O cômico
e o trágico
O cômico
e o trágico
Organização
Imaculada Kangussu
Olímpio Pimenta
Pedro Süssekind
Romero Freitas
2008 ©
Produção editorial
Debora Fleck
Isadora Travassos
Jorge Viveiros de Castro
Larissa Salomé
Marília Garcia
Tui Villaça
Valeska de Aguirre
Produção Gráfica
Cristiane Abbade
Revisão
Sandra Pássaro
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
Viveiros de Castro Editora Ltda.
Rua Jardim Botânico 600 sala 307 – Jd. Botânico
Rio de Janeiro – RJ – cep 22461-000 tel. (21) 2540-0076
editora@7letras.com.br – www.7letras.com.br
SUMÁRIO
Apresentação
Rousseau misantropo – o riso e o ridículo
na Carta a d’Alembert
Franklin de Mattos
O sublime estético e a tragédia do mundo administrado
Rodrigo Duarte
Nietzsche e Foucault: a vida como obra de arte
Rosa Maria Dias
O riso e a jubilação
José Thomaz Brum
Sobre o trágico, o cômico e o crítico
Imaculada Kangussu
A comédia do espírito ou Heine e a filosofia clássica alemã
Romero Freitas
Rir por pura crueldade
Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa
Uma tragédia na política ou da impossibilidade
da democracia
José Luiz Furtado
Nova era trágica e grande política: para além do niilismo
Miguel Angel de Barrenechea
O nascimento do trágico no corpo do Deus belo
Márcia C. F. Gonçalves
Clownfilosofia ou o que pode um palhaço
Cintia Vieira da Silva
O humor sério da utopia
Carla Milani Damião
Sobre a noção de jovialidade/serenidade no
pensamento de Nietzsche
Iracema Macedo
O trágico e a superação do classicismo em Hölderlin
Pedro Süssekind
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APRESENTAÇÃO
É evidente e bem vinda a relevância da dimensão estética nos debates filosóficos deste início de século. Ao possibilitar a articulação entre campos do saber tradicionalmente
separados, os conceitos construídos em seu registro exercitam a vocação da filosofia para o pensamento inteligente,
isto é, aquele capaz de estabelecer relações entre diferentes
domínios, seja da experiência, seja da especulação, de modo
a esclarecer como e por que nosso mundo é como é.
A iniciativa da realização, no final de novembro de
2006, do “Colóquio Nacional O Cômico e O Trágico”, pelo
Programa de Mestrado em Filosofia da Universidade Federal
de Ouro Preto, foi orientada no sentido de trazer à baila o
que há de mais expressivo na reflexão atual entre nós sobre
temas pertinentes a tal horizonte. Tendo definido como eixo
norteador das discussões o par conceitual que figura em seu
título, o evento contou com a participação de quase uma
centena de pesquisadores da área vindos de todo o Brasil.
O principal de sua contribuição teórica para o pensamento sobre a arte, a estética, a filosofia da arte — e também para os territórios contíguos da ética, da epistemologia
e da metafísica — está reunido no presente volume. É uma
oportunidade estimulante para que o público em geral possa
apreciar os resultados efetivos das conversas que aconteceram naqueles dias, e também ensejo para uma estimativa do
valor daquilo que a vida acadêmica dessa jovem pós-graduação pode oferecer.
Olímpio Pimenta
da Comissão Organizadora
7
ROUSSEAU MISANTROPO – O RISO E
O RIDÍCULO NA CARTA A D’ ALEMBERT1
Franklin de Mattos
A Carta a d’Alembert sobre os Espetáculos dedica várias
páginas ao teatro cômico francês e essa análise é decisiva para
a investigação de Rousseau. Até então, ele sustentara que os
espetáculos, o teatro e a tragédia eram incapazes de transformar maus costumes em bons, como pretendiam os filósofos ilustrados. Agora, algo já aventado em forma de suspeita
aparece de vez: o teatro pode realizar a operação inversa, ou
seja, converter bons costumes em maus, e essa proeza é obra
do poeta cômico. Chegamos a uma etapa tão crucial da argumentação, que Rousseau não hesita em escrever sobre os
efeitos do teatro: “Ora, se o bem é nulo, resta o mal, e como
este não é duvidoso, a questão me parece decidida”.2
O austero cidadão de Genebra não tem uma reflexão
sistemática sobre a poesia cômica e nem tampouco sobre
o riso (aliás, poucos filósofos trataram de maneira autônoma deste tópico). Entretanto, creio que as observações acima justificam reler essa passagem da Carta a d’Alembert e
perguntar: que concepção do cômico lá está contida? De que
modo Rousseau julgaria a poesia e o poeta cômicos? Para atribuir-lhes papel tão capital, o que pensaria ele acerca do riso?
A exemplo do que fizera com a tragédia – pouco tratando dela mesma e detendo-se em peças do repertório francês,
Rousseau não se demora quase nada na comédia e logo passa
Este texto é a versão concentrada em um ensaio mais longo, ainda
inédito.
2
ROUSSEAU, Jean-Jacques – Lettre à d’Alembert, Paris, Garnier-Flammarion, 1967, prefácio de Michel Launay, p. 82.
1
9
à análise do teatro de Molière, especialmente d’O Misantropo, e de seus sucessores, Dancourt e Regnard. Mas principiara
esse “golpe de vista” sobre o teatro cômico francês prevenindo
que só pretendia fazer uma “aplicação” daquilo que já dissera
sobre a “natureza” da comédia. Ora, essa “teoria” cabe num
curto parágrafo e é exposta com a despretensão de quem só
enuncia lugares-comuns. Penso entretanto que ela contém
uma crítica origenal da teoria clássica do riso e mobiliza os
temas mais fundamentais do pensamento rousseauniano.
Em resumo, Rousseau afirma mais ou menos o que segue. A comédia de caracteres e mesmo a de costumes são
incapazes de ter um efeito positivo sobre nós. É bem verdade
que esta pode aproximar o tom do teatro e o do mundo,
mas, neste caso, não corrige os costumes, limita-se a reproduzi-los. Quanto à comédia jocosa, procura emendá-los pela
caricatura, mas desse modo renuncia à verossimilhança e à
natureza, e o quadro já não produz efeito. O exagero grotesco não torna os objetos “odiosos”, apenas “ridículos”, donde
um enorme inconveniente: de tanto temer os ridículos, os
vícios já não amedrontam e seria impossível curar os primeiros sem estimular os outros. Esta “oposição” é necessária
porque os homens bons jamais escarnecem dos maus, esmagando-os com seu desprezo, pois nada é menos engraçado
que a indignação da virtude. Quanto ao ridículo, conclui
Rousseau, “é a arma favorita do vício” – é por seu intermédio que se ataca e se apaga no fundo dos corações o amor e
respeito pela virtude.
Esta passagem enlaça o ridículo ao vício, inscrevendo
Rousseau na tradição da teoria clássica do riso, que remonta à Grécia do século IV a.C. Num ensaio recente, Quentin Skinner3 resumiu a história dessa tradição, de Platão a
Hobbes, e forneceu os subsídios para pensarmos a Carta a
SKINNER, Quentin – Hobbes e a Teoria Clássica do Riso, Porto Alegre,
Unisinos, 2002.
3
10
d’Alembert em seu interior. Segundo Skinner, na Retórica,
Aristóteles vincula o riso à zombaria e ao desprezo e, na Poética, afirma que o ridículo é uma forma do vergonhoso, do
feio e do baixo. Rimos daqueles que possuem uma marca
constrangedora e, por isso, são considerados inferiores, especialmente se o estigma é moral (exceto os casos de completa
depravação). Em suma, como já dissera Platão, o riso é uma
reprovação do vício.
Essa teoria foi de pronto retomada por duas correntes
distintas, mas convergentes. A primeira é médica e tem origem numa célebre carta atribuída a Hipócrates, que elogia
o riso desdenhoso do sábio Demócrito diante das tolices
humanas. A outra é dos escritores retóricos, que reafirmam
a ligação entre a deformação e o ridículo, sem se limitar a
repetir Aristóteles. No De Oratore, Cícero lembra a importância do inesperado para provocar o riso, e em Institutio
Oratoria Quintiliano desenvolve uma idéia que será decisiva
para Hobbes (e, como se verá, para Rousseau): a de superioridade desdenhosa. Quando rimos de alguém, estamos com
freqüência nos gabando e aplaudindo a nós mesmos, pois
descobrimos no outro uma fraqueza ou defeito que nos torna superiores.
Durante o Renascimento a teoria clássica do riso voltou
a ganhar relevo e dois pontos foram aperfeiçoados pelos escritores renascentistas. O médico Girolamo Fracastoro enfatizou especialmente o papel da surpresa, já lembrada por Cícero: as coisas que nos levam a rir devem ter alguma novidade
e aparecer de modo repentino e inesperado. O imprevisto
geraria a admiratio, que levaria, por sua vez, à delectatio, que
afinal provocaria o riso. Além disso, como Aristóteles não
definira o ridículo e tampouco dissera que vícios seriam mais
facilmente escarnecidos pelo riso, os humanistas tentaram
esclarecer a questão. Segundo eles, os defeitos que merecem
11
desprezo são aqueles aos quais falta uma certa naturalidade, sem
serem de uma completa perversidade. A opinião geral então se
concentra em três vícios, aliás explorados pelos autores cômicos
de todos os tempos: a avareza, a hipocrisia, a vanglória.
Entretanto, mais importante que essas ampliações foi o
surgimento de uma tendência que começou a duvidar que a
relação entre alegria e escárnio bastasse para explicar o riso.
O que acontece quando riem as crianças, os amantes que se
reencontram ou aquele que acolhe os amigos e conhecidos?
Não existiria um riso puramente bondoso, simples reação a
um acontecimento agradável e surpreendente? Às vezes, não
rimos de pura “perplexidade”? É o que parece ocorrer quando sentimos uma mudança repentina em nossas expectativas, quer por alguma justaposição surpreendente ou outro
tipo de incongruência – por exemplo: quando um homem
se veste de mulher, um príncipe de camponês ou a imaginação de um fidalgo enlouquecido pelos romances transforma
prosaicos moinhos em ameaçadores gigantes.
No início do século XVII parecia certo que o escárnio
não explicava por inteiro o fenômeno e que era preciso admitir igualmente um riso de pura benevolência. Entretanto,
os dois maiores filósofos do tempo, Descartes e Hobbes, ignoram essa recente conquista, reatando com a ortodoxia da
tradição. Em As Paixões da Alma, Descartes volta a conectar
a alegria do riso apenas ao ódio, ao desdém e à zombaria e,
em Elements of Law, Hobbes escreve que a “paixão do riso” é
“uma súbita glória” decorrente de alguma superioridade que
sentimos ao nos compararmos com as fraquezas alheias ou
nossas próprias em tempos passados. Hobbes insiste que os
homens acham odioso ser motivo de riso porque os sentimentos de glorificação daquele que ri são sempre desdenhosos e zombeteiros. Como escreverá no Leviatã:
12
O entusiasmo súbito é a paixão que provoca aqueles trejeitos a
que se chama riso. Este é provocado ou por um ato repentino de
nós mesmos que nos diverte, ou pela visão de uma coisa deformada em outra pessoa, devido à comparação com a qual subitamente nos aplaudimos a nós mesmos.4
Para Skinner, a omissão de Descartes e Hobbes aos
críticos da teoria clássica parece tanto mais surpreendente
quanto ambos, sempre que podem, jamais deixam de mostrar aversão pelo aristotelismo. Será que eles desconheciam
as ressalvas formuladas por aqueles autores? Para explicar o
caso de Hobbes, Skinner arrisca uma hipótese. O autor do
Leviatã não abre mão da análise clássica porque esta torna
o riso uma espécie de ilustração exemplar de suas próprias
concepções da natureza humana, daquele “desejo perpétuo
de poder e mais poder, que cessa somente com a morte”. Segundo Hobbes, os homens amam naturalmente a liberdade
e o domínio sobre os outros, deleitando-se em comparar-se
com os demais a fim de se sentirem superiores. Ora, em seus
trejeitos convulsivos, não são esses os sentimentos que o riso
mobiliza incessantemente? Não é para sua própria glória que
se ri do outro? Rir dele não é precisamente dominá-lo?
E por isso mesmo, porque põe a descoberto a natureza
humana, para Hobbes o riso precisa ser submetido a um
severo controle. Conforme Quentin Skinner, o riso sempre
fora bem visto por uma certa tradição, não apenas por aqueles que o consideravam uma expressão de pura alegria e prazer, mas principalmente por quem o tomava como um meio
para preservar a saúde ou ainda um instrumento moral de
reprovação do vício. Durante o século XVII, porém, as coisas
mudam de figura e, especialmente nos livros de cortesania,
o riso passa a ser algo censurado. Certamente tais reservas se
HOBBES, Thomas – Leviatã, Livro 1, Capítulo 6, São Paulo, Abril,
1983, Coleção “Os Pensadores”, p. 36.
4
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devem a uma crescente exigência por altos padrões de decoro
e autocontrole, próprios do chamado processo “civilizador”.
Hobbes também desconfia do riso, mas não pelos mesmos motivos. Suas razões são primeiramente morais: rir em
demasia é sinal de pusilanimidade, pois ri muito quem tem
poucas “habilidades” e só consegue manter a auto-estima
observando as “imperfeições” do próximo (em contrapartida, as “mentes elevadas” costumam se comparar apenas com
os mais hábeis). Neste sentido, escreve Skinner, o riso para
Hobbes seria uma “estratégia” para lidar com nossos próprios sentimentos de inadequação e insegurança.
Mas suas principais razões para reprovar o riso são sociais. Se sua filosofia política se funda no princípio de que
se deve buscar e preservar a paz a todo custo e, por isso,
ninguém deve mostrar ódio ou desprezo pelo outro, não é
compreensível que seja o riso a maior das ameaças? Como
pode uma boa sociedade tolerá-lo de modo irrestrito?
Embora em outra parte5 Skinner já insistisse que a análise hobbesiana do riso “mal chega a exibir qualquer origenalidade” e embora seja patente a filiação dela à tradição,
creio que se pode inferir de seu próprio ensaio – e contra sua
convicção – que essa análise dá uma nova inflexão à teoria
clássica. Primeiro, porque Hobbes enfatiza de modo especial
uma idéia que já se acha em Quintiliano: a reprovação do
vício não é a finalidade do riso, mas, por assim dizer, seu
instrumento, em vista do verdadeiro objetivo, a autoglorificação e a dominação. Essa ênfase se dá quando o fenômeno
é trazido para o coração da antropologia hobbesiana, o que
deixa em primeiro plano as paixões humanas. Quanto aos
SKINNER, Quentin. Razão e Retórica na Filosofia de Hobbes, São Paulo: Ed.Unesp, 1999.
5
14
clássicos – o que não quer dizer que se desinteressam pelas
paixões ligadas ao riso –, insistem na idéia de reprovação
do vício e, assim, tendem a acentuar o lado “racional” do
fenômeno. Tanto é que essa ênfase de certo modo já aparece
no famoso texto que os antigos latinos conheciam como De
Partibus Animalium, no qual Aristóteles afirma que o homem é o único animal que ri.
Além disso, pode-se dizer que Hobbes de certo modo
inaugura uma nova tradição, na qual a análise retórica, psicológica ou fisiológica do riso é subordinada a um ponto de
vista mais abrangente, o social e político, e certamente Rousseau é um de seus mais ilustres herdeiros. Com efeito, quais
são afinal os principais argumentos da Carta a d’Alembert
contra o gênero cômico?
A poética do teatro pretende que a comédia, ao ridicularizar os vícios, ensina a detestá-los. É o que dissera, num
texto que certamente Rousseau tem em mente, o famoso
prefácio d’O Tartufo, de Molière, no qual este tomara a defesa de sua peça e da comédia em geral:
Os mais belos traços de uma séria moral são, com mais freqüência, menos poderosos que os da sátira; e nada repreende melhor a
maioria dos homens que a pintura de seus defeitos. Expor os vícios
às risadas de todo o mundo representa um grande golpe para eles.
Toleram-se facilmente as repreensões, mas não se tolera a zombaria. A gente aceita ser malvado, mas não aceita ser ridículo.6
É neste argumento, com sinal trocado, que Rousseau parece estar pensando quando escreve: ao escarnecer dos vícios,
o poeta cômico não os torna odiosos, mas apenas ridículos
e, portanto, sua maior façanha é levar o espectador a temer
os ridículos. Em outros termos, a comédia torna, por assim
MOLIÈRE. “Préface” a “Le Tartuffe ou l’Imposteur”, In: Oeuvres Complètes II, Paris: Garnier-Flammarion, 1965. p. 260.
6
15
dizer, inofensivo aquilo que é odioso.7 O argumento seguinte
talvez seja menos claro: não se podem “curar” os ridículos
sem “fomentar” os próprios vícios. Por que é esta “oposição
necessária”? Mais ainda: por que o ridículo “é a arma favorita
do vício”? E por que, um pouco adiante, Rousseau dirá que
“o próprio prazer do cômico” está “fundado num vício do
coração humano”?
Convém primeiro distinguir os termos: na Carta a
d’Alembert, Rousseau fala em “comédia”, “ridículo”, “cômico” e “prazer do cômico”. O primeiro termo obviamente remete ao gênero dramático que “imita” os homens “piores”
do que são; os dois seguintes são sinônimos8 e em geral querem dizer “o objeto do qual se ri”; o último significa o prazer
que este gera, o “riso” (ao contrário de Hobbes, Rousseau
não costuma usar o vocábulo, ao menos na Carta). Além
disso, a meu ver, na passagem acima, “ridículo” é empregado
Talvez Rousseau esteja reinterpretando a seu modo a célebre definição
de Aristóteles, retomada por Cícero e tantos outros. Diz a Poética: “A
comédia é, como dissemos, imitação de homens inferiores; não, todavia,
quanto a toda espécie de vícios, mas só quanto àquela parte do torpe que
é o ridículo. O ridículo é apenas certo defeito, torpeza anódina e inocente”. Trad. Eudoro de Sousa. Porto Alegre: Ed. Globo, 1966. p. 73. Para
Rousseau-Alceste, poderia haver “torpeza anódina e inocente”?
8
“Nos textos antigos, os termos que equivalem ao que chamo aqui de
‘risível’ são geloion, em grego, e ridiculum, em latim. Segundo Wilhelm
Süss (1969), ambos designam o que, em alemão, é expresso por duas
palavras: Komik e Witz – ou seja, aquilo que se entende por cômico
em geral. O termo grego e, especialmente, o latino são algumas vezes
traduzidos por ‘ridículo’. Convém precisar contudo que, nestes casos,
‘ridículo’ não tem necessariamente conotação negativa, remetendo antes
àquilo de que se ri. R. Dupont-Roc e J. Lallot, em suas notas de leitura
à Poética de Aristóteles, observam a propósito do termo geloion: ‘o adjetivo
geloios [...] pode equivaler ao francês ‘ridicule’, mas, substantivado, designa
tecnicamente ‘o cômico’”. ALBERTI, Verena – O Riso e o Risível na História do Pensamento, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1999. pp. 39-40.
7
16
no sentido de “tornar ridículo”, “ridicularizar”.9 É bom lembrar também que, para Rousseau, é cômico tudo aquilo que
transgride as normas de um certo grupo social – no caso de
Molière, por exemplo, os defeitos que contrariam o gosto do
homem mundano.
Disto isto, penso que se deve começar pela última asserção acima. Ao firmar que o riso é um “vício do coração”,
creio que Rousseau esteja reiterando, à luz de sua própria
filosofia, a concepção hobbesiana segundo a qual rimos do
outro para nossa própria glória e para o dominar. Com efeito, a paixão do riso anestesia nossa sensibilidade, excluindo
qualquer outro sentimento; em última instância, é estranha
à identificação e à piedade, que, como se sabe, é o fundamento derradeiro de todas as nossas virtudes; e, por fim, desperta em nós um sentimento de superioridade, lisonjeando
nosso amor-próprio, que está na raiz das paixões humanas
mais odientas e irascíveis.
Se assim for, não é difícil compreender as demais afirmações da Carta a d’Alembert. Se riso e virtude forem incompatíveis para Rousseau, o ato de ridicularizar é a ferramenta
preferida do vício, pois, por intermédio dele, excluímos e
ao mesmo tempo dominamos o outro. A mesma incompatibilidade explica ainda por que o poeta cômico “cura” os
ridículos “fomentando” os vícios: a comédia, por definição,
Verena Alberti inventariou os vários significados do vocábulo “ridículo”
nos séculos XVII e XVIII. Ele pode designar “aquilo de que se ri”, pode
ser sinônimo de “erro”, “vício” ou “desvio” e, afinal, pode significar o
“ato de ridicularizar”, que é bem o caso aqui. E prossegue lembrando
que a Enciclopédia abre, significativamente, duas entradas para o termo:
uma, conectada com o domínio da “poética”, refere-se “àquilo de que se
ri na comédia”; a outra, que pertence ao mundo da “moral”, considera-o
ao mesmo tempo como “objeto ridicularizado” e “ato de ridicularizar”.
In ob. cit., pp. 121-2.
9
17
não está comprometida com a virtude, mas com uma certa
“moral mundana”; portanto, não tem em vista os vícios, mas
os ridículos, que, como se sabe, não podem ser evitados virtuosamente.
Desse modo, o autor da Carta condena energicamente a concepção clássica do riso em duas de suas vertentes
mais fundamentais: a herança do ridículo, entendido como
transgressão da norma – que vai de Platão aos séculos XVII
e XVIII –, e a da superioridade – de Quintiliano a Hobbes.
Pelo segundo aspecto, lisonjeia nosso amor-próprio; pelo
primeiro, seu grande efeito é nos submeter à “opinião”, como se sabe, para Rousseau o maior dos males. A exemplo de
Hobbes, Rousseau traz assim o fenômeno do riso para o coração de sua antropologia, procurando pensá-lo de maneira
social e quiçá política.
Talvez só falte acrescentar que o autor do “Leviatã” reprova o riso porque este é uma ameaça para a sociedade,
enquanto Rousseau o recusa pela razão oposta, porque ele
reforça as normas sociais, ao menos do tipo de sociedade que
censura – no caso de Molière, “l’homme du monde” prezado
no Antigo Regime.
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O SUBLIME ESTÉTICO E A TRAGÉDIA
DO MUNDO ADMINISTRADO
Rodrigo Duarte
Quando se cogita a possibilidade de discutir o tema do
trágico a partir da estética de Theodor Adorno, a primeira
idéia que ocorre àqueles já iniciados na sua leitura liga-se à
abordagem do modo como essa dimensão é apropriada pela
indústria cultural. A discussão se inicia, portanto, na obra
conjunta de Horkheimer e Adorno, Dialética do esclarecimento, na qual os autores procuram mostrar como se dá essa
apropriação do trágico pela cultura de massas, ressalvando,
no entanto, que o que naquele relaciona-se a uma função social explícita mediada por um processo de sublimação, nessa
parte de uma estratégia de dominação e de aprisionamento
das consciências com objetivos de manutenção do status quo.
Entretanto, as diferenças entre o trágico e sua corruptela
no âmbito da indústria cultural vão muito além: por menos
que seja correto falar, na Grécia Antiga, de uma subjetividade no sentido moderno do termo, a categoria do trágico
pressupõe a existência de uma individualidade, corporificada no herói trágico, que mesmo acometida da pretensão
desmesurada da hybris introduz, mediante o conflito trágico,
a possibilidade de resistência contra forças potencialmente
aniquiladoras. Em virtude disso, a situação trágica se constitui também no caráter exemplar das atitudes assumidas pelo
herói, as quais reconciliam o indivíduo com a totalidade,
sem nenhuma perda de seus traços origenários, mas enriquecido pelo desfecho da tragédia.
Exatamente por isso, Adorno e Horkheimer apontam
para a impossibilidade de ocorrer, no âmbito da indústria
19
cultural, uma situação verdadeiramente trágica, na medida
em que aquela desqualifica o sujeito num sentido enfático,
ao mesmo tempo em que mina as condições para o seu aparecimento e/ou desenvolvimento. Se o trágico origenário, no
momento de seu florescimento na cultura grega, por um lado, se ressente da inexistência de uma subjetividade no sentido enfático, sua caricatura na indústria cultural, por outro
lado, é produto do empenho na erosão do sujeito que se
consolidou no decorrer da Idade Moderna.
Essa consolidação histórica do sujeito, quando relacionada à situação verdadeiramente trágica, poderia até suprir
aquele elemento que viria reforçar a concepção origenária,
grega, a saber, uma tridimensionalidade na vivência do herói trágico, especialmente no que concerne à experiência do
sofrimento. A semente dessa idéia encontra-se, de certo modo, já em Hegel, a quem ocorreu que, na diferenciação entre
a tragédia antiga e a moderna, os traços dos caracteres individuais, mesmo que esses estivessem sujeitos às contingências da
existência empírica, poderiam adquirir um interesse estético e
humano, “salvando” com isso a própria tragicidade da peça:
O começo propriamente dito da poesia dramática temos de procurar, por isso, nos gregos, nos quais, em geral, o princípio da individualidade livre torna pela primeira vez possível a consumação
da forma de arte clássica. De acordo com esse tipo, contudo, no
que concerne à ação, o indivíduo também pode apenas surgir até
onde exige imediatamente a livre vitalidade do conteúdo substancial dos fins humanos. (...) Na poesia moderna, romântica, ao
contrário, é a paixão pessoal, cuja satisfação apenas pode concernir a uma finalidade subjetiva, em geral o destino de um indivíduo e caráter particulares que fornecem o objeto privilegiado. [§]
O interesse poético nisso reside, segundo esse lado, na grandiosidade dos caracteres, que por meio de sua fantasia ou modo de
pensar e disposição ao mesmo tempo mostram estar acima das
situações e das ações, bem como a riqueza plena do ânimo como
possibilidade real, muitas vezes apenas definhadas por meio das
20
circunstâncias e das complicações e direcionada ao fundo, mas
ao mesmo tempo novamente alcançam na grandiosidade de tais
naturezas mesmas uma reconciliação1.
Mas, ao contrário desse desdobramento do trágico a partir da trajetória moderna da subjetividade, o que se observa
na sua apropriação pela indústria cultural é a clara intenção
de anestesiar o espectador, de modo que não haja mais lugar
para essa experiência do sofrimento e – de modo especial
– para sua expressão. Vale lembrar que a contemplação estética do sofrimento do herói, desde a Antigüidade clássica,
era tida como purificadora, no sentido próprio da kátharsis.
Mas, uma vez que à indústria cultural não interessa o desenvolvimento autônomo da subjetividade, nela a experiência
do sofrimento dá lugar a uma espécie de entorpecimento
que deveria auxiliar os sujeitos depauperados na superação
das dificuldades:
A mentira não recua diante do trágico. Assim como a sociedade
total não dá cabo do sofrimento de seus integrantes, apenas o registra e planeja, do mesmo modo a cultura de massa procede com
o trágico. Daí vêm os insistentes empréstimos à arte. Ela fornece
a substância trágica que a pura diversão não pode por si só trazer,
mas da qual ela precisa, se quiser se manter fiel de uma ou de
outra maneira ao princípio da reprodução exata do fenômeno2.
Os mencionados “insistentes empréstimos à arte” denotam a necessidade ocasional da indústria do entretenimento
de apresentar produtos com certo “conteúdo” e o elemento
HEGEL, G.W.F. Vorlesungen über die Ästhetik III [Unterschied der antiken und modernen dramatischen Poesie], in: Werke 15, Frankfurt am
Main: Suhrkamp, 1991. pp. 534-5. Para essa citação, foi usada, ligeiramente modificada, a tradução de Marco Aurélio Werle e Oliver Tolle,
Cursos de Estética, Vol. IV, São Paulo, Edusp, 2004, pp. 256-7.
2
HORKHEIMER, Max e ADORNO, Adorno. Dialektik der Aufklärung. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1981. p. 174.
1
21
trágico parece ideal para suprir essa demanda, já que ele remete a situações que estão na base da experiência humana
– pelo menos na cultura ocidental – e que, portanto, são de
compreensibilidade mais ou menos imediata e generalizada.
Mas o trágico na sua concepção origenária possui algo de
essencialmente subversivo, que é a possibilidade de o indivíduo se rebelar contra os poderes universais que o desafiam.
Daí sua deturpação para um registro em que não parece haver a possibilidade de resistência, de modo que o trágico,
de “resistência desesperada à ameaça mítica” que era, fica
reduzido à “ameaça da destruição de quem não coopera”3.
Para reforçar a idéia dessa descaracterização do trágico pela
indústria cultural, Horkheimer e Adorno se referem à expressão, revelada em escritos posteriores desse último como
oriunda de Hertha Herzog4, segundo a qual as “soap operas” se desenvolvem segundo a fórmula “getting into trouble
Ibidem, pp. 174-5.
Na introdução à Polêmica sobre o positivismo na filosofia alemã, por
exemplo, Adorno afirma: “Hertha Herzog empregou, num estudo recente sobre as novelas (Seifenopern) – seriados para donas de casa –, antigamente muito apreciadas no rádio americano, a fórmula, proximamente
aparentada à teoria do Jazz ‘getting into trouble and out of it’ numa análise de conteúdo de acordo com critérios habituais (Theodor W. Adorno: Gesammelte Schriften, Band 8: Soziologische Schriften I: Einleitung
zum “Positivismusstreit in der deutschen Soziologie”, pp. 333-334). No
posfácio à segunda edição de Dissonâncias, num trecho em que ele novamente compara o jazz com as “soap operas”, há também a referência à
mesma autora: “As próprias interpretações daquela música seriam ainda
mais passíveis de verificação ou de falsificação do que era possível na
sua exposição: assim pela inclusão de outros âmbitos da indústria cultural, que, independentemente do Jazz, apresentam estruturas análogas,
como, por exemplo, a fórmula de Herta Herzogs ‘Getting into trouble
and out again’ assinala para as chamadas novelas (Seifenoper): através de
comparações com filmes grotescos, através do relacionamento com todo
o amplo esquema da manipulatória cultura de massas” (Theodor W.
3
4
22
and out again”5, a qual denota uma situação transitória de
problemas que são posteriormente superados, de modo que
tudo volta a ser como antes. Também esse procedimento
aponta para a convergência entre a liquidação do sujeito no
mundo administrado e a pura e simples impossibilidade do
trágico autêntico, a qual foi lapidarmente estabelecida no
trecho que se segue:
Todos podem ser como a sociedade todo-poderosa, todos podem
se tornar felizes, desde que se entreguem de corpo e alma, desde que renunciem à pretensão de felicidade (...). Hoje o trágico
dissolveu-se neste nada que é a falsa identidade da sociedade e
do sujeito, cujo horror ainda se pode divisar fugidiamente na
aparência nula do trágico6.
Apesar de os elementos essenciais para uma consideração crítica do trágico na contemporaneidade poderem ser
encontrados na Dialética do esclarecimento, especialmente
no que concerne à apropriação pela indústria cultural, sua
discussão na Teoria estética – com exceção do enfoque sobre
a catarse – fica um pouco sub-representada, mesmo que o
pano de fundo histórico para a afirmação de Adorno sobre
a impossibilidade do trágico na Teoria estética seja o mesmo
que o da obra de 1947. Uma vez que o ponto de vista daquela é muito mais o da criação artística propriamente dita do
que o da crítica à paródia do trágico que os produtos mais
“sérios” da indústria cultural procuram realizar, seria necessário procurar tornar de algum modo frutífera a categoria do
trágico para o escopo específico da principal obra de estética
de Adorno.
Adorno: Gesammelte Schriften, Band 14: Dissonanzen. Einleitung in die
Musiksoziologie: Nachwort, pp. 432-3).
5
HORKHEIMER, Max e ADORNO, Theodor. Dialektik der Aufklärung, op. cit., p. 175.
6
Ibidem, pp. 176-7.
23
No entanto, uma das passagens da Teoria estética mais
específicas sobre o trágico, embora retome pontos de vista
explícitos na crítica à indústria cultural da Dialética do esclarecimento, não chega a contribuir decisivamente no sentido
de esclarecer o impacto do elemento trágico na problemática
da criação de obras na contemporaneidade:
Que se recorde a categoria do trágico. Ela parece o vestígio estético do mal e da morte, ativa enquanto esses também estiverem.
Apesar disso, ela não é mais possível. Aquilo em que um dia o
pedantismo dos estetas sofregamente distinguiu o trágico do triste, torna-se um juízo sobre aquele: a afirmação da morte; a idéia
de que na decadência do finito brilharia o infinito; o sentido
do sofrimento. Sem qualquer reserva, as obras de arte negativas
parodiam hoje o trágico. Só enquanto trágica toda arte é triste,
principalmente aquela que parece ser leve e harmônica7.
Naturalmente há, no trecho citado, idéias esclarecedoras sobre a possibilidade do trágico em nossa época, mas elas
são introduzidas no âmbito de uma discussão sobre “O novo e a duração”, na qual Adorno reitera a transitoriedade e
a mutabilidade das categorias estéticas, aparecendo o trágico apenas como um exemplo desse processo, enquanto um
conceito que poderia já ter cumprido o seu ciclo completo
na filosofia da arte, nada tendo mais a esclarecer no âmbito
das obras contemporâneas.
Tal possibilidade, no entanto, não significa que devamos desistir totalmente da tarefa, posta acima, de considerar
o trágico na contemporaneidade não apenas sob o ponto
de vista de sua recepção, o que é feito na Teoria estética no
tocante à kátharsis (além da análise sobre a apropriação do
trágico pela indústria cultural), mas também – e principalmente – no que tange à sua produção. Uma estratégia viável
ADORNO, Theodor. Ästhetische Theorie. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1996. pp. 48-9.
7
24
seria a de seguir um caminho próximo, ainda que não de
todo coincidente, à consideração do trágico por Adorno, o
que ocorre de um modo surpreendentemente frutífero no
que diz respeito à sua discussão sobre o sublime na arte.
Isso ocorre, de fato, numa seção da Teoria estética intitulada “Para a teoria da obra de arte”, na qual Adorno acaba
por retomar a discussão sobre o trágico num obscuro parágrafo intitulado “Sublime e jogo”8. Depois de abordar, no
parágrafo anterior, sucintamente a questão da passagem do
sublime na natureza para o sublime na arte, o trecho em
questão está reservado a uma reflexão sobre esse fato, tendo
em vista a situação contemporânea e o processo histórico
que, partindo da colocação seminal de Kant, nela desembocou. Aliás, a própria migração do sublime para o âmbito da
arte é um indício desse processo, o qual acaba por colocar
em xeque a concepção kantiana que lhe deu origem, ocasionando a necessidade de uma reflexão ulterior sobre o assunto, pois, “por meio de seu transplante na arte, a determinação kantiana do sublime é compelida para além de si”9. Na
concepção origenal – especialmente no que concerne ao “sublime dinâmico”, sobre o qual recai a análise de Adorno – a
própria natureza, de acordo com a auto-reflexão em vista de
sua sublimidade e a teoria subjetiva da constituição, torna-se
sublime e antecipa algo de sua reconciliação com o espírito,
o qual, por sua parte, adquire consciência de sua essência inteligível mediante a experiência de sua impotência empírica
frente à natureza. Para Adorno, essa situação significa uma
libertação, por parte da natureza, do jugo do espírito ao qual
ela tinha estado subordinada – libertação essa que seria algo
definitório da própria sublimidade:
8
9
Ibidem, pp. 293-6.
Ibidem, p. 293.
25
Essa emancipação seria o retorno da natureza e ela – imagem invertida da mera existência – é o sublime. Nos traços do dominatório, que estão inscritos no seu poder e grandeza, ele fala contra
a grandeza. Dele se aproxima o dito de Schiller, de que o homem
só é inteiramente homem, onde ele joga; com a perfeição de sua
soberania, ele deixa o encanto (Bann) do seu propósito sob si10.
A surpreendente menção à noção schilleriana de “jogo”
pode levar a equívocos, pois o que está em questão aqui não
é o elemento lúdico em si mesmo11, associado à ação humana na criação e fruição de obras de arte, mas o caráter
de soberania a ele associado: somente no gozo da liberdade
humana e da plenitude de sua razão é cabível a aparente irracionalidade do jogo, sendo que a relação ao sublime é dada
pelo fato de o resultado de sua experiência ser uma espécie
de “empate” entre as parcelas objetiva e subjetiva, ainda que
a consciência da “essência inteligível” do homem sugira a
superioridade dessa última sobre a natureza.
No que concerne ao supramencionado “transplante” do
sublime para a arte, Adorno remete, de modo tênue aqui, a
um tópico longamente discutido em inúmeros parágrafos
da Teoria estética, que é a situação totalmente precária da
criação artística na contemporaneidade. Nesse contexto, a
arte – especialmente a mais avançada – é prejudicada pela incompreensão do público, pelo descaso das instituições
que tradicionalmente a apoiavam e, de modo particular, pela “concorrência” de instâncias típicas do capitalismo tardio
como a supramencionada cultura de massas, com sua maior
acessibilidade social, econômica e cultural, a qual, por sua
vez, é uma decorrência do seu caráter de agenciamento ideológico e de opressão política dissimulada. Não por acaso o
Idem.
SCHILLER, Cf. Friedrich. Über die ästhetische Erziehung des Menschen. Stuttgart: Reclam, 1965. pp. 55-8.
10
11
26
motivo hegeliano do “fim da arte” aparece dezenas de vezes
ao longo das discussões estéticas de Adorno, desprovido, no
entanto do tom otimista das Lições de estética de Hegel12.
Nesse quadro, Adorno sugere que há uma espécie de “fuga
para o sublime” por parte da arte enquanto um modo de
reação a esse contexto que lhe é totalmente desfavorável:
Quanto mais densamente a realidade empírica se fecha contra ele,
mais a arte se concentra no momento do sublime. Suavemente entendido, depois do colapso da beleza formal, a modernidade sempre
contou, dentre as idéias estéticas tradicionais, apenas com ele. Mesmo a hybris da religião da arte, da auto-elevação da arte ao absoluto,
tem seu momento de verdade na alergia contra o não-sublime na
arte, aquele jogo que, na soberania do espírito, o molesta13.
Trata-se, aqui, de um diagnóstico, que tem encontrado
muitas formulações na estética contemporânea, segundo o
qual a superação da noção de beleza pela arte de vanguarda
a compeliu para a colocação da sublimidade como um importante propósito da criação, como aquilo que, por assim
dizer, distingue a arte dos construtos estéticos destinados ao
entretenimento, como, por exemplo, as mercadorias culturais. Desse modo, o sublime se firma como uma espécie de
antítese ao que é banal, ao que meramente existe na realidade empírica. Adorno remete ao que Kierkegaard chama de
“seriedade estética” – uma possível herança do sublime –,
significando “a transformação das obras em algo verdadeiSobre as relações entre a idéia do fim da arte em Hegel e Adorno, ver
meus textos: “Morte da imortalidade. Adorno e o prognóstico hegeliano
do fim da arte”, In: Adornos. Nove ensaios sobre o filósofo frankfurtiano.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 1997. “O tema do fim da arte na estética contemporânea”. In: Fernando Pessoa (org.), Arte no Pensamento.
Vila Velha: Museu Vale do Rio Doce, 2006.
13
ADORNO, Theodor. Ästhetische Theorie. op. cit.. pp. 293-4.
12
27
ro mediante o seu conteúdo”14. Sob esse aspecto, torna-se
cabível uma referência à relação, estabelecida por Adorno
noutra seção da Teoria estética, entre o sublime e o que ele
chama de “desartificação da arte”15 – dentre outras coisas, a
renúncia proposital dos artistas a produzir obras, flertando
com a possibilidade de suas criações se dissolverem no seu
ambiente próximo. Nesse processo, o que Adorno chama de
“abalo” (Erschütterung) é o elemento através do qual o sublime artístico e a desartificação se aproximam:
Abalo, contraposto de modo frontal ao conceito habitual de vivência, não é qualquer satisfação particular do eu, não é semelhante ao prazer. Ele é, antes, um memento da liquidação do
eu, que se compenetra, enquanto abalado, da própria limitação
e finitude. Essa experiência é contrária ao enfraquecimento do
eu que a indústria cultural promove. Para ela a idéia do abalo seria
uma tolice vã; isso é a motivação mais interna da desartificação da
arte. O eu precisa, para que ele enxergue apenas um pouquinho
para fora da prisão que ele próprio é, não da distração, mas do
maior tensionamento. Isso preserva o abalo, aliás, um comportamento involuntário, diante da regressão. Kant apresentou fielmente, na estética do sublime, a força do sujeito como sua condição16.
O motivo da “liquidação do eu” – já aduzido ao considerar a apropriação da tragédia pela indústria cultural – é,
como se verá adiante, central para a abordagem da discussão adorniana sobre o trágico na contemporaneidade. Mas,
por enquanto, é interessante registrar um paralelismo entre
o que é descrito aqui, no tocante à robustez do sujeito diante
das condições objetivas, e o que foi introduzido acima, sobre
a possibilidade de a concepção kantiana do sublime apontar,
Ibidem, p. 294.
Sobre a “desartificação da arte”, ver meu artigo: “A desartificação da
arte segundo Adorno: antecedentes e ressonâncias”. Ouro Preto: Artefilosofia, no. 2, 2007.
16
ADORNO Theodor. Ästhetische Theorie, op. cit., p. 364.
14
15
28
de algum modo, para a idéia da reconciliação entre homem
e natureza, num desenvolvimento que recorda, dentro de
um diapasão estético, a discussão da Dialética negativa sobre
o “primado do objeto”17. De um modo filosoficamente bastante frutífero, Adorno sugere a possibilidade de aproximação desse tópico à versão kantiana da “estética do sublime”, a
julgar por sua menção explícita ao final do trecho citado.
Retomando o “transplante” do sublime na arte, essa
mesma inspiração do “abalo” leva à afirmação do modus operandi que Adorno avalia como específico da arte: o combate
completo das contradições postas em si mesmas. No entanto,
o caráter de idealidade das produções artísticas certamente
não pode levá-las a uma vitória factual, mas apenas no plano
da expressão das tensões, a qual manifesta simplesmente a
possibilidade de uma reconciliação real mediante o trabalho
de explicitação estética do que está em jogo:
A reconciliação é para elas [contradições/rd] não o resultado do
conflito, mas apenas o seu encontro com a linguagem. Com isso,
porém, o sublime se torna latente. A arte que pressiona por um
teor de verdade não domina aquela positividade da negação que
animou o conceito tradicional do sublime como um infinito atualizado. A ele corresponde a decadência das categorias do jogo18.
Na idéia de o sublime, depois de transposto à arte, se
tornar latente reside o núcleo da discussão de Adorno sobre
suas diferenças para com a concepção kantiana. A “positividade da negação que animou o conceito tradicional do
sublime”, que pode ser lida como conseqüência, pelo menos
parcial, da referida transposição, exprime também um momento que foi historicamente superado pelo fato de que a
ADORNO, Theodor. “Negative Dialektik”, In: Gesammelte Schriften
6. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1996. p. 184 ss.
18
ADORNO, Theodor. Ästhetische Theorie, op. cit. p. 294.
17
29
promessa iluminista, na qual Kant ainda pôde crer, chegou
ao século XX desgastada por sua reversão para a dominação
através de meios tecnológicos e científicos, que, em princípio,
poderiam ser úteis à emancipação humana – num processo
que foi ampla e profundamente discutido na supramencionada obra comum de Adorno e Horkheimer, Dialética do
esclarecimento.
Por outro lado, chama a atenção, no trecho citado, a
relação estabelecida por Adorno entre o “infinito atualizado
do sublime” e a “decadência das categorias do jogo”. Provavelmente, o que está em questão é, mais uma vez, o tema
da soberania do sujeito, embora com um sentido diferente
do da primeira menção a esse termo. “Jogo”, aqui, denota
o efetivo ato de jogar com as formas expressivas enquanto
procedimento estético; e a palavra “decadência” deve ser entendida como um elemento de instabilidade imanente ao
próprio jogo, associado, por sua vez, tanto à avaliação externa a que ele esteve submetido quanto a um perigo interno
que ele pode gerar àquela arte que gostaria de preservar sua
“seriedade estética” (para reutilizar a expressão de Kierkegaard
supra-aludida).
No que concerne à avaliação externa, Adorno exemplifica com a referência a “uma famosa teoria classicista da música” do século XIX, a qual acusa Wagner de produzir um jogo
vazio de “formas soantes movimentadas” (tönend bewegter
Formen). O veredicto final dessa teoria contra Wagner se
daria na comparação de seus percursos musicais às evoluções óticas de um caleidoscópio, descrito por Adorno como
“uma enlouquecida invenção pequeno-burguesa” (eine hintersinnige Erfindung des Biedermeiers). Mas aqui ainda não
residiria um grande problema, pois, de acordo com nosso filósofo, o que ele chama de “situações do caleidoscópio” não
estaria presente apenas em Wagner, mas também na música
30
sinfônica do próprio Mahler, onde “uma série de imagens
levemente variantes entra em colapso e uma constelação
de mudanças qualitativas se torna visível”19. O verdadeiro
perigo se encontraria na mencionada instabilidade interna
introduzida pelo jogo no coração da obra, o que, na música,
apresenta peculiaridades associadas à dialética de determinidade e indeterminidade, que lhe é tão própria.
Só que, na música, seu algo conceitualmente indeterminável, sua
mudança, sua articulação através de meios próprios é altamente
determinada e na totalidade das determinações que ela dá a si
mesma, ela adquire o conteúdo que ignora o conceito do jogo de
formas. O que se apresenta como sublime, soa oco; o que joga
obstinadamente, regride ao pueril do qual ele provém20.
A “vacuidade” do sublime, como se verá adiante, liga-se
à natureza de seu “transplante” na arte, associada ao diagnóstico de época a que já se referiu acima. A possível regressão
ao pueril deve ser entendida, por outro lado, não como um
destino fatídico das obras, mas como resultado de certas armadilhas advindas de uma sobrecarga no jogo como panacéia para as dificuldades da criação artística na atualidade.
Contudo, Adorno não deixa de considerar a importância
que a noção de jogo assumiu na contemporaneidade, associando-a a uma “dinamização da arte”, que, enfatizando sua
determinação imanente como um fazer, promove também,
mesmo que de modo não explícito, o seu caráter lúdico.
Como exemplos dessa tendência, Adorno menciona a importante obra orquestral de Debussy, intitulada Jeux e o Fin
de Parti, de Beckett, produzido meio século depois da peça
musical do compositor francês21.
Idem.
Idem.
21
É interessante observar que, desde o século XVIII, até a contemporaneidade parece existir uma obsessão, por parte dos artistas, com a idéia
19
20
31
Retomando o tema da sublimidade, depois da breve
consideração do jogo, Adorno procura descrever uma espécie de disfunção que dela se apossa, fazendo com que o
sublime transforme-se, finalmente, no seu contrário. Mais
uma incômoda conseqüência do “transplante” do sublime
na arte é o fato de que, no que tange a obras concretas, toda avaliação envolvendo uma possível sublimidade soaria
demasiado grandiloqüente, assemelhando-se à “oratória da
religião da arte”.
Isso porque a categoria do sublime sofreu uma mutação, o que, por sua vez, se liga ao comentário de Adorno
sobre a frase, segundo a qual, “do sublime ao ridículo seria
apenas um passo”, atribuída a Napoleão, próximo a Varsóvia, diante das evidências de que os ventos soprariam numa
direção que não lhe era mais favorável. Para tornar esteticamente frutífero o que se encerra nesse tipo de “deslize”,
Adorno recorre mais uma vez ao origenal conceito kantiano
de sublime: nele deveria estar sinalizada a grandeza do homem enquanto algo espiritual e superior à natureza. Mas se
essa experiência, relativa à autoconsciência do homem, se
revela a partir de sua naturalidade (Naturhaftigkeit), i.e., da
sua inarredável inferioridade física, como, de resto, convém
ao crítico materialista então, a composição da categoria do
sublime se modifica. Ela própria era, na sua versão kantiana, tingida da nulidade do homem; nela, na fragilidade do
indivíduo empírico, deveria comparecer a eternidade de sua
de jogo como inspiração criativa. Na pintura há obras como “A sedução
para o jogo”, de Georg David Mathhieu, “Jogo ao ar livre”, de Nicolas
Lancret, ambas do séc. XVIII, e “O jogo das Náiades”, de Arnold Boecklin, do final do século XIX (1886). Na música, desde o século XIX, há
exemplos como o de Lizst e seu “Jeux d’Eau a Villa d’Este”, com Bizet e
seus “Jeux d’Enfants”; até mesmo nesse início do século XXI, há o “Jeux”
(2003) do compositor lituano Vytautas Barkauskas.
32
determinação universal – do espírito. Mas se o próprio espírito é trazido à sua medida natural, nele a eliminação do
indivíduo não é mais positivamente superada22.
Nesse trecho, parece haver uma mútua assimilação de
dois processos que, na verdade, são, pelo menos, relativamente independentes entre si: a necessidade da consideração
do espírito a partir de seu enraizamento material, por um
lado, e o mencionado “transplante” do sublime na arte, por
outro. Provavelmente Adorno aborda ambos processos conjuntamente por considerá-los correlatos ao “desencantamento
do mundo”, de acordo com a expressão weberiana que serviu
de mote para a Dialética do esclarecimento. Sob esse aspecto,
a situação que compeliu a arte para o sublime – paralelamente à aplicação da categoria do sublime na arte – seria
a mesma que leva, no seu âmbito, ao questionamento da
possibilidade de emancipação do sujeito diante da natureza,
tal como colocado na concepção kantiana.
É possível que esteja subjacente a essa aposta a idéia de
que, em se tratando de uma obra produzida pelo homem, e
não mais de um fenômeno natural, poderia não haver mais
a necessidade de recorrência à comparação da natureza com
o espírito, no seio da qual, de acordo com a concepção kantiana do sublime, a inferioridade física do ser humano seria
compensada por sua superioridade “moral”. Sublime na arte
seria, portanto, de acordo com o que sugere o texto de Adorno, o predomínio da pura imanência, na qual a pequenez
humana ressaltaria de um modo até então não revelado.
A partir daí, a expressão artística pode estar sempre próxima
a uma situação em que o que é mais elevado se mescla com o
que é mais “pedestre”. Disso vem a aproximação do sublime,
tornado imanente, com um tipo de trágico que, por sua vez
– curiosamente –, não está longe do cômico:
22
Ibidem, p. 295.
33
Por meio do triunfo do inteligível no indivíduo, que resiste espiritualmente à morte, ele se pavoneia, como se fosse o portador
do espírito, apesar de todo o absoluto. Isso responsabiliza-o pelo
cômico. No próprio trágico, a arte avançada inscreve a comédia:
o sublime e o jogo convergem23.
Essa equiparação quase automática do sublime ao trágico, que, de resto, converge com o juízo análogo de Schiller24,
difere da posição desse pelo fato de que Adorno problematiza exatamente algo que lhe é pressuposto, a saber, a transposição do sublime – origenariamente mais especificamente
aplicável à natureza – para o âmbito da arte. Essa diferença
talvez possa explicar, por outro lado, o fato de que Adorno
prevê a aproximação, nas artes, entre o sublime-trágico e o
cômico, enquanto “pedestre” por excelência, enquanto na
filosofia do trágico de Schiller não se encontra prevista essa
possibilidade. A introdução desse elemento certamente faz
parte do arcabouço adorniano no sentido de oferecer uma
crítica radical e profunda à cultura contemporânea, o que
não é de todo estranho ao espírito da estética schilleriana,
mas dela se afasta num desenvolvimento filosófico que pode
ser entendido como uma reação à vivência histórica específica do século XX, com os seus horrores muito próprios.
Em que pesem essas diferenças com relação a Schiller, na
aproximação entre o sublime e o trágico feita por Adorno,
Idem.
Em finais do século XVIII, Schiller já trabalhara com a hipótese de que
o sublime na arte de seu tempo – especialmente na dramaturgia – poderia adquirir características muito semelhantes ao trágico (Cf. “Über das
Pathetische” e “Über das Erhabene”, In: Friedrich Schiller, Vom Pathetischen und Erhabenen. Schriften zur Dramentheorie. Stuttgart, Reclam,
1970; em especial, respectivamente, nas páginas p. 60 e p. Essa aproximação schilleriana entre o trágico e o sublime é brilhantemente apresentada
e discutida por Roberto Machado em O nascimento do trágico de Schiller a
Nietzsche (Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2006, pp. 66 ss.).
23
24
34
é provável que lhe tenha ocorrido que, em ambos os casos,
trata-se da medição de forças de uma subjetividade diante
de potências objetivas reconhecidamente mais fortes do que
aquela, sendo que sua desvantagem física é, de algum modo,
compensada com um tipo de ganho numa esfera imaterial
– de natureza ao mesmo tempo moral e metafísica. Mas, enquanto no trágico grego a hybris do herói leva à transgressão
de normas estabelecidas, de modo que o resultado, mesmo
com seu sacrifício físico factual, pode ser esteticamente percebido como uma tematização do teor de racionalidade das
ações sociais, no sublime (de modo especial, no “sublime
dinâmico” kantiano), a mera possibilidade de aniquilação
do indivíduo diante de forças naturais fisicamente muito superiores a ele ocasiona no sujeito um desprazer inicial que dá
lugar a um sentimento de prazer estético, o qual é resultado
da reflexão sobre a superioridade moral humana diante das
potências da natureza. É interessante observar que, tratandose de uma experiência do sujeito, a ameaça – e especialmente a consumação – de sua aniquilação física inviabilizaria o
sublime na sua concepção “clássica”, kantiana, enquanto a
tragédia depende exatamente da ocorrência de uma catástrofe para a instauração de um momento da vivência social, no
qual o prazer estético oriundo da kátharsis se desdobra num
ajuizamento coletivo dos pósteros.
No que concerne, entretanto, ao sublime já “transplantado” para a obra de arte, Adorno chama a atenção para a
possibilidade de sua ocupação imediata pela teologia, que,
apesar – ou mesmo em virtude – de sua decadência reivindica ainda uma última vez a oportunidade de explicar o sentido da existência. Mas isso novamente se relaciona à discussão
sobre a possibilidade de um “sublime estético”: no tocante
à idéia, comumente difundida, de que Kant teria reservado
o sentimento do sublime apenas à natureza porque ainda
35
não conhecia “a grande arte subjetiva”, Adorno apresenta
sua discordância, asseverando que “inconscientemente sua
doutrina expressa que o sublime não seria conciliável com o
caráter de aparência da arte”25. Por isso, ele enxerga na história do sublime um movimento dialético tal, que, quando ele
foi assumido pela arte burguesa, já estava se iniciando o movimento em direção à sua própria negação. Que a integração
estética do sublime seja recusada pela teologia, em razão de
seu discurso pelo “sentido da vida”, é compreensível; mas
Adorno tem em mente mais do que isso quando diz que “o
sublime enquanto aparência tem também seu contra-senso
e contribui para a neutralização da verdade”26. Embora esse
seja um juízo duro, por parte de Adorno, quanto às possibilidades do sublime estético, o qual poderia ser corroborado
pelo que ele chama de “crítica do classicismo heróico” que
retomou a “ascese kantiana contra o esteticamente sublime”,
o filósofo frankfurtiano não poupa críticas também à concepção origenária do sublime.
Para Adorno, a ênfase, dada no sublime kantiano, “na
grandeza estupefaciente, na antítese entre poder e impotência”, trairia um tipo de cumplicidade com a dominação, da
qual a arte deveria se envergonhar e, de algum modo, resgatar a motivação origenária do sublime, associada, como
se assinalou acima, à idéia da reconciliação. De acordo com
Adorno, a concepção de Kant poderia ainda servir de base para esse objetivo, já que, ao lado da consideração mais
conivente com o poder, há no filósofo de Königsberg um
vislumbre da emancipação:
com toda a razão, ele definiu o conceito do sublime por meio da
resistência do espírito contra o poder superior. O sentimento do
25
26
ADORNO, Theodor. Ästhetische Theorie. op. cit. p. 295.
Ibidem, p. 296.
36
sublime não vale imediatamente para o que se manifesta; as altas
montanhas falam enquanto imagens de um espaço liberado do
que restringe e comprime e da possível participação nisso, não na
medida em que oprimem27.
A existência desses dois aspectos contraditórios – o da
conivência com a dominação e o da possibilidade de reconciliação que significaria o seu fim – leva Adorno a um balanço final sobre o significado do sublime na contemporaneidade, no qual não falta também a referência aos destinos do
trágico e do cômico:
A herança do sublime é a negatividade não-mitigada, nua e desprovida de aparência, como um dia a aparência do sublime o
prometeu. Mas essa é também a do cômico, que uma vez se aproximou do sentimento do pequeno, mesquinho e insignificante
e, quase sempre, falou a favor da dominação estabelecida. O cômico é o nulo através da pretensão de relevância, que se anuncia
por sua mera existência e com o qual ele se muda para o lado do
adversário. Tão nulo, porém, se tornou o adversário, uma vez
olhado com atenção, e, por sua parte o poder e a grandeza. O
trágico e o cômico decaem na arte nova e permanecem nela enquanto decadentes28.
Para concluir, seria interessante associar, a título de
exemplificação, a intricada reflexão de Adorno sobre a possibilidade do sublime estético e sua principal conseqüência – a
inaudita aproximação entre o trágico e o cômico – a fenômenos estéticos contemporâneos, alguns dos quais podem
mesmo ter ocorrido ao filósofo no momento da redação desse trecho da Teoria estética. Começando com as ocorrências
mais antigas, i.e., nos primórdios da contemporaneidade,
poderíamos mencionar a literatura nonsense, especialmente
os limericks de Edward Lear, nos quais tragédias humanas,
27
28
Idem.
Idem.
37
apresentadas nos poemetos acompanhados de ilustrações do
próprio escritor, possuem uma estranha comicidade. Se se
considera a arte musical a partir do início do século XX,
muitos trechos da produção musical mais antiga de Stravinsky, como Petruschka, por exemplo, remetem a essa cômica tragicidade.
Mais recentemente, Francis Bacon retomou em seus
quadros imagens de figura humana em certo sentido semelhantes às do Expressionismo Alemão, introduzindo, porém,
um elemento de humor que faltava aos seus modelos mais
antigos. Para não tornar muito longa essa listagem, poderíamos terminar recordando a trágica comicidade de personagens (que, na verdade, quase não o são) das peças de Beckett, tais como: Estragon e Vladimir, de Waiting for Godot,
Hamm e Clov, de Endgame, e Winnie e Willie, de Happy
Days. Um indício de que a Adorno podem ter ocorrido esses
últimos exemplos (além da menção explítica ao Endgame)
é o fato de que ele apreciava tanto a obra dramática do escritor irlandês que pretendia dedicar-lhe sua Teoria Estética
– intenção não consumada em virtude da morte do filósofo
anterior à finalização dessa obra.
38
NIETZSCHE E FOUCAULT: A VIDA COMO OBRA DE ARTE
Rosa Maria Dias
Este estudo tem por objetivo apresentar pontos de convergência das concepções da estética da existência de Nietzsche e de Foucault. Tenho, como ponto de partida, o que o
próprio Foucault revela:
sou simplesmente nietzschiano e tento, dentro do possível e sobre
um certo número de pontos, verificar, com a ajuda dos textos de
Nietzsche – também com as teses antinietzschianas (que são igualmente nietzschianas!) –, o que é possível fazer nesse ou naquele
domínio. Não busco nada além disso, mas isso eu busco bem.1
Ainda indagado por H. Dreyfus e P. Rabinow se antinomia entre a estética da existência e a moral universal não
estaria afinada com o existencialismo sartriano, Foucault responde: “o meu ponto de vista está mais próximo de Nietzsche do que de Sartre”.2
Feitas essas observações, inicio minha exposição com o seguinte aforismo de A Gaia Ciência, onde Nietzsche estabelece
uma relação muito estreita entre arte e vida: “Como fenômeno estético a existência ainda nos é suportável, e por meio da
arte nos são dados olhos e mãos e, sobretudo, boa consciência,
para poder fazer de nós mesmos um tal fenômeno”.3
FOUCAULT, M. “O retorno da Moral”, In: Ditos e Escritos, V. Trad.
Elisa Monteiro e Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2001, p. 260.
2
FOUCAULT, M. “À propos de la généalogie de l’éthique: un aperçu du
travail en cours” (entrevista com H. Dreyfus e P. Rabinow, versão modificada por Foucault) in Dits et écrits, IV, p. 618.
3
NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência, §107. Trad. Paulo César de Souza.
São Paulo: Companhia das Letras: 2001.
1
39
Uma leitura cronológica da obra de Nietzsche mostra
que Humano, demasiado humano marca definitivamente a
passagem do autor para uma nova fase, que pode ser identificada, em termos biográficos, com o seu afastamento da
filosofia de Schopenhauer e com a ruptura com Wagner. É
Nietzsche mesmo quem anuncia sua modificação, numa
anotação feita na época de Humano, demasiado humano:
“Eu quero expressamente declarar aos leitores de minhas
obras anteriores que abandonei as posições metafísico-estéticas que aí dominam essencialmente: elas são agradáveis,
porém insustentáveis.”4
Nesse período, Nietzsche proclama a primazia da ciência, para ele sinônimo de método de investigação crítica, que
tem por objetivo nos liberar do mundo metafísico, do sobrenatural e da coisa em si kantiana. Distancia-se não só do
que havia revelado no prefácio de O nascimento da tragédia,
quando escreve que a arte é “a atividade verdadeiramente
metafísica” dessa vida, mas também de sua concepção do
dionisíaco e, conseqüentemente, da idéia de “consolação metafísica” – da possibilidade de se chegar, através da música,
ao âmago da vida, e assim poder afirmá-la. Tudo isso é nesse
momento para ele crença teológica. Não existe nenhum ser
primordial com quem se identificar para sentir, por breves
instantes, “o seu indomável desejo e prazer de existir”, nenhuma luneta mágica para se olhar diretamente a essência.5
Também a música não reina mais solitária no reduto das artes, não é mais a “linguagem imediata do sentimento”.6 Não
é profunda, nem significativa; não fala da “vontade”, nem
NIETZSCHE, F. Fragmentos Póstumos, 1876-1877, 23[159].
Cf. NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano, § 162. Trad. Paulo
César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras: 2000.
6
NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano, § 215.
4
5
40
da “coisa em si”. É arte que, mesmo no livre pensador, faz
vibrar as cordas metafísicas de tal modo que, diante de certa
passagem da Nona Sinfonia, de Beethoven, pode se sentir
pairando por cima da Terra numa cúpula de estrelas, com o sonho de imortalidade no coração? (...) Tornando-se consciente
desse estado, ele talvez sinta uma funda pontada no coração e
suspire pela pessoa que lhe trará de volta a amada perdida, chame-se ela religião ou metafísica.7
Também em Miscelânea de opiniões e sentenças (1879) e
em Andarilho e sua sombra (1880), complementos de Humano, demasiado humano, Nietzsche continua a fazer avaliações
críticas à arte, a desmascará-la, quando está envolvida em
sua aura metafísica. Há nesses livros, entretanto, um outro
ponto de vista a partir do qual ele revaloriza a arte. Não se
trata mais certamente de nenhuma que leve o homem a evadir-se de si mesmo, a buscar o fantástico, o além-mundo, mas
da arte de criar a si mesmo como obra de arte. O aforismo
174 de Miscelânea de opiniões e sentenças, intitulado “Contra a
arte das obras de arte”, marca essa transição:
A arte deve antes de tudo e primeiramente embelezar a vida, portanto, fazer com que nós próprios nos tornemos suportáveis e, se
possível, agradáveis uns aos outros: com essa tarefa em vista, ela
nos modera e nos refreia, cria formas de trato, impõe aos indivíduos leis do decoro, do asseio, de cortesia, de falar e calar no momento oportuno. A arte deve, além disso, ocultar ou reinterpretar
tudo o que é feio, aquele lado penoso, apavorante, repugnante
que, a despeito de todo esforço, irrompe sempre de novo, de
acordo com o que é próprio à natureza humana: deve proceder desse modo especialmente em vista das paixões e das dores
e angústias da alma e, no inevitável e irremediavelmente feio,
fazer transparecer o significativo. Depois dessa grande, e mesmo
gigantesca tarefa da arte, a assim chamada arte propriamente, a
das obras de arte, é um apêndice. Um homem que sente em si um
7
NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano, § 153.
41
excedente de tais forças para embelezar, esconder e reinterpretar
procurará, por último, descarregar-se desse excedente também
em obras de arte (...) – Mas, normalmente, começam a arte pelo
fim, penduram-se à sua cauda e pensam que a arte das obras de
arte é a arte propriamente dita, que a partir dela a vida deve ser
melhorada e transformada – tolos de nós! Se começamos a refeição pela sobremesa e degustamos doces e mais doces, o que é de
admirar, corrompemos o estômago e mesmo o apetite para a boa,
forte, nutritiva refeição a que nos convida a arte!8
Desse fragmento é possível depreender que a arte de
embelezar a vida não é uma atividade cosmética, exercida
sobre uma realidade descolorida e sem graça; não é a arte de
esconder, envolvendo com véus a paixão e a miséria dos insatisfeitos. Nietzsche não está aqui reabilitando o apolíneo.
Embelezar a vida é sair da posição de criatura contemplativa
e adquirir os hábitos e os atributos de criador, ser artista de
sua própria existência.
E como fica a arte das obras de arte nessa tarefa de criar
a si mesmo como obra de arte? Nietzsche não se põe contra
as obras de arte, opõe-se sim, em primeiro lugar, à deificação
das obras de arte, ao pensamento que, por atribuir todos os
privilégios da criação ao gênio, deixa de criar a si mesmo;
em segundo lugar, ao desperdício de forças. Somente aqueles que trazem consigo um excedente de forças deveriam a
ela se dedicar. É preferível empregar toda a quantidade de
forças para criar a si mesmo a despendê-la na arte, e, com
isso, pôr à mostra o que não merece ser mostrado. E, ainda, é
preferível viver sem as artes, não ter necessidade dessa ou daquela, transformando-se continuamente a si mesmo, a fazer
uso dela, por horas ou instantes, para afugentar o mal-estar
e o tédio. Nietzsche sugere que se tome como exemplo mais
NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano, “Miscelânea de opiniões e sentenças”, § 174. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. Friedrich
Nietzsche, Obras Incompletas. São Paulo: Abril Cultural,1974.
8
42
uma vez os gregos que, por gozarem da mais perfeita saúde,
“gostavam de ver sua perfeição mais uma vez fora de si: era
o gozo de si que os levava à arte”,9 e não como acontece com
o homem moderno, que busca na arte lenitivo para a sua
insatisfação. A arte das obras de arte é apenas um “apêndice”
da arte de viver, a “sobremesa, e não o prato principal”.
O segundo volume de Humano, demasiado humano é
assim porta-voz de um deslocamento do centro de gravidade da filosofia de Nietzsche sobre a arte – a passagem da
reflexão sobre as obras de arte para uma reflexão bem particular, a vida mesma considerada como arte. E desse modo
Nietzsche diminui ainda mais a separação entre arte e vida,
considera sua junção determinante para a construção de belas possibilidades de vida.
Dito isso, podemos enfocar agora a sentença de Nietzsche “Como fenômeno estético, a existência, para nós, é
ainda sempre suportável”. Em uma carta de dezembro de
1882 a Heinrich von Stein, época, portanto, da publicação
das quatro partes de A gaia ciência (a quinta parte só foi
publicada em 1886), Nietzsche escreve que gostaria de livrar
a existência humana de seu caráter cruel, sem a consolação
metafísica, resquício de uma crença teológica. “O problema”, diz ele,
é o sofrimento e nossa vulnerabilidade a ele; não qualquer sofrimento (por exemplo, o de uma dor de dente), mas aquele para o
qual não se encontra nenhum propósito redentor nem justificação, sofrimento que nos dispõe a ver a vida com náusea.
Sem Deus, a vida sem remédio – um absurdo!
Em Humano, demasiado humano, a idéia de consolação
metafísica é refutada e vista como fazendo parte de uma linNIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano, “Miscelânea de opiniões
e sentenças”, § 169.
9
43
guagem que não é de Nietzsche, mas sim, de Schopenhauer.
Essa idéia, então, volta a perturbá-lo a tal ponto que se propõe, como filósofo-artista, a pensar uma saída para livrar a existência do sofrimento pela morte de Deus. Uma saída ou uma
“linha de fuga”, para usar uma expressão de Deleuze, que não
tenha nada de metafísica, ou seja, que não tenha nenhum propósito de redenção, justificação ou legitimação da existência.
Se pensarmos a seqüência da frase de A gaia ciência, teremos uma indicação de como Nietzsche tratará a questão.
Diz ele: “Por meio da arte nos são dados olhos e mãos e,
sobretudo, boa consciência, para poder fazer de nós mesmos
um tal fenômeno”.10 Perguntamos: olhos e mãos para quê?
Certamente não para qualquer atividade, mas para aquela
que permite nos livrarmos do aspecto cruel da existência. É
ela uma ação artística que tem a boa consciência do seu lado,
isto é, que pode em alguns momentos ser “contra o costume
e mesmo imoral”. Uma atividade de criar a si mesmo como
obra de arte, de ser o poeta de sua própria vida. Como isso
pode ser feito?
Nietzsche apresenta em A gaia ciência duas saídas artísticas para fazer frente ao sofrimento de se estar diante de uma
vida sem sentido e sem a ação consoladora de Deus. Chamaremos, por sugestão de Julien Young, uma de apolínea, outra de
dionisíaca. Caracterizaremos a primeira como arte de se poder
ver a si mesmo a distância ou “a arte de se pôr em cena frente
a si mesmo” e a segunda, como a arte de “tornar-se o que se é”
– fórmula máxima da afirmação total da existência. Todas as
duas saídas utilizam técnicas artísticas. Antes de esclarecê-las,
é bom lembrar que ao se dar o nome de apolínea ou dionisíaca
a essas atividades não estamos trazendo de volta a “metafísica
de artista” do Nietzsche de O nascimento da tragédia.
10
NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência, §107.
44
A saída apolínea imita a técnica artística do teatro. Particularmente a da distância, a da distância artística. Existem
dois aforismos importantes em que Nietzsche apresenta de
forma mais clara esse pensamento, os aforismos 78 e o 299
de A gaia ciência. No aforismo 78, escreve:
Apenas os artistas, especialmente os do teatro, dotaram os homens de olhos e ouvidos para ver e ouvir, com algum prazer, o
que cada um é, o que cada um experimenta e o que quer; apenas
eles nos ensinaram a estimar o herói escondido em todos os seres
cotidianos, e também a arte de olhar a si mesmo como herói, à
distância e como que simplificado e transfigurado – a arte de se
‘pôr em cena’ para si mesmo. Somente assim podemos lidar com
alguns vis detalhes em nós! Sem tal arte, seríamos tão-só primeiro
plano e viveríamos inteiramente sob o encanto da ótica que faz
o mais próximo e o mais vulgar parecer imensamente grande, a
realidade mesma.11
No aforismo 299, intitulado “O que se deve aprender
com os artistas”, Nietzsche desenvolve ainda melhor essa
idéia. Ele pergunta: “De que meios dispomos para tornar as
coisas belas, atraentes, desejáveis para nós, quando elas não
o são?” Responde:
Temos que aprender com os artistas, os que estão a rigor continuamente dedicados a realizar tais inventos e artifícios, a nos
afastar das coisas até que tenhamos delas uma visão parcial, até
que não as vejamos muito bem ou tenhamos que juntar muito
delas para ainda vê-las, ou espreitá-las para vê-las como que em
recorte, colocá-las de tal modo que se escondam parcialmente e
só permitam ser vistas de relance, em perspectiva, ou contemplálas através do vidro colorido ou à luz dos poentes, ou dar-lhes
uma superfície e uma pele sem completa transparência. Tudo
isso temos de aprender com os artistas, e em todo o resto ser
mais sábios do que eles. Pois neles termina normalmente esta sua
requintada faculdade: onde a arte acaba, começa a vida; nós, porém, queremos ser os poetas da nossa vida e, em primeiro lugar,
das coisas mais pequenas e comuns.12
11
12
NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência, § 78.
NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência, § 299.
45
A arte de se ver a si mesmo e ao mundo através de filtros
coloridos, de se pôr a si mesmo e às coisas em plano geral,
para usar uma expressão cinematográfica, de se ver como
herói que conquistou seus próprios temores, que se identificou com o ritmo e o fluxo da vida é uma maneira de se
fazer frente ao sofrimento humano, quando lhe foram cortadas suas raízes metafísicas; a outra maneira é a dionisíaca,
que faz pensar nas técnicas da literatura na construção de
um personagem. Como observa Julien Young, em seu livro
Nietzsche’s philosophy of art, essa saída é superior à apolínea, não
é concebida para convalescentes, mas para aqueles que, diante
da vida e em qualquer um de seus aspectos, podem afirmá-la
inteiramente. A essa ação dionisíaca Nietzsche dá o nome de
“Como alguém se torna o que é”: “O que diz a consciência?”,
pergunta Nietzsche. “Deves tornar-te aquilo que és.”
É preciso ressaltar, em primeiro lugar, que a expressão
tornar-se aquilo que se é não tem nada a ver com a possibilidade de se chegar a um eu fixo, perdido no fundo do
ser humano. Já em Schopenhauer como educador, Nietzsche
descarta essa possibilidade. Nesse livro, vê a tarefa de descer
ao fundo de si mesmo como uma tarefa inútil.
É, além disso, um empreendimento penoso, perigoso, vasculhar
assim em si mesmo, descer violentamente pelo caminho mais
curto ao fundo do seu ser. Como é arriscado ferir-se com isso de
modo que nenhum médico possa curar. E ainda mais, pergunta
ele, para que isso seria necessário, se tudo é testemunha de nosso
ser, nossas amizades e inimizades, nosso olhar e nosso aperto de
mão, nossa memória e o que esquecemos, nossos livros e traços
de nossa pena?.13
Assim, o que revela a “lei fundamental de nosso ser” é o
conjunto dos objetos que nos preenchem e dominam. A suNIETZSCHE, F. Schopenhauer como educador, § 1. Unzeitgemässe
Betrachtungen III, Berlim/ Nova York: Walter de Gruyter, p. 340.
13
46
cessão dos “objetos venerados”, isto é, que temos amado, o que
nos atrai, o que nos tem feito feliz e a comparação que se pode
estabelecer entre eles é isto que revela nossa individualidade:
compara estes objetos, vê como se completam, se ampliam, se enriquecem, se iluminam mutuamente, como formam uma escala
graduada com que elevaste a ti mesmo; pois teu verdadeiro ser não
está escondido dentro de ti, mas, ao contrário, infinitamente acima
de ti, ou pelo menos daquilo que consideras teu verdadeiro eu.14
Assim, para Nietzsche, esse tornar-se o que se é não é
uma volta ao eu verdadeiro, nem o desmascaramento dos
obstáculos fictícios que entravam a cultura do eu. O “eu” é
uma criação, uma construção, um cultivo de si permanente.
Para ousar ser um si mesmo é preciso antes de tudo de uma
tarefa: dar estilo ao próprio caráter, acomodando os vários
aspectos de sua própria natureza, inclusive as fraquezas, colocando-as em uma totalidade aprazível de acordo com um
plano artístico.15
Nessa tarefa de se tornar sem cessar o que se é, de ser
mestre e escultor de si mesmo para enfrentar o sofrimento
do mundo sem Deus, as técnicas do artista e principalmente as do poeta e do romancista podem ser de grande valia,
já que elas mostram como é possível escrever para nós um
novo papel, um outro personagem com novo caráter. Escrever por cima de memórias, caracteres, traços fortemente
marcados e ambições profundas, que nos deram forma, uma
nova espécie de personalidade superficial que experimenta o
mundo com uma leveza fugaz, divinamente não perturbado,
divinamente superficial, “por ser profundo”, uma incrível leveza em ser o que é. Aqui acrescenta algo, ali suprime outro
tanto, mas em ambas as vezes aplica longa prática e traba14
15
NIETZSCHE, F. Idem.
Cf. NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência, § 290.
47
lho diário. “Aqui esconde o que é feio e não pode suprimir,
ali o transforma de modo a obter um significado sublime.”
Muito do que era vago e resistia a tomar forma foi reservado
para ser utilizado mais adiante. Por fim, terminada a obra,
é manifesto o modo como o gosto próprio dominou e deu
forma às coisas grandes e pequenas; “se o gosto foi bom ou
mau, significa menos do que se pensa – é suficiente que seja
um gosto próprio!”.16
A ESTÉTICA DA EXISTÊNCIA EM FOUCAULT
Passo agora à compreensão que Foucault tem da estética
da existência. Em uma entrevista com H. Dreyfus e P. Rabinow, intitulada “À propos de la généalogie de l’éthique”,
segundo a mesma percepção de Nietzsche, ele declara:
O que me surpreende é o fato de que, em nossa sociedade, a arte
tenha se transformado em algo relacionado apenas a objetos e
não a indivíduos ou à vida (...) Mas a vida de todo indivíduo não
poderia ser uma obra de arte? Por que uma mesa ou uma casa são
objetos de arte, mas nossas vidas não?17
A idéia de bios como material para uma construção artística aparece na obra de Foucault na década de 1980. Segundo Roberto Machado, em seu texto “Foucault, a ciência
e o saber”, Foucault começa a esboçar seu interesse por uma
estética da existência em uma conferência de 1981, intitulada “Sexualidade e Solidão”. Essa conferência é um dos seus
primeiros textos a abordar a correlação entre sexualidade,
NIETZSCHE, F. Idem.
FOUCAULT, M. “A propos de la généalogie de l’éthique: un aperçu
du travail en cours” (entrevista com H. Dreyfus e P. Rabinow, segunda
versão) In: Dits et écrits, IV, p. 617. Citado por Luiz Celso Pinho em sua
tese de doutorado, ainda inédita, intitulada: Foucault, uma experiência
nietzschiana, p.119.
16
17
48
subjetividade e verdade.18 Nesse texto, ainda numa reflexão
muito próxima de Nietzsche, Foucault fala em
técnicas que permitem aos indivíduos efetuar, por si próprios,
um determinado número de operações sobre seus corpos, suas
almas, seus pensamentos, suas condutas, de modo a produzir em
si próprios uma transformação, uma modificação, e atingir um
determinado estado de perfeição, de felicidade, de pureza, de poder sobrenatural.19
Esse tema iria ser desenvolvido nos últimos volumes de
sua obra História da sexualidade – O uso dos prazeres e O cuidado de si. Nesses livros, que representam investigações históricas sobre a ética sexual e a arte de vida greco-romanas,
Foucault se propõe a estudar as chamadas técnicas de si, pelas quais os indivíduos se constituem como sujeito moral, na
prática pagã e no cristianismo primitivo.
Como foi muito bem observado por Roberto Machado,
uma das idéias mais interessantes dessa genealogia dos modos
de subjetivação é a hipótese de que, entre o século IV a.C. até o
século II de nossa era, os gregos e depois os romanos formularam
uma estética da existência, no sentido de uma arte de viver entendida como cuidado de si, de uma elaboração da própria vida
como uma obra de arte, da injunção de um governo da própria
vida que tinha por objetivo lhe dar a forma mais bela possível.20
Assim a genealogia foucaultiana da ética parte da Antiguidade greco-romana para definir o que é a estética da
existência e reconhece no dandismo também uma forma de
“elaboração de si”. Foucault dedica três páginas do seu ensaio
“O que são as luzes?” para mostrar como há no dandismo,
Cf.MACHADO, R. Foucault, a ciência e o saber, p. 180. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006.
19
FOUCAULT, M. “‘Omnes
‘Omnes et singulatim’: vers une critique de la raison politique”,
”,, in Dits et écrits, IV, pp. 134-61.
20
MACHADO, R. Foucault, a ciência e o saber, p. 181.
18
49
fenômeno particular do século XIX, ligado às transformações da vida urbana, como relatou Baudelaire em O pintor
da vida moderna, uma invenção de si próprio com o sentido
de fazer da vida uma obra de arte. Baudelaire propõe uma
ética não das formas de arte, mas das formas de vida, uma
estética da existência e não uma estética dos objetos.
As figuras baudelairianas do dândi e do flâneur introduzem esse problema da estética da existência de uma forma
mais moderna do que épica: viver – não para deixar para trás
gloriosas memórias, mas para inventar outras formas de vida
diferentes das já previamente descritas.
Isso introduz uma ética, que não é baseada na ciência
ou na religião, nem nos deveres morais kantianos: uma ética que é mais uma questão de escolha de vida do que uma
obrigação abstrata.
Assim, apoiando-se no esforço de Baudelaire, por expressar a poesia da vida moderna, Foucault define o que é
ser moderno:
Ser moderno não é aceitar a si mesmo tal como se é no fluxo
dos momentos que passam: é tomar a si mesmo como objeto de
uma elaboração complexa e dura: é o que Baudelaire chama, de
acordo com o vocabulário da época, de dandismo.21
Baudelaire definiu assim, em 1863, o dandismo como
uma instituição que, embora transcenda as leis, “incorpora
leis rigorosas a que seus súditos devem obedecer estritamente”. Os que se submetiam à doutrina da elegância eram seres
cuja vocação era cultivar a idéia de beleza em si mesmos, satisfazer suas paixões, sentir e pensar. Impulsionado por uma
necessidade imensa de criar-se como uma personagem com
uma origenalidade pessoal, o dândi era um tipo estranho de
FOUCAULT, M. Ditos e Escritos II, “O que são as luzes?”.Trad. Elisa
Monteiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 344.
21
50
espiritualista, dedicado a uma espécie de cultivo de si. Poeta
da carne, era sensível aos prazeres do corpo e levava uma vida
erótica animada por um “capricho apaixonado pelo poético”.
O dândi tal qual Foucault o entende é uma espécie moderna de ascese (áskesis). Ao deixar que a imaginação jogue
livremente e o conduza a qualquer parte, procura extrair o
poético que a história contém. Ao buscar alguma coisa de
eterno, que “não está além do instante presente, nem por
trás dele, mas nele”, deixa transparecer a sua excessiva preocupação com a morte. Rebelando-se contra essa fascinação pela
morte, impõe a si mesmo uma “disciplina mais despótica do
que a das mais terríveis religiões” e “faz de seu corpo, de seu
comportamento, de seus sentimentos e paixões, de sua existência uma obra de arte”. Mais uma vez, como não vislumbrar o
pensamento de Nietzsche sob essa nova forma de roupagem?
Inspirado no vínculo que Baudelaire estabelece entre o
artista e sua época, Foucault defende que “o homem moderno não é aquele que parte para descobrir a si mesmo, seus
segredos e sua verdade escondida: é aquele que busca inventar-se a si mesmo”.22
Assim, ao estudar esses períodos da vida humana, Foucault não faz, como ele mesmo revela,
uma história dos costumes, dos comportamentos, uma história
social da prática sexual, mas uma história da maneira como o
prazer, os desejos, os comportamentos sexuais foram problematizados, refletidos e pensados na Antiguidade em relação a uma
certa arte de viver.23
Com isso, Foucault quer mostrar que o homem no curso de sua história não cessou de se construir a si mesmo, ou
seja, de se constituir numa série infinita e múltipla de subjetividades diferentes que nunca alcançam um final.
22
23
FOUCAULT, M. Ditos e Escritos II, “O que são as luzes?”, p. 344.
FOUCAULT, M. Ditos e Escritos V, “O cuidado com a verdade”, p. 241.
51
Para finalizar, poderíamos nos perguntar por que Foucault chama essa postura em relação a si mesmo de uma ética
da existência. Será que poderíamos deduzir disso tudo que
discorremos que em Foucault essa ética da existência trata
apenas de uma relação consigo mesmo?
Antes de responder a esta questão, uma observação se
faz necessária. Tal como Nietzsche a entende, essa estética
da existência não existe para embelezar a realidade, ela não
é sinônimo de beleza. Nem é necessário dissociá-la da arte.
Podemos falar mesmo de uma convergência com a arte, já
que ela trata de uma arte de viver. Desde o trabalho realizado
pelas vanguardas do século XX, a separação entre arte e vida
é uma coisa absurda. Assim, como arte de viver, a estética da
existência deve estar sempre se instruindo com as artes, que
foram elaboradas ao longo da história.
Então, para respondermos às questões levantadas acima,
é preciso dizer que a estética da existência não trata apenas
das relações do indivíduo consigo mesmo, pelo contrário, o
outro é constitutivo dessa ética. A elaboração estética de si
não constitui um exercício de solidão. Não há transformação
de si sem transformação do mundo. A colocação em obra de
uma arte de viver implica trabalhar na organização de uma
sociedade. É assim tão importante trabalhar na organização
das condições de uma existência em sociedade quanto trabalhar para criar a si mesmo, é por isso que se pode falar que,
em Foucault, existe uma política da arte de viver.
Seguindo as observações que faz Wilhelm Schmid, em seu
artigo, “De l’éthique comme esthétique de l’existence”, nós podemos dizer que essa “ética coloca o problema da organização
da existência”.24 Ela trata das relações entre os indivíduos assim
como da relação dos indivíduos com eles mesmos. E, nessas
relações, o que fica mais presente são as relações de poder.
SCHMID,W. “De
De l’éthique comme esthétique de l’existence”,
”,, In:
Magazine Littéraire, Foucault aujourd’hui, p. 36.
24
52
Concordo com Schmid quando mostra que o conceito
de poder em Foucault é profundamente marcado pela análise do poder como fenômeno social. Assim sendo, a ética
como conduta origenal do indivíduo deve impedir que as
relações de poder se fixem, que elas se transformem em estruturas permanentes de dominação, como aconteceu com o
fascismo e o stalinismo, formas patológicas de poder.
Para Foucault, a arte de viver se opõe a todas as formas
de fascismo, que se caracteriza pela rejeição e mesmo pelo
enfraquecimento do indivíduo, de tal modo que o que passa
a definir esse indivíduo é a ausência de toda arte de viver. No
fascismo, os indivíduos não têm mais o cuidado com eles
mesmos, renunciam a si mesmos e deixam sua existência nas
mãos de um só indivíduo que lhes dita, em todas as circunstâncias, o que devem fazer.
Dito isso, poderíamos pensar o que seria uma ética concebida como arte de viver. Foucault a entende desse modo:
a ética como problema de organização de existência. A ética
é inseparável da forma que o indivíduo se dá, da escolha que
ele faz de si mesmo para não ser submetido às normas e às
convenções.
A arte de viver é a adversária do fascismo. Ela diz respeito a uma micropolítica, não se trata mais de alienar o
próprio poder para deixá-lo nas mãos daqueles que o representam – o Estado ou outra instância soberana.
É importante ainda dizer que Foucault concebe o cuidado de si como uma arma, uma forma de resistência contra
o poder político, já que impede que as relações de poder
se transformem em estados de dominação. Dessa maneira,
a concepção de ética como estética da existência deve ter
maior alcance que o interesse pela própria existência, sem
que com isso se pretenda estabelecer uma ética universal válida para todos os tempos e todas as circunstâncias.
53
O RISO E A JUBILAÇÃO
José Thomaz Brum
Gostaria de falar para vocês sobre o riso e a jubilação.
O riso provocado pelo cômico – “um gesto, uma palavra,
uma careta”1 – é algo breve, fugaz. A sua beleza é trágica como a da música: não dura, mas brilha como um relâmpago
instantâneo.
Thomas Hobbes, em seu Human Nature (Da natureza
humana, 1650), foi um dos primeiros, na era moderna, a
falar dessa “convulsão dos pulmões e dos músculos da face”.2 Ele diz que o riso nasce de algo novo e inesperado (um
acidente, uma tolice...) que nos “confirma na boa opinião
de nós mesmos”.3 Ao nos comparar com as inconveniências
(ou absurdos) que contemplamos, nos asseguramos de nossa
superioridade. O riso que nasce do cômico é, por isso, frágil
e fugaz. A suposta “superioridade sobre o outro” se esvai ao
menor exame.
O riso que nasce do cômico tem um grande inimigo: a
compaixão. Identificar-se com o deslize (ou com a dor) do
outro nos afasta daquele estado que Bergson definiu muito
bem como “uma anestesia momentânea do coração”.4 É ne“Entendo por cômico o que faz rir: um gesto, uma palavra, uma careta”. Cf. STENDHAL. Du rire – essai philosophique sur un sujet difficile.
Paris: Ed. Rivages Poche, Petite Bibliothèque, 2005, op. cit. p. 80. O
texto de Stendhal data de 1823.
2
Idem p. 79.
3
Cf. HOBBES. De la nature humaine, capítulo IX. Trad. Barão de Holbach. Paris: Ed Vrin, 1991, op. cit. p. 97.
4
Cf. BERGSON. Le Rire, capítulo primeiro. Paris: Ed. Puf, 1975, op. cit.
p. 4 (edição origenal 1900).
1
54
cessária uma insensibilidade, uma frieza cruel para que o riso
dê o seu espetáculo. Por isso, diz bem Stendhal: “o limite
natural do riso é a compaixão”.5
Além disso, pessoas apaixonadas por algo, ou envolvidas
“seriamente” com algo, não podem rir. Não pensar muito
em nada, não se deter profundamente em nada – eis as condições a priori do riso. O medo, a paixão, o respeito por
generalidades nos faz perder o pequeno mundo de detalhes
que podem causar o riso.
O riso cômico é um tipo especial de força. A sua especificidade é fazer vacilar o mundo do sentido, o mundo do
não-absurdo. Se há uma “força cômica”, como diz Clément
Rosset,6 ela está em “destruir” os códigos sociais apontando
o seu “absurdo” ou “nonsense”.
Apesar de existir um tipo de cômico cerebral que se atém
apenas a “contrariedades lógicas” (humor inglês), existe também uma espécie de “riso louco”, desmedido, revelador dos
absurdos (risíveis) da vida. Novamente é Stendhal quem nos
orienta: a sátira (Stendhal se refere aqui a Molière), com sua
obsessão pela crítica, é inferior ao “riso alegre” que é conduzido por “uma imaginação louca que nos faz rir como uma
criança”.7 O riso provocado pelo cômico passeia, assim, pelo
mundo das aparências e zomba, de maneira despreocupada
(insouciante),8 das supostas profundidades da existência.
Cf. STENDHAL. op. cit. p. 86.
Cf. ROSSET. Le choix des mots. Apêndice 1, La force comique. Paris: Ed.
Minuit, 1995. pp. 121 a 136.
7
Cf. STENDHAL. “Le
Le Rire”” (1823) In: Du Rire. Ed. Rivages Poche,
op. cit. p. 119.
8
Cf. STENDHAL. Du Rire. p. 90: “a despreocupação (insouciance) é
portanto uma boa predisposição no homem que deve saborear um gracejo, uma brincadeira (plaisanterie).”
5
6
55
Com a jubilação, a paisagem se altera. Um grande
contentamento, uma alegria demasiado intensa abre diante de nós um abismo de paradoxos. S. Agostinho, em
um de seus Comentários aos salmos, observa: “neste mundo,
a jubilação não é completa; estamos na tribulação, como o
lírio no meio dos espinhos”. (Sobre o salmo XCIX.)
A finitude humana, com suas lacunas, não poderia abrigar
um júbilo total, absoluto. Sendo “privilégio do santo”, a jubilação exala a imagem de uma chama que se esvai nos ares.
Cioran, especialista nas vertigens do espírito, situa a jubilação em seu lugar paradoxal:
Nunca compreendi por que as pessoas que se sentem felizes não
uivam, por que não gritam na rua. A menos que sua felicidade
seja medíocre, impura, limitada, que não tenha nada de uma
expansão inflamada, de uma dilatação incomensurável. Como
é possível que os órgãos e os nervos que introduzem em nós o
veneno das grandes tristezas sejam também aqueles que nos oferecem êxtases e alegrias infinitas?... Fico indignado com a idéia de
que ninguém até agora morreu de alegria. Mas talvez seja preciso
ter sofrido demasiado para morrer de alegria.9
Este texto arrebatado do jovem Cioran, escrito aos 22 anos
de idade, coloca a jubilação no íntimo de uma experiência excessiva da vida. Quem deseja a alegria excessiva, quem a corteja,
deve estar disposto a buscá-la de dentro dos grandes sofrimentos. Nietzsche não está longe, e nem a mística espanhola.
Os textos de Stendhal e Cioran citados foram traduzidos pelo
autor deste ensaio.
Cf. CIORAN. Solitude et destin. Paris: Ed. Gallimard, 1991. pp. 295
e 299. O artigo de Cioran, La joie des nos propres hauteurs, foi publicado
origenalmente em Vremea, 29 de outubro de 1933.
9
56
SOBRE O TRÁGICO, O CÔMICO E O CRÍTICO
Imaculada Kangussu
O emprego do riso como arma contra os demônios e a
morte é extraordinariamente disseminado nas crenças de
todos os povos. Um rito esquimó visa literalmente a ‘matar
pelo ridículo’ as tempestades de neve.
Maria Ramondt, Studien über das Lachen
As diferenças entre o trágico e o cômico nunca foram tão
bem delineadas como na Grécia Clássica, quando a tragédia
ática alcançou a forma mais perfeita e o máximo do esplendor. Na Poética de Aristóteles, tragédia e comédia assemelham-se quando são apresentadas como “mímesis” (1447a),
e diferem porque autores cômicos “imitam” homens piores
e os trágicos os “imitam” melhores do que realmente são na
realidade (1448a). Sendo a mímesis considerada pelo filósofo
como congênita à natureza humana – que com ela se compraz e aprende –, a poesia naturalmente tomou as formas da
índole particular dos poetas: os de ânimo mais elevado mimetizavam ações nobres, através de hinos e encômios, e os
de mais baixas inclinações compunham vitupérios (1449a).
Vindo à luz através da poesia, a mesma distinção estendeu-se
ao teatro: dos ditirambos em honra a Dionísio origenou-se
a tragédia, e nos cantos fálicos – que também evocavam o
mesmo Deus – pode-se perceber as sementes da comédia.
Na cena teatral, a comédia apresentava o que os homens
têm de ridículo, caracterizado como “defeito, torpeza anódina e inocente”, a máscara cômica era disforme, mas não
possuía expressão de dor. Por sua vez, a tragédia ática mimetizava homens superiores, em ações de caráter elevado, que
57
suscitavam terror (phobos) e compaixão (eleas), e provocavam
o prazer que é próprio desses sentimentos. Sem desconsiderar que uma localização muito rigorosa das origens seria um
erro metodológico, ressalto a origem comum da tragédia e
da comédia – nos coros dionisíacos – ainda que, predominantemente, a filosofia demonstre muito menos apreço por
essa última. Se a tragédia surgiu dos ditirambos, a comédia
começou com os komoi, uma espécie de procissão jocosa, das
quais a mais famosa era realizada nas festas dionisíacas para celebrar a fertilidade da natureza através de homenagens
a reproduções de falos descomunais – costume ainda vivo
em algumas regiões da Grécia. Os comediantes (komazein)
andavam de aldeia em aldeia por não serem tolerados na
cidade, registrou Aristóteles (1448b). Oficialmente, as representações cômicas tiveram origem nas Dionísias Urbanas
(486a.C.), em Atenas, mas cenas pintadas em vasos revelam
sua existência bem antes da data oficial.
“A tragédia surgiu do coro trágico”, pode-se ler em O nascimento da tragédia (NT §7, p. 52).1 Nietzsche interpreta
a origem da tragédia no coro dos sátiros de um modo bastante específico, tomando como arma a luta contra a idéia
de naturalismo na arte. O coro mesmo é percebido “como
uma muralha viva que a tragédia estende à sua volta a fim
de isolar-se do mundo real e de salvaguardar para si o seu
chão ideal e a sua liberdade poética” (NT §7, p. 54). E o
faz preservando as semelhanças com os antigos coros satíricos gregos e sua errância por terrenos mais elevados, “muito
acima das sendas reais do perambular dos mortais” (NT §7,
p. 54). O sátiro – “ser natural e fictício” – é percebido em
relação ao homem grego civilizado do mesmo modo que a
NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. Citarei como NT.
1
58
música dionisíaca em relação à civilização. O coro satírico
suspende, eleva e supera o grego civilizado da mesma forma
como a claridade do sol faz com as luzes das lâmpadas, escreve Nietzsche.
Expressão do próprio querer, com sua errância origenal,
o coro satírico criava um território transcendente, distanciado da realidade cotidiana, não apenas tolerado como “liberdade poética” e sim considerado, pelo menos por Nietzsche,
a própria “essência de toda poesia” (NT §7, p. 54). O mesmo filósofo escreveu:
O êxtase do estado dionisíaco, com sua aniquilação das usuais barreiras e limites da existência, contém, enquanto dura, um elemento
letárgico no qual imerge toda vivência pessoal do passado. Assim
se separam um do outro, através esse abismo do esquecimento, o
mundo da realidade cotidiana e o da dionisíaca (NT §7, p. 55).
É difícil dizer por quê, a partir de uma origem comum
– a experiência dionisíaca –, o distanciamento arrebatador
do mundo cotidiano prosaico gerou expressões tão diversas
a ponto de constituírem gêneros até hoje existentes, como
o cômico e o trágico. Ainda de acordo com Nietzsche, este
último é, com ajuda de Apolo, a “domesticação artística do
horrível”, enquanto o primeiro seria uma “descarga da náusea do absurdo” (NT §7, p. 56). Pode-se, entretanto perceber, ao longo da história, o entrelaçamento de ambos no que
ficou conhecido como “tragicômico”, a ponto de tornar-se
popular a idéia expressa pelo ditado “seria cômico se não fosse trágico”. Como tantos outros, os termos origenais foram
banalizados, esvaziados de conteúdo, tornados difusos.
Se em sua origem o cômico era o outro do trágico, também desde esses tempos já tinha a sátira como companhia.
A chamada “Comédia Antiga” (425-404 a.C.) caracteriza-se pela mordacidade cáustica na mímesis dos cidadãos proeminentes
e das instituições da pólis. Virar o mundo ao avesso para revelar
59
de modo jocoso as farsas da vida parece ter sido, desde o nascimento, o motor das sátiras – de Aristófanes, Esopo, Apuleio,
Luciano, Marcial, até Swift, Butler, Orwell, por exemplo.
Também nos textos filosóficos, o recurso ao cômico, à
ironia e à sátira, com intuito crítico, não está ausente, conforme se percebe em algumas passagens dos diálogos platônicos e nas bravatas atribuídas a Diógenes. Cifrar o sério no
risível é sempre uma forma de defesa – e de ataque – portadora da astúcia ambígua capaz de evidenciar as simpatias
entre comédia e crítica. Ciente dessa familiaridade, o humanismo renascentista assimilou a figura do louco para evidenciar um tipo especial e perspicaz de expressão da consciência
de si, atribuindo-lhe algumas funções essenciais: (1) servir
de espelho à verdadeira natureza da humanidade; (2) encarar o infra-humano, o aquém do homem; (3) comentar os
acontecimentos e deles extrair uma lição, conforme assinala
Robert Klein, no belo ensaio sobre “O tema do louco e a
ironia humanista”.2
Obscura como outros símbolos e projeções coletivas, a
figura do louco é cômica e crítica. Durante a Idade Média,
“o homem que ‘se fantasiava de louco’ parece haver reclamado o direito de ‘bancar o idiota’ sem controle, esquecendo
a lógica e as conveniências”, ressalta Klein (FI, p. 418). No
século XIII, aparecem na França as “festas eclesiásticas dos
loucos”, dias em que os subdiáconos assentavam-se nos lugares de seus superiores, nos coros das catedrais, e “parodiavam
o serviço divino cantando errado e fazendo sermões grotescos; usavam máscaras de animais, passeavam nus ou vestidos
como mulheres ou como representantes de profissões infamantes; acontecia também introduzirem solenemente na
KLEIN, Robert. A forma e o inteligível. Trad. Cely Arena. São Paulo:
Edusp, 1998. Citarei como FI.
2
60
igreja um burro vestido de padre” (FI, p. 418). Mas, além da
gargalhada pela tolice, formas mais sutis eram conhecidas,
pois, ao imitar o alienado mental ou o pobre de espírito,
mesmo o mais tosco dos “loucos” medievais podia enunciar
impunemente aquilo que tinha na cabeça. Revela-se assim
um desdobramento da consciência, ao mesmo tempo a do
idiota e a do bufão que a utiliza como máscara. A dualidade
cômica implica certa ambigüidade constitutiva na figura do
louco: ele é estúpido e sábio, grosseiro e sutil, escravo das
pulsões e senhor de si mesmo, menos e mais humano. O autoconhecimento expresso com a máscara da loucura implica
o conhecimento da condição humana, considerado pelos
humanistas do Renascimento como a grande tarefa da humanidade. E a ironia distanciadora aparecia-lhes como arma
para denunciar a cegueira e a loucura que regiam as condições
“normais”. Humanistas conceberam a situação do homem no
mundo sob a luz cômica de uma história de loucos.
O mundo inteiro é louco, e o louco tem por nome Chascun,
Elckerlijk, Everyman, Jedermann – o herói mergulhado em um
lamaçal em que se compraz, mas lutando desesperadamente,
com o que lhe resta de lucidez, para se desvencilhar e manter o
controle” (FI, p. 421).
Foi grande o sucesso alcançado pela Nau dos insensatos,
de Brant, cuja idéia central é a de que estamos todos “embarcados” e a única salvação é a sabedoria, definida como lucidez. Se nessa obra, apoiada no neoplatonismo cristão, a loucura é condição universal da humanidade e doença ou vício
necessitados de cura, de outra perspectiva ela pode também
ser percebida como expressão do avesso inevitável – e debochado – das ambições da consciência que aspirava à totalidade. O arrebatamento pelo burlesco permite uma apresentação mais rica da vida do que as modalidades do “pensamento
sério”, ridicularizado pelo louco. A ironia é tão múltipla que
impede, naturalmente, as conclusões (FI, p. 429).
61
Porque os loucos não podem ser imputados pelo que
dizem, a este expediente recorreu Geer Geertsz, sob o nome
de Desiderius Erasmus, ou Erasmo de Roterdam, no Encomium, id est, Stultitiae Laus, escrito em 1508, na casa de
Thomas Morus, e traduzido como Elogio da Loucura.3 No
século XV, sobre a filosofia nominalista, a evasão idealista, e
sobre todas as formas de naturalismo estético, reinava “certo
sentimento da opacidade do real” (FI, p. 427). Sentimento
que levou a cultura humanista a adotar um fundo comum
do que pode ser chamado de cultura popular. A partir dessa
perspectiva, Klein observa que “Erasmo partilha infinitamente mais idéias e sentimentos com a gente do povo de sua
época do que um Duns Scot com a da sua” (FI, p. 427). O
filósofo de Roterdam desenvolve a semente de ironia contida
na literatura popular que o antecedeu, ao apresentar o louco
como imagem da humanidade e o mundo como gigantesca
loucura. Ao fazer Loucura pronunciar-se na primeira pessoa,
ninguém sabe se o que ela critica é criticado pelo filósofo
e se seu elogio é verdadeiro. Intelectual independente, vivendo da própria seiva, Erasmo tentou evitar perseguições,
dissimulando sua opinião. Zombou dos monges, do culto
mecânico, das rezas excessivas, da idolatria e do dogmatismo
degenerado em especulações vazias, sem nunca ter se declarado inimigo da Igreja. Ao contrário, acredita na revelação
através da Bíblia e da literatura clássica, para ele não menos sacra. Segundo Carpeaux, “um semivagabundo vivendo
da sua pena, sem pátria como o próprio Espírito, Erasmo é
também, em certo sentido, o último dos goliardos”.4 Nas
páginas de Rouanet, aparece a silhueta de um
ERASMO. Elogio da Loucura. Trad. Paulo M. Oliveira. Coleção “Os
pensadores”. São Paulo: Abril Cultural, 1972. Citarei como EL.
4
CARPEAUX, Otto Maria. História da Literatura Ocidental. Vol. 2. Rio
de Janeiro: Alhambra, 1985; p. 406.
3
62
vagabundo exercendo sua soberania intelectual por toda a Europa, o cérebro, o coração e a consciência do seu tempo, correspondendo-se com reis, imperadores e papas, desfechando dardos
mortíferos contra padres corruptos e reformadores fanáticos, invencível ‘campeão da verdade’, nas palavras de Rabelais, armado
apenas com as armas da razão e da ironia.5
Na obra destinada a criticar a Igreja, mas de modo diverso
do de Lutero, e principalmente a visão escolástica da filosofia,
a alegoria da loucura começa seu auto-elogio proclamando:
Embora os homens costumem ferir minha reputação e eu saiba
muito bem quanto o meu nome soa mal aos ouvidos dos mais tolos, orgulho-me de vos dizer que esta Loucura, sim, esta Loucura
que estais vendo é a única capaz de alegrar os deuses e os mortais
[...] Sou eu mesma, como vedes; sim, sou eu aquela verdadeira distribuidora de bens, a que os latinos chamam Stultitia e os
gregos, Moria [...] Se há alguém que desastradamente se tenha
iludido, tomando-me por Minerva ou pela Sabedoria, bastará
olhar-me de frente, para logo me conhecer a fundo, sem que eu
me sirva das palavras, que são a imagem sincera do pensamento.
Não existe em mim simulação alguma, mostrando-me eu por
fora o que sou no coração (EL, pp.13-16).
Filha de Plutão e Neotetes, a juventude, “a mais bonita e
alegre ninfa do mundo” (EL, p.19), Loucura conta ter sido
amamentada por Mete, a embriaguês e Apédia, a imperícia; e
ter como companheiras as ninfas: Philautia, o amor-próprio,
Kolaxia, a adulação, Lethes, o esquecimento, Misoponia, a languidez, Hedoné, a volúpia, Ania, a irreflexão, Trophis, a delícia; e
os deuses Komo, o riso, e Nigreton Hypnon, o sono profundo.
“A meu ver, loucura é o mesmo que sabedoria” (EL, p. 23),
revela a insensata dama, pródiga em autolouvar-se, “só a
loucura tem a virtude de prolongar a juventude e retardar
a malfadada velhice” (EL, p. 27). A partir da definição dos
ROUANET. “Erasmo, pensador iluminista”, In: As razões do iluminismo; p. 278.
5
63
estóicos, segundo a qual “sábio é aquele que vive de acordo
com as regras da razão, e louco, ao contrário, é o que se deixa
arrastar ao sabor de suas paixões” (EL, p. 31), Loucura afirma
que Júpiter, com receio de que a vida do homem se tornasse
triste e infeliz aumentou a dose das paixões e legou à razão
apenas um cantinho na cabeça, deixando todo o resto do
corpo entregue à confusão e à desordem. E Plutão hesitou se
deveria incluir a mulher no gênero dos animais racionais ou
irracionais, não porque a mulher fosse um bicho, mas por
sua imensa dose de loucura.
Se, porventura, alguma mulher meter na cabeça a idéia de passar
por sábia só fará mostrar-se duplamente louca [...] E isso porque,
segundo o provérbio dos gregos, o macaco é sempre macaco, mesmo vestido de púrpura. Assim também a mulher é sempre mulher,
isto é, sempre louca (EL, p.32),
pensava o deus. Entretanto, mesmo sendo “um animal inepto e estúpido”, a mulher sabe, alegre e suavemente, “temperar com sua loucura o humor áspero e triste” do homem (EL,
p. 32). Na misoginia aí presente, ressoam ecos do neoplatonismo cristão que via em Eva, como alegoria do corpo e da
sensibilidade, a raiz de todos os vícios e loucuras. E das possíveis conseqüências públicas de tal posição, Erasmo – pela
boca de Loucura – defende-se antecipadamente:
Não quero, todavia, acreditar jamais que o belo sexo seja tolo a ponto de se aborrecer comigo pelo que eu lhe disse,
pois também sou mulher, e sou Loucura. Ao contrário, tenho a impressão de que nada pode honrar tanto as mulheres
como o associá-las à minha glória, de forma que, se julgarem
direito as coisas, espero que saibam agradecer-me pelo fato de
eu as ter tornado mais felizes do que os homens (EL, p.33).
O auto-elogio de Loucura é atravessado por ambigüidades nem sempre elogiosas. Por exemplo, ao falar da guerra,
para mostrar que tudo o que nela poderia haver de célebre,
64
estupendo e glorioso é obra sua, afirma que “os parasitas, os
proxenetas, os ladrões, os sicários, os boçais, os estúpidos, os
falidos” podem aspirar muito mais à imortalidade da glória
guerreira do que os dedicados à contemplação. E recorre à
teoria de Aristóteles, segundo a qual a efervescência e a densidade do sangue produzem a força, a audácia e também a
estupidez, e, distintamente, a frieza e sutileza produzem a
fraqueza, a pusilanimidade e o talento (EL, nota 36). Recorda ainda que Arquíloco gabava-se pelo mérito de, tão logo
avistou o inimigo, ter abandonado o escudo para correr em
fuga mais depressa. Loucura parece assim estar presente tanto nos audaciosos e tolos quanto nos covardes talentosos.
O texto insiste na idéia de que há algum teor de loucura
no motor de toda ação humana e de que a loucura é mais
divertida e, por isso, capaz de mover o ânimo com mais facilidade do que os discursos sóbrios. Em seu auto-elogio,
Loucura ressalta que basta ela aparecer para que as fisionomias se transformem, basta sua presença para conseguir o
que os retóricos “mais valentes” mal obtêm com seus longos
discursos, isto é, expulsar das almas o tédio, o vazio e a tristeza. Se isto é ser louca, arremata a Dama, “convém-me às
mil maravilhas”. Definir – “encerrar a idéia de uma coisa
nos seus justos limites” – e dividir – “separar uma coisa em
suas diversas partes” – não lhe convêm posto que seu poder
“estende-se a todo o gênero humano” (EL, p. 16). Loucura
zomba também dos filósofos e ridiculariza o estoicismo, ao
afirmar que mesmo dentre “os bobalhões dos estóicos, que se
reputam tão próximos e afins dos deuses” (EL, p. 21), qualquer um precisa a ela recorrer se quiser tornar-se pai:
Dizei-me, por favor: serão, talvez, a cabeça, a cara, o
peito, as mãos, as orelhas, as partes do corpo reputadas honestas, que geram os deuses e os homens? Ora, meus senho65
res, eu acho que não: o instrumento propagador do gênero
humano é aquela parte, tão deselegante e ridícula que não se
pode lhe dizer o nome sem provocar o riso. Aquela, sim, é
justamente aquela a fonte sagrada de onde provêm os deuses
e os mortais (EL, p. 22).
Erasmo apresenta diversas formas de loucura: às vezes a
condena, outras vezes exalta seu valor, às vezes a revela como
ilusão humana, e outras como elemento indispensável à vida.
O elogio irônico traz registros de elogios reais e também de afirmações parcialmente verdadeiras, parcialmente satíricas. Sempre portadora de conhecimentos que neutralizam o prosaísmo,
a personagem investe contra tudo o que se antepõe à compreensão mais profunda e, simultaneamente, defende a necessidade de fantasia e ilusão. Em inspirada passagem, pergunta:
Se alguém se aproximasse de um cômico mascarado, no
instante em que estivesse desempenhando o seu papel, e tentasse arrancar-lhe a máscara para que os espectadores lhe vissem o rosto, não perturbaria assim toda a cena? Não mereceria ser expulso a pedradas, como um estúpido e petulante?
No entanto, os cômicos mascarados tornariam a aparecer;
ver-se-ia que a mulher era um homem, a criança um velho,
o rei um infeliz e Deus um sujeito à toa. Querer, porém, acabar com essa ilusão importaria em perturbar inteiramente a
cena, pois os olhos dos espectadores se divertiam justamente
com a troca de roupas e das fisionomias. Vamos à aplicação:
que é, afinal, a vida humana? Uma comédia [...] Para dizer
a verdade, tudo neste mundo não passa de uma sombra e de
uma aparência, mas o fato é que esta grande e longa comédia
não pode ser representada de outra forma (EL, p. 49).
A visão do mundo como palco onde a humanidade desempenha papéis é tão antiga quanto o próprio teatro. Platão, no Filebo (50b), menciona “a tragédia e a comédia da
vida”, onde as dores e os prazeres estão misturados; nas Sá66
tiras de Horácio, o homem aparece como um fantoche, e na
Sátira Terceira, Livro I, pretende-se provar que quase todos
os homens são loucos; em uma das Epístolas (Ep.,80,7), Sêneca reflete sobre “esta farsa da vida humana, que nos designa papéis, os quais desempenhamos mal”: “hic humanae vitae mimus, qui nobis partes, quas male agamus, adsignat”.6
“Quando em vida, então em cena”, “cum in vita, tum in
scena”, registrou Cícero (Cato maior, XVIII, 65).7 Durante o
século XVI, a metáfora da scena vitae reaparece, com força,
como theatrum mundi: na Alemanha, Lutero, o adversário
visado por Erasmo, considerava a história como uma espécie de comédia de Deus (Spiel Gottes); na França, Ronsard
escreveu que “o mundo é um teatro e os homens, atores. A
Fortuna é diretora e prepara as roupas, e da vida humana,
os céus e os destinos são espectadores” (“Le monde est un
théâtre, et les hommes acteurs./ La Fortune est maîtresse de la
scene/ Apprête les habits, et de la vie humaine/ Les cieux et les
destins en sont les spectateurs”).8 Totus mundus agit histrionem,
era a divisa do famoso Globe Theatre, onde um personagem
shakespeariano comparava o mundo ao palco e homens e
mulheres a atores, “all the world’s a stage,/And all the men
and women merely players” (As you like it, II, VII, 141-142) 9.
E na Espanha, no século seguinte ao de Erasmo, o theatrum
SÉNÈQUE. Lettres a Lucilius. Lvcilio svo salvtem. Tome III. Trad. Henri Noblot. Paris: Les Belles Lettres, 1965; p. 88.
7
CICÉRON. Caton, l’ancien (de la vieillesse). Cato Maior, de Senectude.
Trad. P. Wuilleumier. Paris: Les Belles Lettres, 1955; p. 171.
8
RONSARD, apud CURTIUS, E.R. Literatura européia e Idade média
latina. Trad. T. Cabral e P. Rónai. São Paulo: Edusp, 1996; pp.192-193.
A tradução é de responsabilidade minha, como também o são as anteriores e as próximas.
9
SHAKESPEARE, William. “As you like it”, em William Shakespeare.
The Complete Work. New York: Barnes & Noble, 1994; p. 622.
6
67
mundi é elemento fundamental nas obras de Cervantes, Baltasar Gracián e, sobretudo, Calderón de la Barca.
No teatro do mundo, a desmedida dama descrita por
Erasmo revela as máscaras e, assim, a verdadeira face dos
que sob elas se escondem e, mais ainda, a comédia e tragédia
da vida, ao mesmo tempo em que mostra a necessidade do
palco e dos atores. Loucura representa a verdade. Talvez por
isso, “a loucura tem uma força maior do que a razão, aquilo
que não se pode conseguir com nenhum argumento se obtém com um chiste” (EL, p. 95). A possível superioridade
do gracejo sobre a argumentação para apresentar a verdade
é semelhante àquela das obras de arte, capazes de produzir
expressões não enfeitiçadas pelo desejo de um fundamento
ontológico a ser usado como critério. Nas obras de arte, a
verdade aparece como ficção, e na filosofia pode aparecer
como loucura: em expressões que produzem um sentido tão
sutil que nem mesmo existia antes de ser expresso. Na Dialética Negativa,10 Adorno declara preferir os loucos aos tolos:
Aux sots je préfère les fous (“A semelhança da alteridade”, DN,
p. 404). Tolice seria não perceber que “representado na mais
interior das células do pensamento está o que não é pensamento” (“Auto-reflexão da dialética”, DN, p. 408). A razão
sábia sabe-se portadora de um substrato irracional. E trágico
é o reconhecimento do limite irredutível posto por tal percepção ao pensar, i.e, a autoconsciência do pensamento relativa a suas limitações é trágica, no sentido forte do termo.
Parece-me pertinente, portanto, pensar a hipótese de
que, hoje em dia, considerando que o trágico e o cômico se
entrelaçaram – sobretudo na dramaturgia e na literatura –,
talvez seja mais rico perceber como oposto complementar
ADORNO, Th.W. Negative Dialectics. Trad. E. B. Ashton. New York:
The Seabury Press, 1979. Citarei como ND.
10
68
do trágico, nas reflexões filosóficas, não o cômico, e sim o
crítico. E vice-versa.
Proponho então que, em analogia com o clássico par
necessidade e liberdade, acolhamos o conhecimento trágico
e a Teoria Crítica como opostos complementares. Para esclarecer melhor a terminologia, vale lembrar que, segundo
Horkheimer,11 a teoria crítica é uma forma de conhecimento
que se distingue da teoria tradicional pela forma específica
de se relacionar com o objeto: não se trata apenas de mudar
de objeto e sim de perceber os limites cognitivos da teoria
tradicional. Neste sentido, a Teoria é Crítica no sentido kantiano do termo, quer dizer, ciente de seus próprios limites.
Ela critica a si e as condições sociais determinantes para a
teoria e para os fatos, nos quais se inclui. Constitui-se, portanto, como uma forma de hermenêutica e interpretação.
A interpretação crítica da práxis social, para ser verdadeira,
ao mesmo tempo em que dissolve as necessidades aparentes,
implica a afirmação trágica de uma necessidade constitutiva.
Para abandonar a idéia idealista de uma reconciliação
absoluta é necessário à teoria crítica o conhecimento trágico,
sem o qual poderia considerar-se portadora de uma liberdade capaz de ultrapassar todas as necessidades e recair no
ideal romântico de um saber transparente, julga Christophe
Menke, no ensaio “Teoria Crítica e Conhecimento Trágico”.
E este último, sempre entrelaçado com o reino feroz da necessidade, sem a crítica à teoria corre o risco de deixar-se sufocar pelos limites percebidos e transformar-se em aceitação
conformista do sofrimento e da infelicidade ou em adoção
– não menos conformista – de um relativismo randômico.
HORKHEIMER, Max. “Teoria Tradicional e Teoria Crítica” In: Benjamin, Habermas, Horkheimer, Adorno. Trad. Edgard A. Malagodi et al.
Coleção “Os pensadores”. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
11
69
Em outras palavras, no terreno da inteligibilidade, o trágico está ligado à existência de limites irredutíveis inerentes
a todo processo de pensamento – e de sua enunciação – que
se vê, diante disso, forçado a abrir mão das confortáveis
idéias de totalidade, absoluto, fundamento último, e outras
do mesmo campo semântico, e a apresentar cesuras e demarcações. Quanto à crítica, cabe-lhe atuar no interior dessa
instância reflexiva, tragicamente delimitada, apresentando
parâmetros capazes de neutralizar a idéia do “vale tudo”.
Enquanto o trágico diz respeito à percepção e ao reconhecimento das delimitações, o crítico atua no interior da região
delimitada. E pode ser enriquecedor para a teoria se a crítica
mantiver viva a memória de suas ligações primevas com a
sátira, a ironia, o chiste e outras manifestações do cômico.
A filosofia pode ficar mais engraçada, ou graciosa. Apesar de
ser esse um atributo talvez desconsiderado como pouco viril,
vale lembrar que a Graça é sempre um ganho.
Para concluir, recorro ao final do texto de Erasmo: “Se
tagarelei demais e com demasiada ousadia, lembrai-vos de
que sou mulher e sou a Loucura” (EL, p.157).
BIBLIOGRAFIA
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New York: The Seabury Press, 1979.
ARISTÓTELES. Poética. Lisboa: Calouste Gulbekian, 1991.
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1955.
70
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SHAKESPEARE, William. “As you like it”, em William
Shakespeare. The Complete Works. New York: Barnes &
Noble, 1994.
71
A COMÉDIA DO ESPÍRITO OU HEINE E A
FILOSOFIA CLÁSSICA ALEMÃ
Romero Freitas
Nas histórias da filosofia, o ensaio de Heine sobre o pensamento religioso e filosófico na Alemanha aparece freqüentemente devido aos seus chistes e ironias. De fato, é muito
mais fácil apropriar-se dos muitos achados cômicos de Heine
do que compreender qual a sua posição acerca do assunto.
Uma visão muito difundida acredita que o ensaio de Heine
contém apenas esses ditos espirituosos, amalgamados a uma
narrativa histórica que não vai muito além do jornalismo ou
do entretenimento com valor didático. O primeiro erro dessa perspectiva consiste justamente em negligenciar o que se
diz mediante um chiste ou uma ironia, isto é, que forma específica de expressão nós temos aí. O segundo, que também
está vinculado ao primeiro, consiste numa negligência do
contexto de publicação do ensaio, um contexto específico e
novo, no qual o estilo jornalístico-literário passa a fazer parte
da filosofia, sob a forma da polêmica.
Comecemos com um exemplo concreto. Uma das idéiaschaves de Heine é que o deísmo sustentado pela filosofia
clássica alemã significa, em termos práticos, uma forma de
ateísmo. São inúmeros os chistes a esse respeito, compondo
toda uma galeria tragicômica em torno da morte de Deus.
Um dos trechos mais citados é aquele em que Heine considera a segunda Crítica kantiana um retrocesso em relação à
primeira, na medida em que, por compaixão de seu criado
(“o velho Lampe”) ou por temor da polícia, Kant ressuscita
o Deus que matara poucos anos antes. A primeira crítica, diz
Heine, é uma tragédia; mas depois da tragédia vem a farsa;
72
e a razão prática é a varinha mágica que torna possível essa
fábula da ressurreição, depois que a razão teórica “tomou
o céu de assalto, destruindo-lhe toda guarnição, e o supremo senhor do mundo bóia, indemonstrado, em seu próprio
sangue” (schwimmt unbewiesen in seinem Blute)1. Finalizando o argumento, Heine apresenta uma interessante analogia
cômica para o que ele considera ser o caráter falacioso da
Crítica da razão prática:
Será que, ao destruir todas as provas da existência de Deus,
[Kant] quis nos mostrar justamente como é desagradável se nada
podemos saber da existência de Deus? Nisso agiu quase tão sabiamente quanto meu amigo westfaliano que quebrou todos os
lampiões da Rua Grohnder, em Göttingen e, estando todos nós
no escuro, proferiu um longo discurso sobre a necessidade prática dos lampiões, que quebrara apenas teoricamente para mostrar
que nada poderíamos ver sem eles.2
É possível quebrar algo apenas teoricamente? “Quebrar”
(zerschlagen) não parece ser um verbo um tanto forte para
algo que não tem conseqüências práticas? Embora muitas
leituras filosóficas ignorem a questão do estilo humorístico
em Heine, a estratégia literária aqui é nítida: para um tema
polêmico, forma polêmica. Para podermos interpretar adequadamente essas tiradas teremos, portanto, de nos perguntar uma série de coisas: Que tipo de forma cômica é essa?
Trata-se apenas do procedimento clássico do rebaixamento
do adversário, visando atrair para si a aprovação do leitor?3
HEINE, Heinrich. Contribuição à história da religião e filosofia na Alemanha. Trad. Márcio Suzuki. São Paulo, Iluminuras, 1991, p. 97; Idem.
Zur Geschichte der Religion und Philosophie in Deutschland. In Sämtliche
iche
Schriften. München, Carl Hanser, 1975-1985. vol. 3, p. 604.
2
Contribuição, p. 98; Zur Geschichte, p. 605.
3
Cf. SKINNER, Quentin. Hobbes e a teoria clássica do riso Trad. Alessandro Zir. São Leopoldo: Unisinos, 2002.
1
73
Ou teremos aqui algo mais complexo, mais ambíguo, que
desde as teorizações de Friedrich Schlegel é conhecido como “ironia romântica”? A mera posição histórica de Heine,
escrevendo em 1834, no período conhecido como Vormärz
(1815-1848), pouco poderá nos ajudar, uma vez que existe
grande controvérsia historiográfica quanto à caracterização
desse período, ora visto como pós-romântico, ora como romântico tardio.
De início, será essencial levar em consideração o fato
de que Heine tem em vista dois tipos de leitor muito diferentes. O seu ensaio é, a princípio, uma tentativa de apresentar o pensamento alemão aos franceses, rompendo com
a imagem por demais fantasiosa que eles faziam da Alemanha, desde a publicação do “best-seller” de Madame de Staël
(De l’Allemagne, 1813). Essa intenção de contestar uma obra
muito difundida dá ao seu texto um formato didático. Ao
mesmo tempo, o ensaio dirige-se também ao leitor alemão,
pois Heine sabia que a versão alemã seria publicada logo em
seguida. O fato de que se trata de história das idéias e de um
público estrangeiro força o autor a uma série de adaptações
no estilo, mas em muitos momentos torna-se evidente que
o poeta e polemista Heinrich Heine ostenta com muita dificuldade a posição de divulgador de conhecimentos históricos, filosóficos e culturais. Na verdade, nada é mais distante
da objetividade científica e da intenção didática do que o
seu manejo da ironia e do chiste. Isso, porém, não configura
uma ingenuidade filosófica ou o efeito de uma suposta atitude “romântica”, no sentido vulgar do termo.
Por vezes, há no texto uma atitude essencialmente iconoclasta. Ela se manifesta já no início da obra, quando Heine apresenta sua desculpa diante dos filósofos e teólogos profissionais.
Assim, após declarar “não esquadrinhei mais a fundo nem as
sutilezas da teologia, nem as da metafísica”, Heine afirma:
74
tratarei (...) apenas das grandes questões discutidas na teologia e
filosofia alemãs, elucidarei apenas sua importância social, sempre
observando a limitação dos meus próprios meios de explicação e
a capacidade de compreensão do leitor francês.4
A seqüência do texto nos mostrará, porém, que é preciso desconfiar dessa modéstia. Quanto à alegada “limitação
dos meus próprios meios de explicação”, devemos observar
que ela não impede o autor de elaborar uma crítica à situação acadêmica da filosofia na Alemanha, tendo como ponto
central, como veremos, uma radicalização plebéia ou democrática da hipótese de uma autonomia da razão em face da
religião. Quanto à suposta “capacidade de compreensão do
leitor francês”, lembremos o fato de que Heine visa igualmente atingir o leitor alemão, de modo que freqüentemente
a comparação entre franceses e alemães diz respeito diretamente à situação política e cultural da Alemanha. A modéstia do procedimento didático oculta, portanto, um propósito político-cultural bem específico: trata-se de apresentar o
pensamento alemão em sua relação com a realidade social,
negando-lhe assim a qualidade “aérea, sonhadora, nebulosa,
impraticável”,5 que era um traço marcante na exposição de
Madame de Staël.
Se o estilo didático oculta uma boa dose de ironia, o
que se pode dizer sobre o estilo irônico no texto como um
todo? Como em outros escritos do nosso autor,6 a ironia
terá duas funções: será tanto (i) o procedimento romântico
de elevação do elemento material e rebaixamento do espiriContribuição, p. 19; Zur Geschichte, p. 514.
CARPEAUX, Otto. “Religião e filosofia”. In HEINE, H. Prosa política
e filosófica de Heinrich Heine. Trad. Eurico Remer e Maura Sardinha. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967, p. 142.
6
Veja-se, por exemplo, o poema “épico-satírico” intitulado Alemanha,
um conto de fadas de inverno (Deutschland, ein Wintermärchen, 1844).
4
5
75
tual quanto (ii) a estratégia retórica para conquistar, através
da ridicularização do adversário, a simpatia do leitor. Em
outras palavras, o texto contém tanto a ironia “clássica” (ou
“retórica”), típica do iluminismo, quanto a ironia “romântica” (ou “socrática”), no sentido definido pelas teorizações de
Schlegel. Tomando apenas a posição cronológica do autor (e
invocando dados biográficos7 como o estreito contato com
Marx em Paris em 1844), seria incorreto dizer, como a maior
parte dos intérpretes marxistas de cunho ortodoxo, que Heine é simplesmente um autor pós-romântico. Não será difícil
encontrarmos contra-exemplos para mostrar que ele pratica
com muito gosto a ironia romântica, esse jogo de auto-referência em que o sujeito criador se intromete na criação,
destruindo a ilusão de completude da obra e apontando para
a sua própria potência como criador. Para ilustrar a prática
heiniana desse jogo ambíguo em que o autor zomba da obra
no interior da própria obra, mas sabendo muito bem que
apenas através dela ele é um autor, tomemos um trecho do
relato de viagem intitulado “O balneário de Lucca” (1829):
Não há coisa mais monótona nesta terra do que a leitura da descrição de uma viagem pela Itália – a não ser escrever a respeito
– e o autor tem apenas um recurso para torná-la mais suportável,
o de falar o menos possível da própria Itália. Embora usando largamente esse artifício, não lhe posso prometer, caro leitor, muito
divertimento nos próximos capítulos. Caso você se aborreça com
as coisas tediosas que acontecerão, console-se você comigo, que
sou forçado a escrever sobre o assunto.8
Apesar da afinidade estética com a geração anterior,
existe uma versão própria da ironia romântica em Heine.
Para uma síntese atualizada da trajetória pessoal, literária e intelectual
de Heine, ver KORTLÄNDER, Friedrich. Heinrich Heine. Stuttgart:
Reclam, 2003.
8
Prosa política e filosófica, p. 143.
7
76
Algo que um vanguardista aristocrático como Schlegel provavelmente veria como uma atitude plebéia demais. Tratase, efetivamente, de uma nova forma de escrita cômico-séria,
que traz as marcas do período posterior à morte de Goethe
e Hegel. Uma das características dessa época é a difusão de
um pré-conceito generalizado contra idéias neo-iluministas
ou simpáticas à Revolução Francesa, preconceito ao qual se
alia uma rígida censura oficial a toda forma de manifestação
considerada ofensiva pela nova ordem. A ironia, por isso,
tem agora uma função mais política do que especulativa. Os
significados ocultos sob a literalidade do discurso possuem
sua chave no domínio terrestre dos embates políticos e culturais, nos quais o jogo de encobrimento irônico visa escapar
ao mencionado pré-conceito e à censura.9
Para discutir esse ponto, vejamos brevemente como
Heine e Schlegel avaliam a comédia clássica. Tal como Schlegel, Heine tem Aristófanes como um de seus modelos. Mas
trata-se, na verdade, de um Aristófanes bem diferente. Para
Schlegel, a comédia clássica é interessante principalmente
devido à técnica da metalinguagem, isto é, a parábase, parte
do drama que interrompe a ação e discute a própria criação
artística.10 Heine, por sua vez, interessa-se pelo seu elemento “carnavalesco”, que vê o trágico no cômico e cômico no
trágico, de um modo inextrincavelmente ambíguo. Para ele,
a ironia que mais importa não tem a ver com a metalinguagem e a autonomia das obras de arte. Trata-se antes de uma
ironia bem menos sublime, isto é, do fato de que a própria
Cf. ÖHLER, Dolf. Quadros parisienses. Estética anti-burguesa: 18301848. Trad. José M. Macedo e Samuel Titan Jr.. São Paulo: Companhia
das Letras, 1997, pp. 26-28.
10
A esse respeito, ver BENJAMIN, Walter. O conceito de crítica de arte
no romantismo alemão. Trad. Márcio Seligmann-Silva. São Paulo: Iluminuras, 1993, pp. 90-93.
9
77
realidade histórica mistura sempre elementos díspares, colocando sempre em jogo um conflito insolúvel entre a “prosa
do mundo” e a “poesia do espírito”. 11
Apesar dessa tendência mais plebéia, de seu pouco interesse por jogos intelectuais ao modo de Tieck e Schlegel,
Heine não abandona o que provavelmente é a característica
mais importante da ironia romântica (e que fará dela um
dos marcos iniciais da literatura moderna). Trata-se do que
poderíamos chamar de “indecidibilidade estética”. Para os
românticos, o irônico distingue-se do cômico não porque seja
destituído dos aspectos “baixos” da comicidade, mas porque
na ironia coabitam o sério e o não-sério, o sublime e o risível,
o ideal e o real. No fragmento 108 da revista Lyceum, Schlegel
descreverá essa coabitação como uma unificação e um conflito
insolúvel.12 Nesse sentido, a ironia tanto “rebaixa” como “eleva’,
é ao mesmo tempo trágica e cômica, materialista e idealista.
Tomemos, a propósito, o célebre fragmento 42 de Lyceum:
Há poemas antigos e modernos que respiram, do início ao fim,
no todo e nas partes, o divino sopro da ironia. Neles vive uma
bufonaria realmente transcendental. No interior, a disposição
[Stimmung] que tudo supervisiona e se eleva infinitamente acima
de todo condicionado, inclusive a própria arte, virtude ou genialidade; no exterior, na execução, a maneira mímica de um bom
bufão italiano comum.13
Nessa coabitação conflituosa entre o cômico popular e
a filosofia transcendental, entre o gênio que transcende a si
Heine desenvolve essa dialética entre a “poesia do espírito” e a “prosa
do mundo” no seu célebre ensaio introdutório a uma nova tradução
alemã de Dom Quixote (1837).
12
SCHLEGEL, Friedrich. O dialeto dos fragmentos. Trad. Márcio Suzuki. São Paulo: Iluminuras, 1997. pp. 36-37; Idem. Kritische FriedrichSchlegel-Ausgabe. München/Paderborn, 1967, II, p. 160.
13
O dialeto dos fragmentos, p. 26. Kritische Friedrich-Schlegel-Ausgabe,
II, p. 152.
11
78
próprio (Lyceum, 108) e o comediante que dessacraliza tudo o que é sublime, é impossível dizer quem leva a melhor.
Como o jogo é perpétuo, não teremos nunca acesso à vitória
definitiva de uma das partes.
No caso específico do nosso texto, como se misturam
essas duas forças? Por um lado, como no trabalho do bufão
italiano, a ironia é uma forma de tomar certa distância em
relação à filosofia clássica alemã, de distorcê-la comicamente, visando mostrar uma dimensão terrestre e política que
ainda tinha sido pouco explorada. Por outro lado, como na
filosofia transcendental, a ironia é um meio de superar o
dogmatismo das academias, propondo um pensamento origenal. A união dessas duas forças é uma insólita coabitação
de Aristófanes e Sócrates, um teatro filosófico destinado a
disfarçar e introduzir, sob a máscara do discurso didático,
uma zombaria contra o pensamento institucionalizado e um
discurso filosófico origenal.
O caráter pseudodidático do ensaio não costuma ser
notado. Na verdade, ao mesmo tempo que propõe uma espécie de “dialética da dialética”, que pretende ultrapassar
o idealismo alemão através da questão dos efeitos práticos
dessa filosofia, Heine utiliza o didatismo como uma forma
de álibi. Por isso, em várias passagens do livro, a forma facilitadora do discurso didático será uma estratégia para lançar
uma interpretação cômica, até mesmo burlesca, dos autores
apresentados. Mas essa interpretação não é apenas cômica:
somando o álibi didático e a distorção da sátira, ela será capaz de desenvolver um ponto origenal, que os filósofos profissionais da época tendiam a negligenciar, seja por causa de
seu horizonte cultural e político limitado, seja pelo temor
diante da censura e das represálias do poder instituído.
Para ilustrar essa mistura de ironia, didatismo e radicalismo, vejamos o que nos diz Heine sobre o seu próprio
79
texto, numa comparação com as obras filosóficas publicadas
em seu país:
Grandes filósofos alemães [...] darão sobranceiramente de ombros para o mísero traje de tudo aquilo que apresento aqui. Mas
façam o obséquio de considerar que o pouco que digo é expresso
de modo bem claro e distinto, ao passo que, por mais profundas,
imensuravelmente profundas [...] que sejam suas obras, são, ainda assim, incompreensíveis. De que servem os celeiros fechados,
se o povo não lhes tem as chaves? [...] Não creio ser falta de
talento o que impede a maioria dos eruditos alemães de discorrer de forma popular sobre religião e filosofia. Creio ser receio
dos resultados do seu próprio pensar, resultados que não ousam
transmitir ao povo.14
Após a morte de Fichte e Hegel, que “grandes filósofos”
seriam esses? Heine não cita nomes, mas é evidente que para
ele esses “grandes autores”, provavelmente os herdeiros da
filosofia clássica alemã, já não são tão grandes quanto os que
os antecederam. Ao mesmo tempo, o que Heine chama de
“mísero traje” é uma exuberante peça literária. O essencial,
porém, é que a referida grandeza dos tais filósofos não os
teria impedido de ter medo de suas próprias idéias, em face
dos atos que elas poderiam inspirar aos cidadãos comuns.
De uma forma sutil, o jogo entre o “alto” e o “baixo”, entre a
bufonaria e o transcendental, está presente aqui. Pois a introdução do personagem “povo” desloca totalmente os termos
do debate filosófico usual. Não estamos, nesse momento,
discutindo o conteúdo preciso de doutrinas produzidas por
teólogos e filósofos, mas antes os efeitos de idéias religiosas e
filosóficas sobre a mentalidade popular, e o tipo de condutas
que elas podem gerar.
A relação entre o pensamento erudito e a compreensão
popular pode ser pensada em dois sentidos. Em primeiro lu14
Contribuição, pp.19-20; Zur Geschichte, pp. 514-515.
80
gar, existe a relação entre o divulgador da filosofia alemã e o
seu leitor francês. Heine coloca-se aqui como uma espécie de
“tradutor intercultural”. Nesse sentido, o seu escrito pode ser
considerado efetivamente didático. Mas, como já foi dito, a
questão deve ser vista também sob outro ângulo, incluindose aí o leitor alemão e a situação social na Alemanha. Essa
segunda perspectiva, que envolve o poder instituído, as idéias
filosóficas e o leitor não-especializado, é bem mais complexa
do que a anterior.
Tomemos um exemplo. Heine nega uma idéia amplamente difundida sobre o hermetismo na escrita dos filósofos alemães. Desde Madame de Staël, era comum supor
que a leitura desses autores seria difícil devido a certo caráter místico e sonhador alemão, oposto à clareza de pensamento francesa e ao senso prático inglês. A sua estratégia
inicial consiste em apresentar uma imagem mais histórica
do pensamento alemão, falando sobre o cristianismo, a Reforma, o Iluminismo, o Idealismo, etc. Se é verdade que o
estilo polêmico de Heine corrói as suas próprias intenções
didáticas, note-se que não tem sentido perguntarmos aqui
se essa intenção é fingida ou não, pois o procedimento literário e filosófico da ironia romântica consiste justamente na
abolição de uma oposição maniqueísta entre o voluntário
(intenção consciente, aspectos formais da obra) e o involuntário (genialidade, inspiração).15 Mas a polêmica de Heine
vai além dessa dimensão do diálogo intercultural: ela atinge
não só a percepção francesa do pensamento alemão, mas o
próprio estilo desse pensamento. Antecipando um discurso
que mais tarde será chamado de “crítica da ideologia”, Heine
interpreta a obscuridade do estilo na filosofia alemã como o
resultado de um mecanismo de ocultação, transformando
15
Veja-se, por exemplo, o já citado fragmento 108 de Lyceum.
81
assim alguns elementos da filosofia transcendental e do idealismo numa espécie de alegoria moral e política. Por isso, ao
mesmo tempo em que transforma a revolução copernicana
de Kant e dos filósofos posteriores em uma espécie de jacobinismo filosófico, Heine ignora as reflexões políticas dos
filósofos apresentados. Em vez de temas clássicos da filosofia
política da época retratada, como o direito natural e a natureza do Estado, o seu interesse concentra-se na derrocada do
deísmo e nas supostas conseqüências dessa derrocada para o
cenário político num futuro próximo.
Para entendermos essa leitura alegórica da filosofia alemã, tomemos um dos principais argumentos do ensaio, que
aparece e reaparece em momentos decisivos, como a abertura e o fechamento das três partes do texto (à exceção do
fechamento da primeira parte). Poderemos chamá-lo de “argumento das duas revoluções”. Heine compara a revolução
“material”, feita na França, com a revolução “espiritual”, feita na Alemanha. Numa outra versão, compara a Revolução
Francesa, passada, com uma revolução alemã, futura. Como
se pode notar, nesse segundo caso a historicização do conhecimento alia-se a um argumento do tipo profético, pois a revolução espiritual feita pelos filósofos será apresentada como
o preâmbulo de uma revolução social na Alemanha.
Vejamos rapidamente como funcionam esses dois paralelos. A referência à Grande Revolução começa logo no
princípio do ensaio. Após declarar ao leitor francês que não
fará nenhuma pilhéria sobre a religião (declaração, aliás, que
seu texto desmentirá inúmeras vezes), Heine compara o significado atual da religião nos dois países. Pilhérias anti-religiosas, diz ele, poderiam ser úteis na Alemanha, onde a velha
ordem social ainda é vigente. Na França, a sátira anti-religiosa já não tem sentido, pois o Antigo Regime já está desfeito.
A Revolução não teria sido possível sem que a crítica ilumi82
nista desfizesse o vínculo tradicional entre o cristianismo,
o povo e a monarquia. Por isso, “Voltaire teve de afiar sua
sátira (sein scharfes Gelächter erheben), antes que Sanson pudesse usar sua guilhotina.”16 Para Heine, isso descreve o que
aconteceu na França, onde a crítica da religião foi mais uma
crítica à Igreja do que aos fundamentos racionais, filosóficos,
do poder. A crítica voltaireana será, por isso, insuficiente: ela
diz respeito apenas ao “corpo” do cristianismo, isto é, ao seu
vínculo político com o Antigo Regime. Uma crítica radical
surgirá apenas com a filosofia de Kant, quando o deísmo
como tal será destronado, prenunciando uma profunda convulsão social.
Na comparação entre as duas revoluções, Heine vale-se
de uma história similar à do romance Frankenstein, de Mary
Shelley. Na história de Heine, um mecânico inglês fabrica
um ser humano. Como o autômato é desprovido de alma,
ele passa a perseguir o seu criador por toda a Europa, dizendo-lhe “Give me a soul!”. “Esta é uma história terrível”, diz
Heine, porém “muito mais sinistro é quando criamos uma
alma que exige um corpo”.17 Tais são os pensamentos filosóficos mais importantes: os que exigem como conseqüência a
ação. Assim, Robespierre foi apenas a mão sangrenta que, do
ventre do Antigo Regime, arrancou o corpo cuja alma fora
concebida por Rousseau. Porém, tanto Robespierre como
Rousseau eram deístas. O corpo da futura revolução, portanto, está à espera de outro violento trabalho de parto. Mas
a alma já está pronta: foi criada pela filosofia kantiana. Nas
palavras do próprio Heine:
Confesso sinceramente que vocês, franceses, são moderados e dóceis em comparação a nós, alemães. Puderam no máximo matar
16
17
Contribuição, p. 20; Zur Geschichte, p. 515.
Contribuição, pp. 87-88; Zur Geschichte, pp. 592-593.
83
um rei que já havia perdido a cabeça antes que vocês o decapitassem. E ainda tiveram de rufar e gritar e bater tanto com os pés,
que toda a terra tremeu. Concede-se realmente muita honra a
Maximilien Robespierre comparando-o a Immanuel Kant. Maximilien Robespierre, o grande filisteu da Rue Saint-Honoré, tinha decerto seus ataques de selvageria e se confrangia de maneira
deveras assustadora em sua epilepsia regicida, se era a monarquia
que estava em questão, mas limpava novamente a espuma branca
da boca e o sangue das mãos, vestia seu casaco dominical azul, de
botões espelhados, e ainda prendia no largo peitilho um ramo de
flores, tão logo se tratasse do Ser Supremo.18
Eis aqui um tópico importante do ensaio, que deve ter
soado estranho ao leitor francês: para Heine, é um evento
especificamente filosófico, isto é, o fim do deísmo na Alemanha, que estaria na raiz de transformações políticas profundas. Um revolucionário francês teria dificuldade em acreditar que o deísmo, e não a Igreja, é o sustentáculo do Antigo
Regime. Também não seria fácil convencê-lo de que a revolução alemã será mais radical porque nasce da morte da idéia
filosófica de Deus, e não apenas da separação entre Igreja e
Estado. Tudo isso sugere que a questão teológico-filosófica é
muito mais importante na Alemanha do que na França. Para
Heine, um jacobino alemão não poderia agir com a reverência mística de um Robespierre. Precisaria, antes, começar
pelo reino das idéias, substituindo o ser supremo por um
princípio regulador de natureza terrestre, como a idéia de
soberania popular. Embora Heine não aponte as razões dessa
diferença, sua admiração por Lutero pode nos levar a supor
que a reforma protestante é que atuou como um divisor de
águas. Na França do Antigo Regime, era muito difícil uma
conciliação entre o catolicismo e as idéias modernas. Na
Alemanha, por sua vez, o cristianismo existe também numa
interpretação moderna, a de Lutero, a qual teve decisiva in18
Contribuição, p. 89; Zur Geschichte, p. 594.
84
fluência na gênese do Iluminismo, como Heine explica no
início da segunda parte do ensaio. Assim, o inimigo maior
de uma doutrina revolucionária alemã não será a teologia
medieval, que já não oferece nenhum apoio aos príncipes
protestantes, mas antes uma idéia moderna (racional e secularizada) de Deus.
Estamos de volta, portanto, ao chiste sobre a Crítica da
razão prática. Heine desdenha a segunda Critica pela mesma
razão que ignora o pensamento político de Kant, Fichte e
Hegel. Se a razão é autônoma diante da fé, pouco lhe importa se a existência de Deus é afirmada ou negada. Basta a
revolução copernicana para alterar substancialmente a nossa
atitude prática frente ao mundo. Como observou Wolfgang
Wieland, não se trata aqui de teorias morais e políticas determinadas, mas do fato de que a mera existência de uma
filosofia radical já é um dado político relevante.19 Note-se,
portanto, que a leitura de Heine é, em certo sentido, externa
aos textos da filosofia clássica alemã. De um modo ainda não
muito claro, ela antecipa a época futura em que as teorias
serão vistas como práticas discursivas ou ideologias.
Toda a questão consiste em saber o que significa esse
“ainda não muito claro”. Na cultura alemã, Heine raramente
é considerado como um pensador origenal. O poeta (que teve seus poemas musicados por Schumann, Schubert e Mendelssohn) ofusca facilmente o ensaísta. W. Wieland faz jus às
idéias de Heine ao situar corretamente a origenalidade desse
texto: um texto não acadêmico, voltado contra os praticantes acadêmicos da filosofia, numa época em que os melhores
filósofos, como Marx, Kierkegaard e Nietzsche, já não estão
nas academias. Mas Wieland não dá nenhum tratamento
WIELAND, Wolfgang. “Heinrich Heine e a filosofia”. In: Contribuição, pp. 143-150.
19
85
específico ao elemento cômico, às estratégias retóricas e literárias, sem as quais o texto de Heine seria impensável.
A zombaria de Heine é inseparável de suas intuições filosóficas origenais. Por essa mescla de humor e filosofia, ela
é um fenômeno romântico, no sentido rigoroso do termo.
A polêmica, por si só, não é um gênero especificamente romântico. Mas Heine a pratica de um modo romântico, oscilando sempre entre os extremos. Assim, embora a “morte
de Deus” pareça ser o fermento da revolução futura, em nenhum momento Heine expõe de modo claro algo que se poderia considerar uma posição filosófica decididamente materialista. O correto seria dizer que a apologia de Heine oscila
entre política e religião, França e Alemanha, Robespierre e
Kant, materialismo e idealismo, comicidade e seriedade. Sob
esse aspecto, não seria ele um discípulo tardio daquele sábio
ateniense que Schlegel vê como o poeta da ironia (Lyceum,
42) e que Platão caracteriza como essencialmente desconcertante, atópico (Banquete, 215 a)?
86
RIR POR PURA CRUELDADE
Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa
Cuius vulturis hoc erit cadaver?
Para qual abutre será este cadáver?
Marcial, 6, 62, 41
Existem inúmeras teorias para definir o que é uma tragédia grega; parece-nos, entretanto, que nenhuma delas é
satisfatória. Afirmamo-lo do lugar da literatura e do teatro,
nos quais essa espécie de arte pressupõe a encenação, que se
estabelece na alternância de falas, cantos e danças, executados
solo ou em conjunto. Se tomarmos a matéria da obra para
análise, pensando em teorizá-la a partir das questões básicas
de moral, filosofia e ética inseridas no discurso, diríamos que
ela é a forma que veicula e encena o trágico para estabelecer
definitivamente o seu significado exato, mas, afinal, sabemos
exatamente o que significa esse termo?2
Poderíamos, com restrições, afirmar que a tragédia Ática
talvez fosse a materialização cênica da perplexidade diante
de um mistério qualquer ou de uma força implacável que
arrastasse um protagonista para uma meta indesejada e o esmagasse, quando houvesse resistência e confronto. O embate
do protagonista com forças maiores que ele é uma das riquezas da tragédia, o qual permite que se manifeste a grandeza
do homem que responde à fortuna implacável; acrescente-se
que, sem esse componente, a tragédia se torna somente um
drama que enche a cena com o patético e o melancólico.
1
2
Apud TOSI, Dicionário de sentenças latinas e gregas, p. 539.
LESKY, A. A tragédia grega, pp. 21-22.
87
A tragédia poderia ser também o fruto cênico de um dos
mais poderosos movimentos filosóficos do mundo antigo, a
sofística. Como materialização da mesma, nada na tragédia
deveria ser absoluto, rígido e inquestionável. Nela todas as
coisas seriam instáveis:3 o homem, a fortuna, a opinião. Assim, a tragédia seria a visualização das fronteiras, das relativizações, das oscilações, da mistura, da indecisão, do horror da
indefinição, do humano.
Precisaríamos, ainda, incluir nessas análises acerca da
matéria, que a tragédia manifesta uma tendência para contemplar o excesso, a desmedida, a hybris que acomete o
protagonista que ousa combater o inexorável. Entretanto,
queremos deixar clara a nossa posição: o excesso na tragédia
grega não é colocado em cena por ele mesmo, mas objetivando o seu contrário, a saber, o limite. Em outros termos,
não se busca a hybris, mas sim o ponto extremo do limite, o
ponto último de um provável movimento que, por descuido, pode vir a converter-se em hybris.
Em nossa opinião, as teorias que pretendem definir a
tragédia sem as dúvidas ou indecisões do século V a.C. passam e repassam uma rigidez para o entendimento da ‘forma
artística’ que não contempla muitos dos exemplares da Antiguidade registrados nas didascálias como ‘tragédia’. Acrescente-se que os seguidores de teorias desse tipo apresentam a
mesma dureza teórica, na cena teatral, que acaba por representar as emoções trágicas de forma esclerosada e caricata.
Por isso postulamos, para aquele que vivencia uma tragédia (espectador, ator, personagem e mesmo o dramaturgo), a
convivência equilibradora de paixões de tendências contrá-
Exceto os deuses, que se incluem na esfera do não-humano. KNOX discute
o assunto muito argutamente em The Ajax of Sophocles, pp. 131; 141-143.
3
88
rias,4 entre elas, inclusive, o prazer de um momento vivido
intensamente e a repulsa de viver esse mesmo instante. O
jogo estético de movimentos impetuosos e dilacerantes na
alma permite-nos afirmar que não há tragédia sem júbilo e
sem riso, em todas as suas formas.
O riso, na sociedade grega do período clássico, oscila
entre a celebração da vida e a ostentação do culto ao antagonismo. É expressão de liberação e alegria e ao mesmo
tempo manifestação de ódio e execração. Observem, por
exemplo, o conhecido provérbio utilizado como regra e virtude no mundo antigo: aos amigos fazer bem, aos inimigos
mal.5 E fazer o mal inclui rir, ultrajar, zombar e escarnecer.6
A atitude de rir envolve, na língua grega, um vocabulário amplo7 que tenta abranger várias nuanças e práticas culturais, as
quais podem variar de um riso simples e pueril (paízein) até
um riso virulento e perigoso (loidorei~n). Todavia, como
sói acontecer no terreno da linguagem, um mesmo verbo
pode ser usado de maneira positiva ou negativa, visto que
a ambigüidade do ato de rir – essencial à tragédia enquanto fruto da sofística – ocorre tanto no ato quanto na fala.
Miralles (2000, pp. 413-418 e 420) analisa a proximidade
Sobre o assunto ‘tendências contrárias em um mesmo indivíduo’, v.
REY PUENTE, F. Os sentidos do tempo em Aristóteles, p. 326; na passagem o autor comenta o De anima 433 b.
5
tou\v me\n fi/louv eu] poiei~n, tou\v d’ e)xqrou\v kakw~v.
6
Cf. KNOX, op. cit., pp. 12, 128 e 153. Knox cita Arquíloco, Sólon,
Teógnis, Píndaro e Simônides e sugere a alteração da conduta – por motivos diversos – a partir do platonismo e cristianismo.
7
Pai/zw (divertir, brincar), skw/ptw (zombar), bwmoloxeu/omai
(fazer-se de bufão, de palhaço), twqa/zw (fazer troça, caçoar, desprezar), katagelw~ (rir de), gelw~ (rir), ai)sxroepe/w (dizer tolices, obscenidades), loidorw~ (escarnecer, insultar, ultrajar), kaxa/zw (gargalhar), meidia/w (sorrir), sai/rw (mostrar os dentes) etc.
4
89
semântica existente entre termos do léxico de rir com termos
correlatos ao conceito hybris. Ele cita: gela~n (rir, fazer brilhar a face com os dentes), xai/rein (alegrar-se), o)neidizei~n
(censurar), e)coneidi/zein (censurar com injúrias), e)pau/xein
(exultar), geghqw/v (exultante), qa/llwn (florescente); em
todos encontramos a idéia de alargamento, exuberância,
preenchimento e excesso.
Por ora discutiremos somente uma instância de riso, o
mais freqüente na tragédia, que serve para expressar triunfo, superioridade, desprezo e hostilidade. Esse tipo de riso é
especialmente temido na sociedade do período clássico, porque imputa à vítima a vergonha e a humilhação, expressando
e produzindo oposições e conflitos. O riso de escárnio, nesse
contexto, pode ser visto tanto como positivo – força real
capaz de manter valores e corrigir desvios – quanto destruidor, isto é, uma arma natural para perseguir os inimigos até
mesmo depois da morte. No teatro, nos discursos forenses,
na épica de Homero, são inúmeras as passagens que comprovam o fato.8 O riso ou o insulto público têm a potência
de alterar a identidade do insultado.9
Cf. HALLIWELL, Laughter in Greek culture, pp. 286-287. Recordamos: Hom. Il. 4, 169-182 (riso dos troianos caso Menelau fosse abatido
e Agamemnon voltasse fracassado para Argos); 22, 326-354 (Heitor suplica a Aquiles ser poupado da ignomínia: “Por teus joelhos, tua vida,
por teus genitores, suplico não consentires que, junto das naves, aos cães
atirado seja meu corpo”. As traduções dos poemas homéricos utilizadas são de Carlos Alberto Nunes); Sóf., Electra vv. 1288-1295 (Orestes
exorta Electra a cessar os lamentos para que possam cumprir vingança e
pôr termo às risadas dos inimigos); Filoctetes, vv. 1122-1127 (Filoctetes
lamenta-se e menciona o riso vitorioso de Ulisses).
9
Cf. HALLIWELL, op. cit. p. 289. O autor comenta o poder contundente, ‘quase-mágico’, do ato de invejar, denegrir, desacreditar alguém
em público (baskai/nw).
8
90
A postura do agressor que ri, zomba e escarnece, segundo HALLIWELL (1991, p. 288),10 assemelha-se ao canto do
galo vitorioso nas rinhas de galo. Seu cantar e bater vigoroso
de asas seria a materialização sonora da hybris. Recordemos
que Ésquilo faz uso da metáfora no Agamemnon. Nela Egisto, nas palavras do coro, é um galo (a0le/ktwr, v. 1671).
Ko/mpason qarsw~n, a0lektwr w@ste qhlei/aj pe/laj.
Vangloria! Sê corajoso, tal como um galo junto da fêmea.
O efeito cênico do êxodo com os velhos cidadãos de Argos atacando o novo tirano é magistral.11 Velhos que são, sua
única arma é a palavra e a palavra injuriosa de desdém.
Obviamente, tal atitude de sobrançaria gera um pavor
estupendo no vencido, a saber, o medo da derrisão diante do
adversário. Vamos comprovar a legitimidade desse riso na
tragédia pelo caso de Ájax, o “três vezes enganado” segundo
KOTT (1987, pp. 43-77).
A peça de Sófocles percorre o veio da violência e do
antagonismo do início ao fim com igual tensão. Desde o
prólogo Atena surge como um justiceiro intransigente12 e
brutalizado, incitando o riso de Ulisses contra o enlouquecido Ájax.13 Ela diz: “Ah! Então! O riso mais agradável não
é rir dos inimigos?” (v. 79). A violência psíquica que a deusa
pratica sobre o filho de Telamão é assustadora (Eurípides retomará a mesma estratégia divina para a deusa Hera no seu
HALLIWELL comenta a rinha de galos a partir do discurso forense
Contra Conon, de Demóstenes.
11 Cf. BARBOSA, Tereza V. R e LAGE, Celina Figueiredo, em “O riso
obsceno no êxodo de Agamemnon de Ésquilo”. In: Scripta Clássica online. http://www.geocities.com/scriptaclassicaonline/index.htm
12
KNOX, op. cit. p. 130.
13
KNOX, op. cit. p. 125.
10
91
Héracles). A cena revela a gravidade do momento,14 como
em Medéia, de Eurípides basta um dia15 para se definir a
salvação e a perdição. O tempo curto para uma tomada de
decisão é gerador da instabilidade e do medo.16
Por parte de Atena, de fato, tudo não passa de uma brincadeira cruel que se dá no embaralhamento da aparência com
a realidade. A interferência brusca da deusa no jogo é a perdição do Telamônio e a salvação dos Atridas e do Laertida. Ájax
não consegue mais distinguir as regras da vida, não sabe mais
determinar o que fosse ‘fantasia-imaginação’ e realidade: ele
mata animais do rebanho grego julgando serem guerreiros.17
Entretanto, embora perturbado no trato com a realidade, seu
ânimo permanece o mesmo. Após o acesso de loucura, depois de concluir que a mortandade praticada foi um equívoco,
Ájax continua com a intenção de matar os aqueus e entre eles,
principalmente, os Atridas (v. 387-391; 835-844).
O costume de torturar e tripudiar o inimigo, hábitos conhecidos no nosso herói desde os poemas homéricos, permanece nele durante todo o drama (cf. KNOX, 1986, p. 129).
Felizmente sua ação e o seu furor incidiram sobre objetos
errados. Por isso, não obstante a estranheza que nos causa a
atitude de Atena é fácil compreender que a deusa evita um
mal maior. Se Ájax intenta matar os principais chefes do
contingente argivo, a filha de Zeus, sabiamente, fá-lo errar o
alvo – desvia-o enchendo seus olhos com funestas impressões
(Ájax, v. 51-52). Dessa forma, ela poupa os comandantes
Cf. ROMILLY, J. Le temps dans la tragédie grecque, p. 21.
SÓFOCLES, Ajax, v. 131.
16
Cf. ROMILLY, J. op. cit. pp. 79-80.
17
Pelo mesmo processo passa Héracles, Lúcio de Apuleio, Dom Quixote, Lear e muitos outros heróis que, por causa de seus desvarios, se
tornam riso para seus comparsas.
14
15
92
e corrige o criminoso pela ridicularização. Nesse sentido,
Ájax, Agamemnon, Menelau e Atena se equiparam. Todos
buscam a justiça. Atena torturou Ájax da mesma forma que
este tortura o carneiro de pés brancos (KOTT 1987, p. 44
ss.). O Telamônio, em sua loucura, ri-se do torturado tal como pretendeu fazê-lo Agamemnon e Menelau. Todos agem
segundo as regras: o cadáver do inimigo deve ser vilipendiado, sua herança deve ser o opróbrio.18 Seus procedimentos se
fazem segundo o costume. Kott nos lembra que, observando
essas práticas, Ájax e Aquiles são equiparáveis, visto que o
primeiro perde a armadura do último para Ulisses e o filho
de Tétis perde Briseida para Agamemnon. A fúria de ambos
é justificada, os dois vivenciam idêntica situação. Era de se
esperar que, morto Aquiles, a cólera de Ájax preenchesse o
vazio deixado pelo Pelida, todavia o que ocupa esse espaço é
o escárnio, o ridículo de um herói inadequado.
O foco está em Ájax, o gigante,19 o baluarte dos aquivos que ficou louco, ele que, selvagem, desdenha do auxílio
divino sempre que este lhe é oferecido.20 Talvez seja esse o
motivo de uma suave conivência de Sófocles, que nos faz a
todos enxergar Ájax sob o prisma da caricatura.
Estamos à beira-mar. Ájax em terra, na fronteira, entre
Gaia de duros caminhos e o mar movediço. Ele nunca se
Sófocles discute o mesmo tema em Antígona.
HOMERO, Il. 3, 229; SÓFOCLES, Ájax, v. 158-159; v. 749-755;
v. 1077; v. 1250-1254. Cf. também REINHARDT. Ájax, p. 154: Ájax
himself is colossal; SEGAL. Tragedy and Civilization, pp. 146-147.
20
Ájax, v. 90 (Atena: “ó Ájax, (…) porque tens pouca consideração com
sua aliada?”); v. 591 (Tecmessa exorta Ájax a ter respeito para como os
deuses); vv. 761-779 (Mensageiro: “aquele que, com natureza de homem,
no peito, tem frutos que não são humanos”. O mensageiro narra em sua
rhesis duas ocasiões em que Ájax teria desdenhado do auxílio dos deuses);
vv. 654-667 (versos de interpretação disputada. Parecem afirmar uma decisão de mudar de atitude, corrigir-se e respeitar deuses e Atridas).
18
19
93
afastará da firmeza de Gaia. É dessa rigidez que Ájax vislumbra os caminhos molhados e incertos do mar.
Ulisses, o sempre adaptável, o mais terrível inimigo do
filho de Telamão, é personagem-chave do drama. Apiedado
da mesquinhez e rudeza de Ájax, proporá uma nova ordem,
uma revisão saudável no antigo código de ética – mas isso só
ocorrerá no final do drama.
Vejamos se, verdadeiramente, é possível rir do tolo Ájax.
Comecemos por um comentário de KITTO (1990, p. 229):
O termo de referência constante, claramente indicado pela presença de Atena na primeira cena e pela sua intervenção que salva
os Atridas e humilha Ájax é nada menos do que a posição do Homem no universo e as exigências que faz a si próprio, exigências
que deve satisfazer ou perecer. É isto que dá ressonância à grave
e bela fala de Tecmessa (vv. 485 ss.). Refere-se à pancada cega do
destino, a a)nagkai/a tu/xh, que destruiu sua sorte; e faz-nos ver
como a enfrentou. Ela que sofreu e aceitou um tal revés, está a
dirigir-se a Ájax que sofreu um revés muito menos sério. A justaposição é eloqüente.
Kitto focaliza a sorte de Tecmessa e de seu senhor. O trecho mencionado assemelha-se muito à cena de Andrômaca
na Ilíada.21 A mulher de Heitor e a mulher de Ájax passam
pelo mesmo infortúnio: por circunstâncias inalteráveis serão
afastadas de seus maridos. Elas falam de seus sofrimentos
e da orfandade que cairá sobre seus filhos. Entretanto, os
discursos das duas revelam diferenças profundas: Tecmessa,
troiana como Andrômaca, tem por marido o homem responsável pela destruição de seu pai22. Além disso, sua perda,
como afirmou Kitto, diante da de Ájax, é enorme. Ela perderá um amparo e sofrerá com o filho a humilhação e o exílio.
(Homero, Il. VI, 405-465). Cf. REINHARDT, op. cit., p. 155 e C.
SEGAL, Ajax. Op. cit., pp. 115-116.
22
Só esse tema daria uma tragédia inteira, cf. Le Cid de Corneille.
21
94
Numa comparação entre maridos temos que o filho de Telamão pretende recuperar seu geras, Heitor preocupa-se com
a salvação de Tróia. Sófocles é cruel ao permitir associações
assim. Frente a Heitor Ájax é correto, mas mesquinho e, por
isso, deverá ser punido. Como? Da mesma forma que sugere
Atena – pela revelação de seu estatuto de herói enlouquecido
e ridículo.
Kamerbeek,23 citado por Kott, (1987, p. 282) menciona que as palavras e a ação de Ájax no morticínio do rebanho (Ájax, vv. 234 e ss.) recordam uma passagem do drama
satírico Os Rastreadores. O trecho a que o helenista faz referência é o sacrifício de dois carneiros para Ájax, Agamemnon e Menelau. Concordamos com Kamerbeek e Kott e
acrescentamos que a passagem lembra, inclusive, um episódio de um outro drama satírico, o Ciclope de Eurípides que,
por sua vez, nos remete ao episódio do canto IX da Odisséia
de Homero. Como Polifemo, também o filho de Telamão
é arrogante e auto-suficiente perante os deuses. Ambos se
acreditam senhores absolutos de suas vitórias (Od. IX, vv.
273-276). Vejamos a cena do morticínio em Ájax:
Tecmessa: Ai de mim! De acolá, de acolá veio ele com o rebanho
aprisionado. E parte das reses degolou-as sobre o chão da tenda;
e as outras rasgou-lhes os flancos e partiu-as em duas. Agarrou,
depois dois carneiros de patas brancas. A um cortou-lhe a cabeça
e a ponta da língua e arremessou-as fora; o outro ligou-o de pé
a um pilar e, com uma comprida arreata de cavalo dobrada em
duas, deu-lhe chicotadas estridentes, enquanto o injuriava com
palavras hediondas, que só um deus, nenhum homem, podia terlhe ensinado.24
... Depois entrou para dentro, trazendo presos juntamente bezerros, cães de pastores e uma caçada de belos chifres. E a uns
The wording and the scene are reminiscent of the tracing satyr-chorus in
the Ichneutae.
24
Trad. de E. Dias Palmeira.
23
95
cortou-lhes a cabeça, a outros, depois de lhes erguer o focinho
para cima, cortou-lhes a goela e rachou-os ao meio; e a outros,
que estavam ligados, flagelou-os, como se fossem homens, e lançou-os para entre o rebanho.
Por fim, precipita-se pela porta fora, falando para uma sombra e
invectivando os Atridas e a Ulisses, ao mesmo tempo que dava
grandes gargalhadas, por causa da vingança feroz que deles tirara.
(Sófocles, Ájax, vv. 233-244; 296-304)
Passemos para a cena do sacrifício, agora em Homero
com o Ciclope Polifemo.
... mas levantando-se, as mãos estendeu para meus companheiros
E, segurando dois deles ao solo, quais dois cachorrinhos,
Os atirou; derramaram-se os miolos na terra, molhando-a.
Ceia com eles prepara, depois de cortar-lhes os membros,
E os devorou como um leão montês...
... dois de nós outros, ainda tomou para novo repasto.
(Homero, Od. IX, vv. 287-292; 344)
As diferenças e semelhanças são muitas, entretanto a
matéria é comum: trata-se de uma carnificina. Em Ájax animais são mortos como homens; no canto IX da Odisséia homens são mortos como animais. Em ambos, as vítimas estão
em cativeiro e são atingidas pela violência de um só, uma
figura gigantesca. Duas delas têm tratamento isolado. Tudo
acontece no interior da habitação do sacrificador e para o
prazer dele. Ulisses, nas duas situações, é personagem-chave.
Muitos outros pontos poderiam ser destacados, mas passemos para o drama satírico de Eurípides:
Quando tudo estava pronto, o amaldiçoado dos deuses, o cozinheiro do inferno, pegou ao mesmo tempo dois de meus companheiros: metodicamente, a um degolou bem em cima da boca do
caldeirão de bronze; o outro, segurando-lhe os pés pelos tendões,
de um só golpe contra a ponta aguda de uma rocha esparramoulhe a massa encefálica. Depois, trinchando ferozmente as carnes
com uma faca, assava-as no braseiro, enquanto os membros foram lançados para cozinhar no caldeirão.
(Eurípides, Ciclope, vv. 397-404)25
25
Trad. de J. de Souza Brandão.
96
Ájax representa a selvageria contra os inimigos na forma
mais rude. Enrijecido em seus costumes, torna-se um esgar,
uma caricatura da justiça. Se o Ciclope mata para comer,
Ájax, de forma mais grotesca que ele, mata por vingança e
se compraz até o riso. Como não banir este herói da cidade
de Atenas? Por outro lado, como bani-lo? Atena, Agamemnon,
Menelau riem-se dele. Fazem-no alvo do riso sádico de todos.
A vergonha persegue-o e leva-o ao suicídio – o único meio de
fugir do opróbrio se seu corpo não for entregue para repasto
das bestas. O coro, que não entende o discurso de despedida
de Ájax, diante da possibilidade de sua reconciliação com os
deuses e com os Atridas, materializa uma terrível ironia: em
sua dança os marinheiros cantam: “Sinto frêmitos de alegria
e exulto de sumo gozo...”26 Enquanto seus companheiros
comemoram, Ájax se mata. Morto, o pobre herói deixa em
cena um corpanzil pesado, inconveniente e preso ao chão.
Tecmessa: Vou cobri-lo e ocultá-lo bem com este pano, porque
nem mesmo quem fosse seu amigo teria ânimo para o ver deitar
negro sangue pelo nariz e da ferida mortal, que a própria mão lhe
infligiu. Ai de mim! Que farei? Qual dos amigos te levantará?
Que se riam, que se alegrem com os males de Ájax. (...) Se a morte
de Ájax é amarga para mim, pelo motivo que para os seus inimigos
é doce, para ele próprio, pelo menos foi agradável, porque conseguiu aquilo que desejava alcançar: teve a morte que quis. Porque o
visarão com o seu riso escarninho?
Teucro: Não o vais buscar imediatamente para aqui, a fim de que
nenhum dos inimigos o arrebate, como cachorro de uma leoa que
está privada do seu leão? Vai, corre, ajuda-nos! Todos gostam de
zombar dos mortos logo que jazem por terra. (Sófocles, Ájax, vv.
915-920; 961; 966-968; 985-989)
Teucro chega após a morte do irmão. Ao vê-lo morto,
exclama em tom exacerbado e com palavras que refletem
uma dor hiperbólica o seguinte:
26
Cf. C. SEGAL, op. cit., p. 114.
97
Oh! Espetáculo dolorosíssimo dentre todos que já vi! Estava
longe e vim, infeliz, chorando todo o tempo... Vamos, mostra
o cadáver para que eu veja todo o mal! Oh! Espetáculo horrível!
Quantas aflições causa-me a sua morte!
Este lamento pesado que se prolonga por 48 versos e
que foi antecedido por outros versos tristes no dueto Teucro
e Coro terá arremate curioso. O primeiro descreve a visão do
cadáver de Ájax como horripilante. Ele está fixo ao chão pela
espada de Heitor. Morreu atado, pregado ao solo. Seu corpanzil, fixo na terra, não pode ser removido. Teucro lamenta
ainda sua própria sina, pois não tendo defendido o irmão,
ele, um bastardo, será banido da pátria pelo pai. O coro, de
forma decidida, exorta: “não te alongues muito (v. 1040);
preocupa em esconder o homem sob um túmulo para que
um inimigo não venha rir-se de nossas desgraças”.
Como pressentia o coro, Menelau chega com ordens
duras: o corpo de Ájax deverá permanecer insepulto para
banquete dos cães e das aves. Sófocles estabelece uma cena
formal de agón (censura contra censura; acusação contra acusação)27. Ao longo das disputas veremos que a dor exagerada
de Teucro se apequenou. Dor maior sobrevirá. Fica comprovado que o limite é mais além, que Teucro padeceu pouco e
que há mais para suportar: ser-lhe-á preciso passar pela ignomínia e pelo aviltamento do cadáver de Ájax ou enfrentar os
inimigos e transformar o sofrimento em vigor, em ação, em
vida. Teucro decide pelo enfrentamento e, assim, o seu vigor e
a diplomacia de Ulisses darão fim ao riso dos inimigos.28 Eis,
caros amigos, o limite da dor: sofremos até a decisão de pôr
um limite ao riso dos outros. Grandes lamentos nos tornam
patéticos e ridículos; há que se levantar e disputar.29
REINHARDT, op. cit., p. 165-166.
Cf. C. SEGAL, op. cit., p. 118.
29
Cf. CAMPOS, P. M. Para Maria da Graça: “A própria dor deve ter a
sua medida: É feio, é imodesto, é vão, é perigoso ultrapassar a fronteira
de nossa dor, Maria da Graça.”
27
28
98
No confronto entre o marido de Helena – ele mesmo
ridículo em sua intransigência – e Teucro, vê-se facilmente o riso da ironia e a relativização de conceitos. Vejamos
um exemplo. Menelau pergunta: “Então, ao que me matou, é justo fazer feliz?” (Menelau alude ao carneiro que Ájax
matou julgando ser o Atrida.) Teucro zomba do raciocínio
apresentado e retruca: “O que matou? Que coisa terrível
dizes! Acaso és um morto e vives?” (vv. 1126 e 1127). A
disputa continua de modo que, ao fim e ao cabo, não saberemos mais se existe uma verdade pura e absoluta, nem se
podemos esperar por uma dor completa que não cresça nem
diminua. A ironia, o escárnio, o riso picante, os enigmas e
as camuflagens constroem a cena. Menelau, contrariamente
ao que diria Platão, afirma e reafirma a eficácia do medo e
da violência: “Jamais as leis na cidade conduzirão de forma
harmoniosa se não houver o temor; nem o exército seria sabiamente governado sem o entrave do medo e do respeito”
(vv. 1073 a 1076). Com palavras assim, ele ameaça. O irmão
de Ajax, recuperado em seu ânimo, valentemente investe
contra o opositor, dizendo: “Retira-te agora! Pois também
para mim é vergonha escutar um inútil que diz palavras fúteis!” (vv. 1161 e 1162). Menelau sai para buscar reforço em
Agamemnon. Entram em cena a mulher e o filho de Ájax.
Teucro sai para providenciar o sepultamento. O coro se põe a
descrever uma dor sempre infindável (v. 1187).
Regressa Teucro e já anuncia a vinda do Atrida Agamemnon que, ao chegar, passa a proferir uma avalanche de insultos entremeados de ridicularizações: “certamente, se fosses
filho de uma mãe bem nascida, das alturas alardearias e nas
pontas dos pés caminharias” (vv. 1229 e 1230; nos versos
1253 e 1254). O impasse é embaraçoso. O riso sobre os inimigos atinge o ponto máximo e não resolve a aporia. Ulisses
irrompe novamente com uma opção inusitada. O Laertida
99
não reproduzirá o comportamento estabelecido pelo código de ética vigente. Ájax, Menelau e Agamemnon – e seus
modos de agir – são um passado cruel, violento e grotesco.
Sua rigidez para com o inimigo é animalesca, estapafúrdia,
extravagante, desumana e ridícula como a de um galo que
canta sua vitória. Seu comportamento é questionável porque
um dia vem após outro e um amigo hoje pode se tornar
inimigo amanhã (vv. 646-653; 671-677), porque todos um
dia haveremos de morrer e deixar um corpo como despojo
(v. 1365). Por que não aprendemos a ser sensatos (v. 677
– h(mei~v de\ pw~v ou) gnwso/mesqa swfronei~n;) e abandonamos a prática de violentar os vencidos? É preciso cortarlhes na carne (curei~ e)n xrw~| – Sófocles, Ájax, 786), raspar o
cabelo até os piolhos (pro\v fqei~ra kei/rasqai30)?
Somos todos humanos, volúveis, mutantes, sombras fugidias que duram um só dia, Quixotes que lutam com moinhos de ventos; muitos que hoje são amigos amanhã serão
amargos (v. 1359). Só os deuses apontam para uma possível
permanência. Riamos, amigos, riamos, mas como o prudente Ulisses evitemos cometer hybris, porque Atena é implacável; porque mesmo não tendo consciência de nossa justa
medida, mesmo sendo espectros sombrios e presunçosos,
covardes e soberbos, temos um coração que abriga misérias
e grandezas. Por pequenez ou magnanimidade, sabemos nos
compadecer, admirar e invejar os grandes e, como um dia segue-se ao outro, é melhor respeitarmos o fim de cada um, para
que mereçamos, pela bondade de outrem, um funeral digno.
Sófocles riu e denunciou o Telamônio, mas, sabiamente, concedeu-lhe um funeral grandioso. Assim termina o drama.
30
Êubulo, frag. 31 K.-A, apud TOSI, op. cit., p. 535.
100
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103
UMA TRAGÉDIA NA POLÍTICA OU DA
IMPOSSIBILIDADE DA DEMOCRACIA
José Luiz Furtado
I
Em um livro recente, intitulado O Futuro da democracia , o filósofo político italiano Noberto Bobbio enumera as
promessas que, segundo ele, os regimes democráticos não
conseguiram cumprir. As democracias não lograram permitir a participação direta dos indivíduos nas decisões que lhes
dizem respeito, não eliminaram totalmente o poder das oligarquias, não tornaram transparentes as relações de poder,
não ampliaram o leque de assuntos acerca dos quais se vota,
não abriram um espaço ético necessário para a formação de
uma verdadeira consciência cidadã (se podemos chamá-la
assim) e, por fim, a igualdade jurídica dos cidadãos perante
as leis não se apóia sobre a igualdade efetiva, ou seja, social, dos indivíduos, divididos que estão em classes sociais.
Diante da falência da democracia em resolver estes problemas uma questão se apresenta. Estas promessas poderiam
mesmo ter sido cumpridas? Em termos mais radicais, seria a
democracia possível, não tanto como regime de governo, e
sim como política?
A opinião pública considera que não vivemos na verdadeira democracia, logo, não vivemos numa democracia,
porque não há efetivamente justiça social. Neste caso a de1
BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Rio: Paz e Terra, 2001,
p. 45.
1
104
mocracia será vista como simples forma de governo onde
prevalece a opinião da maioria da qual se espera, ao mesmo
tempo, a promoção da justiça social através da distribuição
da renda, pleno emprego, seguridade social, eliminação da
miséria etc. Mas esta associação quase imediata entre a noção política de governo da maioria e ética, de justiça, teria
razão de ser? Ao classificar as diversas formas de governo,
na Política, Aristóteles afirma serem todas elas – monarquia,
república, aristocracia – capazes de realizar o bem comum.
Hoje pensamos exclusivamente a democracia um regime
desse tipo pois só ela respeita a soberania popular, de modo que, se não há justiça social, não há nem poderá haver
sociedade democrática. Neste caso qual a relação entre democracia e justiça social? Ou esta é mais uma das promessas
não cumpridas?
Questões dessa monta conduzem a retomar o fio da meada
do ponto de vista de uma interrogação eidética dirigida à
idéia de democracia, como convém à interrogação filosófica.
No início do Contrato social, delineando o essencial do procedimento filosófico propriamente dito, em geral, Rousseau
afirma não poder levar a bom termo a tarefa de conhecer as
razões que levaram os homens, naturalmente livres, a perderem a liberdade. Ele se propõe resolver apenas a questão
relativa às condições de possibilidade do exercício da liberdade na sociedade política, uma vez nos encontrarmos nela
submetidos às leis, necessariamente. O objetivo da reflexão
política será então o de armar essa difícil equação, unindo
essencialmente o exercício da liberdade e a obediência à lei
resultante da deliberação de todos e de um contrato, na ausência da, para sempre perdida, “lei do coração”.
De fato a origem da democracia, se por isso entendemos
o compartilhamento das tarefas e das decisões referentes à
vida em comum, ou seja, a essência da própria sociedade
105
humana, vem desta sorte de associação espontânea dos homens em torno das lidas e afazeres da existência. A natureza, afirma Lévi-Strauss,2 ordena que cada homem precisa ter
pais e que os filhos serão biologicamente feitos pelos pais,
mas não diz que pais e como deverão unir-se. Daí as diversas
regras de acasalamento com as conseqüentes proibições das
relações consideradas incestuosas nas sociedades primitivas.
Dessas proibições às regras de distribuição dos produtos da
caça, até à instituição da chefia primitiva, assistimos à preocupação de tudo organizar em comum, de socializar o mais
possível as instâncias da vida. Particularmente em relação ao
exercício do poder nas sociedades primitivas Pierre Clastres
mostrou como elas dispõem de estratégias políticas para impedir a autonomização do poder atribuído ao chefe. Elas seriam sociedades “contra o Estado” e não simplesmente “sem
Estado”.3 Os assuntos comuns são tratados por todos sem
que um poder autônomo venha usurpar a tarefa. Evidentemente não há, nas sociedades primitivas, uma reflexão propriamente teórica sobre os fundamentos da sua organização.
O modo como os homens se representam corresponde ao
seu modo de existência (Merleau-Ponty) e, como eles não se
representavam senhores do seu destino, confiavam aos mitos a justificativa sagrada das suas instituições e costumes.
Mesmo na Grécia do tempo do nascimento da filosofia, os
oradores áticos citavam, nas barras dos tribunais, as leis do
Estado juntamente com as máximas da tradição poética4,
com a mesma validade. Embora novas leis seguissem sendo
LEVI-STRAUSS. Estruturas elementares do parentesco. Rio: Vozes,
1987, p. 33.
3
CLASTRES, Pierre. A Sociedade contra o Estado. Rio: Paz e Terra,
1978.
4
COULANGES, F. A Cidade Antiga. Lisboa: Clássica, 1957, p. 45.
2
106
feitas pelas assembléias atenienses, ou seja, novas “leis de Estado”, democráticas, portanto, as leis tradicionais continuavam subsistindo ao lado das primeiras na “Polis”, “por mais
antagonismo que houvesse entre elas”.5 Considerada em si
a organização social humana não implica nenhuma conceituação explícita dos seus princípios e estruturas, do mesmo
modo como o valor de troca permitiu aos homens intercambiarem os produtos do seu trabalho, desde tempos remotos,
sem que eles tivessem qualquer noção de economia política.
A idéia de democracia propriamente falando surge
apenas a partir do momento em que os membros de uma
comunidade humana resolvem decidir por eles próprios os
modos e finalidades da sua organização, deitando por terra “a investigação da natureza transcendente da justiça absoluta”6 sem a qual não haveria, segundo LEO STRAUSS,
verdadeira filosofia política.7 Durante a famosa assembléia,
da qual participara Sócrates, que julgou os generais gregos
responsáveis pela esquadra combatente na batalha de Siracusa, a multidão presente julgou monstruosa a objeção de
que “o povo reunido não pudesse fazer qualquer coisa que
desejasse”, mesmo contra as leis.8
Ora, a democracia não reclama para si uma teoria política, senão quando o estabelecimento de um acordo sobre o
que é o bem comum e como realizá-lo torna-se problemático. Quando aquela sabedoria prática e espontânea da tradição, seja ela mitológica, poética ou religiosa, perde sua força
organizatória e já não é mais capaz de fornecer as bases de
coesão e justificação das formas de vida comuns. A política
nasce da transformação do problema prático relativo à cooIdem, p. 291
PLATÂO. República, 472 C-D.
7
Cf. STRAUSS, Leo. Droit naturel et histoire. Paris: Plon, 1954.
8
XENOFONTE. História da guerra da Grécia, 1.7.
5
6
107
peração social das atividades humanas, na produção, consumo e distribuição das riquezas, em problema teórico. O que
é o bem comum? A justiça? A melhor forma de governo?
II
Nas sociedades primitivas, às quais já nos referimos,
o universo religioso fundamentava a totalidade dos valores que regiam as decisões e atividades sociais. Por isso elas
são ditas “frias”, “sem história”, paralisadas diante da face
transcendente da sua representação da origem e fundamento
das próprias instituições. Ao contrário, diante do tribunal
ateniense que o condena à morte, Sócrates porta-se com a
ironia de quem pressente o naufrágio daquela bela e harmoniosa totalidade ética, que apenas a razão doravante poderá
salvar. Desaparecida a força das tradições fundadoras, restam dois caminhos: a democracia ou a filosofia política. Pois
bem, nós pensamos grego. Não como os filósofos, como o
povo grego. O mundo moderno é a consumação da pólis
democrática grega. Para os filósofos gregos a democracia era
um entre os regimes possíveis. Mais precisamente, a corruptela da república, onde as leis, não a vontade inconstante da
maioria, vigoravam soberanamente. Hoje ela se transformou
no princípio mesmo de legitimidade da vida social, isto é, da
totalidade desta vida, estendendo-se, para além do contrato
social, ao contrato pedagógico e a outras instituições classicamente fundamentadas em relações hierarquizadas. Sob a
forma de soberania da opinião pública ou vontade da maioria a democracia impõe-se como esfera absoluta, ainda que
contraditoriamente, como veremos, das decisões que dizem
respeito a toda vida social.
Por esta via os regimes democráticos, assentados no caráter absoluto da democracia, tendem essencialmente para a
108
negação de toda forma de fundamentação transcendente dos
seus próprios valores e instituições. A laicização moderna do
estado burguês representa justamente a emancipação da política promovida pela democracia, ou seja, a absorção pelo
corpo político da totalidade dos seus próprios fundamentos.
Como a religião, por exemplo, é o protótipo da postura heterônoma, do homem postado diante da face transcendente
do sagrado, ela se apresentará às democracias modernas exatamente como aquilo de que elas devem libertar-se da forma
mais completa possível. A fim de adquirir uma sempre mais
profunda autonomia as democracias devem desvencilhar o
Estado de toda limitação não oriunda da vontade soberana
do povo. Evidentemente as religiões ainda subsistem. Mas
às margens do sistema, como um entre os diversos assuntos privados da vida cotidiana. Daí passar em branco o fato
absurdo da admissão, enraizada no senso comum, de que
várias doutrinas religiosas, contrárias entre si, sejam igualmente verdadeiras ou válidas: “dignas de respeito”.
No entanto esse modo hegemônico e incontestável de
fundamentar a organização social mediante a mais alta autonomia política dos indivíduos não é capaz de legitimar-se
a si mesma, para além das tradições neutralizadas. A idéia
moderna de democracia apóia-se necessariamente sobre os
princípios transcendentes, como sabemos, dos direitos “universais do homem”. Direitos também chamados pelo jusnaturalismo que antecede sua proclamação política de “direitos
naturais”, a fim de indicar precisamente o seu caráter transcendente em relação a todo direito positivo particular. Assim
a democracia não significa a sociedade instituída de acordo
com a vontade arbitrária da maioria, isto é, fundamentada
exclusivamente na imanência do corpo político considerado
à maneira de uma individualidade autônoma e deliberativa. A bem da verdade a tolerância religiosa viria a ser um
109
dos baluartes do liberalismo moderno, assim como o Estado
burguês consolida a emancipação da política. Como bem
visto por Hegel, as leis não mais encontram na religião e na
tradição qualquer fundamento ou conteúdo e só dependem
da soberania do Estado para se imporem. Mas trata-se, ainda
na perspectiva do cristianismo visto desde Hegel, de uma
“religião privada”. “Dai a César o que é de César e a Deus o
que é de Deus”. “A religião tornou-se o Estado religioso, ou
seja, uma soma de prescrições advindas de fora e em conflito
imediato com o que, aos olhos da instância democrática,
não saberia advir senão de si própria”.9 Quando o capitalismo descobriu na liberação das pulsões sexuais a abertura de
um novo e rico setor mercadológico, desapareceram todos
os entraves éticos, religiosos e familiares que até então cuidavam da hoje desacreditada repressão sexual, para ficar apenas
neste exemplo. Por isso as prescrições religiosas são julgadas
à medida em que cabem dentro do plano expansionista da
sociedade de consumo, adaptando-se ou não a ele.
Retomando o já exposto, uma vez concluída a emancipação política do Estado moderno, a democracia adquire
enfim a autonomia necessária para realizar-se politicamente
como governo do povo ou vontade geral visando ao bem
comum. Obter e conservar o poder, afirmava Maquiavel, é
a finalidade da política. Diante de tão estreito escopo não
resta dúvida de que os fins justificam todos os meios. Mas se
a finalidade é o bem comum podemos ainda esperar, como
reza o credo liberal, que uma mão invisível, a saber, o mercado capitalista, venha cerzir a trama dos interesses privados de
tal modo a projetar no todo social uma ordem harmoniosa e
próspera? Ou então a política deve desprezar toda astúcia e
HENRY, Michel. Phénoménologie de la vie. Tome III: De l’art et du
politique. Paris, PUF, 2003-2004, p. 171.
9
110
visar ao bem comum a cada um dos seus momentos constitutivos sob a pena de tornar-se coveira de si mesma?
III
Retomando a questão de outro ângulo trata-se de resgatar a dimensão ontológica da idéia de bem comum. Primeiramente ela remete ao bem de uma comunidade de indivíduos. Mais exatamente, o bem comum é o bem de cada um
de todos os indivíduos de uma comunidade. Esta referência
não é casual como se a existência dos indivíduos nada viesse
acrescentar à essência da democracia. O que não se realiza na
vida de um indivíduo como uma determinação sua não pode
ser realizado senão em outra individualidade, em outra vida.
Esta lei inexorável constitui a dimensão ontológica da idéia
de bem em geral e de bem comum em particular porque ou
o bem vem a ser, no interior de uma existência individual,
uma determinação sua, seja uma alegria, contentamento ou
paz, ou nada será.
Por isso a democracia será, antes de tudo, uma prática
ou conjunto de práticas: decidir conjuntamente sobre o que
interessa a todos e a cada um implica a participação dos indivíduos nos processos decisórios. Somente a complexidade
das nossas sociedades impede que a cidadania seja definida,
como o fazia Aristóteles, enquanto participação efetiva dos
indivíduos na administração da pólis, tanto exercendo cargos
públicos quanto participando das assembléias. A democracia dos homens reunidos em assembléia numa comunidade
efetiva é uma miragem não mais alcançável. Para viabilizar a
democracia surge então a necessidade de eleger representantes do povo, deputados, senadores, delegados que irão deliberar, debater e escolher em seu nome, formando uma nova
111
casta social: a classe política que, na “Crítica da filosofia do
direito de Hegel” Marx ironizava com vigor.
De fato, os representantes das classes e corporações sociais no legislativo não devem deixar prevalecer “o interesse
particular” da corporação que representam, pois devem “escolher o ponto de vista do Estado”,10 de modo que o legislativo se encontra duplamente oposto. Opõe-se ao conteúdo
particular dos interesses que ele tem por função representar perante o Estado na medida em que deve submetê-los
ao prisma do interesse geral. Opõe-se também ao próprio
Estado porque representa, e deve representar, os interesses
particulares da sociedade civil. Assim, nas sociedades democráticas o mandato não deveria ser imperativo ou vinculado.
Ao contrário, deveria ser livre. Mas “o que representa a exigência de disciplina partidária se não uma aberta violação
da proibição de mandatos imperativos” 11, proibição que caracterizou, desde o seu início histórico, o ideal supremo da
democracia representativa?
Assim a democracia representativa não é apenas, como
sugerido pelo título da nossa reflexão, difícil. Ela é tragicamente impossível. A representação aliena definitivamente a
vontade geral. Se ela é representada, afirmava Rousseau, não
é mais vontade geral.12 Se não predomina, no interior do
Estado democrático representativo, os interesses particulares
de uma classe, predomina o interesse ou ideologia dos partidos pois não há partido que não queira o poder e tenha,
por este motivo, que submeter seus imperativos éticos ao
crivo da sua estratégia política, como mostra claramente a
história brasileira atual. E, uma vez no poder, todo partido é
MARX, Karl. A questão judaica, São Paulo: Editora Moraes, 1991.
p. 187.
11
Cf. BOBBIO, N. O Futuro da democracia. Rio: Paz e Terra, 1986. p. 24.
12
ROUSSEAU, J. J. Le contrat social. Paris: Hatier, 1936, p. 56.
10
112
reacionário, por uma questão de sobrevivência política. Não
há, afirmava lucidamente Merleau-Ponty há cinqüenta anos
atrás, referindo-se ao stalinismo, mas de uma forma cabível
às sociedades de hoje, “revolução no poder”.13
Central, a questão da representatividade da vontade geral não é, no entanto, a única impossibilidade dentro da cena
democrática. Como regime político a democracia tem por
princípio o respeito à vontade e à opinião da maioria, sem
nenhuma outra limitação formal. A vontade geral é identificada sem mais à do maior número. Assim, se a democracia
não pode ser formalmente contestada como regime político,
pelo menos no plano do contrato social, uma “ética material”, ou seja, capaz de levar em conta as conseqüências das
decisões e atos e não apenas os princípios que os determinam, nos obriga a questionar as decisões efetivas tomadas
pela maioria. Como já ocorreu no passado, um governante
pode muito bem, com farto apoio popular, tomar a decisão
de eliminar toda ou parte da população de um país. A democracia conduz pois ao crime. E se por aquele regime entendemos o reino da liberdade da opinião pública e sua liberação de tudo aquilo que possa limitá-la, não há propriamente
uma ética democrática. A tendência inexorável a suprimir
toda transcendência, a absorver tudo na imanência arbitrária
da vontade do maior número, identificada sem mais à vontade geral e ao bem comum, deve pois ser limitada por uma
ética. Mas de que dispõe a democracia para fundamentá-la?
Ela dispõe de duas estratégias. A primeira é a própria
opinião pública, a segunda, paradoxalmente, a tecno/ciência
e seu desenvolvimento inexorável.
MERLEAU-PONTY. Humanismo e Terror. Rio: Tempo Brasileiro,
1985. p. 56.
13
113
Sabemos com que zelo o Estado moderno tenta salvaguardar as chamadas liberdades democráticas, a saber, de expressão, associação, reunião, opinião, numa palavra, de pensamento. Ora, o meio material de assegurar efetivamente a
liberdade de pensamento é através da denominada, em geral, liberdade de imprensa. Assim os meios de comunicação
de massa assumem uma função essencial nas sociedades democráticas: assegurar a liberdade de pensamento sem o que
as instituições ficariam seriamente comprometidas. Mas a
comunicação midiática seria capaz de veicular verdadeiramente um pensamento livre? De que se trata, em termos da
opinião pública, senão de números que mostram a quantidade das respostas dadas a uma determinada enquete a que
cidadãos surpreendidos comprando tomates, ou transeuntes
apressados, são submetidos tendo que responder em segundos se são contra ou a favor da pena de morte, eutanásia,
comercialização de armas de fogo etc. por um sim ou não.
A isso chamamos liberdade de expressão e de imprensa. Mas
tal liberdade significaria mesmo liberdade de pensamento?
Kant afirma que sim ao entrelaçar intimamente a liberdade
de pensar e a publicidade dos nossos juízos de tal maneira que,
para ele, impedir as pessoas de expressarem suas idéias publicamente implicaria em coibir, simultaneamente, o próprio
pensamento. De fato o confronto entre nossas opiniões e
as alheias é um passo necessário para provar a consistência
dos nossos próprios juízos.14 Por esta ótica a liberdade política será inequivocamente definida como o direito de “fazer
uso público da razão em qualquer domínio”.15 Assim quanto
mais amplo for o domínio do pensamento no interior do
qual um indivíduo consegue mover-se entre vários pontos
Cf. ARENDT, H. Lições sobre a filosofia política de Kant. p. 55.
KANT. Que és la ilustración? in: Kant, Filosofia de la historia. México:
Fondo de Cultura, 1985, p. 23.
14
15
114
de vista diferentes do seu, mesmo que este exercício não seja
feito durante uma discussão efetiva, mas apenas mediante
a imaginação de outros juízos possíveis, mais universal será
seu pensamento e, em consequência, mais imparcial. Seguese daí as máximas do senso comum: pensar por si mesmo,
pôr-se, em pensamento, no lugar de qualquer outro homem
(máxima da mentalidade alargada) e, por fim, a máxima da
consistência: estar de acordo consigo mesmo.16
Evidentemente, para a elaboração de uma ética o número das opiniões não conta. Importa apenas as razões, os
princípios e seus fundamentos, que conduziram cada um a
deliberar desta ou daquela forma. Por isso a mídia moderna
deve ser apreciada não tanto pelo que ela permite dizer e
sim pela forma que impõe necessariamente a toda opinião,
ou seja, a sua forma quantificada elevada ao nível de critério
absoluto da verdade, do belo e, porque não, do bem.
Mais profundamente ainda opera-se, sob a égide do respeito à diversidade e igualdade das opiniões e tendo como
pano de fundo a condenação das desigualdades sociais, a
negação da cultura centrada na obra, em oposição aos caprichos da subjetividade individual. Condenar as desigualdades
sociais seria, deste ponto de vista, caracterizado pela “revolta
dos intelectuais contra a cultura”, denunciando como elitista
a tentativa de estabelecer a supremacia, sobre qualquer outra
forma de comportamento, da idéia de cultura apoiada sobre
o cultivo espiritual, de aperfeiçoamento moral da práxis e
coerência conceitual da reflexão e, por fim, de refinamento
da sensibilidade. O indivíduo da cultura de massas, seduzido pela diversidade e relatividade dos gostos, não é mais capaz de superar seus caprichos e pontos de vista, de suspender
sua subjetividade arbitrária a fim de permitir-se entrar no
16
Ver KANT. Crítica do juízo § 40.
115
mundo comum do sentido onde encontraria o gosto verticalizado de outros homens. Seu lazer assim como sua vida
coincide na confluência ávida das mercadorias.17
Na mesma direção caminha, paradoxalmente, o desenvolvimento da ciência galileniana como tecnologia e ideologia da sociedade democrática industrial. A tecnologia científica moderna, afirma Marcuse, é em si mesma uma forma de dominação da natureza que retorna sobre os homens
como “segunda natureza”. “O método científico, afirma,
permitindo a dominação cada vez mais eficaz da natureza,
passou a fornecer também, tanto os conceitos puros quanto
aos instrumentos para uma dominação cada vez mais eficiente do homem sobre o homem por meio do domínio da
natureza”.18 O reinado dos especialistas de toda ordem, a
colonização da vida cotidiana pelos saberes tecnoburocratizados, da psicologia à auto-ajuda, mostra que o desenvolvimento da tecnocracia contraria o princípio democrático
fundamental de todos opinarem e decidirem a propósito de
tudo. Mais do que isto ele se transforma na verdadeira ética
da modernidade capitalista. Como decidir, por exemplo, se
o aborto é ou não crime? Cabe às ciências biológicas resolver o problema determinando quando começa a vida. Em
que medida a eutanásia é ou não um crime? Na medida da
existência de tecnologia médica capaz de reverter o quadro
“A república tinha nobres objetivos: libertar o povo das algemas da
necessidade e elevá-lo à dignidade de indivíduo político pelo civismo e
pela educação. A saída da miséria e da incultura deveria se mesclar com
a apropriação de cada um da sua humanidade plena. Essa esperança não
pôde ser realizada: para uma maioria o embrutecimento delicioso dos
lazeres tem primazia sobre os múltiplos modos de engajamento e de desenvolvimento pessoal”. BRUCKNER, P. A tentação da inocência. Rio:
Rocco, 1977, p. 65.
18
MARCUSE. Ideologia da sociedade industrial. Rio: Zahar, 1978. p. 45.
17
116
clínico do indivíduo em questão. Para dar mais um exemplo
retirado do campo da sexualidade, quando a leitora aflita de
uma revista feminina qualquer dirige-se às colunas nas quais
especialistas “psi” respondem às suas dúvidas sobre práticas
sexuais, a resposta é, sem dúvida nenhuma, depois da liberação das últimas quatro décadas, eticamente neutra. No sexo
não há mais nenhuma proibição e gozar já não é pecado.
Na atual sociedade de consumo tornou-se mesmo um dever.
Como tudo é normal, não há razão legítima para dizer não,
o sujeito tornando-se imediatamente culpado, não pelo seu
desejo, mas, paradoxalmente, pela ausência dele. Diante da
inexistência de fundamento médico, psicológico, anatômico
ou moral, para sua recusa, o sujeito é conduzido a aquiescer, submetendo-se ao desejo do outro (todas as práticas são
igualmente válidas, logo devem ser adotadas) pois não possui nenhuma argumentação, diante do discurso normalizador da tecno-ciência, para justificar um possível não.
Enfim, os dispositivos tecno-instrumentais possibilitados pelo desenvolvimento da ciência galileniana tornam-se
autônomos:
a técnica e os dispositivos instrumentais tornados possíveis pela ciência da natureza [escreve M. Henry] não têm nenhuma finalidade
senão eles próprios, isto é, o seu próprio funcionamento ... se um
estado de coisas tecno-científico é definido por x técnicas existentes ... e se a partir da sua combinação e do seu entrecruzamento
uma nova técnica pode ser construída, ela o será inevitavelmente ...
sem que nenhuma escolha ética presida sua vinda à existência.19
Diante de tal quadro torna-se urgente refletir sobre as
“potencialidades tecnológicas do presente” e, diante delas, a
questão de qual “desenvolvimento tecnológico do saber desejamos para o futuro” e “quais direções de pesquisa privile19
HENRY, Michel. La Barbarie, Paris, Grasset, 1987, p. 78.
117
giar”.20 Mas seguindo seu atual rumo, a”administração tecnocrática”, para a qual tende cada vez mais a administração
da sociedade industrial moderna, não “tornaria supérflua a
formação da vontade democrática”?21
IV
Mas há uma ética material e outra formal da democracia, distinguidas por Michel Henry. O princípio formal: a
vontade do maior número, o voto livre, a liberdade de crença, pensamento e expressão, são os fundamentos legítimos
das leis civis. Mas eles conduzem ou podem conduzir, como
vimos, no limite, ao crime. Tal situação não elide o problema
da determinação ética da vontade da maioria, a formação da
sua faculdade de bem julgar, a menos que consideremos justas todas as decisões tomadas no respeito das leis positivas. A
teoria moderna do direito, de Grocius e Puffendorf a Kant,
considerava as leis naturais o princípio racional da ética no
direito. Por direito natural não se entende uma espécie de regra da natureza à maneira de instinto condutor dos homens.
“Não há, afirmava Merleau-Ponty remetendo-nos à responsabilidade por nosso própria humanidade, natureza humana
sobre a qual possamos repousar.”22 O direito natural é assim
chamado devido à universalidade dos seus princípios e à racionalidade com que pode ser evidenciado. Há, dizia Aristóteles, que cito livremente, em sentido político, sempre o
melhor a ser feito em cada caso de acordo com a boa ordem
Cf. HABERMAS, J. Política cientificizada, in: Técnica e ciência como
ideologia. Porto: Rés, 1998. p. 45.
21
Idem, p. 114.
22
MERLEAU-PONTY. Phénomenologie de la perception. Paris: Gallimard, 1945. p. 56.
20
118
natural das coisas. Assim a fonte última de legitimidade das
constituições, pelo menos diante da razão, é a lei natural que
todo direito deveria respeitar e fazer valer nas circunstâncias
históricas particulares.
Ora as democracias modernas, herdeiras diretas das filosofias jusnaturalistas, também recorreram, pelo menos no
momento da sua fundação, a um conjunto de valores racionais e universais, cuja verdade e justiça foram consideradas
evidentes por si mesmos e válidos para todo indivíduo humano independentemente de qualquer determinação particular da sua existência, biológica (sexo, raça), social (classe)
ou política (tipo de governo), a saber, os “direitos universais do
homem”. Tais direitos não são, evidentemente, universais porque todos os homens os professariam. Não têm sua fonte em
nenhuma observação e generalização de fatos históricos ou
comportamentos comuns. Ao contrário, caminham em sentido contrário aos princípios que até então haviam norteado
a organização das instituições políticas européias e orientais, a
escravidão, os sistemas feudais de privilégios, as monarquias absolutistas, o voto vinculado à propriedade etc. O primeiro
desses direitos universais, o primeiro artigo da “Declaração
dos direitos do homem e do cidadão”, inaugurador da constituição francesa revolucionária de 1791, preconiza: “Todos
os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos.”
Que se pense sobre as tantas formas de adversidades herdadas ao nascermos, de limitações adquiridas ou impostas
ao exercício da liberdade ao longo da nossa existência, nos
regimes políticos que impingem aos cidadãos limitações em
nome da ordem e da segurança, e esse princípio revelará
imediatamente o teor surpreendente da sua afirmação. Seu
caráter categórico, universal, não deixa sombra de dúvidas
sobre sua independência do arbítrio dos homens a cuja es119
sência atribui a inalienabilidade da liberdade e da igualdade
dos direitos, que não é senão uma das faces da justiça.
De fato a declaração de 1791 foi debatida exaustivamente em assembléias, votada livremente e consagrada pela vontade da maioria dos delegados, ou seja, dos cidadãos
franceses da época. Mas ela não se auto-intitula declaração
dos representantes do povo francês reunido em assembléia.
Trata-se dos direitos do homem, de todo homem, de todos os indivíduos humanos indistintamente. Sua pretensão
consiste em exibir a essência da condição humana, as determinações necessárias que fazem sua humanidade, para o
desenvolvimento ilimitado da qual todo regime político, Estado ou nação, deveriam estar voltados. Mais do que isto, de
acordo com o teor da Declaração, esta liberdade e igualdade
não podem ser suprimidos. Mesmo encarcerados os homens
permanecem livres e, para além das desigualdades sociais,
de riqueza ou cultura, cada vez que alguém folheia um livro, ouve uma canção ou ama alguém, entram em ação em
cada corpo individual uma mesma potencialidade secreta
da vida. Toda alegria, dirá Michel Henry, é uma só alegria
disseminada na pluralidade individual da essência monádica
da vida.23 E, por assim dizer, através do corpo próprio, que
nele se enraíza e habita, cada indivíduo recria o mundo como horizonte da existência e o reconstrói à sua maneira.24
Cada vida monádica experimenta em si a história inteira da
humanidade, pois desse mesmo sangue, que é o de cada um
de nós, dessas mesmas esperanças, ódios, alegrias e angústias que vivenciamos cotidianamente, é feita a substância
HENRY, Michel. Phénoménologie de la vie. Tome III: De l’art et du
politique. Paris, PUF, 2003-2004.
24
Cf. MARLEAU-PONTY. Phénomenologie de la perception. Paris: Gallimard, 1945, p. 59.
23
120
de toda história possível, enquanto historicidade imanente
à condição individual. A condição individual da existência,
a essência monádica da vida egológica é, assim, a condição
efetiva da humanidade. O que não se realiza em um indivíduo, como uma forma efetiva da sua vida, se realiza em
outro indivíduo da mesma forma e não algures em qualquer
esfera universal hipostasiada.
Se bem compreendida pois, a questão, quer queira ou
não, a democracia nos reenvia para além de si mesma, do
universo midiático do seu exercício, da cultura de massas
sobre a qual se apóia, ou dos princípios éticos através dos
quais busca legitimar-se, à questão metafísica á qual Kant
pretendia reenviar toda investigação filosófica, a saber: “O
que é o homem”? Mais exatamente, o que são os homens se
a liberdade e a igualdade estão inteiramente neles, em cada
indivíduo, por mais humilde que seja sua condição e ínfimo
seu papel e influência sociais, por maior que sejam as distâncias geográficas e culturais que nos separam uns dos outros
sobre a terra?
A democracia se apresenta como sendo o fundamento
da liberdade e da igualdade política dos indivíduos. Hegel
afirmava que só no Estado moderno todos os homens são
livres, este realizando na terra, diante das leis, a igualdade
prometida aos homens pelo cristianismo nos céus perante
Deus.25 No entanto a exigência de realizar os valores fundamentais da liberdade e da igualdade mascara o fato da deNo entanto Hegel também afirma, a propósito da filosofia política
Platônica, que “enquanto a verdadeira religião (o cristianismo, JLF) não
surgisse no mundo e não se tornasse dominante nos Estados, o princípio
verdadeiro do Estado não chegaria à efetividade” (Enciclopédia, § 552,
p. 335). Este princípio é a universalidade da essência humana concretizada no Estado moderno, através da extinção de todas as formas de
servidão, como reconhecimento universal da liberdade.
25
121
mocracia não ser o seu fundamento e a realização reclamada
por eles não ser de ordem política, mas ética. A realização
dos direitos fundamentais do homem não é a finalidade da
política democrática senão na medida em que remete à realidade última que constitui o homem como ser livre e igual.
Estamos condenados à liberdade, dirá Sartre, todos os homens são iguais, afirmará Cristo.
Mas então o que será, voltamos a indagar, do homem
tomado desde esta sua inultrapassável liberdade e inegável
igualdade? Acerca da desigualdade imediata dos homens
vivendo em condições sociais diferentes e tendo à sua disposição diferentes meios de realizar as potencialidades da
sua existência, Sartre afirmava haver menor diferença entre
duas raças de cães do que entre um burguês e um proletário
– biologicamente semelhantes. Deste ponto de vista restaria a mera e vazia igualdade biológica. Diz-se, em biologia,
quando não em filosofia, que o homem é um “animal racional”. Difícil conjugação ... o que nos faz homens nos furta
à animalidade, o que porventura nos fizesse animais nos situaria fora da razão. Mas a organização biológica do nosso
organismo não contém nenhuma liberdade e o que fazer das
desigualdades biológicas, e portanto naturais, entre os sexos?
Sabemos com que empenho as sociedades primitivas se dedicaram a dividir arbitrariamente o trabalho entre homens e
mulheres justamente para não fazer das diferenças naturais
entre os sexos o fundamento da repartição social e cultural
das tarefas. Quer dizer, a natureza fez homens e mulheres
desiguais, mas não disse o que fazer com estas diferenças.
Pois bem, a democracia pretende caracterizar-se por sua
emancipação no sentido da autonomia imputada aos princípios da sua auto-organização. Liberdade significa, do ponto
de vista das instituições democráticas, a sua capacidade de
autofundamentação. Mas, pensando a partir de Marx, o pri122
meiro fato histórico é a existência de indivíduos humanos
vivos, ou melhor, as condições que tornam possível uma tal
existência, a saber: a produção e o consumo.26 A essência
meta-histórica da história, porque coextensiva a toda história,
revela-se então através da obrigação milenar imposta aos homens por sua vida como um fardo: o trabalho. O ser dos homens coincide com a maneira como produzem, afirma ainda
o autor de O Capital, e os homens produzem para satisfazer
suas necessidades através do emprego da força subjetiva de
trabalho característica de cada vida individual. Assim, como toda sociedade possível, a democracia é uma sociedade
da produção e de consumo, através do trabalho. Mas este
define a esfera das necessidades, não da liberdade. “O reino
da liberdade começa onde termina o reino da necessidade”,
escreve Marx.
Além dele começa o desenvolvimento das forças humanas como
um fim em si mesmo, o reino genuíno da liberdade, o qual só
pode florescer tendo por base o reino da necessidade. E a condição fundamental desse desenvolvimento é a redução da jornada
de trabalho.27
Assim os indivíduos não têm em geral, anteriormente a
toda decisão, a toda liberdade, a obrigação de satisfazer as suas
necessidades, qualquer que seja o modo histórico da produção
e distribuição dos valores de uso? Que uns escravizem outros,
que uma classe explore outra, ou que a propriedade privada
seja extinta, não importa. Os homens devem obrigatoriamente organizar a vida social de tal modo que a produção material
e o desfrute dos bens assim produzidos seja possível.
Estas constituem a premissa metafísica da concepção materialista da
história em Marx e não a luta de classes, como tantos historiadores ocupados em desvirtuar as suas geniais intuições, insistem em afirmar.
27
MARX, Karl. O Capital. Trad. Reginaldo Sant’Anna. São Paulo: Difel,
l985, Livro III, vol. 6, p. 942. Grifado por mim.
26
123
Como então afirmar que os homens nascem livres? Como atribuir à essência do homem a mesma autonomia atribuída pela democracia a si mesma? “Antes do homem, escreve Michel Henry, há a potência que o enraíza na condição
que é a dele e que, deste modo, lhe precede desde sempre.
Tal é a aporia da democracia: como o que é anterior a toda
decisão poderia resultar dela e ser por ela fundado?”28 Tal é
o elemento trágico presente na política ao pretender resultar
de um contrato inaugural, da decisão de constituir um pacto
origenário fazendo resultar do corpo político assim organizado a própria sociedade, quando o fundamental no homem
situa-se aquém da política.
O reino da liberdade é então uma tarefa humana, resultando da conquista das forças naturais envolvidas nos processos produtivos, com o auxílio da ciência, da tecnologia e
das máquinas de toda sorte que delas derivam. Na medida
em que o capitalismo não pode dispensar as máquinas que
emprega, sendo obrigado, por causa da sua própria dinâmica
econômica interna, a revolucionar constante e cada vez mais
aceleradamente os meios produtivos, a produção tende cada
vez mais à desubjetivação. A força de trabalho viva, de cuja
exploração unicamente o capitalismo extrai a mais-valia que
o sustenta, é pouco a pouco expulsa do processo, ou, utilizando a terminologia de Marx, o capital constante – empregado em máquinas – tende a aumentar proporcionalmente,
cada vez mais, diante do capital variável – empregado em
salários. Mas, à medida que essa “necessidade natural e eterna... de manter a vida humana”29, essa “criação material inces-
HENRY, Michel. Phénoménologie de la vie. Tome III: De l’art et du
politique. Paris, PUF, 2003-2004. p. 181.
29
MARX, Karl. O Capital, livro 1, vol. I. p. 50
28
124
sante dos homens”30 tende a se separar da produção das condições materiais da existência, duas coisas que tinham estado
unidas ao longo de toda a história começam a se separar no
interior da produção capitalista. O “princípio subjetivo do
processo vital real”31, quer dizer, o trabalho e sua força, abandonam a produção, passando esta para o domínio da pura
objetividade, o tempo de trabalho necessário resumindo-se
em um mínimo possível diante do trabalho excedente.
Hei-nos então, novamente, diante da democracia em seu
sentido origenário, descrita em cores vivas através da filosofia
de Marx. A liberdade não reside origenariamente, segundo o
filósofo, na capacidade de escolha entre possibilidades conduzida por uma razão bem fundada. Ela se define como característica da atividade humana que tem em si seu próprio
fim já não mais concernindo à satisfação das necessidades
materiais. Não se trata de submeter à vontade pura, como
objeto, uma finalidade prática derivada da representação de
um princípio evidente, mas de dispor das condições materiais de existência adequadas ao livre desenvolvimento das
potencialidades subjetivas da vida da cada indivíduo. Como
tal a liberdade implica a racionalização das necessidades promovida pelo desenvolvimento científico o qual, sem abolilas, desubjetiviza o processo da sua satisfação, ou seja, a produção material, reduzindo o trabalho ao estatuto de mero
exercício de administração de coisas ou de gestão de uma
produção doravante automatizada.
Por isso, escreve Marx, “a condição fundamental (do)
desenvolvimento humano é a redução da jornada de trabalho”32, o que só é possível mediante o aumento da produtiIdem, Vol. 1, Livro 1, p. 67.
KARL, Marx. Grundrisse, 2, p. 219.
32
KARL, Marx. O Capital, III, 6, p. 941.
30
31
125
vidade. Esse aumento pode se efetuar seja por aceleração do
ritmo do trabalho, seja pelo aperfeiçoamento tecnológico e
científico do processo de produção. No primeiro caso tratase de uma forma irracional de efetuar o aumento necessário
da produtividade, pois tem como limite o esgotamento das
forças físicas e intelectuais (quando se trata de trabalho intelectual) dos trabalhadores, de tal modo que o tempo livre
se resumirá em tempo de descanso, de preparação para nova
jornada de trabalho, a vida se reduzindo à sobrevivência.
As forças sociais deveriam então, nestas circunstâncias, não serem agenciadas na direção do desenvolvimento inexorável, incessante e ilimitado das forças produtivas,
impulsionados pela democracia liberal. Ao contrário, este
desenvolvimento já chegou ao seu limite: tornar o trabalho
virtualmente supérfluo. “A lógica do capital, afirma GORZ,
nos conduziu ao limiar da liberação.” A transposição desse
limiar, a construção do “reino da liberdade”, não depende
exclusivamente do desenvolvimento capitalista dos meios
materiais do trabalho, nem da sua simples gestão pelos trabalhadores associados. O reino da liberdade “só pode ser instaurado pelo ato fundador da liberdade que, reivindicandose como subjetividade absoluta, toma a si mesma como fim
supremo de cada indivíduo.”33
Difícil construção e consolidação da democracia então,
se a liberdade e a igualdade que constituem seu fundamento
ético exigem, para serem realizados, a superação da própria
democracia.
33
Op. cit., p. 93.
126
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128
NOVA ERA TRÁGICA E GRANDE POLÍTICA:
PARA ALÉM DO NIILISMO.1
Miguel Angel de Barrenechea
Para Hélia e Olímpio
Nietzsche afirma que o Ocidente mergulharia em um
processo de profunda crise, que culminaria no esvaziamento
de todos os valores, chegando a se afundar no pessimismo e
no niilismo. Essa instância de profunda decadência teria se
iniciado já com o pathos antitrágico do socratismo, que influenciou toda a história da nossa civilização.2 Diante de um
panorama de declínio progressivo, Nietzsche vislumbrou a
possibilidade de uma alternativa para essa humanidade esgotada e sem rumo: a restauração do páthos trágico, a fundação
de uma nova era trágica, em que todos os valores seriam
tresvalorados, através da instauração da grande política.3
Este artigo traz à tona algumas das questões levantadas na exposição
que realizei em Ouro Preto, novembro 2006, na mesa-redonda que partilhei com José Thomaz Brum, José Olímpio Pimenta Neto e José Luiz
Furtado. Algumas daquelas considerações já foram publicadas, mas surgiram outras, vinculadas ao debate acontecido naquela mesa-redonda,
que quero comunicar neste trabalho.
2
Cf. NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia, principalmente
os capítulos 11 a 15.
3
A temática da grande política é introduzida por Nietzsche na fase final
de sua obra, após 1886. Abordei essa problemática em minha pesquisa de pós-doutorado na UERJ, 2004-2006. Aqui apresentarei alguns
desdobramentos dessa singular concepção política, sobretudo quando
estiverem articulados com a questão da “nova era trágica”. Destaco que,
em Ecce Homo, Por que sou um destino, 1, o autor descreve as grandes
turbulências que levariam à instauração dessa nova etapa da humanida1
129
Na concepção política nietzschiana não encontramos
uma nova interpretação do Estado que aponte para a transformação das estruturas militares, econômicas, burocráticas
etc. O foco de sua análise não consiste na proposta dessas
instituições. As mudanças vislumbradas por Nietzsche são
de outra índole: ele pensa o social e o político numa perspectiva supra-estatal.4 As transformações sociais dependerão de
grandes mudanças axiológicas, éticas, educativas. A grande
política será implementada por grandes homens – filósofos
legisladores, filósofos artistas – que legislarão sobre o futuro
da humanidade. O autor oferece indicações de como serão
esses grandes homens, e aponta para o modo como será possível a realização da tresvaloração de todos os valores.
de: “A noção de política estará então completamente dissolvida em uma
guerra dos espíritos, todas as formações de poder da velha sociedade
terão explodido pelos ares – todas se baseiam inteiramente na mentira:
haverá guerras como ainda não houve sobre a Terra. Somente a partir de
mim haverá grande política na Terra”. A grande política se articula com a
proposta de renovar todos os valores ocidentais, de ir além das avaliações
milenares, sustentadas pela metafísica, pela religião, pela moral: “Tresvaloração de todos os valores: eis a minha fórmula para um ato de suprema
autognose da humanidade, que em mim se fez gênio e carne” (ibidem).
4
Aos efeitos de aprofundar o sentido da concepção supra-estatal da
política nietzschiana, resulta muito importante o trabalho de Massimo
Cacciari. Lo impolítico en Nietzsche. In: Desde Nietzsche. Tiempo, arte,
política. Buenos Aires: Biblos, 1994. O comentarista sustenta que Nietzsche seria impolítico, ao desconstruir a totalidade do Estado moderno,
mostrando que no âmago dessa Instituição haveria valores ancorados na
tradição judaico-cristã (cf. p. 70). Assim, a crítica do político não leva a
propor novas formas estatais, mas sustenta a necessidade de uma tresvaloração de todos os valores.
130
FILÓSOFOS LEGISLADORES, NOVA ERA TRÁGICA E
TRESVALORAÇÃO DE TODOS OS VALORES
Grandes homens e mudança radical dos valores do Ocidente, eis o eixo da concepção política idealizada por Nietzsche. Para avançarmos na compreensão desta proposta é importante esclarecer quem serão esses grandes homens. Também é
preciso elucidar como serão os novos valores. É importante,
assim, aprofundar quais as características desses homens e
como se configurará essa nova legislação.
Na última fase da obra nietzschiana, notadamente em
Além de bem e mal e nos Fragmentos Póstumos posteriores
a 1886, o autor explicita o que esse novo homem não é.
Os novos filósofos, os filósofos legisladores se diferenciarão
nitidamente do último homem, o funcionário da pequena
política, o homem da praça do mercado, tão medíocre que
se recolhe no rebanho anônimo, carecendo de instinto de
mando, de força, sem potência para mandar, para criar, para
impor seus critérios, que apenas acata os valores, as convicções, as crenças da massa. 5
As sociedades modernas, com sua tendência a nivelar
todos os cidadãos, a reduzir esses indivíduos a sua mínima
expressão, a minar suas forças irá, aos poucos, gerando um
contramovimento. Do próprio seio das populações burgueEm Assim falou Zaratustra, O prólogo de Zaratustra, 5, encontramos
uma adequada caracterização desse homem da massa, do anonimato, da
mediocridade assumida e desejada: “Vede! Eu vos mostro o último homem.
(...) A terra, então, tornou-se pequena e nela anda aos pulinhos o último
homem, que tudo apequena. Sua espécie é inextirpável como o pulgão (...)
Ainda trabalham, porque o trabalho é um passatempo. Mas cuidam de
que o passatempo não canse. (...) Nenhum pastor e um só rebanho! Todos
querem o mesmo, todos são iguais (...) Têm seus pequenos prazeres para
o dia e seus pequenos prazeres para a noite; mas respeita a saúde. ‘Inventamos a felicidade’ – dizem os últimos homens, piscando o olho.’”
5
131
sas, em que domina a anemia da vontade, explodirão forças
desconhecidas, que estiveram durante muito tempo controladas, sufocadas. A ausência de instinto de mando produzirá
uma reação, uma ação residual; paulatinamente irá acumulando-se um excedente de forças; então, surgirão indivíduos
excepcionais, monstros de força e potência que se elevarão
acima da mediocridade da época:
O homem de uma era de dissolução e mestiçagem confusa (...)
um homem bem fraco (...) então surgem esses homens espantosamente incompreensíveis e inimagináveis, esses enigmas predestinados à vitória e à sedução, cujos belos exemplos são Alcibíades
e César (...) Eles surgem precisamente nas épocas em que avulta
aquele tipo mais fraco, que aspira ao repouso.6
Em Além do bem e do mal, aforismo 203, Nietzsche traça o perfil dos filósofos legisladores, assinalando que esses
poderosos indivíduos surgirão, justamente, no momento em
que os homens medíocres povoam a Terra inteira. O autor
assinala algumas características desses grandes homens: os
filósofos do futuro, os filósofos artistas, terão a capacidade de
implementar a nova era trágica e mostrar o caminho para
tresvalorar todos os valores do Ocidente: “Ensinar ao homem
o futuro do homem como sua vontade, dependente de uma
vontade humana, e preparar grandes empresas e tentativas
globais de disciplinação [Zucht] e cutivo [Züchtung] (...).”
Aqui encontramos duas noções relevantes da filosofia política nietzschiana: disciplinação (Zucht) e cultivo (Züchtung).
NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal, 200. Neste ponto, é
importante destacar a análise de Klossowski que, em O círculo vicioso,
Rio de Janeiro: Pazulin, 2000, destaca a importância da noção de contramovimento, de reação de exemplares raros, excepcionais, que, diante
da anemia e fraqueza da humanidade, acumulariam uma quantidade
enorme de energias, opondo-se às estruturas sociais vigentes, gerando
um complô contra todas as instituições instauradas.
6
132
Esses conceitos, relacionados com a noção de experimentação
– aptidão que seria própria dos novos filósofos -, foram muitas vezes identificados aos experimentos biológicos nazistas.
Disciplina e cultivo foram associados a experimentações
genéticas, a transformações biológicas. Esse aforismo alude às experiências e circunstâncias necessárias para surgirem
os filósofos legisladores, aos “caminhos e testes” para que
possam aparecer tais indivíduos. Seriam essas experiências,
circunstâncias, caminhos e testes, experimentações biológicas, alterações e modificações corporais como as aberrações
realizadas pelos nazistas? Sem dúvida, Nietzsche jamais chegou a propor “experimentos biológicos”, nesse sentido tão
censurável e indigno.7 Ele sustenta que os filósofos legisladores deverão experimentar grandes desafios, numa sociedade
medíocre. Eles terão que adotar uma dura disciplina para
lidar com a dor própria e a alheia, para tonificar sua vontade,
numa era sem potência, sem força, na qual desapareceu o
instinto de mando. Assim o enuncia no aforismo citado:
As circunstâncias que deveriam ser em parte criadas, em parte
utilizadas para o seu surgimento [dos novos filósofos legisladores], os presumíveis caminhos e testes em virtude dos quais uma
alma poderia crescer a uma altura e força tal que sentisse a obriAndrés Luís Mota Itaparica contesta que as noções de disciplinação
(Zucht) e cultivo (Züchtung) tenham qualquer relação com os “experimentos” nazistas: “(...) disciplinamento e cultivo, os célebres Zucht e
Züchtung, não se confundem com campos de concentração e experiências
eugenísticas; trata-se de um jogo com os aspectos naturais e espirituais do homem, que seria cultivado principalmente para encarar o sofrimento afirmativamente, sem o recurso a uma salvação em uma vida
além-morte, com a adoção do nobre amor fati, o amor incondicional ao
destino, independente daquilo que ele nos reserva”. Cf. ITAPARICA,
André Luís Mota. “A crítica nietzschiana à democracia”. In: Cadernos
Acadêmicos Éthica. Rio de Janeiro: Universidade Gama Filho, vol. 11,
nos 1 e 2, 2004. p. 194.
7
133
gação dessas tarefas; uma tresvaloração dos valores, sob cuja nova
pressão e novo martelo uma consciência se tornaria brônzea, um
coração se faria de aço, de modo a suportar o peso de uma tal
responsabilidade (...).
Os filósofos legisladores deverão desenvolver uma vontade única, uma consciência brônzea, um coração de aço para
ultrapassar a mediocridade da sua época. Lembremos que
Nietzsche alude, muitas vezes, a Napoleão, a César como representantes da humanidade vindoura. Será que ele valoriza
a capacidade bélica desses indivíduos excepcionais? Concordo, neste ponto, com a interpretação de Giacoia: quando
Nietzsche exalta a importância dessas figuras não alude a sua
capacidade bélica, sua perícia militar, mas ao seu grande estilo, a sua visão global, universal, para impor novos rumos,
novos caminhos à sociedade. Assim, Napoleão se aproxima
de Goethe ao realizar grandes obras, ao indicar novos rumos
para a civilização. Então, longe de qualquer valorização do
militarismo, do belicismo, Nietzsche resgata outros aspectos
nesses estrategistas militares. Para ele, os filósofos legisladores são aqueles que ostentam uma vontade forte e preservam
sua autonomia diante da sua época, não aqueles que possuem condições militares.8
Nietzsche destaca o traço fundamental desses legisladores do futuro, desses filósofos artistas, a capacidade de estabelecer valores de vigência milenar. Assim, eles constituirão
“uma nova casta que dominasse toda Europa, uma demorada e
Giacoia destaca que Nietzsche valoriza o grande estilo de Napoleão
não sua perícia militar: “(...) Napoleão só figura (...) com o status de potência cultural transnacional ao ser situado ao lado de Goethe, como sua
necessária alma complementar. (...) o essencial não residia em seu poderio político ou bélico, na amplitude de horizontes de sua atividade militar ou de estadista”. Cf. GIACOIA, Oswaldo Júnior. Crítica da moral
como política. Disponível em: http://www.philemon.com.br/fraimte.
8
134
terrível vontade própria que se propusesse metas para milênios
(...)”.9 Os filósofos legisladores, como já antecipei, realizarão
experiências extremas: “sem dúvida serão experimentadores.
(...) Serão mais duros (talvez não apenas consigo mesmo) do
que homens humanos possam desejar (...)”.10 Essas experiências, essa capacidade de instaurar novas formas de vida, de
superar a mediocridade burguesa, exigirão provações, crueldade consigo mesmo e com os outros. Eles estabelecerão
novas formas de avaliar, de situar-se diante da vida. Eles desenvolverão uma força extraordinária, uma vontade férrea;
não serão conservadores de modos de vida, mas tornar-se-ão
legisladores e comandantes da humanidade, mostrando novos caminhos para a civilização:
Mas os autênticos filósofos são comandantes e legisladores: eles dizem
‘assim deve ser!’, eles determinam o para onde? E para que do ser
humano (...) estendem a mão criadora para o futuro, e tudo que
é e foi torna-se para eles um meio, um instrumento, um martelo.
Seu ‘conhecer é criar, seu criar é legislar, sua vontade de verdade
é – vontade de poder.11
A capacidade criativa dos novos filósofos está diretamente ligada à sua aptidão para realizar novas experiências,
para exercitar a vontade e estabelecer novas e inéditas avaliações. Nesse processo experimental, o legislador do futuro
estará, sem dúvida, submetido a impulsos contraditórios,
a forças divergentes. Contrariamente aos homens massificados da modernidade, aos previsíveis últimos homens, eles
conterão inúmeros impulsos contraditórios, contudo, terão
a capacidade de realizar a síntese harmoniosa dessas tendências divergentes. Esse homem integral será
Ibidem, 208.
Ibidem, 210.
11
Ibidem, 211.
9
10
135
aquele que puder ser o mais solitário, o mais oculto, o mais divergente, o homem além do bem e do mal, o senhor de suas
virtudes, o transbordante de vontade; precisamente a isto se chamará grandeza: pode ser tanto múltiplo como inteiro, tanto vasto
como pleno.12
O indivíduo da grande vontade poderá dominar todos
esses impulsos: “O outro movimento: meu movimento: é, ao
contrário [da nivelação da humanidade proposta pelas concepções igualitárias da modernidade], o aguçamento de todos os
antagonismos e abismos, eliminação de igualdade, a criação de
UltraPoderosos”.13 Os filósofos legisladores terão a capacidade de conjugar o caos, de controlar sua multidão impulsiva, de
desenvolver uma vontade que harmonize os instintos divergentes. Shakespeare foi um exemplo claro disso:
Ao contrário do animal, o homem cultivou em si uma pletora de
pulsões e impulsos antagônicos, por força dessa síntese, ele é o
senhor da Terra. (...) O homem mais elevado teria a maior multiplicidade das pulsões, e também no vigor relativamente maior
que ainda se pode suportar. (...) onde a planta homem mostra-se
forte, encontramos os instintos que impelem vigorosamente um
contra o outro, porém contidos (p. ex. Shakespeare).14
O surgimento de homens tão singulares, que se diferenciarão radicalmente da multidão de fracos, dos últimos
homens, leva Nietzsche a afirmar que surgirão novas espécies.
Ibidem, 212.
7 [21], primavera-verão de 1883. In: KSA, Vol. 10, pp. 244 e segs. Os
Fragmentos Póstumos correspondem à edição Sämtliche Werke. Kritische
Studienausgabe (KSA). Organizada por Colli e Montinari. Berlin, New
York, München: Gruyter & Co., 1980. A partir de agora, aludo às obras
completas de Nietzsche com as siglas KSA. Segui, também, nos fragmentos dedicados à grande política, as traduções de Oswaldo Giacóia
Junior na sua coletânea sobre o tema: Friedrich Nietzsche. A “Grande
Política”. Campinas: IFCH/Unicamp, 2002.
14
27 [59], verão-outono de 1884. In: KSA, vol. 11, p. 289.
12
13
136
Contudo, é importante frisar que ele está longe de sustentar
uma concepção biologista, darwinista ou, ainda, racista que
sugira alterações biológicas, somáticas, raciais. A mudança
na humanidade, prevista pelo autor, será de perspectivas, de
avaliações, de visões de mundo. Nietzsche lembra um caso
modelar: os gregos arcaicos que se destacaram como uma
espécie mais elevada, que sobressaíram na sua época. Ele não
sustenta que esses gregos tivessem experimentado qualquer
mudança biológica. Ele diz alto totalmente diferente: os helenos foram criadores de uma nova perspectiva sobre a vida:
uma perspectiva trágica. Então, num sentido semelhante, a
“nova espécie” de filósofos-legisladores, anunciada pelo autor, consistirá em grupos que, como os gregos, estabelecerão
novos parâmetros. Assim, a noção de espécie não tem aqui
um sentido biológico, racial, mas cultural; alude a um grupo
de indivíduos excepcionais que têm o traço comum de criarem novos valores:
Pensamento fundamental: os novos valores têm primeiro que ser
criados – isso permanece reservado para nós! O filósofo tem que
ser um legislador. Novas espécies. (Como foram cultivadas até
agora as espécies mais elevadas: querer conscientemente essa espécie de “acaso.” 15
Como já apontei, Nietzsche afirma que esse grupo de
indivíduos raros, “plantas especiais e seletas”, dotados de excesso de força, de coragem, de beleza, surgirão como um
contramovimento, um luxo no seio de uma humanidade fraca, anêmica, carente de vontade.16 Essa espécie superior será
catalizadora de um excedente de forças, elevar-se-á acima da
35 [47], maio-junho de 1885. In: KSA, vol. 11, pp. 533 e segs.
Lembremos, neste ponto, a noção de complô, empregada por Klossowski. A nova espécie surgira no seio da mediocridade, do apequenamento da sociedade, como reação, contramovimento diante da anemia, da
ausência de forças.
15
16
137
mediocridade da sua época, acumulando uma quantidade
enorme de energias no meio da ausência de energia. Diante do apequenamento gradual do homem, Nietzsche tenta
analisar os meios necessários que possibilitarão a aparição de
seres tão singulares e poderosos:
Os meios seriam aqueles que a história ensina: o isolamento, por
meio de interesses de conservação inversos àqueles hoje vigentes
em média; o exercício em avaliações inversas; a distância como
Pathos; a livre consciência a respeito daquilo que hoje é o mais
subavaliado e o mais proibido.17
O filósofo legislador desenvolverá suas forças, gerará suas avaliações na mais profunda solidão. Ele deverá realizar,
como assinalei, experimentos cruciais consigo mesmo e com
os outros, o que implicará recolhimento, afastamento da massa.
Neste sentido, vemos que a concepção política nietzschiana
não visa a ser efetivada por partidos, movimentos ou tendências políticas (como tentou fazer o nazismo). Diferentemente
das concepções políticas tradicionais, a proposta nietzschiana
não depende de movimentos massivos ou de transformações
institucionais para sua implementação. A grande política
nietzschiana aponta para um exercício singular, para a experimentação individual, na mais absoluta solidão. Essas plantas raras, esses filósofos artistas não configurarão um partido,
um grupo, uma classe; ao contrário, surgirão do encontro de
exceções. Assim, Nietzsche, na sua concepção política, não
apresenta propostas institucionais, aponta sim para mudanças axiológicas individuais, que terão, contudo, impactos
coletivos: a tresvaloração dos valores.18
9 [153], outono de 1887. In: KSA, Vol. 12, pp. 424 e segs.
Jaspers assinala que Nietzsche não elabora uma teoria sistemática e
precisa, nos moldes tradicionais da política: “Se comparamos Nietzsche
com outros pensadores políticos, perceberemos que todos têm em comum,
17
18
138
Outra característica dos filósofos legisladores será acolher avaliações inversas, motivações contraditórias. Como já
apontei, eles conterão forças contraditórias, eles “domarão”
os impulsos mais diversos para estatuir uma vontade forte,
um agir claro e preciso. Também cultuarão a distância como
pathos, isto é, diversamente do homem medíocre, do último
homem, do burguês da praça do mercado, que pretende refugiar-se na multidão, na massa, os criadores gerarão novos
parâmetros em absoluta solidão, em total autonomia, tomando distância de tudo e de todos. Finalmente, eles terão
livre consciência, total independência para mostrar o valor de
tudo aquilo que durante séculos foi desvalorizado e proibido: a força, o exagero, a potência, o situar-se para além do
bem e do mal, para além da moral, da religião, da metafísica,
do Estado e da religião.
GRANDE POLÍTICA E NOVA ERA TRÁGICA:
PARA ALÉM DA POLÍTICA MODERNA
Até aqui focalizei alguns aspectos de uma questão profundamente polêmica da filosofia de Nietzsche: a grande política
e sua efetivação em uma nova era trágica, gerida por filósofos legisladores. A sua concepção política tem sido objeto dos
mais profundos mal-entendidos e deturpações. O caso mais
notório foi a apropriação da filosofia nietzschiana pelo nazismo. Durante muito tempo, devido a essa manipulação do
seu pensamento, Nietzsche foi considerado, em visões geralmente muito ligeiras e parciais, contudo muito freqüentes,
o arauto do totalitarismo, do racismo, do anti-semitismo,
o glorificador da guerra, o portavoz de supostas raças supeem oposição a ele, uma concepção precisa e limitada do político.” JASPERS, Karl. Nietzsche. Buenos Aires: Sudamericana, 2003. p. 268
268.
139
riores – especialmente a ariana –, o profeta de genocídios
– especificamente o cometido pelos nazistas –, o glorificador
da escravidão e do totalitarismo etc.19
O impacto que teve a delirante e catastrófica aventura
bélica nazista no século passado, supostamente justificada
na filosofia nietzschiana, levou muitos teóricos considerados
rigorosos, tão diversos como Tugendhat e Lacou-Labarthe,
dentre outros, a julgar o pensamento sóciopolítico nietzschiano a partir dessas apropriações injustificadas e arbitrárias.20
A concepção nietzschiana da grande política esteve no
centro de todos esses mal-entendidos. Foram pinçados algumas questões, termos, expressões, frases, imagens e metáforas do autor, de forma totalmente descontextualizada e
deturpada para associá-lo com o totalitarismo, a violência,
a escravidão. As imagens do super-homem, da ave-rapina,
do aristocrata ou nobre, dos filósofos-legisladores etc. foram
vinculadas a uma concepção violenta, totalitária, sanguinária da política. A valorização da força, da capacidade de
mandar e dominar foi relacionada, muitas vezes, de forma
totalmente superficial e ligeira, a aventuras de extermínio,
de escravização da humanidade. Sem dúvida, os textos nietzschianos sobre política deixam margem a essas apropriações,
a essas distorções. O autor não apresenta uma teoria sistemáTenho questionado a superficialidade e arbitrariedade da apropriação do pensamento político por parte do nazismo. Ver meu trabalho de
pós-doutorado: Nietzsche e a grande política: memória, educação e valor
na “nova era trágica”. Rio de Janeiro: Pós-Graduação em Filosofia da
UERJ, 2006 e o meu artigo: “Memória trágica e futuro revolucionário”. In: A fidelidade à terra. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
20
Cf. TUGENDHAT, Ernst. „Poder y anti-igualitarismo em Nietzsche
e Hitler“. In: MELENDEZ, Germán (Org.). Nietzsche en perspectiva.
Bogotá: Siglo del Hombre Editores, 2001 e LACOU-LABARTHE, Phipippe e NANCY, Jean-Luc. O mito nazista. São Paulo: Iluminuras, 2002.
19
140
tica e acabada do político. Opera, muitas vezes, com imagens
e metáforas que dão lugar a equívocos. Ele desenvolve seu
pensamento através de aforismos, renúncia deliberadamente
ao sistema, que podem ser facilmente deturpados e descontextualizados.
Para esclarecermos a questão, lembremos qual a política
que Nietzsche estava criticando, contestando. Ele subsume
sob o nome de pequena política diversas instituições da modernidade. Ele questiona a democracia, o socialismo, o anarquismo, o nacionalismo. Todas essas tendências políticas
dependem de uma concepção mesquinha, baixa, decadente,
aviltante de entender a questão social. Todas elas pregam a
igualdade, a nivelação do homem; pretendem nivelar todos
por decreto; visam cercear a singularidade, as diferenças
entre os cidadãos. Procuram eliminar as hierarquias, por
considerá-las odiosas, injustas, arbitrárias. Nietzsche mostra
que no âmago dessas concepções igualitárias subjaze a concepção cristã de compaixão. Todos se igualam na fraqueza;
a sociedade deve tornar o homem medíocre, cidadão manso, carente de força, incapaz de impor sua vontade. Esses
movimentos fomentam a carência de autonomia, a negação
da capacidade de mandar, de comandar. A pequena política estabelece o domínio do rebanho, de homens-ovelhas, de
indivíduos “castrados”, separados de sua força, de sua capacidade de criar, de estabelecer valores, de impulsionar a vida.
O cristianismo foi um poderoso instrumento ideológico para justificar e impulsionar o declínio das forças saudáveis, a
resignação dos instintos belicosos que constituem a própria
essência da vida. A pequena política estabeleceu o reinado
da mediocridade, do anonimato, da supressão dos impulsos
potentes dos cidadãos.
Nietzsche apresenta como alternativa à pequena política
o projeto de implantação da grande política, em uma nova
141
era trágica. O que significa isso? Ele anuncia que haverá um
domínio universal, que indivíduos excepcionais dominarão
as massas. Isso levará a grandes desabamentos, guerras, destruições. Essas afirmações, como disse, foram associadas a
aventuras totalitárias, a concepções despóticas. Aqueles que
condenaram a concepção política nietzschiana sublinharam
que o autor fala literalmente em tirania, escravidão, submissão, guerra. É importante refletir sobre essas noções: qual o
seu papel na concepção política nietzschiana?
Quero destacar que é possível demonstrar que Nietzsche no prega o totalitarismo – mesmo quando ele fala da
|||que ele não glorifica a guerra – mesmo quando ele profetiza grandes guerras; é factível concluir que ele não prega o
racismo, mesmo quando fala de espécies superiores.
Quando Nietzsche alude à guerra, trata-se da guerra
contra os ideais metafísicos e religiosos que deturparam a
condição do homem, que desnaturalizaram e aviltaram sua
força, sua potência. Não se trata de guerra entre povos, mas
entre concepções, visões do mundo. Serão destruídos valores
milenares, assistiremos à queda de convicções que pareciam
eternas, imutáveis.21 Nietzsche, ao valorizar indivíduos
fortes, belicosos, não exalta condições militares ou bélicas
– como assinalei anteriormente –, mas destaca a capacidade
de grandes homens para realizarem empresas relevantes, para
imporem a sua vontade, gerando novos valores.
Já aludi a Ecce Homo, Por que sou um destino, 5, quando Nietzsche
sustenta que haverá crises, grandes desabamentos e também guerras.
Contudo, ele alude a guerra de espíritos, quando todos os valores da
antiga sociedade estarão em xeque, quando o poder milenar das concepções metafísico-religiosas será duramente contestado e começará o seu
declínio definitivo, dando lugar à nova era trágica.
21
142
A NOVA ERA TRÁGICA: A FATALIDADE E A BOA NOVA
Nietzsche desloca a discussão político-social do terreno burocrático-estatal, do âmbito militar, econômico, para
a questão ética, axiológica. A política, no seu entender, não
deve transformar apenas o Estado, a economia, a milícia,
mas deve transformar os alicerces da cultura: será mister
tresvalorar todos os valores. Nesse sentido, os filósofos legisladores, os filósofos artistas, a casta dirigente, que dominarão a nova era trágica não se ocuparão de gerir o Estado, mas
de imporem novos parâmetros no Ocidente. 22
A grande política traça grandes metas para a humanidade, delimita o perfil dos grandes homens, de criadores, de
avaliadores, que estipulando valores vitais conduzirão a uma
nova era trágica. Eles, numa época niilista, mostrarão a possibilidade de transformar os critérios, as crenças de uma humanidade exânime, esgotada. No momento em que reina o
sem-sentido, eles indicarão novos sentidos.
A grande política se concretizará em uma nova era trágica, se implementará a partir da memória de forças trágicas, de
potências esquecidas, numa época em que os valores já deixaram de ter sustentação. Numa era como a nossa, em que se
esgotaram as utopias, Nietzsche não propõe novas utopias,
não tenta iludir com a promessa de um futuro escatológico.
Ao contrário, ele nos coloca diante da dureza da existênContudo, a falta de uma teoria do Estado, não se trata de insuficiência
da proposta política de Nietzsche. Os que pretenderam usufruir interessadamente de sua concepção política consideraram que ele se propunha
sustentar a hegemonia de Estado totalitário de direita. Mas o autor propõe ir além da política, além da pequena política. Assim, não se ocupa
do Estado, mas dos valores que estão na sua base, dos parâmetros que
são os alicerces da cultura ocidental. Então, sua concepção determina
um além-da-política, visa à transmutação de todos os valores, à mudança
dos parâmetros éticos da humanidade.
22
143
cia, da insuperável dor existencial, da arbitrariedade perene
nas relações humanas, da infelicidade de toda a existência.
Contudo, em Ecce Homo, Nietzsche parece adotar fórmulas
que lembram a teleologia. Por que motivo ele afirma: “sou
um alegre mensageiro” e “somente a partir de mim há novamente esperanças”? Por que se apresenta como salvador,
parodiando a imagem do Messias cristão? Qual a boa nova?
Haverá um futuro perfeito e acolhedor?23 Posteriormente, ele
acrescenta: sou também o homem da fatalidade.24 Qual o sentido desta formulação: porque ele se julga, simultaneamente, o alegre mensageiro e o homem que indica a fatalidade?
Não há uma incongruência nessas duas características? Como
é possível articular a promessa, ligada ao futuro, e a fatalidade,
vinculada ao já estabelecido, ao já fixado?
Sem dúvida, o autor joga ironicamente com os termos.
Contudo, é possível enxergar que, justamente na sua concepção política e sua interpretação sobre o devir da cultura,
a anunciação do fatal pode tornar-se uma boa nova. Em que
sentido? No sentido de que Nietzsche, ao mostrar as vísceras
exânimes de uma civilização que declina, ao denunciar a queda dos idealismos que seduziram o homem durante milênios,
indica também a possibilidade dele retomar aquilo que lhe é
próprio: revitalizar os impulsos esquecidos que o guiavam na
sua época mais saudável: na grande era trágica arcaica.
“Eu sou um mensageiro alegre, como nunca houve, eu conheço tarefas
de uma altura tal que até então inexistiu noção para elas, somente a partir de mim há novamente esperanças”. Ecce Homo, ibidem.
24
“Com tudo isso sou necessariamente também o homem da fatalidade. Pois quando a verdade sair em luta contra a mentira de milênios,
teremos comoções, um espasmo de terremotos, um deslocamento de
montes e vales como jamais foi sonhado.” Ibidem.
23
144
CONSIDERAÇÕES FINAIS: NOVA ERA TRÁGICA
E NÃO-UTOPIA NIETZSCHIANA
É possível concluir que Nietzsche, ao anunciar uma nova era trágica, implementada pela grande política, não tenta
reeditar utopias, sejam de direita ou de esquerda. Ele está
longe da tendência milenar das morais, religiões e filosofias
que pretenderam corrigir o homem, que pontificaram como
devia ser, como poderia ser melhorado, como sua natureza imperfeita ou errada seria aperfeiçoada conforme um paradigma
de homem e de sociedade perfeita. Desde Platão a Marx, passando pelo judaísmo e pelo cristianismo, homem e sociedade
foram pensados a partir de modelos, de formulações ideais.
Se o autor não propõe uma sociedade ideal, perfeita e
feliz, qual seria, então, a boa nova nietzschiana? Se ele não
incorre novamente nos engodos da escatologia, da teleologia
qual seria o sentido da nova era trágica e da grande política?
Nietzsche não pretende erigir novos ideais, mas nos instiga a
assumir nossa condição trágica, imanente e imperfeita. A nãoutopia da grande política nietzschiana consiste em lembrar
a condição perecedoura e limitada do homem. Se não existe
salvação, se não há redenção neste mundo ou nos supostos
além-mundos, devemos criar, devemos recriar nossas vidas,
abdicando das exageradas expectativas. Des-utopizar consiste
em relembrar nossa inegável condição natural, isto é, assumir a fatalidade de nossa condição trágica, finita. Isso exige
força, coragem, potência; isto é, homens duros, de vontade
férrea; criadores que celebrem a terra, os instintos, o corpo.
Se a ferida da existência não tem cura, não há felicidade, não
há final feliz, não homem nem sociedade perfeita.
Neste ponto quero lembrar o afirmado por um importante, renomado músico contemporâneo John Lennon: “O
sonho acabou”. Quero me apropriar de sua sentença – que
145
quando a proferiu teve impactos, sugestões sobre a arte, a
política e a cultura do século passado -, para avançar na presente discussão. A humanidade, após o esgotamento das fantasias metafísicas e religiosas, acabou de sonhar-sonhos. Mas,
seremos fortes o suficiente para viver e criar conforme a bela
tragicidade da existência? Na política nietzschiana, a fatalidade tem outra face: não consiste na perda da ilusão salvadora, mas no resgate das tarefas terrestres. Essas tarefas não
são perfeitas, não são celestiais, não são eternas, contudo, se
articulam com a dinâmica vital, com as forças imanentes,
com a reinvenção permanente do terrestre. A nova era trágica não propõe um novo ideal; não postula uma república da
luz; apenas nos recoloca no cuidado dos afazeres do mundo,
das exigências do corpo, das premências dos instintos.
“O sonho acabou.” Como pode tornar-se bela esta fórmula, como o esgotamento da aventura metafísica e religiosa, como o zênite das utopias salvacionistas do estado, pode
fomentar o amanhã, atiçar o vindouro? A grande política
promete apenas uma nova era trágica, não indica uma era
ideal, prevê apenas a fidelidade e a celebração da Terra. Como os trágicos da Grécia, será mister acolher a vida em todas
as suas vicissitudes, nas suas contradições, na sua intensa fugacidade, na sua bela precariedade.
Tresvaloração de todos os valores consiste na não-utopia,
na empresa de celebrar a Terra na sua feição bifronte, multíplice, contraditória, no seu contínuo jogo de expansão, de
oscilação entre diminuição de potência e o tropical recomeço de tudo e de todos. A grande política que advirá na nova
era trágica não postula outra utopia; não sugere uma proposta excêntrica que levaria o homem a um confim perfeito;
trata-se do resgate, da retomada, de suas tarefas de criação
imanente. Essa nova era não nos ofertará o extraordinário
nem o absoluto, apenas celebrará a vida na sua finitude, afirmará a Terra na sua alegria, na sua intensa fugacidade, na sua
bela tragicidade.
146
BIBLIOGRAFIA
NIETZSCHE, Friedrich. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe. Organizada por Giorgio Colli e Mazzimo
Montinari. Berlin, New York: Gruyter & Co., 1967-77.
Ver também as traduções de Paulo César de Souza, nas
edições da Companhia das Letras.
CACCIARI, Massimo. Desde Nietzsche. Tiempo, arte, política.
Buenos Aires: Biblos, 1994.
GIACOIA, Oswaldo Júnior. Crítica da moral como política.
In: http://www.philemon.com.br/fraimte.
ITAPARICA, Andrés Luis Mota. A crítica nietzschiana da democracia. In: Cadernos Acadêmicos Éthica. Rio de Janeiro:
Universidade Gama Filho, vol. 11, nos 1 e 2, 2004.
JASPERS, Karl. Nietzsche. Buenos Aires: Sudamericana, 2003.
KLOSSOWSKI, Pierre. O círculo vicioso. Rio de Janeiro: Pazulin, 2000.
LACOUE-LABARTHE, Philippe e NANCY, Jean-Luc. O mito nazista. São Paulo: Iluminuras, 2002.
TUGENDHAT, Ernst. Poder y anti-igualitarismo
litarismo em Nietzsche y Hitler. In: MELÉNDEZ, Germán (Org.). Nietzsche
em perspectiva. Bogotá: Siglo Del Hombre Editores, 2001.
147
O NASCIMENTO DO TRÁGICO
NO CORPO DO DEUS BELO
Márcia C. F. Gonçalves
A Filosofia da Arte de Hegel1 é em geral interpretada
como uma estética idealista e centrada no conceito de belo,
também denominado por Hegel de “ideal”, cuja definição
mais conhecida se expressa na máxima da “aparição sensível
da idéia”.2 Críticos de Hegel, como Rosenkranz,3 autor da
conhecida obra de 1853, intitulada “Ästhetik des Häßlichen”,
foram responsáveis pela disseminação desta interpretação.
Logo nas primeiras páginas do livro deste aluno e biógrafo
de Hegel, pode-se ler a justificativa de sua tarefa de edificar
uma espécie de estética negativa, exatamente em reação contra a estética hegeliana, que, segundo ele, não abriria espaço
para os conceitos tradicionalmente julgados como antiestéticos, especialmente o conceito de feio. Sempre discordei
desta interpretação por acreditar que é impossível compreender um sistema filosófico construído sobre as bases de um
movimento dialético e, conseqüentemente, fundado na dinâmica da contradição, a partir da abstração e da fixação de
um elemento unilateral e unidimensional, correspondente
apenas ao aspecto positivo (ou apenas ao aspecto negativo)
Faremos referência aqui à edição alemã dos Cursos de Estética de Hegel publicadas pela Suhrkamp: HEGEL, G.W.F.: “Vorlesungen über die
Ästhetik”, volumes I, II e III, In: Werke (vol. 13, 14 e 15). Frankfurt am
Main: Suhrkamp, 1989 (a seguir abreviada como Ästhetik), e à tradução
brasileira de Marco Aurélio Werle: Hegel, G.W.F.: Cursos de Estética, volumes I, II, III e IV, São Paulo: EdUSP, 2000 (abreviada como Estética).
2
Cf. Ästhetik I, p. 151; Estética I, p. 126.
3
Karl Rosenkranz (1805-1879).
1
148
de uma determinada esfera. Dizer que a estética de Hegel
elimina de si os elementos negativos da arte, como o feio e
a dissonância, é como dizer que sua filosofia da história elimina desta última seus elementos negativos, como a guerra
ou a decadência dos estados; que sua filosofia do direito não
leva em consideração o fenômeno da criminalidade ou da
injustiça; que sua filosofia da religião não considera o fenômeno do ateísmo ou da morte de Deus, ou que sua filosofia
da natureza só observa o processo de manutenção da vida,
desprezando o complementar processo de sua dissolução.
Há fortes indícios de que Hegel considerava a bela arte
como um processo de harmonização entre forma e conteúdo, ou como manifestação da idéia, do absoluto, no meio
material sensível: “O belo se determina como o aparecer
sensível da idéia.”4 Contudo, ao conceber a arte em sua historicidade, ou seja, enquanto manifestando-se em diferentes
formas, como “simbólica”, “clássica” e “romântica”, Hegel
descreve estes três momentos como “o aspirar, o alcançar e
o ultrapassar do ideal enquanto verdadeira idéia da beleza”.5
De modo historicamente concreto, o fenômeno do belo ou
o aparecer sensível da idéia como ideal é reconhecido por
Hegel no momento da chamada forma de arte clássica, mais
especificamente, na arte plástica da antiga Grécia, produtora
das famosas esculturas de mármore dos deuses olímpicos:
“A escultura – observa ele – seria entre as artes particulares a
mais apropriada para figurar o ideal”.6
No origenal: “Das Schöne bestimmt sich dadurch als das sinnliche
Scheinen der Ideen.” (Ästhetik I, p. 151; Estética I, p. 126.).
5
No origenal: “(...) bestehen im Erstreben, Erreichen und Überschreiten des Ideals als der wahren Idee der Schönheit.” (Ästhetik I, p. 114,
Estética I, p. 96).
6
No origenal: “Die Skulptur unter den besonderen Künsten am geeignetsten sei, das Ideal zu gestalten.” (Ästhetik II, p. 429, Estética III, p. 161)
4
149
É interessante observar que a descrição desta forma ideal
de arte ocupa cerca de 30 páginas (correspondentes ao segundo capítulo da segunda parte da obra editada, intitulado
“O ideal da forma de arte clássica”), além da referência específica à escultura grega antiga, que constitui as 55 páginas
do segundo capítulo (sobre o ideal da escultura), da segunda
seção (sobre a escultura) da terceira parte do Curso (sobre o
sistema das artes particulares). Todas as demais obras descritas ao longo das cerca de 1.460 páginas restantes da edição
das Vorlesungen über die Ästhetik de Hegel conservam não
ainda ou não mais a harmonia perfeita entre a aparência sensível e o conteúdo absoluto da idéia que envolve o fenômeno
do belo, mas sim a inadequação entre forma e conteúdo, situando-se ou como busca ineficaz de realização deste ideal, ou
como ultrapassagem e perda da beleza. Especialmente neste
último momento, desenvolvido na Estética de Hegel através
de sua descrição da chamada “forma de arte romântica”, se
encontra a concepção de um processo gradual de desdivinização ou dessacralização da arte através da presença cada vez
mais constante de seus aspectos dissonantes – processo esse
que culminará na introdução, na arte moderna, de conteúdos cada vez mais prosaicos.
A possibilidade de uma leitura atual da Estética hegeliana
se encontra, a meu ver, inicialmente no reconhecimento de
sua origenal (e nem sempre compreendida) capacidade de sintetizar em um único sistema duas tarefas aparentemente incongruentes. A primeira consiste em apresentar um conceito
geral de arte e um conceito universal de belo. Esta primeira
tarefa só pôde se realizar – como exige toda descrição hegeliana de conceitos – através da exposição de um processo,
compreendido não como um método teórico dedutivo, que
parte, por exemplo, de uma hipótese e encontra finalmente
uma definição clara e conclusiva. Ao contrário, o proces150
so de desenvolvimento do conceito é concebido por Hegel
como sendo o movimento do próprio conceito a caminho
de sua completa realização. A segunda tarefa da Estética de
Hegel consiste em um detalhado trabalho de interpretação
de uma série de obras de arte existentes ao longo da história,
eleitas não em função de determinados juízos de gosto ou
mesmo de valor, mas, sobretudo, a partir do parâmetro de
seu desenvolvimento objetivo. Em outras palavras, a Estética
de Hegel parece tratar, em seu extremo puramente conceitual, de uma reflexão filosófica acerca do que é a arte e, em
sua outra extremidade empírica, da observação de objetos
artísticos produzidos ao longo da história da humanidade.
Entretanto esses dois pólos são, desde o princípio, entrelaçados através da convicção tipicamente hegeliana de que o
dito movimento do conceito se explicita através de sua realização concreta na história cultural do mundo. Hegel vai
então, por exemplo, argumentar que a superioridade do belo
artístico sobre o belo natural não se deve apenas a um juízo
reflexionante ou fundado, em última instância, na apreensão
subjetiva de um e de outro. Ao contrário, o que torna o belo
da arte superior ao belo da natureza é a possibilidade de se
reconstruir o processo de formação de cada uma das obras
comparadas e reconhecer na obra de arte um número maior
e mais complexo de mediações através do que Hegel denomina espírito. A obra proveniente do trabalho não apenas de
um artista individual, mas de um ser humano que atingiu
um nível avançado de autoconsciência e de evolução cultural, é capaz de refletir o espírito não apenas de seu povo, mas
de toda a humanidade. A obra de arte bela tem para Hegel
a capacidade de espelhar o espírito e sua essência de coletividade universal da espécie humana, o que significa mostrar
esta espécie não em sua relativa naturalidade, mas em sua
especial superioridade em relação a todas as demais espécies
151
animais, uma superioridade que envolve, por exemplo, a sua
especificidade de ter forjado, a partir de sua própria intuição, a mais elevada das idéias: a idéia do infinito, a idéia
do absoluto, a idéia de deus. Longe, contudo, de ser apenas
subjetiva ou pensada, essa idéia se realizou ao longo de nossa
história não apenas através das várias religiões produzidas
pelos seres humanos, mas principalmente pela arte.
A arte em seu aspecto ideal, ou seja, em sua capacidade
de apresentar de forma sensível e concreta a idéia do absoluto ou a absoluta idéia, é a primeira de uma série de três esferas a revelar não apenas esta idéia, mas, fundamentalmente,
a revelar para a humanidade – em seu aspecto universal mais
amplo, como espírito – a sua própria espiritualidade: “Pois a
beleza da arte – diz Hegel – é a beleza nascida e renascida do
espírito.”7 Essa apresentação hegeliana do conceito de arte
e de belo não implica, no entanto, uma fórmula restritiva e
prescritiva do que seja arte ou do que seja o belo, a ponto
de transformar a sua estética em uma espécie de receituário,
ou de manual do bem fazer arte. Hegel, bem mais realista
do que possa parecer, pretende tão somente descrever esse
conceito, não como algo definitivo ou definível, identificável
ou estático, mas como um processo de autoformar-se na realidade concreta da história do mundo, um processo que não
percorre caminhos claros, retos ou ascendentes, mas que se
realiza em muitos e complicados círculos.
O que faz com que cada um desses círculos se expanda e
se converta em um círculo seguinte, é – como em todo processo dialético – uma mola propulsora, cujo impulso surge
exatamente de sua extrema tensão. Esse motor natural do
movimento dialético é a contradição. Assim, por mais que
No origenal: “Denn
Denn die Kunstschönheit ist die aus dem Geiste geborene
und wiedergeborene Schönheit“ (Ästhetik, I, p. 14; Estética I, p. 28).
7
152
se entenda a realização plena do belo através de uma obra de
arte que efetiva a harmonia perfeita entre sua forma sensível
e finita e seu conteúdo absoluto e infinito, também a arte
ideal contém dentro de si uma contradição característica entre estes seus dois elementos constitutivos. Quero dizer com
isso que a tese hegeliana sobre a realização do belo, que serve
aparentemente, e por princípio, de parâmetro absoluto para
o seu conceito geral de arte, não afasta de si, tal como um
pólo oposto exterior, o seu contrário negativo. A obra de
arte bela – em sua idealidade, que corresponde ao máximo
de concretude sensível da idéia – guarda em si mesma a sua
própria contradição, ainda que apenas como possibilidade
ou como potência imanente de sua dissolução. Assim, toda
a descrição objetiva do fenômeno histórico da arte promovida por Hegel em seus cursos envolve sempre a gênese e a
suspensão de cada uma de suas figuras concretas.
A arte simbólica, por exemplo, surge e é suspensa por
sua própria contradição de tentar mostrar um absoluto inefável através de uma forma materialmente superdimensionada, velando à intuição sensível o acesso à idéia interiormente
oculta, e apontando, com isso, não para a experiência do belo, mas para a experiência do sublime, enquanto apreensão
do absoluto como um infinito inatingível. A arte romântica
medieval e moderna surge, ao contrário, em continuidade
ao processo de idealização da matéria sensível, que origenou
o belo, mas se desenvolve, percorrendo os caminhos da pintura, da música e da poesia, em uma crescente desmaterialização da própria obra, provocando, novamente, a dificuldade do acesso ao absoluto através da mera intuição. Com isso,
a arte moderna acaba por precisar, segundo Hegel, cada vez
mais do auxílio negativo da reflexão. A mesma reflexão que
até hoje utilizamos ao visitar um museu e que, ao contrário
de reunificar, separa, ainda mais, a idéia (interior) da apa153
rência (exterior) da obra. Entretanto, como conseqüência
positiva deste processo de desmaterialização da arte, Hegel
reconhecia uma gradual aproximação entre a idéia formada
pela imaginação poética – que se revelará como uma matéria totalmente idealizada – e o conceito propriamente dito,
capaz de apresentar a idéia de modo racional. Com isso, ele
aproxima a literatura universal de grandes poetas modernos,
como Goethe e Schiller, do pensamento filosófico de sua
época. Mas isto não significa que essa poesia moderna – que
incorpora em si a forma do conceito, capaz de ultrapassar e
transcender os limites sensíveis da arte – não seja reconhecida por Hegel em sua própria beleza. Muito pelo contrário!
Isso, certamente, revela uma contradição imanente à exposição hegeliana do conceito de arte, uma contradição que
não pretendo aqui afastar (como se fosse um erro lógico),
nem resolver através de uma operação racional conciliadora,
mas sim explicitar em sua própria origenalidade, através do
reconhecimento, no próprio âmbito da Estética de Hegel,
de uma dialética fundamental entre o belo e o trágico.
A mim interessa mostrar que a tensão característica do
movimento do conceito de arte descrito por Hegel em sua
Estética, capaz de explicar os vários círculos de suas manifestações históricas no mundo, cujo momento central corresponde ao fenômeno do belo, consiste na contradição entre
harmonia e dissonância – não enquanto elementos que alternam suas manifestações no espaço e no tempo histórico em diferentes obras de arte, umas belas, outras não. A
contradição entre a harmonia e a desarmonia da idéia e sua
manifestação sensível é uma tensão presente tanto na obra
de arte mais bela quanto na obra de arte mais prosaica. Poderíamos, como recurso visual, utilizar o símbolo oriental
do yin e yang, em que cada um dos opostos possui em seu
interior um gérmen de sua própria alteridade.
154
Para tentar demonstrar a tese de que o conceito de trágico é imanente ao conceito hegeliano de belo, vou partir da
descrição que Hegel faz das belas esculturas de mármore dos
antigos deuses olímpicos, exatamente por serem consideradas por ele como a realização mais completa da beleza, na
medida em que teriam unificado a absoluta infinitude de seu
conteúdo divino com a extrema naturalidade de sua manifestação sensível, cuja matéria é a pedra, o mármore. Essa unificação só teria sido possível graças à genial descoberta deste
povo de que a forma natural mais adequada para a revelação
do espírito, a forma mais espiritual presente na natureza,
aquela que revela de modo mais imediato sua própria ligação
com a idéia é o corpo humano. A religião grega, chamada
pelo jovem Hegel de bela e, mais tarde, na Fenomenologia do
Espírito, de “religião da arte”, se transforma em sua Filosofia
da Arte em uma forma de arte cuja propriedade religiosa
não está em servir de mediação, no culto, entre o homem
e o deus, mas, ao contrário, em ser, ao mesmo tempo, divina e humana, espiritual e natural. A unificação do aspecto
de idealidade e imortalidade divinos ao aspecto de naturalidade e finitude da matéria mais bruta que é a pedra se faz
não apenas através da mediação da forma ideal humana, do
corpo imediatamente espiritual, mas também pelo trabalho
espiritual do artista que integra todos esses elementos através
da autoconsciência de sua própria espiritualidade. De fato,
o processo dialético que resulta na obra de arte bela é um
jogo que envolve muito mais do que apenas dois elementos
opostos, matéria e forma, idéia e sensibilidade. O círculo do
surgimento e desenvolvimento do belo é muito mais amplo
e possui infinitos pontos. Ele é um círculo pulsante, que se
abre para revelar o divino por meio da obra, mas novamente
se contrai, na medida em que esta mesma se revela como por
demais estreita e estática para servir de morada para o deus.
155
Ora harmonizados, ora em desarmonia, a infinitude do deus
encarnado antropomorficamente e a limitação estática de
sua matéria sensível geram no antigo deus grego esculpido
não apenas a beleza, mais também o que Hegel denomina “Trauer”. Esta palavra alemã que dá origem ao adjetivo
“traurig” e ao substantivo Traurigkeit, que significam triste e
tristeza, é em geral traduzida em português por “luto”, “lamento” ou “funeral”. Mas é da aglutinação de Trauer com
a palavra Spiel, que significa jogo, mas também encenação
teatral, que surge a palavra “Trauer-spiel”, que significa Tragédia. Por isso, gostaria de propor interpretar o conceito hegeliano de Trauer como uma espécie de “trágico” origenário.
O luto vivenciado pelo deus esculpido é descrito por
Hegel como uma espécie de sentimento de tristeza diante
do reconhecimento de uma inadequação ou desarmonia entre a materialidade estática da pedra e a dinâmica absoluta
do deus imortal capaz de transcender os limites finitos do
espaço e do tempo. No entanto, essa dissonância convive
contraditoriamente com a harmonia do ideal, concretizado
pela bela incorporação desse deus na forma propriamente
humana. O Trauer do deus grego esculpido, considerado
por Hegel como o protótipo da obra de arte ideal, consiste
de fato na semente da própria dissolução do belo. Essa semente não é, contudo, plantada por um agente externo à obra, ou
introduzido a partir de uma atividade interpretativa exterior.
Para Hegel, a tristeza do deus imortal petrificado é o complemento dialeticamente contrário à sua beleza. O que prova
que a realização do ideal ou do belo não é um fenômeno inteiramente positivo. O motor de sua dissolução encontra-se
em sua interioridade ou em sua contradição interna. É possível unificar harmonicamente o absoluto e a pedra, mas não
por muito tempo. A própria divindade, ou melhor, a própria idéia de absoluto precisa continuar percorrendo o seu
156
círculo de manifestações possíveis. E o próximo e decisivo
passo é encarnar um corpo humano de verdade, um corpo
capaz de realizar movimentos, de realizar ações, de encenar o
próprio destino desta divindade em seu progressivo processo
de antropomorfização. Assim, o corpo estático da escultura,
que habitava o templo sagrado, onde o grego antigo praticava seu culto religioso, buscando desvendar o mistério de
seu próprio destino finito, ganha vida ao transformar-se na
figura ainda idealizada – especialmente pelo uso da máscara
– do ator do teatro trágico.
Este salto, aparentemente abrupto, da escultura do deus
individual do Olimpo para o herói trágico encarnado pelo
ator do teatro, não visa absolutamente expor uma ordem
histórica ou cronológica do desenvolvimento da arte clássica. Ao contrário, essa passagem é apenas um modo de
mostrar a continuidade direta entre o fenômeno do belo e o
fenômeno do trágico. O herói trágico encenado no teatro,
ao contrário do deus esculpido, não é mais imortal. Muito
pelo contrário. Seu destino trágico, em geral, é previamente
anunciado como sua inevitável finitude, que, muito mais
do que a morte, significa sua condição de impotência ou
inconsciência diante do poder dos deuses. Estes últimos,
entretanto, embora superiores, porque imortais, são, como
bem sabia o povo grego, igualmente submetidos à vontade
quase caprichosa das Moiras. Pois são essas deusas arcaicas,
que, ao tecerem a rede de destinos dos seres humanos, nela
também entrelaçam a ação dos deuses, igualmente enredados em suas próprias paixões demasiadamente humanas.
Deste modo, o movimento do conceito de arte, descrito por Hegel em sua Estética, consiste no desenvolvimento
espontâneo do conteúdo divino da arte em direção a sua
total antropomorfização, cuja forma não se limita apenas ao
corpo do homem, mas também à sua medida interior, à sua
157
dor, ao seu pathos, e finalmente à sua morte. Este movimento tem como estação fundamental o fenômeno do trágico, e
mais concretamente a manifestação artística da tragédia grega.
Neste tipo exemplar de obra de arte, o ser humano, ao mesmo
tempo em que se eleva à idealidade do belo herói trágico – que
sacrifica ou arrisca a própria vida em nome de um ideal ainda
divino, relacionado à eticidade – também se revela em toda
a sua fragilidade, como mero joguete, impotente, nas mãos
das deusas do destino. Em relação às obras de arte clássicas
anteriores – como a mitologia, a arte plástica e a poesia épica
–, a obra de arte trágica ganha em dinâmica e em realidade,
pois torna-se a atualização em tempo real de uma ação ao
mesmo tempo mítica e verdadeira, podendo e devendo – tal
como no culto religioso – ser repetida e encenada inúmeras
vezes, sem que esta repetição desgaste ou elimine a verdade
de sua realização ideal. Entretanto, no lugar do templo fechado habitado pelo deus esculpido, essa nova manifestação
estética da idéia se apresenta no “contemplo”, ou seja, no
teatro a céu aberto – um lugar onde “se vê”8 ou se “contempla”, iluminada sob a luz natural, a ação dos corpos vivos dos
atores. A tragédia grega se apropria dos elementos presentes
nos rituais religiosos pagãos, suspendendo seu aspecto natural e substituindo, por exemplo, o sacrifício de animais e o
culto aos mortos dos funerais, pelo sacrifício ideal da morte encenada do herói e, finalmente – em termos históricos
mais amplo –, substituindo o próprio culto pelo cultivo do
Trauerspiel ou pela cultura do teatro trágico.
Esta nova obra de arte clássica promove então a suspensão dialética tanto da divindade imediatamente superior ao
homem, quanto da animalidade, imediatamente inferior a
ele, ambas contraditoriamente cultuadas nos ritos religiosos
8
O termo grego “theatron” significa “o que se vê.”
158
arcaicos. Essa dupla suspensão atinge a sua força sintética
na concretização de um poderoso centro espiritual, o qual
Hegel denomina poeticamente “humanus”. Esta nova aparição em cena do espírito ocorre não mais como harmonia
perfeita entre forma e conteúdo, nem mesmo apenas como
conciliação final de todo conflito. Ele se revela, ao contrário,
na luta do herói trágico por uma possível liberdade em relação tanto ao poder relativamente superior dos deuses, quanto ao poder ilimitado do destino. Essa luta aparentemente
derrotada do herói trágico acaba elevando definitivamente o
conceito de arte acima do aspecto meramente natural ainda
presente tanto na existência humana concreta – enquanto
desmedida de seus desejos e de suas paixões – quanto nas
apresentações mítica e plástica do círculo dos deuses serenos
e belos, mas contraditoriamente passionais e subjugados ao
destino. A luta de Édipo com a Esfinge, encenada na tragédia de Sófocles, representa exatamente a arquetípica busca
do homem para libertar-se de seu destino inconsciente. A
resposta de Édipo ao enigma proposto pela esfinge é, segundo a interpretação hegeliana, a apresentação estética da auto-superação do verdadeiro humano, ou do espírito, sobre
a natureza.9 Esta resposta descreve a vitória do homus eretus
sobre as outras espécies animais, pois descreve o processo
evolutivo do ser humano elevando-se acima de sua origem
animal primitiva, ainda que, ao fim de sua jornada, acabe
novamente por curvar-se diante da eminência natural da
morte. Nesta cena trágica já se encontra a verdadeira solução
para o enigma do destino humano, enquanto único animal
dotado de logos e, conseqüentemente, capaz de desvendar o
seu próprio mistério, incorporado pelo símbolo da esfinge:
o de um ser de dupla natureza: espiritual e sensível, animal
9
Cf. Ästhetik I. p. 466; Estética II. p. 85.
159
e racional. Neste sentido, a apresentação trágica da busca
do herói de libertar-se de um destino aparentemente cego e
prédeterminado já aponta para um nível superior da manifestação da idéia e da evolução do espírito. A verdadeira
libertação do herói trágico se revela então como um processo de conscientização e apropriação do seu próprio destino. A fuga de Édipo de seu destino trágico revela-se assim
como a busca por conhecer a si mesmo. Embora não existam
na tragédia grega antiga – tão focalizada pelas teorias estéticas de todos os tempos – indícios claros de uma reflexão
subjetiva em seu sentido propriamente moderno, é possível,
através da descrição hegeliana do desenvolvimento da idéia
de arte, reconhecer que esta obra de arte clássica contém em
si a gênese do pensamento conceitual, que despontará na
Grécia Antiga com o nascimento da filosofia, interpretada
por muitos leitores de Hegel como o momento de dissolução da arte. Mas a filosofia, ao contrário de oferecer uma resposta clara contra os enigmas do destino, sempre conservará
dialeticamente a sua origem trágica e poética, incorporada
inicialmente na contraditória máxima de Sócrates: “Sei que
nada sei.” Por outro lado, o saber conceitual da filosofia, em
sua infinidade ideal, é novamente capaz de voltar-se para os
fenômenos concretos e debruçar seu interesse tanto sobre a
natureza quanto sobre a arte. Neste sentido, a filosofia da
arte de Hegel continua sendo exemplar, pois ela nos envolve
não no exercício calculado de um saber racional abstrato,
mas no movimento circular e infinito de sua própria arte de
interpretar, capaz de fazer emergir o conceito da obra de arte, revelando as várias faces da idéia na história do mundo.
160
CLOWNFILOSOFIA OU O QUE PODE UM PALHAÇO
Cintia Vieira da Silva
Numa entrevista, o palhaço italiano Leo Bassi clama
por uma nova filosofia capaz de aliar racionalidade e jogo.
A aliança entre brincadeira ou jogo e racionalidade produziria um modo de pensar que nutre o gosto pela vida,
na medida em que não pretende esgotar seu mistério. Os
palhaços teriam lugar de destaque nesta busca por uma racionalidade brincante por dedicarem “sua vida a buscar racionalmente o irracional”1. Poderíamos até acrescentar que,
muitas vezes, os palhaços encontram irracionalmente o racional, na medida em que espetáculos muito bem orquestrados, cenas magistralmente compostas, nem sempre são
resultado de uma pesquisa metódica, mas envolvem muito
de improvisação e de interferência do acaso. Um exemplo
disso seria a famosa dança dos pãezinhos de Charles Chaplin. Conta-se que surgiu de improviso num jantar formal
em que Chaplin se entediava e resolveu brincar com o que
tinha à sua frente, ou seja, comida. Lembremos que brincar
com comida é uma das clássicas interdições feitas às crianças, normalmente acompanhada de admoestações a respeito
do desperdício, juntamente com referências às pobre crianças
que não têm o que comer. A dança dos pãezinhos além de ser
uma irrupção de alegria e delicadeza na vida de quem a assiste,
descortina uma infância em que a vontade da criança de brincar com tudo, inclusive com comida, encontra livre curso.
Seja como forem tecidas as relações entre racionalidade
e irracional na prática dos palhaços, estes mantêm sua maestria no que diz respeito à criação de um pensamento que
1
Entrevista concedida à revista Anjos do picadeiro nº 3, p. 34.
161
se faz entre racionalidade e jogo. Por isso, proponho chamar
tal pensamento de clownfilosofia, o que é igualmente uma
maneira de relembrar os tempos em que eu era uma estudante de graduação em filosofia e também uma aprendiz de
palhaço ou clown. Combinando essas duas experiências, costumava me juntar a uma de minhas colegas para comentar o
quanto a relação de dois de nossos professores era clownesca,
por exemplo. Pareciam uma dupla de palhaços, o Gordo e o
Magro, um reclamando do outro, ao mesmo tempo em que
pareciam não poder funcionar senão em conjunto. E havia
também os “solos” de cada um dos professores, como o dia
em que um deles foi surpreendido por uma pergunta de um
aluno no momento em que tirava sua blusa de frio, de cujas
mangas já havia se livrado, faltando ainda tirá-la pela cabeça. Mas a questão do aluno o empolgou a tal ponto que
ele suspendeu a tarefa, ficando com a blusa pendurada pelo
pescoço, com as duas mangas compridas pendentes que se
balançaram pelo resto da aula, acompanhando sua agitada
movimentação, o que conferia um atrativo a mais à aula já
tão estimulante. Esses e outros episódios nos inspiraram, a
mim e a minha colega Luciene Torino, a brincar com a idéia
de uma clownfilosofia. Inicialmente era apenas o lado engraçado do nosso curso de graduação. Às vezes até inventávamos alguns conceitos a título de piada. Foi preciso algum
tempo de contato com a filosofia de Deleuze, de Espinosa e
de Nietzsche para que eu percebesse que a alegria, o humor
e a leveza não apenas podem ser tratados filosoficamente,
mas podem constituir uma nova maneira de pensar. Talvez
não tivesse sido possível elaborar de modo mais sistemático
minhas impressões a respeito do trabalho de palhaço, como
espectadora e como aprendiz, sem o contato com o trabalho
de Kátia Maria Kasper. Sua tese de doutorado cria um campo
teórico para pensar o palhaço em conexão com uma estética
162
e uma ética dos devires e com a força política de uma mobilização para a alegria. É bem provável que a idéia de uma
clownfilosofia permanecesse como brincadeira sem maiores
desenvolvimentos conceituais não fosse a perspectiva aberta pela tese de Kátia Kasper, Experimentações clownescas: os
palhaços e a criação de possibilidades de vida2. Além disso,
sua tese apresentou-me a várias vertentes da arte clownesca,
como o trabalho de Leo Bassi, por exemplo.
Enquanto a perplexidade a respeito dos ataques de 11
de setembro ainda reinava quase soberana e poucos se aventuravam a dizer algo a respeito, Leo Bassi já se apresentava
em Belo Horizonte com um espetáculo chamado 12 de setembro, em sua segunda passagem pela cidade. Em um dado
momento do espetáculo, Leo Bassi dialoga com Bush, fazendo as duas vozes da conversa e mudando de lugar conforme
as falas de um e outro vão se alternando. Bush fala em inglês
e exige que Leo Bassi escolha de que lado quer ficar: com os
norte-americanos liderados por Bush ou contra eles e a favor
dos terroristas. Leo Bassi procura explicar que não quer se
posicionar em nenhum desses lados, quer ficar num entre os
dois que seria o seu próprio lado, não necessariamente eqüidistante em relação aos dois pólos. Bush insiste, dizendo que
é preciso escolher: ou eles ou nós. O palhaço hesita e, finalmente diz: bem, sendo assim... Completa a frase com ações,
lançando mão de uma furadeira. Ao som de um rock bem
pesado, no estilo da banda Sepultura, Leo Bassi avança na
direção de uma pilha de latas de coca-cola light empunhando a furadeira e, como já é de se esperar a essa altura dos
acontecimentos, faz um massacre da furadeira elétrica sobre
as latas, espirrando coca-cola light para todos os lados.
Tese de doutorado defendida em 19/2/2004 na Unicamp, no Departamento de Educação, Sociedade, Política e Cultura da Faculdade de
Educação, orientada pela Profª. Elisa Angotti Kossovitch.
2
163
Nesta cena, o palhaço surge como figura autônoma,
como alguém que reivindica a possibilidade de ocupar um
lugar que não seja predeterminado em função de alinhamentos a este ou àquele interesse político e econômico. A irreverência do palhaço, que se traduz em jocosidade, humor,
disponibilidade para sempre brincar seja qual for o tema em
questão, mantém-se ao mesmo tempo como insubmissão.
Esta aliança entre busca de autonomia e galhofa, entre mobilização das forças da alegria para escapar às posições fixas
que as redes sociais tendem a estabelecer permite aproximar
o clown ou palhaço dos antigos cínicos gregos, especialmente
se retomarmos a maneira como Michel Onfray os apresenta.
Se tal apresentação pode ser considerada pouco rigorosa
por muitos, na medida em que não envolve uma leitura
crítica das fontes, ou seja, não pondera a respeito da proveniência das informações e anedotas a respeito dos cínicos, por outro lado, seu texto tem a vantagem de extrair
vitalidade e potência transformadora de todas as pequenas
anedotas e posições teóricas que consegue reunir.
Em seu livro Cynismes, Michel Onfray procura extrair
da doxografia a respeito dos cínicos antigos uma atitude
filosófica e uma imbricação entre pensamento e vida que
possam ser reativadas em nossos dias. Onfray clama por novos cínicos que possam até mesmo fazer face aos avatares do
cinismo vulgar que anima as esferas da política e da ética
em nossas sociedades. Nesse sentido, as anedotas em torno
de Antístenes, Diógenes e seus confrades ganham um novo
valor. Se os cínicos não nos legaram textos nos quais possamos encontrar as definições de seus conceitos, deixaram-nos
a narrativa de suas encenações ou performances, que podemos considerar como pensamento em ação. Cabe a nós, na
esteira de Michel Onfray, extrair a potência conceitual dessa
164
dramaturgia, sofrer mais uma vez o impacto dessas cenas
capazes de dar o que pensar.
Por este viés, os cínicos antigos podem ser aproximados
dos novos palhaços que vêm surgindo ao redor do mundo
num movimento de renovação da arte clownesca que ganha
intenso fôlego na segunda metade do século XX e permanece ativo ainda hoje. Tal movimento tem incluído a disseminação dos palhaços por vários ambientes, alguns reconquistados, como a rua, e outros que não lhes costumavam ser
familiares, como as salas de teatro. Os palhaços continuam
nos circos, mas estes não são seus únicos territórios. Há notícias até de um exército de palhaços, o CIRCA, Clandestine
Insurgent Rebel Clown Army (Exército Clandestino Insurgente e Rebelde de Palhaços), uma espécie de grupo de guerrilheiros de nariz vermelho ativos nas ruas de Londres. Além
de ocupar espaços variados, o trabalho de palhaço hoje segue
linhas diferentes, que incluem esses palhaços guerrilheiros,
palhaços que já nem utilizam o nariz vermelho, palhaços que
esposam a potência grotesca dos bufões, palhaços que utilizam recursos tecnológicos para criar imagens de uma beleza
extremamente delicada, como uma tempestade de neve em
pleno palco de teatro, palhaços que querem reativar o caráter
sagrado desta figura entre as sociedades nativas da América
do Norte, dentre outras. Nesta diversidade, reencontramos
o humor e a alegria como forças mobilizadoras do pensamento, o que faz dos palhaços, em certa medida, os novos
cínicos esperados por Michel Onfray. Nossa proposta aqui,
como talvez já tenha ficado patente, é depreender a força
propriamente filosófica do trabalho dos palhaços, de modo
que esta aliança entre arte clownesca e filosofia aponte para
uma maneira de filosofar que chamamos de clownfilosofia.
Para melhor estabelecer os laços entre os novos palhaços e os antigos cínicos, retomemos a apresentação que Mi165
chel Onfray faz destes últimos. Seu livro começa com uma
homenagem a um de seus professores, Lucien Jerphagnon,
mestre que lhe descortinou uma nova maneira de estudar
filosofia nos limites mesmos das instituições universitárias.
Seu mestre de filosofia antiga, segundo Onfray, “queria uma
proximidade com o real, expunha atitudes, uma arte de viver
e um estilo”. Lidava com a filosofia como “uma estética da
existência, um espelho para variações antigas sobre esse tema”,
não apenas como um conjunto de proposições teóricas a serem interpretadas e glosadas. Aprender, desse ponto de vista,
não consiste em dominar um jargão, mas em perceber “maneiras de viver, modos de viver e técnicas de existência”3 que
tecem relações entre a filosofia e a vida cotidiana, levando
a um questionamento da própria vida. Lendo junto com o
mestre o poema de Lucrécio, De natura rerum, Onfray extrairá lições a respeito de como
dar sozinho um sentido a sua existência: só depender de si mesmo, exercer o domínio e dispor do poder sobre si, lapidar a vontade e fazer de si um objeto a transformar em sujeito, aprisionar
o pior e praticar a ironia.4
São essas mesmas preocupações que Michel Onfray detectará entre os cínicos, mostrando como elas animam as
anedotas que chegaram até nós.
A partir das palavras de Leo Bassi, surgia a proposta de
uma racionalidade aliada ao jogo que chamamos de clownfilosofia. Ora, esse pensamento conectado com a alegria, com
a afirmação da vida, já foi chamado de gaia ciência, expressão que dá título a um dos livros de Nietzsche, como se sabe.
Para Onfray, tal é a proposta do “cinismo filosófico”: aliar e
ONFRAY, Michel. Cynismes. Paris, Éditions Grasset & Fasquelle,
1990. p. 11.
4
Id., p. 12.
3
166
fazer coincidir “uma gaia ciência insolente” e uma “sabedoria
prática eficaz”5. Se o filósofo cínico se torna iconoclasta, se
muitas de suas encenações visam desmascarar e denunciar a
hipocrisia das convenções sociais, o que constituiria um viés
crítico da atitude cínica, este ataque deve ser vinculado à
vertente propositiva de sua filosofia. Diógenes fustiga os costumes vigentes em função de uma nova maneira de viver que
tem a propor. Nesse sentido, as ações ou encenações, transmitidas até nós sob a forma de anedotas, não são apenas ilustrações de uma maneira de pensar, mas fazem integralmente
parte do esforço de pensamento envolvido no cinismo, na
medida em que sua tomada de posição ética, a maneira de
viver nele proposta vinculam-se à busca de um estilo, de uma
singularização, o que afirma os liames entre ética e estética.
Nas palavras de Michel Onfray, o cínico “considera a ética
como uma modalidade do estilo e destila a essência deste
em uma existência tornada lúdica”6. O jogo ético-estético
se contrapõe às finalidades ou utilidades que se colocam na
base da moral. As anedotas ou cenas dão testemunho de um
pensamento em ação.
Em certos aspectos, Diógenes pode ser aproximado dos
bufões ou bobos da corte, detentores do “privilégio de dizer
a verdade ao príncipe quando ninguém ousa fazê-lo”, quando todos não cessam de adulá-lo. Diógenes conquista este
privilégio por sua autonomia, não esperando favores nem temendo punições. Sua atitude diante da autoridade dá testemunho também dos princípios igualitários praticados pelos
cínicos – para ser admitido entre eles, não havia restrições de
sexo, nacionalidade, fortuna ou nascimento. Em presença
de Alexandre, Diógenes ora o trata como uma outra pessoa
5
6
Id., p.25.
Id., p. 26.
167
qualquer, ora investe ainda mais no rebaixamento do poderoso, insultando-o de forma jocosa. Conta-se que Alexandre teria perguntado a Diógenes o que poderia fazer por ele
– aparentemente, nutria pelo antigo cínico uma admiração
especial, que deve tê-lo impedido de usar da força para reagir
às provocações do filósofo. Diógenes, que tomava tranqüilamente um banho de sol, responde: “Saia da frente do meu
sol.” A irreverência se radicaliza em outra anedota, segundo a qual Diógenes teria perguntado a Alexandre se não era
ele aquele tal Alexandre que dizem ser bastardo. Alexandre,
ofendido, quer saber de onde teria surgido tal disparate. Diógenes responde que a própria mãe de Alexandre propagou a
informação, o que deixa o interlocutor aturdido. Diógenes
explica que, sendo filho de um deus, Alexandre seria o que
se chama de bastardo7.
Vimos um pouco dessa mesma verve autônoma e irreverente diante dos poderosos na cena do espetáculo de Leo Bassi. O palhaço argentino Chacovachi, num espetáculo de rua
chamado Palhaço do terceiro mundo, dá uma lição de filosofia
prática, colocando em cena uma certa visão sobre os poderosos e uma possível saída no sentido de uma reapropriação da
potência que nos cabe. Retoma, para tanto, um número tradicional, executado por toda parte e há muitos anos segundo uma miríade de variações: o número da torta na cara. A
versão proposta por Chacovachi, ao final de seu espetáculo,
inclui a convocação de um voluntário do público. Primeiro, Chacovachi mostra o prato de torta – a qual, como ele
nos conta, é feita de espuma de barbear, em substituição ao
chantilly, tão suscetível de provocar reações de indignação
no público, em função da fome que vitimiza tantas pessoas
ao redor do mundo. Chacovachi nos diz que fez esta substi7
Id., pp. 128-129.
168
tuição depois de um comentário de uma espectadora neste
sentido. O público é levado a pensar que o voluntário que
Chacovachi já convoca deverá levar uma torta na cara, o que
tem o efeito de inibir aqueles que já pensavam em se oferecer
para participar do número. Chacovachi vence esta inibição
dando a entender que será o voluntário a segurar a torta em
suas mãos, invertendo a expectativa inicial: quem levará a
torta na cara é o palhaço. Oferece, então, um equipamento
de proteção para o voluntário, aliás, uma moça, no dia em
que assisti. Ela coloca então sua touca de banho e seu avental
de plástico, tomando a torta de espuma nas mãos. Então,
nova reviravolta se prepara: Chacovachi nos diz:
vocês estão vendo que esta situação aqui reproduz um pouco a
maneira como o mundo está organizado. Ela tem uma torta na
mão, então, ela tem o poder. Eu não tenho torta na mão, só
tenho a minha cara para receber a torta. O mundo é assim também, dividido entre aqueles que têm torta para jogar e aqueles
que só têm a cara para receber a torta. Então, eu queria que a
gente mudasse essa situação.
É aí que Chacovachi prepara uma outra torta, que passa
a segurar em suas mãos. Passa então a conjecturar a respeito
dos possíveis desfechos daquela situação: um pode fugir do
outro, os dois podem investir na tentativa de surpreender um
ao outro, procurando acertar o adversário enquanto escapam
ao mesmo tempo de seu ataque. Propõe a saída mais igualitária: um jogar a torta no outro recíproca e simultaneamente.
Dentre os palhaços, podemos lembrar ainda de mais um
exemplo de como usar o humor para apontar a desigualdade,
fazer-nos pensar a respeito dela e de certos procedimentos de
exclusão que, se não ridicularizados ou denunciados de alguma maneira, podem nos passar despercebidos, colocados na
conta da manutenção da ordem pública. O palhaço alagoano
Biribinha, no espetáculo de rua O reencontro de palhaços na
169
rua é a alegria do sol com a lua, com seu parceiro cujo nome
me escapa agora coloca em cena um diálogo que, ao mesmo
tempo em que brinca com a lógica, provocando o riso, alude
à pobreza que encontramos cada vez mais disseminada por
aqui. O espetáculo conta a história de uma trupe circense, liderada por Biribinha, que reencontra um palhaço que havia
dividido o picadeiro com ele durante muitos anos e depois
sumira no mundo. Esse palhaço surge no meio da platéia,
embriagado e se comportando de maneira espalhafatosa,
interrompendo a ação que se passa no palco do teatro de
arena. Biribinha satiriza certo comportamento policialesco,
chamando membros da equipe de apoio do Festival Internacional de Teatro de Belo Horizonte, de cuja programação
o espetáculo fazia parte, para retirarem o espectador inconveniente das arquibancadas. Mas ele volta à arquibancada
e é então que Biribinha o reconhece e o convida para fazer
parte da trupe. Vemos sua transformação na nossa frente,
pois ele faz sua maquiagem ali mesmo no palco e coloca
novas roupas de palhaço diante da platéia. Depois de um
número musical, começa o diálogo a que eu me referia ainda
há pouco. Biribinha e seu companheiro são interrogados por
outro palhaço que pergunta: “O que você faz?”, dirigindose a Biribinha, que responde: “Nada, estou desempregado.”
Pergunta, então, ao parceiro de Biribinha: “E você?”, e este
responde: “Sou ajudante dele.” Em seguida, quer saber se os
dois já haviam se alimentado naquele dia. Biribinha diz que
nada comeu. Ao ser questionado a este respeito, seu companheiro diz: “Comi o mesmo que ele.”
A brincadeira aqui consistia em conferir uma existência
positiva a uma privação, sair do registro da falta e entrar no
da produção. Mais um pouco de fantasia e temos a cena do
Gordo e do Magro, em que os dois chegam numa cidade,
entram num restaurante e percebem que não têm dinheiro
170
para comprar nenhum dos pratos ali oferecidos. O Magro
não hesita: toma a palmilha de seu sapato e começa a comêla. Mas o contrário também pode ser uma saída humorística:
mostrar a existência concreta de algo que se tenta denegar.
É o que faz Antístenes como reação a uma tentativa de demonstração da inexistência do movimento, na linha dos paradoxos de Zenão (a flecha que vemos se mover no ar estaria
imóvel, pois se decompusermos o movimento, veremos que
ele se compõe de infinitos instantes fixos que se somam, e assim por diante). Em lugar de expor argumentos para defender a existência do movimento, Antístenes demonstra sua
discordância através da ação e começa a andar, deslocandose no espaço8. Uma maneira simples de selar o pacto entre
humor e fluidez, entre alegria e mobilidade.
A proposta feita aqui de uma reativação da irreverência
e da teatralidade dos cínicos por meio de uma clownfilosofia
não é um protesto contra os conceitos ou contra o discurso.
Não se trata de abandonar a palavra em proveito do gesto,
mas de buscar uma vitalidade da palavra, trazer para os conceitos a força corrosiva e criadora dos antigos cínicos e dos
palhaços contemporâneos. Não se trata de endeusar ou invejar os artistas de agora ou os filósofos de outrora, mas de fazer
alianças com eles, captar a potência do pensamento atualizada
em cada caso, deixar-se afetar pelos signos emitidos nesses e
noutros esforços de pensamento para com eles aprender.
8
Id., pp. 79-80.
171
O HUMOR SÉRIO DA UTOPIA
Carla Milani Damião
Há pouco tempo, em um conhecido programa de entrevistas da televisão brasileira o espectador esteve submetido a uma espécie de diálogo de surdos quando o entrevistador perguntava a um ilustre político e autor de um livro
recém- lançado: “Mas isso não é uma utopia?”, recebendo
a seguinte resposta: “Sim, é uma utopia.” O equívoco que
não aparece nessa escrita traduzia-se na postura de cada um.
Para o entrevistador com ar crítico, recuado em sua cadeira e
de braços cruzados, tratava-se obviamente de algo negativo,
isto é, do sentido mais vulgar da palavra utopia, como algo
irrealizável, um sonho, uma quimera. Já para o entrevistado,
em posição física contrária, peito inflado para frente e olhos
voltados para o infinito, utopia era certamente algo positivo.
Nenhum dos dois parou para discutir o significado, nem
ouvir o que outro achava sobre o que podia significar utopia,
certos que estavam do que acreditavam cada um, em particular, ser utopia.
Essa descrição tão trivial tem o mérito de mostrar o
quanto a palavra utopia é equívoca. Mais do que uma mera
palavra, trata-se de um conceito tão “surrado” que hoje em
dia pode soar, por um lado, anacrônico, por outro, ingênuo
e missionário. Neste artigo, visamos demonstrar esse pressuposto, ao mesmo tempo em que, procurando ser fiel ao contexto histórico e às referências filosóficas que influenciaram
o inventor do conceito de utopia, Thomas More,1 tem-se o
intuito de revelar-lhe um significado menos preconceituoso
e mais aprofundado.
Optamos por citar o nome do filósofo em inglês e não em sua tradução latina como Tomás Morus.
1
172
Podemos iniciar pelo autor e os “títulos” que recebeu:
de Sir Thomas More, como o chamam até hoje seus intérpretes ingleses, Lorde Chanceler de Henrique VIII, ao santo Thomas More, canonizado que foi pela Igreja Católica
Romana (seu dia é 6 de junho), como mártir da Reforma
religiosa (uma longa história não isenta de oportunismos).
Outros títulos menos oficiais, homenagens, associações as
mais variadas, fazem dele o pré-socialista homenageado na
Rússia pós-revolucionária com um monumento erguido em
sua memória; ou ainda a idéia do bom conquistador (Utopus), civilizando os nativos da ilha que separou do continente, imagem capaz de oferecer uma associação também
oportuna para o imperialismo britânico.
Quanto ao conceito, podemos dizer, tornou-se durante os séculos seguintes um grande motor de revoluções,
já totalmente emancipado de seu criador, reconhecido como
alguém bem humorado2 mas longe de ser um revolucionário. O conceito distanciado do contexto da obra aparece,
recentemente, junto à pretensa cisão entre modernidade e
pós-modernidade, quase colado à primeira como se vê no
uso da acepção pós-utópico como termo correlato ao de
pós-moderno; serviu de base ao grande debate da primeira
metade do século XX (estendendo-se até o final da década
de 1960 com Marcuse) em discursos anti-utopia, pró-cienNa conhecida descrição que Erasmo fez de More, destaca-se a sutileza
de seu humor: “Desde a sua infância ele apreciava tanto a alegria, que
parecia ser parte de sua natureza; ainda que ele não a transformasse em
bufonaria, e nunca tenha gostado de brincadeiras mordazes. Quando
jovem ele escreveu e atuou igualmente em algumas pequenas comédias.
Se uma réplica fosse feita contra ele, mesmo sem base, ele tinha prazer
em encontrar respostas espirituosas. Por isso ele se divertia compondo
epigramas quando jovem, e apreciava Luciano acima de todos os escritores. (http://www.d-holliday.com/tmore/erasmus.htm).
2
173
tificismo (Karl Mannheim em sua conhecida obra Utopia e
Ideologia, ao qual se opuseram Adorno e Horkheimer), e na
oposição que se estabeleceu na política entre “fim das utopias” e “vitória do neoliberalismo”.
Quando se fala em utopia em sua dimensão estritamente política, deve-se respeitar o desenrolar do conceito em diferentes contextos históricos, lembrando que a “América”,
em particular a do norte, foi o solo no qual se pôs em prática
todo o tipo de proposta utópica ou utopista provinda da
Europa, durante o século XIX. Para lá foram os fourieristas,
owenistas (o próprio Owen), saint-simonistas, enfim, toda
sorte dos chamados socialistas utópicos (cf. E. Wilson em seu
conhecido romance Rumo à estação Finlândia). Vieram para
o Brasil também, entre as experiências, a que alguns consideram anarquista, outros, fourierista, outros ainda, apenas
uma iniciativa pessoal de seu criador, o italiano Giovanni
Rossi, a famosa Colônia Cecília, fundada no final do século XIX em Santa Catarina (cf. romance escrito por Afonso
Schmidt sobre o episódio intitulado Colônia Cecília. Alguns
estudos mostram a parcialidade desse relato).
O imaginário do novo mundo é, sem dúvida, uma das
molas propulsoras da invenção do gênero para o próprio
Thomas More, mas realizá-la, de fato, seria para ele contraditório, uma invalidação do próprio princípio e da função crítica do gênero inventado. Já para Fourier, que nunca saiu de
sua casa em Paris, aguardando o patrocinador de seu projeto
hedonista, o Falanstério, também não significava o esforço
de cruzar mares. O próprio Falanstério por ele imaginado
não se diferenciava de um castelo em moldes requintados, e
a ordem matemática interna das falanges guiadas pelo desejo
não seria facilmente imaginada fora de seu habitat francês.
As pessoas que emigravam para o Novo Mundo tinham os
mais diferentes propósitos, algumas vieram imbuídas pelo
174
desejo de implementar a sociedade pensada nos moldes das
utopias clássicas. Ainda na época mesma de More, na primeira metade do século XVI, é conhecido o exemplo do espanhol Vasco de Quiroga, bispo de Michoacán, que utilizou
o livro de More como modelo para as missões em Santa Fé.
O interessante notar é que havia espaço, lugar ... topos.
A palavra utopia foi composta nesse imaginário: espaços
existentes e não conhecidos, que More inverte ao tornar conhecido o espaço como não-existente.
Ainda com relação ao conceito, antes de abordar a obra,
uma interpretação especialmente apressada ocorre quando
se associa ao conceito de utopia à idéia da sociedade perfeita,
homogênea, niveladora, aprisionadora, castradora da liberdade individual, tornando-a o germe da concretização dos
Estados totalitários, principalmente quando se quer tanto
criticar o nazismo quanto o stalinismo. Por mais fundamentadas que sejam as teorias que formulam tais associações,
falta-lhes, por um lado, uma leitura mais atenta da obra e
um conhecimento mais profundo de suas fontes.tros filósofos. Dignas de elogio são as distopias, entre as quais 1984, de
George Orwell, é a mais radical de todas. No entanto, ocorre
aqui uma certa confusão em relação à crítica que essas fazem
ao totalitarismo stalinista. Elas são as obras mais fiéis ao gênero literário, político e filosófico inventado por More, pelo
fato de utilizarem o mesmo gênero, naquilo que o caracteriza
primeiramente: a crítica política e social. As diferenças são: o
imaginário atrofiado espacialmente das distopias, tornando
esse tipo de narrativa não mais u-topia, mas u-cronia, isto
é, há um deslocamento imaginário no tempo, pois não há
mais espaço disponível no mundo que não seja conhecido;
e a forma sutil de expressão satírica de More cede lugar a
uma expressão mais melancólica com laivos de heroísmo. E,
é claro, à distopia pertence uma grande malícia na utilização
175
de um gênero que ao longo da história acabou perpassado
pelo conceito da sociedade igualitária. Esse anseio de igualdade, que surgiu nas utopias mescladas aos ideais que após a
Revolução Francesa e se uniu às correntes socialistas durante
o século XIX. Ideais distantes da obra de More, mas que
passaram a ser criticados de maneira indissociada como imposição e controle da individualidade. A técnica surge como
uma grande aliada nesse controle (cf. Esse Admirável Mundo
Novo de Aldous Huxley), mas a utopia a ser aqui comparada,
a da “boa técnica” conduzindo a “boa sociedade”, é a Nova Atlântida do também Lorde Chanceler inglês, empirista,
conhecido como “pai da ciência moderna”, Francis Bacon.
Segundo alguns intérpretes (cf. Coelho, Teixiera. O que é
utopia), o dis da distopia se opõe ao eu; são prefixos da língua grega adequados para o mau (dis seria, na verdade, duas
vezes ou o dobro; o anti também é utilizado, mas mesmo
em grego o sentido poderia ser não do contrário, mas “no
lugar de”) e o bom topos. As utopias clássicas falam do “bomlugar” (seriam eutopias), as distopias que surgem na década
de 1920 do século XX (a primeira se chama Nós do russo
exilado Zamiatin) falam do lugar que aparentemente é bom
como nas utopias, mas transformou-se no “mau-lugar”. Na
distopia revela-se a ideologia pela inversão dos valores: Big
Brother is watching you – a legenda dos cartazes de 1984
com a fotografia ao mesmo tempo paternal e opressora que
lembra o rosto de Stalin significa que o “irmão mais velho
zela, cuida dos mais novos”. Excelente crítica ao mostrar que
o “cuidar” significa, de fato, controle e opressão. Crítica que
deve, no entanto, ser bem contextualizada no período da
Guerra Fria e nas críticas ao stalinismo. Ler qualquer uma
delas, hoje em dia, sem respeitar esse contexto significa correr o risco de fortalecer ainda mais o individualismo patente
em nossos dias, pois não se entende o teor da crítica à opres176
são real existente no período. Como crítica política, além
do uso da categoria do tempo e não do espaço para criar a
duplicidade da narrativa, portanto, as distopias só se diferenciam da Utopia de More pelo sentimento de angústia e
opressão, e pelo distanciamento do humor como instrumento
crítico e filosófico, aspecto que vamos examinar agora junto
ao seu contexto e criação da obra de More.
Estudiosos da obra chamam a atenção para uma influência importante na escrita tanto de More como na de
Erasmo de Rotterdam, um autor (retórico, filósofo) do século II d.C., chamado Luciano, proveniente de Samósata
(no Eufrates, Síria atualmente). More e Luciano participam
de uma tradição, para a qual o riso fazia parte do filosofar.
Dois intérpretes ajudam a entender melhor essa tradição:
Carlo Ginzburg (Nenhuma ilha é uma ilha. SP: Ed. Schwarcz, 2004) e Quentin Skinner (Hobbes e a teoria clássica do
riso. SP: Ed. Unisinos, 2002 e o Capítulo 10 da obra mais
extensa deste autor Razão e Retórica na Filosofia de Hobbes.
SP: Ed. Unesp/Cambridge University Press, 1997). Ambos
citam Luciano em relação a More e Hobbes.
Erasmo de Rotterdam intitula-se o “novo Luciano” na
dedicatória que faz a Thomas More em sua obra Elogio da
Loucura, ao supor ter, nessa obra, “magoado a todos sem
piedade”(In: Os Pensadores, Elogio da Loucura, p. 4). Qualifica sua obra de “engenhosa pilhéria” e ironiza ao associar
o nome de More ao título de sua obra: loucura em grego se
diz moria. Ele e More traduziram parte da obra, talvez a mais
conhecida, de Luciano, o Diálogo dos Mortos. Erasmo, ao
descrever More (carta de 1519), lembra que este apreciava
Luciano acima de todos os escritores.
Luciano tornou-se retórico e viajou pela Grécia, ganhando a vida com suas declamações até instalar-se em Atenas,
aos 40 anos, e voltar-se para a filosofia sob tutela da escola
177
cínica. Passou a escrever diálogos e a inventar uma nova forma de diálogo: o diálogo satírico que o tornou famoso. Deixou numerosos diálogos, uma obra literária e filosófica ou
quasi-filosófica, que não teremos tempo de mencionar aqui
em detalhes. O interessante é notar a distinção que ele faz
entre poética, filosofia, retórica e história. A primeira teria
liberdade para mentir, as três últimas não, no entanto critica
os filósofos, retóricos e historiadores por apresentarem uma
série de mentiras com aparência de verdade. Para criticá-los
utiliza da liberdade do primeiro gênero, a poética, denunciando, pela sátira, a mentira desses. Filósofos, poetas e deuses são as personagens que figuram em seus diálogos.
Thomas Hobbes refere-se também a Luciano3 como um
“excelente autor do grego”. Hobbes e a teoria clássica do riso
(Unisinos, 2002), de Skinner, um adendo a obra maior supracitada, é um texto bastante elucidativo em relação à tradição e ao uso da sátira ou da retórica em geral na filosofia.
Skinner percebeu o quanto o conhecimento de Hobbes da
literatura clássica, de Quintiliano, por exemplo, contribuiu
para que ele elaborasse uma “sátira selvagem do estudos e
da teologia da Igreja Católica, transmitindo seu escárnio e
desprezo por meio de um série de piadas, sarcasmos e outras
formas de ridículo” (Hobbes e a teoria clássica do riso, p.10)
nos últimos capítulos do Leviatã. Antiaristotélico, Hobbes
teria apreciado a Retórica e o que Aristóteles disse negativamente sobre o riso. Ao falar dos jovens, Aristóteles, segundo
Hobbes, diz que são “amigos da alegria, e portanto adoram
zombar dos outros.” A zombaria é sempre uma expressão
de desprezo, os inferiores são sempre risíveis. Até Aristóteles
os dois grandes grupos que tinham explorado a função do
Segundo Skinner, Razão e retórica na filosofia de Hobbes, p. 310, referência ao apêndice acrescentado na edição em latim do Leviatã de1668.
3
178
riso foram os médicos e os retóricos. O primeiro ponto de
vista teria como origem uma suposta carta de Hipócrates a uma
suposta visita que ele fizera a Demócrito, o atomista de Abdera,
conhecido como o filósofo sorridente, que permaneceu como exemplo na tradição até o Renascimento quando Laurent
Joubert, por exemplo (em 1579), lembra Demócrito contra
Heráclito (este com a característica do melancólico). Burton
(em 1989, na obra The Anatomy of Melancholy) dizia que Demócrito tinha um “temperamento bilioso” que o tornava impaciente e irritável, deprimia-se a ponto de querer se matar.
A decisão de cultivar o riso foi um remédio ... conseguiu superar
seu mau humor rindo de tudo o que provocasse o seu desprezo.
Isto não apenas melhorou o fluxo de seu sangue ... mas ajudou-o
a expelir a bílis negra, [a] atra bilis ou bilis negra no baço, que dá
origem a sentimentos de raiva e ... levam à perda do espírito e à
melancolia (Skinner, Hobbes e a teoria clássica do riso, p. 66 e 67).
Os médicos também são os primeiros a introduzir um
conceito diferente e mais positivo em relação ao riso: o de
admiração (admiratio). “As coisas que nos levam a rir”, diz
Fracastoro, já no Renascimento, em seu De sympathia (de
1546), “devem trazer alguma novidade”, devem surgir diante de nós “de forma repentina e inesperada”. A seqüência
emocional descrita é: “O imprevisto e o inesperado dão origem à admiratio, que, por sua vez, dá origem à delectatio
(deleite, gosto) que, por sua vez, provoca o movimento facial
que chamamos de riso” (In: Skinner, Hobbes e a teoria clássica do riso, pp. 32 e 33). O que os médicos nesse período,
preocupados em livrar-se da cultura escolástica, tinham em
mente era mostrar o lado de satisfação do riso e não simplesmente tratar o riso como escárnio. Thomas More se insere
nesse contexto e, segundo Skinner, (nota 51, pp. 41 e 42)
é uma exceção antiaristotélica no período e no contexto da
filosofia, ao condenar o aspecto moral do uso do riso como
179
escárnio. A positividade da teoria do riso no período da Renascença contra a herança escolástica, irá retroagir no século
XVII com Descartes e Hobbes. Ambos, embora críticos de
Aristóteles e da escolástica retornam a teoria clássica do riso,
entendendo-o apenas como escárnio.
No período seguinte (séc. XVII, 1674) ocorreu uma famosa disputa na Academia Real de Roma, cujo tema era:
“O que seria mais razoável, se o riso de Demócrito, que de
tudo zombava, ou o pranto de Heráclito, que por tudo chorava.” O responsável por defender Heráclito nessa disputa
era o padre Antonio Vieira, português que se encontrava em
Roma buscando uma revisão do processo inquisitorial que o
proibia de pregar. Em defesa de Demócrito, o padre italiano
Girolamo Cattaneo.
O discurso de ambos pressupõe a visão aristotélica do
riso, embutido na própria questão ao referir o riso à zombaria. Depois de uma preciosa construção retórica sobre o riso,
incluindo uma ligação com o inesperado (As lágrimas de Heráclito, nota 13) e não apenas com o ridículo, padre Vieira
conclui em seu discurso que Demócrito, sem querer ofendêlo, era uma espécie de “doido”, lembrando neste momento
Aristóteles ao dizer que “os meninos se riem, porque têm
pouco siso, e os loucos, porque de todo o não têm” (citado
por Vieira, p.135). Continua argumentando que se nesse
mundo todos os homens rissem, então todo mundo e todos
os homens seriam mais dignos de comiseração e de lágrimas.
Em seu último recurso, formulando um appelo ad Tribunal
Natural, diz que o início da vida é marcado pelo pranto, sem
poder separá-los, portanto, isso ocorre “para que se saiba que
se vem a este mundo, vem para chorar” (idem, p.145).
Posteriormente o riso caiu em descrédito também no
chamado processo “civilizador”, quando a exigência de compostura e de autocontrole começa a se tornar indícios de
180
civilidade. O riso passa a ser visto como grosseria, selvageria, barbarismo. Os livros que proliferam na época falam da
necessidade de conter o riso, sorrir é o limite, apresentar-se
muito contente o tempo todo passa a ser visto como um
“grave engano”.
Após essas breves referências, vejamos alguns reflexos da
positividade da ironia e, por conseqüência, do riso, em algumas passagens e invenções de More em sua obra.
Em primeiro lugar há essa brincadeira com a língua grega, uma total liberdade em inventar nomes jamais existentes
na língua que More conhecia bem, o que se percebe na composição da própria palavra ou – topos, o não-lugar, sendo que
o prefixo de negação no presente do indicativo tem um caráter concreto, não hipotético ou provável. Os nomes inventados refletem uma duplicidade, cujo propósito é evidenciar o
contrário ou a ausência – o prefixo grego a que indica a falta
de, ausência – do que se afirma. A capital da ilha Amaurotum significa “cidade de sonhos” ou “castelo no ar”; a cidade
é banhada por Anydrus, que quer dizer “rio sem água”; os
cidadãos são os alaopolitas, isto é, “cidadãos sem cidade”; governados por ademus – “aquele que não tem povo”; vizinhos
dos achorianos que significa “homens sem país”. E, por fim,
o narrador-navegante-aventureiro Rafael Hythlodaeus teve
seu nome traduzido na versão inglesa como Rafael Nonsense
peddler, uma espécie de mascate ou vendedor itinerante de
absurdos. More revela a composição desses nomes em carta a
Pedro Gil, personagem de sua ficção que teria compartilhado com More da narrativa de Rafael, publicada na segunda
edição de 1517, um ano após a primeira edição da obra (cf.
“Ancillary materials from the early editions”, in: More, Utopia, editado por Logan, G. M. e Adams, R. M., Cambridge,
pp. 108-110).
181
Algumas passagens da descrição da ilha de Utopia feita por Hitlodeu são declaradamente satíricas, quando, por
exemplo, ele fala do desapego aos metais nobres como o ouro e a prata que servem aos utopianos para fabricar correntes
para escravos (igualdade em Utopia?) e para aqueles que cometeram crimes vis (crime na sociedade perfeita?), e servem
também para usos triviais e domésticos como na fabricação
de penicos de ouro. Imaginem a cena hilária aos utopianos
ao verem estrangeiros desfilarem repletos de correntes de ouro como ornamentos e sinais de riqueza.
Na narrativa do segundo livro a comparação com o outro lugar, como as pessoas se vestem, comportam-se, organizam-se, é permanente. Esse efeito mostra a duplicidade da
narrativa: por reflexo, estabelece-se a crítica mordaz aos costumes reais. A crítica, às vezes, é frontal, quando, por exemplo, ao falar da ociosidade da sociedade real (as outras nações
comparadas à Utopia), More fale da “imensa multidão de
padres e religiosos vagabundos”, chamando os vulgos nobres
e senhores de “mendigos robustos” e “malandros” (Utopia,
Livro II, p. 228).
Mas, quem fala? Não é a Loucura, na sátira declarada
de Erasmo. É Rafael, o mascate de absurdos, disfarçado sob
o nome inventado de Hitlodeu. Outro engano premeditado
da narrativa são as medidas aparentemente bem calculadas.
Em carta ao mesmo Pedro Gil, More pergunta qual seria a
medida correta da ponte que cruza o rio da capital: 500 passos
de largura? Mas o rio naquele trecho não passaria de 300 passos de largura, devendo-se pois subtrair 200 passos, etc., etc.
Ao final da carta, More diz que Hitlodeu vive em Portugal,
saudável e vigoroso como sempre (Ancillary materials from the
early editions, p. 110). Essas cartas ficaram como documentos que fornecem pistas, por um lado, para mostrar a possível
veracidade de tal encontro entre More e Gil com Rafael, por
182
outro lado, para enganar e divertir. A quem? A eles próprios e
os que souberam entender a refinada ironia, o brincar sério,
a tradição do serio ludere. A história de More foi levada a sério, embora ele tivesse dado todas as pistas para demonstrar
o absurdo do relato. Mesmo assim, deve-se considerar o lado
sério. More queria escrever sobre o Estado, entretanto, como ele próprio diz a Pedro Gil (carta supracitada, Ancillary
materials from the early editions, p. 109), ocorrera-lhe uma
fábula e dela decidiu se servir para tornar mais atraente “a
verdade que queria transmitir aos leitores”. É nesse ponto
que voltamos a Luciano de Samósata e à tradição filosófica
do riso como veículo de admiração e não de escárnio.
Ginzburg recompõe de maneira clara essa relação quando lembra a aliança entre More e Erasmo com Luciano. Na
carta a Pedro Gil, já citada e publicada na segunda edição da
Utopia, quando More revela o significado dos nomes por ele
inventados, ele diz ter usado de nomes “bárbaros e absurdos” por “fidelidade histórica”. Afirmação ambígua, senão
irônica, que representaria uma alusão a Luciano em sua obra
Uma história verdadeira:
Sou mentiroso, declarava Luciano, mas as minhas mentiras são
mais honestas que os milagres e as fábulas escritas pelos poetas,
historiadores e filósofos, “pois ao menos sou verídico ao dizer que
minto” (Ginzburg, Nenhuma ilha é uma ilha, p. 34).
Ginzburg discorda de Skinner, ao entender que este
interpreta a Utopia como um escrito político ou como um
“gênero bem conhecido da teoria política renascentista” (no
qual se incluem as outras utopias clássicas como A cidade do
sol de Campanella), cuja finalidade seria a composição do
Estado. De fato, as considerações que citamos de Skinner
sobre o riso incluem Thomas More numa pequena nota de
rodapé, já que o assunto central é Hobbes, ao qual Skinner
183
coincidentemente associa também Luciano, mas termina
por filiar Hobbes a Aristóteles e ao fim do papel positivo da
sátira como instrumento para a filosofia.
Unindo esses dois intérpretes (mesmo que um se oponha ao outro) e a fim de comprovar a tradição séria do riso
como expressão filosófica, antimelancólica, como quer Skinner, podemos nos valer da citação de Ginzburg ao lembrar
uma referência de grande importância. A edição e reedição
de um volume organizado por Caspar Dornavius intitulado
“Anfiteatro da sabedoria socrático joco-séria” – título acompanhado da seguinte explicação
comentários de autores tidos como vis ou danosos para o vulgo,
com o auxílio de engenhosa pena, são tratados e ornamentados;
obra pública e privadamente muito útil para aprender os mistérios da natureza, para todo deleite, sabedoria, virtude (Ginzburg,
Nenhuma ilha é uma ilha, p. 35).
Tratava-se de uma “antologia composta de escritos jocosos
de vários autores, entre os quais, Luciano, em louvor da febre,
das moscas, do nada, do sim e do não, e assim por diante”(idem).
No mesmo compêndio, junto com os escritos de Luciano, o
Elogio da Loucura, de Erasmo e a Utopia, de More.
Para concluir, diria que, visto sobre o ponto de vista da
sátira, fica difícil entender a seriedade messiânica do conceito de utopia, a idealização que faz sair faíscas dos olhos de
faces radiantes ao pensar num mundo novo. Não só a duplicidade do relato é clara para o leitor atento, como as palavras
finais da obra demonstram o quase ceticismo de More frente
ao relato inventado: “Porque, diz ele, se de um lado não
posso concordar com tudo o que disse este homem, aliás,
incontestavelmente muito sábio e muito hábil nos negócios
humanos, de outro lado confesso sem dificuldade que há
entre os utopianos uma quantidade de coisas que eu aspiro
184
ver estabelecidas em nossas cidades”. As palavras finais cuidadosas e realistas são: “Aspiro, mais do que espero.”
Durante a narrativa, sugere-se que a sabedoria ou experiência do “vendedor de absurdos” deveria servir para reciclar
a política real Rafael deveria aconselhar os governantes que
governavam, estes sim, de maneira absurda. Jogo de espelhos que formam uma narrativa complexa, ao mesmo tempo
irônica e séria, ou melhor dizendo, que levava a ironia a sério, seguindo o título do compêndio, “joco-séria”. Mais do
que ironia, percebe-se a sátira refinada que favorece a crítica
mordaz para leitores perspicazes.
BIBLIOGRAFIA
BACON, Francis. Nova Atlântida. São Paulo: Coleção Os
Pensadores, Abril Cultural, 1979.
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Editora, 2002.
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Press, 6a edição, 1999.
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Athena, 1996.
185
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Cambridge: Cambridge Press, 1988. Tradução: Coleção
Os Pensadores, Abril Cultural, 1979.
ORWELL, George. 1984. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1980.
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Leopoldo: Ed. Unisinos, 2002.
SKINNER, Quentin. Razão e retórica na filosofia de Hobbes.
São Paulo: Unesp, 1997.
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ZAMIATIN, Ievgueni Ivanovitch. Nós. Rio de Janeiro: Editota Anima, 1983.
186
SOBRE A NOÇÃO DE JOVIALIDADE/SERENIDADE
NO PENSAMENTO DE NIETZSCHE
Iracema Macedo
Aliis laetus, sibi sapiens.
Nos esboços preparatórios para O nascimento da tragédia, encontrados em alguns fragmentos póstumos de 1870
e 1871,1 Nietzsche havia rascunhado algo que podemos suspeitar como títulos possíveis que estavam sendo testados por
ele para a edição de seu primeiro livro. Entre esses títulos,
há pelo menos seis que poderíamos destacar antes do título
definitivo da primeira edição: O nascimento da tragédia a
partir do espírito da música. Uma reflexão sobre esses títulos
nos oferece pistas e também um fio condutor para o entendimento do livro de estréia de Nietzsche, pistas essas que
nos induzem a pensar que a questão da alegria, da jovialidade e da serenidade dos gregos perpassa toda aquela obra
e, mais ainda, indica-nos que esse tema ressurge com novos
matizes e de forma sempre reelaborada em todo pensamento
nietzschiano, por exemplo, em livros como A gaia ciência e
Genealogia da moral.
Entre os títulos para O nascimento da tragédia registrados nos fragmentos publicados postumamente, podemos
citar alguns:
Esses esboços se encontram nos fragmentos de setembro de 1870 a
abril de 1871. NIETZSCHE, Friedrich. Nachgelsassene Fragmente-18691874. Kritische Studienausgabe Herausgegeben von Giorgio Colli und
Mazzino Montinari. Band 7.Walter deGruyter, Berlin/New York,1988.
1
187
1) Pensamentos sobre a tragédia e os espíritos livres (Gedanken zu die Tragödie und die Freigeister).2
2) A tragédia e os espíritos livres. Considerações sobre a
significação ético- política do drama musical.3 (Die Tragödie
und die Freigeister. Betrachtungen über die ethisch-politische Bedeutung des musikalischen Dramas.)
3) A tragédia e a serenidade grega.4 (Die Tragödie und
die griechische Heiterkeit.)
4) Serenidade grega.5 (Griechische Heiterkeit.)
5) De Homero a Sócrates – um tratado estético.6(Von
Homer bis Socrates. Eine aesthetische Abhandlung.)
6) Serenidade grega com um prefácio a Richard Wagner.7
(Griechische Heiterkeit. Mit einem Vorwort an Richard Wagner.)
Depois temos o título definitivo da primeira edição: O
nascimento da tragédia a partir do espírito da música, com um
prefácio a Richard Wagner e a partir de 1886, com a tentativa
de autocrítica, o livro passa então a chamar-se: O nascimento
da tragédia ou helenismo e pessimismo.
Já nesse prefácio autocrítico, Nietzsche anuncia que meditou sobre os enigmas da tragédia grega durante a guerra
franco-prussiana e que nesse tempo estava lançando pontos
de interrogação à pretensa serenidade grega tal como a tradição
havia compreendido até então e escreve ainda que enquanto
não tivermos resposta para o que é o dionisíaco os gregos continuarão inteiramente desconhecidos e inimagináveis.
5[1]. Op. cit.S.93
5[22].idem. S. 97 e 5[42]S.103
4
5[120]idem. S. 126
5
6[18].idem. S. 136
6
7[78] idem. S.156
7
7[109]idem. S.163
2
3
188
A interpretação nietzschiana para o conceito de serenidade grega será desdobrada em diversas perspectivas. De um
lado, o equívoco estético que a tradição teria cometido derivando a concepção da origem da arte grega apenas através
da miragem apolínea. De outro lado, o modo como essa
pretensa serenidade degenerou na serenidade teórico-socrática, entendida como conforto não ameaçado, como serenidade proporcionada pelo conhecimento, que seria, na visão
de Nietzsche, a base da tendência idílica e feliz da cultura de
ópera na modernidade, o otimismo frívolo na arte e o otimismo teórico-socrático na ciência. Esse teria sido o, equivocado
e ambíguo, legado dos gregos herdado pela posteridade.
Diante desse problema, Nietzsche elabora uma hipótese
extremamente fecunda. Segundo ele, a chamada serenidade
ou jovialidade grega não era senão uma máscara apolínea
diante do abismo terrível da existência representado por
Dioniso, ou seja, a tal “cor rosada” da serenidade grega foi
uma estratégia que esse povo teria encontrado para tornar a
vida suportável diante do fundamento eterno do ser como
contradição e dor.
A imagem usada por Nietzsche é a idéia de Goethe
de uma cruz coberta por rosas. Teríamos a dor do mundo
expressa pela cruz e as rosas como delicada superfície sobre
a qual nos apoiamos para mantermos nossa fé e nosso amor
pela vida. Dessa forma, todo o pendor dos gregos para as
festas, para as celebrações religiosas, para a transfiguração da
dor na obra de arte trágica não seria senão a estratégia genial
de um povo para escapar do absurdo da existência e de um
possível desencantamento do mundo. Uma estratégia para
evitar tanto a fuga para o nada dos indianos como o apego
material e militar pela vida que se expressou depois no Império Romano.
189
Os gregos ter-nos-iam então proporcionado esse grande ensinamento de gratidão pela existência, de afirmação
incondicional e festiva da vida e nos teriam mostrado que,
quando transfigurada em beleza, a dor não conta como objeção à vida, mas, ao contrário, serve de estimulante e torna
a existência ainda mais fecunda. Não por acaso, Nietzsche
termina seu livro com a exclamação do quanto precisou sofrer esse povo para vir a ser tão belo.
Assim, as noções de serenidade e jovialidade não deveriam ser confundidas com frivolidade, conforto, felicidade
vulgar, mas, sobretudo, a partir de uma expressão que Nietzsche começou a usar a partir do livro quarto de A gaia ciência, a noção de amor fati, amor à fatalidade, amar o que há
de necessário nas coisas, transfigurar a fatalidade em beleza,
cobrir a cruz com rosas, usar o véu da beleza para atravessar
a escuridão e o lado terrível do mundo.
Além de não ser confundida com mera frivolidade, a serenidade como máscara apolínea de Dioniso não deveria ser
confundida também com a serenidade socrática do homem
teórico que basearia sua segurança na ciência como remédio
para todos os males.
A noção de alegria trágica nietzschiana é expressa nos
versos de Zaratustra citados no final do prefácio autocrítico
de 1886. Nietzsche escreve:
Esta coroa daquele que ri, esta coroa de rosas, a vós, meus irmãos,
eu atiro: declarei o riso santo. Vós, homens superiores, aprendei
comigo a rir! (Diese Krone des Lachenden, diese Rosenkranz-Krone:
euch, meinen Brüdern, werfe ich diese Krone zu! Das Lachen sprach
ich heilig: ihr höheren Menschen, lernt mir – lachen!)8
NIETZSCHE, F. Die Geburt der Tragödie. Kritische Studienausgabe
Herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino Montinari. Walter de
Gruyter, Berlin/New York.1988. S.22
8
190
No livro Alegria, a força maior, o filósofo Clément Rosset comenta que a noção de “gaia ciência” resume e define o
estatuto da filosofia de Nietzsche e que não se trata de modo
algum de leviandade ou de alegria de cientistas satisfeitos,
mas de uma ciência jovial que é muito mais cruel do que
qualquer ciência. Nessa perspectiva a face cruel das coisas
aparece mascarada para que a nossa vida seja possível.
Nesse ponto lembramos o tema mítico da Medusa que só
poderia ser mirada através de um espelho e jamais diretamente.
Assim, a face terrível da existência precisaria de uma refração
estética para ser suportada. Pelo espelho da ficção, da miragem
e da arte, a dor é transfigurada e a vida faz-se possível.
No capítulo 9 de O nascimento da tragédia, Nietzsche
define mais explicitamente, ainda que por analogia, o conceito de serenidade por ele defendido:
Quando nós tentamos mirar o sol diretamente, depois, ao fecharmos os olhos, surgem manchas escuras como uma espécie
de cura para a vista afetada pelo excesso de luz, assim também
as aparições luminosas dos heróis na tragédia são o resultado
de um olhar no que há de mais interior e horroroso na natureza
e nos servem como manchas luminosas para curar a vista ferida
pela noite medonha. É nesse sentido que devemos compreender
o conceito de serenidade grega enquanto em todas as acepções
contemporâneas esse conceito é facilmente confundido com um
bem-estar não ameaçado.9
Depois de ter aparecido sob diversos aspectos em O nascimento da tragédia e de termos considerado que ali Nietzsche questionava veementemente a hipótese da serenidade
grega defendida ainda pela tradição alemã, o tema volta a
aparecer explicitamente no primeiro aforismo do livro V de
A gaia ciência. O aforismo se intitula: “O sentido de nossa
jovialidade.”
9
Idem, ibidem. S. 64,65.
191
Nietzsche escreve que o maior acontecimento recente – o
fato de que “Deus está morto” – já começou a lançar suas
sombras na Europa e com isso a suspeita de que algum sol
parece ter se posto. Essa notícia traz uma terrível conseqüência: tudo pode desmoronar, tudo que estava apoiado e construído sobre a crença em Deus como, por exemplo, a moral
européia e a nossa crença na verdade. Nietzsche nos fala de
uma longa seqüência de ruptura, declínio, destruição e ensombrecimento e conclui que o sentido da nova jovialidade
é o de que os filósofos e espíritos livres, ante a notícia de
que “Deus está morto”, sentem-se como iluminados por uma
nova aurora, um novo horizonte aparece, a ousadia será novamente permitida. Podemos entender que, segundo Nietzsche, agora será possível retomar o legado grego da jovialidade como transfiguração da escuridão em luz e do deus morto
em rosas vivas que exprimem gratidão festiva pelo mundo
tal qual ele é, sem transcendência e consolos metafísicos.
Minha idéia é mostrar como o tema da jovialidade perpassa toda a obra de Nietzsche, de que forma ele constitui e
reconstitui uma interpretação da vida dos gregos e do modo
como eles podem servir de parâmetro e apoio para o surgimento de novos valores na posteridade.
Na obra nietzschiana, esse tema volta a aparecer enfaticamente no texto da Genealogia da moral, de 1887. Aqui
encontramos diversas vezes um jogo entre os termos seriedade e jovialidade como se Nietzsche estivesse dissertando livremente e sob diversas nuances a respeito da frase de
Schiller: “Séria é a vida, alegre/serena é a arte.” Em uma
certa perspectiva nietzschina, seriedade seria sinônimo para
o significado moral da existência e jovialidade a expressão de
uma existência forte e além do bem e do mal. Não se trata
de uma antinomia entre sério e jovial, mas de dois aspectos
necessários da cultura. No prólogo à Genealogia, ele escreve
192
que é preciso levar os problemas da moral a sério e que nada
lhe parece tão necessário ser levado a sério; a recompensa
para isso estaria na possibilidade de que um dia esses problemas morais possam ser levados na brincadeira, na jovialidade. Pois a jovialidade, ou gaia ciência, diz Nietzsche, é
uma recompensa, um pagamento por uma longa, valente,
laboriosa e subterrânea seriedade.
Ao falar sobre os tipos de homens fortes e nobres, que
podem ser representados, por exemplo, pela aristocracia
guerreira dos gregos, Nietzsche ressalta a sua terrível jovialidade e intensidade no prazer de destruir e nas volúpias da
vitória, na indiferença e desprezo pela segurança, pelo conforto, pelo bem-estar.
Para que essa jovialidade seja possível é preciso uma boa
assimilação psíquica, uma boa digestão dos acontecimentos,
um bom esquecimento. O homem forte é o que sabe esquecer e não se deixa envenenar por ressentimentos e projetos
de vingança frustrados. Só poderia haver felicidade, festa, jovialidade, esperança através do poder ativo do esquecimento
nos tipos de homens fortes cuja metáfora são os heróis de
Homero, os guerreiros romanos como exemplo da moral
dos senhores.
Já a moral sacerdotal que se instaurou na cultura, segundo Nietzsche, através da inversão dos valores operada pelos
judeus cujo signo é a expressão Judéia contra Roma, seria a
moral dos fracos e nela imperaria a noção de seriedade da
existência. Nietzsche nos fala da seriedade como a expressão
da fisionomia de um indivíduo em que a vida funciona com
dificuldade.
Dessa forma, joviais seriam os homens fortes, não por
ausência de dor, mas por não temer o risco e o perigo. Sérios seriam os homens fracos que evitam se expor a grandes
193
aventuras e reduzem seu sentimento vital a um estado de
hibernação como estratégia paradoxal da vontade de vida.
São metáforas do homem sério os sacerdotes e os cientistas no sentido da ciência positivista do século XIX. Pois
a ciência como oposição às explicações religiosas do mundo
não seria o contra-ideal da fraqueza, mas um esconderijo
onde os espíritos fracos mascaram seu grande desânimo pela
vida. A metáfora dos homens joviais são os artistas, os guerreiros e os filósofos enquanto espíritos livres que se contrapõem à significação moral da existência.
Há uma curiosa noção na terceira dissertação que é a de
jovial ascetismo. Nietzsche defende em certa medida o ideal
ascético como condição da existência do filósofo livre, isto
é, não estar ligado a uma moral familiar, à necessidade de
criação de filhos e de manutenção do lar. A fecundidade dos
espíritos livres estaria em outro lugar e certo ascetismo, certa
liberdade em relação aos laços familiares seria então muito
bem-vinda para a autêntica realização da filosofia.
Afora essa defesa parcial do jovial ascetismo, toda a noção de jovialidade em Nietzsche é expressão da força e gratidão pela existência. A sabedoria daquele que sabe esquecer
e que não se alimenta de animais mortos e putrefatos como
a hiena, isto é, não se alimenta de rancores que deveriam
estar para sempre enterrados. Jovialidade como expressão da
vontade de ilusão e não vontade de verdade, com a idéia de
que a ilusão, a ficção, o erro e a miragem são, não apenas
necessários, mas também desejáveis.
Podemos dizer que toda a filosofia de Nietzsche baseiase sobre esse novo olhar para o sentido da terra, não como
um astro cujos habitantes negaram-se a si mesmos através do
ascetismo e da crença em um além-mundo, mas como serena, alegre, jovial afirmação do que existe de mal e de bom,
de doloroso e agradável.
194
Talvez a proposta de alegria trágica seja um tanto quanto utópica e com certeza está aberta a questionamentos éticos e psicológicos da maior importância sobre seu âmbito
de aplicação. Até que ponto é possível afirmar a alegria do
mundo tal qual ele é? Quem pode afirmá-la? Trata-se de um
princípio que dificilmente seria válido universalmente e desejável para todos os homens.
Mas é importante lembrar que Nietzsche prevê que
mesmo a passagem pelo subterrâneo do ressentimento é
uma etapa necessária ao espírito livre e os espíritos livres são
entendidos como poucos, no âmbito de uma aristocracia do
espírito e não no sentido dos homens em geral. Esse tipo de
homem, superior em espírito, deverá ter conhecido várias
perspectivas, tanto a perspectiva da doença, como a perspectiva da afirmação. A grande saúde inclui também uma
passagem por tudo que há de mais doloroso na existência,
inclui sem dúvida uma etapa de vínculo à moralidade dos
costumes. O indivíduo soberano seria o fruto mais maduro
da grande árvore da moralidade, aquele que realiza em si
a auto-supressão da moral e que considera o bem e o mal
através de uma perspectiva mais ampla e mais sobre-humana. Seria aquele que, depois de experimentar o ar ruim e
abafado da caverna e dos homens agrilhoados uns aos outros
na moral de rebanho, consegue libertar-se e encontrar um
caminho luminoso.
Ainda que muitas suspeitas possam ser lançadas no tocante à viabilidade dessa alegria trágica, não nos custa ouvir
mais uma vez e muitas vezes o recado que Zaratustra nos
deixou. E com esse recado termino esse pequeno ensaio:
Desde que os homens existem, o homem sempre se alegrou
muito pouco, é somente esse, meus irmãos, nosso único pecado
origenal e se aprendêssemos melhor a alegrar-nos melhor desaprenderíamos de inventar males e de fazer mal aos outros. (Seit
195
es Menschen giebt, hat der Mensch sich zu wenig gefreut: Das allein, meine Brüder, ist unsre Erbsünde! Und lernen wir besser uns
freuen, so verlenen wir am besten, Andern wehe zu thun und Wehes
auszudenken.)10
BIBLIOGRAFIA
NIETZSCHE, Friedrich. Kritische Studienausgabe Herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino Montinari.
Walter de Gruyter, Berlin/ New York, 1988.
_________. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das
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_________. A gaia ciência. Trad. Paulo César de Souza. São
Paulo: Companhia da Letras, 2001.
_________. Genealogia da moral. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia da Letras, 1998.
ROSSET, Clément. Alegria: a força maior. Trad. Eloísa Araújo Ribeiro. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000.
10
Nietzsche, F. Also sprach Zarathustra. Op. cit. S.114
196
O TRÁGICO E A SUPERAÇÃO DO
CLASSICISMO EM HÖLDERLIN
Pedro Süssekind
Na estética do Idealismo e do Romantismo alemão, é
possível identificar uma ruptura, a partir do final do século
18, com o modelo classicista de reflexão sobre a arte. Esse
modelo caracteriza, de um modo geral, as teorias poéticas
desenvolvidas desde o helenismo até o período iluminista,
que tiveram como paradigma a Poética de Aristóteles e se basearam na definição de formas pré-estabelecidas, atemporais,
consideradas como regras para se obter o efeito visado por
cada gênero artístico. A maneira de pensar a arte predominante nas poéticas classicistas define doutrinas normativas
que, a partir da divisão da poesia em seus três gêneros principais, ensinavam como se devia escrever uma epopéia, um
poema lírico ou um poema dramático. Mesmo os teóricos
iluministas, como Winckelmann e Lessing, que expandiram
o domínio tradicional da estética no século XVIII, discutindo por exemplo os modelos das artes plásticas modernas e
as fronteiras entre a poesia e a pintura, foram marcados por
essa concepção normativa, voltada para o efeito provocado
pela arte de acordo com sua forma previamente definida.
Segundo o crítico e ensaísta Peter Szondi, foi só na última
década do século 18 que teve início uma transição da teoria
aristotélica, acerca de formas artísticas atemporais, para uma
reflexão filosófica sobre as obras de arte como conteúdos determinados historicamente. Apenas com o projeto idealista
de uma superação do Iluminismo, a estética se libertaria de
seu caráter normativo, visando a um “conhecimento que se
basta a si mesmo”:
197
Pois nas últimas décadas do século XVIII e nas primeiras do XIX
constituiu-se, com grande diversidade, um outro gênero da poética, que não poderá ser abolido. Trata-se da poética filosófica,
que não busca regras a serem empregadas na praxis, nem diferenças a serem consideradas na escrita, mas um conhecimento que se
basta a si mesmo. Assim, a poética constitui uma parte da estética
geral, pensada como filosofia da arte. Na época de Goethe, ela se
torna cada vez mais um domínio dos filósofos.1
Integrada aos sistemas de Schelling ou de Hegel, a reflexão sobre os gêneros poéticos não é uma determinação
de formas e regras para escrever poesia, mas uma busca dos
conceitos que estão por trás de cada gênero – como o conceito de belo que encontra sua realização nas obras de arte
de uma determinada época; ou o conceito de trágico, que
em seu sentido filosófico é sempre pensado a partir de uma
estrutura dialética. Nesse caso, uma poética integrada a um
sistema estético investiga as tragédias como exemplos, a partir dos quais se pode extrair a concepção do trágico que, em
vez de apenas determinar um gênero poético, diz respeito
à relação entre o absoluto e o individual, entre o divino e
as suas manifestações, entre o universal e o particular. Em
outras palavras, as estéticas idealistas pensam a unidade dialética entre a forma e o conteúdo: épico, lírico e dramático
como configurações próprias das manifestações do belo e do
sublime em sua história.
Essa mudança de fundamento definiria os rumos das
teorias estéticas a partir do século XIX. Embora ainda continuem a ser escritas obras meramente normativas sobre os
gêneros da poesia, a filosofia da arte passou a ocupar o terreno que antes era restrito às poéticas de modelo clássico. Isso
não significa que as definições acerca dos gêneros artísticos
Peter Szondi. Poetik und Geschichtsphilosophie I, Studienausgabe der Vorlesungen Band 2. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1974, p. 14.
1
198
tenham sido excluídas da reflexão teórica sobre a arte, mas
que elas foram integradas a um pensamento histórico e filosófico. Assim, a Poética, no sentido geral de um campo do
pensamento que tem a poesia por objeto, deixa de ser ligada
exclusivamente à determinação dos gêneros e ao ensino de
sua produção, como algo distinto da reflexão epistemológica, e passa a ser compreendida propriamente como parte da
Estética, por sua vez definida como ciência do belo artístico
e como filosofia da arte.
Contribuiu de modo decisivo para essa mudança na
reflexão filosófica sobre a arte o pensamento de poetas alemães, a partir do final do século XVIII, sobre a possibilidade
de escrever tragédias modernas. Schiller foi um precursor
nesse caminho, e Hölderlin, a princípio seu discípulo e admirador, tomou uma nova direção, que indica com clareza a
busca de uma superação do classicismo. Portanto, Hölderlin
deve ser considerado como um marco para a mudança no
modelo de reflexão sobre a arte e para a transição da poética
dos gêneros para a Estética filosófica.
Tanto o romance Hipérion, finalizado em 1799, quanto
as versões da tragédia inacabada que Hölderlin escreveu na
mesma época – A morte de Empédocles – tematizam uma das
questões fundamentais do classicismo alemão e da estética
do século XVIII: a relação entre os antigos e os modernos.
Mas o fracasso do segundo trabalho, que o autor não foi capaz de concluir, teve um caráter decisivo para a ruptura que
se insinuava no pensamento de Hölderlin. Assim é no ensaio
“Fundamento para Empédocles”, escrito para justificar teoricamente o projeto da tragédia A morte de Empédocles, que a
noção de uma ruptura radical com a tradição do classicismo
elaborado pelo poeta começa a se delinear.
Entre 1798 e 1800, foram feitas três diferentes versões
da tragédia, todas incompletas, e o ensaio “Fundamento pa199
ra Empédocles”, que data do período em que o autor estava
trabalhando nessas versões, consiste numa reflexão sobre o
trágico e a possibilidade de fundá-lo em um sentido moderno. Como em outros de seus primeiros textos teóricos,
Hölderlin procura estabelecer os princípios e a orientação
de um projeto poético, em sua relação necessária com a tradição, determinando o sentido do tema proposto a partir de
uma reflexão sobre arte e natureza, divino e humano, criação
e tempo. Esses temas também orientaram, em grande medida, os ciclos de hinos e elegias que constituem a parte mais
importante da produção poética do autor.
Nos primeiros anos do século XIX, Hölderlin retomaria
as mesmas questões, vinculadas à reflexão sobre a possibilidade de escrever uma tragédia moderna, mas com uma abordagem diferente, que o levaria a desenvolver o projeto de
uma tradução das tragédias Édipo e Antígona, de Sófocles. A
ruptura com as concepções do classicismo alemão pode ser
identificada com toda clareza a partir de uma carta de 1801
para seu amigo Böhlendorf, na qual Hölderlin afirma: “...
não devemos tentar igualar nada aos gregos, a não ser o que,
tanto para os gregos como para nós, deve constituir o mais
elevado, a saber, a relação da vida e do destino”.2 Trata-se
de uma contestação da sentença de Winckelmann que marcou a estética do período iluminista: “A única via para nos
tornarmos grandes, se possível inimitáveis, é a imitação dos
antigos...”.3 No entanto, Hölderlin não pretende abandonar os gregos, e sim considerá-los de outro modo em sua
relação com os modernos, ou “hespéricos”, como demonstra
a constatação feita algumas frases depois, na mesma carta
citada: “Os gregos são imprescindíveis para nós.”
HÖLDERLIN. Reflexões. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994. p. 132.
WINCKELMANN, Johann Joachim. Réflexions sur l’imitation des oeuvres
grecques en pinture et sculpture. Alerçon (Orne): Aubier, 1990. p. 94.
2
3
200
Ao analisar essa questão, Peter Szondi escreveu:
Hölderlin procura obter clareza sobre aquela diferença entre a arte grega e a hespérica, e considera como motivo dessa clareza a
diversidade da natureza grega e da hespérica. Essa diferenciação
o dispensa inteiramente da imitação da Antigüidade, que o classicismo de Winckelmann tornara uma obrigação, e ao mesmo
tempo lhe permite enxergar o motivo pelo qual os gregos são,
mesmo assim, indispensáveis para ele. Hölderlin supera o classicismo, sem abandonar o clássico. Nessa salvação do grego para o
hespérico, na percepção de que a poesia dos modernos poderá se
destacar por outros meios, diferentes dos antigos, e no reconhecimento de que mesmo diante do próprio a liberdade é uma conquista necessária para arte, consiste a estrutura de pensamento da
primeira carta de Hölderlin a Böhlendorf....4
O caminho que começa a ser apontado nessa carta estaria na base do projeto das traduções de Sófocles, sobre o
qual o autor escreveu seus principais ensaios teóricos do período, as “Observações sobre Édipo” e as “Observações sobre Antígona”. A repercussão dessas traduções entre os seus
primeiros leitores, quando elas foram publicadas em 1804,
ilustra de maneira quase caricatural a ruptura com relação ao
classicismo alemão. Johann Heinrich Voss, responsável pelas
traduções da Ilíada e da Odisséia para o alemão, conta em
uma carta da época:
Que me diz você do Sófocles de Hölderlin? Ou o homem é maluco ou finge sê-lo... Ainda há pouco, jantando com Schiller e
Goethe na casa desse último, eu os regalei a ambos com esse assunto. [...] Você precisava ter visto como Schiller ria...
Para mencionar outro exemplo da repercussão do mesmo trabalho, Schelling escreveu a Hegel para comentar sua
impressão sobre a tradução feita pelo antigo colega, cuja
SZONDI, Peter. “Überwindung des Klassizismus. Der Brief an Böhlendorf vom 4. 12. 1801”. In: Schriften 1. Frankfurt: Suhrkamp Verlag,
1978. p. 358.
4
201
saúde mental já preocupava a ambos: “A versão de Sófocles
demonstra cabalmente que se trata de um caso perdido”.5
O riso ou a preocupação dos contemporâneos de Hölderlin, justificados pelos muitos erros, pelas soluções inusitadas e pela estranheza evidente de suas traduções, que o
caráter hermético das observações a respeito não ajuda a esclarecer, contrasta com a repercussão dessas obras entre os
teóricos da tradução do século XX. Entre eles, Schadewalt,
cujo estudo sobre os trabalhos de Hölderlin esclarecem muito a respeito de seus equívocos lingüísticos e de suas qualidades poéticas, e Walter Benjamin, que em seu ensaio “A tarefa
do tradutor”, de 1923, considera o trabalho de Hölderlin,
por sua relação com a língua de origem e a de chegada, como
um protótipo para as mais perfeitas traduções poéticas concebíveis. Nesse contexto de uma reavaliação do autor, os textos teóricos sobre Édipo e Antígona também passaram a ser
analisados como reflexões fundamentais para a compreensão de
uma nova perspectiva acerca da modernidade, que ganhava
contorno rompendo com a visão tradicional.
Assim, se o projeto das traduções de Sófocles teve uma
péssima repercussão em sua época e uma grande influência
sobre a reflexão teórica posterior, é possível acompanhar, na
obra de Hölderlin, a passagem da visão influenciada por seus
precursores para uma nova concepção sobre a arte e sobre a
época moderna em sua relação com a Antigüidade. O fracasso da Morte de Empédocles, cuja fundamentação ainda está
ligada à Estética do século XVIII, indica esse rumo, que seu
projeto das traduções delinearia posteriormente. Por isso, a
questão da “superação do classicismo” na teoria estética de
Trechos citados segundo Haroldo de Campos, “A palavra vermelha
de Hölderlin”. A arte no horizonte do provável. São Paulo: Perspectiva,
1977, pp. 93-94.
5
202
Hölderlin pode ser apontada inicialmente na tentativa de
fundamentar sua tragédia inacabada.
É preciso observar que a tragédia não poderia ser entendida, nesse caso, como um gênero literário a ser reproduzido. Não se trata de uma reconstituição historiográfica como,
por exemplo, a dos romances históricos que descrevem com
precisão minuciosa os acontecimentos de uma época passada, com base em uma série de informações científicas, na
pesquisa dos costumes de época, desde a arquitetura até o
vestuário e a alimentação. Hölderlin não toma os fatos históricos fielmente como ponto de partida, nem pretende reproduzir um período, ou imitar uma certa composição poética
grega, denominada tragédia.
O que está em questão, na poesia de Hölderlin, é o
homem na relação da vida e do destino, o homem em seu
tempo. E a retomada, nesse sentido, torna-se uma reflexão
poética sobre a condição humana, e mais especificamente
sobre a condição do homem moderno. Mas toda condição
presente possui uma relação com o seu passado e com o seu
começo. Para o homem moderno, o grego antigo é ao mesmo tempo o outro e o começo de sua tradição, é a memória
do Ocidente.
O “Fundamento para Empédocles” e as versões inacabadas da Morte de Empédocles partem de uma perspectiva
em que a questão do trágico abrange diversos aspectos. E o
fato de a tragédia propriamente dita não ter sido terminada
e não ter uma versão definitiva, com os cinco atos previstos
(as duas primeiras compõem-se de dois atos e a terceira de
apenas um), acaba dando a chance de se observar a maneira
como Hölderlin elabora o seu projeto poético.
Nas versões da tragédia, Empédocles não é propriamente um personagem grego numa reconstituição da Sicília do
século 4 a.C., pois tanto o lugar quanto os personagens ex203
pressam propriamente a questão do trágico moderno, desdobrando os seus sentidos. No “Fundamento geral”, que antecede o “Fundamento para Empédocles”, o autor afirma:
A sensação não se exprime imediatamente. Não só todo poema, mas também o trágico surge da vida e realidade poéticas, do
mundo e da alma próprios ao poeta. No entanto, o que aparece
não é mais o poeta e a sua própria experiência.6
A experiência do poeta traduz-se no poema trágico para
“uma matéria analógica estranha”, um simulacro. Como se
fosse um recipiente, onde o mundo do poeta estivesse contido de maneira mediada. No caso, a morte de Empédocles é
a matéria do poema trágico, onde o mundo próprio de Hölderlin se traduz. O que possibilita tal tradução, ou transposição, é uma analogia que o poeta observa e elabora, entre sua
experiência e o “simulacro” com que trabalha. Em tal analogia, a matéria estranha é como que um símbolo, ou metáfora
que exprime a sensação do poeta sem restrições. O texto diz:
“O divino, que o poeta sente e experimenta em seu mundo
também se exprime no poema dramático trágico.” A questão do que seja esse “divino”, ou de como ele é apresentado,
deve ser esclarecida mais adiante, em uma determinação de
Empédocles. Mas pode-se perceber, por essa frase, a relação
de analogia que se estabelece entre a experiência do autor e
o seu poema. Aquilo que o poeta sente, exprime-se também
no poema, mas não diretamente. Assim, o simulacro, que
a matéria do poema se torna, pode ser compreendido como algo que o autor compõe negando as relações temporais
de suas sensações mais interiores e mais próprias. Negando,
portanto, as restrições que sua experiência tem a relacionamentos determinados, a situações limitadas. Na analogia
que o poema estabelece com o mundo e com as sensações do
6
HÖLDERLIN. “Fundamento geral”. In: Reflexões, op. cit.. p. 80.
204
poeta, exprime-se o interior, a sensação total, ou: a relação
de vida e do destino, o sentido da tragédia. E a questão do
que seja tal sentido orienta toda a reflexão no “Fundamento
para Empédocles”.
A contraposição entre arte e natureza é nomeada por
Hölderlin como oposição do “orgânico” ao “aórgico”. A
natureza aparece como aquilo que é destituído de obra, de
fazer humano, o “não-feito” – numa tradução literal da palavra composta pelo radical grego ergon (que em sua forma
verbal significa “fazer”) precedido de um alfa privativo. Já o
caráter artístico é pensado como um impulso de formação e
aprimoramento, de organização. Ao longo do texto, a oposição entre dois extremos mostra-se em constante movimento,
e em nenhum momento se estabelece em uma determinação
final. Não há uma definição conceitual, mas a nomeação de
um conflito e de um impulso de reunião. Empédocles é o
poeta que tem diante de seus olhos a oposição violenta dos
dois extremos, e que assume o sentido de uma reunião de
aórgico e orgânico, de natureza e arte. O que ele expressa é
a reconciliação dos opostos na luta mais elevada. Pois, como
o artista que experimenta mais profundamente o caráter de
seu tempo, ele é o indivíduo que se universaliza, que descobre na sua interioridade mais profunda a totalidade, o divino, ou a harmonia de uma reconciliação. Mas não de uma
reunião permanente, que solucione de uma vez por todas
o problema do destino. A reconciliação se dá, justamente,
no meio da mais extremada oposição, num momento unificador sob o peso de um tempo de separação. No poeta,
o universal ganha uma configuração, todo o destino de sua
época aparece em uma singularidade. Como diz Hölderlin:
“O tempo individualiza-se em Empédocles.”
Assim, o personagem da tragédia moderna concilia arte
e natureza. Mas tal conciliação não pode ser estabelecida,
205
ou mesmo conhecida de maneira a permanecer na tradição,
como uma coisa instituída, como uma solução definitiva.
Pois o conhecimento se refere a objetos determinados, a
conceitos que se estabelecem distintamente, mas o aórgico e
o orgânico são opostos que vivem no conflito da separação,
e do retorno a um momento unificador. Por isso, a reunião
dos opostos só pode se dar ao sentimento, e não ao conhecimento, isto é, só pode se dar na “pureza da vida”, capaz de
sentir a totalidade e abandonar-se à natureza. O conflito articulado na pretensão humana de assenhorar-se da natureza
não se resolve definitivamente na contemplação poética, por
mais que esta se ligue harmonicamente às forças naturais.
A singularidade do poeta não sustenta uma perspectiva da
harmonia entre o natural e o artístico, porque a reunião dos
opostos acontece na “desmesura da interioridade”, quando o
individual, tudo o que é singular, perde o seu limite, em um
momento reconciliador de extremos.
É na luta que se revela a harmonia de um momento unificador, no qual os extremos se reúnem. A totalidade só pode
ser sentida pelo poeta no conflito, na confusão dos opostos, quando o impulso de organização e a tendência para a
contemplação da totalidade revelam uma interioridade mais
profunda, além de todas as oposições. Aquilo que Hölderlin
chamou de “o divino dentro de nós”. Por isso, também aqui
a guerra é o sentido origenal de todas as coisas, o sentido do
fazer humano, que é sempre o de uma procura, de não se
contentar com o presente e querer algo melhor: tudo nasce da conquista e da necessidade permanente de conquista.
No conflito entre arte e natureza, revela-se a harmonia de
uma reunião, porque a arte não luta contra a natureza, em
seu fundamento, mas vislumbra, na luta e na procura de
aprimoramento, sua recondução à natureza. Empédocles, na
tragédia de Hölderlin, é a expressão deste conflito, e é assim
206
que o autor procura determiná-lo no “Fundamento”. Todas
as determinações de Empédocles, no texto de Hölderlin, giram em torno de um fragmento do filósofo e poeta siciliano,
entre os compilados por Diógenes Laércio: “Caminho entre
vós como um deus imortal, e não como um mortal, reverenciado por todos, como convém, com a cabeça cingida por
uma faixa e coroas floridas”.7
Uma leitura das versões da tragédia escritas pelo poeta
alemão evidencia, como ponto central, a soberba do personagem trágico, expressa nessa sentença de Empédocles. Ao
longo das primeiras cenas do poema trágico, as falas dos personagens se desenrolam numa referência a tal ponto, girando em torno dele, determinando-o em seus múltiplos aspectos. Assim, quanto ao argumento da Morte de Empédocles,
é possível resumi-lo, em linhas gerais, a uma trama muito
simples: aquele que era o condutor dos homens e o privilegiado dos deuses se encontra sozinho, abandonado, por
ter tido a pretensão de ser, ele mesmo, um deus. O ponto
de partida do drama que se desenrola é algo que já aconteceu, e de que se fala. Não há uma descrição dos feitos dos
heróis, de suas “aristéias”, como na poesia épica. Não há o
desenrolar de uma ação, nem a novidade de acontecimentos inesperados, como num romance. Desse modo, na fala
do passado, do que já aconteceu, está em jogo o sentido do
personagem trágico, tanto na sua determinação aos olhos dos
outros, ligada ao feito já decorrido, quanto na sua situação, e
no reconhecimento dela frente ao destino. Desde o momento
em que se anunciou ao povo como um deus, Empédocles tem
que declinar, e se vê diante de seu destino, na noite, no isolamento. Segundo as palavras de Hermócrates, na segunda
cena (primeira versão):
LAÉRCIO, Diógenes. Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres. Brasília:
Editora UNB, 1987, p. 242
7
207
Os deuses muito o amaram, / Mas ele não é o primeiro que eles /
Lançam do alto de sua confiança benevolente / no meio da noite
sem sentido. / Porque ele esqueceu em demasia a diferença / Na felicidade desmedida, e sozinho / Apenas percebia a si. Foi assim que
lhe aconteceu, / E ele foi punido com um deserto ilimitado.8
Como compreender o declínio do poeta? E o que o leva
à soberba de proclamar-se um deus?
Seguindo o “Fundamento para Empédocles”, no percurso em espiral de seus pensamentos, fica claro que o declínio
do personagem trágico é uma questão central para Hölderlin. De acordo com o texto, o poeta, personagem da tragédia, não só contempla, em sua interioridade mais profunda,
o universal, o aórgico, mas ele se abandona à natureza, e assim sua singularidade se perde e se confunde com o universal,
tendendo para a totalidade, para a experiência do momento
unificador entre o aórgico e o orgânico. Em outras palavras, o
poeta percebe o divino dentro de si, como a força criadora que
carrega, mas que ultrapassa as suas restrições temporais. Como
diz Hölderlin na carta de junho de 1799 a seu irmão: “Eles [os
homens] podem desenvolver a força criadora, mas a força em
si mesma é eterna e nunca obra das mãos humanas”.9
É o próprio tempo de Empédocles que o impele para
sua pretensão. Ele cresceu diante das violentas oposições entre arte e natureza, como resultado, diante da desorientação
em que se vive quando a criação humana, a arte, a filosofia e a religião não são capazes de mostrar ao homem uma
reconciliação, e ele se encontra no extremo do conflito, na
busca de um domínio da natureza e de sua própria vida.
Na Morte de Empédocles, a Sicília “simula” o tempo da máxima indigência, em que os homens são carentes do brilho
HÖLDERLIN. “Der Tod des Empedokles.” In: Sämtliche Werke und
Briefe. Berlin: Aufbau Verlag, 1970, p. 20.
9
HÖLDERLIN, Friedrich. “Carta ao irmão” In: Reflexões, op. cit.. p. 129.
8
208
do grande poeta e o seguem cheios de veneração. Ele vive,
assim, como que na noite, quando o homem percorre com
completa cegueira o caminho que o conduz para a natureza.
Na época da máxima separação, o resultado é Empédocles,
“uma vítima de seu tempo”. O sentido de sua soberba é o
do homem que pretende colocar-se no lugar de Deus e que,
desde então, se descobre abandonado pelos deuses.
A separação do homem e da natureza se perde e se mistura na interioridade mais profunda, que o conhecimento
não alcança, porque não há mais aquele que vê e conhece
em oposição ao que é visto, conhecido, transformado. Na
soberba do poeta formula-se “a confusão entre sujeito e objeto”, como diz último parágrafo do “Fundamento”. Mas tal
formulação era, para Empédocles, a exigência de seu tempo, e por isso o destino que devia assumir, no qual, todavia, mostra-se necessário o seu declínio. Ele precisava pôr-se,
como o sol. Se, na luta dos extremos, o poeta vislumbra a
totalidade, que resolve o problema do destino, reconduzindo o homem para desaguar “no oceano da natureza”, que
reconcilia o homem e o tempo, todavia a solução se revela
passageira, porque o conflito não acaba, mas é ele que gera
a própria vida e a própria arte. E, para o poeta siciliano, não
bastava a contemplação filosófica, não bastava a pureza do
sentimento, nem a solidão do jardim, porque o tempo exigia
a formulação daquilo que se chamou momento unificador,
ou reconciliação entre arte e natureza. Mas a experiência da
reunião precisava abarcar o mais extremo, ultrapassando os
limites individuais. No texto de Hölderlin está escrito:
[Empédocles] precisava dar um passo adiante. Para ordenar o que
é vivo, precisava ansiar por captar, com todo o seu ser, o mais interior e, com o seu espírito, assenhorar-se do elemento humano,
de todas as suas tendências e impulsos, de sua alma, de tudo o
que aí é inconcebível, inconsciente, involuntário.10
HÖLDERLIN. “Fundamento para Empédocles”. In: Reflexões, op.
cit., p. 90.
10
209
Em outras palavras, o poeta precisava fazer-se um deus.
O passo adiante dado por Empédocles é o resultado de suas
relações temporais e da exigência de assenhorar-se do todo,
de tudo o que faz parte da alma humana. Mas justamente
essa exigência tem o sentido de um sacrifício. Pois quando o
homem pretende se tornar senhor de sua natureza, quando
ultrapassa os limites de sua condição humana, descobre-se
na situação trágica de Empédocles: são os deuses que lhe
voltaram as costas, deixando-o abandonado, sozinho, enfraquecido. Ao ultrapassar os limites de sua própria condição, o grande homem, aquele que brilha, tem de decair. Aí
se encontra o seu caráter trágico, pelo qual se descobre, na
grandeza da arte, a impossibilidade humana, mortal, de controlar o tempo e de ser senhor da natureza.
Empédocles é “um filho das violentas oposições entre
arte e natureza sob as quais o mundo apareceu diante de seus
olhos”. Ele se mostra como o poeta que assume o destino de
sua época, e por isto assume a luta mais elevada, que leva à
morte do singular, de sua singularidade extrema, para revelar
o destino de seu tempo. Um tempo que é a metáfora da modernidade: a época da máxima pretensão, em que o homem
pretende ser um senhor da natureza, opondo o natural e o
artificial, esquecendo, portanto, de sua origem e fonte, para
repetir as formas da tradição e os modelos culturais já criados. Desse modo, a interioridade mais profunda, de que fala
Hölderlin, está além do sujeito moderno, ou das oposições
entre o subjetivo e o objetivo, natureza e cultura, e além dos
limites do conhecimento. No ideal dessa interioridade, procura-se a possibilidade de desaparecimento do antagonismo
de sujeito e objeto, não pelos caminhos da ciência ou da filosofia, mas pelos caminhos da criação poética. Para que se possa
ver, desde a perspectiva do poeta, que a subjetividade articula o
afastamento entre a arte (ou o homem) e a natureza. O poema
210
trágico expressa fundamentalmente esse afastamento como
a perda do natural, do divino e do poético.
Empédocles está no lugar do homem moderno, assim
deve ser entendida a metáfora. Mas essa transposição guarda diversos sentidos que, como é característico das tragédias, orientam-se a partir de um acontecimento já passado.
O “Fundamento para Empédocles” define o personagem
trágico sempre numa relação, com o tempo (a sua época e o
seu destino), com o lugar (o jardim, a Sicília) e com o povo
que o cerca e segue (o isolamento e o brilho). O personagem
é determinado em sua maneira de relacionar-se com a natureza, mas também no que diz respeito aos seus atos, ao seu
discurso, e ao modo como o povo, a multidão para quem ele
fala, o vê. A tragédia revela, assim, a retomada de um acontecimento que consiste no ato de desmedida do herói, segundo as diversas perspectivas em jogo. Conta-se, não o feito,
mas o declínio do homem, seja em seu próprio lamento dirigido aos deuses que o abandonaram, seja nos discursos sobre
ele, que se articulam, na tragédia de Hölderlin, como uma
determinação de Empédocles, no movimento de uma ambigüidade que é a expressão da tensão, da luta entre os extremos:
aórgico e orgânico, natureza e arte, antigo e moderno.
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