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Alia Carol Maluf

Líbano, uma narrativa distorcida

Em sua bendita ou maldita inocência, país permitiu que o terror iraniano se instalasse dentro das suas fronteiras e hoje paga um preço alto demais

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Alia Carol Maluf

Libanesa autoexilada no Brasil desde 1970, é formada em comunicação social (ESPM), filosofia (PUC-SP) e business management (Harvard Extension School); autora de "Destinos Deslocados" (ed. Insular)


Passei as últimas quatro décadas ouvindo piadas sobre meu povo. Às vezes simpáticas, outras vezes nem tanto. Ouvi relatos imprecisos sobre o meu país, tanto geograficamente quanto historicamente. Superei o trauma de ser chamada de muitas nacionalidades, menos a minha. Fingi não escutar palavrões mal pronunciados na minha língua e comi muita comida "da sua região", mal temperada. E fiz tudo isso com um sorriso no rosto para agradar meu interlocutor, meu anfitrião; afinal, eu estava pedindo refúgio em sua casa.

Esforcei-me para aprender sua língua e falá-la sem sotaque; para apreciar suas danças, sua música e sua visão de mundo, ainda que nem sempre fizessem sentido para mim. Vivi tudo isso em silêncio, porque havia uma causa maior: refazer minha vida e criar novas raízes. Hoje, ao ver o lugar onde nasci à beira de perder sua identidade, sua razão de ser e seu significado para o mundo, sinto que cometi um erro. Um erro irreparável. Deixei a verdade passar longe e permiti que minha adaptação ao novo lar dominasse a narrativa.

Homem observa os escombros de um prédio atingido por um ataque aéreo de Israel que deixou 22 mortos no bairro de Basta, em Beirute, no Líbano - Patrícia Campos Mello - 13.out.24/Folhapres - Patrícia Campos Mello/Folhapres

Agora, o Líbano é uma narrativa distorcida, usado como uma vírgula em discursos vazios. O Líbano foi tudo aquilo que o mundo não compreendeu: um lugar onde a identidade pessoal de cada um estava a serviço de algo maior, a identidade de uma nação. Poucos países podem se gabar de ter abraçado cada um de seus cidadãos como se fosse único, oferecendo-lhes a liberdade de se expressar e a alegria de viver.

Cristãos, muçulmanos, judeus (sim, judeus, e muitos), drusos, armênios ortodoxos e um tanto de outras crenças. Um país tão pequeno que é difícil encontrar no mapa, mas tão gigante que abriga a essência do mundo.

Meu erro em permanecer em silêncio foi replicado por milhões de autoexilados, espalhados pelos cinco continentes deste mundo caótico. Hoje, parar para explicar quase 5.000 anos de história a cada um que me pergunta "o que está acontecendo?" é uma verdadeira tortura, pois sei que a missão é impossível. Como explicar que o Líbano, mesmo sendo sectário, sempre abrigou um povo que vivia em harmonia? Como dizia meu pai, "o Líbano sempre foi bom demais para ser verdade".


Um dia, ele me disse: "Faça as malas, porque de agora em diante o Líbano não pertence mais aos libaneses, mas aos que o usam como base militar devido à sua posição estratégica no Oriente Médio". Meu pai estava certo. Hoje, sou uma libanesa que não reconhece o lugar onde nasceu, e uma brasileira que vive em um país que não sabe de onde vim.

Assistir a noticiários que não oferecem contexto, apenas imagens destinadas a gerar visibilidade e comoção; ouvir políticos ignorantes que nada sabem, mas buscam autopromoção; e engajar em conversas que mais parecem ruídos aleatórios é vivenciar, diariamente, a morte de uma nação.

O Líbano está sendo dilacerado pelo desconhecimento e pela ignorância mundial que devastam nosso planeta.


Não sou otimista. O que resta está aí, para produzir conteúdo nas redes sociais. Dizer que o Líbano agora passa por uma destruição chega a ser tragicômico. Estamos sendo bombardeados sim, mas não sem contextura. A destruição do Líbano já acontece há muito tempo, e o mundo resolveu usá-lo agora como pano de fundo para narrativas individuais, tentando limpar os próprios erros —mesmo aqueles que nada têm a ver com o país, sua história, sua essência ou seu povo.

O Líbano permitiu, na sua bendita ou maldita inocência, o terror iraniano se instalar dentro das suas fronteiras. E hoje paga um preço alto demais.

Mais triste ainda é ver gerações descendentes de uma diáspora libanesa maior do que a própria população no Líbano repetindo os erros de um Ocidente que não conhece —nem merece— o que esta nação significa para a humanidade. Não somos um pano de chão para narrativas distorcidas. Minha bandeira tem um cedro, não um fuzil.

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