Do direito de família
Euclides de Oliveira
Juiz aposentado do Segundo Tribunal de Alçada Civil de São Paulo. Prof. de Direito
Civil do Complexo Judiciário Damásio de Jesus. Advogado em São Paulo
Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka
Doutora em Direito pela Faculdade de Direito da USP. Profª do Departamento de
Direito Civil da USP. Procuradora Federal aposentada
O novo Código Civil brasileiro1, recentemente aprovado na
Câmara dos Deputados, teve sua gênese traçada pelo Projeto de Código Civil elaborado pela Comissão presidida pelo Professor Miguel Reale - submetido à
consideração do Ministro de Estado da Justiça em 16 de janeiro de 1975.
Decorridos 26 anos deste memorável dia, o Brasil passa a ter,
agora, o texto aprovado da lei que, depois de sancionada e publicada, passará a
ser o segundo Código Civil desta ainda jovem nação.
O Código Civil em vigor2, promulgado em 1916 e vigente a partir
de 1917, fruto da inteligência incontestável de Clóvis Bevilaqua, pedia reforma,
posto ser um corpo legislativo elaborado nos estertores do século XIX e
promulgado no início do século passado, gigante e bem construído para o seu
tempo, mas em franco compasso de desatualização, em tantos dos seus
segmentos.
A sociedade brasileira e a comunidade dos juristas, por um lado,
reverenciavam a majestade inconteste de seu primeiro Código, razão de justo
orgulho para os brasileiros, mas, por outro lado, pressentiam que a vida dos
homens na sociedade contemporânea encontrava-se - em tantos vieses - em
desconformidade com a Lei Civil que tinha por escopo fundamental exatamente a
regulação destes fatos e das relações da vida privada.
A reforma se impunha, tendo em vista o significativo aumento,
entre nós, de normas dispersas, margeantes e até mesmo conflitantes, que foram
se acumulando na tentativa de adaptar, ou de afeiçoar, o direito legislado às
gigantescas transformações operadas na estrutura da sociedade brasileira. Nem
sempre, contudo, este método de revisão e de adaptação legislativa foi seguro e
prosperou eficientemente, tendo em vista, especialmente, o fato de que o Código
vigente houvera sido elaborado para um país diferente, para um povo de costumes
distintos, em diversa época e em face de outros anseios e de outros valores.
Não se tratava, contudo, de simplesmente fazer com que se
desintegrasse um monumento legislativo de altíssima qualidade, como o é o Código
Civil. Mas tratava-se - como sempre repetido pelo Professor Miguel Reale - de
buscar aproveitar, na maior amplitude possível, o seu arcabouço, dando-lhe as
cores e imprimindo-lhe os traços consentâneos com a realidade deste momento
histórico vivenciado pela sociedade brasileira, já nos albores do século XXI.
Conservar o possível; inovar, sempre que necessário.
Esta foi a intenção primordial da Comissão de juristas que teve a
seu cargo a construção do Código novo, inspirados, os seus ilustres membros,3 na
previsão do próprio legislador de cem anos antes, Clóvis Bevilaqua: "Mas por isso
mesmo que o Direito evolui, o legislador tem necessidade de harmonizar os dois
princípios divergentes (o que se amarra ao passado e o que propende para o
futuro), para acomodar a lei e as novas formas de relações e para assumir
discretamente a atitude de educador de sua nação, guiando cautelosamente a
evolução que se acusa no horizonte."4
Nestes moldes reescrita, a nova Lei Civil brasileira expande-se
em cinco Livros especiais, além de uma Parte Geral - que afortunadamente se
conserva -, sendo que o Livro IV encerra o Direito de Família dividido em dois
Títulos, um referente ao direito pessoal e outro, ao direito patrimonial. Compô-lo
assim - e correndo o risco de quebra desastrosa da sistemática mais afeita ao
dogma - foi decisão de Clóvis do Couto e Silva, consagrado jurista gaúcho e
membro da Comissão de 1975, encarregado da organização e elaboração do
Direito de Família.
O novo Código Civil brasileiro, portanto, no Livro dedicado ao
Direito de Família, mostra uma sensível e necessária evolução em relação ao que
dispõe o atual Código.
Contempla o novo ordenamento uma série de reformas pelas
quais passou a instituição familiar, no curso do século XX, desde que editado o
Código de 1916, o qual apresentava, originalmente, uma estreita e discriminatória
visão do ente familiar, limitando-o ao grupo originário do casamento, impedindo sua
dissolução, distinguindo seus membros e apondo qualificações desabonatórias às
pessoas unidas sem casamento e aos filhos havidos dessa relação.
A evolução se deu em etapas, com leis diversas, especialmente
a partir da década de 60, alterando para melhor a figura e a posição da
mulher casada (Lei n. 4.121/62) e instituindo o divórcio (Emenda
Constitucional n. 9/77 e Lei n. 6.515/77) como instrumento para regularização da
situação jurídica dos descasados, cujas subseqüentes uniões concubinárias eram
consideradas à margem da lei.
Mas a principal mudança, que se pode dizer revolucionária, veio
com a Constituição Federal de 1988, alargando o conceito de família e passando a
proteger de forma igualitária todos os seus membros, sejam os partícipes dessa
união como também os seus descendentes. Seus pontos essenciais constam do
artigo 226 e seus incisos, assim resumidos: a) proteção à família constituída: a)
pelo casamento civil, b) pelo casamento religioso com efeitos civis, c) pela união
estável entre o homem e a mulher e d) pela comunidade formada por qualquer dos
pais e seus descendentes; b) ampliação das formas de dissolução do casamento,
ao estabelecer facilidades para o divórcio; c) proclamação da plena igualdade de
direitos e deveres do homem e da mulher na vivência conjugal; d) consagração da
igualdade dos filhos, havidos ou não do casamento, ou por adoção, garantindo-lhes
os mesmos direitos e qualificações.
Esses foram os pontos basilares das profundas modificações
ditadas pela Carta vigente, na conceituação e na proteção jurídica da família,
motivando a edição de novos diplomas legais e a conseqüente derrogação de
inúmeras disposições do Código Civil em vigor, tidas como não recepcionadas.
O Projeto de Código Civil havia sido produzido sob as matrizes
do pensamento jurídico dos inaugurais anos da segunda metade do século XX,
razão pela qual foi fortemente afrontado pelos ditames da nova ordem social que já
se redesenhava desde a promulgação da Lei do Divórcio, em 1977.
Fazia-se mister, a par das alterações legais já implantadas, uma
renovação ainda mais profunda de toda a normatização relativa ao vasto manancial
das relações familiares.
A imperativa construção constitucional de 1988, com suas
substanciais renovações acerca das relações de família, encontrou um Projeto de
Código Civil já aprovado pela Câmara dos Deputados em 1987 e readaptado à
nova visão pelas expressivas emendas oferecidas pelo
Senador Nelson Carneiro. A consagração da igualdade entre
cônjuges, da igualdade entre filhos, qualquer que fosse a sua origem, e o
reconhecimento da união estável como entidade familiar, acolhidos, em sua
expressão, pelo Senado Federal, tiveram o condão de realinhar o Projeto com a
ordem constitucional imposta, mas não mais que isso. Fez o mínimo e não poderia
mesmo deixar de fazê-lo, por ser de orientação legal hierárquica inferior; mas não
deu o passo mais ousado, nem mesmo em direção aos temas constitucionalmente
consagrados: operar a subsunção, à moldura da norma civil, de construções
familiares existentes desde sempre, embora completamente ignoradas pelo
legislador infraconstitucional, ou seja, a família monoparental, a comunidade
formada por qualquer dos pais e seus descendentes (art. 226, § 4°, da Constituição
Federal).
Seja a união legalizada pelo casamento ou aquela sedimentada
por duradouro tempo de convivência (união estável), e bem assim a comunidade
formada por qualquer dos pais e seus descendentes (família monoparental), haverá
de merecer proteção do Estado como núcleo familiar, assim entendido o
agrupamento de pessoas envolvidas por laços de sangue, vínculos afetivos e
comunhão de interesses.5
Adveio o novo Código Civil, com ampla e atualizada
regulamentação dos aspectos essenciais do Direito de Família à luz dos princípios
e normas constitucionais - é bem verdade -, procurando adaptar-se à evolução
social e dos costumes, observada com maior ênfase nos anos que circundaram a
passagem do milênio, e também incorporando as mudanças legislativas
sobrevindas no período.
A matéria foi, então, cuidada de forma abrangente no novo
Código Civil, introduzindo muitas das alterações que se faziam necessárias. Incluiu
disposições normativas constantes de leis especiais (tais como separação e
divórcio, união estável e reconhecimento de filhos havidos fora do casamento,
dentre outras), embora sem chegar a determinados pontos tidos ainda como
polêmicos e pendentes da devida
maturação na evolução científica, especialmente aqueles
relacionados ao campo da filiação por reprodução assistida.6
Hoje, o arcabouço do Direito de Família no novo Código Civil
conta, no total - desde o artigo 1.511 até o artigo 1.783 - com 273 artigos que
regulam as relações familiares, em suas diversas vertentes.7 Foi neste Livro que a
Comissão mais esteve distanciada de seu original empenho de preservar a
estrutura do Código de 1916, tendo em vista, primeiramente, a decisão de dividir a
normativa em dois distintos planos relacionais: o plano pessoal e o plano
patrimonial. Mas teve em vista também, como não podia deixar de ser, a
surpreendente alteração do fenômeno social da família, nas dobras do século XX.
O Direito de Família, por dizer respeito, invariavelmente, a todos
os cidadãos, revela-se como o recorte da vida privada que mais se presta às
expectativas de mote vário, bem como à crítica de toda a sorte, derivada de leituras
distintas de um mesmo tema, variando a sua valoração de acordo com o sentir
muito pessoal e individualizado de cada um. Por isso mesmo, conforme atesta
Miguel Reale, em alguns de seus escritos em torno do Projeto, o Direito de Família,
especialmente, foi alvo de variada e diversa gama de considerações, comentários,
sugestões, críticas e emendas. E nem poderia ter sido diferente.
O que se regulamentou em 1975 - já se disse - se encontrava
em completo descompasso com a realidade dos fatos e mesmo com o novo
sistema constitucional, promulgado mais de uma década depois. Ora, é inegável o
potencial de mutabilidade que se contém nas relações sociais de natureza familiar.
O que parece ser o melhor modelo num determinado tempo já não ocupa o mesmo
privilegiado lugar logo depois, em tempo ainda próximo. Apenas uma coisa é certa
e parece não mudar jamais: as pessoas não abandonam a preferência pela vida em
família, seja de que molde ou tipo se constitua seu núcleo familiar.
Há, sim, uma imortalização na idéia de família.8 Mudam os
costumes, mudam os homens, muda a história; só parece não mudar esta verdade:
"a atávica necessidade que cada um de nós sente de saber que, em algum lugar,
encontra-se o seu porto e o seu refúgio, vale dizer, o seio de sua família, este locus
que se renova sempre como ponto de referência central do indivíduo na sociedade;
uma espécie de aspiração à solidariedade e à segurança que dificilmente pode ser
substituída por qualquer outra forma de convivência social".9 Na idéia de família, o
que mais importa - a cada um de seus membros, e a todos a um só tempo - é
exatamente pertencer ao seu âmago, é estar naquele idealizado lugar onde é
possível integrar sentimentos, esperanças e valores, permitindo, a cada um, se
sentir a caminho da realização de seu projeto pessoal de felicidade.
Os seres humanos mudam e mudam os seus anseios, suas
necessidades e seus ideais, em que pese a constância valorativa da
imprescindibilidade da família enquanto ninho. A maneira de organizá-lo e de fazêlo prosperar, contudo, se altera significativamente em eras e culturas não muito
distantes uma da outra. Ora, sob o vigor e a rigidez do direito codificado, esse
fenômeno pode se revelar engessado, por ser estreita demais a norma para tão
expansível realidade.
E foi esta visão e este temor que acarretaram, em tempos
últimos, um certo desprestígio das codificações, mormente da normativa
aprisionadora de fatos e de relações que não suportam o encarceramento, pois que
se formatam a partir de fenômenos infinitamente humanos, como o amor, o afeto, a
solidariedade.
Por isso, muitas vozes se levantaram a favor de uma
descentralização normativa, conservando-se, nuclearmente, na sede mesma do
Código, aquela estrutura quase imutável, constituída por um amálgama de
princípios, valores e conceitos fundamentais que tendem à preservação, e, à volta
deste núcleo aglutinador - como se fossem microssistemas -, construir-se-ia a
regulação desta fenomenologia factual da vida privada tão sujeita a alterações,
mudanças, revisões.
Este foi o movimento de descodificação do Direito Civil,
conforme descrito por Orlando Gomes, que entendeu que "a substituição global de
um Código Civil é, atualmente, um anacronismo."10
No entanto, a Comissão Revisora e Elaboradora do Código Civil,
aliando-se à posição contrária dos que ainda defendem leis codificadas, preferiu como se sabe - manter a unidade do Código, não admitindo a separação, em
sistema independente, das normas que viessem, então, de regular as relações de
natureza familiar.
(in, Direito de Família e o Novo Código Civil, Coordenadores:
Maria Berenice Dias e Rodrigo da Cunha Pereira, Belo Horizonte: Ed. Del Rey,
2001, págs. 1/8)
1
Projeto de Lei Original nº 634/75, depois Projeto de Lei nº 118 do Senado Federal, com texto
proposto e consolidado pela Comissão Especial da Câmara, nos termos da Res. nº 01 de 2000 do
Congresso Nacional, aprovado em última votação, estando em fase de revisão da redação final para
subseqüente sanção e publicação, prevendo-se vacatio legis de dois anos.
2
Lei n. 3.071, de 1° de janeiro de 1916, em vigor desde 1° de janeiro de 1917.
3
Supervisionada por Miguel Reale, a Comissão Revisora e Elaboradora do Código Civil (1975) foi
composta pelos seguintes juristas: José Carlos Moreira Alves (Parte Geral), Agostinho de Arruda
Alvim (Direito das Obrigações), Sylvio Marcondes (Atividade Negocial), Ebert Vianna Chamoun
(Direito das Coisas), Clóvis do Couto e Silva (Direito de Família) e Torquato Castro (Direito das
Sucessões).
4
Cf. REALE, Miguel. Lacunas e arcaísmos do Código Civil vigente. O projeto do novo Código Civil.
2. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 28.
5
OLIVEIRA, Euclides de; AMORIM, Sebastião. Separação e divórcio. 6. ed. São Paulo: Leud, 2001,
capítulo I: Família com e sem casamento, p. 17-66; ainda OLIVEIRA, Euclides de. Igualdade no
casamento e na filiação. Revista do Advogado - Direito de Família, São Paulo, AASP, n. 58, p. 34,
mar. 2000.
6
Na verdade, o que se dá com todo esse evolver legislativo é o indispensável acompanhamento
(que nem sempre ocorre a passo certo) das profundas modificações sociais e científicas que se
observam no mundo da composição familiar, atingindo especialmente as novas formas de filiação,
que exigem uma análise da bioética no campo do Direito. Basta lembrar os novos modos de
reprodução assistida, pela fertilização in vitro e inseminação artificial, sem falar na mais complexa
situação da possível e aventada clonagem de seres humanos. A esse respeito, no entanto, cumpre
registrar que o novo Código Civil não se manteve de todo omisso. Ao enumerar os casos de
presunção da concepção na constância do casamento, seu artigo 1.597 inclui, nos incisos III a V, os
filhos "havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido", "havidos, a
qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial
homóloga" e os "havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha havido prévia
autorização do marido".
7
Compõe-se, o novo Código, por disposições relativas à vertente matrimonial, à vertente não-
matrimonial, à vertente parental e, ainda, à vertente assistencial, pela inserção dos institutos da
tutela e da curatela.
8
HIRONAKA, Giselda M. F. N. Família e casamento em evolução. Direito civil: estudos. Belo
Horizonte: Del Rey, 2000.
9
TEPEDINO, Gustavo. Novas formas de entidades familiares: efeitos do casamento e da família não
fundada no matrimônio. Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 326.
10
GOMES, Orlando. O problema da codificação. Ensaios de direito civil e de direito do trabalho. Rio de
Janeiro: Aide, 1986.