, financiam e assim
possibilitam a vida material da elite eclesiástica, bispos e monges. No entanto,
considerando a alegada ortodoxia, elas não podem mais exercer nenhum cargo
de modo formal com exceção do diaconato, cada vez mais afastado da
jurisdição episcopal. Além disso, também não poderiam ser creditadas, por
exemplo, em algum debate teológico.
Então há o seguinte cenário. Ao longo dos séculos da Era comum as mulheres
sempre tiveram agência nas comunidades cristãs. O que os indícios nos
permitem aventar é que, em um primeiro momento essa agência era mais
igualitária, ou seja, mulheres e homens poderiam exercer funções semelhantes
no interior dessas comunidades e, ao passo que a burocracia romana se
aproximava de uma determinada facção do cristianismo, nesse caso a católica,
a agência das mulheres se tornou cada vez mais informal e sub-reptícia. Em
outras palavras, quando o cristianismo católico se estabeleceu no espaço
público, as mulheres, que já não podiam fazer parte desse mundo público
antes, também têm o seu espaço de ação diminuído, quando não são mesmo
11
alijadas da dinâmica formal do cristianismo. Esse assunto é tratado por
estudiosos desde o início do século passado, como, por exemplo, nos escritos
de Adolf von Harnack [1905], e continua em voga nos dias atuais. Dentre os
trabalhos hodiernos podemos destacar os estudos em língua espanhola de
Amparo Pedregal [2005]; Mar Marcos Sánchez [2005]; e Rosa Mentxaca [2016;
2018; 2019]. Na historiografia brasileira o assunto também está longe de ser
negligenciado, de modo que destacamos a produção de Gilvan Ventura da
Silva [2007]; João Carlos Furlani [2012; 2013]; e Juliana Cavalcanti [2021].
Estabelecido esse processo histórico de enfraquecimento da agência pública e
formal das mulheres nas comunidades cristãs dos quatro primeiros séculos da
Era Comum, também devemos apontar que partimos da compreensão de que
a literatura hagiográfica, especialmente característica dos séculos IV, V e VI, é
um dispositivo de domesticação de figuras femininas conhecidas e de
santidade socialmente aceita. Sendo assim, nossa proposta neste texto, é
apontar as referências feitas na narrativa sobre Macrina acerca da hierarquia
eclesiástica, especialmente os bispos. Analisamos a Vida de Macrina através
da clássica versão crítica e bilíngue de Pierre Maraval [1971].
A Vita Macrinae e as referências ao episcopado
A Vita Macrinae é uma hagiografia datada do século IV EC, cuja autoria é
atribuída ao bispo Gregório de Nissa. O vocábulo hagiografia provém de duas
palavras gregas, a saber, hagio, que significa santo, e grafia que significa
escrita. Sendo assim, o termo hagiografia é utilizado desde o século XVII para
designar o estudo crítico dos diferentes aspectos ligados ao culto aos santos e
também os textos que têm como temática central os próprios cultuados.
Quanto à tipologia desses escritos as possibilidades são plurais, pois a
narrativa hagiográfica pode, por exemplo, ser apresentada como uma paixão;
um tratado de milagres; relatos de viagens espirituais; e, o que nos interessa
de modo mais objetivo neste texto, uma vita, narrativa sobre a vida do
hagiografado em que são narradas suas virtudes a servirem de exempla [Silva,
2008, p. 7].
Izabel Velázquez ressalta a grande pluralidade de textos do gênero
hagiográfico e a dificuldade em classificá-los dentro de subgêneros.
Inicialmente, as narrativas sobre os santos se aproximavam mais de um
processo no qual “acontecimentos” eram narrados de modo quase sempre
cronológico, e quanto mais afastados no tempo é o relatado da sua narrativa,
mais literárias são as hagiografias. Esta característica se apresenta, sobretudo,
nos elementos maravilhosos dos textos. [Velázquez, 2005, p. 42-45] De acordo
com Antonio Manuel Rebelo, a hagiografia, enquanto gênero literário, faz
referência aos modelos clássicos daquilo que entendemos atualmente como
uma biografia, do panegírico, da saudação fúnebre e da apologia. Neste
sentido:
“A hagiografia visa primordialmente glorificar a Deus através da narração e
enaltecimento da vida e obra do santo. A estes juntam-se outros objectivos,
que podem ser morais, catequéticos, parenéticos, apologéticos, dogmáticos,
12
eclesiásticos, pastorais, políticos... tanto numa perspectiva pessoal ou
individual, como num enquadramento social ou colectivo.” [Rebelo, 2022]
Mais especificamente sobre a hagiografia de mulheres, Clarissa Matanna de
Oliveira pontuou:
“Inicialmente, devemos considerar que as hagiografias femininas [...] foram, em
sua maioria, escritas por homens e, dessa forma, refletem suas visões e
expectativas sobre as mulheres. Esses homens pertenciam ao clero secular ou
ao meio monástico e, por isso, essas construções eram baseadas em ideias
sobre o feminino procedentes das escrituras e da teologia cristã, e estavam
situadas historicamente em um dado contexto. Assim, o hagiógrafo precisava
fazer escolhas para elaborar um perfil de mulher santa que, ao mesmo tempo,
estivesse de acordo com fundamentos teológicos, com o ideal de vida religiosa
feminina vigente e com os objetivos de produção do texto. A narrativa também
deveria ser factível frente à memória da hagiografada e aos referenciais
culturais e sociais das audiências.” [Oliveira, 2022]
Sistematizando, usamos hagiografia em seu sentido geral que é o de um
escrito sobre algum ser considerado santo e, no caso mais específico de nossa
proposição, entendemos a Vita como uma narrativa sequencial e que se
pretende cronológica sobre alguém considerado santo ou santa. Com a
advertência crucial para nos atentarmos que, mesmo quando tais narrativas
são dedicadas às mulheres, esses textos são, em sua maioria, da autoria de
homens e, portanto, nos dão indícios de suas agendas.
Macrina viveu na Ásia Menor provavelmente entre 325/327 e 379/380 EC
[Costa, Zierer, 2001, p. 345; Salisbury, 2001, p. 201], no seio de uma família
tradicional cristã em que variados integrantes ligam-se à História do
cristianismo católico. Para se ter uma ideia, se confiarmos na narrativa
hagiográfica dedicada à nossa personagem histórica, os avós de Macrina
teriam sofrido ante as perseguições imposta aos cristãos ao ponto de seu avô
materno ter mesmo sofrido o martírio. [Gregório de Nissa, Vida de Macrina, XX,
2] A avó, Macrina, a Velha, é descrita como de suma importância para o
desenvolvimento religioso de seus irmãos. Inclusive, é em homenagem a ela
que Macrina é nomeada [Gregório de Nissa, Vida de Macrina, II, 1] e, por isso,
também conhecida como Macrina, a Jovem.
Os quatro irmãos de Macrina destacaram-se todos como grandes religiosos.
Os bispos, também conhecidos como Pais da Capadócia, Basílio de Cesaréia,
Gregório de Nissa e Pedro de Sebasta; e o monge Naucratius. Junto ao bispo
de Cesaréia Macrina é figura fundamental do ascetismo oriental [Salisbury,
2001, p. 201]. Conhecemo-la a partir do penejar de um homem, seu irmão
Gregório, bispo de Nissa e autor da vida dedicada à sua irmã e redigida logo
após a sua morte, entre 380 e 383 EC [Costa, Zierer, 2001, p. 346].
A partir desse momento passaremos a explorar os dados acerca do
episcopado na narrativa hagiográfica, mas, por conta do espaço, não de modo
13
exaustivo. Daremos especial atenção a alguns trechos, os quais consideramos
mais emblemáticos.
Basílio, bispo de Cesaréia em 370 EC, é descrito como a glória da família
[Gregório de Nissa, Vida de Macrina, XIV, 2]. Fato é que Basílio fora o filho
escolhido para trilhar os passos de seu pai na vida pública como um orador e
advogado, de modo que teria tido acesso ao melhor do sistema educacional
formal em Cesaréia, Antioquia, Constantinopla e Atenas [Salisbury, 2001, p.
201]. Logo, o tom laudatório com o qual é tratado na narrativa provavelmente
não se deve apenas ao seu cargo episcopal, mas também ao seu notável
intelecto, ou ainda, pode ter tido como motivação o reconhecimento de que
alguém preparado para uma grande carreira na vida pública abdicou da mesma
em favor da vida cristã, como é comum ao tópos literário da humildade que
caracteriza narrativas hagiográficas.
O discurso hagiográfico ainda aponta que o bispo deve atender às reuniões e
enfrentar heresias [Gregório de Nissa, Vida de Macrina, XV, 1]; realizar ofícios
fúnebres [Gregório de Nissa, Vida de Macrina, XXV, 3]; além de ser sempre
temperante e calmo, posto que o trecho em que afirma ter se entregado à
lamentação por sua irmã é descrito como “abandono de suas funções”
[Gregório de Nissa, Vida de Macrina, XXVI, 1].
Para além dessas referências, duas passagens nos chamam especial atenção.
Na primeira, quando dos últimos momentos de vida de Macrina, seu irmão, o
hagiógrafo, chega para visitá-la e ela é descrita como ardendo em febre e sem
forças, mas, ao ver o bispo de Nissa se esforça para prestar reverência
[Gregório de Nissa, Vida de Macrina, XVII, 1-2]. O outro trecho narra o preparo
do corpo de Macrina para o sepultamento, momento em que é reafirmada a
humildade da santa, a qual não possuiria adornos com os quais ser sepultada.
Neste momento a personagem Gregório diz que poderia adorná-la com
elementos familiares, mas se preocupava se isso seria contra a vontade de
Macrina, ao que a personagem que o ajudava diz que ela certamente não se
oporia, já que tinha muita reverência pelo sacerdócio de Gregório [Gregório de
Nissa, Vida de Macrina, XXIX].
Como já argumentamos, o texto hagiográfico, em especial a vita, possui como
um dos seus principais objetivos a promoção da santidade de alguém, de modo
que Macrina é objetivamente descrita como uma pessoa distinta das demais.
Ela teria superado a sua natureza [Gregório de Nissa, Vida de Macrina, I, 1];
teria sido propensa ao aprendizado [Gregório de Nissa, Vida de Macrina, III, 1],
humilde, equilibrada, resiliente [Gregório de Nissa, Vida de Macrina, X, 1] e
continente [Gregório de Nissa, Vida de Macrina, XI, 2]. A sua distinção também
advém da associação à uma popular personagem feminina de grande
importância para os cristianismos, a saber, Tecla [Gregório de Nissa, Vida de
Macrina, II, 3]. Apóstola e seguidora de Paulo que, de acordo com o texto extra
canônico Atos de Paulo e Tecla, pregava e batizava [Salisbury, 2001, p. 348350]. Salta aos olhos que, embora referida como uma espécie de Tecla,
Macrina é distanciada de elementos apostólicos e/ou episcopais, tal como
14
podemos inferir a partir dos trechos das seções XVII e XXIX da hagiografia. A
despeito de sua santidade, Macrina devia deferência a Gregório. E isso não
apenas devido ao laço familiar que os unia, mas devido ao cargo que ele
ocupava, tal como o texto afirma categoricamente.
Algumas reflexões finais
O poder para Michel Foucault [2007] é um exercício, é uma possibilidade, posto
que é histórico e contextual, logo, só pode ser entendido no interior de uma
trama histórica. É por isso que é necessário identificar o disparate, a tecnologia
de poder específica de cada período. No caso da Primeira Idade Média, os
bispos se impõem como figuras de importante autoridade pública, autoridade
essa certamente disputada em diferentes esferas. Como podemos verificar nos
dados levantados na hagiografia, a personagem Macrina é associada a
elementos distintivos ao ser descrita como temperante, continente, humilde,
propensa ao aprendizado, etc. No entanto, diferente das personagens
femininas das narrativas cristãs dos séculos anteriores, Macrina não é
associada de modo objetivo ao epistolado ou episcopado. Ao contrário, sua
santidade, advogada no texto que analisamos, não a equipara ao status do
bispo, de modo que a esses deveria prestar reverência.
Deste modo, nosso argumento é o de que o discurso hagiográfico foi parte
fundamental no processo de afirmação do episcopado monárquico ao afastar
as mulheres, mesmo as de santidade reconhecida, da possibilidade de agência
formal na esfera pública ao atuar na construção e manutenção do monopólio
do exercício episcopal para os homens, episcopado que a essa altura já
congregava quase toda a carga semântica das diferentes jurisdições
eclesiásticas antes em processo de estabilização.
Referências
Dr. Wendell dos Reis Veloso é professor de História Medieval na UERJ, onde
também integra o Programa de Estudos Medievais (PEM-UERJ). Além disso é
pesquisador associado ao LabQueer - Laboratório de Estudos das Relações de
Gênero, Masculinidades e Transgêneros/UFRRJ; ao ATRIVM - Espaço
Interdisciplinar de Estudos da Antiguidade/UFMS; e ao Agios - Grupo de
Estudos sobre Hagiografia e Santidade/UFF.
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e ascetismo feminino cristão na Ásia Menor do século IV” in PHOÎNIX, 7, p.
345-359, p. 2001.
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Antiguidad Tardía Homenaje A Ramón Teja. Madrid: Editorial Trotta, 2016, p.
37-51.
VELÁZQUEZ, Isabel. Hagiografia y culto a los santos en la Hispania visigoda:
Aproximación a sus manifestacións literárias. Mérida: Museo Nacional de Arte
Romano, 2005.
17
A MATERIALIDADE DA PRIMEIRA GUERRA ROMANOJUDAICA
Ana Beatriz Siqueira Bittencourt
Para este trabalho propomos um recorte de análise acerca da Primeira Guerra
Romano-Judaica, ocorrida entre os anos de 66 e 73 d.C. Marcada por disputas
internas e atos de resistência por parte de grupos judaicos, foi a eclosão de um
conflito ligado à insatisfação diante da dominação romana na região da Judeia,
então província romana desde o início do primeiro século. Iniciada sob o
governo de Nero, a revolta se destacou por sua longa duração, se estendeu
pelos governos de Galba, Oto, Vitélio e terminou sob Vespasiano, através das
legiões comandadas por seu filho Tito.
Vale ainda considerar que dispomos hoje de duas importantes e consagradas
narrativas sobre esta guerra: a Guerra dos Judeus de Flávio Josefo e as
Histórias de Tácito. A primeira foi escrita em grego, em um período bem
próximo ao fim da guerra, provavelmente entre os anos de 75 e 79 d.C.; a
segunda foi escrita em latim aproximadamente entre os anos de 104 a 109
d.C., abarcando o período entre a guerra civil de 69 d.C. e o fim do principado
de Domiciano, em 96 d.C., estando o relato sobre o conflito em questão
presente no livro V.
Considerando adequado diversificar as fontes e explorar outros discursos que
pudessem contribuir para a reflexão, buscamos através da cultura material
novos elementos para observação. Mas em que medida a cultura material
pode oferecer informações diferentes dos documentos literários? Como
analisá-la à luz da discussão que propomos? Para além das escritas sobre o
conflito, os testemunhos arqueológicos apresentam perspectivas e discursos
que permitem reconhecer aspectos do tema que não estavam contemplados no
suporte, forma, linguagem e conteúdo pelos textos de Flávio Josefo e Tácito.
18
Guerra, identidade étnica e cultura material
Dentre os muitos vestígios do período, é possível destacar pelo menos três
grandes referências que possuem contato direto com a Primeira Guerra
Romano-Judaica e que representam parte dos esforços empenhados. Em
primeiro lugar estão os vestígios do Templo e do muro que cercava sua
esplanada, o chamado Muro das Lamentações [Figura 1]. Este é o local mais
sagrado para os judeus atualmente, onde oram e se lamentam pela
destruição do Templo.
Figura 1. Visão ampla do Muro das Lamentações em Jerusalém.
Fonte: Arquivo pessoal.
Após a vitória sobre a Judeia em um arrasar da cidade de Jerusalém, sob o
comando de Tito em abril do ano 70 d. C., é destruído o Templo, que teve os
seus pertences e objetos de culto saqueados e posteriormente expostos na
procissão de vitória em Roma [Josefo, Guerra dos judeus, VII, 130-162]. Tal
evento, que é descrito por Josefo em sua obra, se torna o marco da Primeira
Guerra Romano-Judaica, tanto nos anos que a seguiriam como no âmbito do
próprio entendimento do judaísmo atual, estabelecendo daquele dia em diante
uma ruptura no proceder e na configuração do judaísmo. Foi a partir deste
momento que o judaísmo rabínico de fato começou a se transformar naquele
que, em tempos modernos, seria identificado na religião.
19
No livro “A História do judaísmo” [2020], Martin Goodman, ao expor sua
percepção sobre os muitos momentos vividos pelos judeus ao longo da
história, considera a destruição do Segundo Templo em Jerusalém um
acontecimento que define o período, sendo referencial na opção de recorte
feita no seu livro exatamente por perceber como este episódio, em suas
palavras, “deu início a um novo período no desenvolvimento do judaísmo que
causou um efeito profundo em todas as formas de judaísmo que sobrevivem
hoje” [Goodman, 2020, p. 17]. De maneira geral, Goodman trata o judaísmo
como preservador de uma identidade distinta, o que influencia toda a história
dos judeus, entendida nas relações estabelecidas com Roma e no próprio fazer
e perceber da guerra, pontualmente aqui identificada nos conflitos da Primeira
Guerra Romano-Judaica.
Em outro olhar, o destaque no Lácio fica com o conhecido Arco de Tito
[Figuras 2 a 4], construído no período pós-guerra sob o governo de Domiciano
[80 d.C.], e que se localiza perto do Fórum Romano, aos pés do Monte
Palatino. Erguido como marco honorífico após a morte de Tito, como louvor à
sua liderança na vitória final da subjugação dos judeus. Esta dedicatória pode
ser vista na inscrição presente na parte frontal do arco [Figura 2]:
SENATVS
POPVLVSQVE·ROMANVS
DIVO·TITO·DIVI·VESPASIANI·F[ILIO]
VESPASIANO·AVGVSTO
"O Senado e o Povo Romano [dedicam este arco] ao Divino Tito Vespasiano
Augusto, filho do Divino Vespasiano" [CIL, VI, 945].
20
Figura 2. Visão geral do Arco de Tito, localizado na Via Sacra, a sudeste do
Fórum Romano. Fonte: ThePhotografer, CC BY-SA 4.0
<https://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0>, via Wikimedia Commons.
Disponível em: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/3/30/
Arch_of_Titus_%28Roma%29.jpg. Acessado em 20 de novembro de 2024.
É preciso ainda evidenciar os relevos encontrados no interior do arco: de um
lado a cena que retrata os soldados romanos carregando os objetos sagrados
do Templo, tomados como espólio da conquista a exemplo da menorah e da
bacia de lavagem ritual [Figura 3]; e no lado oposto [Figura 4] o relevo que
apresenta a procissão imperial feita pela vitória no conflito em que são
representados, em posição de igualdade, o imperador Vespasiano, seu filho e
general responsável pela vitória, Tito, e a deusa Nike, que simboliza o êxito
militar [cf. Buonfiglio, 2017; Carvalho, 2009]. Assim, os pertences do Templo e
a derrota dos judeus comemorada no triunfo pelas ruas de Roma em 71 d.C.,
ainda podem ser vistos representados no Arco de Tito.
21
Figura 3. Relevo interno do Arco de Tito que mostra os espólios de guerra
saqueados do Templo de Jerusalém. Fonte: © José Luiz Bernardes Ribeiro.
Disponível em: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/
4/41/Spoils_from_Jerusalem_-_Arch_of_Titus_-_Rome_2008.jpg. Acessado em
20 de novembro de 2024.
Figura 4. Relevo interno do Arco de Tito que mostra a procissão da vitória
romana. Fonte: https://www.almendron.com/artehistoria/arte/escultura/lasclaves-de-la-escultura/el-relieve/. Acessado em 20 de novembro de 2024.
22
Em adição a estes, um documento que oferece um conjunto de informações
importantes sobre as identidades étnicas são as diversas moedas que, sob
ambas as perspectivas da guerra, apresentam o relato da disputa em
representações fortemente marcadas por questões identitárias. Em geral,
temos então dois grupos de moedas: as chamadas moedas da resistência,
cunhadas pelos judeus ao longo dos conflitos [a saber, a Primeira Guerra
Romano-Judaica e a Segunda Guerra Romano-Judaica ocorrida entre 132 e
135 d.C.], e as séries Judaea Capta e Recepta, cunhadas pelas autoridades
romanas dos governos de Vespasiano, Tito e Domiciano [dinastia Flaviana], em
louvor à vitória de Roma.
No caso das moedas, seu uso nos contextos das guerras e disputas políticas
atua no reforço de posições sociais, bem como estabelecem visões sobre o
inimigo. Dessa forma, nos permitem uma compreensão mais acurada das
diferentes visões sobre as identidades em conflito e, sobretudo, dos usos
políticos da cultura no marco da manutenção das fronteiras étnicas. Cláudio
Umpierre Carlan [2013], aplicando a metodologia de análise de conteúdo
proposta por Harold Laswell, considera que o corpo de informações percorre o
caminho que vai dos interesses e motivações do emissor à interpretação por
parte do receptor [público alvo].
Em mesma medida é preciso entender que dentro do Judaísmo os símbolos e
imagens têm papel fundamental e definidor do próprio entendimento étnicoidentitário, tanto no campo religioso quanto cultural e social [Fine, 2005; Rocha,
2001]. Destarte, no caso específico dos judeus, algumas moedas exibem
preclara oposição aos romanos e/ou evocam símbolos partilhados pelos judeus
em sintonia à sua relação com o território em uma percepção simultaneamente
cultural e religiosa. Nas moedas da resistência a declaração de
reconhecimento público da própria identidade revela, através de símbolos
importantes para o viver e fazer do judaísmo, o desejo de redenção do povo.
Nesse contexto, se destaca a representação da tamareira, identificada como
um símbolo chave em comum, que em função eminentemente política se torna
frequentemente utilizada como representação identitária que por força de sua
relação vincula o povo judeu e a Judeia [cf. Bittencourt, 2022].
Do ponto de vista metodológico, a investigação se concentra nos símbolos que,
associados ao suporte material, produzem uma mensagem associada às
fronteiras étnicas, quer seja em termos de resistência ou como um marcador da
memória e/ou identidade étnica. Assim, os símbolos atuam em suas
particularidades no amalgamar das ferramentas usadas, transmitindo a imagem
23
que pretendem reafirmar e que, pelo uso, se tornam conhecidos pelo
expectador.
É fundamental entender que o estudo da cultura material é de imprescindível
importância nesse contexto. Não obstante, o uso das moedas como fonte
histórica possibilita a compreensão sobre a atuação da moeda e o papel que o
homem antigo atribuía a ela. Ao perceber então as marcas nelas impressas,
cabe considerar que: “a representação inclui as práticas de significação e os
sistemas simbólicos por meio dos quais os significados são produzidos”
[Woodward, 2012, p. 17]. As moedas são assim importantes meios de difusão
de ideias, e como os discursos literários, são a representação de tempos
através de mensagens. O Império Romano, por exemplo, tinha essa como uma
das suas estratégias de propaganda, já que sua constante exposição e
circulação funcionavam como o marcar e comunicar dos feitos alcançados,
fixando-os no imaginário coletivo.
Este suporte às mensagens não foi escolhido por acaso, afinal, as moedas
como objeto de uso cotidiano na sociedade possuíam circulação ao longo do
Império. Por meio de uma linguagem simbólica pode-se perceber a
transmissão de discursos políticos e mensagens cívicas. De mão em mão,
conseguiam penetração em diferentes classes sociais [ainda que a quantidade
de metal em algumas as tornassem inacessíveis aos menos abastados].
Através da numismática, portanto, é possível resgatar traços culturais
importantes que não costumam constar na documentação literária.
Considerações finais
A fonte imagética ganha “importância não apenas ligada às suas qualidades
estéticas, mas à sua capacidade de representar os imaginários sociais e de
evidenciar as mentalidades coletivas” [Rocha, 2007, p. 119]. Pensando no
contexto das narrativas aqui trabalhadas, se observam identidades que por
vezes se chocam com o “outro”, principalmente quando pensado o acirramento
gerado pela guerra que acaba por destacar de maneira mais vívida as
diferenças, sejam esses destaques frutos das próprias discordâncias entre as
partes ou instituídos como uma demarcação de poder.
Assim, é na análise da materialidade, ou melhor, dos vestígios arqueológicos
do período, que percebemos na construção e no olhar sobre o próprio espaço
os processos de significação e ressignificação do território da Judeia. A
apropriação da paisagem através da sacralização de construções e espaços
pelos judeus, ou o remodelar das cidades pela imposição da estética romana
em edifícios públicos, implementados ao longo do processo de dominação
romana, nos fazem olhar as estruturas, suas funcionalidades e usos. As
24
fronteiras étnicas, neste sentido, são percebidas e tensionadas na vida
comum, cotidiana. Mais do que propriamente uma pertença visceral,
percebemos o lugar que nos modifica, sendo estas transformações geradas
“através da ‘prática do lugar’, da negociação das trajetórias que ali se
intersectam, sendo inerentes às relações da alteridade assimiladas ou não”
[Teixeira-Bastos e Funari, 2019, p. 100].
Decerto, a historiografia que se constrói na mobilização das fontes [sejam elas
literárias ou materiais], com base em teorias e métodos vinculados aos
problemas e inquietações de nosso tempo, tem o mérito de permitir um
generoso acúmulo e renovação de discussões sobre fatos tão antigos como
tradicionais. A guerra, as diferenças étnicas, as formas de resistência, as
relações dos sujeitos com seus territórios e os exercícios de poder não são
produtos da natureza, mas se fazem presentes o suficiente ao longo do tempo
para que possamos reconhecer a Antiguidade como um interlocutor
necessário. Desta maneira, os esforços atuais no campo de estudo das
identidades estão inseridos em debates para melhor análise e valoração dos
grupos sociais.
Referências
Ana Beatriz Siqueira Bittencourt é doutoranda do PPGHC-UFRJ com bolsa
pela FAPERJ, e coordena o canal Cool História que é voltado à divulgação
científica
das
áreas
de
Pré-história
e
História
Antiga
[https://www.youtube.com/coolhistoria].
BITTENCOURT, Ana Beatriz Siqueira. Guerra e Identidade: O Judeu e o
Romano nas obras de Tácito e Flávio Josefo (séc. I d.C.). Dissertação
(Mestrado) – Instituto de História, Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal Fluminense, UFF, Niterói, 2022. Disponível em:
https://www.academia.edu/98659345/
Guerra_e_Identidade_O_Judeu_e_o_Romano_nas_obras_de_T%C3%A1cito_
e_Fl%C3%A1vio_Josefo_s%C3%A9c_I_d_C_
BUONFIGLIO, Marialetizia. L’Arco di Tito al Circo Massimo: dalle indagini
archeologiche alla ricostruzione virtuale. Bullettino della Commissione
Archeologica Comunale di Roma, CXVIII - n.s. XXV, pp. 163-187, 2017.
CARLAN, Cláudio Umpierre. Moeda e poder em Roma: um mundo em
transformação. São Paulo: Annablume, 2013.
25
CARVALHO, Vânia Maria Faria Floriano. As Utilizações sociais da memória
nos Arcos Triunfais de Tito, Septímio Severo e Constantino. II Seminário de
Pesquisa da Pós-Graduação em História da UFG/UCG, 2009.
CORPUS INSCRIPTIONUM LATINARUM (CIL). VI, 945. Disponível em:
https://db.edcs.eu/epigr/epi_einzel.php?s_sprache=en&p_belegstelle=CIL+06
%2C+00945&r_sortierung=Belegstelle. Acessado em: 15 de maio de 2022.
FINE, Steven. Art & Judaism in the Greco-Roman World: Toward a New Jewish
Archaeology. Cambridge: Cambridge University Press, 2005.
GOODMAN, Martin. A História do Judaísmo: A saga de um povo: das suas
origens aos tempos atuais. São Paulo: Planeta, 2020.
JOSEFO, Flávio. The Jewish War. Tradução do grego para o inglês de H. ST.
J. Thackeray. Cambride, Massachusetts e Londres: Loeb Classical Library Havard University Press, 1989.
ROCHA, Ivan Esperança. Imagem e narrativa no judaísmo antigo. Clássica, v.
13/14, pp. 251-259, 2000/2001.
ROCHA, Ivan Esperança. Imagem no Judaísmo: Aspectos do “Aniconismo”
Identitário. História, v. 26, n. 1, pp. 119-124, 2007.
TEIXEIRA-BASTOS, Marcio e Pedro Paulo Abreu FUNARI. A presença de
Roma no oriente: Iudaea Capta e as tradições culturais da palestina romana.
Humanitas, v. 73, pp. 81-104, 2019.
WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: Uma introdução teórica e
conceitual. In: SILVA, Tomaz Tadeu da; HALL, Stuart e WOODWARD, Kathryn
(orgs.). Identidade e diferença: A perspectiva dos estudos culturais. Rio de
Janeiro: Vozes, 2012.
26
MANIPULANDO TECLA: A SANTIDADE COMO
ARTIFÍCIO DE CONSOLIDAÇÃO EPISCOPAL E
CONTROLE DAS MULHERES
Cainã Lima
Introdução
Tecla não somente é uma das personagens mais populares da Antiguidade
Tardia, sobretudo no Oriente, por meio dos Atos de Paulo e Tecla, cuja
recepção foi enorme, mas também por conta da quantidade de menções a ela
por autores do período, especialmente bispos. Sua história é tomada como
base para diversas outras mulheres cujas santidades foram atestadas por meio
de hagiografias. Ghazzal Dabiri e Flavia Ruani organizaram uma coletânea que
pensa a recepção dos Atos de Paulo e Tecla nessa literatura [2022]. Se
pensarmos na Síria, Catherine Burris se dedicou a examinar as menções a ela
na Síria em The Reception of the Acts of Thecla in Syriac Christianity:
Translation, Collection and Reception [2010] ou em The Syriac Book of
Women: Text and Metatext [2007, p. 86-101]. Jeremy W. Barrier organizou com
outros autores mais recentemente uma coletânea que pensa a figura de Tecla
no Oriente e Ocidente (diferente de Dabiri e Ruani, a ideia aqui não é analisar a
recepção dela na literatura medieval) [2017]. Chiaria Tommasi Moreschini
considerou que:
“[...] deve ser constatado que a literatura cristã latina (e também pagã em um
determinado caso), apesar da escassez de testemunhos acerca da virgem
discípula de Paulo em Icônio, destacou diferentes aspectos e os adaptou a
situações específicas, seja de maneira exemplar ou ainda polêmica.”
[MORESCHINI, 2016, p. 90, tradução nossa]
Sever Voicu escreveu Thecla in the Christian East para a mesma coletânea,
realizando um exercício semelhante ao de Moreschini, mas para o Oriente, e
ele conclui que:
“Conforme os séculos passaram a tradição nunca parou de tentar normalizar e
assimilar Tecla, vendo-a como a discípula que o texto formalmente nega que
27
ela era, transformando-a em um símbolo sombrio de virtude; negando-a
qualquer originalidade e autonomia.” [VOICU, 2016, p. 68, tradução nossa]
Se instaurou ainda um debate a respeito de como interpretar Tecla e suas
correlatas, de modo que Shelly Matthews tentou desenhar um panorama do
que se pensava a respeito no começo da década passada em Thinking of
Thecla: Issues in Feminist Historiography [2001]. Seu trabalho se centra
principalmente entorno de destacar como diferentes autores pensaram a
possibilidade dessa documentação ser tomada como evidência de mulheres
que lutavam pela emancipação nesse período. Barrier fez o mesmo mais
recentemente [2016]. São trabalhos que compartilham um aspecto em comum:
a abordagem superficial da Vida e Milagres de Santa Tecla. Ela sequer é
mencionada em muitos dos trabalhos, enquanto outros dedicam apenas alguns
parágrafos. São dos tradutores a produção mais dedicada. Andrew Jacobs
[2019] e Linda Honey [2011] traduziram cada um uma parte da documentação,
sendo a Vida e os Milagres, respectivamente. Ángel Narro [2017] também a
traduziu, mas para o espanhol e por completo, além de ter produzido muita
coisa relacionada a Tecla tomando como ponto de partida a hagiografia,
centrado especialmente na coletânea de milagres. Outro trabalho relevante no
que tange a análise literária é o de Scott Johnson [2006], mas que traz
preocupações que não nos interessam muito de modo mais geral.
Se considerarmos que os Atos de Paulo e Tecla foram produzidos em um
contexto muito diferente do que encontramos na Vida e Milagres de Santa
Tecla, sobretudo em relação a institucionalização da igreja e paulatina
consolidação do episcopado monárquico, chegaremos à conclusão que o olhar
mais atento para a hagiografia pode nos dar respostas muito diferentes ainda
que façamos perguntas semelhantes às dos autores que se dedicaram a
examinar os AtPT. Se trata não somente de inquirir que modelo de gênero a
documentação sugere e como isso se relaciona com seu contexto específico,
mas também de fazê-lo por outros meios: os Estudos de Gênero. Virginia
Burrus [1987] e Dennis MacDonald [1983] sugeriram a partir da leitura dos
AtPT que a castidade era um meio dessas mulheres obterem autonomia e mais
liberdade do controle dos homens, à medida que autores como Kate Cooper
[1996] e Elizabeth Castelli [2022] apresentaram demonstraram preocupação
com o fato de que o ideal de castidade estar sendo manipulado por homens
que queriam manter essas mulheres sob controle.
Uma santidade generificada e, portanto, performática
Hannah Hunt vai comentar o ascetismo dessas mulheres em termos de um
ascetismo performático, de modo que, apesar de enfatizar por demais o
empoderamento dessas figuras, destaca que:
"[…] autores masculinos de cartas e outros textos sobre mulheres 'masculinas'
sugerem que transcender as limitações do gênero feminino, com todas as suas
conotações negativas, é uma maneira de alcançar a pureza e um poder
ascético." [2019, p. 15, tradução nossa]
28
Ela ainda comenta:
"[…] é presumido que é infinitamente preferível ser masculino do que feminino;
a masculinidade, no entanto, precisa ser praticada e 'performada': como ambos
Michel Foucault e Judith Butler argumentam, gênero é sempre um papel prédefinido que alguém maneja." [Ibidem, p. 14, tradução nossa]
Sendo assim, não somente as mulheres, como também os homens, precisam
ter sua santidade construída de modo a atender essa demanda pela
masculinidade. Justamente por isso que MacDonald afirma que "o mito da
androginia não é a resposta da antiguidade ao androcentrismo; mas uma
manifestação dele" [1988, p. 285 apud Braun, 2002, p. 111, tradução nossa].
Com isso, quero dizer que argumento que o corpo não pode ser entendido
como natural, mas antes como histórico ou uma situação histórica, de modo
que a materialidade desse corpo se diferencia da dimensão em que ele ganha
significado [Butler, 2019, p. 215]. A ação do corpo produz significado, à medida
que também os performa, ou seja, que atos corporais específicos são
associados a essa mulher cuja santidade tem como principal característica a
correspondência a atitudes e vestimentas entendidas como masculinas? Butler
argumenta que "o corpo não é apenas matéria, ele é uma materialização
contínua e incessante de possibilidades. As pessoas não são seus corpos, mas
fazem seus corpos." [2019, p. 216]. Por conseguinte, nos interessa sobretudo a
possibilidade de que esses bispos estejam fazendo o corpo dessas mulheres
de acordo com interesses específicos.
Butler ainda se refere a esse fazer dos corpos como um projeto corporal que
precisa se repetir e sustentado de modo ininterrupto, relacionando a ideia de
"projeto" ao gênero como meio de sobrevivência cultural que demanda
estratégias [Ibidem, p. 217].
Consequentemente, podemos pensar no fazer dos corpos dessas mulheres
como uma empreitada hagiográfica performática vinculada a um determinado
projeto cultural em curso por esses homens no decorrer do séc. V.
Bispos e hagiografia: a aparente contradição no caso de Tecla
Claudia Rapp delineou bem a importância que esses homens adquiriram na
virada da Antiguidade para a Antiguidade Tardia em seu trabalho seminal Holy
Bishops in Late Antiquity: The Nature of Christian Leadership in a Time of
Transition [2005]. José Fernandez Ubiña pensa a consolidação do episcopado
monárquico como um processo de longa duração, que começa nos primeiros
séculos, com a necessidade de que alguém encabeçasse um processo de
enfrentamento a grupos entendidos como perigosos, o que explicaria o por que
as Cartas Pastorais (1 Timóteo e 1 Tito) tentam delimitar melhor as
responsabilidades e características necessárias para que se exerçam os
papéis de bispo, diácono e presbítero [2016]. Dennis MacDonald, apesar de
29
não tocar no assunto da consolidação do episcopado monárquico, não
discordaria, visto que alega que as Cartas Pastorais estão inseridas em um
ambiente de disputa pelo legado de Paulo, especialmente o que tange a
participação das mulheres, dado a sua contraposição aos Atos de Paulo e
Tecla e consequente restrição das mulheres na hierarquia eclesiástica [1986].
Ubinã ainda nos diz que:
“A instauração desse sistema em Roma foi, portanto, paulatina, em um
processo lento de acumulação de autoridade e funções por parte do
bispo/presbítero que presidia o colégio de presbíteros [...] A coincidência da
concentração de poder eclesiástico em uma só pessoa com o fortalecimento do
poder monárquico do Império [...] O mais transcendental foi o impacto em todo
o Império do modelo organizacional adotado por Roma, dado que muitas
igrejas a tinham como referência.” [2016, p. 50, tradução nossa]
Rapp aponta em um trabalho anterior a sua produção de maior repercussão
que há uma disputa entre os bispos, homens da cidade e, portanto, do meio
urbano, com os monges do deserto, que encontram na contemplação e na
retirada da cidade a sua expressão de santidade [2000]. São monges e bispos
que, por motivos diversos, que não guardam relação somente com o intuito de
revestir determinadas personalidades de santidade, colocaram a pena à
serviço dessas figuras. E no que tange às mulheres, que gozam de muito
prestígio nesse cristianismo dos primeiros séculos, principalmente em função
das organizações se darem no interior de casas e não de sinagogas como
ocorria no judaísmo, interessa a esses homens em vias de consolidação da
sua importância estabelecer um padrão de santidade a ser imitado (um
exemplae) que não colocasse essas mulheres em posição de disputa de poder.
Com isso, quero dizer que parece muito mais interessante que as figuras
femininas ilustradas nas hagiografias sejam elogiadas por serem pudicas,
obedientes e quietas ou recatadas. Se considera que Macrina, apesar de viril,
não deixa de prestar reverência a seu irmão, Gregório de Nissa: um bispo, mas
também seu hagiógrafo [Gregório de Nissa, Vida de Macrina, XVII, 1-2]. Ou
que Mônica, apesar de mal poder ser reconhecida como mulher, dado o
tamanho de sua virilidade, tem como uma das suas principais características a
sua dedicação à maternidade (Clark, 1999). Macrina e Mônica são dois
exemplos de mulheres cujas histórias estão sendo escritas pelas penas de
bispos que ensejam destaque, mas sobretudo jogar para escanteio as
mulheres aristocráticas que angariavam prestígio com o patrocínio de homens
como Jerônimo e a construção de monastérios.
Tecla, por conseguinte, parece nos apresentar um problema, dado que seu
hagiógrafo anônimo, um homem que tentou a carreira de bispo, mas se viu no
meio de diversas querelas contra homens que ele não hesita em citar
nominalmente e amaldiçoa-los de diversas maneiras possíveis, não parece
querer omitir todos os trechos potencialmente problemáticos da sua história. A
sua atitude, no entanto, não é incomum, uma vez que encontramos muitos
desses bispos aparentemente se contradizendo ao tentarem restringir o papel
feminino, mas também escreverem histórias em que mulheres assumem o
30
papel de homens, pregam e andam pelas cidades, além das cartas que trocam
com mulheres que muitas das vezes são suas mantenedoras, onde fica claro
que elas não estão em posição de inferioridade para com eles. A resposta que,
por hora, parece fazer sentido é que esses autores simplesmente não podem
ser incisivos demais, dado o papel de importância que essas mulheres ainda
possuem, precisam fazer concessões a atuação dessas mulheres que incluem,
no nosso caso, não reescrever completamente a história de uma figura popular
há três séculos e que chegou a ser usada como motivação para que outras
mulheres preguem e batizem, como nos informa Tertuliano (De Baptismo,
XVII). Se trata de um processo paulatino em que essas narrativas transicionam
para um modelo de mulher que consagra uma binariedade de gênero (que
guarda estreita relação com um ideal de discrição), mas que ainda possui
rastros de sua composição original. E como isso aparece na hagiografia
dedicada à Tecla?
Seu autor destaca, em diversos momentos, como Tecla, apesar de adotar
gestos e símbolos associados à masculinidade, ainda sim é uma mulher,
ressaltando a sua beleza “escapa como um relâmpago” [Vida de Tecla, XV,
tradução nossa] e toma o coração de Alexandre, ainda que nesse momento ela
esteja com vestes de monge. Como se destacando a sua beleza de mulher
tirasse o foco do fato que ela não estava vestida como uma. Não nos deve
parecer estranha a ideia de que de algum modo se higienize essas histórias
para cumprir um determinado fim. Se tratando de Tecla, Monika Pesthy
demonstrou como esses homens fizeram de Tecla um exemplo para todas as
mulheres por conta da sua castidade e pureza [1998, p. 63], o que nos parece
ser especialmente útil na nossa análise ao considerarmos também que esses
homens “enfatizam aspectos extracorpóreos das virgens, retirando passagens
eroticamente sugestivas, além de reafirmarem a inabilidade de Tecla
transcender seu corpo feminino” [HAINES-ETIZEN, 2007, p. 193, tradução
nossa]. Se trata de manipular essas histórias e coloca-las a serviço de um
projeto de poder que delimitava a ação das mulheres.
Outra passagem que sugere uma tentativa de enfatizar que Tecla, apesar da
sua santidade, ainda é uma mulher, se encontra na reta final de sua jornada,
quando ela parte para encontrar com Paulo e veste “algo mais masculino para
esconder a beleza da sua juventude, apesar de nada disso obscurecer a sua
beleza” [Vida de Tecla, XXV, tradução nossa]. A maneira como o autor
descreve outras mulheres que aparecem ao longo da narrativa também
parecerem querer colocar Tecla em um lugar de excepcionalidade. Trifena,
uma aristocrata que socorre Tecla, é descrita como estressada e chega a
desmaiar em dado momento da narrativa [Ibidem, XX]. As mulheres que
acompanhavam o martírio de Tecla não conseguem ficar quietas, de acordo
com o autor, “pois o gênero é predisposto ao prazer e a inquietude do medo”
[Ibidem, XVI, tradução nossa]. A histeria das mulheres era tamanha que elas
lamentavam sobre Tecla o tempo inteiro e mesmo cogitavam morrer
juntamente com ela [Ibidem, XIX]. Seria interessante em outro momento
recorrermos a uma comparação com os Atos de Paulo e Tecla, do séc. II, para
olharmos de maneira minuciosa as diferenças no tratamento as mulheres em
31
ambos momentos, mas o que se verifica, de modo inicial, é que a Vida e
Milagres de Santa Tecla, do séc. V, carrega uma abordagem mais misógina,
dado a quantidade de comentários depreciativos do seu autor especialmente
em relação a personagens que não Tecla.
Sobre a associação de Tecla a atributos considerados masculinos à época,
como a violência, trabalhei melhor em outro lugar [Lima, 2024]. Sua autoridade
não é questionada em nenhum momento pelo autor. Se isso nos soa
aparentemente contraditório, é muito por conta da necessidade que esses
homens tinham de se relacionar bem com essas mulheres aristocráticas, de
modo que reproduzir uma narrativa de santidade completamente avessa a
atuação dessas mulheres não parece ser inteligente. Seria ingênuo também
deixar de lado que mesmo essas narrativas de santidade que parecem conferir
mais liberdade às mulheres são construídas por homens que nesse momento
querem cada vez menos dividir espaço com as mesmas. Sendo assim, a
sexualidade feminina é entendida como um objeto a ser negociado, e a
virgindade não aparenta ter virado de cabeça para baixo a situação dessas
mulheres e as colocado em posição de atuação sem restrições, mas antes
parece ter sido adequada a uma dimensão teológica que a enquadra em um
sistema de coação cujo preço é a negação da sua identidade [Castelli, 2022, p.
65].
Outro dado que não podemos ignorar é a quantidade expressiva de mulheres
que aparecem na segunda parte da hagiografia. 35% dos milagres atribuídos à
Tecla possuem uma ou mais mulheres como personagens centrais. 25%
registram aparições de um ou mais bispos (muitos se repetem). Dexiano,
Menodoro, Simpósio, Basílio, Mariano e Máximo. Já as mulheres são mais de
uma dezena, incluindo grupos de virgens e algumas cujo nome não foi
registrado. Soa especialmente interessante a nós que a maioria delas seja
aristocrata e mencionadas uma a uma no antepenúltimo milagre, ele termina
por dizer que “ainda há muitas outras que não tenho tempo para nomear, a
menos que da mesma maenira como Hesíodo eu escreva um catálogo das
mulheres mais excelentes do nosso tempo” [Vida e Milagres de Tecla, Milagre
44, tradução nossa]. Ele conclui com dois milagres que se referem a mulheres
(Dionísia e Xenarca). Se prova, portanto, por meio destes dados, que ainda
que não tivesse as mulheres em alta conta, como demonstramos em alguns
excertos da narrativa hagiográfica, era de suma importância que ele,
especialmente se considerarmos a sua situação delicada no que tange à
disputa por um cargo eclesiástico ilustrada ao longo da hagiografia, zelasse
pela manutenção de uma rede de apoio dessas mulheres, mencionando-as
mais que os bispos (mencionados muitas das vezes para mal dizer). O que
inclui, por conseguinte, a mobilização de uma figura popular como Tecla, sem
que no entanto, nesse caso em específico, altere por demais as passagens
potencialmente problemáticas, ainda que registre comentários depreciativos em
relação as mulheres de modo mais amplo ao longo da primeira metade da
narrativa.
32
Conclusão
Sugerimos, portanto, que apesar do contraste entre passagens que seguem
representando Tecla como um exemplo potencialmente problemático e outros
momentos em que o autor retrata as mulheres de modo depreciativo e destaca
o corpo de Tecla como se ela não pudesse se desprender dele, essas poucas
evidências podem nos apontar uma mudança paulatina no discurso
hagiográfico que tem como fim instituir um modelo de mulher a ser imitado que
as relegue à um segundo plano e concentre pouco a pouco o poder nas mãos
desses homens. Tecla, no entanto, nessa presente narrativa não se distancia
muito daquele modelo considerado problemático nos séculos anteriores por
Tertuliano e outros autores, mas a sua mobilização indica, a luz da diversidade
de mulheres aristocratas presentes no entorno do autor, uma necessidade de
manejar essas figuras, ainda que de modo contraditório, justamente porque
não se pode negar completamente a essas mulheres a possibilidade de
agência, dado a importância que possuem nesse contexto. Soa, em síntese,
como uma hagiografia que se localiza ainda no começo desse processo de
ascensão do episcopado monárquico.
Referências
Cainã Lima é graduando em História na UERJ, membro do PEM – Programa
de Estudos Medievais/UERJ, do ATRIVM – Espaço Interdisciplinar de Estudos
da Antiguidade/UFMS e do Agios – Grupo de Estudos sobreHagiografia e
Santidade/UFF, orientando do Prof. Dr. Wendell dos Reis Veloso.
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35
EPÍSTOLAS DE PLINIO O JOVEM A TRAJANO:
RECEPÇÃO DOS MOVIMENTOS DOS CRISTIANISMOS
NO IMPÉRIO ROMANO NOS SÉCULOS I E II
Elois Alexandre de Paula
Introdução
O contexto religioso cristão apresenta uma ideia de que se tem como verdade
absoluta, o que está contido nos 4 textos evangélicos canônicos sobre Jesus
Cristo, e que tais textos são dotados de uma verdade absoluta. De imediato
que para além da Teologia, o cristianismo tem outras vertentes de pesquisa em
que a Historiografia apresenta novos olhares do conhecimento científico sobre
o Cristianismo e seus movimentos.
O Jesus histórico ou os movimentos de Jesus são apresentados e analisados
através de diversas outras fontes e textos que na qual circulavam a bacia
mediterrânea durante os séculos I e II. Sendo assim as diversas possibilidades
de entendimento desses textos nos faz refletir sobre as origens dos
movimentos ditos cristãos que se originaram através de outros movimentos
judaicos nesses períodos.
Outra questão analisada
é referente ao contexto do império Romano neste período e na bacia
mediterrânea, em que este poderoso império influenciava e ditava as regras
sobre os povos que subjugava, em outras palavras, não tem como entender os
movimentos de Jesus Histórico sem entender a dinâmica do império romano.
Nesse aspecto as fontes que analisamos as epístolas de Plinio o Jovem em
conversação com Trajano nos séculos I e II, nos faz entender essa dinâmica da
visão do império romano na aplicação de regras e de como tratavam a questão
desse cristianismo primitivo.
Notadamente essas epístolas recolocam o Movimento de Jesus Histórico
dentro daquele contexto social econômico e político com a base firmada sobre
Roma e seu poderio. A visão dos movimentos cristãos diante as cartas de
Plinio, apresentam novos horizontes muito além da bíblia, que são
fundamentais para nossa proposta de análise que é o quanto esse movimento
de Jesus Histórico sem Jesus esteve sobre o controle da águia romana nos
séculos I E II D.C.
36
1.Contextualização.
Primeiramente os movimentos Cristãos tem uma característica puramente de
“movimentos intra-judaícos”, que nasceram como uma nova forma de
Judaísmo que naquele período ocorriam vários outros movimentos que
aconteciam naquele período. Mesmo porque essa personagem Jesus
afirmamos que historicamente nunca foi cristão, nasceu judeu, viveu como
Judeu e morreu como Judeu. Neste contexto [Chevitarese,2006] faz sua
análise do contexto cristão- judaico.
“As palavras cristão e cristianismo são entendidas como uma seita dentro do
judaísmo. Somente após a destruição do templo de Jerusalém conforme
observou [Crossan 2004-38-39] teríamos a presença de duas tradições
judaicas o cristianismo primitivo é o judaísmo rabínico”. [Chevitarese, 2006]
Em outras palavras a tradição cristã no século I e II sendo um movimento
originário da vertente judaica não era singular, mas plural com seus costumes e
práticas diversificadas. [Chevitarese, 2022]. Além dessas tradições somava-se
a tradição helênica e doravante a romana que com a expansão do império
desde o século I antes de cristo nos faz refletir sobre a pluralidade das culturas
e religiosidades em torno da bacia Mediterrânea.
Já referindo-se ao império romano sua abrangência geografia se estendia da
Síria á Germânia, e da África [Egito], até a Bretanha (hoje Inglaterra), vastidão
de um império que se consolidava desde Século I A.C. Neste contexto esse
império apresentava várias dinâmicas socioculturais, políticas e econômicas,
gerando assim uma consolidada forma burocrática de administração de suas
províncias. Desde o exército com suas legiões, até a cobrança de impostos, e o
controle social e as práticas políticas e religiosas, faziam parte de uma rede
extensa rede administrativa das províncias romanas, tendo como controle total
a figura do Imperador. [BALSDON, 1968]
O cristianismo ou os movimentos do Jesus histórico com ou sem Jesus, estão
inseridos neste Mundo Romano, sendo assim, sem analisarmos o Império
Romano, não conheceremos o cristianismo e suas fundações. Logo a análise
do choque cultural entre os cristãos e o poder romano institucionalizado nas
suas províncias mediterrâneas são descritas nos textos evangélicos, no
período do movimento de Jesus com Jesus a exemplo em [LUCAS capítulo 7]
2 “E o servo de um certo centurião, a quem muito estimava, estava doente, e
moribundo.
3 E,
quando ouviu falar de Jesus, enviou-lhe uns anciãos dos judeus, rogando-lhe
que viesse curar o seu servo.
4 E, chegando eles junto de Jesus, rogaram-lhe muito, dizendo: É digno de que
lhe concedas isto,
5 Porque ama a nossa nação, e ele mesmo nos edificou a sinagoga.
37
6 E foi Jesus com eles; mas, quando já estava perto da casa, enviou-lhe o
centurião uns amigos, dizendo-lhe: Senhor, não te incomodes, porque não sou
digno de que entres debaixo do meu telhado.
7 E por isso nem ainda me julguei digno de ir ter contigo; dize, porém, uma
palavra, e o meu criado sarará.
8 Porque também eu sou homem sujeito à autoridade, e tenho soldados sob o
meu poder, e digo a este: Vai, e ele vai; e a outro: Vem, e ele vem; e ao meu
servo: Faze isto, e ele o faz”. (Lucas, CAP7, 1a 8, p.1064).
Nota-se que as lideranças romanas mantinham em detrimento do imperador, o
controle político e social sobre as comunidades das províncias.
[CHEVITARESE 2024]. O poder da águia romana sobrepujava os demais
movimentos que se opusessem ao imperador de Roma, e aos representantes
das províncias e as lideranças militarizadas.
Do ponto de vista econômico e social, (Chevitarese, 2024) analisa que as
regiões do Oriente do império, romano como Síria, Egito são extremamente
importantes de um ponto de vista econômico, pois são rotas comerciais que
ligam regiões importantes da Ásia como a Rota da Seda-(Síria). Neste
contexto a Região da Bitinia Ponto (Turquia) administrada por Plinio uma das
regiões mais ricas do império Romano, que com diversidades comerciais que
por si só circulavam as múltiplas culturas nestes espaços, que na qual se
apresentavam formas de governabilidade e controle dessas províncias.
Para [CROSSAN, 2017] as diversas metodologias de pesquisas
historiográficas quando adequadas dentro da documentação de matriz
(romana) e judaica, contribuem para o entendimento histórico das diversidades
culturais e políticas entre tais culturas, nesse movimento de Jesus sem Jesus.
38
Alexamenos e seu deus-Grafite do século II ou III. Primeira representação
romana sobre Jesus Crucificado. Fonte Livro Cristianismo no Império Romano.
Entre essas documentações estão as epístolas de Plinio o Jovem que nos
mostra a recepção referente ao movimento de Jesus Histórico sem Jesus na
província da Bitinia, e de como se aplicavam controles e Julgamentos sobre os
Cristãos, com uma legislação Romana jamais antes sido aplicada.
Notadamente as análises dessas documentações como essas epístolas, nos
revela historicamente que não se deve levar em conta apenas os quatro
evangelhos para se analisar o Cristianismo desse período, assim é correto
afirmar que só a bíblia não nos basta.
2 -Plinio o Jovem...
No que se diz respeito a essa personagem Plinio o Jovem, ou Caio Plínio
Cecílio Segundo, nasceu na Galia Transpadana, em meados do Governo de
Nero em finais do Século I.[AMAYA, 2021]. Era um cidadão romano que não
tinha grande prestígio econômico, sua família não pertencia à antiga nobilitas
romana, mas vários dos membros familiares ocuparam cargos de destaque na
ordem senatorial. [STADLER, 2018]. Mas sua trajetória de vida proporcionou
voos altos dentro da sociedade hierarquizada romana, sendo ele filho adotivo
de Plinio o Velho, sua família apesar de não pertencer a Nobllitas Romana
39
(união entre patrícios e plebeus ricos) a mesma tinha grande prestígio político e
social, que fez que Plinio desenvolver seus potenciais administrativos e
jurídicos. Dono de uma retórica admirável se tornou advogado com a idade de
18 anos e doravante consegue a ascensão política, tendo vários cargos de
ordem administrativa em Roma, mas em meados dos anos 90, foi nomeado
pretor [STADLER, 2018]. Neste período era imperador Trajano desde ano de
98 até ao ano de 117-dc, e neste contexto Plinio assume como o governo da
Província de Ponto e Bitinia.
Tal província tinha como contexto de modelo de governança senatorial sendo
nomeado um cônsul, mas devido a problemas ocasionados nesta região, se
teve a necessidade de nomear um governador para esta província sendo Plinio
o escolhido para assumir o cargo. [AMAYA, 2021].
A dinâmica do governo de Plinio desenvolveu na província apresenta não
apenas um modelo de gestão sobre questões administrativas Romanas, mas
os diálogos com Trajano revelam as mais variadas questões jurídicas
principalmente com relação aos cristãos, como analisado aqui.
Província Bitinia e Ponto na Extensão do império romano-Seculo II
40
“As ações e os assuntos tratados nas cartas ganham relevância no momento
em que o centro do principado – Roma – necessitava de informações de suas
diversas províncias. Saber quais políticas deveriam ser implementadas; se
existia a necessidade de enviar reforços militares; se uma nova “supersticio”
deveria ser vista com preocupação e tantas outras questões, apontam para a
forte contribuição que as cartas de Plínio, o Jovem, trouxeram para o
entendimento desse tipo de diálogo. [STADLER, 2018, p.10]”
Nesta lógica a documentação das Cartas de Plinio a Trajano apresentam a
ponto inicial, ou assim dizendo, uma recepção do Império Romano, referente
ao Cristãos. O Século II com Plinio na Bitinia podemos afirmar que são as
primeiras evidências de como o Império Romano tratou juridicamente a
questão cristã, dentro do movimento assim chamado “movimento de Jesus sem
Jesus”.
3- Roma e a questão Cristã -Recepções.
Desde o século I, dentro do chamado movimento de Jesus sem Jesus
penetrava dentro da bacia Mediterrânea e nas províncias Romana e em
cidades importantes de Roma, como cita as primeiras cartas de Paulo. Neste
contexto analisamos sobre as Cartas de Plínio a Trajano, duas Perspectivas
principais sobre recepções do império Romano aos cristãos, entre os séculos I
e II. Primeiramente sobre a perspectiva Da figura do Imperador e as divindades
romanas e a segunda sobre o Contexto administrativo e Jurídico dos Romanos
frente aos cristãos.
Sobre a perspectiva figura do Imperador e as divindades romanas,
historicamente antes do Século II, antes do governo de Trajano e do governo
de Plinio, Roma convivia com experiências dos movimentos Cristãos e “intrajudáicos”. Destaco aqui a questão de Nero (54-68), em que no final de 62 e
início de 63 ocorreu o incêndio de Roma, e os Cristãos levaram a culpa pelo
incidente. Segundo [Chevitarese ,2006], Nero tentou afastar os rumores que
ele mesmo teria feito o incêndio que arrasou a cidade, tentou criminalizar os
cristãos, com intuito de desprezar o culto a Cristo e que os cristãos odiavam as
divindades romanas. Assim com Nero os cristãos recebem rótulo de superstitio,
uma tradição separada do contexto judaico. [Soares, 2023].
Apesar de o termo cristão ter sido abordada no Século I por Nero, foi no século
II que os Cristãos são observados pelo Império Romano, com Plínio sendo o
Primeiro a analisar e questionar os Cristãos na sua Província. Destacamos
desde a primeira carta de Plinio o Jovem o elemento da “figura do imperador e
as divindades”, a primeira questão da recepção romana aos cristãos. A figura
do imperador era soberana e que o cristianismo não era bem aceito, o
Imperador era absoluto, como a “urbis roma”, ou a casa santa de Roma e casa
santa imperactor (casa santa do imperador). Em outras palavras o Imperador
era visto como soberano, em oposição ao Deus Judaíco.
41
Assim desde a primeira carta Plínio destaca o agradecimento a Trajano pelo
cargo, mas também a importância do Imperador, destacada na primeira carta
de Plinio quando era senador ao Imperador Trajano.
Carta 1 - Plínio ao imperador Trajano-Tradução.
“[1] Tua devoção enquanto filho, venerável imperador, ansiava que a sucessão
a teu pai fosse o mais tarde possível, mas os deuses imortais mostraram pouca
paciência colocando as tuas virtudes à frente do comando da comunidade,
responsabilidade que desde há algum tempo já havias assumido5. [2] Assim,
faço votos para que os deuses concedam tanto a ti como, por tua mediação, ao
gênero humano, uma completa prosperidade, isto é, digno de teu tempo. Como
cidadão e como senador desejo, honorável imperador, que tenhas saúde e seja
feliz”. (STADLER 2018. p 12)
No contexto Romano a Política estava muito relacionado
com a religião e que o culto a divindades eram práticas que mantinham a
ordem social e a manutenção do poder do Imperador, como exemplo tomamos
nota da epístola 35, de Plínio ao imperador Trajano.
Carta 35 - Plínio ao imperador Trajano- Tradução
“Meu senhor, por ocasião do novo ano, fizemos os votos tradicionais aos
deuses e dedicamos as oferendas para a tua prosperidade e, assim, para a
prosperidade da comunidade, suplicando-lhes que nossos votos continuem
cumprindo-se ano após ano e que ano após ano sigamos colocando o selo a
novos votos.” [STADLER, 2018, p.37]
As divindades romanas eram práticas interligadas pela manutenção do poder
do imperador e se aplicava no controle das províncias romanas. Para [Arthur
Darby Nock ,1934] e análise de [Mota ,2023], chamam a atenção para as
múltiplas expressões de devoção da autoridade imperial, que tais práticas
contribuição para o controle social e a ordem política no Império Romano.
Como indica na mensagem na carta de Plínio a Trajano, as devoções aos
deuses romanos e as orações dedicadas a Trajano personificam o poder das
divindades, mas também a da figura do Imperador.
A dinâmica da figura do imperador entra em choque com o que o Judaísmo e
movimento cristão e da mesma forma as autoridades romanas não vêm com
bons olhos as práticas dos cristãos que vinham como costumes incomum e
desrespeitosas. Como exemplo para os Romanos segundo Tácito (anais 15:44)
em [Chevitarese, 2006] no século I, acusava os cristãos por práticas de
superstição e de ter uma religiosidade contra o gênero Humano (odio humani
generis).
A segunda questão a analisarmos é sobre o Contexto administrativo e Jurídico
dos Romanos frente aos cristãos demonstradas nas epistolas de Plínio a
Trajano em se tratar da questão do movimento dos Cristãos na Betinia.
Comumente a isso segundo a [Angeolozzi, 2003] o cargo de Plinio como
42
Governador, teve atribuições políticas administrativas e jurídicas para a
província como: examinar irregularidades na administração de recursos,
eliminar desordens políticas e resolver casos criminosos pendentes. Contudo
Plinio também encontrou questão do movimento cristão que se espalhava na
bacia mediterrânea, e que chamou a sua atenção na questão jurídica romana.
Plinio em diálogos com Trajano descreve o Cristianismo como um movimento
de superstição, assim ele inicia uma busca em metodologias jurídicas para
julgamento e punição de Cristãos na Bitinia-Ponto. [Chevitarese. Justi ,2024].
Inicialmente Ele (Plinio) indaga a Trajano sobre meios jurídicos em Roma para
condenar os cristãos como cita a primeira parte da carta 96. Plínio ao
imperador Trajano-Tradução [STADLER , 2018]
“Meu senhor, tenho como costume fazer chegar a ti todas aquelas dúvidas que
me acometem no cumprimento de meu cargo. Quem melhor, na verdade, para
conduzir minhas hesitações por um bom caminho ou instruir-me em minha
ignorância? Nunca participei em Roma de nenhum processo contra os cristãos.
Desconheço por isso qual é o crime do qual os acusam, quais punições
merecem, qual procedimento deve regular o inquérito e quais limites devem
colocar-se a eles”[STADLER ,2018, p.82]
Segunda parte:
“Perguntei diretamente a eles se são cristãos. Ao responder-me que sim,
perguntei-lhes uma segunda e até uma terceira vez, advertindo-lhes que o
reconhecimento de algo assim expressaria a morte. Aos que mantiveram sua
declaração, ordenei que os executassem. A razão disso foi que não me cabia
dúvida de que, qualquer que fosse a natureza do crime que confessavam,
certamente este fanatismo e a obstinação intransigente merecia a morte.”
[STADLER ,2018, p.82]
Em sua análise Plinio identifica os Cristãos primeiramente logo após adverteos e quais consequências e punições a serem tomadas. Para [Justi e
Chevitarese, 2024], Plinio em suas cartas no primeiro momento demonstrava
questionamentos em como agir juridicamente com relação aos cristãos, pois de
certo modo esse movimento religioso supersticioso poderia promover agitação
social contra Roma. A metodologia de Plinio com relação aos cristãos era após
identifica-los interroga lós sobre tortura e tenta-los os investigados e se afastar
daquela superstição, como comenta a sua carta de 96:
“Aos que negaram ser ou terem sido em algum momento cristãos, como
invocaram aos deuses de acordo com a norma ditada por mim, fizeram uma
oferenda de incenso e vinho diante de tua imagem, que com este propósito eu
havia ordenado trazer junto às estátuas dos deuses, e também maldisseram o
nome de Cristo...” Plínio ao imperador Trajano-Tradução [STADLER, 2018,
p.83]
43
Não obstante, Plinio insere outras normas Jurídicas para resolver a questão
dos Cristãos o mais breve possível. [Chevitarese e Justi, 2024]. A primeira era
de encorajar a população a realizar denúncias contra os cristãos, a segunda
caso o réu fosse cidadão Romano era enviado a Roma. A terceira se o cidadão
romano fosse acusado de ser cristão por um certo tempo, poderia pedir perdão
oferecendo oferta aos deuses romanos, a quarta se o confesso se declara
cristão por duas vezes, se livraria da tortura, e por fim se réu reafirmasse ser
cristão por três vezes era aplicado a pena capital.
A quem se declarava seguidor dessa “superstição”, Plínio em conversa com
Trajano desenvolve normas penais que antes não eram aplicadas no Império
romano, assim suas políticas tiveram uma ação em criar regulamentos jurídicos
para o controle daquele novo movimento religioso antes que não aplicadas.
Logo as cartas de Plínio definem as bases do controle romano sobre os
movimentos cristãos, sendo um momento Histórico de Roma em observar,
coordenar e legislar sobre tal movimento no século II.
Considerações Finais
Muito do que comentam ou abordam sobre o Cristianismo ou sobre a “vida” do
Jesus, em um primeiro momento retomamos a discussão da falsa ideia que
somente a Teologia pode demonstrar e apresentar um Jesus da Bíblia como
uma verdade absoluta. Os movimentos de diversas igrejas e seus
ensinamentos nas escolas de estudos bíblicos em catequeses, pregações não
demonstram qualquer proximidade com base teórica metodológica e científica
da História, as ideias fundamentalista estão unicamente vinculadas a achismos.
A ideia de “irracidade “da bíblia durante séculos não abre oportunidades com
diálogos científicos, em que em grande maioria das instituições religiosas,
grandes ou pequenas, apenas pregam um fundamentalismo rasteiro, que
distorcem a imagem de Jesus, usando o cristianismo com ideias
preconceituosas e de ódio em seus púlpitos. [Chevitarese, 2024].
Diante desse contexto a historiografia analisa diversas documentações muito
além que os textos evangélicos, que nos mostra as grandes transformações
que os Movimentos de Jesus sem Jesus apresentam no recorte Histórico do
Século II. Assim as experiências da análise da documentação das Carta de
Plinio o Jovem a Trajano no século II, nos traz a margem o conhecimento da
rota de expansão do Movimento Cristão na bacia Mediterrânea, mais
precisamente na Província da Bitinia ponto.
Não obstante, as Cartas de Plinio o Jovem também nos fornece informações
detalhadas sobre o Poder e a sociedade Hierarquizada do império romano e
qual foi a trajetória de Plinio juntamente com o Imperador Trajano em no
contexto administrativo, social político e Jurídico, que inaugura as primeiras
recepções do Império Romano em relação a esse movimento de Jesus, sem
Jesus.
44
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45
RAMSÉS II FOI O MAIOR FARAÓ DO EGITO ANTIGO
OU UM MESTRE DA PROPAGANDA? UMA ANÁLISE
CRÍTICA À FIGURA DE RAMSÉS II E COMPARAÇÃO
DO SEU REINADO COM O DE AMENHOTEP III
José Raimundo Neto
Introdução
O legado dos “grandes” líderes da história frequentemente é objeto de
admiração, estudo e, por vezes, uma aura de mitologia. Com Ramsés II, um
dos faraós mais notáveis do Antigo Egito, não sendo exceção a essa
tendência. Seu governo é celebrado por suas realizações impressionantes, e
sua figura sendo frequentemente idealizada como um governante poderoso e
divino, acima dos padrões da época.
No entanto, é fundamental questionar e problematizar essa estima exacerbada
que muitas vezes envolve o seu nome. Ao fazê-lo, torna-se possível
compreender melhor o seu legado de modo mais crítico. Dessa forma, surge
um questionamento: o governo de Ramsés II foi realmente o apogeu da antiga
cultura egípcia ou houveram faraós anteriores com reinados mais
abrangentes?
Neste artigo será explorado as ações desse faraó por meio de uma análise
comparativa que o coloca ao lado de outro faraó notável [porém esquecido]:
Amenhotep III. Assim, serão bordados aspectos da arquitetura, cultura,
diplomacia, economia e êxitos militares estratégicos. Através dessa exploração
procuraremos não apenas questionar o legado de Ramsés II, mas também
apreciar as complexidades e nuances do Egito Antigo.
Ramsés II, cognominado de “O Grande “, foi um faraó da XIX dinastia. Detentor
de um longo reinado. Sendo largamente lembrado pelos seus projetos
arquitetônicos colossais, por participar da Batalha de Kadesh e realizar seu
icônico tratado de paz com os Hititas [século XIII a.C.]. Com seu legado sendo
altamente superestimado.
46
Ele foi o último grande faraó a construir em larga escala, com boa parte do que
chegou aos nossos dias pertence ao seu período, não significando
necessariamente que sua administração foi o auge do Egito. Do mesmo modo
como ocorreu com Tutankhamon, o qual foi fundamental para compreender a
vida cultural faraônica no seu tempo [pela abundância de objetos do seu
túmulo], mas na história egípcia seu reinado foi bastante modesto.
Já Amenhotep III, cognominado de “O Magnífico”, foi um faraó da XVIII
dinastia [século XIV a.C.], sendo um hábil administrador, construtor, diplomata
e patrono da cultura egípcia. Sua administração foi marcada por uma grande
riqueza, centralização do poder e um aumento no culto à pessoalidade do
faraó, causado pela disputa de poder com o clero tebano do deus Amon. Com
esse artigo trazendo ao diálogo esse personagem histórico, expondo as
contribuições que seu governo teve no desenvolvimento da sociedade egípcia.
Realizações Arquitetônicas
O Egito Antigo é claramente marcado pela sua arquitetura. Com Ramsés II
frequentemente lembrado por suas contribuições monumentais, sendo
responsável por algumas das construções mais grandiosas do período
faraônico. Como os templos de Abu Simbel, esculpidos diretamente na rocha e
dedicados aos deuses Rá-Horakhty e Ptah e o Ramesseum, seu templo
mortuário.
Com ambas demonstrando a obsessão de Ramsés II em cristalizar sua
imagem divina. De acordo com Wilkinson [2010], a escolha de Ramsés por
erguer esses templos, simboliza não apenas poder religioso, mas também sua
propaganda política. [WILKINSON 2010, p. 200]. Mas, como explica Murnane
[1990], Ramsés II criou uma falsa ideia de grande construtor. Quando na
realidade se apropriava das construções de faraós anteriores para sua
autopromoção. [MURNANE,1990, p. 84].
Como exemplificado por Dodson [2000], Ramsés II fez apropriações de Tutmés
III no Templo de Karnak, como o Santuário de Akhenamon e o Santuário da
Barca [dedicados a Amon], e nos templos núbios de Amada, Derr e Semna. Já
com Amenhotep III, ele se apropriou do Templo de Luxor e o Templo de Soleb
[Núbia]. E com Seti I [pai de Ramsés II], o Templo de Abidos e o Salão
Hipostilo. Com Ramsés II apagando os nome desses faraós e colocando o seu.
(DODSON, 2000, p. 123).
Para Redford [1992], Amenhotep III foi um faraó que superou as capacidades
de construção de Ramsés II. Sendo um governante que possuiu um amplo
legado, que é pouco lembrado. [REDFORD, 1992, p. 178]. Ainda de acordo
com Redford [1992], enquanto Ramsés II construiu exclusivamente para se
autopromover, Amenhotep III, possuía uma visão de Estado, com suas obras
voltadas a expor a riqueza e o poder não só do faraó, mas principalmente do
império. [REDFORD, 1992, p. 179].
47
Kozloff [2012] confirma tal pensamento ao descrever a importância das
principais construções de Amenhotep III que temos acesso, como o Templo de
Luxor e o templo mortuário. [KOZLOFF, 2012, p. 234]. Para Shaw [2003], ao
analisarmos o Templo de Luxor podemos ver um sobressalto da engenharia e
arquitetura. A partir do desenvolvimento e da inovação de técnicas que
superaram os reinados anteriores e serviriam de modelo para os futuros faraós.
[SHAW, 2003, p. 211].
Mas, para Kozloff [2012], apesar da opulência do Templo de Luxor, ele ficava
bastante aquém do Templo Mortuário de Amenhotep III. O qual foi o mais
luxuoso e caro projeto de construção, desde as pirâmides. Com uma área de
385.000 metros quadrados, foi o maior templo já construído no Egito Antigo,
superando até mesmo o Templo de Karnak. Utilizando materiais de luxo, como
granito vermelho, alabastro branco e quartzo marrom, contendo centenas de
estátuas de Amenhotep IIII. Entre as quais se destacam os Colossos de
Memnon, com 18 metros de altura. [KOZLOFF, 2012, p. 235].
Essa comparação tornou perceptível que embora Ramsés II tenha deixado um
impacto arquitetônico indelével, seu foco construtivo buscou apenas a
autopromoção de si mesmo como faraó. Já Amenhotep III, apesar de também
se autopromover, ele possuía uma visão mais focada no engrandecimento do
Egito. Segundo Spalinger [2005], o foco estava no significado cultural das
obras. Nas quais havia uma clara exposição de Amenhotep III como um líder
forte que dirigiu seu país a patamares nunca antes visto. [SPALINGER, 2005,
p.153].
Aspectos Culturais: o desenvolvimento da mentalidade de poder do faraó
e o legado cultural de Ramsés II e Amenhotep III
No aspecto cultural podemos observar que ambos os faraós deixaram marcas
expressivas na cultura egípcia, com algumas finalidades bem aproximadas e
outras contendo um maior grau de distanciamento. Com a similaridade de
ambos se encontrando na divinização à personalidade do faraó e se
distanciando no objetivo das produções literárias.
Para Redford [1996], o legado cultural de Ramsés II é parcialmente
inexpressivo,
a medida que o faraó apenas se utilizou do extenso
desenvolvimento cultural egípcio com o objetivo de apenas se autopromover.
Como pode ser observado no Templo de Abul Simbel e nos murais do
Ramesseum, nos quais Ramsés II diviniza-se a si mesmo de modo
exacerbado, se colocando como um igual entre o panteão egípcio. [REDFORD,
1996, p. 181].
Ainda de acordo com Redford [1996], essa visão não foi criada por Ramsés II,
com ele apenas elevando exponencialmente essa situação. Com Amenhotep III
sendo o primeiro faraó a adotar a ideia de um governante divino à parte dos
outros deuses, no lugar da tradicional ideia do faraó como a encarnação do
deus Hórus. Não sob os auspícios de um rei que se tornou um deus, mas sim,
48
de um deus que se tornou um rei. Com essa atitude sendo uma resposta ao
crescimento das disputas de poder entre o clero do deus Amon e o próprio
faraó. [REDFORD, 1996, p. 184-186].
Do ponto cultural, o reinado de Ramsés II foi marcado por uma ênfase na
glorificação de sua imagem como um faraó divino. Durante seu governo, houve
uma intensa produção de inscrições monumentais que exaltavam suas vitórias
militares, especialmente a Batalha de Kadesh. Segundo Kitchen [1996],
Ramsés utilizou a arte e a literatura como ferramentas de propaganda política,
destacando-se pelo uso extensivo de autoelogios em estelas e templos,
mostrando uma clara ênfase do faraó sendo reverenciado pelos deuses.
[KITCHEN, 1996, p. 157].
Entretanto, quando comparamos com o desenvolvimento cultural sob
Amenhotep III, torna-se perceptível as diferenças dos objetivos do eixo
norteador da produção literária. Com esse faraó patrocinando as artes de uma
forma que levou ao apogeu da cultura egípcia. Como aponta Kozloff [2012],
seu reinado é frequentemente descrito como uma “Idade de Ouro” da cultura
egípcia, marcada por inovações e refinamentos na produção artística de alta
qualidade, com esculturas monumentais e novas sofisticações técnicas e
estilísticas. [KOZLOFF, 2012, p. 236]
Em relação a produção literária, Amenhotep III patrocinou uma larga produção
e desenvolvimento textual. Segundo Kozloff [2012], esse governante realizou
grandes investimentos na produção de textos, principalmente do período do
Médio Império Egípcio. Resgatando escritos religiosos, mitologias épicas e
textos sapienciais. Os quais só temos acesso hoje por causa desse faraó.
[KOZLOFF, 2012, p. 238-240].
Dessa forma, a comparação entre os dois faraós, revelou que Ramsés II é
lembrado por usar a cultura como uma ferramenta exclusiva de propaganda
pessoal, em detrimento da elevação da própria cultura egípcia. Já Amenhotep
III promoveu um desenvolvimento artístico mais genuíno e inovador, que
priorizava as características culturais egípcias em um nível mais elevado e
refinado.
Extensão das Rotas Comerciais
Nas rotas comerciais, é possível perceber que os dois faraós apenas
administraram as rotas conquistadas por seus antecessores. Reforçando
guarnições em pontos estratégicos e monitorando o fluxo dos recursos
essenciais para o comércio egípcio. Segundo Breasted [1906], os faraós que
mais se destacaram como propulsores do dinamismo econômico do Egito
Antigo, por meio de suas aquisições foram Hatshepsut e Tutmés III [membros
da XVIII dinastia] e Seti I [membro da XIX dinastia]. [BREASTED, 1906, p. 194].
Segundo Redford [1996], no âmbito econômico, Ramsés II apenas manteve
estável a administração política estabelecida por seu pai, o faraó Seti I. O qual
49
havia herdado muitos dos problemas políticos e econômicos criados durante o
Período de Amarna [faraó Aquenaton, século XIV a.C.]. [REDFORD, 1996, p.
150-152]. Assim, quando ascendeu ao poder, Seti I realizou uma série de
campanhas militares na Núbia e no Levante.
Para Kitchen [1996], as expedições de Seti I, foram vitais para o
enriquecimento do império e para o acesso a mercadorias como ouro, madeira,
pedras preciosas e materiais de construção. [KITCHEN, 1996, p. 156].
Segundo Kitchen [1996], o comércio com a Núbia, em particular, foi
intensificado durante o reinado de Ramsés II, garantindo um fluxo constante de
ouro, o que ajudou a financiar seus projetos e estabilizar a economia.
[KITCHEN, 1996, p. 158].
Com Amenhotep III ocorreu do mesmo modo. Pois ele apenas administrou o
controle sobre as rotas comerciais alcançadas por seus predecessores.
Principalmente Hatshepsut e Tutmés III [ XVIII dinastia]. Para Kozloff [2012], a
expedição comercial pacífica de Hatshepsut ao chamado Reino de Punt [Chifre
da África], tornou-se o primeiro grande empreendimento comercial significativo
na construção de relações comerciais egípcias com culturas distantes.
[KOZLOFF, 2012, p. 238].
Tutmés III, por outro lado, abriu novas rotas comerciais após suas campanhas
militares, principalmente no Levante e na Núbia. Ainda de acordo com Kozloff
[2012], após suas vitórias, o Egito passou a controlar importantes rotas que
ligavam o Oriente Próximo a África. [KOZLOFF, 2012, p. 242]. Permitindo ao
faraó o monopólio sobre o comércio de bens valiosos, como cedro do Líbano,
óleos aromáticos e metais. Murnane [1990] complementa que a campanha
militar criou entrepostos e pontos de coleta de tributos, garantindo que o Egito
se beneficiasse diretamente do controle sobre essas rotas. [MURNANE, 1990,
p. 130].
Kozloff (2012, p. 238) destaca que Amenhotep III foi particularmente bem
sucedido em manter as relações comerciais que ele herdou. Promovendo um
período de grande prosperidade econômica, facilitando o comércio de bens,
metais preciosos, pedras semipreciosas e marfim. [KOZLOFF, 2012, p. 245].
Com essas trocas comerciais contribuindo para o enriquecimento da elite
egípcia e consolidando a posição do Egito como uma potência comercial.
Diplomacia
As relações diplomáticas de ambos os faraós tiveram um peso de suma
importância nos seus reinados. Ramsés II é frequentemente lembrado pelo
famoso Tratado de Kadesh com os hititas, o mais antigo tratado internacional
escrito que se tem conhecimento. Com o qual ele alcançou a paz com seu
adversário mais poderoso e influente na região do Levante [atuais Síria, Líbano
e Israel].
50
De acordo com Kitchen [1996], esse tratado foi de importância estratégica, pois
assegurou uma relativa paz no norte e permitiu a Ramsés II focar em outras
atividades administrativas. expondo o faraó como um governante hábil e
perspicaz na arte da diplomacia. Com ele se utilizando desse tratado para se
autopromover em escala monumental. Mostrando um líder forte e imponente,
vencendo seus inimigos , até mesmo na mesa de negociações. [KITCHEN,
1996, p. 154].
Apesar desse tratado ser frequentemente visto como um dos principais feitos
diplomáticos do faraó, além da sua importância para os estudos das relações
diplomáticas do Antigo Oriente Próximo. Ele não gerou um ganho real para os
egípcios. A medida que o acordo apenas cessou as hostilidades e manteve o
status quo ante bellum entre as partes. Com os hititas mantendo as regiões
reivindicadas por Ramsés II.
Mas, quando analisamos a diplomacia de Amenhotep III, percebe-se uma
elevada habilidade diplomática. Sendo conhecido por suas alianças bem
sucedidas, muitas vezes mantidas por meio de casamentos diplomáticos com
princesas estrangeiras, particularmente da Síria, Mitanni, Assíria, Babilônia e
Núbia. Como destaca Aldred [1988], Amenhotep III construiu uma rede de
alianças sem precedentes, o que permitiu uma era de prosperidade. [ALDRED,
1984, p. 122].
Para Rice [1999], suas trocas diplomáticas não envolviam apenas tratados,
mas também extensas correspondências e presentes, como mencionado nas
Cartas de Amarna. Com esses métodos de diplomacia ajudando a estabilizar
as fronteiras egípcias e garantindo o fluxo comercial, fortalecendo o império
internamente e mantendo a estabilidade política por longo prazo. [RICE, 1999,
p. 49-52]
Êxitos Militares Estratégicos
No aspecto militar, Ramsés II possui claramente uma maior experiência em
combates do que Amenhotep III. Com Ramsés II frequentemente lembrado por
sua famosa participação na Batalha de Kadesh, contra os hititas. De acordo
com Spalinger [2005], embora ele tenha promovido a batalha como uma
grande vitória, o consenso entre historiadores é que o confronto terminou em
um impasse. No entanto, ele transformou essa narrativa em uma conquista
pessoal, utilizando de propaganda para consolidar sua imagem. [SPALINGER,
2005, p. 175].
Para Grimal [1992], no aspecto militar, a Batalha de Kadesh foi um verdadeiro
desastre para os egípcios. A medida que Ramsés II não alcançou nenhum dos
seus objetivos militares para a campanha. Além de iniciar o conflito [quebrando
o equilíbrio e estabilidade geopolítica alcançados anteriormente entre Seti I e
os imperadores hititas], ele ainda perdeu os recursos investidos na campanha e
aproximadamente metade do seu exército, quando caiu na armadilha dos
hititas. [GRIMAL, 1999, p. 120].
51
De acordo com Bard [2008], só é possível perceber a capacidade
propagandística e manipuladora dos fatos, por Ramsés II, quando analisamos
a Batalha de Kadesh a partir do registro hitita. O qual fornece uma visão mais
realista do confronto, expondo as dificuldades de ambos os lados em disputa
pela posse da região de Amarru [Síria atual]. Com o faraó registrando uma
vitória, que na realidade foi inconclusiva, e quase custou sua vida. [BARD,
2008, p. 102].
Ainda de acordo com Bard [2008], o maior faraó guerreiro foi Tutmés III e não
Ramsés II, como muitos pesquisadores continuam defendendo. Tutmés III,
também conhecido como o “Napoleão do Egito”, realizou a maior expansão
territorial do Egito Antigo. A partir de 17 campanhas bem sucedidas, expandiu
as fronteiras egípcias do Rio Eufrates até a quarta catarata do Rio Nilo
[território núbio]. [BARD, 2008, p.105].
Amenhotep III, por outro lado, seguiu um caminho diferente. Como Kozloff
(2012, p. 242) destaca, seu reinado foi marcado por uma ausência de
campanhas militares significativas, o que não significa que ele não tenha obtido
êxito estratégico. Sua habilidade em manter a paz e a estabilidade por meio da
diplomacia foi uma forma de alcançar seus objetivos internacionais sem
recorrer ao uso da força. [KOZLOFF, 2012, p. 242].
Kozloff [2012], pontua que as Cartas de Amarna, são os melhores exemplos da
habilidade estratégica de Amenhotep III. As quais expõem como esse faraó foi
bem sucedido em preservar o status quo egípcio e garantir a prosperidade do
império sem entrar em conflitos. Consolidando o domínio egípcio sobre vastas
regiões do Antigo Oriente Próximo e fortalecendo a influência do Egito como
uma superpotência militar. Resultando em um impacto mais duradouro no
cenário geopolítico da época. [KOZLOFF, 2012, p. 243-245].
Assim, uma análise mais detalhada das campanhas de Ramsés II expõem
êxitos militares limitados, com suas vitórias muitas vezes sendo mais
simbólicas do que concretas. Em contraste, embora Amenhotep III não tenha
expandido as fronteiras militarmente, ele assegurou o domínio e influência
egípcia sobre vastas regiões. demonstrando uma abordagem estratégica
diferente, utilizando a diplomacia como sua principal arma. Expondo que o
poder do Egito não dependia apenas da força militar, mas também da
habilidade política.
Conclusão
Portanto, a imagem de Ramsés II como o “maior” faraó do Egito deve ser
questionada. Seus feitos, apesar de notáveis, não foram incomparáveis, como
alguns pesquisadores expõem. Sendo em vários aspectos superado por faraós
anteriores, como Amenhotep III, que promoveu uma era de paz e prosperidade
sem precedentes. Porém ainda assim, é pouco lembrado e mencionado.
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Consolidando seu legado de forma diferente priorizando o florescimento
cultural e a diplomacia. Com seu reinado podendo ser considerado o apogeu
da civilização egípcia, marcado por uma paz prolongada, relações diplomáticas
bem sucedidas e um refinamento cultural sem precedentes. Sendo capaz de
manter a hegemonia egípcia sem recorrer a conflitos, provando que a força de
um faraó poderia residir tanto na sua capacidade de guerrear quanto em sua
habilidade de governar pacificamente.
Desse modo, em vez de simplesmente aceitar a imagem superestimada de
Ramsés II, é essencial reconhecer que o Egito produziu outros governantes
cujas realizações, em termos de arquitetura, poder militar, diplomacia e cultura,
rivalizaram ou até superam os de Ramsés II. Assim, ao adotar uma perspectiva
mais crítica, pode-se perceber que o legado desse faraó, embora grandioso, é
apenas uma parte de uma tradição faraônica de governantes que contribuíram,
cada um à sua maneira, para a grandeza do Egito.
Referência Biográfica
José Raimundo Neto, graduado em Licenciatura em História pela UFRPE.
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53
DE MESQUITA A CATEDRAL: MEMÓRIA DA
CONQUISTA E AMBIENTE CONSTRUÍDO NA
MESQUITA-CATEDRAL DE CÓRDOBA
Luiza S. Locatel Araújo e Pietro E. Menegatti de Chiara
Introdução
Córdoba, localizada no sul da Espanha e banhada pelo rio Guadalquivir, teve
seu espaço moldado por diversas culturas ao longo do tempo. A cidade
apresenta ocupações pré-históricas, romanas, islâmicas e cristãs. Foi sob
domínio islâmico que Córdoba emergiu como uma das principais cidades
globais, tornando-se a capital do Califado Omíada na Península Ibérica, um
estado central no início da expansão islâmica. Apesar do domínio político
islâmico, Córdoba era multicultural, abrigando pessoas de diversas religiões.
Córdoba certamente foi uma cidade ímpar e de suma importância em diversos
momentos da história. A partir dos omíadas, tornou-se um dos centros da
população muçulmana da região por um longo período. Em seu centro, próximo
ao rio, foi construída a sua mesquita central, inaugurada por ᶜAbd al Raḥman I
[731-788], primeiro emir de Córdoba. Tal edifício, por cinco séculos, atendeu os
propósitos de uma comunidade muçulmana e foi um dos principais edifícios de
um centro islâmico. As razões para a construção de uma mesquita podem
incluir a provisão de um local de reunião comunitário para o culto de sextafeira, a manifestação física da comunidade muçulmana, e a autoafirmação
dinástica. [Bloom, 2020] Elas também fornecem um espaço físico para
atividades diversas no cotidiano islâmico citadino, sendo utilizada para
encontro, orações e reafirmação de poderes.
Em 1236, a cidade foi conquistada pelos cristãos liderados por Fernando III de
Castela. Ao contrário de destruir a mesquita, os novos governantes a
converteram em catedral. Nesse processo, estruturas associadas à prática
religiosa islâmica perderam seu significado original, embora grande parte da
edificação tenha sido preservada. A adaptação do espaço envolveu ações
complexas, que mesclaram memória e ambiente construído. À luz desses
conceitos, o objetivo deste texto é analisar como essa transformação ocorreu,
com foco em quatro elementos principais: o miḥrāb, a fonte de ablução, o
minarete e a pátio aberto. Cada um deles, originalmente central para a fé
54
islâmica, foram encaixados em um contexto de memória da conquista para
comunicar uma identidade cristã a partir do domínio material e imaterial sobre
os muçulmanos.
Memória da conquista e ambiente construído
Em primeiro lugar, se faz importante ressaltar que monumento e arquitetura
são essenciais para pensar a cidade de Córdoba, e simbolizam a disputa de
agentes coletivos pela memória da cidade. Assim, a Mesquita-Catedral e sua
preservação com elementos islâmicos e cristãos representa a manipulação da
arquitetura para a percepção de interesses próprios de agentes históricos e
suas leituras da realidade em suas diferentes interpretações e períodos.
Nesse sentido, ganham destaque as discussões de Pierre Nora [1981] sobre
memória. Para o autor, os monumentos são expressões testemunhais de uma
era passada, e são resultados de lugares de memória, que mesclam o
simbólico e o material. Ao pensar o caso da antiga mesquita, o simbólico, como
os momentos e chamado de oração, e o material, como o minarete e o miḥrāb,
formam a expressão de uma era de domínio islâmico sobre a região. Quando
esta passa a estar sob o domínio cristão, os elementos simbólicos e materiais
islâmicos são substituídos por elementos que façam sentido para a realidade
cristã, como missas, no simbólico, e altares e estátuas, no material. O lugar de
memória, como proposto por Nora, são signos de representação, e
caracterizam acontecimentos, experiências e fixam um estado de coisas [Nora,
1981, p.22]. Assim, é importante ressaltar que, o simbólico que perpassa a
nova Catedral também representa a conquista, ou melhor, a Reconquista de
um império religioso.
Tratava-se, portanto, não de reformas isoladas que representam a simples
coexistência de elementos cristãos e muçulmanos. Tal sincretismo de fato
ocorreu, e muitos elementos arquitetônicos característicos do islã foram
incorporados à cultura ibérica. Entretanto, para além de uma simples
explicação do sincretismo que envolve a construção do corpus da MesquitaCatedral, as contribuições de Nora se fazem importante para pensá-la como
construção de uma memória da conquista, que reflete e faz alusão a elementos
dos vencidos, muçulmanos, a todo tempo, exaltando e sobrepondo elementos
dos vencedores, cristãos.
Ao pensar em ambientes, é imprescindível relacionar com a cultura e com as
suas intencionalidades e comunicações. Foi a partir disso que o conceito de
ambiente construído foi proposto por Amos Rapoport, o qual oferece uma
chave teórica importante para interpretar a transformação da mesquita de
Córdoba em catedral. O autor propõe um modelo para compreender o
ambiente construído a partir da perspectiva da comunicação não verbal. Ele
argumenta que os espaços construídos possuem funções que vão além do uso
instrumental e funcional, sendo elementos essenciais na organização social, na
transmissão de normas culturais e no estabelecimento de hierarquias. Ou seja,
os ambientes comunicam além das suas funções mais práticas e evidentes. A
55
partir de seus detalhes, é possível perceber elementos culturais que ensinam
os ocupantes desses locais.
Rapoport argumenta que o ambiente construído desempenha uma função
mnemônica e comunicativa ao operar como um instrumento cultural que
estabelece hierarquias, normas de comportamento e induz ações sociais. Ou
seja, lembra o ocupante desse espaço como agir. A noção de configurações de
papeis e a analogia dramática do comportamento humano podem ser
facilmente estendidas à função comunicativa e mnemônica de configurações e
ambientes, que abrigam comportamentos apropriados e também lembram as
pessoas de como se comportar. [Rapoport, 1990, p. 78]. No caso da mesquita
de Córdoba, a organização espacial e os componentes arquitetônicos
comunicavam regras e significados específicos à comunidade islâmica. Alguns
desses elementos serão trabalhados a seguir. Entretanto, com a transformação
dela em catedral, tais elementos islâmicos perderam o seu significado original,
mas passaram a comunicar uma hierarquia estabelecida pelos cristãos
Do Islã ao Cristianismo
O miḥrāb, nas mesquitas, é uma estrutura semelhante a um nicho e
geralmente é encontrado no centro da parede da qiblah [direção de Meca].
Então, os fieis costumavam realizar as suas orações em direção a ele. O
miḥrāb pode ter derivado da abside de igrejas bizantinas ou palácios romanos,
e veio a ser um ponto focal de adorno luxuoso na mesquita. [Turnbull, 2006].
Para os muçulmanos, o miḥrāb e a qiblah são simbólicos, por apontar o local
em que fieis devem direcionar as suas orações, além de conectar uma
comunidade de fieis [ummah] em torno de Meca. Ou seja, o direcionamento de
uma mesquita não é aleatório e sim conecta um edifício espacialmente ao
Oriente Médio. Não se pode perder de vista as características mnemônicas
disso, já que ele ressalta a conexão espacial do Islã com tal cidade.
No caso da mesquita de Córdoba, com as suas diversas reformas, não foi
diferente com o miḥrāb, afinal, ele, mesmo sem uma exatidão, direcionava os
fieis daquela cidade para a cidade no qual Muḥammad nasceu. A questão é
que quando a mesquita tornou-se catedral, esse direcionamento não tinha
sentido para os cristãos. Por mais que Jerusalém seja um local importante de
peregrinação, não havia no Cristianismo um direcionamento das orações dessa
maneira. Nesse sentido, com o uso do espaço como catedral, a posição
espacial original foi mantida, mas seu novo centro era um altar central. [Ver
imagem a seguir] Os cristãos utilizaram o espaço do miḥrāb para guardar
hóstias [Ecker 2003] e para um altar lateral apenas descoberto completamente
em 1816 por Furriel, o qual restaurou os mosaicos islâmicos.
56
Fonte: https://mezquita-catedraldecordoba.es/en/descubre-el-monumento/eledificio/mihrab/
Outro importante símbolo islâmico também foi reinterpretado. É o caso do
minarete, a torre da mesquita, que serve ao propósito de chamado para
oração, o adhān. No momento da oração, o responsável por isso, o mu'adhin
[muezim] , subia na torre e chamava os fieis para orar, ritual importante
realizado antes das orações diárias. Ao pensar no início do Islã, é possível que
os primeiros minaretes tenham sido concebidos como símbolos altamente
visíveis de uma fé jovem e que eles foram feitos para marcar a ascensão e a
monumentalidade dela. [Turnbull, 2006]. Além de se projetar como locais mais
altos de uma cidade, eles eram também um símbolo de divisão do tempo, já
que cinco vezes ao dia, a partir da posição do sol, o adhān era realizado.
Após 1236, a função temporal permaneceu, já que essa estrutura tornou-se a
torre do sino. Entretanto, muitos elementos arquitetônicos anteriores presentes
foram removidos, o que por conseguinte, comunicou uma identidade mais
cristianizada. Ecker [2003], aponta que é uma ilusão que a Grande Mesquita
pode ser facilmente desacoplada para revelar sua construção por adição e
subtração frente a catedral. Um dos exemplos disso é a torre do sino/minarete.
Por mais que saiba que uma nova construção foi feita, uma subtração completa
é impossível. Esse mesmo argumento foi levantado por Hillenbrand [1994, p.
57
143] ao analisar outro minarete na Espanha que foi transformado em torre do
sino, a Torre da Giralda, em Sevilha.
Entretanto, é imprescindível perceber o esforço que foi feito em descaracterizar
alguns elementos típicos da arquitetura andalusí. Os típicos arcos em ferradura
foram eliminados e a identidade predominante dessa estrutura foi cristã, ao
contrário do interior da mesquita-catedral. No interior da torre do sino ainda é
possível ver que há um resquício dos antigos arcos encoberto por blocos pelos
cristãos. [Imagem a seguir]
Fonte: Acervo pessoal dos autores
Por fim, outro elemento importante para o exercício da fé islâmica que teve um
significado esvaziado foi o pátio aberto [ṣaḥn] e as suas fontes para as
abluções, como visto na imagem. Apesar de não ser obrigatório, esse modelo
arquitetônico foi muito utilizado, principalmente pelos omíadas. Essa
configuração procura conectar-se com a oração [ṣalāh], mais especificamente
na questão de purificação. Afinal, em Córdoba e em diversas mesquitas, o
ṣaḥn possui fontes de água para que os fieis façam as suas abluções [wuḍū’]
antes de realizarem suas rezas. Um elemento facilitador e que faz sentido em
um ambiente voltado para a oração, afinal, estabelece normas de
comportamento e induz o comportamento social em direção a um dos pilares
do Islã.
Por mais que o Cristianismo tenha os seus rituais de purificação, inclusive as
primeiras basílicas cristãs tivessem uma fonte para abluções, conhecida como
cantharus ou phiala, na cristandade ocidental, a fonte para abluções deu lugar
a uma pia ou tigela de água mais modesta [Bradley, 2012, p. 39-40]. Ou seja,
não tinha sentido para a arquitetura cristã como para a islâmica o sistema de
pátios e as suas fontes. Isso, portanto, não impediu o uso desses espaços em
uma adaptação, já que o bispo Francisco Reinoso [1597-1601] sugeriu que o
espaço fosse usado como um jardim. Atualmente a água ainda é utilizada na
chamada Fonte de Santa Maria.
58
A partir desses elementos arquitetônicos, é possível perceber como o ambiente
expressa as formas de comportamento social que se relaciona diretamente
com o Islã. Elementos como o miḥrāb, por exemplo, refletiam a centralidade
espiritual de Meca e a dinâmica das orações comunitárias e guiavam
comportamentos ao comunicar não verbalmente formas de uso e interação
com o espaço. O mesmo vale para o minarete, ao mesmo tempo que projetase verticalmente, relembra os fieis da divisão temporal do dia e das orações.
Essas estruturas expressam as formas de comportamento social e as
hierarquias presentes no Islã. Enfim, é evidente que todos os elementos de
uma mesquita se comunicam a partir dos preceitos dogmáticos ou históricos da
religião, isto é, a partir do corão, tradição profética, da sunna ou da própria
história.
Em 1236, os cristãos capturaram a antiga capital do Emirado e Califado de
Córdoba, o primeiro estado islâmico a governar a Península Ibérica. Embora
Córdoba não tenha sido a capital das dinastias amāzīgh [berbere], sua
conquista representou um marco simbólico na Reconquista cristã. A antiga
capital dos primeiros invasores muçulmanos e antigo centro do Islã ocidental
passava agora ao controle cristão. Esse momento histórico foi fundamental
para a construção da identidade cristã ibérica, moldada em oposição ao Islã.
Um exemplo emblemático disso é Santiago, o Apóstolo. Inicialmente associado
à Igreja asturiana, que reivindicou suas relíquias e estabeleceu Santiago de
Compostela como um dos principais destinos de peregrinação, ele se tornou
um símbolo de resistência cristã. A partir da lendária batalha de Clavijo, o
Apóstolo ganhou o título de "Matamoros", consolidando sua imagem como
ícone da luta contra os muçulmanos durante a reconquista.
Essa questão identitária é central na análise de edifícios como a Catedral de
Córdoba. Seus elementos arquitetônicos, mesmo despojados do significado
original, comunicaram no contexto da lógica cristã a nova hierarquia
estabelecida e a memória da reconquista. A decisão de preservar parte da
antiga mesquita não foi acidental; ao contrário, seguia uma estratégia simbólica
de demonstrar a conquista do espaço outrora pertencente ao inimigo. Essa
lógica remetia à memória recorrente da reconquista cristã e à construção de
uma nova identidade espanhola, fundamentada na narrativa de recuperação de
uma terra supostamente perdida para os muçulmanos. Nesse sentido, a
transformação da mesquita em catedral não apenas reconfigurou o espaço
físico, mas inscreveu nele um discurso de poder e de sucesso no plano cristão
de domínio territorial. Não é à toa que no altar principal, foi colocada a figura de
Santiago Matamoros [imagem a seguir]. A escultura está lá com o objetivos
mnemônicos de lembrar a vitória cristã.
59
Fonte: Acervo pessoal dos autores
Dessa forma, e considerando que a memória é uma representação construída
com pretensão de objetividade, o monumento, enquanto mesquita, era a
representação da força do emirado de Córdoba e da grandiosidade do
islamismo em al Andalus, ainda que isso não anule a coexistência de cristãos
na região. Na última grande expansão da mesquita, cabe ressaltar que, como
um ato simbólico de sua força, o vizir de Hishām II, al Manṣūr, ordenou que os
sinos da igreja de Santiago de Compostela fossem removidos para Córdoba
nos ombros de prisioneiros cristãos, para serem pendurados como lâmpadas
no teto da Grande Mesquita [Bloom, 2020]. Segundo Ecker [2003], também em
1236 que os sinos furtados por al Manṣūr teriam sido devolvidos para seu lugar
original por Fernando III. A disputa envolvendo os sinos da mesquita de
Santiago, nesse caso, se faz relevante por revelarem as disputas simbólicas
envolvidas no processo de conquista que estão inscritas na transformação da
mesquita a catedral. Roubar os sinos de Santiago Matamouros e levá-los à
mesquita pode representar a falência da empreitada cristã contra os
muçulmanos, que, naquele momento, se representavam como vitoriosos frente
a seu inimigo. Da mesma forma, o ato de Fernando III de devolver os sinos
representaria o retorno da ordem e o domínio cristão sobre os muçulmanos.
Sob essa lógica, é interessante notar que até o século 16 poucas mudanças
estruturais são significativas, alterando-se majoritariamente locais rituais, como
a sala de orações para o local de missa, e inutilizando elementos como a pia
de abluções e o minarete em sua função original. Entretanto, a partir do século
16, os acontecimentos do Renascimento e das primeiras décadas da Era
Moderna, bem como a Conquista da América e a Reforma, foram essenciais
para a articulação de um período mobilizado para fortalecer a posição de poder
da Igreja Católica e sua centralidade religiosa. Nesse sentido, houve um
empreendimento de reformas na estrutura da catedral, que não somente
60
manteve grande parte da decoração muçulmana, mas também complementoua com a criação de uma capela para Santiago de Compostela, o Matamoros.
Conclusão
Conectando-se à ideia de espaço construído, essa adaptação reflete o conceito
de ambiente como comunicação, proposto por Amos Rapoport. A mesquitacatedral de Córdoba não é apenas um lugar de culto transformado, mas
também um espaço que transmite mensagens culturais e sociais. Ao manter e
ressignificar elementos como o miḥrāb, o minarete e o ṣaḥn, o edifício se torna
um veículo de memória e identidade, lembrando à população cristã o triunfo da
reconquista e reafirmando as hierarquias impostas pela nova ordem. Assim, o
espaço construído não apenas abriga práticas religiosas, mas também
comunica poder, legitima transformações e perpetua narrativas históricas.
Ao analisar o conceito de memória, juntamente com o de ambiente construído,
ambos aplicados na análise da Mesquita Catedral de Córdoba, é possível
destacar que, apesar de algumas análises apontarem para um diálogo e
coexistência pacífica de ambas as religiões, se torna evidente que a utilização
do espaço da mesquita por cristãos, bem como a descontextualização de
alguns elementos tradicionalmente islâmicos, representam a construção de
uma memória da conquista na arquitetura local. Nesse sentido, é importante
pontuar que o sincretismo presente na Mesquita Catedral, bem como suas
transformações arquitetônicas são frequentemente associadas ao poder
exercido pela conquista cristã e ao esquecimento produzido pelo apagamento
de determinadas estruturas. Assim, conclui-se que quem controla o discurso
sobre o passado, os cristãos, detém influência sobre as narrativas.
Dessa forma, conclui-se que a Mesquita-Catedral de Córdoba materializou a
memória da conquista cristã ao incorporar e ressignificar elementos islâmicos
como os arcos bicolores em ferradura, o miḥrāb, o minarete, o ṣaḥn e a fonte
de ablução, transformando-os em símbolos do domínio cristão ao passado
islâmico. O miḥrāb, antes orientado para Meca, tornou-se um espaço para a
liturgia cristã, enquanto o minarete foi convertido em torre de sinos,
simbolizando a nova hierarquia religiosa. O ṣaḥn, antes utilizado para o wuḍū’,
foi adaptado como um jardim contemplativo, perdendo sua conexão original
com os rituais de purificação islâmicos. Esses elementos, desprovidos de seus
significados originais, foram mantidos e ressignificados, criando um espaço que
reflete uma apropriação simbólica que reafirma o triunfo cristão. A MesquitaCatedral se tornou, assim, um monumento de poder que comunicou o controle
cristão sobre o território e sobre a narrativa histórica, utilizando traços islâmicos
como lembretes de um passado vencido e consolidando a hierarquia imposta
pelos conquistadores em sua identidade de Reconquista.
Referências Bibliográficas
Luiza Santana Locatel Araújo é graduada em História pela Universidade
Federal do Espírito Santo, membro do Lethis, bolsista Fapes.
61
Pietro Enrico Menegatti de Chiara é mestrando em História pela Universidade
Federal do Espírito Santo, membro do Letamis, bolsista Fapes.
BLOOM, Jonathan. Architecture of the Islamic West: North Africa and the Iberial
Peninsula, 700-1800. New Haven: Yale University Press, 2020.
BRADLEY, Ian. Water: A Spiritual History. Londres: Bloomsbury Publishing,
2012.
ECKER, Heather. The Great Mosque of Córdoba in the Twelfth and Thirteenth
Centuries. Muqarnas: An Annual on the Visual Culture of the Islamic World, XX,
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HILLENBRAND, Islamic Architecture: Form, Function, and Meaning. Nova
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NORA, Pierre. Entre a história e a memória: a problemática dos lugares.
Revista Projeto, Educ/PUCSP, São Paulo, n. 10, p. 7-28, 1981.
RAPOPORT, Amos. The Meaning of the Built Environment. Tucson: The
University of Arizona Press, 1990.
TURNBULL, Richard. “Mosques” In. MERI, Josef [ed.]. Medieval islamic
civilization an encyclopedia. Abingdon: Routledge, 2006.
62
O ESPELHO HONORÁVEL DA JUVENTUDE COMO UM
ELEMENTO OCIDENTALIZANTE NA RÚSSIA DE PEDRO
O GRANDE
Maria Carolina Stelzer Campos
A Rússia de Pedro o Grande (1672-1725) foi palco de profundas
transformações sociais, políticas e culturais que marcaram a transição do país
para uma modernidade moldada por influências ocidentais. Nesse contexto, o
Honorável Espelho da Juventude emerge como um símbolo emblemático do
esforço do czar em disciplinar e reeducar a elite russa, transformando-a em um
instrumento alinhado aos valores europeus. Publicado como o primeiro manual
de etiqueta russo, esse documento não apenas reflete as intenções de Pedro
de modernizar a sociedade, mas também revela uma tentativa de impor
padrões culturais que dialogam com as estruturas de poder e dominação
características do pensamento ocidental.
Ao abordar o processo de ocidentalização da Rússia, é impossível ignorar as
dinâmicas de poder que permeiam as relações entre o Ocidente e o Oriente,
como descrito por Edward Said em seu conceito de orientalismo. Said [2007]
argumenta que o orientalismo vai além de um conjunto de estereótipos: ele é
um discurso que constrói e reforça a superioridade ocidental, relegando o
Oriente a uma posição de inferioridade simbólica. Embora Said se concentre
primariamente nas relações entre potências coloniais e os territórios que
subjugaram, sua análise ajuda a iluminar os mecanismos pelos quais culturas
ditas periféricas, como a Rússia no início do século XVIII, internalizam essas
representações para se aproximar do modelo europeu dominante.
Nesse sentido, a centralidade de São Petersburgo como nova capital imperial e
o papel da etiqueta e do comportamento cortesão demonstram como Pedro o
Grande buscou moldar a identidade nacional de sua elite, posicionando-a como
parte de uma esfera cultural europeia. Essas iniciativas refletem também as
ideias de Norbert Elias [2001], que destaca o papel das normas de conduta na
consolidação de uma ordem social hierárquica e centralizada. Elias, ao analisar
a corte de Luís XIV, argumenta que a etiqueta era usada como uma ferramenta
para subordinar a nobreza e assegurar a estabilidade política. Analogamente,
63
Pedro aplicou princípios similares para reforçar sua autoridade e inserir a
Rússia no sistema europeu de poderes.
O Honorável Espelho da Juventude, ao enfatizar virtudes como obediência,
autocontrole e dedicação ao trabalho, não se limita a regular o comportamento
individual: ele se insere em um projeto maior de reestruturação social e política,
que buscava modernizar a Rússia e solidificar o poder autocrático do czar. No
entanto, ao adotar e adaptar valores ocidentais, Pedro também enfrenta a
tensão entre o desejo de modernização e a preservação das características
culturais russas. Este artigo, portanto, propõe uma análise do Honorável
Espelho da Juventude como um elemento central na ocidentalização russa,
explorando como seus preceitos de etiqueta e moralidade dialogam com o
orientalismo e com os mecanismos de controle social descritos por Said [2007]
e Elias [2001].
A análise que se segue pretende não apenas explorar o contexto e o conteúdo
do Honorável Espelho da Juventude, mas também refletir sobre como essas
normas de conduta se alinham ao esforço de Pedro em moldar uma nova
identidade nacional para a Rússia. A partir dessa perspectiva, busca-se
compreender como São Petersburgo e os valores ocidentalizados promovidos
por Pedro não apenas consolidaram sua visão de uma Rússia moderna, mas
também transformaram a percepção do próprio país no cenário internacional.
Ocidentalização e poder: O Honorável Espelho da Juventude
O conceito de orientalismo, conforme apresentado por Edward Said, aborda as
representações e construções culturais do "Ocidente" em relação ao "Oriente".
Said argumenta que o orientalismo é uma forma de pensamento que coloca o
Ocidente como superior e o Oriente como inferior, resultando em estereótipos e
visões distorcidas dos povos orientais e de suas culturas. Essa visão
dicotômica cria uma narrativa de poder, na qual o Ocidente se posiciona como
dominante e civilizado, enquanto o Oriente é retratado como exótico e bárbaro
[Said, 2007].
Essa perspectiva orientalista não só influenciou as relações coloniais, mas
também continua a moldar as percepções e interações entre o Ocidente e o
Oriente atualmente. Barros [2017] acaba dialogando com o conceito de
orientalismo de Said [2007], ao abordar como o espaço geográfico é uma
construção social e cultural, que reflete relações de poder e dominação. A
geografia, como disciplina acadêmica, muitas vezes perpetuou visões
eurocêntricas e ocidentalistas do mundo, relegando outras culturas e espaços a
posições subalternas. Barros [2017] destaca como o conhecimento geográfico,
ao longo da história, tem sido utilizado para legitimar as ações coloniais e
imperialistas do Ocidente, reforçando a ideia de superioridade ocidental sobre
outras culturas e territórios. Essa geografia eurocêntrica e ocidentalista
contribui para a criação de fronteiras simbólicas e reais, que separam o
"Ocidente civilizado" do "Oriente exótico" e, assim, reforçam a narrativa
orientalista de Said [2007].
64
Além disso, Barros [2017] também explora como o espaço é uma arena de
poder, onde se desenrolam dinâmicas de dominação, exclusão e
estigmatização. Os espaços são delimitados e organizados de acordo com
relações de poder, criando lugares de inclusão e exclusão social. Através do
orientalismo, as culturas e povos orientais são frequentemente estigmatizados
e marginalizados, sendo relegados a espaços subalternos na narrativa global.
O orientalismo contribui para a construção de uma identidade do "Outro", que é
visto como diferente e inferior [Silva, 2014], e, consequentemente, subjugado
pelos valores e normas do Ocidente. Essa dinâmica de poder no espaço
geográfico perpetua visões distorcidas e estereotipadas das culturas orientais.
Em 1717, sob o comando de Pedro o Grande, foi publicado o Espelho
Honorável da Juventude (Honorável Espelho da Juventude, Служебник), o
primeiro manual de etiqueta da Rússia, destinado a moldar a conduta da
nobreza de acordo com os padrões europeus da época [Kollmann, 2008].
Elaborado com o objetivo de incutir na elite russa valores como disciplina,
respeito à autoridade e autocontrole, o documento representava um esforço
deliberado de Pedro para alinhar a cultura russa às normas ocidentais.
Dividido em 254 itens – esse número pode variar dependendo da edição e da
interpretação, mas 254 é o número geralmente aceito para as edições mais
conhecidas do texto, divididos em duas partes, onde a primeira, era
responsável por conter um guia de como ler e contar corretamente, a segunda
focava na etiqueta – o Espelho não se restringia a recomendações de boas
maneiras, mas abrangia também preceitos morais, orientações religiosas e
códigos de comportamento social. Por meio dele, o czar buscava transformar
não apenas a aparência, mas também o caráter e as atitudes da nobreza,
promovendo um afastamento dos costumes tradicionais que ele considerava
inadequados e um alinhamento aos valores de civilidade europeus. Essa
iniciativa reflete a ambição de Pedro de modernizar a sociedade russa,
começando por sua elite, para consolidar seu projeto de ocidentalização e
fortalecimento do Estado.
Na segunda parte, desde o início, é ressaltado a importância do respeito
inquestionável aos pais, de acordo com esse documento, os pais devem ser
vistos como autoridades supremas, e suas ordens devem ser obedecidas com
grande reverência. Um exemplo disso, é item nº 3 que diz: “3. Você não deve
interromper seus pais enquanto eles estiverem falando, nem contradizê-los, e
não interrompa as palavras de outras pessoas da idade deles, mas espere até
que terminem de falar. Não repita a mesma história com frequência à mesa, no
local de trabalho ou em qualquer lugar, não se encoste de forma preguiçosa e
não se comporte como um camponês, que fica deitado ao sol. Você deve ficar
em pé, ereto. [Kollmann, 2008, p. 64.]”
Ademais, Honorável Espelho da Juventude [Kollmann, 2008] incentiva uma
postura cortês até mesmo com os inimigos. A orientação é que se evite a
difamação, guardando quaisquer sentimentos de antipatia para si. Em público,
os inimigos devem ser louvados e, em sua presença, respeitados e auxiliados,
65
quando necessário. O respeito aos mortos também é enfatizado, com a
proibição de falar mal daqueles que já faleceram.
Esse documento ainda discute a questão da simplicidade e da dedicação como
virtudes fundamentais para o crescimento da Rússia [Kollmann, 2008]. O czar
aconselha os jovens a evitarem o autoelogio e a não se vangloriarem de suas
origens familiares. Pedro I desestimula qualquer tentativa de exaltação pública,
sugerindo que o reconhecimento venha naturalmente de terceiros.
Além disso, o texto valoriza a dedicação ao trabalho, um princípio que Pedro
praticava e pregava. O jovem nobre deveria ser ativo, diligente e
constantemente ocupado, assim como o pêndulo de um relógio [Kollmann,
2008]. Segundo a obra, o esforço individual estimularia a produtividade dos
servos e contribuiria para o desenvolvimento da nação. Esse incentivo do czar
pela produtividade, pode ser vista desde a Tabela das Patentes [Segrillo,
2016], onde ele, como visto anteriormente, sempre rejeitou o ócio, mesmo por
parte dos nobres.
Pedro instruiu que o nobre seja um verdadeiro cristão, respeitando o clero e
comparecendo regularmente às missas. Ele alerta os jovens a evitarem
devassidão, jogos e bebedeiras, que, segundo ele, só levariam a grandes
infortúnios [Kollmann, 2008]. Especificamente no que se refere às jovens
mulheres, a castidade é reiterada como uma virtude essencial. O texto também
descreve como deve ser o comportamento considerado decente para uma
mulher.
Os modos à mesa também são amplamente discutidos na obra, sugerindo que
a etiqueta dos nobres russos no início do século XVIII era insuficiente. Há uma
lista extensa de proibições: não lamber os dedos, não roer ossos, não limpar a
boca com as mãos e não fazer ruídos ou fungar à mesa. Curiosamente, apesar
de suas rígidas recomendações, Pedro não proíbe o consumo de álcool, mas
orienta a moderação. Ele sugere que a bebida seja recusada inicialmente e,
posteriormente, aceita com uma saudação, lembrando que o abuso de álcool
deve ser evitado [Kollmann, 2008].
Por fim, o Honorável Espelho da Juventude [Kollmann, 2008], aborda questões
de higiene, que no século XVIII diferiam das normas atuais. Uma das
orientações diz que, caso alguém esteja em pé ou sentado em círculo, não
deve cuspir dentro do círculo, mas apenas para fora. Caso a pessoa decida
cuspir, deve fazê-lo de maneira discreta, cobrindo os rastros, seja com o pé ou
utilizando um lenço, que deve ser descartado discretamente.
De modos geral, o documento traçava um código de conduta detalhado e
minucioso, refletindo os esforços de Pedro I em moldar a nobreza de São
Petersburgo para ser não apenas poderosa, mas também disciplinada e
civilizada. E mais uma vez é possível perceber a influência ocidental, tentando
incorporar conceitos de moralidade, cidadania e educação que eram comuns
nas sociedades europeias da época.
66
Essa abordagem ecoa as ideias de Norbert Elias em A Sociedade de Corte
[2001], onde ele argumenta que a etiqueta e os códigos de conduta não
apenas regulam o comportamento, mas também servem como instrumentos de
controle social e político, moldando a elite para atender aos interesses dos
governantes e assegurar a coesão social em um contexto de centralização do
poder.
Elias [2001] argumenta que a etiqueta era uma ferramenta essencial para o
controle social e político na corte de Luís XIV. A vida na corte era marcada por
rituais e formalidades elaboradas, nas quais cada gesto, palavra e atitude
possuíam significados simbólicos profundos. As normas de etiqueta exigiam
dos nobres um autocontrole extremo e uma constante vigilância sobre o próprio
comportamento, determinando prestígio social e proximidade com o rei.
De forma semelhante, o "Honorável Espelho da Juventude", revela a utilização
da etiqueta como um instrumento de controle social e disciplinar. Através desse
rigoroso código de conduta, Pedro pretendia moldar uma elite não apenas
poderosa, mas também disciplinada e submissa à sua autoridade. O Espelho
[2008], enfatiza a importância da obediência a figuras de autoridade, como pais
e superiores, refletindo uma hierarquia rígida onde a submissão à autoridade é
vista como uma virtude essencial. Assim, tanto em Versalhes quanto em São
Petersburgo, a etiqueta se torna um meio para consolidar o poder central e
assegurar a lealdade da nobreza.
Entretanto, mesmo com todas as modernidades instauradas, é importante que
não se esqueça que São Petersburgo faz parte da Rússia e não se torna
“menos russa” por isso. A nova capital, deve ser vista como algo novo, que
aponta para o caminho que a Rússia vai trilhar no futuro, e esse é um dos
fatores mais relevantes acerca da consolidação de São Petersburgo, ela é um
passo da consolidação da Rússia moderna.
São Petersburgo: Um Símbolo da Modernidade e Ocidentalização da
Rússia de Pedro o Grande
A fundação de São Petersburgo em 1703 representa um dos marcos mais
emblemáticos da modernização promovida por Pedro o Grande. Construída às
margens do rio Neva, em uma região estratégica próxima ao Mar Báltico, a
cidade simbolizava o desejo do czar de inserir a Rússia no cenário europeu
como uma potência moderna e ocidentalizada. Mais do que uma nova capital,
São Petersburgo foi concebida como um espaço que traduzia os ideais
reformistas e o projeto de centralização do poder. Ela se tornou, assim, um
ícone tanto do avanço político quanto da ocidentalização cultural da Rússia.
Desde sua concepção, São Petersburgo desafiava as tradições russas. A
localização da cidade, em um terreno pantanoso e de condições climáticas
adversas, foi alvo de críticas e resistência. No entanto, Pedro, determinado a
consolidar sua visão, mobilizou um enorme contingente de trabalhadores,
67
incluindo servos e prisioneiros, para erguer a cidade em tempo recorde. As
obras de São Petersburgo simbolizam não apenas a força de vontade do czar,
mas também os sacrifícios que sua modernização exigia, muitas vezes à custa
de vidas humanas. Nesse contexto, a cidade já nascia como um espaço de
poder, centralizando as ambições de Pedro em transformar a Rússia em um
Estado alinhado às normas europeias de urbanismo e governança [Massie,
2016].
A arquitetura de São Petersburgo refletia a estética europeia, com palácios,
catedrais e praças que remetiam às principais capitais do continente. Pedro
contratou engenheiros, arquitetos e artesãos estrangeiros, especialmente
italianos e holandeses, para projetar uma cidade que contrastasse com o
tradicional estilo russo encontrado em Moscou. Essa escolha deliberada de
elementos ocidentais, como o urbanismo regular e o uso de canais inspirados
em Amsterdã, visava criar uma narrativa visual que colocasse São Petersburgo
no mesmo patamar das grandes cidades europeias [Massie, 2016]. Ao fazê-lo,
Pedro não apenas modernizava a infraestrutura da Rússia, mas também
reconfigurava a identidade cultural de seu país.
O simbolismo de São Petersburgo transcende seu caráter urbano. A
transferência da capital de Moscou para a nova cidade em 1712 consolidou
São Petersburgo como o centro político, econômico e cultural do império
[Hughes, 2002]. Ao deslocar a corte para a cidade, Pedro impôs uma nova
dinâmica à nobreza, obrigando-a a adotar costumes e comportamentos
ocidentalizados. Essa mudança não era apenas geográfica, mas também
simbólica: São Petersburgo representava o futuro da Rússia, enquanto Moscou
permanecia associada ao passado medieval e à tradição ortodoxa.
O esforço para transformar São Petersburgo em um símbolo da modernidade
russa também pode ser interpretado à luz do orientalismo de Edward Said
[2007]. A cidade incorporava valores ocidentais em oposição às características
orientais frequentemente associadas à Rússia por outros países europeus. Ao
adotar elementos arquitetônicos, culturais e sociais do Ocidente, Pedro
buscava reconfigurar a imagem da Rússia no cenário internacional,
distanciando-se da visão de um país exótico e subdesenvolvido para assumir
um papel de potência civilizada e moderna.
Ainda que São Petersburgo fosse um projeto grandioso, ele não apagava
completamente as raízes culturais russas. A cidade, com suas influências
europeias, permanecia profundamente conectada à identidade russa. Essa
dualidade – entre o desejo de modernização e a preservação de tradições – é
uma característica central das reformas de Pedro o Grande. São Petersburgo,
portanto, não se torna "menos russa" ao adotar elementos ocidentais, mas sim
um espaço híbrido, que sintetiza a complexa relação da Rússia com a
modernidade.
Em última análise, São Petersburgo é mais do que uma capital; ela é um
manifesto da visão de Pedro o Grande para a Rússia. Como um símbolo de
68
modernização, ocidentalização e centralização do poder, a cidade encapsula o
legado reformista do czar. Ao mesmo tempo, São Petersburgo aponta para os
desafios e tensões inerentes a esse processo, lembrando que a modernidade,
em sua essência, é um projeto profundamente marcado por negociações entre
tradição e inovação.
A trajetória de Pedro o Grande, marcada por sua incansável busca por
modernizar e ocidentalizar a Rússia, é um testemunho de como a liderança
visionária pode transformar um país em múltiplas dimensões. O Espelho
Honorável da Juventude emerge como um símbolo desse projeto, refletindo
não apenas os esforços do czar para disciplinar e moldar a elite russa, mas
também sua determinação em alinhar a Rússia aos padrões culturais e
comportamentais europeus. A criação de São Petersburgo reforça essa
ambição, representando o ponto de convergência entre o desejo de inovação e
a reafirmação da identidade russa no cenário global.
Contudo, as reformas de Pedro também levantam questões importantes sobre
identidade, resistência e poder. Enquanto o czar buscava projetar uma Rússia
moderna e influente, muitos elementos de sua sociedade se viram tensionados
entre a preservação de suas tradições e a imposição de novos padrões. A
dualidade entre ocidentalização e autenticidade russa permeia todo o reinado
de Pedro, oferecendo um terreno fértil para debates sobre os limites do
progresso e os custos sociais e culturais da transformação.
Assim, o legado de Pedro o Grande transcende os marcos arquitetônicos e as
normas de etiqueta. Ele está enraizado na construção de uma Rússia que,
mesmo enquanto olhava para o Ocidente, reafirmava sua posição singular no
mundo. O projeto de modernização iniciado por ele não apenas moldou as
bases da Rússia moderna, mas também deixou um questionamento
permanente: até que ponto a busca pelo progresso justifica o rompimento com
as tradições? Essa reflexão ecoa na história russa e permanece relevante em
qualquer análise sobre as complexas relações entre modernidade e identidade
cultural.
REFERÊNCIAS
Mestranda no Programa de Pós Graduação em História na Universidade
Federal do Espírito Santo, bolsista CAPES.
BARROS, José D’Assunção. História, espaço, geografia: diálogos
interdisciplinares. Petrópolis/RJ: Vozes, 2017.
ELIAS, Norbert. A sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da
realiza e da aristocracia de corte. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
HUGHES, Lindsey. Peter the great: a biography. New Haven; London: Yale
University Press, 2002.
69
KOLLMANN, Nancy S. Etiquette for Peter’s time: the honorable mirror for
Youth. Russian History/Histoire Russe, Stanford, v. 35, n. 1-2, p. 63-83, springsummer, 2008. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/24661671?readnow=1&seq=1. Acesso em: 5 set. 2024.
MASSIE, Robert K. Pedro, o grande: sua vida e seu mundo. São Paulo.
Amarilys, 2016.
SAID, Edwuard W. Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente. São
Paulo: Companhia das Letras, 2007.
SEGRILLO, Angelo de Oliveira. Europa ou Ásia? A questão da identidade
russa nos debates ocidentalistas, eslavófilos e eurasianistas (elementos dos
debates entre ocidentalistas, eslavófilos e eurasianistas e uma aplicação à
análise da Rússia atual). Tese (Livre Docente). 2016. 276 f. Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo,
2016. Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/livredocencia/8/tde14092018-162101/pt-br.php. Acesso em: 13 jun. 2022.
SILVA, Tomaz Tadeus da (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos
estudos culturais. Petrópolis/RJ: Vozes, 2014.
70
É HORA DE BRINCAR: AS BONECAS DOS INFANTES
EGÍPCIOS DO MUNDO ANTIGO
Maura Regina Petruski
A presença de bonecas como componente do mundo infantil se fez presente
em diversas sociedades na antiguidade, sendo encontradas em territórios tanto
da Mesopotâmia e Egito, quanto da Grécia e Roma. Todavia, apesar de sua
longevidade existencial, somente numa temporalidade mais recente é que
passaram a ser olhadas com mais atenção tornando-se objetos de estudos de
diferentes áreas de conhecimento, dentre as quais a História se encaixa. O que
pode ser apresentado como justificativa da exclusão pelos historiadores
anteriores as primeiras décadas do século XX, é que eles centraram suas
análises em assuntos militares, políticos e a importantes eventos, deixando de
lado ou passando tangencialmente ao que se referia a esfera infantil.
Philippe Ariès (1978) foi um dos autores que proporcionou visibilidade ao
mundo infantil a partir do momento que desenvolveu pesquisas nesse campo,
abrindo espaço para que outros estudiosos também percebessem sua
potencialidade, favorecendo para que um leque de proposições começasse a
ser desbravado, submergindo um recorte social que embora estivesse presente
no seio das sociedades, estava ausente e a margem da História, pois pouco
sobre ele era observado e estudado.
Foi dentro do contexto de ampliação de horizontes relacionado aos infantes
que a história dos brinquedos se inseriu, tornando-se objeto de análise. Assim,
com base nesse novo contexto analítico é que esse trabalho foi estruturado, o
qual se propõe a evidenciar elementos pertencentes a uma tipologia específica
de brinquedos que fez parte da infância das crianças egípcias na antiguidade,
as bonecas.
Para atingir esse objetivo, buscou-se informações nas representações
iconográficas e textuais deixadas pelos próprios egípcios, bem como de
exemplares extraídos das escavações arqueológicas que revelaram uma rica
cultura infantil.
71
No que tange as peças oriundas dos sítios arqueológicos explorados entre o
final do século XIX e o início do XX, Aroa Velasco Pirez faz uma ressalva,
afirmando que embora por si só os artefatos estivessem imbuídos de
informações, houve falha por parte de alguns exploradores em registrar
identificações mais detalhadas e abrangentes sobre o contexto da descoberta,
fato que poderia ampliar possibilidades de análises. Entretanto, tal atitude não
inviabilizou seu estudo, mas permitiria que informações não ficassem perdidas,
proporcionando que uma classificação mais ampla e afunilada pudesse ser
realizada (2022, p. 142 ).
São originárias do âmbito doméstico a grande maioria dos objetos de brincar
dos pequenos egípcios revelado pelas escavações, visto que esse era o local
onde as crianças passavam maior parte do seu tempo. Também os
encontraram em espaços funerários no interior das tumbas infantis, e a
exemplo disso, temos as peças extraídas da tumba do faraó Tutankamon, que
morreu aos dezenove anos de idade, descoberta em 1922, e, de certa forma,
não muito distante do período da sua infância. De excelente qualidade, os
brinquedos tinham sua feitura de osso e marfim, matéria-prima mais resistente
a ser modelada exigindo elaboração mais sofisticada e cuidadosa.
De acordo com Pirez, 3712 tumbas de restos humanos infantis foram
documentados, sendo que foram poucas as bonecas nelas encontradas em
boa qualidade de conservação. A respeito das tumbas dos infantes, o autor
menciona que,
“ As razões desta prática
sendo a mais evidente a fragilidade e a
vulnerabilidade dos restos infantis ao passar do tempo; outro motivo pode ser o
escasso interesse que se dava a esse tipo de enterramento em momentos
iniciais da investigação egiptológica. Outra razão que poderia justificar a exígua
constatação de enterramentos infantis na arqueologia do antigo Egito pode
residir na retirada da sucessão dos falecimentos infantis (2022, p.135)”
Proporcionalmente, a grande maioria dos artefatos para brincar, tanto os
completos quanto os fragmentários, foram produzidos entre o médio e o novo
império egípcio, principalmente de assentamentos das localidades de Lahun,
Amarna e Deir el-Medina. Referente ao período pré-dinático e o reino antigo
temos poucas peças de diversa morfologia consideradas como brinquedos.
Entretanto, de fases mais tardias como greco-romana e copta, a proporção
pode ser classificada como mais elevada e significativa quando comparada
com as anteriores.
Foi pelas mãos do inglês Flinders Petrie, segundo Pirez, que temos uma
listagem mais completa dos brinquedos egípcios, pois em 1927, o arqueólogo
promoveu uma classificação dos itens que encontrou nas escavações que
realizou em assentamentos egípcio de Hawara (1889), Lahun (1890), Gurob
(1890), Diospolis Parva (1901) e o Gerzah (1912). Nela, acompanhado de
imagens que ilustram as descrições, elencou objetos produzidos em barro
como bolas, bonecas e pequenos exemplares de animais. De acordo com o
72
autor, algumas peças estão descontextualizadas, outras, com interrogações,
que colocam em manifesto suas dúvidas diante da procedência.
Petrie também dedicou um capítulo de seu trabalho às bonecas, nominadas
pelo autor como ‘paddle-doll’, classificando-as de acordo com o material de
fabricação. Datadas do médio império, foram produzidas em madeira no
formato de paletas e fios de cabelo elaborados com pequenas contas de argila
(ver imagem 1-A). Detalhou sobre as de pedra caliza, mais especificamente da
XII dinastia, e também as de cerâmica, de fibras têxteis e de vegetais. Incluiu
na listagem outras feitas de trapo (ou tecidos) não especificando a cronologia,
somente apontando que são anteriores ao período romano.
A especificidade das Bonecas
Sabe-se que a história da boneca está estritamente ligada à história dos
homens. Como réplica de si mesmo, o homem a elevou à símbolo cultural, em
suas múltiplas experiências fazendo deste objeto, de oferenda religiosa a
objeto de culto, a figura de magia ou ídolo, amuleto ou talismã, lembrança
mortuária ou chegando ao uso infantil como brinquedo, dessa forma pode-se
dizer que a história das bonecas tem um início marcado por diferentes
interpretações, conforme a cultura da sociedade ( GIACOMELLI, 1999, p.1).
No caso egípcio, se houve algo marcante na infância dos pequenos que se
refere aos brinquedos elas estiveram presente. Os registros apontam que
brincar com bonecas não era uma prevalência das meninas, e que os meninos
também tinham o costume de brincar com elas.
Apesar de terem sido confeccionadas a partir de diferentes matérias-primas,
tais como barro, argila, madeira, ossos, marfim, fibras têxteis e de vegetais,
tiveram a prevalência do estereótipo do corpo feminino, como se fossem
miniaturas de adultos e em nada assemelhavam-se com rostos infantis, tendo
em muitos exemplares o sexo marcado e definido. Com a face bem recortada e
delineada, foram traçadas com olhos grandes e boca marcada por lábios
volumosos salientado sua feitura. Em muitos exemplares o cabelo era fixado
separado da cabeça, sendo montado com material diferente do que o do
restante do corpo, feitas com tiras de tecido, contas de pedras ou fibras de
vegetais.
No que tange a produção das bonecas talhadas na madeira, elas foram
produzidas a partir de dois formatos: a primeira; recortada numa prancha única
de fina espessura ( mais ou menos 2,00 cm) em forma de paletas, sem que
apresentassem volume corporal mas formando a figura natural humana
dividida em cabeça, tronco e membros.
A posição dos braços pode ser apresentada como elemento diferenciador
nesse suporte, pois em algumas peças estavam apenas delineados sobre a
prancha evidenciando sua existência, mas sem a visível separação do tronco,
como se estivesse colado ao corpo. Outro detalhe que pode ser observado
73
nesse modelo, é que sob algumas unidades era realizado desenhos em formas
geométricas em algumas partes da paleta que eram pintados em cores fortes
criando um estilo específico de bonecas egípcias (ver imagem 1-A). Numa
segunda variação da posição dos braços eles estavam recortados como se
estivessem um pouco abertos, distanciando-se do corpo numa pequena
angulação (ver imagem 1-C).
Quanto ao segundo estilo de fabricação de exemplares em madeira consistia
em produzir as partes que comporiam a boneca separadamente (o corpo, os
braços e as pernas), para depois encaixá-los formando a peça, são as
chamadas de bonecas com extremidades articuladas. Nesse padrão, as partes
possuíam formato mais roliço e volumoso, projetadas para proporcionar
movimento aos membros tanto inferiores quanto superiores, dando-lhes
mobilidade. Em alguns exemplares era amarrado na cabeça através de um
orifício uma espécie de barbante para que se pudesse movê-la para frente, traz
e lados. Nesse caso o rosto ficava liso, sem evidenciar a presença de olhos,
nariz e boca qualquer definição de suas partes (ver imagem 1-B).
Imagem 1 – Bonecas de Madeira
A
B
C
Fonte: PIREZ, Aroa Velasco. Las muñecas-juguetes y el juego simbólico
infantil em el antiguo Egipto. Tese de doutorado. Madri 2022.
Segundo Pirez, o primeiro exemplar de uma boneca de feitio articulado foi
encontrado na tumba de uma menina chamada Sitrennu, em Hawara,
pertencente a XII dinastia, e atualmente está no Petrie Museum. Medindo 18,7
cm de altura e com braços articulados, estava pintada de amarelo e possuia
uma peruca de contas de barro, juntamente com ela uma pequena cama de
74
madeira, dessa forma, levando a acreditar que a cama havia sido produzida
para a própria boneca. Esse modelo de boneca pode ser considerado como
bastante simples e corrente dentro da sociedade egípcia, sendo que outros
exemplares dessa mesma linha, foram produzidas no mundo greco-romano
(2022, p.242).
Outra matéria-prima que serviu de suporte para a feitura de bonecas no antigo
Egito foi o barro. Os estudos indicam que esse foi o primeiro material
manuseado para dar forma a esse tipo de brinquedo dos infantes egípcios. De
acordo com Pirez,
“ A maioria das peças consideradas joguetes que apareceram em contextos
domésticos foram feitas de barro cru ou argila, seguramente, devido ao fácil
acesso ao entorno do Nilo a esta matéria prima. Graças as características
deste material, as peças foram encontradas, em geral, em relativo bom estado
de conservação e são numerosas. A argila empregada em sua fabricação, é do
tipo aluvial que o lodo do Nilo proporcionava. O barro derivado dos aluviões do
rio era abundante nas zonas que eram afetadas pelas cheias anuais, mas não
por ele ser desprezado, pois constituía um bem fundamental na vida diária. A
maleabilidade do próprio material e seu fácil acesso, faziam do barro e da
argila derivada do mesmo, materiais idôneos para múltiplos usos da vida
cotidiana e terrena, realizando produtos funcionais e de uso corrente como
recipientes cerâmicos, mas também figurinhas destinadas a fins religiosos e
lúdicos” (2020, p. 249).
Também encontramos as bonecas confeccionadas com Fibras têxteis e
vegetais, sendo datadas de períodos tardios quando inseridas na cronologia
egípcia. Dada a simplicidade de elaboração que as peças encontradas
revelam, acredita-se que foram produzidas pelas próprias crianças. Cada uma
das partes era montada separadamente, para, depois, serem unidas através de
um processo de costura com fios gerando o brinquedo. De acordo com Pirez,
“Para montar a peça se enrolava o material têxtil ou se fazia a partir de uma
pequena bola modelando-a a forma corpórea desejada partindo do tronco para
as extremidades. Outras vezes, uma tela fina envolve um amassado de tecidos
ou de fibra vegetal para fazer o corpo da boneca, e para segurar e compactar
esse material passava-se fios ou barbantes para dar mais consistência e
flexibilidade as peças” (2020, p.248).
75
Imagem 2 – Bonecas Texteis e Vegetais
Fonte: PIREZ, Aroa Velasco. Las muñecas-juguetes y el juego simbólico
infantil em el
antiguo Egipto. Tese de doutorado. Madri 2022.
De acordo com Pirez, as bonecas produzidas com pedaços de pano tiveram
boa conservação, sendo o primeiro exemplar encontrado em Oxirrinco em
1905, confeccionada em linho e com enchimento de trapos e papiro medindo
18,5 cm de altura, porém, uma característica um tanto curiosa dessa peça é
que ela possui uma pequena conta de vidro azul ao lado direito da cabeça, o
que sugere um adorno para cabelo. Um segundo exemplar, que atualmente
está no Petrie Museum, foi encontrada em Hawara, em 1888, numa tumba
infantil da época de Constantino (século IV), e juntamente com ela estava com
pequenas imitações de objetos de uso pessoal.
Aquelas que tiveram a pedra como suporte, eram talhadas a partir de um
pequeno bloco monolítico sendo esculpida para atingir o formato desejado,
proporcionando formatos faciais anatômicos definidos como orelhas, olhos,
nariz e boca, bem como outras partes do corpo. Por ser um material mais
resistente e que necessitaria de ferramentas mais sofisticadas para moldá-las,
consequentemente, deveriam ser produzidas por adultos haja vista a
prevalência da maior complexidade em sua construção.
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Referências Biográficas e Bibliográficas
Doutora Maura Regina Petruski, professora da Universidade Estadual de Ponta
Grossa (UEPG). Integrante do corpo docente da Pós-Graduação do Mestrado e
Doutorado Profissional de Ensino de História (Profhist)da Universidade
Estadual de Ponta Grossa (UEPG).
ARIÈS, Philippe. História Social da Infância e da Família. Tradução: D.
Flaksman. Rio de Janeiro: LCT, 1978.
GIACOMELLI, Ivan Luiz. Acervo do Museu do Brinquedo da Ilha de Santa
Catarina. 1999.
PIREZ, Aroa Velasco. Las muñecas-juguetes y el juego simbólico infantil em el
antiguo Egipto. Tese de doutorado. Madri 2022.
77
A BALADA DE JOHN WARD, O PIRATA QUE VIROU
TURCO (1552-1622)
Nelson Rocha Neto
No Ocidente, os piratas do Caribe sempre suscitaram um fascínio romantizado,
vistos como figuras míticas, anarquistas ou até democratas, precursores de
ideias marxistas ou capitalistas, defensores dos direitos das minorias e da
igualdade racial. Em contraste, os piratas da Costa da Barbária do século XVII
(Argel, Túnis, Trípoli, e região de Rabat e Salé, no Marrocos) e seus
equivalentes africanos não receberam a mesma admiração. O Norte da África
era composto por um intrincado mosaico de Estados e sociedades feudais,
caracterizado por um elevado índice de pirataria. A região também
testemunhava confrontos constantes entre os estados islâmicos pertencentes
ao Império Otomano e os principados cristãos localizados no sul da Europa
[THE TALE OF JOHN WARD, 2024, 00:08:50]. Logo, o Ocidente os vê não
como rebeldes contra a autoridade, mas como criminosos comuns, não como
corajosos “Robin Hoods”, mas como ladrões covardes. Essa distinção reflete
não apenas diferenças nas narrativas históricas, mas também preconceitos
culturais profundamente enraizados no Ocidente, como o racismo e a
islamofobia que dificultam a ideia de imaginar um Capitão Jack Sparrow
muçulmano norte-africano, desafiando as marinhas imperialistas e
conquistando espaço na cultura popular contemporânea [TINNISWOOD, 2010].
No entanto, dentre os exemplos de renegados que prosperaram na pirataria da
Costa da Barbária, figuras como John Ward (1552-1622), refletem a
complexidade e as contradições dessa prática no Mediterrâneo. No início do
século XVII, o pescador da região de Kent, integrou-se a uma tripulação de
corsários berberes, galgando posições até atingir o posto de capitão e
conquistar o seu próprio espaço na cultura popular [LEHR, 2019]. As
representações literárias da pirataria no período moderno frequentemente
dramatizavam figuras como Ward, ampliando o impacto cultural de suas
histórias. O livreiro Nathaniel Butter, editor da primeira edição de Rei Lear, de
William Shakespeare, contratou o escritor Anthony Nixon para criar “Newes
from Sea, of Two Notorious Pirates, Ward the Englishman and Danseker the
Dutchman, with a True Relation of All or the Most Piracies by Them Committed
until the 6th of April 1609”. Paralelamente, o nome de Ward esteve
frequentemente associado ao do holandês Simon Danseker, outro notório
pirata da Costa da Barbária. O panfleto vendeu mais do que Rei Lear, e logo foi
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reimpresso com o título alterado, “Ward and Danseker, Two Notorious Pirates.
The Seaman’s Song of Captain Ward”, e no final de 1609 foi publicada a versão
dos fatos na ótica do escritor de folhetos, Andrew Barker em “True and Certain
Report” [TINNISWOOD, 2010]. A popularidade de Ward e Danseker foi
tamanha que ambos foram representados na peça teatral “A Christian Turn’d
Turk”, do dramaturgo Robert Daborne, em 1612, bem como na obra de Thomas
Dekker, “If This Be Not a Good Play, the Devil is in It”, no mesmo ano
[WILSON, 2001]. Estas são algumas produções que exploram abordagens
ambíguas, alternando entre a condenação dos atos criminosos dos piratas, a
admiração por sua audácia e o fascínio despertado por suas atrocidades nas
terras dos berberes.
Em 1603, ao assumir o trono inglês, Jaime I implementou uma política voltada
a restringir as atividades dos corsários e a combater a concessão de anistia
aos piratas. Na Inglaterra do final do século XVI, um marinheiro experiente a
serviço de um navio de guerra da Marinha Real recebia, após três meses de
trabalho, cerca de uma libra e dez shillings, enquanto um corsário poderia
acumular uma soma superior a quinze libras. Essas condições
socioeconômicas, associadas à repressão oficial, ajudam a explicar por que
figuras como Ward abraçaram a pirataria, buscando melhores oportunidades
em um cenário de marginalização, não surpreendendo que a subclasse dos
marinheiros veteranos formasse a maior parte dos recrutas entre corsários e
piratas [LEHR, 2019]. Assim, o marinheiro constituía a figura mais desprezada
e desvalorizada na economia dos governos europeus: mal remunerado, tratado
com brutalidade, exposto às doenças e às intempéries, um escravizado dos
proprietários das embarcações, de reis mesquinhos e dos príncipes
gananciosos [WILSON, 2001]. Uma das declarações de Jaime I contra a
pirataria, instruía que os oficiais navais ingleses, prefeitos e agentes de justiça
empregassem todos os esforços para capturar Ward e seu bando. A mesma
declaração ameaçava com pena de morte qualquer súdito que fornecesse
armamentos a Ward e outros piratas [TINNISWOOD, 2010].
Por volta de 1610, com a negativa do indulto real devido à pressão diplomática
dos venezianos que comerciavam num próspero centro conectado as cidades
como Veneza, Gênova, Alepo e Izmir [BLAKEMORE, The Tale of John Ward,
2024, 00:09:25], John Ward converteu-se ao islamismo, ou “virou turco”,
conforme o jargão jacobino da época. Além da busca por riqueza e status, a
conversão de Ward ao islamismo revela um aspecto estratégico da pirataria na
região: a adoção de identidades híbridas para navegar entre diferentes mundos
culturais e políticos. Essa apostasia resultava na possibilidade de um renegado
ascender socialmente e alcançar o cobiçado título de Reis, capitão corsário,
sendo avaliado por um conselho e passando a integrar a elite turca [SENIOR,
1976, p. 94]. No Islã, a postura em relação à conversão pode ser descrita como
mais receptiva. A religião islâmica preservava a imagem de si mesma como
uma nova fé, com o objetivo de expandir-se de todas as formas viáveis,
principalmente por meio de conversões [WILSON, 2001]. A cerimônia de
adesão ao islamismo por um cristão ocorria na presença do sultão em
Istambul, onde o escriba imperial registrava o evento, polvilhando pó de ouro
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sobre a tinta preta. Após recitar a shahada, o novo muçulmano recebia uma
bolsa de moedas, um pedaço de musselina branca para confeccionar um
turbante e uma capa que, no caso dos convertidos mais ilustres, podia ser
forrada com zibelina e adornada de prata e ouro. As mulheres convertidas
recebiam sandálias em vez de turbantes. Em seguida, os homens eram
levados ao cirurgião imperial para a realização da circuncisão. Era comum,
especialmente entre europeus, reafirmar a conversão ao islamismo adotando
um nome islâmico. Ainda que desprovido de pó de ouro, zibelina e tecidos
adornados, alguns elementos permaneceram inalterados na conversão de
piratas: a declaração de fé; uma nova vida na comunidade islâmica; e a
circuncisão. Ward adotou o nome Yusuf Reis, uma homenagem ao genro e
sucessor de Uthman Dey ou Kara Osman, líder dos janízaros e governador de
Túnis desde 1594 [TINNISWOOD, 2010].
Em um cenário marcado por rivalidades econômicas e políticas, alianças
frequentemente transcenderam barreiras culturais e religiosas. Embora
renunciar à religião e ao próprio país para se tornar um pirata no Mediterrâneo
a serviço dos governantes dos Estados Barbáricos não fosse adequado, não
era exatamente o que faziam que os tornava inaceitáveis, mas sim para quem
o faziam, afinal, outrora Ward combateu muçulmanos, considerados inimigos
declarados da cristandade e, muitas vezes, outros adversários da Inglaterra.
Para esses “piratas renegados”, não havia qualquer indulgência, nem mesmo
perdão, caso resolvessem voltar às suas terras natais, pois haviam
abandonado suas raízes e sua fé [LEHR, 2019]. Os cristãos europeus usavam
o termo “renegado” para referir-se aos apóstatas, traidores e desertores, visto
que a Europa cristã ainda enfrentava o islamismo desde as Cruzadas.
Granada, o último reino muçulmano na Espanha, foi incorporado à Reconquista
apenas em 1492, e o último levante mourisco no país ocorreu em 1610. O
Império Otomano direcionou sua ofensiva contra a Europa em duas frentes: por
terra, em direção a Viena, e por mar, avançando ao oeste pelo Mediterrâneo
[WILSON, 2001, p. 15-16]. Os navios empregados no Mediterrâneo eram
embarcações velozes, como os xebecs, que possuíam velas triangulares e
contavam com a força de remadores [ESRA, The Tale of John Ward, 2024,
00:11:43]. Como resultado, a pirataria berbere tornou-se uma grande
preocupação para os interesses ingleses. Em 1609, a situação havia piorado,
com corsários do norte da África atacando navios ingleses e invadindo
comunidades no sul da Inglaterra para capturar reféns. Calculava-se que
milhares de ingleses estavam aprisionados em Argel e Túnis, aguardando o
resgate. A demanda por informações sobre os turco-otomanos capturados nas
galés espanholas e nas Índias Ocidentais visava negociar vantagens por meio
da troca de prisioneiros. A repatriação dos cativos ingleses e "sarracenos"
proporcionava certos benefícios diplomáticos e econômicos para as partes
envolvidas [BROTTON, 2016].
O governador, Uthman Dey, era o patrono de John Ward em Túnis, e ambos
provavelmente agiam conforme um acordo no qual Dey tinha a exclusividade
de selecionar as mercadorias que os piratas levavam para os depósitos de
Túnis, com o objetivo de revendê-las ao mercado cristão, garantindo um lucro
80
expressivo. Assim, os piratas dependiam das concessões oferecidas pelos
governantes da Barbária [WILSON, 2001]. Além disso, os Estados barbarescos
ofereciam mercados seguros para a circulação de produtos saqueados e portos
para o reabastecimento e reparo de embarcações [FUCHS, 2000]. Após a
condenação generalizada da pirataria pelos estados europeus, os estados
berberes passaram a recrutar piratas que não estavam amparados pelas cartas
de corso emitidas pelo governo inglês. Assim, muitos europeus de outras
regiões uniram-se aos muçulmanos e "tornaram-se turcos", buscando quitar
dívidas e sobreviver às rígidas normas. Considerados “de pouca serventia para
a igreja cristã", esses indivíduos aproveitavam "os benefícios que essa aliança
poderia trazer em locais como Argel, que rapidamente se tornava tão rica,
próspera e desenvolvida quanto qualquer cidade da Europa" [BRADFORD,
2013, p. 107-108].
Essa flexibilidade cultural moldou as dinâmicas sociais e políticas em locais
como Túnis, onde figuras como John Ward desafiaram as convenções da
época: corsários oriundos de regiões como a Inglaterra, partidários do
islamismo que saqueavam embarcações das nações de onde se originavam.
Contudo, interpretar essas ações sob um embate maniqueísta seria um
simplismo: havia também os interesses econômicos. No que tange às alianças
políticas, frequentemente ultrapassavam as divisões religiosas. Essa postura
flexível em relação à religião e à nacionalidade era perceptível nos principados
muçulmanos da Costa barbaresca. Assim como renegados cristãos e judeus
provenientes de várias regiões do Império Otomano, esses locais também
recrutavam
estrangeiros
como
capitães
de
suas
embarcações,
independentemente de sua conversão ao islamismo. Como a prática da
pirataria na Costa da Barbária era frequentemente vista como uma espécie de
versão marítima da jihad, que deveria ser conduzida pelos muçulmanos contra
os cristãos, o fato de confiarem essa tarefa justamente a esses "infiéis" é
intrigante [LEHR, 2019]. Outrossim, os “inimigos” variavam entre as diversas
nações e ao longo do tempo. A partir da década de 1620, as vítimas dos
corsários podiam ser removidas da lista de inimigos através de tratados
firmados com os estados berberes, nos quais estes se comprometiam a
interromper ataques ao comércio dos primeiros em troca do pagamento de
tributos de proteção, frequentemente sob a forma de suprimentos e
armamentos [THOMPSON, 1994, p. 44].
Havia uma admiração pelo pragmatismo dos piratas em contraste com o
dogmatismo da época. Os contemporâneos ingleses de Ward referiam-se aos
seus compatriotas renegados de forma pejorativa e intolerante, especialmente
em relação às suas conversões ao islamismo. No entanto, a riqueza que esses
piratas ingleses levavam para Túnis lhes permitia comportamentos que não
seriam tolerados aos “turcos”. O viajante francês Laurent d'Arvieux notou que
em Túnis “a religião não incomoda ninguém; reza-se quando se quer, jejua-se
quando necessário e embriaga-se com vinho quando se tem dinheiro”. Em
1606, outro francês, Le Sieur de Breves, escreveu: “os lucros trazidos pelos
ingleses, sua generosidade e os excessos com que gastam seu dinheiro antes
de voltar à guerra os tornam estimados e apoiados pelos janízaros” [SENIOR,
81
1976, p. 95-96]. Na cidade de Túnis, a elite era dominada pelos janízaros
turcos, que restringiam o acesso de árabes, berberes, mouros, judeus e negros
às camadas superiores da sociedade. No entanto, os cristãos renegados
enfrentavam poucas barreiras para se integrarem [SENIOR, 1976]. Embora
muitas conversões ocorressem para evitar a morte ou o aprisionamento,
soldados cristãos podiam ser incorporados aos exércitos. Além disso, os
escravizados tinham a possibilidade de comprar sua liberdade e se unir aos
corsários berberes. Judeus, tanto marranos quanto sefarditas, eram
frequentemente aceitos para atuar no comércio, servindo como financistas ou
conselheiros do Estado Berbere [WILSON, 2001].
Relatos variados nos dão diferentes visões sobre os modos de John Ward. Em
1608, um compatriota inglês que o visitou descreveu-o como um homem calvo,
simplório e ignorante, de poucas palavras e que passava grande parte do
tempo praguejando e embriagado [LEHR, 2019]. Por outro lado, temos o
testemunho do escocês William Lithgow, que chegou a Túnis em 1615, e foi
convidado por Ward para um banquete. Durante o encontro, conversou com o
pirata, que estava cercado por sua comitiva de quinze renegados ingleses.
Diferente do exemplo anterior, Ward mostrou-se cortês e afável: durante os dez
dias em que Lithgow permaneceu em Túnis, ao saber que o visitante desejava
seguir por terra até Argel, Ward providenciou-lhe um salvo-conduto
[TINNISWOOD, 2010]. Embora Lithgow caracterizasse Ward como um
destacado pirata e comandante experiente, a verdade é que, em 1615, Ward
contava com cerca de setenta anos, e sua trajetória estava próxima do fim. Por
volta de 1622, John Ward faleceu de peste em sua cama e foi sepultado no
mar. Décadas depois, Ward foi mencionado em uma fonte tunisiana como
Wardiyya, o corsário que se converteu ao islamismo e serviu aos governantes
de Túnis [FUCHS, 2000].
Assim como as baladas refletiam as tensões sociais e culturais da Inglaterra,
as narrativas sobre piratas como Ward moldavam e eram moldadas pelas
visões europeias sobre o mundo islâmico, oferecendo aos ouvintes e leitores
uma variedade de jornadas imaginárias: da terra ao mar, da Inglaterra à
Turquia, da legalidade ao crime, da religião à heresia, da pobreza à riqueza e a
uma sociedade estereotipada majoritariamente masculina. No início do período
moderno, a sociedade inglesa era fortemente hierarquizada, e as baladas
exaltavam os rebeldes, ainda que os condenasse. No entanto, para a
mentalidade inglesa da época, "tornar-se turco" era uma traição considerada
ainda mais grave do que o roubo ou assassinato. Entregar deliberadamente a
alma ao inimigo representava algo mais assustador do que qualquer ato
criminoso. A intensidade da indignação causada pela conversão de Ward pode
ser sentida no poema de Samuel Rowlands, “To a Reprobate Pirate That Hath
Renounced Christ and Is Turn’d Turk”, datado de 1612, onde Ward é retratado
como pior que Judas, uma besta infernal, um ladrão amaldiçoado e um monstro
devorador, acusado de servir tanto ao Turco quanto ao Diabo [TINNISWOOD,
2010].
82
Essa trajetória de ascensão e queda ecoa simbolismos encontrados em
diversas tradições culturais e literárias, onde o mar figura como um espaço de
transição entre mundos e destinos. Na balada, de autoria desconhecida, “The
Seaman's Song of Captain Ward, the Famous Pirate of the World, and an
Englishman Born”, Ward é representado como um homem destemido, que
desafiava as potências marítimas, enfrentando desde as galés turcas na costa
da Barbária até os navios venezianos que subjugava em violentos embates.
Contudo, o pirata esbanjou sua fortuna em extravagâncias, entregando-se ao
álcool e à libertinagem. O poema sugere que, apesar de ter acumulado uma
vasta riqueza, a vida de pirataria era moralmente decadente e autodestrutiva. A
opulência do palácio em Túnis, onde Ward se comporta como se fosse um
príncipe, aparece como um presságio de sua ruína. A mensagem final da obra
transmite a ideia de que a vida dedicada ao crime e à pirataria leva,
inevitavelmente, à destruição e ao juízo divino, pois os piratas desdenham
tanto de deus quanto do Diabo, recusando qualquer compromisso ou
responsabilidade [ANONYMOUS, 1609].
Trecho original:
These Pyrates thus divided
By God is sure provided,
in secret sort to work each others woe,
Such wicked courses cannot stand,
The Divel thus puts in his hand,
and God will soon give them an overthrrw.
Tradução livre:
Estes piratas, assim divididos
Por Deus bem providos,
em segredo a obra do mal a cada um,
Tais caminhos ímpios não podem durar,
o Diabo neles põe a mão,
e Deus logo lhes dará a destruição.
Por fim, conforme as tradições das culturas orais dos povos germânicos e
escandinavos, o Inferno era descrito como um lugar ermo, alcançado apenas
após uma longa jornada marítima. Essa travessia encontra eco na obra literária
A Divina Comédia, de Dante Alighieri. No poema, o acesso ao Inferno envolve
uma passagem simbólica: as almas dos pecadores são conduzidas pelo
barqueiro Caronte através do Rio Aqueronte, representando a transição
definitiva rumo à condenação eterna. Enquanto as tradições orais
apresentavam uma visão genérica, Dante detalha os castigos que aguardam as
almas em cada círculo infernal, como a punição de Maomé entre os
instigadores de discórdia [MINOIS, 2023]. Esses simbolismos de condenação e
alteridade refletem-se na maneira como os europeus do século XVII concebiam
figuras associadas ao mundo islâmico e ao contexto marítimo da Barbária.
Para os europeus, tais indivíduos eram considerados criminosos e
transgressores das normas, apesar de, sob uma ótica local, serem vistos como
figuras comparáveis aos corsários ou mesmo oficiais navais a serviço de seus
83
respectivos governantes [LEHR, 2019]. Esse choque de percepções tornava-se
ainda mais intenso quando antigos piratas da Barbária passaram a se
identificar como mujahideen, engajados em uma jihad marítima contra o
avanço cristão, o que os fez serem retratados pela cristandade como figuras
demoníacas. A falta de familiaridade com o islamismo entre os ingleses do
século XVII contribuiu para uma percepção distorcida e hostil em relação aos
muçulmanos e seus costumes. Na Inglaterra, onde não havia mesquitas e o
alcorão só teve sua primeira tradução para o inglês em 1649, o termo
"muçulmano" era praticamente desconhecido, sendo "turco" a expressão
utilizada entre os anglófonos. Nesse contexto, o islamismo era visto como uma
praga, uma ameaça moral, e qualquer afinidade com a cultura turca era
considerada um ato de traição. Além disso, os mouros, identificados como
"bárbaros", eram vistos como estrangeiros à civilização cristã, uma visão que
não só os caracterizava como oriundos da Barbária, mas que também
carregava uma conotação pejorativa, reforçando a visão de alteridade e de
oposição cultural por estarem além das fronteiras da “civilização cristã”
[TINNISWOOD, 2010].
REFERÊNCIAS
Nelson Rocha Neto é Mestre em História pela Universidade Federal da
Integração Latino-Americana (UNILA). E-mail: nelsonrochaneto@gmail.com.
ANONYMOUS. The seamans song of captain Ward the famous pyrate of the
world,
and
an
english
man
born.
Disponível
em:
https://www.100ballads.org/show/104. Acesso em: 18 set. 2024.
BRADFORD, Ernle Dusgate Selby. Barbarossa, o almirante do Sultão: pirata e
construtor de um Império. São Paulo: Grua, 2013.
BROTTON, Jerry. The Sultan and the queen: the untold story of Elizabeth and
Islam. New York: Viking, 2016.
FUCHS, Barbara. Faithless Empires: Pirates, Renegadoes, and the English
Nation. ELH, V. 67, n. 1, 2000. p. 45-69.
LEHR, Peter. Pirates: A New History, from Vikings to Somali Raiders. New
Haven: Yale University Press, 2019.
MINOIS, Georges. História do Inferno. São Paulo: UNESP, 2023.
SENIOR, Clive Malcolm. A nation of pirates: English piracy in its heyday. New
York: David & Charles, 1976.
THE TALE OF JOHN WARD. In: Pirates: Behind the Legends. Dir: Daniel
Sharp. London: Dash Pictures (Holdings). Documentary, National Geographic,
2024. Streaming. 44 min.
84
THOMPSON, Janice E. Mercenaries, pirates and sovereigns: state-building and
extraterritorial violence in early Modern Europe. Princeton: Princeton University
Press, 1994.
TINNISWOOD, Adrian. Pirates of Barbary: corsairs, conquests, and captivity in
the seventeenth-century Mediterranean. New York: Riverhead Books, 2010.
WILSON, Peter Lamborn. Utopias piratas: mouros, hereges e renegados. São
Paulo: Conrad, 2001.
85
IBN KHALDUN, A MUQADDIMAH E AS MADRASSAS:
BREVES APONTAMENTOS SOBRE OS PRINCÍPIOS
BÁSICOS PARA UMA INSTRUÇÃO DE QUALIDADE
Renata Ary
1 - Ibn Khaldun e a muqaddimah
Ibn Khaldun [1332-1406] viveu durante o século XIV, no final da idade média
ocidental, entre o mundo muçulmano dos Marínidas no Marrocos [1269-1430],
dos Háfsidas na Tunísia [1228-1574], dos Násridas em Granada [até 1492],
dos mamelucos no Egito [1250- 1517] e do Império mongol de Tamerlão [13311405]. [Lopes, 2021]
Nascido em Tunes, em 1332 [732 da Hégira], a vida de Khaldun foi marcada
pelas viagens que vivenciou, inclusive antes mesmo de nascer, pois seus
antepassados, durante o século VIII, emigraram do sul da Arábia [atual Iêmen]
para Andaluzia [sul da Espanha], que na época já fazia parte do mundo
muçulmano. O seu nome completo, Abd-ar-Raḥmân Abû Zayd ibn Muḥammad
ibn Muḥammad ibn Khaldûn al-Ḥaḍramî, atesta as suas raízes, pois a
nomenclatura al-Hadrami está associada a palavra Hadramu, região do Iêmen.
[Lawrence, 2015]. Viveu em Fez, Granada, Búgia e no Egito [Cairo], onde
faleceu, no ano de 1406. Foi sepultado no cemitério dos sufistas no Cairo.
[Jaldun, 2005]
O autor deixou sua autobiografia intitulada at-Tarif bi-ibn Khaldun wa-Riḥlatih
Gharban wa-Sharqan que significa “apresentando Ibn Khaldun e sua Jornada
pelo Ocidente e Oriente”. Nela Khaldun percorre a história de sua família,
desde a gênese na hispânia até a sua própria trajetória, um pouco antes da sua
morte. Ele apresentou as suas raízes genealógicas de forma cronologicamente
inversa: iniciou contando sobre a sua ancestralidade em al-Andalus e após, na
Arábia, numa tentativa de ligar os dois mundos que representavam, com
orgulho, a sua origem conquistadora. Narrou sobre as funções governamentais
exercidas por seus ancestrais, bem como as que ele próprio operou durante os
longos anos que serviu às dinastias do Norte da África e da hispânia.
[Fromhertz, 2010]
86
No século XIV escreveu sua obra de maior destaque: a Muqaddimah, que é a
introdução da Kitab al-Ibar [História Universal]. Etimologicamente muqaddimah
[ ]م قدمةé uma palavra árabe que significa prólogo ou introdução de uma obra
maior. Foi escrita entre 1374 e 1378 durante o período em que Ibn Khaldun
esteve exilado no castelo fortificado de Calat Ibn Salama. No manuscrito, o
autor nos apresenta conhecimentos históricos desde a cosmografia, a
geografia do mundo até a retórica e a poética na qual ele sintetiza as ciências
humanas [essência humana] entre os árabes. A obra é reflexiva e sem
alegorias, sem grandes feitos ou ações heróicas. Ao contrário, apresenta o
retrato da vida cotidiana da época, bem como a importância que o autor
atribuiu às ciências intelectuais, ao conhecimento e à sua transmissão. [Jaldun,
2005]
2 - Breves apontamentos sobre os princípios básicos para uma instrução
de qualidade
Al Muqaddimah foi dividida em 06 livros. No livro sexto, intitulado das diversas
espécies de ciência e dos métodos e procedimentos de ensino, Khaldun reflete
sobre o sistema de aprendizagem e sobre as mudanças desse sistema nos
países árabes muçulmanos, desde a idade média até o século XIV, bem como
sobre as formas de instrução e as condições para alcançá-la. [Jaldun, 2005]
A habilidade do indivíduo em aprender é uma arte e bem exercê-la dependerá
dos bons ensinamentos que receberá e do talento de quem os instruirá. Nesse
sentido, Khaldun [2005] na Muqaddimah, elenca quatro princípios básicos para
a uma instrução científica de qualidade, eficaz e que ilustram o caráter
pragmático da sua abordagem educacional.
O primeiro princípio é o gradualismo: o ensino só será eficaz quando ocorrer
pouco a pouco, gradualmente, pois a repetição e o cultivo de hábitos é a base
para o aprendizado. O processo de repetição deve ser triplo, caso contrário, os
alunos que não têm familiaridade prévia com as ciências, ficarão
sobrecarregados, pois terão que compreender, de plano, conceitos
desafiadores e que não fazem parte do seu dia-a-dia.
O segundo é a flexibilidade: o instrutor deve ser flexível e ajustar o sua
pedagogia de acordo com a receptividade dos estudantes. O verdadeiro mestre
não deve exigir mais do que o aluno pode assimilar. O terceiro, é o diálogo: os
professores devem ensinar através de uma estrutura dialógica. Essa estrutura
exige uma articulação original do estudante sobre o tema estudado. Os
processos dialógicos medem não apenas a compreensão do aluno sobre o
conteúdo ministrado, mas também a capacidade de avaliar criticamente a
informação recebida através da discussão. Khaldun [2005, p. 557] narra que:
“Alguns estudantes passam a maior parte da vida frequentando aulas
acadêmicas. Ainda assim, encontramo-los em silêncio. Eles não falam e não
discutem assuntos. Mais do que o necessário, preocupam-se em memorizar”.
Sem a comunicação e o diálogo sobre o conhecimento adquirido “os
estudantes não serão capazes de compreender plenamente os detalhes do que
87
aprenderam. Assim, não desenvolverão firmemente hábitos científicos, mas
pensarão que o hábito científico é idêntico ao conhecimento memorizado”.
[Jaldun, 2005, p. 557].
O quarto princípio é a clemência: o professor deve ser capaz de entender as
falhas dos alunos e evitar penas e castigos imoderados. Ele deve incentivar o
estudante a ser empenhado e íntegro. No entanto, ao citar Al-Rashid, Khaldun
[2005] adverte: “Não seja sempre muito tolerante com o aluno ou ele acabará
gostando do lazer e se acostumará com ele. Tanto quanto possível, corrija-o
com gentileza. Se ele não quiser que seja assim, você deve então usar a
severidade e a aspereza.
O ensino público na sociedade muçulmana estava vinculado ao conhecimento
e a divulgação do conjunto de normas Corânicas. Com o surgimento das
madrassas [[ ]مد ةséculo X], escolas muçulmanas ou casas de estudos
islâmicos, a educação e o conhecimento foram difundidos a fim de garantir a
ordem social. [Enamorado, 2006]
Em árabe a palavra madrassa significa “local de aprendizagem”. Elas
desenvolveram-se, inicialmente, como uma escola religiosa. Foi durante os
sultanatos de Seljuk [1037-1194] e do califado Abássida em Bagdá [7501298], que as madrassas atingiram o seu apogeu e começaram a estabilizar-se
como espaços de ensino especializados. A princípio elas eram elitizadas e
tiveram sua gênese como escolas privadas, posteriormente passaram aos
espaços públicos, sobretudo durante o reinado do vizir Nizam al-Muk [10181092]. Nesse período as madrassas passaram a ser chamadas de nizamiya e o
estudo era voltado exclusivamente para a religião, especialmente sobre o
combate ao xiismo e às cruzadas. [Semiond, 2021]
A primeira madrassa pública construída por Nizam, foi a de Bagdá, cujo
objetivo era ampliar o conhecimento, combater o califado xiita fatimíada [9091171] e fortalecer o sultanato seljúcida através da difusão dos ideais sunitas.
Durante o século XI, com as conquistas do Sultão Al- Arslan [1064-1072], as
nizamiya foram ampliadas, em especial nas regiões da mesopotâmia até o
Grande Khorasan, passando pela Anatólia. [Semiond, 2021]
Ainda no século XI, durante o reinado dos seljúcidas e fatimíadas, as
madrassas públicas passaram a ensinar, além da religião, disciplinas como a
lógica, a geometria e astronomia. Os professores eram eruditos renomados, a
exemplo de Al-Ghazali, que lecionou na madrassa nizamiya de Bagdá. Essas
madrassas: “tiveram certa influência no desenvolvimento das universidades
européias” [Semiond, 2021, p. 3]
As madrassas, além de serem centros de educação e cultura, também
abrigavam os mustahiqs [estudantes], que recebiam hospedagem e
alimentação durante o perído de estudos e que acabavam compartilhando seus
conhecimentos e experiências com as gerações futuras. Elas eram
fundamentamentais para a difusão do conhecimento e da democratização da
88
educação, tornando-as mais acessíveis às pessoas das classes sociais mais
baixas. Com as invasões mongóis, durante o século XIII, as madrassas
perderam o seu apogeu, não desapareceram por completo, mas tiveram que
adaptar-se aos novos tempos e à nova realidade. [Semiond, 2021]
Durante a dinastia dos Marínidas [1269-1464], sobretudo no final do século XIII,
época em que viveu Ibn Khaldun, as madrassas voltaram a se desenvolver e
tinham sede no atual Marrocos. Elas tornaram-se um elemento importante da
arte Marínida, pois eram uma instituição central de ensino e de poder políticoreligioso que sustentava a dinastia. Várias tribos da confederação Zinata
Imazighen que, de acordo com Ibn Khaldun era uma das três grandes
confederações Imazighen da Idade Média, juntamente com os Masmuda e
Sanhaya, aproveitaram o enfraquecimento do Califado Almóada para ampliar o
seu poder político em toda a região.
Os Marínidas são conhecidos como a “dinastia das madrassas” e deixaram um
importante legado cultural e artístico, presente hodiernamente em muitas
cidades do Marrocos. O poder Marínida também foi marcado pelo regresso ao
Malikismo como doutrina religiosa, mas também como fonte de legitimidade
para as novas elites religiosas e jurídicas. Através da construção de
madrassas, Fez tornou-se, juntamente com o Cairo, um centro de
conhecimento que acolhia diversos acadêmicos e juristas, como al-Wansharisi.
[SEMIOND, 2021]
De acordo com Semiond [2021], sete madrassas do período Marínida resistem
ao tempo. Notáveis tanto pela sua beleza como pelo papel histórico que
desempenharam, a mais antiga das sete madrassas é a de Saffarin, em Fez elBali, construída em 1271 por encomenda do Sultão Abu Ya'qub Yusuf. Seu
layout e design mostram o modelo inicial das madrassas Marínidas, que se
desenvolveram no final da primeira metade do século XIV. Ela foi construída
perto da Universidade de Qarawiyyin, em 859 durante o reinado da dinastia
Idrisid por Fátima al-Fihri.
A Attarin Madrassa, fundada em 1325, por ordem do Sultão Abu Sa’id Uthman
II, também resiste ao tempo. Ela destinava-se à formação de altos funcionários
Marínidas e é considerada uma das mais notáveis maravilhas de Fez. O seu
exterior é liso, mas o seu interior apresenta uma decoração sofisticada,
utilizando muitos dos materiais que representam a arte Marínida, como a
madeira, o estuque e o bronze. Outras madrassas também foram construídas
perto de grandes mesquitas, como a de Andaluzia e a Grande Mesquita de
Meknes. Estas madrassas tinham seus próprios cursos e tornaram-se
instituições conhecidas, não obstante tivessem currículos ou especializações
restritas em comparação aos centros universitários. [Semiond, 2021]
Khaldun esclarece [2005] que o desenvolvimento da sociedade e a sua
duração, estão intimamente relacionados com o conhecimento e a instrução
que o seu povo tem. A falta de erudição dá ensejo a desintegração social e
com ela, a decadência do império, desse modo, é dever do governo garantir a
89
formação científica ao seu povo. O autor exemplifica o seu raciocínio ao afirmar
que um dos motivos da queda do império muçulmano no Magreb, foi o
desaparecimento do cultivo da tradição de educar, pois quando as boas
tradições da transmissão do conhecimento são perdidas, fica difícil para uma
sociedade restabelecer a cultura do saber. Uma das formas de reaviva-la seria
desembaraçar a linguagem através de diálogos e discussões, no entanto,
lamenta o autor, os estudantes perderam o hábito de estudar e silenciam
quando, em uma conversa, temas científicos são debatidos. “Eles tentam mais
do que o necessário carregar a mente [com noções diversas], mas não obtêm
nada de útil em termos de capacidade de afirmar o seu conhecimento ou de
ensiná-lo” [Khaldun, 2005, p. 732]. Há um vazio, um vácuo que deixa os
estudantes sem alcançar a amplitude de seus conhecimentos, cuja causa é a
má instrução e a interrupção da boa tradição acadêmica. A memória deixa de
ser preenchida.
O autor exemplifica que, se na Tunísia um estudante precisa de 05 anos para
alcançar o aprendizado científico, no Magreb, ele precisará de 16 anos. Esse
fato decorre da imperfeição do sistema didático. Na Espanha muçulmana “os
vestígios da formação acadêmica desapareceram e os habitantes já não
exercem profissões científicas. Isto deve-se ao declínio da civilização
muçulmana, que, neste país, floresceu durante vários séculos. Não há
vestígios de estudos ali, exceto a língua árabe e as belas letras”. [Khaldun,
2005, p. 733]
Afim de ilustrar a sua preocupação com o desenvolvimento do conhecimento
científico, em tom crítico, Khaldun narra, uma passagem entre o califa ‘Umar
Ibn al-Khattab e seu general que, durante a conquista muçulmana sobre os
persas, encontrou alguns livros. Sob o argumento de que os livros continham
ensinamento e somente Allah poderia ensinar e proteger, o general sob ordem
do califa, destruiu os livros, jogando-os ao mar. [Khaldun, 2015]
Ibn Khaldun é pragmático em aceitar a realidade como ela é, embora ele
apresente um espírito imutável de normas educacionais que servem como
orientação e modelo pedagógico, adaptável às diversas situações e com base
nas diferenças entre os alunos, nos costumes locais e nas condições
acidentais e adversas que possam surgir no ambiente acadêmico.
O bem mais precioso para o povo é o desenvolvimento do intelecto. Em
diversas iterações, o autor magrebino alude ao aperfeiçoamento da intelecção
nas suas dimensões racional e espiritual para alcançar uma “existência
completa”, ou seja, para obter uma superioridade sobre as outras coisas
mundanas. O intelecto é a faculdade que define e constitui a essência humana.
3 – Referências
Renata Ary é doutora em educação, mestre em direitos difusos e coletivos e
pós graduada em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica
90
de São Paulo [PUC-SP]. É docente universitária em direito processual civil e
direito civil da Universidade São Francisco [USF] - SP.
FROMHERTZ, Allen James. Ibn Khaldun Life and Times. Edinburgh University
Press. 2010.
JALDUN. Ibn. Introducción a la historia universal (Al-Muqaddimah).
Introducción y Libro primero de Kitab al-’ibar. Tradução: Juan Feres. México:
Fondo de Cultura Económica. 2005.
LAWRENCE, Bruce B. Introduction: The muqaddimah: an introduction to
history. Tradução de Franz Rosenthal. Princeton: Princeton Classics edition.
2015.
LOPES, Jahan. Circulação árabe do medievo: para uma geograficidade
decolonial. Juiz de Fora: Revista de Geografia da UFJF. v. 11. n. 1. 2021.
SEMIOND. Tristan. Madrasas in history: beyond clichés. Fundación de Cultura
Islâmica. 2021.
91
A VIDA DE MARINA/MARINO: A GÊNESE DE UM
PROJETO DE PESQUISA SOBRE VIRIARCADO, PODER
PASTORAL E GÊNERO A PARTIR DE HAGIOGRAFIAS
DO ORIENTE PRÓXIMO DURANTE A PRIMEIRA IDADE
MÉDIA
Ricardo Russo Carvalho
Introdução
Esta comunicação tem como objetivo apresentar o meu projeto de iniciação
científica, iniciado recentemente, cujo objetivo inicial é analisar a hagiografia
Vida de Marina/Marino sob a perspectiva de gênero. Essa pesquisa está
vinculada a um projeto coletivo denominado Viriarcado e Poder Pastoral a partir
de hagiografias de santas durante o contexto de ascensão do Episcopado
Monárquico na Primeira Idade Média Oriental (séc. IV-VI). Esse projeto
pretende examinar oito hagiografias escritas entre os séculos IV e VI, no
Império Bizantino. Essas obras narram vidas de santas e foram redigidas por
homens ligados à hierarquia eclesiástica. Utilizaremos diferentes conceitos,
como o de poder pastoral e o de viriarcado, com o intuito de investigar a
relação dessas vidas de santas com o fortalecimento do episcopado e a
formação de uma inteligibilidade de gênero do período. A proposta é analisar
como esses textos refletem e ajudam a consolidar tanto o conceito de gênero
quanto o poder dos bispos, dentro de uma perspectiva marcada pela teoria de
gênero. Além disso, faremos uma breve apresentação da Vida de Marina.
O que são hagiografias?
De acordo com Andréia Frazão, o vocábulo hagiografia vem do grego, hagio,
que significa santo, e grafia que significa escrita. Ou seja, o termo é utilizado
desde o século XVII para se referir não apenas ao estudo crítico dos diferentes
aspectos ligados ao culto aos santos, mas também aos textos que têm como
temática central os próprios cultuados. Quanto à tipologia desses escritos as
possibilidades são plurais, pois a narrativa hagiográfica pode, por exemplo, ser
apresentada como uma paixão; um tratado de milagres; relatos de viagens
espirituais; ou uma vita, narrativa sobre a vida do hagiografado em que são
narradas suas virtudes a servirem de exempla (SILVA, 2008, p. 7).
92
Ronaldo Amaral (2013) argumenta que as hagiografias cristãs são um gênero
literário que, por seus atributos imanentes, caracteriza-se pelos estereótipos,
modelos e arquétipos de santidade em detrimento do laico, do secular e da
exatidão do que entendemos hodiernamente como tempo e espaço. As
hagiografias, para Amaral, sublinham os aspectos heróicos, relativos à fé cristã,
das personagens ao passo que às demais ações são minoradas e
escamoteadas.
Conceitos
Viriarcado: Por que não “patriarcado”?
Que a sociedade medieval dos séculos IV, V e VI é patriarcal, nós já sabemos,
afinal, se organiza em torno do poder do pater, porém, assim como Olívia
Gazalé, entendemos que a ideia de virilidade é importante nesse contexto. É
necessário ser homem para ser um pater, mas ainda assim, é possível um
pater ser considerado destituído de virilidade em algum momento. Enquanto
mulheres nunca puderam ser um pater, algumas delas puderam acessar a
virilidade de algum modo. Sendo assim, entendemos que a proposta de
Gazalé, em sua obra O Mito da Virilidade: uma Armadilha para Ambos os
Sexos, nos permite entender o exercício da virilidade como uma tecnologia do
dispositivo de gênero na Primeira Idade Média.
Gazalé sublinha que: “A dificuldade vem do fato de que a virilidade é dada
como um fato da natureza a-histórico, embora tenha tudo de mito, isto é, de
uma construção cultural imaginária” (GAZALÉ, 2017, p. 20). Sendo assim,
cabem os seguintes questionamentos: “Como se constituiu a “masculinidade
hegemônica” através dos tempos? Que papel as religiões, os poderes públicos
e as ciências desempenharam na construção do sistema viriarcal? Dado o
estreito entrelaçamento de todos os seus componentes, é um pouco artificial
isolá-los para analisar separadamente. Mas o corte é essencial quando se
procura apreender um fenômeno tão vasto quanto as fontes históricas da
dominância masculina” (GAZALÉ, 2017, p. 61).
Abordaremos a ideia de viriarcado como um sistema, ou seja, um dispositivo
complexo que pressupõe diversos elementos entrelaçados e interdependentes,
mas que forma uma outra coisa independente de suas partes (GAZALÉ, 2017,
p. 59). E de que forma se dá essa complexidade: “O sistema viriarcal pretende
ser, como o sistema solar, o reflexo da ordem natural, mas ele é inteiramente
construido. Ele é baseado em um conjunto de postulados, de crenças e de
princípios, é construido sob esquemas de elaborações conceituais aprendidas,
de normas, de leis, de mitos e de símbolos e se perpetua através de práticas
sociais, de histórias, de tradições, de costumes, de ritos, de mentalidades e de
obras. Ele, portanto, não tem nada de natural. Se a palavra não fosse horrivel,
seria um sistema teológico político-cultural. Um dispositivo perfeitamente
artificial, inteiramente ordenado a uma hipótese indiscutível: a superioridade do
princípio masculino sobre o princípio feminino” (GAZALÉ, 2017, p. 59).
93
Episcopado Monárquico e Poder Pastoral
Segundo José Fernández Ubina, nós não sabemos exatamente como se
conduziu a organização do Episcopado Monárquico (UBINA, 2016, p. 40-41).
Contudo, sabemos que o papel dos bispos era, inicialmente, majoritariamente
administrativo, ligado, sobretudo, ao gerenciamento dos fundos destinados à
manutenção da comunidade. Tal atividade muito provavelmente recebia o
apoio de outros integrantes da elite eclesiástica, tais como, diáconos e
presbíteros. (RAPP, 2000, p. 380; SILVA, 2019, p. 122). É somente com o
desenvolvimento do que a historiografia chama de episcopado monárquico que
o bispo passa a ocupar um espaço de destaque. Entretanto, o estabelecimento
desse monoepiscopado é algo muito complexo e nebuloso na documentação.
José Ubina defende que o movimento de consolidação de poder dos bispos foi
essencial para o fortalecimento tanto das igrejas locais como para o conjunto
delas, numa lógica universalista. (UBINA, 2016, p.46)
Já o poder pastoral, é definido por Michel Foucault como:
“A existência dentro da sociedade de uma categoria de indivíduos totalmente
específicos e singulares, que não se definiam inteiramente por seu status, sua
profissão nem por sua qualificação individual, intelectual ou moral, mas
indivíduos que desempenhavam, na sociedade cristã, o papel de condutores,
de pastores, em relação aos outros indivíduos que são como suas ovelhas ou o
seu rebanho. Creio que a introdução deste tipo de poder, desse tipo de
dependência, desse tipo de dominação no interior da sociedade romana, da
sociedade antiga, foi um fenômeno muito importante” (FOUCAULT, 2014f, p.
64).
Nossos objetivos gerais são:
Compreender o processo histórico da santidade feminina na Primeira Idade
Média Oriental à partir das contribuições dos Estudos de Gênero e entender o
processo histórico de afirmação do poder público dos bispos na Primeira Idade
Média.
Nossos objetivos específicos são:
Analisar a vida de Marina/Marino e investigar aspectos de inteligibilidade de
gênero e associações a virilidade; Verificar e salientar as referências ao
exercício de poder das personagens pertencentes à elite eclesiástica,
especialmente dos bispos, nas narrativas hagiográficas analisadas e relacionar
as referências ao exercício de poder formal dos homens à inteligibilidade de
gênero proposta para as personagens hagiografadas nos textos analisados.
94
Vida de Marina/Marino:
Com isso, vamos para a primeira vida de santa que abordaremos. Uma datada
entre o início do século VI e meados do VII, que, embora suas origens
geográficas sejam envoltas em lenda, acredita-se que ela tenha vivido onde
hoje chamamos de Síria (TALBOT, 1996, p. 1).
Essa santa é classificada como uma das monjas travestidas, ou seja, aquelas
que se vestem de monges para esconderem sua real identidade, algo muito
popular nas hagiografias bizantinas entre os séculos V e IX (TALBOT, 1996, p.
1). Nos próximos passos de nossa pesquisa, iremos refletir sobre a
nomenclatura mais adequada para nos referirmos a esse fenômeno histórico
das santas que Talbot descreve como “travestidas”.
Sua popularidade não se limitou de forma alguma ao mundo de língua grega,
como nos conta Alice-Mary Talbot: “A história de Marina/Marino apareceu em
versões latinas, siríacas, cópticas, etíopes, armênias, árabes e, muito mais
tarde, em alemão medieval e francês. Assim, em contraste com muitas outras
santas que tinham apenas cultos localizados, Marina, foi venerada em grande
parte do mundo medieval, tanto no Oriente quanto no Ocidente” (TALBOT,
1996, p. 1, tradução nossa).
Após a morte de sua mãe enquanto ainda era muito jovem, Marina é criada por
seu pai, sob muita devoção e ensinamentos cristãos. Ao crescer, seu pai
resolve abandonar tudo e adotar a vida monástica. Decidida em acompanhar
seu pai, Marina tenta convencê-lo a levá-la consigo ao mosteiro. Em resposta a
esse pedido, o pai diz “Filha, o que devo fazer com você? Você é uma mulher,
e eu desejo entrar em um mosteiro. Como, então, você poderá permanecer
comigo? Pois é através dos membros do seu sexo que o diabo trava guerra
contra os servos de Deus.” (TALBOT, 1996, p. 7, tradução nossa). Em
resposta, a filha profere “Não é assim, meu senhor, pois não entrarei <no
mosteiro> como você diz, mas primeiro cortarei o cabelo da minha cabeça,
vestirei-me como um homem e então entrarei no mosteiro com você.”
(TALBOT, 1996, p. 7, tradução nossa). Assim, Marina corta seus cabelos bem
curtos e, vestida como homem e renomeada Marino, seguiu seu pai ao
mosteiro, no qual viveu muitos anos como monge sem ser descoberta, sendo
inclusive elogiada por sua devoção e ascese. (TALBOT, 1996, p. 8)
Permanecendo no mosteiro após a morte de seu pai, Marino foi eventualmente
acusado de estuprar uma menina, filha do dono de uma estalagem, na qual os
monges se hospedavam ao saírem em missões. Na verdade, a menina em
questão teria sido estuprada por um soldado, e o mesmo teria dito para essa
menina que ela deveria acusar o “jovem monge” caso fosse descoberto que ela
havia sido “deflorada”. (TALBOT, 1996, p. 8)
Acusado de ser o pai de uma criança, Marino não nega o “crime”, aceita
voluntariamente o castigo e é expulso do mosteiro. O monge assume o bebê, e
o cria do lado de fora do mosteiro, vivendo na rua, passando frio e calor
95
(TALBOT, 1996, p. 9). As pessoas que passavam por Marino perguntavam o
motivo dele estar sentado do lado de fora, ele respondia “Porque eu forniquei e
fui expulso do mosteiro” (TALBOT, 1996, p. 9).
Até que três anos depois, é readmitido ao mosteiro após inúmeros pedidos de
seus colegas monges ao abade. Esses argumentavam que Marino já havia
sofrido o suficiente, além de ter confessado seus pecados. Ao retornar ao
mosteiro, os castigos não cessam, Marino foi designado as funções mais
baixas como forma de castigo. É descrito que ele as cumpriu com louvor,
enquanto a criança o seguia chorando e pedindo alimento.
A criança então cresceu e também se tornou monge. Após um longo período
de tempo, Marino não foi visto por três dias cantando no coro e o abade decide
mandar olharem seus aposentos e, para a surpresa de seus colegas,
encontram-no morto. Ao limparem seu corpo em preparação para o enterro,
verificam seu sexo, e com ele sua inocência das acusações de paternidade. Os
monges teriam pedido perdão à Deus e naquele momento, tanto o abade
quanto os colegas reconheceram sua santidade ao ter suportado tanto
sofrimento sem revelar sua verdadeira identidade.
Após seu enterro em um caixão abençoado, em meio a cantos e hinos,
aparece a filha do dono da estalagem, mãe da criança criada por Marino. Ela é
descrita como “possuída por um demônio” (TALBOT, 1996, p. 12, tradução
nossa), mas confessa que foi seduzida por um soldado. Porém a mulher é
prontamente curada pela tumba sagrada de Marina, e todos glorificam.
A vida de Marina termina com a seguinte passagem “Vamos então, amados,
zelosamente emular a abençoada Marina e sua paciente perseverança, para
que no dia do julgamento possamos encontrar misericórdia diante de nosso
Senhor Jesus Cristo, a quem pertencem a glória e o domínio pelos tempos dos
tempos. Amém.” (TALBOT, 1996, p. 12, tradução nossa). Essa passagem final
reforça o caráter prescritivo das hagiografias.
Em nossa pesquisa, utilizamos uma versão da Vida de Marina/Marino traduzida
do grego para o inglês, presente no livro Holy Women of Byzantium: Ten
Saints’ Lives in English Translation, editado por Mary-Alice Talbot e lançado no
ano de 1996. Talbot defende que a versão aqui apresentada é mais próxima da
hagiografia original do século VI ou VII, já que a mesma sofreu consideráveis
mudanças ao longo do tempo devido a transmissão oral. A que nós utilizamos,
chamada também de vita antiqua, está preservada em três manuscritos do
Monte Athos, datados do século X (TALBOT, 1996, p. 2)
Durante a Idade Média, escritores monásticos estariam fascinados por histórias
de travestismo sagrado, e, apesar da proibição (TALBOT, 1996, p. 2), mais de
uma dúzia de diferentes vitae foram compostas sobre esse tema, que parece
ter se originado nos Atos de Santa Tecla, do século II.
96
Referências Bibliográficas:
Ricardo Russo Carvalho é graduando em História na Universidade do Estado
do Rio de Janeiro, onde integra o Programa de Estudos Medievais
(PEM/UERJ). É bolsista de Iniciação Científica (PIBIC/UERJ) sob orientação do
Prof. Dr. Wendell dos Reis Veloso. Ricardo também é membro do Grupo de
Estudos Sobre Hagiografia e Santidade (AGIOS/UFF).
Documentação:
TALBOT, Alice-Mary (Ed.). Holy Women of Byzantium: Ten Saints’ Lives in
English Translation. Washington, DC: Dumbarton Oaks, Trustees for Harvard
University, 1996.
Bibliografia:
AMARAL, Ronaldo. Santos Imaginários, santos reais: a literatura hagiográfica
como fonte histórica. São Paulo: Intermeios, 2013.
FOUCAULT, Michel. Do Governo dos Vivos: Curso no Collège de France.
(19791980). São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014.
GAZALÉ, Olivia. Le Mythe de la Virilité: um Piège pour les Deux Sexes. Paris:
Éditions Robert Laffont, 2017.
RAPP, Claudia. The elite status of bishops in Late Antiquity in ecclesiastical,
spiritual, and social contexts. Arethusa. The Johns Hopkins University Press, v.
33, n. 3, p. 379-399, 2000.
SILVA, Andreia, C. L. F. Introdução. In:____. Hagiografia e História. Rio de
Janeiro: HP Comunicação Editora, 2008. p. 7-15.
SILVA, Paulo Duarte. Bispos em Ação: A Ascenção do Episcopado no
Cristianismo Tardo Antigo (Séculos III-VI). In: e, Wendell dos Reis;
BOENAVIDES, D. M. (Orgs.). Religiosidade, Poder e Sociedade no Medievo:
Discussões Historiográficas. 1. ed. Porto Alegre: Polifonia, 2019, p. 111-128.
UBINA, José Fernández. Origen y Consolidación del Episcopado Monárquico.
In: ACERBI, Silvia; MARCOS, Mar; TORRES, Juana. El Obispo en la
Antiguidad Tardía: Homenaje A Ramón Teja. Madrid: Editorial Trotta, 2016, p.
37-51.
97
RELIGIÃO NO ANTIGO ORIENTE MÉDIO: CRENÇAS
FUNERÁRIAS MESOPOTÂMICAS NO ÉPICO DE
GILGAMESH
Ryckel Mynackson Farias Barbosa
Introdução: Mito, religião e crenças funerárias
Desde suas origens, os seres humanos anseiam por explicações que sanem
suas dúvidas acerca da realidade: como a chuva desce sobre a terra? Qual a
razão das doenças, como as coisas ao redor surgiram? O que acontece após a
morte? Para compreender questões tão importantes como essas, a
humanidade desenvolveu o mito: “Da busca de compreender os fenômenos e
as causas, surgiram as primeiras narrativas mitológicas. Os mitos foram a
forma de explicar o princípio das coisas e os mistérios da vida e da natureza.”
[Paiva, 2020, p. 17].
Yuval Harari entende a religião como uma das principais invenções do homem,
uma resposta às necessidades humanas de cooperação social, identidade
coletiva e significado, destacando seu papel histórico na evolução da
humanidade [Harari, 2020]. A busca por sentido e significado é inerente à
natureza humana, e a religião oferece um quadro de referência que ajuda os
indivíduos a compreenderem-se e a compreender o mundo em que vivem
[Eliade, 1972].
Entre essas necessidades de identidade coletiva e de significado, que
apresentam Harari e Eliade, podemos visualizar a necessidade de viver. Os
seres humanos são os únicos animais que possuem a capacidade de abstrairse da realidade visual, e imaginar além da materialidade. Com essa habilidade,
os seres humanos criaram as mais variadas invenções, sejam elas para
solucionar problemas físicos ou para trazer respostas às suas angústias.
Paul Kriwaczek vai observar que “a religião é tão velha quanto a humanidade
[...] remontando à época em que nossos ancestrais pré-humanos começaram
a sepultar seus mortos com uma cerimônia.” [Kriwaczek, 2018, p. 43]. Ou seja,
o surgimento da religiosidade está fortemente entrelaçado à noção da vida
98
após a morte. E não poderia ser diferente, afinal, a religião, como uma
manifestação do pensamento humano, busca, entre outras coisas, resolver
aquilo que foge às explicações naturais. Portanto, não é estranho a nós que
alguns dos mais antigos registros arqueológicos de práticas religiosas estejam
relacionados à crença na vida após a morte.
Harari nos informa que:
“Em Sungir, na Rússia, os arqueólogos descobriram em 1995 um sítio com
túmulos de 30 mil anos atrás [...] Num deles encontraram o esqueleto de um
homem de cinquenta anos coberto com colares de contas feitas de marfim de
mamute, num total de cerca de 3 mil contas. Na cabeça havia um chapéu
decorado com dentes de raposa e, nos punhos, 25 braceletes de marfim.
Outros túmulos do mesmo sítio tinham muito menos objetos.” [Harari, 2020, p.
68, 69].
Isso pode significar que hierarquias sociais estavam diretamente ligadas às
noções e práticas religiosas, e isso nos ajuda a compreender que a religião e
as crenças religiosas estão ligadas às estruturas sociais em que estão
inseridas. Afinal, “a religião é coisa iminentemente social. As representações
religiosas são representações coletivas que exprimem realidades coletivas”
[Durkheim, 2008, p. 38]. E ainda “a religião é uma representação de toda e
qualquer forma de organização social. Sem coesão social não existiria religião.”
[Silva, 2019, p. 227]. Em nossa análise, portanto, buscaremos enxergar a
religião a partir da História Cultural das Religiões, Compreendendo que
“religião é um sistema comum de crenças e práticas relativas a seres sobrehumanos Dentro de universos históricos e culturais específicos.” [Belloti;
Campos; Silva; 2010, p. 13].
Os adereços indicam que esse indivíduo ocupava uma alta posição na
hierarquia daquele grupo de caçadores, porém não sabemos qual a crença que
eles tinham sobre o que aconteceria após a morte. Para que isso fosse
possível, seria necessário que tivéssemos textos escritos ou, pelo menos,
pinturas ou mais artefatos que trouxessem alguma indicação sobre suas
crenças – coisa que não temos.
No entanto, algumas sociedades do Bronze já possuíam sistemas de escrita e
sistemas teológicos estabelecidos. Com isso, não haviam textos apenas de
ordem administrativa, mas também textos sagrados, contendo as crenças e
práticas religiosas de determinado povo. Esses textos podiam apresentar
poemas, relatos históricos, instruções, normas e outras modalidades. A Bíblia,
por exemplo, apresenta textos mitológicos, relatos de memória coletiva sobre a
história da formação política e religiosa dos judeus, conjuntos legislativos, hinos
e textos poéticos. A existência de documentos assim auxiliam nosso trabalho
de análise das crenças de determinada sociedade.
99
Um olhar inicial acerca da religião mesopotâmica
Na Mesopotâmia, foram fundadas algumas das primeiras cidades da
antiguidade, e suas origens seriam especialmente importantes para a tradição
da região “o mitógrafo sumério conservará, nos seus escritos, a recordação das
origens longínquas da sua história.” [Glassner, 2020, p. 220]. Essa tradição de
lembrança das origens era também religiosa: “Enquanto durasse a civilização
mesopotâmica, eles se lembrariam que cada cidade tinha sido inspirada e
fundada por uma divindade particular que tinha nela sua morada terrena.”
[Kriwaczek, 2018, p. 42].
A Mesopotâmia, inicialmente, não correspondia a um reino unificado, mas era
formada por cidades-estados, independentes umas das outras, mas
compartilhando elementos culturais e religiosos [Souza Neto, 2012, p. 202].
Antes da ascenção do Império Acádio, a região não havia passado por
nenhuma experiência bem sucedida de unificação política, apesar de em
alguns momentos haverem existido cidades que impuseram sua força sobre
outras cidades, como foi o caso da cidade de Umma, liderada por LugalZagesi, por volta do século XXIV A.E.C.
Ao olharmos de maneira mais precisa para os aspectos religiosos dessa
região, Francisco Caramelo nos diz que:
“A religião mesopotâmica é certamente uma designação demasiado genérica
para traduzir o caráter heterogêneo das suas práticas, das crenças e das
concepções teológicas que a definem. Não devemos desprezar a amplitude
geográfica e cronológica que suporta a realidade cultural mesopotâmica. Mau
grado as convergências e similitudes que podemos observar, as
generalizações devem ser evitadas.” [Caramelo, 2007, p. 165]
Essa definição é fundamental para iniciarmos nossa análise. Nesse sentido,
grande parte dos comentários que apresentaremos acerca da religião
mesopotâmica não devem ser aplicados a todos os períodos da história
mesopotâmica, mas entendidos dentro do contexto temporal e espacial da
fonte analisada: O Épico de Gilgamesh. Porém, alguns aspectos comuns nas
diferentes temporalidades devem ser destacadas.
Os mesopotâmicos tinham diferentes deuses antropomórficos, constituindo
uma religião politeísta. Cada cidade possuía um panteão dominante, mas
apresentando receptividade para com os deuses estrangeiros. Como os
mesopotâmicos enxergavam o universo como o espaço de dominação dos
deuses, “os primeiros deuses dos sumérios se confundiam com os grandes
elementos cósmicos: o céu, a terra, o ar e água.” [Giordani, 1972, p. 140].
Por essa razão, entre as principais divindades mesopotâmicos estavam os
sumérios Enlil, Enki e An – deuses, respectivamente, da atmosfera, das águas
e da terra, e do céu. Outras divindades passariam a ter mais representatividade
através do tempo. A partir da ascensão do Império Acádio, a deusa Ishtar
100
(divindade semita que corresponde à Inana dos sumérios) passou a ter mais
relevância, como deusa protetora de Sargão I, e como principal personalidade
dos textos da sacerdotisa Enheduana.
A religião mesopotâmica também chama a atenção por suas crenças
funerárias. Isto é, a forma como os mesopotâmicos enxergavam a realidade
após a morte, e como se relacionavam com os mortos. Esse será o foco
principal em nosso olhar ao Épico de Gilgamesh.
Gilgamesh e a busca pela imortalidade
O Épico de Gilgamesh conta a aventura do rei da cidade de Uruk em sua
incessante busca pela imortalidade. A maior parte dos poemas escritos sobre
Gilgamesh são dos primeiros séculos do segundo milênio A.E.C., e que,
provavelmente, são o registro textual de tradições orais mais recuadas no
tempo, “ao passo que o texto definitivo e a edição mais completa da Epopéia
vêm do século VII, da biblioteca de Assurbanipal, antiquário e último dos
grandes reis do Império Assírio” [Oliveira, 1995, p. 4]. O texto foi copiado e
adaptado em diferentes localidades, tanto na Mesopotâmia, quanto na SíriaPalestina, em língua acádia [Liverani, 2016, p. 471, 507], mas também em
línguas hitita e hurrita [Carreira, 2002, p. 145, 146].
O texto foi encontrada nas ruínas da antiga biblioteca do rei assírio
Assurbanipal, na cidade de Nínive, atual Iraque, através de escavações
realizadas no ano de 1853. O texto, redigido em escrita cuneiforme, foi
traduzido por volta da década de 1890. A grande atenção ao texto se deu pela
narrativa mítica do dilúvio presente no texto, que muito se assemelha ao dilúvio
bíblico de Noé. [Carreira, 2002, p. 145].
Gilgamesh, evidentemente, não foi tão longevo quanto “A lista dos Reis
Sumérios” nos informa, nem vivenciou tais aventuras míticas. Todavia, não é
impossível que estejamos tratando de uma personagem que realmente tenha
existido. Afinal, a arqueologia do Oriente Médio conseguiu comprovar que
alguns reis mesopotâmicos que antes eram tidos como figuras puramente
mitológicas, como Enmebaraguesi, de Kish, realmente existiram. [Kriwaczek,
2018, p. 55]. Nossa análise busca encontrar nesse texto bases para
entendermos a compreensão mesopotâmica sobre a vida após a morte. No
decorrer da narrativa, isso começa a ficar evidente quando Gilgamesh perde
seu amigo Enkidu, após dias enfermo. O texto Épico nos diz que:
“Gilgamesh chorou amargamente por seu amigo Enkidu. Ele errou pelas matas
como um caçador e vagueou pelas planícies. Em sua tristeza ele gritou: ‘Como
posso descansar, como posso ficar em paz? O desespero se instalou em meu
coração. Isso que meu irmão é agora, o mesmo serei eu quando morrer.”
[Anônimo, 1995, p. 91]
A morte de seu amigo fez com que Gilgamesh atentasse para a precariedade
da existência humana, e que em algum momento ele também deveria enfrentar
101
a morte. É diante disso que Gilgamesh resolve ir até o encontro do único
humano que recebeu a imortalidade pela mão dos deuses. O texto segue
dizendo:
“Por medo da morte farei o possível para encontrar Utnapishtim, a quem
chamam o Longínquo, pois ele se juntou à assembleia dos deuses.’ Gilgamesh
então correu o mundo selvagem; vagou pelos campos e pastos numa longa
jornada em busca de Utnapishtim, a quem os deuses acolheram após O dilúvio
e instalaram na terra de Dilmum, no jardim do sol; e somente a ele, entre todos
os homens, os deuses concederam a vida eterna” [Anônimo, 1995, p. 91].
Depois de longa viagem, ocorre o encontro entre Gilgamesh e Utnapishtim, o
Longínquo, que “parece ter como objetivo reconciliar o homem com o seu
destino na terra, embora tenha um tom pessimista.” (Oliveira, 1995, p. 39).
Utnapishtim traz o relato da destruição enviada pelos deuses através de um
dilúvio: “Muito antes de se redigir o Genesis, os antigos mesopotâmicos haviam
contado a história de um dilúvio universal, enviado por determinado divino para
destruir a humanidade.” [Kriwaczek, 2018, p. 95].
Utnapishtim, recebeu dos deuses a honra da imortalidade, porém alertou a
Gilgamesh que ele não receberia a mesma honraria, por se tratar de um
homem comum. Foi posto à prova, onde teve, por exemplo, que lutar contra o
sono por seis dias e sete noites, sem obter sucesso [Anônimo, 1995, p. 105].
Mesmo diante da fonte da juventude, não se alimenta do fruto e permanece
com os traços do envelhecimento. O texto é finalizado com a morte do herói
Gilgamesh:
“Oh, Gilgamesh, era este o significado de teu sonho. Foi-te dado um trono,
reinar era teu destino; a vida eterna não era teu destino [...] Ele te concedeu
supremacia sem paralelo sobre o povo, vitória nas batalhas de onde não
escapam fugitivos; o sucesso é teu nas incursões militares e nos implacáveis
assaltos. Mas não abuses deste poder. [Anônimo, 1995, p.109].
O herói Gilgamesh não conseguiu aquilo que mais ansiava: a imortalidade,
fugir da morte, pois a imortalidade não foi confiada para os seres humanos.
Assim o herói ouvira, quando em sua procura por Utnapishtim, de Siduri:
“Gilgamesh, onde vais com tanta pressa? Jamais encontrarás a vida que
procuras. Quando os deuses criaram o homem, eles lhe destinaram a morte,
mas a vida eles mantiveram em seu próprio poder. Quanto a ti, Gilgamesh,
enche tua barriga de iguarias; dia e noite, noite e dia, dança e sê feliz,
aproveita e deleita-te. Veste sempre roupas novas, banha-te em água, trata
com carinho a criança que te tomar as mãos e faze tua mulher feliz com teu
abraço; pois isto também é o destino do homem. [Anônimo, 1995, p. 95, 96].
102
Crenças funerárias da Mesopotâmia
Jean Bottéro, ao analisar a fracassada busca pela imortalidade do herói
Gilgamesh, diz que: “A morte era, portanto, um mal cruel e terrível, uma vez
que Gilgamesh tinha, inutilmente, afrontado provas tão formidáveis para tentar
evitá-la; mas era inelutável para todos: era o ‘destino’ dos homens.” [Bottéro,
2011, p. 74]
Para o ideário mesopotâmico, os prazeres da vida devem ser aproveitados,
pois são únicos e efêmeros, tais prazeres não seguirão o morto. A morte para o
mundo mesopotâmico é um caminho sem volta, sem recompensas e sombrio,
pois “segundo o Épico de Gilgamesh, nenhuma recompensa aguarda aquele
que partiu” [Soares, 2006, p. 11]. A concepção de vida após a morte na
Mesopotâmia muito nos lembra o pensamento judaico, expresso nas reflexões
do livro de Eclesiastes, no capítulo 9 e versículos 1 ao 10, que observa a vida
humana estando limitada às práticas feitas em vida, pois não há nada no além.
Os mesopotâmicos possuíam a prática da inumação: “punham-no na terra, nu,
em grandes jarros ou caixotes de argila, em fossas ou em sarcófagos de pedra.
O local tradicional do enterro era a casa paterna.” [Bottéro, 2011, p. 78]. Dessa
forma, nem sempre os mortos eram postos dentro de esquifes, mas
diretamente na terra, envoltos com tecidos. Segundo Marcelo Rede, a
inumação no subsolo das casas constituiu uma prática comum entre os
mesopotâmicos desde o VI milênio até o fim do I milênio A.E.C. [Rede, 2004, p.
125].
Quanto à alma dos mortos: “falecido o homem, o seu espírito descia ao lúgubre
e desolado mundo das profundezas [...] Para chegar ao submundo, as almas
tinham que atravessar um rio de barco.” [Kramer, 1969, p. 104, 105]. No
submundo, as almas dependiam de oferendas para serem mantidos na cidade
dos mortos. Eram alimentados, e em troca disso auxiliavam o mundo dos vivos
com chuva, proteção contra a feitiçaria, fertilidade dos campos e etc. Em
alguns casos, os mortos poderiam se tornar demônios malfeitores. Portanto, o
medo fazia com que os vivos buscassem estabelecer uma relação amigável
com os mortos. [Soares, 2006, p. 12].
Ainda segundo Kramer, após sua morte Gilgamesh tornou-se uma divindade, e
estabeleceu regras para o submundo – governado por Nergal e Ereshkigal.
Uma dessas regras era que a escuridão tomaria conta do mundo dos mortos
durante o dia terrestre, mas, com o pôr-do-sol, a luz chegaria ao submundo.
[Kramer, 1969, p. 106]. A partir do mito de Gilgamesh, a relação entre rei-herói
adquire novas prerrogativas, com o rei podendo assumir a deidade após sua
morte, descendo aos infernos. Essa relação tomará novos parâmetros na
dinastia sargônida.
As relações de poder não estão ausentes do imaginário mesopotâmico. Os reis
e cidadãos importantes tinham primazia mesmo em um submundo vazio e
escuro [Kramer, 1969, p. 105]. Haviam outras pessoas que escapavam das
103
mais tristes realidades do submundo: aqueles que tiravam a própria vida e os
que morriam antes de seu nascimento. A insalubridade e dura realidade de
vida das cidades mesopotâmicas certamente moldou a imagem triste e amarga
acerca do mundo dos mortos da terra entre rios.
O épica narrativa de Gilgamesh em busca da imortalidade apresenta o
imaginário pessimista do mundo mesopotâmico em relação à morte. Entre
deuses e seres humanos, a imortalidade era uma das principais diferenças, e a
morte era um ponto natural no clico da vida humana. Na religião egípcia, os
mortais não demonstravam preocupação com o fim de sua vida terrena, dada a
esperança existente na vida futura. Por outro lado, a religião mesopotâmica
apresentava uma visão muito mais pessimista em relação à morte. Gilgamesh
é um exemplo, ele anseia pela imortalidade – não aquela que vem após a
morte, mas a ausência dela. Ele não mede esforços em sua tentativa de tornarse imortal, em semelhança dos deuses.
Considerações Finais
Portanto, podemos perceber que o entendimento de vida após a morte
mesopotâmico é sombrio e apático. A morte é temida e busca ser evitada, pois
não há recompensa ou bem-aventuranças para aqueles que deixam o mundo
dos vivos. Enkidu, por punição divina, perdeu sua vida. Seu amigo Gilgamesh
tentou receber a dádiva da imortalidade, mas fracassou. Apenas Utnapishtim, o
longevo, foi agraciado pelos deuses por haver sobrevivido ao dilúvio. A
imortalidade é uma benção no mundo mesopotâmico, pois não há algo pior que
o destino após a morte.
Conhecer literatura mesopotâmica nos auxilia a enxergar a Mesopotâmia como
um espaço de riqueza artística e cultural, percebendo que essas características
não estão limitadas ao mundo ocidental. Através do estudo das fontes do
Médio Oriente, podemos desconstruir os conceitos bases do pensamento
eurocêntrico, que produz uma visão orientalista acerca do mundo oriental.
Segundo o historiador Edward Sair, o orientalismo é:
“[...] um estilo de pensamento baseado em uma distinção ontológica e
epistemológica feita entre ‘o Oriente’ e (a maior parte do tempo) ‘o Ocidente’
[...] O orientalismo é um estilo ocidental para dominar, reestruturar e ter
autoridade sobre o Oriente” [Said, 1990, p. 14, 15].
Ou seja, a representação que possuímos acerca do Oriente não é uma
retratação fidedigna desse espaço, mas uma construção ideológica construída
pelo pensamento ocidental, que toma para si os títulos de civilizado,
democrático e intelectual, e impõe ao Oriente os estereótipos de bárbaro,
déspota e místico. Esse olhar preconceituoso que possuímos acerca do
Oriente deve ser desconstruído a partir do contato com a arte e a cultura
oriental. Ao estudarmos a literatura mesopotâmica, por exemplo, enxergamos
claramente sua riqueza artística, expressando sua religiosidade, sua cultura,
seus anseios, seus medos e sua criatividade:
104
“Como se nota, o tema central no Épico de Gilgamesh vai além da narração de
viagens, lutas e aventuras, temores e sonhos do protagonista: fala de amizade,
amor, sentimentos de vingança, opressão, arrependimento e, acima de tudo,
do temor à desaparição final e ao esquecimento após a morte.” [Soares, 2006,
p. 10].
Fonte:
ANÔNIMO. O Épico de Gilgamesh. Tradução: Carlos Daudt de Oliveira. São
Paulo: Martins Fontes, 1995.
Referências
Ryckel Mynackson Farias Barbosa é graduando no curso de Licenciatura em
História pela Universidade de Pernambuco – Campus Mata Norte (UPE/CMN)
– e membro do Leitorado Antiguo – Laboratório de Ensino, Pesquisa e
Extensão em História Antiga.
BELLOTTI, Karina Kosicki; CAMPOS, Leonildo Silveira; SILVA, Eliane da.
Religião e Sociedade na América Latina. São Bernardo do Campo: UMESP,
2010.
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Morais. Civilização Brasileira, 2011.
DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa: o sistema
totêmico na Austrália. São Paulo: Editora Paulus, 2008.
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Perspectiva, 1972.
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RJ: Vozes, 1972.
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do segundo milênio. In.: LÉVÊQUE, Pierre (dir.). As primeiras civilizações: da
idade da pedra aos poucos semitas. São Paulo: Edições 70, 2020.
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Jorio Dauster. 1° edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
KRAMER, Samuel Noah. Mesopotâmia: o berço da civilização. Rio de Janeiro:
Livraria José Olímpio Editora, 1969.
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Tradução: Vera Ribeiro. 1° edição. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.
LIVERANI, Mario. Antigo Oriente: História, Sociedade e Economia. Tradução:
Ivan Esperança Rocha. 1° edição. São Paulo: Edusp, 2016.
105
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Gilgamesh. Tradução: Carlos Daudt de Oliveira. São Paulo: Martins Fontes,
1995.
PAIVA, Iara Cecília. A culpa é de Eva? De deusas a pecadoras: mulheres nas
religiões. São Paulo: Edições 70, 2020.
SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo:
Cia das Letras, 1990.
SILVA, Avacir Gomes dos Santos. Maná, carisma e hierofania: compreensões
do sagrado para a Geografia da Religião. In.: Ateliê Geográfico. Goiânia, GO, v.
13, n. 2, ago./2019, p. 224 – 239.
SOARES, Elisângela. Antigas variações sobre a vida após a morte:
circularidade cultural e religiosa no judaísmo pré-exílico? In. Oracula, São
Bernardo do Campo, 2.4, 2006.
SOUZA NETO, José Maria Gomes de. Ensaio “Aquilo que criei, ninguém
jamais criou”. In.: SOUZA NETO, José Maria Gomes de. (org.) Antigas Leituras:
diálogos entre a literatura e a história. Recife: Edupe, 2012, p. 201 – 208.
106
A CONVERSÃO DA RUS DE KYIV POR BIZÂNCIO:
CRISTIANISMO E RITO ORIENTAL
Talita Seniuk
Este trabalho apresenta a influência bizantina na conversão da Rus de Kyiv ao
cristianismo, característica esta que persiste até a contemporaneidade, mais
conhecida como rito oriental. O artigo estrutura-se em três tópicos, A Rus de
Kyiv, A conversão, e, O florescimento, respectivamente. Como referenciais
utilizam-se Subtelny [2009] e Yekelchyk [2007] que tratam da história da
Ucrânia; e dois autores, Sevcenko [1984] e Szewciw [1988], que abordam
especificamente sobre a conversão do Estado Kyivano, mudança esta que já
completou mais de um milênio.
A Rus de Kyiv
As origens sobre a Rus de Kyiv são controvérsias e não possuem apenas uma
versão, e por isso, dividem os historiadores quanto a veracidade de cada
vertente. O que se pode afirmar, entretanto, é que devido à ela, os contornos
da atual Ucrânia foram estabelecidos.
Inúmeras culturas viveram nessa localidade, tendo a Tripiliana como expoente,
por ser a civilização agrícola primitiva mais conhecida, datando entre 4.000 e
2.500 a. C. Depois vieram os cimérios, citas, godos, hunos, búlgaros, ávaros e
cazares [YEKELCHYK, 2007].
Toda essa diversidade através dos tempos formava as tribos eslavas que
viviam nessa região até a chegada de vikings no século IX, segundo uma das
versões de fundação, liderados por Rurik ou Rurikovytch, que unificou todas
através da diplomacia e da força, e formou o primeiro Estado – a Rus de Kyiv
[BURKO, 1963].
Outra vertente, retirada da obra As Crônicas de Nestor, afirma que quatro
irmãos – três homens, Kyi, Shchek, Khoriv e uma mulher, Lybid – já viviam
neste local, sendo liderados pelo primeiro que exercia um papel de governante
perante tribos organizadas. E só depois de alguns anos dessa convivência, o
viking Rurik chegou e tomou o poder [YEKELCHYK, 2007].
Independente de como realmente ocorrera a constituição do primeiro governo
kyivano, sabe-se que seu solo extremamente fértil, o chernossolo, e sua
107
localização estratégica – rota de passagem entre Oriente e Ocidente –
[BURKO, 1963] sempre foram motivo de cobiça pelos vizinhos e algumas de
suas características mais marcantes até o Medievo.
Em 882, Oleh [também conhecido como Helgi, Oleg] chegou até a Rus e não
se sabe ao certo como ascendeu ao trono, substituindo Rurik que havia
falecido e deixara um filho pequeno ainda, Ihor [Ingvar, Igor], que não podia
assumir. Enquanto isso, foi o responsável por em 907 firmar o primeiro acordo
comercial com o Império Bizantino [YEKELCHYK, 2007].
Em condições de gerir a Rus de Kyiv herdada de seu pai, Ihor governou entre
913 e 945. Um ano antes de morrer, assinou um tratado colocando seus
soldados à disposição de Bizâncio, e todos os guerreiros fizeram um juramento
cristão na Igreja de Santo Elias em Kyiv [SZEWCIW, 1988].
Embora, historicamente o cristianismo tenha sido considerado a religião oficial
do Estado Kyivano, quarenta e quatro anos depois de tal acordo, ou seja, em
988; vale ressaltar que o juramento acima descrito demonstra que essa religião
já havia dado os primeiros passos numa sociedade tradicionalmente pagã.
A Igreja de Santo Elias, foi uma das pioneiras nesse quesito. Construída no
centro da vida da Rus, teve seu padroeiro escolhido especialmente devido aos
seus atributos e ser comparado ao deus pagão do trovão, chamado de Perun
pela população [SEVCENKO, 1984].
E há outro fato ainda que merece destaque: em 863 os religiosos cristãos –
Cirilo e Metódio – adentraram em comunidades kyivanas com livros litúrgicos
traduzidos e ainda criaram o alfabeto eslavo, facilitando o trabalho de
conversão dos moradores [SZEWCIW, 1988].
Durante o governo de Ihor, em 941, ele investiu contra Constantinopla e foi
derrotado. Três anos depois, foi obrigado a assinar um documento
desfavorável ao seu governo, que colocava suas riquezas nas mãos dos
bizantinos. Para reverter o cenário, investiu contra os muçulmanos com o
objetivo de saquear riquezas, mas foi assassinado.
Sua esposa, Olha [Helga, Olga], governou entre 945 e 962, enquanto seu filho
não tinha idade suficiente para ascender ao trono; convertendo-se ao
cristianismo nesse período. Sviatoslav, reinou durante 962 e 972, ora
aproximou-se do Império Bizantino ora declarou-se inimigo, e não se converteu
como sua mãe.
A conversão
Foi apenas na dinastia de Volodymyr, o Grande que a Rus de Kyiv foi
convertida ao cristianismo em sua totalidade. Seu governo se estendeu entre
978 e 1015, sendo marcado por várias mudanças. Ele era filho de Sviatoslav e
neto de Olha.
108
Embora sua avó tenha sido batizada pelo próprio patriarca bizantino em
Constantinopla em 955, e seu avô e pai jamais terem sido convertidos,
Volodymyr fez uma análise bastante profunda dos benefícios da religião cristã,
não apenas para ele, mas para o reino.
Pagão desde o nascimento, como era o costume eslavo há tempos, ele pode
ter percebido no cristianismo uma estratégia política. Seu desejo era
consolidar-se como acontecia com o Império Bizantino e por isso analisou as
possibilidades que lhe foram apresentadas considerando sua utilidade para o
Estado [SZEWCIW, 1988].
Em 987 conquistou a colônia bizantina de Khersones, na Crimeia e pediu a
mão da princesa Anna, ninguém menos que a irmã dos imperadores Basílio e
Constantino. A única condição para a efetivação do casamento era de que
Volodymyr se convertesse à religião da futura esposa.
Sua soberania, unificada e sem rivais dentro do território já se estendia do
Báltico ao Mar Negro, e dos rios Sian e Vístula até o Volga, o que demonstrava
sua maestria em governar. A conversão seria um ato de diplomacia e aceitação
perante a realidade circundante.
“O Estado de Kyiv mantinha relações, em condições de igualdade política e
militar, com outros Estados poderosos da época, que já eram cristãos, e
Volodymyr entendeu, então, que para ser completamente aceito pelo restante
do mundo civilizado e não ser tido em conta de um país bárbaro e retrógrado, a
Rus – Ucrânia deveria tornar-se um Estado cristão.” [SZEWCIW, 1988, pp. 40 e
41]
Nesse sentido, não houve um trabalho missionário externo de conversão dos
súditos da Rus e do seu líder, mas o desejo dele próprio de aceitar o
cristianismo para si e para seu povo. Depois da tomada de decisão, o processo
de mudança do paganismo para a nova religião ocorreu de forma rápida.
Para cristianizar a nação kyivana, sacerdotes oriundos de Khersones, além do
apoio do clero da Bulgária e Panônia-Morávia, o povo foi batizado nos rios
Pochajna e Dnipró pelo rito bizantino na sua forma búlgara [SZEWCIW, 1988].
Todo esse processo ocorreu no ano de 988 e registrado pelo escritor Nestor no
século XI.
Além da devoção da população em relação ao seu líder máximo – Volodymyr,
o Grande – é preciso ressaltar que outro fator pode ter estimulado também
essa conversão com pouca resistência. Trata-se da difusão do cristianismo nos
reinados vizinhos na mesma época, como na Galícia oriental, na Bukovyna e
na Transcarpátia [SZEWCIW, 1988].
Os mesmos missionários – Cirilo e Metódio – já haviam estado nesses locais
anteriormente e difundido a liturgia no idioma eslavo, o que facilitou a adesão
109
da população. Entretanto, no momento do batismo da Rus, a dupla religiosa já
era considerada santa pela igreja.
Embora a conversão tenha sido obrigatória e oficial, vindo de cima para baixo,
o povo aceitou a nova religião, mas manteve alguns costumes pagãos que ou
eram adaptados ao novo contexto, ou realizados em simultâneo, criando um
sincretismo religioso, cuja herança se estende até a contemporaneidade, a
exemplo da confecção das pêssankas [ovos escritos].
Como consequência, foram construídas inúmeras igrejas e dioceses em todo o
território kyivano, até nos mais longínquos; além de escolas, que não só
evangelizavam, mas ensinavam uma educação básica, sendo obrigatória para
os filhos dos guerreiros.
Nesse período, a igreja latina tentou evangelizar alguns ucranianos que
residiam no lado ocidental da Rus, mas tal empreita se mostrou infrutífera. O
rito bizantino já estava enraizado e a população encontrava nele um formato
mais original e em conformidade com aquilo que pregavam como uma
espiritualidade mais próxima de Cristo.
Volodymyr, o Grande, manteve relações diplomáticas muito mais exitosas com
líderes de outros locais como Alemanha, Polônia, Noruega, França, Hungria,
entre outros; correspondeu-se com os papas João XVI e Silvestre II depois de
se tornar cristão.
Ressalta-se que sua conversão aconteceu sessenta anos antes do Grande
Cisma do Oriente em 1054, quando o patriarca Miguel Cerulário foi
excomungado pelo papa. O rei kyivano, ficou conhecido pelo seu apreço
religioso e seus esforços em propagar a nova fé.
Alguns escritores do período como o metropolita Ilarion, comparavam a
conversão de Volodymyr, o Grande como a do imperador romano Constantino
em 312 [SEVCENKO, 1984]. Seu apego e zelo apostólico logo lhe fizeram ser
venerado como santo, bem como a sua avó, tendo os dois recebido o título de
“rivnoapostolny” [рівноапостольний – como apóstolos], ou seja, dignos de
veneração semelhante à dos apóstolos [SZEWCIW, 1988].
Entretanto, foi seu filho – Yaroslav, o Sábio – que foi considerado o verdadeiro
organizador do cristianismo na Ucrânia. Se seu pai converteu a população e
não poupou esforços para a implantação da nova religião, fora o sucessor que
fez história nesse sentido.
O florescimento
Yaroslav, o Sábio governou entre 1019 e 1054. Foi através dele que a igreja
alcançou uma consolidação realmente efetiva sob o território kyivano.
Responsabilizou-se pela construção de inúmeros mosteiros e bibliotecas que
além de ampararem o espírito, foram essenciais em tempos de crises.
110
A principal obra, a Igreja de Santa Sofia, foi erigida em 1037 segundo Szewciw
[1988] e serviu como referência da santa sé bizantina. Logo, tornou-se a
catedral metropolita de Kyiv e resiste até hoje como uma das principais
construções do período. Foi assim chamada para homenagear a grande
catedral de Constantinopla [YEKELCHYK, 2007].
A referida igreja abriga, desde o mesmo ano, o ícone da “Bohorodytsia”
[Богородиця – Mãe de Deus], que foi proclamada por ele como Rainha da
Ucrânia, ganhando reproduções que estampavam praticamente todos os lares,
dos mais ricos aos mais pobres [SZEWCIW, 1988].
Outros dois ícones sagrados que estão expostos na Catedral de Santa Sofia
desde essa época são o “Pokrov” [Покров – Padroeira da Ucrânia] e o mais
antigo de todos, “Odighitria” [Одигітрія – Nossa Senhora de Odighitria, Nossa
Senhora da Guia ou ainda Nossa Senhora de Constantinopla] trazido pela
princesa Anna, quando casou com Volodymyr.
Anexo à ela, em 1051 foi construído o mosteiro de Pecherska-Lavra ou
Mosteiro de Kyiv-Petchersk que é conhecido também como Mosteiro das
Cavernas de Kyiv. Trata-se do mosteiro mais antigo da Ucrânia e um dos
lugares sagrados para o cristianismo ortodoxo.
Embora sua finalização arquitetônica tenha ocorrido depois do governo de
Yaroslav, sua importância religiosa já era aceita quando ainda era um singelo
mosteiro. Em 1990 foi declarado Patrimônio da Humanidade e desde 2007 ele
é considerado pela UNESCO uma das sete maravilhas da Ucrânia.
O rei também escreveu um código de leis para o reino, o “Ruska Pravda”
[Руська Правда – Lei da Rus] que apesar de estabelecer regras e normas civis
dentro do território, baseado no sistema consuetudinário, demonstra inegáveis
referências aos princípios cristãos [SZEWCIW, 1988].
Outra mudança administrativa importante no governo dele foi em relação aos
metropolitas. Era comum que os patriarcas bizantinos escolhessem seus
missionários para as novas igrejas que se construíam e por isso, desfrutavam
de muito poder, em todos os sentidos.
Yaroslav, o Sábio, propôs que os bispos bizantinos elegessem um metropolita
ucraniano, que se preocupasse com as necessidades do povo. Dessa forma, o
primeiro foi Ilarion, que se tornou o metropolita de Kyiv e representou melhor os
anseios do povo e do próprio governante.
O metropolita respondia pela igreja cristã e influenciava questões da vida das
pessoas, passando pelas decisões do Estado, da criação e execução de leis –
tanto civis quanto religiosas – além de deter grande poder econômico também
ao administrar as finanças religiosas.
111
Outra ação que contribuiu bastante com o florescimento religioso além das
edificações, foi o incentivo às artes literárias e difusão das ciências. O rei
impulsionou traduções de diversas obras para o eslavo eclesiástico, bem como
a criação de novas por parte dos padres kyivanos.
E como a igreja seguia o rito bizantino, conhecido também como rito oriental,
pertencia ao patriarcado de Constantinopla. E devido a uma certa autonomia
que possuía, constituindo uma igreja particular, nas palavras de Szewciw
[1988], transformou-se numa espécie de igreja nacional, tendo o metropolita de
Kyiv direitos e privilégios de um arcebispo maior.
Yaroslav, fez tudo que estava ao seu alcance como rei para o cristianismo na
Rus; ao todo, construiu aproximadamente quatrocentas igrejas [SUBTELNY,
2009]. Morreu em fevereiro de 1054 acreditando que a religião ganharia mais
notoriedade a cada governante que ascendesse ao trono. Meses mais tarde,
mas no mesmo ano, o cristianismo se opôs em dois através do Grande Cisma
do Oriente.
Se a maior conquista de Volodymyr, o Grande é ter cristianizado seu vasto
império, segundo Subtelny [2009]; o próprio escritor Ilarion no período,
descreveu que foi seu filho – Yaroslav, o Sábio – o imperador imbuído de
“realizar o irrealizável” quando se tratava da religião [SEVCENKO, 1984].
Para Sevcenko [1984], não é de se admirar que a Rus de Kyiv, em seus
primórdios, tenha sido uma grande extensão do Império Bizantino. Até porque,
segundo os ensinamentos da própria igreja, o monarca tinha o direito de
governar, encontrando para sua legitimação um poder centralizado, ideológico
e religioso, que antes não dispunha [SUBTELNY, 2009].
A escolha dessa religião alinhou a Rus de Kyiv com o Ocidente cristão e não
com o Oriente islâmico. Depois de 1054, o Estado Kyivano ficaria do lado do
cristianismo de Bizâncio em oposição ao catolicismo de Roma [SUBTELNY,
2009], marcando para sempre os ucranianos em todos os sentidos políticos,
sociais e culturais.
Considerações
A Rus de Kyiv até o século IX adotava uma religião predominantemente pagã e
converteu-se ao cristianismo gradativamente entre o X e o XI. Essa
transformação não veio como o resultado de uma ação missionária estrangeira
em seu solo, mas como desejo do próprio governante, pautado em motivos
religiosos e políticos.
O legado bizantino no Estado Kyivano e na atual Ucrânia extrapolam o período
em questão e chegam até a contemporaneidade em diferentes formatos que
não alcançam apenas a religião. Entretanto, é nesse campo que melhor pode
se notar a herança – seja na proibição das estátuas ou de música instrumental,
ou com a iconóstase que mantêm os ícones dos santos e separa o sagrado do
profano dentro das igrejas do rito oriental.
112
Referências
Talita Seniuk é licenciada em História pela Universidade Estadual de Ponta
Grossa, em Ciências Sociais pela Universidade Metodista de São Paulo e em
Filosofia pela Universidade Metropolitana de Santos; pós-graduada em
Metodologia do Ensino de História e Geografia pelo Centro Universitário de
Maringá e em Ensino de Sociologia pela Universidade Cândido Mendes.
Coautora do livro As Ucrânias do Brasil: 130 anos de cultura e tradição
ucraniana pela Editora Máquina de Escrever. Atualmente é Professora de
História efetiva na Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso e
colunista do Jornal Ucraniano Pracia - Праця.
BURKO, Valdomiro. A Imigração Ucraniana no Brasil. Curitiba: [s. n.], 1963.
SEVCENKO, Ihor. Byzantine Roots of Ukrainian Christianity 988 - 1988.
Cambridge: Harvard University, 1984.
SUBTELNY, Orest. Ukraine: a history. Toronto: University of Toronto Press,
2009.
SZEWCIW, Ivan. O milênio do cristianismo na Ucrânia. Curitiba: Vicentina,
1988.
YEKELCHYK, Serhy. Ukraine: Birth of a Modern Nation. New York: Oxford
University Press, 2007. [Livro]
UNESCO. Kyiv: Saint-Sophia Cathedral and Related Monastic Buildings, KyivPechersk Lavra, 2024. Disponível em: https://whc.unesco.org/en/list/527/
113
EXORCISMO E IDEALIZAÇÃO NA ÍNDIA MÉDIA: A
RELIGIOSIDADE POROSA NA ETIÓPIA E O ATRITO
LUSITANO NA PRIMEIRA MODERNIDADE
Wallace de Oliveira Machado
Introdução
O trabalho em questão analisa o livro “Oh Preste João das Índias”, escrito pelo
padre secular Francisco Álvares durante a empreitada na Etiópia, pensada
como as Índias do Preste João, entre os anos de 1520 e 1526, sendo impresso
em 1540. Observando-se o principal atrito, aos olhos lusitanos: a religiosidade.
Para a análise da obra, utilizarei o método de Análise de Conteúdo de
Laurence Bardin, isolando do texto as unidades de conteúdo mais importantes
para a análise, como, por exemplo, a noção de gente/cristão/etíope e em quais
contextos as aparições foram mais recorrentes na obra.
A visão dos europeus, e em específico dos portugueses, nos séculos XIV e XV,
era dotada de generalizações, pois as noções que não conheciam cabiam
apenas ao papel de imaginá-las. O melhor exemplo que podemos utilizar é a
própria noção de Índias, que cobre um vasto território da África Oriental até a
região de Coromandel. A ideia sobre as Índias seria a terra que guardaria o
exotismo, que habitaria no Oriente pela perspectiva ocidental, aquilo que
Edward Said afirmou ser uma espécie de tradução ocidental. O conceito de
Etiópia seguia pelo mesmo viés, sendo também uma generalização existente
desde a Antiguidade para determinar toda a região da África. O termo etíope,
em sua etimologia grega, significa “caras queimadas”, uma franca distinção da
África Negra pelos gregos, pela incidência de luz solar, próximo ao que eles
entendiam como uma zona tórrida.
A região da Índia Média
Aquilo que chamamos hoje de Etiópia foi categorizado pelos jesuítas em
Etiópia Alta, separando-a das regiões do Congo, Angola, Monomotapa e
Moçambique, todas denominadas como partes da Etiópia na Idade Média
114
(CARAMAN, 2001, p. 1339). O reino da Etiópia teria sido originado da cidade
de Axum, formada por um intenso ciclo de migrações de povos semíticos do sul
da Península Arábica, como os sabeus, do atual Iémen. Esses povos estariam
migrando para a região ainda no século VII a.C., seguindo um ritmo mercantil
com os povos “abissínios” de origem cuxita (SILVA, 2006, p. 184).
Partindo para um período posterior, a Etiópia adotaria o cristianismo como
religião oficial ainda no século IV, graças à influência de S. Frumêncio. Vendido
como escravo e comprado pelo Negus, rei de Axum, ele teve grande
importância como administrador e professor do jovem príncipe Ezana
(MEKOURIA, 2010, p. 427–430). A lenda afirmava que Frumêncio fez um
processo proselitista naquelas terras e teria convertido a família real, incluindo
o jovem Negus. Ezana, ao subir ao trono, deu liberdade a Frumêncio, que
partiu para Alexandria a fim de conquistar um bispo e formar um clero na região
de Axum e seus reinos tributários. Atanásio de Alexandria, patriarca copta,
escolheu o próprio Frumêncio para essa função. Esse evento teria criado uma
tradição ritualística: todos os bispos da Etiópia seriam investidos pelos
patriarcas de Alexandria. Isso fez com que a Etiópia se comunicasse para além
do seu contexto local, dialogando com a cristandade mediterrânica, como, por
exemplo, o Império Bizantino.
O cristianismo foi adotado na região da Etiópia no século IV, em concomitância
com elementos religiosos vindos da região do Iémen, assim como elementos
da terra de origem cuxita e amárica (SILVA, 2006, p. 200–201). Deve-se
ressaltar que a região já conhecia o monoteísmo, graças à presença de judeus
que fugiram da região de Jerusalém por causa da segunda destruição do
templo, no ano 70. Diversos elementos religiosos permearam a Etiópia, graças
à sua circulação constante pelo Mar Vermelho. No século VI, com o domínio
sassânida na região da Pérsia e sua expansão para a Península Arábica e,
posteriormente, no século X, o domínio fatímida na região do Egito, houve um
isolamento da Etiópia de seus aliados cristãos. Isso gerou, por sua vez, um
intenso contato entre cristãos e muçulmanos, além de outros grupos, na região
da Etiópia (SILVA, 2006, p. 297; TAMRAT, 2010, p. 489).
Chamo de "porosidade religiosa" essa relação do cristianismo etíope, pela sua
complexidade. Os etíopes adotaram o cristianismo e, graças às relações de
proximidade com outros grupos, em contato constante, acabaram adotando
outros elementos ou se adaptando. Era comum o cristão etíope casar-se com
mais de uma mulher, além de ter várias concubinas, assim como dar o divórcio.
Outro elemento comum seria a manutenção da dieta kasher e dos rituais de
circuncisão e prática do Shabat, à moda judaica. As tradições semitas e o culto
judaico, presente no Pentateuco, foram adaptados pelos etíopes em um forte
movimento de religiosidade porosa. Uma das casas reais mais importantes foi
a dos salomônicos, que reivindicavam ser o verdadeiro povo de Israel, pois os
monarcas de Axum seriam da linhagem de Menelik, filho de Makeda, a rainha
de Sabá, com Salomão. Seria na Etiópia que estaria guardada a Arca da
Aliança, roubada pelos séquitos de Menelik, e por isso o reino mudou de nome
para Sião, no século XIV.
115
O sonho lusitano da cristandade oriental
Essa explicação serve para nos situarmos contextualmente naquilo que os
portugueses não conheciam e, por não conhecer, imaginavam à sua maneira.
O Oriente sempre esteve no repertório ocidental como o lugar fantástico e de
possibilidades, contendo inúmeros personagens. As campanhas militares
ocidentais rumo ao Oriente foram uma grande fonte de alimentação para essa
literatura de viagem. Pode-se dizer que as cruzadas foram um desses eventos
que aguçaram a curiosidade e as repetições das imagens sobre esse Oriente e
seus mitos. Durante a segunda cruzada, as cartas de um rei cristão nestoriano
teriam sido enviadas para o Imperador Bizantino e para o Papa. Essas cartas
foram difundidas pela Europa por Otto, bispo de Freising (RAMOS, 1997, p.
42).
Nelas, eram narradas as histórias de um rei cristão no Oriente que auxiliaria na
guerra contra os infiéis. A devoção do rei era tão grande que toda a sua corte
era composta por nobres que possuíam funções clericais, e o rei, dentre os
demais nobres, assumiu a postura de humildade e servidão, escolhendo para si
o título de Presbítero. O Preste João seria o ícone entre os reis cristãos, pois
sua terra no Oriente resguardaria as benesses que não existiriam no Ocidente,
jorrando do seu solo leite e mel e caindo maná dos céus. Elas estariam nas
cercanias do paraíso e, dessa forma, o Preste João usava como símbolo a cruz
à sua frente, como signo da vitória.
O Preste João foi idealizado no contexto das cruzadas, sendo um dos
personagens mais recorrentes nas narrativas de viagem. Marco Polo, no século
XIII, narrou o reino do Preste João enquanto fazia sua viagem até a China,
situando o reino mitológico na região tártara, perto dos domínios dos Khans
mongóis (POLO, 1997). Já no livro "As Viagens de Mandeville", escrito no
século XIV, o Preste João seria um monarca que estaria na região das Índias,
nas ilhas para além das terras de Jerusalém, rumo ao Oriente (MANDEVILLE,
2007).
Em todas as referências, há elementos que destoam uns dos outros; porém, a
base se mantém a mesma. Alguns elementos são tácitos para explicar esse
reino que peregrina pelo Oriente: primeiro, a religiosidade; o cristianismo, em
todas as narrativas, é assegurado como nestoriano; segundo, a riqueza, natural
e econômica; a terra do Preste João abundaria em todas as coisas, cuja
população jamais teria necessidade, sendo provida por fontes maravilhosas,
naturalmente ou sobrenaturalmente; e, por último, há o elemento cruzadístico:
o rei cristão teria um enorme exército capaz de fazer frente aos potentados
infiéis que cercam os cristãos, abrindo uma nova frente de combate pela
retaguarda.
Ao longo do tempo, vários estados europeus buscaram no Oriente esse rei
cristão. Neste ponto, a história da Etiópia convergiu com a história do
mitológico rei Preste João. Vários etíopes, em peregrinação para Jerusalém,
em livre trânsito pelo território muçulmano, encontravam cristãos ocidentais
116
ainda no século XIV. O movimento de cristãos ocidentais rumo à região do
Chifre da África se via mais dificultado pelos embargos muçulmanos, que
temiam esse contato. Ao longo do século XIV, a imagem do Negus e a do
Preste João foram paulatinamente conjugadas, até situarem as Índias do
Preste João na região do Chifre da África (RAMOS, 1999, p. 240).
Portugal, assim como outros estados europeus, buscava o contato com o
mitológico rei desde suas empreitadas na costa atlântica da África, tendo como
objetivo navegar os rios acima e encontrar a nascente do Nilo, que estaria
próxima ao paraíso, que, por sua vez, seria próximo das Índias do Preste João
(BOXER, 1969, p. 43; 54). Na empresa de Bartolomeu Dias, em 1488, que
superou o Cabo das Tormentas, o navegante carregava consigo uma carta ao
Preste João das Índias. Em paralelo, o rei D. João II enviou Pêro de Covilhã e
Afonso Paiva, em 1487, em uma empresa mediterrânica para alcançar as
terras do Preste João. Afonso Paiva morreu em sua empreitada e Pêro de
Covilhã sumiu, tendo seu último paradeiro na região do Cairo. Para os
portugueses, em um franco processo de expansão para as Índias, um aliado no
Oriente seria importantíssimo para garantir a hegemonia cristã no Mar
Vermelho e asfixiar as rotas islâmicas.
O exorcismo dos sonhos
A embaixada portuguesa nas terras do Preste ocorreu em 1515, com a
chegada de um mercador armênio, Mateus, nos domínios de Portugal em Goa,
ainda em 1512. Ele seria transportado para Lisboa a fim de enviar as
mensagens que trazia do Negus, com o objetivo de estreitar os laços entre os
portugueses e o rei cristão no Oriente contra o avanço islâmico na região.
A empreitada diplomática teria sido encabeçada por D. Duarte Galvão, membro
da corte de D. Manuel e grande adepto desse contato com o cristianismo
oriental na defesa de um posicionamento cruzadístico contra o Islã. Essa
empresa em Portugal sofreu resistências do 3º governador-geral das Índias,
Lopo Soares de Albergaria, que defendia um contato comercial mais a Oriente
do que um contato diplomático com cristãos orientais e uma empresa militar
contra os islâmicos. Esses entraves na região das Índias fizeram com que a
embaixada não progredisse nos anos subsequentes; uma das tentativas levou
à morte de D. Duarte Galvão, em 1517 (ALVARES, 1540, p. 1).
Apenas com o novo governador, Diogo Lopes de Siqueira, a embaixada,
capitaneada por D. Rodrigo de Lima, conseguiu êxito em entrar no território,
apenas em 1520. Com a embaixada nas terras etíopes, pensadas como as
Índias do Preste João, os portugueses tiveram um choque frente ao seu
exercício de idealização. Nas palavras do embaixador, os portugueses estavam
naquelas partes para ligar cristãos com cristãos e não com finalidade mercantil.
Porém, aquilo que foi visto na Etiópia rompeu com esses objetivos.
117
Na Etiópia, os portugueses tiveram de lidar com uma realidade que fugia da
idealização das Índias do Preste João. Os contextos mais comuns para a
classificação dos etíopes eram a aparência, ressaltando a negritude dos nobres
da terra, além da falta de capacidade técnica, seja pelas obras arquitetônicas,
seja pelo domínio da natureza. Outro elemento criticado, na visão dos
portugueses, foi a natureza das terras etíopes, marcada pela miséria e pelos
perigos, naturais e humanos. Isso rompeu ainda mais com a visão das riquezas
existentes nesse Oriente idealizado.
O elemento mais importante que ocasionou atrito entre etíopes e portugueses
foi a religiosidade. Utilizando o método de Análise de Conteúdo de Laurence
Bardin, segregaram-se as unidades de conteúdo etíope/etíope-cristão/gente,
suprindo suas repetições desnecessárias e em quais contextos eles foram
apresentados. O maior contexto foi a religiosidade, com vinte aparições,
marcando 37% de todos os contextos específicos envolvendo os etíopes. Essa
relação numérica nos dá o indicativo tácito da busca dos portugueses: a
religião, e como eles a usaram como elemento categórico da idealização.
Porém, encontraram uma religiosidade imbricada de inúmeros elementos, em
específico o judaísmo. O padre Álvares, capelão da embaixada e responsável
por imortalizar as passagens naquilo que virou o livro “Oh Preste João das
Índias”, afirmou que, naquelas terras, eles judaizavam (ALVARES, 1540, p. 11).
Obviamente, a religiosidade etíope não foi bem vista aos olhos dos
portugueses, tendo em vista que esses, em Portugal, estavam articulando o
surgimento de uma instituição que caçaria os criptos-judeus no início do século
XVI (MARCOCCI; PAIVA, 2013). Os etíopes possuíam uma miscelânea
contraditória em seu interior: havia uma religiosidade oficial copta, com um
bispo escolhido por Alexandria; uma religiosidade popular, defendida pelos
mosteiros, que tinha uma forte presença judaica; uma presença sólida e
considerável de islâmicos, dentro e fora do reino; além de um monarca que
oscilava de um lado para o outro no poder, se aproximando de determinados
grupos e se distanciando de outros, por necessidade.
O principal requisito para a quebra da idealização seria a religião dos etíopes,
pois não se encontrou aquilo que almejava. A partir desse contato, precisou ser
reconfigurada essa visão, cuja idealização deu lugar à objetivação, sendo
caracterizados como hereges. Isso mudou a postura portuguesa frente à
Etiópia Alta. Essa relação torna-se interessante quando observada à luz das
relações americanas. Segundo John Elliott, a América fez um impacto
embotado na Europa, pois os viajantes europeus, frente à novidade, em um
processo de assimilação, usaram os seus sonhos para compreender as
relações existentes. Desta forma, os viajantes europeus não viram o ameríndio
de fato, e, sim, a idealização sonhada. Porém, ao longo do contato, essa
relação teria esmorecido e a visão objetiva ultrapassaria o contato idealizado
(ELLIOTT, 1972, p. 30–40).
Partindo dessa premissa, na perspectiva reversa, a África já contava no
arcabouço imaginário e cultural do homem português desde o período
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medieval, graças ao intenso contato na Península. A empreitada lusitana no
Atlântico foi comparada a um exorcismo por Sérgio Buarque de Holanda, pois
empurrou para além da esfera empírica as relações idealizadas no momento
em que avançava (HOLANDA, 2010, p. 48). Não haveria com a África esse
impacto embotado, pois ela não era uma novidade e, por meio das
interpretações portuguesas, os etíopes foram levados para o campo da
heresia. O contato dos portugueses com os etíopes fez com que eles usassem
a comparação (HARTOG, 1999, p. 240–244) para compreender a situação
religiosa, tão idealizada, o que resultou na identificação como um “cristianismojudaizante”, algo muito próximo do que se afirmava existir em Portugal.
A embaixada, com muito custo, saiu das terras etíopes em 1526 e levou para
Portugal as novas sobre as Índias do Preste João. Com o novo rei, D. João III,
a coroa portuguesa mudou a postura em relação aos etíopes, de uma
diplomacia cristã para um processo catequético. Nas palavras do próprio
monarca ao Papa, em 1532, sobre a Etiópia: “era preciso debater a forma de
emendar a religião daquela gente” (CORPO DIPLOMÁTICO PORTUGUÊS,
1865, p. 350). Na década de 40 do século XVI, o monarca negociaria a
presença dos jesuítas na região como uma esfera de influência portuguesa,
que se misturariam na região e atuariam de dentro para fora no processo de
correção do cristianismo infecto.
Conclusão
Os portugueses, que na prática também possuíam um hibridismo, o cavaleiromercador, viam na religiosidade um ponto crucial. A intensa circulação religiosa
na região da Etiópia, criando o evento da porosidade pelas relações de troca,
foi assumida pelos portugueses como um empecilho para a idealização. Podese concluir que a estrutura idealizada deve ser considerada como um dos
elementos basilares para a imagem do etíope, tendo em vista que a sua não
correspondência criou uma imagem adversa à esperada e obrigou os
portugueses a repensarem sua empreitada na região, adaptando-se à
diversidade.
Referências
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