FRAGMENTOS CHINESES NO SETECENTOS MINEIRO1
INTRODUÇÃO – POSICIONAR O OLHAR
...quanto não se desvelara para que as funções sagradas se fizessem com aquela pompa, e
magnificência, que pedem o lugar vasto, e a grandeza de um Deus a quem se oferecem os
sacrifícios? Quanto não se empenhou sempre para que sua Igreja, esta esposa, que lhe tenha
sido destinada pelo mesmo Deus, aparecesse rica, e formosa aos olhos do Céu e também do
mundo? Ele a contemplou como a nova Jerusalém, que vira São João descer do céu, ornada
da mais brilhante variedade, luminosos tesouros se empregam na sua edificação, e no seu
ornato. (...) Paredes, tetos, pavimentos deste sagrado edifício, vós o diríeis se fosseis
perguntados...
Trecho do Elogio Fúnebre ao Vigário Lourenço José de Queiroz Coimbra, escrito pelo
Cônego Luiz Vieira da Silva em 17842
Dissertação de Mestrado defendida em 2012 na Universidade Federal de Minas Gerais, com orientação da professora Dra.
Adriana Romeiro e coorientação do professor Dr. João Adolfo Hansen.
2 Cônego Luiz Vieira da Silva. “Elogio fúnebre do Revmo. Dr. Lourenço José de Queiros Coimbra e Vasconcelos” in:
Revista Barroco, Belo Horizonte, 1973, v. 5. p.17.
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1 INTRODUÇÃO - De como posicionar o olhar
O elogio fúnebre em homenagem ao vigário português Lourenço José de Queiroz Coimbra
(1711-1784) – que havia servido na Comarca de Sabará e no Bispado de Mariana (Capitania
das Minas Gerais) desde 1734 – exalta sua dedicação à paróquia. De par com suas funções de
regulador e executor das ordenações tridentinas 3 , foi destacado, na peça oratória, seu
empreendimento na ornamentação da Matriz da Vila Real de Nossa Senhora da Conceição de
Sabará com a “mais brilhante variedade”. O vigário exercera “com desvelo” duas atribuições
que podem ser consideradas complementares: a regulamentação dos costumes visando à
consolidação da paróquia (inclusive através de inúmeros processos e devassas 4 ), e a
ornamentação da Matriz de sua Vila com a variedade de luminosos tesouros advindos de todo
o Império lusitano. Duas atribuições, mas com uma só meta: a “pacificação” das almas. O termo
tem sentido retórico (e histórico) determinado: a palavra “pacificação”, no contexto da
expansão ultramarina ibérica, foi utilizado como correlata da palavra “conquista”5. Tal qual as
expressões “quietação dos povos” ou “tranquilidade da alma” – comuns na documentação coeva
- a paz deveria ser
obtida na alma das ordens, estamentos e indivíduos do reino por meio do controle dos
apetites particulares e da concórdia de cada um deles com todos os outros. A
decorrência imediata dessa doutrina [...] é a necessidade da repressão de partes
tendentes à autonomia (...)6.
A quietação dos povos constituiu-se num processo longo e não completamente realizado (ao
O Concilio de Trento, realizado de 1545 a 1563, sancionou uma série ampla de dogmas em função da Contra-Reforma. Os
dogmas tridentinos (tornados parte da legislação do Estado Português em 1564), mesmo que não realizados por completo nas
sociedades da conquista, foram empregados como norma de comportamentos e costumes para toda a sociedade lusobrasileira, sobretudo até meados do século XVIII. Para a ação dessas ordenações nos processos de criação artística, ver
adiante neste trabalho. Ver também BOXER, Charles R. A Igreja Militante e a Expansão Ibérica. São Paulo: Cia das Letras,
2007; PAES, Maria Paula D. Couto. A Sociedade do Corpo Místico. Belo Horizonte: Faculdade de História, UFMG, 2006
(Tese).
4 Para uma leitura da ação do vigário como clérigo visitante, ver 1734, Lourenço José de Queiroz Coimbra, Livro de
Visitação. Arquivo da Cúria Metropolitana de Belo Horizonte. Ver também RODRIGUES, Aldair Carlos. Sociedade e
inquisição em Minas Colonial: os familiares do Santo Ofício (1711-1808) (Dissertação). São Paulo: Faculdade de História da
USP, 2007. Orientação: Laura de Mello e Souza.
5 “As Ordenações sobre os descobrimentos”, por exemplo, promulgadas em 1573 por Felipe II, foi proibido “o uso da
palavra ´conquista, substituída por ´descoberta´ ou ´pacificação´”. Cf BOXER, Charles R. A Igreja Militante e a Expansão
Ibérica. São Paulo: Cia das Letras, 2007, p.92.
6 HANSEN, João Adolfo. “Ratio Studiorum e a política católica ibérica no século XVII” in VIDAL, Diana Gonçalves e
HILSDORF, Maria L. Spedo (orgs.). Brasil 500 anos: tópicas em história da educação. São Paulo: EDUSP, 2001b. pp. 32-3.
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menos nos limites temporais da América Portuguesa); um processo crivado de conflitos. A
formação de uma sociedade hierarquizada em território luso-brasileiro e a instituição da
administração fiscal régia exigiram uma lenta “introjeção pedagógica do hábito e do costume”7,
no qual participaram
a divulgação da mística real no ensino, nos aparatos festivos e na liturgia da igreja;
e meios disciplinares repressivos, como a milícia, os castigos exemplares, os açoites,
a forca, a degola, o garrote vil, a fogueira, a censura intelectual, o degredo e, sempre,
as artes.8
Na Capitania das Minas Gerais, a pacificação teve importância precisa. O surto migratório
provocado pela descoberta das primeiras minas de ouro de aluvião (~1690-1730) forjou uma
sociedade escravista com alta densidade de trabalhadores livres, pobres, de vadios e mestiços.
Na primeira metade do século XVIII, a Coroa Portuguesa ainda consolidava o aparato
administrativo na recém fundada Capitania. Conflitos de diferentes montas desenrolavam-se
em torno de interesses econômicos e políticos, embates culturais, violência civil, disputas entre
elites locais e o interesse da Coroa. Nesse período, as “duas espadas”9 – poder monárquico e
poder eclesiástico – constituíram-se como duas balizas de quietação do povo local. O poder
monárquico – através do Conselho Ultramarino português (1642-1833) ou dos governadores e
outros representantes reinóis que lutaram pela instituição dos aparatos fiscais e legais na
extensão do Império –, e o poder católico contrarreformista – através da ação das ordens
primeiras e da catequese – “coexistiam e inextricavelmente se articulavam [mesmo que] de
forma conflituosa, pois o conflito é também uma forma de relação.”10
Assim, a Teologia e Monarquia Absolutista estiveram profundamente imbricadas em nome do
Conforme Padre Raphael Bluteau: “HABITO: Calidade acquirida, ou infusa, que nos comunica para algumas acçoens huma
firme, e conflitante facilidade. (...) Habito. Costume. Consuetudo.” e “TRANQUILIDADE: Quietaçao, sossego, carencia de
agitação e de movimento. Tranquilidade do espirito. Animo tranquilitas, ou securitas. (...).” cf. BLUTEAU, Raphael.
Vocabulario portuguez & latino, 1712-1728. Texto integral disponibilizado no site www.ieb.usp.br.
8 HANSEN, João Adolfo. “Artes seiscentistas e teologia-política” in Tirapeli Percival Arte Sacra Colonial. São Paulo:
Editora da Unesp, Imprensa Oficial do Estado, 2001. pp. 180-189, p. 188.
9 “Em seu livro Conquista espiritual do Oriente (1638), o frase franciscano Paulo de Trindade, cronista macauense,
escreveu: ´As duas espadas do poder divil e do poder eclesiástico estiveram sempre tão unidas na conquista do Oriente que
raramente encontramos uma sem a outra. O fato é que as armas só conquistavam por intermédio do direito que o Evangelho
lhes conferia, e a pregação só era útil quando acompanhada e protegida pela força das armas´ ”. Cf. BOXER, Charles R. A
Igreja Militante e a Expansão Ibérica (ob.cit.) p. 95.
10 NOVAES, Fernando A. “Condições de privacidade na colônia” (ob. cit) p. 38.
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“bem comum” – ou seja, da manutenção da ordem pacífica da hierarquia das sociedades –, pois
ambas encontram-se “fundadas no privilégio” 11 . Como explicou João Botero (1544-1617),
importante doutrinador da política monárquico-católica ibérica:
(...) entre todas as leis, não há nenhuma mais favorável aos Príncipes do que a Cristã,
porque ela submete a estes não só os corpos e os bens dos súditos, como convém, mas
também as almas e as consciências; e vincula não só as mãos, mas também os
sentimentos e os pensamentos; e quer que se obedeça a Príncipes imoderados assim
como a moderados e que se suporte seja o que for para não perturbar a paz. 12
Após a fundação da Capitania das Minas Gerais (1720), a ordem régia de construção das
primeiras Igrejas Matrizes, em 1724, instituiu a presença dos primeiros vigários colados13 :
representantes oficiais das ordens clericais que velariam por pregar e executar (sempre que
possível) as ordenações tridentinas - acolhidas na própria legislação do Estado português desde
156414. O supracitado Lourenço José de Queiroz Coimbra, por exemplo, um dos vigários e
bispos pioneiros na região, foi aclamado no discurso fúnebre por meio de numerosas
comparações com personagens legisladores do Antigo Testamento: o “Deus de Abraão” que
trouxe as “tábuas da Lei para comunicar a seus povos”15.
Dessa forma, pode-se perceber que a cultura da Contra Reforma encontrou aplicações
pragmáticas na expansão ultramarina lusitana: preconizava a pedagogia dos dogmas, valores e
práticas católicos em todas as manifestações culturais e obras artísticas... em um contexto
eminentemente mestiço. A retórica contrarreformista estruturou uma verdadeira compilação de
métodos persuasivos de elogio das consideradas boas virtudes, condenação dos hábitos
Cf. Fernando A. Novais, “Condições de privacidade na colônia” In MELLO E SOUZA, L. História da Vida Privada no
Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1997. p. 33-34. A “profunda aliança” teológico-política fica evidente ao olhar histórico que
abarca as transformações sociais na extensão do império lusitano. No transcurso dos séculos XV – XVIII, inúmeros conflitos
caracterizaram as relações entre Coroa Portuguesa – Igreja Romana – Clero Secular, entretanto, a imbricação das ações
dessas instâncias contribuiu de forma combinada para a formação das sociedades no império, sobretudo nos períodos de
estruturação das capitanias e sistemas administrativos locais. Ver BOXER, C. R. A Igreja Militante... (ob. cit.); HANSEN,
J.A. “Ratio Studiorum...” (ob.cit.); ALENCASTRO, Felipe de. O Trato dos Viventes. São Paulo: Cia das Letras, 2000.
12 BOTERO, João. Da Razão de Estado (1589). Tradução de Raffaella Longobardi Ralha. Coimbra: Instituto Nacional de
Investigação Científica, 1992. p. 70.
13 Carta Régia de 1724 ao governador Dom Lourenço de Almeida. In: TRINDADE, R. O. Instituições de Igrejas no Bispado
de Mariana. Rio de Janeiro: SPHAN, 1945. p. 12-13.
14 BOXER, Charles R. A Igreja Militante e a Expansão Ibérica (ob. cit.), pp. 97-106.
15 Cônego Luiz Vieira da Silva. “Elogio fúnebre do Revmo. Dr. Lourenço José de Queiros Coimbra e Vasconcelos” in:
Revista Barroco, Belo Horizonte, 1973, v. 5. p.16.
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considerados repugnantes e introjeção de padrões de comportamento. Até pelo menos meados
do século XVIII, esse foi o fundamento das práticas artísticas (oratória, arquitetura, música,
pintura, gêneros da escrita) em toda extensão do Império português 16 . Arquitetura e
ornamentação de templos católicos e edifícios oficiais estiveram sujeitas à pedagogia de valores
determinados e à instauração da ordem hierárquica no Império – o qual era administrado pela
Coroa como o “corpo místico” doutrinado pelo jesuíta Francisco Suárez no início do século
XVII17.
Essa condição fazia com que a preocupação dos letrados e artífices da época fosse a
de se apoiarem nas auctoritates do passado (...) Afinal de contas, baseavam-se na
doutrina aristotélica segundo a qual a arte é o hábito, acompanhado da razão, de
produzir alguma coisa, o valor da arte [,então,] origina-se do valor do mito (...)18
No interior da Matriz de Nossa Senhora da Conceição de Sabará – onde em 1784 foi enunciado
o discurso fúnebre citado na epígrafe deste trabalho – há um conjunto ornamental que pode ser
considerado emblemático da produção retórica das artes luso-brasileiras na primeira metade do
século XVIII. Os ornamentos e a arquitetura constituem uma exuberante “máquina” discursiva,
ou seja, é um engenhoso artifício de elementos materiais e simbólicos que age como dispositivo
de persuasão por meio da visualização de objetos e cenas19.
O discurso visual era operado por dois meios: (1) o efeito de maravilhamento causado pelo
reconhecimento de signos clássicos já conhecidos mas em combinações ou alegorias originais
e (2) a propagação de valores, costumes e afetos reconhecidamente adequados ao “bem comum”,
e portanto, valorosos, dignos de serem elogiados. O próprio túmulo do aclamado vigário da
casa de Queiroz foi descrito como “fúnebre maquina (...) que nos não deixam duvidar de que
Cf. PEREIRA, José Fernandes. “Ornamento e Geometria” In Revista de Estudos Barrocos Claro Escuro. Lisboa: Editora
Quimera. Maio/Novembro de 1989. pp. 73-77; HANSEN, J. A. “Artes seiscentistas e teologia-política” in PERCIVAL T,
Arte Sacra Colonial. São Paulo: Editora da Unesp, Imprensa Oficial do Estado, 2001a. pp. 180-189.
17 PAES, Maria Paula D. C. Teatro do controle. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2000 (dissertação) e
A Sociedade do Corpo Místico, Idem, 2006 (tese). Agradeço aqui, também, ao professor João Adolfo Hansen (DLCVFFLCH-USP), pelas observações e referências.
18 GRAMMONT, Guiomar de. O Aleijadinho e o Aeroplano. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p.198.
19 “Com o nome [máquina], indica-se um artifício: a obra transforma certas matérias, compõem-nas harmonicamente em
suas partes integradas e funciona operando certos efeitos, como um dispositivo de produção da presença [de algo ausente,
pela representação]” HANSEN, J. A. “Teatro da Memória: Monumento Barroco e Retórica”, In Revista do IFAC. Ouro Preto:
Dezembro de 1995, n. 2. pp. 40-56. p. 41.
16
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neste lugar se acham depositados as suas veneráveis cinzas”20.
No conjunto da ornamentação desse templo, dois painéis destacam-se pelas cores fortes do
vermelho-de-charão e do dourado e chamam a atenção com as imagens mescladas de paisagens
orientalizadas e hábitos corteses. São as chamadas “chinesices”.
Esses dois painéis, pintados nas duas portas que dão acesso à Sacristia da Matriz, deslocam o
olhar da Vila Real de Sabará para o amplo panorama do Império ultramarino português. Os
painéis portam referências a paisagens distantes da Vila: caravelas, templos de feições
orientalizadas, grifos, fragmentos de repertórios iconográficos das artes extremo-orientais.
Combinadas a essas imagens, há outras que evocam o contexto coevo da Vila de Sabará e da
Capitania de Minas Gerais na primeira metade do século XVIII: personagens de caracterização
européia, portando indumentária típica, contemplam pequenas edificações que, não obstante
tenham os telhados abaulados, são características da arquitetura popular portuguesa (chamada
“arquitura de chão”).21 Os gestos corteses caracterizam todos os personagens desses painéis.
Ora, em todo o Império, a representação de hábitos corteses e atividades cotidianas foi muito
comum, sobretudo
“a partir do século XVI, quando a Coroa passou a monopolizar a violência fiscal e
legal, [reforçando] a necessidade dos dispositivos socioculturais de interiorização da
violência, como o ensino e as maneiras de corte sistematizadas pela etiqueta ”22.
A pintura de cenas corteses foi comumente empregada na produção de chinesices ou outros
ornamentos com referências orientais, oníricas ou bucólicas. A exemplo desses painés da Igreja
Matriz de Sabará, na Capitania das Minas Gerais há um conjunto singular de chinesices
produzidas na primeira metade do século XVIII. Essas obras ornamentam com eloqüência
alguns templos da Capitania e nas suas imagens ficam evidentes os rastros da imbricação
eficiente de teologia contrarreformista e política monárquica absolutista no complexo de
Cônego Luiz Vieira da Silva. “Elogio fúnebre do Revmo. Dr. Lourenço José de Queiros Coimbra...” (ob. cit.).
A iconografia das duas portas da Sacristia da Igreja Matriz de Sabará será analisada em detalhes mais a frente, neste
trabalho.
22 HANSEN, João Adolfo. “Ratio Studiorum e a política católica ibérica no século XVII” in VIDAL, Diana Gonçalves e
HILSDORF, Maria L. Spedo (orgs.). Brasil 500 anos: tópicas em história da educação. São Paulo: EDUSP, 2001. pp. 13-41.
p. 32-3. Ver também, a esse respeito, REVEL, Jacques. “Os usos da civilidade” In DUBY, Georges e ARIÈS, Philippe.
História da Vida Privada. Da Renascença ao Século das Luzes. v.4. São Paulo: Cia das Letras, 2009.
20
21
6
relações produzidas no Império português.
a. Mas o que são “chinesices”?
“(...) viam-se em primorosos e exquisitos lavores entre ouro, e
prata, tremulando as idéias do Oriente, troféus à opulência do
Ocidente.”23
Chinesices (como são chamadas em território brasileiro), ou chinoiseries, termo francês, são
gêneros artísticos ornamentais que fazem referência ao repertório visual das artes extremoorientais. Esse gênero de pintura fez parte das artes ornamentais difundidas em território lusobrasileiro entre os séculos XVII e XIX, como um desdobramento direto de sua intensa utilização
na Europa Moderna.
A chinesices, ou chinoiseries, incluem louças fabricadas na Europa, América do Norte ou na
própria China (quando os artesãos e comerciantes chineses começaram a produzir já pensando
nos consumidores estrangeiros), e quaisquer gêneros arquitetônicos ou ornamentais que
incorporem referências a signos de origem extremo-oriental (Japão, Pegu (Vietnã), China, Índia,
Malásia). As chinesices foram disseminadas por todo o Império lusitano. Em território
brasileiro, temos conhecimento de inúmeros exemplos já compilados por alguns pesquisadores,
em especial Adma Fadul Muhana24 e José Roberto Teixeira Leite25.
Neste trabalho, analisamos as chinesices num contexto delimitado: a utilização de um repertório
de signos orientais, especificamente da pintura chinesa, na ornamentação de templos católicos
da Capitania de Minas Gerais, aproximadamente de 1720 a 1765. As chinesices focadas pela
pesquisa apresentam determinadas características formais comuns, compõem um conjunto de
obras semelhantes que se pode dizer atrelado àquela temporalidade, tendo em vista o modo
como foram empregadas em determinados conjuntos ornamentais26.
MACHADO, Simão Ferreira. A respeito da ornamentação com tecidos orientais em Vila Rica, 1733, na ocasião Translado
do Santíssimo Sacramento para a nova Igreja Matriz do Pilar. In O Triumpho Eucarístico, 1733. (reprodução a partir da
imagem digital) Rio de Janeiro: Fundação da Biblioteca Nacional, 1995. p. 44.
24 Pesquisa relatada em MUHANA, A. F. “Brasil: índia ocidental” In: Revista USP, São Paulo, v. 57, p. 38-49, 2003 e “De
Macau, sedas e porcelanas aportam no Brasil” In: Biblioteca Entrelivros. São Paulo, p. 80 - 83, 25 set. 2006.
25 LEITE, J R T. A China no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 1999 e A Companhia das Índias e a porcelana chinesa
de encomenda. Salvador: Fundação Cultural da Bahia, 1986.
26 O desenvolvimento dessa questão, relativa aos usos e significados possivelmente atrelados a essas chinesices, é realizado
23
7
São painéis e detalhes arquitetônicos revestidos pela pintura acaroada, ou de charão, a qual
imita a laca chinesa27. Nesses painéis, são utilizados modelos de composição de imagens que
se baseiam na pintura chinesa ShanShui28, gênero difundido no Ocidente através de porcelanas
e brocados chineses.
Essas obras fazem parte do estofamento: conjunto de técnicas de pintura em têmpera que visava
preencher detalhes em móveis e aparatos arquitetônicos, imitando materiais valiosos no
contexto do comércio ultramarino29. Podem ainda ser consideradas pinturas de douramento,
vocábulo freqüentemente utilizado na documentação coeva, subcategoria do estofamento, que
caracteriza as pinturas que utilizam ouro, prata, ou emulam tais materiais.
As chinesices acaroadas foram utilizadas por séculos na ornamentação de palácios, casarões,
igrejas e capelas, quase sempre em molduras, debruns das pinturas centrais, ornamentação de
móveis, e detalhes de imaginária. Na Capitania das Minas Gerais, na primeira metade do século
XVIII, as chinesices apresentam configurações específicas, que divergem do uso então corrente
no território luso-brasileiro: são produzidos painéis de tamanho evidenciado, ornando locais de
importância hierárquica na composição retoricamente ordenada da visualidade dos templos
católicos - capela-mor e arco-cruzeiro.
Capela-mor e arco-cruzeiro: ambos destacam o espaço sagrado do altar-mor da Irmandade
responsável pela construção do templo (no caso das Igrejas Matrizes, da Irmandade do
Santíssimo Sacramento30). Ora, conforme os preceitos retóricos contrarreformistas, tanto na
capela-mor quanto no arco de sua entrada, os signos empregados para ornamentação deveriam
mais adiante no presente trabalho.
27 Laca é um verniz utilizado na decoração de mobiliário e aparatos arquitetônicos, produzido a partir de uma combinação de
resinas vegetais originárias do extremo-oriente. Na China, a laca era produzida desde o século VI a.C. A Europa Ocidental só
logrou importar as resinas necessárias para a produção da laca no século XVII, na França. A produção ocidental das resinas
só teve início no século XX.
28 Gênero de pintura detalhado e analisado no capítulo seguinte.
29 Tanto no Reino como nas Capitanias do Império, na escassez do mármore, do brocado, do damasco, do ouro ou da laca,
técnicas variadas de pintura foram aprimoradas a fim de emular esses materiais. O estofamento, por fim, tornou-se umas das
especialidades dos pintores de têmpera.
30 A Irmandade do Santíssimo Sacramento incorpora a representação do próprio elo homem-sagrado - o Sol, a Coroa, a
participação do Corpo Místico de Cristo -, dela só deveriam participar os brancos com patrimônio material considerável, os
chamados “homens bons”. Nota-se que mesmo as capas dos Livros de Compromissos dessa Irmandade, diferente de outras e
adequadas a sua posição hierárquica, eram revestidas em vermelho ou carmim – a cor mais próxima da representação do
Poder Secular da Igreja e da Coroa portuguesa. Cf. ALMADA, Márcia. “A escrita iluminada” In Revista do Arquivo Público
Mineiro,Belo Horizonte: Julho – Dezembro de 2006. Ano XLII, n. 2. pp. 149-158. p. 150,
8
dispensar os elementos profanos 31 - tais como os que compõem as chinesices acaroadas deixando-os em partes menos centrais, como no estofamento de detalhes dos púlpitos, nichos e
móveis.
Essa oposição aparente (“sagrado-profano”) encontra-se, efetivamente, em pleno acordo com o
decoro da cultura religiosa de então. Como enunciou, no discurso fúnebre de 1784, o Cônego
Luiz Vieira da Silva, “as funções sagradas” devem se fazer “com aquela pompa, e
magnificência, que pedem o lugar vasto, e a grandeza de um Deus”; a Igreja, por sua vez, como
esposa mística, deve aparecer “ornada da mais brilhante variedade” com “luminosos tesouros
[que] se empregam na sua edificação, e no seu ornato”. Afinal, conforme preconiza crônica
coeva, “a Fé (...) ensina, serem dádiva de Deus as riquezas, e todos os bens temporais, (...) [e
reconhece-se] recebido da sua mão o benefício das riquezas; que estas se avaliassem só por
mercê de sua liberalidade.”32
Ou seja, embora em território luso-brasileiro não seja comum o emprego das chinesices em
posições destacadas nos templos, aqueles signos corteses e oníricos, as referências aos materiais
valiosos da laca e do ouro, as cenas profusamente luxuosas... todos passaram a integrar as
riquezas advindas da Liberalidade e da grandeza de Deus, que orienta providencialmente o
poder do Império português. Conforme preceitos retóricos aristotélicos que foram adotados
catolicamente pela Contra Reforma, há relações de proporção analógica entre a figuração de
coisas e as coisas figuradas: assim, o crucifixo figura Cristo e ambos são venerados; assim
também, a cor púrpura que figura a realeza do rei. Deste modo, a figuração de signos dos
acervos extremo-orientais na Capitania de Minas poderia demonstrar ao espectador a extensão
da “fé e do império” (como diz Camões em Os Lusíadas), que as incluem e subordinam :33
Signos profanos, ou de origem laica, tais como cenas cortesãs, mascarões antropomorfos, seres fitomorfos, foram
incorporados pela arte ornamental portuguesa na pintura de têmpera e na Talha Nacional. Incluem-se, ainda, na mesma
retórica contrarreformista, na medida que incorporam elementos da cultura “popular” (não católica) e a convidam para a Ceia
do Senhor. Em tais composições alegóricas, é a representação do Santíssimo Sacramento, ou de seus representantes que, por
fim, ocupa os espaços centrais do Teatrum Sacrum. Os elementos profanos permaneceram no templo em posições adequadas
ao decoro: pórticos da nave, pára-vento, bases de colunas e ornamentos laterais. Cf. HILL, Marcos. A talha Barroca em
Évora. Évora: Universidade de Évora, 1998; DIAS, Marcos H. G. Entre a ética cristã e a estética cortesã. São Paulo:
Faculdade de História, USP, 2000 (dissertação); MÂLE, Emile. El arte religioso de la Contrareforma. Estúdio sobre la
imaginaria Del final Del Siglo XVI y de los siglos XVII y XVIII. Madrid: Ed. Encuentro, 2001.
32 MACHADO, Simão Ferreira. Triumpho Eucarístico 1733 (reprodução digital) Rio de Janeiro: Fundação da Biblioteca
Nacional, 1995. p. 14.
33 Agradeço ao Professor João Adolfo Hansen pela referência. Ver também BOECHAT, Virgínia Bazzetti. “´A quantas gentes
vês porás o freio´: O outro n´Os Lusíadas” In Revista Forma Breve. n.5 Aveiro: Universidade de Aveiro, 2007. Texto
31
9
E se desta maneira adotarmos as santas imagens, considerando-as e seu representado
per modum unitus (como falam os escolásticos), não há dificuldade, pois a adoração
que se dá à figura é da mesma qualidade e grau que aquela que se dá ao figurado; e,
assim, quem no crucifixo considera e adora Cristo, Senhor nosso, adora ambas as
coisas com adoração de culto; do mesmo modo que, quem respeita ao rei vestido de
púrpura, respeita também a púrpura; aquele como razão principal e esta como coisa
complementar34
A difusão das chinesices num conjunto de templos da Capitania de Minas Gerais, portanto, não
esteve subordinada a um gosto espontâneo ou idiossincrático dos habitantes do território. Vêse que os valores da Magnificência e da Liberalidade abrangeram tanto riquezas materiais
quanto riquezas espirituais 35 . O ouro do douramento e os hábitos corteses e bucólicos
representados nas chinesices não deixam de integrar virtudes e modelos de comportamento
nobres e exemplares, pois quem “respeita ao rei vestido de púrpura, respeita também a púrpura”.
Assim, “a utilização maciça do ouro ainda que buscando uma manifestação de majestade e
magnificência, deverá antes de tudo ser entendida como um dos processos mais convincentes
para a atracção sensitiva do crente”36.
Os painéis focados pela pesquisa estão localizados: (1) no arco-cruzeiro da Capela de Nossa
Senhora da Expectação do Parto, em Sabará, datado de aproximadamente 1720; (2) nas portas
que dão acesso à Sacristia da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição, Sabará, datadas de
aproximadamente 1740-50; e (3) no Cadeiral do Capela-mor da Igreja Sede de Nossa Senhora
da Assunção, Mariana, datado de 1765.
Nota-se, ainda, entre o primeiro e o terceiro quartel do século XVIII, a utilização relativamente
intensa das chinesices nos templos mineiros. Obras importantes são encontradas nos
estofamentos: (1) do púlpito e do altar da Capela de Santo Antonio, Sabará, ~1730; (2) do altar
disponível em revistas.ua.pt/index.php/formabreve/article/viewArticle/254.
34 Excerto de A arte da pintura (1638), de Francisco Pacheco (1564-1644), pintor e teórico da pintura religiosa ibérica. In
LICHTENSTEIN, Jacqueline (org.). A pintura – A teologia da imagem e o estatuto da pintura. Textos essenciais. São Paulo:
Editora 34, 2004. p.86-87.
35 Inúmeros textos e tratados coevos traçam essa relação importante entre a riqueza material e a virtude dos costumes. Ver
BOTERO, João. Da Razão de Estado (1589). (ob.cit). Item “Da Liberalidade”. pp. 32-36.
36 FERREIRA-ALVES, Natália Marinho. “O douramento e a policromia no Norte de Portugal à luz da documentação dos
séculos XVII e XVIII” In Revista da Faculdade de Letras. Vol III. Porto: 2004, pp.85-93. p. 88.
10
da Irmandade do Santíssimo Sacramento, na Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição, em
Catas Altas, ~1760; (3) do altar-mor e do arco-cruzeiro na Igreja de Santana, no Distrito de
Cocais, ~1769; (4) dos altares da Matriz de São Caetano, no Distrito de Monsenhor Horta,
~1742; e (5) dos altares laterais da Matriz de Santo Antônio, em Ouro Branco, ~1760. Há ainda
outros exemplos em mobiliários ou peças de imaginária do mesmo período, na Igreja de Nossa
Senhora Pilar (Ouro Preto, ~1733) e na Igreja de Santa Efigênia (Ouro Preto, ~1733-1760).
O gênero, a partir de 1770, com a disseminação do chamado “estilo rococó” ou “pombalino” e
a apropriação de modelos italianos na arte sacra portuguesa 37 , quase desaparece da
ornamentação sacra.
Ao aproximar do século XIX, aumenta a circulação das louças e da mobília ornamentadas ao
gosto oriental no Império português 38 ; todavia, esses objetos estiveram disseminados em
ambientes privados de casarões e palacetes, em sacristias reclusas e nos edifícios
governamentais e não mais figurarão nas casas de Deus. A utilização teatral das chinesices no
interior de igrejas e capelas da Capitania fora intensa e fugaz.
b. O encanto do variado e do estranho
“Mesmo a modesta arte grotesca dos chineses torna atraente um quarto que dá para o jardim.”
1761, Justus Moser, Arlequim39
Em textos escritos entre o século XVI e o XVIII, “o encanto do variado e do estranho”40, ou
ainda, o prazer da fruição da imagem “sem ordem e proporção, e sem lógica que se não a do
azar” 41 , aparece como a motivação do gosto pelos gêneros ornamentais que empregavam
Cf. SERRÂO, Vitor. História da Arte em Portugal - O Barroco. Volume IV. Lisboa: Editorial Presença, 2003; ANDRADE,
Myriam Ribeiro de. O Rococó religioso no Brasil e seus antecedentes europeus.São Paulo: Cosac Naify. 2003.
38 Cf. RUSSEL-WOOD, Anthony John. A dinâmica da presença brasileira no Índico e no Oriente. Séculos XVI – XIX. In:
Revista Topoi, Rio de Janeiro, set. 2001, pp. 9-40; LEITE, José Roberto Teixeira. A China no Brasil (ob. cit). Esse aumento
da circulação de porcelanas e sedas orientais, bem como de móveis acaroados, foi também verificado na pesquisa documental
que apóia este trabalho, em inventários arquivados no Museu do Ouro, em Sabará. Sobre o aumento da circulação de
mobiliário e adornos residenciais, ver MACHADO, Alcântara. Vida e Morte do Bandeirante. São Paulo: Imprensa Oficial,
2006; ALGRANTI, Leila Mezan. “Famílias e vida doméstica”. In MELLO E SOUZA, Laura de (org.). História da Vida
Privada no Brasil (ob. cit.). pp. 83-154; MATA, Karina Paranhos da. Riqueza e representação social nas Minas Gerais: um
perfil dos homens mais ricos (1713-1750) (dissertação). Belo Horizonte: Fafich - UFMG, 2007. Orientação de ROMEIRO,
Adriana.
39 Apud KAYSER, Wolfgang. O Grotesco. São Paulo: Editora Perspectiva, 2003. p.29.
40 Esta expressão foi utilizada por Montaigne (1533-1592) em texto que trata do trabalho do pintor ornamental. Apud
CHASTEL, Andre. El Grutesco. Madri: Akal, 2000. p. 9.
41 Idem.
37
11
referências dos mais diversos panteões (romano, oriental, árabe, indígena...) para decorar desde
pequenos objetos a palácios inteiros na Europa Moderna. Entre esses gêneros ornamentais,
incluem-se os brutescos, arabescos, inúmeras variações de padrões ornamentais, e as
chinoiseries42. A disseminação na Europa das chinoiseries e do “gosto oriental” faz parte do
mesmo processo de disseminação dos grotescos (ou “brutescos”, em Portugal). Esses gêneros
da arte ornamental, desenhos “sem nome” – como define André Chastel -, presentes nas
margens das grandes pinturas, na ornamentação de móveis e detalhes arquitetônicos, são
caracterizados pelo gosto do variado, do estranho43.
Assim, para compreender algumas das as características formais das chinoiseries, bem como
suas formas de disseminação, pode-se traçar uma trama com a circulação de outros motivos
alegóricos europeus clássicos, ou motivos não-românicos, (re)combinados ao calor da expansão
ultramarina. Entre os séculos XVI e XVIII, a imaginação artística europeia esteve imbricada
com a formação dos Estados Modernos, as reformas religiosas a expansão do comércio
ultramarino. O encanto, a “maravilha” atribuída ao diverso, não são emoções idiossincráticas
mas propõem-se
como expressão de um critério de diferenciação cultural (...) Vem daqui o desejo (...)
de amalgamar ao próprio sistema esse ´outro lugar´, esse elemento diverso; daqui,
também, o estímulo para encurtar as distâncias que abrem passagem à estranheza e
para empreender a viagem visando alcançá-la e torná-la sua.44
Aquele “encanto”, a “luminosa variedade”, podem hoje despertar importantes questões sobre
as transformações culturais forjadas nos processos de expansão e formação dos impérios
ibéricos e do sistema comercial ultramarino. Assim, tratar das chinoiseries do ponto de vista
histórico passa por rever a “situação cultural”45 dessas obras.
Mas, conquanto seja ampla a historiografia da arte que trata dos dispositivos retóricos e
A referência ao “variado”, “estranho”e “desproporcional” repete-se em diversas fontes da Europa Moderna. A inclusão das
chinoiserie no gênero do Grotesco é tratada com mais profundidade na Parte III deste trabalho. Sobre o tema, ver KAYSER,
W. O Grotesco (ob.cit); SERRÃO, V. História da Arte em Portugal – O Barroco. Lisboa: Presença, 2000.
43 MOREL, Phillippe. Les grotesques. Paris: Flammarion, 2001.
44 LANCIANI, Giulia. O Maravilhoso como critério de diferenciação entre sistemas culturais. In: Revista Brasileira de
História. São Paulo, V.11, no. 21, pp. 21-26. Set/90-Fev/91. p. 22.
45 ARGAN, G. C. História da Arte como História da Cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1988. p. 15.
42
12
persuasivos de que foram imbuídas a pintura a óleo (e a escultura, a oratória, a música, a
arquitetura) entre os séculos XVI e XVIII, o papel das artes ornamentais e dos gêneros
decorativos é escassamente estudado, sobretudo no Brasil.
A escassez de documentação histórica a respeito do gênero ornamental – e em particular sobre
as chinesices – na América lusitana não é algo óbvio, ou, menos ainda, desprovido de
significados46; no caso das chinesices as pesquisas foram limitadas a trabalhos de compilação
e atribuições de autoria47. Nos estudos historiográficos que abordaram o tema, foi ressaltada a
circulação de objetos extremo-orientais em todo o Império lusitano48: um trabalho primário que
por fim é um tipo de análise “cartográficas” do processo de constituição do gênero. Os
pesquisadores brasileiros que se referiram a tal manifestação, fizeram-no, em maioria, de
maneira breve e superficial, apontando as chinesices como elemento “curioso” que serviria de
ilustração para uma suposta multiplicidade congênita de culturas nas artes decorativas do
período49. A circulação dessa hipótese (uma verdadeira reposição do “encanto do variado e do
estranho”) vai de acordo com o “mito da arte mestiça”50, sedimentado em pesquisas brasileiras
As chinoiserie em território luso-brasileiro são pouco ou nada citadas em documentação dos séculos XVII e XVIII,
contrastando com sua intensa utilização nos motivos ornamentais. Essa mesma ausência, que poderia ser atribuída a uma
pouca importância dada à pintura de têmpera, não se dá em outras regiões da América no mesmo período. Na América do
Norte, por exemplo, a ornamentação com as chinoiseries foi motivo de textos, cartas e manuais que circulavam impressos na
América inglesa. Os textos tratavam, entre outras coisas, de tentar explicar o próprio significado do interesse por tais
referências, procurando relacionar as chinoiserie com possíveis lições de civilidade à cultura americana. Cf AVIS, Kiersten
Larsen. Second hand chinoiserie and the confucian revolutionary: colonial America´s decorative arts “after the chinese
taste” (dissertação). Visual Art´s Department of Brigham Young University, 2008.
47 Por exemplo, no texto “Pintura colonial paulista”, atribui-se a pintura de chinoiseries na moldura dos caixotões da Igreja
Nossa Senhora do Rosário (1720), em Embu, a Charles Belville (Wei-Kia-Lou), mestre dourador franco-chinês que
arrematou a pintura da Capela-Mor da Igreja Sede de Salvador. Outro exemplo é o livro A China no Brasil, que atribui a
pintura dos painéis acoroados da Capela de Nossa Senhora da Expectação do Parto ao padre jesuíta pintor Jacinto Ribeiro,
que supostamente estaria em território luso-brasileiro à época da construção da capela. TIRAPELI, Percival. Arte Sacra
Colonial. São Paulo: Editora da UNESP, 2005, pp. 90-117; LEITE, José Roberto Teixeira. A China no Brasil (ob. cit).
48 “Conhecidas como ‘chinezives’ [sic], estas pinturas talvez tenham sido recolhidas da louça de Macau, bastante usual no
Brasil de então, sendo de observar-se sua ocorrência freqüente em Minas Gerais (Sé de Mariana, Matriz deSabará, Capela do
Senhor do Bonfim em Catas Altas, oratório de Nova Era, etc) ao passo que no resto do país não são encontradiças.”
VASCONCELLOS, Sylvio de. “Igrejas e Capelas de Sabará” In Revista Barroco, Belo Horizonte, 8:12-27 Jul/1976.
49 Pode-se citar: Afonso Ávilla, Sylvio de Vasconcelos, Lúcia Machado de Almeida. Ver, a esse respeito, TRINDADE,
Jaelson Bitran. A produção de Arquitetura nas Minas Gerais na Província do Brasil (Tese). São Paulo: Faculdade de História
da Universidade de São Paulo, 2002. pp. 26-29. Sobre o emprego especifico da visualidade oriental na arte luso-brasileira, a
abordagem do pesquisador Roberto Teixeira Leite também pressupõe uma verdadeira influência e miscigenação de arte e
cultura, embora tenha levantado diversos documentos históricos empíricos relevantes a fim de revelar lances do comércio
sino-lusitano e fundamentar sua interpretação. Cf LEITE, José Roberto Teixeira. A China no Brasil. Campinas: Editora da
Unicamp, 1999, e A Companhia das Índias e a porcelana chinesa de encomenda. Salvador: Fundação Cultural da Bahia,
1986.
50 TRINDADE, Jaelson Bitran. A produção de Arquitetura nas Minas Gerais na Província do Brasil (Tese) ob.cit, p. 26.
“Esta equação escravidão/negro/mestiço + aversão do branco ao trabalho manual + relaxamento do estatuto corporativo +
ascensão e domínio da prática artística melo mestiço = arte nacional, tem funcionado como arcabouço interpretativo da
historiografia da arte luso-brasileira.”(...) “As obras novas, ´audazes´, tem sido explicadas pela ação de artífices mestiços de
negros e brancos, designados como mulatos, gente que teria substituído os mestres portugueses que chegaram à região na
época em que se consolidou a ocupação do território da mineração, mestres com quem aprenderam os ofícios artesanais
ligados à construção – carpinteiros, pedreiros e canteiros – e os princípios da arquitetura e do desenho. Esses mestiços teriam
46
13
na segunda metade do século XX51. Desse mesmo ponto de vista, as chinesices atestariam uma
fabulosa “influência” oriental, terminando assim por inserirem-se na mesma lógica de uma
formação supostamente “multicultural” e pacífica do Brasil52.
Ora, a noção de “influência” não é capaz de abarcar os processos históricos de relação entre
europeus e outros povos ultramarinos, e relega a um segundo plano os sentidos dessas relações
e as formas com que referências visuais foram apropriadas. A circulação da visualidade mista
luso-oriental representaria, conforme a noção de “influência”, “uma real incorporação de
motivos e soluções do Oriente à arquitetura, ornatos e imaginária do Brasil colonial” 53 e
atestariam “variadamente a expansão do Oriente no Ocidente”.54
Essa hipótese exclui da história que esses contatos foram travados – para usar o próprio
vocabulário da época – “com as artes, não menos do que com o valor das armas”55. Não se pode,
portanto, esquecer que a constituição do “comércio com outras gentes” dantes “impedidas pelos
imensos golfos do Oceano”, foi atrelada à propagação da “doutrina Evangélica; e os [povos]
mais repugnantes, e indomáveis sentiram a violência das armas para o domínio, fazendo muitas
vezes por sujeição os ânimos dóceis (...)”56.
Claro que não se trata de compreender as chinesices como manifestações que “apenas se
mantiveram justapostas à arte lusíada aqui realizada”
57
. Trata-se, por outro lado, de
compreender os significados históricos atrelados às chinoiserie acaroadas; o que é específico
das sociedades que forjaram esse gênero tal como ele é: uma apropriação de determinados
elementos das artes orientais de modo a constituir um gênero de pintura ornamental
eminentemente ocidental.
Em Portugal, Antonio Filipe Pimentel publicou dois artigos (1988-9) que tratam as chinoiseries
portuguesas do ponto de vista da História da Arte. 58 Conforme Pimentel, a apropriação de
formado os ´grupos de executores locais´”. TRINDADE, idem, p. 16 e 26.
51 Idem, p. 16.
52 A problematização da hipótese de uma “influência oriental” é desenvolvida na Parte II deste trabalho.
53 MUHANA, Adma Fadul. “Índias do Oriente e do Ocidente”, In FILIZOLA, Anamaria e outros (org.). Verdade, Amor,
Razão, Merecimento. Curitiba: Editora da UFPR, 2005. pp. 263-285. p. 282,283.
54 Idem, p. 282,3.
55 BOTERO, João. Da Razão de Estado (1589) (ob.cit), p. 35.
56 MACHADO, Simão. Triunfo Eucarístico, 1733 (ob. cit.), p. 7.
57 MUHANA, A.F., “Índias do Oriente e do Ocidente” (ob. cit.) p. 284.
58 PIMENTEL, Antonio Filipe. “O gosto oriental na obra das estantes da casa da livraria da Universidade de Coimbra” in:
14
elementos da retórica visual oriental pela cultura artística lusitana deve-se à formação do gosto,
de certa forma, “cosmopolita” advindo da experiência empírica na empresa ultramarina59. O
interesse por referências orientais, segundo Pimentel, advém da experiência de portugueses e
espanhóis no contato direto com os povos ultramarinos, e da circulação das cartas e narrativas
escritas por esses viajantes.
Um outro estudo sobre as chinoiseries, no âmbito da cultura lusitana, foi realizado pelo
pesquisador Álvaro Samuel Guimarães da Mota, em dissertação defendida em 1997 na
Universidade do Porto.60 Este trabalho contribuiu muito ao lançar as bases de uma pesquisa
aprofundada sobre as fontes, formas de produção, e significados associados à ornamentação
com as chinoiseries em meio a cultura lusitana. Álvaro Samuel elenca detalhadamente vários
tratados, livros ilustrados e gravadores que contribuíram para a formação de determinadas
imagens do “Oriente”, que privilegiam o exotismo e a estereotipação de gestos, indumentária,
natureza, ou seja, quaisquer detalhes “orientais”. Em seu trabalho, fica explícito a formação, ao
longo dos séculos, de um conjunto consensual de signos e estereótipos utlizados nas pinturas
com chinoiseries. Conforme delineia o autor, as chinoiseries são “práticas de exotismo
orientalizante”, ou seja, partem de um ponto de vista lusitano e europeu a fim de classificar e
tipificar fragmentos exóticos das culturas orientais, de modo a compor um elenco imagético
encantador aos olhos europeus.61
No Brasil, o único estudo focado nas chinesices presentes na arte sacra das Minas Gerais foi
realizado por Dalva de Oliveira Abrantes em dissertação de mestrado defendida em 1982 na
Escola de Comunicações e Artes da USP 62 . A dissertação introduz o tema na abordagem
historiográfica, relacionando-o ao empreendimento ultramarino português. Abrantes também
nota, na análise dos painéis acoroados em templos mineiros, a utilização de uma referência
Pedro Dias (coord.) Portugal e a Espanha entre a Europa e Além-Mar. Actas do IV Simpósio Luso-Espanhol de História da
Arte, Coimbra, Instituto de História da Arte Universidade de Coimbra, 1988, pp. 347-368; e Verbete “Chinoiseries” in José
Fernandes Pereira (dir.) Dicionário de Arte Barroca em Portugal, Lisboa, Editorial Presença, 1989.
59 Cf. PIMENTEL, Antonio Filipe. “O gosto oriental na obra das estantes da casa da livraria da Universidade de Coimbra”
(ob. cit).
60 MOTA, Álvaro Samuel Guimarães da. Gravuras de Chinoiserie de Jean-Baptiste Pillement. 2 vols. Dissertação de
mestrado em História da Arte apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Porto, 1997.
61 Idem, Volume I, pp.115-129.
62 ABRANTES, Dalva de Oliveira. Chinoiserie no barroco mineiro. São Paulo: Escola de Comunicação e Artes da USP,
1982. Dissertação. Orientação de PFEIFFER, Wolfgang.
15
genérica a signos orientais, de acordo com moldes ornamentais europeus.
É comum, por exemplo, na historiografia brasileira, a referência às chinesices dos painéis
acaroados como resultado posterior e diretamente associado à circulação local de produtos
orientais: seda, porcelana, leques etc; essa hipótese afirma que as chinesices são “cópias” das
porcelanas e sedas bordadas para os estofamentos e móveis acaroados. Outra hipótese corrente
é a da atribuição da autoria dessas pinturas a alguns artífices que exerceram carreiras nos
domínios orientais do Império ultramarino português63, tais como Jacinto Ribeiro (a quem se
atribui a autoria dos painéis acaroados do Arco do Cruzeiro da Capela de Nossa Senhora da
Expectação do Parto, Sabará64) e Charles Belville (arrematador da decoração do teto da capelamor da Sé de Salvador, Bahia). Conforme um ou outro modelo, costuma-se atrelar
indefinidamente a pintura das chinesices à experiência direta com as mercadorias orientais, nas
próprias Índias orientais ou através do trânsito de objetos65.
Entretanto, seguindo o lastro de recentes pesquisas sobre a produção artística luso-brasileira,
tanto fontes documentais empíricas quanto o exame das próprias obras permitem inferir como
mais provável a hipótese da disseminação das chinesices por meio de gravuras e do acervo de
práticas consensuais de artistas (artesãos) ibéricos.
Segundo esse viés, a circulação dos objetos orientais não deve ser vista como causa direta da
disseminação das chinesices no Império. Objetos e imagens com feições orientalizados, ambos
são parte de um mesmo processo de formação do “gosto oriental” e encontraram ápices em
contextos diversos, delineando um longo percurso que abarca transformações da sociedade e
da cultura material ocidental.66
Em Portugal, segundo o historiador da arte Antonio Felipe Pimentel, “o gosto oriental”
Como por exemplo, em textos publicados por Percival Tirapeli, Sylvio de Vasconcellos, José Roberto Teixeira Leite.
Cf. LEITE, José Roberto Teixeira. A China no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 2001. pp 18 e 179.
65 No caso luso-brasileiro, a porta esquerda que dá acesso à sacristia da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição
(Sabará) é um raro exemplo em que se pode cogitar uma relação imediata entre o artífice que realizou seu acoroamento e a
experiência direta com técnicas de pintura chinesas. No caso específico dessa obra, a perspectiva, a composição, e o desenho
empregados sugerem o conhecimento aprofundado de técnicas orientais de pintura. Nos outros casos de chinesices,
entretanto, essa relação não deve ser estabelecida como uma condição a priori, exceto seja comprovada por documentação.
66 SOUZA, Teotonio R. de. “As impressões portuguesas da Índia: realidade, fantasia e auto-retratação”. In Actas do V
Encontro Luso-Alemão. Colonia, 1998; ALBUQUERQUE, Maria João. “O gosto à oriental nas artes decorativas na época de
D. João VI” In 19 & 20. V. III, n. 4. Rio de Janeiro: 2008; EUSÉBIO, Fátima. “Subsidios para o estudo do intercambio de
formas na arte indo-portuguesa - o caso da arte da talha”. In Mathesis – Revista do Departamento de Letras da Universidade
Católica Portuguesa. Volume 12. Lisboa: Universidade Católica Portuguesa, 2003. pp 57-71.
63
64
16
manifestou-se na circulação de objetos e fazendas orientais (devido ao comércio direto
relativamente intenso) e na “adoção de um vocabulário decorativo com que desde os fins do
século XVII enriquecia-se um mobiliário geralmente de estrutura simples”67, especialmente
com a pintura de acaroamento, que imitava a visualidade da laca oriental. A partir da metade do
século XVIII, com o desenvolvimento da produção chinesa manufaturada de porcelanas para
exportação – empresa do Império Qing (1640-1915) - a circulação de peças com modelos
orientais “genéricos”68 ou francamente europeus, feitas sob encomenda, também foi intensa –
produzindo, por exemplo, as curiosas porcelanas com brasões europeus de letras invertidas,
fruto da transposição direta das gravuras para as peças (realizada num reino de escrita
ideogramática)69.
Em território luso-brasileiro, o ápice da circulação de tais objetos deu-se a partir de 1808, com
a permissão real do comércio direto entre brasileiros e os portos de Goa, Macau e Cantão 70.
Entretanto, deve-se considerar que a circulação desses objetos na Conquista já se dava desde o
século XVI como parte do acervo das primeiras elites aportadas no território71.
Mas em toda a Europa ocidental as chinoiseries tiveram grande disseminação, sendo incluídas
há séculos em manuais e tratados de pintura, inclusive em Portugal. Os exemplos são inúmeros.
Em 1688, John Stalker e George Parker publicaram na Inglaterra A Treatise of Japanning and
Vernishing, que continha exemplificações de técnicas de acaroamento e elencos de imagens
sobre o tema “oriental” a serem combinadas e copiadas “ao gosto do cliente”. Esse tratado pode
ser considerado um volume de recuperação e elenco de imagens que já circulavam e eram
consensuais na prática de ornamentação.
Um dos modelos mais comuns da porcelana sob encomenda chinesa ou européia foi o “Dama
sob o para-sol”, publicado em versão específica para decoração de porcelanas por Cornelis
PIMENTEL, Antonio Filipe. “O gosto oriental na obra das estantes da casa da livraria da Universidade de Coimbra” (ob.
cit), p. 351.
68 As porcelanas produzidas no Império Qing, e, mais tarde, na própria Europa, devido a sua intensa comercialização e à
criação de um verdadeiro gosto oriental, foram paulatinamente adaptando-se ás preferências dos grupos consumidores.
Tratar-se-á dessa formação de um padrão “genérico” oriental no Capítulo 3.
69 LEITE, José Roberto. A companhia das índias e a porcelana chinesa de encomenda. (ob. cit). p. 62-3.
70 Cf. RUSSEL-WOOD, Anthony John. A dinâmica da presença brasileira no Índico e no Oriente. Séculos XVI – XIX. In:
Revista Topoi, Rio de Janeiro, set. 2001, pp. 9-40 e LEITE, José Roberto Teixeira. A Companhia das Índias e a porcelana
chinesa de encomenda e A China no Brasil (ob. cit.).
71 BRACANTE, Eldino da Fonseca. O Brasil e a louça da Índia. São Paulo: Livraria Kosmos, 1950.
67
17
Pronk (1691-1759), em 1734, sob solicitação da Companhia Holandesa das Índias Orientais.
Na França, em 1755, foi publicada uma coletânea do pintor Jean Baptiste Nicolas Pillement
(1728-1808) repleta de modelos de chinoiseries, editada também na Inglaterra, em 1762, sob o
título de The Ladies Amusement or the whole art of japanning made easy (ainda, o encanto)72.
Até mesmo em uma canção popular:
Two pigeons flying high,
Chinese vessel sailing by.
Weeping willow hanging o'er,
Bridge of three men maybe four.
Chinese temples stand,
Seem to take up all the land.
Apple trees with apples on,
A pretty fence to end my song.73
Em Portugal, o tratado de Filipe Nunes, Arte da Pintura e Symetria, e Perspectiva, na segunda
edição de 1767, ensinava “como dourar uma rodela ou bandeja ao modo da China”, explicando
a técnica de ornamentação com a combinação do verniz “vermelhão” (ou “vermelho de charão”)
sobreposto com ouro, de modo a emular a visualidade da laca oriental74. É preciso lembrar que
esse Tratado foi realizado como compilação de práticas já consensuais de pintura e de risco.
Assim, infere-se que as chinoiseries englobam um conjunto de técnicas e signos empregados
há alguns séculos antes do XVIII. Ficaram distantes do período moderno os primeiros contatos
e as primeiras cópias de fazendas orientais75. No início do século XVIII, portanto, quando foram
pintadas as chinesices da Capitania de Minas Gerais, os gêneros ornamentais com chinoiseries
já haviam se difundido como técnicas de pintura, arquitetura e indumentária tipicamente
européias76.
MOTA, Álvaro Samuel Guimarães. Gravuras de chinoiserie de Jean-Baptiste Pillement.Catálogo Analítico. Porto:
Faculdade de Letras da Universidade do Porto. 1997. p. 3-4.
73 Canção popular inglesa disseminada no século XIX, a respeito do “Willow-pattern” – modelo decorativo de porcelanas “à
chinesa”, compondo-se dos elementos descritos na canção: um templo, uma ponte, pássaros, um rio, um barco. Apud “Notes
and Queries”, por Oxford Journals, série terceira, v.11. Junho de 1867. p.406. “Dois pombos voando alto/ um barquinho
chines navegando/ o salgueiro triste sobre nós/ e uma ponte com três ou quatro homens/ Há aqui templos chineses/ que
parecem ocupar todo o país/ Macieiras cheias de maças/ e uma bonita cerca para terminar esta canção”.
74 Cf. PIMENTEL, Antonio Filipe. “O gosto oriental na obra das estantes da casa da livraria da Universidade de Coimbra”
(ob.cit). p. 360.
75 Ver ainda, para exemplos anteriores à Era Moderna de apropriação de motivos orientais, BALTRUSAITS, Jurgis. Le
Moyen Age Fantastique (ob.cit), 1955.
76 Cf. PIMENTEL, Idem e BALTRUSAITIS, Idem.
72
18
c. Rastros
“O cronista que narra profusamente os acontecimentos, sem distinguir
grandes e pequenos, leva com isso a verdade de que nada do que alguma vez
aconteceu pode ser dado por perdido para a história (...).”77
Propõe-se aqui uma abordagem das chinesices nos templos católicos mineiros setecentistas em
meio ao contexto cultural que as atribuía valor.
Em primeiro lugar, retomaremos brevemente o processo de formação do “gosto oriental” na
cultura ibérica moderna, para assim inferir sobre seus desdobramentos na América portuguesa.
Tentaremos especificar com que “filtro cultural” a arte europeia selecionou – da infinidade de
signos e técnicas artísticas do Império Sínico – os signos específicos que formam as chinesices
acaroadas. Para tanto, procuramos quais os gêneros artísticos extremo-orientais exaltados pelos
europeus nos relatos de viagem, quais os elementos apropriados e como foram conformados
dentro do repertório iconográfico europeu.
Em seguida, no que tange o contexto da Capitania das Minas Gerais, deve-se considerar que a
documentação que faz referência direta à aos painéis em foco (Cadeiral da Igreja Sede de
Mariana, Portas da Sacristia da Igreja Matriz de Sabará, e Arco-Cruzeiro e Altar-Mor da Capela
de Nossa Senhora da Expectação do Parto de Sabará) é muito escassa. 78 Todavia, alguns
documentos coevos foram muito úteis para constatar o conjunto de dogmas e signos que
pautaram a apreciação da arte ornamental. O Triunfo Eucarístico, por exemplo, descrição
encomiástica do translado do Santíssimo Sacramento para a nova Matriz de Ouro Preto em
1733, explica com precisão a função de diferentes tipos de ornamentos e referências
iconográficas. O Áureo Trono Episcopal – peça retórica encomiástica que relata as celebrações
por ocasião da erição do Bispado marianense (1748) – é também de grande contribuição na
medida em que, através da descrição das celebrações, analisa e dispõe as funções e significados
atribuídos ao ornamento sacro.
BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito de história” IN LÖWY, Michel. Aviso de incêndio: uma leitura das teses “Sobre o
conceito de história” São Paulo: Boitempo Editorial, 2005. pp.33-146. p. 54.
78 Sobre a documentação acerca das chinesices na Capitania das Minas Gerais, ver LONGOBARDI, Andrea. Fragmentos de
visualidades chinesas no setecentos mineiro (Dissertação). Belo Horizonte: FAFICH – UFMG, 2011.
77
19
Assim, realizando uma intersecção entre o documento visual, a produção textual e a dinâmica
social do período, esta pesquisa associa-se a uma historiografia que, como afirma Giulio Carlo
Argan, “se propõe à interpretação dos significados e dos valores”79, extrapolando o primeiro
empreendimento de “andar à caça de inéditos e colar nas obras etiquetas com nomes e datas” 80.
À pesquisa factual e classificatória, já iniciada por pesquisadores citados neste trabalho, propõe
a explicação da obra no âmbito da História:
Explicar um fenômeno significa identificar, [1] em seu interior, as relações de que ele
é produto, [2] e fora dele, as relações pelas quais é produtivo, isto é, as que o
relacionam a outros fenômenos, a ponto de formar um campo, um sistema où tout se
tient81. [onde tudo se toca]
Deste modo, as chinesices setecentistas mineiras apresentam duas faces para análise: “em seu
interior”, as obras suscitam os trajetos da constituição formal
de sua visualidade forjados nas
relações entre Europa, Índias Ocidentais e Orientais, no âmbito dos seus modelos e suas técnicas;
“fora dele”, as chinesices se relacionam com as dinâmicas sociais específicas da sociedade lusobrasileira, no âmbito dos processos materiais de sua recepção e produção.
Se o contexto histórico pode revelar valores atribuídos àquelas obras, há também que conhecer
o que as obras têm a revelar sobre seu contexto. Nesta pesquisa, procura-se dar voz às paredes,
tetos, pavimentos daqueles sagrados edifícios para que o respondam, como se fossem
perguntados.
Cf. ARGAN, Giulio Carlo. Historia da arte como historia da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1998; MARTINS, Luiz
Renato. A arte entre o trabalho e o valor. In: Revista Crítica Marxista, n. 20. Campinas: Editora da UNICAMP, Edtora
Revan, 2005. Abril, 1 col., pp. 123-138.
80 ARGAN, Giulio Carlo e FAGIOLO, Maurizio. Guia de História da Arte (ob.cit), p. 28.
81 ARGAN, Giulio Carlo. Historia da arte como historia da cidade (ob.cit), p. 20.
79
20
CAPÍTULO 1 CÁ E LÁ – IMPÉRIO EM DUAS VERSÕES
Muitas vezes pratiquei com homens discretos, como poderia ser entendendo-se tantas
gentes por escritura, não se entendem por fala, e nunca podemos cair em como seria,
se não uma vez estando em um porto de Cauchim China. O escrivão do navio que era
china fazia uma carta para os loujias da terra, para que nos mandassem dar por nosso
dinheiro mantimentos. Quando lhe vi escrever a carta, disse-lhe que para que escrevia
carta, pois bastava dizerem-lho por palavra: disse-me que os não entenderiam por
palavra: deixei-lhe acabar de fazer a carta e pedi-lhe que me fizese o a.b.c., fez-me só
quatro letras, disse-lhe que me fizese as letras todas do a.b.c. e respondeu-me que não
podia logo assim fazê-las, que eram mais de cinco mil. Cai eu logo no que podia ser, e
perguntei-lhe como chamam esta letra primeira, respondeu tiem, perguntei-lhe tiem que
quer dizer, disse-me que céu, a outra terra, a outra homem. E assim me ficou claro o
que dantes me estava escondido. As suas regras não vão atravessadas como nas
escrituras de todas as mais gentes, se não vão escritas d´alto abaixo.82
82
Gaspar da Cruz, “Tratado das cousas da China (1569)”, in: D´ÍNTINO, R. (ob. cit), p. 214.
21
CAPÍTULO 1 – Cá e lá: império em duas versões
1.1. As cores e as nobrezas das terras.
Nos territórios dos impérios sínicos, há resquícios de objetos envernizados com laca desde
10.000 a.C., quando alguns instrumentos rudimentares de madeira ou pedra eram revestidos
com o extrato da árvore Rhus verniciflua, conhecida nos impérios indo-sínicos como “árvore
do verniz” (漆树).
Neolítico, tigela resinada em laca, encontrada na província
ZheJiang.
Imagem extraída do site: www. ggjy. gdmoa. org
A partir da Dinastia Shang (1750-1040 a.C.), a cor vermelha – primeiro relacionada a ritos
sacrificiais – passou a ser empregada como signo de poder hirárquico. A partir dessa Dinastia,
a classificação hierárquica das cores, tanto na indumentária quando na ornamentação
de
objetos ou edificações, foi sistematicamente regulamentada, de acordo com a posição que cada
indivíduo ocupava nas sociedades imperiais sínicas; essa prática permaneceu, de certa forma,
até a República (1911) (e mais tarde, de outra maneira, até a Revolução Cultural). Cartas
jesuíticas portuguesas do século XVI relatavam fragmentos desse sistema de representação no
Império Ming (1368-1644), na ornamentação de edifícios...
22
Período dos Reinos Combatentes (V a II a.C.), fragmento de tigela resinada em laca.
Imagem extraída do site: www. ggjy. gdmoa. org
A coisa que geralmente todos os fidalgos e homens principais tem por mais nobreza é fazerem uns
edifícios diante de suas portas a maneira de arco que toma ambas as partes da rua que fique um
portal de baixo por onde a gente passe; uns de pedra e outros de madeira muito galantes, com todas
as pinturas e cores de ouro e azul e toda a maneira de passaros e coisas que possam agradar a vista
dos que passam e nisto são tão curiosos e cheios de vangloria que o que mais dinheiro gasta em
fazer esse edifício mais custoso e de mais primor é tido entre eles como mais honrado. 83
...no uso de porcelanas:
(...) todavia há muita porcelana grossa e outra muito fina, e há alguma que nem é lícito
vender-se comumente, porque só usam dela os regedores por ser vermelha e verde, e dourada e
amarela: vende-se alguma desta e muito pouca e muito escondida.84
... e em vários outros adereços. As cores vermelho, verde, azul e dourado eram associadas com
os privilégios que detinham os nobres da terra e burocratas governantes.
Os relatos de europeus em viagens aos impérios sínicos estão repletos de descrições em que
aparecem elogios acerca dos gêneros das artes sínicas. Entretanto, o interesse europeu nas artes
chinesas e japonesas baseou-se, sobretudo, na rígida regulamentação hierárquica de produção
Anônimo, “Enformação de algumas coisas acerca dos costumes e leis do reino da China, que um homem honrado, que la
esteve cativo seis anos contou no colégio de Malaca ao Pe. Mestre Belchior (1554) In: D´INTINO, Rafaella. Enformação das
cousas da China. (ob. cit), p.. 67.
84 CRUZ, Gaspar da (? – 1570) “Tractado em que se contam muito por extenso as coisas da China com suas particularidades,
assim do reino d´Ormuz, composto por el R. padre frei Gaspar da Cruz da ordem de São Domingos. Dirigido ao muito poderoso
Rei Dom Sebastião nosso Senhor, 1569. In: Idem, p. 195.
83
23
e fruição da arte: os relatos dos europeus a explorar e conhecer as “terras icógnitas” chamam a
atenção ao valor hierárquico das obras.
Assm, no que concerne à arte “chinesa” apreciada pelos europeus, uma verdadeira tópica
disseminada na correspondência lusitana é exaltação da classe dos chamados loujias85(老家):
burocratas intelectuais responsáveis pela administração local, rigidamente formados sob
padrões de aristocrática cultura letrada, filosófica e político-administrativa. Em descrição coeva:
“é como nós dizemos fez el Rei um homem fidalgo, assim dizem eles fez el Rei um loujia” 86.
Os loujias foram, entre séculos XVI a XVIII, administradores locais – num regime de serviço
diretamente atrelado ao poder imperial –, burocratas e patronos das artes aristocráticas. A
ornamentação de móveis, edifícios e objetos com a combinação de laca e ouro é uma das
especialidades na produção e fruição cultural dos loujias, ou, dos mandarins.
Aos olhos portugueses, a sistemática ordenação hierárquica de hábitos e representações sínicas,
entre as quais a arte, era vista com admiração e louvor. Os elogios se desdobram: “na maneira
de sua pintura são grandes artífices”87; “julgamos não haver no mundo edificadores como os
Chins”88. Elogios foram empregados especialmente no que tange a rígida regulamentação e
controle das formas de representação:
(...) e assim no comerem como em tratarem uns com os outros, são homens de muito primor nas
cortesias, e parece que nisto ganham a todo gênero de nações, e da mesma maneira em seu trato
segundo seu costume são tão dilatados, que ganharam a todo o gentio ou mouro, e tem pouca razão
de nos haver inveja. E são tão vãos os grandes, que trazem a melhor seda por forro dos vestidos que
trazem.89
Regulamentação e controle que se estendiam, entre outras coisas, a jogos e divertimentos:
(...) Algumas vezes vão ao campo mandar tirar a barreira com arcos, mas vai primeiro o comer
diante e beber, e eles comem enquanto os soldados tiram. E é a barreira uma grande colcha,
armadas com umas e muito grandes varas; e com algum acerto, vem ali receber da mão do maior,
que ali está, um pedaço de tafetá vermelho que lhe atam na cabeça, e assim vem, todos os que
85
86
87
88
89
LaoJia, contração de laorenjia, 老人家 “senhor, fidalgo”.
D´INTINO, Rafaella. Enformação das cousas... (ob.cit), p. 106.
D´INTINO, 1989, p.73.
Idem, p. 104.
Idem, p. 109.
24
acertam, com essa honra, e os loujias fartos para casa.90
Nesses relatos, eram ressaltadas também as formas de produção das artes sínicas, que desde o
século XVI já eram organizadas de formas altamente burocratizadas. No Império Ming, a
produção de artefatos para os palácios e templos imperiais já era quase totalmente centralizada
em pequenos centros manufatureiros localizados em várias partes do Império. Tanto nessas
oficinas, quanto em centros de produção de manufaturas para exportação, a forma de produção
e ornamentação adotada era um tipo de fabricação em série: cada equipe de artesãos era
responsável por uma parte da produção, e cada grupo era especializado em um detalhe da
ornamentação, como a pintura de galhos, ou a pintura de folhas, flores, etc.91
Objetos ornamentados com a laca eram comuns entre grupos de letrados e aristocratas . Mas
haviam inúmeras formas de combinação do verniz com diversos pigmentos, ou com a técnica
da marchetagem e da incrustação. Além disso, a laca podia ser utilizada sobre bases dos mais
diversos materiais (madeira, pedra, jade, ouro, prata...).
Detalhe de caixão em laca outros vernizes,
Detalhe de uma das cavernas de Datong ornamentada com
Dinastia Han (206 a.C - 220 d.C).
laca e outros vernizes, Dinastia Wei do Norte (386-534).
Imagens extraídas do site: www. ggjy. gdmoa. org
A partir da Dinastia Tang (618-907), de etnia Han, quando as formas de governo imperiais já
haviam se consolidado pela centralização burocrática do poder, houve um empenho em
formalizar um conjunto de saberes, representações e práticas que se caracterizariam pela
PEREIRA, Galiote. Algumas coisas sabidas da China por Portugueses que estiveram lá cativos e tudo na verdade que se
tirou de um tratado que fez Galiote Pereira, homem fidalgo que lá esteve cativo alguns anos e viu tudo isto passar na verdade
o qual é de muito crédito (1553-1563). IN Idem, p. 109
91 WILL, Pierre-Etinénne. Bureaucratie et famine en chine au 18 siecle. Paris: Mouton, 1980, p. 103.
90
25
legítima ascendência Han. Esse conjunto de representações, dogmatizados como “sínicos”,
associados à estruturação burocrática da etnia Han, manteve-se associado à prática imperial,
mesmo na alternância de dinastias no poder, ao longo de inúmeros e longos conflitos entre, por
exemplo, Hans e Manchus.
A alternância de etnias no poder central foi expressa em algumas transformações na produção
artistica. Essas transformações eram especialmente de ordem iconográfica (padrões de
vestimenta, indumentária, objetos, representação de hábitos) que diziam respeito a uma ou outra
etnia. Todavia, cores, materiais e formas de produção mantiveram-se quase inalteradas, o que
resultou num conjunto de gêneros artísticos que permaneceu por séculos associado ao poder
imperial e, ao que era considerado “sínico” ou, “chinês”.92 É especialmente à esse conjunto de
gêneros artisticos, ligados às representações imperiais, que os europeus se voltam, ao glosar a
“grande habilidade artística” dos chineses.
Período Song (960-1279), fundo de bandeja em laca e ouro.
Imagem extraída do site: www. ggjy. gdmoa. org
92
HOSTETLER, Laura. Qing colonial enterprise. Chicago: University of Chicago Press, 2001, p. 89.
26
Período Song (960-1279), pote em laca e ouro.
Período KangXi (1661-1722), pote em laca e ouro.
Dessa forma, a “admiração” européia da arte sínica não era tão que abarcasse todo tipo de
produção artística. Os elogios multiplicam-se quando se tinha à vista obras de arte de alta
hierarquia, específicas das coleções de altos burocratas governantes ou dos proprios palácios
imperiais - confeccionadas com materiais caros e que portavam iconografia de gosto
especialmente aristocrático:
São comumente muito engenhosos e sutis de mãos. Tem muitas invenções em toda obra:
principalmente na obra da marcenaria e do dibuxo [desenho, traçado]; e nas pinturas são bons
pintores, principalmente de folhagens e pássaros, como se podem ver nos panos que a nós vem da
China.93
[Os loujias] na maneira de suas pinturas são grandes artífices. Todas as taboas [de suas casas] hão
de ser pintadas de muitas lacarias e obra muito luzida, as paredes dos templos são de taboado muito
lavrado e pintado fazem de maneira com umas portas corridiças a maneira de encerados para que
quando vier uma festa do pagode se possam ver todas as partes do circuito as figuras que estão
dentro.94
A eloqüência das letras tinha outro sentido, entretanto, quando se tratava de artes de povos
pobres:
CRUZ, Gaspar da. “Tratado em que se conta muito por extenso...” IN: D´INTINO, Rafaella, ob. cit., 180.
Anónimo, “Enformação de algumas coisas dos costumes e leis do reino da China que um homem honrado, que lá esteve
cativo seis anos (...)”, In Idem, p. 73-74.
93
94
27
É este pagode chamado ´o Deus da fortaleza´, deuvi cotta e por isso nestas serras de grande
reputação, devoção e de muita romagem. A casa é humilde, triste e pequena, caiada com bosta que
têm muita devoção por ser de vaca, dentro mal cheirosa, escura, medonha, enfim o diabo. A
curiosidade me levou dentro; achei-o [o diabo] a um canto sujo, no chão, como merece, de 4 palmos,
negro nas cores, desbarbado mas bem afeiçoado, na mão esquerda um escudo. O terçado estava na
cinta do bucho, do braço direito lhe saía uma espada numa com morrião na cabeça. Logo um pouco
para dentro estava um tumulo quadrado coberto com dorsel de seda, à roda muitos buzios com que
os bramanes tangem e alguns defumadores (...). Ó valha-me Deus, que alvoroço, que alaridos, que
diabolica matinada!95
Havia, como se pode depreender, uma alternância nas cartas e relatos entre a admiração e o
elogio das virtudes da ordem e da hierarquia, e a condenação e o vitupério daquilo que era
considerado “barbárie” ou desordem.
1.2. Os signos e as nobrezas das terras.
Nos painéis acaroados com chinoiseries, a referência iconográfica “oriental” mais comumente
utilizada é o modo de composição das imagens que emula a pintura chinesa shanshui –
literalmente, “montanha-água”96.
O shanshui foi formalizado no Império Song (420–479) – dinastia de etnia Han da região
Sudeste, que elegeu como gênero da pintura de aquarela e carvão, fundamentada em dogmas
taoístas, a paisagem da região chamada Guilin. Guilin é uma região do Sudeste do território
atual da China, que tem como característica geográfica natural um conjunto de “montanhas” de
rochas metamórficas que se estendem altas a partir de lagos e rios. As condições térmicas e os
estreitos espaços entre uma e outra montanhas fazem com que o vapor da água permaneça
próximo da superfície da água, formando uma paisagem repleta de neblina.
AZEVEDO, Francosco de. “Carta de Francisco de Azevedo”, In DIDIER,, Huques. Os portugueses no Tibete: os primeiros
relatos dos jesuítas (1624-1635). Tradução de Lourdes Júdice. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos
Descobrimentos Portugueses, 2000, p. 174-5.
96 Shanshui 山水.
95
28
Dinastia Ming, MingJiuYin “Sob o destino imortal
1760, Brasil, Catas Altas. Detalhe do douramento
da gruta de jade”. Aquarela sobre papel, 167x65cm.
do Altar do Cristo Crucificado da Igreja Matriz de
Exemplo de pintura sínica do gênero ShanShui.
Nossa Senhora da Assunção.
Museu de arte antiga de Pequim
Foto: Gustavo Motta®
O gênero shanshui era regido por diversos preceitos e cânones filosóficos, e foi comumente
associado à poesia. Essas pinturas, àquele período, foram produzidas por uma classe de
intelectuais Han que primeiro debateu e estruturou o corpus artístico-político que se elegeu
29
como legitimamente sínico97, em resistência às tentativas dos Manchus de expansão a partir do
Império do Norte. Shanshui é um gênero que perdura na produção artística chinesa até a
atualidade.
O contato ocidental com as modalidades do shanshui esteve diretamente relacionado com a
circulação de porcelanas chinesas na Europa, através do comércio entre Portugal, França,
Espanha e Inglaterra e os Impérios Ming (1368~1644) e Qing (1644~1912). A partir do século
XVII, o comércio intercontinental foi uma atividade econômica importante na política
expansionista personificada pelo imperador KangXi (1654-1722, o primeiro da Dinastia Qing.
A política expansionista do início da Dinastia Qing tinha como meta a expansão do império ao
Sudoeste do território sínico, e a exportação de manufaturas aos reinos europeus era um dos
alicerces político-econômicos que propiciaram a ampliação do território imperal. Nesse período,
as oficinas manufatureiras foram ampliadas em verdadeiras vilas “industriais”, em que os
artesãos moravam e trabalhavam, em um regime bastante burocratizado de produção da arte.98
Dinasta Ming, pratos de porcelana manufaturados para exportação para as Companhias das Índias Orientais.
Imagens extraídas do livro: LEITE, José Roberto Teixeira.
A Companhia das Índias e a porcelana chinesa de encomenda.
Salvador: Fundação Cultural da Bahia, 1986.
O conjunto de práticas artísticas, culturais, políticas e familiares que se constituiu como “sínica” nesse período, perdurou
por séculos como sob a identidade de “cultura chinesa” ou sínica. Essa referência identitária consta da própria documentação
Ming e Qing, no período de expansão imperial a regiões sul e sudoeste, como modelo para um projeto de “achinesação” das
culturas abrangidas pela expansão. Cf. Hostetler, Laura. Qing colonial enterprise. Chicago: University of Chicago Press,
2001; WILL, Pierre-Etinénne. Bureaucratie et famine en chine au 18 siecle. Paris: Mouton, 1980.
98 HOSTETLER, Laura. Qing colonial enterprise. Chicago: University of Chicago Press, 2001, p. 80-99.
97
30
A estruturação de um complexo sistema de produção manufatureira, que visava à exportação,
alcançou seu auge em meados do XVIII, mas, já desde o século XVI, existiam na China fábricas
de manufatura de porcelana e outras mercadorias, voltadas ao comércio intercontinental. Foi
em meio a esse processo de estruturação comercial que o shanshui, em sua origem formulado
para a pintura em seda ou papel, mas já presente nas porcelanas imperiais do século XVI, foi
adaptado ao comércio e ao gosto europeu na produção massiva de porcelanas para exportação.
Nesse interim, houve uma multiplicação de signos e modelos do gênero shanshui, todavia
permaneceu uma estrutura básica: a ordenação das imagens entre montanhas, nuvens e rios, de
modo que os focos diversos da pintura apareçam numa composição de cenas, as quais
estabelecem uma relação semântica na obra. Essas cenas distribuídas na pintura são intercaladas
por espaços em branco ou levemente tingidos, indicando o elemento água (em brumas, nuvens,
rios, chuva) - o qual, de acordo com os dogmas taoístas que fundamentaram a composição do
gênero, representa o elemento dinâmico, que não oferece resistência à mudança, e que sugere a
passagem do tempo e a condução do homem “sábio” em meio às transformações impelidas pelo
ambiente.99 A composição dessa pintura sugere diversas ações concomitantes, a um só tempo
fluindo uma em direção à outra, e separadas por um véu intransponível ao olhar dos personagens.
As ações humanas, especialmente nas pinturas em papel ou tecido, são representadas como
limitadas pela ação do tempo e pela gigantesca presença dos elementos naturais. 100
99
“O bem supremo é como a água./ Água... apura as dez mil coisas sem disputa./ habita onde os homens abominam” (上善
者水 水善利万物而不争 处众人之所恶). In SPROVIERO, M. (tradução) Lao Zi, DaoDeJing. São Paulo: Hedra, 2007.
100
Cf. ZhuoFeng, no site WenHuaCN 拙风文化网 http://www.wenhuacn.com.
31
Dinastia Ming, WeiDuan “O canto ecoa no jardim dos pinheiros”.
Aquarela sobre papel.
230x124cm
Museu
de arte de TianJiang
O shanshui observava a técnicas de desenho e composição que só depois do século XIX foram
mais bem conhecidas entre os ocidentais, tais como: a perspectiva isométrica e a utilização da
montagem em desenhos de observação. A perspectiva isométrica, ilustrada no esquema abaixo,
foi formalizada na Europa no final do século XVIII, mas os chineses já se utilizavam desse tipo
de projeção perspectiva nas pinturas há séculos.101
KRIKKE, Jan. "A chinese perspective for cyberspace?". In: International Institute for Asian Studies Newsletter, Jun-Aug/
2006. Texto disponível em http://www.iias.nl/iiasn/iiasn9/eastasia/krikke.html.
101
32
À esquerda, projeção utilizando a perspectiva isométrica característica da pintura chinesa.
À direita, projeção utilizando a perspectiva linear, característica da pintura européia.
A perspectiva isométrica projeta a imagem em três diferentes pontos, sendo um deles
vertical, enquanto a projeção linear projeta a imagem em dois pontos laterais, que se
encontram por meio de linhas concorrentes.
Pintura em madeira de origem japonesa.
Ilustração de pintura em que se emprega a perspectiva isométrica.
Nota-se que o tamanho dos
personagens, à frente ou ao fundo do cenário, permanece o mesmo. Essa é uma das características
da perspectiva isométrica, utilizada, por exemplo, nas pinturas do gênero ShanShui.
Imagem extraída do texto: KRIKKE, Jan.
"A chinese perspective for cyberspace?" (ob. cit). Fig.3.
No gênero ShanShui, também é utilizada uma combinação do desenho de observação e da
montagem. Por um lado, a observação dos elementos naturais, um dos preceitos fundamentais
da pintura taoísta e confuciana, faz com que o artista procure dar aparência sólida e textura aos
33
elementos da pintura. Por outro lado, a projeção da luz – elemento principal do artifício da
perspectiva na pintura européia 102 –, na pintura sínica dá lugar à forma de montagem dos
elementos na superfície. A técnica de montagem dos elementos pode ser ilustrada pelo modelo
abaixo.
Instrução para composição de desenho de observação em manual estudantil de 1910, Tóquio.
Esta instrução segue o mesmo modelo de composição do gênero ShanShui, em que as
imagens, embora sejam desenhadas a partir da observação, são compostas pelo artista em
novas combinações, de acordo com os objetivos da representação.
Imagem extraída do livro CAMPOS, Haroldo de (org.).
Ideograma: lógica, poesia, linguagem. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1994.
A arte decorativa européia, entretanto, apropriou-se da aparência do arranjo das cenas diversas,
que foi recriada, nas chinoiseries, como elencos de ações – ou simplesmente um elenco de cenas,
gestos, motivos florais e ornamentais.
102
ARGAN, Giulio Carlo e ROBB, Nesca A. “The architecture of Brunelleschi and the Origins of Perspective Theory in
the Fifteenth Century”. IN The journal of the Warburg and Courtauld Institutes, Vol. 9 (1946), pp. 96-121. Texto disponível
em
www.jstor.org/stable/750311.
34
França, Daniel Marot (1661–1752), “Modelo
para uma lareira”.
Imagem: www. nypl. org
1765, Brasil, Mariana. Detalhe da pintura do
Cadeiral do Bispado da Igreja Sede de Nossa
Senhora da Assunção.
Foto: Gustavo Motta®
Ou seja, do procedimento compositivo da técnica shanshui, derivado de um complexo conjunto
35
retórico e filosófico, a arte ocidental paulatinamente apropriou-se da sua visualidade exterior.
Assim, de acordo com a produção alegórica das artes européias, característica dos séculos XVI
a XVIII, a aparência do shanshui foi valorizada exclusivamente como referência para uma
utilização pragmática das imagens – acervo de modelos esteticizantes, que serviriam como
adornos visuais persuasivos, pois estavam repletos do apelo espetacular do exótico.
A emulação das formas de composição shanshui deu-se, assim, em perfeito acordo com o
procedimento de produção, ou imaginação, alegórica: a imagem foi apropriada esvaziada de
seus fundamentos semânticos e estrutura formal 103 ; ou ainda, a aparência da imagem foi
conformada à superposição de novos significados, de acordo com o contexto em que se aplicaria
o produto de cada chinoiserie.
Não por acaso, além da estrutura compositiva, algumas chinoiseries emularam a temática
aristocrática presente nas pinturas ShanShui das Dinastias Ming e Qing.
~1723, Portugal. Detalhe das estantes do Piso Nobre da Biblioteca Joanina de Coimbra. Pintor contratante:
Manoel da Silva.
Imagem: www. bibliotecajoanina. uc. pt.
103
ARGAN, Giulio Carlo. Imagem e persuasão. São Paulo: Cia das Letras, 2004. pp: 22-32.
36
~1774, França. Design de Gilles Joubert (1689–1775)
Escrivaninha parte da coleção de Luis XVI.
Imagem: www. nypl. org.
No reino sínico, a estatização dos dogmas confucionistas – processo fortalecido entre os séculos
XVII e XVIII, sob a dinastia Qing –, promoveu a disseminação da idéia de “homem sábio” em
sua forma aristocrática (estruturada por Confúcio); a “sabedoria, dessa forma, era constituída
pelo exercício de práticas culturais estritamente elitistas (...) Tanto para Confúcio quanto para
Laozi o sábio indica sempre a perfeição moral e não a intelectual. Em Confúcio, esta se dá
sempre em função daquela.”104. À época da intensificação das viagens ao Extremo-Oriente –
por volta do século XVII – o gênero shanshui estava cada vez mais associado à representação
desses hábitos da elite política e cultural sínica.
Assim, as pinturas elogiadas por portugueses em terras sínicas portavam signos que
representavam estritamente hábitos relacionados a uma cultura de “corte” sínica. A relação com
elementos da natureza, nessas pinturas dizia respeito a um determinado tipo de contemplação.
104
SPROVIERO, Mario. Introdução. In: Lao Zi, DaoDeJing. São Paulo: Hedra, 2007, p. 26.
37
Dinastia Qing, MiangLianZe “Leitura no gabinete das
águas”, nanquim sobre papel, 174x76cm.
Museu de arte de JiangShu
Imagem: www. wenhua. cn
Foi também muitíssimo comum nas pinturas ShanShui, inclusive em porcelanas, a
representação de sábios, filósofos, conversando, refletindo, tocando música, exercitando a
caligrafia ou a pintura...
38
Dinastia Qing, “Dezoito sábios Han”. Museu de arte de ShangHai.
Imagem: www. wenhua. cn
Dinastia Qing, “Mulheres virtuosas tangendo o
quangqing”. Museu de arte de ShangHai.
Imagem: www. wenhua. cn
Regulando esses signos presentes nas pinturas e porcelanas shanshui, estavam os dogmas
confucionistas: “Diz o Mestre: desperta-te no interesse pela poesia das Canções; afirma-te pelos
Ritos; realiza-te na Música”105... Ou, nas palavras dos portugueses, em meados do século XVI:
105
Confúcio, Anacletos. ShangHai: Editora Internacional, 1997. Livro 8, Anacleto 8. Tradução minha. “子日: 兴于诗,立
39
“(...) na China não há outros fidalgos senão os letrados, e o que mais letras sabe é mais honrado
no reino e estimado del Rei (...)”106.
Dinastia Qing, “Um sábio KangXi”.
Museu de arte de Pequim.
Imagem: www. wenhua. Cn
Dinastia Qing. “Cinco sábios observam uma pintura”.
Museu de Arte de ShangHai.
Imagem: www. wenhua. cn
Aos olhos dos portugueses era digna de elogio a formação desses letrados, os loujias, e as
formas de burocratização e disciplinarização do governo por eles exercido. Segundo o aforismo
de Confúcio citado acima:
于礼,成于乐”.
106 D´INTINO, Rafaella. Enformação das cousas da China. (ob. ct), p.60.
40
I. Primeiro, as letras que proporcionam o “despertar” do homem sábio:
Todo homem que houver de reger província governar cidade e ter algum mando ou dignidade não
há de ser constituído por honra nem nobreza de parentes senão por muito letrado e homem de muita
prudência natural (...).107
II. Depois, os ritos que estruturam sua firmeza em relação a centralidade do poder imperial:
A maneira de se fazer loujias. (...) e são perguntados por muitas coisas muitas vezes. Se respondem
a tudo bem e os acham aptos para receberem o grau, lhes é logo outorgado (...). E os outros que
vem a este exame, que não acham aptos para receberem o grau, mandam que tornem a aprender, e,
se acham que é por culpa e negligência, dão-lhe muitos açoites, e alguns mandam meter no tronco.
108
III. E, por fim, como resultado, a conquista da relativa perfeição moral, pela fruição das artes e
hábitos refinados e nobres:
E são homens que pela maior parte tangem a viola à sua maneira, e para que só eles
tenham este desenfadamento é defeso, nestas cidades em que eles estão, que ninguém a
possa tanger senão eles.109
Ou,
são estes de sangue real comumente músicos e prezam se de tanger bem uma viola, são
comumente muito gordos, e são por conseguinte muito bem acondicionados, aprazíveis
e conversáveis e de muito boa razão, muito corteses, muito bem ensinados.110
Dessa forma, as cenas de costume sínicas, que representavam ações de alto valor hierárquico,
foram aproveitadas como uma temática a ser explorada, traduzida em representações corteses
características da cultura européia.
107
108
109
110
D´INTINO, Rafaella. Enformação das cousas... (ob.cit)., p. 68.
Idem, p. 108.
Idem, p. 128.
Idem, p. 185.
41
1765, Brasil, Mariana. Cadeiral do Bispado da Igreja Sede de Nossa Senhora da
Assunção, detalhe.
Foto: Gustavo Motta®
~1723, Portugal. Detalhe das estantes do Piso Nobre da Biblioteca Joanina de Coimbra. Pintor
contratante: Manoel da Silva.
O historiador de arte Antonio Filipe Pimentel, ao tratar das chinoiseries da Bilioteca Joanina,
descreve a temática presente nessas pinturas como associadas aos ideais árcades que estavam
presentes entre os intelectuais lusitanos do período. A representação de cenas de ócio e
contemplação, em cenários quase pastoris, seria, conforme o autor, índice da cultura dos
grupos que encomendaram tais obras. Cf. PIMENTEL, Antonio Filipe. “O gosto oriental na
obra das estantes da casa da livraria da Universidade de Coimbra” (ob. cit).
Imagem: www. bibliotecajoanina. uc. pt.
1.3. As cortes e as nobrezas das terras
As pinturas shanshui dos mandarins mostram um tempo das ações fundamentalmente lento: a
miudez dos personagens, frente à imensidão dos elementos terra e água, refere à lentidão dos
efeitos das ações humanas frente à natureza – o cavalgar é lento e pausado, deixa o espectador
entrever um longo caminho percorrido entre o templo no alto do penhasco e o palácio a que se
aproxima, onde ninguém se perturba com a chegada lenta dos viajantes.
42
Dinastia Ming, ZhouWo “Montanha ne primavera, um longo
cavalgar”. Aquarela sobre papel, 185x64cm. Coleção particular.
Imagem: www. wenhua. cn
O tempo lento das ações nas pinturas shanshui também é sugerido nos títulos, que descrevem,
na estrutura básica de quatro ideogramas, uma ação humana realizada num espaço da natureza.
A composição em quatro ideogramas, em mandarim antigo, é referência à forma canônica dos
poemas do estilo Tang (da Dinastia Tang 618-907). Em sua estrutura, dois dos ideogramas
descrevem a ação humana e sua forma de repercussão no ambiente, e, os outros dois
denominam o ambiente e um elemento natural que indica a estação do ano em que ocorre a
43
ação. Como por exemplo, o título da figura abaixo (“Longa mirada no rio com neblina”): os
ideogramas utilizados são, respectivamente: 烟 “neblina”,
江 “rio”, 远 “que vai longe”
ou “distante”, 眺 “mirar” ou “olhar ao longe”. A ação - expressa pelo último par de ideogramas
“longo/ que se estende longe (远) + mirar (眺)” estende-se lenta no espaço – realiza-se sobre
o contexto natural “neblina (烟)+ rio (江)”.
Os títulos-poemas também são utilizados como referência dupla aos dogmas confucionistas:
por um lado, como dito, as ações representadas nas pinturas shanshui são típicas da formação
e dos hábitos dos homens de letras, e, por outro lado, o próprio exercício da escrita em
44
mandarim antigo refere à prática da reflexão específica do homem de letras, ou “sábio” 111.
A escrita desses títulos-poemas foi baseada em um tipo de exercício, ou pesquisa, por parte dos
autores. Para escolher as palavras, considera-se também as respectivas etmologias: a arte
poética, neste caso, é realizada na fruição da visualidade semântica criada pelo poeta, pois o
significado não se dá apenas pela denotação das palavras, mas por sua aparência visual112. Por
exemplo, “mirar ao longe” 眺 é composto pelo radical “rosto” 目 e por “surgir” 挑. Ao longo
do tempo, esses títulos tornaram-se também, por sua vez, modelos, seguidas pelos aprendizes
dos mais tradicionais pintores – hoje, há uma infinidade de temas, modelos, ou, tópicas, que
propõem “situações” de relação homem-natureza portadoras de determinados significados
filosóficos ou religiosos.
Ao ritmo lento, modelo para as representações dos mandarins letrados e sábios – e formas de
suas preferências aristocráticas –, as chinoiseries européias vão superpor um outro tempo: o do
instante. As ações, nas chinoiseries, são representadas em cenas que privilegiam a ação
momentânea do personagem humano - a ação teatralizada de acordo com os dogmas em voga
nas cortes da Europa Ocidental.
Argan caracteriza um conjunto de pinturas européias do século XVII, em que o “tempo”
representado passa a ser o tempo do instante, em que age não um ser mítico ou sobrenatural,
mas, o personagem humano, ou, o “particular”:
Aquele que não tem e não busca uma visão universal, mas sim uma noção
clara, próxima, positiva da realidade. Para os fins da existência prática ou
da utilidade, a comunicação no nível das imagens parece mais eficaz do que
aquela no nível intelectual da forma ou do conceito, já que implica um
simples ´apropriar-se´, e não um esforço especulativo, o qual teria desviado
da operosa praticidade da vida.113
Cf. ELIADE, M., 1983, Vol. 2, p. 34-38. Homem de letras, ou “sábio”, são traduções encontradas na literatura ocidental
sobre o confucionismo, e que se referem á palavra shang ren 圣人: homem sábio, que alcançou a sabedoria. A palavra sheng
ren também é utilizada na língua chinesa contemporânea para designar “santo” nas traduções da literatura católica.
112 Cf. CAMPOS, 1994.
113 ARGAN, 2004, p. 58.
111
45
O “particular”, conforme a interpretação adotada por Argan, “não é o povo ou a burguesia como
classe ou estrato social, mas uma personagem histórica” 114, que na representação das imagens
de costumes, hábitos, cotidiano, tem reafirmada seu modo de existência em sociedade, e por
conseguinte os valores teológico-politicos prescritos a cada uma de suas encenações, de acordo
com sua posição hierárquica.
Os objetos (incluindo aqui os elementos da natureza), servem como adereços aos personagens
no teatrum mundi – ou seja, são representados em função da caracterização dos personagens e
suas ações (da delimitação de sua persona histórica). Os objetos, então, não tem relação com
sua representação mimética, ou, com sua forma ou regra divina. Os elementos naturais,
adereços, paisagens, figuram pragmaticamente, a compor um cenário que identifique
personagem e ação.
114
Idem.
46
Não à toa, as proporções de tamanho entre elementos naturais e homens são completamente
transformadas nas chinoiseries: flores, plantas, edifícios, adornos, animais, tudo ali está ao
alcance da mão, como num desfile característico das monarquias absolutistas, “como sinais de
riquezas, como posses dos membros da nação”115.
A transformação das proporções de tamanho entre personagens humanos, edificações e
Trecho de Apotolidès, em referência às entradas reais na corte de Luis XIV, utilizado aqui em função da semelhança de
procedimentos adotados entre os desfiles absolutistas e a composição alegórica nas chinoiseries. APOSTOLIDÈS, p. 22.
115
47
elementos da natureza, instaura um novo tempo para as relações representadas. Como adereços,
os elementos da natureza não mais se constituem como o meio em que as ações humanas
repercutem ou refletem – como na pintura shanshui –, tornam-se objetos submetidos à ação
humana, compostos e reorganizados conforme o personagem histórico ali carece a fim de tornar
sua cena eficaz... em seu contexto.
Esse tempo do instante é reafirmado no próprio objeto decorado ao estilo da chinoiserie, que
via de regra é objeto decorativo, ou seja, estofamento do cenário para determinados personagens
históricos. O instante caracteriza a relação que se tem com o objeto: adereço ou aporte para a
representação de um gesto teatral, enriquece a própria ação humana representada (tal um
Cadeiral).
O tempo das cenas nas chinoiseries sob o estilo shanshui é adaptado, de um lado, a fim de
recuperar uma imagem tópica da China do “luxo, calma e voluptuosidade”, e de outro a
emprestar sua estrutura de composição em cenas concomitantes à encenação teatral das elites
europeias (ou, no caso das chinesices, elites lusitanas ou brasílicas). Essas duas referências
temáticas são as mais comuns na composição decorativa nas chinesices. Nota-se que as duas
temáticas – a da China luxuosa, calma, rica em elementos naturais exóticos, e a de uma terra
voluptuosa em que os hábitos discretos e aristocráticos se multiplicam –, presentes em situações
diversas, acompanhando a disseminação das chinoiseiries, mantém referências às tópicas
utilizadas na escrita de relatos de viagens e cartas dos séculos XVI, XVII e XVIII que
48
descreveram as terras dos Chins, tais como: uma sociedade harmoniosamente hierarquizada, ou,
a riqueza da arte ornamental.
1.4. Da forma à imagem
A produção de ornatos como as chinoiseries tem como característica a possibilidade de infindas
combinações e composições entre repertórios diversos de signos; as obras variam em relação
às gravuras-modelo e em relação ao repertório de imagens especificamente oriental. Esse modo
de “combinar e recombinar” imagens é característico de um período em que a produção artística
prevê tais possibilidades de superposição de signos e significados.
O programa contrarreformista católico e a política absolutista atribuíram a persuasão como
finalidade máxima das imagens. O objetivo da imagem, no espaço sacro ou político, era a
comoção do fruidor em função de uma determinada mensagem. Dessa forma, o
contrarreformismo rompeu com o movimento classicista de busca da forma: imagem
portadora da Verdade Divina, expressa na harmonia entre seus elementos, espelho da harmonia
do Criador.
O Concílio de Trento, ao declarar herética a tese sola fide et sola escriptura (“só com a fé e só
com a escritura”)116, instituiu a necessidade da mediação entre signo e interpretação, a fim de
garantir o monopólio do sentido profético da concordância alegórica, analógica ou figural
estabelecida segundo o modelo da allegoria in factis, a alegoria factual da Patrística e da
Escolástica, que propõe a especularidade entre acontecimentos, ações e homens de ambos os
Testamentos para demonstrar que a verdade latente (latet) no Antigo está patente (patet) no Novo.117
Isso significa que a leitura e a exegese, de textos e imagens, deveriam estar aliadas à
interpretação de um indivíduo portador das “chaves” dos significados consensuais católicos. A
ideia de forma, que surgiu no Renascimento, portanto, não poderia mais ser aplicada em tal
contexto, pois nenhuma imagem ou palavra poderia portar, por si só, um significado
Verdadeiro.
A partir do século XVI, assim, tratadistas e teóricos contrarreformistas caracterizaram a imagem
numa relação direta com a Representação, que pode ser entendida como
116
117
HANSEN, João Adolfo. “A civilização da palavra” (ob. cit.) p. 20.
HANSEN, João Adolfo. “A civilização da palavra” (ob. cit.), p. 22.
49
o uso de signos no lugar de outra coisa; (...) a presença da coisa ausente; (...) a aparência ou forma
simbólica dessa presença; (...) [ou, enfim] a posição que é teatralizada nessa forma, e,
evidentemente, os vários conflitos das representações, extremamente rotineiros.118
Uma série de cuidados meticulosos são enunciados nos textos desses formuladores da teoria
contrarreformista da imagem.119 A Representação foi entendida como um dispositivo mental,
presente no homem, e pelo qual se poderia entrar em contato com a Verdade Divina – mas não
de modo direto. O signo (palavra ou imagem) deveria conter mensagens que, ativadas pela
palavra do discurso, propiciavam ao homem o contato com a Luz Natural da Graça (a qual era
impossível de ser explicada, de forma direta). A Luz Natural, e só ela, é que poderia despertar
nos homens o conhecimento da Verdade.120
Em estudo de 1925, Walter Benjamin assinala essa ascensão da visualidade “em representações
alegóricas, de caráter ético e político, uma vez que agora a própria alegoria tinha
frequentemente que tornar visível a verdade recém-descoberta”121. Benjamin retoma um marco
para a constituição da cultura artística do século XVII: a descoberta das salas, por séculos
ocultas, da Domus Áurea, no fim do século XV, e a crescente valoração dos grutescos122 (em
Portugal chamados brutescos) nas artes decorativas. Os grutescos, arabescos e outras imagens,
originárias das artes decorativas clássicas, são recuperadas em inúmeros manuais de pintura e
decoração, e compilados por artistas durante o século XVI.
Daí o nascimento das iconologias, impulsionado pelos esforços humanistas do século XVI em
decifrar os hieróglifos gravados em recém-descobertos monumentos egípcios. O humanista
italiano Leon Battista Alberti (1404 - 1472) comparou os hieróglifos egípcios com a escrita
alfabética em detrimento desta última, pois a escrita por meio de imagens teria o poder de maior
durabilidade da mensagem propagada; enquanto a fonética fatalmente cairia no esquecimento.
O florentino Marsílio Ficino (1433 – 1499) afirmava que os egípcios, através da escrita
HANSEN, João Adolfo. “Artes seiscentistas e teologia política”(ob. cit)., p. 182.
Entre os quais Francisco Pacheco (1564-1644), Gabriele Paleotti (1522-1597), Jan Meulen (1553-1585), e os próprios
registros textuais do Concílio de Trento. LICHTENSTEIN, Jacqueline. A pintura (ob. cit.).
120 ILVA, Franklin Leopoldo e. “Sobre alguns aspectos da relação entre fé e saber no século XVII”. In: Revista discurso. São
Paulo: USP, Departamento de Filosofia, 1983.
121 BENJAMIN, Walter. “Alegoria e o drama barroco”. In: Idem. Documentos de cultura, documentos de barbárie: escritos
escolhidos. São Paulo: Cultrix, 1986. Pg. 24.
122 Gruttesco é palavra derivada de gruta. A palavra é tomada de novo significado no século XVI, em função da descoberta
da Domus Áurea.
118
119
50
imagética, buscavam “criar algo correspondente ao pensamento divino, uma vez que a
divindade possuía o saber de todas as coisas, não como uma idéia cambiante, mas por assim
dizer como a forma firme e simples da própria coisa”.123
Dois séculos depois, Padre Antonio Vieira viria retomar essas duas funções da imagem já
disseminadas: a perenidade e a efetividade da mensagem. A imagem constituiu-se como forma
de representação que leva o homem a perceber o Pensamento Divino.124
Vai um pregador pregando a Paixão, chega ao pretório de Pilatos, conta como a Cristo o fizeram
rei de zombaria, diz que tomaram uma púrpura e lha puseram aos ombros, ouve aquilo o auditório
muito atento. Diz que teceram uma coroa de espinhos e lhe pregaram na cabeça (...). Diz mais
que lhe ataram as mãos e lhe meteram nelas uma cana por cetro (...). Corre-se neste passo uma
cortina, aparece a imagem do Ecce Homo, eis todos prostrados por terra, eis todos a bater nos
peitos, eis as lágrimas, eis os gritos, eis os alaridos, eis as bofetadas. Que é isso? 125
Antonio Vieira pergunta: se tudo o que está ali, em imagem, já estava presente em palavras, o
que mudou? Responde: “o que era ouvido, agora é visto”, e manifesta-se, portanto, como obra
de fé, via insuperável de arrebatamento e conversão. Segundo Hansen,
as imagens evidenciam a presença do que então é chamado ´desenho interno´, ou seja, a presença
da luz divina na consciência aconselhando a vontade, a inteligência e a memória dos artesãos,
poetas e escritores no ato da invenção das formas artísticas126
A Luz Divina aconselharia, dessa forma, à prudência, ou seja, à aplicação da imagem conforme
o contexto e a mensagem que deve ser comunicada. Conforme Benjamin, à inserção da alegoria.
em todas as esferas do espírito, as mais amplas e as mais limitadas – da teologia, da contemplação
da natureza e da ética até a heráldica, a poesia de circunstância e a linguagem amorosa –
corresponde o repertório ilimitado de seus recursos imagéticos. Para cada achado, o momento
da expressão coincide com uma verdadeira erupção imagética, uma chuva caótica de
metáforas.127
BENJAMIN, W. “Alegoria e o drama barroco” (ob.cit). p.24-25.
HANSEN, João Adolfo. Artes seiscentistas e teologia política. In: TIRAPELI, Percival. Arte Sacra Colonial. São Paulo:
Editora da UNESP, 2005. p.181.
125 VIEIRA, Antonio. Sermão da sexagésima. In: Idem. Sermões. Lisboa: Editora do Porto, 1951. p.14-15.
126 HANSEN, Idem, p.184.
127 BENJAMIN, W. “Alegoria e o drama barroco” (ob.cit). Pg. 27.
123
124
51
A imagem, dessa forma, tornou-se instrumento insuperável no programa persuasivo tanto para
a formação dos Estados Nacionais, quanto na política colonial – a fim de transmitir aos súditos
os códigos culturais da sociedade metropolitana.128
A fim de cumprir o objetivo da comoção e da persuasão, é fundamental retomar as imagens já
conhecidas e disseminadas na cultura do devoto. Daí a recuperação de signos clássicos, e às
vezes até de signos característicos das novas culturas recém-descobertas (indígenas, africanos,
orientais). A composição final é que poderá dar sentido e ordem à multiplicidade de signos.
A imagem se transmite e com ela se transmite a memória dos antigos significados, nos quais se
superpõem outros, novos. Mas não tendo uma consciência gnosiológica, muda através de um jogo
ininterrupto de analogias, associações, combinações, contaminações, adaptando-se as que agora
são somente necessidades acidentais de uso.129
Especialmente nos conjuntos artísticos sacros, constitui-se um tipo de imagem que Argan
denominou “imagem devocional” – um tipo de imagem que só é completada com a
interpretação, de acordo com os princípios de devoção. Dessa forma, a persuasão não se
caracterizava por discurso que atuava em direção única, de cima para baixo. Não havia
passividade na função do observador – esse se constituía como participante na encenação das
imagens: como devoto no templo, como expectador que acompanhava procissões ou festas,
como homem em sua ocupação cotidiana. A ordem propagada era forjada conforme princípios
de hierarquia, e por isso mesmo, o discurso só poderia ser completado na devoção: as imagens
contrarreformistas convocavam “até os mais humildes” a adentrar “as vias da glória celestial”130,
ou seja, convocavam todos a participarem da encenação sacralizada dos signos:
A imagem devocional não exalta a figura ´histórica´ e tende ao realismo (...): sua intenção é
mostrar que a virtude heróica não é só patrimônio dos antigos e dos grandes, que cada um pode
chegar a ser um santo também vivendo no mundo e adequando-se com ânimo devoto a seus
deveres sociais. (...) A devoção não é outra coisa que política: com efeito, se o fim é a salvação
do gênero humano, a política do Estado, como comportamento coletivo, deve ser o meio e
Cf. PAES, M. P. D. C. Teatro do controle (ob. cit). pg. 74.
ARGAN, Giulio Carlo. Imagem e persuasão (ob. cit), p. 14-15
130 ARGAN, G. Carlo. La Europa de las capitales. 1600-1700, p. 81. Também cf. PAES, Maria Paula Dias Couto. Teatro do
controle. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2000 (dissertação).
128
129
52
instrumento de salvação.131
A produção artística, nesse contexto, pressupõe a combinação e a variação, dentro dos limites
do decoro, de forma a comunicar conceitos dogmáticos a devotos em contextos tradicionais ou
não. Isso implica transformações nas formas de uso dos signos, tais como as que ocorreram na
formação do repertório do gênero chinoiserie. O vermelhão (utilizado havia muito) passou a
emular a laca (um produto raro e que começava a circular nas redes transoceânicas de comércio);
o gênero de composição shanshui passou a ser empregado como técnica de fragmentação e
elenco de cenas passíveis do elogio cortês; vegetais e indumentárias orientais foram mescladas
a referências visuais e gestuais absolutamente ocidentais... enfim, as chinoiseries são compostas
de fragmentos das visualidades orientais, ordenados e reapropriados com inúmeros outros
significados, de acordo com o contexto em que porventura fossem produzidas.
131
Idem. p. 23.
53
Capítulo 2
MÁQUINAS DO TEMPO INVENTADO
A obra não é apenas trabalho manual: também a imaginação é uma técnica, é
geradora de imagens que povoam o espaço da mente antes do espaço do mundo.
Consideremos, por exemplo, a ornamentação clássica antropomórfica ou
zoomórfica ou fitomórfica, e desenvolvida às vezes de tal modo a representar,
no breve giro de uma taça ou de um vaso, a figuração de um mito ou de um fato
histórico, como se a superfície do objeto fosse um espelho mágico capaz de
refletir as imagens do mundo externo, visíveis e não visíveis. 132
132
ARGAN, Giulio Carlo. Projeto e Destino. São Paulo: Ática, 2004. p.18.
54
Amanhece o dia alegre, como anelo do prazer, que todos esperavam
alvoroçados: armaram-se as ruas da entrada com muitas sedas, e outras
tapeçarias, que permite o país, com tão boa ordem, e tanta riqueza, que
este vário prospecto de opulência e primor infundia novo prazer aos
ânimos.
Trecho da narração do Áureo Trono Episcopal em Mariana, 1748133
2.1. Arte, maravilha, pragmatismo
As chinesices estão inseridas num amplo conjunto de manifestações artísticas européias em que
aparecem representadas imagens de exotismo e maravilhamento. Aliás, um dos mais
importantes postulados da retórica da produção artística coeva era o de causar o
maravilhamento e a comoção dos afetos no destinatário da obra. Esse maravilhamento poderia
ser provocado de várias formas: pela surpresa advinda de combinações inusitadas, feitas a partir
de referências conhecidas; pela perícia técnica do trabalho do artífice; ou pelo valor reconhecido
da mensagem transmitida134. Os painéis coroados da Capitania das Minas Gerais apresentam
multiplicadas imagens de sonhos bucólicos, luxuosos e corteses. Esse repertório de signos não
está dissociado do restante da produção artística retoricamente inventada do período; muito ao
contrário, só é possível analisar essas manifestações na sua condição de faceta de um sistema
amplo de produção de alegorias, imbricado em sua temporalidade: o contexto de administração
do Império ultramarino português.
Anônimo, “Áureo Throno Episcopal” in Revista do Arquivo Público Mineiro. Volume 06. Belo Horizonte: Imprensa
Oficial de Minas Gerais, abr/jun 1901. n. 2. pp. 379-491. p.390.
134 HANSEN, João Adolfo.“Teatro da memória: monumento barroco e retórica”. In: Revista do IFAC, Ouro Preto, n.2, p. 4054, dez. 1995.
133
55
Mariana, ~1765. Igreja Catedral de Nossa Senhora da Conceição (Sede) – Cadeiral do Bispado, detalhe.
Exemplo de combinação de referências diversas a vários “orientes”.
Foto: Gustavo Motta
Para essa análise, deve-se ter em mente a produção do gênero encomiástico nas artes lusitanas
– especialmente, quando esse gênero foi acionado para a produção de obras que representavam
a experiência de conquista e administração da América portuguesa ou da própria Capitania do
ouro. Assim, ao apontar para a generalidade da produção retórica encomiástica – ou seja, das
obras que utilizavam o enkomion ou o elogio das coisas consideradas belas e boas, segundo os
dogmas eclesiásticos e monárquicos – torna-se possível determinar valores específicos das
referências ao “Oriente” nas chinesices.
Os discursos, sermões e narrativas encomiásticos produzidos na Capitania das Minas Gerais
apresentaram diversas tópicas ou lugares-comuns relacionados à intensa imigração e à euforia
da formação das primeiras vilas e povoados mineiros. Essas tópicas retóricas – ou topoi –
constituíam argumentos genéricos usados para inventar formas alegóricas. Nelas, antigas
imagens de mitos grecolatinos e de passagens bíblicas eram citadas, preenchendo os
argumentos genéricos com novos significados particulares, relacionados aos contextos
contemporâneos de sua produção.135 Em Minas, no século XVIII, uma das tópicas retóricas
“Pensada como dispositivo retórico para a expressão, a alegoria faz parte de um conjunto de preceitos técnicos que
regulamentam as ocasiões em que o discurso pode ser ornamentado. As regras fornecem lugares-comuns – topoi (grego) ou
135
56
mais comuns nas produções foi a do desterro, combinada constantemente com as imagens de
fugas para o deserto, citadas do Antigo Testamento136. Outra tópica importante – presente, por
exemplo, no discurso fúnebre em homenagem ao Vigário Lourenço de Queiroz (1784) – é a
referência a uma Jerusalém mítica governada por Salomão137, ou seja, a imagem de uma terra
prometida e governada com riqueza e profusão de tesouros espirituais e materiais.
As chinesices produzidas na Capitania incluem-se nesse conjunto de obras do gênero
encomiástico. Isso porque (como se verá adiante), na ornamentação de templos católicos, as
celebrações e os ornatos estavam imbuídos necessariamente de caráter encomiástico. Ou seja,
o ornamento – e em especial todo tipo de douramento, entre os quais se incluem as chinoiseries
– era um artifício visível que constituía o elogio a valores invisíveis. No conjunto de
ornamentação do espaço sacro, retoricamente, as alegorias produziam a evidentia (a evidência)
que tornava visíveis valores e princípios abstratos do catolicismo e do poder monárquico.
Milenarismo no contexto de produção aurífera
Na fase inicial de prosperidade da produção aurífera, a Capitania das Minas Gerais viveu um
“crescimento demográfico, acompanhado de um surto urbano. O alargamento geográfico e o
aumento do meio circulante resultaram na expansão tanto do mercado interno quanto do tráfico
negreiro”138. O próprio fenômeno da intensa imigração e relativamente rápida estruturação de
aparatos administrativos urbanos estimulou a produção de tópicas relacionadas ao desterro e à
fundação de uma nova era de riqueza para o Império lusitano, marcando as manifestações
artísticas da Capitania do ouro até meados do século XVIII. Uma renovada Jerusalém fora
loci (latim) – e vocabulário para substituição figurada de determinado discurso, tido como simples ou próprio, tratando de
determinado campo temático. (...) Formando um conjunto de regras interpretativas, a alegorização cristã toma determinada
passagem do Velho Testamento – o êxodo dos hebreus do Egito guiados por Moises, por exemplo – e propõe que, numa
passagem determinada do Novo Testamento, seja a ressurreição de Cristo, há uma repetição.” HANSEN, João Adolfo.
Alegoria – construção e interpretação da metáfora. Campinas: Editora da Unicamp, 2006. p.9 e 12. Ver também BURKE,
Peter. “História como alegoria”. In Revista Estudos Avançados n. 9 (25). São Paulo: Edusp, 1995. pp. 197-212. Disponível
em www. scielo. br
136 NOVAIS, Fernando. “Condições de Privacidade na Colônia” IN MELLO E SOUZA. História da Vida Privada no Brasil
(V.1) (ob. cit.). As referências bíblicas a fugas para o deserto são várias: a fuga de Abraão para o deserto do Egito, a fuga de
Moisés pelo deserto de Sinai (ambas encontradas em várias obras, tais como, o discurso de posse do Governador Dom Pedro
de Almeida Portugal – 1717 –, e discurso fúnebre em homenagem ao Vigário de Queiroz – 1784), ou a fuga da família de
Jesus para o deserto, escapando da perseguição de Herodes (retratada, por exemplo, nas pinturas laterais da Igreja de Nossa
Senhora do Ó, em Sabará – ~1720). Sobre a presença do tópico do desterro na produção poética setecentista mineira, ver
também AMARAL, Sergio Alcides Pereira do. Estes penhascos. Cláudio Manoel da Costa e a paisagem de Minas (17531773). São Paulo: HUCITEC, 2003.
137 Cf. Cônego Luiz Vieira da Silva. “Elogio fúnebre do Revmo. Dr. Lourenço José de Queiros Coimbra e Vasconcelos” (ob.
cit).
138 SILVEIRA, Marco Antonio. O universo do indistinto (ob.cit)., p. 44.
57
imaginada por diversas pessoas que se relacionavam direta ou indiretamente com a empreitada
mineira139.
O Cônego Luiz Vieira da Silva, por exemplo, ao enunciar o discurso fúnebre em homenagem
ao Vigário de Queiroz, louvou seu trabalho de ornamentação da Matriz de Nossa Senhora de
Conceição de Sabará. Nesse discurso, a Matriz foi comparada a um templo de uma nova
Jerusalém – e assim, “ornada da mais brilhante variedade” para que não restassem dúvidas da
superioridade da instituição que ali estava sendo formada. Por essa dedicação, ao vigário
ficavam devidas “a majestosa fábrica, e toda a grandeza e opulência do Tabernáculo”140 que
esteve sob seus cuidados de 1734 até sua morte, em 1784.
Foram muitas as alegorias relacionadas a mitos milenaristas que circularam no imaginário
artístico do período inicial da estruturação administrativa na região das minas. Com o impacto
dos primeiros carregamentos de ouro, em quantidades nunca antes vistas 141 , as velhas
promessas de realização de um Império mundial português são retomadas e mitos de cunho
milenarista vêm à ordem do dia142.
Numa conjuntura de crise econômica, como a que caracterizou o final do século XVII, as
descobertas auríferas tenderam a ser interpretadas não apenas como o remédio à debilidade
das finanças portuguesas, mas ainda como o limiar de uma idade de ouro sem fim. 143
A multifacetada atualização de mitos edênicos relacionados à expansão ultramarina portuguesa
Ver, sobre as concepções milenaristas relacionadas ao Novo Mundo e à região das Minas, ROMEIRO, Adriana. Um
visionário na corte de D. João V: revolta e milenarismo nas Minas Gerais. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2001.
140
Cônego Luiz Vieira da Silva. “Elogio fúnebre do Revmo. Dr. Lourenço José de Queiros Coimbra e Vasconcelos” (ob.cit).
p.19.
141 Só nos primeiros trinta anos da mineração na Capitania, foram produzidos 15 mil quilos de ouro. Dados referentes a
produção aurífera de 1700 a 1730. Cf. MELLO E SOUZA, Laura de. Desclassificados do Ouro. Rio de Janeiro: GRAAL,
2004. p.70-74.
142 A palavra Milenarismo, aqui, refere-se a um conjunto de práticas e mitos difundidos nos séculos XVI e XVII na
Península Ibérica. Foram várias as combinações de mitos de salvação dos povos, por via de alguma manifestação
sobrenatural que determinaria um status de privilégio daquele povo em relação aos outros. Misturam-se, nesse complexo, o
sebastianismo lusitano (crença na volta de Dom Sebastião, morto em 1578, e conseqüentemente na salvação da soberania
portuguesa), o milenarismo (conjunto de interpretações apocalípticas da Bíblia que determinam a volta a um tempo
primordial em que o Profeta reina com paz e abundância), e o messianismo judaico (determinado por um tempo também
primordial em que um Messias realiza um paraíso terreal, numa Terra Prometida, reunindo os povos judeus). Essas crenças
misturaram-se a outras lendas e mitos populares, e misturaram-se umas as outras num longo processo de associação e cisão
de sociedades inteiras, pelas vias da formação das Coroas européias, dos grandes empreendimentos ultramarinos, e das
verdadeiras diásporas causadas pela instituição da Inquisição na península Ibérica. Ver NOVINSKY, Anita. “Sebastianismo,
Vieira e o Messianismo Judaico” IN Sobre as naus da iniciação – Estudos portugueses de literatura e história. São Paulo:
Editora da UNESP, 1998. pp. 65-79; ROMEIRO, Adiana, Um visionário na corte de D. João V (ob. cit).
143 ROMEIRO, Adriana. Um visionário na corte de D. João V (ob. cit). p. 158.
139
58
não era algo novo. Até fins do século XVI, o empreendimento lusitano (tanto nas conquistas
territoriais quanto nos portos de trato – sobretudo na África e Ásia) propiciou a multiplicação
de promessas de um futuro império católico lusitano.
A Portugal estaria predestinada a realização de um império mundial. De par com o grande
poderio que a expansão maritima traria, a Coroa ficaria apta a extrapolar as limitadas porções
de terra do Reino e, de chofre, garantir sua soberania política e econômica. No afã de realizar
esse projeto, após o início da expansão ultramarina até mesmo a posição geográfica do Reino
foi interpretada como um índice da promessa de soberania reservada aos lusitanos.
Eleito por Deus (...) Portugal – e particularmente Lisboa – convertia-se no centro de uma
cartografia político-religiosa (...). Centro do mundo, Lisboa reunia (...) as qualidades
necessárias para empunhar o cetro do Império universal. 144
O empreendimento expansionista constituíra, assim, o mapa de um mundo em que Lisboa
assenta-se no centro e no alto, segurando alegoricamente o cetro de um poder supostamente
herdado do próprio Criador. De par com a cartografia, a autorrepresentação dos portugueses
nos relatos de viagens pelos quatro continentes constituiu imagens de um povo que se
diferenciava de outras nações europeias nos métodos de conquista ao associarem “piedade” e
“benevolência” ao trabalho de submissão a El Rei ; constituir-se-ia, nesse tipo de discurso, uma
imagem nacional do direito legítimo de conquista, já que se encontravam sob a inspiração direta
de Deus145.
Os atos, por meio desse discurso, tornavam-se consagrados, pois seriam expressão legítima da
vontade do Criador, que se manifestava pelas mãos de um povo escolhido. Aos portugueses
estaria destinado propagar a doutrina evangélica às “bárbaras nações dos novos países, gente
só na figura humana distinta das silvestres feras (...) e os mais repugnantes, e indomáveis
sentiram a violência das armas para o domínio”146.
ROMEIRO, Adriana. Um visionário na corte de D. João V (ob. cit). p. 101.
Sobre a “autorrepresentação” portuguesa das conquistas ultramarinas, presente nos relatos e literatura de viagens, ver
SOUZA, Teotônio R de. “As impressões portuguesas da Índia: realidade, fantasia e auto-retratação” IN Actas de
Conferências Internacionais (FCSH). Disponível em http://hdl.handle.net/10437/542.
146 M ACHADO, Simão Ferreira. Triumpho Eucarístico (1733) (ob. cit.). p. 7
144
145
59
A descoberta de veios auríferos no interior da América foi alinhada a esse mesmo ponto de vista
e provocou a atualização de muitos dos primeiros mitos edênicos relacionados à expansão
ultramarina. Entretanto, no início do século XVIII – ou seja, três séculos depois das primeiras
empresas transoceânicas lusitanas – o entusiasmo já não era o único fundamento para engendrar
tais mitos. Especialmente para os grupos diretamente relacionados à administração ultramarina,
o entusiasmo de alguns grupos, visto com reservas, foi devidamente ordenado em projetos e
manobras políticas centralistas. O Conselho Ultramarino (criado em 1642), juntamente com a
Coroa e os governantes locais, estabeleceu na Capitania do ouro uma prática política que
“oscilava entre a pressão e o recuo”: ora cedendo uma relativa autonomia a potentados locais,
ora impondo governadores alinhados à Coroa a fim de cooptar aqueles mesmos poderosos
locais e garantir as diretrizes gerais de domínio lusitano no território de conquista 147. Assim, o
entusiasmo de alguns (primeiros exploradores das novas terras, primeiros mineradores e
navegantes) foi, durante o processo de “aprendizado da colonização” 148 , devidamente
aproveitado e integrado em práticas de administração, sobretudo através da ordenação
hierárquica de acordo com premissas e interesses reinóis – tais como a arrecadação dos
impostos eficaz.
Nesse contexto, as representações setecentistas de caráter encomiástico nas diversas artes não
podem ser consideradas as mesmas que as dos séculos XV e XVI, quando a constituição de um
império lusitano não passava de experiências locais limitadas. Em pleno XVIII, quando, por
exemplo, já não mais se podia sonhar com um Reino português das Índias, as chinoiseries não
poderiam somente dizer respeito ao que se imaginava do Extremo Oriente – há muito já
desvendado por descrições empíricas e pelo próprio fracasso do intento de conquista territorial
e política na Índia, China e Japão.
CAMPOS, Maria Verônica. Governo de Mineiros (ob. cit), p. 145-6. “(...) instaurava-se uma câmara com grande poder e
prerrogativas diante das autoridades nomeadas para sua fiscalização e controle; e, aos poucos, os nomeados do rei se
impunham e estabeleciam alianças com os potentados locais. Claro que o limite da eficácia da Coroa dependia não só dos
conflitos de potentados locais, de seu poder de pressão e grau de resistência tanto à cooptação quanto ao uso de meios mais
violentos de ação, mas também do jogo de poder e interesse maiores de outros polos, inclusive Lisboa.” Idem, p. 146.
148 ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes (ob.cit), p. 22; CAMPOS, Maria Verônica. Governo de Mineiros
(ob. cit), p. 145.
147
60
Artes e reinos dourados
Muito embora as decisões estratégicas amplas em relação à administração ultramarina tenham
sido feitas – é claro – por grupos reduzidos ligados à Coroa149, o ensino da retórica feito em
bases escolásticas disseminou entre os que estudavam as artes superiores da oratória uma forma
quase unívoca de interpretação dos fatos históricos. Em 1599, a Ordem Jesuítica publicara uma
das mais importantes ordenações dos estudos de retórica no Reino, a Ratio Studiorum, que
impôs a retórica escolástica como
uma das principais disciplinas do ensino jesuítico, sendo generalizada em Portugal como
modelo para todas as práticas de representação, pelo menos até o final do século XVIII e, no
caso do Brasil, até bem mais tarde, como pode evidenciar um rápido exame do currículo
seguido no Colégio Pedro II na segunda metade do século XIX.
150
Assim, pelo menos durante dois séculos, o modelo escolástico de interpretação de textos
escritos, da história e da própria natureza balizou as formas de representação muitos recantos
do Império, através da circulação de homens letrados, de governantes e de missionários.
A Retórica ensinada segundo essas fontes fundamenta todas as artes, que então se associam
intimamente à difusão do modelo cultural do cortesão, como apologia do ideal civilizatório
da "discrição" católica fundamentada na prudência das ações, na agudeza da dicção e na
civilidade das maneiras.151
A noção de “império” e a de “pacto de sujeição” – este, um dos principais dogmas da teologiapolítica escolástica e base do Direito da monarquia católica – foram, é claro, assimiladas entre
os súditos de formas diversas. Mas, entre aqueles que imigraram com responsabilidades
específicas – imposição da ordem política ou eclesiástica – predominaram as formas de
interpretação dos fatos, e de representação, de acordo com a exegese escolástica.
Nesse contexto, é possível falar em discursos e representações artísticas que se ligam, direta ou
SILVEIRA, Marco Antonio. O universo do indistinto. (ob. cit.), p. 45.
HANSEN, João Adolfo. “A civilização pela palavra” IN Lopes, Eliane Marta Teixeira; Faria Filho, Luciano Mendes;
Veiga, Cynthia Greive (orgs.) 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2007. pp. 19-41, p. 24.
151 HANSEN, João Adolfo. “A civilização pela palavra”. (ob. cit.), p. 25.
149
150
61
indiretamente, com o projeto Real de expansão ultramarina. Esses modelos de representação
englobam as diversas manifestações artísticas ligadas aos poderes centrais de administração dos
territórios de conquista (a construção e ornamentação de uma Matriz, por exemplo), e está
pautado na noção de superioridade política e cultural de Portugal, o “Reino predestinado”.
Conforme a exegese escolástica, a expansão marítima e a conquista de territórios foram
interpretados como caminhos abertos para a “dispersão das virtudes através da Magnificência
da Coroa” e tiveram uma utilidade dupla. Por um lado, “fazendo muitas vezes a sujeição dos
ânimos dóceis, e atentos a receberem a doutrina: amanhecendo então a esses povos a luz da Lei
Divina para a eterna felicidade”. Por outro, “servindo aos Portugueses o temor introduzido das
armas para as utilidades do domínio”152.
Nesse ínterim as multiplicadas descrições de terras longínquas aguardando pela conquista justa,
repletas de maravilhas – mirabilia paradisíacas ou satânicas –, tornavam-se elogios à própria
Coroa e ao empreendimento ultramarino. Ou seja,
a edenização da nova terra por parte destes cronistas pressupunha o colonialismo, a
percepção de que os seus atributos se integravam necessariamente na esfera do domínio
lusitano, e ao elogiar aquelas potencialidades, buscavam, na verdade, enobrecer os feitos da
Metrópole.153
Esses mitos edênicos podem ser considerados expressão de uma consagração da história da
expansão ultramarina. As lutas enfrentadas pelos primeiros colonos, na implementação das
primeiras vilas lusitanas no ultramar, foram vistas como verdadeiras lutas entre o Bem e o Mal.
Aquele “Bem” era integrado ora por virtudes civilizadas ligadas diretamente à cultura cortesã,
ora pela habilidade no manejo das armas e das negociações locais. Para o pioneiros da expansão
ultramarina, os novos mundos eram vistos com maravilha e aversão – mundos que deveriam
ser destruídos e possuídos, ao mesmo tempo. Trata-se do “substrato religioso e maravilhoso da
expansão”:
Para os primeiros colonizadores e catequistas da América, que viveram numa época em que
152
153
M ACHADO, Simão Ferreira. Triumpho Eucarístico (1733) (ob. cit.). p. 8.
ROMEIRO, Adriana. Idem, p. 162.
62
contendas religiosas dilaceravam a Europa, o recurso a tal embate não era simples retórica,
mas índice de mentalidade onde o plano religioso ocupava lugar de destaque. 154
Até o século XVII, nas narrativas de viagens, os territórios orientais ultramarinos eram
interpretados, alternadamente, como paraísos e infernos terrenos, de acordo com as virtudes ou
vícios que lhes atribuía o ponto de vista europeu155. A América portuguesa e boa parte da África
eram consideradas como imensos campos de domínio do Diabo. Nesses dois continentes, a
força das armas para a sujeição das almas era vista como legítima, já que os cativos sairiam de
uma situação de barbárie para uma de civilização, mesmo que sob o jugo das inúmeras faces
do cativeiro: um “tortuoso processo de moldagem da doutrina religiosa à ordem ultramarina” 156.
Artes para dourar reinos
Após o século XVII, as várias expressões artísticas de cunho encomiástico continuaram a
empregar as tópicas da “terra e tempo dourados”. Entretanto, o contexto de produção dessas
composições alegóricas já não era o mesmo. Nos idos do século XVIII, constitui-se um tipo de
rememoração do passado, que se relaciona às práticas administrativas lusitanas no (já nem tão
novo) Novo Mundo.
Governantes ligados à Coroa e ao Conselho Ultramarino constituíram um modo de operar em
que parece haver uma instrumentalização política dos dispositivos retóricos como dispositivos
de persuasão. A partir da própria experiência com essas formas de linguagem, imbricada num
processo de expansão e conquista, formou-se um “repertório de modelos de ação política”157, o
qual empregava topoi amplamente conhecidos a fim de moldar a elocução de certas medidas
administrativas políticas ou eclesiásticas. Essa inflexão pode ser percebida na utilização cada
vez mais frequente da “dissimulação honesta” e da “prudência”: conceitos de virtudes corteses
retoricamente formulados que permitiam a atualização eclesiástica da simulação maquiavélica
na política158.
MELLO E SOUZA, Laura de. Inferno Atlântico. São Paulo: Cia das Letras, 1993. p. 21-22.
A esse respeito, pode-se ver alguma das extensas coletânias de cartas jesuíticas ou fraciscanas escritas nos Reinos da Ásia
e América. Em especial, DIDIER, Huques. Os portugueses no Tibete: os primeiros relatos dos jesuítas (1624-1635).
Tradução de Lourdes Júdice. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000.
156 ALENCASTRO, Luiz Felipe. O Trato dos Viventes. (ob. cit). p.161.
157 CAMPOS, Maria Verônica. Governo de mineiros (ob. cit). p. 145.
158 Cf. HANSEN, João Adolfo. “A civilização pela palavra”, in Lopes, Eliane Marta Teixeira; Faria Filho, Luciano Mendes;
154
155
63
Nesse interim, o substrato religioso – e, portanto, as representações maravilhosas ou diabólicas
– imbricou-se com o conflito eminentemente político entre civilização (ordenação) e barbárie
(desordenação), especialmente nos contextos das populações ultramarinas.
Por isso é que, nas cerimônias e festejos setecentistas, as alegorias de maravilhas de todas as
terras são ordenadas com o propósito explicito de comunicar uma determinada ordem – sagrada
e histórica – àqueles que fruem as celebrações. Essa ordenação não é, de modo algum, fortuita.
Os propósitos de tais alegorias foram comumente explicitados pelos cronistas responsáveis pela
descrição das celebrações, assegurando sua interpretação tal qual foi planejada159. Assim, os
feitos (guerras e conquistas) bem como as memórias dos feitos (festas, crônicas e narrativas)
eram alinhados com propósitos centralistas – vide os infindáveis processos de publicação dessas
obras escritas, que, em sua maioria, só logravam circular após terem passado pelas três censuras:
a do Paço, a do Eclesiástico e a do Santo Ofício da Inquisição160.
Ao observar isoladamente os volumes de literatura de viagem, cartas de missionários e crônicas
dos séculos XV ao XVIII, pode parecer evidente uma “continuidade” ou “permanência” do
emprego de tópicas relacionados a “reinos dourados” e maravilhosos. Todavia, no século XVII,
há uma inflexão na produção dessas tópicas. Mas, para compreender a mudança de significados
atribuídos às tópicas de mirabilia após o XVII, é fundamental levar em consideração a mudança
no contexto de administração ultramarina que adveio com a Restauração (~1640) e com as
guerras holandesas (~1624-1654).
Durante o longo processo de Restauração, os territórios conquistados no Atlântico, bem como
as rotas comerciais que ligavam a América portuguesa à África e à Ásia, tornaram-se cada vez
Veiga, Cynthia Greive (orgs.) 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2007. pp. 19-41. “Tratarei
agora da simulação e explicarei plenamente a arte de fingir nas coisas que por necessidade parecem requerê-la. Mas é tão mal
afamada que estimo maior necessidade torná-la menor; (...) não sendo outra coisa dissimular senão um véu composto de
trevas honestas e decoros forçados, de que não se forma o falso, mas se dá algum repouso à verdade, para demonstr-a-la a seu
tempo; e como a natureza quis que na ordem do universo existissem o dia e a noite, assim convém que na esfera das obras
humanas exista a luz e a sombra, digo, o procedimento manifesto e oculto, conforme o curso da razão, que é regra da vida e
dos acidentes que nela ocorrem.” (1640) ACCETTO, Torquato, Da dissimulação honesta. Tradução de Edmir Missio. São
Paulo: Martins Fontes, 2001, pp. 17-18.
159 LARA, Silvia Hunold. Fragmentos Setecentistas, São Paulo: Cia das Letras, 2007; APOSTOLIDÈS, Jean-Marie. O reimáquina. Rio de Janeiro: Editora José Olympio; Brasília: Edunb, 1993. Para exemplos das descrições exegéticas das
celebrações setecentistas, ver os relatos do Triumpho Eucarístico (ob. cit); Áureo Trono Episcopal (ob. cit). Ver também
MELLO E SOUZA, Laura de. “Tensões sociais em Minas na segunda metade do século XVIII” In Norma e Conflito. Belo
Horizonte: Editora da UFMG, 2006.
160 Agradeço aqui ao Professor João Adolfo Hansen (DCLV-FFLCH-USP), pela informação.
64
mais importantes para a consolidação da soberania portuguesa.
De 1640 a 1668 Portugal enfrentou uma guerra global por sua sobrevivência, uma guerra
para ganhar o reconhecimento de sua independência dinástica e política, enquanto
assegurava seu poder sobre as possessões coloniais, tão necessárias ao sustento da própria
guerra.161
Conforme Stuart Schwartz (2008), há uma “tomada de consciência”, por parte da Coroa, da
importância das conquistas ultramarinas Ocidentais, sobretudo em face à falência das tentativas
de conquista territorial ou política nas Índias Orientais e ao nítido retrocesso da estrutura
comercial no Índico no século XVII162.
A manutenção das guerras holandesas e da Restauração por mais de trinta anos dilapidou boa
parte do patrimônio português adquirido no início da expansão marítima. Além disso, as novas
concorrências nos comércios de escravos e especiarias ameaçavam as mais importantes fontes
de lucros e tributos em que a Coroa portuguesa se apoiara. Portugal estava perdendo o status
de cabeça da expansão marítima, e, nos séculos XVII e XVIII, sua balança comercial esteve
cada vez mais dependente da Inglaterra.
Nesse contexto de crise duradoura, o início da empresa aurífera na América no XVIII renova
os ânimos de muitos. Então, as práticas lusitanas de representação artística recolheram inúmeras
imagens de um Oriente mítico para compor indumentária, carros alegóricos e ornamentação de
templos católicos e celebrações teológico-políticas. Assim fazendo, compunha-se um discurso
de celebração das riquezas e conquistas, o qual tecia uma continuidade entre a descoberta de
um pequeno Eldorado no eixo do Atlântico (início do XVIII) e os ideais de constituição do
Reino das Índias (séculos XV-XVI).
Em 1733, a fim de descrever a celebração do Triumpho Eucarístico em Villa Rica, por exemplo,
são relembrados (e transformados) vários feitos dos portugueses na expansão ultramarina. A
narrativa deixa claro o objetivo de produzir memórias:
161 SCHWARTZ, Stuart. “Prata, açúcar e escravos: de como o império restaurou Portugal”. IN Revista Tempo (online). 2008,
vol. 12, n.24. pp. 201-223. p. 220. Ver também SILVEIRA, Marco Antonio. O universo do indistinto (ob. cit), pp. 43-58.
162 SCHWARTZ, Stuart. “Prata, açúcar e escravos: de como o império restaurou Portugal”, Idem.
65
(...) porque a notícia tem estímulos para o exemplo; e dilatando mais a veneração, e glória de
vosso Santíssimo Filho, também dilata este motivo de vosso agrado (...) em que sempre nosso
afeto esteja referindo em perpétua lembrança (...).163
Um dos censores da obra também explicita as funções pragmáticas da produção de memórias
passadas:
(...) para que sua exaltada memória sirva de gosto, e alegria a toda a Igreja, e a todos os
Portugueses; de pasmo, e assombro a todos os infiéis; de admiração a todas as gentes. 164
O uso disseminado de referências às riquezas vindas do Oriente em diversas formas de
celebração realizadas na Capitania do ouro evidencia uma interpretação da história. Nesta
interpretação, estavam suprimidos os fracassos das empresas de conquista de um Oriente onde
supostamente as riquezas seriam amealhadas sem esforços – tal uma Idade do Ouro. O antigo
projeto de triunfo liga-se em solução de continuidade a uma possível realização na Capitania.
Seria então em outro hemisfério, no Atlântico, que se cumpririam promessas reafirmadas
inúmeras vezes – mesmo que, dessa vez, em meio a embates materiais e espirituais.
*
Em 1663, um padre português descreveu, enquanto fazia a viagem da Índia a Portugal, a
decadência visivelmente inevitável do domínio lusitano no Oriente. Declarou que o reino das
Índias: “se ainda não expirou completamente, é porque não encontrou um túmulo digno de sua
anterior grandeza” 165 .Talvez a Capitania do ouro não tenha sido um túmulo para tamanha
promessa de grandeza. Mas certamente ali foram erigidos pequenos mausoléus para as velhas
imagens de um império mundial.
163
164
165
MACHADO, Simão Ferreira. Triumpho Eucarístico. (ob. cit), p. 15
Idem, p. 19.
Apud BOXER, Charles R. O império marítimo português. São Paulo: Cia das Letras, 2008. p. 141.
66
CAPÍTULO 3 DE COMO TREMULAR AS IDEIAS DO ORIENTE
Mas o campo muito maior de aprendizagem é o que nos oferecem os mortos com
histórias escritas por eles, porque estas abrangem toda a vida do mundo e todas as
partes dele; e, na verdade, a história é o mais belo teatro que se possa imaginar.166
166
João Botero, “Da razão de Estado” (1651) (ob. cit.), p. 40.
67
CAPÍTULO 3 – De como tremular as ideias do Oriente
Como visto nos dois primeiros capítulos deste trabalho, as chinesices utilizam-se de referências
visuais orientais por meio da fragmentação e reordenação dos signos. Ao operar a fragmentação
de referências visuais diversas, a prática de ornamentação com chinoiseries produziu, ao longo
do tempo, um repertório consensual de detalhes arquitetônicos, ornamentais e gestuais que
supostamente seriam referências ao Oriente. Esse “Oriente” foi relacionado a todo e qualquer
adereço “exótico”, ou seja, a todos aqueles motivos ornamentais que não faziam parte de um
repertório latino clássico.
Por isso, a orientalização nas chinesices não faz referência a qualquer sociedade específica.
Trata-se de um “oriente genérico” 167 . Os signos pintados fazem referências a repertórios
imagéticos de várias partes do mundo. Além disso, as proporções adotadas entre os signos
igualam os tamanhos entre os objetos. As chinesices apresentam homens, animais, vegetais e
monumentos como pequenos desenhos ao dispor do pintor – peças que se misturam pelo prazer
da versatilidade – e não com o objetivo de ordenar, pela perspectiva, a representação de
paisagens.
Esse tipo de proporção entre os elementos da pintura é típico dos grutescos europeus, em que
há um certo tipo de “objetualidade” de todos os elementos nas figuras. Ou seja, qualquer
desenho – de pessoa, vegetal ou animal – é um objeto que se confunde com os outros, compondo
exatamente uma cena do diverso, do vário, do estranho.
167
ABRANTES, Dalva de Oliveira. Chinoiserie no Barroco Mineiro (ob. cit.)., p. 81.
68
Grotesco, 1600, Mathias Beitler (1560-1617),
Grotesco, 1623, Valentin Sezenius (Início do
Áustria.
XVII), Alemanha.
Fotos: bibliodissey.blogspot.com
Segundo o historiador Álvaro Samuel, nas chinoiseries – e também nas outras formas de
descrição de paisagens exóticas –, “entra-se no domínio da objetualidade, não de corpos mas
de objetos ou arquiteturas, onde a referencialidade tem um ponto de vista pejorativo e
ocidental”168. Assim, no domínio da objetualidade, a figura humana não representa um “homem”
ou “mulher”, mas antes a indumentária, os adereços, os gestos e os hábitos.
No intento de tornar quaisquer dos elementos “fragmentos encantadores” ao dispor do olhar
fruidor, natureza e manufatura confundem-se, tal o exemplo da pipa que também é pássaro
(figuras abaixo).
168
MOTA, Álvaro Samuel Guimarães da. Gravuras de Chinoiserie de Jean-Baptiste Pillement. p. 118.
69
~1730, Jean Pillement, França.
Biblioteca Pública de Nova York, n.1243
1688, A treatise of japaning... (ob.cit). Detalhe.
Imagens disponíveis no site da
Biblioteca Pública de Nova York, n.1243 (www.nypl.org)
70
As duas imagens fazem referência às pipas orientais, ornadas de modo a se assemelharem a
pássaros míticos; mas as duas composições deixam claro o intento de consitituição do “exótico”,
ou seja, de um ornamento em que as mais variadas formas naturais ou humanas tornam-se
objetos pitorescos.
Demonstração e exotismo
Nas chinoiseires, a objetualidade é ainda evidenciada pela multiplicação do gesto de mostrar.
~1723, Mauel da Silva, Coimbra.
Painel da Biblioteca da Universidade de Coimbra, Piso Nobre, detalhe.
Foto disponível em:
bibliotecajoanina.uc.pt/
~1765, Mariana.
Igreja Catedral de
Nossa Senhora da
Assunção
–
Cadeiral, detalhe.
Foto:
Gustavo Motta
71
~1760, Cocais.
Capela
de
Santo
Antonio – Púlpito,
detalhe.
Foto::
Gustavo Motta
~1765, Mariana.
Igreja Catedral de
Nossa Senhora da
Assunção – Cadeiral,
detalhe.
Foto::
Gustavo Motta
Entre os gestos de “mostrar”, por exemplo, há uma cena que apresenta um casal ocidental
“mostrando” dois orientais que, por sua vez, “mostram” um templo miscigenado. Note-se a
progressão dos tamanhos das figuras, culminando com a posição destacada do desenho dos
europeus que se apresentam àquela paisagem.
72
O gesto galante de mostrar os elementos à volta do personagem inexiste no gênero shashui, ou
outros gêneros orientais. É utilizado, no entanto, em alguns gêneros de pinturas a óleo ou
ornamentações do final do século XVIII.
S/d (meados do século XVIII). Jean Baptiste Pillement, “Paisagem com figuras”.
Coleção particular.
S/d. (meados do século XVIII) Jean Baptiste Pillement, “Paisagem de rio 2”.
Coleção particular.
73
Na pintura europeia de meados a fins do século XVIII, em especial nas artes francesas, toda
uma coletânea de gestos considerados galantes e discretos foi erigida como representação
daquele que é considerado discreto. O gesto de mostrar, por sua vez, em meio a representações
dessa temática torna-se também discreto, pois evidencia a contemplação de algo considerado
bom e belo.
A eleição e classificação de toda uma tipologia minuciosa de gestos e expressões faciais foi
realizada ao longo dos séculos XVI ao XVIII por tratadistas de várias partes da Europa.
Segundo esses tratados “os gestos são signos e podem organizar-se numa linguagem; expõemse à interpretação e permitem um reconhecimento moral, psicológico e social da pessoa.” 169
Assim, é discreto o que domina os protocolos dos decoros, com discernimento do que é
"melhor" em cada caso. É a mesma capacidade de fazer distinções que implica a possibilidade
política de também se aplicar o "pior", quando o "pior" é discretamente "melhor" - por
exemplo, como fingimento de falta de discrição adaptado à circunstância. 170
As chinoiseries do Cadeiral de Mariana e do Altar do Santíssimo Sacramento da Matriz de
Catas Altas estão repletas desse gesto. Entretanto, mesmo nos outros painéis, como o da porta
direita da sacristia da Matriz de Sabará, pode-se observar o correlato direto do gesto de mostrar:
o contemplar/ admirar.
169 REVEL, Jacques. “Os usos da civilidade” In História da vida privada – volume 3. São Paulo: Companhia das Letras,
2009. p.173.
170 HANSEN, João Adolfo. “O discreto” in Novaes, A. (org.) Libertinos, libertários. São Paulo: Cia das Letras, 1996. pp. 77102. p. 82.
74
Como visto já no capítulo segundo, as cenas que representam as ações de contemplação, – ou
do gesto de mostrar –, chamam a atenção a detalhes ornamentados dos painéis, e inserem-se
num programa visual de elogio de coisas boas e belas, representadas alegoricamente nos painéis
de chinoiseries dos templos católicos. Os gestos assumidos pelas figurações humanas, nesses
painéis, representam o elogio do próprio decoro e da discrição, através da emulação de cenas
corteses, dignas de serem imitadas. Isso porque, dentro da cultura ibérica dos séculos XVII e
XVIII, o modelo galante iluminista francês foi assimilado num contexto em que permaneceram
75
valores de centralização católica e monárquica.
Pode-se dizer, por isso, com historiadores e antropólogos, que a convenção do discreto foi
fundamental no processo de formação dos Estados modernos absolutistas ibéricos, nos
séculos XVI e XVII. Norbert Elias, por exemplo, propõe que o processo de centralização
monárquica funciona como uma interiorização psicossocial do constrangimento político
exterior por meio de um crescente processo civilizatório de controle do corpo e distinção das
maneiras. (...) Sendo a corte o modelo da centralização, o cortesão e suas maneiras foram
constituídos como o ideal da excelência humana.171
No caso das chinoiseries, a representação de cenas discretas em meio a um cenário repleto de
elementos exóticos, propõem o elogio da própria discrição. Pois que representa o
“encantamento”. Assim como em outras representações artísticas do período, as cenas das
chinesices propõem um “vário prospecto de opulência e primor [que] infundia novo prazer aos
ânimos” 172 . Ou seja, o apelo espetacular dos elementos exóticos servem como aparatos
persuasivos que agem para comover os afetos no fruidor, e persuadi-lo da mensagem central a
ser propagada.
Assim, os fragmentos exóticos que compuseram esses painéis, deixam claro um ponto de vista
e uma relação em que o exotismo se sobrepõe à representação. O objetivo não é a representação
do Outro, do “Oriente”; o objetivo da representação artística, ali, é mensagem dirigida a grupos
específicos da Capitania, que por sua vez deteriam o repertório de conhecimentos para
reconhecer tais signos como representação de valores desejáveis, tais como a discrição.
Os detalhes que referem a um “Oriente” nada mais são que adornos. A constituição de um
mundo “exótico” é dada através da “criação de um imaginário Oriente (...) partindo do
estereótipo topológico e cultural” lusitano173. Esse ponto de vista foi constituído já desde as
primeiras narrativas de viagem a territórios ultramarinos. O que se ressalta nas narrativas de
viagem, durante quase três séculos de relação comercial e política entre as Europa e os reinos
HANSEN, João Adolfo. “O discreto” (ob. cit.). p. 96.
Anônimo, “Áureo Throno Episcopal” in Revista do Arquivo Público Mineiro. Volume 06. Belo Horizonte: Imprensa
Oficial de Minas Gerais, abr/jun 1901. n. 2. pp. 379-491. p.390.
173 MOTA, Álvaro Samuel Guimarães da. Gravuras de Chinoiserie de Jean-Baptiste Pillement. p. 115.
171
172
76
das Índias, é a “percepção da diferença, mas num discurso eficaz de articulação do que foi visto
e pode ser reconhecido, tipificando e classificando os gestos, os costumes e mesmo as políticas
orientais”174.
De acordo com a historiadora Giulia Lanciani (1991), a circulação de imagens de terras
“maravilhosas” (junto das quais podemos igualmente incluir as “horríveis”, pois todas são
variantes das mirabilia medievais, e todas, enfim, servem ao maravilhamento),
(...) se propõe como expressão de um critério de diferenciação cultural entre valores de
referência propícios a instaurar uma comunicação entre o autor, seu público e as
prerrogativas de um mundo disforme.
Além disso,
(...) a maravilha se desencadeia pelo ingresso, em um contexto habitual, de uma estranheza
mais ou menos acentuada, que reconduz a um outro lugar quase sempre identificado a países
longínquos, aos quais um fascínio irresistível atribui o valor nostálgico de um bem perdido
que deve ser recuperado.175
Assim, conforme Álvaro Samuel, as chinesices incluem-se num gênero da pintura lusitana do
século XVIII denominado de “pintura de paízes” (segundo a expressão coetânea)176, e que tinha
como mote a retratação dos mais diversos exotismos, ornamentando desde iluminuras nos livros
de narrativas de viagens a móveis e pequenos utensílios.
Depreende-se, da disseminação de técnicas que visavam o exotismo, uma relação em que o
Outro não é conhecido em sua positividade (por aquilo que ele é), mas é visto como o negativo
daquele que olha.
É pelo domínio visual que serelata o diferente numa apriorística conceptualização da sua
condição de Outro. O conhecimento do diferente não é efectivo; é realizado por um
Idem, p. 116.
LANCIANI, Giulia. “O maravilhoso como critério de diferenciação entre sistemas culturais”. IN Revista Brasileira de
História. V. 11, n.21. São Paulo: ANPUH, Set/90-Fev/91. pp. 21-26, p. 22.
176 “Paízes (termo de Pintor). Painéis em que estão representados arvoredos, prados, fontes, casas de prazer e outros
aprazíveis objectos do Capo” Cf. BLUTEAU, Raphael - Vocabulário Portuguez e Latino (...), Coimbra, 1712, p. 187. Apud
MOTA, Álvaro Samuel Guimarães de. Gravuras de Chinoiserie de Jean-Baptiste Pillement (ob. cit), p. 65. Nota 152.
174
175
77
reconhecimento tipificado e preparado para ver, e designar, o que eventualmente se
desconhece e não se domina.177
Conforme Giulia Lanciani,
Vem daqui o desejo (...) de amalgamar ao [seu] próprio sistema [cultural] esse ´outro lugar´,
esse elemento diverso; daqui, também, o estímulo para encurtar as distâncias que abrem
passagem à estranheza e para empreender a viagem visando alcançá-la e torná-la sua
[própria].178
A única parcela apreensível do Outro é a visualidade da aparência, compreendida como ornato,
o qual se pode comercializar. Ao repetir inúmeras vezes o gesto de “mostrar”, as chinoiseries
operam uma “transmutação” dos objetos (templos, vegetais, animais, indumentárias) em
imagens puramente exóticas, que se tornam então pertencentes ao olhar do fruidor.
O gesto de mostrar, no conjunto das chinesices, pode informar simbolicamente sobre as relações
que existiam entre lusitanos e os povos ultramarinos. Diversas manifestações artísticas lusitanas
possuíram sinais desse mesmo contexto, na medida em que a circulação de peças de caráter
artístico de outros continentes provocou
a introdução de novas técnicas e temáticas na arte portuguesa. As temáticas exóticas passam
a ser copiadas e adaptadas (...), mas geralmente esvaziadas de seu conteúdo simbólico.179
Se as temáticas e técnicas das artes de outros povos são “esvaziados de seu conteúdo simbólico”,
o que é apreendido é somente sua visualidade empírica, em especial nos tipos de detalhes ou
adereços que podem ser apreendidos sob a forma de mercadoria ou inspiração para a invenção
de representações artísticas.
Ora, essa é uma relação forjada no contexto cultural expansionista ibérico, em que
o exótico orientalizante surgia na máscara, no traje e na arquitetura efêmera. O Oriente é
tratado e reduzido a uma fonte de inspiração estritamente decorativa (...) Adereço para
Idem, p. 118.
LANCIANI, Giulia. “O maravilhoso como critério de diferenciação entre sistemas culturais” (ob. cit), p. 22.
179 SANTINHO, M. Manuela; GOMES, Maria C. A., SOBRAL, Pedro D. A arte em Portugal e os descobrimentos. Porto:
Edições ASA, 1989. p. 124.
177
178
78
decorar, ou, com a mesma matriz, adereço oriental para refletir em formas e estruturas
absolutamente ocidentais.180
O historiador Charles Boxer, ao tratar das inúmeras pesquisas elaboradas pelos missionários
europeus na América, África e Ásia, esclarece que, a despeito da dedicação individual dos
viajantes em aprenderem língua e costumes das sociedades que pesquisavam, “os missionários
ibéricos provinham de um meio cultural que não os predispunha a uma grande curiosidade
intelectual” acerca dos povos com que entravam em contato. A busca por conhecer seus
costumes, língua, cultura, estava subordinada a um projeto bem delimitado: a evangelização e
o estabelecimento de relações diplomáticas para o comércio, quando não a subordinação
territorial ou política181.
No volume A Igreja militante e a expansão ibérica (1978), Boxer cita uma variedade de
exemplos nesse sentido. Através da análise da linguagem empregada pelos missionários – ao
descrever fatos ocorridos nas viagens a terras ultramarinas –, e, sobretudo, através das soluções
empreendidas por esses mesmos missionários no intento de evangelizar e catequisar os povos
orientais e índios de todas as terras, fica claro que embora os “missionários portugueses que
estudaram” essas culturas o fizeram “com seriedade, ou até de modo receptivo, jamais perderam
sua visão basicamente eurocêntrica nem o orgulho patriótico do papel de Portugal como Alferes
da Fé, Emblema ou Estandarte da Fé”.182 Veja-se este excerto de uma carta escrita por um
jesuíta português em viagem ao Tibete (1626):
Perguntei mais a este lama que queria dizer este: “Om mani patmeori”. Nem ele soube, nem
os outros a quem fiz esta mesma pergunta, e só dizem que são palavras de Deus e, sem dúvida,
ou não tem sentido algum, ou totalmente o não sabem 183 . Porém, não há pessoa que de
contínuo as não repita e é a reza mais ordinária de suas contas. Pareceu-me então conveniente
dar-lhe o sentido que elas não tem, porque é moralmente impossível deixarem de as dizer pelo
MOTA, Álvaro Samuel Guimarães da. Gravuras de Chinoiserie de Jean-Baptiste Pillement. p. 119 e 121.
BOXER, Charles R. Igreja Militante e Expansão Ibérica 1440-1770. (ob. cit). pp. 54-83. Idem, p. 69.
182 Idem.
183 O mantra “Ohm mani padme ohm” (transcrição fonética atualizada), é uma reverência ao princípio de divindade individual
e coletivo de todos os seres viventes. Não pode ser explicado ou “traduzido” totalmente, segundo os conceitos lamaístas de
oração – os quais pregam que o sentido das palavras religiosas está expresso também em sua forma, e, portanto, não se pode
mudar a forma sem perder o sentido e significado primordiais.
180
181
79
muito hábito e costume. Estando, pois, uma vez em casa do lama irmão do Rei, perguntei
aoutro pela significação e, não sabendo ele, fui perguntando a vários o mesmo sem haver
nenhum que respondesse. “Pois como rezam assim como papagaios sem saberdes o que dizeis?
Ora, já que não sabeis, eu vo-lo direi: ´Om mani patmeonri´, quer dizer: ´Conjo sumbo ga
dipâ ta e Rô´ (Senhor, perdoai-me meus pecados) e, quando as disserdes seja sempre neste
sentido, e com esta consideração. Acudiu o irmão del-Rei: ´Assim é como o padre diz, estas
palavras querem dizer: perdoai-me Senhor, meus pecados´. Daí por diante a todos fui dizendo
o que significavam e assim lhe ficara a peçonha delas em medicina do Céu e hoje em dia as
dizem muitos e juntamente lhes digo outras que tenham as mesmas sílabas, por serem a elas
muito inclinados, e muitos as rezam hoje, como estas: ´Verbum caro factum est; Jesus Santa
Maria´, etc.184
Os inúmeros volumes de cartas e narrativas escritas por esses missionários não deixam dúvida
dessa predisposição evangelizadora, que baseou a descrição do Outro pela via do exotismo e
do estranhamento.
3.1. Ordem e ornato
(...) se via agora na memória, e figura renovado para estímulo da pública
veneração desta Cristandade, e maior glória do mesmo Senhor.
Trecho da narração do Triumpho Eucarístico em Villa Rica, 1733.185
É possível identificar alguns significados locais atribuídos ao “ornato sem nome” 186 – ou seja,
aos conjuntos de brutescos e gêneros de estofamento e douramento dos quais fazem parte as
chinesices – através dos relatos de celebrações realizadas na Capitania das Minas Gerais. As
chinesices foram utilizadas, na Capitania do ouro na ornamentação de templos católicos, de
festas e indumentárias do período. Entretanto, para avaliar os usos e significados específicos de
sua utilização na ornamentação sacra, é possível tomar como referência as narrativas de
184 Segunda carta de Antonio de Andrade (1626). In DIDIER,, Huques. Os portugueses no Tibete: os primeiros relatos dos
jesuítas (1624-1635). Tradução de Lourdes Júdice. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos
Portugueses, 2000. p. 132-133
185 MACHADO, Simão Ferreira. Triumpho Eucarístico. Ob. cit. p. 90.
186 Conforme André Chastel define, de forma geral, as variantes do grutesco, justamente por se tratar de ornamentos que não
tinham “título” ou “objeto de representação”, e sim constituíam-se de desenhos compostos por formas ora oníricas ora
fragmentos de formas empíricas, combinados ao acaso e em função do encantamento e divertimento daquele que frui.
80
celebrações Reais e eclesiásticas, nas quais ficavam claros os significados de ordem sacra
associados ao ornato “sem nome”.
Os relatos do Triumpho Eucarístico (1733) e do Áureo Throno Episcopal (1748)187 são repletos
de descrições encomiásticas dos ornamentos utilizados em tais celebrações. Esses relatos,
utilizando-se do gênero retórico da ekiphrasis, a um só tempo descreveram, exaltaram e
preencheram de significados teológico-políticos aquelas manifestações artísticas visuais188.
Nessas peças, o ornamento é descrito como sinal visível do triunfo do poder monárquico ou do
eclesiástico. O ornamento constituía-se como resultado do lavor humano, que o assemelhava a
“coisa do Céu”, e demonstrava que a causa celebrada “se já não era triunfante, ia triunfadora” 189.
Isso porque transformar a matéria bruta (a madeira, o metal, a terra) numa matéria semelhante
aos tesouros celestes (o Sol, as Estrelas, a Luz) era uma forma de realização da natureza divina
do homem, que assim estaria repetindo a Criação divina no âmbito do manejo dos elementos
naturais.
Através da relação de representação analógica, proposta pelos tratados da arte contrarreformista,
o dourado e a púrpura, por exemplo, a um só tempo representam Deus, e todas as suas formas
de ação no mundo: tais como a própria capacidade humana de representar o que se assemelha
à divindade, através do artifício.
Avanço para outra maior ponderação e elogio: O altíssimo Deus é soberano artífice em
fazer santos e quer e ordena que se lhes dê particular reverência e adoração. Os pintores
católicos o imitam. E, ainda que seja infinita a diferença que há entre o Criador e a criatura,
quase igualou-se (ó soberana alteza e honra da pintura!) na veneração e respeito e
Áureo Throno Episcopal é o nome dado a narrativa das festividades que ocorreram em 1748 por ocasião da posse do
primeiro Bispo de Mariana, D. Frei Manoel da Cruz. Celebrou-se, a um só tempo, a erição do primeiro Bispado da Capitania,
a vinda do Bispo e o novo status de Cidade dado à antiga Vila de Mariana. A crônica ainda refere às reformas urbanísticas
que se seguiram a essas implementações eclesiásticas e administrativas. Cf. Anônimo, Áureo Throno Episcopal, ob. cit;
SILVA, Fabio Gomes. “A construção da urbes”. IN: Revista do Arquivo Público Mineiro. V. 45. Belo Horizonte: Imprensa
Estadual de Minas Gerais, jul-dez de 2009. pp 104-119. n.2.
188 “Nos progymnasmata, exercícios preparatórios de oratória escritos por retores gregos entre os séculos I e IV d.C.,
ekphrasis (de phrazô, ‘fazer entender’, e ek, ‘até o fim’) significa ‘exposição’ ou ‘descrição’, associando-se às técnicas de
amplificação de tópicas narrativas, composição de etopéias e exercícios de qualificação de causas deliberativas, judiciais e
epidíticas. (...) Como exercício de eloqüência, a ekphrasis é uma pragmática: evidencia justamente a habilidade do orador que
espanta a audiência com a narração da falsa fíctio tornando o efeito provável porque sua imaginação é alimentada pelos topoi
da memória partilhada.” HANSEN, João Adolfo, “Categorias epidíticas da Ekiphrasis” IN Revista da USP, n.71. São Paulo:
Edusp, nov de 2006. pp. 85-105. p. 92. Disponível em www. scielo. br.
189 Anônimo, Áureo Throno Episcopal, ob. cit., p. 439.
187
81
adoração ao santo a quem fez sua majestade à imagem que, a sua imitação, fez o pintor.190
Assim, a matéria visível lavrada deveria atingir a precisão do ornato equivalente às obras
“divinas” ou naturais; por extensão, uma sociedade harmoniosa e ordenada é representada nos
artifícios da ornamentação. Ordem e ornato, duas faces visíveis de uma sociedade rica das
virtudes invisíveis.
Como é descrito no Áureo Throno Episcopal,
(...) toda esta máquina comunicou a pintura tanta naturalidade que elevada a vista nos
acidentes dos artifícios, facilmente se deixava persuadir a que era fabricada aquela estrutura
da melhor pedraria.191
ou, mais adiante,
Tudo nelas era celeste: o ouro, a prata, entretecido nas primorosas sedas, que vestiam, ou
competiam com a Via Láctea no brilhante, ou, com os reflexos do Sol no refulgente. Os
diamantes, os rubis, e outras pedras preciosas, de que se ornavam eram emulação das Estrelas,
com que se adorna o Firmamento.192
Por sua vez, as técnicas de pintura com o vermelho de charão e o dourado emulavam a laca
oriental e o próprio ouro. Os elementos das chinesices são feitos com o próprio ouro. Em 1638,
Francisco Pacheco, um tratadista da pintura contrarreformista, explicou esse tipo de
representação, em que o lavor dos elementos naturais os transforma em emulação de elementos
divinos e valiosos: “do modo que, quem respeita o rei vestido de púrpura, respeita também a
púrpura; aquele como razão principal, e esta como coisa complementar”.193
Assim, a emulação de objetos valiosos poderia aproximar o homem do próprio Deus, o qual
fora representando na Emblemática ora pelo Sol, ora pelo próprio Ouro. O Ouro, de acordo com
esse tipo de representação, figuraria a expressão do pensamento de Deus como Luz que ilumina
PACHECO, Francisco. A arte da pintura (1644). In LICHTENSTEIN, Lacqueline. A pintura – A teologia da imagem e o
estatuto da pintura. (ob. cit)., p. 86.
191 Idem, p. 401
192 Idem, p. 438.
193 João Pacheco (1638) in LICHTENSTEIN, Jacqueline. A pintura – A teologia da imagem e o estatuto da pintura. (ob.
cit).., p.87.
190
82
o pensamento do Homem. Todavia, no contexto do emprego monárquico dos dogmas teológicos
contrarreformistas, também a Coroa era divinizada; e os materiais preciosos representavam
tanto Deus quanto a Coroa, tanto as ações de Deus, quanto as ações ligadas a Coroa.
O Áureo Trono Episcopal explicita a “razão principal” dos ornamentos no contexto da Cidade
de Mariana e a função social daquilo que era lavrado em celebração à ereção do primeiro
Bispado da Capitania em 1748 (entre os quais foram incluídos, alguns anos mais tarde, os
painéis do Cadeiral do Bispado):
Toda esta luzida tropa ostentava em finíssimas tarjas de prata, e de outros materiais, em que
se esmerou a arte (...) ensinam as inumeráveis felicidades, que terá esta Diocese com a
inestimável posse do Prelado tão excelso (...). Por isso foram os faustos augurantes enigmas
do triunfo.194
A descrição segue, qualificando o ornato como instrumento de persuasão da ordem hierárquica
pelo apelo aos sentidos e pela comoção dos afetos:
(...) já pelas muitas joias do diamante, e mais pedras preciosas, que ornavam as figuras; já
nas melhores sedas de ouro, prata, e matizes, que preciosamente trajavam; já nos vários
toucados de plumagens, e outras galanterias, em que o enfeite se esmerou; já os briosos
cavalos, cobertos de preciosos jaezes (...); já na admirável e soberba arquitetura dos carros;
e já finalmente na suave melodia da música, de que um e outro se ouvia, ficavam os sentidos
em tanto pasmo que na gostosa atração, em que se elevavam só rendiam admirações à
magnificência e esplendor de tão glorioso objeto 195.
Nesses trechos, é possível identificar que as artes ornamentais inseriam-se nos conjuntos
pictóricos como reverberações das imagens centrais ou como celebração delas (um crucifixo,
por exemplo).
Ora, é o mesmo o ornato nos conjuntos arquitetônicos e o ornato das festividades e procissões.
Ambos emolduram uma figura central - como os pajens, crianças e negrinhos intercalavam as
194
195
Anônimo, Áureo Throno Episcopal, ob. cit.,p. 439.
Anônimo, Áureo Throno Episcopal, ob. cit., p. 402.
83
figuras representativas de maior importância hierárquica nos desfiles. Nas procissões
setecentistas mineiras, por exemplo, signos dos panteões romanos, mouros, indígenas e
africanos intercalavam os personagens ilustres, ladeavam cavalos, sustentavam cadeirolas e
animavam os festejos com músicas e danças mestiças – tudo a fim de reverenciar as razões
principais de celebração: corpos de Cristo, Santíssimos Sacramentos, prelados da Igreja, recémchegados governadores reinóis.
Imaginação como técnica
Tal qual o “ornamento sem nome”, as chinesices não compõem emblemas ou cenas
propriamente exegéticas e sim composições próximas do onírico. Não se constituem como
emblemas a serem interpretados, mas sim como frutos de uma interpretação da história e do
mundo. As chinesices trazem ao olhar paisagens orientalizadas, em meio a cenas de “luxo,
calma e voluptuosidade”. Propõem, no espaço do templo católico, uma espécie de janela para
inúmeros exemplos da riqueza material e espiritual.
Acima, detalhe da ornamentação do Cadeiral da Sede de Mariana, 1765. Abaixo, detalhe da ornamentação da
Biblioteca Joanina de Coimbra, 1735.
Imagens: (acima) Gustavo Motta; (abaixo) página eletrônica da Biblioteca Joanina de Coimbra.
84
A fusão das riquezas materiais e espirituais, num único e fértil conceito de Liberalidade
Divina196, é freqüente nas representações alegóricas luso-brasileiras. Isso porque, para o sistema
de composição retórica das artes contrarreformistas, as expressões visíveis de riqueza nada mais
são que a expressão das invisíveis riquezas divinas. Esse dispositivo de representação tornava
as expressões visíveis da Natureza e da História em manifestações, inacessíveis de forma direta,
da Divindade. A composição artística ibérica seiscentista e setecentista era toda pautada por
esse dispositivo de representação, o qual era considerado uma habilidade herdada do próprio
Criador para que a criatura O pudesse conhecer, mesmo em sua mente limitada197.
De acordo com esse tipo de representação, chamada “anagógica”, o artista “inventa formas que
correspondem aos modelos discursivos dominantes”198, em que a alegoria sensível remete a um
“desenho interior” – este sim de caráter divino, pois que diretamente inspirado por Deus. No
âmbito da prática desse tipo de representação, foi constituída uma verdadeira “técnica de
imaginação”199 em que a interpretação alegórica torna possível “ampliar o domínio do espírito
sobre a realidade, atribuindo sentido alegórico à flora, magia à fauna e grandeza sobre-humana
aos atos”, ou ainda, “(...) dar transcendência às coisas, fatos e pessoas” transpondo “a realidade
196 “Faz-se bem também com a Liberalidade, e isto de duas maneiras: uma é libertar os necessitados da miséria, outra é
promover a virtude (...) nem se pode imaginar coisa mais adequada e mais eficaz para cativar as almas dos povos e obrigá-los
ao seu Senhor.” (1589) BOTERO, João. Da razão de Estado. Tradução de RALHA, Raffaella Longobardi. Coimbra: INIC,
1992.
197 Cf. LICHTENSTEIN, Jacqueline (org.). A pintura – A teologia da imagem e o estatuto da pintura. Textos essenciais. São
Paulo: Editora 34, 2004; HANSEN, João Adolfo. “Artes seiscentistas e teologia-política” in Tirapeli Percival Arte Sacra
Colonial. São Paulo: Editora da Unesp, Imprensa Oficial do Estado, 2001a. pp. 180-189.
198 GROULIER, Jean-François. “A teologia da imagem e o estatuto da pintura” In: LICHTENSTEIN, 2004, p.14
199 Para uma leitura da imaginação artística como técnica, ver ARGAN, Giulio Carlo. Imagem e persuasão e Projeto e
destino (ob.cit). “(...) Há uma técnica da mão e do pincel e uma técnica da imaginação. Mas é sempre técnica,
independentemente do grau, e toda técnica pressupõe uma finalidade.” ARGAN, G. C. Imagem e persuasão, p. 34. “Nos
teóricos do século XVII, é bem clara a idéia de que o ´engenho´típico do artista é a imaginação, e de que esta atividade é
nitidamente distinta daquele que produz conceitos e noções, bem como daquela atividade a um tempo intelectiva e
representativa que, no Renascimento, produzia em igualdade de valor formas sensíveis e conceitos abstratos.” ARGAN, G. C.
Idem, p. 51.
85
local à escala do sonho”200.
Colocando em funcionamento tal técnica de imaginação, os signos de origem profana
compuseram os conjuntos alegóricos sacros como exemplos da universalidade da
Magnificência Divina, que atraía para si aqueles que admiravam seus triunfos (os antigos
personagens romanos e os representantes dos gentios da terra, por exemplo). Os usos sacros do
profano, por outro lado, transformam as imagens oriundas de panteões laicos em “apêndices
pitorescos”201, que chamavam a atenção do povo e efetuavam o riso pedagógico. O escárnio da
desordem era feito lado a lado do elogio das virtudes. Devidamente inserido e ordenado no
theatrum sacrum, o profano tornava-se sacro, pois ali cumpria
uma função pedagógica
absolutamente decorosa.
Assim, o ornamento não era de modo algum independente do conjunto da obra em que estava
inserido. Ao ser disposto nos entremeios das pinturas e personagens principais de um templo
católico, servia a um prazer e a uma beleza não menos edificantes e propositivas.
As imagens distraem a realidade do objeto como um utensílio (...). Toda intervenção operativa
na matéria, mesmo a mais simples, a constitui como valor de espaço: ela é polida, lustrada,
burilada, esculpida, modelada para modular a sua reação à luz, portanto mais uma vez ao
espaço, para definir as distâncias em que a peça de matéria lavrada terá possibilidade de
relação, será algo além da própria realidade física, se dará como fato espacial.
202
No caso do douramento das chinesices, a composição de cenas oníricas e corteses mesclou
signos das mais diversas procedências do Império lusitano, e propôs no espaço de alguns
templos católicos a reverberação de uma história e de uma consagração, de um triunfo.
Por ocasião do Triunfo Eucarístico, Simão Ferreira Machado elogiou as sedas, bordados e
aromas provindos do Oriente, e descreveu-os como “primorosos e exquisitos lavores entre ouro,
e prata, tremulando as ideias do Oriente, troféus à opulência do Ocidente”203.
CANDIDO, Antonio. “Literatura de dois gumes”. IN A educação pela noite. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006.
p. 204.
201 Idem, 200.
202 ARGAN, Giulio Carlo. Projeto e Destino. Ob. Cit. p. 18.
203 MACHADO, Simão Ferreira. A respeito da ornamentação com tecidos orientais em Vila Rica, 1733, na ocasião Translado
do Santíssimo Sacramento para a nova Igreja Matriz do Pilar. In O Triumpho Eucarístico, 1733. (reprodução a partir da
200
86
Ao relacionar as mercadorias de procedências orientais com a “ideia de Oriente”, e, mais do
que isso, ao colocar a memória da expansão portuguesa comercial ao Oriente em posição de
celebrar a opulência do Ocidente, Simão Ferreira Machado pautava-se na noção eclesiástica de
história “consagrada”204. As referências mais disparatadas a um “oriente genérico” poderiam, a
partir desse viés, relembrar a expansão portuguesa a regiões orientais e extremo-orientais e
preenchê-las de novo significado: troféus às conquistas ocidentais.
Múltiplas finalidades da alegoria
As chinesices não serviram só à exaltação das virtudes ligadas à riqueza e à ostentação. A
utilização das alegorias – característica compulsória das artes do período – multiplicava o
espectro de significados associados a cada ícone205. O que ao primeiro olhar pode ser limitado
a uma demonstração de Magnificência e Opulência – virtudes associadas ao valor comercial da
laca e do ouro – é inseparável da Liberalidade e da noção de que toda liberalidade tem um
centro que distribui bens206.
Excede as povoações de toda a América este opulento hemisfério das Minas, onde avulta, mais
que as riquezas, o fausto dos Templos, e a preciosidade dos Altares: (...) mais que esfera da
opulência, é teatro da religião, glória da Monarquia.207
Como se pode constatar pelas peças encomiásticas coevas já citadas, os vários gêneros de
ornamentação (nas representações vistas, lidas ou ouvidas) eram formas de rememoração de
feitos, dogmas e parábolas; e essa rememoração era realizada através da comoção dos sentidos
– sempre relacionados com a persuasão acerca da universalidade dos poderes centrais figurados
nas representações, a Igreja e a Coroa.
Mas os ornamentos produzidos em meio a contextos por vezes crivados de conflitos entre os
interesses locais e os interesses metropolitanos poderiam indiciar essa tensão. Enquanto gênero
pictórico, essas representações invariavelmente seguiam padrões dominantes, centralistas, pois
imagem digital) Rio de Janeiro: Fundação da Biblioteca Nacional, 1995. p. 44.
Noção desenvolvida adiante, neste mesmo capítulo.
205 HANSEN, João Adolfo. “Teatro da memória: monumento barroco e retórica”. In: Revista do IFAC, Ouro Preto, n.2, p. 4054, dez. 1995
206 Para uma análise coeva da inter-relação dessas virtudes, ver BOTERO, João. Da Razão de Estado (1589). Tradução de
Raffaella Longobardi Ralha. Coimbra: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1992.
207 MACHADO, Simão Ferriera. Triumpho Eucarístico. Ob. cit. p. 27.
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a prática consensual dos artífices era rigidamente fundamentada em padrões ortodoxos e a
noção de “criação”, romanticamente definida como autonomia crítica, inexistia. Existiam,
porém, os preceitos e os procedimentos técnicos retoricamente definidos de invenção,
disposição e elocução de imagens a fim de causar a comoção do público que receberia a obra;
assim é que novos significados poderiam ser produzidos, reordenando signos já familiares. Pela
possibilidade de multiplicar os significados associados às alegorias, as obras poderiam compor
detalhes que conviessem aos interesses daqueles que encomendavam a obra.
No caso das chinesices, as figurações humanas podem ser todas definidas como imagens de
tipos teatrais, pois gestos, indumentária e cenários eram extraídos e combinados a partir de
coletâneas de gravuras que de antemão delimitavam as possibilidades de combinação
executadas pelo artífice.
~1760, Catas Altas, Igreja Matriz.
Detalhe do ornamento do retábulo lateral do
Santíssimo Sacramento.
Foto: Gustavo Motta.
Como se disse, o ornamento não dava margens à representação de indivíduos ou lugares
88
particulares ou empíricos, mas era pautado por uma técnica da mão e da imaginação onde a
combinação de lugares-comuns visava à comoção e ao divertimento do fruidor. Nesse sentido,
as alegorias reordenavam preceitos de modo a causar o maravilhamento e o prazer por meio da
reprodução de significados já existentes no grupo que encomendava a obra208.
Nesse período de prenúncio da crise da produção aurífera, aqueles que habitavam a Capitania
e possuíam fluentes relações com o Reino – sobretudo os de origem reinol letrada – atribuíamse uma importância específica: balizar a consolidação de espaços civilizados em meio aos
enormes “sertões” das minas, enquanto mantinham as redes de comércio interno – as quais
assegurariam a sobrevivência da Capitania após o ápice da produção aurífera.
~1740, Sabará, Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição. Detalhes da porta direita de acesso a Sacristia.
Foto: Gustavo Motta
No painel pintado na porta direita da Sacristia, aparecem diversas capelas e casas de arquitetura mista, na
maioria das vezes com características da arquitetura civil lusitana, e, às vezes, com telhados
“orientalizados”. Espalhados pelo painel estão alguns personagens, com indumentária e características
européias (tais como a barba e bigode), a observar. Esses personagens também apresentam insígnias
cortesãs, tais como a bengala (na imagem à esquerda) ou a sombrinha (na imagem à direita).
Assim, esses homens atribuíam-se uma função dupla: civilizar e manter as redes de comércio e
administração política. A reciprocidade entre essas duas esferas era dada pela própria estrutura
das relações políticas e econômicas do período, na imbricação entre operações comerciais e
208
GRAMMONT, Guiomar de. O aleijadinho e o aeroplano. (ob. cit). p. 123.
89
relações pessoais de cunho cordial. Ou seja, havia uma imbricação das esferas pública e privada,
na medida em que as relações comerciais e políticas (a seu modo, públicas) eram mantidas por
relações cordiais (a seu modo, privadas)209. No contexto de estruturação da primeira Cidade na
Capitania, a participação dos homens de cultura letrada era fundamental para a constituição dos
dispositivos de introdução pedagógica dos valores civilizados; por consequência, esses mesmos
homens estavam ligados à política e à economia locais.
Fora certamente um contexto ambíguo: constituía-se um sistema administrativo e econômico
local, ao mesmo tempo em que permaneciam modelos civilizatórios de base teológico-política
lusitana. Arraigadas a essa temporalidade, as chinesices contêm imagens daqueles que
caminham, descansam e exploram os solos das conquistas ultramarinas, como
imagens
portadoras de rastros dessa ambiguidade. Nos painéis do Cadeiral, registra-se a permanência do
gosto da cultura aristocrática ligada ao feudalismo, que buscava no item exótico e luxuoso a
encenação dos privilégios de certas camadas hierárquicas. Ao mesmo tempo, a obra do Cadeiral
foi produzida num contexto em que “o poder não se encontra mais diluído na teia de relações
vassálicas, como na sociedade feudal; mas na monarquia absolutista, primeira fase do Estado
moderno em formação, (...) abrindo caminho entre as forças universalistas e particularistas” 210.
As chinesices do Cadeiral a um só tempo se relacionavam com o empreendimento real e
centralista de expansão marítima e com a figura localista do colono “que se considerava sócio
da Coroa”, para quem
(...) a América portuguesa se fizera mediante um pacto entre o rei e os súditos que se
deslocaram para as possessões distantes e se empenharam na conquista, na abertura
de novas frentes de exploração econômica e nos embates contra as invasões
externas211.
Claro que a ornamentação do Cadeiral de forma alguma “representa” todo esse sistema cultural
de embate entre centralismo da Coroa e localismo das administrações ultramarinas. Todavia, ao
209 NOVAES, Fernando. “Condições de privacidade na colônia” (ob. cit), p. 24; HESPANHA, Antônio M. & XAVIER,
Ângela B. “As redes clientelares” (ob. cit), p. 341.
210 NOVAES, Fernando. Idem. p. 30.
211 CAMPOS, Maria Verônica. Governo de mineiros – de como meter as minas numa moenda e beber-lhe o caldo dourado.
(ob. cit.). p.19.
90
se considerar o resultado da obra – a montagem feita pelo artífice de pequenas cenas em que
personagens com gestos galantes europeus caçam, mostram e passeiam sobre um espectro de
paisagens e elementos exóticos – pode-se inferir o destaque dado à ação dos homens portadores
dos valores ligados à discrição sobre os territórios de conquista.
Veja-se a multiplicação de cenas de caça e passeios, onde a manipulação dos elementos do
entorno se dá exclusivamente pelos personagens com indumentária europeia, enquanto os que
portam adereços “orientalizados” apresentam-se em gestos de contemplação, serviço ou
demonstração dos detalhes exóticos.
~1765, Mariana.
Igreja Catedral de Nossa Senhora da Assunção,
Cadeiral, detalhes.
Nas duas primeiras imagens, a mesma
gravura de homem com chapéu, casaca e
calça. Acima, opersonagem parece domar ou
levar dois dromedários, abaixo, toma contato
com um macaco.
Nessa terceira imagem, um homem vai ou
volta de uma caçada, acompanhado de seus
cachorros e da espada ou arma. O gesto do
personagem parece demonstrar os elementos
em que sua ação tem lugar.
Fotos: Gustavo Motta
91
~1765, Mariana. Igreja Catedral de Nossa Senhora da Assunção, Cadeiral, detalhes.
Foto: Gustavo Motta
Na figura acima, aparecem alguns personagens vestindo indumentária não-européia, tais como
os três
personagens laterais, que se repetem em vários nichos dos painéis do cadeiral.
Aparentam gestos
femininos (pela inclinação da cabeça e posição dos braços cruzados) e
sempre são pintados sentados mostrando algo ou simplesmente contemplando.
Na imagem abaixo, dois personagens vestidos com baetas (espécie de roupão de inspiração
oriental), apresentam a paisagem e servem algo numa tigela.
92
3.2. O tempo sacralizado.
As chinesices, tanto quanto as mercadorias orientais que começavam a circular na Capitania,
traziam signos que não se referiam a regiões específicas do Oriente, mas sim à expansão
ultramarina e à formação das redes de comércio transoceânicas. Mobilizam, assim, alegorias de
um “triunfo” português já distante do século XVIII: o contato comercial e os limitados
territórios de conquista nas Índias orientais.
~1760, Sabará, Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição, detalhe da porta direita de acesso à
Sacristia.
O detalhe mostra a representação de uma caravela – único motivo semelhante encontrado na
Capitania no gênero acoroado, no âmbito desta pesquisa.
Foto: Gustavo Motta.
93
Mas, como foi narrado no relato do Triunfo Eucarístico, tanto feitos quanto memórias das
conquistas constituem glórias de um povo. Assim, tanto a expansão às Índias orientais quanto
sua rememoração no momento de celebração da sociedade mineira constituíram-se por glórias,
“ambas grandes, só singulares da nação Portugesa”, porque, enfim “só ela [a nação portuguesa]
recebeu a instituição do Reino unida ao Apostólico encargo da propagação da Fé (...)”.212
Pela expressão “apostólico encargo”, Simão Ferreira Machado fez referência aos direitos
conquistados pela Coroa Portuguesa através das várias Bulas Papais editadas entre 1452-1456,
que autorizavam e recomendavam a expansão portuguesa ultramarina nos propósitos de “levar
o nome de Jesus aos países mais longínquos e ignotos e reconduzir ao seio da Igreja pérfidos
inimigos de Deus e de Cristo, como os sarracenos e os infiéis”213. As bulas concederam à Coroa
Portuguesa “o direito total e absoluto de invadir, conquistar e dominar todos os países que estão
em poder dos inimigos do Cristo”214.
Na monarquia lusitana, marcada por diversos níveis de associação com o poder religioso
católico, a conquista das permissões eclesiásticas para a expansão ultramarina, e, pouco depois,
a inclusão dos dogmas tridentinos na própria legislação monárquica portuguesa em 1564 215,
reforçaram uma “sacralização dos ´sucessos´ portugueses” nas conquistas ultramarinas216. Ao
introduzir os dogmas eclesiásticos na própria base do direito monárquico, no sistema de ensino
superior e nas estratégias de governo da Coroa, Portugal apropriou-se politicamente da noção
eclesiástica de história sacra. Essa concepção providencialista de história tornava os sucessos e
insucessos consagração ou condenação das sociedades conforme a justeza da adequação de suas
leis positivas às Leis divinas.
Nesse contexto da cultura monárquica portuguesa, a exegese alegórica – ou seja, a interpretação
contrarreformista dos fatos históricos, signos pictóricos e eventos naturais – era toda
direcionada à composição de significados que se coadunavam com a concepção presumida de
história providencialista sacralizada. Toda pequena conquista que tendia à constituição de um
Triumpho Eucarístico (Ob. cit), p. 3.
Bula Pontifex de 1454, assinada pelo Papa Nicolau V ao Rei D. João II de Portugal. Apud PANIKKAR, K. M. A
dominação ocidental na Ásia – do século XV aos nossos dias. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. p. 38-39.
214 Idem.
215 BOSCHI, Caio. Os leigos e o poder. São Paulo: Editora Ática, 1986. p. 36.
216 Eduardo Hoornaert, apud BOSCHI, Caio. Idem. p. 61.
212
213
94
Império português ultramarino era associada, através de crônicas e narrativas enconomiásticas,
a mitos messiânicos e milenaristas. Esses significados eram, assim, imbuídos de uma orientação
“para um futuro de antemão utópico pela mediação primordial, obsessiva, do passado” 217 – já
que a leitura alegórica dos eventos históricos sempre relacionava feitos coevos a memórias
passadas ou mesmo a mitos de paraísos perdidos, como o reinado de Salomão em Jerusalém.
No território da América Portuguesa, os mitos de uma predestinação histórica ganharam ainda
mais força, pois “são, sobretudo, as circunstâncias históricas e sociais, e a miséria geofísica que
tingem com o tom trágico o mito, dando impulso aos movimentos capazes de direcionar
neuroses míticas a todo erro, ignorância e superstição (...)”218. A expressão “falso fausto”, de
Laura de Mello e Souza (1986)219, refere-se justamente ao modo como as festas religiosas da
sociedade mineira, envoltas no entusiasmo “dourado” da primeira metade do século XVIII,
associaram a festividade religiosa à celebração do próprio sonho de sociedade opulenta:
A festa tem, assim, uma enorme virtude consagradora, orientando a sociedade para o evento
e a fazendo esquecer da sua faina cotidiana; é o momento do primado do extraordinário – o
sobrenatural, o mitológico, o ouro – sobre a rotina.220
Rotina – ressalta-se – em que perduravam a miséria e a pobreza na maioria da população, e nas
próprias vilas e povoados, a despeito das grandes quantidades de ouro produzidas na Capitania.
O fortalecimento dos mitos milenaristas na América portuguesa também tem relação com a
condição jurídica específica da Conquista em relação ao Reino. Para aqueles relacionados ao
projeto de administração reinol, a noção de predestinação histórica e a sacralização dos ritos
políticos assumiam uma “função legitimadora do poder metropolitano no imaginário do
colonialismo”221. Essa mitologia, se “num Portugal vergado sob o jugo de Castela” atuou “como
vetor de coesão nacional, no universo ultramarino revelou-se um poderoso mecanismo de
Idem, p. 8.
“Ma sono soprattutto le circostanze storiche e sociali e la miseria geofisica a tingere di toni tragici il mito, dando vita a
movimenti capaci di convogliare nella loro nevrosi mistica tutti gli errori, l´ignoranza e le superstizioni (...)” LANCIANI,
Giulia. “Il sebastianismo: um sogno che nasce come logos”. In ATAS do XVII Congresso da Associação Hispânica Italiana.
V. 1. Milão: Associação Hispânica Italiana, 1996. pp. 339-351. p.347-348.
219 SOUZA, Laura de Mello. Desclassificados do Ouro. Rio de Janeiro: Graal, 1986. pp. 19-50.
220 Idem, p. 21.
221 ROMEIRO, Adriana. Um visionário na corte de D. João V: revolta e milenarismo nas Minas Gerais. Belo Horizonte:
Editora da UFMG, 2001. p. 100-101.
217
218
95
instituição e afirmação da unidade do Império colonial, estilhaçado numa rede geográfica
rarefeita”222.
Cenas do belo teatro da história
A concepção messiânica de uma história providencialmente orientada pela Vontade divina foi
forjada por “um vasto repertório simbólico que, desde o século XVI, fornecia legitimidade à
supremacia lusitana nas terras conquistadas” (...) “Tratava-se, pois, de uma visão de tempo e
espaço essencialmente lusocêntrica”223, que foi empregada retoricamente na constituição dos
mais diversos discursos de cunho encomiástico do período.
Dessa forma, nos eventos marcantes de celebração da constituição do aparato administrativo da
Capitania das Minas Gerais, em meio aos elogios da implementação da civilidade, foi produzida
a rememoração dos sucessos passados. A rememoração alegórica recuperava o sonho de uma
predestinação lusitana de Império Católico e a ligava a uma promessa futura de sua realização.
Nesses momentos de celebração, todo o aparato artístico compunha um teatro da memória, em
que se engendrava a noção de messianismo político: uma “crença na missão de transcendência
histórica dos Estados e dos indivíduos que os personificam”224.
Não é por acaso que a Prévia Alocutória do relato do Triunfo Eucarístico rememora, e até
mesmo celebra, a expansão portuguesa às Índias Orientais, atualizando uma memória de mais
de duzentos anos:
Chegou aquele ditoso século, quando aquele felicíssimo e poderoso Rei, descendente
do primeiro, o sempre memorável D. Manoel, com espanto das nações da Europa, fez
voar ao Oriente os Portugueses.225
Este trecho refere-se a Dom João III (1502-1557), primeiro rei de Portugal a estabelecer
relações diplomáticas com reinados na Índia, China e Japão 226 . A narrativa qualifica esse
222
223
224
225
226
ROMEIRO, Adriana. Idem. p. 100-101.
Idem, p. 101.
ENES, José. “O complexo sebastianista no comportamento político” (ob. cit). p. 1.
MACHADO, Simão Ferreira. Triumpho Eucarístico. ob cit. p. 4.
Para um histórico do estabelecimento das relações diplomáticas luso-chinesas, ver SALDANHA, Antonio Vasconcelos
96
período de conquistas como o momento em que os portugueses se tornaram “Argonautas do
Oceano”, demonstrando seu “formidável valor” que “abriu patente caminho à luz da Fé, de forte
que em dilatadas regiões da Ásia unirão ao magistério da verdade Evangélica a glória do
domínio soberano”227.
Simão Ferreira Machado traça uma relação de sentido entre a expansão ao Oriente e a conquista
do Ocidente, a primeira configurando-se como a consagração de uma destinação venturosa do
povo português. Relembra, para este fim, até mesmo uma “dilatada tempestade” que, numa
viagem para as Índias orientais, “fora de todo o humano pensamento” fez descobrir
a fértil, e incógnita parte da América chamada Brasil, pelo muito pão, que nesta terra
há, sendo guia a Divina Providência, e como piloto a contínua tempestade, para verem,
e pisarem tão remota, e dilatada região do Mundo228
O elogio da expansão ao Oriente, lavrado pelo gênero encomiástico, transforma os feitos
lusitanos dos séculos XV e XVI em promessas imbricadas nos sucessos da Capitania do ouro:
A era de mil setecentos e trinta deu princípio a esta felicidade esperada, em um limite
das Minas, cujo nome de Serro Frio faz sabido a fama, e utilidade. Tanta tem sido e é
a cópia e tão grande a preciosidade dos diamantes, que aquele grande Monarca, que
conhece, e com reverência nomeia toda a Ásia, cede ao Monarca Lusitano esta
excelência, e glória, até então só própria, e conhecida em seu dilatado Empório. Assim
o julga a Ásia com espanto, e sentimento; Europa com utilidade e inveja; Portugal
com glória e segurança.229
Para a concepção contrarreformista lusitana, foi “a Providência Divina, ou a mesma natureza,
por destino imperceptível ao juízo humano, mostravam terem em deposito guardadas imensas
riquezas no interior dessas terras”230, ou seja, na região aurífera e diamantífera da América
lusitana. Nesse sentido, toda a história do povo lusitano se voltou para uma promessa de
de. ALVES, Jorge Manuel dos Santos. Estudos da história do relacionamento luso-chinês- Séculos XVI- XIX. Macau:
Instituto Português do Oriente, 1996; D´INTINO, Raffaella (Introdução e leitura). Enformação das cousas da China. Lisboa:
Imprensa Nacional da Casa da Moeda, 1989.
227 MACHADO, Simão Ferreira. Triumpho Eucarístico Ob cit., p. 5.
228 Idem. p. 6.
229 Idem, p. 20-21.
230 Idem, p. 13-14.
97
realização do “triunfo cristão”; os fatos foram reorganizados de forma a se constituírem como
“anúncios” do futuro que começaria com a conquista daqueles tesouros divinos depositados no
fundo da terra.
Assim, o período de estruturação da sociedade mineira, na primeira metade do XVIII, por
diversas vezes procurou uma “confirmação mnésica da própria identificação com o momento
originário e os momentos mais altos do passado – momentos ou horas solares”231.
As imagens orientalizadas nas chinesices rememoravam um feito, mas já como história
transcendida, de forma onírica. Foi produzida uma abstração dos fatos históricos –
procedimento comum da produção alegórica coeva232. Como afirmou Simão Ferreira Machado:
“se via agora na memória, e figura [ou seja, alegoria] renovado para estímulo da pública
veneração desta Cristandade, e maior glória do mesmo Senhor”233.
Assim, a concepção de tempo e de história consagrados impõe que um triunfo deveria
fatalmente ligar-se a outro. Com a migração do centro econômico do Império português para o
Atlântico em fins do século XVII, as minas douradas deveriam se tornar um “túmulo digno” da
anterior grandeza da promessa da Índia portuguesa.
É nesse mesmo contexto de produção alegórica das artes que o discurso fúnebre em homenagem
ao Vigário Lourenço José de Queiroz Coimbra234 trata da instituição Eclesiástica na Capitania
do ouro como “a nova Jerusalém”, na qual o Vigário “vira São João descer do céu, ornada da
mais brilhante variedade, luminosos tesouros se empregam na sua edificação, e no seu
ornato.”235
Ao mobilizar a imagem de Jerusalém, o Cônego Luiz Vieira da Silva significou que a instituição
da ordem monárquico-eclesiástica na Capitania tinha uma predestinação transcendente,
devendo
ser honrada por aqueles que integravam o corpo místico do povo escolhido.
Jerusalém era entendida como terra prometida aos judeus, após a fuga do Egito, além disso, o
ENES, José. “O complexo sebastianista no comportamento político” (ob. cit). p. 8.
BUCK-MORSS, Susan. Dialética do olhar. Belo Horizonte: UFMG, 2002. pp.200-248. ARGAN, Giulio Carlo. Imagem e
Persuasão. São Paulo: Cia das Letras, 2004.
233 MACHADO, Simão Ferreira. Triumpho Eucarístico. ob. cit. p. 90.
234 Citado na primeira parte deste trabalho. Escrito pelo Cônego Luiz Vieira da Silva (1784). In “Elogio fúnebre do Revmo.
Dr. Lourenço José de Queiros Coimbra e Vasconcelos” in: Revista Barroco, Belo Horizonte, 1973, v. 5. p.17
235 Idem.
231
232
98
mítico Templo de Salomão em Jerusalém constituía-se como insígnia de uma Idade do Ouro,
incomparável em seu ornato e beleza, incomparável na harmonia e ordem de seu reino.
Além disso, o Templo de Salomão é reconhecido pelos inúmeros tesouros que o ornavam,
levados de todos os cantos do mundo 236 . A arte setecentista mineira foi, nesse período,
interpretada com a função de uma “arca de Noé” simbólica: tesouros do mundo todo, reunidos
num local de redenção da sociedade lusitana e instauração de uma era de equilíbrio e opulência.
As chinesices, em alguns dos templos católicos, compõem um tipo de coro a essa produção da
história passada, para estímulo daquele presente.
236
Cf. Antigo Testamento 1 Reis 6:1; 1 Crónicas 28:11-1.
99