O OLHAR AMOROSO NA MACAULOGIA DE ANA MARIA AMARO
André Bueno1
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Ana Maria Amaro [1925-2015] foi, com certeza, uma das maiores estudiosas sobre
a China no mundo lusófono, tendo uma ampla e intensa obra publicada sobre Macau.
Formada em ciências e antropologia, Ana Maria Amaro chegou a Macau em 1957, e
passou ali quinze anos desenvolvendo uma profunda atividade de pesquisa,
investigando e relatando o rico processo de hibridização que alimentava a sociedade
macaense. Sua produção vasta abarca os mais diversos temas, ilustradas por essa sucinta
relação reconstituída pelo sinólogo António Aresta [2015]:
“Relíquias Botânicas de Macau”, 1961; “Catálogo Provisório das Espécies
Mais Comuns da Flora de Macau”, 1961; “Vendilhões Chineses de Macau”,
1966; “Alguns Aspectos do Artesanato em Macau”, 1967; “O Jardim de Lou
Lim Ioc”, 1967; “Alguns Aspectos da Medicina Tradicional Chinesa”, 1972:
“Aguarelas de Macau: Cenas de Rua e Histórias de Vida”, 1998; “Estudos
Sobre a China”, 1998-2006, 8 volumes; “O Mundo Chinês: um longo
diálogo entre culturas”, 1998; “Das Cabanas de Palha às Torres de Betão:
assim cresceu Macau”, 1998; “Filhos da Terra”, 1993; “Introdução da
Medicina Ocidental em Macau e as Receitas de Segredo da Botica do
Colégio de São Paulo”, 1992; “Três Jogos Populares de Macau: Chonca,
Tabu, Bafá”, 1984; “O Traje da Mulher Macaense: da Saraça ao Dó das
Nhonhonha de Macau”, 1989; “Adivinhas Populares de Macau”, 1975;
“Jogos, Brinquedos e outras Diversões de Macau”, 1972.
Não contabilizamos aqui os inúmeros opúsculos, brochuras e artigos, que requerem
uma relação que ainda não foi feita.
Passados alguns anos de sua volta a terra natal em 1972, Amaro também fundou o
Instituto Português de Sinologia, e foi ainda responsável por organizar, entre 20062014, o mais importante evento da área em Portugal, o Fórum de Sinologia. A perda de
Ana Maria Amaro abriu uma lacuna na continuidade dos estudos sinológicos sobre
Macau, tanto em função de seu profundo conhecimento, como pela ausência de
continuadores de seus projetos.
Nesse sentido, cumpre salientar que, após quase seis anos de seu falecimento, os
trabalhos da grande mestra não foram apreciados criticamente, tendo em vista sua
dimensão e metodologia. Amaro construiu uma abordagem sensível e específica da
cultura macaense; e buscando compreender as multifacetadas relações de mestiçagem e
trânsito cultural entre a China do Sul, Portugal e os lusófonos de passagem nesse mundo
[indianos, africanos e brasileiros], ela conseguiu revelar a riqueza de um processo
histórico secular por meio de abordagem deslocada da visão eurocêntrica.
Boaventura de Sousa Santos propôs que é necessário investigar e produzir novas
formas de entendimento sobre as culturas e ciências, a partir das civilizações decolonias,
1
Bueno, André. O olhar amoroso na Macaulogia de Ana Maria Amaro. SinoBios, 2: Projeto Orientalismo,
2021: 1-3.
no que ele chamou de Epistemologias do sul [2009]. Essas epistemologias resultam da
produção original de saberes a partir de outras culturas, cujo ponto de inflexão é seu
contato com a ciência europeia, mas que resulta em visões não-eurocentradas. Sua
experiência investigativa em Macau [1998] permitiu observar muitos dos problemas
ligados a produção desse saber.
Isso tanto se torna mais evidente, em relação ao mundo lusófono, quando
compreendemos que a rede formada pelo império português criou, na verdade, um
mundo conectado e de intensas trocas culturais e materiais, por onde transitavam
pessoas, ideias, e cujos desdobramentos se manifestam em férteis mestiçagens e
hibridizações culturais [Russell-Wood, 1998]. Pode-se dizer, de fato, que um olhar mais
acurado nos faz perceber não apenas o que os portugueses levaram para outros países,
mas o que essas outras civilizações distribuíram entre os cinco continentes a partir de
um processo de circulação e cruzamento promovido por seus próprios agentes
constitutivos [Freyre, 2015].
O caso de Macau é importantíssimo nesse contexto: a cidade, fundada em 1557,
torna-se um ponto de encontro da cultura portuguesa com o mundo asiático,
promovendo uma dinâmica de integração diferente daquela praticada nas Américas.
Macau constituiu-se numa concessão pelo governo imperial chinês, cuja durabilidade
dependeu da capacidade de negociar de seus habitantes com o mundo sínico no qual
estavam inseridos [Fok, 1999]. Ao longo dos séculos, a cidade foi um baluarte,
defendendo-se de holandeses, ingleses e das instabilidades de sua relação com a China.
Contudo, esse relacionamento foi regulado de forma única, construindo-se um processo
de diálogo que resultou em elaborações e vivencias culturais originais.
Outro elemento a ser citado é a Chinesidade em Macau. Tu Wei Ming [1991] havia
apontado para a questão da Chinesidade - ou seja, de como os chineses reconstroem sua
identidade a partir do contato com outras culturas e espaços. Esse aspecto é fundamental
para compreendermos a cultura macaense, que se desenvolve em um espaço misto:
território chinês, mas com presença lusa e de vários outros elementos vindos do mundo
lusófono, a identidade macaense constrói-se em torno de uma série de contatos e
aproximações que criam essa singularidade.
Foi nesse quadro rico de interações, problemas e hibridismos que Ana Maria Amaro
se deslocou com habilidade ímpar. Quando chega em 1957 a cidade, encontra um país
convulsionado pela revolução comunista, e pela ameaça da destruição de Macau como
um ponto de cruzamento e fusões culturais. As experiências vividas a partir dessa
perspectiva estimularam profundamente o desejo de entender as características e raízes
desse projeto cultural que se tornara Macau, percebendo-a como uma cidade resultante
dessas circulações e dessa criação epistêmica. Ademais, Amaro tinha duas licenciaturas,
em Ciências e Antropologia. Isso lhe possibilitaria combinar, de forma interdisciplinar e
transversal, os dados, informações e vestígios que compunham seus quadros
investigativos, revelando uma capacidade única de concatenação em rede, e produzindo
escritos extremamente abrangentes e ricos, capazes de dialogar com as mais diversas
áreas.
Assim, a obra de Ana Maria Amaro torna-se um elemento crucial para analisarmos
essas fusões e encontros, que promoveram a criação de uma cultura fértil e interétnica.
Necessário informar que, dada a ausência de fortuna crítica sobre os trabalhos de
Amaro, um projeto neste sentido se constrói como proposta relevante de pesquisa.
É preciso, pois, desenhar a estrutura Epistemológica da Macaulogia de Ana Maria
Amaro, e suas contribuições para a compreensão dos processos de cruzamento e
hibridismo cultural entre China e Macau. Há um número significativo de trabalhos
sobre Macau, como experiência portuguesa; esse número diminui, contudo, quando
Macau é analisada sob o prisma dos cruzamentos e diálogos interculturais. Nesse
sentido, Ana Maria Amaro produziu mais de vinte volumes sobre diversos aspectos da
cultura macauense e chinesa, constituindo um olhar diferenciado sobre esses campos de
conhecimento.
Esse 'olhar amoroso' - científico, crítico, mas também calcado numa percepção sutil
e sensível do amplo campo das relações cotidianos macauenses - promoveu uma
produção fértil, engajada numa percepção alternativa a abordagem eurocentrada.
Urge, pois, preservar essa episteme inovadora, descolonizada, isenta de uma
sinofilia ingênua ou de uma sinofobia receosa; Ana Maria Amaro conseguiu, em sua
obra, salvar elementos significativos do patrimônio imaterial da cultura macauense.
Esse patrimônio, que se dissolve hoje nos meandros do desenvolvimento da Macau
moderna, constitui num verdadeiro tesouro da humanidade, dádiva dos contatos
interculturais, cuja experiência é farol para os desafios do entendimento mútuo entre as
civilizações humanas.
Referências
ARESTA, António. Ana Maria Amaro [1929-2015] Tribuna de Macau, 18 de maio de
2015.
FOK, Kai Cheong. Estudo sobre a instalação dos portugueses em Macau. Lisboa:
Gradiva, 1999.
FREYRE, Gilberto. China tropical. Rio de janeiro: Globo, 2015.
RUSSELL-WOOD, A. Um mundo em movimento. Lisboa: Difel, 1998.
SANTOS, Boaventura e GOMES, Conceição. Macau, o pequeníssimo dragão. Lisboa:
Afrontamento, 1998.
SANTOS, Boaventura. Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2009.
TU, Wei Ming. Cultural China: The Periphery as the Center. Daedalus, Spring 1991.