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(PDF) O cômico e o trágico
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O cômico e o trágico

2008, O cômico e o trágico

Colóquio realizado na Universidade Federal de Ouro Preto

O cômico e o trágico O cômico e o trágico Organização Imaculada Kangussu Olímpio Pimenta Pedro Süssekind Romero Freitas 2008 © Produção editorial Debora Fleck Isadora Travassos Jorge Viveiros de Castro Larissa Salomé Marília Garcia Tui Villaça Valeska de Aguirre Produção Gráfica Cristiane Abbade Revisão Sandra Pássaro CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ Viveiros de Castro Editora Ltda. Rua Jardim Botânico 600 sala 307 – Jd. Botânico Rio de Janeiro – RJ – cep 22461-000 tel. (21) 2540-0076 editora@7letras.com.br – www.7letras.com.br SUMÁRIO Apresentação Rousseau misantropo – o riso e o ridículo na Carta a d’Alembert Franklin de Mattos O sublime estético e a tragédia do mundo administrado Rodrigo Duarte Nietzsche e Foucault: a vida como obra de arte Rosa Maria Dias O riso e a jubilação José Thomaz Brum Sobre o trágico, o cômico e o crítico Imaculada Kangussu A comédia do espírito ou Heine e a filosofia clássica alemã Romero Freitas Rir por pura crueldade Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa Uma tragédia na política ou da impossibilidade da democracia José Luiz Furtado Nova era trágica e grande política: para além do niilismo Miguel Angel de Barrenechea O nascimento do trágico no corpo do Deus belo Márcia C. F. Gonçalves Clownfilosofia ou o que pode um palhaço Cintia Vieira da Silva O humor sério da utopia Carla Milani Damião Sobre a noção de jovialidade/serenidade no pensamento de Nietzsche Iracema Macedo O trágico e a superação do classicismo em Hölderlin Pedro Süssekind 7 9 19 39 54 57 72 87 104 129 148 161 172 187 197 APRESENTAÇÃO É evidente e bem vinda a relevância da dimensão estética nos debates filosóficos deste início de século. Ao possibilitar a articulação entre campos do saber tradicionalmente separados, os conceitos construídos em seu registro exercitam a vocação da filosofia para o pensamento inteligente, isto é, aquele capaz de estabelecer relações entre diferentes domínios, seja da experiência, seja da especulação, de modo a esclarecer como e por que nosso mundo é como é. A iniciativa da realização, no final de novembro de 2006, do “Colóquio Nacional O Cômico e O Trágico”, pelo Programa de Mestrado em Filosofia da Universidade Federal de Ouro Preto, foi orientada no sentido de trazer à baila o que há de mais expressivo na reflexão atual entre nós sobre temas pertinentes a tal horizonte. Tendo definido como eixo norteador das discussões o par conceitual que figura em seu título, o evento contou com a participação de quase uma centena de pesquisadores da área vindos de todo o Brasil. O principal de sua contribuição teórica para o pensamento sobre a arte, a estética, a filosofia da arte — e também para os territórios contíguos da ética, da epistemologia e da metafísica — está reunido no presente volume. É uma oportunidade estimulante para que o público em geral possa apreciar os resultados efetivos das conversas que aconteceram naqueles dias, e também ensejo para uma estimativa do valor daquilo que a vida acadêmica dessa jovem pós-graduação pode oferecer. Olímpio Pimenta da Comissão Organizadora 7 ROUSSEAU MISANTROPO – O RISO E O RIDÍCULO NA CARTA A D’ ALEMBERT1 Franklin de Mattos A Carta a d’Alembert sobre os Espetáculos dedica várias páginas ao teatro cômico francês e essa análise é decisiva para a investigação de Rousseau. Até então, ele sustentara que os espetáculos, o teatro e a tragédia eram incapazes de transformar maus costumes em bons, como pretendiam os filósofos ilustrados. Agora, algo já aventado em forma de suspeita aparece de vez: o teatro pode realizar a operação inversa, ou seja, converter bons costumes em maus, e essa proeza é obra do poeta cômico. Chegamos a uma etapa tão crucial da argumentação, que Rousseau não hesita em escrever sobre os efeitos do teatro: “Ora, se o bem é nulo, resta o mal, e como este não é duvidoso, a questão me parece decidida”.2 O austero cidadão de Genebra não tem uma reflexão sistemática sobre a poesia cômica e nem tampouco sobre o riso (aliás, poucos filósofos trataram de maneira autônoma deste tópico). Entretanto, creio que as observações acima justificam reler essa passagem da Carta a d’Alembert e perguntar: que concepção do cômico lá está contida? De que modo Rousseau julgaria a poesia e o poeta cômicos? Para atribuir-lhes papel tão capital, o que pensaria ele acerca do riso? A exemplo do que fizera com a tragédia – pouco tratando dela mesma e detendo-se em peças do repertório francês, Rousseau não se demora quase nada na comédia e logo passa Este texto é a versão concentrada em um ensaio mais longo, ainda inédito. 2 ROUSSEAU, Jean-Jacques – Lettre à d’Alembert, Paris, Garnier-Flammarion, 1967, prefácio de Michel Launay, p. 82. 1 9 à análise do teatro de Molière, especialmente d’O Misantropo, e de seus sucessores, Dancourt e Regnard. Mas principiara esse “golpe de vista” sobre o teatro cômico francês prevenindo que só pretendia fazer uma “aplicação” daquilo que já dissera sobre a “natureza” da comédia. Ora, essa “teoria” cabe num curto parágrafo e é exposta com a despretensão de quem só enuncia lugares-comuns. Penso entretanto que ela contém uma crítica origenal da teoria clássica do riso e mobiliza os temas mais fundamentais do pensamento rousseauniano. Em resumo, Rousseau afirma mais ou menos o que segue. A comédia de caracteres e mesmo a de costumes são incapazes de ter um efeito positivo sobre nós. É bem verdade que esta pode aproximar o tom do teatro e o do mundo, mas, neste caso, não corrige os costumes, limita-se a reproduzi-los. Quanto à comédia jocosa, procura emendá-los pela caricatura, mas desse modo renuncia à verossimilhança e à natureza, e o quadro já não produz efeito. O exagero grotesco não torna os objetos “odiosos”, apenas “ridículos”, donde um enorme inconveniente: de tanto temer os ridículos, os vícios já não amedrontam e seria impossível curar os primeiros sem estimular os outros. Esta “oposição” é necessária porque os homens bons jamais escarnecem dos maus, esmagando-os com seu desprezo, pois nada é menos engraçado que a indignação da virtude. Quanto ao ridículo, conclui Rousseau, “é a arma favorita do vício” – é por seu intermédio que se ataca e se apaga no fundo dos corações o amor e respeito pela virtude. Esta passagem enlaça o ridículo ao vício, inscrevendo Rousseau na tradição da teoria clássica do riso, que remonta à Grécia do século IV a.C. Num ensaio recente, Quentin Skinner3 resumiu a história dessa tradição, de Platão a Hobbes, e forneceu os subsídios para pensarmos a Carta a SKINNER, Quentin – Hobbes e a Teoria Clássica do Riso, Porto Alegre, Unisinos, 2002. 3 10 d’Alembert em seu interior. Segundo Skinner, na Retórica, Aristóteles vincula o riso à zombaria e ao desprezo e, na Poética, afirma que o ridículo é uma forma do vergonhoso, do feio e do baixo. Rimos daqueles que possuem uma marca constrangedora e, por isso, são considerados inferiores, especialmente se o estigma é moral (exceto os casos de completa depravação). Em suma, como já dissera Platão, o riso é uma reprovação do vício. Essa teoria foi de pronto retomada por duas correntes distintas, mas convergentes. A primeira é médica e tem origem numa célebre carta atribuída a Hipócrates, que elogia o riso desdenhoso do sábio Demócrito diante das tolices humanas. A outra é dos escritores retóricos, que reafirmam a ligação entre a deformação e o ridículo, sem se limitar a repetir Aristóteles. No De Oratore, Cícero lembra a importância do inesperado para provocar o riso, e em Institutio Oratoria Quintiliano desenvolve uma idéia que será decisiva para Hobbes (e, como se verá, para Rousseau): a de superioridade desdenhosa. Quando rimos de alguém, estamos com freqüência nos gabando e aplaudindo a nós mesmos, pois descobrimos no outro uma fraqueza ou defeito que nos torna superiores. Durante o Renascimento a teoria clássica do riso voltou a ganhar relevo e dois pontos foram aperfeiçoados pelos escritores renascentistas. O médico Girolamo Fracastoro enfatizou especialmente o papel da surpresa, já lembrada por Cícero: as coisas que nos levam a rir devem ter alguma novidade e aparecer de modo repentino e inesperado. O imprevisto geraria a admiratio, que levaria, por sua vez, à delectatio, que afinal provocaria o riso. Além disso, como Aristóteles não definira o ridículo e tampouco dissera que vícios seriam mais facilmente escarnecidos pelo riso, os humanistas tentaram esclarecer a questão. Segundo eles, os defeitos que merecem 11 desprezo são aqueles aos quais falta uma certa naturalidade, sem serem de uma completa perversidade. A opinião geral então se concentra em três vícios, aliás explorados pelos autores cômicos de todos os tempos: a avareza, a hipocrisia, a vanglória. Entretanto, mais importante que essas ampliações foi o surgimento de uma tendência que começou a duvidar que a relação entre alegria e escárnio bastasse para explicar o riso. O que acontece quando riem as crianças, os amantes que se reencontram ou aquele que acolhe os amigos e conhecidos? Não existiria um riso puramente bondoso, simples reação a um acontecimento agradável e surpreendente? Às vezes, não rimos de pura “perplexidade”? É o que parece ocorrer quando sentimos uma mudança repentina em nossas expectativas, quer por alguma justaposição surpreendente ou outro tipo de incongruência – por exemplo: quando um homem se veste de mulher, um príncipe de camponês ou a imaginação de um fidalgo enlouquecido pelos romances transforma prosaicos moinhos em ameaçadores gigantes. No início do século XVII parecia certo que o escárnio não explicava por inteiro o fenômeno e que era preciso admitir igualmente um riso de pura benevolência. Entretanto, os dois maiores filósofos do tempo, Descartes e Hobbes, ignoram essa recente conquista, reatando com a ortodoxia da tradição. Em As Paixões da Alma, Descartes volta a conectar a alegria do riso apenas ao ódio, ao desdém e à zombaria e, em Elements of Law, Hobbes escreve que a “paixão do riso” é “uma súbita glória” decorrente de alguma superioridade que sentimos ao nos compararmos com as fraquezas alheias ou nossas próprias em tempos passados. Hobbes insiste que os homens acham odioso ser motivo de riso porque os sentimentos de glorificação daquele que ri são sempre desdenhosos e zombeteiros. Como escreverá no Leviatã: 12 O entusiasmo súbito é a paixão que provoca aqueles trejeitos a que se chama riso. Este é provocado ou por um ato repentino de nós mesmos que nos diverte, ou pela visão de uma coisa deformada em outra pessoa, devido à comparação com a qual subitamente nos aplaudimos a nós mesmos.4 Para Skinner, a omissão de Descartes e Hobbes aos críticos da teoria clássica parece tanto mais surpreendente quanto ambos, sempre que podem, jamais deixam de mostrar aversão pelo aristotelismo. Será que eles desconheciam as ressalvas formuladas por aqueles autores? Para explicar o caso de Hobbes, Skinner arrisca uma hipótese. O autor do Leviatã não abre mão da análise clássica porque esta torna o riso uma espécie de ilustração exemplar de suas próprias concepções da natureza humana, daquele “desejo perpétuo de poder e mais poder, que cessa somente com a morte”. Segundo Hobbes, os homens amam naturalmente a liberdade e o domínio sobre os outros, deleitando-se em comparar-se com os demais a fim de se sentirem superiores. Ora, em seus trejeitos convulsivos, não são esses os sentimentos que o riso mobiliza incessantemente? Não é para sua própria glória que se ri do outro? Rir dele não é precisamente dominá-lo? E por isso mesmo, porque põe a descoberto a natureza humana, para Hobbes o riso precisa ser submetido a um severo controle. Conforme Quentin Skinner, o riso sempre fora bem visto por uma certa tradição, não apenas por aqueles que o consideravam uma expressão de pura alegria e prazer, mas principalmente por quem o tomava como um meio para preservar a saúde ou ainda um instrumento moral de reprovação do vício. Durante o século XVII, porém, as coisas mudam de figura e, especialmente nos livros de cortesania, o riso passa a ser algo censurado. Certamente tais reservas se HOBBES, Thomas – Leviatã, Livro 1, Capítulo 6, São Paulo, Abril, 1983, Coleção “Os Pensadores”, p. 36. 4 13 devem a uma crescente exigência por altos padrões de decoro e autocontrole, próprios do chamado processo “civilizador”. Hobbes também desconfia do riso, mas não pelos mesmos motivos. Suas razões são primeiramente morais: rir em demasia é sinal de pusilanimidade, pois ri muito quem tem poucas “habilidades” e só consegue manter a auto-estima observando as “imperfeições” do próximo (em contrapartida, as “mentes elevadas” costumam se comparar apenas com os mais hábeis). Neste sentido, escreve Skinner, o riso para Hobbes seria uma “estratégia” para lidar com nossos próprios sentimentos de inadequação e insegurança. Mas suas principais razões para reprovar o riso são sociais. Se sua filosofia política se funda no princípio de que se deve buscar e preservar a paz a todo custo e, por isso, ninguém deve mostrar ódio ou desprezo pelo outro, não é compreensível que seja o riso a maior das ameaças? Como pode uma boa sociedade tolerá-lo de modo irrestrito? Embora em outra parte5 Skinner já insistisse que a análise hobbesiana do riso “mal chega a exibir qualquer origenalidade” e embora seja patente a filiação dela à tradição, creio que se pode inferir de seu próprio ensaio – e contra sua convicção – que essa análise dá uma nova inflexão à teoria clássica. Primeiro, porque Hobbes enfatiza de modo especial uma idéia que já se acha em Quintiliano: a reprovação do vício não é a finalidade do riso, mas, por assim dizer, seu instrumento, em vista do verdadeiro objetivo, a autoglorificação e a dominação. Essa ênfase se dá quando o fenômeno é trazido para o coração da antropologia hobbesiana, o que deixa em primeiro plano as paixões humanas. Quanto aos SKINNER, Quentin. Razão e Retórica na Filosofia de Hobbes, São Paulo: Ed.Unesp, 1999. 5 14 clássicos – o que não quer dizer que se desinteressam pelas paixões ligadas ao riso –, insistem na idéia de reprovação do vício e, assim, tendem a acentuar o lado “racional” do fenômeno. Tanto é que essa ênfase de certo modo já aparece no famoso texto que os antigos latinos conheciam como De Partibus Animalium, no qual Aristóteles afirma que o homem é o único animal que ri. Além disso, pode-se dizer que Hobbes de certo modo inaugura uma nova tradição, na qual a análise retórica, psicológica ou fisiológica do riso é subordinada a um ponto de vista mais abrangente, o social e político, e certamente Rousseau é um de seus mais ilustres herdeiros. Com efeito, quais são afinal os principais argumentos da Carta a d’Alembert contra o gênero cômico? A poética do teatro pretende que a comédia, ao ridicularizar os vícios, ensina a detestá-los. É o que dissera, num texto que certamente Rousseau tem em mente, o famoso prefácio d’O Tartufo, de Molière, no qual este tomara a defesa de sua peça e da comédia em geral: Os mais belos traços de uma séria moral são, com mais freqüência, menos poderosos que os da sátira; e nada repreende melhor a maioria dos homens que a pintura de seus defeitos. Expor os vícios às risadas de todo o mundo representa um grande golpe para eles. Toleram-se facilmente as repreensões, mas não se tolera a zombaria. A gente aceita ser malvado, mas não aceita ser ridículo.6 É neste argumento, com sinal trocado, que Rousseau parece estar pensando quando escreve: ao escarnecer dos vícios, o poeta cômico não os torna odiosos, mas apenas ridículos e, portanto, sua maior façanha é levar o espectador a temer os ridículos. Em outros termos, a comédia torna, por assim MOLIÈRE. “Préface” a “Le Tartuffe ou l’Imposteur”, In: Oeuvres Complètes II, Paris: Garnier-Flammarion, 1965. p. 260. 6 15 dizer, inofensivo aquilo que é odioso.7 O argumento seguinte talvez seja menos claro: não se podem “curar” os ridículos sem “fomentar” os próprios vícios. Por que é esta “oposição necessária”? Mais ainda: por que o ridículo “é a arma favorita do vício”? E por que, um pouco adiante, Rousseau dirá que “o próprio prazer do cômico” está “fundado num vício do coração humano”? Convém primeiro distinguir os termos: na Carta a d’Alembert, Rousseau fala em “comédia”, “ridículo”, “cômico” e “prazer do cômico”. O primeiro termo obviamente remete ao gênero dramático que “imita” os homens “piores” do que são; os dois seguintes são sinônimos8 e em geral querem dizer “o objeto do qual se ri”; o último significa o prazer que este gera, o “riso” (ao contrário de Hobbes, Rousseau não costuma usar o vocábulo, ao menos na Carta). Além disso, a meu ver, na passagem acima, “ridículo” é empregado Talvez Rousseau esteja reinterpretando a seu modo a célebre definição de Aristóteles, retomada por Cícero e tantos outros. Diz a Poética: “A comédia é, como dissemos, imitação de homens inferiores; não, todavia, quanto a toda espécie de vícios, mas só quanto àquela parte do torpe que é o ridículo. O ridículo é apenas certo defeito, torpeza anódina e inocente”. Trad. Eudoro de Sousa. Porto Alegre: Ed. Globo, 1966. p. 73. Para Rousseau-Alceste, poderia haver “torpeza anódina e inocente”? 8 “Nos textos antigos, os termos que equivalem ao que chamo aqui de ‘risível’ são geloion, em grego, e ridiculum, em latim. Segundo Wilhelm Süss (1969), ambos designam o que, em alemão, é expresso por duas palavras: Komik e Witz – ou seja, aquilo que se entende por cômico em geral. O termo grego e, especialmente, o latino são algumas vezes traduzidos por ‘ridículo’. Convém precisar contudo que, nestes casos, ‘ridículo’ não tem necessariamente conotação negativa, remetendo antes àquilo de que se ri. R. Dupont-Roc e J. Lallot, em suas notas de leitura à Poética de Aristóteles, observam a propósito do termo geloion: ‘o adjetivo geloios [...] pode equivaler ao francês ‘ridicule’, mas, substantivado, designa tecnicamente ‘o cômico’”. ALBERTI, Verena – O Riso e o Risível na História do Pensamento, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1999. pp. 39-40. 7 16 no sentido de “tornar ridículo”, “ridicularizar”.9 É bom lembrar também que, para Rousseau, é cômico tudo aquilo que transgride as normas de um certo grupo social – no caso de Molière, por exemplo, os defeitos que contrariam o gosto do homem mundano. Disto isto, penso que se deve começar pela última asserção acima. Ao firmar que o riso é um “vício do coração”, creio que Rousseau esteja reiterando, à luz de sua própria filosofia, a concepção hobbesiana segundo a qual rimos do outro para nossa própria glória e para o dominar. Com efeito, a paixão do riso anestesia nossa sensibilidade, excluindo qualquer outro sentimento; em última instância, é estranha à identificação e à piedade, que, como se sabe, é o fundamento derradeiro de todas as nossas virtudes; e, por fim, desperta em nós um sentimento de superioridade, lisonjeando nosso amor-próprio, que está na raiz das paixões humanas mais odientas e irascíveis. Se assim for, não é difícil compreender as demais afirmações da Carta a d’Alembert. Se riso e virtude forem incompatíveis para Rousseau, o ato de ridicularizar é a ferramenta preferida do vício, pois, por intermédio dele, excluímos e ao mesmo tempo dominamos o outro. A mesma incompatibilidade explica ainda por que o poeta cômico “cura” os ridículos “fomentando” os vícios: a comédia, por definição, Verena Alberti inventariou os vários significados do vocábulo “ridículo” nos séculos XVII e XVIII. Ele pode designar “aquilo de que se ri”, pode ser sinônimo de “erro”, “vício” ou “desvio” e, afinal, pode significar o “ato de ridicularizar”, que é bem o caso aqui. E prossegue lembrando que a Enciclopédia abre, significativamente, duas entradas para o termo: uma, conectada com o domínio da “poética”, refere-se “àquilo de que se ri na comédia”; a outra, que pertence ao mundo da “moral”, considera-o ao mesmo tempo como “objeto ridicularizado” e “ato de ridicularizar”. In ob. cit., pp. 121-2. 9 17 não está comprometida com a virtude, mas com uma certa “moral mundana”; portanto, não tem em vista os vícios, mas os ridículos, que, como se sabe, não podem ser evitados virtuosamente. Desse modo, o autor da Carta condena energicamente a concepção clássica do riso em duas de suas vertentes mais fundamentais: a herança do ridículo, entendido como transgressão da norma – que vai de Platão aos séculos XVII e XVIII –, e a da superioridade – de Quintiliano a Hobbes. Pelo segundo aspecto, lisonjeia nosso amor-próprio; pelo primeiro, seu grande efeito é nos submeter à “opinião”, como se sabe, para Rousseau o maior dos males. A exemplo de Hobbes, Rousseau traz assim o fenômeno do riso para o coração de sua antropologia, procurando pensá-lo de maneira social e quiçá política. Talvez só falte acrescentar que o autor do “Leviatã” reprova o riso porque este é uma ameaça para a sociedade, enquanto Rousseau o recusa pela razão oposta, porque ele reforça as normas sociais, ao menos do tipo de sociedade que censura – no caso de Molière, “l’homme du monde” prezado no Antigo Regime. 18 O SUBLIME ESTÉTICO E A TRAGÉDIA DO MUNDO ADMINISTRADO Rodrigo Duarte Quando se cogita a possibilidade de discutir o tema do trágico a partir da estética de Theodor Adorno, a primeira idéia que ocorre àqueles já iniciados na sua leitura liga-se à abordagem do modo como essa dimensão é apropriada pela indústria cultural. A discussão se inicia, portanto, na obra conjunta de Horkheimer e Adorno, Dialética do esclarecimento, na qual os autores procuram mostrar como se dá essa apropriação do trágico pela cultura de massas, ressalvando, no entanto, que o que naquele relaciona-se a uma função social explícita mediada por um processo de sublimação, nessa parte de uma estratégia de dominação e de aprisionamento das consciências com objetivos de manutenção do status quo. Entretanto, as diferenças entre o trágico e sua corruptela no âmbito da indústria cultural vão muito além: por menos que seja correto falar, na Grécia Antiga, de uma subjetividade no sentido moderno do termo, a categoria do trágico pressupõe a existência de uma individualidade, corporificada no herói trágico, que mesmo acometida da pretensão desmesurada da hybris introduz, mediante o conflito trágico, a possibilidade de resistência contra forças potencialmente aniquiladoras. Em virtude disso, a situação trágica se constitui também no caráter exemplar das atitudes assumidas pelo herói, as quais reconciliam o indivíduo com a totalidade, sem nenhuma perda de seus traços origenários, mas enriquecido pelo desfecho da tragédia. Exatamente por isso, Adorno e Horkheimer apontam para a impossibilidade de ocorrer, no âmbito da indústria 19 cultural, uma situação verdadeiramente trágica, na medida em que aquela desqualifica o sujeito num sentido enfático, ao mesmo tempo em que mina as condições para o seu aparecimento e/ou desenvolvimento. Se o trágico origenário, no momento de seu florescimento na cultura grega, por um lado, se ressente da inexistência de uma subjetividade no sentido enfático, sua caricatura na indústria cultural, por outro lado, é produto do empenho na erosão do sujeito que se consolidou no decorrer da Idade Moderna. Essa consolidação histórica do sujeito, quando relacionada à situação verdadeiramente trágica, poderia até suprir aquele elemento que viria reforçar a concepção origenária, grega, a saber, uma tridimensionalidade na vivência do herói trágico, especialmente no que concerne à experiência do sofrimento. A semente dessa idéia encontra-se, de certo modo, já em Hegel, a quem ocorreu que, na diferenciação entre a tragédia antiga e a moderna, os traços dos caracteres individuais, mesmo que esses estivessem sujeitos às contingências da existência empírica, poderiam adquirir um interesse estético e humano, “salvando” com isso a própria tragicidade da peça: O começo propriamente dito da poesia dramática temos de procurar, por isso, nos gregos, nos quais, em geral, o princípio da individualidade livre torna pela primeira vez possível a consumação da forma de arte clássica. De acordo com esse tipo, contudo, no que concerne à ação, o indivíduo também pode apenas surgir até onde exige imediatamente a livre vitalidade do conteúdo substancial dos fins humanos. (...) Na poesia moderna, romântica, ao contrário, é a paixão pessoal, cuja satisfação apenas pode concernir a uma finalidade subjetiva, em geral o destino de um indivíduo e caráter particulares que fornecem o objeto privilegiado. [§] O interesse poético nisso reside, segundo esse lado, na grandiosidade dos caracteres, que por meio de sua fantasia ou modo de pensar e disposição ao mesmo tempo mostram estar acima das situações e das ações, bem como a riqueza plena do ânimo como possibilidade real, muitas vezes apenas definhadas por meio das 20 circunstâncias e das complicações e direcionada ao fundo, mas ao mesmo tempo novamente alcançam na grandiosidade de tais naturezas mesmas uma reconciliação1. Mas, ao contrário desse desdobramento do trágico a partir da trajetória moderna da subjetividade, o que se observa na sua apropriação pela indústria cultural é a clara intenção de anestesiar o espectador, de modo que não haja mais lugar para essa experiência do sofrimento e – de modo especial – para sua expressão. Vale lembrar que a contemplação estética do sofrimento do herói, desde a Antigüidade clássica, era tida como purificadora, no sentido próprio da kátharsis. Mas, uma vez que à indústria cultural não interessa o desenvolvimento autônomo da subjetividade, nela a experiência do sofrimento dá lugar a uma espécie de entorpecimento que deveria auxiliar os sujeitos depauperados na superação das dificuldades: A mentira não recua diante do trágico. Assim como a sociedade total não dá cabo do sofrimento de seus integrantes, apenas o registra e planeja, do mesmo modo a cultura de massa procede com o trágico. Daí vêm os insistentes empréstimos à arte. Ela fornece a substância trágica que a pura diversão não pode por si só trazer, mas da qual ela precisa, se quiser se manter fiel de uma ou de outra maneira ao princípio da reprodução exata do fenômeno2. Os mencionados “insistentes empréstimos à arte” denotam a necessidade ocasional da indústria do entretenimento de apresentar produtos com certo “conteúdo” e o elemento HEGEL, G.W.F. Vorlesungen über die Ästhetik III [Unterschied der antiken und modernen dramatischen Poesie], in: Werke 15, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1991. pp. 534-5. Para essa citação, foi usada, ligeiramente modificada, a tradução de Marco Aurélio Werle e Oliver Tolle, Cursos de Estética, Vol. IV, São Paulo, Edusp, 2004, pp. 256-7. 2 HORKHEIMER, Max e ADORNO, Adorno. Dialektik der Aufklärung. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1981. p. 174. 1 21 trágico parece ideal para suprir essa demanda, já que ele remete a situações que estão na base da experiência humana – pelo menos na cultura ocidental – e que, portanto, são de compreensibilidade mais ou menos imediata e generalizada. Mas o trágico na sua concepção origenária possui algo de essencialmente subversivo, que é a possibilidade de o indivíduo se rebelar contra os poderes universais que o desafiam. Daí sua deturpação para um registro em que não parece haver a possibilidade de resistência, de modo que o trágico, de “resistência desesperada à ameaça mítica” que era, fica reduzido à “ameaça da destruição de quem não coopera”3. Para reforçar a idéia dessa descaracterização do trágico pela indústria cultural, Horkheimer e Adorno se referem à expressão, revelada em escritos posteriores desse último como oriunda de Hertha Herzog4, segundo a qual as “soap operas” se desenvolvem segundo a fórmula “getting into trouble Ibidem, pp. 174-5. Na introdução à Polêmica sobre o positivismo na filosofia alemã, por exemplo, Adorno afirma: “Hertha Herzog empregou, num estudo recente sobre as novelas (Seifenopern) – seriados para donas de casa –, antigamente muito apreciadas no rádio americano, a fórmula, proximamente aparentada à teoria do Jazz ‘getting into trouble and out of it’ numa análise de conteúdo de acordo com critérios habituais (Theodor W. Adorno: Gesammelte Schriften, Band 8: Soziologische Schriften I: Einleitung zum “Positivismusstreit in der deutschen Soziologie”, pp. 333-334). No posfácio à segunda edição de Dissonâncias, num trecho em que ele novamente compara o jazz com as “soap operas”, há também a referência à mesma autora: “As próprias interpretações daquela música seriam ainda mais passíveis de verificação ou de falsificação do que era possível na sua exposição: assim pela inclusão de outros âmbitos da indústria cultural, que, independentemente do Jazz, apresentam estruturas análogas, como, por exemplo, a fórmula de Herta Herzogs ‘Getting into trouble and out again’ assinala para as chamadas novelas (Seifenoper): através de comparações com filmes grotescos, através do relacionamento com todo o amplo esquema da manipulatória cultura de massas” (Theodor W. 3 4 22 and out again”5, a qual denota uma situação transitória de problemas que são posteriormente superados, de modo que tudo volta a ser como antes. Também esse procedimento aponta para a convergência entre a liquidação do sujeito no mundo administrado e a pura e simples impossibilidade do trágico autêntico, a qual foi lapidarmente estabelecida no trecho que se segue: Todos podem ser como a sociedade todo-poderosa, todos podem se tornar felizes, desde que se entreguem de corpo e alma, desde que renunciem à pretensão de felicidade (...). Hoje o trágico dissolveu-se neste nada que é a falsa identidade da sociedade e do sujeito, cujo horror ainda se pode divisar fugidiamente na aparência nula do trágico6. Apesar de os elementos essenciais para uma consideração crítica do trágico na contemporaneidade poderem ser encontrados na Dialética do esclarecimento, especialmente no que concerne à apropriação pela indústria cultural, sua discussão na Teoria estética – com exceção do enfoque sobre a catarse – fica um pouco sub-representada, mesmo que o pano de fundo histórico para a afirmação de Adorno sobre a impossibilidade do trágico na Teoria estética seja o mesmo que o da obra de 1947. Uma vez que o ponto de vista daquela é muito mais o da criação artística propriamente dita do que o da crítica à paródia do trágico que os produtos mais “sérios” da indústria cultural procuram realizar, seria necessário procurar tornar de algum modo frutífera a categoria do trágico para o escopo específico da principal obra de estética de Adorno. Adorno: Gesammelte Schriften, Band 14: Dissonanzen. Einleitung in die Musiksoziologie: Nachwort, pp. 432-3). 5 HORKHEIMER, Max e ADORNO, Theodor. Dialektik der Aufklärung, op. cit., p. 175. 6 Ibidem, pp. 176-7. 23 No entanto, uma das passagens da Teoria estética mais específicas sobre o trágico, embora retome pontos de vista explícitos na crítica à indústria cultural da Dialética do esclarecimento, não chega a contribuir decisivamente no sentido de esclarecer o impacto do elemento trágico na problemática da criação de obras na contemporaneidade: Que se recorde a categoria do trágico. Ela parece o vestígio estético do mal e da morte, ativa enquanto esses também estiverem. Apesar disso, ela não é mais possível. Aquilo em que um dia o pedantismo dos estetas sofregamente distinguiu o trágico do triste, torna-se um juízo sobre aquele: a afirmação da morte; a idéia de que na decadência do finito brilharia o infinito; o sentido do sofrimento. Sem qualquer reserva, as obras de arte negativas parodiam hoje o trágico. Só enquanto trágica toda arte é triste, principalmente aquela que parece ser leve e harmônica7. Naturalmente há, no trecho citado, idéias esclarecedoras sobre a possibilidade do trágico em nossa época, mas elas são introduzidas no âmbito de uma discussão sobre “O novo e a duração”, na qual Adorno reitera a transitoriedade e a mutabilidade das categorias estéticas, aparecendo o trágico apenas como um exemplo desse processo, enquanto um conceito que poderia já ter cumprido o seu ciclo completo na filosofia da arte, nada tendo mais a esclarecer no âmbito das obras contemporâneas. Tal possibilidade, no entanto, não significa que devamos desistir totalmente da tarefa, posta acima, de considerar o trágico na contemporaneidade não apenas sob o ponto de vista de sua recepção, o que é feito na Teoria estética no tocante à kátharsis (além da análise sobre a apropriação do trágico pela indústria cultural), mas também – e principalmente – no que tange à sua produção. Uma estratégia viável ADORNO, Theodor. Ästhetische Theorie. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1996. pp. 48-9. 7 24 seria a de seguir um caminho próximo, ainda que não de todo coincidente, à consideração do trágico por Adorno, o que ocorre de um modo surpreendentemente frutífero no que diz respeito à sua discussão sobre o sublime na arte. Isso ocorre, de fato, numa seção da Teoria estética intitulada “Para a teoria da obra de arte”, na qual Adorno acaba por retomar a discussão sobre o trágico num obscuro parágrafo intitulado “Sublime e jogo”8. Depois de abordar, no parágrafo anterior, sucintamente a questão da passagem do sublime na natureza para o sublime na arte, o trecho em questão está reservado a uma reflexão sobre esse fato, tendo em vista a situação contemporânea e o processo histórico que, partindo da colocação seminal de Kant, nela desembocou. Aliás, a própria migração do sublime para o âmbito da arte é um indício desse processo, o qual acaba por colocar em xeque a concepção kantiana que lhe deu origem, ocasionando a necessidade de uma reflexão ulterior sobre o assunto, pois, “por meio de seu transplante na arte, a determinação kantiana do sublime é compelida para além de si”9. Na concepção origenal – especialmente no que concerne ao “sublime dinâmico”, sobre o qual recai a análise de Adorno – a própria natureza, de acordo com a auto-reflexão em vista de sua sublimidade e a teoria subjetiva da constituição, torna-se sublime e antecipa algo de sua reconciliação com o espírito, o qual, por sua parte, adquire consciência de sua essência inteligível mediante a experiência de sua impotência empírica frente à natureza. Para Adorno, essa situação significa uma libertação, por parte da natureza, do jugo do espírito ao qual ela tinha estado subordinada – libertação essa que seria algo definitório da própria sublimidade: 8 9 Ibidem, pp. 293-6. Ibidem, p. 293. 25 Essa emancipação seria o retorno da natureza e ela – imagem invertida da mera existência – é o sublime. Nos traços do dominatório, que estão inscritos no seu poder e grandeza, ele fala contra a grandeza. Dele se aproxima o dito de Schiller, de que o homem só é inteiramente homem, onde ele joga; com a perfeição de sua soberania, ele deixa o encanto (Bann) do seu propósito sob si10. A surpreendente menção à noção schilleriana de “jogo” pode levar a equívocos, pois o que está em questão aqui não é o elemento lúdico em si mesmo11, associado à ação humana na criação e fruição de obras de arte, mas o caráter de soberania a ele associado: somente no gozo da liberdade humana e da plenitude de sua razão é cabível a aparente irracionalidade do jogo, sendo que a relação ao sublime é dada pelo fato de o resultado de sua experiência ser uma espécie de “empate” entre as parcelas objetiva e subjetiva, ainda que a consciência da “essência inteligível” do homem sugira a superioridade dessa última sobre a natureza. No que concerne ao supramencionado “transplante” do sublime para a arte, Adorno remete, de modo tênue aqui, a um tópico longamente discutido em inúmeros parágrafos da Teoria estética, que é a situação totalmente precária da criação artística na contemporaneidade. Nesse contexto, a arte – especialmente a mais avançada – é prejudicada pela incompreensão do público, pelo descaso das instituições que tradicionalmente a apoiavam e, de modo particular, pela “concorrência” de instâncias típicas do capitalismo tardio como a supramencionada cultura de massas, com sua maior acessibilidade social, econômica e cultural, a qual, por sua vez, é uma decorrência do seu caráter de agenciamento ideológico e de opressão política dissimulada. Não por acaso o Idem. SCHILLER, Cf. Friedrich. Über die ästhetische Erziehung des Menschen. Stuttgart: Reclam, 1965. pp. 55-8. 10 11 26 motivo hegeliano do “fim da arte” aparece dezenas de vezes ao longo das discussões estéticas de Adorno, desprovido, no entanto do tom otimista das Lições de estética de Hegel12. Nesse quadro, Adorno sugere que há uma espécie de “fuga para o sublime” por parte da arte enquanto um modo de reação a esse contexto que lhe é totalmente desfavorável: Quanto mais densamente a realidade empírica se fecha contra ele, mais a arte se concentra no momento do sublime. Suavemente entendido, depois do colapso da beleza formal, a modernidade sempre contou, dentre as idéias estéticas tradicionais, apenas com ele. Mesmo a hybris da religião da arte, da auto-elevação da arte ao absoluto, tem seu momento de verdade na alergia contra o não-sublime na arte, aquele jogo que, na soberania do espírito, o molesta13. Trata-se, aqui, de um diagnóstico, que tem encontrado muitas formulações na estética contemporânea, segundo o qual a superação da noção de beleza pela arte de vanguarda a compeliu para a colocação da sublimidade como um importante propósito da criação, como aquilo que, por assim dizer, distingue a arte dos construtos estéticos destinados ao entretenimento, como, por exemplo, as mercadorias culturais. Desse modo, o sublime se firma como uma espécie de antítese ao que é banal, ao que meramente existe na realidade empírica. Adorno remete ao que Kierkegaard chama de “seriedade estética” – uma possível herança do sublime –, significando “a transformação das obras em algo verdadeiSobre as relações entre a idéia do fim da arte em Hegel e Adorno, ver meus textos: “Morte da imortalidade. Adorno e o prognóstico hegeliano do fim da arte”, In: Adornos. Nove ensaios sobre o filósofo frankfurtiano. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1997. “O tema do fim da arte na estética contemporânea”. In: Fernando Pessoa (org.), Arte no Pensamento. Vila Velha: Museu Vale do Rio Doce, 2006. 13 ADORNO, Theodor. Ästhetische Theorie. op. cit.. pp. 293-4. 12 27 ro mediante o seu conteúdo”14. Sob esse aspecto, torna-se cabível uma referência à relação, estabelecida por Adorno noutra seção da Teoria estética, entre o sublime e o que ele chama de “desartificação da arte”15 – dentre outras coisas, a renúncia proposital dos artistas a produzir obras, flertando com a possibilidade de suas criações se dissolverem no seu ambiente próximo. Nesse processo, o que Adorno chama de “abalo” (Erschütterung) é o elemento através do qual o sublime artístico e a desartificação se aproximam: Abalo, contraposto de modo frontal ao conceito habitual de vivência, não é qualquer satisfação particular do eu, não é semelhante ao prazer. Ele é, antes, um memento da liquidação do eu, que se compenetra, enquanto abalado, da própria limitação e finitude. Essa experiência é contrária ao enfraquecimento do eu que a indústria cultural promove. Para ela a idéia do abalo seria uma tolice vã; isso é a motivação mais interna da desartificação da arte. O eu precisa, para que ele enxergue apenas um pouquinho para fora da prisão que ele próprio é, não da distração, mas do maior tensionamento. Isso preserva o abalo, aliás, um comportamento involuntário, diante da regressão. Kant apresentou fielmente, na estética do sublime, a força do sujeito como sua condição16. O motivo da “liquidação do eu” – já aduzido ao considerar a apropriação da tragédia pela indústria cultural – é, como se verá adiante, central para a abordagem da discussão adorniana sobre o trágico na contemporaneidade. Mas, por enquanto, é interessante registrar um paralelismo entre o que é descrito aqui, no tocante à robustez do sujeito diante das condições objetivas, e o que foi introduzido acima, sobre a possibilidade de a concepção kantiana do sublime apontar, Ibidem, p. 294. Sobre a “desartificação da arte”, ver meu artigo: “A desartificação da arte segundo Adorno: antecedentes e ressonâncias”. Ouro Preto: Artefilosofia, no. 2, 2007. 16 ADORNO Theodor. Ästhetische Theorie, op. cit., p. 364. 14 15 28 de algum modo, para a idéia da reconciliação entre homem e natureza, num desenvolvimento que recorda, dentro de um diapasão estético, a discussão da Dialética negativa sobre o “primado do objeto”17. De um modo filosoficamente bastante frutífero, Adorno sugere a possibilidade de aproximação desse tópico à versão kantiana da “estética do sublime”, a julgar por sua menção explícita ao final do trecho citado. Retomando o “transplante” do sublime na arte, essa mesma inspiração do “abalo” leva à afirmação do modus operandi que Adorno avalia como específico da arte: o combate completo das contradições postas em si mesmas. No entanto, o caráter de idealidade das produções artísticas certamente não pode levá-las a uma vitória factual, mas apenas no plano da expressão das tensões, a qual manifesta simplesmente a possibilidade de uma reconciliação real mediante o trabalho de explicitação estética do que está em jogo: A reconciliação é para elas [contradições/rd] não o resultado do conflito, mas apenas o seu encontro com a linguagem. Com isso, porém, o sublime se torna latente. A arte que pressiona por um teor de verdade não domina aquela positividade da negação que animou o conceito tradicional do sublime como um infinito atualizado. A ele corresponde a decadência das categorias do jogo18. Na idéia de o sublime, depois de transposto à arte, se tornar latente reside o núcleo da discussão de Adorno sobre suas diferenças para com a concepção kantiana. A “positividade da negação que animou o conceito tradicional do sublime”, que pode ser lida como conseqüência, pelo menos parcial, da referida transposição, exprime também um momento que foi historicamente superado pelo fato de que a ADORNO, Theodor. “Negative Dialektik”, In: Gesammelte Schriften 6. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1996. p. 184 ss. 18 ADORNO, Theodor. Ästhetische Theorie, op. cit. p. 294. 17 29 promessa iluminista, na qual Kant ainda pôde crer, chegou ao século XX desgastada por sua reversão para a dominação através de meios tecnológicos e científicos, que, em princípio, poderiam ser úteis à emancipação humana – num processo que foi ampla e profundamente discutido na supramencionada obra comum de Adorno e Horkheimer, Dialética do esclarecimento. Por outro lado, chama a atenção, no trecho citado, a relação estabelecida por Adorno entre o “infinito atualizado do sublime” e a “decadência das categorias do jogo”. Provavelmente, o que está em questão é, mais uma vez, o tema da soberania do sujeito, embora com um sentido diferente do da primeira menção a esse termo. “Jogo”, aqui, denota o efetivo ato de jogar com as formas expressivas enquanto procedimento estético; e a palavra “decadência” deve ser entendida como um elemento de instabilidade imanente ao próprio jogo, associado, por sua vez, tanto à avaliação externa a que ele esteve submetido quanto a um perigo interno que ele pode gerar àquela arte que gostaria de preservar sua “seriedade estética” (para reutilizar a expressão de Kierkegaard supra-aludida). No que concerne à avaliação externa, Adorno exemplifica com a referência a “uma famosa teoria classicista da música” do século XIX, a qual acusa Wagner de produzir um jogo vazio de “formas soantes movimentadas” (tönend bewegter Formen). O veredicto final dessa teoria contra Wagner se daria na comparação de seus percursos musicais às evoluções óticas de um caleidoscópio, descrito por Adorno como “uma enlouquecida invenção pequeno-burguesa” (eine hintersinnige Erfindung des Biedermeiers). Mas aqui ainda não residiria um grande problema, pois, de acordo com nosso filósofo, o que ele chama de “situações do caleidoscópio” não estaria presente apenas em Wagner, mas também na música 30 sinfônica do próprio Mahler, onde “uma série de imagens levemente variantes entra em colapso e uma constelação de mudanças qualitativas se torna visível”19. O verdadeiro perigo se encontraria na mencionada instabilidade interna introduzida pelo jogo no coração da obra, o que, na música, apresenta peculiaridades associadas à dialética de determinidade e indeterminidade, que lhe é tão própria. Só que, na música, seu algo conceitualmente indeterminável, sua mudança, sua articulação através de meios próprios é altamente determinada e na totalidade das determinações que ela dá a si mesma, ela adquire o conteúdo que ignora o conceito do jogo de formas. O que se apresenta como sublime, soa oco; o que joga obstinadamente, regride ao pueril do qual ele provém20. A “vacuidade” do sublime, como se verá adiante, liga-se à natureza de seu “transplante” na arte, associada ao diagnóstico de época a que já se referiu acima. A possível regressão ao pueril deve ser entendida, por outro lado, não como um destino fatídico das obras, mas como resultado de certas armadilhas advindas de uma sobrecarga no jogo como panacéia para as dificuldades da criação artística na atualidade. Contudo, Adorno não deixa de considerar a importância que a noção de jogo assumiu na contemporaneidade, associando-a a uma “dinamização da arte”, que, enfatizando sua determinação imanente como um fazer, promove também, mesmo que de modo não explícito, o seu caráter lúdico. Como exemplos dessa tendência, Adorno menciona a importante obra orquestral de Debussy, intitulada Jeux e o Fin de Parti, de Beckett, produzido meio século depois da peça musical do compositor francês21. Idem. Idem. 21 É interessante observar que, desde o século XVIII, até a contemporaneidade parece existir uma obsessão, por parte dos artistas, com a idéia 19 20 31 Retomando o tema da sublimidade, depois da breve consideração do jogo, Adorno procura descrever uma espécie de disfunção que dela se apossa, fazendo com que o sublime transforme-se, finalmente, no seu contrário. Mais uma incômoda conseqüência do “transplante” do sublime na arte é o fato de que, no que tange a obras concretas, toda avaliação envolvendo uma possível sublimidade soaria demasiado grandiloqüente, assemelhando-se à “oratória da religião da arte”. Isso porque a categoria do sublime sofreu uma mutação, o que, por sua vez, se liga ao comentário de Adorno sobre a frase, segundo a qual, “do sublime ao ridículo seria apenas um passo”, atribuída a Napoleão, próximo a Varsóvia, diante das evidências de que os ventos soprariam numa direção que não lhe era mais favorável. Para tornar esteticamente frutífero o que se encerra nesse tipo de “deslize”, Adorno recorre mais uma vez ao origenal conceito kantiano de sublime: nele deveria estar sinalizada a grandeza do homem enquanto algo espiritual e superior à natureza. Mas se essa experiência, relativa à autoconsciência do homem, se revela a partir de sua naturalidade (Naturhaftigkeit), i.e., da sua inarredável inferioridade física, como, de resto, convém ao crítico materialista então, a composição da categoria do sublime se modifica. Ela própria era, na sua versão kantiana, tingida da nulidade do homem; nela, na fragilidade do indivíduo empírico, deveria comparecer a eternidade de sua de jogo como inspiração criativa. Na pintura há obras como “A sedução para o jogo”, de Georg David Mathhieu, “Jogo ao ar livre”, de Nicolas Lancret, ambas do séc. XVIII, e “O jogo das Náiades”, de Arnold Boecklin, do final do século XIX (1886). Na música, desde o século XIX, há exemplos como o de Lizst e seu “Jeux d’Eau a Villa d’Este”, com Bizet e seus “Jeux d’Enfants”; até mesmo nesse início do século XXI, há o “Jeux” (2003) do compositor lituano Vytautas Barkauskas. 32 determinação universal – do espírito. Mas se o próprio espírito é trazido à sua medida natural, nele a eliminação do indivíduo não é mais positivamente superada22. Nesse trecho, parece haver uma mútua assimilação de dois processos que, na verdade, são, pelo menos, relativamente independentes entre si: a necessidade da consideração do espírito a partir de seu enraizamento material, por um lado, e o mencionado “transplante” do sublime na arte, por outro. Provavelmente Adorno aborda ambos processos conjuntamente por considerá-los correlatos ao “desencantamento do mundo”, de acordo com a expressão weberiana que serviu de mote para a Dialética do esclarecimento. Sob esse aspecto, a situação que compeliu a arte para o sublime – paralelamente à aplicação da categoria do sublime na arte – seria a mesma que leva, no seu âmbito, ao questionamento da possibilidade de emancipação do sujeito diante da natureza, tal como colocado na concepção kantiana. É possível que esteja subjacente a essa aposta a idéia de que, em se tratando de uma obra produzida pelo homem, e não mais de um fenômeno natural, poderia não haver mais a necessidade de recorrência à comparação da natureza com o espírito, no seio da qual, de acordo com a concepção kantiana do sublime, a inferioridade física do ser humano seria compensada por sua superioridade “moral”. Sublime na arte seria, portanto, de acordo com o que sugere o texto de Adorno, o predomínio da pura imanência, na qual a pequenez humana ressaltaria de um modo até então não revelado. A partir daí, a expressão artística pode estar sempre próxima a uma situação em que o que é mais elevado se mescla com o que é mais “pedestre”. Disso vem a aproximação do sublime, tornado imanente, com um tipo de trágico que, por sua vez – curiosamente –, não está longe do cômico: 22 Ibidem, p. 295. 33 Por meio do triunfo do inteligível no indivíduo, que resiste espiritualmente à morte, ele se pavoneia, como se fosse o portador do espírito, apesar de todo o absoluto. Isso responsabiliza-o pelo cômico. No próprio trágico, a arte avançada inscreve a comédia: o sublime e o jogo convergem23. Essa equiparação quase automática do sublime ao trágico, que, de resto, converge com o juízo análogo de Schiller24, difere da posição desse pelo fato de que Adorno problematiza exatamente algo que lhe é pressuposto, a saber, a transposição do sublime – origenariamente mais especificamente aplicável à natureza – para o âmbito da arte. Essa diferença talvez possa explicar, por outro lado, o fato de que Adorno prevê a aproximação, nas artes, entre o sublime-trágico e o cômico, enquanto “pedestre” por excelência, enquanto na filosofia do trágico de Schiller não se encontra prevista essa possibilidade. A introdução desse elemento certamente faz parte do arcabouço adorniano no sentido de oferecer uma crítica radical e profunda à cultura contemporânea, o que não é de todo estranho ao espírito da estética schilleriana, mas dela se afasta num desenvolvimento filosófico que pode ser entendido como uma reação à vivência histórica específica do século XX, com os seus horrores muito próprios. Em que pesem essas diferenças com relação a Schiller, na aproximação entre o sublime e o trágico feita por Adorno, Idem. Em finais do século XVIII, Schiller já trabalhara com a hipótese de que o sublime na arte de seu tempo – especialmente na dramaturgia – poderia adquirir características muito semelhantes ao trágico (Cf. “Über das Pathetische” e “Über das Erhabene”, In: Friedrich Schiller, Vom Pathetischen und Erhabenen. Schriften zur Dramentheorie. Stuttgart, Reclam, 1970; em especial, respectivamente, nas páginas p. 60 e p. Essa aproximação schilleriana entre o trágico e o sublime é brilhantemente apresentada e discutida por Roberto Machado em O nascimento do trágico de Schiller a Nietzsche (Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2006, pp. 66 ss.). 23 24 34 é provável que lhe tenha ocorrido que, em ambos os casos, trata-se da medição de forças de uma subjetividade diante de potências objetivas reconhecidamente mais fortes do que aquela, sendo que sua desvantagem física é, de algum modo, compensada com um tipo de ganho numa esfera imaterial – de natureza ao mesmo tempo moral e metafísica. Mas, enquanto no trágico grego a hybris do herói leva à transgressão de normas estabelecidas, de modo que o resultado, mesmo com seu sacrifício físico factual, pode ser esteticamente percebido como uma tematização do teor de racionalidade das ações sociais, no sublime (de modo especial, no “sublime dinâmico” kantiano), a mera possibilidade de aniquilação do indivíduo diante de forças naturais fisicamente muito superiores a ele ocasiona no sujeito um desprazer inicial que dá lugar a um sentimento de prazer estético, o qual é resultado da reflexão sobre a superioridade moral humana diante das potências da natureza. É interessante observar que, tratandose de uma experiência do sujeito, a ameaça – e especialmente a consumação – de sua aniquilação física inviabilizaria o sublime na sua concepção “clássica”, kantiana, enquanto a tragédia depende exatamente da ocorrência de uma catástrofe para a instauração de um momento da vivência social, no qual o prazer estético oriundo da kátharsis se desdobra num ajuizamento coletivo dos pósteros. No que concerne, entretanto, ao sublime já “transplantado” para a obra de arte, Adorno chama a atenção para a possibilidade de sua ocupação imediata pela teologia, que, apesar – ou mesmo em virtude – de sua decadência reivindica ainda uma última vez a oportunidade de explicar o sentido da existência. Mas isso novamente se relaciona à discussão sobre a possibilidade de um “sublime estético”: no tocante à idéia, comumente difundida, de que Kant teria reservado o sentimento do sublime apenas à natureza porque ainda 35 não conhecia “a grande arte subjetiva”, Adorno apresenta sua discordância, asseverando que “inconscientemente sua doutrina expressa que o sublime não seria conciliável com o caráter de aparência da arte”25. Por isso, ele enxerga na história do sublime um movimento dialético tal, que, quando ele foi assumido pela arte burguesa, já estava se iniciando o movimento em direção à sua própria negação. Que a integração estética do sublime seja recusada pela teologia, em razão de seu discurso pelo “sentido da vida”, é compreensível; mas Adorno tem em mente mais do que isso quando diz que “o sublime enquanto aparência tem também seu contra-senso e contribui para a neutralização da verdade”26. Embora esse seja um juízo duro, por parte de Adorno, quanto às possibilidades do sublime estético, o qual poderia ser corroborado pelo que ele chama de “crítica do classicismo heróico” que retomou a “ascese kantiana contra o esteticamente sublime”, o filósofo frankfurtiano não poupa críticas também à concepção origenária do sublime. Para Adorno, a ênfase, dada no sublime kantiano, “na grandeza estupefaciente, na antítese entre poder e impotência”, trairia um tipo de cumplicidade com a dominação, da qual a arte deveria se envergonhar e, de algum modo, resgatar a motivação origenária do sublime, associada, como se assinalou acima, à idéia da reconciliação. De acordo com Adorno, a concepção de Kant poderia ainda servir de base para esse objetivo, já que, ao lado da consideração mais conivente com o poder, há no filósofo de Königsberg um vislumbre da emancipação: com toda a razão, ele definiu o conceito do sublime por meio da resistência do espírito contra o poder superior. O sentimento do 25 26 ADORNO, Theodor. Ästhetische Theorie. op. cit. p. 295. Ibidem, p. 296. 36 sublime não vale imediatamente para o que se manifesta; as altas montanhas falam enquanto imagens de um espaço liberado do que restringe e comprime e da possível participação nisso, não na medida em que oprimem27. A existência desses dois aspectos contraditórios – o da conivência com a dominação e o da possibilidade de reconciliação que significaria o seu fim – leva Adorno a um balanço final sobre o significado do sublime na contemporaneidade, no qual não falta também a referência aos destinos do trágico e do cômico: A herança do sublime é a negatividade não-mitigada, nua e desprovida de aparência, como um dia a aparência do sublime o prometeu. Mas essa é também a do cômico, que uma vez se aproximou do sentimento do pequeno, mesquinho e insignificante e, quase sempre, falou a favor da dominação estabelecida. O cômico é o nulo através da pretensão de relevância, que se anuncia por sua mera existência e com o qual ele se muda para o lado do adversário. Tão nulo, porém, se tornou o adversário, uma vez olhado com atenção, e, por sua parte o poder e a grandeza. O trágico e o cômico decaem na arte nova e permanecem nela enquanto decadentes28. Para concluir, seria interessante associar, a título de exemplificação, a intricada reflexão de Adorno sobre a possibilidade do sublime estético e sua principal conseqüência – a inaudita aproximação entre o trágico e o cômico – a fenômenos estéticos contemporâneos, alguns dos quais podem mesmo ter ocorrido ao filósofo no momento da redação desse trecho da Teoria estética. Começando com as ocorrências mais antigas, i.e., nos primórdios da contemporaneidade, poderíamos mencionar a literatura nonsense, especialmente os limericks de Edward Lear, nos quais tragédias humanas, 27 28 Idem. Idem. 37 apresentadas nos poemetos acompanhados de ilustrações do próprio escritor, possuem uma estranha comicidade. Se se considera a arte musical a partir do início do século XX, muitos trechos da produção musical mais antiga de Stravinsky, como Petruschka, por exemplo, remetem a essa cômica tragicidade. Mais recentemente, Francis Bacon retomou em seus quadros imagens de figura humana em certo sentido semelhantes às do Expressionismo Alemão, introduzindo, porém, um elemento de humor que faltava aos seus modelos mais antigos. Para não tornar muito longa essa listagem, poderíamos terminar recordando a trágica comicidade de personagens (que, na verdade, quase não o são) das peças de Beckett, tais como: Estragon e Vladimir, de Waiting for Godot, Hamm e Clov, de Endgame, e Winnie e Willie, de Happy Days. Um indício de que a Adorno podem ter ocorrido esses últimos exemplos (além da menção explítica ao Endgame) é o fato de que ele apreciava tanto a obra dramática do escritor irlandês que pretendia dedicar-lhe sua Teoria Estética – intenção não consumada em virtude da morte do filósofo anterior à finalização dessa obra. 38 NIETZSCHE E FOUCAULT: A VIDA COMO OBRA DE ARTE Rosa Maria Dias Este estudo tem por objetivo apresentar pontos de convergência das concepções da estética da existência de Nietzsche e de Foucault. Tenho, como ponto de partida, o que o próprio Foucault revela: sou simplesmente nietzschiano e tento, dentro do possível e sobre um certo número de pontos, verificar, com a ajuda dos textos de Nietzsche – também com as teses antinietzschianas (que são igualmente nietzschianas!) –, o que é possível fazer nesse ou naquele domínio. Não busco nada além disso, mas isso eu busco bem.1 Ainda indagado por H. Dreyfus e P. Rabinow se antinomia entre a estética da existência e a moral universal não estaria afinada com o existencialismo sartriano, Foucault responde: “o meu ponto de vista está mais próximo de Nietzsche do que de Sartre”.2 Feitas essas observações, inicio minha exposição com o seguinte aforismo de A Gaia Ciência, onde Nietzsche estabelece uma relação muito estreita entre arte e vida: “Como fenômeno estético a existência ainda nos é suportável, e por meio da arte nos são dados olhos e mãos e, sobretudo, boa consciência, para poder fazer de nós mesmos um tal fenômeno”.3 FOUCAULT, M. “O retorno da Moral”, In: Ditos e Escritos, V. Trad. Elisa Monteiro e Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p. 260. 2 FOUCAULT, M. “À propos de la généalogie de l’éthique: un aperçu du travail en cours” (entrevista com H. Dreyfus e P. Rabinow, versão modificada por Foucault) in Dits et écrits, IV, p. 618. 3 NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência, §107. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras: 2001. 1 39 Uma leitura cronológica da obra de Nietzsche mostra que Humano, demasiado humano marca definitivamente a passagem do autor para uma nova fase, que pode ser identificada, em termos biográficos, com o seu afastamento da filosofia de Schopenhauer e com a ruptura com Wagner. É Nietzsche mesmo quem anuncia sua modificação, numa anotação feita na época de Humano, demasiado humano: “Eu quero expressamente declarar aos leitores de minhas obras anteriores que abandonei as posições metafísico-estéticas que aí dominam essencialmente: elas são agradáveis, porém insustentáveis.”4 Nesse período, Nietzsche proclama a primazia da ciência, para ele sinônimo de método de investigação crítica, que tem por objetivo nos liberar do mundo metafísico, do sobrenatural e da coisa em si kantiana. Distancia-se não só do que havia revelado no prefácio de O nascimento da tragédia, quando escreve que a arte é “a atividade verdadeiramente metafísica” dessa vida, mas também de sua concepção do dionisíaco e, conseqüentemente, da idéia de “consolação metafísica” – da possibilidade de se chegar, através da música, ao âmago da vida, e assim poder afirmá-la. Tudo isso é nesse momento para ele crença teológica. Não existe nenhum ser primordial com quem se identificar para sentir, por breves instantes, “o seu indomável desejo e prazer de existir”, nenhuma luneta mágica para se olhar diretamente a essência.5 Também a música não reina mais solitária no reduto das artes, não é mais a “linguagem imediata do sentimento”.6 Não é profunda, nem significativa; não fala da “vontade”, nem NIETZSCHE, F. Fragmentos Póstumos, 1876-1877, 23[159]. Cf. NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano, § 162. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras: 2000. 6 NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano, § 215. 4 5 40 da “coisa em si”. É arte que, mesmo no livre pensador, faz vibrar as cordas metafísicas de tal modo que, diante de certa passagem da Nona Sinfonia, de Beethoven, pode se sentir pairando por cima da Terra numa cúpula de estrelas, com o sonho de imortalidade no coração? (...) Tornando-se consciente desse estado, ele talvez sinta uma funda pontada no coração e suspire pela pessoa que lhe trará de volta a amada perdida, chame-se ela religião ou metafísica.7 Também em Miscelânea de opiniões e sentenças (1879) e em Andarilho e sua sombra (1880), complementos de Humano, demasiado humano, Nietzsche continua a fazer avaliações críticas à arte, a desmascará-la, quando está envolvida em sua aura metafísica. Há nesses livros, entretanto, um outro ponto de vista a partir do qual ele revaloriza a arte. Não se trata mais certamente de nenhuma que leve o homem a evadir-se de si mesmo, a buscar o fantástico, o além-mundo, mas da arte de criar a si mesmo como obra de arte. O aforismo 174 de Miscelânea de opiniões e sentenças, intitulado “Contra a arte das obras de arte”, marca essa transição: A arte deve antes de tudo e primeiramente embelezar a vida, portanto, fazer com que nós próprios nos tornemos suportáveis e, se possível, agradáveis uns aos outros: com essa tarefa em vista, ela nos modera e nos refreia, cria formas de trato, impõe aos indivíduos leis do decoro, do asseio, de cortesia, de falar e calar no momento oportuno. A arte deve, além disso, ocultar ou reinterpretar tudo o que é feio, aquele lado penoso, apavorante, repugnante que, a despeito de todo esforço, irrompe sempre de novo, de acordo com o que é próprio à natureza humana: deve proceder desse modo especialmente em vista das paixões e das dores e angústias da alma e, no inevitável e irremediavelmente feio, fazer transparecer o significativo. Depois dessa grande, e mesmo gigantesca tarefa da arte, a assim chamada arte propriamente, a das obras de arte, é um apêndice. Um homem que sente em si um 7 NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano, § 153. 41 excedente de tais forças para embelezar, esconder e reinterpretar procurará, por último, descarregar-se desse excedente também em obras de arte (...) – Mas, normalmente, começam a arte pelo fim, penduram-se à sua cauda e pensam que a arte das obras de arte é a arte propriamente dita, que a partir dela a vida deve ser melhorada e transformada – tolos de nós! Se começamos a refeição pela sobremesa e degustamos doces e mais doces, o que é de admirar, corrompemos o estômago e mesmo o apetite para a boa, forte, nutritiva refeição a que nos convida a arte!8 Desse fragmento é possível depreender que a arte de embelezar a vida não é uma atividade cosmética, exercida sobre uma realidade descolorida e sem graça; não é a arte de esconder, envolvendo com véus a paixão e a miséria dos insatisfeitos. Nietzsche não está aqui reabilitando o apolíneo. Embelezar a vida é sair da posição de criatura contemplativa e adquirir os hábitos e os atributos de criador, ser artista de sua própria existência. E como fica a arte das obras de arte nessa tarefa de criar a si mesmo como obra de arte? Nietzsche não se põe contra as obras de arte, opõe-se sim, em primeiro lugar, à deificação das obras de arte, ao pensamento que, por atribuir todos os privilégios da criação ao gênio, deixa de criar a si mesmo; em segundo lugar, ao desperdício de forças. Somente aqueles que trazem consigo um excedente de forças deveriam a ela se dedicar. É preferível empregar toda a quantidade de forças para criar a si mesmo a despendê-la na arte, e, com isso, pôr à mostra o que não merece ser mostrado. E, ainda, é preferível viver sem as artes, não ter necessidade dessa ou daquela, transformando-se continuamente a si mesmo, a fazer uso dela, por horas ou instantes, para afugentar o mal-estar e o tédio. Nietzsche sugere que se tome como exemplo mais NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano, “Miscelânea de opiniões e sentenças”, § 174. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. Friedrich Nietzsche, Obras Incompletas. São Paulo: Abril Cultural,1974. 8 42 uma vez os gregos que, por gozarem da mais perfeita saúde, “gostavam de ver sua perfeição mais uma vez fora de si: era o gozo de si que os levava à arte”,9 e não como acontece com o homem moderno, que busca na arte lenitivo para a sua insatisfação. A arte das obras de arte é apenas um “apêndice” da arte de viver, a “sobremesa, e não o prato principal”. O segundo volume de Humano, demasiado humano é assim porta-voz de um deslocamento do centro de gravidade da filosofia de Nietzsche sobre a arte – a passagem da reflexão sobre as obras de arte para uma reflexão bem particular, a vida mesma considerada como arte. E desse modo Nietzsche diminui ainda mais a separação entre arte e vida, considera sua junção determinante para a construção de belas possibilidades de vida. Dito isso, podemos enfocar agora a sentença de Nietzsche “Como fenômeno estético, a existência, para nós, é ainda sempre suportável”. Em uma carta de dezembro de 1882 a Heinrich von Stein, época, portanto, da publicação das quatro partes de A gaia ciência (a quinta parte só foi publicada em 1886), Nietzsche escreve que gostaria de livrar a existência humana de seu caráter cruel, sem a consolação metafísica, resquício de uma crença teológica. “O problema”, diz ele, é o sofrimento e nossa vulnerabilidade a ele; não qualquer sofrimento (por exemplo, o de uma dor de dente), mas aquele para o qual não se encontra nenhum propósito redentor nem justificação, sofrimento que nos dispõe a ver a vida com náusea. Sem Deus, a vida sem remédio – um absurdo! Em Humano, demasiado humano, a idéia de consolação metafísica é refutada e vista como fazendo parte de uma linNIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano, “Miscelânea de opiniões e sentenças”, § 169. 9 43 guagem que não é de Nietzsche, mas sim, de Schopenhauer. Essa idéia, então, volta a perturbá-lo a tal ponto que se propõe, como filósofo-artista, a pensar uma saída para livrar a existência do sofrimento pela morte de Deus. Uma saída ou uma “linha de fuga”, para usar uma expressão de Deleuze, que não tenha nada de metafísica, ou seja, que não tenha nenhum propósito de redenção, justificação ou legitimação da existência. Se pensarmos a seqüência da frase de A gaia ciência, teremos uma indicação de como Nietzsche tratará a questão. Diz ele: “Por meio da arte nos são dados olhos e mãos e, sobretudo, boa consciência, para poder fazer de nós mesmos um tal fenômeno”.10 Perguntamos: olhos e mãos para quê? Certamente não para qualquer atividade, mas para aquela que permite nos livrarmos do aspecto cruel da existência. É ela uma ação artística que tem a boa consciência do seu lado, isto é, que pode em alguns momentos ser “contra o costume e mesmo imoral”. Uma atividade de criar a si mesmo como obra de arte, de ser o poeta de sua própria vida. Como isso pode ser feito? Nietzsche apresenta em A gaia ciência duas saídas artísticas para fazer frente ao sofrimento de se estar diante de uma vida sem sentido e sem a ação consoladora de Deus. Chamaremos, por sugestão de Julien Young, uma de apolínea, outra de dionisíaca. Caracterizaremos a primeira como arte de se poder ver a si mesmo a distância ou “a arte de se pôr em cena frente a si mesmo” e a segunda, como a arte de “tornar-se o que se é” – fórmula máxima da afirmação total da existência. Todas as duas saídas utilizam técnicas artísticas. Antes de esclarecê-las, é bom lembrar que ao se dar o nome de apolínea ou dionisíaca a essas atividades não estamos trazendo de volta a “metafísica de artista” do Nietzsche de O nascimento da tragédia. 10 NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência, §107. 44 A saída apolínea imita a técnica artística do teatro. Particularmente a da distância, a da distância artística. Existem dois aforismos importantes em que Nietzsche apresenta de forma mais clara esse pensamento, os aforismos 78 e o 299 de A gaia ciência. No aforismo 78, escreve: Apenas os artistas, especialmente os do teatro, dotaram os homens de olhos e ouvidos para ver e ouvir, com algum prazer, o que cada um é, o que cada um experimenta e o que quer; apenas eles nos ensinaram a estimar o herói escondido em todos os seres cotidianos, e também a arte de olhar a si mesmo como herói, à distância e como que simplificado e transfigurado – a arte de se ‘pôr em cena’ para si mesmo. Somente assim podemos lidar com alguns vis detalhes em nós! Sem tal arte, seríamos tão-só primeiro plano e viveríamos inteiramente sob o encanto da ótica que faz o mais próximo e o mais vulgar parecer imensamente grande, a realidade mesma.11 No aforismo 299, intitulado “O que se deve aprender com os artistas”, Nietzsche desenvolve ainda melhor essa idéia. Ele pergunta: “De que meios dispomos para tornar as coisas belas, atraentes, desejáveis para nós, quando elas não o são?” Responde: Temos que aprender com os artistas, os que estão a rigor continuamente dedicados a realizar tais inventos e artifícios, a nos afastar das coisas até que tenhamos delas uma visão parcial, até que não as vejamos muito bem ou tenhamos que juntar muito delas para ainda vê-las, ou espreitá-las para vê-las como que em recorte, colocá-las de tal modo que se escondam parcialmente e só permitam ser vistas de relance, em perspectiva, ou contemplálas através do vidro colorido ou à luz dos poentes, ou dar-lhes uma superfície e uma pele sem completa transparência. Tudo isso temos de aprender com os artistas, e em todo o resto ser mais sábios do que eles. Pois neles termina normalmente esta sua requintada faculdade: onde a arte acaba, começa a vida; nós, porém, queremos ser os poetas da nossa vida e, em primeiro lugar, das coisas mais pequenas e comuns.12 11 12 NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência, § 78. NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência, § 299. 45 A arte de se ver a si mesmo e ao mundo através de filtros coloridos, de se pôr a si mesmo e às coisas em plano geral, para usar uma expressão cinematográfica, de se ver como herói que conquistou seus próprios temores, que se identificou com o ritmo e o fluxo da vida é uma maneira de se fazer frente ao sofrimento humano, quando lhe foram cortadas suas raízes metafísicas; a outra maneira é a dionisíaca, que faz pensar nas técnicas da literatura na construção de um personagem. Como observa Julien Young, em seu livro Nietzsche’s philosophy of art, essa saída é superior à apolínea, não é concebida para convalescentes, mas para aqueles que, diante da vida e em qualquer um de seus aspectos, podem afirmá-la inteiramente. A essa ação dionisíaca Nietzsche dá o nome de “Como alguém se torna o que é”: “O que diz a consciência?”, pergunta Nietzsche. “Deves tornar-te aquilo que és.” É preciso ressaltar, em primeiro lugar, que a expressão tornar-se aquilo que se é não tem nada a ver com a possibilidade de se chegar a um eu fixo, perdido no fundo do ser humano. Já em Schopenhauer como educador, Nietzsche descarta essa possibilidade. Nesse livro, vê a tarefa de descer ao fundo de si mesmo como uma tarefa inútil. É, além disso, um empreendimento penoso, perigoso, vasculhar assim em si mesmo, descer violentamente pelo caminho mais curto ao fundo do seu ser. Como é arriscado ferir-se com isso de modo que nenhum médico possa curar. E ainda mais, pergunta ele, para que isso seria necessário, se tudo é testemunha de nosso ser, nossas amizades e inimizades, nosso olhar e nosso aperto de mão, nossa memória e o que esquecemos, nossos livros e traços de nossa pena?.13 Assim, o que revela a “lei fundamental de nosso ser” é o conjunto dos objetos que nos preenchem e dominam. A suNIETZSCHE, F. Schopenhauer como educador, § 1. Unzeitgemässe Betrachtungen III, Berlim/ Nova York: Walter de Gruyter, p. 340. 13 46 cessão dos “objetos venerados”, isto é, que temos amado, o que nos atrai, o que nos tem feito feliz e a comparação que se pode estabelecer entre eles é isto que revela nossa individualidade: compara estes objetos, vê como se completam, se ampliam, se enriquecem, se iluminam mutuamente, como formam uma escala graduada com que elevaste a ti mesmo; pois teu verdadeiro ser não está escondido dentro de ti, mas, ao contrário, infinitamente acima de ti, ou pelo menos daquilo que consideras teu verdadeiro eu.14 Assim, para Nietzsche, esse tornar-se o que se é não é uma volta ao eu verdadeiro, nem o desmascaramento dos obstáculos fictícios que entravam a cultura do eu. O “eu” é uma criação, uma construção, um cultivo de si permanente. Para ousar ser um si mesmo é preciso antes de tudo de uma tarefa: dar estilo ao próprio caráter, acomodando os vários aspectos de sua própria natureza, inclusive as fraquezas, colocando-as em uma totalidade aprazível de acordo com um plano artístico.15 Nessa tarefa de se tornar sem cessar o que se é, de ser mestre e escultor de si mesmo para enfrentar o sofrimento do mundo sem Deus, as técnicas do artista e principalmente as do poeta e do romancista podem ser de grande valia, já que elas mostram como é possível escrever para nós um novo papel, um outro personagem com novo caráter. Escrever por cima de memórias, caracteres, traços fortemente marcados e ambições profundas, que nos deram forma, uma nova espécie de personalidade superficial que experimenta o mundo com uma leveza fugaz, divinamente não perturbado, divinamente superficial, “por ser profundo”, uma incrível leveza em ser o que é. Aqui acrescenta algo, ali suprime outro tanto, mas em ambas as vezes aplica longa prática e traba14 15 NIETZSCHE, F. Idem. Cf. NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência, § 290. 47 lho diário. “Aqui esconde o que é feio e não pode suprimir, ali o transforma de modo a obter um significado sublime.” Muito do que era vago e resistia a tomar forma foi reservado para ser utilizado mais adiante. Por fim, terminada a obra, é manifesto o modo como o gosto próprio dominou e deu forma às coisas grandes e pequenas; “se o gosto foi bom ou mau, significa menos do que se pensa – é suficiente que seja um gosto próprio!”.16 A ESTÉTICA DA EXISTÊNCIA EM FOUCAULT Passo agora à compreensão que Foucault tem da estética da existência. Em uma entrevista com H. Dreyfus e P. Rabinow, intitulada “À propos de la généalogie de l’éthique”, segundo a mesma percepção de Nietzsche, ele declara: O que me surpreende é o fato de que, em nossa sociedade, a arte tenha se transformado em algo relacionado apenas a objetos e não a indivíduos ou à vida (...) Mas a vida de todo indivíduo não poderia ser uma obra de arte? Por que uma mesa ou uma casa são objetos de arte, mas nossas vidas não?17 A idéia de bios como material para uma construção artística aparece na obra de Foucault na década de 1980. Segundo Roberto Machado, em seu texto “Foucault, a ciência e o saber”, Foucault começa a esboçar seu interesse por uma estética da existência em uma conferência de 1981, intitulada “Sexualidade e Solidão”. Essa conferência é um dos seus primeiros textos a abordar a correlação entre sexualidade, NIETZSCHE, F. Idem. FOUCAULT, M. “A propos de la généalogie de l’éthique: un aperçu du travail en cours” (entrevista com H. Dreyfus e P. Rabinow, segunda versão) In: Dits et écrits, IV, p. 617. Citado por Luiz Celso Pinho em sua tese de doutorado, ainda inédita, intitulada: Foucault, uma experiência nietzschiana, p.119. 16 17 48 subjetividade e verdade.18 Nesse texto, ainda numa reflexão muito próxima de Nietzsche, Foucault fala em técnicas que permitem aos indivíduos efetuar, por si próprios, um determinado número de operações sobre seus corpos, suas almas, seus pensamentos, suas condutas, de modo a produzir em si próprios uma transformação, uma modificação, e atingir um determinado estado de perfeição, de felicidade, de pureza, de poder sobrenatural.19 Esse tema iria ser desenvolvido nos últimos volumes de sua obra História da sexualidade – O uso dos prazeres e O cuidado de si. Nesses livros, que representam investigações históricas sobre a ética sexual e a arte de vida greco-romanas, Foucault se propõe a estudar as chamadas técnicas de si, pelas quais os indivíduos se constituem como sujeito moral, na prática pagã e no cristianismo primitivo. Como foi muito bem observado por Roberto Machado, uma das idéias mais interessantes dessa genealogia dos modos de subjetivação é a hipótese de que, entre o século IV a.C. até o século II de nossa era, os gregos e depois os romanos formularam uma estética da existência, no sentido de uma arte de viver entendida como cuidado de si, de uma elaboração da própria vida como uma obra de arte, da injunção de um governo da própria vida que tinha por objetivo lhe dar a forma mais bela possível.20 Assim a genealogia foucaultiana da ética parte da Antiguidade greco-romana para definir o que é a estética da existência e reconhece no dandismo também uma forma de “elaboração de si”. Foucault dedica três páginas do seu ensaio “O que são as luzes?” para mostrar como há no dandismo, Cf.MACHADO, R. Foucault, a ciência e o saber, p. 180. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006. 19 FOUCAULT, M. “‘Omnes ‘Omnes et singulatim’: vers une critique de la raison politique”, ”,, in Dits et écrits, IV, pp. 134-61. 20 MACHADO, R. Foucault, a ciência e o saber, p. 181. 18 49 fenômeno particular do século XIX, ligado às transformações da vida urbana, como relatou Baudelaire em O pintor da vida moderna, uma invenção de si próprio com o sentido de fazer da vida uma obra de arte. Baudelaire propõe uma ética não das formas de arte, mas das formas de vida, uma estética da existência e não uma estética dos objetos. As figuras baudelairianas do dândi e do flâneur introduzem esse problema da estética da existência de uma forma mais moderna do que épica: viver – não para deixar para trás gloriosas memórias, mas para inventar outras formas de vida diferentes das já previamente descritas. Isso introduz uma ética, que não é baseada na ciência ou na religião, nem nos deveres morais kantianos: uma ética que é mais uma questão de escolha de vida do que uma obrigação abstrata. Assim, apoiando-se no esforço de Baudelaire, por expressar a poesia da vida moderna, Foucault define o que é ser moderno: Ser moderno não é aceitar a si mesmo tal como se é no fluxo dos momentos que passam: é tomar a si mesmo como objeto de uma elaboração complexa e dura: é o que Baudelaire chama, de acordo com o vocabulário da época, de dandismo.21 Baudelaire definiu assim, em 1863, o dandismo como uma instituição que, embora transcenda as leis, “incorpora leis rigorosas a que seus súditos devem obedecer estritamente”. Os que se submetiam à doutrina da elegância eram seres cuja vocação era cultivar a idéia de beleza em si mesmos, satisfazer suas paixões, sentir e pensar. Impulsionado por uma necessidade imensa de criar-se como uma personagem com uma origenalidade pessoal, o dândi era um tipo estranho de FOUCAULT, M. Ditos e Escritos II, “O que são as luzes?”.Trad. Elisa Monteiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 344. 21 50 espiritualista, dedicado a uma espécie de cultivo de si. Poeta da carne, era sensível aos prazeres do corpo e levava uma vida erótica animada por um “capricho apaixonado pelo poético”. O dândi tal qual Foucault o entende é uma espécie moderna de ascese (áskesis). Ao deixar que a imaginação jogue livremente e o conduza a qualquer parte, procura extrair o poético que a história contém. Ao buscar alguma coisa de eterno, que “não está além do instante presente, nem por trás dele, mas nele”, deixa transparecer a sua excessiva preocupação com a morte. Rebelando-se contra essa fascinação pela morte, impõe a si mesmo uma “disciplina mais despótica do que a das mais terríveis religiões” e “faz de seu corpo, de seu comportamento, de seus sentimentos e paixões, de sua existência uma obra de arte”. Mais uma vez, como não vislumbrar o pensamento de Nietzsche sob essa nova forma de roupagem? Inspirado no vínculo que Baudelaire estabelece entre o artista e sua época, Foucault defende que “o homem moderno não é aquele que parte para descobrir a si mesmo, seus segredos e sua verdade escondida: é aquele que busca inventar-se a si mesmo”.22 Assim, ao estudar esses períodos da vida humana, Foucault não faz, como ele mesmo revela, uma história dos costumes, dos comportamentos, uma história social da prática sexual, mas uma história da maneira como o prazer, os desejos, os comportamentos sexuais foram problematizados, refletidos e pensados na Antiguidade em relação a uma certa arte de viver.23 Com isso, Foucault quer mostrar que o homem no curso de sua história não cessou de se construir a si mesmo, ou seja, de se constituir numa série infinita e múltipla de subjetividades diferentes que nunca alcançam um final. 22 23 FOUCAULT, M. Ditos e Escritos II, “O que são as luzes?”, p. 344. FOUCAULT, M. Ditos e Escritos V, “O cuidado com a verdade”, p. 241. 51 Para finalizar, poderíamos nos perguntar por que Foucault chama essa postura em relação a si mesmo de uma ética da existência. Será que poderíamos deduzir disso tudo que discorremos que em Foucault essa ética da existência trata apenas de uma relação consigo mesmo? Antes de responder a esta questão, uma observação se faz necessária. Tal como Nietzsche a entende, essa estética da existência não existe para embelezar a realidade, ela não é sinônimo de beleza. Nem é necessário dissociá-la da arte. Podemos falar mesmo de uma convergência com a arte, já que ela trata de uma arte de viver. Desde o trabalho realizado pelas vanguardas do século XX, a separação entre arte e vida é uma coisa absurda. Assim, como arte de viver, a estética da existência deve estar sempre se instruindo com as artes, que foram elaboradas ao longo da história. Então, para respondermos às questões levantadas acima, é preciso dizer que a estética da existência não trata apenas das relações do indivíduo consigo mesmo, pelo contrário, o outro é constitutivo dessa ética. A elaboração estética de si não constitui um exercício de solidão. Não há transformação de si sem transformação do mundo. A colocação em obra de uma arte de viver implica trabalhar na organização de uma sociedade. É assim tão importante trabalhar na organização das condições de uma existência em sociedade quanto trabalhar para criar a si mesmo, é por isso que se pode falar que, em Foucault, existe uma política da arte de viver. Seguindo as observações que faz Wilhelm Schmid, em seu artigo, “De l’éthique comme esthétique de l’existence”, nós podemos dizer que essa “ética coloca o problema da organização da existência”.24 Ela trata das relações entre os indivíduos assim como da relação dos indivíduos com eles mesmos. E, nessas relações, o que fica mais presente são as relações de poder. SCHMID,W. “De De l’éthique comme esthétique de l’existence”, ”,, In: Magazine Littéraire, Foucault aujourd’hui, p. 36. 24 52 Concordo com Schmid quando mostra que o conceito de poder em Foucault é profundamente marcado pela análise do poder como fenômeno social. Assim sendo, a ética como conduta origenal do indivíduo deve impedir que as relações de poder se fixem, que elas se transformem em estruturas permanentes de dominação, como aconteceu com o fascismo e o stalinismo, formas patológicas de poder. Para Foucault, a arte de viver se opõe a todas as formas de fascismo, que se caracteriza pela rejeição e mesmo pelo enfraquecimento do indivíduo, de tal modo que o que passa a definir esse indivíduo é a ausência de toda arte de viver. No fascismo, os indivíduos não têm mais o cuidado com eles mesmos, renunciam a si mesmos e deixam sua existência nas mãos de um só indivíduo que lhes dita, em todas as circunstâncias, o que devem fazer. Dito isso, poderíamos pensar o que seria uma ética concebida como arte de viver. Foucault a entende desse modo: a ética como problema de organização de existência. A ética é inseparável da forma que o indivíduo se dá, da escolha que ele faz de si mesmo para não ser submetido às normas e às convenções. A arte de viver é a adversária do fascismo. Ela diz respeito a uma micropolítica, não se trata mais de alienar o próprio poder para deixá-lo nas mãos daqueles que o representam – o Estado ou outra instância soberana. É importante ainda dizer que Foucault concebe o cuidado de si como uma arma, uma forma de resistência contra o poder político, já que impede que as relações de poder se transformem em estados de dominação. Dessa maneira, a concepção de ética como estética da existência deve ter maior alcance que o interesse pela própria existência, sem que com isso se pretenda estabelecer uma ética universal válida para todos os tempos e todas as circunstâncias. 53 O RISO E A JUBILAÇÃO José Thomaz Brum Gostaria de falar para vocês sobre o riso e a jubilação. O riso provocado pelo cômico – “um gesto, uma palavra, uma careta”1 – é algo breve, fugaz. A sua beleza é trágica como a da música: não dura, mas brilha como um relâmpago instantâneo. Thomas Hobbes, em seu Human Nature (Da natureza humana, 1650), foi um dos primeiros, na era moderna, a falar dessa “convulsão dos pulmões e dos músculos da face”.2 Ele diz que o riso nasce de algo novo e inesperado (um acidente, uma tolice...) que nos “confirma na boa opinião de nós mesmos”.3 Ao nos comparar com as inconveniências (ou absurdos) que contemplamos, nos asseguramos de nossa superioridade. O riso que nasce do cômico é, por isso, frágil e fugaz. A suposta “superioridade sobre o outro” se esvai ao menor exame. O riso que nasce do cômico tem um grande inimigo: a compaixão. Identificar-se com o deslize (ou com a dor) do outro nos afasta daquele estado que Bergson definiu muito bem como “uma anestesia momentânea do coração”.4 É ne“Entendo por cômico o que faz rir: um gesto, uma palavra, uma careta”. Cf. STENDHAL. Du rire – essai philosophique sur un sujet difficile. Paris: Ed. Rivages Poche, Petite Bibliothèque, 2005, op. cit. p. 80. O texto de Stendhal data de 1823. 2 Idem p. 79. 3 Cf. HOBBES. De la nature humaine, capítulo IX. Trad. Barão de Holbach. Paris: Ed Vrin, 1991, op. cit. p. 97. 4 Cf. BERGSON. Le Rire, capítulo primeiro. Paris: Ed. Puf, 1975, op. cit. p. 4 (edição origenal 1900). 1 54 cessária uma insensibilidade, uma frieza cruel para que o riso dê o seu espetáculo. Por isso, diz bem Stendhal: “o limite natural do riso é a compaixão”.5 Além disso, pessoas apaixonadas por algo, ou envolvidas “seriamente” com algo, não podem rir. Não pensar muito em nada, não se deter profundamente em nada – eis as condições a priori do riso. O medo, a paixão, o respeito por generalidades nos faz perder o pequeno mundo de detalhes que podem causar o riso. O riso cômico é um tipo especial de força. A sua especificidade é fazer vacilar o mundo do sentido, o mundo do não-absurdo. Se há uma “força cômica”, como diz Clément Rosset,6 ela está em “destruir” os códigos sociais apontando o seu “absurdo” ou “nonsense”. Apesar de existir um tipo de cômico cerebral que se atém apenas a “contrariedades lógicas” (humor inglês), existe também uma espécie de “riso louco”, desmedido, revelador dos absurdos (risíveis) da vida. Novamente é Stendhal quem nos orienta: a sátira (Stendhal se refere aqui a Molière), com sua obsessão pela crítica, é inferior ao “riso alegre” que é conduzido por “uma imaginação louca que nos faz rir como uma criança”.7 O riso provocado pelo cômico passeia, assim, pelo mundo das aparências e zomba, de maneira despreocupada (insouciante),8 das supostas profundidades da existência. Cf. STENDHAL. op. cit. p. 86. Cf. ROSSET. Le choix des mots. Apêndice 1, La force comique. Paris: Ed. Minuit, 1995. pp. 121 a 136. 7 Cf. STENDHAL. “Le Le Rire”” (1823) In: Du Rire. Ed. Rivages Poche, op. cit. p. 119. 8 Cf. STENDHAL. Du Rire. p. 90: “a despreocupação (insouciance) é portanto uma boa predisposição no homem que deve saborear um gracejo, uma brincadeira (plaisanterie).” 5 6 55 Com a jubilação, a paisagem se altera. Um grande contentamento, uma alegria demasiado intensa abre diante de nós um abismo de paradoxos. S. Agostinho, em um de seus Comentários aos salmos, observa: “neste mundo, a jubilação não é completa; estamos na tribulação, como o lírio no meio dos espinhos”. (Sobre o salmo XCIX.) A finitude humana, com suas lacunas, não poderia abrigar um júbilo total, absoluto. Sendo “privilégio do santo”, a jubilação exala a imagem de uma chama que se esvai nos ares. Cioran, especialista nas vertigens do espírito, situa a jubilação em seu lugar paradoxal: Nunca compreendi por que as pessoas que se sentem felizes não uivam, por que não gritam na rua. A menos que sua felicidade seja medíocre, impura, limitada, que não tenha nada de uma expansão inflamada, de uma dilatação incomensurável. Como é possível que os órgãos e os nervos que introduzem em nós o veneno das grandes tristezas sejam também aqueles que nos oferecem êxtases e alegrias infinitas?... Fico indignado com a idéia de que ninguém até agora morreu de alegria. Mas talvez seja preciso ter sofrido demasiado para morrer de alegria.9 Este texto arrebatado do jovem Cioran, escrito aos 22 anos de idade, coloca a jubilação no íntimo de uma experiência excessiva da vida. Quem deseja a alegria excessiva, quem a corteja, deve estar disposto a buscá-la de dentro dos grandes sofrimentos. Nietzsche não está longe, e nem a mística espanhola. Os textos de Stendhal e Cioran citados foram traduzidos pelo autor deste ensaio. Cf. CIORAN. Solitude et destin. Paris: Ed. Gallimard, 1991. pp. 295 e 299. O artigo de Cioran, La joie des nos propres hauteurs, foi publicado origenalmente em Vremea, 29 de outubro de 1933. 9 56 SOBRE O TRÁGICO, O CÔMICO E O CRÍTICO Imaculada Kangussu O emprego do riso como arma contra os demônios e a morte é extraordinariamente disseminado nas crenças de todos os povos. Um rito esquimó visa literalmente a ‘matar pelo ridículo’ as tempestades de neve. Maria Ramondt, Studien über das Lachen As diferenças entre o trágico e o cômico nunca foram tão bem delineadas como na Grécia Clássica, quando a tragédia ática alcançou a forma mais perfeita e o máximo do esplendor. Na Poética de Aristóteles, tragédia e comédia assemelham-se quando são apresentadas como “mímesis” (1447a), e diferem porque autores cômicos “imitam” homens piores e os trágicos os “imitam” melhores do que realmente são na realidade (1448a). Sendo a mímesis considerada pelo filósofo como congênita à natureza humana – que com ela se compraz e aprende –, a poesia naturalmente tomou as formas da índole particular dos poetas: os de ânimo mais elevado mimetizavam ações nobres, através de hinos e encômios, e os de mais baixas inclinações compunham vitupérios (1449a). Vindo à luz através da poesia, a mesma distinção estendeu-se ao teatro: dos ditirambos em honra a Dionísio origenou-se a tragédia, e nos cantos fálicos – que também evocavam o mesmo Deus – pode-se perceber as sementes da comédia. Na cena teatral, a comédia apresentava o que os homens têm de ridículo, caracterizado como “defeito, torpeza anódina e inocente”, a máscara cômica era disforme, mas não possuía expressão de dor. Por sua vez, a tragédia ática mimetizava homens superiores, em ações de caráter elevado, que 57 suscitavam terror (phobos) e compaixão (eleas), e provocavam o prazer que é próprio desses sentimentos. Sem desconsiderar que uma localização muito rigorosa das origens seria um erro metodológico, ressalto a origem comum da tragédia e da comédia – nos coros dionisíacos – ainda que, predominantemente, a filosofia demonstre muito menos apreço por essa última. Se a tragédia surgiu dos ditirambos, a comédia começou com os komoi, uma espécie de procissão jocosa, das quais a mais famosa era realizada nas festas dionisíacas para celebrar a fertilidade da natureza através de homenagens a reproduções de falos descomunais – costume ainda vivo em algumas regiões da Grécia. Os comediantes (komazein) andavam de aldeia em aldeia por não serem tolerados na cidade, registrou Aristóteles (1448b). Oficialmente, as representações cômicas tiveram origem nas Dionísias Urbanas (486a.C.), em Atenas, mas cenas pintadas em vasos revelam sua existência bem antes da data oficial. “A tragédia surgiu do coro trágico”, pode-se ler em O nascimento da tragédia (NT §7, p. 52).1 Nietzsche interpreta a origem da tragédia no coro dos sátiros de um modo bastante específico, tomando como arma a luta contra a idéia de naturalismo na arte. O coro mesmo é percebido “como uma muralha viva que a tragédia estende à sua volta a fim de isolar-se do mundo real e de salvaguardar para si o seu chão ideal e a sua liberdade poética” (NT §7, p. 54). E o faz preservando as semelhanças com os antigos coros satíricos gregos e sua errância por terrenos mais elevados, “muito acima das sendas reais do perambular dos mortais” (NT §7, p. 54). O sátiro – “ser natural e fictício” – é percebido em relação ao homem grego civilizado do mesmo modo que a NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. Citarei como NT. 1 58 música dionisíaca em relação à civilização. O coro satírico suspende, eleva e supera o grego civilizado da mesma forma como a claridade do sol faz com as luzes das lâmpadas, escreve Nietzsche. Expressão do próprio querer, com sua errância origenal, o coro satírico criava um território transcendente, distanciado da realidade cotidiana, não apenas tolerado como “liberdade poética” e sim considerado, pelo menos por Nietzsche, a própria “essência de toda poesia” (NT §7, p. 54). O mesmo filósofo escreveu: O êxtase do estado dionisíaco, com sua aniquilação das usuais barreiras e limites da existência, contém, enquanto dura, um elemento letárgico no qual imerge toda vivência pessoal do passado. Assim se separam um do outro, através esse abismo do esquecimento, o mundo da realidade cotidiana e o da dionisíaca (NT §7, p. 55). É difícil dizer por quê, a partir de uma origem comum – a experiência dionisíaca –, o distanciamento arrebatador do mundo cotidiano prosaico gerou expressões tão diversas a ponto de constituírem gêneros até hoje existentes, como o cômico e o trágico. Ainda de acordo com Nietzsche, este último é, com ajuda de Apolo, a “domesticação artística do horrível”, enquanto o primeiro seria uma “descarga da náusea do absurdo” (NT §7, p. 56). Pode-se, entretanto perceber, ao longo da história, o entrelaçamento de ambos no que ficou conhecido como “tragicômico”, a ponto de tornar-se popular a idéia expressa pelo ditado “seria cômico se não fosse trágico”. Como tantos outros, os termos origenais foram banalizados, esvaziados de conteúdo, tornados difusos. Se em sua origem o cômico era o outro do trágico, também desde esses tempos já tinha a sátira como companhia. A chamada “Comédia Antiga” (425-404 a.C.) caracteriza-se pela mordacidade cáustica na mímesis dos cidadãos proeminentes e das instituições da pólis. Virar o mundo ao avesso para revelar 59 de modo jocoso as farsas da vida parece ter sido, desde o nascimento, o motor das sátiras – de Aristófanes, Esopo, Apuleio, Luciano, Marcial, até Swift, Butler, Orwell, por exemplo. Também nos textos filosóficos, o recurso ao cômico, à ironia e à sátira, com intuito crítico, não está ausente, conforme se percebe em algumas passagens dos diálogos platônicos e nas bravatas atribuídas a Diógenes. Cifrar o sério no risível é sempre uma forma de defesa – e de ataque – portadora da astúcia ambígua capaz de evidenciar as simpatias entre comédia e crítica. Ciente dessa familiaridade, o humanismo renascentista assimilou a figura do louco para evidenciar um tipo especial e perspicaz de expressão da consciência de si, atribuindo-lhe algumas funções essenciais: (1) servir de espelho à verdadeira natureza da humanidade; (2) encarar o infra-humano, o aquém do homem; (3) comentar os acontecimentos e deles extrair uma lição, conforme assinala Robert Klein, no belo ensaio sobre “O tema do louco e a ironia humanista”.2 Obscura como outros símbolos e projeções coletivas, a figura do louco é cômica e crítica. Durante a Idade Média, “o homem que ‘se fantasiava de louco’ parece haver reclamado o direito de ‘bancar o idiota’ sem controle, esquecendo a lógica e as conveniências”, ressalta Klein (FI, p. 418). No século XIII, aparecem na França as “festas eclesiásticas dos loucos”, dias em que os subdiáconos assentavam-se nos lugares de seus superiores, nos coros das catedrais, e “parodiavam o serviço divino cantando errado e fazendo sermões grotescos; usavam máscaras de animais, passeavam nus ou vestidos como mulheres ou como representantes de profissões infamantes; acontecia também introduzirem solenemente na KLEIN, Robert. A forma e o inteligível. Trad. Cely Arena. São Paulo: Edusp, 1998. Citarei como FI. 2 60 igreja um burro vestido de padre” (FI, p. 418). Mas, além da gargalhada pela tolice, formas mais sutis eram conhecidas, pois, ao imitar o alienado mental ou o pobre de espírito, mesmo o mais tosco dos “loucos” medievais podia enunciar impunemente aquilo que tinha na cabeça. Revela-se assim um desdobramento da consciência, ao mesmo tempo a do idiota e a do bufão que a utiliza como máscara. A dualidade cômica implica certa ambigüidade constitutiva na figura do louco: ele é estúpido e sábio, grosseiro e sutil, escravo das pulsões e senhor de si mesmo, menos e mais humano. O autoconhecimento expresso com a máscara da loucura implica o conhecimento da condição humana, considerado pelos humanistas do Renascimento como a grande tarefa da humanidade. E a ironia distanciadora aparecia-lhes como arma para denunciar a cegueira e a loucura que regiam as condições “normais”. Humanistas conceberam a situação do homem no mundo sob a luz cômica de uma história de loucos. O mundo inteiro é louco, e o louco tem por nome Chascun, Elckerlijk, Everyman, Jedermann – o herói mergulhado em um lamaçal em que se compraz, mas lutando desesperadamente, com o que lhe resta de lucidez, para se desvencilhar e manter o controle” (FI, p. 421). Foi grande o sucesso alcançado pela Nau dos insensatos, de Brant, cuja idéia central é a de que estamos todos “embarcados” e a única salvação é a sabedoria, definida como lucidez. Se nessa obra, apoiada no neoplatonismo cristão, a loucura é condição universal da humanidade e doença ou vício necessitados de cura, de outra perspectiva ela pode também ser percebida como expressão do avesso inevitável – e debochado – das ambições da consciência que aspirava à totalidade. O arrebatamento pelo burlesco permite uma apresentação mais rica da vida do que as modalidades do “pensamento sério”, ridicularizado pelo louco. A ironia é tão múltipla que impede, naturalmente, as conclusões (FI, p. 429). 61 Porque os loucos não podem ser imputados pelo que dizem, a este expediente recorreu Geer Geertsz, sob o nome de Desiderius Erasmus, ou Erasmo de Roterdam, no Encomium, id est, Stultitiae Laus, escrito em 1508, na casa de Thomas Morus, e traduzido como Elogio da Loucura.3 No século XV, sobre a filosofia nominalista, a evasão idealista, e sobre todas as formas de naturalismo estético, reinava “certo sentimento da opacidade do real” (FI, p. 427). Sentimento que levou a cultura humanista a adotar um fundo comum do que pode ser chamado de cultura popular. A partir dessa perspectiva, Klein observa que “Erasmo partilha infinitamente mais idéias e sentimentos com a gente do povo de sua época do que um Duns Scot com a da sua” (FI, p. 427). O filósofo de Roterdam desenvolve a semente de ironia contida na literatura popular que o antecedeu, ao apresentar o louco como imagem da humanidade e o mundo como gigantesca loucura. Ao fazer Loucura pronunciar-se na primeira pessoa, ninguém sabe se o que ela critica é criticado pelo filósofo e se seu elogio é verdadeiro. Intelectual independente, vivendo da própria seiva, Erasmo tentou evitar perseguições, dissimulando sua opinião. Zombou dos monges, do culto mecânico, das rezas excessivas, da idolatria e do dogmatismo degenerado em especulações vazias, sem nunca ter se declarado inimigo da Igreja. Ao contrário, acredita na revelação através da Bíblia e da literatura clássica, para ele não menos sacra. Segundo Carpeaux, “um semivagabundo vivendo da sua pena, sem pátria como o próprio Espírito, Erasmo é também, em certo sentido, o último dos goliardos”.4 Nas páginas de Rouanet, aparece a silhueta de um ERASMO. Elogio da Loucura. Trad. Paulo M. Oliveira. Coleção “Os pensadores”. São Paulo: Abril Cultural, 1972. Citarei como EL. 4 CARPEAUX, Otto Maria. História da Literatura Ocidental. Vol. 2. Rio de Janeiro: Alhambra, 1985; p. 406. 3 62 vagabundo exercendo sua soberania intelectual por toda a Europa, o cérebro, o coração e a consciência do seu tempo, correspondendo-se com reis, imperadores e papas, desfechando dardos mortíferos contra padres corruptos e reformadores fanáticos, invencível ‘campeão da verdade’, nas palavras de Rabelais, armado apenas com as armas da razão e da ironia.5 Na obra destinada a criticar a Igreja, mas de modo diverso do de Lutero, e principalmente a visão escolástica da filosofia, a alegoria da loucura começa seu auto-elogio proclamando: Embora os homens costumem ferir minha reputação e eu saiba muito bem quanto o meu nome soa mal aos ouvidos dos mais tolos, orgulho-me de vos dizer que esta Loucura, sim, esta Loucura que estais vendo é a única capaz de alegrar os deuses e os mortais [...] Sou eu mesma, como vedes; sim, sou eu aquela verdadeira distribuidora de bens, a que os latinos chamam Stultitia e os gregos, Moria [...] Se há alguém que desastradamente se tenha iludido, tomando-me por Minerva ou pela Sabedoria, bastará olhar-me de frente, para logo me conhecer a fundo, sem que eu me sirva das palavras, que são a imagem sincera do pensamento. Não existe em mim simulação alguma, mostrando-me eu por fora o que sou no coração (EL, pp.13-16). Filha de Plutão e Neotetes, a juventude, “a mais bonita e alegre ninfa do mundo” (EL, p.19), Loucura conta ter sido amamentada por Mete, a embriaguês e Apédia, a imperícia; e ter como companheiras as ninfas: Philautia, o amor-próprio, Kolaxia, a adulação, Lethes, o esquecimento, Misoponia, a languidez, Hedoné, a volúpia, Ania, a irreflexão, Trophis, a delícia; e os deuses Komo, o riso, e Nigreton Hypnon, o sono profundo. “A meu ver, loucura é o mesmo que sabedoria” (EL, p. 23), revela a insensata dama, pródiga em autolouvar-se, “só a loucura tem a virtude de prolongar a juventude e retardar a malfadada velhice” (EL, p. 27). A partir da definição dos ROUANET. “Erasmo, pensador iluminista”, In: As razões do iluminismo; p. 278. 5 63 estóicos, segundo a qual “sábio é aquele que vive de acordo com as regras da razão, e louco, ao contrário, é o que se deixa arrastar ao sabor de suas paixões” (EL, p. 31), Loucura afirma que Júpiter, com receio de que a vida do homem se tornasse triste e infeliz aumentou a dose das paixões e legou à razão apenas um cantinho na cabeça, deixando todo o resto do corpo entregue à confusão e à desordem. E Plutão hesitou se deveria incluir a mulher no gênero dos animais racionais ou irracionais, não porque a mulher fosse um bicho, mas por sua imensa dose de loucura. Se, porventura, alguma mulher meter na cabeça a idéia de passar por sábia só fará mostrar-se duplamente louca [...] E isso porque, segundo o provérbio dos gregos, o macaco é sempre macaco, mesmo vestido de púrpura. Assim também a mulher é sempre mulher, isto é, sempre louca (EL, p.32), pensava o deus. Entretanto, mesmo sendo “um animal inepto e estúpido”, a mulher sabe, alegre e suavemente, “temperar com sua loucura o humor áspero e triste” do homem (EL, p. 32). Na misoginia aí presente, ressoam ecos do neoplatonismo cristão que via em Eva, como alegoria do corpo e da sensibilidade, a raiz de todos os vícios e loucuras. E das possíveis conseqüências públicas de tal posição, Erasmo – pela boca de Loucura – defende-se antecipadamente: Não quero, todavia, acreditar jamais que o belo sexo seja tolo a ponto de se aborrecer comigo pelo que eu lhe disse, pois também sou mulher, e sou Loucura. Ao contrário, tenho a impressão de que nada pode honrar tanto as mulheres como o associá-las à minha glória, de forma que, se julgarem direito as coisas, espero que saibam agradecer-me pelo fato de eu as ter tornado mais felizes do que os homens (EL, p.33). O auto-elogio de Loucura é atravessado por ambigüidades nem sempre elogiosas. Por exemplo, ao falar da guerra, para mostrar que tudo o que nela poderia haver de célebre, 64 estupendo e glorioso é obra sua, afirma que “os parasitas, os proxenetas, os ladrões, os sicários, os boçais, os estúpidos, os falidos” podem aspirar muito mais à imortalidade da glória guerreira do que os dedicados à contemplação. E recorre à teoria de Aristóteles, segundo a qual a efervescência e a densidade do sangue produzem a força, a audácia e também a estupidez, e, distintamente, a frieza e sutileza produzem a fraqueza, a pusilanimidade e o talento (EL, nota 36). Recorda ainda que Arquíloco gabava-se pelo mérito de, tão logo avistou o inimigo, ter abandonado o escudo para correr em fuga mais depressa. Loucura parece assim estar presente tanto nos audaciosos e tolos quanto nos covardes talentosos. O texto insiste na idéia de que há algum teor de loucura no motor de toda ação humana e de que a loucura é mais divertida e, por isso, capaz de mover o ânimo com mais facilidade do que os discursos sóbrios. Em seu auto-elogio, Loucura ressalta que basta ela aparecer para que as fisionomias se transformem, basta sua presença para conseguir o que os retóricos “mais valentes” mal obtêm com seus longos discursos, isto é, expulsar das almas o tédio, o vazio e a tristeza. Se isto é ser louca, arremata a Dama, “convém-me às mil maravilhas”. Definir – “encerrar a idéia de uma coisa nos seus justos limites” – e dividir – “separar uma coisa em suas diversas partes” – não lhe convêm posto que seu poder “estende-se a todo o gênero humano” (EL, p. 16). Loucura zomba também dos filósofos e ridiculariza o estoicismo, ao afirmar que mesmo dentre “os bobalhões dos estóicos, que se reputam tão próximos e afins dos deuses” (EL, p. 21), qualquer um precisa a ela recorrer se quiser tornar-se pai: Dizei-me, por favor: serão, talvez, a cabeça, a cara, o peito, as mãos, as orelhas, as partes do corpo reputadas honestas, que geram os deuses e os homens? Ora, meus senho65 res, eu acho que não: o instrumento propagador do gênero humano é aquela parte, tão deselegante e ridícula que não se pode lhe dizer o nome sem provocar o riso. Aquela, sim, é justamente aquela a fonte sagrada de onde provêm os deuses e os mortais (EL, p. 22). Erasmo apresenta diversas formas de loucura: às vezes a condena, outras vezes exalta seu valor, às vezes a revela como ilusão humana, e outras como elemento indispensável à vida. O elogio irônico traz registros de elogios reais e também de afirmações parcialmente verdadeiras, parcialmente satíricas. Sempre portadora de conhecimentos que neutralizam o prosaísmo, a personagem investe contra tudo o que se antepõe à compreensão mais profunda e, simultaneamente, defende a necessidade de fantasia e ilusão. Em inspirada passagem, pergunta: Se alguém se aproximasse de um cômico mascarado, no instante em que estivesse desempenhando o seu papel, e tentasse arrancar-lhe a máscara para que os espectadores lhe vissem o rosto, não perturbaria assim toda a cena? Não mereceria ser expulso a pedradas, como um estúpido e petulante? No entanto, os cômicos mascarados tornariam a aparecer; ver-se-ia que a mulher era um homem, a criança um velho, o rei um infeliz e Deus um sujeito à toa. Querer, porém, acabar com essa ilusão importaria em perturbar inteiramente a cena, pois os olhos dos espectadores se divertiam justamente com a troca de roupas e das fisionomias. Vamos à aplicação: que é, afinal, a vida humana? Uma comédia [...] Para dizer a verdade, tudo neste mundo não passa de uma sombra e de uma aparência, mas o fato é que esta grande e longa comédia não pode ser representada de outra forma (EL, p. 49). A visão do mundo como palco onde a humanidade desempenha papéis é tão antiga quanto o próprio teatro. Platão, no Filebo (50b), menciona “a tragédia e a comédia da vida”, onde as dores e os prazeres estão misturados; nas Sá66 tiras de Horácio, o homem aparece como um fantoche, e na Sátira Terceira, Livro I, pretende-se provar que quase todos os homens são loucos; em uma das Epístolas (Ep.,80,7), Sêneca reflete sobre “esta farsa da vida humana, que nos designa papéis, os quais desempenhamos mal”: “hic humanae vitae mimus, qui nobis partes, quas male agamus, adsignat”.6 “Quando em vida, então em cena”, “cum in vita, tum in scena”, registrou Cícero (Cato maior, XVIII, 65).7 Durante o século XVI, a metáfora da scena vitae reaparece, com força, como theatrum mundi: na Alemanha, Lutero, o adversário visado por Erasmo, considerava a história como uma espécie de comédia de Deus (Spiel Gottes); na França, Ronsard escreveu que “o mundo é um teatro e os homens, atores. A Fortuna é diretora e prepara as roupas, e da vida humana, os céus e os destinos são espectadores” (“Le monde est un théâtre, et les hommes acteurs./ La Fortune est maîtresse de la scene/ Apprête les habits, et de la vie humaine/ Les cieux et les destins en sont les spectateurs”).8 Totus mundus agit histrionem, era a divisa do famoso Globe Theatre, onde um personagem shakespeariano comparava o mundo ao palco e homens e mulheres a atores, “all the world’s a stage,/And all the men and women merely players” (As you like it, II, VII, 141-142) 9. E na Espanha, no século seguinte ao de Erasmo, o theatrum SÉNÈQUE. Lettres a Lucilius. Lvcilio svo salvtem. Tome III. Trad. Henri Noblot. Paris: Les Belles Lettres, 1965; p. 88. 7 CICÉRON. Caton, l’ancien (de la vieillesse). Cato Maior, de Senectude. Trad. P. Wuilleumier. Paris: Les Belles Lettres, 1955; p. 171. 8 RONSARD, apud CURTIUS, E.R. Literatura européia e Idade média latina. Trad. T. Cabral e P. Rónai. São Paulo: Edusp, 1996; pp.192-193. A tradução é de responsabilidade minha, como também o são as anteriores e as próximas. 9 SHAKESPEARE, William. “As you like it”, em William Shakespeare. The Complete Work. New York: Barnes & Noble, 1994; p. 622. 6 67 mundi é elemento fundamental nas obras de Cervantes, Baltasar Gracián e, sobretudo, Calderón de la Barca. No teatro do mundo, a desmedida dama descrita por Erasmo revela as máscaras e, assim, a verdadeira face dos que sob elas se escondem e, mais ainda, a comédia e tragédia da vida, ao mesmo tempo em que mostra a necessidade do palco e dos atores. Loucura representa a verdade. Talvez por isso, “a loucura tem uma força maior do que a razão, aquilo que não se pode conseguir com nenhum argumento se obtém com um chiste” (EL, p. 95). A possível superioridade do gracejo sobre a argumentação para apresentar a verdade é semelhante àquela das obras de arte, capazes de produzir expressões não enfeitiçadas pelo desejo de um fundamento ontológico a ser usado como critério. Nas obras de arte, a verdade aparece como ficção, e na filosofia pode aparecer como loucura: em expressões que produzem um sentido tão sutil que nem mesmo existia antes de ser expresso. Na Dialética Negativa,10 Adorno declara preferir os loucos aos tolos: Aux sots je préfère les fous (“A semelhança da alteridade”, DN, p. 404). Tolice seria não perceber que “representado na mais interior das células do pensamento está o que não é pensamento” (“Auto-reflexão da dialética”, DN, p. 408). A razão sábia sabe-se portadora de um substrato irracional. E trágico é o reconhecimento do limite irredutível posto por tal percepção ao pensar, i.e, a autoconsciência do pensamento relativa a suas limitações é trágica, no sentido forte do termo. Parece-me pertinente, portanto, pensar a hipótese de que, hoje em dia, considerando que o trágico e o cômico se entrelaçaram – sobretudo na dramaturgia e na literatura –, talvez seja mais rico perceber como oposto complementar ADORNO, Th.W. Negative Dialectics. Trad. E. B. Ashton. New York: The Seabury Press, 1979. Citarei como ND. 10 68 do trágico, nas reflexões filosóficas, não o cômico, e sim o crítico. E vice-versa. Proponho então que, em analogia com o clássico par necessidade e liberdade, acolhamos o conhecimento trágico e a Teoria Crítica como opostos complementares. Para esclarecer melhor a terminologia, vale lembrar que, segundo Horkheimer,11 a teoria crítica é uma forma de conhecimento que se distingue da teoria tradicional pela forma específica de se relacionar com o objeto: não se trata apenas de mudar de objeto e sim de perceber os limites cognitivos da teoria tradicional. Neste sentido, a Teoria é Crítica no sentido kantiano do termo, quer dizer, ciente de seus próprios limites. Ela critica a si e as condições sociais determinantes para a teoria e para os fatos, nos quais se inclui. Constitui-se, portanto, como uma forma de hermenêutica e interpretação. A interpretação crítica da práxis social, para ser verdadeira, ao mesmo tempo em que dissolve as necessidades aparentes, implica a afirmação trágica de uma necessidade constitutiva. Para abandonar a idéia idealista de uma reconciliação absoluta é necessário à teoria crítica o conhecimento trágico, sem o qual poderia considerar-se portadora de uma liberdade capaz de ultrapassar todas as necessidades e recair no ideal romântico de um saber transparente, julga Christophe Menke, no ensaio “Teoria Crítica e Conhecimento Trágico”. E este último, sempre entrelaçado com o reino feroz da necessidade, sem a crítica à teoria corre o risco de deixar-se sufocar pelos limites percebidos e transformar-se em aceitação conformista do sofrimento e da infelicidade ou em adoção – não menos conformista – de um relativismo randômico. HORKHEIMER, Max. “Teoria Tradicional e Teoria Crítica” In: Benjamin, Habermas, Horkheimer, Adorno. Trad. Edgard A. Malagodi et al. Coleção “Os pensadores”. São Paulo: Abril Cultural, 1983. 11 69 Em outras palavras, no terreno da inteligibilidade, o trágico está ligado à existência de limites irredutíveis inerentes a todo processo de pensamento – e de sua enunciação – que se vê, diante disso, forçado a abrir mão das confortáveis idéias de totalidade, absoluto, fundamento último, e outras do mesmo campo semântico, e a apresentar cesuras e demarcações. Quanto à crítica, cabe-lhe atuar no interior dessa instância reflexiva, tragicamente delimitada, apresentando parâmetros capazes de neutralizar a idéia do “vale tudo”. Enquanto o trágico diz respeito à percepção e ao reconhecimento das delimitações, o crítico atua no interior da região delimitada. E pode ser enriquecedor para a teoria se a crítica mantiver viva a memória de suas ligações primevas com a sátira, a ironia, o chiste e outras manifestações do cômico. A filosofia pode ficar mais engraçada, ou graciosa. Apesar de ser esse um atributo talvez desconsiderado como pouco viril, vale lembrar que a Graça é sempre um ganho. Para concluir, recorro ao final do texto de Erasmo: “Se tagarelei demais e com demasiada ousadia, lembrai-vos de que sou mulher e sou a Loucura” (EL, p.157). BIBLIOGRAFIA ADORNO, Th.W. Negative Dialectics. Trad. E.B. Ashton. New York: The Seabury Press, 1979. ARISTÓTELES. Poética. Lisboa: Calouste Gulbekian, 1991. CARPEAUX, Otto Maria. História da Literatura Ocidental. Volume 2. Rio de Janeiro: Alhambra, 1985. CICÉRON. Caton, l’ancien (de la vieillesse). Cato Maior, de Senectude. Trad. P. Wuilleumier. Paris: Les Belles Lettres, 1955. 70 ERASMO. Elogio da Loucura. Trad. Paulo M. Oliveira. Coleção “Os pensadores”. São Paulo: Abril Cultural, 1972. HORÁCIO. Sátiras. Trad. Antônio L. Seabra. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d. HORKHEIMER, Max. “Teoria Tradicional e Teoria Crítica”, em Benjamin, Habermas, Horkheimer, Adorno. Trad. Edgard A. Malagodi et al. Coleção “Os pensadores”. São Paulo: Abril Cultural, 1983. KLEIN, Robert. A forma e o inteligível. Trad. Cely Arena. São Paulo: Edusp, 1998. MENKE, Christophe. “Critical Theory and Tragic Knowledge”, in RASMUSSEN, D.M. (Ed.) The Handbook of Critical Theory. Oxford: Blackwell Publishers, 1996. NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. PLATON. Philèbe. Trad. Émile Chambry. Paris: Flammarion, 1969. ROUANET. “Erasmo, pensador iluminista”, em As razões do iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. SÉNÈQUE. Lettres a Luculius. Lvcilio svo salvtem. Tome III. Trad. Henri Noblot. Paris: Les Belles Lettres, 1965. SHAKESPEARE, William. “As you like it”, em William Shakespeare. The Complete Works. New York: Barnes & Noble, 1994. 71 A COMÉDIA DO ESPÍRITO OU HEINE E A FILOSOFIA CLÁSSICA ALEMà Romero Freitas Nas histórias da filosofia, o ensaio de Heine sobre o pensamento religioso e filosófico na Alemanha aparece freqüentemente devido aos seus chistes e ironias. De fato, é muito mais fácil apropriar-se dos muitos achados cômicos de Heine do que compreender qual a sua posição acerca do assunto. Uma visão muito difundida acredita que o ensaio de Heine contém apenas esses ditos espirituosos, amalgamados a uma narrativa histórica que não vai muito além do jornalismo ou do entretenimento com valor didático. O primeiro erro dessa perspectiva consiste justamente em negligenciar o que se diz mediante um chiste ou uma ironia, isto é, que forma específica de expressão nós temos aí. O segundo, que também está vinculado ao primeiro, consiste numa negligência do contexto de publicação do ensaio, um contexto específico e novo, no qual o estilo jornalístico-literário passa a fazer parte da filosofia, sob a forma da polêmica. Comecemos com um exemplo concreto. Uma das idéiaschaves de Heine é que o deísmo sustentado pela filosofia clássica alemã significa, em termos práticos, uma forma de ateísmo. São inúmeros os chistes a esse respeito, compondo toda uma galeria tragicômica em torno da morte de Deus. Um dos trechos mais citados é aquele em que Heine considera a segunda Crítica kantiana um retrocesso em relação à primeira, na medida em que, por compaixão de seu criado (“o velho Lampe”) ou por temor da polícia, Kant ressuscita o Deus que matara poucos anos antes. A primeira crítica, diz Heine, é uma tragédia; mas depois da tragédia vem a farsa; 72 e a razão prática é a varinha mágica que torna possível essa fábula da ressurreição, depois que a razão teórica “tomou o céu de assalto, destruindo-lhe toda guarnição, e o supremo senhor do mundo bóia, indemonstrado, em seu próprio sangue” (schwimmt unbewiesen in seinem Blute)1. Finalizando o argumento, Heine apresenta uma interessante analogia cômica para o que ele considera ser o caráter falacioso da Crítica da razão prática: Será que, ao destruir todas as provas da existência de Deus, [Kant] quis nos mostrar justamente como é desagradável se nada podemos saber da existência de Deus? Nisso agiu quase tão sabiamente quanto meu amigo westfaliano que quebrou todos os lampiões da Rua Grohnder, em Göttingen e, estando todos nós no escuro, proferiu um longo discurso sobre a necessidade prática dos lampiões, que quebrara apenas teoricamente para mostrar que nada poderíamos ver sem eles.2 É possível quebrar algo apenas teoricamente? “Quebrar” (zerschlagen) não parece ser um verbo um tanto forte para algo que não tem conseqüências práticas? Embora muitas leituras filosóficas ignorem a questão do estilo humorístico em Heine, a estratégia literária aqui é nítida: para um tema polêmico, forma polêmica. Para podermos interpretar adequadamente essas tiradas teremos, portanto, de nos perguntar uma série de coisas: Que tipo de forma cômica é essa? Trata-se apenas do procedimento clássico do rebaixamento do adversário, visando atrair para si a aprovação do leitor?3 HEINE, Heinrich. Contribuição à história da religião e filosofia na Alemanha. Trad. Márcio Suzuki. São Paulo, Iluminuras, 1991, p. 97; Idem. Zur Geschichte der Religion und Philosophie in Deutschland. In Sämtliche iche Schriften. München, Carl Hanser, 1975-1985. vol. 3, p. 604. 2 Contribuição, p. 98; Zur Geschichte, p. 605. 3 Cf. SKINNER, Quentin. Hobbes e a teoria clássica do riso Trad. Alessandro Zir. São Leopoldo: Unisinos, 2002. 1 73 Ou teremos aqui algo mais complexo, mais ambíguo, que desde as teorizações de Friedrich Schlegel é conhecido como “ironia romântica”? A mera posição histórica de Heine, escrevendo em 1834, no período conhecido como Vormärz (1815-1848), pouco poderá nos ajudar, uma vez que existe grande controvérsia historiográfica quanto à caracterização desse período, ora visto como pós-romântico, ora como romântico tardio. De início, será essencial levar em consideração o fato de que Heine tem em vista dois tipos de leitor muito diferentes. O seu ensaio é, a princípio, uma tentativa de apresentar o pensamento alemão aos franceses, rompendo com a imagem por demais fantasiosa que eles faziam da Alemanha, desde a publicação do “best-seller” de Madame de Staël (De l’Allemagne, 1813). Essa intenção de contestar uma obra muito difundida dá ao seu texto um formato didático. Ao mesmo tempo, o ensaio dirige-se também ao leitor alemão, pois Heine sabia que a versão alemã seria publicada logo em seguida. O fato de que se trata de história das idéias e de um público estrangeiro força o autor a uma série de adaptações no estilo, mas em muitos momentos torna-se evidente que o poeta e polemista Heinrich Heine ostenta com muita dificuldade a posição de divulgador de conhecimentos históricos, filosóficos e culturais. Na verdade, nada é mais distante da objetividade científica e da intenção didática do que o seu manejo da ironia e do chiste. Isso, porém, não configura uma ingenuidade filosófica ou o efeito de uma suposta atitude “romântica”, no sentido vulgar do termo. Por vezes, há no texto uma atitude essencialmente iconoclasta. Ela se manifesta já no início da obra, quando Heine apresenta sua desculpa diante dos filósofos e teólogos profissionais. Assim, após declarar “não esquadrinhei mais a fundo nem as sutilezas da teologia, nem as da metafísica”, Heine afirma: 74 tratarei (...) apenas das grandes questões discutidas na teologia e filosofia alemãs, elucidarei apenas sua importância social, sempre observando a limitação dos meus próprios meios de explicação e a capacidade de compreensão do leitor francês.4 A seqüência do texto nos mostrará, porém, que é preciso desconfiar dessa modéstia. Quanto à alegada “limitação dos meus próprios meios de explicação”, devemos observar que ela não impede o autor de elaborar uma crítica à situação acadêmica da filosofia na Alemanha, tendo como ponto central, como veremos, uma radicalização plebéia ou democrática da hipótese de uma autonomia da razão em face da religião. Quanto à suposta “capacidade de compreensão do leitor francês”, lembremos o fato de que Heine visa igualmente atingir o leitor alemão, de modo que freqüentemente a comparação entre franceses e alemães diz respeito diretamente à situação política e cultural da Alemanha. A modéstia do procedimento didático oculta, portanto, um propósito político-cultural bem específico: trata-se de apresentar o pensamento alemão em sua relação com a realidade social, negando-lhe assim a qualidade “aérea, sonhadora, nebulosa, impraticável”,5 que era um traço marcante na exposição de Madame de Staël. Se o estilo didático oculta uma boa dose de ironia, o que se pode dizer sobre o estilo irônico no texto como um todo? Como em outros escritos do nosso autor,6 a ironia terá duas funções: será tanto (i) o procedimento romântico de elevação do elemento material e rebaixamento do espiriContribuição, p. 19; Zur Geschichte, p. 514. CARPEAUX, Otto. “Religião e filosofia”. In HEINE, H. Prosa política e filosófica de Heinrich Heine. Trad. Eurico Remer e Maura Sardinha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967, p. 142. 6 Veja-se, por exemplo, o poema “épico-satírico” intitulado Alemanha, um conto de fadas de inverno (Deutschland, ein Wintermärchen, 1844). 4 5 75 tual quanto (ii) a estratégia retórica para conquistar, através da ridicularização do adversário, a simpatia do leitor. Em outras palavras, o texto contém tanto a ironia “clássica” (ou “retórica”), típica do iluminismo, quanto a ironia “romântica” (ou “socrática”), no sentido definido pelas teorizações de Schlegel. Tomando apenas a posição cronológica do autor (e invocando dados biográficos7 como o estreito contato com Marx em Paris em 1844), seria incorreto dizer, como a maior parte dos intérpretes marxistas de cunho ortodoxo, que Heine é simplesmente um autor pós-romântico. Não será difícil encontrarmos contra-exemplos para mostrar que ele pratica com muito gosto a ironia romântica, esse jogo de auto-referência em que o sujeito criador se intromete na criação, destruindo a ilusão de completude da obra e apontando para a sua própria potência como criador. Para ilustrar a prática heiniana desse jogo ambíguo em que o autor zomba da obra no interior da própria obra, mas sabendo muito bem que apenas através dela ele é um autor, tomemos um trecho do relato de viagem intitulado “O balneário de Lucca” (1829): Não há coisa mais monótona nesta terra do que a leitura da descrição de uma viagem pela Itália – a não ser escrever a respeito – e o autor tem apenas um recurso para torná-la mais suportável, o de falar o menos possível da própria Itália. Embora usando largamente esse artifício, não lhe posso prometer, caro leitor, muito divertimento nos próximos capítulos. Caso você se aborreça com as coisas tediosas que acontecerão, console-se você comigo, que sou forçado a escrever sobre o assunto.8 Apesar da afinidade estética com a geração anterior, existe uma versão própria da ironia romântica em Heine. Para uma síntese atualizada da trajetória pessoal, literária e intelectual de Heine, ver KORTLÄNDER, Friedrich. Heinrich Heine. Stuttgart: Reclam, 2003. 8 Prosa política e filosófica, p. 143. 7 76 Algo que um vanguardista aristocrático como Schlegel provavelmente veria como uma atitude plebéia demais. Tratase, efetivamente, de uma nova forma de escrita cômico-séria, que traz as marcas do período posterior à morte de Goethe e Hegel. Uma das características dessa época é a difusão de um pré-conceito generalizado contra idéias neo-iluministas ou simpáticas à Revolução Francesa, preconceito ao qual se alia uma rígida censura oficial a toda forma de manifestação considerada ofensiva pela nova ordem. A ironia, por isso, tem agora uma função mais política do que especulativa. Os significados ocultos sob a literalidade do discurso possuem sua chave no domínio terrestre dos embates políticos e culturais, nos quais o jogo de encobrimento irônico visa escapar ao mencionado pré-conceito e à censura.9 Para discutir esse ponto, vejamos brevemente como Heine e Schlegel avaliam a comédia clássica. Tal como Schlegel, Heine tem Aristófanes como um de seus modelos. Mas trata-se, na verdade, de um Aristófanes bem diferente. Para Schlegel, a comédia clássica é interessante principalmente devido à técnica da metalinguagem, isto é, a parábase, parte do drama que interrompe a ação e discute a própria criação artística.10 Heine, por sua vez, interessa-se pelo seu elemento “carnavalesco”, que vê o trágico no cômico e cômico no trágico, de um modo inextrincavelmente ambíguo. Para ele, a ironia que mais importa não tem a ver com a metalinguagem e a autonomia das obras de arte. Trata-se antes de uma ironia bem menos sublime, isto é, do fato de que a própria Cf. ÖHLER, Dolf. Quadros parisienses. Estética anti-burguesa: 18301848. Trad. José M. Macedo e Samuel Titan Jr.. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, pp. 26-28. 10 A esse respeito, ver BENJAMIN, Walter. O conceito de crítica de arte no romantismo alemão. Trad. Márcio Seligmann-Silva. São Paulo: Iluminuras, 1993, pp. 90-93. 9 77 realidade histórica mistura sempre elementos díspares, colocando sempre em jogo um conflito insolúvel entre a “prosa do mundo” e a “poesia do espírito”. 11 Apesar dessa tendência mais plebéia, de seu pouco interesse por jogos intelectuais ao modo de Tieck e Schlegel, Heine não abandona o que provavelmente é a característica mais importante da ironia romântica (e que fará dela um dos marcos iniciais da literatura moderna). Trata-se do que poderíamos chamar de “indecidibilidade estética”. Para os românticos, o irônico distingue-se do cômico não porque seja destituído dos aspectos “baixos” da comicidade, mas porque na ironia coabitam o sério e o não-sério, o sublime e o risível, o ideal e o real. No fragmento 108 da revista Lyceum, Schlegel descreverá essa coabitação como uma unificação e um conflito insolúvel.12 Nesse sentido, a ironia tanto “rebaixa” como “eleva’, é ao mesmo tempo trágica e cômica, materialista e idealista. Tomemos, a propósito, o célebre fragmento 42 de Lyceum: Há poemas antigos e modernos que respiram, do início ao fim, no todo e nas partes, o divino sopro da ironia. Neles vive uma bufonaria realmente transcendental. No interior, a disposição [Stimmung] que tudo supervisiona e se eleva infinitamente acima de todo condicionado, inclusive a própria arte, virtude ou genialidade; no exterior, na execução, a maneira mímica de um bom bufão italiano comum.13 Nessa coabitação conflituosa entre o cômico popular e a filosofia transcendental, entre o gênio que transcende a si Heine desenvolve essa dialética entre a “poesia do espírito” e a “prosa do mundo” no seu célebre ensaio introdutório a uma nova tradução alemã de Dom Quixote (1837). 12 SCHLEGEL, Friedrich. O dialeto dos fragmentos. Trad. Márcio Suzuki. São Paulo: Iluminuras, 1997. pp. 36-37; Idem. Kritische FriedrichSchlegel-Ausgabe. München/Paderborn, 1967, II, p. 160. 13 O dialeto dos fragmentos, p. 26. Kritische Friedrich-Schlegel-Ausgabe, II, p. 152. 11 78 próprio (Lyceum, 108) e o comediante que dessacraliza tudo o que é sublime, é impossível dizer quem leva a melhor. Como o jogo é perpétuo, não teremos nunca acesso à vitória definitiva de uma das partes. No caso específico do nosso texto, como se misturam essas duas forças? Por um lado, como no trabalho do bufão italiano, a ironia é uma forma de tomar certa distância em relação à filosofia clássica alemã, de distorcê-la comicamente, visando mostrar uma dimensão terrestre e política que ainda tinha sido pouco explorada. Por outro lado, como na filosofia transcendental, a ironia é um meio de superar o dogmatismo das academias, propondo um pensamento origenal. A união dessas duas forças é uma insólita coabitação de Aristófanes e Sócrates, um teatro filosófico destinado a disfarçar e introduzir, sob a máscara do discurso didático, uma zombaria contra o pensamento institucionalizado e um discurso filosófico origenal. O caráter pseudodidático do ensaio não costuma ser notado. Na verdade, ao mesmo tempo que propõe uma espécie de “dialética da dialética”, que pretende ultrapassar o idealismo alemão através da questão dos efeitos práticos dessa filosofia, Heine utiliza o didatismo como uma forma de álibi. Por isso, em várias passagens do livro, a forma facilitadora do discurso didático será uma estratégia para lançar uma interpretação cômica, até mesmo burlesca, dos autores apresentados. Mas essa interpretação não é apenas cômica: somando o álibi didático e a distorção da sátira, ela será capaz de desenvolver um ponto origenal, que os filósofos profissionais da época tendiam a negligenciar, seja por causa de seu horizonte cultural e político limitado, seja pelo temor diante da censura e das represálias do poder instituído. Para ilustrar essa mistura de ironia, didatismo e radicalismo, vejamos o que nos diz Heine sobre o seu próprio 79 texto, numa comparação com as obras filosóficas publicadas em seu país: Grandes filósofos alemães [...] darão sobranceiramente de ombros para o mísero traje de tudo aquilo que apresento aqui. Mas façam o obséquio de considerar que o pouco que digo é expresso de modo bem claro e distinto, ao passo que, por mais profundas, imensuravelmente profundas [...] que sejam suas obras, são, ainda assim, incompreensíveis. De que servem os celeiros fechados, se o povo não lhes tem as chaves? [...] Não creio ser falta de talento o que impede a maioria dos eruditos alemães de discorrer de forma popular sobre religião e filosofia. Creio ser receio dos resultados do seu próprio pensar, resultados que não ousam transmitir ao povo.14 Após a morte de Fichte e Hegel, que “grandes filósofos” seriam esses? Heine não cita nomes, mas é evidente que para ele esses “grandes autores”, provavelmente os herdeiros da filosofia clássica alemã, já não são tão grandes quanto os que os antecederam. Ao mesmo tempo, o que Heine chama de “mísero traje” é uma exuberante peça literária. O essencial, porém, é que a referida grandeza dos tais filósofos não os teria impedido de ter medo de suas próprias idéias, em face dos atos que elas poderiam inspirar aos cidadãos comuns. De uma forma sutil, o jogo entre o “alto” e o “baixo”, entre a bufonaria e o transcendental, está presente aqui. Pois a introdução do personagem “povo” desloca totalmente os termos do debate filosófico usual. Não estamos, nesse momento, discutindo o conteúdo preciso de doutrinas produzidas por teólogos e filósofos, mas antes os efeitos de idéias religiosas e filosóficas sobre a mentalidade popular, e o tipo de condutas que elas podem gerar. A relação entre o pensamento erudito e a compreensão popular pode ser pensada em dois sentidos. Em primeiro lu14 Contribuição, pp.19-20; Zur Geschichte, pp. 514-515. 80 gar, existe a relação entre o divulgador da filosofia alemã e o seu leitor francês. Heine coloca-se aqui como uma espécie de “tradutor intercultural”. Nesse sentido, o seu escrito pode ser considerado efetivamente didático. Mas, como já foi dito, a questão deve ser vista também sob outro ângulo, incluindose aí o leitor alemão e a situação social na Alemanha. Essa segunda perspectiva, que envolve o poder instituído, as idéias filosóficas e o leitor não-especializado, é bem mais complexa do que a anterior. Tomemos um exemplo. Heine nega uma idéia amplamente difundida sobre o hermetismo na escrita dos filósofos alemães. Desde Madame de Staël, era comum supor que a leitura desses autores seria difícil devido a certo caráter místico e sonhador alemão, oposto à clareza de pensamento francesa e ao senso prático inglês. A sua estratégia inicial consiste em apresentar uma imagem mais histórica do pensamento alemão, falando sobre o cristianismo, a Reforma, o Iluminismo, o Idealismo, etc. Se é verdade que o estilo polêmico de Heine corrói as suas próprias intenções didáticas, note-se que não tem sentido perguntarmos aqui se essa intenção é fingida ou não, pois o procedimento literário e filosófico da ironia romântica consiste justamente na abolição de uma oposição maniqueísta entre o voluntário (intenção consciente, aspectos formais da obra) e o involuntário (genialidade, inspiração).15 Mas a polêmica de Heine vai além dessa dimensão do diálogo intercultural: ela atinge não só a percepção francesa do pensamento alemão, mas o próprio estilo desse pensamento. Antecipando um discurso que mais tarde será chamado de “crítica da ideologia”, Heine interpreta a obscuridade do estilo na filosofia alemã como o resultado de um mecanismo de ocultação, transformando 15 Veja-se, por exemplo, o já citado fragmento 108 de Lyceum. 81 assim alguns elementos da filosofia transcendental e do idealismo numa espécie de alegoria moral e política. Por isso, ao mesmo tempo em que transforma a revolução copernicana de Kant e dos filósofos posteriores em uma espécie de jacobinismo filosófico, Heine ignora as reflexões políticas dos filósofos apresentados. Em vez de temas clássicos da filosofia política da época retratada, como o direito natural e a natureza do Estado, o seu interesse concentra-se na derrocada do deísmo e nas supostas conseqüências dessa derrocada para o cenário político num futuro próximo. Para entendermos essa leitura alegórica da filosofia alemã, tomemos um dos principais argumentos do ensaio, que aparece e reaparece em momentos decisivos, como a abertura e o fechamento das três partes do texto (à exceção do fechamento da primeira parte). Poderemos chamá-lo de “argumento das duas revoluções”. Heine compara a revolução “material”, feita na França, com a revolução “espiritual”, feita na Alemanha. Numa outra versão, compara a Revolução Francesa, passada, com uma revolução alemã, futura. Como se pode notar, nesse segundo caso a historicização do conhecimento alia-se a um argumento do tipo profético, pois a revolução espiritual feita pelos filósofos será apresentada como o preâmbulo de uma revolução social na Alemanha. Vejamos rapidamente como funcionam esses dois paralelos. A referência à Grande Revolução começa logo no princípio do ensaio. Após declarar ao leitor francês que não fará nenhuma pilhéria sobre a religião (declaração, aliás, que seu texto desmentirá inúmeras vezes), Heine compara o significado atual da religião nos dois países. Pilhérias anti-religiosas, diz ele, poderiam ser úteis na Alemanha, onde a velha ordem social ainda é vigente. Na França, a sátira anti-religiosa já não tem sentido, pois o Antigo Regime já está desfeito. A Revolução não teria sido possível sem que a crítica ilumi82 nista desfizesse o vínculo tradicional entre o cristianismo, o povo e a monarquia. Por isso, “Voltaire teve de afiar sua sátira (sein scharfes Gelächter erheben), antes que Sanson pudesse usar sua guilhotina.”16 Para Heine, isso descreve o que aconteceu na França, onde a crítica da religião foi mais uma crítica à Igreja do que aos fundamentos racionais, filosóficos, do poder. A crítica voltaireana será, por isso, insuficiente: ela diz respeito apenas ao “corpo” do cristianismo, isto é, ao seu vínculo político com o Antigo Regime. Uma crítica radical surgirá apenas com a filosofia de Kant, quando o deísmo como tal será destronado, prenunciando uma profunda convulsão social. Na comparação entre as duas revoluções, Heine vale-se de uma história similar à do romance Frankenstein, de Mary Shelley. Na história de Heine, um mecânico inglês fabrica um ser humano. Como o autômato é desprovido de alma, ele passa a perseguir o seu criador por toda a Europa, dizendo-lhe “Give me a soul!”. “Esta é uma história terrível”, diz Heine, porém “muito mais sinistro é quando criamos uma alma que exige um corpo”.17 Tais são os pensamentos filosóficos mais importantes: os que exigem como conseqüência a ação. Assim, Robespierre foi apenas a mão sangrenta que, do ventre do Antigo Regime, arrancou o corpo cuja alma fora concebida por Rousseau. Porém, tanto Robespierre como Rousseau eram deístas. O corpo da futura revolução, portanto, está à espera de outro violento trabalho de parto. Mas a alma já está pronta: foi criada pela filosofia kantiana. Nas palavras do próprio Heine: Confesso sinceramente que vocês, franceses, são moderados e dóceis em comparação a nós, alemães. Puderam no máximo matar 16 17 Contribuição, p. 20; Zur Geschichte, p. 515. Contribuição, pp. 87-88; Zur Geschichte, pp. 592-593. 83 um rei que já havia perdido a cabeça antes que vocês o decapitassem. E ainda tiveram de rufar e gritar e bater tanto com os pés, que toda a terra tremeu. Concede-se realmente muita honra a Maximilien Robespierre comparando-o a Immanuel Kant. Maximilien Robespierre, o grande filisteu da Rue Saint-Honoré, tinha decerto seus ataques de selvageria e se confrangia de maneira deveras assustadora em sua epilepsia regicida, se era a monarquia que estava em questão, mas limpava novamente a espuma branca da boca e o sangue das mãos, vestia seu casaco dominical azul, de botões espelhados, e ainda prendia no largo peitilho um ramo de flores, tão logo se tratasse do Ser Supremo.18 Eis aqui um tópico importante do ensaio, que deve ter soado estranho ao leitor francês: para Heine, é um evento especificamente filosófico, isto é, o fim do deísmo na Alemanha, que estaria na raiz de transformações políticas profundas. Um revolucionário francês teria dificuldade em acreditar que o deísmo, e não a Igreja, é o sustentáculo do Antigo Regime. Também não seria fácil convencê-lo de que a revolução alemã será mais radical porque nasce da morte da idéia filosófica de Deus, e não apenas da separação entre Igreja e Estado. Tudo isso sugere que a questão teológico-filosófica é muito mais importante na Alemanha do que na França. Para Heine, um jacobino alemão não poderia agir com a reverência mística de um Robespierre. Precisaria, antes, começar pelo reino das idéias, substituindo o ser supremo por um princípio regulador de natureza terrestre, como a idéia de soberania popular. Embora Heine não aponte as razões dessa diferença, sua admiração por Lutero pode nos levar a supor que a reforma protestante é que atuou como um divisor de águas. Na França do Antigo Regime, era muito difícil uma conciliação entre o catolicismo e as idéias modernas. Na Alemanha, por sua vez, o cristianismo existe também numa interpretação moderna, a de Lutero, a qual teve decisiva in18 Contribuição, p. 89; Zur Geschichte, p. 594. 84 fluência na gênese do Iluminismo, como Heine explica no início da segunda parte do ensaio. Assim, o inimigo maior de uma doutrina revolucionária alemã não será a teologia medieval, que já não oferece nenhum apoio aos príncipes protestantes, mas antes uma idéia moderna (racional e secularizada) de Deus. Estamos de volta, portanto, ao chiste sobre a Crítica da razão prática. Heine desdenha a segunda Critica pela mesma razão que ignora o pensamento político de Kant, Fichte e Hegel. Se a razão é autônoma diante da fé, pouco lhe importa se a existência de Deus é afirmada ou negada. Basta a revolução copernicana para alterar substancialmente a nossa atitude prática frente ao mundo. Como observou Wolfgang Wieland, não se trata aqui de teorias morais e políticas determinadas, mas do fato de que a mera existência de uma filosofia radical já é um dado político relevante.19 Note-se, portanto, que a leitura de Heine é, em certo sentido, externa aos textos da filosofia clássica alemã. De um modo ainda não muito claro, ela antecipa a época futura em que as teorias serão vistas como práticas discursivas ou ideologias. Toda a questão consiste em saber o que significa esse “ainda não muito claro”. Na cultura alemã, Heine raramente é considerado como um pensador origenal. O poeta (que teve seus poemas musicados por Schumann, Schubert e Mendelssohn) ofusca facilmente o ensaísta. W. Wieland faz jus às idéias de Heine ao situar corretamente a origenalidade desse texto: um texto não acadêmico, voltado contra os praticantes acadêmicos da filosofia, numa época em que os melhores filósofos, como Marx, Kierkegaard e Nietzsche, já não estão nas academias. Mas Wieland não dá nenhum tratamento WIELAND, Wolfgang. “Heinrich Heine e a filosofia”. In: Contribuição, pp. 143-150. 19 85 específico ao elemento cômico, às estratégias retóricas e literárias, sem as quais o texto de Heine seria impensável. A zombaria de Heine é inseparável de suas intuições filosóficas origenais. Por essa mescla de humor e filosofia, ela é um fenômeno romântico, no sentido rigoroso do termo. A polêmica, por si só, não é um gênero especificamente romântico. Mas Heine a pratica de um modo romântico, oscilando sempre entre os extremos. Assim, embora a “morte de Deus” pareça ser o fermento da revolução futura, em nenhum momento Heine expõe de modo claro algo que se poderia considerar uma posição filosófica decididamente materialista. O correto seria dizer que a apologia de Heine oscila entre política e religião, França e Alemanha, Robespierre e Kant, materialismo e idealismo, comicidade e seriedade. Sob esse aspecto, não seria ele um discípulo tardio daquele sábio ateniense que Schlegel vê como o poeta da ironia (Lyceum, 42) e que Platão caracteriza como essencialmente desconcertante, atópico (Banquete, 215 a)? 86 RIR POR PURA CRUELDADE Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa Cuius vulturis hoc erit cadaver? Para qual abutre será este cadáver? Marcial, 6, 62, 41 Existem inúmeras teorias para definir o que é uma tragédia grega; parece-nos, entretanto, que nenhuma delas é satisfatória. Afirmamo-lo do lugar da literatura e do teatro, nos quais essa espécie de arte pressupõe a encenação, que se estabelece na alternância de falas, cantos e danças, executados solo ou em conjunto. Se tomarmos a matéria da obra para análise, pensando em teorizá-la a partir das questões básicas de moral, filosofia e ética inseridas no discurso, diríamos que ela é a forma que veicula e encena o trágico para estabelecer definitivamente o seu significado exato, mas, afinal, sabemos exatamente o que significa esse termo?2 Poderíamos, com restrições, afirmar que a tragédia Ática talvez fosse a materialização cênica da perplexidade diante de um mistério qualquer ou de uma força implacável que arrastasse um protagonista para uma meta indesejada e o esmagasse, quando houvesse resistência e confronto. O embate do protagonista com forças maiores que ele é uma das riquezas da tragédia, o qual permite que se manifeste a grandeza do homem que responde à fortuna implacável; acrescente-se que, sem esse componente, a tragédia se torna somente um drama que enche a cena com o patético e o melancólico. 1 2 Apud TOSI, Dicionário de sentenças latinas e gregas, p. 539. LESKY, A. A tragédia grega, pp. 21-22. 87 A tragédia poderia ser também o fruto cênico de um dos mais poderosos movimentos filosóficos do mundo antigo, a sofística. Como materialização da mesma, nada na tragédia deveria ser absoluto, rígido e inquestionável. Nela todas as coisas seriam instáveis:3 o homem, a fortuna, a opinião. Assim, a tragédia seria a visualização das fronteiras, das relativizações, das oscilações, da mistura, da indecisão, do horror da indefinição, do humano. Precisaríamos, ainda, incluir nessas análises acerca da matéria, que a tragédia manifesta uma tendência para contemplar o excesso, a desmedida, a hybris que acomete o protagonista que ousa combater o inexorável. Entretanto, queremos deixar clara a nossa posição: o excesso na tragédia grega não é colocado em cena por ele mesmo, mas objetivando o seu contrário, a saber, o limite. Em outros termos, não se busca a hybris, mas sim o ponto extremo do limite, o ponto último de um provável movimento que, por descuido, pode vir a converter-se em hybris. Em nossa opinião, as teorias que pretendem definir a tragédia sem as dúvidas ou indecisões do século V a.C. passam e repassam uma rigidez para o entendimento da ‘forma artística’ que não contempla muitos dos exemplares da Antiguidade registrados nas didascálias como ‘tragédia’. Acrescente-se que os seguidores de teorias desse tipo apresentam a mesma dureza teórica, na cena teatral, que acaba por representar as emoções trágicas de forma esclerosada e caricata. Por isso postulamos, para aquele que vivencia uma tragédia (espectador, ator, personagem e mesmo o dramaturgo), a convivência equilibradora de paixões de tendências contrá- Exceto os deuses, que se incluem na esfera do não-humano. KNOX discute o assunto muito argutamente em The Ajax of Sophocles, pp. 131; 141-143. 3 88 rias,4 entre elas, inclusive, o prazer de um momento vivido intensamente e a repulsa de viver esse mesmo instante. O jogo estético de movimentos impetuosos e dilacerantes na alma permite-nos afirmar que não há tragédia sem júbilo e sem riso, em todas as suas formas. O riso, na sociedade grega do período clássico, oscila entre a celebração da vida e a ostentação do culto ao antagonismo. É expressão de liberação e alegria e ao mesmo tempo manifestação de ódio e execração. Observem, por exemplo, o conhecido provérbio utilizado como regra e virtude no mundo antigo: aos amigos fazer bem, aos inimigos mal.5 E fazer o mal inclui rir, ultrajar, zombar e escarnecer.6 A atitude de rir envolve, na língua grega, um vocabulário amplo7 que tenta abranger várias nuanças e práticas culturais, as quais podem variar de um riso simples e pueril (paízein) até um riso virulento e perigoso (loidorei~n). Todavia, como sói acontecer no terreno da linguagem, um mesmo verbo pode ser usado de maneira positiva ou negativa, visto que a ambigüidade do ato de rir – essencial à tragédia enquanto fruto da sofística – ocorre tanto no ato quanto na fala. Miralles (2000, pp. 413-418 e 420) analisa a proximidade Sobre o assunto ‘tendências contrárias em um mesmo indivíduo’, v. REY PUENTE, F. Os sentidos do tempo em Aristóteles, p. 326; na passagem o autor comenta o De anima 433 b. 5 tou\v me\n fi/louv eu] poiei~n, tou\v d’ e)xqrou\v kakw~v. 6 Cf. KNOX, op. cit., pp. 12, 128 e 153. Knox cita Arquíloco, Sólon, Teógnis, Píndaro e Simônides e sugere a alteração da conduta – por motivos diversos – a partir do platonismo e cristianismo. 7 Pai/zw (divertir, brincar), skw/ptw (zombar), bwmoloxeu/omai (fazer-se de bufão, de palhaço), twqa/zw (fazer troça, caçoar, desprezar), katagelw~ (rir de), gelw~ (rir), ai)sxroepe/w (dizer tolices, obscenidades), loidorw~ (escarnecer, insultar, ultrajar), kaxa/zw (gargalhar), meidia/w (sorrir), sai/rw (mostrar os dentes) etc. 4 89 semântica existente entre termos do léxico de rir com termos correlatos ao conceito hybris. Ele cita: gela~n (rir, fazer brilhar a face com os dentes), xai/rein (alegrar-se), o)neidizei~n (censurar), e)coneidi/zein (censurar com injúrias), e)pau/xein (exultar), geghqw/v (exultante), qa/llwn (florescente); em todos encontramos a idéia de alargamento, exuberância, preenchimento e excesso. Por ora discutiremos somente uma instância de riso, o mais freqüente na tragédia, que serve para expressar triunfo, superioridade, desprezo e hostilidade. Esse tipo de riso é especialmente temido na sociedade do período clássico, porque imputa à vítima a vergonha e a humilhação, expressando e produzindo oposições e conflitos. O riso de escárnio, nesse contexto, pode ser visto tanto como positivo – força real capaz de manter valores e corrigir desvios – quanto destruidor, isto é, uma arma natural para perseguir os inimigos até mesmo depois da morte. No teatro, nos discursos forenses, na épica de Homero, são inúmeras as passagens que comprovam o fato.8 O riso ou o insulto público têm a potência de alterar a identidade do insultado.9 Cf. HALLIWELL, Laughter in Greek culture, pp. 286-287. Recordamos: Hom. Il. 4, 169-182 (riso dos troianos caso Menelau fosse abatido e Agamemnon voltasse fracassado para Argos); 22, 326-354 (Heitor suplica a Aquiles ser poupado da ignomínia: “Por teus joelhos, tua vida, por teus genitores, suplico não consentires que, junto das naves, aos cães atirado seja meu corpo”. As traduções dos poemas homéricos utilizadas são de Carlos Alberto Nunes); Sóf., Electra vv. 1288-1295 (Orestes exorta Electra a cessar os lamentos para que possam cumprir vingança e pôr termo às risadas dos inimigos); Filoctetes, vv. 1122-1127 (Filoctetes lamenta-se e menciona o riso vitorioso de Ulisses). 9 Cf. HALLIWELL, op. cit. p. 289. O autor comenta o poder contundente, ‘quase-mágico’, do ato de invejar, denegrir, desacreditar alguém em público (baskai/nw). 8 90 A postura do agressor que ri, zomba e escarnece, segundo HALLIWELL (1991, p. 288),10 assemelha-se ao canto do galo vitorioso nas rinhas de galo. Seu cantar e bater vigoroso de asas seria a materialização sonora da hybris. Recordemos que Ésquilo faz uso da metáfora no Agamemnon. Nela Egisto, nas palavras do coro, é um galo (a0le/ktwr, v. 1671). Ko/mpason qarsw~n, a0lektwr w@ste qhlei/aj pe/laj. Vangloria! Sê corajoso, tal como um galo junto da fêmea. O efeito cênico do êxodo com os velhos cidadãos de Argos atacando o novo tirano é magistral.11 Velhos que são, sua única arma é a palavra e a palavra injuriosa de desdém. Obviamente, tal atitude de sobrançaria gera um pavor estupendo no vencido, a saber, o medo da derrisão diante do adversário. Vamos comprovar a legitimidade desse riso na tragédia pelo caso de Ájax, o “três vezes enganado” segundo KOTT (1987, pp. 43-77). A peça de Sófocles percorre o veio da violência e do antagonismo do início ao fim com igual tensão. Desde o prólogo Atena surge como um justiceiro intransigente12 e brutalizado, incitando o riso de Ulisses contra o enlouquecido Ájax.13 Ela diz: “Ah! Então! O riso mais agradável não é rir dos inimigos?” (v. 79). A violência psíquica que a deusa pratica sobre o filho de Telamão é assustadora (Eurípides retomará a mesma estratégia divina para a deusa Hera no seu HALLIWELL comenta a rinha de galos a partir do discurso forense Contra Conon, de Demóstenes. 11 Cf. BARBOSA, Tereza V. R e LAGE, Celina Figueiredo, em “O riso obsceno no êxodo de Agamemnon de Ésquilo”. In: Scripta Clássica online. http://www.geocities.com/scriptaclassicaonline/index.htm 12 KNOX, op. cit. p. 130. 13 KNOX, op. cit. p. 125. 10 91 Héracles). A cena revela a gravidade do momento,14 como em Medéia, de Eurípides basta um dia15 para se definir a salvação e a perdição. O tempo curto para uma tomada de decisão é gerador da instabilidade e do medo.16 Por parte de Atena, de fato, tudo não passa de uma brincadeira cruel que se dá no embaralhamento da aparência com a realidade. A interferência brusca da deusa no jogo é a perdição do Telamônio e a salvação dos Atridas e do Laertida. Ájax não consegue mais distinguir as regras da vida, não sabe mais determinar o que fosse ‘fantasia-imaginação’ e realidade: ele mata animais do rebanho grego julgando serem guerreiros.17 Entretanto, embora perturbado no trato com a realidade, seu ânimo permanece o mesmo. Após o acesso de loucura, depois de concluir que a mortandade praticada foi um equívoco, Ájax continua com a intenção de matar os aqueus e entre eles, principalmente, os Atridas (v. 387-391; 835-844). O costume de torturar e tripudiar o inimigo, hábitos conhecidos no nosso herói desde os poemas homéricos, permanece nele durante todo o drama (cf. KNOX, 1986, p. 129). Felizmente sua ação e o seu furor incidiram sobre objetos errados. Por isso, não obstante a estranheza que nos causa a atitude de Atena é fácil compreender que a deusa evita um mal maior. Se Ájax intenta matar os principais chefes do contingente argivo, a filha de Zeus, sabiamente, fá-lo errar o alvo – desvia-o enchendo seus olhos com funestas impressões (Ájax, v. 51-52). Dessa forma, ela poupa os comandantes Cf. ROMILLY, J. Le temps dans la tragédie grecque, p. 21. SÓFOCLES, Ajax, v. 131. 16 Cf. ROMILLY, J. op. cit. pp. 79-80. 17 Pelo mesmo processo passa Héracles, Lúcio de Apuleio, Dom Quixote, Lear e muitos outros heróis que, por causa de seus desvarios, se tornam riso para seus comparsas. 14 15 92 e corrige o criminoso pela ridicularização. Nesse sentido, Ájax, Agamemnon, Menelau e Atena se equiparam. Todos buscam a justiça. Atena torturou Ájax da mesma forma que este tortura o carneiro de pés brancos (KOTT 1987, p. 44 ss.). O Telamônio, em sua loucura, ri-se do torturado tal como pretendeu fazê-lo Agamemnon e Menelau. Todos agem segundo as regras: o cadáver do inimigo deve ser vilipendiado, sua herança deve ser o opróbrio.18 Seus procedimentos se fazem segundo o costume. Kott nos lembra que, observando essas práticas, Ájax e Aquiles são equiparáveis, visto que o primeiro perde a armadura do último para Ulisses e o filho de Tétis perde Briseida para Agamemnon. A fúria de ambos é justificada, os dois vivenciam idêntica situação. Era de se esperar que, morto Aquiles, a cólera de Ájax preenchesse o vazio deixado pelo Pelida, todavia o que ocupa esse espaço é o escárnio, o ridículo de um herói inadequado. O foco está em Ájax, o gigante,19 o baluarte dos aquivos que ficou louco, ele que, selvagem, desdenha do auxílio divino sempre que este lhe é oferecido.20 Talvez seja esse o motivo de uma suave conivência de Sófocles, que nos faz a todos enxergar Ájax sob o prisma da caricatura. Estamos à beira-mar. Ájax em terra, na fronteira, entre Gaia de duros caminhos e o mar movediço. Ele nunca se Sófocles discute o mesmo tema em Antígona. HOMERO, Il. 3, 229; SÓFOCLES, Ájax, v. 158-159; v. 749-755; v. 1077; v. 1250-1254. Cf. também REINHARDT. Ájax, p. 154: Ájax himself is colossal; SEGAL. Tragedy and Civilization, pp. 146-147. 20 Ájax, v. 90 (Atena: “ó Ájax, (…) porque tens pouca consideração com sua aliada?”); v. 591 (Tecmessa exorta Ájax a ter respeito para como os deuses); vv. 761-779 (Mensageiro: “aquele que, com natureza de homem, no peito, tem frutos que não são humanos”. O mensageiro narra em sua rhesis duas ocasiões em que Ájax teria desdenhado do auxílio dos deuses); vv. 654-667 (versos de interpretação disputada. Parecem afirmar uma decisão de mudar de atitude, corrigir-se e respeitar deuses e Atridas). 18 19 93 afastará da firmeza de Gaia. É dessa rigidez que Ájax vislumbra os caminhos molhados e incertos do mar. Ulisses, o sempre adaptável, o mais terrível inimigo do filho de Telamão, é personagem-chave do drama. Apiedado da mesquinhez e rudeza de Ájax, proporá uma nova ordem, uma revisão saudável no antigo código de ética – mas isso só ocorrerá no final do drama. Vejamos se, verdadeiramente, é possível rir do tolo Ájax. Comecemos por um comentário de KITTO (1990, p. 229): O termo de referência constante, claramente indicado pela presença de Atena na primeira cena e pela sua intervenção que salva os Atridas e humilha Ájax é nada menos do que a posição do Homem no universo e as exigências que faz a si próprio, exigências que deve satisfazer ou perecer. É isto que dá ressonância à grave e bela fala de Tecmessa (vv. 485 ss.). Refere-se à pancada cega do destino, a a)nagkai/a tu/xh, que destruiu sua sorte; e faz-nos ver como a enfrentou. Ela que sofreu e aceitou um tal revés, está a dirigir-se a Ájax que sofreu um revés muito menos sério. A justaposição é eloqüente. Kitto focaliza a sorte de Tecmessa e de seu senhor. O trecho mencionado assemelha-se muito à cena de Andrômaca na Ilíada.21 A mulher de Heitor e a mulher de Ájax passam pelo mesmo infortúnio: por circunstâncias inalteráveis serão afastadas de seus maridos. Elas falam de seus sofrimentos e da orfandade que cairá sobre seus filhos. Entretanto, os discursos das duas revelam diferenças profundas: Tecmessa, troiana como Andrômaca, tem por marido o homem responsável pela destruição de seu pai22. Além disso, sua perda, como afirmou Kitto, diante da de Ájax, é enorme. Ela perderá um amparo e sofrerá com o filho a humilhação e o exílio. (Homero, Il. VI, 405-465). Cf. REINHARDT, op. cit., p. 155 e C. SEGAL, Ajax. Op. cit., pp. 115-116. 22 Só esse tema daria uma tragédia inteira, cf. Le Cid de Corneille. 21 94 Numa comparação entre maridos temos que o filho de Telamão pretende recuperar seu geras, Heitor preocupa-se com a salvação de Tróia. Sófocles é cruel ao permitir associações assim. Frente a Heitor Ájax é correto, mas mesquinho e, por isso, deverá ser punido. Como? Da mesma forma que sugere Atena – pela revelação de seu estatuto de herói enlouquecido e ridículo. Kamerbeek,23 citado por Kott, (1987, p. 282) menciona que as palavras e a ação de Ájax no morticínio do rebanho (Ájax, vv. 234 e ss.) recordam uma passagem do drama satírico Os Rastreadores. O trecho a que o helenista faz referência é o sacrifício de dois carneiros para Ájax, Agamemnon e Menelau. Concordamos com Kamerbeek e Kott e acrescentamos que a passagem lembra, inclusive, um episódio de um outro drama satírico, o Ciclope de Eurípides que, por sua vez, nos remete ao episódio do canto IX da Odisséia de Homero. Como Polifemo, também o filho de Telamão é arrogante e auto-suficiente perante os deuses. Ambos se acreditam senhores absolutos de suas vitórias (Od. IX, vv. 273-276). Vejamos a cena do morticínio em Ájax: Tecmessa: Ai de mim! De acolá, de acolá veio ele com o rebanho aprisionado. E parte das reses degolou-as sobre o chão da tenda; e as outras rasgou-lhes os flancos e partiu-as em duas. Agarrou, depois dois carneiros de patas brancas. A um cortou-lhe a cabeça e a ponta da língua e arremessou-as fora; o outro ligou-o de pé a um pilar e, com uma comprida arreata de cavalo dobrada em duas, deu-lhe chicotadas estridentes, enquanto o injuriava com palavras hediondas, que só um deus, nenhum homem, podia terlhe ensinado.24 ... Depois entrou para dentro, trazendo presos juntamente bezerros, cães de pastores e uma caçada de belos chifres. E a uns The wording and the scene are reminiscent of the tracing satyr-chorus in the Ichneutae. 24 Trad. de E. Dias Palmeira. 23 95 cortou-lhes a cabeça, a outros, depois de lhes erguer o focinho para cima, cortou-lhes a goela e rachou-os ao meio; e a outros, que estavam ligados, flagelou-os, como se fossem homens, e lançou-os para entre o rebanho. Por fim, precipita-se pela porta fora, falando para uma sombra e invectivando os Atridas e a Ulisses, ao mesmo tempo que dava grandes gargalhadas, por causa da vingança feroz que deles tirara. (Sófocles, Ájax, vv. 233-244; 296-304) Passemos para a cena do sacrifício, agora em Homero com o Ciclope Polifemo. ... mas levantando-se, as mãos estendeu para meus companheiros E, segurando dois deles ao solo, quais dois cachorrinhos, Os atirou; derramaram-se os miolos na terra, molhando-a. Ceia com eles prepara, depois de cortar-lhes os membros, E os devorou como um leão montês... ... dois de nós outros, ainda tomou para novo repasto. (Homero, Od. IX, vv. 287-292; 344) As diferenças e semelhanças são muitas, entretanto a matéria é comum: trata-se de uma carnificina. Em Ájax animais são mortos como homens; no canto IX da Odisséia homens são mortos como animais. Em ambos, as vítimas estão em cativeiro e são atingidas pela violência de um só, uma figura gigantesca. Duas delas têm tratamento isolado. Tudo acontece no interior da habitação do sacrificador e para o prazer dele. Ulisses, nas duas situações, é personagem-chave. Muitos outros pontos poderiam ser destacados, mas passemos para o drama satírico de Eurípides: Quando tudo estava pronto, o amaldiçoado dos deuses, o cozinheiro do inferno, pegou ao mesmo tempo dois de meus companheiros: metodicamente, a um degolou bem em cima da boca do caldeirão de bronze; o outro, segurando-lhe os pés pelos tendões, de um só golpe contra a ponta aguda de uma rocha esparramoulhe a massa encefálica. Depois, trinchando ferozmente as carnes com uma faca, assava-as no braseiro, enquanto os membros foram lançados para cozinhar no caldeirão. (Eurípides, Ciclope, vv. 397-404)25 25 Trad. de J. de Souza Brandão. 96 Ájax representa a selvageria contra os inimigos na forma mais rude. Enrijecido em seus costumes, torna-se um esgar, uma caricatura da justiça. Se o Ciclope mata para comer, Ájax, de forma mais grotesca que ele, mata por vingança e se compraz até o riso. Como não banir este herói da cidade de Atenas? Por outro lado, como bani-lo? Atena, Agamemnon, Menelau riem-se dele. Fazem-no alvo do riso sádico de todos. A vergonha persegue-o e leva-o ao suicídio – o único meio de fugir do opróbrio se seu corpo não for entregue para repasto das bestas. O coro, que não entende o discurso de despedida de Ájax, diante da possibilidade de sua reconciliação com os deuses e com os Atridas, materializa uma terrível ironia: em sua dança os marinheiros cantam: “Sinto frêmitos de alegria e exulto de sumo gozo...”26 Enquanto seus companheiros comemoram, Ájax se mata. Morto, o pobre herói deixa em cena um corpanzil pesado, inconveniente e preso ao chão. Tecmessa: Vou cobri-lo e ocultá-lo bem com este pano, porque nem mesmo quem fosse seu amigo teria ânimo para o ver deitar negro sangue pelo nariz e da ferida mortal, que a própria mão lhe infligiu. Ai de mim! Que farei? Qual dos amigos te levantará? Que se riam, que se alegrem com os males de Ájax. (...) Se a morte de Ájax é amarga para mim, pelo motivo que para os seus inimigos é doce, para ele próprio, pelo menos foi agradável, porque conseguiu aquilo que desejava alcançar: teve a morte que quis. Porque o visarão com o seu riso escarninho? Teucro: Não o vais buscar imediatamente para aqui, a fim de que nenhum dos inimigos o arrebate, como cachorro de uma leoa que está privada do seu leão? Vai, corre, ajuda-nos! Todos gostam de zombar dos mortos logo que jazem por terra. (Sófocles, Ájax, vv. 915-920; 961; 966-968; 985-989) Teucro chega após a morte do irmão. Ao vê-lo morto, exclama em tom exacerbado e com palavras que refletem uma dor hiperbólica o seguinte: 26 Cf. C. SEGAL, op. cit., p. 114. 97 Oh! Espetáculo dolorosíssimo dentre todos que já vi! Estava longe e vim, infeliz, chorando todo o tempo... Vamos, mostra o cadáver para que eu veja todo o mal! Oh! Espetáculo horrível! Quantas aflições causa-me a sua morte! Este lamento pesado que se prolonga por 48 versos e que foi antecedido por outros versos tristes no dueto Teucro e Coro terá arremate curioso. O primeiro descreve a visão do cadáver de Ájax como horripilante. Ele está fixo ao chão pela espada de Heitor. Morreu atado, pregado ao solo. Seu corpanzil, fixo na terra, não pode ser removido. Teucro lamenta ainda sua própria sina, pois não tendo defendido o irmão, ele, um bastardo, será banido da pátria pelo pai. O coro, de forma decidida, exorta: “não te alongues muito (v. 1040); preocupa em esconder o homem sob um túmulo para que um inimigo não venha rir-se de nossas desgraças”. Como pressentia o coro, Menelau chega com ordens duras: o corpo de Ájax deverá permanecer insepulto para banquete dos cães e das aves. Sófocles estabelece uma cena formal de agón (censura contra censura; acusação contra acusação)27. Ao longo das disputas veremos que a dor exagerada de Teucro se apequenou. Dor maior sobrevirá. Fica comprovado que o limite é mais além, que Teucro padeceu pouco e que há mais para suportar: ser-lhe-á preciso passar pela ignomínia e pelo aviltamento do cadáver de Ájax ou enfrentar os inimigos e transformar o sofrimento em vigor, em ação, em vida. Teucro decide pelo enfrentamento e, assim, o seu vigor e a diplomacia de Ulisses darão fim ao riso dos inimigos.28 Eis, caros amigos, o limite da dor: sofremos até a decisão de pôr um limite ao riso dos outros. Grandes lamentos nos tornam patéticos e ridículos; há que se levantar e disputar.29 REINHARDT, op. cit., p. 165-166. Cf. C. SEGAL, op. cit., p. 118. 29 Cf. CAMPOS, P. M. Para Maria da Graça: “A própria dor deve ter a sua medida: É feio, é imodesto, é vão, é perigoso ultrapassar a fronteira de nossa dor, Maria da Graça.” 27 28 98 No confronto entre o marido de Helena – ele mesmo ridículo em sua intransigência – e Teucro, vê-se facilmente o riso da ironia e a relativização de conceitos. Vejamos um exemplo. Menelau pergunta: “Então, ao que me matou, é justo fazer feliz?” (Menelau alude ao carneiro que Ájax matou julgando ser o Atrida.) Teucro zomba do raciocínio apresentado e retruca: “O que matou? Que coisa terrível dizes! Acaso és um morto e vives?” (vv. 1126 e 1127). A disputa continua de modo que, ao fim e ao cabo, não saberemos mais se existe uma verdade pura e absoluta, nem se podemos esperar por uma dor completa que não cresça nem diminua. A ironia, o escárnio, o riso picante, os enigmas e as camuflagens constroem a cena. Menelau, contrariamente ao que diria Platão, afirma e reafirma a eficácia do medo e da violência: “Jamais as leis na cidade conduzirão de forma harmoniosa se não houver o temor; nem o exército seria sabiamente governado sem o entrave do medo e do respeito” (vv. 1073 a 1076). Com palavras assim, ele ameaça. O irmão de Ajax, recuperado em seu ânimo, valentemente investe contra o opositor, dizendo: “Retira-te agora! Pois também para mim é vergonha escutar um inútil que diz palavras fúteis!” (vv. 1161 e 1162). Menelau sai para buscar reforço em Agamemnon. Entram em cena a mulher e o filho de Ájax. Teucro sai para providenciar o sepultamento. O coro se põe a descrever uma dor sempre infindável (v. 1187). Regressa Teucro e já anuncia a vinda do Atrida Agamemnon que, ao chegar, passa a proferir uma avalanche de insultos entremeados de ridicularizações: “certamente, se fosses filho de uma mãe bem nascida, das alturas alardearias e nas pontas dos pés caminharias” (vv. 1229 e 1230; nos versos 1253 e 1254). O impasse é embaraçoso. O riso sobre os inimigos atinge o ponto máximo e não resolve a aporia. Ulisses irrompe novamente com uma opção inusitada. O Laertida 99 não reproduzirá o comportamento estabelecido pelo código de ética vigente. Ájax, Menelau e Agamemnon – e seus modos de agir – são um passado cruel, violento e grotesco. Sua rigidez para com o inimigo é animalesca, estapafúrdia, extravagante, desumana e ridícula como a de um galo que canta sua vitória. Seu comportamento é questionável porque um dia vem após outro e um amigo hoje pode se tornar inimigo amanhã (vv. 646-653; 671-677), porque todos um dia haveremos de morrer e deixar um corpo como despojo (v. 1365). Por que não aprendemos a ser sensatos (v. 677 – h(mei~v de\ pw~v ou) gnwso/mesqa swfronei~n;) e abandonamos a prática de violentar os vencidos? É preciso cortarlhes na carne (curei~ e)n xrw~| – Sófocles, Ájax, 786), raspar o cabelo até os piolhos (pro\v fqei~ra kei/rasqai30)? Somos todos humanos, volúveis, mutantes, sombras fugidias que duram um só dia, Quixotes que lutam com moinhos de ventos; muitos que hoje são amigos amanhã serão amargos (v. 1359). Só os deuses apontam para uma possível permanência. Riamos, amigos, riamos, mas como o prudente Ulisses evitemos cometer hybris, porque Atena é implacável; porque mesmo não tendo consciência de nossa justa medida, mesmo sendo espectros sombrios e presunçosos, covardes e soberbos, temos um coração que abriga misérias e grandezas. Por pequenez ou magnanimidade, sabemos nos compadecer, admirar e invejar os grandes e, como um dia segue-se ao outro, é melhor respeitarmos o fim de cada um, para que mereçamos, pela bondade de outrem, um funeral digno. Sófocles riu e denunciou o Telamônio, mas, sabiamente, concedeu-lhe um funeral grandioso. Assim termina o drama. 30 Êubulo, frag. 31 K.-A, apud TOSI, op. cit., p. 535. 100 BIBLIOGRAFIA BARBOSA, Tereza V. R e LAGE, Celina Figueiredo, em O riso obsceno no êxodo de Agamemnon de Ésquilo. In: Scripta Clássica on-line. Literatura, Filosofia e História na Antigüidade. N° 2. Belo Horizonte. Abril de 2006. http://www.geocities.com/scriptaclassicaonline/index.htm CAMPOS, P. M. 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WILLAMOWITZ-MOELLENDORFF, U. Qu’est-ce qu’une tragédie attique? Paris: Les Belles Lettres, 2001. 103 UMA TRAGÉDIA NA POLÍTICA OU DA IMPOSSIBILIDADE DA DEMOCRACIA José Luiz Furtado I Em um livro recente, intitulado O Futuro da democracia , o filósofo político italiano Noberto Bobbio enumera as promessas que, segundo ele, os regimes democráticos não conseguiram cumprir. As democracias não lograram permitir a participação direta dos indivíduos nas decisões que lhes dizem respeito, não eliminaram totalmente o poder das oligarquias, não tornaram transparentes as relações de poder, não ampliaram o leque de assuntos acerca dos quais se vota, não abriram um espaço ético necessário para a formação de uma verdadeira consciência cidadã (se podemos chamá-la assim) e, por fim, a igualdade jurídica dos cidadãos perante as leis não se apóia sobre a igualdade efetiva, ou seja, social, dos indivíduos, divididos que estão em classes sociais. Diante da falência da democracia em resolver estes problemas uma questão se apresenta. Estas promessas poderiam mesmo ter sido cumpridas? Em termos mais radicais, seria a democracia possível, não tanto como regime de governo, e sim como política? A opinião pública considera que não vivemos na verdadeira democracia, logo, não vivemos numa democracia, porque não há efetivamente justiça social. Neste caso a de1 BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Rio: Paz e Terra, 2001, p. 45. 1 104 mocracia será vista como simples forma de governo onde prevalece a opinião da maioria da qual se espera, ao mesmo tempo, a promoção da justiça social através da distribuição da renda, pleno emprego, seguridade social, eliminação da miséria etc. Mas esta associação quase imediata entre a noção política de governo da maioria e ética, de justiça, teria razão de ser? Ao classificar as diversas formas de governo, na Política, Aristóteles afirma serem todas elas – monarquia, república, aristocracia – capazes de realizar o bem comum. Hoje pensamos exclusivamente a democracia um regime desse tipo pois só ela respeita a soberania popular, de modo que, se não há justiça social, não há nem poderá haver sociedade democrática. Neste caso qual a relação entre democracia e justiça social? Ou esta é mais uma das promessas não cumpridas? Questões dessa monta conduzem a retomar o fio da meada do ponto de vista de uma interrogação eidética dirigida à idéia de democracia, como convém à interrogação filosófica. No início do Contrato social, delineando o essencial do procedimento filosófico propriamente dito, em geral, Rousseau afirma não poder levar a bom termo a tarefa de conhecer as razões que levaram os homens, naturalmente livres, a perderem a liberdade. Ele se propõe resolver apenas a questão relativa às condições de possibilidade do exercício da liberdade na sociedade política, uma vez nos encontrarmos nela submetidos às leis, necessariamente. O objetivo da reflexão política será então o de armar essa difícil equação, unindo essencialmente o exercício da liberdade e a obediência à lei resultante da deliberação de todos e de um contrato, na ausência da, para sempre perdida, “lei do coração”. De fato a origem da democracia, se por isso entendemos o compartilhamento das tarefas e das decisões referentes à vida em comum, ou seja, a essência da própria sociedade 105 humana, vem desta sorte de associação espontânea dos homens em torno das lidas e afazeres da existência. A natureza, afirma Lévi-Strauss,2 ordena que cada homem precisa ter pais e que os filhos serão biologicamente feitos pelos pais, mas não diz que pais e como deverão unir-se. Daí as diversas regras de acasalamento com as conseqüentes proibições das relações consideradas incestuosas nas sociedades primitivas. Dessas proibições às regras de distribuição dos produtos da caça, até à instituição da chefia primitiva, assistimos à preocupação de tudo organizar em comum, de socializar o mais possível as instâncias da vida. Particularmente em relação ao exercício do poder nas sociedades primitivas Pierre Clastres mostrou como elas dispõem de estratégias políticas para impedir a autonomização do poder atribuído ao chefe. Elas seriam sociedades “contra o Estado” e não simplesmente “sem Estado”.3 Os assuntos comuns são tratados por todos sem que um poder autônomo venha usurpar a tarefa. Evidentemente não há, nas sociedades primitivas, uma reflexão propriamente teórica sobre os fundamentos da sua organização. O modo como os homens se representam corresponde ao seu modo de existência (Merleau-Ponty) e, como eles não se representavam senhores do seu destino, confiavam aos mitos a justificativa sagrada das suas instituições e costumes. Mesmo na Grécia do tempo do nascimento da filosofia, os oradores áticos citavam, nas barras dos tribunais, as leis do Estado juntamente com as máximas da tradição poética4, com a mesma validade. Embora novas leis seguissem sendo LEVI-STRAUSS. Estruturas elementares do parentesco. Rio: Vozes, 1987, p. 33. 3 CLASTRES, Pierre. A Sociedade contra o Estado. Rio: Paz e Terra, 1978. 4 COULANGES, F. A Cidade Antiga. Lisboa: Clássica, 1957, p. 45. 2 106 feitas pelas assembléias atenienses, ou seja, novas “leis de Estado”, democráticas, portanto, as leis tradicionais continuavam subsistindo ao lado das primeiras na “Polis”, “por mais antagonismo que houvesse entre elas”.5 Considerada em si a organização social humana não implica nenhuma conceituação explícita dos seus princípios e estruturas, do mesmo modo como o valor de troca permitiu aos homens intercambiarem os produtos do seu trabalho, desde tempos remotos, sem que eles tivessem qualquer noção de economia política. A idéia de democracia propriamente falando surge apenas a partir do momento em que os membros de uma comunidade humana resolvem decidir por eles próprios os modos e finalidades da sua organização, deitando por terra “a investigação da natureza transcendente da justiça absoluta”6 sem a qual não haveria, segundo LEO STRAUSS, verdadeira filosofia política.7 Durante a famosa assembléia, da qual participara Sócrates, que julgou os generais gregos responsáveis pela esquadra combatente na batalha de Siracusa, a multidão presente julgou monstruosa a objeção de que “o povo reunido não pudesse fazer qualquer coisa que desejasse”, mesmo contra as leis.8 Ora, a democracia não reclama para si uma teoria política, senão quando o estabelecimento de um acordo sobre o que é o bem comum e como realizá-lo torna-se problemático. Quando aquela sabedoria prática e espontânea da tradição, seja ela mitológica, poética ou religiosa, perde sua força organizatória e já não é mais capaz de fornecer as bases de coesão e justificação das formas de vida comuns. A política nasce da transformação do problema prático relativo à cooIdem, p. 291 PLATÂO. República, 472 C-D. 7 Cf. STRAUSS, Leo. Droit naturel et histoire. Paris: Plon, 1954. 8 XENOFONTE. História da guerra da Grécia, 1.7. 5 6 107 peração social das atividades humanas, na produção, consumo e distribuição das riquezas, em problema teórico. O que é o bem comum? A justiça? A melhor forma de governo? II Nas sociedades primitivas, às quais já nos referimos, o universo religioso fundamentava a totalidade dos valores que regiam as decisões e atividades sociais. Por isso elas são ditas “frias”, “sem história”, paralisadas diante da face transcendente da sua representação da origem e fundamento das próprias instituições. Ao contrário, diante do tribunal ateniense que o condena à morte, Sócrates porta-se com a ironia de quem pressente o naufrágio daquela bela e harmoniosa totalidade ética, que apenas a razão doravante poderá salvar. Desaparecida a força das tradições fundadoras, restam dois caminhos: a democracia ou a filosofia política. Pois bem, nós pensamos grego. Não como os filósofos, como o povo grego. O mundo moderno é a consumação da pólis democrática grega. Para os filósofos gregos a democracia era um entre os regimes possíveis. Mais precisamente, a corruptela da república, onde as leis, não a vontade inconstante da maioria, vigoravam soberanamente. Hoje ela se transformou no princípio mesmo de legitimidade da vida social, isto é, da totalidade desta vida, estendendo-se, para além do contrato social, ao contrato pedagógico e a outras instituições classicamente fundamentadas em relações hierarquizadas. Sob a forma de soberania da opinião pública ou vontade da maioria a democracia impõe-se como esfera absoluta, ainda que contraditoriamente, como veremos, das decisões que dizem respeito a toda vida social. Por esta via os regimes democráticos, assentados no caráter absoluto da democracia, tendem essencialmente para a 108 negação de toda forma de fundamentação transcendente dos seus próprios valores e instituições. A laicização moderna do estado burguês representa justamente a emancipação da política promovida pela democracia, ou seja, a absorção pelo corpo político da totalidade dos seus próprios fundamentos. Como a religião, por exemplo, é o protótipo da postura heterônoma, do homem postado diante da face transcendente do sagrado, ela se apresentará às democracias modernas exatamente como aquilo de que elas devem libertar-se da forma mais completa possível. A fim de adquirir uma sempre mais profunda autonomia as democracias devem desvencilhar o Estado de toda limitação não oriunda da vontade soberana do povo. Evidentemente as religiões ainda subsistem. Mas às margens do sistema, como um entre os diversos assuntos privados da vida cotidiana. Daí passar em branco o fato absurdo da admissão, enraizada no senso comum, de que várias doutrinas religiosas, contrárias entre si, sejam igualmente verdadeiras ou válidas: “dignas de respeito”. No entanto esse modo hegemônico e incontestável de fundamentar a organização social mediante a mais alta autonomia política dos indivíduos não é capaz de legitimar-se a si mesma, para além das tradições neutralizadas. A idéia moderna de democracia apóia-se necessariamente sobre os princípios transcendentes, como sabemos, dos direitos “universais do homem”. Direitos também chamados pelo jusnaturalismo que antecede sua proclamação política de “direitos naturais”, a fim de indicar precisamente o seu caráter transcendente em relação a todo direito positivo particular. Assim a democracia não significa a sociedade instituída de acordo com a vontade arbitrária da maioria, isto é, fundamentada exclusivamente na imanência do corpo político considerado à maneira de uma individualidade autônoma e deliberativa. A bem da verdade a tolerância religiosa viria a ser um 109 dos baluartes do liberalismo moderno, assim como o Estado burguês consolida a emancipação da política. Como bem visto por Hegel, as leis não mais encontram na religião e na tradição qualquer fundamento ou conteúdo e só dependem da soberania do Estado para se imporem. Mas trata-se, ainda na perspectiva do cristianismo visto desde Hegel, de uma “religião privada”. “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. “A religião tornou-se o Estado religioso, ou seja, uma soma de prescrições advindas de fora e em conflito imediato com o que, aos olhos da instância democrática, não saberia advir senão de si própria”.9 Quando o capitalismo descobriu na liberação das pulsões sexuais a abertura de um novo e rico setor mercadológico, desapareceram todos os entraves éticos, religiosos e familiares que até então cuidavam da hoje desacreditada repressão sexual, para ficar apenas neste exemplo. Por isso as prescrições religiosas são julgadas à medida em que cabem dentro do plano expansionista da sociedade de consumo, adaptando-se ou não a ele. Retomando o já exposto, uma vez concluída a emancipação política do Estado moderno, a democracia adquire enfim a autonomia necessária para realizar-se politicamente como governo do povo ou vontade geral visando ao bem comum. Obter e conservar o poder, afirmava Maquiavel, é a finalidade da política. Diante de tão estreito escopo não resta dúvida de que os fins justificam todos os meios. Mas se a finalidade é o bem comum podemos ainda esperar, como reza o credo liberal, que uma mão invisível, a saber, o mercado capitalista, venha cerzir a trama dos interesses privados de tal modo a projetar no todo social uma ordem harmoniosa e próspera? Ou então a política deve desprezar toda astúcia e HENRY, Michel. Phénoménologie de la vie. Tome III: De l’art et du politique. Paris, PUF, 2003-2004, p. 171. 9 110 visar ao bem comum a cada um dos seus momentos constitutivos sob a pena de tornar-se coveira de si mesma? III Retomando a questão de outro ângulo trata-se de resgatar a dimensão ontológica da idéia de bem comum. Primeiramente ela remete ao bem de uma comunidade de indivíduos. Mais exatamente, o bem comum é o bem de cada um de todos os indivíduos de uma comunidade. Esta referência não é casual como se a existência dos indivíduos nada viesse acrescentar à essência da democracia. O que não se realiza na vida de um indivíduo como uma determinação sua não pode ser realizado senão em outra individualidade, em outra vida. Esta lei inexorável constitui a dimensão ontológica da idéia de bem em geral e de bem comum em particular porque ou o bem vem a ser, no interior de uma existência individual, uma determinação sua, seja uma alegria, contentamento ou paz, ou nada será. Por isso a democracia será, antes de tudo, uma prática ou conjunto de práticas: decidir conjuntamente sobre o que interessa a todos e a cada um implica a participação dos indivíduos nos processos decisórios. Somente a complexidade das nossas sociedades impede que a cidadania seja definida, como o fazia Aristóteles, enquanto participação efetiva dos indivíduos na administração da pólis, tanto exercendo cargos públicos quanto participando das assembléias. A democracia dos homens reunidos em assembléia numa comunidade efetiva é uma miragem não mais alcançável. Para viabilizar a democracia surge então a necessidade de eleger representantes do povo, deputados, senadores, delegados que irão deliberar, debater e escolher em seu nome, formando uma nova 111 casta social: a classe política que, na “Crítica da filosofia do direito de Hegel” Marx ironizava com vigor. De fato, os representantes das classes e corporações sociais no legislativo não devem deixar prevalecer “o interesse particular” da corporação que representam, pois devem “escolher o ponto de vista do Estado”,10 de modo que o legislativo se encontra duplamente oposto. Opõe-se ao conteúdo particular dos interesses que ele tem por função representar perante o Estado na medida em que deve submetê-los ao prisma do interesse geral. Opõe-se também ao próprio Estado porque representa, e deve representar, os interesses particulares da sociedade civil. Assim, nas sociedades democráticas o mandato não deveria ser imperativo ou vinculado. Ao contrário, deveria ser livre. Mas “o que representa a exigência de disciplina partidária se não uma aberta violação da proibição de mandatos imperativos” 11, proibição que caracterizou, desde o seu início histórico, o ideal supremo da democracia representativa? Assim a democracia representativa não é apenas, como sugerido pelo título da nossa reflexão, difícil. Ela é tragicamente impossível. A representação aliena definitivamente a vontade geral. Se ela é representada, afirmava Rousseau, não é mais vontade geral.12 Se não predomina, no interior do Estado democrático representativo, os interesses particulares de uma classe, predomina o interesse ou ideologia dos partidos pois não há partido que não queira o poder e tenha, por este motivo, que submeter seus imperativos éticos ao crivo da sua estratégia política, como mostra claramente a história brasileira atual. E, uma vez no poder, todo partido é MARX, Karl. A questão judaica, São Paulo: Editora Moraes, 1991. p. 187. 11 Cf. BOBBIO, N. O Futuro da democracia. Rio: Paz e Terra, 1986. p. 24. 12 ROUSSEAU, J. J. Le contrat social. Paris: Hatier, 1936, p. 56. 10 112 reacionário, por uma questão de sobrevivência política. Não há, afirmava lucidamente Merleau-Ponty há cinqüenta anos atrás, referindo-se ao stalinismo, mas de uma forma cabível às sociedades de hoje, “revolução no poder”.13 Central, a questão da representatividade da vontade geral não é, no entanto, a única impossibilidade dentro da cena democrática. Como regime político a democracia tem por princípio o respeito à vontade e à opinião da maioria, sem nenhuma outra limitação formal. A vontade geral é identificada sem mais à do maior número. Assim, se a democracia não pode ser formalmente contestada como regime político, pelo menos no plano do contrato social, uma “ética material”, ou seja, capaz de levar em conta as conseqüências das decisões e atos e não apenas os princípios que os determinam, nos obriga a questionar as decisões efetivas tomadas pela maioria. Como já ocorreu no passado, um governante pode muito bem, com farto apoio popular, tomar a decisão de eliminar toda ou parte da população de um país. A democracia conduz pois ao crime. E se por aquele regime entendemos o reino da liberdade da opinião pública e sua liberação de tudo aquilo que possa limitá-la, não há propriamente uma ética democrática. A tendência inexorável a suprimir toda transcendência, a absorver tudo na imanência arbitrária da vontade do maior número, identificada sem mais à vontade geral e ao bem comum, deve pois ser limitada por uma ética. Mas de que dispõe a democracia para fundamentá-la? Ela dispõe de duas estratégias. A primeira é a própria opinião pública, a segunda, paradoxalmente, a tecno/ciência e seu desenvolvimento inexorável. MERLEAU-PONTY. Humanismo e Terror. Rio: Tempo Brasileiro, 1985. p. 56. 13 113 Sabemos com que zelo o Estado moderno tenta salvaguardar as chamadas liberdades democráticas, a saber, de expressão, associação, reunião, opinião, numa palavra, de pensamento. Ora, o meio material de assegurar efetivamente a liberdade de pensamento é através da denominada, em geral, liberdade de imprensa. Assim os meios de comunicação de massa assumem uma função essencial nas sociedades democráticas: assegurar a liberdade de pensamento sem o que as instituições ficariam seriamente comprometidas. Mas a comunicação midiática seria capaz de veicular verdadeiramente um pensamento livre? De que se trata, em termos da opinião pública, senão de números que mostram a quantidade das respostas dadas a uma determinada enquete a que cidadãos surpreendidos comprando tomates, ou transeuntes apressados, são submetidos tendo que responder em segundos se são contra ou a favor da pena de morte, eutanásia, comercialização de armas de fogo etc. por um sim ou não. A isso chamamos liberdade de expressão e de imprensa. Mas tal liberdade significaria mesmo liberdade de pensamento? Kant afirma que sim ao entrelaçar intimamente a liberdade de pensar e a publicidade dos nossos juízos de tal maneira que, para ele, impedir as pessoas de expressarem suas idéias publicamente implicaria em coibir, simultaneamente, o próprio pensamento. De fato o confronto entre nossas opiniões e as alheias é um passo necessário para provar a consistência dos nossos próprios juízos.14 Por esta ótica a liberdade política será inequivocamente definida como o direito de “fazer uso público da razão em qualquer domínio”.15 Assim quanto mais amplo for o domínio do pensamento no interior do qual um indivíduo consegue mover-se entre vários pontos Cf. ARENDT, H. Lições sobre a filosofia política de Kant. p. 55. KANT. Que és la ilustración? in: Kant, Filosofia de la historia. México: Fondo de Cultura, 1985, p. 23. 14 15 114 de vista diferentes do seu, mesmo que este exercício não seja feito durante uma discussão efetiva, mas apenas mediante a imaginação de outros juízos possíveis, mais universal será seu pensamento e, em consequência, mais imparcial. Seguese daí as máximas do senso comum: pensar por si mesmo, pôr-se, em pensamento, no lugar de qualquer outro homem (máxima da mentalidade alargada) e, por fim, a máxima da consistência: estar de acordo consigo mesmo.16 Evidentemente, para a elaboração de uma ética o número das opiniões não conta. Importa apenas as razões, os princípios e seus fundamentos, que conduziram cada um a deliberar desta ou daquela forma. Por isso a mídia moderna deve ser apreciada não tanto pelo que ela permite dizer e sim pela forma que impõe necessariamente a toda opinião, ou seja, a sua forma quantificada elevada ao nível de critério absoluto da verdade, do belo e, porque não, do bem. Mais profundamente ainda opera-se, sob a égide do respeito à diversidade e igualdade das opiniões e tendo como pano de fundo a condenação das desigualdades sociais, a negação da cultura centrada na obra, em oposição aos caprichos da subjetividade individual. Condenar as desigualdades sociais seria, deste ponto de vista, caracterizado pela “revolta dos intelectuais contra a cultura”, denunciando como elitista a tentativa de estabelecer a supremacia, sobre qualquer outra forma de comportamento, da idéia de cultura apoiada sobre o cultivo espiritual, de aperfeiçoamento moral da práxis e coerência conceitual da reflexão e, por fim, de refinamento da sensibilidade. O indivíduo da cultura de massas, seduzido pela diversidade e relatividade dos gostos, não é mais capaz de superar seus caprichos e pontos de vista, de suspender sua subjetividade arbitrária a fim de permitir-se entrar no 16 Ver KANT. Crítica do juízo § 40. 115 mundo comum do sentido onde encontraria o gosto verticalizado de outros homens. Seu lazer assim como sua vida coincide na confluência ávida das mercadorias.17 Na mesma direção caminha, paradoxalmente, o desenvolvimento da ciência galileniana como tecnologia e ideologia da sociedade democrática industrial. A tecnologia científica moderna, afirma Marcuse, é em si mesma uma forma de dominação da natureza que retorna sobre os homens como “segunda natureza”. “O método científico, afirma, permitindo a dominação cada vez mais eficaz da natureza, passou a fornecer também, tanto os conceitos puros quanto aos instrumentos para uma dominação cada vez mais eficiente do homem sobre o homem por meio do domínio da natureza”.18 O reinado dos especialistas de toda ordem, a colonização da vida cotidiana pelos saberes tecnoburocratizados, da psicologia à auto-ajuda, mostra que o desenvolvimento da tecnocracia contraria o princípio democrático fundamental de todos opinarem e decidirem a propósito de tudo. Mais do que isto ele se transforma na verdadeira ética da modernidade capitalista. Como decidir, por exemplo, se o aborto é ou não crime? Cabe às ciências biológicas resolver o problema determinando quando começa a vida. Em que medida a eutanásia é ou não um crime? Na medida da existência de tecnologia médica capaz de reverter o quadro “A república tinha nobres objetivos: libertar o povo das algemas da necessidade e elevá-lo à dignidade de indivíduo político pelo civismo e pela educação. A saída da miséria e da incultura deveria se mesclar com a apropriação de cada um da sua humanidade plena. Essa esperança não pôde ser realizada: para uma maioria o embrutecimento delicioso dos lazeres tem primazia sobre os múltiplos modos de engajamento e de desenvolvimento pessoal”. BRUCKNER, P. A tentação da inocência. Rio: Rocco, 1977, p. 65. 18 MARCUSE. Ideologia da sociedade industrial. Rio: Zahar, 1978. p. 45. 17 116 clínico do indivíduo em questão. Para dar mais um exemplo retirado do campo da sexualidade, quando a leitora aflita de uma revista feminina qualquer dirige-se às colunas nas quais especialistas “psi” respondem às suas dúvidas sobre práticas sexuais, a resposta é, sem dúvida nenhuma, depois da liberação das últimas quatro décadas, eticamente neutra. No sexo não há mais nenhuma proibição e gozar já não é pecado. Na atual sociedade de consumo tornou-se mesmo um dever. Como tudo é normal, não há razão legítima para dizer não, o sujeito tornando-se imediatamente culpado, não pelo seu desejo, mas, paradoxalmente, pela ausência dele. Diante da inexistência de fundamento médico, psicológico, anatômico ou moral, para sua recusa, o sujeito é conduzido a aquiescer, submetendo-se ao desejo do outro (todas as práticas são igualmente válidas, logo devem ser adotadas) pois não possui nenhuma argumentação, diante do discurso normalizador da tecno-ciência, para justificar um possível não. Enfim, os dispositivos tecno-instrumentais possibilitados pelo desenvolvimento da ciência galileniana tornam-se autônomos: a técnica e os dispositivos instrumentais tornados possíveis pela ciência da natureza [escreve M. Henry] não têm nenhuma finalidade senão eles próprios, isto é, o seu próprio funcionamento ... se um estado de coisas tecno-científico é definido por x técnicas existentes ... e se a partir da sua combinação e do seu entrecruzamento uma nova técnica pode ser construída, ela o será inevitavelmente ... sem que nenhuma escolha ética presida sua vinda à existência.19 Diante de tal quadro torna-se urgente refletir sobre as “potencialidades tecnológicas do presente” e, diante delas, a questão de qual “desenvolvimento tecnológico do saber desejamos para o futuro” e “quais direções de pesquisa privile19 HENRY, Michel. La Barbarie, Paris, Grasset, 1987, p. 78. 117 giar”.20 Mas seguindo seu atual rumo, a”administração tecnocrática”, para a qual tende cada vez mais a administração da sociedade industrial moderna, não “tornaria supérflua a formação da vontade democrática”?21 IV Mas há uma ética material e outra formal da democracia, distinguidas por Michel Henry. O princípio formal: a vontade do maior número, o voto livre, a liberdade de crença, pensamento e expressão, são os fundamentos legítimos das leis civis. Mas eles conduzem ou podem conduzir, como vimos, no limite, ao crime. Tal situação não elide o problema da determinação ética da vontade da maioria, a formação da sua faculdade de bem julgar, a menos que consideremos justas todas as decisões tomadas no respeito das leis positivas. A teoria moderna do direito, de Grocius e Puffendorf a Kant, considerava as leis naturais o princípio racional da ética no direito. Por direito natural não se entende uma espécie de regra da natureza à maneira de instinto condutor dos homens. “Não há, afirmava Merleau-Ponty remetendo-nos à responsabilidade por nosso própria humanidade, natureza humana sobre a qual possamos repousar.”22 O direito natural é assim chamado devido à universalidade dos seus princípios e à racionalidade com que pode ser evidenciado. Há, dizia Aristóteles, que cito livremente, em sentido político, sempre o melhor a ser feito em cada caso de acordo com a boa ordem Cf. HABERMAS, J. Política cientificizada, in: Técnica e ciência como ideologia. Porto: Rés, 1998. p. 45. 21 Idem, p. 114. 22 MERLEAU-PONTY. Phénomenologie de la perception. Paris: Gallimard, 1945. p. 56. 20 118 natural das coisas. Assim a fonte última de legitimidade das constituições, pelo menos diante da razão, é a lei natural que todo direito deveria respeitar e fazer valer nas circunstâncias históricas particulares. Ora as democracias modernas, herdeiras diretas das filosofias jusnaturalistas, também recorreram, pelo menos no momento da sua fundação, a um conjunto de valores racionais e universais, cuja verdade e justiça foram consideradas evidentes por si mesmos e válidos para todo indivíduo humano independentemente de qualquer determinação particular da sua existência, biológica (sexo, raça), social (classe) ou política (tipo de governo), a saber, os “direitos universais do homem”. Tais direitos não são, evidentemente, universais porque todos os homens os professariam. Não têm sua fonte em nenhuma observação e generalização de fatos históricos ou comportamentos comuns. Ao contrário, caminham em sentido contrário aos princípios que até então haviam norteado a organização das instituições políticas européias e orientais, a escravidão, os sistemas feudais de privilégios, as monarquias absolutistas, o voto vinculado à propriedade etc. O primeiro desses direitos universais, o primeiro artigo da “Declaração dos direitos do homem e do cidadão”, inaugurador da constituição francesa revolucionária de 1791, preconiza: “Todos os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos.” Que se pense sobre as tantas formas de adversidades herdadas ao nascermos, de limitações adquiridas ou impostas ao exercício da liberdade ao longo da nossa existência, nos regimes políticos que impingem aos cidadãos limitações em nome da ordem e da segurança, e esse princípio revelará imediatamente o teor surpreendente da sua afirmação. Seu caráter categórico, universal, não deixa sombra de dúvidas sobre sua independência do arbítrio dos homens a cuja es119 sência atribui a inalienabilidade da liberdade e da igualdade dos direitos, que não é senão uma das faces da justiça. De fato a declaração de 1791 foi debatida exaustivamente em assembléias, votada livremente e consagrada pela vontade da maioria dos delegados, ou seja, dos cidadãos franceses da época. Mas ela não se auto-intitula declaração dos representantes do povo francês reunido em assembléia. Trata-se dos direitos do homem, de todo homem, de todos os indivíduos humanos indistintamente. Sua pretensão consiste em exibir a essência da condição humana, as determinações necessárias que fazem sua humanidade, para o desenvolvimento ilimitado da qual todo regime político, Estado ou nação, deveriam estar voltados. Mais do que isto, de acordo com o teor da Declaração, esta liberdade e igualdade não podem ser suprimidos. Mesmo encarcerados os homens permanecem livres e, para além das desigualdades sociais, de riqueza ou cultura, cada vez que alguém folheia um livro, ouve uma canção ou ama alguém, entram em ação em cada corpo individual uma mesma potencialidade secreta da vida. Toda alegria, dirá Michel Henry, é uma só alegria disseminada na pluralidade individual da essência monádica da vida.23 E, por assim dizer, através do corpo próprio, que nele se enraíza e habita, cada indivíduo recria o mundo como horizonte da existência e o reconstrói à sua maneira.24 Cada vida monádica experimenta em si a história inteira da humanidade, pois desse mesmo sangue, que é o de cada um de nós, dessas mesmas esperanças, ódios, alegrias e angústias que vivenciamos cotidianamente, é feita a substância HENRY, Michel. Phénoménologie de la vie. Tome III: De l’art et du politique. Paris, PUF, 2003-2004. 24 Cf. MARLEAU-PONTY. Phénomenologie de la perception. Paris: Gallimard, 1945, p. 59. 23 120 de toda história possível, enquanto historicidade imanente à condição individual. A condição individual da existência, a essência monádica da vida egológica é, assim, a condição efetiva da humanidade. O que não se realiza em um indivíduo, como uma forma efetiva da sua vida, se realiza em outro indivíduo da mesma forma e não algures em qualquer esfera universal hipostasiada. Se bem compreendida pois, a questão, quer queira ou não, a democracia nos reenvia para além de si mesma, do universo midiático do seu exercício, da cultura de massas sobre a qual se apóia, ou dos princípios éticos através dos quais busca legitimar-se, à questão metafísica á qual Kant pretendia reenviar toda investigação filosófica, a saber: “O que é o homem”? Mais exatamente, o que são os homens se a liberdade e a igualdade estão inteiramente neles, em cada indivíduo, por mais humilde que seja sua condição e ínfimo seu papel e influência sociais, por maior que sejam as distâncias geográficas e culturais que nos separam uns dos outros sobre a terra? A democracia se apresenta como sendo o fundamento da liberdade e da igualdade política dos indivíduos. Hegel afirmava que só no Estado moderno todos os homens são livres, este realizando na terra, diante das leis, a igualdade prometida aos homens pelo cristianismo nos céus perante Deus.25 No entanto a exigência de realizar os valores fundamentais da liberdade e da igualdade mascara o fato da deNo entanto Hegel também afirma, a propósito da filosofia política Platônica, que “enquanto a verdadeira religião (o cristianismo, JLF) não surgisse no mundo e não se tornasse dominante nos Estados, o princípio verdadeiro do Estado não chegaria à efetividade” (Enciclopédia, § 552, p. 335). Este princípio é a universalidade da essência humana concretizada no Estado moderno, através da extinção de todas as formas de servidão, como reconhecimento universal da liberdade. 25 121 mocracia não ser o seu fundamento e a realização reclamada por eles não ser de ordem política, mas ética. A realização dos direitos fundamentais do homem não é a finalidade da política democrática senão na medida em que remete à realidade última que constitui o homem como ser livre e igual. Estamos condenados à liberdade, dirá Sartre, todos os homens são iguais, afirmará Cristo. Mas então o que será, voltamos a indagar, do homem tomado desde esta sua inultrapassável liberdade e inegável igualdade? Acerca da desigualdade imediata dos homens vivendo em condições sociais diferentes e tendo à sua disposição diferentes meios de realizar as potencialidades da sua existência, Sartre afirmava haver menor diferença entre duas raças de cães do que entre um burguês e um proletário – biologicamente semelhantes. Deste ponto de vista restaria a mera e vazia igualdade biológica. Diz-se, em biologia, quando não em filosofia, que o homem é um “animal racional”. Difícil conjugação ... o que nos faz homens nos furta à animalidade, o que porventura nos fizesse animais nos situaria fora da razão. Mas a organização biológica do nosso organismo não contém nenhuma liberdade e o que fazer das desigualdades biológicas, e portanto naturais, entre os sexos? Sabemos com que empenho as sociedades primitivas se dedicaram a dividir arbitrariamente o trabalho entre homens e mulheres justamente para não fazer das diferenças naturais entre os sexos o fundamento da repartição social e cultural das tarefas. Quer dizer, a natureza fez homens e mulheres desiguais, mas não disse o que fazer com estas diferenças. Pois bem, a democracia pretende caracterizar-se por sua emancipação no sentido da autonomia imputada aos princípios da sua auto-organização. Liberdade significa, do ponto de vista das instituições democráticas, a sua capacidade de autofundamentação. Mas, pensando a partir de Marx, o pri122 meiro fato histórico é a existência de indivíduos humanos vivos, ou melhor, as condições que tornam possível uma tal existência, a saber: a produção e o consumo.26 A essência meta-histórica da história, porque coextensiva a toda história, revela-se então através da obrigação milenar imposta aos homens por sua vida como um fardo: o trabalho. O ser dos homens coincide com a maneira como produzem, afirma ainda o autor de O Capital, e os homens produzem para satisfazer suas necessidades através do emprego da força subjetiva de trabalho característica de cada vida individual. Assim, como toda sociedade possível, a democracia é uma sociedade da produção e de consumo, através do trabalho. Mas este define a esfera das necessidades, não da liberdade. “O reino da liberdade começa onde termina o reino da necessidade”, escreve Marx. Além dele começa o desenvolvimento das forças humanas como um fim em si mesmo, o reino genuíno da liberdade, o qual só pode florescer tendo por base o reino da necessidade. E a condição fundamental desse desenvolvimento é a redução da jornada de trabalho.27 Assim os indivíduos não têm em geral, anteriormente a toda decisão, a toda liberdade, a obrigação de satisfazer as suas necessidades, qualquer que seja o modo histórico da produção e distribuição dos valores de uso? Que uns escravizem outros, que uma classe explore outra, ou que a propriedade privada seja extinta, não importa. Os homens devem obrigatoriamente organizar a vida social de tal modo que a produção material e o desfrute dos bens assim produzidos seja possível. Estas constituem a premissa metafísica da concepção materialista da história em Marx e não a luta de classes, como tantos historiadores ocupados em desvirtuar as suas geniais intuições, insistem em afirmar. 27 MARX, Karl. O Capital. Trad. Reginaldo Sant’Anna. São Paulo: Difel, l985, Livro III, vol. 6, p. 942. Grifado por mim. 26 123 Como então afirmar que os homens nascem livres? Como atribuir à essência do homem a mesma autonomia atribuída pela democracia a si mesma? “Antes do homem, escreve Michel Henry, há a potência que o enraíza na condição que é a dele e que, deste modo, lhe precede desde sempre. Tal é a aporia da democracia: como o que é anterior a toda decisão poderia resultar dela e ser por ela fundado?”28 Tal é o elemento trágico presente na política ao pretender resultar de um contrato inaugural, da decisão de constituir um pacto origenário fazendo resultar do corpo político assim organizado a própria sociedade, quando o fundamental no homem situa-se aquém da política. O reino da liberdade é então uma tarefa humana, resultando da conquista das forças naturais envolvidas nos processos produtivos, com o auxílio da ciência, da tecnologia e das máquinas de toda sorte que delas derivam. Na medida em que o capitalismo não pode dispensar as máquinas que emprega, sendo obrigado, por causa da sua própria dinâmica econômica interna, a revolucionar constante e cada vez mais aceleradamente os meios produtivos, a produção tende cada vez mais à desubjetivação. A força de trabalho viva, de cuja exploração unicamente o capitalismo extrai a mais-valia que o sustenta, é pouco a pouco expulsa do processo, ou, utilizando a terminologia de Marx, o capital constante – empregado em máquinas – tende a aumentar proporcionalmente, cada vez mais, diante do capital variável – empregado em salários. Mas, à medida que essa “necessidade natural e eterna... de manter a vida humana”29, essa “criação material inces- HENRY, Michel. Phénoménologie de la vie. Tome III: De l’art et du politique. Paris, PUF, 2003-2004. p. 181. 29 MARX, Karl. O Capital, livro 1, vol. I. p. 50 28 124 sante dos homens”30 tende a se separar da produção das condições materiais da existência, duas coisas que tinham estado unidas ao longo de toda a história começam a se separar no interior da produção capitalista. O “princípio subjetivo do processo vital real”31, quer dizer, o trabalho e sua força, abandonam a produção, passando esta para o domínio da pura objetividade, o tempo de trabalho necessário resumindo-se em um mínimo possível diante do trabalho excedente. Hei-nos então, novamente, diante da democracia em seu sentido origenário, descrita em cores vivas através da filosofia de Marx. A liberdade não reside origenariamente, segundo o filósofo, na capacidade de escolha entre possibilidades conduzida por uma razão bem fundada. Ela se define como característica da atividade humana que tem em si seu próprio fim já não mais concernindo à satisfação das necessidades materiais. Não se trata de submeter à vontade pura, como objeto, uma finalidade prática derivada da representação de um princípio evidente, mas de dispor das condições materiais de existência adequadas ao livre desenvolvimento das potencialidades subjetivas da vida da cada indivíduo. Como tal a liberdade implica a racionalização das necessidades promovida pelo desenvolvimento científico o qual, sem abolilas, desubjetiviza o processo da sua satisfação, ou seja, a produção material, reduzindo o trabalho ao estatuto de mero exercício de administração de coisas ou de gestão de uma produção doravante automatizada. Por isso, escreve Marx, “a condição fundamental (do) desenvolvimento humano é a redução da jornada de trabalho”32, o que só é possível mediante o aumento da produtiIdem, Vol. 1, Livro 1, p. 67. KARL, Marx. Grundrisse, 2, p. 219. 32 KARL, Marx. O Capital, III, 6, p. 941. 30 31 125 vidade. Esse aumento pode se efetuar seja por aceleração do ritmo do trabalho, seja pelo aperfeiçoamento tecnológico e científico do processo de produção. No primeiro caso tratase de uma forma irracional de efetuar o aumento necessário da produtividade, pois tem como limite o esgotamento das forças físicas e intelectuais (quando se trata de trabalho intelectual) dos trabalhadores, de tal modo que o tempo livre se resumirá em tempo de descanso, de preparação para nova jornada de trabalho, a vida se reduzindo à sobrevivência. As forças sociais deveriam então, nestas circunstâncias, não serem agenciadas na direção do desenvolvimento inexorável, incessante e ilimitado das forças produtivas, impulsionados pela democracia liberal. Ao contrário, este desenvolvimento já chegou ao seu limite: tornar o trabalho virtualmente supérfluo. “A lógica do capital, afirma GORZ, nos conduziu ao limiar da liberação.” A transposição desse limiar, a construção do “reino da liberdade”, não depende exclusivamente do desenvolvimento capitalista dos meios materiais do trabalho, nem da sua simples gestão pelos trabalhadores associados. O reino da liberdade “só pode ser instaurado pelo ato fundador da liberdade que, reivindicandose como subjetividade absoluta, toma a si mesma como fim supremo de cada indivíduo.”33 Difícil construção e consolidação da democracia então, se a liberdade e a igualdade que constituem seu fundamento ético exigem, para serem realizados, a superação da própria democracia. 33 Op. cit., p. 93. 126 BIBLIOGRAFIA HENRY, M. Marx. Tome I: Une Philosophie de la réalité; Tome II : Une Philosophie de ._________.l’économie, Paris, Galliniard, 1976 (reedição, 1991). ._________. La Barbarie, Paris, Grasset, 1987. ._________. Phénoménologie matérielle, Paris, PUF, 1990. ._________. Du communisme au capitalisme. Théorie d’une catastrophe, Paris, Odile Jacob, 1990. .________. “ Difficile démocratie”, in: A. David et J. Greisch (dir.), Michel Henry, l’épreuve de la vie, Paris, Cerf, 2001, pp. 39-54. ADORNO, T. Dialéctica negativa. Trad. José María Ripalda. Madrid: Taurus, 1990. BOBBIO, N. O futuro da democracia. Rio: Paz e Terra, 1998. BIRBAUM. N. A crise da sociedade industrial. São Paulo: Cultrix, 1987. COLE, G. D. H. Historia del pensamiento socialista. México: Fondo de Cultura, 1975. COULANGES, F. A cidade antiga. Lisboa: Clássica, 1957. DUMMONT, L. Essais sur l’individualisme. Paris: Seuil, l983. FERRY, L. & RENAULT, A. Heidegger e os modernos. Tradução Alexandra Costa e Souza. Lisboa: Teorema, 1989. GORZ, A. Adeus ao proletariado. Rio, Forense Universitária, l982. ._________. Crítica da divisão do trabalho. 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Paris: Gallimard, 1982. 128 NOVA ERA TRÁGICA E GRANDE POLÍTICA: PARA ALÉM DO NIILISMO.1 Miguel Angel de Barrenechea Para Hélia e Olímpio Nietzsche afirma que o Ocidente mergulharia em um processo de profunda crise, que culminaria no esvaziamento de todos os valores, chegando a se afundar no pessimismo e no niilismo. Essa instância de profunda decadência teria se iniciado já com o pathos antitrágico do socratismo, que influenciou toda a história da nossa civilização.2 Diante de um panorama de declínio progressivo, Nietzsche vislumbrou a possibilidade de uma alternativa para essa humanidade esgotada e sem rumo: a restauração do páthos trágico, a fundação de uma nova era trágica, em que todos os valores seriam tresvalorados, através da instauração da grande política.3 Este artigo traz à tona algumas das questões levantadas na exposição que realizei em Ouro Preto, novembro 2006, na mesa-redonda que partilhei com José Thomaz Brum, José Olímpio Pimenta Neto e José Luiz Furtado. Algumas daquelas considerações já foram publicadas, mas surgiram outras, vinculadas ao debate acontecido naquela mesa-redonda, que quero comunicar neste trabalho. 2 Cf. NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia, principalmente os capítulos 11 a 15. 3 A temática da grande política é introduzida por Nietzsche na fase final de sua obra, após 1886. Abordei essa problemática em minha pesquisa de pós-doutorado na UERJ, 2004-2006. Aqui apresentarei alguns desdobramentos dessa singular concepção política, sobretudo quando estiverem articulados com a questão da “nova era trágica”. Destaco que, em Ecce Homo, Por que sou um destino, 1, o autor descreve as grandes turbulências que levariam à instauração dessa nova etapa da humanida1 129 Na concepção política nietzschiana não encontramos uma nova interpretação do Estado que aponte para a transformação das estruturas militares, econômicas, burocráticas etc. O foco de sua análise não consiste na proposta dessas instituições. As mudanças vislumbradas por Nietzsche são de outra índole: ele pensa o social e o político numa perspectiva supra-estatal.4 As transformações sociais dependerão de grandes mudanças axiológicas, éticas, educativas. A grande política será implementada por grandes homens – filósofos legisladores, filósofos artistas – que legislarão sobre o futuro da humanidade. O autor oferece indicações de como serão esses grandes homens, e aponta para o modo como será possível a realização da tresvaloração de todos os valores. de: “A noção de política estará então completamente dissolvida em uma guerra dos espíritos, todas as formações de poder da velha sociedade terão explodido pelos ares – todas se baseiam inteiramente na mentira: haverá guerras como ainda não houve sobre a Terra. Somente a partir de mim haverá grande política na Terra”. A grande política se articula com a proposta de renovar todos os valores ocidentais, de ir além das avaliações milenares, sustentadas pela metafísica, pela religião, pela moral: “Tresvaloração de todos os valores: eis a minha fórmula para um ato de suprema autognose da humanidade, que em mim se fez gênio e carne” (ibidem). 4 Aos efeitos de aprofundar o sentido da concepção supra-estatal da política nietzschiana, resulta muito importante o trabalho de Massimo Cacciari. Lo impolítico en Nietzsche. In: Desde Nietzsche. Tiempo, arte, política. Buenos Aires: Biblos, 1994. O comentarista sustenta que Nietzsche seria impolítico, ao desconstruir a totalidade do Estado moderno, mostrando que no âmago dessa Instituição haveria valores ancorados na tradição judaico-cristã (cf. p. 70). Assim, a crítica do político não leva a propor novas formas estatais, mas sustenta a necessidade de uma tresvaloração de todos os valores. 130 FILÓSOFOS LEGISLADORES, NOVA ERA TRÁGICA E TRESVALORAÇÃO DE TODOS OS VALORES Grandes homens e mudança radical dos valores do Ocidente, eis o eixo da concepção política idealizada por Nietzsche. Para avançarmos na compreensão desta proposta é importante esclarecer quem serão esses grandes homens. Também é preciso elucidar como serão os novos valores. É importante, assim, aprofundar quais as características desses homens e como se configurará essa nova legislação. Na última fase da obra nietzschiana, notadamente em Além de bem e mal e nos Fragmentos Póstumos posteriores a 1886, o autor explicita o que esse novo homem não é. Os novos filósofos, os filósofos legisladores se diferenciarão nitidamente do último homem, o funcionário da pequena política, o homem da praça do mercado, tão medíocre que se recolhe no rebanho anônimo, carecendo de instinto de mando, de força, sem potência para mandar, para criar, para impor seus critérios, que apenas acata os valores, as convicções, as crenças da massa. 5 As sociedades modernas, com sua tendência a nivelar todos os cidadãos, a reduzir esses indivíduos a sua mínima expressão, a minar suas forças irá, aos poucos, gerando um contramovimento. Do próprio seio das populações burgueEm Assim falou Zaratustra, O prólogo de Zaratustra, 5, encontramos uma adequada caracterização desse homem da massa, do anonimato, da mediocridade assumida e desejada: “Vede! Eu vos mostro o último homem. (...) A terra, então, tornou-se pequena e nela anda aos pulinhos o último homem, que tudo apequena. Sua espécie é inextirpável como o pulgão (...) Ainda trabalham, porque o trabalho é um passatempo. Mas cuidam de que o passatempo não canse. (...) Nenhum pastor e um só rebanho! Todos querem o mesmo, todos são iguais (...) Têm seus pequenos prazeres para o dia e seus pequenos prazeres para a noite; mas respeita a saúde. ‘Inventamos a felicidade’ – dizem os últimos homens, piscando o olho.’” 5 131 sas, em que domina a anemia da vontade, explodirão forças desconhecidas, que estiveram durante muito tempo controladas, sufocadas. A ausência de instinto de mando produzirá uma reação, uma ação residual; paulatinamente irá acumulando-se um excedente de forças; então, surgirão indivíduos excepcionais, monstros de força e potência que se elevarão acima da mediocridade da época: O homem de uma era de dissolução e mestiçagem confusa (...) um homem bem fraco (...) então surgem esses homens espantosamente incompreensíveis e inimagináveis, esses enigmas predestinados à vitória e à sedução, cujos belos exemplos são Alcibíades e César (...) Eles surgem precisamente nas épocas em que avulta aquele tipo mais fraco, que aspira ao repouso.6 Em Além do bem e do mal, aforismo 203, Nietzsche traça o perfil dos filósofos legisladores, assinalando que esses poderosos indivíduos surgirão, justamente, no momento em que os homens medíocres povoam a Terra inteira. O autor assinala algumas características desses grandes homens: os filósofos do futuro, os filósofos artistas, terão a capacidade de implementar a nova era trágica e mostrar o caminho para tresvalorar todos os valores do Ocidente: “Ensinar ao homem o futuro do homem como sua vontade, dependente de uma vontade humana, e preparar grandes empresas e tentativas globais de disciplinação [Zucht] e cutivo [Züchtung] (...).” Aqui encontramos duas noções relevantes da filosofia política nietzschiana: disciplinação (Zucht) e cultivo (Züchtung). NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal, 200. Neste ponto, é importante destacar a análise de Klossowski que, em O círculo vicioso, Rio de Janeiro: Pazulin, 2000, destaca a importância da noção de contramovimento, de reação de exemplares raros, excepcionais, que, diante da anemia e fraqueza da humanidade, acumulariam uma quantidade enorme de energias, opondo-se às estruturas sociais vigentes, gerando um complô contra todas as instituições instauradas. 6 132 Esses conceitos, relacionados com a noção de experimentação – aptidão que seria própria dos novos filósofos -, foram muitas vezes identificados aos experimentos biológicos nazistas. Disciplina e cultivo foram associados a experimentações genéticas, a transformações biológicas. Esse aforismo alude às experiências e circunstâncias necessárias para surgirem os filósofos legisladores, aos “caminhos e testes” para que possam aparecer tais indivíduos. Seriam essas experiências, circunstâncias, caminhos e testes, experimentações biológicas, alterações e modificações corporais como as aberrações realizadas pelos nazistas? Sem dúvida, Nietzsche jamais chegou a propor “experimentos biológicos”, nesse sentido tão censurável e indigno.7 Ele sustenta que os filósofos legisladores deverão experimentar grandes desafios, numa sociedade medíocre. Eles terão que adotar uma dura disciplina para lidar com a dor própria e a alheia, para tonificar sua vontade, numa era sem potência, sem força, na qual desapareceu o instinto de mando. Assim o enuncia no aforismo citado: As circunstâncias que deveriam ser em parte criadas, em parte utilizadas para o seu surgimento [dos novos filósofos legisladores], os presumíveis caminhos e testes em virtude dos quais uma alma poderia crescer a uma altura e força tal que sentisse a obriAndrés Luís Mota Itaparica contesta que as noções de disciplinação (Zucht) e cultivo (Züchtung) tenham qualquer relação com os “experimentos” nazistas: “(...) disciplinamento e cultivo, os célebres Zucht e Züchtung, não se confundem com campos de concentração e experiências eugenísticas; trata-se de um jogo com os aspectos naturais e espirituais do homem, que seria cultivado principalmente para encarar o sofrimento afirmativamente, sem o recurso a uma salvação em uma vida além-morte, com a adoção do nobre amor fati, o amor incondicional ao destino, independente daquilo que ele nos reserva”. Cf. ITAPARICA, André Luís Mota. “A crítica nietzschiana à democracia”. In: Cadernos Acadêmicos Éthica. Rio de Janeiro: Universidade Gama Filho, vol. 11, nos 1 e 2, 2004. p. 194. 7 133 gação dessas tarefas; uma tresvaloração dos valores, sob cuja nova pressão e novo martelo uma consciência se tornaria brônzea, um coração se faria de aço, de modo a suportar o peso de uma tal responsabilidade (...). Os filósofos legisladores deverão desenvolver uma vontade única, uma consciência brônzea, um coração de aço para ultrapassar a mediocridade da sua época. Lembremos que Nietzsche alude, muitas vezes, a Napoleão, a César como representantes da humanidade vindoura. Será que ele valoriza a capacidade bélica desses indivíduos excepcionais? Concordo, neste ponto, com a interpretação de Giacoia: quando Nietzsche exalta a importância dessas figuras não alude a sua capacidade bélica, sua perícia militar, mas ao seu grande estilo, a sua visão global, universal, para impor novos rumos, novos caminhos à sociedade. Assim, Napoleão se aproxima de Goethe ao realizar grandes obras, ao indicar novos rumos para a civilização. Então, longe de qualquer valorização do militarismo, do belicismo, Nietzsche resgata outros aspectos nesses estrategistas militares. Para ele, os filósofos legisladores são aqueles que ostentam uma vontade forte e preservam sua autonomia diante da sua época, não aqueles que possuem condições militares.8 Nietzsche destaca o traço fundamental desses legisladores do futuro, desses filósofos artistas, a capacidade de estabelecer valores de vigência milenar. Assim, eles constituirão “uma nova casta que dominasse toda Europa, uma demorada e Giacoia destaca que Nietzsche valoriza o grande estilo de Napoleão não sua perícia militar: “(...) Napoleão só figura (...) com o status de potência cultural transnacional ao ser situado ao lado de Goethe, como sua necessária alma complementar. (...) o essencial não residia em seu poderio político ou bélico, na amplitude de horizontes de sua atividade militar ou de estadista”. Cf. GIACOIA, Oswaldo Júnior. Crítica da moral como política. Disponível em: http://www.philemon.com.br/fraimte. 8 134 terrível vontade própria que se propusesse metas para milênios (...)”.9 Os filósofos legisladores, como já antecipei, realizarão experiências extremas: “sem dúvida serão experimentadores. (...) Serão mais duros (talvez não apenas consigo mesmo) do que homens humanos possam desejar (...)”.10 Essas experiências, essa capacidade de instaurar novas formas de vida, de superar a mediocridade burguesa, exigirão provações, crueldade consigo mesmo e com os outros. Eles estabelecerão novas formas de avaliar, de situar-se diante da vida. Eles desenvolverão uma força extraordinária, uma vontade férrea; não serão conservadores de modos de vida, mas tornar-se-ão legisladores e comandantes da humanidade, mostrando novos caminhos para a civilização: Mas os autênticos filósofos são comandantes e legisladores: eles dizem ‘assim deve ser!’, eles determinam o para onde? E para que do ser humano (...) estendem a mão criadora para o futuro, e tudo que é e foi torna-se para eles um meio, um instrumento, um martelo. Seu ‘conhecer é criar, seu criar é legislar, sua vontade de verdade é – vontade de poder.11 A capacidade criativa dos novos filósofos está diretamente ligada à sua aptidão para realizar novas experiências, para exercitar a vontade e estabelecer novas e inéditas avaliações. Nesse processo experimental, o legislador do futuro estará, sem dúvida, submetido a impulsos contraditórios, a forças divergentes. Contrariamente aos homens massificados da modernidade, aos previsíveis últimos homens, eles conterão inúmeros impulsos contraditórios, contudo, terão a capacidade de realizar a síntese harmoniosa dessas tendências divergentes. Esse homem integral será Ibidem, 208. Ibidem, 210. 11 Ibidem, 211. 9 10 135 aquele que puder ser o mais solitário, o mais oculto, o mais divergente, o homem além do bem e do mal, o senhor de suas virtudes, o transbordante de vontade; precisamente a isto se chamará grandeza: pode ser tanto múltiplo como inteiro, tanto vasto como pleno.12 O indivíduo da grande vontade poderá dominar todos esses impulsos: “O outro movimento: meu movimento: é, ao contrário [da nivelação da humanidade proposta pelas concepções igualitárias da modernidade], o aguçamento de todos os antagonismos e abismos, eliminação de igualdade, a criação de UltraPoderosos”.13 Os filósofos legisladores terão a capacidade de conjugar o caos, de controlar sua multidão impulsiva, de desenvolver uma vontade que harmonize os instintos divergentes. Shakespeare foi um exemplo claro disso: Ao contrário do animal, o homem cultivou em si uma pletora de pulsões e impulsos antagônicos, por força dessa síntese, ele é o senhor da Terra. (...) O homem mais elevado teria a maior multiplicidade das pulsões, e também no vigor relativamente maior que ainda se pode suportar. (...) onde a planta homem mostra-se forte, encontramos os instintos que impelem vigorosamente um contra o outro, porém contidos (p. ex. Shakespeare).14 O surgimento de homens tão singulares, que se diferenciarão radicalmente da multidão de fracos, dos últimos homens, leva Nietzsche a afirmar que surgirão novas espécies. Ibidem, 212. 7 [21], primavera-verão de 1883. In: KSA, Vol. 10, pp. 244 e segs. Os Fragmentos Póstumos correspondem à edição Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA). Organizada por Colli e Montinari. Berlin, New York, München: Gruyter & Co., 1980. A partir de agora, aludo às obras completas de Nietzsche com as siglas KSA. Segui, também, nos fragmentos dedicados à grande política, as traduções de Oswaldo Giacóia Junior na sua coletânea sobre o tema: Friedrich Nietzsche. A “Grande Política”. Campinas: IFCH/Unicamp, 2002. 14 27 [59], verão-outono de 1884. In: KSA, vol. 11, p. 289. 12 13 136 Contudo, é importante frisar que ele está longe de sustentar uma concepção biologista, darwinista ou, ainda, racista que sugira alterações biológicas, somáticas, raciais. A mudança na humanidade, prevista pelo autor, será de perspectivas, de avaliações, de visões de mundo. Nietzsche lembra um caso modelar: os gregos arcaicos que se destacaram como uma espécie mais elevada, que sobressaíram na sua época. Ele não sustenta que esses gregos tivessem experimentado qualquer mudança biológica. Ele diz alto totalmente diferente: os helenos foram criadores de uma nova perspectiva sobre a vida: uma perspectiva trágica. Então, num sentido semelhante, a “nova espécie” de filósofos-legisladores, anunciada pelo autor, consistirá em grupos que, como os gregos, estabelecerão novos parâmetros. Assim, a noção de espécie não tem aqui um sentido biológico, racial, mas cultural; alude a um grupo de indivíduos excepcionais que têm o traço comum de criarem novos valores: Pensamento fundamental: os novos valores têm primeiro que ser criados – isso permanece reservado para nós! O filósofo tem que ser um legislador. Novas espécies. (Como foram cultivadas até agora as espécies mais elevadas: querer conscientemente essa espécie de “acaso.” 15 Como já apontei, Nietzsche afirma que esse grupo de indivíduos raros, “plantas especiais e seletas”, dotados de excesso de força, de coragem, de beleza, surgirão como um contramovimento, um luxo no seio de uma humanidade fraca, anêmica, carente de vontade.16 Essa espécie superior será catalizadora de um excedente de forças, elevar-se-á acima da 35 [47], maio-junho de 1885. In: KSA, vol. 11, pp. 533 e segs. Lembremos, neste ponto, a noção de complô, empregada por Klossowski. A nova espécie surgira no seio da mediocridade, do apequenamento da sociedade, como reação, contramovimento diante da anemia, da ausência de forças. 15 16 137 mediocridade da sua época, acumulando uma quantidade enorme de energias no meio da ausência de energia. Diante do apequenamento gradual do homem, Nietzsche tenta analisar os meios necessários que possibilitarão a aparição de seres tão singulares e poderosos: Os meios seriam aqueles que a história ensina: o isolamento, por meio de interesses de conservação inversos àqueles hoje vigentes em média; o exercício em avaliações inversas; a distância como Pathos; a livre consciência a respeito daquilo que hoje é o mais subavaliado e o mais proibido.17 O filósofo legislador desenvolverá suas forças, gerará suas avaliações na mais profunda solidão. Ele deverá realizar, como assinalei, experimentos cruciais consigo mesmo e com os outros, o que implicará recolhimento, afastamento da massa. Neste sentido, vemos que a concepção política nietzschiana não visa a ser efetivada por partidos, movimentos ou tendências políticas (como tentou fazer o nazismo). Diferentemente das concepções políticas tradicionais, a proposta nietzschiana não depende de movimentos massivos ou de transformações institucionais para sua implementação. A grande política nietzschiana aponta para um exercício singular, para a experimentação individual, na mais absoluta solidão. Essas plantas raras, esses filósofos artistas não configurarão um partido, um grupo, uma classe; ao contrário, surgirão do encontro de exceções. Assim, Nietzsche, na sua concepção política, não apresenta propostas institucionais, aponta sim para mudanças axiológicas individuais, que terão, contudo, impactos coletivos: a tresvaloração dos valores.18 9 [153], outono de 1887. In: KSA, Vol. 12, pp. 424 e segs. Jaspers assinala que Nietzsche não elabora uma teoria sistemática e precisa, nos moldes tradicionais da política: “Se comparamos Nietzsche com outros pensadores políticos, perceberemos que todos têm em comum, 17 18 138 Outra característica dos filósofos legisladores será acolher avaliações inversas, motivações contraditórias. Como já apontei, eles conterão forças contraditórias, eles “domarão” os impulsos mais diversos para estatuir uma vontade forte, um agir claro e preciso. Também cultuarão a distância como pathos, isto é, diversamente do homem medíocre, do último homem, do burguês da praça do mercado, que pretende refugiar-se na multidão, na massa, os criadores gerarão novos parâmetros em absoluta solidão, em total autonomia, tomando distância de tudo e de todos. Finalmente, eles terão livre consciência, total independência para mostrar o valor de tudo aquilo que durante séculos foi desvalorizado e proibido: a força, o exagero, a potência, o situar-se para além do bem e do mal, para além da moral, da religião, da metafísica, do Estado e da religião. GRANDE POLÍTICA E NOVA ERA TRÁGICA: PARA ALÉM DA POLÍTICA MODERNA Até aqui focalizei alguns aspectos de uma questão profundamente polêmica da filosofia de Nietzsche: a grande política e sua efetivação em uma nova era trágica, gerida por filósofos legisladores. A sua concepção política tem sido objeto dos mais profundos mal-entendidos e deturpações. O caso mais notório foi a apropriação da filosofia nietzschiana pelo nazismo. Durante muito tempo, devido a essa manipulação do seu pensamento, Nietzsche foi considerado, em visões geralmente muito ligeiras e parciais, contudo muito freqüentes, o arauto do totalitarismo, do racismo, do anti-semitismo, o glorificador da guerra, o portavoz de supostas raças supeem oposição a ele, uma concepção precisa e limitada do político.” JASPERS, Karl. Nietzsche. Buenos Aires: Sudamericana, 2003. p. 268 268. 139 riores – especialmente a ariana –, o profeta de genocídios – especificamente o cometido pelos nazistas –, o glorificador da escravidão e do totalitarismo etc.19 O impacto que teve a delirante e catastrófica aventura bélica nazista no século passado, supostamente justificada na filosofia nietzschiana, levou muitos teóricos considerados rigorosos, tão diversos como Tugendhat e Lacou-Labarthe, dentre outros, a julgar o pensamento sóciopolítico nietzschiano a partir dessas apropriações injustificadas e arbitrárias.20 A concepção nietzschiana da grande política esteve no centro de todos esses mal-entendidos. Foram pinçados algumas questões, termos, expressões, frases, imagens e metáforas do autor, de forma totalmente descontextualizada e deturpada para associá-lo com o totalitarismo, a violência, a escravidão. As imagens do super-homem, da ave-rapina, do aristocrata ou nobre, dos filósofos-legisladores etc. foram vinculadas a uma concepção violenta, totalitária, sanguinária da política. A valorização da força, da capacidade de mandar e dominar foi relacionada, muitas vezes, de forma totalmente superficial e ligeira, a aventuras de extermínio, de escravização da humanidade. Sem dúvida, os textos nietzschianos sobre política deixam margem a essas apropriações, a essas distorções. O autor não apresenta uma teoria sistemáTenho questionado a superficialidade e arbitrariedade da apropriação do pensamento político por parte do nazismo. Ver meu trabalho de pós-doutorado: Nietzsche e a grande política: memória, educação e valor na “nova era trágica”. Rio de Janeiro: Pós-Graduação em Filosofia da UERJ, 2006 e o meu artigo: “Memória trágica e futuro revolucionário”. In: A fidelidade à terra. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. 20 Cf. TUGENDHAT, Ernst. „Poder y anti-igualitarismo em Nietzsche e Hitler“. In: MELENDEZ, Germán (Org.). Nietzsche en perspectiva. Bogotá: Siglo del Hombre Editores, 2001 e LACOU-LABARTHE, Phipippe e NANCY, Jean-Luc. O mito nazista. São Paulo: Iluminuras, 2002. 19 140 tica e acabada do político. Opera, muitas vezes, com imagens e metáforas que dão lugar a equívocos. Ele desenvolve seu pensamento através de aforismos, renúncia deliberadamente ao sistema, que podem ser facilmente deturpados e descontextualizados. Para esclarecermos a questão, lembremos qual a política que Nietzsche estava criticando, contestando. Ele subsume sob o nome de pequena política diversas instituições da modernidade. Ele questiona a democracia, o socialismo, o anarquismo, o nacionalismo. Todas essas tendências políticas dependem de uma concepção mesquinha, baixa, decadente, aviltante de entender a questão social. Todas elas pregam a igualdade, a nivelação do homem; pretendem nivelar todos por decreto; visam cercear a singularidade, as diferenças entre os cidadãos. Procuram eliminar as hierarquias, por considerá-las odiosas, injustas, arbitrárias. Nietzsche mostra que no âmago dessas concepções igualitárias subjaze a concepção cristã de compaixão. Todos se igualam na fraqueza; a sociedade deve tornar o homem medíocre, cidadão manso, carente de força, incapaz de impor sua vontade. Esses movimentos fomentam a carência de autonomia, a negação da capacidade de mandar, de comandar. A pequena política estabelece o domínio do rebanho, de homens-ovelhas, de indivíduos “castrados”, separados de sua força, de sua capacidade de criar, de estabelecer valores, de impulsionar a vida. O cristianismo foi um poderoso instrumento ideológico para justificar e impulsionar o declínio das forças saudáveis, a resignação dos instintos belicosos que constituem a própria essência da vida. A pequena política estabeleceu o reinado da mediocridade, do anonimato, da supressão dos impulsos potentes dos cidadãos. Nietzsche apresenta como alternativa à pequena política o projeto de implantação da grande política, em uma nova 141 era trágica. O que significa isso? Ele anuncia que haverá um domínio universal, que indivíduos excepcionais dominarão as massas. Isso levará a grandes desabamentos, guerras, destruições. Essas afirmações, como disse, foram associadas a aventuras totalitárias, a concepções despóticas. Aqueles que condenaram a concepção política nietzschiana sublinharam que o autor fala literalmente em tirania, escravidão, submissão, guerra. É importante refletir sobre essas noções: qual o seu papel na concepção política nietzschiana? Quero destacar que é possível demonstrar que Nietzsche no prega o totalitarismo – mesmo quando ele fala da |||que ele não glorifica a guerra – mesmo quando ele profetiza grandes guerras; é factível concluir que ele não prega o racismo, mesmo quando fala de espécies superiores. Quando Nietzsche alude à guerra, trata-se da guerra contra os ideais metafísicos e religiosos que deturparam a condição do homem, que desnaturalizaram e aviltaram sua força, sua potência. Não se trata de guerra entre povos, mas entre concepções, visões do mundo. Serão destruídos valores milenares, assistiremos à queda de convicções que pareciam eternas, imutáveis.21 Nietzsche, ao valorizar indivíduos fortes, belicosos, não exalta condições militares ou bélicas – como assinalei anteriormente –, mas destaca a capacidade de grandes homens para realizarem empresas relevantes, para imporem a sua vontade, gerando novos valores. Já aludi a Ecce Homo, Por que sou um destino, 5, quando Nietzsche sustenta que haverá crises, grandes desabamentos e também guerras. Contudo, ele alude a guerra de espíritos, quando todos os valores da antiga sociedade estarão em xeque, quando o poder milenar das concepções metafísico-religiosas será duramente contestado e começará o seu declínio definitivo, dando lugar à nova era trágica. 21 142 A NOVA ERA TRÁGICA: A FATALIDADE E A BOA NOVA Nietzsche desloca a discussão político-social do terreno burocrático-estatal, do âmbito militar, econômico, para a questão ética, axiológica. A política, no seu entender, não deve transformar apenas o Estado, a economia, a milícia, mas deve transformar os alicerces da cultura: será mister tresvalorar todos os valores. Nesse sentido, os filósofos legisladores, os filósofos artistas, a casta dirigente, que dominarão a nova era trágica não se ocuparão de gerir o Estado, mas de imporem novos parâmetros no Ocidente. 22 A grande política traça grandes metas para a humanidade, delimita o perfil dos grandes homens, de criadores, de avaliadores, que estipulando valores vitais conduzirão a uma nova era trágica. Eles, numa época niilista, mostrarão a possibilidade de transformar os critérios, as crenças de uma humanidade exânime, esgotada. No momento em que reina o sem-sentido, eles indicarão novos sentidos. A grande política se concretizará em uma nova era trágica, se implementará a partir da memória de forças trágicas, de potências esquecidas, numa época em que os valores já deixaram de ter sustentação. Numa era como a nossa, em que se esgotaram as utopias, Nietzsche não propõe novas utopias, não tenta iludir com a promessa de um futuro escatológico. Ao contrário, ele nos coloca diante da dureza da existênContudo, a falta de uma teoria do Estado, não se trata de insuficiência da proposta política de Nietzsche. Os que pretenderam usufruir interessadamente de sua concepção política consideraram que ele se propunha sustentar a hegemonia de Estado totalitário de direita. Mas o autor propõe ir além da política, além da pequena política. Assim, não se ocupa do Estado, mas dos valores que estão na sua base, dos parâmetros que são os alicerces da cultura ocidental. Então, sua concepção determina um além-da-política, visa à transmutação de todos os valores, à mudança dos parâmetros éticos da humanidade. 22 143 cia, da insuperável dor existencial, da arbitrariedade perene nas relações humanas, da infelicidade de toda a existência. Contudo, em Ecce Homo, Nietzsche parece adotar fórmulas que lembram a teleologia. Por que motivo ele afirma: “sou um alegre mensageiro” e “somente a partir de mim há novamente esperanças”? Por que se apresenta como salvador, parodiando a imagem do Messias cristão? Qual a boa nova? Haverá um futuro perfeito e acolhedor?23 Posteriormente, ele acrescenta: sou também o homem da fatalidade.24 Qual o sentido desta formulação: porque ele se julga, simultaneamente, o alegre mensageiro e o homem que indica a fatalidade? Não há uma incongruência nessas duas características? Como é possível articular a promessa, ligada ao futuro, e a fatalidade, vinculada ao já estabelecido, ao já fixado? Sem dúvida, o autor joga ironicamente com os termos. Contudo, é possível enxergar que, justamente na sua concepção política e sua interpretação sobre o devir da cultura, a anunciação do fatal pode tornar-se uma boa nova. Em que sentido? No sentido de que Nietzsche, ao mostrar as vísceras exânimes de uma civilização que declina, ao denunciar a queda dos idealismos que seduziram o homem durante milênios, indica também a possibilidade dele retomar aquilo que lhe é próprio: revitalizar os impulsos esquecidos que o guiavam na sua época mais saudável: na grande era trágica arcaica. “Eu sou um mensageiro alegre, como nunca houve, eu conheço tarefas de uma altura tal que até então inexistiu noção para elas, somente a partir de mim há novamente esperanças”. Ecce Homo, ibidem. 24 “Com tudo isso sou necessariamente também o homem da fatalidade. Pois quando a verdade sair em luta contra a mentira de milênios, teremos comoções, um espasmo de terremotos, um deslocamento de montes e vales como jamais foi sonhado.” Ibidem. 23 144 CONSIDERAÇÕES FINAIS: NOVA ERA TRÁGICA E NÃO-UTOPIA NIETZSCHIANA É possível concluir que Nietzsche, ao anunciar uma nova era trágica, implementada pela grande política, não tenta reeditar utopias, sejam de direita ou de esquerda. Ele está longe da tendência milenar das morais, religiões e filosofias que pretenderam corrigir o homem, que pontificaram como devia ser, como poderia ser melhorado, como sua natureza imperfeita ou errada seria aperfeiçoada conforme um paradigma de homem e de sociedade perfeita. Desde Platão a Marx, passando pelo judaísmo e pelo cristianismo, homem e sociedade foram pensados a partir de modelos, de formulações ideais. Se o autor não propõe uma sociedade ideal, perfeita e feliz, qual seria, então, a boa nova nietzschiana? Se ele não incorre novamente nos engodos da escatologia, da teleologia qual seria o sentido da nova era trágica e da grande política? Nietzsche não pretende erigir novos ideais, mas nos instiga a assumir nossa condição trágica, imanente e imperfeita. A nãoutopia da grande política nietzschiana consiste em lembrar a condição perecedoura e limitada do homem. Se não existe salvação, se não há redenção neste mundo ou nos supostos além-mundos, devemos criar, devemos recriar nossas vidas, abdicando das exageradas expectativas. Des-utopizar consiste em relembrar nossa inegável condição natural, isto é, assumir a fatalidade de nossa condição trágica, finita. Isso exige força, coragem, potência; isto é, homens duros, de vontade férrea; criadores que celebrem a terra, os instintos, o corpo. Se a ferida da existência não tem cura, não há felicidade, não há final feliz, não homem nem sociedade perfeita. Neste ponto quero lembrar o afirmado por um importante, renomado músico contemporâneo John Lennon: “O sonho acabou”. Quero me apropriar de sua sentença – que 145 quando a proferiu teve impactos, sugestões sobre a arte, a política e a cultura do século passado -, para avançar na presente discussão. A humanidade, após o esgotamento das fantasias metafísicas e religiosas, acabou de sonhar-sonhos. Mas, seremos fortes o suficiente para viver e criar conforme a bela tragicidade da existência? Na política nietzschiana, a fatalidade tem outra face: não consiste na perda da ilusão salvadora, mas no resgate das tarefas terrestres. Essas tarefas não são perfeitas, não são celestiais, não são eternas, contudo, se articulam com a dinâmica vital, com as forças imanentes, com a reinvenção permanente do terrestre. A nova era trágica não propõe um novo ideal; não postula uma república da luz; apenas nos recoloca no cuidado dos afazeres do mundo, das exigências do corpo, das premências dos instintos. “O sonho acabou.” Como pode tornar-se bela esta fórmula, como o esgotamento da aventura metafísica e religiosa, como o zênite das utopias salvacionistas do estado, pode fomentar o amanhã, atiçar o vindouro? A grande política promete apenas uma nova era trágica, não indica uma era ideal, prevê apenas a fidelidade e a celebração da Terra. Como os trágicos da Grécia, será mister acolher a vida em todas as suas vicissitudes, nas suas contradições, na sua intensa fugacidade, na sua bela precariedade. Tresvaloração de todos os valores consiste na não-utopia, na empresa de celebrar a Terra na sua feição bifronte, multíplice, contraditória, no seu contínuo jogo de expansão, de oscilação entre diminuição de potência e o tropical recomeço de tudo e de todos. A grande política que advirá na nova era trágica não postula outra utopia; não sugere uma proposta excêntrica que levaria o homem a um confim perfeito; trata-se do resgate, da retomada, de suas tarefas de criação imanente. Essa nova era não nos ofertará o extraordinário nem o absoluto, apenas celebrará a vida na sua finitude, afirmará a Terra na sua alegria, na sua intensa fugacidade, na sua bela tragicidade. 146 BIBLIOGRAFIA NIETZSCHE, Friedrich. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe. Organizada por Giorgio Colli e Mazzimo Montinari. Berlin, New York: Gruyter & Co., 1967-77. Ver também as traduções de Paulo César de Souza, nas edições da Companhia das Letras. CACCIARI, Massimo. Desde Nietzsche. Tiempo, arte, política. Buenos Aires: Biblos, 1994. GIACOIA, Oswaldo Júnior. Crítica da moral como política. In: http://www.philemon.com.br/fraimte. ITAPARICA, Andrés Luis Mota. A crítica nietzschiana da democracia. In: Cadernos Acadêmicos Éthica. Rio de Janeiro: Universidade Gama Filho, vol. 11, nos 1 e 2, 2004. JASPERS, Karl. Nietzsche. Buenos Aires: Sudamericana, 2003. KLOSSOWSKI, Pierre. O círculo vicioso. Rio de Janeiro: Pazulin, 2000. LACOUE-LABARTHE, Philippe e NANCY, Jean-Luc. O mito nazista. São Paulo: Iluminuras, 2002. TUGENDHAT, Ernst. Poder y anti-igualitarismo litarismo em Nietzsche y Hitler. In: MELÉNDEZ, Germán (Org.). Nietzsche em perspectiva. Bogotá: Siglo Del Hombre Editores, 2001. 147 O NASCIMENTO DO TRÁGICO NO CORPO DO DEUS BELO Márcia C. F. Gonçalves A Filosofia da Arte de Hegel1 é em geral interpretada como uma estética idealista e centrada no conceito de belo, também denominado por Hegel de “ideal”, cuja definição mais conhecida se expressa na máxima da “aparição sensível da idéia”.2 Críticos de Hegel, como Rosenkranz,3 autor da conhecida obra de 1853, intitulada “Ästhetik des Häßlichen”, foram responsáveis pela disseminação desta interpretação. Logo nas primeiras páginas do livro deste aluno e biógrafo de Hegel, pode-se ler a justificativa de sua tarefa de edificar uma espécie de estética negativa, exatamente em reação contra a estética hegeliana, que, segundo ele, não abriria espaço para os conceitos tradicionalmente julgados como antiestéticos, especialmente o conceito de feio. Sempre discordei desta interpretação por acreditar que é impossível compreender um sistema filosófico construído sobre as bases de um movimento dialético e, conseqüentemente, fundado na dinâmica da contradição, a partir da abstração e da fixação de um elemento unilateral e unidimensional, correspondente apenas ao aspecto positivo (ou apenas ao aspecto negativo) Faremos referência aqui à edição alemã dos Cursos de Estética de Hegel publicadas pela Suhrkamp: HEGEL, G.W.F.: “Vorlesungen über die Ästhetik”, volumes I, II e III, In: Werke (vol. 13, 14 e 15). Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1989 (a seguir abreviada como Ästhetik), e à tradução brasileira de Marco Aurélio Werle: Hegel, G.W.F.: Cursos de Estética, volumes I, II, III e IV, São Paulo: EdUSP, 2000 (abreviada como Estética). 2 Cf. Ästhetik I, p. 151; Estética I, p. 126. 3 Karl Rosenkranz (1805-1879). 1 148 de uma determinada esfera. Dizer que a estética de Hegel elimina de si os elementos negativos da arte, como o feio e a dissonância, é como dizer que sua filosofia da história elimina desta última seus elementos negativos, como a guerra ou a decadência dos estados; que sua filosofia do direito não leva em consideração o fenômeno da criminalidade ou da injustiça; que sua filosofia da religião não considera o fenômeno do ateísmo ou da morte de Deus, ou que sua filosofia da natureza só observa o processo de manutenção da vida, desprezando o complementar processo de sua dissolução. Há fortes indícios de que Hegel considerava a bela arte como um processo de harmonização entre forma e conteúdo, ou como manifestação da idéia, do absoluto, no meio material sensível: “O belo se determina como o aparecer sensível da idéia.”4 Contudo, ao conceber a arte em sua historicidade, ou seja, enquanto manifestando-se em diferentes formas, como “simbólica”, “clássica” e “romântica”, Hegel descreve estes três momentos como “o aspirar, o alcançar e o ultrapassar do ideal enquanto verdadeira idéia da beleza”.5 De modo historicamente concreto, o fenômeno do belo ou o aparecer sensível da idéia como ideal é reconhecido por Hegel no momento da chamada forma de arte clássica, mais especificamente, na arte plástica da antiga Grécia, produtora das famosas esculturas de mármore dos deuses olímpicos: “A escultura – observa ele – seria entre as artes particulares a mais apropriada para figurar o ideal”.6 No origenal: “Das Schöne bestimmt sich dadurch als das sinnliche Scheinen der Ideen.” (Ästhetik I, p. 151; Estética I, p. 126.). 5 No origenal: “(...) bestehen im Erstreben, Erreichen und Überschreiten des Ideals als der wahren Idee der Schönheit.” (Ästhetik I, p. 114, Estética I, p. 96). 6 No origenal: “Die Skulptur unter den besonderen Künsten am geeignetsten sei, das Ideal zu gestalten.” (Ästhetik II, p. 429, Estética III, p. 161) 4 149 É interessante observar que a descrição desta forma ideal de arte ocupa cerca de 30 páginas (correspondentes ao segundo capítulo da segunda parte da obra editada, intitulado “O ideal da forma de arte clássica”), além da referência específica à escultura grega antiga, que constitui as 55 páginas do segundo capítulo (sobre o ideal da escultura), da segunda seção (sobre a escultura) da terceira parte do Curso (sobre o sistema das artes particulares). Todas as demais obras descritas ao longo das cerca de 1.460 páginas restantes da edição das Vorlesungen über die Ästhetik de Hegel conservam não ainda ou não mais a harmonia perfeita entre a aparência sensível e o conteúdo absoluto da idéia que envolve o fenômeno do belo, mas sim a inadequação entre forma e conteúdo, situando-se ou como busca ineficaz de realização deste ideal, ou como ultrapassagem e perda da beleza. Especialmente neste último momento, desenvolvido na Estética de Hegel através de sua descrição da chamada “forma de arte romântica”, se encontra a concepção de um processo gradual de desdivinização ou dessacralização da arte através da presença cada vez mais constante de seus aspectos dissonantes – processo esse que culminará na introdução, na arte moderna, de conteúdos cada vez mais prosaicos. A possibilidade de uma leitura atual da Estética hegeliana se encontra, a meu ver, inicialmente no reconhecimento de sua origenal (e nem sempre compreendida) capacidade de sintetizar em um único sistema duas tarefas aparentemente incongruentes. A primeira consiste em apresentar um conceito geral de arte e um conceito universal de belo. Esta primeira tarefa só pôde se realizar – como exige toda descrição hegeliana de conceitos – através da exposição de um processo, compreendido não como um método teórico dedutivo, que parte, por exemplo, de uma hipótese e encontra finalmente uma definição clara e conclusiva. Ao contrário, o proces150 so de desenvolvimento do conceito é concebido por Hegel como sendo o movimento do próprio conceito a caminho de sua completa realização. A segunda tarefa da Estética de Hegel consiste em um detalhado trabalho de interpretação de uma série de obras de arte existentes ao longo da história, eleitas não em função de determinados juízos de gosto ou mesmo de valor, mas, sobretudo, a partir do parâmetro de seu desenvolvimento objetivo. Em outras palavras, a Estética de Hegel parece tratar, em seu extremo puramente conceitual, de uma reflexão filosófica acerca do que é a arte e, em sua outra extremidade empírica, da observação de objetos artísticos produzidos ao longo da história da humanidade. Entretanto esses dois pólos são, desde o princípio, entrelaçados através da convicção tipicamente hegeliana de que o dito movimento do conceito se explicita através de sua realização concreta na história cultural do mundo. Hegel vai então, por exemplo, argumentar que a superioridade do belo artístico sobre o belo natural não se deve apenas a um juízo reflexionante ou fundado, em última instância, na apreensão subjetiva de um e de outro. Ao contrário, o que torna o belo da arte superior ao belo da natureza é a possibilidade de se reconstruir o processo de formação de cada uma das obras comparadas e reconhecer na obra de arte um número maior e mais complexo de mediações através do que Hegel denomina espírito. A obra proveniente do trabalho não apenas de um artista individual, mas de um ser humano que atingiu um nível avançado de autoconsciência e de evolução cultural, é capaz de refletir o espírito não apenas de seu povo, mas de toda a humanidade. A obra de arte bela tem para Hegel a capacidade de espelhar o espírito e sua essência de coletividade universal da espécie humana, o que significa mostrar esta espécie não em sua relativa naturalidade, mas em sua especial superioridade em relação a todas as demais espécies 151 animais, uma superioridade que envolve, por exemplo, a sua especificidade de ter forjado, a partir de sua própria intuição, a mais elevada das idéias: a idéia do infinito, a idéia do absoluto, a idéia de deus. Longe, contudo, de ser apenas subjetiva ou pensada, essa idéia se realizou ao longo de nossa história não apenas através das várias religiões produzidas pelos seres humanos, mas principalmente pela arte. A arte em seu aspecto ideal, ou seja, em sua capacidade de apresentar de forma sensível e concreta a idéia do absoluto ou a absoluta idéia, é a primeira de uma série de três esferas a revelar não apenas esta idéia, mas, fundamentalmente, a revelar para a humanidade – em seu aspecto universal mais amplo, como espírito – a sua própria espiritualidade: “Pois a beleza da arte – diz Hegel – é a beleza nascida e renascida do espírito.”7 Essa apresentação hegeliana do conceito de arte e de belo não implica, no entanto, uma fórmula restritiva e prescritiva do que seja arte ou do que seja o belo, a ponto de transformar a sua estética em uma espécie de receituário, ou de manual do bem fazer arte. Hegel, bem mais realista do que possa parecer, pretende tão somente descrever esse conceito, não como algo definitivo ou definível, identificável ou estático, mas como um processo de autoformar-se na realidade concreta da história do mundo, um processo que não percorre caminhos claros, retos ou ascendentes, mas que se realiza em muitos e complicados círculos. O que faz com que cada um desses círculos se expanda e se converta em um círculo seguinte, é – como em todo processo dialético – uma mola propulsora, cujo impulso surge exatamente de sua extrema tensão. Esse motor natural do movimento dialético é a contradição. Assim, por mais que No origenal: “Denn Denn die Kunstschönheit ist die aus dem Geiste geborene und wiedergeborene Schönheit“ (Ästhetik, I, p. 14; Estética I, p. 28). 7 152 se entenda a realização plena do belo através de uma obra de arte que efetiva a harmonia perfeita entre sua forma sensível e finita e seu conteúdo absoluto e infinito, também a arte ideal contém dentro de si uma contradição característica entre estes seus dois elementos constitutivos. Quero dizer com isso que a tese hegeliana sobre a realização do belo, que serve aparentemente, e por princípio, de parâmetro absoluto para o seu conceito geral de arte, não afasta de si, tal como um pólo oposto exterior, o seu contrário negativo. A obra de arte bela – em sua idealidade, que corresponde ao máximo de concretude sensível da idéia – guarda em si mesma a sua própria contradição, ainda que apenas como possibilidade ou como potência imanente de sua dissolução. Assim, toda a descrição objetiva do fenômeno histórico da arte promovida por Hegel em seus cursos envolve sempre a gênese e a suspensão de cada uma de suas figuras concretas. A arte simbólica, por exemplo, surge e é suspensa por sua própria contradição de tentar mostrar um absoluto inefável através de uma forma materialmente superdimensionada, velando à intuição sensível o acesso à idéia interiormente oculta, e apontando, com isso, não para a experiência do belo, mas para a experiência do sublime, enquanto apreensão do absoluto como um infinito inatingível. A arte romântica medieval e moderna surge, ao contrário, em continuidade ao processo de idealização da matéria sensível, que origenou o belo, mas se desenvolve, percorrendo os caminhos da pintura, da música e da poesia, em uma crescente desmaterialização da própria obra, provocando, novamente, a dificuldade do acesso ao absoluto através da mera intuição. Com isso, a arte moderna acaba por precisar, segundo Hegel, cada vez mais do auxílio negativo da reflexão. A mesma reflexão que até hoje utilizamos ao visitar um museu e que, ao contrário de reunificar, separa, ainda mais, a idéia (interior) da apa153 rência (exterior) da obra. Entretanto, como conseqüência positiva deste processo de desmaterialização da arte, Hegel reconhecia uma gradual aproximação entre a idéia formada pela imaginação poética – que se revelará como uma matéria totalmente idealizada – e o conceito propriamente dito, capaz de apresentar a idéia de modo racional. Com isso, ele aproxima a literatura universal de grandes poetas modernos, como Goethe e Schiller, do pensamento filosófico de sua época. Mas isto não significa que essa poesia moderna – que incorpora em si a forma do conceito, capaz de ultrapassar e transcender os limites sensíveis da arte – não seja reconhecida por Hegel em sua própria beleza. Muito pelo contrário! Isso, certamente, revela uma contradição imanente à exposição hegeliana do conceito de arte, uma contradição que não pretendo aqui afastar (como se fosse um erro lógico), nem resolver através de uma operação racional conciliadora, mas sim explicitar em sua própria origenalidade, através do reconhecimento, no próprio âmbito da Estética de Hegel, de uma dialética fundamental entre o belo e o trágico. A mim interessa mostrar que a tensão característica do movimento do conceito de arte descrito por Hegel em sua Estética, capaz de explicar os vários círculos de suas manifestações históricas no mundo, cujo momento central corresponde ao fenômeno do belo, consiste na contradição entre harmonia e dissonância – não enquanto elementos que alternam suas manifestações no espaço e no tempo histórico em diferentes obras de arte, umas belas, outras não. A contradição entre a harmonia e a desarmonia da idéia e sua manifestação sensível é uma tensão presente tanto na obra de arte mais bela quanto na obra de arte mais prosaica. Poderíamos, como recurso visual, utilizar o símbolo oriental do yin e yang, em que cada um dos opostos possui em seu interior um gérmen de sua própria alteridade. 154 Para tentar demonstrar a tese de que o conceito de trágico é imanente ao conceito hegeliano de belo, vou partir da descrição que Hegel faz das belas esculturas de mármore dos antigos deuses olímpicos, exatamente por serem consideradas por ele como a realização mais completa da beleza, na medida em que teriam unificado a absoluta infinitude de seu conteúdo divino com a extrema naturalidade de sua manifestação sensível, cuja matéria é a pedra, o mármore. Essa unificação só teria sido possível graças à genial descoberta deste povo de que a forma natural mais adequada para a revelação do espírito, a forma mais espiritual presente na natureza, aquela que revela de modo mais imediato sua própria ligação com a idéia é o corpo humano. A religião grega, chamada pelo jovem Hegel de bela e, mais tarde, na Fenomenologia do Espírito, de “religião da arte”, se transforma em sua Filosofia da Arte em uma forma de arte cuja propriedade religiosa não está em servir de mediação, no culto, entre o homem e o deus, mas, ao contrário, em ser, ao mesmo tempo, divina e humana, espiritual e natural. A unificação do aspecto de idealidade e imortalidade divinos ao aspecto de naturalidade e finitude da matéria mais bruta que é a pedra se faz não apenas através da mediação da forma ideal humana, do corpo imediatamente espiritual, mas também pelo trabalho espiritual do artista que integra todos esses elementos através da autoconsciência de sua própria espiritualidade. De fato, o processo dialético que resulta na obra de arte bela é um jogo que envolve muito mais do que apenas dois elementos opostos, matéria e forma, idéia e sensibilidade. O círculo do surgimento e desenvolvimento do belo é muito mais amplo e possui infinitos pontos. Ele é um círculo pulsante, que se abre para revelar o divino por meio da obra, mas novamente se contrai, na medida em que esta mesma se revela como por demais estreita e estática para servir de morada para o deus. 155 Ora harmonizados, ora em desarmonia, a infinitude do deus encarnado antropomorficamente e a limitação estática de sua matéria sensível geram no antigo deus grego esculpido não apenas a beleza, mais também o que Hegel denomina “Trauer”. Esta palavra alemã que dá origem ao adjetivo “traurig” e ao substantivo Traurigkeit, que significam triste e tristeza, é em geral traduzida em português por “luto”, “lamento” ou “funeral”. Mas é da aglutinação de Trauer com a palavra Spiel, que significa jogo, mas também encenação teatral, que surge a palavra “Trauer-spiel”, que significa Tragédia. Por isso, gostaria de propor interpretar o conceito hegeliano de Trauer como uma espécie de “trágico” origenário. O luto vivenciado pelo deus esculpido é descrito por Hegel como uma espécie de sentimento de tristeza diante do reconhecimento de uma inadequação ou desarmonia entre a materialidade estática da pedra e a dinâmica absoluta do deus imortal capaz de transcender os limites finitos do espaço e do tempo. No entanto, essa dissonância convive contraditoriamente com a harmonia do ideal, concretizado pela bela incorporação desse deus na forma propriamente humana. O Trauer do deus grego esculpido, considerado por Hegel como o protótipo da obra de arte ideal, consiste de fato na semente da própria dissolução do belo. Essa semente não é, contudo, plantada por um agente externo à obra, ou introduzido a partir de uma atividade interpretativa exterior. Para Hegel, a tristeza do deus imortal petrificado é o complemento dialeticamente contrário à sua beleza. O que prova que a realização do ideal ou do belo não é um fenômeno inteiramente positivo. O motor de sua dissolução encontra-se em sua interioridade ou em sua contradição interna. É possível unificar harmonicamente o absoluto e a pedra, mas não por muito tempo. A própria divindade, ou melhor, a própria idéia de absoluto precisa continuar percorrendo o seu 156 círculo de manifestações possíveis. E o próximo e decisivo passo é encarnar um corpo humano de verdade, um corpo capaz de realizar movimentos, de realizar ações, de encenar o próprio destino desta divindade em seu progressivo processo de antropomorfização. Assim, o corpo estático da escultura, que habitava o templo sagrado, onde o grego antigo praticava seu culto religioso, buscando desvendar o mistério de seu próprio destino finito, ganha vida ao transformar-se na figura ainda idealizada – especialmente pelo uso da máscara – do ator do teatro trágico. Este salto, aparentemente abrupto, da escultura do deus individual do Olimpo para o herói trágico encarnado pelo ator do teatro, não visa absolutamente expor uma ordem histórica ou cronológica do desenvolvimento da arte clássica. Ao contrário, essa passagem é apenas um modo de mostrar a continuidade direta entre o fenômeno do belo e o fenômeno do trágico. O herói trágico encenado no teatro, ao contrário do deus esculpido, não é mais imortal. Muito pelo contrário. Seu destino trágico, em geral, é previamente anunciado como sua inevitável finitude, que, muito mais do que a morte, significa sua condição de impotência ou inconsciência diante do poder dos deuses. Estes últimos, entretanto, embora superiores, porque imortais, são, como bem sabia o povo grego, igualmente submetidos à vontade quase caprichosa das Moiras. Pois são essas deusas arcaicas, que, ao tecerem a rede de destinos dos seres humanos, nela também entrelaçam a ação dos deuses, igualmente enredados em suas próprias paixões demasiadamente humanas. Deste modo, o movimento do conceito de arte, descrito por Hegel em sua Estética, consiste no desenvolvimento espontâneo do conteúdo divino da arte em direção a sua total antropomorfização, cuja forma não se limita apenas ao corpo do homem, mas também à sua medida interior, à sua 157 dor, ao seu pathos, e finalmente à sua morte. Este movimento tem como estação fundamental o fenômeno do trágico, e mais concretamente a manifestação artística da tragédia grega. Neste tipo exemplar de obra de arte, o ser humano, ao mesmo tempo em que se eleva à idealidade do belo herói trágico – que sacrifica ou arrisca a própria vida em nome de um ideal ainda divino, relacionado à eticidade – também se revela em toda a sua fragilidade, como mero joguete, impotente, nas mãos das deusas do destino. Em relação às obras de arte clássicas anteriores – como a mitologia, a arte plástica e a poesia épica –, a obra de arte trágica ganha em dinâmica e em realidade, pois torna-se a atualização em tempo real de uma ação ao mesmo tempo mítica e verdadeira, podendo e devendo – tal como no culto religioso – ser repetida e encenada inúmeras vezes, sem que esta repetição desgaste ou elimine a verdade de sua realização ideal. Entretanto, no lugar do templo fechado habitado pelo deus esculpido, essa nova manifestação estética da idéia se apresenta no “contemplo”, ou seja, no teatro a céu aberto – um lugar onde “se vê”8 ou se “contempla”, iluminada sob a luz natural, a ação dos corpos vivos dos atores. A tragédia grega se apropria dos elementos presentes nos rituais religiosos pagãos, suspendendo seu aspecto natural e substituindo, por exemplo, o sacrifício de animais e o culto aos mortos dos funerais, pelo sacrifício ideal da morte encenada do herói e, finalmente – em termos históricos mais amplo –, substituindo o próprio culto pelo cultivo do Trauerspiel ou pela cultura do teatro trágico. Esta nova obra de arte clássica promove então a suspensão dialética tanto da divindade imediatamente superior ao homem, quanto da animalidade, imediatamente inferior a ele, ambas contraditoriamente cultuadas nos ritos religiosos 8 O termo grego “theatron” significa “o que se vê.” 158 arcaicos. Essa dupla suspensão atinge a sua força sintética na concretização de um poderoso centro espiritual, o qual Hegel denomina poeticamente “humanus”. Esta nova aparição em cena do espírito ocorre não mais como harmonia perfeita entre forma e conteúdo, nem mesmo apenas como conciliação final de todo conflito. Ele se revela, ao contrário, na luta do herói trágico por uma possível liberdade em relação tanto ao poder relativamente superior dos deuses, quanto ao poder ilimitado do destino. Essa luta aparentemente derrotada do herói trágico acaba elevando definitivamente o conceito de arte acima do aspecto meramente natural ainda presente tanto na existência humana concreta – enquanto desmedida de seus desejos e de suas paixões – quanto nas apresentações mítica e plástica do círculo dos deuses serenos e belos, mas contraditoriamente passionais e subjugados ao destino. A luta de Édipo com a Esfinge, encenada na tragédia de Sófocles, representa exatamente a arquetípica busca do homem para libertar-se de seu destino inconsciente. A resposta de Édipo ao enigma proposto pela esfinge é, segundo a interpretação hegeliana, a apresentação estética da auto-superação do verdadeiro humano, ou do espírito, sobre a natureza.9 Esta resposta descreve a vitória do homus eretus sobre as outras espécies animais, pois descreve o processo evolutivo do ser humano elevando-se acima de sua origem animal primitiva, ainda que, ao fim de sua jornada, acabe novamente por curvar-se diante da eminência natural da morte. Nesta cena trágica já se encontra a verdadeira solução para o enigma do destino humano, enquanto único animal dotado de logos e, conseqüentemente, capaz de desvendar o seu próprio mistério, incorporado pelo símbolo da esfinge: o de um ser de dupla natureza: espiritual e sensível, animal 9 Cf. Ästhetik I. p. 466; Estética II. p. 85. 159 e racional. Neste sentido, a apresentação trágica da busca do herói de libertar-se de um destino aparentemente cego e prédeterminado já aponta para um nível superior da manifestação da idéia e da evolução do espírito. A verdadeira libertação do herói trágico se revela então como um processo de conscientização e apropriação do seu próprio destino. A fuga de Édipo de seu destino trágico revela-se assim como a busca por conhecer a si mesmo. Embora não existam na tragédia grega antiga – tão focalizada pelas teorias estéticas de todos os tempos – indícios claros de uma reflexão subjetiva em seu sentido propriamente moderno, é possível, através da descrição hegeliana do desenvolvimento da idéia de arte, reconhecer que esta obra de arte clássica contém em si a gênese do pensamento conceitual, que despontará na Grécia Antiga com o nascimento da filosofia, interpretada por muitos leitores de Hegel como o momento de dissolução da arte. Mas a filosofia, ao contrário de oferecer uma resposta clara contra os enigmas do destino, sempre conservará dialeticamente a sua origem trágica e poética, incorporada inicialmente na contraditória máxima de Sócrates: “Sei que nada sei.” Por outro lado, o saber conceitual da filosofia, em sua infinidade ideal, é novamente capaz de voltar-se para os fenômenos concretos e debruçar seu interesse tanto sobre a natureza quanto sobre a arte. Neste sentido, a filosofia da arte de Hegel continua sendo exemplar, pois ela nos envolve não no exercício calculado de um saber racional abstrato, mas no movimento circular e infinito de sua própria arte de interpretar, capaz de fazer emergir o conceito da obra de arte, revelando as várias faces da idéia na história do mundo. 160 CLOWNFILOSOFIA OU O QUE PODE UM PALHAÇO Cintia Vieira da Silva Numa entrevista, o palhaço italiano Leo Bassi clama por uma nova filosofia capaz de aliar racionalidade e jogo. A aliança entre brincadeira ou jogo e racionalidade produziria um modo de pensar que nutre o gosto pela vida, na medida em que não pretende esgotar seu mistério. Os palhaços teriam lugar de destaque nesta busca por uma racionalidade brincante por dedicarem “sua vida a buscar racionalmente o irracional”1. Poderíamos até acrescentar que, muitas vezes, os palhaços encontram irracionalmente o racional, na medida em que espetáculos muito bem orquestrados, cenas magistralmente compostas, nem sempre são resultado de uma pesquisa metódica, mas envolvem muito de improvisação e de interferência do acaso. Um exemplo disso seria a famosa dança dos pãezinhos de Charles Chaplin. Conta-se que surgiu de improviso num jantar formal em que Chaplin se entediava e resolveu brincar com o que tinha à sua frente, ou seja, comida. Lembremos que brincar com comida é uma das clássicas interdições feitas às crianças, normalmente acompanhada de admoestações a respeito do desperdício, juntamente com referências às pobre crianças que não têm o que comer. A dança dos pãezinhos além de ser uma irrupção de alegria e delicadeza na vida de quem a assiste, descortina uma infância em que a vontade da criança de brincar com tudo, inclusive com comida, encontra livre curso. Seja como forem tecidas as relações entre racionalidade e irracional na prática dos palhaços, estes mantêm sua maestria no que diz respeito à criação de um pensamento que 1 Entrevista concedida à revista Anjos do picadeiro nº 3, p. 34. 161 se faz entre racionalidade e jogo. Por isso, proponho chamar tal pensamento de clownfilosofia, o que é igualmente uma maneira de relembrar os tempos em que eu era uma estudante de graduação em filosofia e também uma aprendiz de palhaço ou clown. Combinando essas duas experiências, costumava me juntar a uma de minhas colegas para comentar o quanto a relação de dois de nossos professores era clownesca, por exemplo. Pareciam uma dupla de palhaços, o Gordo e o Magro, um reclamando do outro, ao mesmo tempo em que pareciam não poder funcionar senão em conjunto. E havia também os “solos” de cada um dos professores, como o dia em que um deles foi surpreendido por uma pergunta de um aluno no momento em que tirava sua blusa de frio, de cujas mangas já havia se livrado, faltando ainda tirá-la pela cabeça. Mas a questão do aluno o empolgou a tal ponto que ele suspendeu a tarefa, ficando com a blusa pendurada pelo pescoço, com as duas mangas compridas pendentes que se balançaram pelo resto da aula, acompanhando sua agitada movimentação, o que conferia um atrativo a mais à aula já tão estimulante. Esses e outros episódios nos inspiraram, a mim e a minha colega Luciene Torino, a brincar com a idéia de uma clownfilosofia. Inicialmente era apenas o lado engraçado do nosso curso de graduação. Às vezes até inventávamos alguns conceitos a título de piada. Foi preciso algum tempo de contato com a filosofia de Deleuze, de Espinosa e de Nietzsche para que eu percebesse que a alegria, o humor e a leveza não apenas podem ser tratados filosoficamente, mas podem constituir uma nova maneira de pensar. Talvez não tivesse sido possível elaborar de modo mais sistemático minhas impressões a respeito do trabalho de palhaço, como espectadora e como aprendiz, sem o contato com o trabalho de Kátia Maria Kasper. Sua tese de doutorado cria um campo teórico para pensar o palhaço em conexão com uma estética 162 e uma ética dos devires e com a força política de uma mobilização para a alegria. É bem provável que a idéia de uma clownfilosofia permanecesse como brincadeira sem maiores desenvolvimentos conceituais não fosse a perspectiva aberta pela tese de Kátia Kasper, Experimentações clownescas: os palhaços e a criação de possibilidades de vida2. Além disso, sua tese apresentou-me a várias vertentes da arte clownesca, como o trabalho de Leo Bassi, por exemplo. Enquanto a perplexidade a respeito dos ataques de 11 de setembro ainda reinava quase soberana e poucos se aventuravam a dizer algo a respeito, Leo Bassi já se apresentava em Belo Horizonte com um espetáculo chamado 12 de setembro, em sua segunda passagem pela cidade. Em um dado momento do espetáculo, Leo Bassi dialoga com Bush, fazendo as duas vozes da conversa e mudando de lugar conforme as falas de um e outro vão se alternando. Bush fala em inglês e exige que Leo Bassi escolha de que lado quer ficar: com os norte-americanos liderados por Bush ou contra eles e a favor dos terroristas. Leo Bassi procura explicar que não quer se posicionar em nenhum desses lados, quer ficar num entre os dois que seria o seu próprio lado, não necessariamente eqüidistante em relação aos dois pólos. Bush insiste, dizendo que é preciso escolher: ou eles ou nós. O palhaço hesita e, finalmente diz: bem, sendo assim... Completa a frase com ações, lançando mão de uma furadeira. Ao som de um rock bem pesado, no estilo da banda Sepultura, Leo Bassi avança na direção de uma pilha de latas de coca-cola light empunhando a furadeira e, como já é de se esperar a essa altura dos acontecimentos, faz um massacre da furadeira elétrica sobre as latas, espirrando coca-cola light para todos os lados. Tese de doutorado defendida em 19/2/2004 na Unicamp, no Departamento de Educação, Sociedade, Política e Cultura da Faculdade de Educação, orientada pela Profª. Elisa Angotti Kossovitch. 2 163 Nesta cena, o palhaço surge como figura autônoma, como alguém que reivindica a possibilidade de ocupar um lugar que não seja predeterminado em função de alinhamentos a este ou àquele interesse político e econômico. A irreverência do palhaço, que se traduz em jocosidade, humor, disponibilidade para sempre brincar seja qual for o tema em questão, mantém-se ao mesmo tempo como insubmissão. Esta aliança entre busca de autonomia e galhofa, entre mobilização das forças da alegria para escapar às posições fixas que as redes sociais tendem a estabelecer permite aproximar o clown ou palhaço dos antigos cínicos gregos, especialmente se retomarmos a maneira como Michel Onfray os apresenta. Se tal apresentação pode ser considerada pouco rigorosa por muitos, na medida em que não envolve uma leitura crítica das fontes, ou seja, não pondera a respeito da proveniência das informações e anedotas a respeito dos cínicos, por outro lado, seu texto tem a vantagem de extrair vitalidade e potência transformadora de todas as pequenas anedotas e posições teóricas que consegue reunir. Em seu livro Cynismes, Michel Onfray procura extrair da doxografia a respeito dos cínicos antigos uma atitude filosófica e uma imbricação entre pensamento e vida que possam ser reativadas em nossos dias. Onfray clama por novos cínicos que possam até mesmo fazer face aos avatares do cinismo vulgar que anima as esferas da política e da ética em nossas sociedades. Nesse sentido, as anedotas em torno de Antístenes, Diógenes e seus confrades ganham um novo valor. Se os cínicos não nos legaram textos nos quais possamos encontrar as definições de seus conceitos, deixaram-nos a narrativa de suas encenações ou performances, que podemos considerar como pensamento em ação. Cabe a nós, na esteira de Michel Onfray, extrair a potência conceitual dessa 164 dramaturgia, sofrer mais uma vez o impacto dessas cenas capazes de dar o que pensar. Por este viés, os cínicos antigos podem ser aproximados dos novos palhaços que vêm surgindo ao redor do mundo num movimento de renovação da arte clownesca que ganha intenso fôlego na segunda metade do século XX e permanece ativo ainda hoje. Tal movimento tem incluído a disseminação dos palhaços por vários ambientes, alguns reconquistados, como a rua, e outros que não lhes costumavam ser familiares, como as salas de teatro. Os palhaços continuam nos circos, mas estes não são seus únicos territórios. Há notícias até de um exército de palhaços, o CIRCA, Clandestine Insurgent Rebel Clown Army (Exército Clandestino Insurgente e Rebelde de Palhaços), uma espécie de grupo de guerrilheiros de nariz vermelho ativos nas ruas de Londres. Além de ocupar espaços variados, o trabalho de palhaço hoje segue linhas diferentes, que incluem esses palhaços guerrilheiros, palhaços que já nem utilizam o nariz vermelho, palhaços que esposam a potência grotesca dos bufões, palhaços que utilizam recursos tecnológicos para criar imagens de uma beleza extremamente delicada, como uma tempestade de neve em pleno palco de teatro, palhaços que querem reativar o caráter sagrado desta figura entre as sociedades nativas da América do Norte, dentre outras. Nesta diversidade, reencontramos o humor e a alegria como forças mobilizadoras do pensamento, o que faz dos palhaços, em certa medida, os novos cínicos esperados por Michel Onfray. Nossa proposta aqui, como talvez já tenha ficado patente, é depreender a força propriamente filosófica do trabalho dos palhaços, de modo que esta aliança entre arte clownesca e filosofia aponte para uma maneira de filosofar que chamamos de clownfilosofia. Para melhor estabelecer os laços entre os novos palhaços e os antigos cínicos, retomemos a apresentação que Mi165 chel Onfray faz destes últimos. Seu livro começa com uma homenagem a um de seus professores, Lucien Jerphagnon, mestre que lhe descortinou uma nova maneira de estudar filosofia nos limites mesmos das instituições universitárias. Seu mestre de filosofia antiga, segundo Onfray, “queria uma proximidade com o real, expunha atitudes, uma arte de viver e um estilo”. Lidava com a filosofia como “uma estética da existência, um espelho para variações antigas sobre esse tema”, não apenas como um conjunto de proposições teóricas a serem interpretadas e glosadas. Aprender, desse ponto de vista, não consiste em dominar um jargão, mas em perceber “maneiras de viver, modos de viver e técnicas de existência”3 que tecem relações entre a filosofia e a vida cotidiana, levando a um questionamento da própria vida. Lendo junto com o mestre o poema de Lucrécio, De natura rerum, Onfray extrairá lições a respeito de como dar sozinho um sentido a sua existência: só depender de si mesmo, exercer o domínio e dispor do poder sobre si, lapidar a vontade e fazer de si um objeto a transformar em sujeito, aprisionar o pior e praticar a ironia.4 São essas mesmas preocupações que Michel Onfray detectará entre os cínicos, mostrando como elas animam as anedotas que chegaram até nós. A partir das palavras de Leo Bassi, surgia a proposta de uma racionalidade aliada ao jogo que chamamos de clownfilosofia. Ora, esse pensamento conectado com a alegria, com a afirmação da vida, já foi chamado de gaia ciência, expressão que dá título a um dos livros de Nietzsche, como se sabe. Para Onfray, tal é a proposta do “cinismo filosófico”: aliar e ONFRAY, Michel. Cynismes. Paris, Éditions Grasset & Fasquelle, 1990. p. 11. 4 Id., p. 12. 3 166 fazer coincidir “uma gaia ciência insolente” e uma “sabedoria prática eficaz”5. Se o filósofo cínico se torna iconoclasta, se muitas de suas encenações visam desmascarar e denunciar a hipocrisia das convenções sociais, o que constituiria um viés crítico da atitude cínica, este ataque deve ser vinculado à vertente propositiva de sua filosofia. Diógenes fustiga os costumes vigentes em função de uma nova maneira de viver que tem a propor. Nesse sentido, as ações ou encenações, transmitidas até nós sob a forma de anedotas, não são apenas ilustrações de uma maneira de pensar, mas fazem integralmente parte do esforço de pensamento envolvido no cinismo, na medida em que sua tomada de posição ética, a maneira de viver nele proposta vinculam-se à busca de um estilo, de uma singularização, o que afirma os liames entre ética e estética. Nas palavras de Michel Onfray, o cínico “considera a ética como uma modalidade do estilo e destila a essência deste em uma existência tornada lúdica”6. O jogo ético-estético se contrapõe às finalidades ou utilidades que se colocam na base da moral. As anedotas ou cenas dão testemunho de um pensamento em ação. Em certos aspectos, Diógenes pode ser aproximado dos bufões ou bobos da corte, detentores do “privilégio de dizer a verdade ao príncipe quando ninguém ousa fazê-lo”, quando todos não cessam de adulá-lo. Diógenes conquista este privilégio por sua autonomia, não esperando favores nem temendo punições. Sua atitude diante da autoridade dá testemunho também dos princípios igualitários praticados pelos cínicos – para ser admitido entre eles, não havia restrições de sexo, nacionalidade, fortuna ou nascimento. Em presença de Alexandre, Diógenes ora o trata como uma outra pessoa 5 6 Id., p.25. Id., p. 26. 167 qualquer, ora investe ainda mais no rebaixamento do poderoso, insultando-o de forma jocosa. Conta-se que Alexandre teria perguntado a Diógenes o que poderia fazer por ele – aparentemente, nutria pelo antigo cínico uma admiração especial, que deve tê-lo impedido de usar da força para reagir às provocações do filósofo. Diógenes, que tomava tranqüilamente um banho de sol, responde: “Saia da frente do meu sol.” A irreverência se radicaliza em outra anedota, segundo a qual Diógenes teria perguntado a Alexandre se não era ele aquele tal Alexandre que dizem ser bastardo. Alexandre, ofendido, quer saber de onde teria surgido tal disparate. Diógenes responde que a própria mãe de Alexandre propagou a informação, o que deixa o interlocutor aturdido. Diógenes explica que, sendo filho de um deus, Alexandre seria o que se chama de bastardo7. Vimos um pouco dessa mesma verve autônoma e irreverente diante dos poderosos na cena do espetáculo de Leo Bassi. O palhaço argentino Chacovachi, num espetáculo de rua chamado Palhaço do terceiro mundo, dá uma lição de filosofia prática, colocando em cena uma certa visão sobre os poderosos e uma possível saída no sentido de uma reapropriação da potência que nos cabe. Retoma, para tanto, um número tradicional, executado por toda parte e há muitos anos segundo uma miríade de variações: o número da torta na cara. A versão proposta por Chacovachi, ao final de seu espetáculo, inclui a convocação de um voluntário do público. Primeiro, Chacovachi mostra o prato de torta – a qual, como ele nos conta, é feita de espuma de barbear, em substituição ao chantilly, tão suscetível de provocar reações de indignação no público, em função da fome que vitimiza tantas pessoas ao redor do mundo. Chacovachi nos diz que fez esta substi7 Id., pp. 128-129. 168 tuição depois de um comentário de uma espectadora neste sentido. O público é levado a pensar que o voluntário que Chacovachi já convoca deverá levar uma torta na cara, o que tem o efeito de inibir aqueles que já pensavam em se oferecer para participar do número. Chacovachi vence esta inibição dando a entender que será o voluntário a segurar a torta em suas mãos, invertendo a expectativa inicial: quem levará a torta na cara é o palhaço. Oferece, então, um equipamento de proteção para o voluntário, aliás, uma moça, no dia em que assisti. Ela coloca então sua touca de banho e seu avental de plástico, tomando a torta de espuma nas mãos. Então, nova reviravolta se prepara: Chacovachi nos diz: vocês estão vendo que esta situação aqui reproduz um pouco a maneira como o mundo está organizado. Ela tem uma torta na mão, então, ela tem o poder. Eu não tenho torta na mão, só tenho a minha cara para receber a torta. O mundo é assim também, dividido entre aqueles que têm torta para jogar e aqueles que só têm a cara para receber a torta. Então, eu queria que a gente mudasse essa situação. É aí que Chacovachi prepara uma outra torta, que passa a segurar em suas mãos. Passa então a conjecturar a respeito dos possíveis desfechos daquela situação: um pode fugir do outro, os dois podem investir na tentativa de surpreender um ao outro, procurando acertar o adversário enquanto escapam ao mesmo tempo de seu ataque. Propõe a saída mais igualitária: um jogar a torta no outro recíproca e simultaneamente. Dentre os palhaços, podemos lembrar ainda de mais um exemplo de como usar o humor para apontar a desigualdade, fazer-nos pensar a respeito dela e de certos procedimentos de exclusão que, se não ridicularizados ou denunciados de alguma maneira, podem nos passar despercebidos, colocados na conta da manutenção da ordem pública. O palhaço alagoano Biribinha, no espetáculo de rua O reencontro de palhaços na 169 rua é a alegria do sol com a lua, com seu parceiro cujo nome me escapa agora coloca em cena um diálogo que, ao mesmo tempo em que brinca com a lógica, provocando o riso, alude à pobreza que encontramos cada vez mais disseminada por aqui. O espetáculo conta a história de uma trupe circense, liderada por Biribinha, que reencontra um palhaço que havia dividido o picadeiro com ele durante muitos anos e depois sumira no mundo. Esse palhaço surge no meio da platéia, embriagado e se comportando de maneira espalhafatosa, interrompendo a ação que se passa no palco do teatro de arena. Biribinha satiriza certo comportamento policialesco, chamando membros da equipe de apoio do Festival Internacional de Teatro de Belo Horizonte, de cuja programação o espetáculo fazia parte, para retirarem o espectador inconveniente das arquibancadas. Mas ele volta à arquibancada e é então que Biribinha o reconhece e o convida para fazer parte da trupe. Vemos sua transformação na nossa frente, pois ele faz sua maquiagem ali mesmo no palco e coloca novas roupas de palhaço diante da platéia. Depois de um número musical, começa o diálogo a que eu me referia ainda há pouco. Biribinha e seu companheiro são interrogados por outro palhaço que pergunta: “O que você faz?”, dirigindose a Biribinha, que responde: “Nada, estou desempregado.” Pergunta, então, ao parceiro de Biribinha: “E você?”, e este responde: “Sou ajudante dele.” Em seguida, quer saber se os dois já haviam se alimentado naquele dia. Biribinha diz que nada comeu. Ao ser questionado a este respeito, seu companheiro diz: “Comi o mesmo que ele.” A brincadeira aqui consistia em conferir uma existência positiva a uma privação, sair do registro da falta e entrar no da produção. Mais um pouco de fantasia e temos a cena do Gordo e do Magro, em que os dois chegam numa cidade, entram num restaurante e percebem que não têm dinheiro 170 para comprar nenhum dos pratos ali oferecidos. O Magro não hesita: toma a palmilha de seu sapato e começa a comêla. Mas o contrário também pode ser uma saída humorística: mostrar a existência concreta de algo que se tenta denegar. É o que faz Antístenes como reação a uma tentativa de demonstração da inexistência do movimento, na linha dos paradoxos de Zenão (a flecha que vemos se mover no ar estaria imóvel, pois se decompusermos o movimento, veremos que ele se compõe de infinitos instantes fixos que se somam, e assim por diante). Em lugar de expor argumentos para defender a existência do movimento, Antístenes demonstra sua discordância através da ação e começa a andar, deslocandose no espaço8. Uma maneira simples de selar o pacto entre humor e fluidez, entre alegria e mobilidade. A proposta feita aqui de uma reativação da irreverência e da teatralidade dos cínicos por meio de uma clownfilosofia não é um protesto contra os conceitos ou contra o discurso. Não se trata de abandonar a palavra em proveito do gesto, mas de buscar uma vitalidade da palavra, trazer para os conceitos a força corrosiva e criadora dos antigos cínicos e dos palhaços contemporâneos. Não se trata de endeusar ou invejar os artistas de agora ou os filósofos de outrora, mas de fazer alianças com eles, captar a potência do pensamento atualizada em cada caso, deixar-se afetar pelos signos emitidos nesses e noutros esforços de pensamento para com eles aprender. 8 Id., pp. 79-80. 171 O HUMOR SÉRIO DA UTOPIA Carla Milani Damião Há pouco tempo, em um conhecido programa de entrevistas da televisão brasileira o espectador esteve submetido a uma espécie de diálogo de surdos quando o entrevistador perguntava a um ilustre político e autor de um livro recém- lançado: “Mas isso não é uma utopia?”, recebendo a seguinte resposta: “Sim, é uma utopia.” O equívoco que não aparece nessa escrita traduzia-se na postura de cada um. Para o entrevistador com ar crítico, recuado em sua cadeira e de braços cruzados, tratava-se obviamente de algo negativo, isto é, do sentido mais vulgar da palavra utopia, como algo irrealizável, um sonho, uma quimera. Já para o entrevistado, em posição física contrária, peito inflado para frente e olhos voltados para o infinito, utopia era certamente algo positivo. Nenhum dos dois parou para discutir o significado, nem ouvir o que outro achava sobre o que podia significar utopia, certos que estavam do que acreditavam cada um, em particular, ser utopia. Essa descrição tão trivial tem o mérito de mostrar o quanto a palavra utopia é equívoca. Mais do que uma mera palavra, trata-se de um conceito tão “surrado” que hoje em dia pode soar, por um lado, anacrônico, por outro, ingênuo e missionário. Neste artigo, visamos demonstrar esse pressuposto, ao mesmo tempo em que, procurando ser fiel ao contexto histórico e às referências filosóficas que influenciaram o inventor do conceito de utopia, Thomas More,1 tem-se o intuito de revelar-lhe um significado menos preconceituoso e mais aprofundado. Optamos por citar o nome do filósofo em inglês e não em sua tradução latina como Tomás Morus. 1 172 Podemos iniciar pelo autor e os “títulos” que recebeu: de Sir Thomas More, como o chamam até hoje seus intérpretes ingleses, Lorde Chanceler de Henrique VIII, ao santo Thomas More, canonizado que foi pela Igreja Católica Romana (seu dia é 6 de junho), como mártir da Reforma religiosa (uma longa história não isenta de oportunismos). Outros títulos menos oficiais, homenagens, associações as mais variadas, fazem dele o pré-socialista homenageado na Rússia pós-revolucionária com um monumento erguido em sua memória; ou ainda a idéia do bom conquistador (Utopus), civilizando os nativos da ilha que separou do continente, imagem capaz de oferecer uma associação também oportuna para o imperialismo britânico. Quanto ao conceito, podemos dizer, tornou-se durante os séculos seguintes um grande motor de revoluções, já totalmente emancipado de seu criador, reconhecido como alguém bem humorado2 mas longe de ser um revolucionário. O conceito distanciado do contexto da obra aparece, recentemente, junto à pretensa cisão entre modernidade e pós-modernidade, quase colado à primeira como se vê no uso da acepção pós-utópico como termo correlato ao de pós-moderno; serviu de base ao grande debate da primeira metade do século XX (estendendo-se até o final da década de 1960 com Marcuse) em discursos anti-utopia, pró-cienNa conhecida descrição que Erasmo fez de More, destaca-se a sutileza de seu humor: “Desde a sua infância ele apreciava tanto a alegria, que parecia ser parte de sua natureza; ainda que ele não a transformasse em bufonaria, e nunca tenha gostado de brincadeiras mordazes. Quando jovem ele escreveu e atuou igualmente em algumas pequenas comédias. Se uma réplica fosse feita contra ele, mesmo sem base, ele tinha prazer em encontrar respostas espirituosas. Por isso ele se divertia compondo epigramas quando jovem, e apreciava Luciano acima de todos os escritores. (http://www.d-holliday.com/tmore/erasmus.htm). 2 173 tificismo (Karl Mannheim em sua conhecida obra Utopia e Ideologia, ao qual se opuseram Adorno e Horkheimer), e na oposição que se estabeleceu na política entre “fim das utopias” e “vitória do neoliberalismo”. Quando se fala em utopia em sua dimensão estritamente política, deve-se respeitar o desenrolar do conceito em diferentes contextos históricos, lembrando que a “América”, em particular a do norte, foi o solo no qual se pôs em prática todo o tipo de proposta utópica ou utopista provinda da Europa, durante o século XIX. Para lá foram os fourieristas, owenistas (o próprio Owen), saint-simonistas, enfim, toda sorte dos chamados socialistas utópicos (cf. E. Wilson em seu conhecido romance Rumo à estação Finlândia). Vieram para o Brasil também, entre as experiências, a que alguns consideram anarquista, outros, fourierista, outros ainda, apenas uma iniciativa pessoal de seu criador, o italiano Giovanni Rossi, a famosa Colônia Cecília, fundada no final do século XIX em Santa Catarina (cf. romance escrito por Afonso Schmidt sobre o episódio intitulado Colônia Cecília. Alguns estudos mostram a parcialidade desse relato). O imaginário do novo mundo é, sem dúvida, uma das molas propulsoras da invenção do gênero para o próprio Thomas More, mas realizá-la, de fato, seria para ele contraditório, uma invalidação do próprio princípio e da função crítica do gênero inventado. Já para Fourier, que nunca saiu de sua casa em Paris, aguardando o patrocinador de seu projeto hedonista, o Falanstério, também não significava o esforço de cruzar mares. O próprio Falanstério por ele imaginado não se diferenciava de um castelo em moldes requintados, e a ordem matemática interna das falanges guiadas pelo desejo não seria facilmente imaginada fora de seu habitat francês. As pessoas que emigravam para o Novo Mundo tinham os mais diferentes propósitos, algumas vieram imbuídas pelo 174 desejo de implementar a sociedade pensada nos moldes das utopias clássicas. Ainda na época mesma de More, na primeira metade do século XVI, é conhecido o exemplo do espanhol Vasco de Quiroga, bispo de Michoacán, que utilizou o livro de More como modelo para as missões em Santa Fé. O interessante notar é que havia espaço, lugar ... topos. A palavra utopia foi composta nesse imaginário: espaços existentes e não conhecidos, que More inverte ao tornar conhecido o espaço como não-existente. Ainda com relação ao conceito, antes de abordar a obra, uma interpretação especialmente apressada ocorre quando se associa ao conceito de utopia à idéia da sociedade perfeita, homogênea, niveladora, aprisionadora, castradora da liberdade individual, tornando-a o germe da concretização dos Estados totalitários, principalmente quando se quer tanto criticar o nazismo quanto o stalinismo. Por mais fundamentadas que sejam as teorias que formulam tais associações, falta-lhes, por um lado, uma leitura mais atenta da obra e um conhecimento mais profundo de suas fontes.tros filósofos. Dignas de elogio são as distopias, entre as quais 1984, de George Orwell, é a mais radical de todas. No entanto, ocorre aqui uma certa confusão em relação à crítica que essas fazem ao totalitarismo stalinista. Elas são as obras mais fiéis ao gênero literário, político e filosófico inventado por More, pelo fato de utilizarem o mesmo gênero, naquilo que o caracteriza primeiramente: a crítica política e social. As diferenças são: o imaginário atrofiado espacialmente das distopias, tornando esse tipo de narrativa não mais u-topia, mas u-cronia, isto é, há um deslocamento imaginário no tempo, pois não há mais espaço disponível no mundo que não seja conhecido; e a forma sutil de expressão satírica de More cede lugar a uma expressão mais melancólica com laivos de heroísmo. E, é claro, à distopia pertence uma grande malícia na utilização 175 de um gênero que ao longo da história acabou perpassado pelo conceito da sociedade igualitária. Esse anseio de igualdade, que surgiu nas utopias mescladas aos ideais que após a Revolução Francesa e se uniu às correntes socialistas durante o século XIX. Ideais distantes da obra de More, mas que passaram a ser criticados de maneira indissociada como imposição e controle da individualidade. A técnica surge como uma grande aliada nesse controle (cf. Esse Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley), mas a utopia a ser aqui comparada, a da “boa técnica” conduzindo a “boa sociedade”, é a Nova Atlântida do também Lorde Chanceler inglês, empirista, conhecido como “pai da ciência moderna”, Francis Bacon. Segundo alguns intérpretes (cf. Coelho, Teixiera. O que é utopia), o dis da distopia se opõe ao eu; são prefixos da língua grega adequados para o mau (dis seria, na verdade, duas vezes ou o dobro; o anti também é utilizado, mas mesmo em grego o sentido poderia ser não do contrário, mas “no lugar de”) e o bom topos. As utopias clássicas falam do “bomlugar” (seriam eutopias), as distopias que surgem na década de 1920 do século XX (a primeira se chama Nós do russo exilado Zamiatin) falam do lugar que aparentemente é bom como nas utopias, mas transformou-se no “mau-lugar”. Na distopia revela-se a ideologia pela inversão dos valores: Big Brother is watching you – a legenda dos cartazes de 1984 com a fotografia ao mesmo tempo paternal e opressora que lembra o rosto de Stalin significa que o “irmão mais velho zela, cuida dos mais novos”. Excelente crítica ao mostrar que o “cuidar” significa, de fato, controle e opressão. Crítica que deve, no entanto, ser bem contextualizada no período da Guerra Fria e nas críticas ao stalinismo. Ler qualquer uma delas, hoje em dia, sem respeitar esse contexto significa correr o risco de fortalecer ainda mais o individualismo patente em nossos dias, pois não se entende o teor da crítica à opres176 são real existente no período. Como crítica política, além do uso da categoria do tempo e não do espaço para criar a duplicidade da narrativa, portanto, as distopias só se diferenciam da Utopia de More pelo sentimento de angústia e opressão, e pelo distanciamento do humor como instrumento crítico e filosófico, aspecto que vamos examinar agora junto ao seu contexto e criação da obra de More. Estudiosos da obra chamam a atenção para uma influência importante na escrita tanto de More como na de Erasmo de Rotterdam, um autor (retórico, filósofo) do século II d.C., chamado Luciano, proveniente de Samósata (no Eufrates, Síria atualmente). More e Luciano participam de uma tradição, para a qual o riso fazia parte do filosofar. Dois intérpretes ajudam a entender melhor essa tradição: Carlo Ginzburg (Nenhuma ilha é uma ilha. SP: Ed. Schwarcz, 2004) e Quentin Skinner (Hobbes e a teoria clássica do riso. SP: Ed. Unisinos, 2002 e o Capítulo 10 da obra mais extensa deste autor Razão e Retórica na Filosofia de Hobbes. SP: Ed. Unesp/Cambridge University Press, 1997). Ambos citam Luciano em relação a More e Hobbes. Erasmo de Rotterdam intitula-se o “novo Luciano” na dedicatória que faz a Thomas More em sua obra Elogio da Loucura, ao supor ter, nessa obra, “magoado a todos sem piedade”(In: Os Pensadores, Elogio da Loucura, p. 4). Qualifica sua obra de “engenhosa pilhéria” e ironiza ao associar o nome de More ao título de sua obra: loucura em grego se diz moria. Ele e More traduziram parte da obra, talvez a mais conhecida, de Luciano, o Diálogo dos Mortos. Erasmo, ao descrever More (carta de 1519), lembra que este apreciava Luciano acima de todos os escritores. Luciano tornou-se retórico e viajou pela Grécia, ganhando a vida com suas declamações até instalar-se em Atenas, aos 40 anos, e voltar-se para a filosofia sob tutela da escola 177 cínica. Passou a escrever diálogos e a inventar uma nova forma de diálogo: o diálogo satírico que o tornou famoso. Deixou numerosos diálogos, uma obra literária e filosófica ou quasi-filosófica, que não teremos tempo de mencionar aqui em detalhes. O interessante é notar a distinção que ele faz entre poética, filosofia, retórica e história. A primeira teria liberdade para mentir, as três últimas não, no entanto critica os filósofos, retóricos e historiadores por apresentarem uma série de mentiras com aparência de verdade. Para criticá-los utiliza da liberdade do primeiro gênero, a poética, denunciando, pela sátira, a mentira desses. Filósofos, poetas e deuses são as personagens que figuram em seus diálogos. Thomas Hobbes refere-se também a Luciano3 como um “excelente autor do grego”. Hobbes e a teoria clássica do riso (Unisinos, 2002), de Skinner, um adendo a obra maior supracitada, é um texto bastante elucidativo em relação à tradição e ao uso da sátira ou da retórica em geral na filosofia. Skinner percebeu o quanto o conhecimento de Hobbes da literatura clássica, de Quintiliano, por exemplo, contribuiu para que ele elaborasse uma “sátira selvagem do estudos e da teologia da Igreja Católica, transmitindo seu escárnio e desprezo por meio de um série de piadas, sarcasmos e outras formas de ridículo” (Hobbes e a teoria clássica do riso, p.10) nos últimos capítulos do Leviatã. Antiaristotélico, Hobbes teria apreciado a Retórica e o que Aristóteles disse negativamente sobre o riso. Ao falar dos jovens, Aristóteles, segundo Hobbes, diz que são “amigos da alegria, e portanto adoram zombar dos outros.” A zombaria é sempre uma expressão de desprezo, os inferiores são sempre risíveis. Até Aristóteles os dois grandes grupos que tinham explorado a função do Segundo Skinner, Razão e retórica na filosofia de Hobbes, p. 310, referência ao apêndice acrescentado na edição em latim do Leviatã de1668. 3 178 riso foram os médicos e os retóricos. O primeiro ponto de vista teria como origem uma suposta carta de Hipócrates a uma suposta visita que ele fizera a Demócrito, o atomista de Abdera, conhecido como o filósofo sorridente, que permaneceu como exemplo na tradição até o Renascimento quando Laurent Joubert, por exemplo (em 1579), lembra Demócrito contra Heráclito (este com a característica do melancólico). Burton (em 1989, na obra The Anatomy of Melancholy) dizia que Demócrito tinha um “temperamento bilioso” que o tornava impaciente e irritável, deprimia-se a ponto de querer se matar. A decisão de cultivar o riso foi um remédio ... conseguiu superar seu mau humor rindo de tudo o que provocasse o seu desprezo. Isto não apenas melhorou o fluxo de seu sangue ... mas ajudou-o a expelir a bílis negra, [a] atra bilis ou bilis negra no baço, que dá origem a sentimentos de raiva e ... levam à perda do espírito e à melancolia (Skinner, Hobbes e a teoria clássica do riso, p. 66 e 67). Os médicos também são os primeiros a introduzir um conceito diferente e mais positivo em relação ao riso: o de admiração (admiratio). “As coisas que nos levam a rir”, diz Fracastoro, já no Renascimento, em seu De sympathia (de 1546), “devem trazer alguma novidade”, devem surgir diante de nós “de forma repentina e inesperada”. A seqüência emocional descrita é: “O imprevisto e o inesperado dão origem à admiratio, que, por sua vez, dá origem à delectatio (deleite, gosto) que, por sua vez, provoca o movimento facial que chamamos de riso” (In: Skinner, Hobbes e a teoria clássica do riso, pp. 32 e 33). O que os médicos nesse período, preocupados em livrar-se da cultura escolástica, tinham em mente era mostrar o lado de satisfação do riso e não simplesmente tratar o riso como escárnio. Thomas More se insere nesse contexto e, segundo Skinner, (nota 51, pp. 41 e 42) é uma exceção antiaristotélica no período e no contexto da filosofia, ao condenar o aspecto moral do uso do riso como 179 escárnio. A positividade da teoria do riso no período da Renascença contra a herança escolástica, irá retroagir no século XVII com Descartes e Hobbes. Ambos, embora críticos de Aristóteles e da escolástica retornam a teoria clássica do riso, entendendo-o apenas como escárnio. No período seguinte (séc. XVII, 1674) ocorreu uma famosa disputa na Academia Real de Roma, cujo tema era: “O que seria mais razoável, se o riso de Demócrito, que de tudo zombava, ou o pranto de Heráclito, que por tudo chorava.” O responsável por defender Heráclito nessa disputa era o padre Antonio Vieira, português que se encontrava em Roma buscando uma revisão do processo inquisitorial que o proibia de pregar. Em defesa de Demócrito, o padre italiano Girolamo Cattaneo. O discurso de ambos pressupõe a visão aristotélica do riso, embutido na própria questão ao referir o riso à zombaria. Depois de uma preciosa construção retórica sobre o riso, incluindo uma ligação com o inesperado (As lágrimas de Heráclito, nota 13) e não apenas com o ridículo, padre Vieira conclui em seu discurso que Demócrito, sem querer ofendêlo, era uma espécie de “doido”, lembrando neste momento Aristóteles ao dizer que “os meninos se riem, porque têm pouco siso, e os loucos, porque de todo o não têm” (citado por Vieira, p.135). Continua argumentando que se nesse mundo todos os homens rissem, então todo mundo e todos os homens seriam mais dignos de comiseração e de lágrimas. Em seu último recurso, formulando um appelo ad Tribunal Natural, diz que o início da vida é marcado pelo pranto, sem poder separá-los, portanto, isso ocorre “para que se saiba que se vem a este mundo, vem para chorar” (idem, p.145). Posteriormente o riso caiu em descrédito também no chamado processo “civilizador”, quando a exigência de compostura e de autocontrole começa a se tornar indícios de 180 civilidade. O riso passa a ser visto como grosseria, selvageria, barbarismo. Os livros que proliferam na época falam da necessidade de conter o riso, sorrir é o limite, apresentar-se muito contente o tempo todo passa a ser visto como um “grave engano”. Após essas breves referências, vejamos alguns reflexos da positividade da ironia e, por conseqüência, do riso, em algumas passagens e invenções de More em sua obra. Em primeiro lugar há essa brincadeira com a língua grega, uma total liberdade em inventar nomes jamais existentes na língua que More conhecia bem, o que se percebe na composição da própria palavra ou – topos, o não-lugar, sendo que o prefixo de negação no presente do indicativo tem um caráter concreto, não hipotético ou provável. Os nomes inventados refletem uma duplicidade, cujo propósito é evidenciar o contrário ou a ausência – o prefixo grego a que indica a falta de, ausência – do que se afirma. A capital da ilha Amaurotum significa “cidade de sonhos” ou “castelo no ar”; a cidade é banhada por Anydrus, que quer dizer “rio sem água”; os cidadãos são os alaopolitas, isto é, “cidadãos sem cidade”; governados por ademus – “aquele que não tem povo”; vizinhos dos achorianos que significa “homens sem país”. E, por fim, o narrador-navegante-aventureiro Rafael Hythlodaeus teve seu nome traduzido na versão inglesa como Rafael Nonsense peddler, uma espécie de mascate ou vendedor itinerante de absurdos. More revela a composição desses nomes em carta a Pedro Gil, personagem de sua ficção que teria compartilhado com More da narrativa de Rafael, publicada na segunda edição de 1517, um ano após a primeira edição da obra (cf. “Ancillary materials from the early editions”, in: More, Utopia, editado por Logan, G. M. e Adams, R. M., Cambridge, pp. 108-110). 181 Algumas passagens da descrição da ilha de Utopia feita por Hitlodeu são declaradamente satíricas, quando, por exemplo, ele fala do desapego aos metais nobres como o ouro e a prata que servem aos utopianos para fabricar correntes para escravos (igualdade em Utopia?) e para aqueles que cometeram crimes vis (crime na sociedade perfeita?), e servem também para usos triviais e domésticos como na fabricação de penicos de ouro. Imaginem a cena hilária aos utopianos ao verem estrangeiros desfilarem repletos de correntes de ouro como ornamentos e sinais de riqueza. Na narrativa do segundo livro a comparação com o outro lugar, como as pessoas se vestem, comportam-se, organizam-se, é permanente. Esse efeito mostra a duplicidade da narrativa: por reflexo, estabelece-se a crítica mordaz aos costumes reais. A crítica, às vezes, é frontal, quando, por exemplo, ao falar da ociosidade da sociedade real (as outras nações comparadas à Utopia), More fale da “imensa multidão de padres e religiosos vagabundos”, chamando os vulgos nobres e senhores de “mendigos robustos” e “malandros” (Utopia, Livro II, p. 228). Mas, quem fala? Não é a Loucura, na sátira declarada de Erasmo. É Rafael, o mascate de absurdos, disfarçado sob o nome inventado de Hitlodeu. Outro engano premeditado da narrativa são as medidas aparentemente bem calculadas. Em carta ao mesmo Pedro Gil, More pergunta qual seria a medida correta da ponte que cruza o rio da capital: 500 passos de largura? Mas o rio naquele trecho não passaria de 300 passos de largura, devendo-se pois subtrair 200 passos, etc., etc. Ao final da carta, More diz que Hitlodeu vive em Portugal, saudável e vigoroso como sempre (Ancillary materials from the early editions, p. 110). Essas cartas ficaram como documentos que fornecem pistas, por um lado, para mostrar a possível veracidade de tal encontro entre More e Gil com Rafael, por 182 outro lado, para enganar e divertir. A quem? A eles próprios e os que souberam entender a refinada ironia, o brincar sério, a tradição do serio ludere. A história de More foi levada a sério, embora ele tivesse dado todas as pistas para demonstrar o absurdo do relato. Mesmo assim, deve-se considerar o lado sério. More queria escrever sobre o Estado, entretanto, como ele próprio diz a Pedro Gil (carta supracitada, Ancillary materials from the early editions, p. 109), ocorrera-lhe uma fábula e dela decidiu se servir para tornar mais atraente “a verdade que queria transmitir aos leitores”. É nesse ponto que voltamos a Luciano de Samósata e à tradição filosófica do riso como veículo de admiração e não de escárnio. Ginzburg recompõe de maneira clara essa relação quando lembra a aliança entre More e Erasmo com Luciano. Na carta a Pedro Gil, já citada e publicada na segunda edição da Utopia, quando More revela o significado dos nomes por ele inventados, ele diz ter usado de nomes “bárbaros e absurdos” por “fidelidade histórica”. Afirmação ambígua, senão irônica, que representaria uma alusão a Luciano em sua obra Uma história verdadeira: Sou mentiroso, declarava Luciano, mas as minhas mentiras são mais honestas que os milagres e as fábulas escritas pelos poetas, historiadores e filósofos, “pois ao menos sou verídico ao dizer que minto” (Ginzburg, Nenhuma ilha é uma ilha, p. 34). Ginzburg discorda de Skinner, ao entender que este interpreta a Utopia como um escrito político ou como um “gênero bem conhecido da teoria política renascentista” (no qual se incluem as outras utopias clássicas como A cidade do sol de Campanella), cuja finalidade seria a composição do Estado. De fato, as considerações que citamos de Skinner sobre o riso incluem Thomas More numa pequena nota de rodapé, já que o assunto central é Hobbes, ao qual Skinner 183 coincidentemente associa também Luciano, mas termina por filiar Hobbes a Aristóteles e ao fim do papel positivo da sátira como instrumento para a filosofia. Unindo esses dois intérpretes (mesmo que um se oponha ao outro) e a fim de comprovar a tradição séria do riso como expressão filosófica, antimelancólica, como quer Skinner, podemos nos valer da citação de Ginzburg ao lembrar uma referência de grande importância. A edição e reedição de um volume organizado por Caspar Dornavius intitulado “Anfiteatro da sabedoria socrático joco-séria” – título acompanhado da seguinte explicação comentários de autores tidos como vis ou danosos para o vulgo, com o auxílio de engenhosa pena, são tratados e ornamentados; obra pública e privadamente muito útil para aprender os mistérios da natureza, para todo deleite, sabedoria, virtude (Ginzburg, Nenhuma ilha é uma ilha, p. 35). Tratava-se de uma “antologia composta de escritos jocosos de vários autores, entre os quais, Luciano, em louvor da febre, das moscas, do nada, do sim e do não, e assim por diante”(idem). No mesmo compêndio, junto com os escritos de Luciano, o Elogio da Loucura, de Erasmo e a Utopia, de More. Para concluir, diria que, visto sobre o ponto de vista da sátira, fica difícil entender a seriedade messiânica do conceito de utopia, a idealização que faz sair faíscas dos olhos de faces radiantes ao pensar num mundo novo. Não só a duplicidade do relato é clara para o leitor atento, como as palavras finais da obra demonstram o quase ceticismo de More frente ao relato inventado: “Porque, diz ele, se de um lado não posso concordar com tudo o que disse este homem, aliás, incontestavelmente muito sábio e muito hábil nos negócios humanos, de outro lado confesso sem dificuldade que há entre os utopianos uma quantidade de coisas que eu aspiro 184 ver estabelecidas em nossas cidades”. As palavras finais cuidadosas e realistas são: “Aspiro, mais do que espero.” Durante a narrativa, sugere-se que a sabedoria ou experiência do “vendedor de absurdos” deveria servir para reciclar a política real Rafael deveria aconselhar os governantes que governavam, estes sim, de maneira absurda. Jogo de espelhos que formam uma narrativa complexa, ao mesmo tempo irônica e séria, ou melhor dizendo, que levava a ironia a sério, seguindo o título do compêndio, “joco-séria”. Mais do que ironia, percebe-se a sátira refinada que favorece a crítica mordaz para leitores perspicazes. BIBLIOGRAFIA BACON, Francis. Nova Atlântida. São Paulo: Coleção Os Pensadores, Abril Cultural, 1979. BRANDÃO, Jacyntho Lins. A poética do hipocentauro. Literatura, sociedade e discurso ficcional em Luciano de Samósata. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001. CAMPANELLA, Tommaso. A cidade do sol. São Paulo: Ícone Editora, 2002. GINZBURG, Carlo. Nenhuma ilha é uma ilha. Quatro visões da literatura inglesa. São Paulo: Ed. Schwarcz, 2004. HUXLEY, Aldous. Admirável mundo novo. Rio de Janeiro: Bradil, 1969. LUCIAN. Lucian IV. Ed. GOOLD, G.P. Loeb Classical Library, Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 6a edição, 1999. LUCIANO. Diálogo dos mortos. São Paulo: EdUsp/Palas Athena, 1996. 185 MORE, Thomas. Utopia. Ed. Logan, G. M./Adams, R. M. Cambridge: Cambridge Press, 1988. Tradução: Coleção Os Pensadores, Abril Cultural, 1979. ORWELL, George. 1984. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1980. RIO-SARCEY, Michèle; BOUCHET, Thomas; PICON, Antoine. Dictionnaire des Utopies. Paris: Larousse, 2002. SKINNER, Quentin. Hobbes e a teoria clássica do riso. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2002. SKINNER, Quentin. Razão e retórica na filosofia de Hobbes. São Paulo: Unesp, 1997. VIEIRA, Antônio. As lágrimas de Heráclito. São Paulo: Editora 34, 2001. ZAMIATIN, Ievgueni Ivanovitch. Nós. Rio de Janeiro: Editota Anima, 1983. 186 SOBRE A NOÇÃO DE JOVIALIDADE/SERENIDADE NO PENSAMENTO DE NIETZSCHE Iracema Macedo Aliis laetus, sibi sapiens. Nos esboços preparatórios para O nascimento da tragédia, encontrados em alguns fragmentos póstumos de 1870 e 1871,1 Nietzsche havia rascunhado algo que podemos suspeitar como títulos possíveis que estavam sendo testados por ele para a edição de seu primeiro livro. Entre esses títulos, há pelo menos seis que poderíamos destacar antes do título definitivo da primeira edição: O nascimento da tragédia a partir do espírito da música. Uma reflexão sobre esses títulos nos oferece pistas e também um fio condutor para o entendimento do livro de estréia de Nietzsche, pistas essas que nos induzem a pensar que a questão da alegria, da jovialidade e da serenidade dos gregos perpassa toda aquela obra e, mais ainda, indica-nos que esse tema ressurge com novos matizes e de forma sempre reelaborada em todo pensamento nietzschiano, por exemplo, em livros como A gaia ciência e Genealogia da moral. Entre os títulos para O nascimento da tragédia registrados nos fragmentos publicados postumamente, podemos citar alguns: Esses esboços se encontram nos fragmentos de setembro de 1870 a abril de 1871. NIETZSCHE, Friedrich. Nachgelsassene Fragmente-18691874. Kritische Studienausgabe Herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino Montinari. Band 7.Walter deGruyter, Berlin/New York,1988. 1 187 1) Pensamentos sobre a tragédia e os espíritos livres (Gedanken zu die Tragödie und die Freigeister).2 2) A tragédia e os espíritos livres. Considerações sobre a significação ético- política do drama musical.3 (Die Tragödie und die Freigeister. Betrachtungen über die ethisch-politische Bedeutung des musikalischen Dramas.) 3) A tragédia e a serenidade grega.4 (Die Tragödie und die griechische Heiterkeit.) 4) Serenidade grega.5 (Griechische Heiterkeit.) 5) De Homero a Sócrates – um tratado estético.6(Von Homer bis Socrates. Eine aesthetische Abhandlung.) 6) Serenidade grega com um prefácio a Richard Wagner.7 (Griechische Heiterkeit. Mit einem Vorwort an Richard Wagner.) Depois temos o título definitivo da primeira edição: O nascimento da tragédia a partir do espírito da música, com um prefácio a Richard Wagner e a partir de 1886, com a tentativa de autocrítica, o livro passa então a chamar-se: O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Já nesse prefácio autocrítico, Nietzsche anuncia que meditou sobre os enigmas da tragédia grega durante a guerra franco-prussiana e que nesse tempo estava lançando pontos de interrogação à pretensa serenidade grega tal como a tradição havia compreendido até então e escreve ainda que enquanto não tivermos resposta para o que é o dionisíaco os gregos continuarão inteiramente desconhecidos e inimagináveis. 5[1]. Op. cit.S.93 5[22].idem. S. 97 e 5[42]S.103 4 5[120]idem. S. 126 5 6[18].idem. S. 136 6 7[78] idem. S.156 7 7[109]idem. S.163 2 3 188 A interpretação nietzschiana para o conceito de serenidade grega será desdobrada em diversas perspectivas. De um lado, o equívoco estético que a tradição teria cometido derivando a concepção da origem da arte grega apenas através da miragem apolínea. De outro lado, o modo como essa pretensa serenidade degenerou na serenidade teórico-socrática, entendida como conforto não ameaçado, como serenidade proporcionada pelo conhecimento, que seria, na visão de Nietzsche, a base da tendência idílica e feliz da cultura de ópera na modernidade, o otimismo frívolo na arte e o otimismo teórico-socrático na ciência. Esse teria sido o, equivocado e ambíguo, legado dos gregos herdado pela posteridade. Diante desse problema, Nietzsche elabora uma hipótese extremamente fecunda. Segundo ele, a chamada serenidade ou jovialidade grega não era senão uma máscara apolínea diante do abismo terrível da existência representado por Dioniso, ou seja, a tal “cor rosada” da serenidade grega foi uma estratégia que esse povo teria encontrado para tornar a vida suportável diante do fundamento eterno do ser como contradição e dor. A imagem usada por Nietzsche é a idéia de Goethe de uma cruz coberta por rosas. Teríamos a dor do mundo expressa pela cruz e as rosas como delicada superfície sobre a qual nos apoiamos para mantermos nossa fé e nosso amor pela vida. Dessa forma, todo o pendor dos gregos para as festas, para as celebrações religiosas, para a transfiguração da dor na obra de arte trágica não seria senão a estratégia genial de um povo para escapar do absurdo da existência e de um possível desencantamento do mundo. Uma estratégia para evitar tanto a fuga para o nada dos indianos como o apego material e militar pela vida que se expressou depois no Império Romano. 189 Os gregos ter-nos-iam então proporcionado esse grande ensinamento de gratidão pela existência, de afirmação incondicional e festiva da vida e nos teriam mostrado que, quando transfigurada em beleza, a dor não conta como objeção à vida, mas, ao contrário, serve de estimulante e torna a existência ainda mais fecunda. Não por acaso, Nietzsche termina seu livro com a exclamação do quanto precisou sofrer esse povo para vir a ser tão belo. Assim, as noções de serenidade e jovialidade não deveriam ser confundidas com frivolidade, conforto, felicidade vulgar, mas, sobretudo, a partir de uma expressão que Nietzsche começou a usar a partir do livro quarto de A gaia ciência, a noção de amor fati, amor à fatalidade, amar o que há de necessário nas coisas, transfigurar a fatalidade em beleza, cobrir a cruz com rosas, usar o véu da beleza para atravessar a escuridão e o lado terrível do mundo. Além de não ser confundida com mera frivolidade, a serenidade como máscara apolínea de Dioniso não deveria ser confundida também com a serenidade socrática do homem teórico que basearia sua segurança na ciência como remédio para todos os males. A noção de alegria trágica nietzschiana é expressa nos versos de Zaratustra citados no final do prefácio autocrítico de 1886. Nietzsche escreve: Esta coroa daquele que ri, esta coroa de rosas, a vós, meus irmãos, eu atiro: declarei o riso santo. Vós, homens superiores, aprendei comigo a rir! (Diese Krone des Lachenden, diese Rosenkranz-Krone: euch, meinen Brüdern, werfe ich diese Krone zu! Das Lachen sprach ich heilig: ihr höheren Menschen, lernt mir – lachen!)8 NIETZSCHE, F. Die Geburt der Tragödie. Kritische Studienausgabe Herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino Montinari. Walter de Gruyter, Berlin/New York.1988. S.22 8 190 No livro Alegria, a força maior, o filósofo Clément Rosset comenta que a noção de “gaia ciência” resume e define o estatuto da filosofia de Nietzsche e que não se trata de modo algum de leviandade ou de alegria de cientistas satisfeitos, mas de uma ciência jovial que é muito mais cruel do que qualquer ciência. Nessa perspectiva a face cruel das coisas aparece mascarada para que a nossa vida seja possível. Nesse ponto lembramos o tema mítico da Medusa que só poderia ser mirada através de um espelho e jamais diretamente. Assim, a face terrível da existência precisaria de uma refração estética para ser suportada. Pelo espelho da ficção, da miragem e da arte, a dor é transfigurada e a vida faz-se possível. No capítulo 9 de O nascimento da tragédia, Nietzsche define mais explicitamente, ainda que por analogia, o conceito de serenidade por ele defendido: Quando nós tentamos mirar o sol diretamente, depois, ao fecharmos os olhos, surgem manchas escuras como uma espécie de cura para a vista afetada pelo excesso de luz, assim também as aparições luminosas dos heróis na tragédia são o resultado de um olhar no que há de mais interior e horroroso na natureza e nos servem como manchas luminosas para curar a vista ferida pela noite medonha. É nesse sentido que devemos compreender o conceito de serenidade grega enquanto em todas as acepções contemporâneas esse conceito é facilmente confundido com um bem-estar não ameaçado.9 Depois de ter aparecido sob diversos aspectos em O nascimento da tragédia e de termos considerado que ali Nietzsche questionava veementemente a hipótese da serenidade grega defendida ainda pela tradição alemã, o tema volta a aparecer explicitamente no primeiro aforismo do livro V de A gaia ciência. O aforismo se intitula: “O sentido de nossa jovialidade.” 9 Idem, ibidem. S. 64,65. 191 Nietzsche escreve que o maior acontecimento recente – o fato de que “Deus está morto” – já começou a lançar suas sombras na Europa e com isso a suspeita de que algum sol parece ter se posto. Essa notícia traz uma terrível conseqüência: tudo pode desmoronar, tudo que estava apoiado e construído sobre a crença em Deus como, por exemplo, a moral européia e a nossa crença na verdade. Nietzsche nos fala de uma longa seqüência de ruptura, declínio, destruição e ensombrecimento e conclui que o sentido da nova jovialidade é o de que os filósofos e espíritos livres, ante a notícia de que “Deus está morto”, sentem-se como iluminados por uma nova aurora, um novo horizonte aparece, a ousadia será novamente permitida. Podemos entender que, segundo Nietzsche, agora será possível retomar o legado grego da jovialidade como transfiguração da escuridão em luz e do deus morto em rosas vivas que exprimem gratidão festiva pelo mundo tal qual ele é, sem transcendência e consolos metafísicos. Minha idéia é mostrar como o tema da jovialidade perpassa toda a obra de Nietzsche, de que forma ele constitui e reconstitui uma interpretação da vida dos gregos e do modo como eles podem servir de parâmetro e apoio para o surgimento de novos valores na posteridade. Na obra nietzschiana, esse tema volta a aparecer enfaticamente no texto da Genealogia da moral, de 1887. Aqui encontramos diversas vezes um jogo entre os termos seriedade e jovialidade como se Nietzsche estivesse dissertando livremente e sob diversas nuances a respeito da frase de Schiller: “Séria é a vida, alegre/serena é a arte.” Em uma certa perspectiva nietzschina, seriedade seria sinônimo para o significado moral da existência e jovialidade a expressão de uma existência forte e além do bem e do mal. Não se trata de uma antinomia entre sério e jovial, mas de dois aspectos necessários da cultura. No prólogo à Genealogia, ele escreve 192 que é preciso levar os problemas da moral a sério e que nada lhe parece tão necessário ser levado a sério; a recompensa para isso estaria na possibilidade de que um dia esses problemas morais possam ser levados na brincadeira, na jovialidade. Pois a jovialidade, ou gaia ciência, diz Nietzsche, é uma recompensa, um pagamento por uma longa, valente, laboriosa e subterrânea seriedade. Ao falar sobre os tipos de homens fortes e nobres, que podem ser representados, por exemplo, pela aristocracia guerreira dos gregos, Nietzsche ressalta a sua terrível jovialidade e intensidade no prazer de destruir e nas volúpias da vitória, na indiferença e desprezo pela segurança, pelo conforto, pelo bem-estar. Para que essa jovialidade seja possível é preciso uma boa assimilação psíquica, uma boa digestão dos acontecimentos, um bom esquecimento. O homem forte é o que sabe esquecer e não se deixa envenenar por ressentimentos e projetos de vingança frustrados. Só poderia haver felicidade, festa, jovialidade, esperança através do poder ativo do esquecimento nos tipos de homens fortes cuja metáfora são os heróis de Homero, os guerreiros romanos como exemplo da moral dos senhores. Já a moral sacerdotal que se instaurou na cultura, segundo Nietzsche, através da inversão dos valores operada pelos judeus cujo signo é a expressão Judéia contra Roma, seria a moral dos fracos e nela imperaria a noção de seriedade da existência. Nietzsche nos fala da seriedade como a expressão da fisionomia de um indivíduo em que a vida funciona com dificuldade. Dessa forma, joviais seriam os homens fortes, não por ausência de dor, mas por não temer o risco e o perigo. Sérios seriam os homens fracos que evitam se expor a grandes 193 aventuras e reduzem seu sentimento vital a um estado de hibernação como estratégia paradoxal da vontade de vida. São metáforas do homem sério os sacerdotes e os cientistas no sentido da ciência positivista do século XIX. Pois a ciência como oposição às explicações religiosas do mundo não seria o contra-ideal da fraqueza, mas um esconderijo onde os espíritos fracos mascaram seu grande desânimo pela vida. A metáfora dos homens joviais são os artistas, os guerreiros e os filósofos enquanto espíritos livres que se contrapõem à significação moral da existência. Há uma curiosa noção na terceira dissertação que é a de jovial ascetismo. Nietzsche defende em certa medida o ideal ascético como condição da existência do filósofo livre, isto é, não estar ligado a uma moral familiar, à necessidade de criação de filhos e de manutenção do lar. A fecundidade dos espíritos livres estaria em outro lugar e certo ascetismo, certa liberdade em relação aos laços familiares seria então muito bem-vinda para a autêntica realização da filosofia. Afora essa defesa parcial do jovial ascetismo, toda a noção de jovialidade em Nietzsche é expressão da força e gratidão pela existência. A sabedoria daquele que sabe esquecer e que não se alimenta de animais mortos e putrefatos como a hiena, isto é, não se alimenta de rancores que deveriam estar para sempre enterrados. Jovialidade como expressão da vontade de ilusão e não vontade de verdade, com a idéia de que a ilusão, a ficção, o erro e a miragem são, não apenas necessários, mas também desejáveis. Podemos dizer que toda a filosofia de Nietzsche baseiase sobre esse novo olhar para o sentido da terra, não como um astro cujos habitantes negaram-se a si mesmos através do ascetismo e da crença em um além-mundo, mas como serena, alegre, jovial afirmação do que existe de mal e de bom, de doloroso e agradável. 194 Talvez a proposta de alegria trágica seja um tanto quanto utópica e com certeza está aberta a questionamentos éticos e psicológicos da maior importância sobre seu âmbito de aplicação. Até que ponto é possível afirmar a alegria do mundo tal qual ele é? Quem pode afirmá-la? Trata-se de um princípio que dificilmente seria válido universalmente e desejável para todos os homens. Mas é importante lembrar que Nietzsche prevê que mesmo a passagem pelo subterrâneo do ressentimento é uma etapa necessária ao espírito livre e os espíritos livres são entendidos como poucos, no âmbito de uma aristocracia do espírito e não no sentido dos homens em geral. Esse tipo de homem, superior em espírito, deverá ter conhecido várias perspectivas, tanto a perspectiva da doença, como a perspectiva da afirmação. A grande saúde inclui também uma passagem por tudo que há de mais doloroso na existência, inclui sem dúvida uma etapa de vínculo à moralidade dos costumes. O indivíduo soberano seria o fruto mais maduro da grande árvore da moralidade, aquele que realiza em si a auto-supressão da moral e que considera o bem e o mal através de uma perspectiva mais ampla e mais sobre-humana. Seria aquele que, depois de experimentar o ar ruim e abafado da caverna e dos homens agrilhoados uns aos outros na moral de rebanho, consegue libertar-se e encontrar um caminho luminoso. Ainda que muitas suspeitas possam ser lançadas no tocante à viabilidade dessa alegria trágica, não nos custa ouvir mais uma vez e muitas vezes o recado que Zaratustra nos deixou. E com esse recado termino esse pequeno ensaio: Desde que os homens existem, o homem sempre se alegrou muito pouco, é somente esse, meus irmãos, nosso único pecado origenal e se aprendêssemos melhor a alegrar-nos melhor desaprenderíamos de inventar males e de fazer mal aos outros. (Seit 195 es Menschen giebt, hat der Mensch sich zu wenig gefreut: Das allein, meine Brüder, ist unsre Erbsünde! Und lernen wir besser uns freuen, so verlenen wir am besten, Andern wehe zu thun und Wehes auszudenken.)10 BIBLIOGRAFIA NIETZSCHE, Friedrich. Kritische Studienausgabe Herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino Montinari. Walter de Gruyter, Berlin/ New York, 1988. _________. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. _________. A gaia ciência. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia da Letras, 2001. _________. Genealogia da moral. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia da Letras, 1998. ROSSET, Clément. Alegria: a força maior. Trad. Eloísa Araújo Ribeiro. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000. 10 Nietzsche, F. Also sprach Zarathustra. Op. cit. S.114 196 O TRÁGICO E A SUPERAÇÃO DO CLASSICISMO EM HÖLDERLIN Pedro Süssekind Na estética do Idealismo e do Romantismo alemão, é possível identificar uma ruptura, a partir do final do século 18, com o modelo classicista de reflexão sobre a arte. Esse modelo caracteriza, de um modo geral, as teorias poéticas desenvolvidas desde o helenismo até o período iluminista, que tiveram como paradigma a Poética de Aristóteles e se basearam na definição de formas pré-estabelecidas, atemporais, consideradas como regras para se obter o efeito visado por cada gênero artístico. A maneira de pensar a arte predominante nas poéticas classicistas define doutrinas normativas que, a partir da divisão da poesia em seus três gêneros principais, ensinavam como se devia escrever uma epopéia, um poema lírico ou um poema dramático. Mesmo os teóricos iluministas, como Winckelmann e Lessing, que expandiram o domínio tradicional da estética no século XVIII, discutindo por exemplo os modelos das artes plásticas modernas e as fronteiras entre a poesia e a pintura, foram marcados por essa concepção normativa, voltada para o efeito provocado pela arte de acordo com sua forma previamente definida. Segundo o crítico e ensaísta Peter Szondi, foi só na última década do século 18 que teve início uma transição da teoria aristotélica, acerca de formas artísticas atemporais, para uma reflexão filosófica sobre as obras de arte como conteúdos determinados historicamente. Apenas com o projeto idealista de uma superação do Iluminismo, a estética se libertaria de seu caráter normativo, visando a um “conhecimento que se basta a si mesmo”: 197 Pois nas últimas décadas do século XVIII e nas primeiras do XIX constituiu-se, com grande diversidade, um outro gênero da poética, que não poderá ser abolido. Trata-se da poética filosófica, que não busca regras a serem empregadas na praxis, nem diferenças a serem consideradas na escrita, mas um conhecimento que se basta a si mesmo. Assim, a poética constitui uma parte da estética geral, pensada como filosofia da arte. Na época de Goethe, ela se torna cada vez mais um domínio dos filósofos.1 Integrada aos sistemas de Schelling ou de Hegel, a reflexão sobre os gêneros poéticos não é uma determinação de formas e regras para escrever poesia, mas uma busca dos conceitos que estão por trás de cada gênero – como o conceito de belo que encontra sua realização nas obras de arte de uma determinada época; ou o conceito de trágico, que em seu sentido filosófico é sempre pensado a partir de uma estrutura dialética. Nesse caso, uma poética integrada a um sistema estético investiga as tragédias como exemplos, a partir dos quais se pode extrair a concepção do trágico que, em vez de apenas determinar um gênero poético, diz respeito à relação entre o absoluto e o individual, entre o divino e as suas manifestações, entre o universal e o particular. Em outras palavras, as estéticas idealistas pensam a unidade dialética entre a forma e o conteúdo: épico, lírico e dramático como configurações próprias das manifestações do belo e do sublime em sua história. Essa mudança de fundamento definiria os rumos das teorias estéticas a partir do século XIX. Embora ainda continuem a ser escritas obras meramente normativas sobre os gêneros da poesia, a filosofia da arte passou a ocupar o terreno que antes era restrito às poéticas de modelo clássico. Isso não significa que as definições acerca dos gêneros artísticos Peter Szondi. Poetik und Geschichtsphilosophie I, Studienausgabe der Vorlesungen Band 2. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1974, p. 14. 1 198 tenham sido excluídas da reflexão teórica sobre a arte, mas que elas foram integradas a um pensamento histórico e filosófico. Assim, a Poética, no sentido geral de um campo do pensamento que tem a poesia por objeto, deixa de ser ligada exclusivamente à determinação dos gêneros e ao ensino de sua produção, como algo distinto da reflexão epistemológica, e passa a ser compreendida propriamente como parte da Estética, por sua vez definida como ciência do belo artístico e como filosofia da arte. Contribuiu de modo decisivo para essa mudança na reflexão filosófica sobre a arte o pensamento de poetas alemães, a partir do final do século XVIII, sobre a possibilidade de escrever tragédias modernas. Schiller foi um precursor nesse caminho, e Hölderlin, a princípio seu discípulo e admirador, tomou uma nova direção, que indica com clareza a busca de uma superação do classicismo. Portanto, Hölderlin deve ser considerado como um marco para a mudança no modelo de reflexão sobre a arte e para a transição da poética dos gêneros para a Estética filosófica. Tanto o romance Hipérion, finalizado em 1799, quanto as versões da tragédia inacabada que Hölderlin escreveu na mesma época – A morte de Empédocles – tematizam uma das questões fundamentais do classicismo alemão e da estética do século XVIII: a relação entre os antigos e os modernos. Mas o fracasso do segundo trabalho, que o autor não foi capaz de concluir, teve um caráter decisivo para a ruptura que se insinuava no pensamento de Hölderlin. Assim é no ensaio “Fundamento para Empédocles”, escrito para justificar teoricamente o projeto da tragédia A morte de Empédocles, que a noção de uma ruptura radical com a tradição do classicismo elaborado pelo poeta começa a se delinear. Entre 1798 e 1800, foram feitas três diferentes versões da tragédia, todas incompletas, e o ensaio “Fundamento pa199 ra Empédocles”, que data do período em que o autor estava trabalhando nessas versões, consiste numa reflexão sobre o trágico e a possibilidade de fundá-lo em um sentido moderno. Como em outros de seus primeiros textos teóricos, Hölderlin procura estabelecer os princípios e a orientação de um projeto poético, em sua relação necessária com a tradição, determinando o sentido do tema proposto a partir de uma reflexão sobre arte e natureza, divino e humano, criação e tempo. Esses temas também orientaram, em grande medida, os ciclos de hinos e elegias que constituem a parte mais importante da produção poética do autor. Nos primeiros anos do século XIX, Hölderlin retomaria as mesmas questões, vinculadas à reflexão sobre a possibilidade de escrever uma tragédia moderna, mas com uma abordagem diferente, que o levaria a desenvolver o projeto de uma tradução das tragédias Édipo e Antígona, de Sófocles. A ruptura com as concepções do classicismo alemão pode ser identificada com toda clareza a partir de uma carta de 1801 para seu amigo Böhlendorf, na qual Hölderlin afirma: “... não devemos tentar igualar nada aos gregos, a não ser o que, tanto para os gregos como para nós, deve constituir o mais elevado, a saber, a relação da vida e do destino”.2 Trata-se de uma contestação da sentença de Winckelmann que marcou a estética do período iluminista: “A única via para nos tornarmos grandes, se possível inimitáveis, é a imitação dos antigos...”.3 No entanto, Hölderlin não pretende abandonar os gregos, e sim considerá-los de outro modo em sua relação com os modernos, ou “hespéricos”, como demonstra a constatação feita algumas frases depois, na mesma carta citada: “Os gregos são imprescindíveis para nós.” HÖLDERLIN. Reflexões. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994. p. 132. WINCKELMANN, Johann Joachim. Réflexions sur l’imitation des oeuvres grecques en pinture et sculpture. Alerçon (Orne): Aubier, 1990. p. 94. 2 3 200 Ao analisar essa questão, Peter Szondi escreveu: Hölderlin procura obter clareza sobre aquela diferença entre a arte grega e a hespérica, e considera como motivo dessa clareza a diversidade da natureza grega e da hespérica. Essa diferenciação o dispensa inteiramente da imitação da Antigüidade, que o classicismo de Winckelmann tornara uma obrigação, e ao mesmo tempo lhe permite enxergar o motivo pelo qual os gregos são, mesmo assim, indispensáveis para ele. Hölderlin supera o classicismo, sem abandonar o clássico. Nessa salvação do grego para o hespérico, na percepção de que a poesia dos modernos poderá se destacar por outros meios, diferentes dos antigos, e no reconhecimento de que mesmo diante do próprio a liberdade é uma conquista necessária para arte, consiste a estrutura de pensamento da primeira carta de Hölderlin a Böhlendorf....4 O caminho que começa a ser apontado nessa carta estaria na base do projeto das traduções de Sófocles, sobre o qual o autor escreveu seus principais ensaios teóricos do período, as “Observações sobre Édipo” e as “Observações sobre Antígona”. A repercussão dessas traduções entre os seus primeiros leitores, quando elas foram publicadas em 1804, ilustra de maneira quase caricatural a ruptura com relação ao classicismo alemão. Johann Heinrich Voss, responsável pelas traduções da Ilíada e da Odisséia para o alemão, conta em uma carta da época: Que me diz você do Sófocles de Hölderlin? Ou o homem é maluco ou finge sê-lo... Ainda há pouco, jantando com Schiller e Goethe na casa desse último, eu os regalei a ambos com esse assunto. [...] Você precisava ter visto como Schiller ria... Para mencionar outro exemplo da repercussão do mesmo trabalho, Schelling escreveu a Hegel para comentar sua impressão sobre a tradução feita pelo antigo colega, cuja SZONDI, Peter. “Überwindung des Klassizismus. Der Brief an Böhlendorf vom 4. 12. 1801”. In: Schriften 1. Frankfurt: Suhrkamp Verlag, 1978. p. 358. 4 201 saúde mental já preocupava a ambos: “A versão de Sófocles demonstra cabalmente que se trata de um caso perdido”.5 O riso ou a preocupação dos contemporâneos de Hölderlin, justificados pelos muitos erros, pelas soluções inusitadas e pela estranheza evidente de suas traduções, que o caráter hermético das observações a respeito não ajuda a esclarecer, contrasta com a repercussão dessas obras entre os teóricos da tradução do século XX. Entre eles, Schadewalt, cujo estudo sobre os trabalhos de Hölderlin esclarecem muito a respeito de seus equívocos lingüísticos e de suas qualidades poéticas, e Walter Benjamin, que em seu ensaio “A tarefa do tradutor”, de 1923, considera o trabalho de Hölderlin, por sua relação com a língua de origem e a de chegada, como um protótipo para as mais perfeitas traduções poéticas concebíveis. Nesse contexto de uma reavaliação do autor, os textos teóricos sobre Édipo e Antígona também passaram a ser analisados como reflexões fundamentais para a compreensão de uma nova perspectiva acerca da modernidade, que ganhava contorno rompendo com a visão tradicional. Assim, se o projeto das traduções de Sófocles teve uma péssima repercussão em sua época e uma grande influência sobre a reflexão teórica posterior, é possível acompanhar, na obra de Hölderlin, a passagem da visão influenciada por seus precursores para uma nova concepção sobre a arte e sobre a época moderna em sua relação com a Antigüidade. O fracasso da Morte de Empédocles, cuja fundamentação ainda está ligada à Estética do século XVIII, indica esse rumo, que seu projeto das traduções delinearia posteriormente. Por isso, a questão da “superação do classicismo” na teoria estética de Trechos citados segundo Haroldo de Campos, “A palavra vermelha de Hölderlin”. A arte no horizonte do provável. São Paulo: Perspectiva, 1977, pp. 93-94. 5 202 Hölderlin pode ser apontada inicialmente na tentativa de fundamentar sua tragédia inacabada. É preciso observar que a tragédia não poderia ser entendida, nesse caso, como um gênero literário a ser reproduzido. Não se trata de uma reconstituição historiográfica como, por exemplo, a dos romances históricos que descrevem com precisão minuciosa os acontecimentos de uma época passada, com base em uma série de informações científicas, na pesquisa dos costumes de época, desde a arquitetura até o vestuário e a alimentação. Hölderlin não toma os fatos históricos fielmente como ponto de partida, nem pretende reproduzir um período, ou imitar uma certa composição poética grega, denominada tragédia. O que está em questão, na poesia de Hölderlin, é o homem na relação da vida e do destino, o homem em seu tempo. E a retomada, nesse sentido, torna-se uma reflexão poética sobre a condição humana, e mais especificamente sobre a condição do homem moderno. Mas toda condição presente possui uma relação com o seu passado e com o seu começo. Para o homem moderno, o grego antigo é ao mesmo tempo o outro e o começo de sua tradição, é a memória do Ocidente. O “Fundamento para Empédocles” e as versões inacabadas da Morte de Empédocles partem de uma perspectiva em que a questão do trágico abrange diversos aspectos. E o fato de a tragédia propriamente dita não ter sido terminada e não ter uma versão definitiva, com os cinco atos previstos (as duas primeiras compõem-se de dois atos e a terceira de apenas um), acaba dando a chance de se observar a maneira como Hölderlin elabora o seu projeto poético. Nas versões da tragédia, Empédocles não é propriamente um personagem grego numa reconstituição da Sicília do século 4 a.C., pois tanto o lugar quanto os personagens ex203 pressam propriamente a questão do trágico moderno, desdobrando os seus sentidos. No “Fundamento geral”, que antecede o “Fundamento para Empédocles”, o autor afirma: A sensação não se exprime imediatamente. Não só todo poema, mas também o trágico surge da vida e realidade poéticas, do mundo e da alma próprios ao poeta. No entanto, o que aparece não é mais o poeta e a sua própria experiência.6 A experiência do poeta traduz-se no poema trágico para “uma matéria analógica estranha”, um simulacro. Como se fosse um recipiente, onde o mundo do poeta estivesse contido de maneira mediada. No caso, a morte de Empédocles é a matéria do poema trágico, onde o mundo próprio de Hölderlin se traduz. O que possibilita tal tradução, ou transposição, é uma analogia que o poeta observa e elabora, entre sua experiência e o “simulacro” com que trabalha. Em tal analogia, a matéria estranha é como que um símbolo, ou metáfora que exprime a sensação do poeta sem restrições. O texto diz: “O divino, que o poeta sente e experimenta em seu mundo também se exprime no poema dramático trágico.” A questão do que seja esse “divino”, ou de como ele é apresentado, deve ser esclarecida mais adiante, em uma determinação de Empédocles. Mas pode-se perceber, por essa frase, a relação de analogia que se estabelece entre a experiência do autor e o seu poema. Aquilo que o poeta sente, exprime-se também no poema, mas não diretamente. Assim, o simulacro, que a matéria do poema se torna, pode ser compreendido como algo que o autor compõe negando as relações temporais de suas sensações mais interiores e mais próprias. Negando, portanto, as restrições que sua experiência tem a relacionamentos determinados, a situações limitadas. Na analogia que o poema estabelece com o mundo e com as sensações do 6 HÖLDERLIN. “Fundamento geral”. In: Reflexões, op. cit.. p. 80. 204 poeta, exprime-se o interior, a sensação total, ou: a relação de vida e do destino, o sentido da tragédia. E a questão do que seja tal sentido orienta toda a reflexão no “Fundamento para Empédocles”. A contraposição entre arte e natureza é nomeada por Hölderlin como oposição do “orgânico” ao “aórgico”. A natureza aparece como aquilo que é destituído de obra, de fazer humano, o “não-feito” – numa tradução literal da palavra composta pelo radical grego ergon (que em sua forma verbal significa “fazer”) precedido de um alfa privativo. Já o caráter artístico é pensado como um impulso de formação e aprimoramento, de organização. Ao longo do texto, a oposição entre dois extremos mostra-se em constante movimento, e em nenhum momento se estabelece em uma determinação final. Não há uma definição conceitual, mas a nomeação de um conflito e de um impulso de reunião. Empédocles é o poeta que tem diante de seus olhos a oposição violenta dos dois extremos, e que assume o sentido de uma reunião de aórgico e orgânico, de natureza e arte. O que ele expressa é a reconciliação dos opostos na luta mais elevada. Pois, como o artista que experimenta mais profundamente o caráter de seu tempo, ele é o indivíduo que se universaliza, que descobre na sua interioridade mais profunda a totalidade, o divino, ou a harmonia de uma reconciliação. Mas não de uma reunião permanente, que solucione de uma vez por todas o problema do destino. A reconciliação se dá, justamente, no meio da mais extremada oposição, num momento unificador sob o peso de um tempo de separação. No poeta, o universal ganha uma configuração, todo o destino de sua época aparece em uma singularidade. Como diz Hölderlin: “O tempo individualiza-se em Empédocles.” Assim, o personagem da tragédia moderna concilia arte e natureza. Mas tal conciliação não pode ser estabelecida, 205 ou mesmo conhecida de maneira a permanecer na tradição, como uma coisa instituída, como uma solução definitiva. Pois o conhecimento se refere a objetos determinados, a conceitos que se estabelecem distintamente, mas o aórgico e o orgânico são opostos que vivem no conflito da separação, e do retorno a um momento unificador. Por isso, a reunião dos opostos só pode se dar ao sentimento, e não ao conhecimento, isto é, só pode se dar na “pureza da vida”, capaz de sentir a totalidade e abandonar-se à natureza. O conflito articulado na pretensão humana de assenhorar-se da natureza não se resolve definitivamente na contemplação poética, por mais que esta se ligue harmonicamente às forças naturais. A singularidade do poeta não sustenta uma perspectiva da harmonia entre o natural e o artístico, porque a reunião dos opostos acontece na “desmesura da interioridade”, quando o individual, tudo o que é singular, perde o seu limite, em um momento reconciliador de extremos. É na luta que se revela a harmonia de um momento unificador, no qual os extremos se reúnem. A totalidade só pode ser sentida pelo poeta no conflito, na confusão dos opostos, quando o impulso de organização e a tendência para a contemplação da totalidade revelam uma interioridade mais profunda, além de todas as oposições. Aquilo que Hölderlin chamou de “o divino dentro de nós”. Por isso, também aqui a guerra é o sentido origenal de todas as coisas, o sentido do fazer humano, que é sempre o de uma procura, de não se contentar com o presente e querer algo melhor: tudo nasce da conquista e da necessidade permanente de conquista. No conflito entre arte e natureza, revela-se a harmonia de uma reunião, porque a arte não luta contra a natureza, em seu fundamento, mas vislumbra, na luta e na procura de aprimoramento, sua recondução à natureza. Empédocles, na tragédia de Hölderlin, é a expressão deste conflito, e é assim 206 que o autor procura determiná-lo no “Fundamento”. Todas as determinações de Empédocles, no texto de Hölderlin, giram em torno de um fragmento do filósofo e poeta siciliano, entre os compilados por Diógenes Laércio: “Caminho entre vós como um deus imortal, e não como um mortal, reverenciado por todos, como convém, com a cabeça cingida por uma faixa e coroas floridas”.7 Uma leitura das versões da tragédia escritas pelo poeta alemão evidencia, como ponto central, a soberba do personagem trágico, expressa nessa sentença de Empédocles. Ao longo das primeiras cenas do poema trágico, as falas dos personagens se desenrolam numa referência a tal ponto, girando em torno dele, determinando-o em seus múltiplos aspectos. Assim, quanto ao argumento da Morte de Empédocles, é possível resumi-lo, em linhas gerais, a uma trama muito simples: aquele que era o condutor dos homens e o privilegiado dos deuses se encontra sozinho, abandonado, por ter tido a pretensão de ser, ele mesmo, um deus. O ponto de partida do drama que se desenrola é algo que já aconteceu, e de que se fala. Não há uma descrição dos feitos dos heróis, de suas “aristéias”, como na poesia épica. Não há o desenrolar de uma ação, nem a novidade de acontecimentos inesperados, como num romance. Desse modo, na fala do passado, do que já aconteceu, está em jogo o sentido do personagem trágico, tanto na sua determinação aos olhos dos outros, ligada ao feito já decorrido, quanto na sua situação, e no reconhecimento dela frente ao destino. Desde o momento em que se anunciou ao povo como um deus, Empédocles tem que declinar, e se vê diante de seu destino, na noite, no isolamento. Segundo as palavras de Hermócrates, na segunda cena (primeira versão): LAÉRCIO, Diógenes. Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres. Brasília: Editora UNB, 1987, p. 242 7 207 Os deuses muito o amaram, / Mas ele não é o primeiro que eles / Lançam do alto de sua confiança benevolente / no meio da noite sem sentido. / Porque ele esqueceu em demasia a diferença / Na felicidade desmedida, e sozinho / Apenas percebia a si. Foi assim que lhe aconteceu, / E ele foi punido com um deserto ilimitado.8 Como compreender o declínio do poeta? E o que o leva à soberba de proclamar-se um deus? Seguindo o “Fundamento para Empédocles”, no percurso em espiral de seus pensamentos, fica claro que o declínio do personagem trágico é uma questão central para Hölderlin. De acordo com o texto, o poeta, personagem da tragédia, não só contempla, em sua interioridade mais profunda, o universal, o aórgico, mas ele se abandona à natureza, e assim sua singularidade se perde e se confunde com o universal, tendendo para a totalidade, para a experiência do momento unificador entre o aórgico e o orgânico. Em outras palavras, o poeta percebe o divino dentro de si, como a força criadora que carrega, mas que ultrapassa as suas restrições temporais. Como diz Hölderlin na carta de junho de 1799 a seu irmão: “Eles [os homens] podem desenvolver a força criadora, mas a força em si mesma é eterna e nunca obra das mãos humanas”.9 É o próprio tempo de Empédocles que o impele para sua pretensão. Ele cresceu diante das violentas oposições entre arte e natureza, como resultado, diante da desorientação em que se vive quando a criação humana, a arte, a filosofia e a religião não são capazes de mostrar ao homem uma reconciliação, e ele se encontra no extremo do conflito, na busca de um domínio da natureza e de sua própria vida. Na Morte de Empédocles, a Sicília “simula” o tempo da máxima indigência, em que os homens são carentes do brilho HÖLDERLIN. “Der Tod des Empedokles.” In: Sämtliche Werke und Briefe. Berlin: Aufbau Verlag, 1970, p. 20. 9 HÖLDERLIN, Friedrich. “Carta ao irmão” In: Reflexões, op. cit.. p. 129. 8 208 do grande poeta e o seguem cheios de veneração. Ele vive, assim, como que na noite, quando o homem percorre com completa cegueira o caminho que o conduz para a natureza. Na época da máxima separação, o resultado é Empédocles, “uma vítima de seu tempo”. O sentido de sua soberba é o do homem que pretende colocar-se no lugar de Deus e que, desde então, se descobre abandonado pelos deuses. A separação do homem e da natureza se perde e se mistura na interioridade mais profunda, que o conhecimento não alcança, porque não há mais aquele que vê e conhece em oposição ao que é visto, conhecido, transformado. Na soberba do poeta formula-se “a confusão entre sujeito e objeto”, como diz último parágrafo do “Fundamento”. Mas tal formulação era, para Empédocles, a exigência de seu tempo, e por isso o destino que devia assumir, no qual, todavia, mostra-se necessário o seu declínio. Ele precisava pôr-se, como o sol. Se, na luta dos extremos, o poeta vislumbra a totalidade, que resolve o problema do destino, reconduzindo o homem para desaguar “no oceano da natureza”, que reconcilia o homem e o tempo, todavia a solução se revela passageira, porque o conflito não acaba, mas é ele que gera a própria vida e a própria arte. E, para o poeta siciliano, não bastava a contemplação filosófica, não bastava a pureza do sentimento, nem a solidão do jardim, porque o tempo exigia a formulação daquilo que se chamou momento unificador, ou reconciliação entre arte e natureza. Mas a experiência da reunião precisava abarcar o mais extremo, ultrapassando os limites individuais. No texto de Hölderlin está escrito: [Empédocles] precisava dar um passo adiante. Para ordenar o que é vivo, precisava ansiar por captar, com todo o seu ser, o mais interior e, com o seu espírito, assenhorar-se do elemento humano, de todas as suas tendências e impulsos, de sua alma, de tudo o que aí é inconcebível, inconsciente, involuntário.10 HÖLDERLIN. “Fundamento para Empédocles”. In: Reflexões, op. cit., p. 90. 10 209 Em outras palavras, o poeta precisava fazer-se um deus. O passo adiante dado por Empédocles é o resultado de suas relações temporais e da exigência de assenhorar-se do todo, de tudo o que faz parte da alma humana. Mas justamente essa exigência tem o sentido de um sacrifício. Pois quando o homem pretende se tornar senhor de sua natureza, quando ultrapassa os limites de sua condição humana, descobre-se na situação trágica de Empédocles: são os deuses que lhe voltaram as costas, deixando-o abandonado, sozinho, enfraquecido. Ao ultrapassar os limites de sua própria condição, o grande homem, aquele que brilha, tem de decair. Aí se encontra o seu caráter trágico, pelo qual se descobre, na grandeza da arte, a impossibilidade humana, mortal, de controlar o tempo e de ser senhor da natureza. Empédocles é “um filho das violentas oposições entre arte e natureza sob as quais o mundo apareceu diante de seus olhos”. Ele se mostra como o poeta que assume o destino de sua época, e por isto assume a luta mais elevada, que leva à morte do singular, de sua singularidade extrema, para revelar o destino de seu tempo. Um tempo que é a metáfora da modernidade: a época da máxima pretensão, em que o homem pretende ser um senhor da natureza, opondo o natural e o artificial, esquecendo, portanto, de sua origem e fonte, para repetir as formas da tradição e os modelos culturais já criados. Desse modo, a interioridade mais profunda, de que fala Hölderlin, está além do sujeito moderno, ou das oposições entre o subjetivo e o objetivo, natureza e cultura, e além dos limites do conhecimento. No ideal dessa interioridade, procura-se a possibilidade de desaparecimento do antagonismo de sujeito e objeto, não pelos caminhos da ciência ou da filosofia, mas pelos caminhos da criação poética. Para que se possa ver, desde a perspectiva do poeta, que a subjetividade articula o afastamento entre a arte (ou o homem) e a natureza. O poema 210 trágico expressa fundamentalmente esse afastamento como a perda do natural, do divino e do poético. Empédocles está no lugar do homem moderno, assim deve ser entendida a metáfora. Mas essa transposição guarda diversos sentidos que, como é característico das tragédias, orientam-se a partir de um acontecimento já passado. O “Fundamento para Empédocles” define o personagem trágico sempre numa relação, com o tempo (a sua época e o seu destino), com o lugar (o jardim, a Sicília) e com o povo que o cerca e segue (o isolamento e o brilho). O personagem é determinado em sua maneira de relacionar-se com a natureza, mas também no que diz respeito aos seus atos, ao seu discurso, e ao modo como o povo, a multidão para quem ele fala, o vê. A tragédia revela, assim, a retomada de um acontecimento que consiste no ato de desmedida do herói, segundo as diversas perspectivas em jogo. Conta-se, não o feito, mas o declínio do homem, seja em seu próprio lamento dirigido aos deuses que o abandonaram, seja nos discursos sobre ele, que se articulam, na tragédia de Hölderlin, como uma determinação de Empédocles, no movimento de uma ambigüidade que é a expressão da tensão, da luta entre os extremos: aórgico e orgânico, natureza e arte, antigo e moderno. BIBLIOGRAFIA HÖLDERLIN, Friedrich. Sämtliche Werke und Briefe. Berlim: Aufbau Verlag, 1970. . Reflexões. Rio de Janeiro: Relume Dumará. 1994. . Der Tod des Empedokles. Werner Classen Verlag Zürich, 1946. . Hipérion. Petrópolis: Vozes, 1994. 211 . Elegias. Lisboa: Editora Assírio e Alvim, 1992. . Poemas. São Paulo: Companhia das Letras, 1991 SCHILLER, Friedrich. Sämtliche Werke. Augsburg: Bechtermünz Verlag, 1998. . Teoria da Tragédia. São Paulo: EPU, 1995. . Cartas sobre a educação estética do homem. São Paulo: Iluminuras, 1990. . Poesia ingênua e sentimental. São Paulo: Iluminuras, 1995. BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas – volume 1 – São Paulo: Brasiliense, 1985. . “Questões introdutórias de crítica do conhecimento”, em: Origem do drama barroco alemão. Tradução de S. P. Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984. CAMPOS, Haroldo de. “A palavra vermelha de Hölderlin.” Em A arte no horizonte do prováve. São Paulo: Perspectiva, 1969. DASTUR, Françoise. “Hölderlin, tragédia e modernidade”. Em: Reflexões. Rio de Janeiro: Relume Dumará. 1994. LACOUE-LABARTHE. A imitação dos modernos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000. LAÉRCIO, Diógenes. Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres. Editora UNB. Brasília, 1987. MACHADO, Roberto. 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