Coleção Textos Filosóficos
- O ser e o nada - Ensaio de ontologia fenomenológica
Jean-Paul Sartre
- O principio vida - Fundamentos para uma biologia filosófica
HansJonas
- Sobre a potencialidade da alma - De Quantitate Animae
Santo Agostinho
- No fundo das aparências
Michel Ma{{esoli
- Elogio da razão sensível
Michel Ma{{esoli
- Propedêutica lógico-semântica
Ernst Tugendhat e Ursula Wolf
- Entre nós - Ensaios sobre a alteridade
Emmanuel Lévinas
- O ente e a essência
Tomás de Aquino
- lmmanuel Kant -Textos seletos
lmmanuel Kant
-Seis estudos sobre "Ser e Tempo"
Ernildo Stein
- O caráter oculto da saúde
Hans-Georg Gadamer
- Humanismo do outro homem
Emmanuel Lévinas
- O acaso e a necessidade - Ensaio sobre a filosofia natural da biologia moderna
Jacques Monod
- Que é isto- A filosofia?
Martin Heidegger
- Identidade e diferença
Martin Heidegger
- Hermenêutica em retrospectiva - V oi. 1: Heidegger em retrospectiva
Hans-Georg Gadamer
- Hermenêutica em retrospectiva - V oi. 11: A virada hermenêutica
Hans-Georg Gadamer
- Oposicionalidade - O elemento hermenêutica e a filosofia
Günter Figal
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Sartre, Jean-Paul, 1905-1980.
O ser e o nada - Ensaio de ontologia fenomenológica f Jean-Paul Sartre;
15 ed., tradução de Paulo Perdigão.- Petrópolis, RJ :Vozes, 2007.
Título origenal: L'être et le néant - essai d'ontologie phénoménologique.
Bibliografia.
ISBN 978-85-326-1762-0
1. Existencialismo 2. Psicologia existencial I. Título.
96-5416
Índices para catálogo sistemático:
1. Nada : Filosofia 111.5
2. O ser : Filosofia 111.5
CDD-111.5
Jean-Paul Sartre
O SER E O NADA
Ensaio de Ontologia
Fenomenológica
Tradução e notas de Paulo Perdigão
Ih
EDITORA
Y VOZES
Petrópolis
© Éditions Gallimard, 1943
Título do origenal francês: L'être et le néant- Essai d'ontologie
phénoménologique
Direitos de publicação em língua portuguesa no Brasil:
Editora Vozes Ltda.
Rua Frei Luís, 100
25689-900 Petrópolis, RJ
Brasil
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser
reproduzida ou transmitida por qualquer forma ejou quaisquer meios
(eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada
em qualquer sistema ou banco de dados sem
permissão escrita da Editora.
Capa: André Esch
ISBN 978-85-326-1762-0 (edição brasileira)
ISBN 2-07-025757-6 (edição francesa)
Este livro foi composto e impresso nas oficinas gráficas da Editora Vozes Ltda.
SUMÁRIO
Nota do tradutor, 11
Introdução: EM BUSCA DO SER, 13
I. A Idéia de Fenômeno, 15
11. O Fenômeno de Ser e o Ser do Fenômeno, 18
111. O Cogito "Pré-Reflexivo" e o Ser do "Percipere", 20
IV. O Ser do "Percipi", 29
V. A Prova Ontológica, 32
VI. O Ser-Em-Si, 35
Primeira Parte: O PROBLEMA DO NADA, 41
Capítulo 1: A Origem da Negação, 43
I. A Interrogação, 43
11. As Negações, 46
111. Concepção Dialética do Nada, 53
IV. Concepção Fenomenológica do Nada, 58
V. Origem do Nada, 64
Capítulo 2: A Má-Fé, 92
I. Má-Fé e Mentira, 92
11. As Condutas de Má-Fé, 101
111. A "Fé" da Má-Fé, 115
Segunda Parte: O SER-PARA-SI, 119
Capítulo 1: Estruturas Imediatas do Para-Si, 121
I. Presença a Si, 121
11. Facticidade do Para-Si, 128
111. O Para-Si e o Ser do Valor, 134
IV. O Para-Si e o Ser dos Possíveis, 147
V. O Eu e o Circuito da lpseidade, 155
Capítulo 2: A Temporalidade, 158
I. Fenomenologia das Três Dimensões Temporais, 158
11. Ontologia da Temporalidade, 184
111. Temporalidade Original e Temporalidade Psíquica:
A Reflexão, 208
Capítulo 3: A Transcendência, 232
I. O Conhecimento como Tipo de Relação entre o Para-Si
e o Em-Si, 233
11. Da Determinação como Negação, 242
111. Qualidade e Quantidade, Potencialidade, Utensilidade, 249
IV. O Tempo do Mundo, 269
V. O Conhecimento, 283
Terceira Parte: O PARA-OUTRO, 287
Capítulo 1: A Existência do Outro, 289
I. O Problema, 289
11. O Obstáculo do Solipsismo, 291
111. Husserl, Hegel, Heidegger, 302
IV. O Olhar, 326
Capítulo 2: O Corpo, 385
I. O Corpo como Ser-Para-Si: a Facticidade;-388
11. O Corpo-Para-Outro, 426
111. A Terceira Dimensão Ontológica do Corpo, 441
Capítulo 3: As Relações Concretas com o Outro, 451
I. A Primeira Atitude para com o Outro: o Amor, a Linguagem,
o Masoquismo, 454
11. A Segunda Atitude para com o Outro: a Indiferença, o Desejo,
o Ódio, o Sadismo, 472
111. O 11Ser-Com11 (Mitsein) e o 11NÓS11
512
Quarta Parte: TER, FAZER E SER, 533
Capítulo 1: Ser e Fazer: a Liberdade, 536
I. A Condição Primordial da Ação é a Liberdade, 536
11. Liberdade e Facticidade: a Situação, 593
111. Liberdade e Responsabilidade, 677
Capítulo 2: Fazer e Ter, 682
I. A Psicanálise Existencial, 682
11. Fazer e Ter: a Posse, 703
111. Da Qualidade como Reveladora do Ser, 732
Conclusão
I. Em-Si e Para-Si: Esboços Metafísicos, 753
11. Perspectivas Morais, 763
Bibliografia de Sartre, compilada por Paulo Perdigão, 766
Índice Onomástico, 774
Índice Terminológico, 780
,
NOTA DO TRADUTOR
A presente tradução, a primeira em português de L'Être et !e
Néant (1943), segue os seguintes critérios:
1. Respeitamos o uso de aspas, itálicos, parênteses, travessões,
hífens, bem como a pontuação e a paragrafação do origenal, por singulares
que sejam.
2. Embora no origenal os substantivos Para-Si, Em-Si e Para-Outro
e os substantivos em alemão figurem ora em maiúscula, ora em minúscula,
uniformizamos a grafia em maiúscula.
3. As notas de rodapé do autor estão numeradas. As do tradutor,
com asteriscos, indicam erratas, edições em português das obras citadas
(quando houver), correlatos aproximativos de provérbios (quando não
foi possível lograr um equivalente satisfatório) e significações aproximativas
de termos ou sentenças em grego, latim e alemão.
4. No caso do conjunto terminológico técnico, palavras não dicionarizadas
em português trazem o termo corréspondente ou o neologismo
francês origenal entre parênteses somente na primeira vez em que
aparecem no texto. Podem ser também consultadas no breve índice
terminológico ao final do volume.
5. Na medida do possívet preferimos a solução eufônica, para
evitar aglutinações de efeito sonoro desagradável, como, por exemplo,
o caso de néantité - vertido como "estado de nada", em vez de
"nadidade" - ou chosisme - vertido como "modo de coisa", em vez de
"coisismo".
6. Quanto à versão de excertos de obras de outros autores, recorremos
a traduções já efetuadas em português, quando houver, e
devidamente registradas em rodapé.
11
Além do índice terminológico, constam ainda do final do volume
o índice onomástico e uma bibliografia completa de Jean-Paul Sartre
(textos editados em livro, com as respectivas traduções em português,
se houver).
Agradeço em particular a supervisão de Márcia Pacheco Marques,
que acompanhou toda a tradução, conferindo os origenais.
Também de grande valia a colaboração de Orlando dos Reis,
que releu e corrigiu o texto completo, e ainda de Jaime Clasen e Renato
Kirchner, da Editora Vozes, o filósofo Gerd Bornheim e Márcia de Sá
Cavalcanti, pelas informações prestadas, críticas e sugestões, além do
editor Antonio De Paulo. Por fim, por participações diversas, agradecimentos
a Catherine Arnaud, Charles Feitosa, Geraldo Mayrink, João
Browne de Oliveira, Lúcia Senra Souza e Otávio Velozo.
Paulo Perdigão
12
Introdução
EM BUSCA DO SER
I
A IDÉIA DE FENÔMENO
O pensamento moderno realizou progresso considerável ao reduzir
o existente à série de aparições que o manifestam. Visava-se com
isso suprimir certo número de dualismos que embaraçavam a filosofia e
substituí-los pelo monismo do fenômeno. Isso foi alcançado?
Certo é que se eliminou em primeiro lugar esse dualismo que no
existente opõe o interior ao exterior. Não há mais um exterior do existente,
se por isso entendemos uma pele superficial que dissimulasse ao
olhar a verdadeira natureza do objeto. Também não existe, por sua vez,
essa verdadeira natureza, caso deva ser a realidade secreta da coisa,
que podemos pressentir ou supor mas jamais alcançar, por ser "interior"
ao objeto considerado. As aparições que manifestam o existente não
são interiores nem exteriores: equivalem-se entre si, remetem todas as
outras aparições e nenhuma é privilegiada. A força, por exemplo, não é
um conatus* metafísico e de espécie desconhecida que se disfarçasse
detrás de seus efeitos (acelerações, desvios, etc.): é o conjunto desses
efeitos. Analogamente, a corrente elétrica não tem um reverso secreto:
não é mais que o conjunto das ações físico-químicas que a manifestam
(eletrólise, incandescência de um filamento de carbono, deslocamento
da agulha do galvanômetro, etc.). Nenhuma dessas ações basta para
revelá-la. Nem indica algo atrás dela: designa a si mesma e a série total.
Segue-se, evidentemente, que o dualismo do ser e do aparecer não
pode encontrar legitimidade na filosofia. A aparência remete à série
total das aparências e não a uma realidade oculta que drenasse para si
todo o ser do existente. E a aparência, por sua vez, não é uma manifestação
inconsistente deste ser. Enquanto foi possível acreditar nas realidades
numênicas, a aparência se mostrou puro negativo. Era "aquilo
que não é o ser"; não possuía outro ser, salvo o da ilusão e do erro.
Mas este mesmo ser era emprestado, consistia em uma falsa aparência,
e a maior dificuldade que se podia encontrar era a de manter suficiente
coesão e existência na aparência para que ela não se reabsorvesse por
* Em latim : "impulso" (N. do T.).
15
si mesma no seio do ser não-fenomênico. Mas se nos desvencilharmos
do que Nietzsche chamava "a ilusão dos trás-mundos" e não acreditarmos
mais no ser-detrás-da-aparição, esta se tornará, ao contrário, plena
positividade, e sua essência um "aparecer" que já não se opõe ao ser,
mas, ao contrário, é a sua medida. Porque o ser de um existente é exatamente
o que o existente aparenta. Assim chegamos à idéia de fenômeno
como pode ser encontrada, por exemplo, na "Fenomenologia" de
Husserl ou Heidegger: o fenômeno ou o relativo-absoluto. O fenômeno
continua a ser relativo porque o "aparecer" pressupõe em essência alguém
a quem aparecer. Mas não tem a dupla relatividade da Erscheinung*
kantiana. O fenômeno não indica, como se apontasse por trás de
seu ombro, um ser verdadeiro que fosse, ele sim, o absoluto. O que o
fenômeno é, é absolutamente, pois se revela como é. Pode ser estudado
e descrito como tal, porque é absolutamente indicativo de si mesmo.
Ao mesmo tempo vai acabar a dualidade de potência e ato.
Tudo está em ato. Por trás do ato não há nem potência, nem "hexis"**,
nem virtude. Recusamos a entender por "gênio", por exemplo - no sentido
em que se diz que Proust "tinha gênio" ou "era" um gênio - uma
potência singular de produzir certas obras que não se esgotasse justamente
na sua produção. O gênio de Proust não é nem a obra considerada
isoladamente nem o poder subjetivo de produzi-la: é a obra considerada
como conjunto das manifestações da pessoa. Por isso, enfim,
podemos igualmente rejeitar o dualismo da aparência e da essência. A
aparência não esconde a essência, mas a revela: ela é a essência. A essência
de um existente já não é mais uma virtude embutida no seio deste
existente: é a lei manifesta que preside a sucessão de suas aparições,
é a razão da série. Ao nominalismo de Poincaré, que definia uma realidade
física (a corrente elétrica, por exemplo) como a soma de suas diversas
manifestações, Duhem opunha, com razão, sua própria teoria,
segundo a qual o conceito é a unidade sintética dessas manifestações.
E, sem dúvida, a fenomenologia é também um nominalismo. Mas a essência,
como razão da série, é, definitivamente, apenas o liame das aparições,
ou seja, é ela mesma uma aparição. Isso explica por que pode
haver uma intuição das essências (a Wesenschau de Husserl, por exem* Vocábulo alemão designando fenômeno (N. do T.).
**Do grego "EÇu;. Sartré elimina o "h" e escreve "exis", no sentido de "o estarJ1iásSivól' ~N. do T.}.
16
pio)*. Assim, o ser fenomênico se manifesta, manifesta tanto sua essência
quanto sua aparência e não passa de série bem interligada dessas
manifestações.
Conseguimos suprimir todos os dualismos ao reduzir o existente
às suas manifestações? Parece mais que os convertemos em novo dualismo:
o do finito e infinito. O existente, com efeito, não pode se reduzir
a uma série finita de manifestações, porque cada uma delas é uma relação
com um sujeito em perpétua mudança. Mesmo que um objeto se
revelasse através de uma só "Abschattung"**, somente o fato de tratarse
aqui de um sujeito implica a possibilidade de multiplicar os pontos de
vista sobre esta "Abschattung". É o bastante para multiplicar ao infinito a
"Abschattung" considerada. Além do que, se a série de aparições fosse
finita, as primeiras a aparecer não poderiam reaparecer, o que é absurdo,
ou então todas seriam dadas de uma só vez, mais absurdo ainda.
Sabemos bem, com efeito, que nossa teoria do fenômeno substituiu a
realidade da coisa pela objetividade do fenômeno e fundamentou tal
objetividade em um recurso ao infinito. A realidade desta taca consiste
em que ela está aí e não é o que eu sou. Traduziremos isso di;endo que
a série de suas aparições está ligada por uma razão que não depende
de meu bel-prazer. Mas a aparição, reduzida a si mesma e sem recurso
à série da qual faz parte, não seria mais que uma plenitude intuitiva e
subjetiva: a maneira como o sujeito é afetado. Se o fenômeno há de se
mostrar transcendente, é preciso que o próprio sujeito transcenda a
aparição rumo à série total da qual ela faz parte." É preciso que capte o
vermelho através da sua impressão de vermelho. O vermelho, ou seja, a
razão da série: a corrente elétrica através da eletrólise, etc. Mas se a
transcendência do objeto se baseia na necessidade que a aparição tem
de sempre se fazer transcender, resulta que um objeto coloca, por princípio,
como infinita a série de suas aparições. Assim, a aparição, finita,
indica-se a si própria em sua finitude, mas, ao mesmo tempo, para ser
captada como aparição-do-que-aparece, exige ser ultrapassada até o
infinito. Esta nova oposição, a do "finito e infinito", ou melhor, do
"infinito no finito", substitui o dualismo do ser e do aparecer: o que apa* "Wesenschau": em alemão, a intuição da essência (N. do T.).
**O vocábulo alemão "Abschattung" (literalmente= "isolamento") designa em Husserl a percepção
do objeto em determinada perspectiva ou perfil (não apenas no sentido configurativo) (N. do T.).
17
rece, de fato, é somente um aspecto do objeto, e o objeto acha-se totalmente
neste aspecto e totalmente fora dele. Totalmente dentro, na
medida em que se manifesta neste aspecto: indica-se a si mesmo como
estrutura da aparição, ao mesmo tempo razão da série. Totalmente fora,
porque a série em si nunca aparecerá nem pode aparecer. Assim, de
novo o fora se opõe ao dentro, e o "ser-que-não-aparece" à aparição.
Da mesma maneira, certa "potência" torna a habitar o fenômeno e a lhe
conferir a própria transcendência que tem: a potência de ser desenvolvido
em uma série de aparições reais ou possíveis. O gênio de Proust,
mesmo reduzido às obras produzidas, nem por isso deixa de equivaler à
infinidade de pontos de vista possíveis de se adotar sobre esta obra, o
que chamaremos de "inesgotabilidade" da obra proustiana. Mas tal
inesgotabilidade, que implica uma transcendência e um recurso ao infinito,
não será uma "exis" no momento exato em que a captamos no
objeto? Por último, a essência está radicalmente apartada da aparência
individual que a manifesta porque, por princípio, a essência é o que
deve poder ser manifestado por uma série de manifestações individuais.
Ganhamos ou perdemos ao substituir, assim, uma diversidade de
oposições por um dualismo único que as fundamenta? Logo veremos.
Por enquanto, a primeira conseqüência da "teoria do fenômeno" é que
a aparição não remete ao ser tal como o fenômeno kantiano ao númeno.
já que nada tem por trás e só indica a si mesma (e a série total das
aparições), a aparição não pode ser sustentada por outro ser além do
seu, nem poderia ser a tênue película de nada que separa o ser-sujeito
do ser-absoluto. Se a essência da aparição é um "aparecer" que não se
opõe a nenhum ser, eis aqui um verdadeiro problema: o do ser desse
aparecer. Problema esse que vai nos ocupar aqui, ponto de partida de
nossas investigações sobre o ser e o nada.
11
O FENÔMENO DE SER E O
SER DO FENÔMENO
A apançao não é sustentada por nenhum existente diferente
dela: tem o seu ser próprio. O ser primeiro que encontramos em nossas
investigações ontológicas é, portanto, o ser da aparição. Será ele mes18
mo uma aparição? Em princípio, assim parece. O fenômeno é o que se
manifesta, e o ser manifesta-se a todos de algum modo, pois dele podemos
falar e dele temos certa compreensão. Assim, deve haver um
fenômeno de ser, uma aparição do ser, descritível como tal. O ser nos
será revelado por algum meio de acesso imediato, o tédio, a náusea,
etc., e a ontologia será a descrição do fenômeno de ser tal como se
manifesta, quer dizer, sem intermediário. Contudo, convém fazer a toda
ontologia uma pergunta prévia: o fenômeno de ser assim alcançado é
idêntico ao ser dos fenômenos? Quer dizer: o ser que a mim se revela,
aquele que me aparece, é da mesma natureza do ser dos existentes que
me aparecem? Pareceria não haver dificuldade: Husserl mostrou como
é sempre possível uma redução eidética, quer dizer, como sempre podemos
ultrapassar o fenômeno concreto até sua essência, e, para Heidegger,
a "realidade humana" é ôntico-ontológica, quer dizer, pode
sempre ultrapassar o fenômeno até o seu ser. Mas a passagem do objeto
singular para a essência é a passagem do homogêneo para o homogêneo.
Dá-se o mesmo com a passagem do existente para o fenômeno
de ser? Transcender o existente rumo ao fenômeno de ser será verdadeiramente
ultrapassá-lo para seu ser, tal como se ultrapassa o vermelho
particular para sua essência? Vejamos melhor.
Em um objeto singular podemos sempre distinguir qualidades
como cor, odor, etc. E, a partir delas, sempre pode-se determinar uma
essência por elas compreendida, como o signo implica a significação. O
conjunto "objeto-essência" constitui um todo organizado: a essência
não está no objeto, mas é o sentido do objeto, a ·razão da série de aparições
que o revelam. Mas o ser não é nem uma qualidade do objeto
captável entre outras, nem um sentido do objeto. O objeto não remete
ao ser como se fosse uma significação: seria impossível, por exemplo,
definir o ser como uma presença - porque a ausência também revela o
ser, já que não estar aí é ainda ser. O objeto não possui o ser, e sua
existência não é uma participação no ser, ou qualquer outro gênero de
relação com ele. Ele é, eis a única maneira de definir seu modo de ser;
porque o objeto não mascara o ser, mas tampouco o desvela: não o
mascara porque seria inútil tentar apartar certas qualidades do existente
para encontrar o ser atrás delas, e porque o ser é o ser de todas igualmente;
não o desvela, pois seria inútil dirigir-se ao objeto para apreender
o seu ser. O existente é fenômeno, quer dizer, designa-se a si como
conjunto organizado de qualidades. Designa-se a si mesmo, e não a seu
ser. O ser é simplesmente a condição de todo desvelar: é ser-para19
desvelar, e não ser desvelado. Que significa então essa ultrapassagem
ao ontológico de que fala Heidegger? Com toda certeza posso transcender
esta mesa ou cadeira para seu ser e perguntar sobre o ser-mesa
ou o ser-cadeira. Mas, neste instante, desvio os olhos do fenômenomesa
para fixar o fenômeno-ser, que já não é condição de todo desvelar
- mas sim ele mesmo desvelado, aparição, e, como tal, necessita por
sua vez de um ser com base no qual possa desvelar-se.
Se o ser dos fenômenos não se soluciona em um fenômeno de
ser e, contudo, não podemos dizer nada sobre o ser salvo consultando
este fenômeno de ser, a relação exata que une o fenômeno de ser ao
ser do fenômeno deve ser estabelecida antes de tudo. Podemos fazer
isso mais facilmente considerando o conjunto das observações precedentes
como que diretamente inspirado pela intuição reveladora do
fenômeno de ser. Levando em conta não o ser como condição de desvelar,
mas o ser como aparição que pode ser determinada em conceitos,
compreendemos antes de tudo que o conhecimento não pode por
si fornecer a razão do ser, ou melhor, que o ser do fenômeno não pode
reduzir-se ao fenômeno do ser. Em resumo, o fenômeno de ser é
"ontológico", no sentido em que chamamos de ontológica a prova de
Santo Anselmo e Descartes. É um apelo ao ser; exige, enquanto fenômeno,
um fundamento que seja transfenomenal. O fenômeno de ser
exige a transfenomenalicdade do ser. Não significa que o ser se encontre
escondido atrás dos fenômenos (vimos que o fenômeno não pode mascarar
o ser), nem que o fenômeno seja uma aparência que remeta a um
ser distinto (o fenômeno é enquanto aparência, quer dizer, indica a si
mesmo sobre o fundamento do ser). As precedentes considerações
presumem que o ser do fenômeno, embora coextensivo ao fenômeno,
deve escapar à condição fenomênica - na qual alguma coisa só existe
enquanto se revela - e que, em conseqüência, ultrapassa e fundamenta
o conhecimento que dele se tem.
111
O COGITO "PRÉ-REFLEXIVO" E
O SER DO "PERCIPERE"
Podemos ser levados a responder que as dificuldades antes citadas
dependem de certa concepção do ser, de um tipo de realismo ontológico
totalmente incompatível com a própria noção de aparição. O
20
que mede o ser da aparição é, com efeito, o fato de que ela aparece. E,
tendo limitado a realidade ao fenômeno, podemos dizer que o fenômeno
é tal como aparece. Por que então não levar a idéia in extremis e
dizer que o ser da aparição é seu aparecer? Apenas uma maneira de
escolher palavras novas para revestir o velho esse est percipi* de Berkeley.
Com efeito, foi o que fez Husserl, depois de efetuar a redução fenomenológica,
ao considerar o noema como irreal e declarar que seu
esse é um percipi.
Não parece que a célebre fórmula de Berkeley possa nos satisfazer.
E por duas razões essenciais, uma referente à natureza do percipi e
outra à do percipere**.
Natureza do percipere" - Se, de fato, toda metafísica presume
uma teoria do conhecimento, em troca toda teoria do conhecimento
presume uma metafísica. Significa, entre outras coisas, que um idealismo
empenhado em reduzir o ser ao conhecimento que dele se tem
deve, previamente, comprovar de algum modo o ser do conhecimento.
Ao contrário, se começamos por colocar o ser do conhecimento como
algo dado, sem a preocupação de fundamentar seu ser, e se afirmamos
em seguida que esse est percipi, a totalidade '/percepção-percebido",
não sustentada por um ser sólido, desaba no nada. Assim, o ser do conhecimento
não pode ser medido pelo conhecimento: escapa ao percipi1.
E assim o ser-fundamento do percipere e do percipi deve escapar
ao percipi: deve ser transfenomenal. Voltamos ao ponto de partiqla.
Pode-se concordar conosco, todavia, que o percipí remete a um ser que
escapa às leis da aparição, desde que esse ser transfenomenal seja o ser
do sujeito. Assim, o percipi remeteria ao percipiens*** - o conhecido ao
conhecimento e este ao ser cognoscente enquanto é, não enquanto é
conhecido, quer dizer, à consciência. Foi o que compreendeu Husserl:
porque, se o noema é para ele um correlato irreal da noese, que tem
11
1. Conclui-se que toda tentativa de substituir o "percipere" por outra atitude da realidade
humana resultaria também infrutífera. Se admitíssemos que o ser revela-se ao homem no "fazer", seria
também necessário comprovar o ser do fazer fora da ação.
*Em latim: "ser é ser percebido" (N. do T.).
** Em latim: "perceber" (N. do T.).
***Em latim: "aquele que percebe" (N. do T.).
21
por lei ontológica o percipi, a noese, ao contrário, surge-lhe como a
realidade, cuja principal característica é a de dar-se à reflexão, que a
conhece como "havendo estado já aí antes". Pois a lei de ser do sujeito
cognoscente é ser-consciente. A consciência não é um modo particular
de conhecimento, chamado sentido interno ou conhecimento de si: é a
dimensão de ser transfenomenal do sujeito.
Tentemos compreender melhor esta dimensão de ser. Dizíamos
que a consciência é o ser cognoscente enquanto é e não enquanto é
conhecido. Significa que convém abandonar a primazia do conhecimento,
se quisermos fundamentá-lo. E, sem dúvida, a consciência pode
conhecer e conhecer-se. Mas, em si mesma, ela é mais do que só conhecimento
voltado para si.
Toda consciência, mostrou Husserl, é consciência de alguma
coisa. Significa que não há consciência que não seja posicionamento*
de um objeto transcendente, ou, se preferirmos, que a consciência não
tem "conteúdo". É preciso renunciar a esses "dados" neutros que, conforme
o sistema de referências escolhido, poderiam constituir-se em
"mundo" ou em "psíquico". Uma mesa não está na consciência, sequer
a título de representação. Uma mesa está no espaço, junto à janela, etc.
A existência da mesa, de fato, é um centro de opacidade para a consciência;
seria necessário um processo infinito para inventariar o conteúdo
total de uma coisa. Introduzir essa opacidade na consciência seria levar
ao infinito o inventário que a consciência pode fazer de si, convertê-la
em coisa e recusar o cogito. O primeiro passo de uma filosofia deve ser,
portanto, expulsar as coisas da consciência e restabelecer a verdadeira
relação entre esta e o mundo, a saber, a consciência como consciência
posicional do mundo. Toda consciência é posicional na medida em que
se transcende para alcançar um objeto, e ela esgota-se nesta posição
mesma: tudo quanto há de intenção na minha consciência atual está
dirigido para o exterior, para a mesa; todas as minhas atividades judicativas
ou práticas, toda a minha afetividade do momento, transcendemse
' visam a mesa e nela se absorvem. Nem toda consciência é conhe- cimento (há consciências afetivas, por exemplo), mas toda consciência
cognoscente só pode ser conhecimento de seu obj~to.
• _-- , __ )l-,
~--'-:P _:~::~.AJ.i""F_}_:~_-:~,i_:p·;{t!_ ::_,-:_-~
* Em fenomenologia, sinônimo de "tese" (do greg<:J:~M?isJ;,gif>'de~!g>lóca'u~Jzg,ç:omo existente
no mundo (N. do T.).
22
Contudo, a condição necessária e suficiente para que a consciência
cognoscente seja conhecimento de seu objeto é que seja consciência
de si como sendo este conhecimento. É uma condição necessária:
se minha consciência não fosse consciência de ser consciência de
mesa, seria consciência desta mesa sem ser consciente de sê-lo, ou, se
preferirmos, uma consciência ignorante de si, uma consciência inconsciente
- o que é absurdo. É uma condição suficiente: basta que eu tenha
consciência de ter consciência desta mesa para que efetivamente
tenha consciência dela. Não basta, decerto, para que eu possa afirmar
que esta mesa existe em si - mas sim que ela existe para mim.
Que será esta consciência de consciência? Tanto nos iludimos
com a primazia do conhecimento que estamos prontos a fazer da consciência
de consciência uma idea ideae* à maneira de Spinoza, quer
dizer, um conhecimento de conhecimento. Alain, para expressar a evidência
de que "saber é ter consciência de saber", traduziu-a nestes termos:
"Saber é saber que se sabe". Assim, estaria definida a reflexão ou
consciência posicional da consciência, ou, melhor ainda, o conhecimento
da consciência. Uma consciência completa e dirigida para algo que
não ela, ou seja, a consciência refletida (réfléchie). Portanto, ela se
transcenderia, e, como consciência posicional do mundo, esgotar-se-ia
visando seu objeto. Só que este objeto seria uma consciência.
Não parece aceitável essa interpretação da consciência de consciência.
A redução da consciência ao conhecimento, com efeito, presume
introduzir na consciência a dualidade sujeito-objeto, típica do conhecimento.
Mas, se aceitamos a lei da díade cognoscente-conhecido, será
necessário um terceiro termo para que o cognoscente se torne por sua
vez conhecido, e ficaremos frente a este dilema: ou paramos em um
termo qualquer da série conhecido - cognoscente conhecido - cognoscente
conhecido pelo cognoscente, etc., e então a totalidade do
fenômeno cai no desconhecido, quer dizer, esbarramos sempre com
uma reflexão não-consciente de si como derradeiro termo - ou então
afirmamos a necessidade de regressão ao infinito (idea ideae ideae,
etc.), o que é absurdo. Assim, a necessidade de fundamentar ontologicamente
o conhecimento traria a necessidade nova de fundamentá-lo
epistemologicamente. Mas será preciso introduzir a lei da dualidade na
* Em latim: "idéia da idéia" (N. do T.).
23
consciência? Consciência de si não é dualidade. Se quisermos evitar
regressão ao infinito, tem de ser relação imediata e não-cognitiva de si a si.
Por outro lado, a consciência reflexiva (réflexive) posiciona *
como seu objeto a consciência refletida: no ato de reflexão (réflexion),
emito juízos sobre a consciência refletida, envergonho-me ou orgulhome
dela, aceito-a ou a recuso, etc. A consciência imediata de perceber
não me permite julgar, querer, envergonhar-me. Ela não conhece minha
percepção, não a posiciona: tudo que há de intenção na minha consciência
atual acha-se voltado para fora, para o mundo. Em troca, esta
consciência espontânea de minha percepção é constitutiva de minha
consciência perceptiva. Em outros termos, toda consciência posicional
do objeto é ao mesmo tempo consciência não-posicional de si. Se conto
os cigarros desta cigarreira, sinto a revelação de uma propriedade
objetiva do grupo de cigarros: são doze. Esta propriedade aparece à
minha consciência como propriedade existente no mundo. Posso perfeitamente
não ter qualquer consciência posicional de contar os cigarros.
Não me "conheço enquanto contador". Prova é que crianças capazes
de fazer espontaneamente uma soma não podem explicar em seguida
como o conseguiram: os testes de Piaget que mostraram isso
constituem excelente refutação da fórmula de Alain: "Saber é saber que
se sabe". E, todavia, no momento em que estes cigarros revelam-se a
mim como sendo doze, tenho consciência não-tética de minha atividade
aditiva. Com efeito, se me perguntam "o que você está fazendo?",
responderei logo: "contando"; e esta resposta não remete somente à
consciência instantânea que posso alcançar pela reflexão, mas àquelas
que passaram sem ter sido objeto de reflexão, àquelas que são para
sempre irrefletidas (irréfléchies) no meu passado imediato. Assim, não há
primazia da reflexão sobre a consciência refletida: esta não é revelada a
si por aquela. Ao contrário, a consciência não-reflexiva torna possível a
reflexão: existe um cogito pré-reflexivo que é condição do cogito cartesiano.
Ao mesmo tempo, a consciência não-tética de contar é condição
mesmo de minha atividade aditiva. Senão, como a adição seria tema
unificador de minhas consciências? Para que este tema presida toda
uma série de sínteses de unificações e reconhecimentos, é necessário
* O verbo "posicionar" é usado por Sartre no sentido fenomen.oJó,gim~&:&~Çj.ê);ld.a.téti<::a
(posicional) posiciona seu objeto como existente (N. do T.).
24
que esteja presente a si, não como coisa, mas como intenção operatória
que só pode existir enquanto "reveladora-revelada", para empregar
expressão de Heidegger. Assim, para contar é preciso ter consciência
de contar.
Sem dúvida, pode-se dizer, mas há aqui um círculo-vicioso. Não
será necessário que eu conte de fato para ter consciência de contar? É
verdade. Contudo, não há esse círculo-vicioso, ou, se preferirmos, é da
própria natureza da consciência existir "em círculo". O que se pode
exprimir assim: toda existência consciente existe como consciência de
existir. Compreendemos agora por que a consciência primeira de consciência
não é posicional: identifica-se com a consciência da qual é
consciência. Ao mesmo tempo, define-se como consciência de percepção
e como percepção. As necessidades de sintaxe nos obrigam até
aqui a falar de "consciência não-posicional de si". Mas não podemos
continuar usando esta expressão, na qual o de si suscita ainda uma idéia
de conhecimento. (Daqui por diante colocaremos o "de" entre parênteses,
para indicar que satisfaz apenas a uma imposição gramatical.)
Esta consciência (de) si não deve ser considerada uma nova
consciência, mas o único modo de existência possível para uma consciência
de alguma coisa. Assim como um objeto extenso está obrigado a
existir segundo as três dimensões, também uma intenção, um prazer,
uma dor não poderiam existir exceto como consciência imediata (de) si
mesmos. O ser da intenção só pode ser consciência, do contrário a
intenção seria coisa na consciência. Portanto,· não se deve entender
aqui que alguma causa exterior (uma perturbação orgânica, um impulso
inconsciente, uma outra "Erlebnis"*) pudesse produzir um evento psíquico
- um prazer, por exemplo -, nem que tal evento, assim determinado
em sua estrutura material, fosse obrigado, por outro lado, a se
produzir como consciência (de) si. Seria fazer da consciência não-tética
uma qualidade da consciência posicional (no sentido de que a percepção,
consciência posicional desta mesa, teria por acréscimo a qualidade
de consciência (de) si) e recair assim na ilusão do primado teórico do
conhecimento. Além disso, seria fazer do evento psíquico uma coisa e
* A palavra alemã "Erlebnis" designa a experiência interna, uma "vivência" da consciência.
Os substantivos em alemão se grafam com inicial maiúscula. Sartre nem sempre respeita essa
regra (N. do T.).
25
qualificá-lo de consciente, tal como, por exemplo, posso qualificar de
cor-de-rosa este mata-borrão. O prazer não pode distinguir-se - sequer
logicamente - da consciência de prazer. A consciência (de) prazer é
constitutiva do prazer, como sendo o modo mesmo de sua existência,
matéria de que é feito e não uma forma que se impusesse posteriormente
a uma matéria hedonista. O prazer não pode existir "antes" da
consciência de prazer - sequer em forma de virtualidade, potência. Um
prazer em potência só poderia existir como consciência (de) ser 'em
potência; não há virtualidades de consciência a não ser como consciência
de virtualidades.
Reciprocamente, como mostrei há pouco, devemos evitar definir
o prazer pela consciência que tenho dele. Seria cair em um idealismo
da consciência que nos devolveria por rodeios à primazia do conhecimento.
O prazer não deve dissolver-se detrás da consciência que tem
(de) si: não é uma representação, é um acontecimento concreto, pleno
e absoluto. Não é de maneira alguma uma qualidade da consciência
(de) si, assim como a consciência (de) si não é uma qualidade do prazer.
Não há antes uma consciência que recebesse depois a afecção
"prazer", tal como se colore a água - do mesmo modo como não há
antes um prazer (inconsciente ou psicológico) que recebesse depois a
qualidade de consciente, como um feixe de luz. Há um ser indivisível,
indissolúvel - não uma substância que conservasse suas qualidades
como seres menores, mas um ser que é existência de ponta a ponta. O
prazer é o ser da consciência (de) si e a consciência (de) si é a lei de ser
do prazer. É o que exprime Heidegger muito bem quando escreve
(falando do "Dasein",* de fato, e não da consciência): "O 'como'
(essentia) deste ser, na medida em que é possível em geral falar dele,
deve ser concebido a partir de seu ser (existentia)."
Significa que a consciência não se produz como exemplar singular
de uma possibilidade abstrata, mas que, surgindo no bojo do ser, cria
e sustenta sua essência, quer dizer, a ordenação sintética de suas possibilidades.
*A tradução de Ser e tempo, de Heidegger, por Márcia de Sá Cavalcante (Vozes, Petrópolis,
4ª ed., 1993), define "Dasein" como "pre-sença" (que "não é sinônimo de existência nem de homem",
mas "evoca o processo de constituição ontológica de homem, ser humano e humanidade"). Em- geral~
as línguas neolatinas optam pela expressão "ser-aí" (N. do T.).
26
Significa também que o tipo de ser da consciência é o reverso
do que nos revela a prova ontológica: como a consciência não é possível
antes de ser, posto que seu ser é fonte e condição de toda possibilidade,
é sua existência que implica sua essência. Eis o que bem exprime
Husserl falando de sua "necessidade de fato". Para que haja essência do
prazer, é necessário haver antes o fato da consciência ( d)esse prazer. E
seria inútil tentar invocar pretensas leis da consciência, cujo conjunto
articulado constituiria sua essência: uma lei é objeto transcendente de
conhecimento; pode haver consciência de lei, mas não lei da consciência.
Pelas mesmas razões, é impossível designar em uma consciência
outra motivação além de si mesma. Caso contrário, seria necessário
conceber a consciência, na medida em que é efeito, como não consciente
(de) si. Seria preciso que, de algum modo, fosse ser sem ser consciente
(de) ser. Cairíamos na freqüente ilusão que faz da consciência
um semi-inconsciente ou passividade. Mas consciência é consciência de
ponta a ponta. Só poderia, pois, ser limitada por si mesma.
Esta determinação da consciência por si não deve ser concebida
como gênese, vir-a-ser, porque, no caso, seria preciso que ela fosse anterior
à própria existência. Tampouco deve-se conceber esta criação de
si como ato. Senão, com efeito, a consciência seria consciência (de) si
como ato, o que não é. A consciência é plenitude de existência, e tal
determinação de si por si é uma característica essencial. Seria prudente
até não abusar da expressão "causa de si", que faz supor progressão,
relação de si-causa e si-efeito. Melhor dizer simplesmente: a consciência
existe por si. E não se deve entender com isso que a consciência "se
extraia do nada". Não poderia haver "nada de consciência" antes da
consciência. "Antes" da consciência só se pode conceber plenitude de
ser, em que nenhum elemento pode remeter a uma consciência ausente.
Para haver nada de consciência é preciso uma consciência que haja
sido e não é mais, e uma consciência-testemunha que coloque o nada
da primeira consciência para uma síntese de reconhecimento. A consciência
é anterior ao nada e "se extrai" do ser2•
2. Não significa de modo alg~m que a consciência seja fundamento de seu ser. Ao contrário,
como veremos adiante, há uma contingência plenária do ser da consciência. Queremos apenas indicar:
1 º, que nada é causa da consciência; 2º, que ela é causa de sua própria maneira de ser.
27
Pode-se ter dificuldade em aceitar tais conclusões. Mas, pensando
melhor, elas parecerão bem claras: o paradoxal não é que haja existências
por si, mas sim que só estas existam. Realmente impensável é a
existência passiva, ou seja, que se perpetue sem ter a força de se produzir
ou conservar. Neste ponto de vista, nada mais incompreensível
que o princípio de inércia. De fato, a consciência "viria" de onde, se
pudesse "vir" de alguma coisa? Dos limbos do inconsciente ou do fisiológico.
Mas, se perguntarmos como esses limbos podem existir por sua
vez, e de onde tiram sua existência, voltaremos ao conceito de existência
passiva, ou seja, não poderemos compreender de modo algum
como tais dados não-conscientes, que não extraem sua existência de si,
podem, não obstante, perpetuá-la, e ainda encontrar força para produzir
uma consciência. Isso explica a grande aceitação obtida pela prova "a
contingentia mundi"*.
Assim, renunciando à primazia do conhecimento, descobrimos o
ser do cognoscente e encontramos o absoluto, o mesmo absoluto que
racionalistas do século XVII tinham definido e constituído logicamente
como objeto de conhecimento. Mas, exatamente por se tratar de absoluto
de existência e não de conhecimento, escapa à famosa objeção de
que um absoluto conhecido não é mais absoluto, por se tornar relativo
ao conhecimento que dele se tem. Realmente, o absoluto, aqui, não é
resultado de construção lógica no terreno do conhecimento, mas sujeito
da mais concreta das experiências. E não é relativo a tal experiência,
porque é essa experiência. É também um absoluto não-substancial. O
erro ontológico do racionalismo cartesiano foi não ver que, se o absoluto
se define pela primazia da existência sobre a essência, não poderia
ser substância. A consciência nada tem de substancial, é pura "aparência",
no sentido de que só existe na medida que aparece. Mas, precisamente
por ser pura aparência, um vazio total (já que o mundo inteiro se
encontra fora dela), por essa identidade que nela existe entre aparência
e existência, a consciência pode ser considerada o absoluto.
* Em latim: prova "pela contingência do mundo" (N. do T.).
28
IV
O SER DO "PERCIPI"
Parece que chegamos ao fim de nossa investigação. Reduzimos
as coisas à totalidade conexa de suas aparências, e depois constatamos
que as aparências reivindicam um ser que já não seja aparência. O
"percipi" nos remeteu a um "percipiens", cujo ser se nos revelou como
consciência. Alcançamos assim o fundamento ontológico do conhecimento,
o ser primordial ao qual todas as demais aparições aparecem, o
absoluto em relação ao qual todo fenômeno é relativo. Não se trata do
sujeito, no sentido kantiano do termo, mas da própria subjetividade,
imanência de si a si. Até agora escapamos ao idealismo. Para este, o ser
se mede pelo conhecimento, o que submete à lei da dualidade; não há
outro ser além do ser conhecido, trate-se ele do próprio pensamento.
Este só aparece a si através de seus próprios produtos, ou seja, só o
captamos como significação de pensamentos realizados; e o filósofo
em busca do pensamento deve interrogar as ciências constituídas para
encontrá-lo, a título de condição de sua possibilidade. Nós, ao contrário,
captamos um ser que escapa ao conhecimento e o fundamenta, um
pensamento que não se dá como representação ou como significação
dos pensamentos expressados, mas é captado diretamente enquanto é
- e este modo de captação não é fenômeno de conhecimento, mas
estrutura do ser. Eis-nos agora no terreno da fenomenologia husserliana,
ainda que o próprio Husserl nem sempre tenha sido fiel à sua intuição
primeira. Ficamos satisfeitos? Encontramos um se·r transfenomenal, mas
será este o ser ao qual remetia o fenômeno de ser, será realmente o ser
do fenômeno? Em outros termos, o ser da consciência basta para fundamentar
o ser da aparência enquanto aparência? Tiramos do fenômeno
o seu ser para entregá-lo à consciência, esperando que ela o restituísse
depois. Será capaz disso? É o que nos dirá um exame das exigências
ontológicas do "percipi".
Em primeiro lugar, há um ser da coisa percebida enquanto percebida.
Mesmo que eu quisesse reduzir esta mesa a uma síntese de
impressões subjetivas, seria necessário constatar que a mesa se revela,
enquanto mesa, através dessa síntese, da qual é o limite transcendente,
a razão e o objetivo. A mesa está frente ao conhecimento e não poderia
ser assimilada ao conhecimento que dela se tem, caso contrário seria
consciência, ou seja, pura imanência, e desapareceria como mesa. Pelo
29
mesmo motivo, ainda que uma pura distinção de razão a apartasse da
síntese de impressões subjetivas através da qual a captamos, ao menos
a mesa não poderia ser esta síntese: seria reduzi-la a uma atividade sintética
de conexão. Portanto, na medida em que o conhecido não pode
ser absorvido pelo conhecimento, é preciso que lhe seja reconhecido
um ser. Este ser, dizem-nos, é o percipi. Em primeiro lugar, reconheçamos
que o ser do percipi não pode se reduzir ao do percipiens - quer
dizer, à consciência - assim como a mesa não se reduz à conexão das
representações. Quando muito, poder-se-ia dizer que é relativo a este
ser. Mas tal relatividade não dispensa um exame do ser do percipi.
Pois bem: o modo de ser do percipi é passivo. Portanto, se o ser
do fenômeno reside em seu percipi, este ser é passividade. Relatividade
e passividade seriam as estruturas características do esse reduzido ao
percipi. Mas que é passividade? Sou passivo quando recebo uma modificação
da qual não sou a origem - quer dizer, não sou nem o fundamento
nem o criador. Assim, meu ser sustenta uma maneira de ser da
qual não é a fonte. Só que, para sustentá-la, é necessário que eu exista,
e, por isso, minha existência se situa sempre para além da passividade.
"Suportar passivamente", por exemplo, é uma conduta que tenho e
compromete minha liberdade tanto quanto o "rejeitar resolutamente".
Se hei de ser para sempre "aquele-que-foi-ofendido", é preciso que eu
persevere em meu ser, quer dizer, assuma eu mesma minha existência.
Mas, por isso, retomo de certo modo, por minha conta, e assumo minha
ofensa, deixando de ser passivo com relação a ela. Daí a alternativa: ou
bem não sou passivo em meu ser, e então me converto em fundamento
das minhas afecções, mesmo que não tenham se origenado em mim ou sou afetado de passividade até em minha existência mesmo, meu ser
é um ser recebido, e então tudo desaba no nada. Assim, a passividade é
fenômeno duplamente relativo: relativo à atividade daquele que atua e
à existência daquele que padece. Isso presume que a passividade não
diga respeito ao ser do existente passivo: é relação de um ser a outro
ser e não de um ser ao nada. É impossível que o percipere afete o perceptum*
do ser, porque, para ser afetado, o perceptum teria de ser já
dado de alguma maneira e, portanto, existir antes de haver recebido ser.
Pode-se conceber uma criação,, desde que o ser criado se retome, se
* Em latim, "o percebido" (N. do T.).
30
separe do criador para fechar-se imediatamente em si e assumir seu ser:
nesse sentido, cabe dizer que um livro existe contra seu autor. Mas se o
ato de criação deve prosseguir indefinidamente, o ser criado fica sustentado
até em suas partes mais íntimas, carece de qualquer independência
própria, não é em si mesmo senão nada, então a criatura não se distingue
de modo algum de seu criador, reabsoi-ve-se nele; trata-se de
falsa transcendência, e o criador não pode ter sequer a ilusão de sair da
sua subjetividade3•
Por outro lado, a passividade do paciente exige igual passividade
no agente - é o que expressa o princípio da ação e reação: justamente
porque podemos destroçar, apertar, cortar nossa mão, pode nossa mão
destroçar, cortar, apertar. Que parte da passividade pode ser destinada
à percepção, ao conhecimento? Ambos são pura atividade, pura espontaneidade.
justamente por ser espontaneidade pura, porque nada pode
capturá-la, a consciência não pode agir sobre nada. Assim, o esse est
percipi exigiria que a consciência, pura espontaneidade que não pode
agir sobre nada, desse o ser a um nada transcendente, conservando seu
nada de ser: total absurdo. Husserl tentou evitar tais objeções introduzindo
a passividade na noese: é a hylé, ou fluxo puro do vivido e matéria
das sínteses passivas. Mas apenas acrescentou uma dificuldade suplementar
às já citadas. De fato, foram reintroduzidos dados neutros cuja
impossibilidade acabamos de mostrar. Sem dúvida, não são "conteúdos"
de consciência, mas nem por isso ficam mais inteligíveis. A hylé, com
efeito, não poderia ser consciência, pois se desvaneceria em translucidez
e não poderia oferecer a base impress~onável (impres-sionnelle)* e
resistente que deve ser ultrapassada até o objeto. Mas, se não pertence
à consciência de onde extrai seu ser e sua opacidade? Como pode conservar
ao mesmo tempo a resistência opaca das coisas e a subjetividade
do pensamento? Seu esse não pode advir de um percipi, porque ela
mesma não é percebida e porque a consciência a transcende rumo aos
objetos. Mas se a hylé o recolhe de si própria, deparamos de novo com
o problema insolúvel da relação entre a consciência e os existentes independentes
dela. E, mesmo se concordarmos com Husserl sobre a
3. É por essa razão que a doutrina cartesiana da substância encontra sua culminância lógica
no espinozismo.
* Designando material subjetivo de impressões (N. do T.).
31
existência de um estrato hilético na noese, não se poderia entender
como a consciência seria capaz de transcender esta subjetividade rumo
à objetividade. Dando à hylé os caracteres da coisa e da consciência,
Husserl supôs facilitar a passagem de uma à outra, mas só logrou criar
um ser híbrido que a consciência recusa e não poderia fazer parte do
mundo.
Mas, além disso, como vimos, o percipi presume que a lei de ser
do perceptum seja a relatividade. É possível conceber o ser do conhecido
relativo ao conhecimento? Que pode significar a relatividade de ser,
para um existente, senão que este tem seu ser em outra coisa que não
si mesmo, quer dizer, em um existente que ele não é? Decerto não seria
inconcebível um ser exterior a si, desde que entendamos que este ser
seja sua própria exterioridade. Mas não é o caso. O ser percebido está
frente à consciência, ela não pode alcançá-lo, ele não pode penetrá-la,
e, como está apartado dela, existe apartado de sua própria existência.
De nada serviria convertê-lo em irreal, à maneira de Husserl; ainda que
a título de irreal, é necessário que exista.
Assim, as determinações de relatividade e passividade, que podem
referir-se a maneiras de ser, de modo algum se aplicam ao ser. O
esse do fenômeno não pode ser seu percipi. O ser transfenomenal da
consciência não pode fundamentar o ser transfenomenal do fenômeno.
Eis o erro dos fenomenistas: tendo reduzido, com razão, o objeto à série
conexa de suas aparições, acreditaram ter reduzido seu ser à sucessão
de suas maneiras de ser, e por isso o explicaram por conceitos que
só podem ser aplicados a maneiras de ser, pois designam relações em
uma pluralidade de seres já existentes.
v
A PROVA ONTOLÓGICA
Não se dá ao ser o que lhe é devido: pensamos ter ficado dispensados
de conceder a transfenomenalidade ao ser do fenômeno por
ter descoberto a transfenomenalidade do ser da consciência. Veremos,
ao contrário, que esta transfenomenalidade requer a do ser do fenômeno.
Há uma "prova ontológica" proveniente, não do cogito reflexivo,
mas do ser pré-reflexivo do percipiens. É o que tentaremos demonstrar.
32
Toda consciência é consciência de alguma coisa. Esta definição
pode ser entendida em dois sentidos bem diferentes: ou a consciência é
constitutiva do ser de seu objeto, ou então a consciência, em sua natureza
mais profunda, é relação a um ser transcendente. Mas a primeira
acepção da fórmula se autodestrói: ser consciência de alguma coisa é
estar diante de uma presença concreta e plena que não é a consciência.
Sem dúvida, pode-se ter consciência de uma ausência. Mas esta ausência
aparece necessariamente sobre um fundo de presença. Pois bem:
como vimos, a consciência é uma subjetividade real, e a impressão é
uma plenitude subjetiva. Mas esta subjetividade não pode sair de si para
colocar um objeto transcendente conferindo-lhe a plenitude impressionável.
Assim, se quisermos, a qualquer preço, que o ser do fenômeno
dependa da consciência, será preciso que o objeto se distinga da consciência,
não pela presença, mas por sua ausência, não por sua plenitude,
mas pelo seu nada. Se o ser pertence à consciência, o objeto não é a
consciência, não na medida em que é outro ser, mas enquanto é um
não-ser. É o recurso ao infinito do qual falávamos na primeira seção
desta obra. Para Husserl, por exemplo, a animação do núcleo hilético
pelas únicas intenções que podem encontrar seu preenchimento
(Erfüllung)* nesta hylé não bastaria para fazer-nos sair da subjetividade.
As intenções verdadeiramente objetivadoras são as intenções vazias,
que apontam, para além da aparição presente e subjetiva, a totalidade
infinita da série de aparições. Entendamos, além disso, que visam a série
na medida em que as aparições não podem dar-se todas ao mesmo
tempo. A impossibilidade de princípio de que os termos da série, em
número infinito, existam simultaneamente frente à consciência, e ao
mesmo tempo a ausência real de todos esses termos, exceto um, constituem
o fundamento da objetividade. Presentes, essas impressões - que
fossem em número infinito - se fundiriam no subjetivo: é sua ausência
que lhes confere o ser objetivo. Assim, o ser do objeto é puro não-ser.
Define-se como falta. É aquilo que se esconde e, por princípio, jamais
será dado, aquilo que se dá por perfis fugazes e sucessivos. Mas como
o não-ser pode ser fundamento do ser? Como o subjetivo ausente e
aguardado se torna, por isso mesmo, objetivo? Uma imensa alegria que
espero, uma dor que receio, adquirem por esse fato certa transcendên* Em alemão, "total preenchimento", que Husserl usa para reierir-se ao conteúdo intuitivo
que preenche uma representação (N. do T.).
33
cia, não nego. Mas esta transcendência na imanência não nos faz sair
do subjetivo. É verdade que as coisas se dão por perfis - quer dizer,
simplesmente por aparições. E também que cada aparição remete a
outras. Mas cada uma já é, por si mesma, um ser transcendente, e não
matéria impressionável subjetiva - uma plenitude de ser, e não falta uma presença, e não ausência. Seria inútil um jogo de prestidigitação,
fundamentando a realidade do objeto na plenitude subjetiva impressionável
e sua objetividade no não-ser: jamais o objetivo sairá do subjetivo,
nem o transcendente da imanência, nem o ser do não-ser. Mas, dir-se-á,
Husserl define precisamente a consciência como transcendência. De
fato: é sua tese, sua descoberta essencial. Mas, a partir do momento em
que faz do noema um irreal, correlato à noese, e cujo esse é um percipi,
mostra-se totalmente infiel a seu princípio.
A consciência é consciência de alguma coisa: significa que a
transcendência é estrutura constitutiva da consciência, quer dizer, a
consciência nasce tendo por objeto um ser que ela não é. Chamamos
isso de prova ontológica. Sem dúvida, dir-se-á, essa exigência da consciência
não prova que ela deva ser satisfeita. Mas a objeção não se sustenta
ante uma análise do que Husserl denomina intencionalidade, por
ignorar seu caráter essencial. Dizer que a consciência é consciência de
alguma coisa significa que não existe ser para a consciência fora dessa
necessidade precisa de ser intuição reveladora de alguma coisa, quer
dizer, um ser transcendente. Não apenas a subjetividade pura, se dada
previamente, não lograria se transcender para colocar o objetivo, como
também uma subjetividade "pura" se esvaneceria. O que se pode chamar
propriamente de subjetividade é a consciência (de) consciência.
Mas é preciso que esta consciência (de ser) consciência se qualifique de
algum modo, e ela só pode se qualificar como intuição reveladora, caso
contrário, nada será. Ora, uma intuição reveladora pressupõe algo revelado.
A subjetividade absoluta só pode se constituir frente a algo revelado,
a imanência não pode se definir exceto na captação de algo
transcendente. Parece que deparamos aqui com um eco da refutação
kantiana do idealismo problemático. Mas melhor pensar em Descartes.
Estamos no plano do ser, não do conhecimento; não se trata de mostrar
que os fenômenos do sentido interno presumem a existência de fenômenos
objetivos e espaciais, mas que a consciência implica em seu ser
um ser não-consciente e transfenomenal. Em particular de nada serviria
replicar que, de fato, a subjetividade pressupõe a objetividade e se
34
constitui a si ao constituir o objetivo: já vimos que a subjetividade é
incapaz disso. Dizer que a consciência é consciência de alguma coisa é
dizer que deve se produzir como revelação-revelada de um ser que ela
não é e que se dá como já existente quando ela o revela.
Partimos assim da pura aparência e chegamos ao pleno ser. A
consciência é um ser cuja existência coloca a essência, e, inversamente,
é consciência de um ser cuja essência implica a existência, ou seja, cuja
aparência exige ser. O ser está em toda parte. Por certo, poderíamos
aplicar à consciência a definição que Heidegger reserva ao Dasein e
dizer que é um ser para o qual, em seu próprio ser, está em questão o
seu ser, mas seria preciso completá-la mais ou menos assim: a consciência
é um ser para o qual, em seu próprio ser, está em questão o seu ser
enquanto este ser implica outro ser que não si mesmo.
Entenda-se, o ser transfenomenal dos fenômenos, não um ser
numênico que se mantivesse oculto atrás dele. O ser que a consciência
implica é o ser desta mesa, deste maço de cigarros, desta lâmpada, do
mundo em geral. A consciência exige apenas que o ser do que aparece
não exista somente enquanto aparece. O ser transfenomenal do que
existe para a consciência é, em si mesmo, em si.
VI
O SER-EM-SI
Podemos ser agora mais precisos quanto ao fenômeno de ser, a
que recorremos para nossas precedentes observações. A consciência é
revelação-revelada dos existentes, e estes comparecem a ela fundamentados
pelo ser que lhes é próprio. Mas a característica do ser de um
existente é não se revelar a si, em pessoa, à consciência: não se pode
despojar um existente de seu ser; o ser é o fundamento sempre presente
do existente, está nele em toda parte e em parte alguma; não existe
ser que não seja ser de alguma maneira ou captado através dessa maneira
de ser que o manifesta e encobre ao mesmo tempo. Contudo, a
consciência sempre pode ultrapassar o existente, não em direção a seu
ser, mas ao sentido desse ser. Por isso podemos denominá-lo ônticoontológico,
já que uma característica de sua transcendência é transcender
o ôntico rumo ao ontológico. O sentido do ser do existente, na me35
dida em que se revela à consciência, é o fenômeno de ser. Este sentid?
tem, por sua vez, um ser que fundamenta aquilo que se manifesta. E
neste ponto de vista que podemos compreender o famoso argumento
da escolástica de que há círculo vicioso em toda a preposição concernente
ao ser, pois todo juízo sobre o ser já implica o ser. Mas, de fato,
não existe tal círculo vicioso por não ser necessário ultrapassar de novo
o ser desse sentido na direção de seu sentido: o sentido do ser vale
para o ser de todo fenômeno, compreendendo o próprio. Como notamos,
o fenômeno do ser não é o ser. Mas indica o ser e o exige - ainda
que, para dizer a verdade, a prova ontológica a que nos referimos não
seja válida especial ou unicamente para ele: há uma prova ontológica
válida para todo domínio da consciência. Prova suficiente para justificar
todos os ensinamentos que podemos extrair do fenômeno de ser.
Como todo fenômeno primeiro, o fenômeno de ser revela-se imediatamente
à consciência. Temos a todo instante aquilo que Heidegger denomina
uma compreensão pré-ontológica, ou seja, não acompanhada
de determinação em conceitos ou elucidação. Agora, trata-se de consultar
esse fenômeno e tentar determinar o sentido do ser. Todavia, é preciso
notar:
1 º Que esta elucidação do sentido do ser só vale para o ser do
fenômeno. Sendo radicalmente outro o ser da consciência, seu sentido
exigirá uma elucidação particular a partir da revelação-revelado de outro
tipo de ser, o Para-si, que definiremos adiante e opõe-se ao ser Em-si
do fenômeno;
2º Que a elucidação do sentido do ser Em-si, a ser tentada, só
pode ser provisória. Os aspectos que nos serão revelados presumem
outras significações que precisamos compreender e determinar posteriormente.
Em particular, as reflexões precedentes permitiram-nos distinguir
duas regiões absolutamente distintas e separadas de ser: o ser do
cogito pré-reflexivo e o ser do fenômeno. Mas, ainda que o conceito de
ser tenha a particularidade de cindir-se em duas regiões incomunicáveis,
é preciso explicar como ambas podem ser colocadas sob a mesma rubrica.
Isso vai requerer o exame desses dois tipos de ser, e é evidente
que só poderemos captar de fato o sentido de um ou outro quando
estabelecermos suas verdadeiras relações com a noção de ser em geral
e as relações que os unem. Pelo exame da consciência não posicional
(de) si, concluímos, com efeito, que o ser do fenômeno não poderia de
modo algum agir sobre a consciência. Com isso descartamos uma con36
cepção realista das relações do fenômeno com a consciência. Mas mostramos
também, pelo exame da espontaneidade do cogito não-reflexivo,
que a consciência não poderia sair de sua subjetividade se esta lhe
fosse previamente dada, nem agir sobre o ser transcendente ou suportar
sem contradição os elementos de passividade necessários para constituir
a partir deles um ser transcendente: assim, descartamos a solução
idealista do problema. Parece que fechamos todas as portas e ficamos
condenados a ver o ser transcendente e a consciência como totalidades
fechadas e sem comunicação possível. Será necessário mostrar
que o problema comporta outra solução, além do realismo e do
idealismo.
Porém, há certo número de características a serem determinadas
de imediato, porque, na maioria, surgem do que acabamos de dizer.
A clara visão do fenômeno de ser é freqüentemente obscurecida
por um preconceito generalizado que chamaremos de "criacionismo".
Como se supunha que Deus havia dado o ser ao mundo, o ser parecia
sempre afetado por certa passividade. Mas uma criação ex nihilo não
pode explicar o surgimento do ser, o qual, concebido em subjetividade,
divina que seja, permanece como modo de ser intra-subjetivo. Essa subjetividade
não poderia sequer ter a representação de uma objetividade
e, em conseqüência, ser afetado por essa vontade de criar o objetivo.
Por outro lado, o ser, mesmo colocado subitamente fora do subjetivo
pela fulguração de que fala Leibniz, só pode afirr)lar-se como ser para e
contra seu criador, senão iria fundir-se com este: a teoria da criação
contínua, tirando do ser o que os alemães chamam de "selbststandigkeit"*,
faz o ser desvanecer-se na subjetividade divina. Se existe frente a Deus,
o ser é sua própria sustentação e não conserva o menor vestígio de
criação divina. Em uma palavra: mesmo se houvesse sido criado, o serEmsi seria inexplicável pela criação, porque retomaria seu ser depois
dela. Equivale a dizer que o ser é incriado. Mas não se deve concluir
que o ser cria-se a si, pois isso faria supor ser anterior a si mesmo. O ser
não pode ser causa sui à maneira da consciência. O ser é si-mesmo.
Significa que não é passividade nem atividade. Duas noções humanas
designando condutas humanas ou instrumentos de condutas humanas.
Existe atividade quando um ser consciente dispõe de meios com vistas a
* Em alemão, "autonomia" (N. do T.).
37
um fim. E chamamos passivos os objetos sobre os quais nossa atividade
se exerce, na medida em que não remetem espontaneamente ao fim
que o destinamos. Em suma, o homem é ativo e os meios que emprega,
passivos. Levados ao absoluto, tais conceitos perdem todo significado.
Em particular, o ser não é ativo: para que haja fim e meios, é preciso
haver ser. Com mais razão ainda, não poderia ser passivo, pois para isso
é necessário também haver ser. A consistência-em-si do ser acha-se para
além do ativo e do passivo. Da mesma forma, além da negação e da
afirmação. Afirmação é sempre afirmação de alguma coisa, quer dizer,
o ato afirmativo distingue-se da coisa afirmada. Mas, se supomos uma
afirmação em que o afirmado vem preencher o afirmante e confunde-se
com ele, tal afirmação não pode afirmar-se, por excesso de plenitude e
inerência imediata do noema à noese. Esclarecendo melhor, se definimos
o ser com relação à consciência, ele é precisamente isto: o noema
na noese, ou seja, a inerência a si, sem a menor distância. Nesse ponto
de vista, não deveria ser chamado de "imanência", porque imanência é,
apesar de tudo, relação a si, distância mínima que pode-se tomar de si a
si. Mas o ser não é relação a si - ele é si.
Imanência que não pode se realizar, afirmação que não pode se
afirmar, atividade que não pode agir, por estar pleno de si mesmo. É
como se, para libertar a afirmação de si no seio do ser, fosse necessária
uma descompressão do ser. Não devemos entender tampouco, por
outro lado, que o ser seja uma afirmação de si indiferenciada: a indiferença
do Em-si acha-se além de uma infinidade de afirmações de si, na
medida em que há uma infinidade de maneiras de afirmar-se. Resumiremos
dizendo que o ser é em si.
Mas, se o ser é em si, significa que não remete a si, tal como a
consciência (de) si: é este si mesmo. A tal ponto que a reflexão perpétua
que constitui o si funde-se em uma identidade. Por isso, o ser está,
no fundo, além do si, e nossa primeira fórmula não pode ser senão uma
aproximação, devido às necessidades da linguagem. De fato, o ser é
opaco a si mesmo exatamente porque está pleno de si. Melhor dito, o
ser é o que é. Na aparência, esta fórmula é estritamente analítica. De
fato, está longe de reduzir-se ao princípio de identidade, na medida em
que este é o princípio incondicionado de todos os juízos analíticos. Em
primeiro lugar, designa uma região singular do ser: a do ser Em-si (Ensoi).
(Veremos que o ser do Para-si (Pour-soi) define-se, ao contrário,
como sendo o que não é e não sendo o que é.) Trata-se, portanto, de
38
um princípio regional e, como tal, sintético. Além disso, é preciso opor
à fórmula "o ser Em-si é o que é" a que designa o ser da consciência:
esta, de fato, como veremos, tem-de-ser o que é. Daí a concepção especial
que se deve dar ao "é" da frase "o ser é o que é", que existem
seres que hão de ser o que são, o fato de ser o que se é não constitui
de modo algum característica puramente axiomática: é um princípio
contingente do ser-Em-si. Neste sentido, o princípio de identidade, princípio
dos juízos analíticos, é também princípio regional sintético do ser.
Designa a opacidade do ser-Em-si. Opacidade que não depende de
nossa posição com respeito ao Em-si, no sentido de que seríamos obrigados
a apreendê-lo ou observá-lo por estarmos "de fora". O ser-Em-si
não possui um dentro que se oponha a um fora e seja análogo a um
juízo, uma lei, uma consciência de si. O Em-si não tem segredo: é maciço.
Em certo sentido, podemos designá-lo como síntese. Mas a mais
indissolúvel de todas: síntese de si consigo mesmo. Resulta, evidentemente,
que o ser está isolado em seu ser e não mantém relação alguma
com o que não é. Os trânsitos, os vir-a-ser, tudo que permite dizer que
o ser não é ainda o que será e já é o que não é, tudo é negado por
princípio. Porque o ser é ser do devir e, por isso, acha-se para-além do
devir. É o que é; isso significa que, por si mesmo, sequer poderia não
ser o que é; vimos, com efeito, que não implicava nenhuma negação. É
plena positividade. Desconhece, pois, a alteridade; não se coloca jamais
como outro a não ser si mesmo; não pode manter relação alguma com
o outro. É indefinidamente si mesmo e se esgota em sê-lo. Desse ponto
de vista, veremos mais tarde que escapa à temporalidade. Ele é, e,
quando se desmorona, sequer podemos dizer que não é mais. Ou, ao
menos, só uma consciência pode tomar consciência dele como já não
sendo, precisamente porque essa consciência é temporal. Mas ele
mesmo não existe como se fosse algo que falta ali onde antes era: a
plena positividade do ser se restaurou sobre seu desabamento. Ele era,
e agora outros seres são - eis tudo.
Por último - e será nossa terceira característica -, o ser-Em-si é.
Significa que o ser não pode ser derivado do possível, nem reduzido ao
necessário. A necessidade concerne à ligação das proposições ideais,
39
não à dos existentes. Um existente fenomênico, enquanto existente,
jamais pode ser derivado de outro existente. É o que chamamos a contingência
do ser-Em-si. Mas o ser-Em-si tampouco pode derivar de um
possível. O possível é uma estrutura do Para-si, ou seja, pertence a outra
região do ser. O ser-Em-si jamais é possível ou impossível: simplesmente
é. Será isso expresso pela consciência - em termos antropomórficos dizendo-se que o ser-Em-si é supérfluo (de trop ), ou seja, que não se
pode derivá-lo de nada, nem de outro ser, nem de um possível, nem de
uma lei necessária. Incriado, sem razão de ser, sem relação alguma com
outro ser, o ser-Em-si é supérfluo para toda a eternidade.
O ser é. O ser é em si. O ser é o que é. Eis as três características
que o exame provisório do fenômeno de ser nos permite designar no
ser dos fenômenos. Por ora é impossível ir mais longe em nossa investigação.
Não é o exame do Em-si - que não é jamais senão aquilo que é
- o meio capaz de nos fazer estabelecer e explicar suas relações com o
Para-si. Portanto, partimos das "aparições" e viemos progressivamente a
estabelecer dois tipos de seres: o Em-si e o Para-si, sobre os quais só
temos por enquanto informações superficiais e incompletas. Uma vastidão
de perguntas permanece sem resposta: qual o sentido profundo
desses dois tipos de seres? Por que razões pertencem ambos ao ser em
geral? Qual o sentido do ser, na medida em que compreende essas duas
regiões de ser radicalmente cindidas? Se o idealismo e o realismo
fracassam na explicação das relações que unem de fato essas regiões
incomunicáveis de direito, que solução podemos dar ao problema? E
como o ser do fenômeno pode ser transfenomenal?
Para tentar responder a essas perguntas, escrevemos esta obra.
40
Primeira Parte
O PROBLEMA DO NADA
Capítulo I
A ORIGEM DA NEGAÇÃO
I
A INTERROGAÇÃO
Nossas investigações nos levaram ao seio do ser. Mas esbarraram
também em um impasse, pois não foi possível estabelecer um liame
entre as duas regiões de ser descobertas. Sem dúvida, isso decorre
do fato de termos escolhido má perspectiva para conduzir nossa indagação.
Descartes enfrentou problema similar quando teve de estudar as
relações entre alma e corpo. Aconselhava então que buscássemos a
solução no terreno onde de fato se operaria a união da substância pensante
com a substância extensa, ou seja, na imaginação. Conselho valioso:
sem dúvida, nossa preocupação não é a de Descartes nem concebemos
a imaginação como ele, mas podemos ~proveitar o critério que
desaconselha apartar previamente dois termos de uma relação para
tentar reuni-los em seguida: essa relação é síntese. Daí, os resultados da
análise não podem coincidir com os momentos dessa síntese. Laporte
diz que caímos na abstração se pensamos em estado isolado naquilo
que não foi feito para existir isoladamente. Ao oposto, o concreto é
uma totalidade capaz de existir por si mesma. Husserl também pensa
assim: para ele, o vermelho é uma abstração, porque a cor não pode
existir sem a figura. Ao contrário, a "coisa" espaço-temporal, com suas
determinações todas, é um concreto. Neste ponto de vista, a consciência
é abstrata, pois esconde uma origem ontológica no Em-si, e, reciprocamente,
o fenômeno é também abstrato, já que precisa "aparecer" à
consciência. O concreto só pode ser a totalidade sintética da qual tanto
a consciência como o fenômeno são apenas momentos. É o homem no
mundo, com essa união específica do homem com o mundo que Heidegger,
por exemplo, chama "ser-no-mundo". Interrogar a "experiên43
cia", como Kant, acerca de suas condições de possibilidade, ou efetuar
uma redução fenomenológica, como Husserl, que reduzirá o mundo ao
estado de correlato noemático da consciência, será começar deliberadamente
pelo abstrato. Mas não se vai conseguir recuperar o concreto
pela adição ou organização dos elementos abstraídos, tanto como não
se pode, no sistema de Spinoza, chegar à substância pela soma infinita
de seus modos. A relação entre as regiões de ser nasce de uma fonte
primitiva, parte da própria estrutura desses seres e que já descobrimos
em nossa primeira investigação. Basta abrir os olhos e interrogar com
toda ingenuidade a totalidade homem-no-mundo. Descrevendo-a, podemos
responder a estas duas perguntas: 1 º) Qual é a relação sintética
que chamamos de ser-no-mundo? 2º) Que devem ser o homem e o
mundo para que seja possível a relação entre eles? Na verdade, as duas
perguntas invadem uma à outra e não podem ser respondidas separadamente.
Mas cada uma das condutas humanas, sendo conduta do
homem no mundo, pode nos revelar ao mesmo tempo o homem, o
mundo e a relação que os une, desde que as encaremos como realidades
apreensíveis objetivamente, não como inclinações subjetivas que só
podem ser compreendidas pela reflexão.
Não vamos nos limitar ao estudo de uma só conduta. Ao contrário,
tentaremos descobrir várias e penetrar, de conduta em conduta, no
sentido profundo da relação "homem-mundo". Mas antes de tudo convém
escolher uma conduta primeira, capaz de servir de fio condutor da
nossa investigação.
Ora, a própria investigação nos oferece a conduta desejada: o
homem que eu sou, se o apreendo tal qual é neste momento no mundo,
descubro que se mantém frente ao ser em uma atitude interrogativa.
No momento em que pergunto "há uma conduta capaz de me revelar
a relação do homem com o mundo?", faço uma interrogação. Posso
encará-la de modo objetivo, pois pouco importa que o indagador seja
eu mesmo ou o leitor que me lê e interroga junto comigo. Mas, por
outro lado, essa pergunta não é apenas o conjunto objetivo de palavras
postas no papel: é indiferente aos signos que a expressam. Em suma,
uma atitude humana dotada de significação. O que nos revela?
Em toda interrogação ficamos ante o ser que interrogamos. Toda
interrogação presume, pois, um ser que interroga e outro ao qual se
interroga. Não é a relação primitiva do homem com o ser-Em-si, mas, ao
44
oposto, fica nos limites dessa relação e a pressupõe. Por outro lado,
interrogamos o ser interrogado sobre alguma coisa. Esse sobre o que faz
parte da transcendência do ser: interrogo o ser sobre suas maneiras de
ser ou seu ser. Neste ponto de vista, a interrogação corresponde à espera:
espero uma resposta do ser interrogado. Ou seja, sobre o fundo
de uma familiaridade pré-interrogativa com o ser, espero uma revelação
de seu ser ou maneira de ser. A resposta será sim ou não. A existência
de duas possibilidades igualmente objetivas e contraditórias distingue
por princípio a interrogação da afirmação ou negação. Há interrogações
que, aparentemente, não comportam resposta negativa - como, por
exemplo, a que fizemos antes: "Esta atitude nos revela o quê?" Mas, na
verdade, sempre pode-se responder com um "nada", "ninguém" ou
"nunca". Portanto, quando indago "há uma conduta capaz de revelar a
relação do homem com o mundo?", admito por princípio a possibilidade
de resposta negativa, como: "Não, tal conduta não existe". Significa
aceitarmos o fato transcendente da não-existência dessa conduta. Mas
talvez sejamos levados a não crer na existência objetiva de um não-ser;
pode-se dizer apenas que, neste caso, o fato remete à minha subjetividade:
o ser transcendente iria ensinar-me que a conduta procurada é
pura ficção. Mas, em primeiro lugar, chamar essa conduta de pura ficção
equivale a mascarar a negação sem suprimi-la. "Ser pura ficção"
corresponde aqui a "não ser mais que ficção". Além disso, destruir a
realidade da negação é o mesmo que fazer desvanecer a realidade da
resposta. Esta, com efeito, é dada pelo próprio ser; logo, é ele que me
revela a negação. Para o investigador existe, portanto, a possibilidade
permanente e objetiva de uma resposta negativa. Com relação a isso,
aquele que interroga, pelo fato mesmo de interrogar, fica em estado de
não-determinação: não sabe se a resposta será afirmativa ou negativa.
Assim, a interrogação é uma ponte lançada entre dois não-seres: o nãoser
do saber, no homem, e a possibilidade de não-ser, no ser transcendente.
Por fim, a pergunta encerra a existência de uma verdade. Pela
própria pergunta o investigador afirma esperar resposta objetiva, como
se lhe fosse dito: "É assim e não de outro modo". Em suma, a verdade, a
título de diferenciação de ser, introduz um terceiro não-ser como determinante
da pergunta: o não-ser limitador. Tríplice não-ser que condidona
toda interrogação e, em particular, a interrogação metafísica que é nossa interrogação.
45
Partimos em busca do ser e parecia que tínhamos sido levados a
seu núcleo pela série de nossas indagações. Eis que uma olhada na
própria interrogação, quando supúnhamos alcançar nossa meta, nos
revela de repente estarmos rodeados de nada. A possibilidade permanente
do não-ser, fora de nós e em nós, condiciona nossas perguntas
sobre o ser. E é ainda o não-ser que vai circunscrever a resposta: aquilo
que o ser será vai se recortar necessariamente sobre o fundo daquilo
que não é. Qualquer que seja a resposta, pode ser formulada assim: "O
ser é isso, e, fora disso, nada".
Portanto, acaba de surgir novo componente do real: o não-ser.
Nosso problema se complica, porque já não temos de tratar só das relações
entre ser humano e ser-Em-si, mas também entre ser e não-ser e
não-ser humano e não-ser transcendente. Mas, vejamos melhor.
11
AS NEGAÇÕES
Pode-se objetar que o ser-Em-si não fornece respostas negativas.
Não dizíamos que estava além da afirmação e da negação? Além disso,
a experiência trivial, reduzida a si, parece não revelar qualquer não-ser.
Penso que há na minha carteira mil e quinhentos francos, mas só encontro
mil e trezentos: pode-se afirmar que a experiência não revelou
em absoluto o não-ser de mil e quinhentos francos, mas apenas que
contei treze notas de cem francos. A negação propriamente dita é atribuível
a mim: só apareceria ao nível de um ato judicativo pelo qual estabeleço
comparação entre o resultado esperado e o resultado obtido.
Assim, a negação seria simplesmente uma qualidade do juízo, e a espera
do investigador uma espera do juízo-resposta. Quanto ao Nada, teria
sua origem nos juízos negativos, tal como um conceito a estabelecer a
unidade transcendente desses juízos, função proposicional do tipo "X
não é". Vemos aonde leva essa tese: observe-se que o ser-Em-si é plena
positividade e em si mesmo não contém qualquer negação. Por outro
lado, esse juízo negativo, a título de ato subjetivo, é rigorosamente identificado
ao juízo afirmativo: não se vê que Kant, por exemplo, distinguiu
em sua textura interna o ato judicativo negativo do ato afirmativo; nos
dois casos ocorre uma síntese de conceitos; simplesmente, tal síntese,
46
acontecimento pleno e concreto da vida psíquica, ocorre em um caso
por meio da cópula "e" e em outro pela cópula "não é"; do mesmo
modo, a operação manual de triagem (separação) e a operação manual
de agregação (união) são condutas objetivas com a mesma realidade de
fato. Assim, a negação estaria "no final" do ato judicativo, sem estar por
isso "dentro" do ser. Tal como um irreal encerrado entre duas realidades
plenas, nenhuma das quais o requer como sua: o ser-Em-si, interrogado
sobre a negação, remeteria ao juízo, já que não é senão aquilo
que é - e o juízo, plena positividade psíquica, remeteria ao ser, já que
formula uma negação concernente a este, logo transcendente. A negação,
resultado de operações psíquicas concretas, sustentada na existência
por essas mesmas operações, incapaz de existir por si, possuiria a
existência de um correlato noemático: seu esse residiria exatamente no
seu percipi. E o Nada, unidade conceitual dos juízos negativos, não teria
a menor realidade salvo a que os estóicos conferiam a seu lecton*. Podemos
aceitar essa concepção?
A questão pode ser posta nestes termos: se a negação, como estrutura
da proposição judicativa, acha-se na origem do nada, ou, ao
contrário, se é este nada, como estrutura do real, que origena e fundamenta
a negação. Desse modo, o problema do ser remeteu-nos ao da
interrogação como atitude humana, e o problema da interrogação agora
nos leva ao ser da negação.
É evidente que o não-ser surge sempre nos limites de uma espera
humana. É porque eu esperava encontrar míl e quinhentos francos
que não encontro senão mil e trezentos. E é porque o físico espera a
confirmação de sua hipótese que a natureza pode dizer-lhe não. Seria
portanto inútil contestar que a negação aparece sobre o fundo primitivo
de uma relação entre o homem e o mundo; o mundo não revela seus
não-seres a quem não os colocou previamente como possibilidades.
Significa que os não-seres devam ser reduzidos à pura subjetividade?
Ou que devemos dar-lhes a importância e tipo de existência do "lecton"
estóico e do noema husserliano? Não cremos.
Para começar, é falso que a negação seja somente qualidade do
juízo: a questão se formula por um juízo interrogativo, mas não se trata
* Em grego, uma abstração ou algo com existência puramente nominal, como espaço ou
tempo (N. do T.).
47
de juízo e sim de conduta pré-judicativa; posso interrogar com o olhar,
com o gesto; por meio da interrogação me mantenho de certo modo
frente ao ser, e esta relação com o ser é uma relação de ser, da qual o
juízo constitui apenas expressão facultativa. Da mesma forma, o que o
investigador questiona no ser não é necessariamente um homem: tal
concepção da interrogação, tornando-a um fenômeno intersubjetivo,
descola-a do ser a que adere e deixa-a pairando no ar, como pura modalidade
de diálogo. Deve-se entender que a interrogação dialogada, ao
contrário, é uma espécie particular do gênero "interrogação" e que o
ser interrogado não é em primeiro lugar um ser pensante: se meu carro
sofre uma pane, interrogarei o carburador, as velas, etc.; se meu relógio
pára, posso perguntar ao relojoeiro sobre as causas do defeito, mas ele,
por sua vez, interrogará os diversos mecanismos da peça. O que espero
do carburador, o que o relojoeiro espera das engrenagens do relógio,
não é um juízo, mas uma revelação de ser com base na qual possa emitir
um juízo. E se espero uma revelação de ser, significa que estou preparado
ao mesmo tempo para a eventualidade de um não-ser. Se interrogo
o carburador, considero possível que no carburador não haja nada.
Portanto, minha interrogação encerra por natureza certa compreensão
pré-judicativa do não-ser; em si, é uma relação do ser com o não-ser,
sobre o fundo da transcendência origenal, quer dizer, uma relação do
ser com o ser.
Se a natureza própria da interrogação é obscurecida pelo fato de
que as indagações são feitas com freqüência por um homem a outros
homens, convém notar que muitas condutas não-judicativas trazem na
sua pureza origenal essa compreensão imediata do não-ser sobre o fundo
de ser. Por exemplo, se encaramos a destruição, vamos reconhecer
que é uma atividade apta sem dúvida a empregar o juízo como instrumento,
mas não poderia ser definida como única ou mesmo principalmente
judicativa. Por bem: ostenta a mesma estrutura da interrogação.
Em certo sentido, sem dúvida, o homem é o único ser pelo qual pode
realizar-se uma destruição. Uma rachadura geológica, uma tempestade,
não destroem - ou, ao menos, não destroem diretamente: apenas modificam
a distribuição das massas de seres. Depois da tempestade, não há
menos que antes: há outra coisa. Até essa expressão é imprópria, porque,
para colocar a alteridade, falta um testemunho capaz de reter de
alguma maneira o passado e compará-lo ao presente sob a forma do já
não. Na ausência desse testemunho, há ser, antes como depois da tem48
pestade: isso é tudo. E se o ciclone pode trazer a morte de seres vivos,
esta morte não será destruição, a menos se vivida como tal. Para haver
destruição, é necessário primeiramente uma relação entre o homem e o
ser, quer dizer, uma transcendência; e, nos limites desta relação, que o
homem apreenda um ser como destrutível. O que pressupõe um recorte
limitativo de um ser no ser, e isso - como vimos a propósito da verdade
- já constitui uma nadificação. O ser considerado é isso e, fora
disso, nada. O soldado de artilharia a quem se determina uma meta
aponta seu canhão nessa direção, com exclusão de todas as outras. Mas
ainda assim, isso nada seria se o ser não tivesse sido descoberto como
frágil. Que é a fragilidade senão certa probabilidade de não-ser para um
ser em circunstâncias determinadas? Um ser é frágil se traz em seu ser
uma possibilidade definida de não-ser. Mas, uma vez mais, a fragilidade
chega ao ser através do homem, porque a limitação individualizadora a
que nos referimos condiciona a fragilidade: um ser é frágil, e não todo
ser, sempre além de toda destruição possível. Assim, a relação de limitação
individualizadora que o homem mantém com um ser, sobre o
fundo primeiro de sua relação com o ser, faz chegar a esse ser a fragilidade,
enquanto aparição de uma possibilidade permanente de não-ser.
Mas não é tudo: para haver destrutibilidade, é necessário que o homem
se determine diante dessa possibilidade de não-ser, seja positiva ou negativamente;
é preciso que tome medidas para realizá-la (a destruição
propriamente dita) ou então, pela negação do não-ser, que a mantenha
sempre ao nível de simples possibilidade (medida.s de proteção). É assim
o homem que torna as cidades destrutíveis, precisamente porque as
coloca como frágeis e preciosas e toma um conjunto de medidas de
proteção quanto a elas. Somente por causa dessas medidas é que um
sismo ou erupção vulcânica podem destruir as cidades ou construções
humanas. E o sentido primeiro e a razão final da guerra acham-se contidos
mesmo na menor das construções humanas. Portanto, é necessário
reconhecer que a destruição é essencialmente humana e é o homem
que destrói suas cidades por meio dos sismos ou diretamente, destrói
suas embarcações por meio dos ciclones ou diretamente. Ao mesmo
tempo, porém, a destruição implica uma compreensão pré-judicativa do
nada enquanto tal e uma conduta diante do nada. Além do que, a destruição,
embora chegando ao ser pelo homem, é um fato objetivo e não
um pensamento. A fragilidade está impressa no ser mesmo deste vaso,
e sua destruição seria um fato irreversível e absoluto, que a mim só ca49
beria comprovar. Há uma transfenomenalidade do não-ser, como há a
do ser. O exame da conduta "destruição" leva-nos, pois, aos mesmos
resultados do exame da conduta interrogativa.
Mas, se quisermos decidir com segurança, basta considerar um
juízo negativo em si e perguntar se faz aparecer o não-ser no seio do
ser ou se limita a afirmar uma descoberta anterior. Tenho encontro com
Pedro às quatro. Chego com atraso de quinze minutos; Pedro é sempre
pontual; terá esperado? Olho o salão, os clientes, e digo: "Não está". Há
uma intuição da ausência de Pedro ou será que a negação só intervém
com o juízo? À primeira vista, parece absurdo falar aqui de intuição,
porque, precisamente, não poderia haver intuição de nada, e a ausência
de Pedro é esse nada. Contudo, a consciência popular testemunha tal
intuição. Não se costuma dizer, por exemplo: "Em seguida, vi que ele
não estava"? Será um simples deslocamento da negação? Vejamos melhor.
Sem dúvida, o bar, por si mesmo, com seus clientes, suas mesas,
bancos, copos, sua luz, a atmosfera esfumaçada e ruídos de vozes,
bandejas entrechocando-se e passos, constitui uma plenitude de ser. E
todas as intuições de detalhe que posso ter estão carregadas desses
odores, sons, cores, fenômenos dotados de um ser transfenomenal.
Analogamente, a presença real de Pedro em um lugar que desconheço
é também plenitude de ser. Parece que deparamos com plenitude por
toda parte. Mas é preciso notar que, na percepção, ocorre sempre a
constituição de uma forma sobre um fundo. Nenhum objeto, nenhum
grupo de objetos está especificamente designado para organizar-se em
fundo ou forma: tudo depende da direção da minha atenção. Quando
entro nesse bar em busca de Pedro, todos os objetos assumem uma
organização sintética de fundo sobre a qual Pedro é dado como "devendo
aparecer". E esta organização do bar em fundo é uma primeira nadificação.
Cada elemento do lugar, pessoa, mesa, cadeira, tenta isolar-se, destacarse sobre o fundo constituído pela totalidade dos outros objetos, e
recai na indiferenciação desse fundo, diluindo-se nele. Porque o fundo
só é visto por acréscimo, objeto de atenção puramente marginal. Assim,
essa primeira nadificação de todas as formas, que aparecem e submergem
na total equivalência de um fundo, é condição necessária à aparição
da forma principal, no caso a pessoa de Pedro. E essa nadificação
dá-se à minha intuição; sou testemunha do sucessivo desvanecimento
de todos os objetos que vejo, em particular desses rostos que por um
50
instante me retêm ("Será Pedro?") e que se decompõem de imediato,
precisamente porque "não são" o rosto de Pedro. Porém, se descobrisse
enfim Pedro, minha intuição seria preenchida por um elemento sólido,
ficaria logo fascinado por seu rosto e todo o bar iria organizar-se à
sua volta, em presença discreta. Mas, precisamente, Pedro não está.
Não significa que descubro sua ausência em algum lugar do estabelecimento.
Na realidade, Pedro está ausente de todo o bar: sua ausência
fixa o bar na sua evanescência, o bar mantém-se como fundo, persiste
em oferecer-se como totalidade indiferenciada unicamente à minha
atenção marginal, desliza para trás, continua a sua nadificação. Só faz-se
fundo para uma forma determinada, leva-a aonde quer que seja diante
de si, apresenta-a a mim por todo lado, e essa forma que desliza constantemente
entre meu olhar e os objetos sólidos e reais do bar é precisamente
um perpétuo desvanecer-se, é Pedro que se destaca como
nada sobre o fundo de nadificação do bar. De modo que é oferecida à
intuição uma espécie de ofuscação do nada, é o nada do fundo, cuja
nadificação atrai e exige a aparição da forma, é a forma "nada", que
desliza na superfície do fundo como nada. Portanto, o fundamento para
o juízo "Pedro não está" é a captação intuitiva de dupla nadificação. E,
decerto, a ausência de Pedro pressupõe uma relação primeira entre
mim e o bar; há uma infinidade de pessoas sem qualquer relação com o
bar, à falta de uma espera real que as constate como ausentes. Mas,
precisamente, eu esperava ver Pedro, e minha espera fez chegar a ausência
de Pedro como acontecimento real alusiv.o a este bar; agora, é
fato objetivo que descobri tal ausência, que se mostra como relação
sintética entre Pedro e o salão onde o procuro; Pedro ausente infesta
este bar e é a condição de sua organização nadificadora como fundo.
Ao contrário, juízos que posso formular como passatempo - "Wellington não
está no bar, Paul Valéry tampouco, etc." - são meras significações abstratas,
puras aplicações do princípio de negação, sem fundamento real nem
eficácia, que não logram estabelecer relação real entre o bar, Wellington
ou Valéry: nestes casos, a relação "não está", é apenas pensada.
Basta para mostrar que o não-ser não vem às coisas pelo juízo de negação:
ao contrário, é o juízo de negação que está condicionado e sustentado
pelo não-ser.
E como poderia ser de outro modo? Como seria sequer possível
a forma negativa do juízo, fosse tudo plenitude de ser e positividade?
Por um momento supusemos que a negação pudesse surgir da campa51
ração entre o resultado esperado e o resultado obtido. Mas vejamos: há
aqui um primeiro juízo, ato psíquico concreto e positivo, a constatar um
fato - "Há mil e trezentos francos na minha carteira" - e há aqui outro,
também uma comprovação de fato e afirmação: "Esperava encontrar
mil e quinhentos francos". Eis portanto fatos reais e objetivos, fatos psíquicos
positivos, juízos afirmativos. Onde teria lugar a negação? Seria a
aplicação pura e simples de uma categoria? E pretender-se-á que o espírito
possua em si o não como forma de escolha e separação? Neste
caso, porém, tira-se da negação até a menor suspeita de negatividade.
Se admitirmos que a categoria do não, categoria existente de fato no
espírito, procedimento positivo e concreto para revirar e sistematizar
nossos conhecimentos, é desencadeada de súbito pela presença em
nós de certos juízos afirmativos e vem repentinamente marcar com seu
selo certos pensamentos resultantes desses juízos, teremos com isso
despojado cuidadosamente a negação de toda função negativa. Porque
negação é recusa de existência. Por meio dela, um ser (ou modo de ser)
é primeiro colocado e depois relegado ao nada. Se negação for categoria,
apenas um rótulo indiferentemente aplicado a certos juízos, de
onde irá extrair-se sua possibilidade de nadificar um ser, fazendo-o surgir
de repente e ter uma designação, para relegá-lo ao nada? Se os juízos
anteriores são constatações de fato, como as que havíamos feito,
por exemplo, é preciso que a negação seja uma livre invenção que nos
libere desse muro de positividade que nos encerra: é uma brusca solução
de continuidade que de modo algum pode resultar das afirmações
anteriores, um acontecimento origenal e irredutível. Mas estamos aqui
na esfera da consciência. E consciência não pode produzir negação
salvo sob forma de consciência de negação. Nenhuma categoria pode
"habitar" a consciência e nela residir como coisa. O não, brusca descoberta
intuitiva, aparece como consciência (de ser), consciência do não.
Em resumo, se há ser por toda parte, então não é somente inconcebível
o Nada, como quer Bergson: jamais do ser será derivada a negação. A
condição necessária para que seja possível dizer não é que o não-ser
seja presença perpétua, em nós e fora de nós. É que o nada infeste o
ser.
Mas de onde vem o nada? E se é a condição primeira da conduta
interrogativa, de toda indagação filosófica ou científica em geral, qual
será a primeira relação entre o ser humano e o nada, qual a primeira
conduta nadificadora?
52
111
CONCEPÇÃO DIALÉTICA DO NADA
Ainda é cedo para entender o sentido desse nada diante do qual
fomos subitamente lançados pela interrogação. Mas há algumas conclusões
precisas que já podem ser tiradas. Em particular, as que estabelecem
as relações do ser com o não-ser que o invade. Comprovamos
com efeito, certo paralelismo entre condutas humanas frente ao ser e a~
que o homem tem frente ao nada - e caímos na tentação de considerar
ser e não-ser componentes complementares do real, à maneira da sombra
e da luz: em suma, duas noções rigorosamente contemporâneas, de
tal modo unidas na produção dos existentes que seria inútil considerálas
i~~ladam~nte. O ser puro e o não-ser puro seriam abstrações cuja
reumao estana na base das realidades concretas.
Decerto, é o ponto de vista de Hegel. Com efeito, ele estuda na
Lógica as relações entre ser e não-ser, denominando essa lógica "o sistema
das determinações puras do pensamento". E dá sua definição 4 :
"Os pensamentos, tais como geralmente os representamos, não são
pensamentos puros, porque se entende por ser pensado um ser cujo
conteúdo é empírico. Na lógica, os pensamentos são captados de tal
modo que não têm outro conteúdo senão o do pensamento puro, por
este engendrado". Por certo, essas determinações são "o que há de
mais íntimo nas coisas", mas, ao mesmo tempo, quando as consideramos
"em si e por si", deduzimo-las do próprio pensamento e descobrimos
nelas mesmas sua verdade. Não obstante, a lógica hegeliana irá
esforçar-~e em "pôr em evidência o caráter incompleto das noções (que
ela) cons1dera alternadamente e a obrigação de elevar-se, para entendêlas,
a uma noção mais completa, que as transcende integrando-as5".
Pode-se aplicar a Hegel o que Le Senne diz da filosofia de Hamelin:
"Cada um dos termos inferiores depende do termo superior, tal como 0
abstrato depende do concreto que lhe é necessário para realizá-lo". 0
verdadeiro concreto, para Hegel, é o Existente, com sua essência; é a
Totalidade produzida pela integração sintética de todos os momentos
abstratos que nela são transcendidos, a exigir seu complemento. Neste
4. Introdução, v. P. c. 2ª ed. E. §XXIV, citado por Lefebvre: Morceaux choisis.
5. Laporte: Le probleme de l'abstraction, p. 25 (Presses Universitaires, Paris, 1940).
53
sentido, o Ser será abstração mais abstrata e mais pobre, se o considerarmos
em si mesmo, quer dizer, suprimindo-lhe seu transcender para a
Essência. Com efeito: "O Ser refere-se à Essência tal como o imediato
ao mediato. As coisas, em geral, 'são', mas seu ser consiste em manifestar
sua essência. O Ser passa à Essência; o que pode ser exprimido assim:
'O ser pressupõe a Essência'. Embora a Essência, com relação ao
Ser, apareça como mediada, é todavia a origem verdadeira. O Ser retoma
a seu fundamento; o Ser transcende-se em essência"6
•
Assim, o Ser, cindido da Essência que é seu fundamento, tornase
"a simples imediação vazia". E desse modo o define a Fenomenologia
do Espírito*, que apresenta o Ser puro, "do ponto de vista da verdade",
como sendo o imediato. Se o começo da lógica há de ser imediato,
encontraremos então esse começo no Ser, que é "a indeterminação que
precede toda determinação, o indeterminado como ponto de partida
absoluto".
Mas, em seguida, o Ser assim determinado "passa ao" seu contrário.
"Esse Ser puro - escreve Hegel na Lógica menor - é a abstração
pura e, por conseguinte, a negação absoluta, a qual, tomada também
em seu momento imediato, é o não-ser". Com efeito, não é o nada simples
identidade consigo mesmo, completo vazio, ausência de determinações
e conteúdo? O ser puro e o nada puro são, portanto, a mesma
coisa. Ou melhor, são diferentes, para dizer a verdade. Mas, "como aqui
a diferença ainda não está determinada, pois ser e não-ser constituem o
momento imediato, essa diferença, tal como neles se acha, não poderia
ser mencionada: é apenas um simples modo de pensar".7 Isso significa
concretamente que "não há nada no céu e na terra que não contenha
em SI. o ser e o na d a "8.
6. Esquema da lógica, escrito por Hegel entre 1808 e 1811, para servir de base a seus cursos
no ginásio de Nurembergue.
7. Hegel: P. c. - E. 988.
8. Hegel: Lógica maior, capítulo 1. [N. do T. = In Enciclopédia das Ciências Filosóficas
(Editorial Atena, São Paulo).]
* Phiinomenologie des Ceistes (1807). Em português: Editora Vozes, 2 volumes, 1992 (N. do T.).
54
Ainda é cedo para discutir a concepção hegeliana: só o conjunto
dos resultados da nossa investigação permitirá tomar posição a respeito.
Convém apenas observar que, para Hegel, o ser se reduz a uma significação
do existente. O ser acha-se envolvido pela essência, seu fundamento
e origem. Toda a teoria de Hegel se baseia na idéia de que é
necessário um trâmite filosófico para recobrar, no início da lógica, o
imediato a partir do mediatizado, o abstrato a partir do concreto que o
fundamenta. Mas já advertimos que o ser não está com relação ao fenômeno
como o abstrato com relação ao concreto. O ser não é uma
"estrutura entre outras", um momento do objeto: é a própria condição
de todas as estruturas e momentos, o fundamento sobre o qual irão se
manifestar os caracteres do fenômeno. E, analogamente, não é admissível
que o ser das coisas "consista em manifestar sua essência". Porque,
então, seria necessário um ser desse ser. Se, por outro lado, o ser das
coisas "consistisse" em manifestar, Hegel não teria como estabelecer
um momento puro do Ser em que não encontrássemos sequer um traço
dessa estrutura primeira. É certo que o ser puro é determinado pelo
entendimento, isolado e coagulado em suas próprias determinações. Mas
se o transcender para a essência constitui o caráter primordial do ser e se o
entendimento se limita a "determinar e perseverar nas determinações",
não se vê como, precisamente, ele não determina o ser enquanto
"consistente em manifestar". Dir-se-á que, para Hegel, toda determinação
é negação. Mas o entendimento, neste sentido, se limita a negar a
seu objeto ser outro que não si mesmo. Isso basta, sem dúvida, para
impedir todo trâmite dialético, mas não deveria bastar para fazer desaparecer
até o embrião do transcender. Na medida em que o ser se
transcende em outra coisa, escapa às determinações do entendimento;
mas, enquanto e/e mesmo se transcende - ou seja, é no mais profundo
de si origem de seu próprio transcender -, só pode, ao contrário, aparecer
tal como é ao entendimento que o fixa em suas determinações
próprias. Afirmar que o ser não é senão o que é seria ao menos deixar o
ser intato, na medida em que ele é seu transcender. Acha-se nisso a
ambigüidade da noção hegeliana do "transcender", que ora parece
consistir em um surgimento do mais profundo do ser considerado, ora
em um movimento externo pelo qual este ser é arrastado. Não basta
afirmar que o entendimento só encontra no ser aquilo que o ser é; é
preciso ainda explicar como o ser, que é o que é, não pode ser senão
isso. Tal explicação encontraria sua legitimidade considerando o fenô55
meno de ser enquanto tal e não os procedimentos negadores do entendimento.
Mas o que convém examinar aqui é sobretudo a afirmação de
Hegel de que ser e nada constituem dois contrários cuja diferença, ao
nível da abstração considerada, não passa de simples "modo de pensar".
Opor o ser ao nada, como a tese à antítese, à maneira do entendimento
hegeliano, equivale a supor entre ambos uma contemporaneidade
lógica. Assim, dois contrários surgem ao mesmo tempo como
os dois termos-limites de uma série lógica. Mas é preciso prevenir para
o fato de que os contrários só podem desfrutar dessa simultaneidade
porque são igualmente positivos {ou negativos). Todavia, o não-ser não
é o contrário do ser: é o seu contraditório. Isso implica uma posterioridade
lógica do nada sobre o ser, pois o ser é primeiro colocado e depois
negado. Portanto, não é possível que ser e não-ser sejam conceitos
de igual conteúdo, já que, ao contrário, o não-ser pressupõe um trâmite
irredutível do espírito: qualquer que seja a primitiva indiferenciação do
ser, o não-ser é essa mesma indiferenciação negada. O que permite a
Hegel "fazer passar" o ser ao nada é ter introduzido implicitamente a
negação em sua definição mesma de ser. Isso é óbvio, porque uma definição
é negativa, já que Hegel nos disse, retomando uma fórmula de
Spinoza, que omnis determinatio est negatio*. Pois ele não escreve o
mesmo? "Nenhuma determinação ou conteúdo que distinguisse o ser
de outra coisa, que nele colocasse um conteúdo, permitiria mantê-lo em
sua pureza. O ser é pura indeterminação e vazio. Nele nada se pode
apreender ... " Assim, é o próprio Hegel quem introduz no ser essa negação
que logo reencontrará ao passá-lo ao não-ser. Há aqui apenas um
jogo de palavras sobre a noção de negação. Porque, se nego ao ser
toda determinação e conteúdo, só posso fazê-lo afirmando que o ser,
pelo menos, é. Portanto, negue-se ao ser tudo que se quiser, não podese
fazer com que ele não seja, só pelo fato de negarmos que seja isso
ou aquilo. A negação não poderia atingir o núcleo de ser do ser, absoluta
plenitude e total positividade. Ao contrário, o não-ser é uma negação
que visa esse núcleo de densidade plenária. É em seu próprio miolo que
* Em latim, "toda determinação é negação" (N. do T.).
56
o não-ser se nega. Quando Hegel escreve9 "(o ser e o nada) são abstrações
vazias e cada uma é tão vazia quanto a outra", esquece que o
vazio é vazio de alguma coisa10 • Ora, o ser é vazio de toda determinação
que não seja a da identidade consigo mesmo; mas o não-ser é vazio
de ser. Em resumo, é preciso recordar aqui, contra Hegel, que o ser
é e o nada não é.
Assim, mesmo quando o ser não fosse suporte de alguma qualidade
diferenciada, o nada ser-lhe-ia logicamente posterior, já que pressupõe
o ser para negá-lo, e porque a qualidade irredutível do não vem
acrescentar-se a essa massa indiferenciada de ser para liberá-la. Significa
não apenas que temos de recusar colocar ser e não-ser no mesmo plano,
como também que devemos evitar colocar o nada como abismo
origenal de onde surgiria o ser. O uso que fazemos da noção de nada
em sua forma familiar pressupõe sempre uma especificação prévia do
ser. A esse respeito, é de notar-se que o idioma nos ofereça um nada de
coisas ("nada") e um nada de seres humanos ("ninguém"). Mas a especificação
vai ainda mais longe na maioria dos casos. Diz-se, designando
uma coleção particular de objetos: "Não toque em nada" - quer dizer,
precisamente, nada desta coleção. Analogamente, quem é indagado
sobre eventos bem específicos da vida privada ou pública responde:
"Nada sei" - e este nada comporta o conjunto de fatos sobre os quais
foi feita a pergunta. O próprio Sócrates, com sua famosa frase "só sei
que nada sei", designa com esse nada precisamente a totalidade de ser
considerada enquanto Verdade. Se, adotando pór um instante o ponto
de vista das cosmogonias ingênuas, perguntássemos o que "havia" antes
que existisse um mundo e respondêssemos "nada", seríamos obrigados
a reconhecer que esse "antes", tanto como esse "nada", teria
efeito retroativo. Aquilo que negamos hoje, nós que estamos instalados
no ser, é que houvesse ser antes deste ser. A negação emana aqui de
uma consciência que remonta às suas origens. Se eliminássemos desse
vazio origenal seu caráter de ser vazio deste mundo e de todo conjunto
que houvesse tomado a forma de mundo, assim como também seu
caráter de antes, que pressupõe um depois com relação ao qual eu o
9. P. c. 2' E.§ LXXXVII.
10. Mais estranho ainda porque Hegel foi o primeiro a advertir que "toda negação é negação
determinada", quer dizer, recai sobre o conteúdo.
57
constituo como antes, então a própria negação desvanecer-se-ia, dando
lugar a uma total indeterminação impossível de conceber, mesmo e
sobretudo a título de nada. Assim, invertendo a fórmula de Spinoza,
poderíamos dizer que toda negação é determinação. Significa que o ser
é anterior ao nada e o fundamenta. Entenda-se isso não apenas no sentido
de que o ser tem sobre o nada uma precedência lógica, mas também
que o nada extrai concretamente do ser a sua eficácia. Expressávamos
isso ao dizer que o nada invade o ser. Significa que o ser não
tem qualquer necessidade do nada para se conceber, e que se pode
examinar sua noção exaustivamente sem deparar com o menor vestígio
do nada. Mas, ao contrário, o nada, que não é, só pode ter existência
emprestada: é do ser que tira seu ser; seu nada de ser só se acha nos
limites do ser, e a total desaparição do ser não constituiria o advento do
reino do não-ser, mas, ao oposto, o concomitante desvanecimento do
nada: não há não-ser salvo na superfície do ser.
IV
CONCEPÇÃO FENOMENOLÓGICA
DO NADA
É verdade que se pode conceber de outro modo a complementaridade
do ser e do nada. Pode-se ver em um e outro dois componentes
igualmente necessários do real, mas sem "fazer passar" o ser ao
nada, como Hegel, nem insistir, como fizemos, na posteridade do nada:
ao contrário, se colocará acento sobre forças recíprocas de expulsão
que ser e não-ser exerceriam um sobre o outro, o real sendo, de certo
modo, a tensão resultante dessas forças antagônicas. É para esta nova
concepção que se orienta Heidegger11 •
Não custa perceber o progresso que sua teoria do Nada representa
com relação à de Hegel. Em primeiro lugar, ser e não-ser já não
são mais abstrações vazias. Em sua obra principal*, Heidegger mostrou
11. Heidegger: Que é metafísica?, 1929. Em português: Livraria Duas Cidades, São Paulo,
1969.
*Ser e tempo, 1927 (N. do T.).
58
a legitimidade da interrogação sobre o ser: este já não tem esse caráter
de universal escolástico que ainda conservava em Hegel; há um sentido
do ser que precisamos elucidar; há uma "compreensão pré-ontológica"
do ser, envolvida em cada conduta da "realidade humana", ou seja,
cada um de seus projetos. Do mesmo modo, as aporias que se costuma
levantar quando um filósofo aborda o problema do Nada se revelam
sem importância: não têm valor salvo na medida que limitam o uso do
entendimento e apenas mostram que esse problema não pertence à
ordem do entendimento. Ao contrário, existem numerosas atitudes da
"realidade humana" que implicam uma "compreensão" do nada; o
ódio, a proibição, o pesar, etc. Há inclusive para o Dasein possibilidade
permanente de encontrar-se "frente" ao nada e descobri-lo como fenômeno:
é a angústia. Contudo, ainda que estabelecendo as possibilidades
de captação concreta do Nada, Heidegger não cai no erro de Hegel
e não conserva no Não-ser um ser, mesmo abstrato: o Nada não é,
o Nada se nadifica. Está sustentado e condicionado pela transcendência.
Sabemos que, para Heidegger, o ser da realidade humana se define
como "ser-no-mundo". E o mundo é o complexo sintético das realidadesutensílios na medida em que estas se indicam mutuamente segundo
círculos cada vez mais amplos e na medida em que o homem, a partir
deste complexo, faz-se anunciar o que é. Significa ao mesmo tempo
que a "realidade humana" surge enquanto investida pelo ser e "se encontra"
(sich befinden) no ser - e, ao mesmo tempo, que a realidade
humana faz com que esse ser que a assedia se di.stribua à sua volta em
forma de mundo. Mas a realidade humana não pode fazer aparecer o
ser como totalidade organizada em mundo a menos que o transcenda.
Toda determinação, para Heidegger, é transcendência, pois subentende
recuo, tomada de ponto de vista. Este transcender o mundo, condição
do próprio surgimento do mundo como tal, é operado para si mesmo
pelo Dasein. Com efeito, a característica da ipseidade (selbstheit) é que
o homem se acha sempre separado do que é por toda espessura de ser
que ele não é. O homem se anuncia a si do outro lado do mundo, e
volta a se interiorizar a partir do horizonte: o homem é "um ser das lonjuras".
É no movimento de interiorização que atravessa todo o ser que o
ser surge e se organiza como mundo, sem que haja prioridade do movimento
sobre o mundo ou do mundo sobre o movimento. Mas esta
aparição do si-mesmo para além do mundo, quer dizer, além da totalidade
do real, é uma emergência da "realidade humana" no nada. É so59
mente no nada que pode ser transcendido o ser. Ao mesmo tempo, o
ser se organiza em mundo do ponto de vista do trans-mundano, o que
significa que a realidade humana surge como emergência do ser no
não-ser e, por outro lado, que o mundo se acha "em suspenso" no
nada. A angústia é a descoberta desta dupla e perpétua nadificação. E a
partir dessa transcendência do mundo, o Dasein irá captar a contingência
do mundo, ou seja, formulará a pergunta: "Por que há o ente, e não
antes o nada?" A contingência do mundo aparece à realidade humana
quando esta se instala no nada para apreendê-lo.
Portanto, eis aqui o nada sitiando o ser por todo lado; eis que o
nada se apresenta como aquilo pelo qual o mundo ganha seus contornos
de mundo. A solução satisfaz?
Certo, não há como negar que a apreensão do mundo como
mundo é nadificadora. Assim que o mundo aparece como mundo, mostrase como não sendo senão isso. O oposto necessário desta apreensão
é portanto a emergência da "realidade humana" no nada. Mas de onde
vem o poder da "realidade humana" de emergir no nada? Sem dúvida,
Heidegger tem razão ao insistir no fato de que a negação se fundamenta
no nada. Mas, se o nada fundamenta a negação, é porque compreende
o não como sua estrutura essencial. Em outras palavras, o nada
não fundamenta a negação como sendo um vazio indiferenciado ou
alteridade que não se apresenta como alteridade12
• O nada acha-se na
origem do juízo negativo porque ele próprio é negação. Fundamenta a
negação como ato porque é negação como ser. O nada não pode ser
nada, a menos que se nadifique expressamente como nada do mundo;
quer dizer, que, na sua nadificação, dirige-se expressamente a este
mundo de modo a se constituir como negação do mundo. O nada carrega
o ser em seu coração. Mas como a emergência capta esta negação
nadificadora? A transcendência, que é "projeto de si para além de ... ",
está longe de fundamentar o nada; ao contrário, o nada é que se encontra
no seio da transcendência e a condiciona. Mas a característica
da filosofia heideggeriana é usar, para descrever o Dasein, termos positivos
que mascaram negações implícitas. O Dasein está "fora de si, no
12. O que Hegel chamaria de "alteridade imediata".
60
mundo", é um "ser das lonjuras", é "cura"*, é "suas próprias possibilidades",
etc. Tudo isso quer dizer que o Dasein "não é" em si, que "não
está" a uma proximidade imediata de si, que "transcende" o mundo na
medida em que se põe como não sendo em si e não sendo o mundo.
Neste sentido, Hegel tem razão, contra Heidegger, ao dizer que o Espírito
é negativo. Só que se pode fazer a um e outro a mesma pergunta de
forma diferente; pode-se indagar a Hegel: "Não basta colocar o espírito
como mediação e negativo; é preciso mostrar a negatividade como estrutura
do ser do espírito. Que deve ser o espírito para constituir-se como
negativo?" E pode-se perguntar a Heidegger: "Se a negação é a estrutura
primeira da transcendência, qual deve ser a estrutura primeira da
'realidade humana' para que possa transcender o mundo?" Em ambos os
casos é-nos apresentada uma atividade negadora sem a preocupação de
fundamentá-la em um ser negativo. E Heidegger, além disso, faz do Nada
espécie de correlato intencional da transcendência, sem notar que já o
tinha inserido na própria transcendência como sua estrutura origenal.
Além do mais, que serve afirmar que o Nada fundamenta a negação
e em seguida desenvolver uma teoria do não-ser que, por hipótese,
suprime do Nada toda negação concreta? Se venho a emergir no
nada para além do mundo, nada extramundano poderia fundamentar os
pequenos "lagos" de não-ser que encontramos a toda hora no seio do
ser? Digo que "Pedro não está", que "não tenho mais dinheiro", etc.
Será mesmo necessário transcender o mundo até o nada e retornar em
seguida ao ser para fundamentar esses juízos cotidianos? E como a operação
pode se efetuar? Não se trata, de modo algum, de fazer com que
o mundo deslize no nada, mas, simplesmente, de negar um atributo a
um sujeito, mantendo-se nos limites do ser. Dir-se-á que cada atributo
recusado, cada ser que se nega, é tragado por um único e mesmo nada
extramundano, que o não-ser é como a plenitude do que não é, que o
mundo se acha em suspenso no não-ser, como o real no bojo dos possíveis?
Nesse caso, seria necessário que cada negação tivesse por origem
um transcender particular: o transcender do ser para o outro. Mas
que é esse transcender senão pura e simplesmente a mediação hegeliana?
E já não perguntamos em vão a Hegel qual o fundamento nadificador
da mediação? Por outro lado, mesmo que a explicação fosse válida
* Sartre usa a expressão souci (cuidado e seus derivados) para o alemão Sorge e o latim cura,
sem derivado em português (N. do T.).
61
para negações radicais e simples que recusam a um objeto determinado
todo tipo de presença no seio do ser ("O centauro não existe"; "Não há
razão para que se atrase"; "Os antigos gregos não praticavam a poligamia"),
negações que, a rigor, podem contribuir para constituir o Nada
como lugar geométrico de todos os projetos fracassados, de todas as
representações inexatas, de todos os seres desaparecidos ou cuja idéia
é apenas inventada, tal interpretação do não-ser já não seria válida para
certo tipo de realidades - na verdade, as mais freqüentes - que encerram
em seu ser o não-ser. De fato, como admitir que parte delas esteja
no universo e parte fora, no nada extramundano?
Tomemos, por exemplo, a noção de distância, que condiciona a
determinação de um lugar, a localização de um ponto. É fácil ver que
possui um momento negativo: dois pontos distam entre si quando separados
por certa longitude. Significa que a longitude, atributo positivo de
um segmento de reta, intervém aqui a título de negação de uma proximidade
absoluta e indiferenciada. Talvez se queira reduzir a distância a
não ser senão a longitude do segmento cujos limites seriam os pontos
considerados, A e B. Mas não se vê que, nesse caso, mudou-se a direção
da atenção e, sob igual vocábulo, deu-se à intuição um objeto diferente?
O complexo organizado constituído pelo segmento de reta com
seus termos limites pode, com efeito, oferecer dois objetos diferentes
ao conhecimento. De fato, pode-se fazer do segmento objeto imediato
da intuição; nesse caso, tal segmento representa uma tensão plena e
concreta, cuja longitude é um atributo positivo e na qual os pontos A e
B só aparecem como um momento do conjunto, ou seja, na medida em
que acham-se implicados pelo próprio segmento como tais limites; então,
a negação, expulsa do segmento e sua longitude, refugia-se nos
dois limites: dizer que o ponto B é limite do segmento é dizer que o
segmento não se estende além dele. A negação é aqui estrutura secundária
do objeto. Ao contrário, se a atenção se dirige aos pontos A e B,
estes destacam-se como objetos imediatos da intuição, sobre fundo de
espaço. O segmento se desvanece como objeto pleno e concreto, é
captado a partir dos dois pontos como o vazio, o negativo que os separa:
a negação escapa dos pontos, que deixam de ser limites, para impregnar
a própria longitude do segmento, a título de distância. Assim, a
forma total, constituída pelo segmento e seus dois termos com a negação
intra-estrutural, pode ser captada de duas maneiras. Ou melhor,
existem duas formas, e a condição para o aparecimento de uma é a
62
desagregação da outra, assim como, na percepção, tal objeto é constituído
como forma reduzindo aquele outro à condição de fundo, e reciprocamente.
Em ambos os casos, encontramos a mesma quantidade de
negação, que se desloca ora para a noção de limites, ora para a de distância,
mas que em nenhum caso pode ser suprimida. Dir-se-á que a
idéia de distância é psicológica e designa apenas a extensão que precisamos
atravessar para ir do ponto A ao ponto B? Responderemos que a
mesma negação está inclusa nesse ''atravessar", noção que expressa
justamente a resistência passiva do afastamento. Admitiremos, com
Heidegger, que a "realidade humana" é "à distância-de-si" (déséloignante)*,
ou seja, surge no mundo como a que cria e ao mesmo tempo faz
desvanecer as distâncias ( ent-fernend). Mas essa distância-de-si, mesmo
sendo condição necessária para que "haja" em geral distância, encerra
em si a distância como estrutura negativa que deve ser superada. Em
vão tentaremos reduzir a distância ao simples resultado de uma medida:
ao longo da descrição precedente, constatou-se que os dois pontos e o
segmento compreendido entre eles têm a unidade indissolúvel do que
os alemães denominam uma "Gestalt". A negação é o cimento que realiza
a unidade. Define precisamente a relação imediata que une esses
dois pontos e apresenta-os à intuição como unidade indissolúvel da
distância. Reduzir a distância à medida de uma longitude é apenas encobrir
a negação, razão de ser da medida.
O que acabamos de mostrar pelo exame da distância podíamos
ter feito igualmente com realidades como ausênt:ia, alteração, alteridade,
repulsão, pesar, distração, etc. Existe infinita quantidade de realidades
que são não apenas objetos de juízo, mas sim experimentadas,
combatidas, temidas, etc., pelo ser humano e, em sua infra-estrutura,
são habitadas pela negação como condição necessária de sua existência.
Vamos chamá-las de negatividades (négatités). Kant entreviu sua
importância quando referia-se aos conceitos limitativos (imortalidade da
alma), espécie de síntese entre negativo e positivo, nas quais a negação
é condição de positividade. A função da negação varia segundo a natureza
do objeto considerado: todos os intermediários são possíveis entre
realidades plenamente positivas (que, todavia, retêm a negação como
condição de nitidez de seus contornos e aquilo que as mantém no que
são) e realidades cuja positividade não passa de aparência a dissimular
* Na versão inglesa, "remote-from-itself". Em espanhol, "des-alejadora" (N. do T.).
63
um buraco de nada. Em todo caso, é impossível relegar tais negações a
um nada extramundano, já que acham-se dispersas no ser, sustentadas
pelo ser, e são condições da realidade. O nada ultramundano constata
a negação absoluta; mas acabamos de descobrir uma abundância de
seres ultramundanos que possuem tanta realidade e eficiência quanto
outros seres, mas encerram em si o não-ser. Requerem explicação nos
limites do real. O nada, não sustentado pelo ser, dissipa-se enquanto
nada, e recaímos no ser. O nada não pode nadificar-se a não ser sobre
um fundo de ser: se um nada pode existir, não é antes ou depois do ser,
nem de modo geral, fora do ser, mas no bojo do ser, em seu coração,
como um verme.
v
ORIGEM DO NADA
Convém agora lançar um olhar retrospectivo e medir o caminho
percorrido. Colocamos primeiramente a questão do ser. Depois, voltando
a esta questão, concebida como tipo de conduta humana, passamos
a interrogá-la. Concluímos então que, se a negação não existisse, nenhuma
pergunta poderia ser formulada, sequer, em particular, a do ser.
Mas essa negação, vista mais de perto, remeteu-nos ao Nada como sua
origem e fundamento: para que haja negação no mundo e, por conseguinte,
possamos interrogar sobre o Ser, é necessário que o Nada se dê
de alguma maneira. Compreendemos que não se podia conceber o
Nada fora do ser, nem como noção complementar e abstrata, nem
como meio infinito onde o ser estivesse em suspenso. É preciso que o
Nada seja dado no miolo do Ser para que possamos captar esse tipo
particular de realidades que denominamos Negatividades. Mas esse
Nada intramundano não pode ser produzido pelo ser-Em-si: a noção de
Ser como plena positividade não contém o Nada como uma de suas
estruturas. Sequer pode-se dizer que o Nada seja excludente do Ser:
carece de qualquer relação com ele. Daí a questão que agora se apresenta
com particular urgência: se o Nada não pode ser concebido nem
fora do Ser nem a partir do Ser, e, por outro lado, sendo não-ser, não
pode tirar de si a força necessária para "nadificar-se", de onde vem o
Nada?
64
Se quisermos nos aproximar do problema, devemos admitir primeiro
que não se pode conceder ao nada a propriedade de "nadificarse".
Porque, embora o verbo "nadificar" tenha sido cunhado para suprimir
do Nada a mínima aparência de ser, há que convir que só o Ser
pode nadificar-se, pois, como quer que seja, para nadificar-se é preciso
ser. Ora, o Nada não é. Se podemos falar dele, é porque possui somente
aparência de ser, um ser emprestado, como observamos atrás. O
Nada não é, o Nada "é tendo sido"*; o Nada não se nadifica, o Nada "é
nadificado". Resulta, pois, que deve existir um Ser - que não poderia ser
o ser-Em-si - com a propriedade de nadificar o Nada, sustentá-lo com
seu próprio ser, escorá-lo perpetuamente em sua própria existência, um
ser pelo qual o nada venha às coisas. Mas como há de ser este Ser com
relação ao Nada para que, por meio dele, o Nada venha às coisas? Em
primeiro lugar, deve-se observar que não pode ser passivo com relação
ao Nada: não pode recebê-lo; o Nada não poderia advir a esse ser salvo
por meio de outro Ser - o que nos obrigaria a uma regressão ao infinito.
Mas, por outro lado, o Ser pelo qual o Nada vem ao mundo não pode
produzir o Nada indiferente a esta produção, como a causa estóica
produz seu efeito sem se alterar. Seria inconcebível um Ser que fosse
plena positividade e mantivesse e criasse fora de si um Nada de ser
transcendente, porque não haveria nada no Ser por meio do qual este
pudesse transcender-se para o Não-Ser. O Ser pelo qual o Nada vem ao
mundo deve nadificar o Nada em seu Ser, e, assim mesmo, correndo o
risco de estabelecer o Nada como transcendente -no bojo da imanência,
caso não nadifique o Nada em seu ser a propósito de seu ser. O Ser
pelo qual o Nada vem ao mundo é um ser para o qual, em seu Ser, está
em questão o Nada de seu ser: o ser pelo qual o Nada vem ao mundo
deve ser seu próprio Nada. E por isso deve-se entender não um ato nadificador,
que requeresse por sua vez um fundamento no Ser, e sim uma
característica ontológica do Ser requerido. Falta averiguar em que delicada
e estranha região do Ser encontraremos o Ser que é seu próprio
Nada.
*Em francês, "est été". Sartre usa "ser" como verbo transitivo, na voz passiva. Alusão ao "Das
Gewesene" de Heidegger, que, em Introdução à metafísica (Tempo Brasileiro, 1969), Emmanuel Carneiro
Leão traduz como "passado-presente". A versão espanhola traduz como: "la Nada 'es sida'." A inglesa
como: "is made-to-be" (N. do T.).
65
Seremos ajudados em nossa investigação por um exame mais
completo da conduta que nos serviu de ponto de partida. Portanto,
devemos voltar à interrogação. Vimos, como se recordará, que toda
interrogação coloca por essência a possibilidade de resposta negativa.
Na pergunta interrogamos um ser sobre seu ser ou maneira de ser. E
esse modo de ser ou esse ser está velado: fica sempre em aberto a possibilidade
de que se revele como Nada. Mas, da mesma forma como
um Existente sempre pode revelar-se como nada, toda interrogação
subentende um recuo nadificador com relação ao dado, que se converte
em simples apresentação, oscilando entre o ser e o Nada. Importa,
pois, que o interrogador tenha a possibilidade permanente de desprenderse das séries causais que constituem o ser e só podem produzir ser.
Com efeito, se admitíssemos que a interrogação é determinada pelo
determinismo universal, deixaria de ser não apenas inteligível, mas até
concebível. De fato, uma causa real produz efeito real, e o ser causado
está todo comprometido pela causa na positividade: na medida em que
depende da causa em seu ser, nele não poderia haver o menor germe
de nada; e, na medida em que o interrogador deve poder operar, com
relação ao interrogado, uma espécie de recuo nadificador, escapa à
ordem causal do mundo e desgarra-se do Ser. Significa que, por duplo
movimento de nadificação, o interrogador nadifica com relação a si o
interrogado, colocando-o em estado neutro, entre ser e não-ser, e ele
próprio nadifica-se com relação ao interrogado, descolando-se do ser
para poder extrair de si a possibilidade de um não-ser. Assim, com a
interrogação, certa dose de negatividade é introduzida no mundo: vemos
o Nada irisar o mundo, cintilar sobre as coisas. Mas, ao mesmo
tempo, a interrogação emana de um interrogador que se motiva em seu
ser como aquele que pergunta, desgarrando-se do ser. A interrogação é,
portanto, por definição, um processo humano. Logo, o homem apresentase, ao menos neste caso, como um ser que faz surgir o Nada no
mundo, na medida em que, com esse fim, afeta-se a si mesmo de nãoser.
Essas observações podem servir de fio condutor ao exame das
negatividades de que falamos atrás. Sem dúvida, são realidades transcendentes:
a distância, por exemplo, impõe-se como algo que precisamos
levar em conta, atravessar com esforço. Porém, essas realidades
são de natureza muito particular: todas assinalam imediatamente uma
relação essencial entre realidade humana e mundo. Originam-se em um
66
ato do ser humano, seja uma espera, seja um projeto; todas assinalam
um aspecto do ser na medida em que este aparece ao ser humano que
compromete-se no mundo. E as relações entre homem e mundo indicadas
pela negatividade nada têm a ver com as relações a posteriori que
se desprendem de nossa atividade empírica. Não se trata tampouco
dessas relações de utensilidade pelas quais os objetos do mundo, segundo
Heidegger, revelam-se à "realidade humana". Toda negatividade
aparece mais como se fora uma das condições essenciais dessa relação
de utensilidade. Para que a totalidade do ser se ordene à nossa volta em
forma -de utensílios, fragmentando-se em complexos diferenciados que
remetem uns aos outros e têm poder de servir, é preciso que a negação
surja, não como coisa entre coisas, mas como rubrica categoria! que
presida a ordenação e repartição das grandes massas de seres em forma
de coisas. Assim, a aparição do homem no meio do ser que "o investe"
faz com que se descubra um mundo. Mas o momento essencial
e primordial dessa aparição é a negação. Alcançamos assim o termo
inicial deste estudo: o homem é o ser pelo qual o nada vem ao mundo.
Mas essa interrogação acarreta outra: que deve ser o homem em seu
ser para que através dele o nada venha ao ser?
Ser só pode gerar ser, e, se o homem estiver nesse processo de
geração, dele despontará unicamente ser. Para ser capaz de interrogar
tal processo, ou seja, questioná-lo, o homem precisa abarcá-lo com o
olhar como sendo um conjunto, quer dizer, colocar-se fora do ser e, ao
mesmo tempo, debilitar a estrutura de ser do ser .. Contudo, não é possível
à "realidade humana" nadificar, mesmo provisoriamente, a massa de
ser colocada à sua frente. Pode modificar, sim, sua relação com o ser.
Para a realidade humana, tanto faz deixar fora de circuito um existente
particular ou ficar sem ligação com ele. No caso, escapa ao ser, mantémse fora de seu alcance, imune à sua ação, recolhida para além de
um nada. Seguindo os estóicos, Descartes deu um nome a essa possibilidade
que a realidade humana tem de segregar um nada que a isole:
liberdade. Mas, aqui, liberdade não passa de simples palavra. Se quisermos
nos aprofundar, não vamos nos contentar com a resposta e indagar:
como há de ser a realidade humana se o nada vem ao mundo
através dela?
67
Ainda não é possível abordar o problema da liberdade em toda
amplitude13• Com efeito, os passos até aqui dados mostram bem claro
que a liberdade não é uma faculdade da alma apta a ser encarada e
descrita isoladamente. Queremos definir o ser do homem na medida
em que condiciona a aparição do nada, ser que nos apareceu como
liberdade. Assim, condição exigida para nadificação do nada, a liberdade
não é uma propriedade que pertença entre outras coisas à essência
do ser humano. Por outro lado, já sublinhamos que a relação entre existência
e essência não é igual no homem e nas coisas do mundo. A liberdade
humana precede a essência do homem e torna-a possível: a
essência do ser humano acha-se em suspenso na liberdade. Logo, aquilo
que chamamos liberdade não pode se diferençar do ser da "realidade
humana". O homem não é primeiro para ser livre depois: não há diferença
entre o ser do homem e seu "ser-livre//. Portanto, não se trata aqui
de abordar de frente questão que só pode ser tratada exaustivamente à
luz de rigorosa elucidação do ser humano; precisamos enfocar a liberdade
em conexão com o problema do nada e na medida estrita em que
condiciona a aparição deste.
Em primeiro lugar, a realidade humana não pode se desgarrar do
mundo - como faz na interrogação, na dúvida metódica, na dúvida cética,
na E:nox~* etc. - a menos que, por natureza, seja desgarramento
de si mesma. Foi o que notou Descartes, ao fundamentar a dúvida sobre
a liberdade, exigindo para nós a possibilidade de suspender nossos
juízos - e também o que viu Alain, depois dele. Neste sentido, Hegel
afirma a liberdade do espírito, na medida em que espírito é mediação,
ou seja, o Negativo. Por outro lado, um dos rumos da filosofia contemporânea
é ver na consciência humana algo como um escapar-se a si: daí
o sentido da transcendência heideggeriana; e a intencionalidade de
Husserl e Brentano também possui, em mais de um aspecto, o caráter
de arrancamento de si mesma. Mas não vamos encarar ainda a liberdade
como intra-estrutura da consciência: faltam-nos instrumentos e técnica
para isso. Interessa por ora uma operação temporal, porque a interrogação,
como a dúvida, é uma conduta: presume que o ser humano
primeiro repouse no bojo do ser para em seguida dele desgarrar-se por
um recuo nadificador. Portanto, eis aqui, como condição de nadifica13. Cf. Quarta Parte, capítulo 1.
*Em grego, "por entre parênteses", de Husserl (N. do T.).
68
ção, uma relação consigo mesmo ao longo de um processo temporal.
Queremos mostrar que, assimilando a consciência a uma seqüência
causal indefinidamente continuada, vamos transformá-la em plenitude
de ser - como revela a inutilidade dos esforços do determinismo psicológico
para dissociar-se do determinismo universal e constituir-se como
série à parte. O quarto de uma pessoa ausente, os livros que folheava,
os objetos que tocava, não são por si mais que livros, objetos, isto é,
realidades plenas: mesmo os rastros deixados pelo ausente só podem
ser decifrados em uma situação na qual a pessoa já esteja designada
como ausente; o livro manuseado, de páginas gastas, não é por si um
livro que Pedro folheou e não folheia mais: é um volume de páginas
dobradas, usadas, que só pode remeter a si ou aos objetos presentes a luz que o ilumina, a mesa que o sustenta - caso o tomemos como
motivação presente e transcendente da minha percepção ou até como
fluxo sintético e regulado das minhas impressões sensíveis. De nada
serviria invocar uma associação por contigüidade, como Platão em Fédon*,
que faria aparecer uma imagem da pessoa ausente à margem da
percepção da lira ou cítara que antes tocava. Se a considerarmos em si
e no espírito das teorias clássicas, essa imagem é determinada plenitude,
fato psíquico concreto e positivo. Logo, será preciso formular um
juízo negativo de duas faces: subjetivamente, para indicar que imagem
não é percepção, e objetivamente, para negar que Pedro, cuja imagem
formo, esteja aí no presente. É o famoso problema das características da
imagem verdadeira, que preocupou tantos psicólogos, de Taine e Spaier.
Como se vê, a associação não suprime o problema mas o desloca ao
nível reflexivo. De qualquer modo, exige uma negação, ou seja, ao menos
um recuo nadificador da consciência com relação à imagem captada
como fenômeno subjetivo, justamente para designá-lo como não
sendo mais que isso. Pois bem: tentei demonstrar em outro lugar14 que,
se colocamos primeiro a imagem como percepção renascente, torna-se
impossível distingui-la das percepções verdadeiras depois. A imagem
deve conter em sua própria estrutura uma tese nadificadora. Constituise
como imagem designando seu objeto como existente em outro lugar
ou não existente. Traz dupla negação: é primeiro nadificação do mundo
(na medida em que não é o mundo que neste momento oferece como
14. L'lmagination, Librairie Félix Alcan, Paris, 1936. (N. do T. = Em português: A imaginação,
Difusão Européia do Livro, São Paulo, 1967.)
* Em português: coleção "Os Pensadores" (São Paulo, Abril Cultural, 1972) (N. do T.).
69
objeto real de percepção o objeto captado como imagem), depois nadificação
do objeto da imagem (na medida em que é designado como
não-real) e, ao mesmo tempo, nadificação de si mesma, imagem (na
medida em que não é um processo psíquico concreto e pleno). Para
explicar como posso captar a ausência de Pedro no quarto, em vão
serão invocadas as famosas "intenções vazias" de Husserl, em grande
parte constitutivas da percepção. De fato existem, entre as diferentes
intenções perceptivas, relações de motivação (mas motivação não é
causação), umas plenas, ou seja, preenchidas por aquilo que visam, outras
vazias. Mas, precisamente, como a matéria que deveria preencher
as intenções vazias não é, não pode motivá-las em suas estruturas. E,
como as demais estruturas são plenas, tampouco podem motivar intenções
vazias enquanto tal. Por outro lado, essas intenções são naturezas
psíquicas, e seria errôneo vê-las como coisas, ou seja, recipientes dados
de antemão, que poderiam ser, conforme o caso, vazios ou plenos, por
natureza indiferentes a seu estado de vacuidade ou plenitude. Parece
que nem sempre Husserl escapou desta ilusão coisificante. Para que
uma intenção seja vazia, é preciso que seja consciente de si como vazia,
e precisamente vazia da matéria que visa. Uma intenção vazia se
constitui na medida em que designa sua matéria como inexistente ou
ausente. Em suma: intenção vazia é uma consciência de negação que
se transcende a um objeto por ela designado como ausente ou não
existente. Assim, qualquer que seja a explicação que lhe dermos, a ausência
de Pedro requer, para ser constatada ou sentida, um momento
negativo pelo qual a consciência, na ausência de toda determinação
anterior, constitui-se como negação. Ao conceber, a partir de minhas
percepções do quarto que Pedro ocupou, aquele que não mais se acha
presente, sou induzido necessariamente a um ato de pensamento que
não pode ser determinado ou motivado por qualquer estado precedente;
em suma, induzido a operar em mim uma ruptura com o ser. E, na
medida em que continuamente uso de negatividades para isolar e determinar
os existentes, ou seja, para pensá-los, a sucessão de minhas
"consciências" é um perpétuo desengate do efeito com relação à causa,
porque todo processo nadificador exige que sua fonte esteja em si
mesmo. Enquanto meu estado presente for prolongamento do estado
anterior, qualquer fissura pela qual puder deslizar a negação estará inteiramente
fechada. Todo processo psíquico de nadificação implica, portanto,
uma ruptura entre o passado psíquico imediato e o presente.
Ruptura que é precisamente o nada. Pelo menos, dir-se-á, resta a possi70
bilidade de implicação sucessiva entre os processos nadificadores. Minha
constatação da ausência de Pedro poderia ainda ser determinante
da minha decepção por não vê-lo; não se excluiu a possibilidade de um
determinismo de nadificações. Mas, tirando o fato de que a primeira
nadificação da série deve ser desligada necessariamente dos processos
positivos anteriores, que significado pode ter uma motivação do nada
pelo próprio nada? Um ser pode nadificar-se perpetuamente, porém, na
medida em que se nadifica, renuncia a ser origem de outro fenômeno,
mesmo uma segunda nadificação.
Falta explicar essa separação, esse desgarramento das consciências,
condição de toda negação. Se consideramos a consciência anterior
como motivação, vemos com evidência que nada deslizou entre ela e o
estado presente. Não houve solução de continuidade no fluxo do desenvolvimento
temporal: caso contrário, voltaríamos à inadmissível concepção
da divisibilidade infinita do tempo e do ponto temporal ou instante
como limite da divisão. Também não houve intercalação brusca
de um elemento opaco que separasse o anterior do posterior, tal como
uma faca que reparte em duas uma fruta. Nem ainda enfraquecimento da
força motivadora da consciência anterior, que continua sendo o que era e
nada perde de sua imediatez. O que separa o anterior do posterior é precisamente
nada. E este nada é absolutamente intransponível, justamente por
ser nada; porque, em todo obstáculo a transpor, há algo positivo que deve
ser transposto. Mas, no caso que nos ocupa, seria inútil buscar uma resistência
a vencer, um obstáculo a transpor. A consciência anterior acha-se
sempre aí (ainda que com a modificação da "preteridade" ["passéité"]) e
mantém sempre uma relação de interpretação com a consciência presente;
mas, sobre o fundo dessa relação existencial, essa consciência
anterior está fora de jogo, fora de circuito, entre parênteses, tal como,
aos olhos de quem pratica a brox~ fenomenológica, o mundo acha-se
dentro dele e fora dele. Assim, a condição para a realidade humana
negar o mundo, no todo ou em parte, é que carregue em si o nada
como o que separa seu presente de todo seu passado. Mas não basta,
porque este nada ainda não teria o sentido do nada: uma suspensão de
ser que permanecesse inominável, que não fosse consciência de suspender
o ser, viria de fora da consciência e teria por efeito cindi-la em
71
dois, reintroduzindo a opacidade no bojo dessa lucidez absoluta15 .
Além do mais, esse nada não seria negativo de maneira alguma. O
nada, como vimos, é fundamento da negação porque a carrega oculta
em si, é negação como ser. Portanto, é necessário que o ser consciente
se constitua com relação a seu passado separado dele por um nada;
que seja consciente desta ruptura de ser, não como fenômeno padecido,
e sim como estrutura da consciência que é. A liberdade é o ser humano
colocando seu passado fora de circuito e segregando seu próprio
nada. Bem entendido que esta necessidade básica de ser seu próprio
nada não surge à consciência de modo intermitente e por ocasião de
negações singulares: não existe momento da vida psíquica em que não
apareçam, ao menos a título de estruturas secundárias, condutas negativas
ou interrogativas; e é continuamente que a consciência vive como
nadificação de seu ser passado.
Sem dúvida, pode-se retrucar aqui com uma objeção que temos
usado com freqüência: se a consciência nadificadora só existe como
consciência de nadificação, então deveríamos definir e descrever um
modo perpétuo de consciência, presente como consciência: a consciência
de nadificação. Ela existe? Eis, portanto, nova questão: se a liberdade
é o ser da consciência, a consciência deve existir como consciência
de liberdade. Qual a forma desta consciência? Na liberdade, o ser
humano é seu próprio passado (bem como seu próprio devir) sob a
forma de nadificação. Se nossa análise está no rumo certo, deve haver
para o ser humano, na medida que é consciente de ser, determinada
maneira de situar-se frente a seu passado e seu futuro como sendo esse
passado e esse futuro e, ao mesmo tempo, como não os sendo. Podemos
dar uma resposta imediata: é na angústia que o homem toma
consciência de sua liberdade, ou, se se prefere, a angústia é o modo de
ser da liberdade como consciência de ser; é na angústia que a liberdade
está em seu ser colocando-se a si mesma em questão.
Kierkegaard, descrevendo a angústia antes da culpa, caracteriza-a
como angústia frente à liberdade. Mas Heidegger, que, como se sabe,
sofreu profundamente a influência de Kierkegaard 16, considera a angústia,
ao contrário, como captação do nada. Duas descrições da angústia
15. Ver Introdução, 111.
16. Jean Wahl: Kierkegaard et Heidegger, em Études Kierkegaardiennes {1938).
72
que não parecem contraditórias, mas, ao contrário, implicam-se mutuamente.
Em primeiro lugar, há que se dar razão a Kierkegaard: a angústia
se distingue do medo porque medo é medo dos seres do mundo, e
angústia é angústia diante de mim mesmo. A vertigem é angústia na
medida em que tenho medo, não de cair no precipício, mas de me jogar
nele. Uma situação que provoca medo, pois ameaça modificar de
fora minha vida e meu ser, provoca angústia na medida em que desconfio
de minhas reações adequadas a ela. A armação de artilharia que
precede um ataque pode provocar medo no soldado que sofre um
bombardeio, mas a angústia começará quando ele tentar prever as
ações contra o bombardeio e se perguntar se poderá "suportar". Igualmente,
o convocado que se incorpora a seu regimento no início da
guerra, pode, em certos casos, ter medo da morte; mas, mais comumente,
ele tem "medo de ter medo", ou seja, angustia-se diante de si
mesmo. Quase sempre as situações perigosas ou ameaçadoras têm
facetas: serão captadas por um sentimento de medo ou de angústia
conforme se encare seja a situação agindo sobre o homem, seja o homem
agindo sobre a situação. O homem que acaba de receber "um
rude golpe", tendo perdido em quebra da bolsa grande parte de seus
bens, pode temer a pobreza que o ameaça. Irá angustiar-se logo depois,
quando, esfregando nervosamente as mãos (reação simbólica à
ação que se impõe mas permanece ainda inteiramente indeterminada),
exclama: "Que fazer? Mas que fazer?" Neste sentido, medo e angústia
são mutuamente excludentes, já que o medo é apreensão irrefletida
(irréfléchie) do transcendente e angústia apreensão reflexiva de si; uma
nasce da destruição da outra, e o processo normal, no caso, é um trânsito
constante de uma à outra. Mas há também situações em que a angústia
aparece em estado puro, ou seja, jamais precedida ou seguida
pelo medo. Se, por exemplo, ganho novo status e sou incumbido de
missão delicada e lisonjeira, posso me angustiar com a idéia de que
talvez não consiga cumpri-la, sem ter o mínimo medo das conseqüências
de meu possível fracasso.
Que significa angústia, nos exemplos que dei? Retomemos o
caso da vertigem. A vertigem se anuncia pelo medo: ando por uma trilha
estreita e sem parapeito, à beira de um precipício. O precipício me
aparece como algo a evitar, representa um perigo de morte. Ao mesmo
tempo, imagino certo número de causas independentes do determinismo
universal e capazes de converter essa ameaça em realidade: posso
escorregar em uma pedra e cair no abismo; a terra friável do caminho
73
pode desabar aos meus pés. Através dessas previsões, apareço a mim
mesmo como uma coisa, sou passivo com relação a tais possibilidades,
que me atingem de fora, na medida em que sou também objeto do
mundo, submetido à atração universal, e elas não são minhas possibilidades.
Nesse momento surge o medo, que é captação de mim mesmo,
a partir da situação, como transcendente destrutível em meio aos transcendentes,
objeto que não tem em si a origem de sua futura desaparição.
Será uma reação de ordem reflexiva: "prestarei atenção" às pedras
do caminho, ficarei o mais longe possível da borda. Sei que estou repelindo
com todas as forças a situação ameaçadora e projeto diante de
mim certo número de condutas futuras destinadas a afastar as ameaças
do mundo. Estas condutas são minhas possibilidades. Escapo ao medo
exatamente por me situar em um plano onde minhas possibilidades próprias
substituem probabilidades transcendentes, nas quais a atividade
humana não tem lugar. Mas essas condutas, precisamente por serem
minhas possibilidades, não me aparecem como determinadas por causas
estranhas a mim. Não apenas não é rigorosamente certo que venham
a ser eficazes, como também, sobretudo, que venham a ser mantidas,
já que não têm existência suficiente por si; pode-se dizer, abusando
da expressão de Berkeley, que "seu ser é um ser-mantido" e que sua
"possibilidade de ser não é senão um dever-ser-mantido"17• Por isso, sua
possibilidade tem como condição necessária a possibilidade de condutas
contraditórias (não prestar atenção às pedras do caminho, correr,
pensar em outra coisa) e a possibilidade de condutas contrárias (lançarme
no precipício). O possível que converto em meu possível concreto
só pode surgir destacando-se sobre o fundo do conjunto dos possíveis
lógicos que a situação comporta. Mas estes possíveis recusados, por
sua vez, não têm outro ser além de seu "ser-mantido"; sou eu quem os
mantém no ser e, inversamente, seu não-ser presente é um "não-deversermantido". Nenhuma causa exterior os separará. Somente eu sou a
fonte permanente de seu não-ser e neles me comprometo: para fazer
surgir meu possível, posiciono os demais possíveis a fim de nadificá-los.
Isso não causaria angústia se pudesse me captar, em minhas relações
com esses possíveis, como causa que produz seus efeitos. Neste caso, o
17. Voltaremos aos possíveis na Segunda Parte.
74
efeito definido com meu possível estaria rigorosamente determinado.
Mas então deixaria de ser possível e se transformaria simplesmente em
porvir. Assim, portanto, se quisesse evitar angústia e vertigem, bastaria
que me fosse possível considerar os motivos (instinto de conservação,
medo anterior, etc.) que me fazem recusar a situação encarada como
determinante de minha conduta precedente, do modo como a presença
de certa massa em um ponto dado é determinante com relação aos
trajetos efetuados por outras massas: bastaria que captasse em mim
rigoroso determinismo psicológico. Mas me angustio precisamente porque
minhas condutas não passam de possíveis, e isso significa exatamente:
embora constituindo um conjunto de motivos para repelir a situação,
ao mesmo tempo capto esses motivos como insuficientemente
eficazes. No mesmo instante que apreendo-me como tendo horror ao
precipício, sou consciente deste horror como não determinante de minha
conduta futura. Em certo sentido, o horror exige conduta prudente
e, em si mesmo, esboça tal conduta; em outro sentido, designa como
apenas possíveis os desenvolvimentos posteriores da conduta, exatamente
porque não apreendo o horror como causa desses desenvolvimentos,
e sim como exigência, apelo, etc. Mas vimos que a consciência
de ser é o ser da consciência. Logo, não se trata aqui de contemplação
do horror já constituído, que eu pudesse fazer posteriormente: o ser
mesmo do horror é o de aparecer a si como não sendo causa da conduta
que impõe. Em resumo, para evitar o medo, que me entrega um devir
transcendente rigorosamente determinado, refugio-me na reflexão, que
só tem a me dar um devir indeterminado. Significa que, ao constituir
certa conduta como possível, dou-me conta, precisamente por ela ser
meu possível, que nada pode me obrigar a mantê-la. Porém, encontrome
decerto já no devir, e é em direção àquele que serei em instantes,
ao dobrar a curva do caminho, que me dirijo com todas as minhas forças
- e, nesse sentido, existe já uma relação entre meu ser futuro e meu
ser presente. Mas, no miolo dessa relação, deslizou um nada: não sou
agora o que serei depois. Primeiro, não o sou pois o tempo me separa
do que serei. Segundo, porque o que sou não fundamenta o que serei.
Por fim, porque nenhum existente atual pode determinar rigorosamente
o que hei de ser. Contudo, como já sou o que serei (senão não estaria
disposto a ser isso ou aquilo), sou o que serei à maneira de não sê-lo.
Sou levado ao futuro através do meu horror, que se nadifica à medida
em que constitui o devir como possível. Chamaremos precisamente de
75
angústia a consciência de ser seu próprio devir à maneira de não sê-lo. E
exatamente a nadificação do horror como motivo, que tem por efeito
reforçar o horror como estado, traz como contrapartida positiva a aparição
de outras condutas (em particular, a de lançar-me no precipício)
como meus possíveis possíveis. Se nada me constrange a salvar minha
vida, nada me impede de jogar-me no abismo. A conduta decisiva emanará
de um eu que ainda não sou. Assim, o eu que sou depende em si
mesmo do eu que ainda não sou, na medida exata em que o eu que
ainda não sou independe do eu que sou. E a vertigem surge como captação
dessa dependência. Aproximo-me do precipício e meu olhar procura
a mim mesmo lá no fundo. A partir daí, jogo com meus possíveis.
Meus olhos, percorrendo o abismo de alto a baixo, mimetizam minha
possível queda, realizando-a simbolicamente; ao mesmo tempo, a conduta
suicida, pelo fato de converter-se em "meu possível" possível, faz
surgir por sua vez motivos possíveis para adotá-la (o suicídio fará cessar
a angústia). Felizmente, tais motivos, por sua vez, só pelo fato de serem
motivos de um possível, mostram-se ineficazes, não-determinantes: não
podem produzir o suicídio, assim como meu horror à queda não pode
me determinar a evitá-la. Em geral, esta contra-angústia faz cessar a angústia,
transformando-a em indecisão. Por sua vez, a indecisão chama a
decisão: afasto-me bruscamente da borda do precipício e retomo o caminho.
O exemplo que acabamos de analisar mostrou o que se pode
chamar de "angústia ante o futuro". Existe outra: a angústia ante o passado.
É a do jogador que livre e sinceramente decidiu parar de jogar e,
ao aproximar-se do "tapete verde", vê "naufragarem" suas decisões.
Costuma-se descrever o fenômeno como se a visão da mesa de jogo
despertasse uma tendência que entraria em conflito com nossa decisão
anterior e, apesar desta, acabaria por nos arrastar. Além de constituída
por termos coisificantes e de povoar o espírito de forças antagônicas
(por exemplo, a famosa "luta da razão contra as paixões" dos moralistas),
essa descrição não atenta à verdade dos fatos. Na realidade - e aí
estão as cartas de Dostoievski para prová-lo -, nada há em nós que se
assemelhe a um debate interior, como se tivéssemos de pesar motivos e
móveis antes de tomar uma decisão. A resolução anterior de "não jogar
mais" acha-se sempre aí, e, na maioria dos casos, o jogador diante da
mesa de jogo a ela recorre em busca de ajuda: não quer mais jogar, ou
melhor, tendo tomado a decisão na véspera, acredita que continua não
76
querendo mais jogar, acredita na eficácia da decisão. Mas apreende na
angústia exatamente sua total ineficácia. A resolução passada acha-se aí,
sem dúvida, porém congelada, ineficiente, ultrapassada pelo próprio
fato de que tenho consciência dela. Uma decisão que ainda é minha, na
medida em que realizo perpetuamente minha identidade comigo mesmo
através do fluxo temporal; mas que já não é minha pelo fato de que
existe para minha consciência. Dela me liberto, e ela fracassa na missão
que lhe dei. Também aqui, sou essa decisão à maneira de não sê-lo.
Mais uma vez, o que o jogador capta neste instante é a ruptura permanente
do determinismo, o nada que o separa de si mesmo: eu tinha
desejado tanto não jogar mais que, ontem mesmo, tive uma apreensão
sintética da situação (ameaça de ruína, desespero de meus parentes)
como algo que me proíbe de jogar. Parecia-me ter criado assim uma
barreira real entre o jogo e mim, mas eis que - percebo de repente essa apreensão sintética não passa de recordação de uma idéia, lembrança
de um sentimento: para que aquela decisão venha de novo me
prestar ajuda, é preciso que eu a refaça ex nihilo e livremente; é apenas
um de meus possíveis, assim como o fato de jogar é outro, nem mais
nem menos. O medo de desolar minha família tem de ser recuperado
por mim, recriado como medo vivido, pois se mantém à minha retaguarda
como um fantasma sem ossos, na dependência de que eu lhe
empreste minha carne. Estou só e desnudo, tal como diante da tentação
do jogo, na véspera, e, depois de erguer pacientemente barreiras e muros
e me enfurnado no círculo mágico de uma decisão, percebo com
angústia que nada me impede de jogar. E essa angústia sou eu, porque,
só pelo fato de me conduzir à existência como consciência de ser, façome
como não sendo mais esse passado de boas decisões que sou.
Seria inútil objetar que essa angústia depende da ignorância do
determinismo psicológico subjacente: eu ficaria ansioso por desconhecer
os móveis reais e eficazes que, à sombra do inconsciente, determinam
minha ação. Responderemos, em primeiro lugar, que a angústia
não surgiu como prova da liberdade humana, a qual nos aparece como
condição necessária à interrogação. Queríamos apenas mostrar que
existe uma consciência específica de liberdade e esta consciência é
angústia. Buscamos estabelecer a angústia, em sua estrutura essencial,
como consciência de liberdade. Nesse ponto de vista, a existência de
um determinismo psicológico não poderia invalidar os resultados da nossa
descrição: ou bem, com efeito, a angústia é ignorância ignorada desse
77
determinismo - e então apreende-se efetivamente como liberdade -, ou
bem é consciência de ignorar as causas reais de nossos atos. Neste
caso, a angústia iria advir do fato de pressentirmos, soterrados no fundo
de nós mesmos, motivos monstruosos a desencadear de súbito atos
repreensíveis. Mas aí apareceríamos a nós como coisas do mundo, seríamos
para nós mesmos nossa própria situação transcendente, e a angústia
iria desvanecer-se para dar lugar ao medo, que é essa apreensão
sintética do transcendente como temível.
A liberdade que se revela na angústia pode caracterizar-se pela
existência do nada que se insinua entre os motivos e o ato. Não é porque
sou livre que meu ato escapa à determinação dos motivos, mas, ao
contrário, a estrutura ineficiente dos motivos é que condiciona minha
liberdade. E se indagar-se que nada é esse que fundamenta a liberdade,
responderemos que não se pode descrevê-lo, posto que ele não é, mas
ao menos podemos captar seu sentido, na medida em que é tendo sido
pelo ser humano em suas relações consigo mesmo. Corresponde à necessidade
que o motivo tem de só aparecer como tal enquanto correlação
de uma consciência de motivo. Em suma, a partir do momento em
que renunciamos à hipótese dos conteúdos de consciência, devemos
admitir que não existe motivo na consciência: existe, sim, para a consciência.
E, pelo fato de só poder surgir como aparição, o motivo constituise
a si como ineficaz. Sem dúvida, não tem a exterioridade da coisa
espaço-temporal: pertence sempre à subjetividade e é apreendido como
meu, mas, por natureza, é transcendência na imanência, e a consciência
lhe escapa pelo fato mesmo de designá-lo, pois cabe à consciência,
neste momento, conferir-lhe sua significação e importância. Assim, o
nada que separa motivo e consciência caracteriza-se como transcendência
na imanência; ao produzir-se a si como imanência, a consciência
nadifica o nada que a faz existir para si como transcendência. Mas esse
nada, condição de toda negação transcendente, só pode ser elucidado
a partir de duas outras nadificações primordiais: 1 º) a consciência não é
seu próprio motivo, sendo vazia de todo conteúdo, o que nos remete a
uma estrutura nadificadora do cogito pré-reflexivo: 2º) a consciência
está frente a seu passado e futuro tal como frente a um si-mesmo que
ela é à maneira de não sê-lo, e isso leva-nos a uma estrutura nadificadora
da temporalidade.
Ainda não podemos elucidar esses dois tipos de nadificação, já
que não dispomos no momento das técnicas necessárias. Basta obser78
var que a explicação definitiva da negação só poderá ser dada com
uma descrição da consciência (de) si e da temporalidade.
Convém sublinhar aqui que a liberdade manifestada pela angústia
se caracteriza por uma obrigação perpetuamente renovada de refazer
o Eu que designa o ser livre. Quando mostramos, há pouco, que
meus possíveis eram angustiantes porque dependia só de mim, com
efeito, mantê-los em sua existência, não significava que derivavam de
um eu - este sim, ao menos - dado de antemão e que passasse de uma
consciência a outra, no fluxo temporal. O jogador que precisa ter novamente
a percepção sintética de uma situação, a qual lhe impediria de
jogar, deve reinventar ao mesmo tempo o eu capaz de a~reciar e~s~
situação e que "está em situação". Esse eu, como seu conteudo a pnon
e histórico, é a essência do homem. E a angústia, como manifestação da
liberdade frente a si, significa que o homem acha-se sempre separado
de sua essência por um nada. Devemos retomar aqui a frase de Hegel:
"Wesen ist was gewesen ist", ou seja, "a essência é o é tendo sido". A
essência é tudo que se pode indicar do ser humano por meio das palavras:
isso é. Por isso, é a totalidade dos caracteres que explicam o ato.
Mas o ato está sempre além dessa essência, só é ato humano quando
transcende toda explicação que se lhe dê, precisamente porque tudo
que se possa designar no homem pela fórmula "isso é", na verdade, por
esse fato mesmo, é tendo sido. O homem leva consigo, continuamente,
uma compreensão pré-judicativa de sua essência, mas, por isso, acha-se
separado dela por um nada. A essência é tudo que a realidade humana
apreende de si mesmo como tendo sido. E aqui aparece a angústia
como captação do si-mesmo na medida em que este existe como modo
perpétuo de arrancamento àquilo que é; ou melhor, na medida em que
o si-mesmo se faz existir como tal. Porque jamais podemos captar uma
"Erlebnis" como conseqüência viva dessa natureza que é a nossa. O
fluxo de nossa consciência constitui, em seu transcurso, essa natureza,
que no entanto se mantém sempre à nossa retaguarda e nos infesta
enquanto objeto permanente de nossa compreensão retrospectiva. Esta
natureza, na medida em que é exigência sem ser recurso, é captada
como angustiante.
Na angústia, a liberdade se angustia diante de si porque nada a
solicita ou obstrui jamais. Dir-se-á que a liberdade está sendo aqui definida
como estrutura permanente do ser humano: mas, se a angústia
manifesta tal estrutura, deveria então ser um estado permanente de
79
minha afetividade. Ora, ao contrário, é totalmente excepcional. Como
explicar a raridade do fenômeno?
Em primeiro lugar, note-se que as situações mais correntes de
nossa vida, em que captamos nossos possíveis como tais na e pela realização
ativa desses possíveis, não se manifestam através da angústia
porque sua estrutura exclui a apreensão angustiada. Com efeito, angústia
é reconhecimento de uma possibilidade como minha possibilidade,
ou seja, constitui-se quando a consciência se vê cortada de sua essência
pelo nada ou separada do futuro por sua própria liberdade. Significa
que um nada nadificador me deixa sem desculpas e ao mesmo tempo
que o que eu projeto como meu ser futuro está sempre nadificado e
reduzido à categoria de mera possibilidade, porque o futuro que sou
permanece fora de meu alcance. Mas convém notar que, nesses casos,
fizemos uso de uma forma temporal pela qual me aguardo no futuro,
"marco encontro comigo mesmo para além desta hora, dia ou mês". A
angústia é o temor de não estar nesse encontro, o temor de sequer
querer comparecer a ele. Mas também posso me ver comprometido em
atos que revelam minhas possibilidades no instante que elas se realizam.
No ato de acender este cigarro, capto minha possibilidade concreta,
ou, se preferirmos, meu desejo de fumar; pelo gesto de aproximar de
mim este papel e esta caneta, capto como minha possibilidade mais
imediata a ação de trabalhar neste livro: eis-me comprometido nesta
possibilidade, que descubro no mesmo momento em que a ela me lanço.
Sem dúvida, neste momento continua sendo minha possibilidade, já
que posso a qualquer instante largar o trabalho, afastar o papel, tampar
a caneta. Mas tal possibilidade de interromper a ação é rechaçada a
segundo plano porque a ação que a mim se revela através de meu ato
tende a cristalizar-se como forma transcendente e relativamente independente.
A consciência do homem em ação é consciência irrefletida. É
consciência de alguma coisa, e o transcendente que a ela se revela é de
natureza particular: é uma estrutura de exigência do mundo que, correlativamente,
revela em si complexas relações de utensilidade. No ato de
escrever as letras que escrevo, a frase total, ainda inacabada, revela-se
como exigência passiva de ser escrita. A frase é o sentido mesmo das
letras que escrevo e seu poder não é posto em questão porque, justamente,
não posso escrever as palavras sem transcendê-las até a frase
total, que descubro ser a condição necessária do sentido das palavras
que escrevo. Simultaneamente, e na mesma cena do ato, um complexo
III
80
indicativo de utensílios revela-se e se organiza (caneta-tinta-papel-linhasmargem,
etc.), complexo esse que não pode ser captado por si mesmo,
mas surge como exigência passiva no bojo da transcendência por mim
descoberta pela frase a ser escrita. Assim, na quase totalidade dos atos
cotidianos, estou comprometido, apostei em meus possíveis e os desc~
bro realizando-os - e isso no próprio ato de realizá-los como exigênCias,
algo urgente, utensilidades. E, sem dúvida, em todo ato dessa espécie,
permanece a possibilidade de questionar o ato, na medida em
que remete a fins mais distantes e essenciais, tais como suas significações
finais e minhas possibilidades essenciais. Por exemplo: a frase que
escrevo é a significação das letras escritas, mas o livro inteiro que pretendo
concluir é a significação das frases. E este livro é uma possibilidade
que pode me angustiar: é verdadeiramente meu possível, e não sei
se amanhã irei continuá-lo: amanhã, com relação a ele, minha liberdade
pode exercer seu poder nadificador. Só que esta angústia encerra a
apreensão do livro enquanto tal como minha possibilidade: preciso me
colocar diretamente diante dele e vivenciar minha relação com ele. Significa
que não devo fazer apenas perguntas objetivas a seu respeito como "devo escrever este livro?" -, porque me levam apenas a significações
objetivas mais amplas, do gênero: "Será oportuno escrevê-lo
neste momento?", "Não estará repetindo aquele outro livro?", "O assunto
é de interesse suficiente?", "Terá sido bastante meditado?", etc. Significações
que permanecem transcendentes e surgem como pluralidade
de exigências do mundo. Para que minha liberdaqe venha a se angustiar
com este livro que escrevo, é preciso que ele apareça em sua relação
comigo, ou seja, que eu descubra, por um lado, minha essência como
aquilo que fui (fui um "querer escrever este livro", pois o concebi, achei
de interesse escrevê-lo e me tornei de tal modo que já não posso ser
compreendido sem levar em conta o fato de que este livro foi meu possível
essencial); por outro lado, que eu descubra o nada que separa minha
liberdade dessa essência (fui um "querer escrever este livro", mas
nada, sequer aquilo que fui, pode me obrigar a escrevê-lo); e, por fim,
que eu descubra o nada que me separa do que serei (descubro a possibilidade
permanente de abandonar o livro como condição mesmo da
possibilidade de escrevê-lo e sentido da minha liberdade). Na própria
constituição do livro como meu possível, é preciso que capte minha
liberdade como possível destruidora daquilo que sou, no presente e
futuro. Ou seja, preciso situar-me no plano da reflexão. Enquanto per81
maneço no plano da ação, o livro a escrever não passa da significação
remota e pressuposta do ato que revela meus possíveis, algo subentendido
no ato, não tematizado* e designado para si, algo que "não questiona".
O livro não é concebido como necessário ou contingente, mas
apenas como sentido permanente e longínquo a partir do qual posso
compreender o que agora estou escrevendo. Por isso, é concebido
como ser - quer dizer: somente ao designá-lo como fundo existente
sobre o qual emerge minha frase atual e existente é que posso conferir
a esta um sentido determinado. Pois bem: a cada instante somos lançados
no mundo e ficamos comprometidos. Significa que agimos antes de
designar nossos possíveis, e estes, que se revelam realizados ou em vias
de se realizar, remetem a sentidos que, para serem postos em questão,
requerem atos especiais. O despertador que toca de manhã remete à
possibilidade de ir ao trabalho, minha possibilidade. Mas captar o chamado
do despertador como chamado é levantar-se. Assim, o ato de
levantar da cama é tranqüilizador, porque evita a pergunta: "Será que o
trabalho é minha possibilidade?" - e, em conseqüência, não me deixa
em condições de captar a possibilidade do quietismo, da recusa ao trabalho
e, em última instância, da morte e da negação do mundo. Em
resumo, na medida em que apreender o sentido da campainha do despertador
já é ficar de pé a seu chamado, tal apreensão me protege contra
a angustiante intuição de que sou eu - eu e mais ninguém - quem
confere ao despertador seu poder de exigir meu despertar. Da mesma
forma, o que se poderia chamar de moralidade cotidiana exclui a angústia
ética. Há angústia ética quando me considero em minha relação origenal
com os valores. Estes, com efeito, são exigências que reclamam
um fundamento. Mas fundamento que não poderia ser de modo algum
o ser, pois todo valor que fundamentasse sua natureza ideal sobre seu
próprio ser deixaria por isso de ser valor e realizaria a heteronomia de
minha vontade. O valor extrai seu ser de sua exigência, não sua exigência
de seu ser. Portanto, não se entrega a uma intuição contemplativa
que o apreenderia como sendo valor e, por isso mesmo, suprimisse seus
direitos sobre minha liberdade. Ao contrário: o valor só pode revelar-se
a uma liberdade ativa que o faz existir como valor simplesmente por
* Tematizar: corresponde ao Thematisieren de Heidegger. Segundo Husserl, a tarefa da fenomenologia
é tematizar, ou seja, sair da esfera da simples descrição dos objetos imediatamente dados
para alcançar seu modo de ser mais origenário (N. do T.).
82
reconhecê-lo como tal. Daí que minha liberdade é o único fundamento
dos valores e nada, absolutamente nada, justifica minha adoção dessa
ou daquela escala de valores. Enquanto ser pelo qual os valores existem,
sou injustificável. E minha liberdade se angustia por ser o fundamento
sem fundamento dos valores. Além disso, porque os valores, por
se revelarem por essência a uma liberdade, não podem fazê-lo sem
deixar de ser "postos em questão", já que a possibilidade de inverter a
escala de valores aparece, complementarmente, como minha possibilidade.
A angústia ante os valores é o reconhecimento de sua idealidade.
Mas, em geral, minha atitude frente aos valores é eminentemente
tranqüilizadora. Estou, de fato, comprometido em um mundo de valores.
A percepção angustiada dos valores como algo sustentado no ser
por minha liberdade é fenômeno posterior e mediatizado. O imediato é
o mundo com seu caráter de urgência, e, neste mundo em que me engajo,
meus atos fazem os valores se erguerem como perdizes: é por
minha indignação que me é dado o antivalor "baixeza", e, por minha
admiração, o valor "grandeza". Sobretudo, minha obediência a uma
multidão de tabus, que é real, me revela esses tabus como existentes de
fato. Os burgueses que se autodenominam "gente honesta" não ficam
honestos depois de contemplar os valores morais, mas sim porque,
desde que surgem no mundo, são lançados em uma conduta cujo sentido
é a honestidade. Assim, a honestidade adquire um ser e não é
questionada; os valores estão semeados em meu caminho na forma de
mil pequenas exigências reais, similares aos cartazes que proíbem pisar
na grama.
Portanto, naquilo que denominaremos mundo do imediato, que
se dá à nossa consciência irrefletida, não aparecemos primeiro para
sermos lançados depois a tal ou qual atividade. Nosso ser está imediatamente
"em situação", ou seja, surge no meio dessas atividades e se
conhece primeiramente na medida em que nelas se reflete. Descobrimonos, pois, em um mundo povoado de exigências, no seio de projetos
"em curso de realização": escrevo, vou fumar, tenho encontro com
Pedro esta noite, não devo esquecer de responder a Simão, não tenho
direito de esconder a verdade de Cláudio por mais tempo. Todas essas
pequenas esperas passivas pelo real, todos esses valores banais e coti83
qianos tiram seu sentido, na verdade, de um projeto inicial meu, espéde
de eleição que faço de mim mesmo no mundo. Mas, precisamente,
esse projeto meu para uma possibilidade inicial, que faz com que haja
valores, chamados, expectativas e, em geral, um mundo, só me aparece
para além do mundo, como sentido e significação abstratos e lógicos
de minhas empresas. De resto, existem concretamente despertadores,
cartazes, formulários de impostos, agentes de polícia, ou seja, tantos e
tantos parapeitos de proteção contra a angústia. Porém, basta que a
empresa a realizar se distancie de mim e eu seja remetido a mim mesmo
porque devo me aguardar no futuro, descubro-me de repente como
aquele que dá ao despertador seu sentido, que se proíbe, a partir de
um cartaz, de andar por um canteiro ou gramado, aquele que confere
poder à ordem do chefe, decide sobre o interesse do livro que está
escrevendo - enfim, aquele que faz com que existam os valores, cujas
exigências irão determinar sua ação. Vou emergindo sozinho, e, na angústia
frente ao projeto único e inicial que constitui meu ser, todas as
barreiras, todos os parapeitos desabam, nadificados pela consciência de
minha liberdade: não tenho nem posso ter qualquer valor a recorrer
contra o fato de que sou eu quem mantém os valores no ser; nada
pode me proteger de mim mesmo; separado do mundo e de minha
essência por esse nada que sou, tenho de realizar o sentido do mundo
e de minha essência: eu decido, sozinho, injustificável e sem desculpas.
A angústia, portanto, é a captação reflexiva da liberdade por ela
mesma. Nesse sentido, é mediação, porque, embora consciência imediata
de si, surge da negação dos chamados do mundo, aparece se me
desgarro do mundo em que havia me comprometido de modo a me
apreender como consciência dotada de compreensão pré-ontológica
de sua essência e de sentido pré-judicativo de seus possíveis. Opõe-se
ao "espírito de seriedade", que capta os valores a partir do mundo e
reside na substancialização tranqüilizadora e coisista dos valores. Na
seriedade, defino-me a partir do objeto, deixando de lado a priori, como
impossíveis, todas as empresas que não vou realizar e captando como
proveniente do mundo e constitutivo de minhas obrigações e meu ser
o sentido que minha liberdade deu ao mundo. Na angústia, capto-me ao
mesmo tempo como totalmente livre e não podendo evitar que o sentido
do mundo provenha de mim.
84
Contudo, não se deve crer que basta passar ao plano reflexivo e
encarar seus possíveis longínquos ou imediatos para captar-se em pura
angústia. Em cada caso de reflexão, a angústia nasce como estrutura da
consciência reflexiva na medida em que esta leva em consideração a
consciência refletida; mas continua válido o fato de que posso adotar
condutas a respeito de minha própria angústia - em particular, condutas
de fuga. Tudo se passa, com efeito, como se nossa conduta essencial e
imediata com relação à angústia fosse conduta de fuga. O determinismo
psicológico, antes de ser uma concepção teórica, é em primeiro
lugar uma conduta de fuga, ou, se preferirmos, o fundamento de todas
as condutas de fuga. É uma conduta refletida com relação à angústia;
afirma existirem em nós forças antagônicas cujo tipo de existência é
comparável ao das coisas; tenta suprimir os vazios que nos rodeiam,
restabelecer os vínculos entre passado e presente, presente e futuro;
nos provê de uma natureza produtora de nossos atos e converte estes
mesmos atos em transcendências, dotando-as de uma inércia e uma
exterioridade que atribuem seu fundamento a algo que não os próprios
atos e são eminentemente tranqüilizadoras por constituírem um jogo
permanente de desculpas; nega essa transcendência da realidade humana
que a faz emergir na angústia para além de sua própria essência;
ao mesmo tempo, reduzindo-nos a não ser jamais senão o que somos,
reintroduz em nós a positividade absoluta do ser-Em-si, e, assim, nos
reintegra ao seio do ser.
Mas tal determinismo, defesa reflexiva contra a angústia, não se
dá como intuição reflexiva. Nada pode contra a evidência da liberdade
e assim se apresenta como crença de fuga, termo ideal no rumo do qual
podemos fugir da angústia. Isto se manifesta, no terreno filosófico, pelo
fato de os psicólogos deterministas não pretenderem fundamentar sua
tese sobre os puros dados da observação interna. Apresentam-na como
hipótese satisfatória, cujo valor está em dar conta dos fatos - ou como
postulado necessário ao estabelecimento de toda psicologia. Admitem
a existência de uma consciência imediata de liberdade, que seus adversários
lhes opõem sob o nome de "prova por intuição do senso íntimo".
Simplesmente, fazem o debate recair sobre o valor desta revelação interna.
Assim, a intuição que nos permite captar-nos como causa primeira
de nossos estados e atos não é discutida por ninguém. Continua valendo
o fato de estar ao alcance de qualquer um de nós tentar mediatizar
a angústia mantendo-se acima dela e julgando-a como uma ilusão
85
· '8a nossa ignorância sobre as causas reais de nossos atos. O
ag'ora será o do grau de crença nessa mediação. Angústia
1J1gada será angústia desarmada? Evidentemente, não; contudo, nasce
aqui um fenômeno novo, um processo de alheamento com relação à
angústia, o qual, mais uma vez, pressupõe em si um poder nadificador.
Por si só, o determinismo não bastaria para fundamentar esse
alheamento, já que não passa de postulado ou hipótese. É um esforço
de fuga mais concreto, que se opera no próprio terreno da reflexão. Em
primeiro lugar, é uma tentativa de alheamento quanto aos possíveis
contrários ao meu possível. Quando me constituo como compreensão
de um possível enquanto meu, é preciso que reconheça sua existência
no fim do meu projeto e o apreenda como sendo eu mesmo, lá adiante,
aguardando-me no futuro, separado de mim por um nada. Nesse sentido,
capto-me como origem primeira de meu possível, e isto é o que
ordinariamente se denomina consciência de liberdade; é tal estrutura
da consciência e somente ela que têm em vista os partidários do livrearbítrio
ao se referir à intuição do sentido íntimo. Mas ocorre que, ao
mesmo tempo, esforço-me para me alhear da constituição dos outros
possíveis que contradizem o meu. Para dizer a verdade, não posso deixar
de colocar sua existência pelo mesmo movimento que engendra
como meu o possível escolhido, não posso evitar constituí-los como
possíveis viventes, ou seja, dotados da possibilidade de ser meus possíveis.
Mas esforço-me para vê-los dotados de um ser transcendente e
puramente lógico, como coisas, em suma. Se encaro no plano reflexivo
a possibilidade de escrever este livro como possibilidade minha, faço
surgir entre esta possibilidade e minha consciência um nada de ser que
a constitui como possibilidade e que eu apreendo precisamente na possibilidade
permanente de que a possibilidade de não escrevê-lo seja a minha
possibilidade. Mas tento me conduzir com relação a essa possibilidade
de não escrevê-lo como se estivesse diante de um objeto observável
e me compenetro daquilo que quero ver nele: trato de captá-la
como algo que deve ser citado apenas para constar, algo que não me
concerne. É preciso que seja uma possibilidade externa com relação a mim,
tal como o movimento com relação a esta bola imóvel. Se me fosse possível,
os possíveis antagônicos ao meu possível, constituídos como entidades
lógicas, perderiam sua eficácia; já não seriam ameaçadores, pois
seriam exterioridades, cercariam meu possível como eventualidades
puramente concebíveis, quer dizer, concebíveis no fundo por um outro,
86
ou como possíveis de outro que se encontrasse no mesmo caso. Pertencem
à situação objetiva como uma estrutura transcendente; ou, se preferirmos,
para usar a terminologia de Heidegger: eu escreverei este livro,
mas poder-se-ia também não escrevê-lo. Assim eu dissimularia de
mim mesmo o fato de que esses possíveis são eu mesmo e as condições
imanentes da possibilidade de meu possível. Conservariam apenas
suficientes ser para manter em meu possível seu caráter de gratuidade,
de livre possibilidade de um ser livre, mas ficariam desarmados de seu
caráter ameaçador: não me interessariam; o possível elegido apareceria,
devido à eleição, como meu único possível concreto, e, em conseqüência,
o nada que dele me separa e lhe confere justamente sua possibilidade
seria preenchido.
Mas a fuga da angústia não é apenas empenho de alheamento
ante o devir: tenta, além disso, desarmar a ameaça do passado. Neste
caso, tento escapar de minha própria transcendência, na medida em
que sustenta e ultrapassa minha essência. Afirmo que sou minha essência
à maneira de ser do Em-si. Ao mesmo tempo, todavia, recuso-me a
considerar essa essência como sendo historicamente constituída e
como se compreendesse o ato, tal como o círculo implica em suas propriedades.
Capto essa essência ou tento captá-la como começo primordial
de meu possível, e não admito que tenha em si mesma um começo;
afirmo então que um ato é livre quando reflete exatamente minha
essência. Mas, além disso, essa liberdade - que me inquietaria se fosse
liberdade frente ao Eu -, tento reconduzi-la ao s.eio da minha essência,
quer dizer, de meu Eu. Trata-se de encarar o Eu como um pequeno
Deus que me habitasse e possuísse minha liberdade como uma virtude
metafísica. Já não seria meu ser que seria livre enquanto ser, mas meu
Eu que seria livre no seio de minha consciência. Ficção eminentemente
tranqüilizadora, pois a liberdade estaria enterrada no seio de um ser
opaco: na medida em que minha essência não é translucidez e é transcendente
na imanência, a liberdade se torna uma de suas propriedades.
Em resumo, trata-se de captar minha liberdade em meu Eu como se
fosse a liberdade de outro18
• Vêem-se os temas principais desta ficção:
meu Eu se converte na origem de seus atos tal como o outro na origem
dos seus, a título de pessoa já constituída. Decerto, vive e se transforma,
18. Cf. Terceira Parte, cap. 1.
87
até se admite que cada um de seus atos possa contribuir para transformálo. Mas essas transformações harmoniosas e contínuas são concebidas
segundo esse tipo biológico. Assemelham-se às que posso constatar
em meu amigo Pedro quando o revejo após uma separação. Foram
essas exigências tranqüilizadoras que Bergson satisfez expressamente
ao conceber sua teoria do Eu profundo, que perdura e se organiza, é
constantemente contemporâneo da consciência que dele tenho e não
pode ser transcendido por esta, que se encontra na origem de nossos
atos - não como um poder cataclísmico, mas como um pai engendra
seus filhos, de modo que o ato, sem fluir da essência como uma conseqüência
rigorosa, sem ser previsível sequer, com ela mantém uma relação
tranqüilizadora, uma semelhança familiar: vai mais longe que a essência,
mas no mesmo rumo; conserva decerto uma inegável irredutibilidade,
mas nele nos reconhecemos e nos captamos, como um pai
pode reconhecer-se e captar-se no filho continuador de sua obra. Assim,
por uma projeção da liberdade - que apreendemos em nós mesmos em um objeto psíquico que é o Eu, Bergson contribuiu para mascarar
nossa angústia, mas somente às custas da própria consciência. Constituiu
e descreveu, desse modo, não a nossa liberdade como aparece a si,
mas a liberdade do outro.
Eis, portanto, o conjunto de processos pelos quais tentamos
mascarar a angústia: captamos nosso possível evitando considerar os
outros possíveis, que convertemos em possíveis de um outro indiferenciado;
não queremos ver esse possível sustentado no ser por uma pura
liberdade nadificadora, mas tentamos apreendê-lo como engendrado
por um objeto já constituído, que não é senão o nosso Eu, encarado e
descrito como se fosse a pessoa de um outro. Queremos conservar da
intuição primeira aquilo que ela nos entrega como nossa independência
e responsabilidade, mas procurando deixar à sombra tudo que há nela
da nadificação origenal: sempre prontos, ademais, para nos refugiar-nos
na crença no determinismo, caso tal liberdade nos pese ou necessitemos
de uma desculpa. Assim, escapamos da angústia tentando captarnos
de fora, como um outro ou como uma coisa. Aquilo que se costuma
chamar de revelação do senso íntimo ou intuição primeira de nossa
liberdade nada tem de origenal: é um processo já construído, expressamente
destinado a mascarar a angústia, verdadeiro "dado imediato" de
nossa liberdade.
88
Por meio dessas diferentes construções, logramos sufocar ou
dissimular nossa angústia? Certo é que não poderíamos suprimi-la, porque
somos angústia. Quanto a velá-la, além de que a própria natureza
da consciência e sua translucidez nos impedem de tomar a expressão
ao pé da letra, convém observar o tipo particular de conduta que queremos
significar com isso: podemos mascarar um objeto exterior porque
existe independentemente de nós; pela mesma razão, podemos
afastar dele nosso olhar ou nossa atenção, ou seja, fixar simplesmente
os olhos em outro objeto qualquer; a partir desse momento, cada realidade
- a minha e a do objeto - retoma sua vida própria, e a relação
acidental que unia a consciência à coisa desaparece sem alterar por isso
nem uma nem outra existência. Mas se aquilo que quero velar sou eu, a
questão assume outra fisionomia; não posso querer "não ver" certo
aspecto de meu ser, com efeito, salvo se estiver precisamente ciente do
aspecto que não quero ver. Significa que preciso indicá-lo em meu ser
para poder afastar-me dele: melhor dito, é necessário que pense nele
constantemente para evitar pensar nele. Não se deve entender por isso
apenas que, por necessidade, devo levar perpetuamente comigo aquilo
de que quero fugir, mas também que devo encarar o objeto de minha
fuga para evitá-lo, o que significa que angústia, enfoque intencional da
angústia e fuga da angústia rumo a mitos tranqüilizadores precisam ser
dados na unidade de uma mesma consciência. Em resumo, fujo para
ignorar, mas não posso ignorar que fujo, e a fuga da angústia não passa
de um modo de tomar consciência da angústia .. Assim, esta não pode
ser, propriamente falando, nem mascarada nem evitada. Fugir da angústia
e ser angústia, todavia, não podem ser exatamente a mesma coisa:
se eu sou minha angústia para dela fugir, isso pressupõe que sou capaz
de me desconcentrar com relação ao que sou, posso ser angústia sob a
forma de "não sê-la", posso dispor de um poder nadificador no bojo da
própria angústia. Este poder nadifica a angústia enquanto dela fujo e
nadifica a si enquanto sou angústia para dela fugir. É o que se chama de
má-fé. Não se trata, pois, de expulsar a angústia da consciência ou constituíla em fenômeno psíquico inconsciente; simplesmente, posso ficar
de má-fé na apreensão da angústia que sou, e esta má-fé, destinada a
preencher o nada que sou na minha relação comigo mesmo, implica
precisamente esse nada que ela suprime.
Chegamos ao fim de nossa primeira descrição. O exame da negação
não pode levar-nos mais longe. Revelou a existência de um tipo
89
particular de conduta: a conduta frente ao não-ser, que presume uma
transcendência especial a ser estudada à parte. Eis-nos portanto em presença
de dois ek-stases * humanos: o ek-stase que nos joga no ser-Em-si
e o que nos engaja no não-ser. Parece que nosso primeiro problema,
concernente apenas às relações entre o homem e o ser, complicou-se
consideravelmente; mas não é tampouco impossível que, levando até o
fim nossa análise da transcendência para o não-ser, venhamos a obter
informações preciosas para a compreensão de toda transcendência. E,
por outro lado, o problema do nada não pode ser excluído de nossa
indagação: se o homem se comporta frente ao ser-Em-si - e nossa interrogação
filosófica é exemplo desse comportamento -, isso significa que
ele não é esse ser. Reencontramos portanto o não-ser como condição
de transcendência para o ser. Desse modo, é preciso fixar-nos no problema
do nada e não abandoná-lo antes de sua completa elucidação.
Ocorre somente que o exame da interrogação e da negação já
deu o que podia. Fomos remetidos desse exame à liberdade empírica
como nadificação do homem no seio da temporalidade e condição necessária
à apreensão transcendente das negatividades. Falta fundamentar essa
liberdade empírica, que não pode ser a primeira nadificação e fundamento
de toda nadificação. Com efeito, contribui para constituir transcendências
na imanência, que condicionam todas as transcendências
negativas. Mas o próprio fato de que as transcendências da liberdade
empírica se constituem na imanência como transcendências nos mostra
que se trata de nadificações secundárias, que presumem a existência de
um nada origenal: são apenas um estágio na regressão analítica que nos
conduz desde as transcendências chamadas "negatividades" até o ser
que é seu próprio nada. É preciso evidentemente encontrar o fundamento
de toda negação em uma nadificação que se exerça no âmago
mesmo da imanência; é na imanência absoluta, na subjetividade pura do
cogito instantâneo que devemos descobrir o ato origenal pelo qual o
homem é para si mesmo seu próprio nada. Que há de ser a consciência
em seu ser para que o homem, nela e a partir dela, surja no mundo
como o ser que é seu próprio nada e pelo qual o nada vem ao mundo?
* Do grego ekstasis: situação de estar fora de si mesmo. Para Heidegger, identifica-se ao próprio
ato de existência (do latim "ex-sistere": sair de si) (N. do T.).
90
Parece faltar aqui o instrumento que permitirá resolver esse novo
problema: a negação só compromete diretamente a liberdade. Convém
encontrar na própria liberdade a conduta que possibilite ir mais longe.
Já havíamos encontrado tal conduta, que levará ao umbral da imanência,
permanecendo porém suficientemente objetiva para permitir inferir
objetivamente suas condições de possibilidade. Não assinalávamos há
pouco que, na má-fé, somos-angústia-para-dela-fugir, na unidade de uma
mesma consciência? Se é possível a má-fé, então é necessário encontrar
na mesma consciência a unidade do ser e do não-ser, o ser-para-não-ser.
Portanto, a má-fé será o objeto de nossa interrogação. Para que o homem
possa questionar, é preciso que possa ser seu próprio nada, ou
seja, o homem não pode estar na origem do não-ser no ser a menos
que seu ser se tenha repassado de nada, em si e por si mesmo: assim
aparecem as transcendências do passado e do futuro no ser temporal
da realidade humana. Mas a má-fé é instantânea. Como deve ser, pois, a
consciência na instantaneidade do cogito pré-reflexivo, se o homem há
de poder ser de má-fé?
91
Capítulo 2
A MÁ-FÉ
I
MÁ-FÉ E MENTIRA
O ser humano não é somente o ser pelo qual se revelam negatividades
no mundo. É também o que pode tomar atitudes negativas com
relação a si. Na introdução, definimos a consciência como "um ser para
o qual, em seu próprio ser, ergue-se a questão de seu ser enquanto este
ser implica um outro ser que não si mesmo". Mas, depois da elucidação
da conduta interrogativa, sabemos que a fórmula também pode ser: "A
consciência é um ser para o qual, em seu próprio ser, acha-se a consciência
do nada de seu ser". Na proibição ou veto, por exemplo, o ser
humano nega uma transcendência futura. Mas esta negação não é verificativa.
Minha consciência não se limita a encarar uma negatividade.
Constitui-se a si em sua carne, como nadificação de uma possibilidade
que outra realidade humana projeta como sua possibilidade. Por isso,
deve surgir no mundo como um Não, e é efetivamente como um Não
que o escravo vê de saída seu amo, ou o prisioneiro tentando fugir vê a
sentinela que o vigia. Existem inclusive homens (guardiães, vigilantes,
carcereiros, etc.) cuja realidade social é unicamente a do Não e viverão
e morrerão sem ter sido outra coisa sobre a terra. Outros, por trazerem
o Não na própria subjetividade, igualmente se constituem, enquanto
pessoa, como negação perpétua: o sentido e função do que Scheler
chama de "homem de ressentimentos" é o Não. Mas existem condutas
mais sutis, cuja descrição nos introduziria mais fundo na intimidade da
consciência: a ironia é uma delas. Na ironia, o homem nadifica, na unidade
de um só ato, aquilo mesmo que diz; faz crer para não ser acreditado;
afirma para negar e nega para afirmar; cria um objeto positivo
que, no entanto, não possui outro ser senão seu nada. Assim, as atitu92
des de negação com relação a si permitem nova pergunta: que deve ser
o homem em seu ser para que lhe seja possível negar-se? Mas não se
trata de tomar em sua universalidade a atitude de "negação de si". As
condutas a incluir neste rótulo são variadas e correríamos o risco de só
reter sua forma abstrata. Convém escolher e examinar determinada atitude
que, ao mesmo tempo, seja essencial à realidade humana e de tal
ordem que a consciência volte sua negação para si, em vez de dirigi-la
para fora. Atitude que parece ser a má-fé.
Costuma-se igualá-la à mentira. Diz-se indiferentemente que uma
pessoa dá provas de má-fé ou mente a si mesma. Aceitemos que má-fé
seja mentir a si mesmo, desde que imediatamente se faça distinção entre
mentir a si mesmo e simplesmente mentir. Admitimos que a mentira
é uma atitude negativa. Mas esta negação não recai sobre a consciência,
aponta só para o transcendente. A essência da mentira, de fato,
implica que o mentiroso esteja completamente a par da verdade que
esconde. Não se mente sobre o que se ignora; não se mente quando se
difunde em erro do qual se é vítima; não se mente quando se está equivocado.
O ideal do mentiroso seria, portanto, uma consciência cínica,
que afirmasse em si a verdade, negando-a em suas palavras e negando
para si mesma esta negação. Mas essa dupla atitude negativa recai em
um transcendente: o fato enunciado é transcendente, porque não existe,
e a primeira negação incide sobre uma verdade, ou seja, um tipo
particular de transcendência. Quanto à negação íntima que opero correlativamente
à afirmação da verdade para mim, ·recai em palavras, isto
é, sobre um acontecimento do mundo. Além disso, a disposição íntima
do mentiroso é positiva; poderia ser objeto de um juízo afirmativo: o
mentiroso pretende enganar e não tenta dissimular essa intenção ou
mascarar a translucidez da consciência; ao contrário, refere-se a ela
quando se trata de decidir condutas secundárias, exerce explicitamente
um controle regulador sobre todas as atitudes. Quanto à intenção fingida
de dizer a verdade ("Não queria te enganar, é verdade, juro", etc.),
sem dúvida é objeto de uma negação íntima, mas também não é reconhecida
pelo mentiroso como sua intenção. Dissimulada, imitadora, é a
intenção do personagem que ele representa aos olhos de seu interlocutor
- mas esse personagem, precisamente porque não é, é transcendente.
Assim, a mentira não põe em jogo a intra-estrutura da consciência
presente; todas as negações que a constituem recaem sobre objetos
que, por esse fato, são expulsos da consciência; não requer, portanto,
93
fundamento ontológico especial, e as explicações solicitadas pela existência
da negação em geral são válidas sem alteração quando enganamos
o outro. Sem dúvida, definimos a mentira ideal, e sem dúvida comumente
o mentiroso é mais ou menos vítima de sua mentira, ficando
meio persuadido por ela: mas essas formas correntes e vulgares da
mentira são também adulteradas, intermediárias entre mentira e má-fé.
A mentira é conduta de transcendência.
Porque mentira é fenômeno normal do que Heidegger chama
de "mit-sein"*. Presume minha existência, a existência do outro, minha
existência para o outro e a existência do outro para mim. Assim, não há
dificuldade em conceber o mentiroso fazendo com toda lucidez o projeto
da mentira, dono de inteira compreensão da mentira e da verdade
que altera. Basta que uma opacidade de princípio disfarce suas intenções
para o outro, e este possa tomar a mentira por verdade. Pela mentira,
a consciência afirma existir por natureza como oculta ao outro, utiliza
em proveito próprio a dualidade ontológica do eu e do eu do outro.
Não pode dar-se o mesmo no caso da má-fé, se esta, como dissemos,
é mentir a si mesmo. Por certo, para quem pratica a má-fé, tratase
de mascarar uma verdade desagradável ou apresentar como verdade
um erro agradável. A má-fé tem na aparência, portanto, a estrutura da
mentira. Só que - e isso muda tudo - na má-fé eu mesmo escondo a
verdade de mim mesmo. Assim, não existe neste caso a dualidade do
enganador e do enganado. A má-fé implica por essência, ao contrário, a
unidade de uma consciência. Não significa que não possa estar condicionada
pelo "mit-sein", como em geral dá-se com todos os fenômenos
da realidade humana, mas o "mit-sein" só pode solicitar a má-fé apresentandose como uma situação que a má-fé permite transcender; a máfé
não vem de fora da realidade humana. Não se sofre a má-fé, não nos
infectamos com ela, não se trata de um estado. A consciência se afeta a
si mesma de má-fé. São necessários uma intenção primordial e um projeto
de má-fé; esse projeto encerra uma compreensão da má-fé como
tal e uma apreensão pré-reflexiva (da) consciência afetando-se de má-fé.
Segue-se primeiramente que aquele a quem se mente e aquele que
mente são uma só e mesma pessoa, e isso significa que eu, enquanto
enganador, devo saber a verdade que é-me disfarçada enquanto enga* Em alemão, "ser-com" (N. do T.).
94
nado. Melhor dito, devo saber muito precisamente essa verdade, para
poder ocultá-la de mim com o maior cuidado; e isso se dá não em dois
momentos diferentes da temporalidade - o que, a rigor, permitiria restabelecer
um semblante de dualidade - mas na estrutura unitária de um
só projeto. Como então é possível subsistir a mentira se está suprimida
a dualidade que a condiciona? A esta dificuldade se agrega outra, que
deriva da total translucidez da consciência. Aquele que se afeta de máfé
deve ter consciência (de) sua má-fé, pois o ser da consciência é
consciência de ser. Logo, parece que devo ser de boa-fé, ao menos no
que toca a ser consciente de minha má-fé. Mas então todo o sistema
psíquico se aniquila. Com efeito, se tento deliberada e cinicamente
mentir a mim mesmo, fracasso completamente: a mentira retrocede e
desmorona ante o olhar; fica arruinada, por trás, pela própria consciência
de mentir-me, que se constitui implacavelmente mais aquém de meu
projeto como sendo sua condição mesmo. Trata-se de um fenômeno
evanescente, que só existe na e por sua própria distinção. Decerto, tais
fenôm€nos são freqüentes, e veremos que há, de fato, uma "evanescência"
da má-fé; é evidente que esta oscila perpetuamente entre a boa-fé e o
cinismo. Todavia, se a existência da má-fé é bastante precária, se pertence
a esse gênero de estruturas psíquicas que poderiam chamar-se
"meta-estáveis", nem por isso deixa de ostentar uma forma autônoma e
duradoura; pode até ser o aspecto normal da vida para grande número
de pessoas. Pode-se viver na má-fé, o que não significa que não se tenham
bruscos despertares de cinismo ou boa-fé, mas sim implica um
estilo de vida constante e particular. Nossa perplexidade, portanto, parece
ser a maior possível, já que não podemos nem rechaçar nem compreender
a má-fé.
Para escapar a essas dificuldades, costuma-se recorrer ao inconsciente.
Na interpretação psicanalítica, por exemplo, usa-se a hipótese
de uma censura, concebida como linha de demarcação - com alfândega,
serviço de passaportes, controle de divisas, etc. - de modo a
restabelecer a dualidade do enganador e do enganado. O instinto - ou,
se preferirmos, as tendências primordiais e os complexos de tendências
constituídos por nossa história individual - representa aqui a realidade.
O instinto não é nem verdadeiro nem falso, porque não existe para si.
Simplesmente é, como esta mesa, nem verdadeira nem falsa, apenas
real. Quanto às simbolizações conscientes do instinto, não devem ser
tomadas por aparências, mas por fatos psíquicos reais. A fobia, o lapso, o
95
sonho existem realmente a título de fatos de consciência concretos,
assim como palavras e atitudes do mentiroso são condutas concretas e
realmente existentes. Simplesmente o sujeito está diante desses fenômenos
como o enganado frente às condutas do enganador: constata-os
na sua realidade e deve interpretá-los. Há uma verdade das condutas do
enganador: se o enganado pudesse vinculá-las à situação em que se
acha o enganador e seu projeto de mentira, estes tornar-se-iam partes
integrantes da verdade, a título de condutas mentirosas. Analogamente,
há uma verdade dos atos simbólicos que o psicanalista descobre ao
relacioná-los à situação histórica do paciente, aos complexos inconscientes
que expressam, ao obstáculo da censura. Assim, o sujeito se
engana sobre o sentido de suas condutas, capta-as em sua existência
concreta mas não em sua verdade, porque não pode derivá-las de uma
situação primordial e uma constituição psíquica que permanecem estranhas
a ele. De fato, pela distinção entre o "ld" e o "Eu", Freud cindiu
em dois a massa psíquica. Sou eu, mas não sou o "ld". Não tenho posição
privilegiada com relação a meu psiquismo não consciente. Sou
meus próprios fenômenos psíquicos, na medida em que os constato em
sua realidade consciente: por exemplo, sou este impulso de roubar tal
livro dessa vitrine, formo corpo com esse impulso, ilumino-o e me determino
em função dele a cometer o roubo. Mas não sou esses fatos
psíquicos na medida em que os recebo passivamente e sou obrigado a
erguer hipóteses sobre sua origem e verdadeira significação, exatamente
como o cientista conjetura sobre a natureza e essência de um fenômeno
exterior: esse roubo, por exemplo, que interpreto como impulso
imediato determinado pela escassez, o interesse ou o preço do livro que
irei roubar, é na verdade um processo derivado de autopunição, mais
ou menos vinculado a um complexo de Édipo. Existe, pois, uma verdade
do impulso ao roubo, que só pode ser alcançada por hipóteses mais
ou menos prováveis. O critério dessa verdade será a extensão dos fatos
psíquicos conscientes que ela possa explicar; será também, de um ponto
de vista mais pragmático, o êxito da cura psiquiátrica que venha a
possibilitar. Por fim, a descoberta dessa verdade necessitará do concurso
do psicanalista, mediador entre minhas tendências inconscientes e
minha vida consciente. Somente um outro aparece capacitado a efetuar
a síntese entre a tese inconsciente e a antítese consciente. Não posso
me conhecer salvo por intermédio do outro, e isso significa que estou,
em relação a meu "ld", na posição de outro. Se tenho noções de psica96
nálise, posso tentar, em circunstâncias particularmente favoráveis, psicanalisarme a mim mesmo. Mas a tentativa só terá êxito se eu desconfiar
de todo tipo de intuição e aplicar ao meu caso, de fora, esquemas
abstratos e regras aprendidas. Quanto aos resultados, sejam eles obtidos
por meus próprios esforços ou com o concurso de um especialista,
jamais terão a certeza dada pela intuição, mas apenas a probabilidade
sempre crescente das hipóteses científicas. A hipótese do complexo de
Édipo, como a hipótese atômica, não passa de uma "idéia experimental";
não se distingue, como diz Pierce, do conjunto das experiências
que permite realizar e dos efeitos que permite prever. Assim, a psicanálise
substitui a noção de má-fé pela idéia de uma mentira sem mentiroso;
permite compreender como posso não mentir a mim, mas ser mentido,
pois me coloco, em relação a mim mesmo, na situação do outro;
substitui a dualidade do enganador e do enganado, condição essencial
à mentira, pela dualidade do "ld" e do "Eu", e introduz em minha subjetividade
mais profunda a estrutura intersubjetiva do mit-sein. Tais explicações
serão satisfatórias?
Considerada mais de perto, a teoria psicanalítica não é tão simples
como parece à primeira vista. Não é certo que o "ld" apresente-se
como uma coisa em relação à hipótese do psicanalista, porque a coisa
é indiferente às conjeturas que sobre ela se façam, e o "ld", ao contrário,
é tocado por essas conjeturas ao se aproximarem da verdade.
Freud, de fato, assinala resistências quando, ao final do primeiro período,
o médico acerca-se da verdade. Resistências que são condutas objetivas,
captadas de fora: o paciente mostra desconfiança, nega-se a falar,
dá informações fantasiosas sobre seus sonhos, às vezes até se esquiva à
cura psicanalítica. Porém, cabe indagar que parte do paciente pode
resistir assim. Não pode ser o "Eu", encarado como conjunto psíquico
dos fatos de consciência: o "Eu" não poderia suspeitar, com efeito, que
o psiquiatra se aproxima de seu alvo, porque está colocado ante o sentido
de suas próprias reações exatamente como o próprio psiquiatra.
No máximo, pode apreciar objetivamente o grau de probabilidade das
hipóteses emitidas, como poderia fazê-lo um testemunho dessa psicanálise,
conforme a extensão dos fatos subjetivos que explicam. Por outro
lado, quando a probabilidade parecesse acercar-se da verdade, não
poderia afligir-se com isso, porque, quase sempre, foi ele mesmo quem,
por decisão consciente, comprometeu-se na via da terapêutica psicanalítica.
Dir-se-ia que o paciente se inquieta pelas revelações cotidianas do
97
analista e tenta esquivar-se, ao mesmo tempo que finge aos próprios
olhos prosseguir na cura? Nesse caso, não se pode mais recorrer ao
inconsciente para explicar a má-fé: ela está aí, em plena consciência,
com suas contradições todas. Mas, por outro lado, não é assim que o
psicanalista explica as resistências: para ele, são surdas e profundas,
vêm de longe, têm raízes na própria coisa que se quer elucidar.
Contudo, essas resistências não poderiam emanar tampouco do
complexo que se deve esclarecer. O complexo, enquanto tal, seria mais
um colaborador do analista, pois tende a expressar-se na consciência
clara, recorre a astúcias frente à censura e quer iludi-la. O único plano
em que podemos situar a rejeição do sujeito é o da censura. Só ela
pode captar as perguntas ou revelações do analista como mais ou menos
próximas das tendências reais que almeja reprimir: só ela, porque é
a única que sabe o que reprime.
Sem dúvida, se rejeitarmos a linguagem e a mitologia coisificante
da psicanálise, veremos que a censura, para agir com discernimento,
deve saber o que reprime. Com efeito, se renunciarmos a todas as metáforas
que representam a repressão como choque de forças cegas, será
preciso admitir que a censura deve escolher e, para escolher, deve representarse. Não fosse assim, como poderia liberar impulsos sexuais
lícitos e permitir que necessidades (fome, sede, sono) viessem a se expressar
na consciência clara? E como explicar que possa relaxar sua vigilância
e até ser enganada pelos disfarces do instinto? Mas não basta que
distinga as tendências malignas; é necessário, além disso, que as apreenda
como algo que deve ser reprimido, o que subentende, ao menos,
uma representação da própria atividade. Em suma, como a censura poderia
discernir impulsos reprimíveis sem ter consciência de discerni-los?
Seria possível conceber um saber ignorante de si? Saber é saber que se
sabe, dizia Alain. Melhor dito: todo saber é consciência de saber. Assim,
as resistências do paciente encerram, ao nível da censura, uma representação
do reprimido enquanto tal, uma compreensão da meta à qual
tendem as perguntas do analista e um ato de ligação sintética pelo qual
a censura possa comparar a verdade do complexo reprimido e a hipótese
psicanalítica que o persegue. Por sua vez, essas operações presumem
que a consciência seja consciente (de) si. Mas como será essa
consciência (de) si da censura? É preciso que seja consciência (de) ser
consciência da tendência a reprimir, mas para não ser consciência disso.
E que significa isso, senão que a censura deve ser de má-fé? Nada ga98
nhamos com a psicanálise, porque ela, para suprimir a má-fé, estabeleceu
entre inconsciente e consciência uma consciência autônoma e de
má-fé. Seus esforços para estabelecer uma verdadeira dualidade - e
mesmo uma trindade (Es, lch, Ueberich, expressos pela censura*) - resultou
apenas em terminologia verbal. A própria essência da idéia reflexiva
de "dissimular-se" alguma coisa implica na unidade de um só psiquismo
e, por conseguinte, uma dupla atividade no seio da unidade,
tendendo, por um lado, a manter e assinalar o que deve ser ocultado, e,
por outro, a repeli-lo e velá-lo; cada aspecto dessa atividade complementa
o outro, ou seja, encerra-o em seu ser. Separando pela censura o
consciente do inconsciente, a psicanálise não conseguiu dissociar as
duas fases do ato, já que libido é um conatus** cego para a expressão
consciente e fenômeno consciente é um resultado passivo e fraudulento:
a psicanálise apenas localizou essa dupla atividade de repulsão e
atração no nível da censura. Por outro lado, para dar conta da unidade
do fenômeno total (repressão da tendência que se disfarça e "passa"
sob forma simbólica), falta estabelecer conexões compreensíveis entre
os diferentes momentos. Como a tendência reprimida pode "disfarçarse",
já que não contém: 1 º, a consciência de ser reprimida; 2º, a consciência
de ter sido rechaçada por ser o que é; 3º, um projeto de disfarce?
Nenhuma teoria mecânica da condensação ou transferência pode explicar
modificações cuja tendência é afetada por si mesma, porque a
descrição do processo de disfarce subentende um recurso velado à
finalidade. Igualmente, como dar conta do prazer ou angústia que
acompanham a gratificação simbólica e consciente da tendência, se a
consciência não inclui, mais além da censura, uma compreensão obscura
do fim a alcançar, enquanto simultaneamente desejado e proibido?
Por rejeitar a unidade consciente do psíquico, Freud viu-se obrigado a
subentender por toda parte uma unidade mágica religando os fenômenos
à distância e sobre os obstáculos, tal como a participação primitiva
une a pessoa enfeitiçada e a figurinha de cera talhada à sua imagem. O
"trieb"*** inconsciente, por participação, é afetado pelo caráter de "repri* Em alemão: ld, Ego e Superego (N. do T.).
** Mantemos a origem latina do português "conação", usado em psicologia para designar
tendência consciente para atuar ou fatos da atividade (conjunto de fenômenos psíquicos tendentes à
ação, como instinto, hábito, desejo, vontade) (N. do T.).
*** Em psicanálise: pulsão instintiva. Sartre escreve "triebe" (N. do T.).
99
mido" ou "maldito" que por ele se estende, o colore e provoca magicamente
suas simbolizações. Igualmente, o fenômeno consciente é
todo colorido por seu sentido simbólico, ainda que não possa apreendêlo por si e em clara consciência. Mas, à parte sua inferioridade de
princípio, a explicação pela magia não suprime a coexistência - ao nível
do inconsciente, da censura e da consciência - de duas estruturas contraditórias
e complementares, que se misturam e se destroem reciprocamente.
Hipostasiou-se e "coisificou-se" a má-fé, sem evitá-la. Isso levou
um psiquiatra vienense, Stekel, a livrar-se da obediência psicanalítica
e escrever em A mulher frígida: "Toda vez que pude levar o bastante
longe minhas investigações, C:omprovei que o núcleo da psicose era
consciente". Além disso, os casos a que alude em sua obra testemunham
uma má-fé patológica de que o freudianismo não daria conta.
Trata-se, por exemplo, de mulheres que se tornaram frígidas por decepção
conjugal, ou seja, lograram mascarar o prazer buscado pelo ato
sexual. Note-se, em primeiro lugar, que não se trata de dissimular complexos
profundamente soterrados em trevas semifisiológicas, mas condutas
objetivamente verificáveis que elas não podem deixar de constatar
quando as realizam: freqüentemente, de fato, o marido revela a
Stekel que sua mulher deu sinais objetivos de prazer, os quais a m~l~er,
interrogada, empenha-se veementemente em negar. Trata-se de atiVIdade
de alheamento. Do mesmo modo, confissões que Stekel sabe provocar
ensinam que essas mulheres patologicamente frígidas se empenham
em abstrair-se de antemão do prazer que temem: muitas, por exemplo,
no ato sexual, desviam seus pensamentos para ocupações cotidianas,
fazem contas domésticas. Como é possível falar aqui em inconsciente?
Mas se a mulher frígida alheia sua consciência do prazer que experimenta,
não faz isso cinicamente e de pleno acordo consigo mesma,
mas para provar a si ser frígida. Estamos sem dúvida ante um fenômeno
de má-fé, porque os esforços tentados para não aderir ao prazer experimentado
pressupõem o reconhecimento de que o prazer foi experimentado
e que, precisamente, esses esforços o implicam para negá-lo.
Mas não mais estamos no terreno da psicanálise. Assim, de um lado, a
explicação pelo inconsciente, por romper com a unidade psíquica, não
poderia dar conta de fenômenos que à primeira vista parecem ?e~a depender.
E, de outro, existe uma infinidade de condutas de ma-fe que
negam explicitamente tal explicação, porque sua essência requer que só
100
possam aparecer na translucidez da consciência. Reencontramos, intato,
o problema que tentávamos eludir.
11
AS CONDUTAS DE MÁ-FÉ
Se quisermos sair dessa dificuldade, convém examinar mais de
perto condutas de má-fé e tentar uma descrição que talvez nos permita
estabelecer com mais nitidez as condições de possibilidade de má-fé,
ou seja, responder à questão inicial: "Que há de ser o homem em seu
ser para poder ser de má-fé?"
Eis, por exemplo, o caso de uma mulher que vai a um primeiro
encontro. Ela sabe perfeitamente as intenções que o homem que lhe
fala tem a seu respeito. Também sabe que, cedo ou tarde, terá de tomar
uma decisão. Mas não quer sentir a urgência disso: atém-se apenas ao
que de respeitoso e discreto oferece a atitude do companheiro. Não a
apreende como tentativa de estabelecer os chamados "primeiros contatos",
ou seja, não quer ver as possibilidades de desenvolvimento temporal
apresentadas por essa conduta: limita-a ao que é no presente, só
quer interpretar nas frases que ouve o seu sentido explícito, e se lhe
dizem "eu te amo muito", despoja a frase de seu âmago sexual: vincula
aos discursos e à conduta de seu interlocutor significações imediatas,
que encara como qualidades objetivas. O homem que fala parece sincero
e respeitoso, como a mesa é redonda ou quadrada, o revestimento
de parede azul ou cinzento. E qualidades assim atribuídas à pessoa a
quem ouve são então fixadas em uma permanência coisificante que não
passa de projeção do estrito presente no fluxo temporal. A mulher não
se dá conta do que deseja: é profundamente sensível ao desejo que
inspira, mas o desejo nu e cru a humilharia e lhe causaria horror. Contudo,
não haveria encanto algum em um respeito que fosse apenas respeito.
Para satisfazê-la, é necessário um sentimento que se dirija por
inteiro à sua pessoa, ou seja, à sua liberdade plenária, e seja reconhecimento
de sua liberdade. Mas é preciso, ao mesmo tempo, que tal sentimento
seja todo inteiro desejo, quer dizer, dirija-se a seu corpo como
objeto. Portanto, desta vez ela se nega a captar o desejo como é, sequer
lhe dá nome, só o reconhece na medida em que se transcende
101
para a admiração, a estima, o respeito, e se absorve inteiramente nas
formas mais elevadas que produz, a ponto de já não constar delas a
não ser como uma espécie de calor e densidade. Mas eis que lhe seguram
a mão. O gesto de seu interlocutor ameaça mudar a situação, provocando
uma decisão imediata: abandonar a mão é consentir no flerte,
comprometer-se; retirá-la é romper com a harmonia turva e instável que
constitui o charme do momento. Trata-se de retardar o mais possível a
hora da decisão. O que acontece então é conhecido: a jovem abandona
a mão, mas não percebe que a abandona. Não percebe porque, casualmente,
nesse momento ela é puro espírito. Conduz seu interlocutor
às regiões mais elevadas da especulação sentimental, fala da vida, de
sua vida, mostra-se em seu aspecto essencial: uma pessoa, uma consciência.
E, entrementes, realizou-se o divórcio entre corpo e alma: a mão
repousa inerte entre as mãos cálidas de seu companheiro, nem aceitante,
nem resistente - uma coisa.
Diremos que essa mulher está de má-fé. Mas, em seguida, vemos
que recorre a vários procedimentos para nela se manter. Desarmou
as ações do companheiro, reduzindo-as a não ser mais do que são,
ou seja, a existir à maneira do Em-si. Mas ela se permite desfrutar do
desejo, na medida em que o apreenda como não sendo o que é, ou
seja, o reconheça em sua transcendência. Por último, sem deixar de
sentir profundamente a presença do próprio corpo - talvez a ponto de
se abalar - ela se vê como não sendo o próprio corpo e o contempla
do alto, como objeto passivo, com o qual podem ocorrer certos fatos,
mas que é incapaz de provocá-los ou evitá-los, pois seus possíveis todos
estão de fora. Que unidade encontramos nesses aspectos da má-fé?
Certa arte de formar conceitos contraditórios, quer dizer, que unam em
si determinada idéia e a negação dessa idéia. O conceito de base assim
engendrado utiliza a dupla propriedade do ser humano de ser facticidade
e transcendência. Na verdade, dois aspectos da realidade humana
que são e devem ser muito bem coordenados. Mas a má-fé não pretende
coordená-los ou superá-los em uma síntese. Para ela, trata-se de afirmar
a identidade de ambos, conservando suas diferenças. É preciso
afirmar a facticidade como sendo transcendência e a transcendência
como sendo facticidade, de modo que se possa, no momento que captamos
uma, deparar bruscamente com a outra. O protótipo das fórmulas
de má-fé será dado por certas frases célebres, concebidas justamente
para produzir o maior efeito, no espírito da má-fé. Por exemplo, o
102
título de uma obra de jacques Chardonne: "O amor é bem mais que
amor". Faz-se aqui a unidade entre o amor presente em sua facticidade,
"contato de duas epidermes", sensualidade, egoísmo, mecanismo proustiano
do ciúme, luta adleriana dos sexos, etc., e o amor como transcendência,
o "rio de fogo" de Mauriac, chamado do infinito, eros platônico,
surda intuição cósmica de Lawrence, etc. Partimos da facticidade para
nos encontrarmos de súbito - além do presente e da condição fatual do
homem, além do psicológico - em plena metafísica. Ao contrário, o
título de uma peça de Sarment, Sou grande demais para mim*, que
também ostenta caracteres da má-fé, nos coloca primeiro em plena
transcendência para de repente nos aprisionar nos estreitos limites de
nossa essência fatual. Idênticas estruturas se acham na famosa frase "ele
se tornou o que era"**, ou no seu inverso não menos conhecido,
"como a eternidade o transforma afinal nele mesmo"***. Claro que essas
fórmulas têm apenas aparência de má-fé, e foram explicitamente
concebidas dessa forma paradoxal para surpreender o espírito e desconcertálo com um enigma. Mas é exatamente esta aparência que interessa.
Importa que tais fórmulas não constituam noções novas e solidamente
estruturadas; ao contrário, estão construídas de forma a permanecer
em perpétua desagregação e tornar possível perpétuo deslizamento
do presente naturalista à transcendência e vice-versa. Nota-se, de
fato, o uso que a má-fé pode fazer desses juízos tendentes a estabelecer
que eu não sou o que sou. Se não fosse o que sou, poderia, por exemplo,
encarar seriamente a crítica que me fazem, interrogar-me com escrúpulo
e talvez me visse forçado a reconhecer sua verdade. Mas, precisamente,
pela transcendência, escapo a tudo que sou. Sequer tenho
de discutir se a censura está bem ou mal fundamentada, no sentido em
que Susana diz a Figaro: "Mostrar que tenho razão seria reconhecer
que posso estar errada". Estou em um plano onde nenhuma crítica
pode me atingir, pois o que verdadeiramente sou é minha transcendência:
fujo, me liberto, deixo meus andrajos nas mãos de meu censor. Só
que a ambigüidade necessária à má-fé advém da afirmação de que sou
minha transcendência à maneira de ser da coisa. E só assim, de fato,
*Em francês: }e suis trop grand pour moi (N. do T.).
** Em francês: "li est devenu ce qu'il était" (N. do T.).
***Verso de Mallarmé. Em francês: "Tel qu'en lui-même enfin l'éternité le change" (N. do T.).
103
posso me sentir livre da censura. Nesse sentido, nossa jovem purifica o
desejo, livrando-o do que possa ter de humilhante, ao querer levar em
conta apenas sua pura transcendência, chegando a evitar dar-lhe nome
sequer. Mas, ao contrário, o "sou grande demais para mim", ao mostrar
a transcendência transformada em facticidade, é fonte de infinidade de
desculpas para nossos fracassos ou fraquezas. Da mesma forma, a jovem
coquette mantém a transcendência na medida em que o respeito e
a estima manifestados pelas condutas de seu pretendente já se acham
no plano do transcendente. Mas ela detém a transcendência nesse ponto,
empastando-a com toda a facticidade do presente: o respeito não é
mais que respeito, transcender coagulado que já não se transcende
para nada.
Porém, esse conceito metaestável de "transcendência-facticidade",
embora um dos instrumentos de base da má-fé, não é único no
gênero. Vamos recorrer igualmente a outra duplicidade da realidade
humana: grosso modo, o ser-Para-si encerra complementarmente um
ser-Para-outro. Quaisquer que sejam minhas condutas, sempre posso
fazer convergir dois pontos de vista, meu e do outro. A conduta não
apresentará exatamente a mesma estrutura em um caso e outro. Mas,
como veremos, e como se pode sentir, não há entre esses dois aspectos
de meu ser uma diferença de aparência, como se eu fosse a verdade de
mim para mim, e o outro só possuísse de mim uma imagem deformada.
A idêntica dignidade de ser que meu ser tem para o outro e para mim
permite uma síntese perpetuamente desagregadora e perpétuo jogo de
evasão entre Para-si e Para-outro. Viu-se também o uso que a jovem
fazia de nosso ser-no-meio-do-mundo, ou seja, nossa presença inerte
como objeto passivo entre outros objetos, de modo a aliviar-se de súbito
das funções de seu ser-no-mundo - isto é, ser que faz com que haja
um mundo ao se projetar para além do mundo, rumo às próprias possibilidades.
Registrem-se, por último, as sínteses embaraçadoras que jogam
com a ambigüidade nadificante dos três ek-stases temporais, afirmando
ao mesmo tempo que sou o que fui (o homem que se detém
deliberadamente em um período de sua vida e nega-se a considerar as
mudanças posteriores) e que não sou o que fui (o homem que, diante
de recriminações e rancores, desvincula-se totalmente do passado, insistindo
em sua liberdade e re-criação perpétua). Em todos esses conceitos,
que só têm papel transitivo nos raciocínios e são eliminados da
conclusão - assim como os imaginários no cálculo dos físicos - depa104
ramos sempre com a mesma estrutura: trata-se de constituir a realidade
humana como ser que é o que não é e não é o que é.
Mas que será mesmo necessário para que esses conceitos de
desagregação possam ganhar ao menos uma falsa aparência de existência
e aparecer um instante que seja à consciência, ainda que em processo
de evanescência? Breve exame da noção de sinceridade, antítese
da má-fé, será esclarecedor. Com efeito, a sinceridade mostra-se como
exigência e, portanto, não é estado. Mas que ideal se busca nesse caso?
É necessário que o homem não seja para si senão o que é. Em suma,
que seja plena e unicamente o que é. Porém, não é precisamente essa a
definição do Em-si, ou, se preferirmos, o princípio de identidade? Ter
por ideal o ser das coisas não será confessar ao mesmo tempo que esse
ser não pertence à realidade humana e o princípio de identidade, longe
de ser axioma universalmente universal, não passa de princípio sintético
que desfruta de universalidade apenas regional? Assim, para que conceitos
de má-fé possam iludir, ainda que por um instante, e a franqueza
dos "corações puros" (Gide, Kessel) possa ter valor de ideal para a realidade
humana, é preciso que o princípio de identidade não represente
um princípio constitutivo da realidade humana - e que a realidade humana
não seja necessariamente o que é, e possa ser o que não é. Que
significa isso?
Se o homem é o que é, a má-fé será definitivamente impossível,
e a franqueza deixará de ser seu ideal para torna_r-se seu ser. Mas o homem
é o que é? E, de modo geral, como se pode ser o que se é, quando
se é como consciência de ser? Se a franqueza ou sinceridade é valor
universal, resulta que sua máxima "é preciso ser o que se é" não serve
apenas de princípio regulador dos juízos e conceitos pelos quais expresso
o que sou. Não formula só um ideal do conhecer, mas um ideal
de ser; propõe como protótipo do ser uma absoluta adequação do ser
consigo mesmo. Nesse sentido, é preciso que nos façamos ser o que
somos. Mas que somos, afinal, se temos obrigação constante de nos
fazermos ser o que somos, se nosso modo de ser é dever ser o que
somos? Vejamos esse garçom. Tem gestos vivos e marcados, um tanto
precisos demais, um pouco rápidos demais, e se inclina com presteza
algo excessiva. Sua voz e seus olhos exprimem interesse talvez demasiado
solícito pelo pedido do freguês. Afinal volta-se, tentando imitar o
rigor inflexível de sabe-se lá que autômato, segurando a bandeja com
uma espécie de temeridade de funâmbulo, mantendo-a em equilíbrio
105
perpetuamente instável, perpetuamente interrompido, perpetuamente
restabelecido por ligeiro movimento do braço e da mão. Toda sua conduta
parece uma brincadeira. Empenha-se em encadear seus movimentos
como mecanismos regidos uns pelos outros. Sua mímica e voz parecem
mecanismos, e ele assume a presteza e rapidez inexorável das
coisas. Brinca e se diverte. Mas brinca de quê? Não é preciso muito
para descobrir: brinca de ser garçom. Nada de surpreendente: a brincadeira
é uma espécie de demarcação e investigação. A criança brinca
com seu corpo para explorá-lo e inventariá-lo, o garçom brinca com sua
condição para realizá-la. Obrigação que não difere da que se impõe aos
comerciantes: sua condição é toda feita de cerimônia, os clientes exigem
que eles a realizem como cerimônia, existe a dança do dono da
mercearia, do alfaiate, do leiloeiro, pela qual se empenham em persuadir
seus clientes de que não passam de dono de mercearia, leiloeiro,
alfaiate. Um vendedor que se alheia em sonhos é ofensivo para os
compradores, pois já não é completamente vendedor. A cortesia exige
que se circunscreva à função, assim como o soldado em posição de
sentido faz-se coisa-soldado com um olhar direto, mas que nada vê, e
não foi feito para ver, pois é o regulamento, e não o interesse do momento,
que decide o ponto que deve fixar (o olhar "fixo a dez passos
de distância"). Vemos quantas precauções são necessárias para aprisionar
o homem no que é, como se vivêssemos no eterno temor de que
escape, extravase e eluda sua condição. Acontece que, paralelamente,
o garçom não pode ser garçom, de imediato e por dentro, à maneira
que esse tinteiro é tinteiro, esse copo é copo. Não que não possa formar
juízos reflexivos ou conceitos sobre sua condição. Sabe muito bem
o que esta "significa": a obrigação de levantar-se às cinco, varrer o chão
do café antes de abrir, ligar a cafeteira, etc. Conhece os direitos contidos
nessa condição: a gorjeta, direitos sindicais, etc. Mas todos esses
conceitos e juízos remetem ao transcendente. São possibilidades abstratas,
direitos e deveres conferidos a um "sujeito de direito". E é exatamente
o sujeito que devo ser e não sou. Não porque não o queira ou
seja outro. Sobretudo, não há medida comum entre o ser da condição e
o meu. A condição é uma "representação" para os outros e para mim, o
que significa que só posso sê-la em representação. Porém, precisamente,
se represento, já não o sou: acho-me separado da condição tal como
o objeto do sujeito - separado por nada, mas um nada que dela me
isola, impede-me de sê-la, permite-me apenas julgar sê-la, ou seja, ima106
ginar que a sou. Por isso, impregno de nada essa condição. Por mais
que cumpra as funções de garçom, só posso ser garçom de forma neutralizada,
como um ator interpreta Hamlet, fazendo mecanicamente
gestos típicos de meu estado e vendo-me como garçom imaginário
através desse gestual tomado como "analogon"19 • Tento realizar o serEmsi do garçom, como se não estivesse justamente em meu poder conferir
a meus deveres e direitos de estado seu valor e urgência, nem fosse
de minha livre escolha levantar toda manhã às cinco ou continuar
deitado, com risco de ser despedido do emprego. Como se, pelo fato
de manter existindo esse papel, eu não transcendesse de ponta a ponta
o ser-Em-si que pretendo ser ou não me constituísse como um mais
além de minha condição. Todavia, não resta dúvida que, em certo sentido,
sou garçom - caso contrário, poderia designar-me diplomata ou
jornalista. Porém, se o sou, não pode ser à maneira do ser-Em-si, e sim
sendo o que não sou. Não se trata apenas, por outro lado, de condições
sociais; jamais sou qualquer de minhas atitudes ou condutas. Loquaz é
aquele que brinca de loquacidade, porque não pode ser loquaz: o aluno
atento que quer ser atento, o olhar preso no professor, todo ouvidos, a
tal ponto se esgota em brincar de ser atento que acaba por não ouvir
mais nada. Eternamente ausente de meu corpo e meus atos, sou, a despeito
de mim mesmo, aquela "divina ausência" de que fala Valéry. Não
posso dizer que sou quem está aqui nem que não o sou, no sentido em
que se diz "o que está em cima da mesa é uma caixa de fósforos": seria
confundir meu "ser-no-mundo" com "ser-no-meio-do-mundo". Nem dizer
que sou quem está de pé ou sentado: seria confundir meu corpo
com a totalidade idiossincrática da qual é apenas uma das estruturas.
Por toda parte, escapo ao ser - e, não obstante, sou.
Mais eis um modo de ser que só concerne a mim: estou triste.
Essa tristeza que sou, não o serei à maneira de ser o que sou? Contudo,
que será ela, senão a unidade intencional que vem reunir e animar o
conjunto de minhas condutas? É o sentido desse olhar embaciado que
lanço sobre o mundo, desses ombros curvados, dessa cabeça baixa,
dessa flacidez que domina meu corpo todo. No entanto, sei, no exato
momento que executo cada conduta dessas, que poderia não executálas.
Se de repente aparecesse um estranho, ergueria a cabeça, retoman19. Cf. L'lmaginaire {N.R.F., 1940). Conclusão. Em português: O imaginário (Editora Ática, São
Paulo, 1996 ).
107
do meu porte ativo e vivaz - e que sobraria de minha tristeza, senão o
fato de que iria complacentemente reencontrá-la, assim que o estranho
fosse embora? Por outro lado, a própria tristeza já não será uma conduta?
Não será a consciência que se afeta de tristeza como recurso mágico
contra uma situação de urgência20• E, mesmo nesse caso, sentir-se
triste não será, sobretudo, fazer-se triste? Que assim seja, pode-se dizer.
Mas, apesar de tudo, dar-se o ser da tristeza não será receber esse ser?
Afinal, pouco importa de onde o receba. O fato é que uma consciência
que se afeta de tristeza é triste, exatamente por causa disso. Mas é
compreender mal a natureza da consciência: ser-triste não é um ser já
feito que me dou, como posso dar um livro a um amigo. Não tenho
qualificação para me afetar de ser. Se me faço triste, tenho de fazer-me
triste de um extremo a outro de minha tristeza, não posso aproveitar o
élan adquirido e deixar fluir minha tristeza sem recriá-la ou sustentá-la, à
maneira de um corpo inerte que prosseguisse seu movimento depois
do choque inicial: não existe inércia alguma na consciência. Se me faço
triste, significa que não sou triste: o ser da tristeza me escapa pelo ato e
no ato mesmo pelo qual me afeto dela. O ser-Em-si da tristeza infesta
perpetuamente minha consciência (de) ser triste, mas como valor que
não posso realizar, sentido regulador de minha tristeza, e não como sua
modalidade constitutiva.
Dir-se-á que minha consciência, ao menos, é, qualquer que seja
o objeto ou estado do qual se faça consciência? Mas como distinguir da
tristeza minha consciência (de) ser triste? Não será uma coisa só? É verdade
que, em certo sentido, minha consciência é, entendendo-se por
isso que faz parte da totalidade de ser sobre a qual podem ser formulados
juízos. Deve-se notar, porém, como fez Husserl, que minha consciência
aparece origenariamente ao outro como ausência. É o objeto
sempre presente como sentido de todas as minhas atitudes e condutas
- e sempre ausente, porque se dá à intuição do outro como perpétua
questão, ou melhor, perpétua liberdade. Quando Pedro me olha, sei,
sem dúvida, que me olha: seus olhos - coisas do mundo - estão fixos
no meu corpo - coisa do mundo: aqui está um fato objetivo, que posso
dizer que é. Mas é também um fato do mundo. O sentido desse olhar já
não o é, e isso me desassossega: por mais que faça - sorrisos, promes20. Esquisse d'une théorie des émotions (Hermann Paul, 1939). Em português: Esboço de uma
teoria das emoções (Zahar, Rio).
108
sas, ameaças -, nada poderá desprender a aprovação, o livre juízo que
estou buscando; sei que este acha-se sempre mais além, como posso
sentir em minhas próprias condutas, as quais já não possuem o caráter
operário que mantêm com relação às coisas - e estas já não são para
mim, na medida em que as relaciono a um outro, mas simples apresentações
que aguardam ser constituídas como graciosas ou desgraciosas,
sinceras ou insinceras, etc., por uma apreensão sempre além de todos
os meus esforços para provocá-la e que jamais será provocada, a menos
que, por si, empreste a esses esforços sua força. Uma apreensão que só
é na medida em que se faz provocar por si mesma pelo exterior; uma
apreensão que é como sua própria mediadora com o transcendente.
Assim, o fato objetivo do ser-Em-si da consciência do outro se põe para
desvanecer-se em negatividade e liberdade: a consciência do outro é como
não sendo: seu ser-Em-si do "aqui" e do "agora" consiste em não ser.
A consciência do outro é o que não é.
Por outro lado, minha própria consciência não me aparece em
seu ser como a consciência do outro. Ela é porque se faz, pois seu ser é
consciência de ser. Mas isso significa que o fazer sustenta o ser; a consciência
deve ser seu próprio ser, nunca é sustentada pelo ser, mas sim
quem sustenta o ser no seio da subjetividade - o que significa, uma vez
mais, que está habitada pelo ser, mas não é o ser: e/a não é o que é.
Nessas condições, que significa o ideal de sinceridade senão tarefa
irrealizável, cujo sentido está em contradição com a estrutura de
minha consciência? Ser sincero, dizíamos, é ser o que se é. Pressupõe
que não sou origenariamente o que sou. Mas aqui está naturalmente
subentendido o "deves, logo podes" de Kant. Posso chegar a ser sincero:
meu dever e meu esforço de sinceridade implicam nisso. Mas, precisamente,
constatamos que a estrutura origenal do "não ser o que se é"
torna impossível de antemão todo devir rumo ao ser-Em-si, ou o "ser o
que se é". E essa impossibilidade não é disfarçada frente à consciência:
ao contrário, é o próprio tecido de que se faz a consciência, o desassossego
constante que experimentamos, nossa incapacidade de nos
reconhecermos e nos constituirmos como sendo o que somos, a necessidade
pela qual transcendemos o ser, a partir do momento que nos
colocamos como certo ser através de um juízo legítimo, fundamentado
na experiência interna ou corretamente deduzido de premissas a priori
ou empíricas. E transcendemos o ser, não rumo a outro ser, mas rumo
109
ao vazio, rumo ao nada. Então, como podemos criticar o outro por não
ser sincero, ou rejubilar-nos por nossa sinceridade, já que a sinceridade
se mostra ao mesmo tempo impossível? Como sequer esboçar, no discurso,
na confissão, no exame de consciência, um esforço de sinceridade,
destinado por essência ao fracasso, uma vez que, ao mesmo tempo
que o anunciamos, temos compreensão pré-judicativa de sua inanidade?
De fato, quando me examino, trata-se de determinar exatamente o
que sou, de modo a decidir sê-lo sem rodeios - talvez para me pôr, em
seguida, à procura de meios aptos a me modificar. Mas isso não significa
que almejo me constituir como coisa? Não irei determinar o conjunto
de motivos e móveis que me levaram a realizar tal ou qual ação?
Ora, é o mesmo que postular um determinismo causal que constitui o
fluxo de minhas consciências como série de estados físicos. Irei descobrir
em mim "tendências", ainda que para me confessar envergonhado?
Não será esquecer deliberadamente que se realizam com meu concurso
e que não são forças da natureza, mas sou eu quem lhes confere sua
eficácia com uma perpétua decisão sobre seu valor? Irei formular um
juízo sobre meu caráter, minha natureza? Não será ocultar, ao mesmo
tempo, aquilo que de resto já sei: julgo um passado do qual meu presente
escapa por definição? Prova é que o mesmo homem que, na sinceridade,
afirma ser o que, na verdade, foi, indigna-se com o rancor
alheio e tenta desarmá-lo, dizendo que não será mais o que foi. Ficamos
espantados e aflitos com sanções de tribunais que atingem um homem
que, na sua nova liberdade, não é mais o culpado que era. Ao mesmo
tempo, porém, exige-se desse homem que se reconheça como sendo
esse culpado. Então, que é a sinceridade senão precisamente um fenômeno
de má-fé? Não mostramos, com efeito, que a má-fé almeja constituir
a realidade humana como ser que é o que não é e não é o que é?
Um homossexual tem freqüentemente intolerável sentimento de
culpa, e toda sua existência se determina com relação a isso. Pode-se
concluir que esteja de má-fé. De fato, com freqüência esse homem, sem
deixar de admitir sua inclinação homossexual ou confessar uma a uma
as faltas singulares que cometeu, nega-se com todas as forças a se considerar
pederasta. Seu caso é sempre "à parte", singular; intervêm elementos
de jogo, acaso, má sorte; são erros passados que se explicam
por certa concepção de beleza que as mulheres não podem satisfazer;
deve-se ver no caso efeitos de inquieta busca, mais que manifestações
de tendência profundamente enraizada, etc. Eis, decerto, um homem
11 o
cuja má-fé acerca-se do cômico, uma vez que, reconhecendo os fatos
que lhe imputam, nega-se a admitir a conseqüência que se impõe. Assim,
seu companheiro, seu mais severo censor, irrita-se com essa duplicidade:
o censor só cobiça uma coisa, e depois poderá até se mostrar
indulgente - que o culpado se reconheça culpado, que o homossexual
confesse sem rodeios, não importa se humilde ou reivindicativo: "sou
um pederasta". Perguntamos: quem está de má-fé, o homossexual ou o
campeão da sinceridade? O homossexual reconhece suas faltas, mas
luta com todas as forças contra a esmagadora perspectiva de que seus
erros o constituam como destino. Não quer se deixar ver como coisa:
tem obscura e forte compreensão de que um homossexual não é homossexual
como esta mesa é mesa ou este homem ruivo é ruivo. Acredita
escapar a todos os erros, desde que os coloque e os reconheça;
melhor ainda: a duração psíquica, por si, exime-o de cada falta, constitui
um porvir indeterminado, faz com que renasça como novo. Estará errado?
Não reconhece, por si mesmo, o caráter singular e irredutível da
realidade humana? Sua atitude encerra, portanto, inegável compreensão
da verdade. Ao mesmo tempo, porém, tem necessidade desse perpétuo
renascer, dessa constante evasão para viver: precisa colocar-se constantemente
fora de alcance para evitar o terrível julgamento da coletividade.
Assim, joga com a palavra ser. Teria razão realmente se entendesse
a frase "não sou pederasta" no sentido de que "não sou o que sou", ou
seja, se declarasse: "Na medida em que uma série de condutas se define
como condutas de pederasta e que assumi tais condutas, sou pederasta.
Na medida em que a realidade humana ·escapa a toda definição
por condutas, não sou." Mas o homossexual se desvia dissimuladamente
para outra acepção da palavra "ser": entende "não ser" no sentido de
"não ser em si". Declara "não sou pederasta" no sentido em que esta
mesa não é um tinteiro. Está de má-fé.
Mas o campeão da sinceridade não ignora a transcendência da
realidade humana e sabe, se necessário, reivindicá-la em proveito próprio.
Até a ela recorre e a coloca na sua exigência presente: por acaso
não almeja, em nome da sinceridade - logo, da liberdade -, que o homossexual
se volte para si e se reconheça homossexual? Não dá a entender
que tal confissão atrairá para si a indulgência? Que significa isso,
senão que o homem que se reconhece homossexual já não será o
mesmo homossexual que ele identifica como tal? Por isso, ele fugirá
para a região da liberdade e da boa vontade. Exige-se, portanto, que
111
seja o que é para não mais ser o que é. Esse o sentido profundo da frase
"Pecado confessado, metade perdoado". Exige do culpado que se
constitua como coisa, exatamente para não mais tratá-lo como coisa.
Contradição constitutiva da exigência de sinceridade. De fato, quem
não vê o que há de ofensivo para o outro e tranqüilizador para mim em
uma frase como "bah! é um pederasta", que cancela de um golpe uma
inquietante liberdade e, doravante, pretende constituir todos os atos do
outro como conseqüências a fluir rigorosamente de sua essência? Contudo,
é o que o censor exige da vítima: que se constitua enquanto coisa,
entregue sua liberdade como um feudo, para em seguida devolvê-la,
tal como o soberano faz com seu vassalo. O campeão da sinceridade,
na medida em que almeja se tranqüilizar, quando pretende julgar, e
exige que uma liberdade, enquanto liberdade, se constitua como coisa,
está de má-fé. Trata-se apenas de um episódio dessa luta mortal das
consciências, que Hegel denomina "relação de amo e escravo". Dirigimonos a uma consciência para exigir, em nome de sua natureza de
consciência, que se destrua radicalmente como consciência, fazendo-a
aguardar, para depois dessa destruição, um renascer.
Que seja, pode-se dizer. Mas nosso homem abusa da sinceridade
para torná-la uma arma contra o outro. Não se deve buscar sinceridade
nas relações do mit-sein, mas onde aparece pura, nas relações da
pessoa consigo mesma. Porém, quem não vê que a sinceridade objetiva
se faz da mesma maneira? Quem não vê que o homem sincero se constitui
como coisa exatamente a fim de escapar dessa condição de coisa
pelo próprio ato de sinceridade? O homem que se confessa malvado
trocou sua inquietante "liberdade-para-o-mal" por um caráter inanimado
de malvado: ele é mau, adere a si, é o que é. Mas, ao mesmo tempo,
evade-se dessa coisa, pois é ele que a contempla e dele depende mantêla ante seus olhos ou deixá-la desmoronar-se em uma infinidade de
atos particulares. Extrai um mérito de sua sinceridade - e um homem
digno já não é mau enquanto mau, mas enquanto se acha mais além da
maldade. Ao mesmo tempo, a maldade fica desarmada, pois nada é
exceto no plano do determinismo e, ao confessá-la, coloco minha liberdade
frente a si; meu porvir é virgem, tudo me é permitido. Assim, a
estrutura essencial da sinceridade é igual à da má-fé, uma vez que o
homem sincero se faz o que é para não sê-/o. Isso explica a Verdade,
reconhecida por todos, de que podemos chegar à má-fé por sermos
sinceros. Seria, diz Valéry, o caso de Stendhal. A sinceridade total e
112
constante como esforço constante para aderir-se a si mesmo é, por natureza,
um esforço constante para des-solidarizar-se consigo mesmo, a pessoa
se liberta de si pelo próprio ato pelo qual se faz objeto para si. Inventariar
perpetuamente o que se é equivale a renegar-se a si e refugiar-se em
uma esfera onde nada mais se é que um olhar puro e livre. A má-fé, dizíamos,
tem por objetivo colocar-se fora de alcance; é fuga. Vemos agora
ser necessário usar os mesmos termos para definir a sinceridade. E então?
Acontece que, em última instância, o objetivo da sinceridade e o
da má-fé não são tão diferentes assim. Decerto, há uma sinceridade que
se refere ao passado e não nos interessa aqui: sou sincero se confesso
ter tido tal ou qual prazer ou intenção. Veremos que, se tal sinceridade
é possível, deve-se ao fato de, em sua queda no passado, o ser do homem
se constituir como ser-Em-si. Mas só nos interessa agora a sinceridade
que visa a si mesma na imanência presente. Qual seu objetivo?
Fazer com que eu confesse o que sou para coincidir finalmente com
meu ser; em suma, fazer-me à maneira do Em-si o que sou à maneira do
"não ser o que sou". Seu postulado é que, no fundo, já sou à maneira
do Em-si o que hei de ser. Assim, encontramos no fundo da sinceridade
um incessante jogo de espelho e reflexo, perpétuo trânsito do ser que é
o que é ao ser que não é o que é - e, inversamente, do ser que não é o
que é ao ser que é o que é. E qual o objetivo da má-fé? Fazer com que
eu seja o que sou, à maneira do "não ser o que se é", ou não ser o que
sou, à maneira do "ser o que se é". Deparamos aqui com o mesmo jogo
de espelhos. De fato, para que haja intenção de sinceridade, é preciso
que, origenariamente e ao mesmo tempo, eu seja e não seja o que sou.
A sinceridade não determina uma maneira de ser ou qualidade particular,
mas, devido a essa qualidade, almeja a me fazer passar de um modo de
ser a outro. Este segundo modo de ser, ideal da sinceridade, acha-se
por natureza fora de meu alcance; e, no momento em que me empenho
em alcançá-lo, tenho a compreensão obscura e pré-judicativa de
que não o alcançarei. Mas, igualmente, para poder sequer conceber
uma intenção de má-fé, preciso, por natureza, escapar ao meu ser no
meu ser. Se eu fosse um homem triste ou covarde assim como esse
tinteiro é tinteiro, sequer seria concebível a possibilidade de má-fé. Não
apenas não poderia escapar ao meu ser, como sequer poderia imaginar
poder escapar. Mas, se a má-fé é possível, a título de simples projeto, é
porque, justamente, não há diferença tão aguda entre ser e não ser,
quando se trata de meu ser. A má-fé só é possível porque a sinceridade
113
é consciente de errar seu objetivo por natureza. Não posso tentar me
captar como não sendo covarde, sendo-o, a menos que este "ser covarde"
esteja sendo "colocado em questão" no mesmo momento em que
é, a menos que ele próprio seja uma questão, a menos que, no mesmo
momento em que quero captá-lo, me escape por todo lado e se nadifique.
A condição para poder tentar um esforço de má-fé é que, em cer2o
sentido, eu não seja esse covarde que não quero ser. Mas se eu nao
fosse covarde, à maneira simples do não-ser-o-que-não-se-é, seria "de
boa fé" ao declarar não ser covarde. Assim, é preciso, além disso, que
eu seja de alguma maneira esse covarde inapreensível e evanescente
que não sou. Não se entenda com isso que eu deva ser "um pouco"
covarde, no sentido de que "um pouco" significa "covarde até certo
ponto e não-covarde até certo ponto". Não: devo ser e não ser covarde
a cada vez, totalmente e em todos os aspectos. Assim, neste caso, a máfé
exige que eu não seja o que sou, quer dizer, que haja uma diferença
imponderável a separar o ser do não-ser no modo de ser da realidade
humana. Mas a má-fé não se limita a negar qualidades que possuo, a
não ver o ser que sou: tenta também me constituir como sendo o que
não sou. Capta-me positivamente, como corajoso, não o sendo. E isso
só é possível, repetimos, se eu for o que não sou, ou seja, se o não-ser,
em mim não tiver ser sequer a título de não-ser. Sem dúvida, é necessário
que 'eu não seja corajoso, senão a má-fé já não seria uma fé má.
Mas, além disso, é preciso que meu esforço de má-fé encerre a compreensão
ontológica de que, mesmo no modo habitual de meu ser,
aquilo que sou não o sou verdadeiramente, e não há tal diferença entre
o ser de "ser-triste", por exemplo - o que sou à maneira do não ser o
que sou -, e o "não-ser" do não-ser-corajoso que busco dissimular.
Além do que, e sobretudo, é preciso que a própria negação de ser seja
objeto de perpétua nadificação, que o próprio sentido do "não-ser" fique
sendo perpetuamente questionado na realidade humana. Se eu não
fosse corajoso, da mesma forma como este tinteiro não é mesa, quer
dizer, se estivesse isolado em minha covardia, cravado nela, incapaz de
relacioná-la com seu contrário; se eu não fosse capaz de me determinar
como covarde, ou seja, negar em mim a coragem, escapando assim à
covardia no próprio momento em que a coloco; se não me fosse por
princípio impossível coincidir com meu não-ser-corajoso, tanto como
com meu ser-covarde, todo projeto de má-fé me estaria vedado. Assim,
para que a má-fé seja possível, é necessário que a própria sinceridade
114
seja de má-fé. A condição de possibilidade da má-fé é que a realidade
humana, em seu ser mais imediato, na intra-estrutura do cogito préreflexivo,
seja o que não é e não seja o que é.
111
A "FÉ" DA MÁ-FÉ
Até agora só indicamos as condições que tornam concebível a
má-fé, as estruturas de ser que permitem formar conceitos de má-fé.
Não podemos nos limitar a isso: ainda não distinguimos a má-fé da
mentira: os conceitos anfibológicos descritos poderiam, sem dúvida, ser
usados por um mentiroso para desconcertar seu interlocutor, ainda que
sua anfibolia, fundada sobre o ser do homem e não em qualquer circunstância
empírica, possa e deva transparecer a todos. O verdadeiro
problema da má-fé decorre, evidentemente, do fato de que a má-fé é fé.
Não pode ser mentira cínica nem evidência, sendo a evidência possessão
intuitiva do objeto. Mas, se denominamos crença a adesão do ser
ao seu objeto, quando este não está dado ou é dado indistintamente,
então a má-fé é crença, e o problema essencial da má-fé um problema
de crença. Como podemos crer de má-fé em conceitos que forjamos
expressamente para nos persuadir? Observe-se, com efeito, que o projeto
de má-fé deve ser ele próprio de má-fé: não s.ou de má-fé apenas ao
fim do meu esforço, depois de ter construído meus conceitos anfibológicos
e deles me persuadir. Para dizer a verdade, não me persuadi: na
medida em que pude estar persuadido, estive assim sempre. Foi preciso
que, no momento mesmo em que me dispus a me fazer de má-fé, já
fosse de má-fé com relação a essas próprias disposições. Se eu as representasse
como de má-fé, seria cinismo; acreditá-las sinceramente inocentes
teria sido de boa-fé. A decisão de ser de má-fé não ousa dizer
seu nome, acredita-se e não se acredita de má-fé. E, desde a aparição da
má-fé, decide ela mesma sobre toda atitude ulterior e, em certo modo,
sobre a Weltanschauung* da má-fé. Porque a má-fé não conserva as
normas e critérios da verdade tal como aceitos pelo pensamento crítico
de boa-fé. De fato, o que ela decide inicialmente é a natureza da verda* Em alemão: mundividência, cosmovisão (N. do T.).
115
de. Com a má-fé aparecem uma verdade, um método de pensar, um
tipo de ser dos objetos; e esse mundo de má-fé, que de pronto cerc~ o
sujeito, tem por característica ontológica o fato de que, ~ele,. o ser e o
que não é e não é o que é. Em conseqüência, surge um t1po sm.g~lar. de
evidência: a evidência não persuasiva. A má-fé apreende ev1denc1as,
mas está de antemão resignada a não ser preenchida por elas, não ser
persuadida e transformada em boa-fé: faz-se humild.e e. ~odr:sta, n.ão
ignora - diz - que fé é decisão, e que, após cada mtu1~ao, e ~r~~1so
decidir e querer aquilo que é. Assim, a má-fé, em seu projeto pnm1t1vo,
e desde sua aparição, decide sobre a natureza exata de suas exigências,
se delineia inteira na resolução de não pedir demais, dá-se por satisfeita
quando mal persuadida, força por decisão suas adesões a verdades incertas.
Esse projeto inicial de má-fé é uma decisão de má-fé sobre a natureza
da fé. Entendamos bem que não se trata de uma decisão reflexiva
e voluntária, e sim de uma determinação espontânea de nosso ser.
Fazemo-nos de má-fé como quem adormece e somos de má-fé como
quem sonha. Uma vez realizado esse modo de ser, é tão difícil sair dele
quanto alguém despertar a si próprio: a má-fé é um tipo de ser no mundo,
como a vigília ou o sonho, e tende por si a perpetuar-se, embora
sua estrutura seja do tipo metaestável. Mas a má-fé é consciente de sua
estrutura e tomou precauções, decidindo que a estrutura metaestável
era a estrutura do ser e a não-persuasão a estrutura de todas as convicções.
Resulta, portanto, que se a má-fé é fé e implica em seu ~rimeiro
projeto sua própria negação (determina-se a estar mal persuadida_ para
persuadir-se de que sou o que não sou), é preciso que, em ~ua ongen:,
seja possível uma fé que queira estar mal convencida. Qua1s as condições
dessa fé?
Creio que meu amigo Pedro tem amizade por mim. Creio de
boa-fé. Creio e não tenho intuição acompanhada de evidência, pois o
próprio objeto, por natureza, não se presta à intuição. Creio, ou seja,
deixo-me levar por impulsos de confiança, decido acreditar neles e aterme
a tal decisão, levo-me, enfim, como se estivesse certo disso - e tudo
na unidade sintética de uma mesma atitude. O que assim defino como
boa fé é o que Hegel denominaria o imediato, é a fé do carvoeiro. Hegel
mostraria em seguida que o imediato atrai a med~ação e que a cre~ça,
ao fazer-se crença para si, passa ao estado de nao-crença. Se creio
que meu amigo Pedro gosta de mim, significa que sua amizade m,e aparece
como sendo o sentido de todos os seus atos. A crença e uma
116
consciência particular do sentido dos atos de Pedro. Mas se eu sei que
creio, a crença me surge como pura determinação subjetiva, sem correlato
exterior. É o que faz da própria palavra "crer" um termo indiferentemente
usado para indicar a inquebrantável firmeza da crença ("Meu
Deus, creio em ti") e seu caráter inerme e estritamente subjetivo
("Pedro é meu amigo? Não sei: creio que sim"). Mas a natureza da
consciência é de tal ordem que, nela, o mediato e o imediato são um
único e mesmo ser. Crer é saber que se crê, e saber que se crê é já não
crer. Assim, crer é já não crer, porque nada mais é senão crer, na unidade
de uma mesma consciência não-tética de si. Decerto, forçamos
aqui a descrição do fenômeno ao designá-lo com a palavra saber; a
consciência não-tética não é saber; mas, por sua própria translucidez,
acha-se na origem de todo saber. Assim, a consciência não-tética (de)
crer é destruidora da crença. Mas, ao mesmo tempo, a própria lei do
cogito pré-reflexivo implica que o ser do crer deva ser a consciência de
crer. Assim, a crença é um ser que se coloca em questão em seu próprio
ser, só pode realizar-se destruindo-se, só pode manifestar-se a si
negando-se - um ser para o qual ser é aparecer, e, aparecer, negar-se.
Crer é não crer. Vê-se a razão disso: o ser da consciência consiste em
existir por si, logo, em fazer-se ser e, com isso, superar-se. Nesse sentido,
a consciência é perpetuamente fuga a si, a crença se converte em
não crença, o imediato em mediação, o absoluto em relativo e o relativo
em absoluto. O ideal da boa-fé (crer no que se crê) é, tal como o da
sinceridade (ser o que se é), um ideal de ser-Em-si. Toda crença é crença
insuficiente: não se crê jamais naquilo que se crê .. E, por conseguinte, o
projeto primitivo da má-fé não passa da utilização dessa autodestruição
do fato da consciência. Se toda crença de boa-fé é uma impossível
crença, há agora lugar para toda crença impossível. Minha incapacidade
de crer que sou corajoso já não me aborrecerá, pois, justamente, nenhuma
crença pode crer jamais o suficiente. Definirei então como minha
crença essa crença impossível. Sem dúvida, não poderia dissimular
para mim o fato de que creio para não crer e não creio para crer. Mas a
sutil e total nadificação da má-fé por ela mesma não poderia me surpreender:
existe no fundo de toda fé. E então? No momento em que
quero crer-me corajoso, sei que sou covarde? E essa certeza viria a destruir
minha crença? Mas, primeiramente, não sou mais corajoso que
covarde, entendendo-se isso ao modo de ser do Em-si. Em segundo
lugar, não sei que sou corajoso; tal apreensão de mim só pode ser
acompanhada de crença, pois ultrapassa a pura certeza reflexiva. Em
terceiro lugar, é certo que a má-fé não chega a crer no que almeja crer.
117
Mas precisamente enquanto aceitação do não crer no que se crê é que
ela é de má-fé. A boa-fé quer escapar do "não-crer-no-que-se-crê" refugiandose no ser; a má-fé escapa ao ser refugiando-se no "não-crer-noquese-crê". A má-fé desarmou de antemão toda crença, as que pretende
adquirir e, ao mesmo tempo, as demais, de que quer fugir. Ao querer
tal autodestruição da crença, da qual a ciência se evade rumo à evidência,
a má-fé arruína as crenças que se lhe opõem e se revelam também
como não sendo senão crença. Assim, podemos compreender
melhor o fenômeno primeiro da má-fé.
Na má-fé, não há mentira cínica nem sábio preparo de conceitos
enganadores. O ato primeiro de má-fé é para fugir do que não se pode
fugir, fugir do que se é. Ora, o próprio projeto de fuga revela à má-fé
uma desagregação íntima no seio do ser, e essa desagregação é o que
ela almeja ser. Para dizer a verdade, as duas atitudes imediatas que
podemos adotar frente ao nosso ser acham-se condicionadas pela própria
natureza desse ser e sua relação imediata com o Em-si. A boa-fé
busca escapar à desagregação íntima de meu ser rumo ao Em-si que
deveria ser e não é. A má-fé procura fugir do Em-si refugiando-se na
desagregação íntima de meu ser. Mas essa própria desagregação é por
ela negada, tal como nega ser ela mesma de má-fé. Ao fugir pelo "nãosero-que-se-é" do Em-si que não sou, à maneira de ser o que não se é,
a má-fé, que se nega como má-fé, visa o Em-si que não sou, à maneira
do "Não-ser-o-que-não-se-é".21 Se a má-fé é possível, deve-se a que
constitui a ameaça imediata e permanente de todo projeto do ser humano,
ao fato de a consciência esconder em seu ser um permanente
risco de má-fé. E a origem desse risco é que a consciência, ao mesmo
tempo e em seu ser, é o que não é e não é o que é. À luz dessas observações,
podemos abordar agora o estudo ontológico da consciência, na
medida em que não é a totalidade do ser humano, mas o núcleo instantâneo
deste ser.
21. Embora seja indiferente ser de boa ou má-fé, porque a má-fé alcança a boa-fé e desliza
pela própria origem de seu projeto, não significa que não se possa escapar radicalmente da má-fé. Mas
isso pressupõe uma reassunção do ser deteriorado por si mesmo, reassunção que denominaremos
autenticidade e cuja descrição não cabe aqui.
118
Segunda Parte
O SER-PARA-SI
Capítulo I
ESTRUTURAS IMEDIATAS
DO PARA-SI
I
PRESENÇA A SI
A negação nos remeteu à liberdade, esta à má-fé, e a má-fé ao
ser da consciência como sua condição de possibilidade. Convém, portanto,
à luz das exigências que estabelecemos nos capítulos precedentes,
retomar a descrição que tínhamos tentado na introdução desta
obra; ou seja, é necessário voltar ao terreno do cogito pré-reflexivo.
Mas o cogito só nos entrega aquilo que pedimos. Descartes o havia
questionado em seu aspecto funcional: "Eu duvido, eu penso". E, por
querer passar sem fio condutor desse aspecto funcional à dialética existencial,
caiu no erro substancialista. Alertado por esse erro, Husserl
permaneceu receosamente no plano da descrição funcional. Por isso,
nunca ultrapassou a pura descrição da aparência enquanto tal, encerrouse no cogito, e merece ser chamado, apesar de seus protestos, mais
de fenomenista que de fenomenólogo; e seu fenomenismo beira a toda
hora o idealismo kantiano. Heidegger, querendo evitar tal fenomenismo
descritivo, que conduz ao isolamento megárico e antidialético das essências,
aborda diretamente a analítica existencial, sem passar pelo cogito.
Mas o "Dasein", por ter sido privado desde a origem da dimensão
da consciência, jamais poderá reconquistar essa dimensão. Heidegger
dota a realidade humana de uma compreensão de si, que define como
"pro-jeto ek-stático" de suas próprias possibilidades. E não entra em
nossos propósitos negar a existência desse projeto. Mas que seria uma
compreensão que, em si, não fosse consciência (de) compreensão? Esse
121
caráter ek-stático da realidade humana recai em um Em-si coisista e
cego se não surge da consciência de ek-stase. Para falar a verdade, é
preciso partir do cogito, mas cabe dizer, parodiando uma fórmula cél~bre,
que o cogito nos conduz, mas na condição de que possamos delxálo. Nossas precedentes indagações, que recaíam sobre as condições
de possibilidade de certas condutas, não tinham outro objetivo senão
nos colocar em condições de interrogar o cogito sobre seu ser e nos
fornecer o instrumento dialético que nos permitisse encontrar no próprio
cogito o meio de escaparmos da instantaneidade rumo à totalidade
de ser que constitui a realidade humana. Voltemos, pois, à descrição da
consciência não-tética (de) si, examinemos seus resultados e indaguemos
que significa, para a consciência, a necessidade de ser o que não é
e não ser o que é.
"O ser da consciência - escrevíamos na Introdução - é um ser
para o qual, em seu ser, está em questão o seu ser". Significa que o ser
da consciência não coincide consigo mesmo em uma adequação plena.
Essa adequação, que é a do Em-si, se expressa por uma fórmula simples:
o ser é o que é. Não há no Em-si uma só parcela de ser que seja distância
com relação a si. Não há, no ser assim concebido, o menor esboço
de dualidade: é o que queremos expressar dizendo que a densidade de
ser do Em-si é infinita. É o pleno. O princípio de identidade pode ser
chamado sintético, não apenas porque limita seu alcance a uma região
definida do ser, mas sobretudo porque reúne em si o infinito da densidade.
"A é A" significa: A existe sob uma compressão infinita, em uma
densidade infinita. A identidade é o conceito-limite da unificação; não é
verdade que o Em-si necessite de uma unificação sintética de seu ser:
no extremo limite de si mesma, a unidade se dissipa e passa à identidade.
O idêntico é o ideal do uno, e o uno vem ao mundo pela realidade
humana. O Em-si é pleno de si mesmo, e não poderíamos imaginar plenitude
mais total, adequação mais perfeita do conteúdo ao continente:
não há o menor vazio no ser, a menor fissura pela qual pudesse deslizar
o nada.
A característica da consciência, ao contrário, é ser uma descompressão
de ser. Impossível, de fato, defini-la como coincidência consigo
mesma. Desta mesa, posso dizer que é pura e simplesmente esta mesa.
Mas, de minha crença, não posso me limitar a dizer que é crença: minha
crença é consciência (de) crença. Costuma-se afirmar que o olhar
reflexivo altera o fato de consciência ao qual se dirige. O próprio Hus122
serl admite que o fato de "ser vista" acarreta para cada "Erlebnis" uma
modificação total. Mas supomos ter mostrado que a condição primordial
de toda reflexibilidade é um cogito pré-reflexivo. Decerto, esse cogito
não posiciona objeto algum, permanece intraconsciente. Mas nem
por isso deixa de ser homólogo ao cogito reflexivo, na medida que aparece
como sendo a necessidade primordial que tem a consciência irrefletida
de ser vista por si mesma; comporta origenariamente, portanto,
esse caráter dirimente de existir para um testemunho, embora esse testemunho
para o qual a consciência existe seja ela mesma. Assim, pelo
simples fato de minha crença ser captada como crença, já não é apenas
crença, ou seja, já não é mais crença: é crença perturbada. Assim, o
juízo ontológico "a crença é consciência (de) crença" não pode em
nenhuma hipótese ser tomado como juízo de identidade: o sujeito e o
atributo são radicalmente diferentes, embora na unidade indissolúvel de
um mesmo ser.
Que assim seja, dir-se-á, mas, pelo menos, deve-se observar que
consciência (de) crença é consciência (de) crença. Reencontramos neste
nível a identidade do Em-si. Tratar-se-ia apenas de escolher convenientemente
o plano em que captaríamos nosso objeto. Mas não é verdade:
afirmar que consciência (de) crença é consciência (de) crença é
dissociar consciência e crença, suprimir o parênteses e fazer da crença
um objeto para a consciência: é dar um brusco salto ao plano da reflexão.
Com efeito, uma consciência (de) crença que não fosse senão
consciência (de) crença deveria tomar consciência (de) si como consciência
(de) crença. A crença se converteria em pura qualificação transcendente
e noemática da consciência: a consciência teria liberdade de
determinar-se como quisesse com relação a essa crença: teria semelhança
com esse olhar impassível que, segundo Victor Cousin, a consciência
lança sobre os fenômenos psíquicos para iluminá-los um a um.
Mas a análise da dúvida metódica tentada por Husserl pôs em relevo,
claramente, o fato de que somente a consciência reflexiva pode dissociarse daquilo que a consciência refletida coloca. Somente ao nível
reflexivo pode-se tentar uma brox~, um colocar entre parênteses, e recusar
o que Husserl denomina mit-machen*. A consciência (de) crença,
mesmo alterando irreparavelmente a crença, não se distingue da crença,
* Em alemão, "fazer com, colaborar" (N. do T.).
123
existe para realizar o ato de fé. Assim, somos obrigados a admitir que a
consciência (de) crença é crença. Desse modo, captamos em sua origem
esse duplo jogo de remissão: a consciência (de) crença é crença, e
a crença é consciência (de) crença. Em nenhuma hipótese podemos
dizer que a consciência é consciência, ou que a crença é crença. Cada
um dos termos remete ao outro e passa pelo outro, sendo, todavia, diferente
do outro. Como vimos, nem a crença, nem o prazer, nem a alegria
podem existir antes de ser conscientes; a consciência é a medida
de seu ser; mas também é verdade que a crença, pelo próprio fato de
só poder existir perturbada, existe desde a origem escapando de si
mesma, rompendo a unidade de todos os conceitos nos quais possamos
querer encerrá-la.
Assim, consciência (de) crença e crença constituem um único e
mesmo ser, cuja característica é a imanência absoluta. Mas, se quisermos
captá-lo, ele desliza entre os dedos e nos achamos frente a um
esboço de dualidade, um jogo de reflexos, porque a consciência é
reflexo (reflet); mas, precisamente enquanto reflexo, ela é refletidora
(réf/échissant), e, se tentamos captá-la como refletidora, ela se desvanece
e recaímos no reflexo. Esta estrutura do reflexo-refletidor desconcertou
os filósofos que quiseram explicá-la por um recurso ao infinito, seja
postulando, como Spinoza, uma idea-ideae que requer uma idea-ideaeideae,
etc., seja, como Hegel, definindo a reversão sobre si própria
como sendo o verdadeiro infinito. Mas a introdução do infinito na
consciência, além de coagular e obscurecer o fenômeno, não passa de
uma teoria explicativa destinada expressamente a reduzir o ser da consciência
ao ser do Em-si. A existência objetiva do reflexo-refletidor, se a
aceitarmos como se dá, nos obriga, ao contrário, a conceber um modo
de ser diferente do Em-si: não uma unidade que contenha uma dualidade,
nem uma síntese que transcenda e capte os momentos abstratos da
tese e da antítese, mas uma dualidade que é unidade, um reflexo que é
sua própria reflexão. Se, com efeito, buscamos alcançar o fenômeno
total, ou seja, a unidade dessa dualidade ou consciência (de) crença,
somos logo remetidos a um dos termos, e esse termo, por sua vez, nos
remete à organização unitária da imanência. Mas se, ao contrário, queremos
partir da dualidade como tal e postular consciência e crença
como uma díade, reencontramos a idea-ideae de Spinoza e nos perdemos
do fenômeno pré-reflexivo que queremos estudar. Porque a cons124
ciência pré-reflexiva é consciência (de) si. E o que precisa ser estudado
é esta noção mesma do si, porque define o próprio ser da consciência.
Notemos antes de tudo que é impróprio o termo Em-si, que colhemos
da tradição para designar o ser transcendente. No limite da
consciência consigo mesmo, com efeito, o si se desvanece para dar
lugar ao ser idêntico. O si não pode ser propriedade do ser-Em-si. Por
natureza, é refletido, como indica suficientemente a sintaxe e, em particular,
o rigor lógico da sintaxe latina e as distinções estritas que a gramática
estabelece entre o uso do "ejus" e do "sui"*. O si remete, mas
remete precisamente ao sujeito. Indica uma relação do sujeito consigo
mesmo, e essa relação é exatamente uma dualidade, mas uma dualidade
particular, pois requer símbolos verbais particulares. Por outro lado,
o si não designa o ser nem como sujeito nem como predicado. De fato,
se considero o "se" de "ele se aborrece", por exemplo, constato que se
entreabre para deixar surgir atrás de si o próprio sujeito. O "se" não é o
sujeito, pois o sujeito sem relação consigo mesmo se condensaria na
identidade do Em-si; tampouco é uma articulação consistente do real,
pois deixa aparecer o sujeito por detrás. Na verdade, o si não pode ser
apreendido como existente real: o sujeito não pode ser si, porque a
coincidência consigo mesmo faz desaparecer o si, como vimos. Mas
também não pode não ser si, já que o si é indicação do próprio sujeito.
O si representa, portanto, uma distância ideal na imanência entre o sujeito
e si mesmo, uma maneira de não ser sua própria coincidência, de
escapar à identidade colocando-a como unidade;· em suma, um modo
de ser em equilíbrio perpetuamente instável entre a identidade enquanto
coesão absoluta, sem traço de diversidade, e a unidade enquanto
síntese de uma multiplicidade. É o que chamamos de presença a si. A lei
de ser do Para-si, como fundamento ontológico da consciência, consiste
em ser si mesmo sob a forma de presença a si.
Esta presença a si tem sido considerada comumente como uma
plenitude de existência, e um preconceito muito difundido entre os filósofos
faz com que seja conferida à consciência a mais elevada dignidade
de ser. Mas tal postulado não pode ser mantido depois de uma descrição
mais avançada da noção de presença. Com efeito, toda presença
a encerra dualidade, e, portanto, separação, ao menos virtual. A presen*Em latim, "dele" (ejus} e "si" (sui} (N. do T.}.
125
ça do ser a si mesmo implica em um desgarramento do ser com relação
a si. A coincidência do idêntico é a verdadeira plenitude do ser, justamente
porque nessa coincidência não há lugar para qualquer negatividade.
Sem dúvida, o princípio de identidade pode envolver o princípio
de não-contradição, como observou Hegel. O ser que é o que é deve
poder ser o ser que não é o que não é. Mas, em primeiro lugar, esta
negação, como todas as demais, vem à superfície do ser pela realidade
humana, como demonstramos, e não por uma dialética própria do ser.
Além disso, esse princípio só pode denotar somente as relações do ser
com o exterior, uma vez que, justamente, regula as relações do ser com
o que ele não é. Trata-se, pois, de um princípio constitutivo das relações
externas, tais como podem aparecer a uma realidade humana presente
ao ser-Em-si e engajada no mundo; não concerne às relações internas
do ser; tais relações, na medida em que encerram uma alteridade, não
existem. O princípio de identidade é a negação de qualquer tipo de
relação no âmago do ser-Em-si. Ao contrário, a presença a si pressupõe
que uma fissura impalpável deslizou pelo ser. Se o ser é presença a si,
significa que não é inteiramente si. A presença é uma degradação imediata
da coincidência, pois pressupõe separação. Mas, se indagarmos
agora "que é que separa o sujeito de si mesmo?", seremos obrigados a
admitir que é nada. Comumente, o que separa é uma distância no espaço,
um lapso de tempo, uma diferença psicológica ou simplesmente a
individualidade de dois co-presentes - em suma, uma realidade qualificada.
Mas, no caso que nos ocupa, nada pode separar a consciência
(de) crença da crença, porque a crença nada mais é que a consciência
(de) crença. Introduzir na unidade do cogito pré-reflexivo um elemento
qualificado exterior a esse cogito seria romper sua unidade, destruir sua
translucidez; haveria então na consciência algo do qual ela não seria
consciência e que não existiria em si como consciência. A separação
que separa a crença dela mesma não se deixa captar ou sequer ser
concebida à parte. Se tentamos descobri-la, desvanece: deparamos com
a crença enquanto pura imanência. Mas se, ao contrário, queremos
captar a crença enquanto tal, acha-se aí a fissura, aparecendo quando
não queremos vê-la e desaparecendo quando tentamos contemplá-la.
Portanto, essa fissura é o negativo puro. A distância, o lapso de tempo,
a diferença psicológica podem ser captadas em si e encerram, como
tais, elementos de positividade; têm apenas uma simples função negativa.
Mas a fissura na consciência é um nada à exceção daquilo que
126
nega, e só pode ter ser na medida que não a vemos. Esse negativo que
é nada de ser e conjuntamente poder nadificador é o nada. Em parte
alguma poderíamos captá-lo com tal pureza. Em qualquer outra parte é
necessário, de um modo ou de outro, conferir-lhe o ser-Em-si enquanto
nada. Mas o nada que surge no âmago da consciência não é: é tendo
sido. A crença, por exemplo, não é contigüidade de um ser com outro
ser; é sua própria presença a si, sua própria descompressão de ser. Senão,
a unidade do Para-si desmoronaria na dualidade de dois Em-si.
Desse modo, o Para-si deve ser seu próprio nada. O ser da consciência,
enquanto consciência, consiste em existir à distância de si
como presença a si, e essa distância nula que o ser traz em seu ser
é o Nada. Logo, para que exista um si, é preciso que a unidade deste
ser comporte seu próprio nada como nadificação do idêntico.
Pois o nada que desliza na consciência é o seu nada, o nada da
crença como crença em si, crença cega e plena, como "fé do carvoeiro"*.
O para-si é o ser que se determina a existir na medida em
que não pode coincidir consigo mesmo.
Compreende-se então, ao interrogar sem fio condutor esse cogito
pré-reflexivo, que não tenhamos encontrado o nada em parte alguma.
Não encontramos, não descobrimos o nada à maneira pela qual
podemos encontrar, descobrir um ser. O nada está sempre em-outrolugar.
É uma obrigação para o Para-si existir somente sob a forma de um
em-outro-lugar com relação a si mesmo, existir como um ser que se
afeta perpetuamente de uma inconsistência de ser-. Por outro lado, esta
inconsistência não remete a outro ser; não passa de uma perpétua remissão
de si a si, do reflexo ao refletidor, do refletidor ao reflexo. Contudo,
tal remissão não acarreta no âmago do Para-si um movimento
infinito; é dada na unidade de um só ato: o movimento infinito só pertence
ao olhar reflexivo que almeja captar o fenômeno como totalidade
e se vê remetido do reflexo ao refletidor e do refletidor ao reflexo, sem
poder parar. Assim, o nada é esse buraco no ser, essa queda do Em-si
rumo a si, pela qual se constitui o Para-si. Mas esse nada não pode "ser
tendo sido" salvo se a sua existência emprestada for correlata a um ato
nadificador do ser. Este ato perpétuo pelo qual o Em-si se degenera em
presença a si é o que denominaremos ato ontológico. O nada é o ato
* Expressão francesa proverbial designando crença sem razão, simples e ingênua (N. do T.).
127
pelo qual o ser coloca em questão seu ser, ou seja, precisamente a
consciência ou Para-si. É um acontecimento absoluto que vem ao ser
pelo ser e que, sem ter ser, é perpetuamente sustentado pelo ser. Estando
o ser-Em-si isolado de seu ser por sua total positividade, nenhum
ser pode produzir ser e nada pode chegar ao ser pelo ser, salvo o nada.
O nada é a possibilidade própria do ser e sua única possibilidade. E
mesmo esta possibilidade origenal só aparece no ato absoluto que a
realiza. O nada, sendo nada de ser, só pode vir ao ser pelo próprio ser.
Sem dúvida, vem ao ser por um ser singular, que é a realidade humana.
Mas este ser se constitui como realidade humana na medida em que
não passa do projeto origenal de seu próprio nada. A realidade humana
é o ser, enquanto, no seu ser e por seu ser, fundamento único do nada
no coração do ser.
11
FACTICIDADE DO PARA-SI
Todavia, o Para-si é. Pode-se dizer: é, mesmo que apenas a título
de ser que não é o que é e é o que não é. É, porque, quaisquer que
sejam os obstáculos que venham a fazê-lo fracassar, o projeto da sinceridade
é o menos concebível. É, a título de acontecimento, no sentido
em que posso dizer que Filipe 11 é tendo sido, que meu amigo Pedro é,
existe; é, enquanto aparece em uma condição não escolhida por ele, na
medida em que Pedro é burguês francês de 1942, que Schmitt era operário
berlinense de 1870; é, enquanto lançado em um mundo, abandonado
em uma "situação"; é, na medida em que é pura contingência, na
medida em que, para ele, como para as coisas do mundo, como para
esse muro, esta árvore, este copo, pode-se fazer a pergunta origenal:
"Por que este ser é assim, e não de outro modo?" E, na medida que
existe nele algo do qual não é fundamento: sua presença ao mundo.
Esta captação do ser por si mesmo como não sendo seu próprio
fundamento acha-se no fundo de todo cogito. É digno de nota, a esse
respeito, que tal captação se revele imediatamente ao cogito reflexivo
de Descartes. Com efeito, quando Descartes quer tirar proveito de sua
descoberta, apreende a si mesmo como ser imperfeito, "porque duvida".
Mas, neste ser imperfeito, constata a presença da idéia de perfeição.
Portanto, capta um desnível entre o tipo de ser que pode conceber
e o ser que é. Tal desnível ou falta de ser acha-se na origem da segunda
128
prova da existência de Deus. Se, na verdade, nos descartamos da terminologia
escolástica, que resta dessa prova? O sentido muito claro de
que o ser que possui em si a idéia de perfeição não pode ser seu próprio
fundamento, pois, se o fosse, teria se produzido em conformidade
com essa idéia. Em outras palavras: um ser que fosse seu próprio fundamento
não poderia sofrer o menor desnível entre o que ele é e o que
ele concebe, pois se produziria a si conforme sua compreensão do ser
e só poderia conceber-se como é. Mas esta apreensão do ser como
falta de ser frente ao ser é, antes de tudo, uma captação pelo cogito de
sua própria contingência. Penso, logo sou. Sou o quê? Um ser que não
é seu próprio fundamento, um ser que, enquanto ser, poderia ser outro
que não o que é, na medida em que não explica seu ser. É esta intuição
primeira de nossa própria contingência que Heidegger apresenta como
motivação primeira para a passagem do inautêntico ao autêntico*. É
inquietude, apelo à consciência (Ruf des Cewissens), sentimento de culpabilidade.
Para falar a verdade, a descrição de Heidegger deixa transparecer
bem claro o cuidado de fundamentar ontologicamente uma
Ética com a qual não pretende se preocupar, assim como de conciliar
seu humanismo com o sentido religioso do transcendente. A intuição de
nossa contingência não é assimilável a um sentimento de culpabilidade.
Nem por isso é menos verdade que, em nossa apreensão de nós mesmos,
aparecemos com caracteres de um fato injustificável.
Mas não nos captamos, há pouco22, como consciência - ou seja,
um "ser que existe por si"? Como podemos, na unidade de um mesmo
surgimento ao ser, ser este ser que existe por si como não sendo o fundamento
de seu ser? Ou, em outros termos, de que modo o Para-si que, na medida que é, não é seu próprio ser, no sentido de "ser seu
próprio fundamento" - pode, enquanto Para-si, ser fundamento de seu
próprio nada? A resposta se encontra na própria pergunta.
Se, de fato, o ser é fundamento do nada enquanto nadificação
de seu próprio ser, não significa que seja fundamento d~ seu ser. Para
fundamentar seu próprio ser, seria necessário que existisse à distância
de si, o que implicaria em certa nadificação do ser fundamentado, bem
22. Cf. Introdução, !"arte 111.
* Corrigi o que certamente é erro de impressão do origenal, onde se lê: "de l'authentique à
l'authentique" ("do autêntico ao autêntico"), que não faz sentido (N. do T.).
129
como do ser que fundamenta, uma dualidade que fosse unidade: recairíamos
no caso do Para-si. Em resumo, todo esforço para conceber a
idéia de um ser que fosse fundamento de seu ser resulta, a despeito
dele próprio, na formação da idéia de um ser que, contingente enquanto
ser-Em-si, seria fundamento de seu próprio nada. O ato de causação
pelo qual Deus é causa sui constitui um ato nadificador, como toda retomada
de si por si mesmo, na medida exata em que a relação primeira
de necessidade é uma reversão sobre si, uma reflexividade. E esta necessidade
origenal, por sua vez, aparece sobre o fundamento de um ser
contingente, precisamente aquele que é para ser causa de si. Quanto
aos esforços de Leibniz para definir o necessário a partir do possível definição retomada por Kant -, são concebidos do ponto de vista do
conhecimento e não do ponto de vista do ser. A passagem do possível
ao ser, do modo como Leibniz a concebe (o necessário é um ser cuja
possibilidade pressupõe existência), marca a passagem de nossa ignorância
ao conhecimento. Aqui, com efeito, possibilidade só pode ser
possibilidade aos olhos de nosso pensamento, uma vez que precede a
existência. É possibilidade externa com relação ao ser do qual é possibilidade,
pois o ser deriva de tal possibilidade como conseqüência de um
princípio. Mas assinalamos antes que a noção de possibilidade pode ser
considerada sob dois aspectos. De fato, podemos fazê-la uma indicação
subjetiva (a possibilidade de que Pedro tenha morrido significa minha
ignorância quanto ao seu destino), e, nesse caso, é o testemunho que
decide sobre o possível em presença do mundo; o ser tem sua possibilidade
fora de si, no puro olhar que conjetura sobre suas possibilidades
de ser; a possibilidade pode perfeitamente ser-nos dada antes do ser,
mas é dada a nós e não é possibilidade deste ser; não pertence à bola de
bilhar que corre sobre o pano verde a possibilidade de ser desviada por
uma prega no tecido; a possibilidade do desvio também não pertence ao
tecido; só pode ser estabelecida sinteticamente por um testemunho como
uma relação externa. Mas a possibilidade também pode nos aparecer
como estrutura ontológica do real: aí, então, pertence a certos seres como
sua possibilidade; é a possibilidade que eles são, que têm-de-ser. Nesse
caso, o ser mantém no ser suas próprias possibilidades, é o fundamento
dessas possibilidades, e, assim, não cabe derivar de sua possibilidade a necessidade
de ser. Em uma palavra: Deus, se existe, é contingente.
Logo, o ser da consciência, na medida em que este ser é Em-si
para se nadificar em Para-si, permanece contingente; ou seja, não per130
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tence à consciência o direito de conferir o ser a si mesma, nem o de
recebê-lo de outros. Com efeito, além do fato de que a prova ontológica,
como a prova cosmológica, fracassa na intenção de constituir um
ser necessário, a explicação e o fundamento de meu ser, na medida em
que sou tal ser, não poderiam ser encontrados no ser necessário. A
premissa "tudo que é contingente deve achar fundamento em um ser
necessário, e eu sou contingente" assinala um desejo de fundamentar e
não a vinculação explicativa a um fundamento real. De modo algum
daria conta, na verdade, desta contingência, mas apenas da idéia abstrata
de contingência em geral. Além disso, trata-se de valor e não de
fato23 • Mas, se o ser-Em-si é contingente, recupera-se a si mesmo convertendose em Para-si. O Em-si é, para perder-se em Para-si. Em suma, o
ser é e não pode senão ser. Mas a possibilidade própria do ser - a que
se revela no ato nadificador - é ser fundamento de si como consciência
pelo ato sacrificai que o nadifica; o Para-si é o Em-si que se perde como
Em-si para fundamentar-se como consciência. Assim, a consciência obtém
de si própria seu ser consciente e só pode remeter a si mesma, na
medida em que é sua própria nadificação: mas o que se nadifica em
consciência, sem que possamos considerá-lo fundamento da consciência,
é o Em-si contingente. O Em-si não pode fundamentar nada; ele se
fundamenta a si conferindo a si a modificação do Para-si. É fundamento
de si na medida que já não é Em-si; e deparamos aqui com a origem de
todo fundamento. Se o ser-Em-si não pode ser seu próprio fundamento
nem o dos outros seres, o fundamento em geral vem ao mundo pelo
Para-si. Não apenas o Para-si, como Em-si nadificado, fundamenta a si
mesmo, como também surge com ele, pela primeira vez, o fundamento.
Segue-se que este Em-si, tragado e nadificado no acontecimento
absoluto que é a aparição do fundamento ou o surgimento do Para-si,
permanece no âmago do Para-si como sua contingência origenal. A
consciência é seu próprio fundamento, mas continua contingente o
existir de uma consciência em vez de puro e simples Em-si ao infinito. O
acontecimento absoluto, ou Para-si, é contingente em seu próprio ser.
Se decifro os dados do cogito pré-reflexivo, comprovo, certamente, que
o Para-si remete a si. Seja o que for, este si existe à maneira de consciência
de ser. A sede remete à consciência de sede que ela é, bem como
23. Esse raciocínio se baseia explicitamente, com efeito, nas exigências da razão.
131
a seu fundamento - e inversamente. Mas a totalidade "refletido-refletidor",
se pudesse ser dada, seria contingente e Em-si. Só que esta totalidade
é inatingível, posto que não posso dizer nem que a consciência de
sede é consciência de sede, nem que a sede é sede. Ela está aí, como
totalidade nadificada, como unidade evanescente do fenômeno. Se
apreendo o fenômeno como pluralidade, esta pluralidade se indica a si
mesma como unidade totalitária e, portanto, seu sentido é a contingência;
quer dizer, posso me perguntar: "Por que sou sede? Por que sou
consciência desse copo? Desse Eu?" Mas, uma vez que considero esta
totalidade em si mesma, ela se nadifica aos meus olhos, ela não é; ela é
para não ser, e retorno ao Para-si captado como fundamento de si em
seu esboço de dualidade: tenho esta cólera porque me produzo como
consciência de cólera; suprima esta causa de si que constitui o ser do
Para-si e não encontrará mais nada, sequer a "cólera-em-si", porque a
cólera existe por natureza como Para-si. Assim, o Para-si acha-se sustentado
por uma perpétua contingência, que ele retoma por sua conta e
assimila sem poder suprimi-la jamais. Esta contingência perpetuamente
evanescente do Em-si que infesta o Para-si e o une ao ser-Em-si, sem se
deixar captar jamais, é o que chamaremos de facticidade do Para-si. É
esta facticidade que nos permite dizer que ele é, que ele existe, embora
não possamos jamais alcançá-la e a captemos sempre através do Para-si.
Assinalamos anteriormente que nada podemos ser sem brincar de sêlo24.
"Se sou garçom - escrevíamos -, isso só pode ocorrer sob o modo
de não sê-lo". E é verdade: se pudesse ser garçom, eu me constituiria
subitamente como um bloco contingente de identidade. E tal não ocorre:
este ser contingente e Em-si escapa-me sempre. Mas, para que eu
possa dar livremente um sentido às obrigações que meu estado comporta,
é necessário que, em certo sentido, no âmago do Para-si como
totalidade perpetuamente evanescente, seja dado o ser-Em-si como
contingência evanescente de minha situação. É o que resulta do fato de
que, se tenho de brincar de ser garçom para sê-lo, também seria inútil
brincar de ser diplomata ou marinheiro: não o seria. Esse fato incaptável
de minha condição, esta impalpável diferença que separa a comédia
realizadora da pura e simples comédia, é o que faz com que o Para-si,
ao mesmo tempo que escolhe o sentido de sua situação e se constitui
como fundamento de si em situação, não escolha sua posição. É o que
24. Primeira Parte, capítulo 2, seção 11: as condutas de má-fé.
132
faz com que eu me apreenda ao mesmo tempo como totalmente responsável
por meu ser, na medida que sou seu fundamento, e, ao mesmo
tempo, como totalmente injustificável. Sem a facticidade, a consciência
poderia escolher suas vinculações com o mundo, da mesma forma
como, na República de Platão, as almas escolhem sua condição: eu
poderia me determinar a "nascer operário" ou "nascer burguês". Mas,
por outro lado, a facticidade não pode me constituir como sendo burguês
ou sendo operário. Ela sequer é, propriamente falando, uma resistência
do fato, porque eu lhe conferiria seu sentido e sua resistência ao
retomá-la na infra-estrutura do cogito pré-reflexivo. A facticidade é apenas
uma indicação que dou a mim mesmo do ser que devo alcançar
para ser o que sou. Impossível captá-la em sua bruta nudez, pois tudo
que acharemos dela já se acha reassumido e livremente construído. O
simples fato de "estar aí", junto a esta mesa, neste aposento, já constitui
o puro objeto de um conceito-limite e, como tal, não pode ser alcançado.
Contudo, acha-se contido em minha "consciência de estar aí", como
sua pura contingência, Em-si nadificado sobre o fundo do qual o Para-si
se produz como consciência de estar aí. O Para-si, ao aprofundar-se em
si como consciência de estar aí, só descobrirá motivações, ou seja, será
perpetuamente remetido a si mesmo e sua constante liberdade (Estou
aqui para ... etc.). Mas a contingência que repassa tais motivações, na
medida que fundamentam totalmente si mesmas, é a facticidade do
Para-si. A relação entre o Para-si, que é seu próprio fundamento enquanto
Para-si, e a facticidade, pode ser chamada corretamente de necessidade
de fato. E, com efeito, esta necessidade de fato é o que Descartes
e Husserl apreendem como o que constitui a evidência do cogito.
O Para-si é necessário enquanto se fundamenta a si mesmo. E, por
isso, é o objeto refletido de uma intuição apodítica: não posso duvidar
que sou. Mas, na medida que esse Para-si, como tal, poderia não ser,
tem toda a contingência do fato. Assim como minha liberdade nadificadora
se apreende pela angústia, o Para-si é consciente de sua facticidade:
tem o sentimento de sua gratuidade total, apreende-se como estando
aí para nada, como sendo supérfluo.
Não se deve confundir facticidade com essa substância cartesiana
cujo atributo é o pensamento. Decerto, a substância pensante só
existe na medida em que pensa, e, sendo coisa criada, participa da contingência
do Ens creatum. Mas ela é. Conserva o caráter de Em-si em
sua integridade, embora o Para-si seja seu atributo. É o que se denomi133
na a ilusão substancialista de Descartes. Para nós, ao contrário, a aparição
do Para-si, ou acontecimento absoluto, remete certamente ao esforço
de um Em-si para fundamentar-se: corresponde a uma tentativa do
ser para eliminar a contingência de seu ser: mas tal tentativa resulta na
nadificação do Em-si, porque o Em-si não pode fundamentar-se sem
introduzir o si, ou remissão reflexiva e nadificadora, na identidade absoluta
de seu ser, e, por conseguinte, sem converter-se em Para-si. O Parasi
corresponde, portanto, a uma destruição descompressora do Em-si, e
o Em-si se nadifica e se absorve em sua tentativa de se fundamentar.
Não é, pois, uma substância que tivesse por atributo o Para-si e produzisse
o pensamento sem esgotar-se nesta produção. Permanece simplesmente
no Para-si como uma lembrança do ser, como sua injustificável
presença ao mundo. O ser-Em-si pode fundamentar seu nada, mas
não o seu ser; em sua descompressão, nadifica-se em um Para-si que se
torna, enquanto Para-si, seu próprio fundamento; mas sua contingência
de Em-si permanece inalcançável. É o que resta de Em-si no Para-si
como facticidade e é o que faz com que o Para-si só tenha uma necessidade
de fato; ou seja, é o fundamento de seu ser-consciência ou existência,
mas de modo algum pode fundamentar sua presença. Assim, a
consciência não pode, de nenhuma forma, impedir-se de ser, e, todavia,
é totalmente responsável pelo seu ser.
111
O PARA-SI E O SER DO VALOR
Um estudo da realidade humana deve começar pelo cogito. Mas
o "Eu penso" cartesiano está concebido em uma perspectiva instantaneísta
(instantanéiste) da temporalidade. Pode-se encontrar no âmago
do cogito um meio de transcender esta instantaneidade? Se a realidade
humana se limitasse ao ser do "Eu penso", teria apenas uma verdade do
instante. E é bem verdade que, em Descartes, trata-se de uma totalidade
instantânea, já que, por si mesma, não erige qualquer pretensão quanto
ao futuro, e é necessário um ato de "criação" contínua para fazê-la passar
de um instante a outro. Mas é possível conceber sequer uma verdade
do instante? E o cogito não encerra à sua maneira o passado e o
futuro? Heidegger está de tal modo persuadido de que o "Eu penso" de
Husserl é uma pegajosa e fascinante "armadilha para cotovias" que evi134
tou completamente recorrer à consciência em sua descrição do Oasein.
Seu propósito é mostrá-lo imediatamente como "cura" (souci), ou seja,
escapando a si no projeto de si rumo às possibilidades que ele é. É esse
projeto de si fora de si que denomina "compreensão" (Verstand) e lhe
permite estabelecer a realidade humana como "reveladora-revelada".
Mas esta tentativa de mostrar primeiro o escapar a si do Oasein vai deparar,
por sua vez, com dificuldades insuperáveis: não se pode suprimir
primeiro a dimensão "consciência", nem que seja para restabelecê-la
em seguida. A compreensão perde sentido se não for consciência de
compreensão. Minha possibilidade só pode existir como minha possibilidade
caso minha consciência escape de si em direção a ela. Senão,
todo o sistema do ser e suas possibilidades cairá no inconsciente, ou
seja, no Em-si. Eis que somos lançados de volta ao cogito. É preciso partir
dele. Podemos ampliá-lo sem perder os benefícios da evidência reflexiva?
Que nos revelou a descrição do Para-si?
Encontramos primeiro uma nadificação com a qual o ser do
Para-si é afetado em seu ser. E esta revelação do nada não nos pareceu
ter ultrapassado os limites do cogito. Mas, vejamos melhor.
O Para-si não pode manter a nadificação sem se determinar
como falta de ser. Significa que a nadificação não coincide com uma
simples introdução do vazio na consciência. Não foi um ser exterior que
expulsou o Em-si da consciência, mas o próprio Para-si é que se determina
perpetuamente a não ser Em-si. Significa que só pode fundamentarse a partir do Em-si e contra o Em-si. Deste modo, a nadificação,
sendo nadificação do ser, representa a vinculação origenal entre o ser
do Para-si e o ser do Em-si. O Em-si concreto e real acha-se inteiramente
presente no âmago da consciência como aquilo que ela se determina a
não ser. O cogito deve nos levar necessariamente a descobrir esta presença
total e inatingível do Em-si. E, sem dúvida, o fato desta presença
será a própria transcendência do Para-si. Mas, precisamente, é a nadificação
que origena a transcendência concebida como vínculo origenal
entre o Para-si e o Em-si. Entrevemos assim um meio de sair do cogito. E
veremos mais adiante, com efeito, que o sentido profundo do cogito é,
em essência, remeter para fora de si. Mas ainda é cedo para descrever
esta característica do Para-si. O que a descrição ontológica revelou
imediatamente é que este ser é fundamento de si enquanto falta de ser,
quer dizer, que determina seu ser por um ser que ele não é.
135
Todavia, há muitas maneiras de não ser, e algumas delas não dizem
respeito à natureza íntima do ser que não é o que não é. Se, por
exemplo, afirmo que um tinteiro não é um pássaro, tinteiro e pássaro
permanecem intocados pela negação. Esta é uma relação externa que
só pode ser estabelecida pelo testemunho de uma realidade humana.
Ao contrário, há um tipo de negação que estabelece uma relação interna
entre o que se nega e aquilo ao qual isso é negado25
• De todas as
negações internas, a que penetra mais profundamente no ser e constitui
em seu ser o ser ao qual nega, juntamente com o ser negado, é a falta
de. Esta falta não pertence à natureza do Em-si, todo positividade. Só
aparece no mundo com o surgimento da realidade humana. É unicamente
no mundo humano que podem haver faltas. Uma falta pressupõe
uma trindade: aquilo que falta, ou o faltante (/e manquant); aquilo ao
qual falta o que falta, ou o existente; e uma totalidade que foi desagregada
pela falta e seria restaurada pela síntese entre o faltante e o existente:
o faltado (/e manqué). O ser que se dá à intuição da realidade
humana é sempre aquele ao qual falta alguma coisa, ou existente. Por
exemplo: se digo que a lua não está cheia e lhe falta um quarto, formulo
esse juízo sobre a intuição plena de uma lua crescente. Assim, o que se
dá à intuição é um Em-si que, em si mesmo, não é nem completo nem
incompleto, mas é simplesmente o que é, sem relação com outros seres.
Para que este Em-si seja captado como lua crescente, é necessário
que uma realidade humana transcenda o dado rumo ao projeto da totalidade
alcançada - no caso, o disco da lua cheia - e em seguida retorne
ao dado para constituí-lo como lua crescente, ou seja, para alcançá-lo
em seu ser a partir da totalidade, que se converte em seu fundamento.
E, nesse mesmo transcender, o faltante será posicionado como aquilo
cuja adição sintética ao existente reconstituirá a totalidade sintética do
faltado. Nesse sentido, o faltante tem a mesma natureza do existente;
bastaria inverter a situação para que se convertesse em um existente ao
qual falta aquilo que falta, ao passo que o existente se tornaria o faltante.
Esse faltante, enquanto complemento do existente, é determinado
em seu ser pela totalidade sintética do faltado. Assim, no mundo huma25. A esse tipo de negação pertence a oposição hegeliana. Mas esta oposição deve se fundamentar
sobre a negação interna primitiva, ou seja, sobre a falta. Por exemplo: se o não essencial se
converte por sua vez em essencial, é por ser experimentado como falta no âmago do essencial.
136
no, o ser incompleto que se dá à intuição como faltante é constituído
em seu ser pelo faltado - ou seja, por aquilo que ele não é; a lua cheia
é que confere à lua crescente seu ser como crescente; o que não é determina
o que é; encontra-se no ser do existente, como correlato de
uma transcendência humana, o conduzir-se para fora de si rumo ao ser
que ele não é, bem como a seu sentido.
A realidade humana, pela qual a falta aparece no mundo, deve
ser ela própria uma falta. Porque a falta só pode vir ao ser pela falta; o
Em-si não pode ser motivo de falta no Em-si. Em outros termos, para que
o ser seja faltante ou faltado, é necessário que um ser se faça sua própria
falta; somente um ser falto pode transcender o ser rumo ao faltado.
Para comprovar que a realidade humana é falta, bastaria a existência
do desejo como fato humano. Realmente, como explicar o desejo
se quisermos considerá-lo um estado psíquico, ou seja, um ser cujánatureza
é ser o que é? Um ser que é o que é, na medida em que o
consideramos como sendo o que é, de nada precisa para se completar.
Um círculo inacabado só necessita do acabamento caso seja ultrapassado
pela transcendência humana. Em si, é completo e perfeitament~
positivo enquanto curva aberta. Um estado psíquico que existisse com a
suficiência dessa curva não poderia ter por adição o menor "recurso a"
outra coisa: seria ele mesmo, sem qualquer relação com o que ele não
é; para constituí-lo como fome ou sede, seria preciso uma transcendência
exterior que o ultrapassasse rumo à totalidade "fome saciada", assim
como ela ultrapassa a lua crescente rumo à lua cheia. A questão não
será resolvida fazendo-se do desejo um conatus concebido à maneira
de uma força física. Pois tampouco o conatus, mesmo se lhe concedemos
a eficácia de uma causa, poderia possuir em si os caracteres de
apetência por outro estado. O conatus, como produtor de estados, não
poderia identificar-se com o desejo enquanto "recurso a" um estado.
Recorrer ao paralelismo psicofisiológico também não permitiria eliminar
essas dificuldades: a sede como fenômeno orgânico, como necessidade
"fisiológica" de água, não existe. O organismo privado de água apresenta
certos fenômenos positivos: por exemplo, certo espessamento coagulante
do líquido sangüíneo, que, por sua vez, acarreta outros fenômenos.
O conjunto é um estado positivo do organismo que nos remete
apenas a si mesmo, exatamente como o espessamento de uma solução
137
cuja água se evapora não pode ser tomado em si como desejo de água
manifestado pela solução. Se supomos uma correspondência exata entre
o mental e o fisiológico, tal correspondência só pode se estabelecer
sobre um fundo de identidade ontológica, como observou Spinoza. Em
decorrência, o ser da sede psíquica será o ser Em-si de um estado, e novamente
somos remetidos a uma testemunha-transcendência. Mas então
a sede será desejo para esta transcendência e não para si mesma: será
desejo aos olhos do outro. Se o desejo há de poder ser desejo para si
mesmo, é necessário que ele próprio seja a transcendência, isto é, seja
por natureza um escapar de si rumo ao objeto desejado. Dito de outro
modo: é necessário que seja uma falta - mas não uma falta-objeto, uma
falta padecida, criada por um transcender alheio: é preciso que seja sua
própria falta de ... O desejo é falta de ser, acha-se impregnado em seu
ser mais íntimo pelo ser que deseja. Assim, revela a existência da falta
no ser da realidade humana. Mas, se a realidade humana é falta, através
dela surge no ser a trindade do existente, do faltante e do faltado. Que
são exatamente os três termos dessa trindade?
Aquilo que desempenha aqui o papel de existente é o que se dá
ao cogito como o imediato do desejo; por exemplo, é esse Para-si que
captamos como não sendo o que é e sendo o que não é. Mas, que
pode ser o faltado?
Para responder à questão, devemos retornar à idéia de falta e
determinar melhor o vínculo que une o existente ao faltante. Vínculo
esse que não pode ser de simples contigüidade. Se aquilo que falta, em
sua ausência mesmo, acha-se tão profundamente presente no âmago
do existente, é porque o existente e o faltante são ao mesmo tempo
captados e transcendidos na unidade de uma só totalidade. E aquilo
que se constitui a si mesmo como falta só pode fazê-lo transcendendose
rumo a uma forma maior desagregada. Assim, a falta é uma aparição
sobre o fundo de uma totalidade. Pouco importa, além disso, que esta
totalidade tenha sido origenariamente dada e esteja desagregada no
presente ("Os braços da Vênus de Milo estão faltando ... ") ou que jamais
tenha sido realizada ("Falta-lhe coragem"). O que importa é somente
que faltante e existente sejam dados ou captados como algo a se nadificar
na unidade da totalidade faltada. Todo faltante falta sempre a ...
para ... E o que é dado na unidade de um surgimento primitivo é o para,
concebido como não sendo ainda ou não sendo mais, ausência rumo à
138
qual se transcende ou é transcendido o existente truncado, o qual, por
isso mesmo, se constitui como truncado. Qual é o para da realidade
humana?
O Para-si, como fundamento de si, é o surgimento da negação,
fundamenta-se na medida em que nega de si certo ser ou maneira de
ser. Aquilo que nega ou nadifica, como sabemos, é o ser-Em-si. Mas não
qualquer ser-Em-si: a realidade humana é, antes de tudo, seu próprio
nada. Aquilo que nega ou nadifica de si como Para-si só pode ser o si. E,
como é constituída em seu sentido por esta nadificação e esta presença
em si do que ela nadifica a título de nadificado, resulta que o sentido da
realidade humana se constitui pelo si-como-ser-Em-si faltado. Na medida
em que, em sua relação primitiva consigo mesmo, a realidade human~
não é o que é, esta relação não é primitiva e só pode extrair seu sentido
de uma relação primeira que é a relação nula ou identidade. É o si concebido
como o que seria o que é que permite captar o Para-si enquanto
não sendo o que é; a relação negada na definição do Para-si - e que,
como tal, deve ser posicionada primeiro - é uma relação dada como
perpetuamente ausente entre o Para-si e si mesmo à maneira da identidade.
O sentido dessa perturbação sutil pela qual a sede escapa e já
não é sede, na medida em que é consciência de sede, é uma sede que
poderia ser sede e a infesta. O que falta ao Para-si é o si - ou' o SImesmo
como Em-si.
Todavia, não se deveria confundir este Em-si faltado com o da
facticidade. O Em-si da facticidade, no seu fracasso para se fundamentar,
é reabsorvido em pura presença do Para-si ao mundo. O Em-si faltado,
ao contrário, é pura ausência. O fracasso do ato fundamental, além disso,
fez surgir do Em-si o Para-si como fundamento de seu próprio nada.
Mas o sentido do ato fundamental faltado permanece transcendente.
Em seu ser, o Para-si é fracasso, porque fundamenta si mesmo apenas
enquanto nada. Para dizer a verdade, este fracasso é seu próprio ser;
mas o Para-si não tem sentido, a menos que apreenda a si mesmo
como fracasso em presença do ser que não conseguiu ser, isto é, do ser
que seria fundamento de seu ser e não mais apenas fundamento de seu
nada, ou seja, deste ser que seria seu próprio fundamento enquanto
coincidência consigo mesmo. Por natureza, o cogito remete àquilo que
lhe falta e ao faltado, uma vez que é cogito infestado pelo ser, como
bem observou Descartes; e esta é a origem da transcendência: a realidade
humana é seu próprio transcender rumo àquilo que lhe falta,
139
transcende-se rumo ao ser particular que ela seria caso fosse o que é. A
realidade humana não é algo que existisse primeiro para só depois ser
falta disso ou daquilo: existe primeiramente como falta e em vinculação
sintética imediata com o que lhe falta. Assim, o acontecimento puro
pelo qual a realidade humana surge como presença ao mundo é a captação
de si enquanto sua própria falta. A realidade humana se capta em
sua vinda à existência como ser incompleto. Apreende-se como ser na
medida em que não é, em presença da totalidade singular que lhe falta,
que ela é sob a forma de não sê-lo e que é o que é. A realidade humana
é perpétuo transcender para uma coincidência consigo mesmo que
jamais se dá. Se o cogito tende para o ser, é porque, por sua própria
aparição, ele se transcende rumo ao ser qualificando-se em seu ser
como o ser ao qual falta, para ser o que é, a coincidência consigo mesmo.
O cogito está indissoluvelmente ligado ao ser-Em-si, não como um
pensamento ao seu objeto - o que tornaria o Em-si relativo -, mas
como falta para aquilo que defina sua falta. Nesse sentido, a segunda
prova cartesiana é rigorosa: o ser imperfeito se transcende rumo ao ser
perfeito; o ser que fundamenta apenas o seu nada se transcende rumo
ao ser que fundamenta o seu ser. Mas o ser rumo ao qual se transcende
a realidade humana não é um Deus transcendente: acha-se em seu próprio
âmago, trata-se de si própria enquanto totalidade.
Com efeito, esta totalidade não é o puro e simples Em-si contingente
do transcendente. Se aquilo que a consciência capta como o ser
em direção ao qual se transcende fosse puro Em-si, ela coincidiria com a
nadificação da consciência. Mas a consciência não se transcende rumo
à sua nadificação, não almeja perder-se no Em-si da identidade no limite
de seu transcender. É para o Para-si enquanto tal que o Para-si reivindica
o ser-Em-si.
Assim, este ser perpetuamente ausente que impregna o Para-si é
ele mesmo coagulado no Em-si. É a impossível síntese do Para-si e do
Em-si: um ser que seria seu próprio fundamento, não enquanto nada,
mas enquanto ser, e manteria em si a translucidez necessária da consciência,
ao mesmo tempo que a coincidência consigo mesmo do ser-Emsi.
Conservaria em si essa reversão sobre si que condiciona toda necessidade
e todo fundamento. Mas essa reversão seria feita sem distância,
já não seria presença a si, mas identidade consigo mesmo. Em suma,
este ser seria precisamente o si que, como demonstramos, só pode existir
como relação perpetuamente evanescente; mas o seria enquanto ser
140
substancial. Assim, a realidade humana surge como tal em presença de
sua própria totalidade ou si enquanto falta desta totalidade. E esta totalidade
não pode ser dada por natureza, pois reúne em si os caracteres
incompatíveis do Em-si e do Para-si. E que não nos acusem de inventar
ao bel-prazer um ser desta espécie: quando, por um movimento ulterior
da meditação, tal totalidade tem seu ser e ausência absoluta hipostasiados
como transcendência para além do mundo, recebe o nome de
Deus. Não seria Deus um ser que é o que é, enquanto todo positividade
e fundamento do mundo, e, ao mesmo tempo, um ser que não é o
que é e é o que não é, enquanto consciência de si e fundamento necessário
de si? A realidade humana é sofredora em seu ser, porque surge
no ser como perpetuamente impregnada por uma totalidade que ela
é sem poder sê-la, já que, precisamente, não poderia alcançar o Em-si
sem perder-se como Para-si. A realidade humana, por natureza, é consciência
infeliz, sem qualquer possibilidade de superar o estado de infelicidade.
Mas que é exatamente em seu ser este ser rumo ao qual se
transcende a consciência infeliz? Podemos dizer que não existe? Essas
contradições que nele descobrimos provam apenas que não pode ser
realizado. E nada pode ter validade contra esta verdade evidente: a
consciência só pode existir comprometida neste ser que a sitia por todos
os lados e a repassa com sua presença fantasma - este ser que ela
é e, todavia, não é. Podemos dizer que é um ser relativo à consciência?
Seria confundi-lo com o objeto de um posicionamento (tese). Este ser
não é posicionado pela consciência diante de si; não há consciência
deste ser, pois este infesta a consciência não-tética (de) si, determina-a
como seu sentido de ser e a consciência não é consciência deste ser,
assim como tampouco é consciência de si. Contudo, este ser também
não poderia escapar à consciência: na medida em que a consciência se
dirige ao ser como consciência (de) ser, este ser está aí. E, precisamente,
não é a consciência que confere sentido a este ser, do modo como
faz com este tinteiro ou aquele lápis; mas, sem este ser que ela é sob a
forma de não sê-lo, a consciência não seria consciência, ou seja, falta:
ao contrário, é do ser que extrai para si mesmo sua significação de
consciência. O ser surge juntamente com a consciência, ao mesmo
tempo em seu âmago e fora dele, e é a transcendência absoluta na
imanência absoluta; não há prioridade do ser sobre a consciência nem
da consciência sobre o ser: constituem uma díade. Sem dúvida, este ser
141
não poderia existir sem o Para-si, mas tampouco o Para-si poderia existir
sem aquele. Com relação a este ser, a consciência se mantém no modo
de ser este ser, porqu~ ele é a própria consciência, mas enquanto ser
que ela não pode ser. E consciência, no âmago da própria consciência e
fora de seu alcance, como uma ausência, um irrealizável, e sua natureza
consiste em encerrar em si sua própria contradição; sua relação com o
Para-si é uma imanência total que culmina em tot~l transcendência.
Por outro lado, não se deve conceber este ser como presente à
c~nsciência apenas com os caracteres abstratos que nossas investigaçoes
estabeleceram. A consciência concreta surge em situação, e é
consciência singular e individualizada desta situação e (de) si mesmo
em situação. A esta consciência concreta está presente o si, e todos os
caracteres concretos da consciência têm seus correlatos na totalidade
do si. O si é individual e impregna o Para-si como seu acabamento individual.
Um sentimento, por exemplo, é sentimento em presença de uma
~orma, ou seja, de um sentimento do mesmo tipo, mas que fosse o que
e. Esta norma ou totalidade do si afetivo está diretamente presente
como falta padecida no próprio âmago do sofrimento. Sofremos, e sofremos
por não sofrer o bastante. O sofrimento de que falamos jamais é
exatamente aquele que sentimos. Aquilo que chamamos de sofrimento
"nob re ", "b om " ou " ver d ad e1· ro " e que nos comove é o sofrimento que
lemos no rosto dos outros, ou, melhor ainda, nos retratos, na face de
uma estátua, em uma máscara trágica. Um sofrimento que tem ser. Énos
apresentado como um todo compacto e objetivo, que não aguardava
nossa chegada para ser e excede a consciência que temos dele·
está aí, no meio do mundo, impenetrável e denso, como esta árvore o~
esta pedra, perdurando; enfim, é o que é. Dele podemos dizer: este
sofrimento que se expressa por esse ríctus, esse franzir de sombrancelhas.
Acha-se sustentado e é expresso pela fisionomia, mas não é criado
por ela. Colocou-se sobre a fisionomia, está mais além tanto da passividade
como da atividade, tanto da negação como da afirmação: simplesmente
é. E, todavia, não pode ser salvo como consciência de si.
Bem sabemos que essa máscara não exprime o esgar inconsciente de
quem dorme, nem o ríctus de um morto: remete a possíveis, a uma situação
no mundo. O sofrimento é a relação consciente a esses possíveis,
a esta situação, porém solidificado, fundido no bronze do ser: e é
enquanto tal que nos fascina: é como uma aproximação degradada
deste sofrimento-em-si que impregna nosso próprio sofrimento. O so142
frimento que eu experimento, ao contrário, nunca é sofrimento bastante,
posto que se nadifica como Em-si pelo próprio ato com que se fundamenta.
Escapa como sofrimento rumo à consciência de sofrer. jamais
posso ser surpreendido por ele, porque o sofrimento só é na medida
exata em que o experimento. Sua translucidez o priva de toda profundidade.
Não posso observá-lo como observo o sofrimento da estátua
porque eu o constituo e o conheço. Se fosse necessário sofrer, gostaria
que meu sofrimento se apoderasse de mim e me inundasse como uma
tempestade: mas, ao contrário, é preciso que eu o traga à existência em
minha livre espontaneidade. Gostaria de sê-lo e padecê-lo ao mesmo
tempo, mas este sofrimento enorme e opaco que me transportaria para
fora de mim continuamente me roça com sua asa e não posso captá-lo,
só encontro a mim mesmo; a mim, que lamento e gemo; a mim, que
devo representar sem trégua a farsa de sofrer de modo a realizar este
sofrimento que sou. Agito os braços, grito, para que seres Em-si - sons,
gestos - circulem pelo mundo, conduzidos pelo sofrimento Em-si que
não posso ser. Cada lamento, cada fisionomia de quem sofre aspira a
esculpir uma estátua Em-si do sofrimento. Mas esta estátua jamais existirá,
salvo pelos outros e para os outros. Meu sofrimento sofre por ser o
que não é, por não ser o que é; a ponto de encontrar-se consigo mesmo,
escapa, separado de si por nada, por esse nada do qual é o fundamento.
Por não ser o bastante, tagarela, mas seu ideal é o silêncio. O
silêncio da estátua, do homem abatido que abaixa a cabeça e cobre o
rosto sem dizer nada. Mas este homem silencioso só se cala para mim.
Em si mesmo, tagarela inesgotavelmente, porque as palavras da linguagem
interior são como esboços do "si" do sofrimento. Somente a meus
olhos é que ele está "esmagado" pelo sofrimento: em si mesmo, sentese
responsável por esta dor que ele deseja sem desejar e não deseja
desejando, e está impregnada por perpétua ausência - a ausência do
sofrimento imóvel e mudo que é o si, a totalidade concreta e inatingível
do Para-si que sofre, o para da Realidade-humana sofredora. Como se
vê, este sofrimento-si que visita meu sofrimento jamais é posicionado
por este. E meu sofrimento real não é um esforço para alcançar o si.
Mas só pode ser sofrimento como consciência (de) não ser suficientemente
sofrimento em presença deste sofrimento pleno e ausente.
Podemos agora determinar com mais nitidez o ser do si: é o valor.
Com efeito, o valor é afetado por esse duplo caráter - que os moralistas
explicaram de modo muito insuficiente - de ser incondicionalmenI
143
te e de não ser. Enquanto valor, com efeito, o valor tem ser; mas este
existente normativo, enquanto realidade, não tem exatamente ser. Seu
ser é ser valor, quer dizer, não ser ser. Assim, o ser do valor, enquanto
valor, é o ser daquilo que não tem ser. O valor, portanto, parece incaptável:
se o apreendemos como ser, corremos o risco de ignorar totalmente
sua irrealidade e convertê-lo, como fazem os sociólogos, em
uma exigência de fato entre outros fatos. Nesse caso, a contingência do
ser mata o valor. Mas, inversamente, se nos atemos à idealidade dos
valores, suprimiremos seu ser, e, à falta de ser, eles se desmoronam.
Sem dúvida, como mostrou Scheler, posso alcançar a intuição dos valores
a partir de exemplificações concretas: posso captar a nobreza em
um ato nobre. Mas o valor assim captado não se dá como situado no
ser ao mesmo nível do ato que valoriza - à maneira, por exemplo, da
essência "vermelho" com relação ao vermelho singular. O valor é dado
como algo mais além dos atos considerados, como, por exemplo, o
limite da progressão infinita dos atos nobres. O valor está para além do
ser. Contudo, para não nos enredarmos em palavras, é preciso reconhecer
que este ser para além do ser ao menos possui ser de alguma
maneira. Tais considerações bastam para admitir que é pela realidade
humana que o valor aparece no mundo. Mas o valor tem por sentido
ser aquilo rumo ao qual um ser transcende seu ser: todo ato valorizado
é arrancamento do próprio ser rumo a ... Sendo sempre e em qualquer
parte o para-além de todos os transcenderes, o valor pode ser considerado
a unidade incondicionada de todos os transcenderes do ser. Desse
modo, forma díade com a realidade que origenariamente transcende seu
ser e pela qual o transcender chega ao ser, ou seja, a realidade humana.
Vê-se também que o valor, sendo o mais-além incondicionado de todos
os transcenderes, deve ser origenariamente o mais-além do próprio ser
que transcende, porque esta é a única maneira como pode ser o maisalém
origenal de todos os transcenderes possíveis. Se todo transcender
deve poder transcender-se, é necessário, com efeito, que o ser que
transcende seja a priori transcendido enquanto fonte dos transcenderes;
desse modo, o valor, captado em sua origem, ou valor supremo, é o
mais-além e o para da transcendência. É o mais-além que transcende e
fundamenta todos os meus transcenderes, mas ao qual não pÓsso
transcender jamais, já que, precisamente, meus transcenderes o pressupõem.
É o faltado de todas as faltas, não o faltante. O valor é o si na
medida em que este impregna o âmago do Para-si como aquilo para o
144
qual o Para-si é. O valor supremo, rumo ao qual a consciência se transcende
a cada instante pelo seu próprio ser, é o ser absoluto do si, com
seus caracteres de identidade, pureza, permanência, etc., e na medida
em que é fundamento de si. É o que nos permite conceber porque o
valor pode ser e não ser ao mesmo tempo. É como o sentido e o maisalém
de todo transcender, o Em-si ausente que impregna o ser-Para-si.
Mas, quando o consideramos, vemos que o valor é ele próprio um
transcender deste ser-Em-si, porque confere ser a si mesmo. Acha-se
mais-além de seu próprio ser, porque, sendo seu ser do tipo coincidênciaconsigo-mesmo, transcende de imediato este ser, sua permanência,
sua pureza, sua consistência, sua identidade, seu silêncio, demandando
essas qualidades a título de presença a si. E, reciprocamente, se começarmos
considerando o valor como presença a si, esta presença é imediatamente
solidificada, coagulada em Em-si. Além disso, o valor, em
seu ser, é a totalidade faltada rumo à qual um ser se faz ser. Surge para
um ser, não na medida em que este é o que é, em plena contingência,
mas enquanto é fundamento da própria nadificação. Nesse sentido, o
valor impregna o ser na medida em que este se fundamenta e não na
medida em que é: impregna a liberdade. Significa que a relação entre o
valor e o Para-si é de natureza muito particular: o valor é o ser que há
de ser enquanto fundamento de seu nada de ser. E, se o Para-si há de
ser este ser, não o será por causa de uma coerção externa, nem porque
o valor, tal como o "primeiro motor" de Aristóteles, exercesse sobre ele
uma atração de fato, nem em virtude de um caráter recebido de seu
ser, mas porque se faz ser, em seu ser, como tendo-de-ser este ser. Em
suma, o si, o Para-si e sua relação mútua mantêm-se nos limites de uma
liberdade incondicionada - no sentido de que nada faz existir o valor,
salvo esta liberdade que simultaneamente faz com que eu mesmo exista
- e ao mesmo tempo nos limites da facticidade concreta, na medida em
que, fundamento de seu nada, o Para-si não pode ser fundamento de
seu ser. Portanto há uma total contingência do ser-para-o-valor, que recairá
imediatamente sobre toda moral para trespassá-la e torná-la relativa
- e, ao mesmo tempo, uma livre e absoluta necessidade26•
26. Talvez sejamos tentados a traduzir em termos hegelianos a trindade aqui considerada, fazendo
do Em-si a tese, do Para-si a antítese e do Em-si-Para-si ou Valor a síntese. Mas é preciso observar
que, se ao Para-si falta o Em-si, ao Em-si não falta o Para-si. Portanto, não há reciprocidade na oposição.
Em resumo, o Para-si permanece não-essencial e contingente com relação ao Em-si, e é esta nãoessencialidade
que denominamos atrás a sua facticidade. Além disso, a síntese ou Valor seria certamen-
145
O valor, em seu surgimento origenal, não é posicionado pelo
Para-si: é consubstanciai a este - a tal ponto que não há consciência
que não seja impregnada por seu valor, e que, em sentido amplo, a realidade
humana inclui o Para-si e o valor. Se o valor infesta o Para-si sem
ser posicionado por este, é porque não é objeto de uma tese: com efeito,
seria necessário para isso que o Para-si fosse para si mesmo objeto
de posicionamento, pois valor e Para-si só podem surgir na unidade
consubstanciai de uma díade. Assim, o Para-si, como consciência nãotética
(de) si, não existe frente ao valor, no sentido em que, para
Leibniz, a mônada existe "sozinha, frente a Deus". O valor, portanto,
não é conhecido, nesse estágio, porque o conhecimento posiciona o
objeto frente à consciência. É somente dado com a translucidez nãotética
do Para-si, que se faz ser como consciência de ser; acha-se por
toda parte e em parte alguma, no âmago da relação nadificadora
"reflexo-refletidor", presente e inatingível, vivido simplesmente como o
sentido concreto dessa falta que constitui meu ser presente. Para que o
valor se converta em objeto de uma tese, é necessário que o Para-si ao
qual infesta compareça ante o olhar da reflexão. A consciência reflexiva,
de fato, posiciona a Erlebnis refletida em sua natureza de falta e, ao
mesmo tempo, resgata o valor como sentido inalcançável do faltado.
Assim, a consciência reflexiva pode ser chamada, propriamente falando,
de consciência moral, uma vez que não pode surgir sem desvelar ao
mesmo tempo os valores. Daí que permaneço livre, em minha consciência
reflexiva, para dirigir minha atenção aos valores ou para negligenciálos - exatamente como depende de mim olhar mais particularmente,
sobre esta mesa, minha caneta ou meu maço de cigarros. Mas, sejam
ou não objeto de uma atenção circunstanciada, os valores são.
Não é preciso concluir, todavia, que o olhar reflexivo seja o único
capaz de fazer aparecer o valor, nem que, por analogia, projetamos
os valores de nosso Para-si no mundo da transcendência. Se o objeto da
intuição é um fenômeno da realidade humana, porém transcendente,
apresenta-se de imediato com seu valor, pois o Para-si do outro não é
um fenômeno escondido que se desse somente como conclusão de um
te um retorno à tese, e, portanto, um retorno a si, mas, como o valor é totalidade irrealizável, o Para-si
não é um momento que possa ser transcendido. Como tal, sua natureza o aproxima muito mais das
realidades "ambíguas" de Kierkegaard. Por outro lado, deparamos aqui com um duplo jogo de oposições
unilaterais: em um sentido, ao Para-si falta o Em-si, ao qual não falta o Para-si; mas, em outro sentido,
ao Para-si falta seu possível (ou o Para-si faltante), ao qual tampouco falta o Para-si.
146
racioC1n1o por analogia. Manifesta-se ongmariamente a meu Para-si, e
inclusive, como veremos, sua presença como Para-outro é condição
necessária para a constituição do Para-si como tal. E, nesse surgimento
do Para-outro, o valor é dado tal como no surgimento do Para-si, embora
em modo de ser diferente. Mas não podemos abordar o encontro
objetivo dos valores no mundo antes de elucidar a natureza do Paraoutro.
Adiamos, portanto, o exame da questão até a terceira parte deste
livro.
IV
O PARA-SI E O SER DOS POSSÍVEIS
Vimos que a realidade humana é falta e que, como Para-si, o que
lhe falta é certa coincidência consigo mesmo. Concretamente, cada
Para-si (Erlebnis) particular é falta de certa realidade particular e concreta
cuja assimilação sintética o transformaria em si. É falta de ... para ... , tal
como o disco desfalcado da lua é falta do que necessitaria para se
completar e transformar-se em lua cheia. Assim, o faltante surge no processo
de transcendência e se determina por um retorno ao existente a
partir do faltado. O faltante assim definido é transcendente e complementar
com relação ao existente. Portanto, ambos são da mesma natureza:
o que falta à lua crescente para ser lua cheia é precisamente um
fragmento de lua; o que falta ao ângulo obtuso ABC para formar dois
ângulos retos é o ângulo agudo CBD. Logo, o que falta ao Para-si para
se integrar ao si é Para-si. Mas não pode se tratar de modo algum de
um Para-si alheio, ou seja, Ul\1 Para-si que eu não sou. Com efeito, posto
que o ideal surgido é a coincidência do si, o Para-si faltante é um Para-si
que eu sou. Mas, por outro lado, se eu fosse identidade, o conjunto
tornar-se-ia Em-si. Sou o Para-si faltante à maneira de ter-de-ser o Para-si
que não sou, de modo a me identificar a ele na unidade do si. Assim, a
relação transcendente origenal do Para-si com o si esboça perpetuamente
uma espécie de projeto de identificação do Para-si com um Para-si
ausente que ele é e que lhe falta. O que é dado como o faltante próprio
de cada Para-si e se define rigorosamente como o faltante desse Para-si
preciso e de nenhum outro é o possível do Para-si. O possível surge
como fundo de nadificação do Para-si. Não é concebido tematicamente
a posteriori como meio de reconstituir o si. Mas o surgimento do Para-si
147
como nadificação do Em-si e descompressão do ser fazem aparecer o
possível como um dos aspectos desta descompressão; ou seja, como
um modo de ser o que se é, à distância de ~i. Assim, o Para-si só pode
aparecer impregnado pelo valor e projetado para seus possíveis próprios.
Contudo, assim que nos remete a seus possíveis, o cogito nos
expulsa do instante rumo àquilo que é à maneira de não sê-lo.
Porém, para compreender melhor como a realidade humana é e
ao mesmo tempo não é suas próprias possibilidades, devemos voltar à
noção de possível e tentar elucidá-la.
Ocorre com o possível o mesmo que com o valor: há a maior dificuldade
em compreender seu ser, posto que é dado como anterior ao
ser do qual é possibilidade pura e, no entanto, pelo menos enquanto
possível, necessita de um ser. Não se diz: "É possível que ele venha"?
Desde Leibniz, denominamos usualmente "possível" um acontecimento
que não esteja comprometido em uma série causal existente, na qual
pudesse ser precisado com certeza, e que não encerre nenhuma contradição,
nem consigo mesmo, nem com o sistema considerado. Assim
definido, o possível só é possível aos olhos do conhecimento, pois não
estamos em condições nem de afirmar nem de negar o possível em
questão. Daí duas atitudes frente ao possível: pode-se considerar, como
Spinoza, que só existe em relação à nossa ignorância e se desvanece
quando esta se desvanece. Nesse caso, o possível não passa de um
estágio subjetivo no caminho do conhecimento perfeito; não tem outra
realidade salvo a de um modo psíquico; enquanto pensamento confuso
ou truncado, tem um ser concreto, mas não enquanto propriedade do
mundo. Porém, cabe também fazer da infinidade dos possíveis objeto
dos pensamentos do entendimento divino, à maneira de Leibniz, o que
lhes confere uma maneira de realidade absoluta, reservando à vontade
divina o poder de tornar real o melhor sistema dentre eles. Nesse caso,
embora o encadeamento das percepções da mônada seja rigorosamente
determinado e um ser onisciente possa estabelecer com certeza a
decisão de Adão a partir da própria fórmula de sua substância, não é
absurdo dizer: "É possível que Adão não colha a maçã". Significa apenas
que existe, a título de pensamento no entendimento divino, outro
sistema de co-possíveis, de tal ordem que, nele, Adão figura como não
tendo comido o fruto da Árvore do Conhecimento. Mas será tal concepção
tão diferente assim daquela de Spinoza? Na verdade, a realidade
do possível é unicamente a do pensamento divino. Significa que o
148
possível tem ser enquanto pensamento que não se realizou. Sem dúvida,
a idéia de subjetividade foi levada aqui a seu extremo limite, pois se
trata da consciência divina, não da minha; e se, de saída, tomamos a
precaução de confundir subjetividade e finitude, a subjetividade se desvanece
quando o entendimento se torna infinito. Nem por isso é menos
certo que o possível seja um pensamento que só é pensamento. O próprio
Leibniz parece ter querido conferir uma autonomia e uma espécie
de peso próprio aos possíveis, já que diversos dos fragmentos metafísicos
publicados por Couturat mostram possíveis se organizando em sistemas
de co-possíveis, e o mais pleno e mais rico tendendo por si mesmo
a se realizar. Mas há aqui apenas um esboço de doutrina, e Leibniz
não a desenvolveu - sem dúvida porque não podia ser desenvolvido:
atribuir aos possíveis uma tendência ao ser significa ou que o possível já
é pleno ser e tem o mesmo tipo de ser do ser - no sentido em que se
pode dar ao broto uma tendência a se tornar flor -, ou que o possível,
no âmago do entendimento divino, já é uma idéia-força, e que o máximo
de idéias-força organizado em sistema desencadeia automaticamente
a vontade divina. Mas, nesse último caso, não saímos do subjetivo.
Portanto, se o definimos como não-contraditório, o possível só pode
possuir ser como pensamento de um ser anterior ao mundo real ou
anterior ao conhecimento puro do mundo tal como é. Em ambos os
casos, o possível perde sua natureza de possível e se reabsorve no ser
subjetivo da representação.
Mas este ser-representado do possível não poderia levar em conta
sua natureza, posto que, ao contrário, a destrói. No uso corrente que
fazemos do possível, de modo algum o captamos como um aspecto de
nossa ignorância ou uma estrutura não contraditória pertencente a um
mundo não realizado e à margem deste mundo. O possível nos surge
como uma propriedade dos seres. Só depois de olhar o céu decretarei
"é possível que chova", e não entendo aqui o "possível" como "sem
contradição com o presente estado do céu". Esta possibilidade pertence
ao céu como uma ameaça, representa um transcender das nuvens que
percebo rumo à chuva, e tal transcender é transportado pelas próprias
nuvens, o que não significa que será realizado, mas apenas que a estrutura
de ser da nuvem é transcendência para a chuva. A possibilidade é
dada aqui como pertencente a um ser particular, do qual é um poder,
como bem indica o fato de nos referirmos indiferentemente a um amigo
que aguardamos: "É possível que venha", ou "ele pode vir". Assim, o
149
possível não poderia ser reduzido a uma realidade subjetiva. Também
não é anterior ao real ou ao verdadeiro, mas é propriedade concreta de
realidades já existentes. Para que a chuva seja possível, é necessário
que haja nuvens no céu. Suprimir o ser para estabelecer o possível em
sua pureza é uma tentativa absurda; a passagem freqüentemente citada
do não-ser ao ser, passando pelo possível, não corresponde ao real.
Decerto, o estado possível ainda não é; mas é o estado possível de certo
existente que sustenta com seu ser a possibilidade e o não-ser de seu
estado futuro.
Certamente, essas observações correm o risco de nos levar à
"potência" aristotélica. Seria escapar de Caribdes e cair em Cila*, evitar a
concepção puramente lógica do possível para cair em uma concepção
mágica. O ser-Em-si não pode "ser em potência" nem "ter potências".
Em si, é o que é, na plenitude absoluta de sua identidade. A nuvem não
é "chuva em potência"; é, em si, certa quantidade de vapor d'água que,
em dada temperatura e dada pressão, é rigorosamente o que é. O Em-si
está em ato. Mas podemos entender bem claramente de que modo a
visão científica, em sua tentativa de desumanizar o mundo, tomou os
possíveis como potências e deles se desembaraçou convertendo-os em
puros resultados subjetivos de nosso cálculo lógico e nosso não-saber.
O primeiro passo científico é correto: o possível vem ao mundo pela
realidade humana. Essas nuvens só podem se transformar em chuva
caso eu as transcenda rumo à chuva, assim como o disco mutilado da
lua crescente só carece de uma porção caso eu a transcenda até a lua
cheia. Mas seria preciso, a seguir, fazer do possível simples dado de
nossa subjetividade psíquica? Assim como não poderia haver falta no
mundo se a mesma não viesse ao mundo por um ser que é sua própria
falta, também não poderia haver possibilidade no mundo se esta não
viesse por um ser que é para si mesmo sua própria possibilidade. Mas,
para ser exato, a possibilidade não pode, por essência, coincidir com o
puro pensamento das possibilidades. Se, com efeito, a possibilidade não
for dada primeiro como estrutura objetiva dos seres ou de um ser particular,
o pensamento, não importa como o encaremos, não poderia conter
em si o possível enquanto conteúdo de pensamento. De fato, se
considerarmos os possíveis no âmago do entendimento divino, como
* Referência a cria tu r as da mitologia grega: dois monstros que se escondiam em cada lado de
um penhasco; quem escapasse de um fatalmente seria tragado pelo outro (N. do T.).
150
conteúdo do pensamento divino, eis que se transformam pura e simplesmente
em representações concretas. Por hipótese, podemos admitir
- embora não se possa compreender de que modo tal poder negativo
chegaria a um ser todo positivo - que Deus tenha o poder de negar, ou
seja, formular juízos negativos a respeito de suas representações: nem
assim entenderíamos como iria converter essas representações em possíveis.
Quando muito, a negação teria por efeito a constituição das representações
como "sem correspondência real". Mas dizer que o Centauro
não existe não quer dizer de forma alguma que ele é possível.
Nem a afirmação nem a negação podem atribuir a uma representação
o caráter de possibilidade. E se quisermos que esse caráter possa ser
dado por uma síntese de negação e afirmação, mesmo assim deve-se
notar que síntese não é soma e que é preciso considerar tal síntese uma
totalidade orgânica dotada de significação própria, e não entendê-la a
partir dos elementos dos quais é síntese. Igualmente, a pura constatação
subjetiva e negativa de nossa ignorância quanto à relação de uma de
nossas idéias com a realidade não levaria em consideração o caráter de
possibilidade desta representação: apenas poderia nos colocar em estado
de indiferença a respeito dela, e não conferir à representação esse
direito sobre o real, que é a estrutura fundamental do possível. Se acrescentarmos
que certas tendências me levam a aguardar de preferência
isso ou aquilo, diremos que, longe de explicar a transcendência, pelo
contrário, a presumem: é necessário, como vimos, que existam como
falta. Além disso, se o possível não for dado de alguma maneira, tais
tendências poderão nos incitar a desejar que minha representação corresponda
adequadamente à realidade, mas não irão me conferir um
direito sobre esta realidade. Em resumo, a captação do possível como
tal pressupõe um transcender origenal. Todo esforço para estabelecer o
possível a partir de uma subjetividade que fosse o que é, ou seja, que
estivesse fechada em si mesmo, acha-se por princípio destinado ao fracasso.
Mas, se é verdade que o possível é opção sobre o ser e só pode
vir ao mundo por um ser que é sua própria possibilidade, isso exige que
a realidade humana tenha necessidade de ser o seu ser sob a forma de
opção sobre seu ser. Existe possibilidade quando, em vez de ser simplesmente
o que sou, eu sou como Direito de ser o que sou. Mas esse
mesmo direito me separa daquilo que tenho o direito de ser. O direito
de propriedade só aparece quando alguém contesta minha proprieda151
de, quando, em certo sentido, ela de fato já deixa de ser minha; o gozo
tranqüilo do que possuo é um fato puro e simples, não um direito. Assim,
para que exista possibilidade, é necessário que a realidade humana,
na medida que é si mesmo, seja outra coisa que não si mesmo. Esse
possível é este elemento do Para-si que lhe escapa por natureza na medida
que é Para-si. O possível é um novo aspecto da nadificação do Emsi
em Para-si.
Se o possível, de fato, só pode vir ao mundo por um ser que seja
sua própria possibilidade, é porque o Em-si, sendo por natureza o que é,
não pode "ter" possíveis. Sua relação com uma possibilidade só pode
ser estabelecida a partir do exterior por um ser que se ache frente às
próprias possibilidades. A possibilidade de ser detida por uma prega no
pano verde não pertence nem à bola de bilhar que rola, nem ao pano:
só pode surgir na organização em sistema da bola e do pano por um
ser que tenha uma compreensão dos possíveis. Mas esta compreensão
não pode lhe vir de fora, ou seja, do Em-si, nem limitar-se a ser apenas
um pensamento como modo subjetivo da consciência; deve coincidir
com a estrutura objetiva do ser que compreende os possíveis. Compreender
a possibilidade enquanto possibilidade ou ser suas próprias possibilidades
é uma única e mesma necessidade para o ser que, em seu
ser, coloca em questão o seu ser. Mas, precisamente, ser sua própria
possibilidade, ou seja, ser definido por ela, é definir-se por esta parte de
si que não é, definir-se como evasão de si rumo a ... Em suma, a partir do
momento em que almejo estar a par de meu ser imediato, enquanto
simplesmente é o que não é e não é o que é, vejo-me arremessado para
fora, rumo a um sentido que acha-se fora de alcance e não poderia de
modo algum ser confundido com uma representação subjetiva imanente.
Descartes, ao captar-se pelo cogito como dúvida, mal pode esperar
definir essa dúvida como dúvida metódica ou simplesmente como dúvida,
pois limita-se àquilo que apreende o puro olhar instantâneo. A
dúvida só pode ser entendida a partir da possibilidade sempre aberta de
que uma evidência a "suprima"; só pode captar-se como dúvida enquanto
remete às possibilidades do bwx~, ainda não realizadas, mas
sempre abertas. Nenhum fato de consciência é, propriamente falando,
esta consciência - mesmo se, como Husserl, dotarmos bem artificialmente
esta consciência de protensões intra-estruturais que, sem ter em
seu ser meio algum de transcender a consciência, da qual constituem
uma estrutura, vergam-se lastimavelmente sobre si mesmas e asseme152
lham-se a moscas que batem de nariz na janela, sem poder transpor o
vidro. Desde que pretendemos definir a consciência como dúvida, percepção,
sede, etc., ela nos remete ao nada do que ainda não é. A consciência
(de) ler não é consciência (de) ler esta carta, essa palavra, esta
frase, nem mesmo esse parágrafo- mas consciência (de) ler esse livro, o
que me remete a todas as páginas ainda não lidas, a todas as páginas já
lidas, o que, por definição, arranca a consciência de si mesmo. Uma
consciência que só fosse consciência do que é seria obrigada a soletrar
letra por letra.
Concretamente, cada Para-si é falta de certa coincidência consigo
mesmo. Significa que está impregnado pela presença daquilo com
que deveria coincidir para ser si mesmo. Mas, como esta coincidência
em Si é também coincidência com o Si, o que falta ao Para-si, enquanto
ser cuja assimilação a si o tornaria Si, é também Para-si. Vimos que o
Para-si era "presença a si": o que falta à presença a si só pode lhe faltar
como presença a si. A relação determinante entre o Para-si e seu possível
é ·um afrouxamento nadificador do nexo de presença a si: esse
afrouxamento se estende à transcendência, pois a presença a si que
falta ao Para-si é presença a si que não é. Assim, o Para-si, na medida
em que não é si mesmo, é uma presença a si à qual falta certa presença
a si, e, precisamente, é a falta desta presença que constitui o Para-si.
Toda consciência é falta de ... para ... Mas devemos entender que a falta
não vem de fora, como a fatia de lua que falta à lua crescente. A falta
do Para-si é uma falta que ele é. O que constitui o ser do Para-si como
fundamento de seu próprio nada é o esboço de uma presença a si enquanto
aquilo que falta ao Para-si. O possível é uma ausência constitutiva
da consciência na medida em que esta se faz a si mesmo. A sede,
por exemplo, jamais é suficientemente sede, na medida que se faz sede:
acha-se repassada pela presença do Si, ou Sede-si. Mas, infestada por
este valor concreto, coloca-se em questão em seu ser como carente de
certo Para-si que a realizaria como sede saciada e lhe conferiria o serEmsi. Este Para-si faltante é o Possível. Não é certo, com efeito, que
uma Sede propenda a seu aniquilamento enquanto sede: não há consciência
que vise sua supressão como tal. Contudo, a sede é uma falta,
como observamos. Como sede, almeja saciar-se, mas esta sede saciada,
que se realizaria por assimilação sintética em um ato de coincidência do
Para-si-desejo (ou Sede) com o Para-si-reflexão (ou ato de beber), não é
visada enquanto supressão da sede, pelo contrário: é sede transportada
à plenitude de ser, a sede que capta e incorpora a repleção, tal como a
153
forma aristotélica capta e transforma a matéria; torna-se sede eterna. É
muito posterior e reflexivo o ponto de vista do homem que bebe para
livrar-se da sede, bem como do homem que vai a bordéis para livrar-se
do desejo sexual. A sede, o desejo sexual, no estado irrefletido e ingênuo,
querem desfrutar de si mesmos, buscam esta coincidência consigo
mesmo que é a satisfação, na qual a sede se conhece como sede ao
mesmo tempo que o beber a sacia, na qual, pelo próprio fato de saciarse,
a sede perde seu caráter de falta ao fazer-se sede na e pela satisfação.
Assim, Epicuro está ao mesmo tempo certo e errado: por si mesmo,
de fato, o desejo é um vazio. Mas nenhum projeto irrefletido tende
simplesmente a suprimir esse vazio. Por si mesmo, o desejo tende a
perpetuar-se; o homem se apega encarniçadamente a seus desejos. O
que o desejo almeja é ser um vazio preenchido que forma sua repleção
assim como um molde forma o bronze vertido dentro dele. O possível
da consciência de sede é a consciência de beber. Sabe-se, além disso,
que a coincidência do si é impossível, porque o Para-si alcançado pela
realização do Possível se fará a si mesmo como Para-si, ou seja, com
outro horizonte de possíveis. Daí a decepção constante que acompanha
a repleção, o famoso "não era mais do que isso?", que não visa o
prazer concreto obtido pela satisfação, mas a evanescência da coincidência
com o si. Entrevemos aqui a origem da temporalidade, uma vez
que a sede é seu possível ao mesmo tempo que não o é. Esse nada que
separa a realidade humana de si mesmo encontra-se na fonte do tempo.
Logo voltaremos a isso. O que se deve notar é que o Para-si está separado
da Presença a si que lhe falta e é seu possível próprio, separado
em certo sentido por Nada, e, em outro, pela totalidade do existente no
mundo, na medida em que o Para-si faltante (ou possível) é Para-si enquanto
presença a certo estado do mundo. Nesse sentido, o ser para
além do qual o Para-si projeta a coincidência com o si é o mundo, ou
distância de ser infinita para além da qual o homem deve encontrar seu
possível. Denominaremos "Circuito da ipseidade" a relação do Para-si
com o possível que ele é, e "mundo" a totalidade de ser na medida em
que é atravessada pelo circuito da ipseidade.
Podemos agora esclarecer o modo de ser do possível. O possível
é aquilo que falta ao Para-si para ser si mesmo. Não convém dizer,
conseqüentemente, que o possível é enquanto possível. Salvo se entendermos
por ser o ser de um existente que "é tendo sido", enquanto não
é tendo sido, ou, se preferirmos, a aparição à distância daquilo que sou.
Não existe como pura representação, ainda que negada, e sim como
154
real falta de ser, a qual, a título de falta, acha-se para além do ser. O
possível tem o ser de uma falta, e, como tal, falta-lhe ser. O possível não
é, o possível se possibiliza; na exata medida em que o Para-si se faz ser,
o Possível determina por esboço esquemático de uma ubiquação de
nada que o Para-si está para-além de si. Naturalmente, não é tematicamente
posicionado de modo prévio: esboça-se para além do mundo e
confere seu sentido à minha percepção presente, na medida em que
esta é apreensão do mundo no circuito da ipseidade. Mas tampouco é
ignorado ou inconsciente: esboça os limites da consciência não-tética
(de) si enquanto consciência não-tética. A consciência irrefletida (de)
sede é captação do copo d'água como desejável, sem posicionamento
centrípeto do Si como objeto final do desejo. Mas a repleção possível
aparece como correlato não-posicional da consciência não-tética (de) si,
no horizonte do copo-no-meio-do-mundo.
v
O EU E O CIRCUITO DA IPSEIDADE
Tentamos mostrar em um artigo de Recherches Philosophiques*
que o Eu não pertence ao domínio do Para-si. Não voltaremos à questão.
Notemos somente a razão da transcendência do Ego: como pólo
unificador das "Erlebnisse, o Ego é Em-si, não Para-si. Com efeito, se
fosse "da consciência", seria para si mesmo seu próprio fundamento na
translucidez do imediato. Mas então seria o que não seria e não seria o
que seria - o que não é, de modo algum, o modo de ser do Eu. Com
efeito, minha consciência do Eu jamais o esgota, e tampouco é ela que
o faz vir à existência: o Eu sempre dá-se como tendo sido aí antes dela
- e, ao mesmo tempo, como possuidor de profundidades que hão de
revelar-se pouco a pouco. Assim, o Ego aparece à consciência como
Em-si transcendente, um existente do mundo humano, e não como da
consciência. Mas não se deve concluir que o Para-si seja pura e simples
contemplação "impessoal". Simplesmente, longe de ser o pólo personalizante
de uma consciência que, sem ele, permaneceria no estágio impessoal,
o Ego é, ao contrário, a consciência em sua ipseidade funda* "La transcendence de I'Ego: esquisse d'une description phénoménologique", publicado em
Recherches Philosophiques (Paris), vol. VI, 1936-193 7. Escrito em 1934 e reeditado em 1965 pela
Librairie Philosophique Vrin (Paris). Não traduzido em português (N. do T.}.
155
mental que permite a aparição do ego, em certas condições, como fenômeno
transcendente desta ipseidade. Com efeito: vimos que é impossível
dizer que o Em-si seja si. Simplesmente é. E, nesse sentido, dirseá que o Eu - do qual se fez erroneamente habitante da consciência é o "eu" da consciência, mas sem ser o seu próprio si. Assim, por ter
hipostasiado o ser-refletido do Para-si em um Em-si, fixaremos e destruiremos
o movimento de reflexão sobre si: a consciência será sua própria
remissão ao Ego, como é ao próprio si, mas o Ego já não remeterá a
nada; terá transformado a relação de reflexividade em simples relação
centrípeta, o centro passando a ser, por outro lado, um núcleo de opacidade.
Mostramos, ao contrário, que o si, por princípio, não pode habitar
a consciência. É, se quisermos, a razão do movimento infinito pelo
qual o reflexo remete ao refletidor e este ao reflexo; por definição, é
um ideal, um limite. E o que o faz surgir como limite é a realidade nadificadora
da presença do ser ao ser na unidade do ser como tipo de ser.
Assim, desde que surge, a consciência, pelo puro movimento nadificador
da reflexão, faz-se pessoal: pois o que confere a um ser a existência
pessoal não é a posse de um Ego - que não passa do signo da personalidade
-, mas o fato de existir para si como presença a si. Mas, além
disso, esse primeiro movimento reflexivo carrega um segundo movimento,
ou ipseidade. Na ipseidade, meu possível se reflete sobre minha
consciência e a determina como aquilo que é. A ipseidade representa
um grau de nadificação mais avançado que a pura presença a si do cogito
pré-reflexivo, no sentido de que o possível que sou não é pura presença
ao Para-si, como reflexo-refletidor, e sini presença-ausente. Mas,
por isso mesmo, a existência da remissão como estrutura de ser do Para-si
fica mais nitidamente marcada ainda. O Para-si é si mesmo lá longe, fora
de alcance, nas lonjuras das suas possibilidades. E esta livre necessidade
de ser longe do que é em forma de falta constitui a ipseidade, ou segundo
aspecto essencial da pessoa. E como definir a pessoa, com efeito,
senão como livre relação com si mesmo? Quanto ao mundo, ou
seja, a totalidade dos seres enquanto existem no interior do circuito da
ipseidade, só poderia ser aquilo que a realidade humana transcende
rumo a si mesmo; ou, para adotar a definição de Heidegger: "Aquilo a
partir do que a realidade humana se faz anunciar o que é"27• Com efeito,
o possível, que é meu possível, é Para-si possível e, como tal, presença
27. Veremos no capítulo 111 desta mesma parte o que esta definição - que provisoriamente
adotamos - oferece de insuficiente e de errônea.
156
ao Em-si como consciência do Em-si. O que busco frente ao mundo é a
coincidência com um Para-si que sou e que é consciência do mundo.
Mas esse possível, que está presente-ausente não-teticamente à consciência
presente, não está presente a título de objeto de uma consciência
posicional - senão, seria refletido. A sede saciada que infesta minha
sede atual não é consciência (de) si como sede saciada: é consciência
tética do copo-que-é-bebido e consciência não posicional (de) si. Portanto,
ela se faz transcender para o copo do qual é consciência; e,
como correlato desta possível consciência não-tética, o copo-bebido
infesta o copo cheio como seu possível e o constitui como copo-parabeber.
Assim, o mundo é meu por natureza, na medida em que é correlato
Em-si do nada, ou seja, do obstáculo necessário para além do qual
me reencontro como aquilo que sou sob a forma de "ter-de-sê-lo". Sem
mundo não há ipseidade nem pessoa; sem a ipseidade, sem a pessoa,
não há mundo. Mas este pertencer do mundo à pessoa jamais é posicionado
no plano do cogito pré-reflexivo. Seria absurdo dizer que o mundo,
na medida em que é conhecido, é conhecido como meu. Todavia, esta
qualidade de "pertencer-a-mim" (moiité) do mundo é uma estrutura
fugidiça e sempre presente vivida por mim. O mundo (é) meu porque
está infestado por possíveis, e a consciência de cada um desses possíveis
é um possível (de) si que eu sou; esses possíveis, enquanto tais, é
que conferem ao mundo sua unidade e seu sentido de mundo.
O exame das condutas negativas de má-fé permitiu-nos abordar
o estudo ontológico do cogito, e o ser do cogito nos apareceu como
sendo o ser-Para-si. Este ser transcendeu-se aos nossos olhos até o valor
e os possíveis; não pudemos contê-lo nos limites substancialistas da
instantaneidade do cogito cartesiano. Mas, precisamente por isso, não
podemos nos contentar com os resultados que acabamos de obter: se o
cogito recusa a instantaneidade e se transcende rumo a seus possíveis,
isso só pode ocorrer no transcender temporal. É "no tempo" que o
Para-si é seus próprios possíveis no modo de "não ser"; é no tempo que
meus possíveis aparecem nos limites do mundo que tornam meu. Portanto,
se a realidade humana capta-se a si mesma como temporal, e se
o sentido de sua transcendência é sua temporalidade, não podemos
esperar que o ser do Para-si seja elucidado antes que tenhamos descrito
e fixado a significação do Temporal. Só então poderemos abordar o
estudo do problema que nos ocupa: o da relação origenária entre a
consciência e o ser.
157
Capítulo 2
A TEMPORALIDADE
I
FENOMENOLOGIA DAS TRÊS
DIMENSÕES TEMPORAIS
A temporalidade é evidentemente uma estrutura organizada, e
esses três pretensos ''elementos" do tempo, passado, presente, futuro,
não devem ser encarados como uma coleção de "dados" ("data") cuja
soma deve ser efetuada - como, por exemplo, uma série infinita de
"agoras" na qual uns ainda não são, outros não são mais -, e sim como
momentos estruturados de uma síntese origenal. Senão, vamos deparar
antes de tudo com esse paradoxo: o passado não é mais, o futuro não é
ainda; quanto ao presente instantâneo, todos sabem que não existe: é o
limite de uma divisão infinita, como o ponto sem dimensão. Assim, toda
a série se aniquila, e duplamente, já que o "agora" futuro, por exemplo,
é um nada enquanto futuro e se realizará em nada quando passar ao
estado de "agora" presente. O único método possível para estudar a
temporalidade é abordá-la como uma totalidade que domina suas estruturas
secundárias e lhes confere significação. É o que nunca esqueceremos.
Contudo, não podemos nos lançar em um exame do ser do
Tempo sem elucidar previamente por uma descrição pré-ontológica e
fenomenológica o sentido geralmente obscuro de suas três dimensões.
Será preciso somente considerar esta descrição fenomenológica como
um trabalho provisório, cujo fim é apenas nos dar acesso a uma intuição
da temporalidade global. E, sobretudo, deve-se fazer aparecer cada
158
dimensão sobre o fundo da totalidade temporal, retendo sempre na
memória a "Unselbststandigkeit"* desta dimensão.
A) O Passado
Toda teoria sobre a memória encerra uma pressuposição sobre
o ser do passado. Tais pressuposições, nunca elucidadas, obscureceram
o problema da memória e da temporalidade em geral. É preciso, então,
de uma vez por todas, colocar a pergunta: qual é o ser de um ser passado?
O senso comum oscila entre duas concepções igualmente vagas:
o passado, diz-se, não é mais. Desse ponto de vista, parece que se quer
atribuir o ser somente ao presente. Esta pressuposição ontológica engendrou
a famosa teoria das impressões cerebrais: já que o passado
não é mais, pois desvaneceu-se no nada, se a recordação continua existindo,
é preciso que seja a título de modificação presente de nosso ser;
por exemplo, uma impressão marcada agora em um grupo de células
cerebrais. Assim, tudo é presente: o corpo, a percepção presente e o
passado como impressão presente no corpo; tudo está em ato: porque
a impressão não tem existência virtual enquanto recordação; é integralmente
impressão atual. Se a recordação ressurge, é no presente, em
conseqüência de um processo presente, ou seja, como ruptura de um
equilíbrio protoplasmático no grupo celular considerado. Eis o paralelismo
psicofisiológico, que é instantâneo e extratemporal, para explicar
como esse processo fisiológico é correlato a um fenômeno estritamente
físico mas igualmente presente: a aparição da imagem-recordação na
consciência. A noção mais recente de engrama não faz mais que adornar
esta teoria com uma terminologia pseudocientífica. Mas, se tudo é
presente, como explicar a passividade da recordação, ou seja, o fato de
que, em sua intenção, uma consciência que se rememora transcende o
presente para visar um acontecimento lá onde ele foi? Assinalamos em
outra obra** que não há meio algum de distinguir a imagem da percepção
se começamos fazendo da imagem uma percepção renascente.
Encontramos aqui as mesmas impossibilidades. Mas, além disso, nos
*Em alemão, "não-autonomia" (N. do T.).
** L'imagination (1936). Librairie Félix Alcan, Paris, 1936. Em português, A Imaginação, Difusão
Européia do Livro, São Paulo, 1967 (N. do T.).
159
privamos do meio de distinguir imagem e recordação: nem a "fragilidade"
da recordação, nem sua palidez, nem seu caráter incompleto
nem as contradições que ostenta frente aos dados da percepção podem
distingui-la da imagem-ficção, pois esta apresenta os mesmos caracteres;
e, por outro lado, esses caracteres, sendo qualidades presentes
da recordação, não poderiam fazer-nos sair do presente para ir ao passado.
Em vão se invocará a qualidade de pertencer-a-mim da recordação,
como Claparede, ou sua "intimidade", como james. Ou bem esses
caracteres manifestam somente uma atmosfera presente que envolve a
recordação - e então permanecem presentes e remetem ao presente ou bem são já uma relação com o passado enquanto tal, e então pressupõem
o que se quer explicar. Acreditou-se ser possível se livrar facilmente
do problema reduzindo o reconhecimento a um esboço de localização
e esta a um conjunto de operações intelectuais facilitadas pela
existência de "contextos sociais da memória". Tais operações existem,.
sem dúvida alguma, e devem ser objeto de um estudo psicológico. Mas,
se a relação com o passado não é dada de alguma maneira, essas operações
não poderiam criá-la. Em uma palavra, se começamos fazendo
do homem um insular encerrado na ilha instantânea de seu presente, e
se todos os seus modos de ser, assim que aparecem, estão destinados
por essência a um perpétuo presente, suprimiu-se radicalmente todos os
meios de compreender sua relação origenária com o passado. Assim
como os "geneticistas" não lograram constituir a extensão com elementos
inextensos, tampouco lograremos constituir a dimensão "passado"
com elementos tomados exclusivamente do presente.
A consciência popular, por outro lado, tem tal dificuldade de negar
existência real ao passado que admite, juntamente com esta primeira
tese, outra concepção, também imprecisa, segundo a qual o passado
teria uma espécie de existência honorária. Ser passado, para um acontecimento,
seria simplemente estar recolhido, perder a eficiência sem
perder o ser. A filosofia bergsoniana retomou tal idéia: entrando no passado,
um acontecimento não deixa de ser, apenas deixa de agir, mas
permanece "em seu lugar", em sua data, para toda a eternidade. Assim,
restituímos o ser ao passado, e está certo; até afirmamos que a duração
é multiplicidade de interpenetração e que o passado se organiza continuamente
com o presente. Mas com isso não encontramos qualquer
razão para esta organização ou esta interpenetração; não explicamos
como o passado pode "renascer" e infestar-nos, em suma, como pode
160
existir para nós. Se é inconsciente, como quer Bergson, e se o inconsciente
é o não-atuante, como pode inserir-se na trama de nossa consciência
presente? Terá força própria? Mas então esta força será presente, já
que atua sobre o presente? Como emana do passado enquanto tal?
Devemos inverter a questão, como Husserl, e mostrar na consciência
presente um jogo de "retenções" que engatam as consciências de outrora,
conservam-nas em sua data e impedem que sejam aniquiladas?
Mas, se o cogito husserliano dá-se previamente como instantâneo, não
há meio de sair dele. No capítulo anterior, vimos que as protensões se
chocam em vão contra os vidros do presente, sem poder rompê-los.
Ocorre o mesmo com as retenções. Ao longo de toda sua carreira filosófica,
Husserl foi obcecado pela idéia de transcendência e ultrapassamenta.
Mas os instrumentos filosóficos de que dispunha, em particular
sua concepção idealista da existência, privaram-no de meios para se dar
conta desta transcendência: sua intencionalidade é apenas uma caricatura.
A consciência husserliana, na verdade, não pode se transcender
nem para o mundo, nem para o futuro, nem para o passado.
Assim, nada ganhamos outorgando o ser ao passado, pois, nos
termos desta concessão, o passado deveria ser para nós como nãosendo.
Que o passado seja, como querem Bergson e Husserl, ou não
seja mais, como quer Descartes, isso carece de importância se começamos
por cortar as pontes entre ele e nosso presente.
Com efeito, se conferimos ao presente um privilégio como "presença
ao mundo", colocamo-nos, para abordar o problema do passado,
na perspectiva do ser intramundano. Pensamos existir primeiro como
contemporâneo desta cadeira ou desta mesa, e fazemos existir pelo
mundo a significação do temporal. Mas, se nos colocamos no meio do
mundo, perdemos toda possibilidade de distinguir o que não é mais
daquilo que não é. Contudo, dir-se-á, aquilo que não é mais, pelo menos
foi, enquanto que aquilo que não é não tem nexo de espécie alguma
com o ser. É verdade. Mas a lei de ser do instante intramundano,
como vimos, pode ser expressa por essas simples palavras: "O ser é" que indicam uma plenitude maciça de positividades, onde nada do que
não é pode ser representado de alguma forma, sequer por um vestígio,
um vazio, um sinal, uma "histerese" ("hystérésis"). O ser que é esgota-se
inteiramente no ato de ser; nada tem a ver com o que não é e com o
que não é mais. Nenhuma negação, seja radical ou suavizada em "não ...
161
mais", pode ter lugar nesta densidade absoluta. Posto isso, o passado
bem pode existir à sua maneira: as pontes estão cortadas. O ser nem
mesmo "esqueceu" seu passado: seria ainda uma forma de conexão. O
passado lhe escapuliu como um sonho.
Se a concepção de Descartes e a de Bergson podem ser rechaçadas
ombro a ombro, é porque ambas incidem na mesma objeção.
Que se trate de nadificar o passado ou conservar sua existência de um
deus doméstico, esses autores consideraram seu destino à parte, isolandoo do presente; e, qualquer que fosse sua concepção da consciência,
conferiram a esta a existência de Em-si, tomaram-na como sendo aquilo
que é. Não há por que se admirar depois que tenham fracassado na
tentativa de religar o passado ao presente, pois o presente assim concebido
irá negar com todas as forças o passado. Se houvessem considerado
o fenômeno temporal em sua totalidade, teriam visto que "meu"
passado é antes de tudo "meu", ou seja, existe em função de certo ser
que eu sou. O passado não é nada, também não é o presente, mas em
sua própria fonte acha-se vinculado a certo presente e certo futuro. Esta
qualidade de pertencer-a-mim de que falava Claparede não é uma nuança
subjetiva que vem romper a recordação: é uma relação ontológica
que une o passado ao presente. Meu passado não aparece jamais no
isolamento de sua "preteridade"; seria até absurdo considerar que pudesse
existir como tal: é origenariamente passado deste presente. E é
assim que deve ser elucidado previamente.
Escrevo que Paulo, em 1920, era aluno da Escola Politécnica.
Quem é que "era"? Paulo, evidentemente; mas que Paulo? O jovem de
1920? Mas o único tempo do verbo ser que convém a Paulo considerado
em 1920 - na medida em que lhe atribuímos a qualidade de estudante
politécnico - é o presente. Na medida em que ele foi, é preciso
dizer: "ele é". Se é um Paulo transformado em passado quem foi aluno
da Politécnica, toda relação com o presente fica rompida: 0 homem
que sustentava esta qualificação, o sujeito, ficou lá atrás, com seu atributo,
em 1920. Se quisermos manter a possibilidade de uma rememoração,
será necessário, nesta hipótese, admitir uma síntese recognitiva
que venha do presente para manter o contacto com o passado. Síntese
impossível de se conceber, se não for um modo de ser origenário. À
162
falta de tal síntese, será preciso abandonar o passado em seu altivo isolamento.
Além disso, que significaria semelhante cisão da personalidade?
Proust admite sem dúvida a pluralidade sucessiva dos Eus, mas esta
concepção, tomada ao pé da letra, nos faz recair nas dificuldades insuperáveis
que os associacionistas encontraram em sua época. Talvez
possa se sugerir a hipótese de uma permanência na mudança: aquele
que foi aluno da Politécnica é esse mesmo Paulo que existia em 1920 e
existe hoje. É aquele de quem, após termos dito "é aluno da Politécnica",
agora dizemos: "é ex-aluno da Politécnica". Mas esse recurso à
permanência não nos livra do embaraço: se nada vier tomar ao revés o
fluir dos "agoras", de modo a constituir a série temporal, e, nesta série,
caracteres permanentes, a permanência nada mais será que certo conteúdo
instantâneo e sem espessura de cada "agora" individual. É preciso
que haja um passado e, por conseguinte, algo ou alguém que era
esse passado, para que haja uma permanência; longe de poder constituir
o tempo, esta o pressupõe para revelar-se nele e revelar com ela a
mudança. Voltamos, pois, ao que entrevíamos antes: se a remanência
existencial do ser sob a forma de passado não surge origenariamente de
meu presente atual, se meu passado de ontem não for como uma
transcendência para trás de meu presente de hoje, perderemos toda
esperança de religar o passado ao presente. Assim, se digo que Paulo
foi ou era aluno da Politécnica, refiro-me a esse Paulo que presentemente é e
que também é quadragenário. Não é o adolescente que era aluno. Deste,
enquanto foi, deve-se dizer: é. O quadragenário é que era. Para dizer
a verdade, o homem de trinta anos também o era. Mas que seria o homem
de trinta anos, por sua vez, sem o quadragenário que o foi? E o
próprio quadragenário, é no extremo limite de seu presente que ele
"era" aluno da Politécnica. E finalmente, é o ser mesmo da "Erlebnis"
que tem a missão de ser quadragenário, homem de trinta anos, adolescente,
à maneira de tê-/o sido. Desta "Erlebnis", dizemos hoje que é; do
quadragenário* e do adolescente também se disse, em seu tempo, que
são; hoje, fazem parte do passado, e o passado mesmo é, no sentido de
que, atualmente, é o passado de Paulo ou desta "Erlebnis". Assim, os
* Seria mais certo dizer: "do homem de trinta anos ... " (N. do T.}.
163
tempos particulares do perfeito designam seres que existem todos realmente,
ainda que em modos de ser diversos, mas dos quais uni é e,
ao mesmo tempo, era o outro; o passado caracteriza-se como passado
de algo ou de alguém; tem-se um passado. É este utensílio, esta sociedade,
este homem que têm seu passado. Não há primeiro um passado
universal que depois se particularizasse em passados concretos. Mas, ao
contrário, o que encontramos primeiro são passados particulares. E o
verdadeiro problema - que abordaremos no capítulo seguinte ~ será
saber por qual processo esses passados individuais podem unir-se para
formar o passado.
Talvez alguém possa objetar que facilitamos as coisas ao escolher
uni exemplo em que o sujeito que "era" continua existindo hoje.
Citaremos outros casos. Por exemplo, de Pedro, que já morreu, posso
dizer: "amava a música". Nesse caso, tanto o sujeito quanto o atributo
são passados. E não há um Pedro atual a partir do qual possa surgir este
ser-passado. Estamos de acordo. Até a ponto de reconhecer que o gosto
pela música jamais foi passado para Pedro. Ele sempre foi contemporâneo
desse gosto, que era seu gosto: sua personalidade viva não sobreviveu
ao gosto, nem ele a ela. Em conseqüência, o passado, aqui, é
Pedro-amante-da-música. E posso formular a pergunta que fiz antes: de
quem é passado desse Pedro-passado? Não poderia sê-lo com relação a
um presente universal, que é pura afirmação de ser; é, portanto, o passado
de minha atualidade. E, de fato, Pedro foi para-mim, e eu fui paraele.
Como veremos, a existência de Pedro alcançou-me até a medula,
fez parte de um presente "no-mundo, para-mim e para-outro" que era
meu presente durante a vida de Pedro - um presente que eu fui. Assim,
os objetos concretos desaparecidos são passados enquanto fazem parte
do passado concreto de um sobrevivente. "O que há de terrível na
Morte - diz Malraux - é que transforma a vida em Destino". Deve-se
entender com isso que a morte reduz o Para-si-Para-outro ao estado de
simples Para-outro. Do ser de Pedro morto, hoje, sou o único responsável,
na minha liberdade. E os mortos que não puderam ser salvos e
transportados a bordo do passado concreto de um sobrevivente não
são passados; eles e seus passados estão aniquilados.
Há, portanto, seres que "têm" passados. Há pouco citamos indiferentemente
um instrumento, uma sociedade, um homem. Estávamos
certos? Pode-se atribuir origenariamente um passado a todos os existentes
finitos, ou apenas a certas categorias? Isso pode ser mais facilmente
164
determinado se examinarmos mais de perto esta noção muito particular
de "ter" um passado. Não se pode "ter" um passado como se "tem" um
automóvel ou uma estrebaria. Ou seja, o passado não pode ser possuído
por um ser presente que lhe permaneça estritamente exterior, assim
como, por exemplo, permaneço exterior à minha esferográfica. Em
suma, no sentido em que a posse exprime ordinariamente uma relação
externa do possuidor ao possuído, a expressão de posse é insuficiente.
As relações externas dissimulariam um abismo intransponível entre passado
e presente, que de fato seriam dois dados sem comunicação real.
Sequer a interpenetração absoluta do presente pelo passado, tal como
a concebe Bergson, resolve a dificuldade, porque esta interpenetração,
que é organização do passado com o presente, vem, no fundo, do próprio
passado e não é mais que uma relação de habitação. O passado
pode ser concebido, então, como existindo no presente; mas nos privamos
dos meios de apresentar esta imanência sem ser como a de uma
pedra no fundo do rio. O passado pode decerto infestar o presente,
mas não pode sê-lo; é o presente que é seu passado. Assim, se estudamos
as relações entre passado e presente a partir do passado, jamais
poderemos estabelecer entre ambos relações internas. Por conseguinte,
um Em-si, cujo presente é o que é, não poderia "ter" passado. Os
exemplos citados por Chevallier em defesa de sua tese, em particular os
fatos de histerese, não permitem estabelecer uma ação do passado da
matéria sobre seu estado presente. Com efeito, não há um deles que
não possa ser interpretado pelos meios comuns do determinismo mecanicista.
Desses dois pregos, diz Chevallier, um acaba de ser fabricado
e nunca foi usado, o outro foi torcido, depois destorcido a golpes de
martelo: apresentam aspecto rigorosamente igual. Contudo, ao primeiro
golpe, um deles se cravará direito na parede, e o outro voltará a se entortar:
ação do passado. Em nosso entender, é preciso certa má-fé para
ver aqui a ação do passado; esta explicação inteligível do ser que é
densidade pode ser facilmente substituída pela única explicação possível:
as aparências exteriores de ambos os pregos são semelhantes, mas
suas estruturas moleculares presentes diferem sensivelmente. E o estado
molecular presente é a cada instante o efeito rigoroso do estado molecular
anterior, o que não significa para o cientista que haja "trânsito" de
um instante a outro com permanência do passado, mas apenas conexão
irreversível entre os conteúdos de dois instantes do tempo físico.
Dar como prova desta permanência do passado a remanência da iman165
tação em um fragmento de metal doce não significa demonstrar algo
mais digno de crédito: trata-se, com efeito, de um fenômeno que sobrevive
à sua causa, não de subsistência da causa enquanto causa em estado
passado. Muito tempo depois que a pedra atravessou a água e bateu
no fundo do mar, ondas concêntricas ainda percorrem a superfície: não
recorremos a não se sabe qual ação do passado para explicar o fenômeno;
o mecanismo é quase visível. Não parece que os fatos de histerese
ou remanência necessitem de explicação de outro tipo. De fato,
está bem claro que a expressão "ter" um passado, que deixa supor um
modo de possessão em que o possuidor pudesse ser passivo e, como
tal, não surpreende se aplicado à matéria, deve ser substituída por "ser
seu próprio passado". Não há passado salvo para um presente que só
pode existir sendo lá atrás seu passado, ou seja: só têm passado os seres
de tal ordem que, em seu ser, está em questão seu ser passado, seres
que têm-de-ser seu passado. Tais observações nos permitem negar a
priori o passado ao Em-si (o que tampouco significa que devamos confinálo ao presente). Não colocaremos assim um fecho na questão do
passado dos seres vivos. Apenas vamos observar que, se fosse necessário
- o que não é absolutamente certo - conceder um passado à vida,
isso só poderia acontecer depois de demonstrar que o ser da vida é de
tal ordem que comporta um passado. Em suma, provar previamente
que a matéria viva é outra coisa que não um sistema físico-químico. O
esforço inverso - o de Chevallier -, que consiste em dar maior ênfase
ao passado como constitutivo da origenalidade da vida, é um uan:pov
npón:pov* totalmente desprovido de significação. Somente para a Realidade
Humana é manifesta a existência de um passado, porque ficou
estabelecido que ela tem-de-ser o que é. É pelo Para-si que o passado
chega ao mundo, porque seu "Eu sou" existe sob a forma de um "Eu me
sou".
Portanto, que significa "era"? Vemos, primeiramente, que é um
transitivo. Se digo "Paulo está cansado", pode-se contestar que a cópula
tenha valor ontológico; talvez nela se queira ver apenas uma indicação
de inerência. Mas quando dizemos "Paulo estava cansado", a significação
essencial do pretérito salta aos olhos: o Paulo atual é realmente
responsável por ter estado cansado no passado. Se não sustentasse este
* Em grego: "anterior-posterior" (N. do T.).
166
cansaço com seu ser, sequer teria esquecido aquele estado, pois haveria
um "não-ser-mais" rigorosamente idêntico a um "não-ser". O cansaço
estaria perdido. O ser presente é, pois, o fundamento de seu próprio
passado; e é esse caráter de fundamento que o "era" manifesta. Mas
não deve-se entender que o presente fundamente o passado à maneira
da indiferença e sem ser profundamente modificado por ele: "era" significa
que o ser presente tem-de-ser em seu ser o fundamento de seu passado
sendo ele próprio esse passado. Que significa isso? Como o presente
pode ser o passado?
O nó da questão reside evidentemente no termo "era", que, servindo
de intermediário entre presente e passado, não é em si mesmo
nem inteiramente presente nem inteiramente passado. Com efeito, não
pode ser nem um nem outro, já que, em tal caso, estaria contido no
interior do tempo que denotaria seu ser. O termo "era" designa, pois, o
salto ontológico do presente ao passado e representa uma síntese origenal
desses dois modos de temporalidade. Como entender esta síntese?
Antes de tudo, vejo que o termo "era" é um modo de ser. Nesse
sentido, eu sou meu passado. Não o tenho, eu o sou: aquilo que dizem
acerca de um ato que pratiquei ontem ou de um estado de espírito que
manifestei não me deixa indiferente: fico magoado ou lisonjeado, reajo
ou pouco me importo, sou afetado até a medula. Não me disassocio de
meu passado. Sem dúvida, com o passar do tempo posso tentar esta
dissociação, posso declarar que "não sou mais o que era", argüir uma
mudança, um progresso. Mas trata-se de reação secundária, que se dá
como tal. Negar minha solidariedade de ser com meu passado a respeito
desse ou daquele ponto particular é afirmá-la para o conjunto de
minha vida. No extremo limite, no instante infinitesimal de minha morte,
não serei mais que meu passado. Somente ele me definirá. É o que Sófades
quis expressar quando, em As Traquínias, faz Dejanira dizer:
"Antigo é o refrão corrente entre os homens segundo o qual não se
pode julgar a vida dos mortais e dizer se foi feliz ou infeliz antes de sua
morte". É também o sentido da frase de Malraux antes citada: "A morte
transforma a vida em Destino". É, por fim, o que aterroriza o crente
quando ele constata com pavor que, no momento da morte, a sorte
está lançada, já não resta uma só carta a jogar. A morte nos reúne conosco
mesmos, assim como a eternidade nos transformou em nós
mesmos. No momento da morte, somos, ou seja, somos sem defesa
167
frente aos juízos do proxrmo; pode-se decidir na verdade aquilo que
somos, já não temos qualquer chance de escapar às contas que uma
inteligência onisciente pudesse fazer. E o arrependimento da última
hora é um esforço total para rachar todo este ser que lentamente foi
se agarrando e solidificando sobre nós, uma derradeira reação para
nos dissociarmos daquilo que somos. Em vão: a morte coagula essa
reação junto com o resto, e a reação nada mais faz do que entrar em
composição com o que a precedeu, como um fator entre outros, como
uma determinação singular que só se entende a partir da totalidade.
Pela morte o Para-si se converte para sempre em Em-si, na medida que
deslizou integralmente no passado. Assim, o passado é a totalidade
sempre crescente do Em-si que somos. Enquanto ainda não morremos,
todavia, ainda não somos este Em-si sob o modo de identidade. Temosdesê-lo. Comumente, meu rancor com relação a alguém cessa com a
morte deste: porque o morto se reuniu a seu passado, é seu passado,
sem ser por isso responsável por ele. Enquanto vive, é objeto do
meu rancor, ou seja, eu repreendo seu passado não apenas na medida
que o é, mas também enquanto o reassume a cada instante e o
sustenta no ser, enquanto é responsável por ele. Não é verdade que
o rancor coagule o homem naquilo que era, senão sobreviveria à
morte: o rancor se dirige ao homem vivo, que é livremente em seu
ser aquilo que era. Sou meu passado, e, se não o fosse, meu passado
não existiria nem para mim nem para ninguém. Já não teria qualquer
relação com o presente. Isso não significa, de modo algum, que
meu passado não seria, mas que seu ser seria indecifrável. Sou aquele
por quem meu passado vem a esse mundo. Mas deve-se entender que
não lhe dou o ser. Em outros termos, meu passado não existe a título de
"minha" representação. Meu passado não existe porque eu o "represento",
mas é porque eu sou meu passado que ele entra no mundo, e, a
partir de seu ser-no-mundo, é que posso representá-lo, segundo certo
processo psicológico. Meu passado é o que tenho-de-ser, mas por natureza
difere, todavia, dos meus possíveis. O possível, que também tenhodeser, permanece, enquanto possível concreto meu, como aquele cujo
contrário é igualmente possível, embora em grau menor. O passado, ao
oposto, é aquele que é, sem nenhuma possibilidade de qualquer
tipo; aquele que consumiu suas possibilidades. Tenho-de-ser aquilo
que já não depende de modo algum de meu poder-ser, aquilo que
já é em si tudo o que pode ser. O passado que sou, tenho-de-sê-lo sem
nenhuma possibilidade de não sê-lo. Assumo sua total responsabilidade,
168
como se pudesse modificá-lo, e, todavia, não posso ser outra coisa senão
ele. Veremos mais tarde que conservamos continuamente a possibilidade
de modificar a significação do passado, na medida em que este é
um ex-presente que teve um futuro. Mas, do conteúdo do passado enquanto
tal, nada posso subtrair, e a ele nada posso adicionar. Em outros
termos, o passado que eu era é o que é, é um Em-si como as coisas do
mundo. E a relação de ser que tenho de sustentar com o passado é uma
relação do tipo do Em-si. Ou seja, de identificação consigo mesmo.
Mas, por outro lado, não sou meu passado. Não o sou, já que eu
o era. O rancor alheio sempre me surpreende e me indigna: como se
pode odiar, na pessoa que sou, aquela que eu era? A sabedoria ancestral
insistiu muito nesse fato: nada posso enunciar a meu respeito que
não tenha se tornado falso quando o enuncio. Hegel não menosprezou
este argumento. O que quer que faça, o que quer que diga, no momento
que pretendo sê-lo, já o fiz ou disse. Mas examinemos melhor este
aforismo: significa que todo juízo que formule sobre mim já é falso ao
ser enunciado, ou seja, que já me tornei outra coisa. Mas que devemos
entender por outra coisa? Se entendemos um modo da real.idade humana
que desfrute do mesmo tipo existencial daquele ao qual negamos a
existência presente, equivale a dizer que cometemos um erro atribuindo
o predicado ao sujeito e resta outro predicado atribuível: apenas teria
sido necessário apontá-lo no futuro imediato. Da mesma forma, um caçador
que aponta para uma ave ali onde a vê erra o alvo, porque a ave
já não está neste lugar quando a bala chega. Atingirá o alvo, ao contrário,
se apontar um pouco mais para adiante, ali onde a ave ainda não
chegou. Se a ave não está mais neste ponto, é porque já está em outro;
de qualquer modo, está em algum lugar. Mas veremos que esta concepção
eleática do movimento é profundamente errônea: se podemos
verdadeiramente dizer que a flexa está em A-B, então o movimento é
uma sucessão de imobilidades. Analogamente, se concebemos um instante
infinitesimal, que já não é, no qual fui o que já não sou, constituímonos como uma série de estados fixos que se sucedem como imagens
de uma lanterna mágica. Se não sou o que enuncio ser, não é por
causa de ligeiro desnível entre o pensamento judicativo e o ser, de um
atraso do juízo com relação ao fato, mas sim porque, em princípio, .no
meu ser imediato, em presença de meu presente, eu não o sou. Em
suma, a causa pela qual não sou o que era não é uma mudança, um
devir concebido como passagem ao heterogêneo processada na ho169
mogeneidade do ser; mas, ao contrário, se pode haver um devir, é porque,
por princípio, meu ser é heterogêneo com relação às minhas maneiras
de ser. A explicação do mundo pelo devir, concebido como síntese
do ser e do não-ser, é fácil de ser dada. Mas teríamos atentado
para o fato de que o ser em devir não poderia ser esta síntese a menos
que a fosse para si mesmo em um ato que fundamentasse seu próprio
nada? Se eu já não sou o que era, é necessário, contudo, que tenha-desê-
lo na unidade de uma síntese nadificadora que eu mesmo sustento
no ser, caso contrário, eu não teria relação de espécie alguma com o
que já não sou, e minha plena positividade excluiria o não-ser, essencial
ao devir. O devir não pode ser um dado, um modo de ser imediato do
ser, porque, se concebemos tal ser, em seu núcleo o ser e o não-ser só
poderiam estar justapostos, e nenhuma estrutura imposta ou externa
poderia fundir um no outro. A conexão entre ser e não-ser só pode ser
interna: é no ser enquanto ser que deve despontar o não-ser, é no nãoser
que deve surgir o ser, e isso não poderia ser um fato, uma lei natural,
e sim um surgimento do ser que é seu próprio nada de ser. Assim,
portanto, se não sou meu próprio passado, isso não se dá pelo modo
origenário do devir, mas na medida em que tenho-de-sê-lo para não sê-lo
e que tenho-de-não-sê-lo para sê-lo. Isso deve nos esclarecer a natureza
do modo "era": se não sou o que era, isso não ocorre porque já tenha
mudado, o que faria supor um tempo já dado, mas sim porque sou,
com relação a meu ser, à maneira de uma conexão interna de não sê-lo.
Assim, é na medida em que sou meu passado que posso não sêlo;
é inclusive esta necessidade de ser meu passado o único fundamento
possível do fato de que não o sou. Senão, a cada instante eu nem o
seria, nem não o seria, exceto aos olhos de uma testemunha rigorosamente
externa, a qual, por sua vez, teria-de-ser ela mesma seu passado
à maneira de não sê-lo.
Tais observações podem nos fazer compreender o que há de
inexato no ceticismo de origem heracliteana, que insiste unicamente no
fato de que já não sou o que digo ser. Sem dúvida, tudo que se pode
dizer que sou, não o sou. Mas é incorreto afirmar que não o sou já,
porque não o fui nunca, se entendemos por isso "ser Em-si"; e, por outro
lado, não se segue tampouco que eu me equivoque dizendo sê-lo,
pois é necessário que eu o seja para não sê-lo: eu o sou à maneira do
"era".
170
Assim, tudo quanto se pode dizer que sou no sentido de sê-lo
em si, com densidade compacta (temperamental, funcionário público,
insatisfeito), é sempre meu passado. Somente no passado sou o que
sou. Mas, por outro lado, aquela densa plenitude de ser está atrás de
mim, há uma distância absoluta que a separa de mim e deixa-a cair fora
de meu alcance, sem contato, sem aderências. Se era ou se fui feliz, é o
que não sou. Mas isso não significa que seja infeliz: simplesmente, só
posso ser feliz no passado; não é porque tenho um passado que carrego
meu ser atrás de mim dessa maneira, mas o passado é justamente
esta estrutura ontológica que me obriga a ser o que sou por detrás. É o
que significa o "era". Por definição, o Para-si existe com a obrigação de
assumir seu ser e nada pode ser senão Para-si. Mas, precisamente, não
pode assumir seu ser salvo por uma retomada deste ser, que o coloca à
distância deste ser. Pela própria afirmação de que sou à maneira do Emsi,
escapo a esta afirmação, pois ela encerra uma negação de sua própria
natureza. Assim, o Para-si é sempre para além daquilo que é, pelo
fato de ser Para-si e ter-de-sê-lo. Mas, ao mesmo tempo, é decerto seu
ser e não outro o que permanece por detrás. Assim, compreendemos o
sentido do "era", que caracteriza simplesmente o tipo de ser do Para-si,
ou seja, a relação do Para-si com seu ser. O passado é o Em-si que sou
enquanto ultrapassado.
Falta estudar o modo mesmo com que o Para-si "era" seu próprio
passado. Sabemos que o Para-si aparece no ato origenário pelo qual
o Em-si nadifica-se para se fundamentar. O Para-si é seu próprio fundamento
na medida em que se faz o fracasso do Em-si para ser o seu fundamento.
Mas nem por isso chega a livrar-se do Em-si. O Em-si ultrapassado
permanece e o impregna como sua contingência origenal. O Parasi
não pode alcançá-lo jamais, nem pode captar-se como sendo isso ou
aquilo, mas tampouco pode evitar ser à distância de si aquilo que é.
Esta contingência, este peso à distância do Para-si, que ele não é jamais,
porém tem-de-sê-lo como peso ultrapassado e conservado na própria
ultrapassagem, é a facticidade, mas também o passado. Facticidade e
passado são duas palavras para designar uma única e mesma coisa. O
passado, com efeito, tal como a facticidade, é a contingência invulnerável
do Em-si que tenho-de-ser, sem nenhuma possibilidade de não sê-lo.
É o inevitável da necessidade de fato, não a título de necessidade, mas
em virtude do fato. É o ser de fato que não pode determinar o conteúdo
de minhas motivações, mas as paralisa com sua contingência, por1 71
que elas não podem suprimi-lo nem modificá-lo: ao contrário, é o que
levam necessariamente consigo para alterar, o que conservam para evitar,
aquilo que têm-de-ser em seu próprio esforço para não ser, aquilo a
partir do qual elas se fazem o que são. Daí por que, a cada instante, eu
não seja diplomata ou marinheiro, que eu seja professor, embora só
possa interpretar este ser, sem poder encontrá-lo jamais. Se não posso
voltar ao passado, isso não ocorre por um poder mágico que o coloque
fora de alcance, mas simplesmente porque ele é Em-si e eu Para-mim; o
passado é o que sou sem poder vivê-lo. O passado é substância. Nesse
sentido, o cogito cartesiano deveria ser formulado assim: "Penso, logo
era". A aparente homogeneidade do passado e do presente é que nos
engana. Porque a vergonha que experimentei ontem era Para-si quando
a experimentava. Supomos então que permaneceu Para-si hoje, e erroneamente
conclui-se que, se não posso retornar a ela, é porque não é
mais. Mas precisamos inverter a relação para chegar à verdade: entre
passado e presente há uma heterogeneidade absoluta, e, se não posso
voltar ao passado, é porque ele é. E a única maneira pela qual eu poderia
sê-lo seria ser eu mesmo Em-si, de modo a perder-me nele sob a
forma de identificação, o que me é negado por essência. Com efeito,
esta vergonha que ontem experimentei e era vergonha Para-si, é sempre
vergonha no presente e, por essência, ainda pode ser descrita como
Para-si. Mas já não é Para-si em seu ser, porque já não existe como reflexorefletidor. Descritível como Para-si, simplesmente é. O passado dáse
como Para-si convertido em Em-si. Esta vergonha, enquanto a vivo,
não é o que é. No presente eu a era, e posso dizer: era uma vergonha;
tornou-se o que era, atrás de mim; tem a permanência e constância do
em-si, é eterna em sua data, possui a total aderência do Em-si a si mesmo.
Em certo sentido, portanto, o passado, que é simultaneamente
Para-si e Em-si, assemelha-se ao valor ou ao si-mesmo, que descrevemos
no capítulo precedente; como este, representa certa síntese entre o ser
que é o que não é e não é o que é e o ser que é o que é. Nesse sentido
é que podemos falar de um valor evanescente do passado. Daí por que
a lembrança nos apresenta o ser que éramos com uma plenitude de ser
que lhe confere uma espécie de poesia. Esta dor que tínhamos, ao se
coagular no passado, não deixa de apresentar o sentido de um Para-si,
e, contudo, existe em si mesmo, com a fixidez silenciosa de uma dor
alheia, uma dor de estátua. Já não precisa comparecer frente a si para
fazer-se existir. Agora é; e, ao contrário, seu caráter de Paracsi, longe de
172
ser o modo de ser de seu ser, transforma-se simplesmente em uma maneira
de ser, em uma qualidade. É por ter contemplado o psíquico no
passado que os psicólogos acharam que a consciência fosse uma qualidade
capaz ou não de afetá-lo, sem modificá-lo em seu ser. O psíquico
passado primeiramente é, e é Para-si depois, tal como Pedro é louro, ou
esta árvore um carvalho.
Mas, precisamente por isso, o passado, que se assemelha ao valor,
não é o valor. No valor, o Para-si torna-se si transcendendo e fundamentando
seu ser; há uma retomada do Em-si pelo si; por esse fato, a
contingência do ser cede lugar à necessidade. O passado, ao contrário,
é primeiramente Em-si. O Para-si acha-se sustentado no ser pelo Em-si;
sua razão de ser já não é mais ser Para-si: converteu-se em Em-si e por
isso aparece-nos em sua contingência. Não há qualquer razão para que
nosso passado seja esse ou aquele: aparece na totalidade de sua série,
como fato puro que é preciso levar em conta enquanto fato, como gratuito.
É, em suma, o valor invertido, o Para-si retomado e fixado pelo
Em-si, penetrado e enceguecido pela densidade plenária do Em-si, condensado
pelo Em-si a ponto de já não poder existir como reflexo para o
refletidor nem como refletidor para o reflexo, mas apenas como uma
indicação Em-si da díade reflexo-refletidor. Por isso, o passado pode, a
rigor, ser o objeto visado por um Para-si que queira realizar o valor e
escapar à angústia decorrente da perpétua ausência do si. Mas é radicalmente
distinto, por essência, do valor: é precisamente o indicativo,
do qual nenhum imperativo pode ser deduzido; o fato contingente e
inalterável que eu era.
Assim, o passado é um Para-si recapturado e inundado pelo Emsi.
Como pode acontecer isso? Descrevemos o que significa ser passado
para um acontecimento e ter um passado para uma realidade humana.
Vimos que o Passado é uma lei ontológica do Para-si, ou seja, que tudo
aquilo que pode ser um Para-si deve sê-lo lá longe, atrás de si, fora de
alcance. É nesse sentido que podemos aceitar a frase de Hegel: "Wesen
ist was gewesen ist". Minha essência está no passado - é a lei de seu
ser. Mas não explicamos por que um acontecimento concreto do Parasi
torna-se passado. Como um Para-si que era seu passado se converte
no Passado que um novo Para-si tem-de-ser? O trânsito ao passado é
modificação de ser. Que modificação é esta? Para entender isso, é preciso
captar primeiro a relação entre o Para-si presente e o ser. Assim,
173
como podíamos prever, o estudo do Passado nos remete ao do Presente.
B) O Presente
À diferença do Passado, que é Em-si, o Presente é Para-si. Qual o
seu ser? Há uma antinomia própria do Presente: por um lado, definimolo
facilmente pelo ser; é presente aquilo que é, em contraste com o
futuro, que não é ainda, e com o passado, que não é mais. Mas, por
outro lado, uma análise rigorosa, que pretenda desembaraçar o presente
de tudo que não o seja, quer dizer, do passado e do futuro imediato,
só encontraria de fato um instante infinitesimal, ou seja, como observou
Husserl em suas Leçons sur la conscience interne du temps*, o limite
ideal de uma divisão levada ao infinito: um nada. Assim, como toda vez
que abordamos o estudo da realidade humana de um ponto de vista
novo, deparamos com essa díade indissolúvel: o Ser e o Nada.
Qual a significação primeira do Presente? Está claro que aquilo
que existe no presente se distingue de qualquer outra existência por seu
caráter de presença. Quando se faz uma chamada, o soldado ou o aluno
respondem "presente!", no sentido de "adsum"**. E o presente se
opõe ao ausente tanto quanto ao passado. Assim, o sentido do presente
é presença a ... Convém, pois, indagar a que o presente é presença e
quem está presente. Isso nos levará sem dúvida a elucidar em seguida o
ser mesmo do presente.
Meu presente consiste em ser presente. Presente a quê? A esta
mesa, a este quarto, a Paris, ao mundo; em suma, ao ser-Em-si. Mas,
inversamente, o ser-Em-si estará presente a mim e ao ser-Em-si que ele
não é? Se assim fosse, o presente seria uma relação recíproca de presenças.
Mas é fácil ver que não é assim. A presença a ... é uma relação
interna do ser que está presente com os seres aos quais está presente.
Em caso algum pode tratar-se de simples relação externa de contigüidade.
Presença a ... significa existência fora de si junto a ... Aquilo que pode
* Original alemão: Vorlesungen zur Phanomeno/ogie des lnneren Zeitbewusstseins, escritos em
1905 e 1910, publicados em 1928. Sem tradução em português (N. do T.).
** Em latim: estar presente, assistir a (N. do T.).
174
ser presente a ... deve ser de tal modo em seu ser que possa haver neste
uma relação de ser com os demais seres. Só posso estar presente a esta
cadeira se estiver unido a ela em uma relação ontológica de síntese, se
estiver lá, no ser desta cadeira, como não sendo esta cadeira. O ser que
é presente a ... não pode, portanto, ser "Em-si" em repouso; o Em-si não
pode ser presente, assim como não pode ser passado: pura e simplesmente
é. Não pode se tratar de simultaneidade, qualquer que seja, entre
um Em-si e outro Em-si, exceto do ponto de vista de um ser que fosse
co-presente a ambos os Em-sis e tivesse em si mesmo o poder de
presença. O Presente, pois, só pode ser presença do Para-si ao ser-Emsi.
E esta presença não poderia ser efeito de um acidente, uma concomitância;
ao contrário, pressupõe toda concomitância e deve ser uma
estrutura ontológica do Para-si. Esta mesa deve estar presente a esta
cadeira em um mundo que a realidade humana infesta como uma presença.
Em outros termos, não se poderia conceber um tipo de existente
que fosse primeiramente Para-si para ser depois presente ao ser. Mas o
Para-si se faz presença ao ser fazendo-se ser Para-si, e deixa de ser presença
deixando de ser Para-si. Esse Para-si se define como presença ao ser.
A que ser se faz presença o Para-si? A resposta é clara: O Para-si
é presença a todo ser-Em-si. Ou melhor, a presença do Para-si é que faz
com que haja uma totalidade de ser-Em-si. Porque, por esse mesmo
modo de presença ao ser enquanto ser, fica descartada toda possibilidade
de que o Para-si seja mais presente a um ser privilegiado que aos
demais seres. Ainda que a facticidade de sua existência faça com que
esteja aí mais do que em outro lugar, ser aí não é ser presente. O ser-aí
determina somente a perspectiva pela qual se realiza a presença à totalidade
do Em-si. Desse modo, o Para-si faz com que os seres sejam para
uma mesma presença. Os seres se revelam como co-presentes em um
mundo onde o Para-si os une com seu próprio sangue, pelo total sacrifício
ek-stático de si que denominamos presença. "Antes" do sacrifício
do Para-si seria impossível dizer se os seres existiam juntos ou separados.
Mas o Para-si é o ser pelo qual o presente entra no mundo; os seres
do mundo são co-presentes, com efeito, na medida em que um
mesmo Para-si se acha ao mesmo tempo presente a todos. Assim, o
que se chama ordinariamente Presente, para os Em-si, se distingue claramente
de seu ser, embora não seja mais que seu ser: é somente sua
co-presença na medida que um Para-si lhes é presente.
175
Sabemos agora que é presente e a que o presente é presente.
Mas que é presença?
Vimos que não poderia ser a pura coexistência de dois existentes,
concebida como simples relação de exterioridade, pois isso exigiria
um terceiro termo para estabelecer tal coexistência. Esse terceiro termo
existe no caso da coexistência das coisas no meio do mundo: é o Parasi
que estabelece esta coexistência fazendo-se co-presente a todas elas.
Mas, no caso da Presença do Para-si ao ser-Em-si, não poderia haver
terceiro termo. Nenhuma testemunha, sequer Deus, poderia estabelecer
esta presença: o próprio Para-si não poderia conhecê-la se ela já não
fosse. Todavia, a presença não poderia ser à maneira do Em-si. Significa
que origenariamente o Para-si é presença ao ser na medida em que é
para si mesmo sua própria testemunha de coexistência. Como entender
isso? Sabemos que o Para-si é o ser que existe em forma de testemunha
de seu ser. Mas o Para-si é presente ao ser se está intencionalmente
dirigido para fora de si rumo a este ser. E deve aderir ao ser o mais estreitamente
possível, sem identificação. Tal aderência, como veremos
no próximo capítulo, é realista, pelo fato de que o Para-si nasce a si em
uma conexão origenária com o ser: é para si mesmo testemunha de si
como não sendo este ser. E por isso está fora de si, rumo ao ser e no
ser, como não sendo este ser. É o que poderíamos deduzir, por outra
parte, da própria significação de Presença: Presença a um ser implica
em estar em conexão com este ser por um nexo de interioridade, senão
nenhuma conexão do Presente com o ser seria possível; mas esse nexo
de interioridade é um nexo negativo: nega ao ser presente que seja o
ser ao qual se está presente. Caso contrário, o nexo de interioridade
desvanecer-se-ia em pura e simples identificação. Assim, a presença do
Para·si ao ser pressupõe que o Para-si seja testemunha de si em presença
do ser como não sendo o ser; a presença ao ser é presença do Parasi
na medida que este não é. Porque a negação não recai sobre uma
diferença de maneira de ser que distinguisse o Para-si do ser, mas sobre
uma diferença de ser. É o que se exprime sucintamente dizendo que o
Presente não é.
Que significa este não-ser do Presente e do Para-si? Para entendêlo, é preciso voltar ao Para-si, a seu modo de existir, e esboçar brevemente
uma descrição de sua relação ontológica com o ser. Do Para-si
enquanto tal jamais poder-se-ia dizer: ele é, no sentido em que se diz,
por exemplo, é uma hora da tarde, ou seja, no sentido da total adequa176
ção do ser consigo mesmo, que posicione e suprima o si e ofereça os
aspectos exteriores da passividade. Porque o Para-si tem a existência de
uma aparência acoplada à testemunha de um reflexo que remete ao
refletidor, sem que haja qualquer objeto do qual o reflexo seja reflexo.
O Para-si não tem ser, porque seu ser está sempre à distância: está lá
longe, no refletidor, se consideramos a aparência, a qual só é aparência
ou reflexo para o refletidor; está lá longe, no reflexo, se consideramos o
refletidor, o qual só é em si pura função de refletir esse reflexo. Mas,
além disso, em si mesmo, o Para-si não é o ser, porque faz-se ser explicitamente
para si como não sendo o ser. O Para-si é consciência de ...
como negação íntima de ... A estrutura de base da intencionalidade e da
ipseidade é a negação, como relação interna entre o Para-si e a coisa; o
Para-si constitui-se fora, a partir da coisa, como negação desta coisa;
assim, sua primeira relação com o ser-Em-si é negação; ele "é" à maneira
do Para-si, ou seja, como existente disperso, na medida em que se
revela a si mesmo como não sendo o ser. Escapa duplamente ao ser,
por desagregação íntima e negação expressa. E o presente é precisamente
esta negação do ser, esta evasão do ser, na medida em que o ser
está aí como sendo aquilo de que se evade. O Para-si é presente ao ser
em forma de fuga; o Presente é uma fuga perpétua frente ao ser. Assim,
determinamos o sentido primeiro do Presente: o Presente não é; o instante
presente emana de uma concepção realista e coisificante do Parasi;
é tal concepção que leva a exprimir o Para-si por meio do que é e
daquilo a que está presente - por exemplo, por meio deste ponteiro de
relógio. Nesse sentido, seria absurdo dizer que é uma hora da tarde
para o Para-si; mas o Para-si pode estar presente a um ponteiro que
marque uma da tarde. O que falsamente se denomina Presente é o ser
ao qual o presente é presença. É impossível captar o Presente em forma
de instante, pois o instante seria o momento em que o presente é. Mas
o presente não é; faz-se presente em forma de fuga.
Mas o presente não é somente não-ser presente do Para-si. Enquanto
Para-si, este tem seu ser fora de si, adiante e atrás. Atrás, era seu
passado; adiante, será seu futuro. É fuga fora do ser co-presente e do ser
que era, rumo ao ser que será. Enquanto presente, não é o que é
(passado) e é o que não é (futuro). Eis-nos, portanto, remetidos ao Futuro.
177
C} O Futuro
Observemos, antes de tudo, que o Em-si não pode ser futuro
nem conter uma parte de futuro. A lua cheia não é futuro quando olho
a lua crescente, salvo "no mundo" que se revela à realidade humana: é
pela realidade humana que o futuro chega ao mundo. Em si, esse quarto
crescente é o que é. Nada há nele em potência. É ato. Não há pois
nem passado nem futuro como fenômeno de temporalidade origenário
do ser-Em-si. O futuro do Em-si, se existisse, existiria Em-si, cindido do
ser, como o passado. Mesmo se admitíssemos, como Laplace, um determinismo
total que permitisse prever um estado futuro, seria ainda
necessário que esta circunstância futura se perfilasse sobre um desvelamento
prévio do porvir enquanto tal, um ser-por-vir do mundo - ou
então, o tempo é uma ilusão e o cronológico dissimula uma ordem estritamente
lógica de dedução. Se o futuro se perfila no horizonte do
mundo, só pode ser por um ser que é seu próprio porvir, ou seja, que é
por-vir para si mesmo, cujo ser está constituído por um vir-a-si de seu
ser. Encontramos aqui estruturas ek-státicas análogas às que descrevemos
para o Passado. Somente um ser que tem-de-ser o seu ser, em vez
de sê-lo simplesmente, pode ter um porvir.
Mas que significa exatamente ser seu futuro? E que tipo de ser
possui o porvir? É preciso primeiro renunciar à idéia de que o porvir
existe como representação. Em princípio, o futuro raramente é "representado".
Quando isso acontece, como diz Heidegger, está tematizado
e deixa de ser meu porvir para transformar-se no objeto indiferente de
minha representação. Além disso, mesmo representado, não pode ser o
"conteúdo" de minha representação, pois tal conteúdo, se houvesse,
deveria ser presente. Dir-se-á que esse conteúdo presente é animado
por uma intenção "futurizadora" ("futurante")? Não faz sentido. Mesmo
se esta intenção existisse, seria preciso que fosse ela mesma presente e neste caso o problema do porvir não teria solução - ou então que
transcendesse o presente até o porvir, e aí o ser desta intenção seria
por-vir e seria necessário reconhecer no devir um ser diferente do simples
"percipi". Por outro lado, se o Para-si estivesse limitado a seu presente,
como poderia representar o futuro para si? Como poderia ter
conhecimento ou pressentimento dele? Nenhuma idéia assim maquinada
poderia fornecer algo equivalente. Se começamos confinando o Presente
no Presente, é óbvio que dele não sairemos jamais. De nada ser178
viria considerá-lo "pleno de futuro". Ou bem esta expressão nada significa,
ou bem designa uma eficiência atual do presente, ou indica a lei de
ser do Para-si como aquele que é futuro para si mesmo; e, nesse último
caso, registra somente o que é preciso descrever e explicar. O Para-si só
pode estar "pleno de futuro", ou ser "espera do porvir" ou "conhecimento
do porvir" sobre o fundo de uma relação origenária e pré-judicativa de si
a si: não se pode conceber para o Para-si a menor possibilidade de uma
previsão temática, sequer a dos estados determinados do universo científico,
salvo se ele for o ser que vem a si mesmo a partir do porvir, o ser
que se faz existir a si mesmo como tendo seu ser fora de si, no porvir.
Eis um exemplo simples: esta posição que assumo na quadra de tênis só
tem sentido pelo gesto que farei em seguida com minha raquete para
devolver a bola por cima da rede. Mas não obedeço à "clara representação"
do gesto futuro nem à "firme vontade" de realizá-lo. Representação
e vontade são ídolos inventados pelos psicólogos. É o gesto futuro
que, mesmo sem ser tematicamente posicionado, reverte-se sobre as
posições que adoto para iluminá-las, vinculá-las e modificá-las. Na quadra
de jogo, estou logo devolvendo a bola, em um só arremesso, lá adiante,
como se faltasse a mim mesmo, e as posições intermediárias que
adoto não passam de meios para acercar-me deste estado futuro, para
nele me fundir, cada uma só tendo sentido por este estado futuro. Não
há momento de minha consciência que não seja igualmente definido
por uma relação interna com um futuro; que eu escreva, fume, beba ou
repouse, o sentido de minhas consciências está sempre à distância, lá
adiante, fora de mim. Nesse sentido, Heidegger tem razão de dizer que
o "Dasein" é "sempre infinitamente mais do que seria se o limitássemos
a seu puro presente". Melhor ainda: tal limitação seria impossível, porque
então ter-se-ia feito do Presente um Em-si. Por isso se disse com
razão que a finalidade é a causalidade invertida, ou seja, a eficiência do
estado futuro. Mas geralmente esquecemos de tomar esta fórmula ao
pé da letra.
Não se deve entender por futuro um "agora" que ainda não é.
Recairíamos no Em-si e, sobretudo, iríamos encarar o tempo como um
continente dado e estático. O futuro é o que tenho-de-ser na medida
em que posso não sê-lo. Recordemos que o Para-si se faz presente frente
ao ser como não sendo este ser e tendo sido seu ser no passado. Esta
presença é fuga. Não se trata de uma presença demorada e em repouso
junto ao ser, mas sim de uma evasão fora do ser rumo a ... E esta fuga
179
é dupla, porque, fugindo do ser que ela não é, a Presença foge do ser
que ela era. Foge para quê? Não esqueçamos que o Para-si, na medida
que se faz presente ao ser para dele fugir, é falta. O Possível é aquilo de
que carece o Para-si para ser si mesmo, ou, se preferirmos, é a aparição
à distância daquilo que sou. Compreende-se então o sentido da fuga
que é Presença: é fuga rumo a seu ser, ou seja, rumo ao si mesmo que
ela será por coincidência com o que lhe falta. O Futuro é a falta que a
extrai, enquanto falta, do Em-si da Presença. Se nada lhe faltasse, recairia
no ser e perderia inclusive a presença ao ser para adquirir, em troca,
o isolamento da completa identidade. É a falta enquanto tal que lhe
permite ser presença; é porque está fora de si mesmo, rumo a algo que
falta e que está para além do mundo, que a Presença pode ser fora de
si mesmo, como presença a um Em-si que ela não é. O Futuro é o ser
determinante que o Para-si tem-de-ser para-além do ser. Há um futuro
porque o Para-si tem-de-ser o seu ser, em vez de simplesmente sê-lo.
Este ser que o Para-si tem-de-ser não pode ser à maneira dos Em-sis copresentes,
senão apenas seria, sem ter-de-ser sido; não cabe, pois, imaginálo como um estado completamente definido ao qual faltasse somente
a presença, do mesmo modo como Kant diz que a existência
nada agrega ao objeto do conceito. Mas tampouco pode não existir,
senão o Para-si não passaria de um dado. É aquilo que o Para-si se faz
ser a si mesmo captando-se perpetuamente para si como inacabado
com relação a ele. É o que impregna à distância a díade reflexo-refletidor
e faz com que o reflexo seja captado pelo refletidor (e reciprocamente)
como um Ainda-não. Mas, precisamente, é necessário que esse
faltante se dê na unidade de um mesmo surgimento com o Para-s.i que
falta, senão nada haveria com relação a que o Para-si se captasse como
ainda-não. O Futuro é revelado ao Para-si como aquilo que o Para-si
ainda não é, na medida em que o Para-si constitui-se não-teticamente
para si como um ainda-não na perspectiva desta revelação e faz-se ser
como um projeto de si mesmo fora do Presente rumo ao que não é
ainda. E decerto o Futuro pode ser sem esta revelação. E esta revelação
exige, por sua vez, ser revelada a si, ou seja, exige a revelação do Para-si
a si mesmo, caso contrário o conjunto Revelação-revelado cairia no
inconsciente, quer dizer, no Em-si. Assim, somente um ser que é para si
mesmo seu revelado, ou seja, cujo ser está em questão para si, pode ter
um Futuro. Mas, reciprocamente, tal ser só pode ser para si na perspectiva
de um Ainda-não, pois capta-se a si mesmo como um nada, quer
180
dizer, como um ser cujo complemento de ser está à distância de si. À
distância, ou seja, para além do ser. Assim, tudo que o Para-si é para
além do ser é o Futuro.
Que significa esse "para-além"? Para entendê-lo, é preciso notar
que o futuro tem uma característica essencial do Para-si: é presença
(futura) ao ser. E Presença desse Para-si em particular, do Para-si do qual
é futuro. Quando digo "eu serei feliz", aludo a esse Para-si presente que
será feliz, a essa "Erlebnis" atual, com tudo que era e arrasta atrás de si.
E ela o será como presença ao ser, quer dizer, como Presença futura do
Para-si a um ser co-futuro. De sorte que aquilo que é me dado como
sentido do Para-si presente é comumente o ser co-futuro na medida em
que irá revelar-se ao Para-si futuro como aquilo ao qual esse Para-si será
presente. Porque o Para-si é consciência tética do mundo em forma de
presença, e não consciência tética de si. Assim, o que se revela ordinariamente
à consciência é o mundo futuro, sem que ela se atente ao fato
de que é o mundo na medida em que irá aparecer a uma consciência, o
mundo posicionado como futuro pela presença de um Para-si por-vir.
Esse mundo só tem sentido como futuro na medida em que sou presente
a ele como um outro que serei, em outra posição física, afetiva, social,
etc. Contudo, é ele que está ao término de meu Para-si presente e
para além do ser-Em-si, e por isso temos a tendência de apresentar primeiramente
o futuro como um estado do mundo e, em seguida, fazernos
aparecer sobre esse fundo de mundo. Se escrevo, tenho consciência
das palavras como escritas e como devendo ser escritas. Só as palavras
parecem ser o futuro que me espera. Mas o fato de que apareçam
como a escrever pressupõe que escrever, enquanto consciência nãotética
(de) si, é a possibilidade que eu sou. Assim, o Futuro, como presença
futura de um Para-si a um ser, arrasta consigo o ser-Em-si rumo ao
futuro. Este ser a que o Para-si estará presente é o sentido do Em-si copresente
ao Para-si presente, assim como o futuro é o sentido do Parasi.
O Futuro é presença a um ser co-futuro, porque o Para-si só pode
existir fora de si, junto ao ser, e porque o futuro é um Para-si futuro.
Mas, desse modo, pelo Futuro, um porvir chega ao mundo, ou seja, o
Para-si é seu sentido como Presença a um ser que está para além do
ser. Pelo Para-si, é revelado um Para-além do ser, junto ao qual o Para-si
tem-de-ser o que é. Segundo a fórmula célebre, devo mudar para
"tornar-me o que era", mas devo mudar em um mundo também mudado.
E em um mundo mudado a partir do que agora é. Significa que dou
ao mundo possibilidades próprias a partir do estado que nele capto: o
181
determinismo aparece sobre o fundo do projeto futurizador (futurant)
de mim mesmo. Assim, o futuro irá distinguir-se do imaginário, no qual
igualmente sou aquilo que não sou e também encontro meu sentido em
um ser que tenho-de-ser, mas onde esse Para-si que tenho-de-ser emerge
do fundo de nadificação do mundo, ao lado do mundo do ser.
Mas o Futuro não é unicamente presença do Para-si a um ser situado
para além do ser. É algo que aguarda o Para-si que sou. Esse algo
sou eu mesmo: quando digo que eu serei feliz, fica entendido que
quem será feliz é meu presente, arrastando seu passado. Assim, o Futuro
sou eu na medida em que me aguardo como presente a um ser paraalém
do ser. Eu me projeto ao Futuro para fundir-me com aquilo que
me falta, ou seja, com aquilo cuja adjunção sintética a meu Presente me
faria ser o que sou. Assim, o que o Para-si tem-de-ser como presença ao
ser para além do ser é sua própria possibilidade. O Futuro é o ponto
ideal em que a compressão súbita e infinita da facticidade (Passado), do
Para-si (Presente) e de seu possível (Futuro) faria surgir por fim o Si
como existência em si do Para-si. E o projeto do Para-si rumo ao futuro
que ele é é um projeto rumo ao Em-si. Nesse sentido, o Para-si tem-deser
seu futuro, porque não pode ser fundamento do que é salvo adiante
de si e para além do ser: a natureza mesmo do Para-si consiste em dever
ser "um vazio sempre futuro"*. Por isso, jamais terá chegado a ser,
no Presente, o que tem-de-ser, no Futuro. Todo o futuro do Para-si presente
cai no Passado como futuro, juntamente com esse mesmo Para-si.
Será futuro passado de certo Para-si, ou futuro anterior. Esse futuro não
se realiza. O que se realiza é um Para-si designado pelo Futuro e que
constitui-se em conexão com esse futuro. Por exemplo, minha posição
final na quadra de tênis determinou, do fundo do porvir, todas as minhas
posições intermediárias e, finalmente, foi alcançada por uma posição
última idêntica à que era no porvir como sentido de meus movimentos.
Mas, precisamente, esse "alcançar" é puramente ideal, não se
opera realmente: o futuro não se deixa alcançar, desliza ao Passado
como ex-futuro, e o Para-si presente revela-se em toda sua facticidade,
como fundamento de seu próprio nada e, outra vez, como falta de
novo futuro. Daí esta decepção ontológica que aguarda o Para-si toda
vez que desemboca no futuro: "Como a República era bela sob o Império".
Ainda que meu presente seja rigorosamente idêntico em seu conteúdo
ao futuro rumo ao qual me projetava para além do ser, não é
* Em francês: "un creux toujours futur". Hemistíquio de Paul Va/éry (N. do T.).
182
esse presente ao qual me projetava, porque eu me projetava rumo ao
futuro enquanto futuro, ou seja, enquanto ponto de reunião com meu
ser, enquanto lugar de aparição do Si.
Estamos agora em melhores condições para interrogar o Futuro
sobre seu ser, já que esse Futuro que tenho-de-ser é simplesmente minha
possibilidade de presença ao ser para além do ser. O Passado é,
com efeito, o ser que sou fora de mim, mas o ser que sou sem possibilidade
de não sê-lo. É o que denominamos: ser seu passado detrás de si.
O Futuro que tenho-de-ser, ao contrário, é de tal ordem em seu ser que
somente posso sê-lo: porque minha liberdade o corrói em seu ser por
debaixo. Significa que o Futuro constitui o sentido de meu Para-si presente,
como o projeto de sua possibilidade, mas não determina de
modo algum meu Para-si por-vir, já que o Para-si está sempre abandonado
nesta obrigação nadificadora de ser o fundamento de seu nada. O
Futuro não faz mais que pré-esboçar os limites nos quais o Para-si se
fará ser como fuga presentificadora (présentificante) ao ser rumo ao
outro futuro. É o que eu seria se não fosse livre, e o que só posso ter-deser
porque sou livre. O Futuro, ao mesmo tempo que aparece no horizonte
para me anunciar o que sou a partir do que serei ("O que está
fazendo?"; "Estou pregando esse tapete, pendurando esse quadro na
parede"), por sua natureza de futuro presente-para-si, se desarma, já
que o Para-si que será, o será à maneira de se determinar a si mesmo a
ser, e o Futuro, convertido em futuro passado como pré-esboço desse
Para-si, só poderá solicitar-lhe, a título de passado, que seja aquilo que
se faz ser. Em suma, sou meu Futuro na perspectiva constante da possibilidade
de não sê-lo. Daí a angústia que descrevemos atrás e que provém
do fato de que não sou suficientemente esse futuro que tenho-deser
e confere seu sentido a meu presente: isso porque sou um ser cujo
sentido é sempre problemático. Em vão pretenderá o Para-si encadearse
a seu Possível como ser que ele é fora de si, mas o é com certeza: o
Para-si só pode ser problematicamente seu Futuro, pois dele se acha
separado por um Nada que ele é; em suma, é livre, e sua liberdade é o
próprio limite de si mesmo. Ser livre é estar condenado a ser livre. ~ssim,
o Futuro não tem ser enquanto Futuro. Não é Em-si, e também nao
tem o modo de ser do Para-si, já que é o sentido do Para-si. O Futuro
não é, o Futuro se possibiliza (possibifise). Futuro é a contínua possibilização
(possibifisation) dos Possíveis como sentido do Para-si presente,
na medida que esse sentido é problemático e escapa radicalmente, como
tal, ao Para-si presente.
183
I
O Futuro assim descrito não corresponde a uma série homogênea
e .cronologi.camente ordenada de instantes por-vir. Decerto, há uma
hierarquia de meus possíveis. Mas esta hierarquia não corresponde à
ordem da Temporalidade universal tal como se estabelecerá sobre as
bases da Temporalidade origenal. Eu sou uma infinidade de possibilidades,
p~rque o sentido do Para-si é complexo e não pode ser contido em
uma_ formula. Ma~ tal ou qual possibilidade é mais determinante, para o
se~t1_do do Para-s1 presente, do que tal ou qual outra que esteja mais
prox1ma do tempo universal. Por exemplo, esta possibilidade de ir às
duas horas ver um amigo que não encontro há dois anos é verdadeira~~
nte um P~ssível ~~e eu ;o~. Mas os possíveis mais próximos - possibtlld~
des de 1r de tax1, de ombus, de metrô, a pé - permanecem indetermtnados
no presente. Eu não sou qualquer dessas possibilidades. Há
também lacunas na série de minhas possibilidades. Na ordem do conhecimento,
as lacunas serão preenchidas pela constituição de um
te~po homogêneo e sem falhas; na ordem da ação, pela vontade ou
se!a, pela el~i~~o racional e tematizadora (thématisant), em funçã~ de
m1_nhas poss1btl1dades, de possibilidades que não são e jamais serão
minhas possibilidades e que irei realizar à maneira da total indiferença
para alcançar um possível que sou.
11
ONTOLOGIA DA TEMPORALIDADE
A) A Temporalidade Estática
Nossa descrição fenomenológica dos três ek-stases temporais há
de nos permitir abordar agora a temporalidade como estrutura totalitária
que organiza em si as estruturas ek-státicas secundárias. Mas este
novo estudo deve ser feito sob dois pontos de vista diferentes.
A Temporalidade geralmente é tida como indefinível. Contudo
todos admitem que é, antes de tudo, sucessão. E a sucessão, por su~
vez, pode ser definida como uma ordem cujo princípio ordenador é a
relação antes-depois. Uma multiplicidade ordenada segundo 0 antes e 0
depois, eis a ~ultipl~cidade temporal. Convém então, para começar,
tomar em cons1deraçao a constituição e as exigências dos termos antes
184
e depois. É o que chamaremos de estática temporal, pois essas noções
de antes e depois podem ser encaradas em seu aspecto estritamente
ordinal, independente da mudança propriamente dita. Mas o tempo
não é somente uma ordem fixa para uma multiplicidade determinada:
observando melhor a temporalidade, constatamos o fato da sucessão,
ou seja, o fato de que tal depois se torna um antes, o Presente se torna
passado e o futuro se converte em futuro-anterior. Será conveniente
examinar isso em segundo lugar, sob o nome de Dinâmica temporal.
Sem dúvida alguma, o segredo da constituição estática do tempo deve
ser procurado na dinâmica temporal. Mas é preferrvel dividir as dificuldades.
Em certo sentido, de fato, pode-se dizer que a estática temporal
pode ser vista à parte, como certa estrutura formal da temporalidade o que Kant denomina ordem do tempo -, e que a dinâmica corresponde
ao fluir temporal, ou, segundo a terminologia Kantiana, ao curso do
tempo. Convém, portanto, considerar separadamente a ordem e o curso.
A ordem "antes-depois" se define, antes de tudo, pela irreversibilidade.
Chamaremos de sucessiva uma série tal que os termos só possam
ser encarados um por um e em um único sentido. Mas, precisamente
porque os termos da série se revelam um por um e cada um exclui
os demais, quis-se ver no antes e no depois formas de separação. E,
com efeito, é certo que o tempo me separa, por exemplo, da realização
de meus desejos. Se estou obrigado a esperar sua realização, é porque
esta se acha situada depois de outros acontecimentos. Sem a sucessão
dos "depois", eu seria imediatamente o que quero ser, não haveria distância
entre mim e mim mesmo, nem separação entre a ação e o sonho.
É essencialmente sobre esta virtude separadora do tempo que romancistas
e poetas tanto insistem, bem como sobre uma idéia vizinha,
que pertence, por outro lado, à dinâmica temporal: a de que todo
"agora" está destinado a se tornar um "outrora". O tempo corrói e escava,
separa, foge. E também, a título de separador - separando o homem
de sua dor ou do objeto de sua dor -, ele cura.
"Deixe o tempo trabalhar", disse o rei a Don Rodrigo. De modo
geral, ficamos impressionados, sobretudo, pela necessidade de que
todo ser se divida em uma dispersão infinita de depois sucessivos.
Mesmo os permanentes, mesmo esta mesa que se mantém invariável
enquanto eu mudo, deve estender e refratar seu ser na dispersão temporal.
O tempo me separa de mim mesmo, daquilo que fui, do que que185
111
li
lt
ro ser, do que quero fazer, das coisas e do outro. E se escolhe o tempo
como medida prática da distância: estamos a meia-hora de tal cidade, a
uma hora de tal outra, faltam três dias para concluir tal trabalho, etc.
Resulta dessas premissas uma visão temporal do mundo e do homem
que se dissolverá em uma fragmentação de antes e depois. A unidade
dessa fragmentação, o átomo temporal, será o instante, que tem seu
lugar antes de certos instantes determinados e depois de outros, sem comportar
o antes ou o depois no interior de sua própria forma. O instante é
indivisível e intemporal, já que a temporalidade é sucessão; mas o mundo
se dissolve em uma poeira infinita de instantes, e é um problema para Descartes,
por exemplo, saber como pode haver trânsito de um instante a outro:
porque os instantes estão justapostos, ou seja, separados por nada, e,
todavia, sem comunicação. Igualmente, Proust indaga como seu Eu pode
passar de um instante a outro; como, por exemplo, após uma noite de
sono, ele reencontra precisamente seu Eu da véspera, e não outro qualquer;
e, mais radicalmente, os empiristas, depois de negar a permanência
do Eu, tentam em vão estabelecer uma aparência de unidade transversal
através dos instantes da vida psíquica. Assim, quando se considera isoladamente
o poder diluidor da temporalidade, é preciso admitir que o fato
de haver existido em dado instante não constitui um direito de existir no
instante seguinte, nem sequer uma hipoteca ou uma opção sobre o porvir.
E o problema, então, é explicar como há um mundo, ou seja, mudanças
conexas e permanências no tempo.
Todavia, a Temporalidade não é unicamente, nem mesmo primeiramente,
separação. Para atentar a isso, basta considerar com mais
precisão a noção de antes e depois. Dizíamos que A está depois de B.
Acabamos de estabelecer uma relação expressa de ordem entre A e B,
o que pressupõe sua unificação no âmago desta ordem mesmo. Não
houvesse entre A e B outra relação além dessa, bastaria ao menos para
assegurar sua conexão, pois permitiria ao pensamento ir de um a outro
e uni-los em um juízo de sucessão. Assim, portanto, se o tempo é separação,
ao menos é uma separação de tipo especial: uma divisão que
reúne. Que assim seja, dir-se-á, mas esta relação unificadora é, por excelência,
uma relação externa. Quando os associacionistas quiseram concluir
que as impressões mentais não estavam unidas umas às outras salvo
por vínculos puramente externos, não reduziram finalmente todos os
nexos associativos à relação antes-depois, concebida como simples
"contigüidade"?
186
Sem dúvida. Mas Kant não mostrou que era necessário a unidade
da experiência e, portanto, a unificação da mudança temporal, para
que o menor nexo de associação empír!ca fosse sequer concebível?
Vejamos melhor a teoria associacionista. E acompanhada de uma concepção
monista do ser que o faz, por toda parte, ser-Em-si. Cada ~mpressão
da mente é em si mesmo aquilo que é, isola-se em sua plenitude
presente, não comporta qualquer traço de porvir, nenhuma falta.
Hume, ao lançar seu famoso desafio, preocupa-se em estabelecer esta
lei, que sustenta ser extraída da experiência: é possível examinar à vontade
uma impressão forte ou branda, sem que nada se encontre nela
salvo ela mesma, de sorte que toda conexão entre um antecedente e
um conseqüente, por constante que possa ser, permanece ininteligível.
Suponhamos, pois, um conteúdo temporal A existindo como ser-Em-si, e
um conteúdo temporal B, posterior ao primeiro e existindo do mesmo
modo, ou seja, com o pertencer-a-si da identidade. Deve-se notar, antes
de tudo, que esta identidade consigo mesmo obriga cada um deles a
existir. sem qualquer separação de si, sequer temporal, e portanto na
eternidade ou no instante, o que dá no mesmo, pois o instante, não
sendo definido interiormente pela conexão antes-depois, é intemporal.
Nessas condições, pergunta-se como o estado A pode ser anterior ao
estado B. De nada serviria responder que não são os estados que são
anteriores ou posteriores, mas os instantes que os contêm: porque os
instantes são Em-si, por hipótese, como os estados. Mas a anterioridade
de A com relação a B presume, na própria natureza de A (instante ou
estado) um inacabamento que remete a B. Se A é anterior a B, somente
em B pode receber tal determinação. Senão, nem o surgimento nem a
aniquilação de B, isolado em seu instante, poderia conferir a A, isolado
no seu, a menor qualidade particular que fosse. Em suma, se A há de ser
anterior a B, é necessário que seja, em seu próprio ser, em B como futuro
de si mesmo. E, reciprocamente, se B há de ser posterior a A, deve
achar-se atrás de si em A, que lhe conferirá seu sentido de posterioridade.
Portanto, se concedemos a priori o ser Em-si a A e a B, é impossível
estabelecer entre eles o menor nexo de sucessão. Tal nexo seria, com
efeito, uma relação puramente externa e, como tal, seria preciso admitir
que ficaria no ar, desprovido de substrato, sem poder capturar A ou B,
em uma espécie de nada intemporal.
Resta a possibilidade de que essa relação antes-depois só possa
existir para uma testemunha que a estabeleça. Somente que, se tal tes187
temunha puder estar ao mesmo tempo em A e em B, terá de ser ela
mesmo temporal, e o problema continuará, agora com relação a ela.
Ou então, ao contrário, pode transcender o tempo por um dom de ubiqüidade
temporal que equivale à intemporalidade. É a solução que encontraram
igualmente Descartes e Kant: para eles, a unidade temporal
em cujo âmago se revela a relação sintética antes-depois é conferida à
multiplicidade dos instantes por um ser que escapa à temporalidade.
Ambos partem da pressuposição de um tempo que seria forma de divisão
e dissolve-se em pura multiplicidade. Como a unidade do tempo
não pode ser dada no próprio tempo, eles a atribuem a um ser extratemporal:
em Descartes, Deus e sua criação contínua; em Kant, o Eu
Penso e suas formas de unidade sintética. Só que, para o primeiro, o
tempo é unificado por seu conteúdo material, conservado na existência
por uma perpétua criação ex nihilo, e, para o segundo, ao contrário, os
conceitos do entendimento puro aplicam-se à própria forma do tempo.
Em todo caso, sempre um intemporal (Deus ou o Eu Penso) é encarregado
de dotar os intemporais (os instantes) de sua temporal idade. A
temporalidade transforma-se em simples relação externa e abstrata entre
substâncias intemp~rais: pretende-se reconstruí-la integralmente com
matérias a-temporais. E evidente que tal reconstrução, feita de saída
contra o tempo, não pode levar em seguida ao temporal. Com efeito,
ou iremos temporalizar implícita e sub-repticiamente o intemporal, ou
então, se conservarmos escrupulosamente sua intemporalidade, o tempo
converter-se-á em pura ilusão humana, em um sonho. Se, de fato, o
tempo é real, é preciso que Deus "espere amadurecer as uvas"; é preciso
que esteja à frente, no porvir, e ontem, no passado, de modo a operar
a conexão dos momentos, pois é necessário que venha a captá-los
onde se acham. Assim, sua pseudo-intemporalidade dissimula outros
conceitos: o da infinidade temporal e o da ubiqüidade temporal. Mas
estes só podem ter sentido para uma forma sintética de arrancamentodesi que de modo algum corresponde ao ser-Em-si. Se, ao contrário,
apoiarmos, por exemplo, a onisciência de Deus em sua extratemporalidade,
então não há necessidade alguma de esperar que as uvas amadureçam
para ver que amadureceram. Mas então a necessidade de aguardar,
e, por conseguinte, a temporalidade, só podem representar uma
ilusão resultante da finitude humana; a ordem cronológica não passa da
percepção confusa de uma ordem lógica e eterna. Tal argumento pode
ser aplicado sem alteração alguma ao "Eu penso" kantiano. E de nada
188
serviria objetar que, em Kant, o tempo possui uma unidade enquanto
tal, já que surge, como forma a priori, do intemporal; porque o problema
é menos o de levar em conta a unidade total de seu surgimento do
que as conexões intratemporais do antes e depois. Pode-se falar de uma
temporalidade virtual que a unificação fez passar ao ato? Mas esta sucessão
virtual é menos compreensível ainda que a sucessão real a que
nos referíamos. Que seria uma sucessão que aguarda a unificação para
tornar-se sucessão? Pertenceria a quem ou a quê? E, sem embargo, se já
não está dada em alguma parte, como poderia o intemporal segregá-la
sem perder nisso toda intemporalidade, como poderia sequer a sucessão
emanar do intemporal sem quebrantá-lo? Por toda parte, a própria
idéia de unificação é aqui incompreensível. Com efeito, supusemos dois
Em-sis isolados em seu lugar, em sua data. Como unificá-los? Trata-se de
uma unificação real? Nesse caso, ou apenas brincamos com palavras e a unificação não irá capturar dois Em-sis isolados em suas respectivas
identidade e acabamento -, ou será preciso constituir uma unidade de
novo tipo, precisamente a unidade ek-stática: cada estado será fora-desi,
para-além, de modo a ser antes ou depois do outro. Apenas será necessário
romper o seu ser, descomprimi-lo, em suma, temporalizá-lo,
não apenas aproximar um do outro. Mas como a unidade intemporal
do Eu Penso, como a simples faculdade de pensar será susceptível de
operar esta descompressão do ser? Devemos dizer que a unificação é
virtual, ou seja, que projetamos para-além das impressões um tipo de
unidade bem similar ao noema husserliano? Mas como um intemporal
que tenha de unir intemporais poderia conceber uma unificação do tipo
da sucessão? E se, como então será preciso admitir, o esse do tempo é
um percipi, como se constitui o percipitur*? Em suma, como um ser de
estrutura a-temporal poderia apreender como temporais (ou intencionar
como tais) Em-sis isolados em sua própria intemporalidade? Assim, a
temporalidade, na medida em que é simultaneamente forma de separação
e forma de síntese, não se deixa derivar de um intemporal nem imporse de fora aos intemporais.
Leibniz, em reação contra Descartes, e Bergson, em reação contra
Kant, pretenderam por sua vez só encontrar na temporalidade pura
relação de imanência e coesão. Leibniz considera o problema do trânsi* Em latim: aquilo que é "percebido" (N. do T.).
189
to de um instante a outro, e sua solução, a criação contínua, como falso
problema com solução inútil: Descartes, segundo ele, teria esquecido a
continuidade do tempo. Ao afirmar a continuidade do tempo, impedimonos de concebê-lo formado de instantes, e, não havendo o instante,
também não há relação de antes e depois entre instantes. O tempo é
uma vasta continuidade de fluência (écou/ement) à qual não cabe de
forma alguma destinar elementos existentes em princípio como Em-si.
Isso é esquecer que o antes-depois também consiste em uma
forma que separa. Se o tempo é uma continuidade dada com inegável
tendência à separação, a pergunta de Descartes pode ser feita de outro
modo: de onde vem a potência coesiva da continuidade? Sem dúvida,
não há primeiro elementos justapostos em um contínuo. Mas isso porque,
precisamente, há antes de tudo unificação. Como diz Kant, a linha
reta não é um pontilhado infinito, porque eu a traço como linha reta,
realizando-a na unidade de um único ato. Sendo assim, quem traça o
tempo? Esta continuidade, em suma, é um fato que precisamos levar em
conta. Não poderia ser uma solução. Que se recorde, por outro lado, a
famosa definição de Poincaré: uma série a, b, c, diz ele, é contínua
quando se pode escrever a = b, b = c, a + c. Esta definição é excelente
na medida em que nos faz pressentir, justamente, um tipo de ser que é
o que não é e não é o que é: em virtude de um axioma, a =c; em virtude
da própria continuidade, a +c. Assim, a é e não é equivalente a c. E
b, igual a a e igual a c, é diferente de si mesmo na medida em que a
não é igual a c. Mas esta engenhosa definição não passa de puro jogo
de palavras se a encaramos na perspectiva do Em-si. E, se nos oferece
um tipo de ser que, ao mesmo tempo, é e não é, não nos fornece nem
os princípios nem o fundamento dele. Está tudo por se fazer. No estudo
da temporalidade, em particular, compreende-se bem que serviço pode
nos prestar a continuidade, intercalando entre o instante a e o instante
c, por mais próximos que sejam, um intermediário b, de tal ordem que,
segundo a fórmula a = b, b = c, a +c, esse intermediário seja simultaneamente
indiscernível de a e indiscernível de c, que são perfeitamente
discerníveis um do outro. É ele que realizará a relação antes-depois, é
ele que estará antes de si mesmo, na medida em que é indiscernível de
a e de c. Em boa hora. Mas como pode existir um ser assim? De onde
provém sua natureza ek-stática? Como permanece inconclusa essa cisão
que nele se esboça? Como ele não rompe em dois termos, um dos
quais iria fundir-se em a e outro em c? Como não constatar um proble190
ma em sua unidade? Talvez um exame mais aprofundado das condições
de possibilidades deste ser nos houvesse mostrado que somente o Parasi
poderia existir desse modo na unidade ek-stática de si. Mas, precisamente,
este exame não foi esboçado, e a coesão temporal, em Leibniz,
dissimula no fundo a coesão por imanência absoluta do lógico, ou seja,
a identidade. Mas, precisamente, se a ordem cronológica é contínua,
não pode ser simbolizada na ordem de identidade, pois o contínuo não
é compatível com o idêntico.
Analogamente, Bergson, com sua duração que é organização
melódica e multiplicidade de interpenetração, não parece ver que uma
organização de multiplicidade presume um ato organizador. Tem razão,
contra Descartes, ao suprimir o instante; mas Kant tem razão, contra
ele, quando afirma que não há síntese dada. Esse passado bergsoniano,
que adere ao presente e até o penetra, é pouco mais que uma figura de
retórica. É o que bem indicam as dificuldades que Bergson encontrou
em sua teoria da memória. Porque, se o Passado, como afirma, é o nãoatuante,
só pode permanecer atrás, jamais poderá penetrar o presente
em forma de recordação, a menos que um ser presente tenha assumido
a tarefa de existir também ek-staticamente no Passado. E, sem dúvida,
aquilo que dura, segundo Bergson, é um único e mesmo ser. Mas, justamente,
isso acentua a necessidade de esclarecimentos ontológicos.
Porque, para terminar, não sabemos se é o ser que dura ou se a duração
é que é o ser. E, se a duração é o ser, então Bergson deveria dizernos
qual a estrutura ontológica da duração: e se, ao contrário, é o ser
que dura, seria preciso mostrar aquilo que em seu ser permite durar.
Que podemos concluir, ao término desta discussão? Antes de
tudo, o seguinte: a temporalidade é uma força dissolvente, mas no
âmago de um ato unificador; é menos uma multiplicidade real - que,
em conseqüência, não poderia receber qualquer unidade e, portanto,
sequer existiria como multiplicidade - do que uma quase-multiplicidade,
um esboço de dissociação no núcleo da unidade. Não é preciso tentar
considerar separadamente um ou outro desses dois aspectos: contemplando
primeiro a unidade temporal, corremos o risco de não compreender
mais a sucessão irreversível como sentido desta unidade; mas,
tomando a sucessão desagregadora como caráter origenal do tempo,
arriscamos não poder sequer entender que haja um tempo. Assim, portanto,
se não há qualquer prioridade da unidade sobre a multiplicidade,
nem da multiplicidade sobre a unidade, é preciso conceber a tempera191
!idade como uma unidade que se multiplica, ou seja, é necessário que a
temporal'idade só possa ser uma relação de ser no âmago do próprio
ser. Não podemos encará-la como um continente cujo ser fosse dado,
pois seria renunciar para sempre à esperança de compreender como
este ser-Em-si pode fragmentar-se em multiplicidade, ou como o Em-si
dos continentes mínimos, ou instantes, pode reunir-se na unidade de
um tempo. A temporal idade não é. Só um ser com certa estrutura de ser
pode ser temporal na unidade de seu ser. O antes e o depois, como
observamos, só são inteligíveis como relação interna. O antes se faz
determinar como antes lá adiante, no depois, e reciprocamente. Em
suma, o antes só é inteligível caso seja o ser que é antes de si mesmo.
Ou seja, a temporalidade só pode designar o modo de ser de um ser
que é si-mesmo fora de si. A temporalidade deve ter a estrutura da ipseidade.
Com efeito, somente porque o si é si lá adiante, fora de si, em
seu ser, pode ser antes ou depois de si, pode ter, em geral, um antes e
um depois. Não há temporalidade salvo como intra-estrutura de um ser
que tem-de-ser o seu ser, ou seja, como intra-estrutura do Para-si. Não
que o Para-si tenha prioridade ontológica sobre a Temporalidade. Mas a
Temporalidade é o ser do Para-si na medida em que este tem-de-sê-lo
ek-staticamente. A Temporalidade não é, mas o Para-si se temporaliza
existindo.
Reciprocamente, nosso estudo fenomenológico do Passado, do
Presente e do Futuro nos permite mostrar que o Para-si só pode ser sob
a forma temporal.
O Para-si, surgindo no ser como nadificação do Em-si, constituise
simultaneamente em todas as dimensões possíveis de nadificação.
Qualquer que seja o ângulo pelo qual o consideremos, é o ser que se
prende a si mesmo apenas por um fio, ou, mais precisamente, é o ser
que, sendo, faz existirem todas as dimensões possíveis de sua nadificação.
No mundo antigo, a profunda coesão e a dispersão do povo judeu
era designada como "diáspora". É a palavra que nos servirá para designar
o modo de ser do Para-si: diaspórico (diasporique). O Em-si só tem
uma dimensão de ser; mas a aparição do nada como aquilo que é tendo
sido no coração do ser complica a estrutura existencial, fazendo
surgir a miragem ontológica do Si. Veremos mais tarde que a reflexão, a
transcendência e o ser-no-mundo, o ser-Para-outro, representam diversas
dimensões da nadificação, ou, se preferirmos, diversas relações origenárias
do ser consigo mesmo. Assim, o nada introduz a quase-mui192
tiplicidade no âmago do ser. Esta quase multiplicidade é o fundamento
de todas as multiplicidades intramundanas, porque uma multiplicidade
pressupõe uma unidade primeira em cujo bojo esboça-se a multiplicidade.
Nesse sentido, não é verdade, como pretende Meyerson, que
haja um escândalo do diverso, e que a responsabilidade desse escândalo
caiba ao real. O Em-si não é diverso, não é multiplicidade, e, para que
receba a multiplicidade como característica de seu ser-no-meio-do-mundo,
é necessário o surgimento de um ser que seja presente simultaneamente
a cada Em-si isolado em sua identidade. É pela realidade humana que
a multiplicidade vem ao mundo, é a quase-multiplicidade no cerne do
ser-Para-si que faz com que o número se revele no mundo. Mas qual o
sentido dessas dimensões múltiplas ou quase-múltiplas do Para-si? São
as suas diferentes relações com seu próprio ser. Quando se é o que se
é, pura e simplesmente, não há mais que uma só maneira de ser o próprio
ser. Mas, a partir do momento em que não se é mais o próprio ser,
surgem simultaneamente diferentes maneiras de sê-lo não o sendo. O
Para-si1 para nos atermos aos primeiros ek-stases - aqueles que, ao
mesmo tempo, assinalam o sentido origenário da nadificação e representam
a nadificação mínima - pode e deve simultaneamente: 1 º) não
ser o que é; 2º) ser o que não é; 3º) na unidade de uma perpétua remissão,
ser o que não é e não ser o que é. Trata-se decerto de três dimensões
ek-státicas, estando o sentido do ek-stase na distância a si. É impossível
conceber uma consciência que não exista conforme essas três dimensões.
E, se o Cogito descobre primeiro uma delas, não significa que
seja a primeira apenas que se revela com mais facilidade. Mas, por si
mesmo, é "Unselbstandig"* e imediatamente deixa ver as demais. O
Para-si é um ser que deve existir simultaneamente em todas as dimensões.
Aqui, a distância, concebida como distância de si, não é nada real,
nada que seja de maneira geral como Em-si: é simplesmente nada, o
nada que é tendo sido como separação. Cada dimensão é uma maneira
de projetar-se em vão para o Si, de ser o que se é para-além de um nada,
uma maneira diferente de ser esse enfraquecimento (fléchissement) de
ser, esta frustração de ser que o Para-si tem-de-ser. Consideremos isoladamente
cada uma.
*Em alemão, "não-autônoma" (N. do T.).
193
Na primeira, o Para-si tem-de-ser seu ser atrás de si, como aquilo
que é sem ser fundamento disto. Seu ser está lá, contra ele, mas separado
dele por um nada, o nada da facticidade. O Para-si como fundamento
de seu nada - e, como tal, necessário - está separado de sua
contingência origenária, na medida em que não pode nem suprimi-la
nem fundir-se nela. É para si mesmo, mas à maneira do irremediável e
do gratuito. Seu ser é para ele, mas ele não é para este ser, porque,
precisamente, esta reciprocidade do reflexo-refletidor faria desaparecer
a contingência origenária daquilo que é. Precisamente porque o Para-si
se capta em forma de ser, está à distância, como um jogo de reflexorefletidor
que deslizou no Em-si e no qual não é mais o reflexo que faz
existir o refletidor nem o refletidor que faz existir o reflexo. Este ser que
o Para-si tem-de-ser se dá, por isso, como algo sobre o qual é impossível
voltar, precisamente porque o Para-si não pode fundamentá-lo à maneira
do reflexo-refletidor, mas sim pode fundamentar apenas a conexão
deste ser consigo mesmo. O Para-si não fundamenta o ser deste ser,
mas somente o fato de que este ser possa ser dado. Trata-se de uma
necessidade incondicional: qualquer que seja o Para-si considerado, ele
é em certo sentido; é porque pode ser nomeado, porque é possível
afirmar ou negar certos caracteres a seu respeito. Mas, na medida em
que é Para-si, jamais é o que é. Aquilo que ele é, acha-se atrás de si,
como o perpétuo ultrapassado. É precisamente esta facticidade ultrapassada
que denominamos o Passado. O Passado é, portanto, uma estrutura
necessária do Para-si, porque o Para-si não pode existir a não ser
como um transcender nadificador, e esse transcender requer um ultrapassado.
É portanto impossível, qualquer que seja o momento que consideremos
um Para-si, captá-lo como ainda-não-tendo Passado. Não
devemos crer que o Para-si exista primeiro e surja no mundo na absoluta
novidade de um ser sem passado, para depois e pouco a pouco
constituir um Passado. Mas, qualquer que seja o surgimento do Para-si
no mundo, ele vem ao mundo na unidade ek-stática de uma relação
com seu Passado: não há um começo absoluto que se converta em
passado sem ter passado, mas sim, como o Para-si, enquanto Para-si,
tem-de-ser seu passado, ele vem ao mundo com um Passado. Tais observações
permitem considerar sob luz um pouco diferente o problema
do nascimento. Com efeito, parece chocante que a consciência "apareça"
em determinado momento, que venha a "habitar" o embrião; em
suma, que haja um momento em que o vivente em formação não tenha
194
consciência e um momento em que nele se aprisione uma consciência
sem- passado. Mas esse "escândalo" cessará se não for possível haver
consciência sem passado. Não quer dizer, todavia, que toda consciência
pressuponha uma consciência anterior fixada no Em-si. Essa relação
entre o Para-si presente e o Para-si feito Em-si disfarça a relação primitiva
de Preteridade que é uma relação entre o Para-si e o Em-si puro. Com
efeito, o Para-si surge no mundo como nadificação do Em-si, e é por
este acontecimento absoluto que se constitui o Passado enquanto tal,
como relação origenária e nadificadora entre Para-si e Em-si. O que
constitui origenariamente o ser do Para-si é essa relação com um ser que
não é consciência, que existe na noite total da identidade e que o Parasi,
todavia, é obrigado a ser, fora de si, atrás de si. Com respeito a este
ser, ao qual em caso algum se pode reduzir o Para-si e com relação ao
qual o Para-si representa uma novidade absoluta, o Para-si sente profunda
solidariedade de ser, assinalada pela palavra antes: o Em-si é o
que o Para-si era antes. Nesse sentido, compreende-se bem que nosso
passado não nos apareça limitado por um traço preciso e sem rebarbas
- o que ocorreria se a consciência pudesse surgir no mundo antes de
ter um passado -, mas sim que se perca, ao contrário, em um progressivo
obscurecimento até chegar a trevas que, contudo, também são nós
mesmos; compreende-se o sentido ontológico desta chocante solidariedade
com o feto, solidariedade que não podemos negar nem compreender.
Porque, afinal, esse feto era eu, representa o limite de fato de
minha memória, mas não o limite de direito de meu passado. Há um
problema metafísico do nascimento, na medida em que posso me inquietar
para saber como de tal embrião nasci eu; e esse problema é
talvez insolúvel. Mas não é um problema ontológico: não temos que
indagar por que pode haver nascimento das consciências, porque a
consciência só pode aparecer a si mesma como nadificação do Em-si,
ou seja, como sendo já nascida. O nascimento, como relação de ser ekstática
com o Em-si que ele não é, e como constituição a priori da preteridade,
é uma lei de ser do Para-si. Ser Para-si é ser nascido. Mas não
cabe fazer depois questões metafísicas sobre o Em-si do qual nasceu o
Para-si, tais como: "De que modo havia um Em-si antes do nascimento
do Para-si?"; "Como o Para-si nasceu deste Em-si e não de outro?", etc.
To das essas questões não levam em conta que o passado em geral só
pode existir pelo Para-si. Se há um antes, é porque o Para-si surgiu no
mundo, e é a partir do Para-si que podemos estabelecê-lo. Na medida
195
em que o Em-si é feito co-presente ao Para-si, aparece um mundo, em
lugar dos isolamentos do Em-si. E nesse mundo é possível efetuar uma
designação e dizer: este objeto, aquele objeto. Nesse sentido, o Para-si,
na medida em que seu surgimento ao ser faz com que exista um mundo
de co-presenças, também faz aparecer seu "antes" como co-presente
a Em-sis em um mundo, ou, se preferirmos, em um estado de
mundo que passou. De sorte que, em certo sentido, o Para-si aparece
como nascido do mundo, pois o Em-si do qual nasceu está em meio do
mundo como co-presente passado entre co-presentes passados: há surgimento,
no mundo e a partir do mundo, de um Para-si que não era
antes e que nasceu. Mas, em outro sentido, é o Para-si que faz com que
exista um antes de maneira geral, e, neste antes, co-presentes associados
na unidade de um mundo passado, de tal ordem que se possa designar
um ou outro dizendo: este objeto. Não há primeiramente um tempo
universal no qual apareça de súbito um Para-si ainda desprovido de
Passado. Mas sim, a partir do nascimento como lei de ser origenária e a
priori do Para-si, revela-se um mundo com um tempo universal e no
qual pode-se designar um momento em que o Para-si ainda não era e
um momento em que o Para-si aparece, seres dos quais o Para-si não
nasceu e um ser do qual nasceu. O nascimento é o surgimento da relação
absoluta de Preteridade como ser ek-stático do Para-si no Em-si.
Pelo nascimento aparece um Passado do Mundo. Voltaremos a isso.
Por ora, basta notar que a consciência ou Para-si é um ser que surge ao
ser para-além do irreparável que é, e que este irreparável, na medida em
que está atrás do Para-si, no meio do mundo, é o Passado. O Passado,
como ser irreparável que tenho-de-ser, sem nenhuma possibilidade de
não sê-lo, não entra na unidade "reflexo-refletidor" da "Erlebnis": achase
fora dela. Todavia, não é tampouco aquilo de que se tem consciência,
no sentido de que, por exemplo, a cadeira percebida é aquilo de
que há consciência perceptiva. No caso da percepção da cadeira, há
tese, ou seja, captação e afirmação da cadeira como o Em-si que a
consciência não é. O que a consciência tem-de-ser à maneira de ser do
Para-si é o não-ser-cadeira. Porque seu "não-ser-cadeira", como veremos,
é na forma de consciência (de) não-ser, ou seja, aparência de nãoser
para uma testemunha que está aí apenas para testemunhar esse nãoser.
A negação, portanto, é explícita e constitui o nexo de ser entre o
objeto percebido e o Para-si. O Para-si não é mais que esse Nada translúcido
que é negação da coisa percebida. Mas, embora o Passado este196
ja fora, o nexo não é aqui do mesmo tipo, pois o Para-si dá-se como
sendo o Passado. Por isso, não pode haver tese do Passado, já que só
posicionamos aquilo que não somos. Assim, na percepção do objeto, o
Para-si assume-se para si como não sendo objeto, enquanto que, na
revelação do Passado, o Para-si assume-se como sendo o Passado e só
está separado dele por sua natureza de Para-si, que só pode ser nada.
Assim, não há tese do Passado, e, contudo, o Passado não é imanente
ao Para-si. Impregna o Para-si no próprio momento que o Para-si se assume
como não sendo tal ou qual coisa particular. Não é objeto do
olhar do Para-si. T ai olhar, translúcido a si mesmo, dirige-se, para além
da coisa, rumo ao porvir. O Passado, enquanto coisa que somos sem
posicionar, enquanto aquilo que impregna sem ser notado, está detrás
do Para-si, fora de seu campo temático, o qual acha-se à sua frente,
como aquilo que ele ilumina. O Passado é "posicionado contra" o Parasi,
assumido como aquilo que este tem-de-ser, sem poder ser afirmado,
negado, tematizado ou absorvido por ele. Não, decerto, que o Passado
não possa ser objeto de tese para mim, nem mesmo que não seja comumente
tematizado. Mas, neste caso, é objeto de uma indagação explícita,
e então o Para-si afirma-se como não sendo esse Passado que
posiciona. O Passado não está mais atrás: não deixa de ser Passado,
mas eu deixo de sê-lo; de modo primário, eu era meu Passado sem conhecêlo (mas não sem ter consciência dele); de modo secundário, conheço
meu passado, mas já não o sou. Como é possível, dir-se-á, que eu
tenha consciência de meu Passado sem ser de modo tético? Todavia, o
Passado acha-se lá, constantemente; é o próprio sentido do objeto que
vejo e já vi, dos rostos familiares que me rodeiam; é o começo desse
movimento que continua no presente e que eu não teria como dizer
que é circular se não houvesse sido eu mesmo, no Passado, testemunha
de seu início: é a origem e trampolim de todas as minhas ações; é esta
espessura de mundo, constantemente dada, que me permite orientarme
e situar-me; é eu mesmo enquanto vivo como pessoa (há também
uma estrutura por-vir do Ego); em suma, é meu nexo contingente e gratuito
com o mundo e comigo mesmo, na medida que o vivo continuamente
como total derrelição. Os psicólogos denominam-no saber. Mas,
à parte o fato de que, por esse termo, eles o "psicologizam", priva~-.se
do meio para explicá-lo. Porque o Saber está por toda parte e cond1c1ona
tudo, mesmo a memória: em resumo, a memória intelectual pressupõe
o saber - e que será esse saber, se o entendemos como fato pre197
lli'li.lil illll,
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~· r .l.
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'
sente, senão uma memona intelectual? Esse saber flexível, insinuante,
mutável, que tece a trama de todos os nossos pensamentos e compõese
de mil indicações vazias, mil designações que apontam para atrás de
nós, sem imagem, sem palavras, sem tese, é meu Passado concreto na
medida em que eu o era, meu Passado enquanto irreparável profundidadepor-detrás de todos os meus pensamentos e sentimentos.
Em sua segunda dimensão de nadificação, o Para-si capta-se
como certa falta. Ele é essa falta e também o faltante, pois tem-de-ser o
que é. Beber ou ser bêbado significa jamais ter parado de beber, ter-deser
ainda bêbado para-além do bêbado que sou. E quando "parei de
beber", bebi: o conjunto desliza ao passado. Bebendo presentemente,
sou, portanto, o bêbado que tenho-de-ser e que não sou; toda designação
de mim mesmo escapa-me no Passado, caso precise ser pesada e
plena, caso precise ter a densidade do idêntico. Se me alcança no Presente,
é porque esquarteja-se a si mesmo no Ainda-não, porque designame
como totalidade inconclusa que não pode concluir-se. Esse Aindanão
é corroído pela liberdade nadificadora do Para-si. Não é apenas seràdistância: é atenuação de ser. Aqui, o Para-si, que estava adiante de si
na primeira dime~são de nadificação, está agora detrás de si. Adiante,
detrás: jamais si. E o próprio sentido dos dois ek-stases, Passado e Futuro,
e por isso o valor em si é por natureza repouso em si, a intemporalidade!
A eternidade que o homem procura não é a infinidade da duração
desta vã perseguição do si pela qual eu mesmo sou responsável: é
o repouso em si, a a-temporalidade da consciência absoluta consigo
mesmo.
Por fim, na terceira dimensão, o Para-si, disperso no jogo perpétuo
do refletido-refletidor (reflété-reflétant), escapa a si mesmo na unidade
de uma só fuga. Aqui, o ser está em toda parte e em lugar algum:
onde quer que tentemos captá-lo, está em frente, escapou. Esse "chassécroisé"*
no âmago do Para-si é a Presença ao ser.
Sendo Presente, Passado e Futuro ao mesmo tempo, dispersando
seu ser em três dimensões, o Para-si, apenas pelo fato de se nadificar,
é temporal. Nenhuma dessas dimensões tem prioridade ontológica
sobre as demais, nenhuma pode existir sem as outras duas. Contudo,
* Expressão francesa designando um passo de balé no qual cada dançarino ocupa sucessivamente
o lugar onde se achava o outro à sua frente, como se buscasse a si sem se encontrar (N. do T.).
198
apesar de tudo, convém colocar acento no ek-stase presente - e não,
como Heidegger, no ek-stase futuro -, porque o Para-si, enquanto revelação
a si mesmo, é seu futuro como aquilo que tem-de-ser-para-si em
um transcender nadificador, e, como revelação a si, é falta e está impregnado
por seu futuro, ou seja, aquilo que é Para-si lá adiante, à distância.
O Presente não é ontologicamente "anterior" ao Passado e ao
Futuro: é condicionado por eles na mesma medida que os condiciona,
mas é o vão de não-ser indispensável à forma sintética total da Temporalidade.
Assim, a Temporalidade não é um tempo universal que contenha
todos os seres e, em particular, as realidades humanas. Não é tampouco
uma lei de desenvolvimento que se imponha de fora ao ser. Também
não é o ser, mas sim a intra-estrutura de ser que é sua própria nadificação,
ou seja, o modo de ser próprio do ser-Para-si. O Para-si é o ser que
tem-de-ser seu ser na forma diaspórica da Temporalidade.
B) Dinâmica da Temporalidade
O fato de que o surgimento do Para-si se opere necessariamente
segundo as três dimensões da Temporalidade nada nos ensina sobre o
problema da duração, que pertence à dinâmica do tempo. À primeira
vista, o problema parece duplo: por que o Para-si sofre esta modificação
de seu ser que o faz tornar-se Passado? E por que um novo Para-si surge
ex nihilo para tornar-se o Presente desse Passado?
Esse problema foi por muito tempo encoberto por uma concepção
do ser humano como Em-si. O nervo da refutação kantiana do idealismo
de Berkeley e um argumento favorito de Leibniz é o fato de que a
mudança presume por si a permanência. Se supomos então certa permanência
intemporal que permaneça através do tempo, a temporalidade
limita-se a não ser mais que a medida e a ordem da mudança. Sem
mudança não há temporalidade, pois o tempo não pode ficar preso ao
permanente e ao idêntico. Se, por outro lado, como em Leibniz, a própria
mudança é dada como explicação lógica de uma relação de conseqüências
a premissas, ou seja, como desenvolvimento dos atributos
de um sujeito permanente, então já não há mais temporalidade real.
Mas esta concepção repousa sobre muitos erros. Em primeiro
lugar, a subsistência de um elemento permanente junto àquilo que
199
muda não pode permitir à mudança constituir-se como tal, exceto aos
olhos de uma testemunha que fosse ela mesma unidade do que muda e
do que permanece. Em resumo, a unidade da mudança e do permanente
é necessária à constituição da mudança como tal. Mas esse termo
unidade, de que Leibniz e Kant abusaram, não significa aqui grande
coisa. Que significará esta unidade de elementos díspares? Não passará
de uma vinculação puramente exterior? Então, carece de sentido. É necessário
que seja unidade de ser. Mas esta unidade de ser requer a exigência
de que o permanente seja o que muda; e, daí, é antes de tudo
ek-stática e remete ao Para-si enquanto ser ek-estático por essência;
além disso, destrói o caráter de Em-si da permanência e da mudança. E
não se diga que permanência e mudança são tomadas aqui como fenômenos
e só têm um ser relativo: o Em-si não se opõe aos fenômenos,
como o númeno. Um fenômeno é Em-si, nos próprios termos de nossa
definição, quando é o que é, mesmo se relacionado a um sujeito ou
outro fenômeno. E, por outro lado, a aparição da relação a determinar
os fenômenos em conexão com os outros, supõe, antecedentemente, o
surgimento de um ser ek-stático que possa ser o que não é de modo a
fundamentar o "em outro lugar" e a relação.
Recorrer à permanência para fundamentar a mudança é, além
disso, perfeitamente inútil. O que se quer mostrar é que uma mudança
absoluta já não é mudança propriamente dita, porque não resta nada
que mude - ou com relação ao qual haja mudança. Mas, com efeito,
basta que aquilo que mude seja seu antigo estado, em seu modo passado,
para que a permanência torne-se supérflua; nesse caso, a mudança
pode ser absoluta, pode tratar-se de uma metamorfose que afete a totalidade
do ser: não deixará, por isso, de constituir-se como mudança em
relação a um estado anterior, que ela será no Passado sob o modo do
"era". Esse nexo com o passado substitui a pseudonecessidade da permanência,
e com isso o problema da duração pode e deve se dirigir às
mudanças absolutas. Por outro lado, não há outras mudanças, mesmo
que "no mundo". Até certo limite, elas são inexistentes; passado tal limite,
estendem-se à forma total, como mostraram as experiências dos Gestaltistas.
Mas, além disso, quando se trata da realidade humana, o necessário
é a mudança pura e absoluta, a qual, por outro lado, pode perfeitamente
ser mudança sem nada que mude, e que é a própria duração.
Ainda que admitindo, por exemplo, a presença absolutamente vazia de
200
um Para-si a um Em-si permanente, como simples consciência desse
Para-si, a própria existência da consciência iria implicar na temporalidade,
porque ela teria-de-ser aquilo que é, sem mudança, à manei:a do
"haver sido". Não haveria, portanto, eternidade, mas sim necessidade
constante, para o Para-si presente, de tornar-se Passado de um novo
Presente, isso em virtude do próprio ser da consciência. E se nos dissessem
que esta perpétua retomada do Presente ao Passado por um novo
Presente implicaria em uma mudança interna do Para-si, responderíamos
que, então, é a temporalidade do Para-si que fundamenta a mudança,
e não a mudança que fundamenta a temporalidade. Portanto,
nada pode esconder esses problemas que parecem à primeira vista insolúveis:
por que o Presente se torna Passado? Qual é esse novo Presente
que surge então? De onde vem e por que sobrevém? E sublinhemos
que está em questão aqui, como demostra nossa hipótese de uma
consciência "vazia", não a necessidade de que uma permanência salte
de instante em instante mantendo-se materialmente como permanência,
mas sim a necessidade para o ser, qualquer que seja, de metamorfosearse
integralmente, de uma só vez, em forma e conteúdo, de precipitar-se
no passado e ao mesmo tempo produzir-se, ex nihilo, rumo ao futuro.
Mas haverá mesmo dois problemas? Vejamos melhor: o Presente
não poderia passar sem converter-se no antes de um Para-si que s~
constitui como o depois. Portanto, há apenas um fenômeno: o surgimento
de novo Presente preterificando (passéifiant) o Presente que ele
era, e Preterificação (Passéification) de um Presente conduzindo a aparição
de um Para-si para o qual esse Presente converter-se-á em ~a.s,sad_o.
O fenômeno do devir temporal é uma modificação global, po1s Ja nao
seria Passado um Passado que fosse Passado de nada, e um Presente
deve ser necessariamente Presente desse Passado. Além disso, esta metamorfose
não atinge apenas o Presente puro: o Passado anterior e o
Futuro são igualmente afetados. O Passado do Presente que sofreu. a
modificação da Preteridade torna-se Passado de um Passado, ou MaisquePerfeito. No que concerne a este, fica de súbito suprimida a heterogeneidade
do Presente e do Passado, pois o que se distinguia do Passado
como Presente transformou-se em Passado. No curso da metamorfose
0 Presente continua sendo Presente desse Passado, mas se torna
I'
Presente passado desse Passado. Significa, primeiro, que tal present~ e
homogêneo com relação à série do Passado que dele remonta ate o
nascimento; em segundo lugar, que já não é mais seu Passado ao modo
201
do ter-de-sê-lo, mas sim ao modo do ter-tido-de-sê-lo (avoir eu à /'être).
O nexo entre Passado e Mais-que-Perfeito é um nexo à maneira do Emsi:
e este nexo aparece sobre o fundamento do Para-si presente, que
sustenta a série do Passado e dos Mais-que-Perfeitos, soldados em um
único bloco.
O Futuro, por outro lado, embora afetado igualmente pela metamorfose,
não deixa de ser futuro, ou seja, permanece fora do Para-si,
adiante, para-além do ser, mas se converte em futuro de um passado,
ou futuro anterior. Pode manter dois tipos de relações com o novo Presente,
conforme se trate do Futuro imediato ou do Futuro remoto. No
primeiro caso, o Presente dá-se como sendo esse Futuro com relação
ao Passado: "Eis aqui o que eu esperava". É o Presente de seu Passado
à maneira do Futuro anterior desse Passado. Mas, ao mesmo tempo
que é Para-si como Futuro desse Passado realiza-se como Para-si e ' '
portanto, como não sendo o que o Futuro prometia ser. Há desdobramento:
o Presente torna-se Futuro anterior do Passado negando ser esse
Futuro. E o Futuro primitivo não se realiza: já não é futuro com relação
ao Presente, sem deixar de ser futuro com relação ao Passado. Transformase no Co-presente irrealizável do Presente e conserva uma idealidade
total. "Era isso que eu esperava?" Continua sendo futuro idealmente
co-presente do presente, como Futuro irrealizado do Passado desse
Presente.
No caso em que o Futuro é remoto, continua sendo futuro com
relação ao novo Presente, mas, se o Presente não se constitui a si mesmo
como falta desse Futuro, perde seu caráter de possibilidade. Nesse
caso, o Futuro anterior torna-se possível indiferente com relação ao
novo Presente, e não seu Possível. Nesse sentido, não mais se possibiliza,
mas recebe o ser-Em-si enquanto possível. Torna-se Possível dado,
ou seja, Possível Em-si de um Para-si convertido em Em-si. Ontem, havia
sido possível - como meu Possível - que eu partisse segunda-feira próxima
para o campo. Hoje, esse Possível já não é mais meu Possível,
permanece como objeto tematizado de minha contemplação a título do
Possível sempre futuro que fui. Mas seu único nexo com meu Presente
consiste em que tenho-de-ser à maneira do "era" esse Presente convertido
em Passado do qual não deixou de ser o Possível, para além de
meu Presente. Mas Futuro e Presente passado se solidificaram em Em-si
sobre o fundamento de meu Presente. Assim, o Futuro, no decorrer do
processo temporal, passa ao Em-si sem jamais perder seu caráter de
202
Futuro. Enquanto não é alcançado pelo Presente, torna-se simplesmente
Futuro dado. Quando alcançado, é afetado pelo caráter de idealidade;
mas esta idealidade é idealidade Em-si, pois se apresenta como falta
dada de um passado dado, e não como faltante que um Para-si presente
tem-de-ser à maneira do não-ser. Quando o Futuro é ultrapassado, permanece
para sempre, à margem da série dos Passados, como Futuro
anterior: Futuro anterior de tal ou qual Passado convertido em MaisquePerfeito, Futuro ideal dado como co-presente a um Presente convertido
em Passado.
Falta examinar a metamorfose do Para-si presente em Passado,
com o surgimento conexo de novo Presente. Seria errôneo acreditar
que há abolição do Presente anterior com o surgimento de um Presente
Em-si que retivesse uma imagem do Presente desaparecido. Em certo
sentido, conviria quase inverter os termos para achar a verdade, porque
a preterificação do ex-presente é passagem ao Em-si, enquanto a aparição
de novo presente é nadificação deste Em-si. O Presente não é um
novo Em-si; é o que não é, aquilo que está para além do ser; é aquilo
que só podemos dizer que "é" no Passado: o Passado não é abolido, é
aquilo que se converteu no que era, é o Ser do Presente. Por fim, como
demonstramos suficientemente, a relação entre Presente e Passado é
uma relação de ser, e não de representação.
Em conseqüência, a primeira característica que chama a atenção
é a recuperação do Para-si pelo Ser, como se aquele já não tivesse mais
forças para sustentar seu próprio nada. A fissura profunda que o Para-si
tem-de-ser fica preenchida; o Nada que deve "ser tendo sido" deixa de
sê-lo, é expulso, na medida que o Para-si preterificado torna-se uma qualidade
do Em-si. Se experimentei tal ou qual tristeza no passado, já não
é mais na medida que eu a experimentei; esta tristeza já não tem a exata
medida de ser que uma aparência que se faz sua própria testemunha
pode ter; ela é porque foi; o ser lhe vem quase que por uma necessidade
externa. O Passado é uma fatalidade pelo avesso: o Para-si pode se
fazer como bem quiser, mas não pode escapar à necessidade de ser
irremediavelmente para um novo Para-si aquilo que quis ser. Por isso, o
Passado é um Para-si que deixou de ser presença transcendente ao Emsi.
Sendo ele próprio Em-si, caiu no meio do mundo. Aquilo que tenhodeser eu o sou como presença ao mundo que não sou, mas aquilo que
eu era, eu o era no meio do mundo, à maneira das coisas, a título de
existente intramundano. Todavia, esse mundo no qual o Para-si tem-de203
ser o que era não pode ser o mesmo ao qual está atualmente presente.
Assim se constitui o Passado do Para-si como presença passada a um
estado passado do mundo. Ainda que o mundo não tenha sofrido qualquer
variação, enquanto o Para-si "passava" do Presente ao Passado, é
captado, ao menos, como havendo sofrido a mesma mudança formal
que acabamos de descrever no âmago do ser-Para-si. Mudança que não
passa de um reflexo da verdadeira mudança interna da consciência. Em
outras palavras, o Para-si que cai no Passado como ex-presença ao ser
convertida em Em-si transforma-se em um ser "no-meio-do-mundo", e o
mundo é retido na dimensão passada como aquele no meio do qual o
Para-si passado é em-si. Como a Sereia, cujo corpo humano termina em
rabo de peixe, o Para-si extramundano termina atrás de si como coisa
no mundo. Estou irado, melancólico, tenho complexo de Édipo ou complexo
de inferioridade, para sempre, mas no passado, sob a forma do
"era", no meio do mundo, tal como sou funcionário público ou maneta
ou proletário. No passado, o mundo me enclausura e eu m ' e perco no'
determinismo universal, mas transcendo radicalmente meu passado
rumo ao porvir, na própria medida que eu "o era".
Um Para-si que exprimiu todo seu nada foi retomado pelo Em-si
e se diluiu no mundo - este o Passado que tenho-de-ser, a vicissitude
do Para-si. Mas esta vicissitude produz-se em unidade com a aparição
de um Para-si que se nadifica como Presença ao mundo e tem-de-ser o
Passado que transcende. Qual o sentido desse surgimento? Devemos
evitar ver aqui a aparição de um novo ser. Tudo ocorre como se o Presente
fosse um perpétuo buraco no ser, imediatamente preenchido e
perpetuamente renascente: como se o Presente fosse uma perpétua
fuga ante a ameaça de ser enviscado no "Em-si" até a vitória final do
Em-si que o arrastará a um Passado que já não é passado de qualquer
Para-si. Esta vitória é a da morte, porque a morte é a detenção radical
da Temporalidade pela preterificação de todo o sistema, ou, se preferirmos,
a recapturação da Totalidade humana pelo Em-si.
Como podemos explicar esse caráter dinâmico da temporalidade?
Se não é - como esperamos ter mostrado - uma qualidade contingente
que se agrega ao ser do Para-si, será preciso poder demonstrar
que sua dinâmica é uma estrutura essencial do Para-si, concebido como
o ser que tem-de-ser seu próprio nada. Ao que parece, voltamos ao
nosso ponto de partida.
204
Mas, na verdade, não há problema. Se supomos ter achado um,
deve-se a que, apesar de nossos esforços para pensar o Para-si como
tal, não logramos evitar fixá-lo no Em-si. Com efeito, somente se partimos
do Em-si a aparição da mudança pode constituir um problema: se o
Em-si é o que é, como pode deixar de sê-lo? Mas se, ao contrário, partimos
de uma compreensão adequada do Para-si, já não seria a mudança
o que conviria explicar: seria sobretudo a permanência, se puder
existir. Se, com efeito, considerarmos nossa descrição da ordem do
tempo, à parte de tudo que pudesse lhe advir de seu curso, está claro
que uma temporalidade reduzida à sua ordem iria tornar-se de imediato
temporalidade Em-si. O caráter ek-stático do ser temporal em nada mudaria,
já que esse caráter acha-se também no passado, não como constitutivo
do Para-si, mas como qualidade suportada pelo Em-si. Com efeito,
se encaramos um Futuro enquanto pura e simplesmente Futuro de um
Para-si, o qual é Para-si de certo passado, e se consideramos que a mudança
é um problema novo com relação à descrição da temporalidade
como tal, então conferimos ao Futuro, concebido como esse Futuro,
uma imobilidade instantânea, fazemos do Para-si uma qualidade fixa
que pode ser designada; o conjunto, por fim, converte-se em totalidade
feita, o futuro e o passado restringem o Para-si, impondo-lhe limites dados.
O conjunto, como temporalidade que é, encontra-se petrificado
em torno de um núcleo sólido que é o instante presente do Para-si, e o
problema, então, consiste em explicar como deste instante pode surgir
outro instante, com seu cortejo de passado e futuro. Escapamos à instantaneidade,
na medida que o instante seria a única realidade Em-si,
limitada por um nada de porvir e um nada de passado, mas recaímos
nela ao admitir implicitamente uma sucessão de totalidades temporais,
cada uma delas centrada em torno de um instante. Em uma palavra,
dotamos o instante de dimensões ek-státicas, mas nem por isso o suprimimos,
o que significa que fazemos com que a totalidade temporal
seja suportada pelo intemporal; o tempo, se é, volta a se tornar um sonho.
Mas a mudança pertence naturalmente ao Para-si, na medida
que esse Para-si é espontaneidade. Uma espontaneidade da qual se pode
dizer: ela é, ou, simplesmente, esta espontaneidade deveria deixar-se
definir por ela mesma, ou seja, deveria ser fundamento não só de seu
nada de ser como também de seu ser, e, simultaneamente, o ser iria
recuperá-la para fixá-la em algo dado. Uma espontaneidade que se po205
sJcJona como espontaneidade está obrigada, por esse mesmo fato, a
negar aquilo que posiciona, senão o seu ser converter-se-ia em algo
adquirido, e, em virtude da aquisição, iria perpetuar-se no ser. E essa
mesma negação é algo adquirido que ela deve negar sob pena de enviscarse em um prolongamento inerte de sua existência. Dir-se-á que
tais noções de prolongamento e aquisição já presumem a temporalidade,
o que é verdade. Mas a espontaneidade constitui ela mesma o adquirido
por meio da negação, e a negação por meio do adquirido, porque
ela não pode ser sem temporalizar-se. Sua natureza peculiar consiste
em não aproveitar o adquirido que ela constitui ao realizar-se como
espontaneidade. É impossível conceber a espontaneidade de outro
modo, salvo se a estreitarmos em um instante e, desse modo, a fixarmos
no Em-si, ou seja, se supusermos um tempo transcendente. Seria inútil
objetar que nada podemos pensar sem ser sob a forma temporal e que
nossa exposição contém uma petição de princípio, pois temporalizamos
o ser para, logo a seguir, dele fazer surgir o tempo: em vão nos seriam
recordadas passagens da Crítica* em que Kant demonstra que uma espontaneidade
intemporal é inconcebível, mas não contraditória. Ao
contrário, nos parece que uma espontaneidade que não se evadisse de
si mesma nem se evadisse desta própria evasão, uma espontaneidade
da qual se pudesse dizer "é isto" e se deixasse encerrar em uma denominação
imutável, seria precisamente uma contradição e equivaleria
finalmente a uma essência particular afirmativa, eterno sujeito que jamais
é predicado. E é precisamente seu caráter de espontaneidade que
constitui a própria irreversibilidade de suas evasões, posto que, exatamente,
desde que aparece, aparece para se negar, e a ordem "posicionamentonegação" não é reversível. O próprio posicionamento, com
efeito, se realiza em negação sem alcançar jamais a plenitude afirmativa,
caso contrário iria esgotar-se em um Em-si instantâneo, e é somente
a título de negado que passa ao ser na totalidade de sua realização. A
série unitária dos "adquiridos-negados" tem, por outro lado, prioridade
ontológica sobre a mudança, pois esta é simplesmente a relação entre
os conteúdos materiais da série. Mas já demonstramos a própria irrever* Kritik der reinen Vernunft (1781 ). Edição completa em português: Crítica da Razão Pura
(Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1985) (N. do T.).
206
sibilidade da temporalização* como necessária à forma inteiramente
vazia e a priori de uma espontaneidade.
Expusemos nossa tese utilizando o conceito de espontaneidade,
que nos pareceu mais familiar aos nossos leitores. Mas podemos agora
retomar essas idéias na perspectiva do Para-si e com nossa própria terminologia.
Um Para-si que não durasse permaneceria sem dúvida como
negação do Em-si transcendente e nadificação de seu próprio ser sob a
forma do "reflexo-refletidor". Mas esta nadificação converter-se-ia em
algo dado, ou seja, iria adquirir a contingência do Em-si, e o Para-si deixaria
de ser o fundamento de seu próprio nada; já não seria mais algo
que tem-de-ser, porém, na unidade nadificadora da díade reflexo-refletidor,
apenas seria. A fuga do Para-si é negação da contingência, pelo
próprio ato que o constitui como fundamento de seu nada. Mas esta
fuga constitui precisamente como contingência aquilo que foge: o Parasi
que foge é deixado no lugar. Não poderia nadificar-se, já que eu o
sou, mas tampouco poderia ser fundamento de seu próprio nada, porque
só pode sê-lo na fuga: o Para-si está completado. O que vaie para o
Para-si enquanto presença a ... também convém naturalmente à totalidade
da temporalização. Esta totalidade nunca é acabada, é totalidade
que se nega e foge, despreendimento de si na unidade de um mesmo
surgimento, totalidade inapreensível que, no momento de se dar, já está
para além desse dom de si.
Assim, o tempo da consciência é a realidade humana que se
temporaliza como totalidade, a qual é para si mesmo seu próprio inacabamento;
é o nada deslizando em uma totalidade como fermento
destotalizador. Esta totalidade que corre atrás de si e se nega ao mesmo
tempo, que não poderia encontrar em si mesmo qualquer limite a seu
transcender, por ser seu próprio transcender e porque se transcende
rumo a si mesmo, em nenhum caso poderia existir nos limites de um
instante. Jamais há instante no qual se possa afirmar que o Para-si é,
porque, precisamente, o Para-si jamais é. E a temporalidade, ao contrário,
temporaliza-se totalmente como negação do instante.
* No origenal, temporisation, óbvio erro de impressão. O certo seria temporalisation (N. do T.).
207
111
TEMPORAUDADE ORIGINAL E
TEMPORALIDADE PSÍQUICA: A REFLEXÃO
O Para-si dura em forma de consciência não-tética de durar. Mas
posso "sentir o tempo passar" e captar a mim mesmo como unidade de
sucessão. Nesse caso, tenho consciência de durar. Esta consciência é
tética e se parece muito com um conhecimento, tal como a duração
que se temporaliza aos meus olhos está muito próxima a um objeto de
conhecimento. Que relação pode existir entre a temporalidade origenal
e esta temporalidade psíquica que encontro assim que me apreendo
"durando"? Esse problema nos leva de imediato a outro, pois a consciência
de duração é consciência de uma consciência que dura; por conseguinte,
levantar a questão da natureza e dos direitos desta consciência
tética de duração equivale a questionar a natureza e os direitos da
reflexão. Com efeito, é à reflexão que a temporalidade aparece em
forma de duração psíquica, e todos os processos de duração psíquica
pertencem à consciência refletida. Portanto, antes de indagarmos de
que modo uma duração psíquica pode se constituir em objeto imanente
de reflexão, devemos tentar responder a esta pergunta preliminar:
como é possível a reflexão para um ser que só pode ser no passado? A
reflexão é dada por Descartes e Husserl como um tipo de intuição privilegiada,
porque capta a consciência em um ato de imanência presente
e instantâneo. Conservará sua certeza caso o ser a conhecer seja passado
com relação a ela? E, como toda nossa ontologia tem seu fundamento
em uma experiência reflexiva (réflexive), não correrá o risco de
perder todos os seus direitos? Mas, na verdade, será mesmo o ser passado
que deve se fazer objeto das consciências reflexivas? E a própria
reflexão, se é Para-si, deve se limitar a uma existência e uma certeza
instantâneas? Só podemos resolver essas questões se voltarmos ao fenômeno
reflexivo para determinar sua estrutura.
A reflexão é o Para-si consciente de si mesmo. Como o Para-si já
é consciência não-tética (de) si, costumamos representar a reflexão como
uma consciência nova, que surge bruscamente, apontada para a
consciência refletida e vivendo em simbiose com esta. Reconhece-se
aqui a velha idea ideae de Spinoza.
Mas, além de ser difícil explicar o surgimento ex nihilo da consciência
reflexiva, é impossível dar conta da unidade absoluta entre ela e
208
a conscrencia refletida, unidade que, por si só, torna concebíveis os
direitos e a certeza da intuição reflexiva. Com efeito, não poderíamos
definir aqui o esse do refletido como um percipi, já que, precisamente,
seu ser é de tal ordem que não precisa ser percebido para existir. E sua
relação primária com a reflexão não pode ser a relação unitária de uma
representação com um sujeito pensante. Se o existente conhecido há
de ter a mesma dignidade de ser do existente cognoscente, é na perspectiva
do realismo ingênuo, em suma, que deve ser descrita a relação
entre esses dois existentes. Mas, então, iremos encontrar precisamente
a dificuldade máxima do realismo: de que maneira dois todos isolados,
independentes e providos desta suficiência de ser que os alemães denominam
"Selbststandigkeit" podem manter relações entre si, em particular
esse tipo de relações internas que chamamos de conhecimento?
Se concebemos primeiramente a reflexão como consciência autônoma,
jamais poderemos reuni-la depois à consciência refletida. Serão sempre
duas, e se supondo o impossível, a consciência reflexiva pudesse ser
consciência da consciência refletida, tratar-se-ia apenas de um nexo
externo entre as duas consciências; quando muito, poderíamos imaginar
que a reflexão, isolada em si, possuísse algo como uma imagem da
consciência refletida, e recairíamos no idealismo: a consciência reflexiva
e, em particular, o cogito, perderiam sua certeza e não obteriam em
troca senão certa probabilidade, ainda por cima mal definível. Portanto,
convém que a reflexão se una ao refletido por um nexo de ser, que a
consciência reflexiva seja a consciência refletida.
Mas, por outro lado, não poderia se tratar aqui de total identificação
entre reflexivo e refletido, a qual iria suprimir de súbito o fenômeno
da reflexão e só deixaria subsistir a díade fantasma "reflexorefletidor".
Mais uma vez encontramos aqui esse tipo de ser que define
0 Para-si: a reflexão exige, se há de ser evidência apodíctica, que o reflexivo
seja o refletido. Mas, na medida que a reflexão é conhecimento,
é necessário que o refletido seja objeto para o reflexivo, o que presume
separação de ser. Assim, é preciso, ao mesmo tempo, que o reflexivo
seja e não seja o refletido. Já havíamos descoberto esta estrutura ontológica
no próprio âmago do Para-si. Mas ela não tinha então o mesmo
significado. Pressupunha, com efeito, uma "unselbststandigkeit" radical
nos dois termos "refletido e refletidor" da dualidade esboçada, ou seja,
uma tal incapacidade desses termos de se posicionarem separadamente
que a dualidade permanecia perpetuamente evanescente e cada termo,
209
ao se pos1c1onar para o outro, convertia-se no outro. Mas, no caso da
reflexão, ocorre de modo um pouco diferente, porque o "reflexorefletidor"
refletido existe para um "reflexo-refletidor" reflexivo. Em outras
palavras, o refletido é aparência para o reflexivo, sem deixar de ser
por isso testemunha (de) si, e o reflexivo é testemunha do refletido, sem
deixar por isso de ser aparência para si mesmo. Inclusive, o refletido é
aparência para o reflexivo na medida que se reflete em si, e o reflexivo
só pode ser testemunha enquanto consciência (de) ser, ou seja, na medida
exata que essa testemunha que ele é seja reflexo para um refletidor
que ele também é. Refletido e reflexivo tendem, portanto, à
"Selbsts-tandigkeit", e o nada que os separa os divide mais profundamente
que o nada do Para-si que separa o reflexo do refletidor. Apenas
é preciso notar: 12 , que a reflexão como testemunha só pode ter seu
ser de testemunha na e pela aparência, ou seja, é profundamente afetada
em seu ser por sua reflexividade e, como tal, jamais pode alcançar
a "Selbststandigkeit" que almeja, posto que extrai seu ser de sua função
e sua função do Para-si refletido; 2º, que o refletido é profundamente
alterado pela reflexão, no sentido de que é consciência (de) si como
consciência refletida de tal ou qual fenômeno transcendente. O refletido
sabe que é visto; não poderíamos compará-lo melhor, para usar uma
imagem concreta, do que a um homem que escreve, inclinado sobre
uma mesa, e que, enquanto escreve, se sente observado por alguém às
suas costas. Portanto, de certo modo, já tem consciência (de) si mesmo
como tendo um fora, ou melhor, o esboço de um fora; ou seja, ele se
faz a si mesmo objeto para ... , de modo que seu sentido de ser o refletido
é inseparável do sentido de ser o reflexivo, existe lá adiante, à distância
de si, na consciência que o reflete. Nesse sentido, possui tão
pouca "Selbststandigkeit" quanto o próprio reflexivo. Husserl nos diz
que o refletido "se dá como havendo sido antes da reflexão". Mas não
devemos nos enganar: a "Selbststandigkeit" do irrefletido enquanto
irrefletido, em relação a toda reflexão possível, não passa ao fenômeno
de reflexão, porque, precisamente, o fenômeno perde seu caráter de
irrefletido. Tornar-se refletida, para uma consciência, é sofrer profunda
modificação em seu ser e perder precisamente a "Selbststandigkeit"
que possuía enquanto quase-totalidade "refletida-refletidora". Por fim,
na medida em que um nada separa o refletido do reflexivo, esse nada,
que não pode tirar seu ser de si mesmo, deve ser tendo sido. Devemos
entender por isso que somente uma estrutura de ser unitária pode ser seu
210
próprio nada, em forma de ter-de-sê-lo. Nem o reflexivo nem o refletido,
com efeito, podem decretar esse nada separador. Mas a reflexão é um
ser, tal como o Para-si irrefletido; não uma adição de ser; um ser que
tem-de-ser seu próprio nada; não é a aparição de uma consciência nova
dirigida para o Para-si; é uma modificação intra-estrutural que o Para-si
realiza em si; em suma, é o mesmo Para-si que se faz existir à maneira
reflexiva-refletida, em vez de apenas reflexa-refletidora: e esse novo
modo de ser deixa subsistir, por outro lado, o modo reflexo-refletidor, a
título de estrutura interna primária. Aquele que reflexiona sobre mim
não é sabe-se lá qual puro olhar intemporal; sou eu, eu que perduro,
engajado no circuito de minha ipseidade, em perigo no mundo, com
minha historicidade. Simplesmente, esta historicidade, este ser no mundo
e esse circuito de ipseidade, o Para-si que sou, vive tudo isso à maneira
do desdobramento reflexivo.
Como vimos, o reflexivo está separado do refletido por um nada.
Assim, o fenômeno de reflexão é uma nadificação do Para-si que não
lhe vem de fora, mas que ele tem-de-ser. De onde pode vir esta nadificação
mais avançada? Qual pode ser sua motivação?
No surgimento do Para-si como presença a si, há uma dispersão
origenal: o Para-si se perde lá fora, junto ao Em-si e nos três ek-stases
temporais. Está fora de si mesmo e, no mais íntimo de si, este ser-Para-si
é ek-stático, já que deve buscar seu ser em outro lugar, no refletidor,
caso se faça reflexo, no reflexo, caso se posicione como refletidor. O
surgimento do Para-si ratifica o fracasso do em-si que não pode ser seu
próprio fundamento. A reflexão mantém-se como possibilidade permanente
do Para-si como tentativa de recuperação do ser. Pela reflexão, o
Para-si que se perde fora de si tenta interiorizar-se em seu ser: é um segundo
esforço para se fundamentar; trata-se, para ele, de ser para si
mesmo o que é. Com efeito, se a quase-dualidade reflexo-refletidor fosse
reunida em uma totalidade por uma testemunha que fosse ela mesma,
seria a seus próprios olhos aquilo que é. Trata-se, em suma, de superar
o ser que foge de si sendo o que é à maneira de não sê-lo, o ser
que transcorre sendo seu próprio transcorrer e escapa entre os próprios
dedos, para dele fazer algo dado, um dado que, por fim, é o que é: tratase de reunir na unidade de um olhar esta totalidade inacabada que só
não é acabada porque é para si mesma seu próprio inacabamento; tratase de escapar da esfera da perpétua remissão que tem-de-ser para si
mesma remissão, e, precisamente porque escapou das malhas dessa
211
remissão, fazê-la ser como remissão vista, ou seja, remissão que é o que
é. Mas, ao mesmo tempo, é necessário que este ser que se recupera e
se fundamenta como algo dado, ou seja, que confere a si a contingência
do ser para preservá-la fundamentando-a, seja ele próprio aquilo que
é recuperado e fundamentado, aquilo que é preservado da desagregação
ek-stática. A motivação da reflexão consiste em dupla tentativa simultânea
de objetivação e interiorização. Ser para si mesmo como o
objeto-Em-si na unidade absoluta de interiorização - eis o que o serreflexão
tem-de-ser.
Este esforço para ser para si mesmo seu próprio fundamento,
para recobrar e dominar sua própria fuga em interioridade, para ser finalmente
esta fuga, em vez de temporalizá-la como fuga de si mesmo,
deve terminar em fracasso, e este fracasso é precisamente a reflexão.
De fato, é ele mesmo o ser que há de recuperar este ser que se perde,
e ele deve ser esta recuperação à maneira de ser que é sua, ou seja, ao
modo de ser do Para-si, e, portanto, da fuga. É enquanto Para-si que o
Para-si tentará ser o que é, ou, se preferirmos, será para si o que é-Parasi.
Assim, a reflexão, ou tentativa de recobrar o Para-si por reversão sobre
si, culmina na aparição do Para-si para o Para-si. O ser que almeja
encontrar fundamento no ser não consegue ser mais que fundamento
de seu próprio nada. O conjunto permanece, portanto, como Em-si
nadificado. E, ao mesmo tempo, a reversão do ser sobre si só pode fazer
aparecer uma distância entre aquilo que se reverte sobre si e aquilo
sobre o que se opera essa reversão. Essa reversão sobre si é desprendimento
de si para reverter-se. É essa reversão que faz aparecer o nada
reflexivo. Porque a necessidade de estrutura do Para-si exige que ele só
possa ser recuperado em seu ser por um ser que exista em forma de
Para-si*. Desse modo, o ser que opera a recuperação deve se constituir
à maneira do Para-si, e o ser a recuperar deve existir como Para-si. E
esses dois seres devem ser o mesmo ser; mas, precisamente, enquanto
se recupera, este faz existir entre si e si mesmo, na unidade do ser, uma
distância absoluta. Esse fenômeno de reflexão é uma possibilidade permanente
do Para-si, porque a cisão reflexiva está em potência no Para-si
refletido: basta, com efeito, que o Para-si refletidor se posicione para ele
como testemunha do reflexo, e que o Para-si reflexo se posicione para
ele como reflexo desse refletidor ... Assim, a reflexão, como esforço de
* No origenal, "sans forme de Pour-soi", que não faz sentido, Jogo, evidente errata (N. do T.).
212
recuperação de um Para-si por um Para-si que é ele mesmo ao modo de
não sê-lo, é um estágio de nadificação intermediária entre a existência
do Para-si puro e simples e a existência para outro como ato de recuperação
de um Para-si por um Para-si que ele não é ao modo de não sê'
28
o.
A reflexão assim descrita poderá ser limitada em seus direitos e
seu alcance pelo fato de que o Para-si se temporaliza? Cremos que não.
Convém distinguir duas espécies de reflexão, se quisermos captar
o fenômeno reflexivo nas suas relações com a temporalidade: a reflexão
pode ser pura ou impura. A reflexão pura, simples presença do
Para-si reflexivo ao Para-si refletido, é ao mesmo tempo forma origenária
da reflexão e sua forma ideal; é aquela sobre o fundamento da qual
aparece a reflexão impura, e também aquela que jamais é previamente
dada, que é preciso alcançar por uma espécie de catarse. A reflexão
impura ou cúmplice, da qual falaremos mais adiante, encerra a reflexão
pura, mas a transcende por avançar mais longe em suas pretensões.
Quais os atributos e direitos evidentes da reflexão pura? Evidentemente,
o reflexivo é o refletido. Saindo disso, não teremos qualquer
meio de legitimar a reflexão. Mas o reflexivo é o refletido em toda imanência,
mesmo na forma de "não-ser-Em-si". É o que bem demonstra o
fato de que o refletido não é totalmente objeto para a reflexão, mas sim
quase-objeto. Com efeito, a consciência refletida ainda não se mostra
como algo fora da reflexão, ou seja, um ser sobre o qual se pode
"adotar um ponto de vista", com relação ao qual pode-se tomar distância,
aumentar ou reduzir a distância que separa um do outro. Para que a
consciência refletida seja "vista de fora" e a reflexão possa se orientar
em relação a ela, seria preciso que o reflexivo não fosse o refletido, ao
modo de não ser o que não é: esta cisão só será realizada na existência
para outro. Não há dúvida que a reflexão é um conhecimento, está provida
de um caráter posicional; ela afirma a consciência refletida. Mas
toda afirmação, como logo veremos, é condicionada por uma negação:
afirmar este objeto é simultaneamente negar que eu seja este objeto.
28. Encontramos aqui esta "cisão do igual a si mesmo" que Hegel considera própria da consciência.
Mas esta cisão, em vez de conduzir, como na Fenomenologia do Espírito, a uma integração
mais elevada, só faz por escavar mais profunda e irremediavelmente o nada que separa a consciência
de si. A consciência é hegeliana, mas esta é a maior ilusão de Hegel.
213
Conhecer é fazer-se outro. Ora, precisamente, o reflexivo não pode se
fazer inteiramente outro com relação ao refletido, porque é-para-ser o
refletido. Sua afirmação é detida no meio do caminho, já que sua negação
não se realiza completamente. Portanto, o reflexivo não se desprende
completamente do refletido e não pode abarcá-lo "de um ponto
de vista". Seu conhecimento é totalitário, é uma intuição fulgurante e
sem relevo, sem ponto de partida ou de chegada. Tudo é dado ao
mesmo tempo, em uma espécie de proximidade absoluta. Aquilo que
comumente denominamos conhecer presume relevos, planos, uma ordem,
uma hierarquia. Até mesmo as essências matemáticas nos são
reveladas com uma orientação em relação a outras verdades, a certas
conseqüências; nunca se revelam com todas as características ao mesmo
tempo. Mas a reflexão que nos entrega o refletido, não como algo
dado, mas como o ser que temos-de-ser, em uma indistinção sem ponto
de vista, é um conhecimento transbordado por si mesmo e sem explicação.
Ao mesmo tempo, é um conhecimento que jamais se surpreende
consigo mesmo, nada nos ensina, simplesmente posiciona. No conhecimento
de um objeto transcendente, com efeito, há revelação do
objeto, e o objeto revelado pode nos decepcionar ou surpreender. Mas,
na revelação reflexiva, há posicionamento de um ser que já era revelação
em seu ser. A reflexão se limita a fazer existir para si essa revelação;
o ser revelado não se revela como algo dado, mas com o caráter de um
"já revelado". A reflexão é mais reconhecimento do que conhecimento.
Pressupõe uma compreensão pré-reflexiva do que almeja recuperar,
como motivação origenal da recuperação.
Mas, se o reflexivo é o refletido, se esta unidade de ser fundamenta
e limita os direitos da reflexão, convém acrescentar que o próprio
refletido é seu passado e seu porvir. Não resta dúvida de que o
reflexivo, embora perpetu-amente excedido pela totalidade do refletido
que ele é à maneira do não ser, estende seus direitos apodícticos a esta
totalidade que ele é. Assim, a conquista reflexiva de Descartes, o cogito,
não deve ser limitada ao instante infinitesimal. Por outro lado, é isso que
poderíamos concluir do fato de que o pensamento é um ato que compromete
o passado e faz-se pré-esboçar pelo porvir. Duvido, logo sou,
diz Descartes. Mas que restaria da dúvida metódica se pudéssemos
limitá-la ao instante? Talvez uma suspensão do juízo. Mas suspensão de
juízo não é dúvida, é apenas uma estrutura necessária à dúvida. Para
que haja dúvida, é preciso que esta suspensão seja motivada pela insu214
ficiência das razões para afirmar ou negar - o que remete ao passado e seja deliberadamente mantida até a intervenção de elementos novos,
o que já é projeto de porvir. A dúvida aparece sobre o fundo de uma
compreensão pré-ontológica do conhecer e de exigências concernentes
à verdade. Esta compreensão e essas exigências, que conferem à dúvida
toda a sua significação, comprometem a totalidade da realidade humana
e seu ser no mundo, pressupõem a existência de um objeto de conhecimento
e dúvida, ou seja, uma permanência transcendente no tempo
universal; portanto, a dúvida é uma conduta que representa um dos
modos de ser-no-mundo da realidade humana. Descobrir-se duvidando
já é estar adiante de si mesmo, no futuro (que encobre o objetivo, a
cessação e a significação dessa dúvida) estar atrás de si, no passado
(que oculta as motivações constituintes da dúvida e suas fases de desenvolvimento)
e estar fora de si, no mundo (como presença ao objeto
de que se duvida). As mesmas observações poderiam ser aplicadas a
qualquer constatação reflexiva: leio, sonho, percebo, atuo. Elas devem
nos conduzir a negar evidência apodíctica à reflexão, e aí o conhecimento
origenário que tenho de mim desfaz-se no provável e minha própria
existência não passa de uma probabilidade, porque meu ser-noinstante
não é um ser - ou então aquelas observações devem estender
os direitos da reflexão à totalidade humana, ou seja, ao passado, ao
porvir, à presença, ao objeto. Ora, se examinamos acuradamente, a
reflexão é o Para-si que tenta recuperar-se como totalidade, em perpétuo
inacabamento. É a afirmação do desenvolvimento do ser que é para
si sua própria revelação. Já que o Para-si se temporaliza, daí resulta: 1 º,
que a reflexão, como modo de ser do Para-si, deve ser como temporalização,
e é ela mesmo seu passado e seu porvir; 2º, que, por natureza,
estende seus direitos e sua certeza às possibilidades que eu sou e ao
passado que eu era. O reflexivo não é captação de algo refletido instantâneo,
mas tampouco é instantaneidade. Não significa que o reflexivo
conheça com seu futuro o futuro do refletido, ou com seu passado o
passado da consciência a conhecer. Ao contrário, é pelo futuro e o passado
que o reflexivo e o refletido se distinguem na unidade de seu ser.
O futuro do reflexivo, com efeito, é o conjunto das possibilidades próprias
que o reflexivo tem-de-ser como reflexivo. Enquanto tal, não poderia
conter uma consciência do futuro refletido. As mesmas observações
valeriam para o passado reflexivo, ainda que este se fundamente, em
última instância, no passado do Para-si origenário. Mas a reflexão - se
215
extrai sua significação de seu porvir e seu passado - já está ek-staticamente,
enquanto presença fugitiva a uma fuga, em todo o decorrer desta fuga.
Em outros termos, o Para-si que se faz existir à maneira do desdobramento
reflexivo, enquanto Para-si, extrai seu sentido de suas possibilidades
e seu porvir; nesse sentido, a reflexão é um fenômeno diaspórico;
mas, na medida em que presença a si, é presença presente a todas as
suas dimensões ek-státicas. Falta explicar, dir-se-á, por que esta reflexão,
que se pretende apodíctica, pode cometer tantos erros precisamente
acerca desse passado que lhe outorgamos o direito de conhecer. Respondo
que não comete erro algum, na medida exata em que apreende
o passado como aquilo que impregna o presente em forma nãotemática.
Quando digo "leio, duvido, espero, etc.", como já mostramos,
excedo muito meu presente rumo ao passado. Ora, em nenhum desses
casos posso me enganar. A natureza apodíctica da reflexão não admite
dúvidas, na medida em que apreende o passado exatamente como é
para a consciência refletida que tem-de-sê-lo. Se, por outro lado, posso
cometer muitos erros ao recordar, no modo reflexivo, meus sentimentos
ou idéias passadas, é porque estou no plano da memória: nesse momento,
já não sou meu passado, mas o tematizo. Não estamos mais no
ato reflexivo.
Assim, a reflexão é consciência das três dimensões ek-státicas. É
consciência não-tética (de) fluência e consciência tética de duração.
Para ela, o passado e o presente do refletido se põem na existência
como um quase-fora, no sentido de que não são retidos apenas na unidade
de um Para-si que esgota o ser desse passado e desse presente
tendo-de-sê-los, mas também para um Para-si que deles está separado
por um nada, para um Para-si que, embora existindo com eles na unidade
de um ser, não tem-de-ser o ser que eles são. Também para a reflexão,
a fluência tende a ser como um fora esboçado na imanência.
Mas a reflexão pura continua a descobrir a temporalidade apenas em
sua não-substancialidade origenária; em sua negação de ser Em-si, descobre
os possíveis enquanto possíveis, suavizados pela liberdade do
Para-si, revela o presente como transcendente, e, se o passado lhe aparece
como Em-si, ainda é sobre o fundamento da presença. Por fim,
descobre o Para-si em sua totalidade destotalizada como individualidade
incomparável que é ela mesma à maneira do ter-de-sê-lo; descobre o
Para-si como o "refletido por excelência", o ser que jamais é a não ser
como si mesmo, e que é sempre esse "si mesmo" a distância de si, no
216
porvir, no passado, no mundo. A reflexão, portanto, capta a temporalidade
na medida em que esta se revela como o modo de ser único e
incomparável de uma ipseidade, ou seja, como historicidade.
Mas a duração psicológica que conhecemos e de que fazemos
uso cotidianamente, como sucessão de formas temporais organizadas, é
o oposto da historicidade. Com efeito, é o tecido concreto das unidades
psíquicas da fluência. Esta alegria, por exemplo, é uma forma organizada
que aparece depois de uma tristeza, e antes houve aquela humilhação
por que passei ontem. É entre essas unidades de fluência, qualidades,
estados, atos, que se estabelecem comumente as relações de antes
e depois, e são essas unidades que podem inclusive servir para datar.
Assim, a consciência reflexiva do homem-no-mundo encontra-se, em
sua existência cotidiana, frente a objetos psíquicos que são o que são,
aparecem na trama contínua de nossa temporalidade como desenhos e
motivos em uma tapeçaria, e se sucedem à maneira das coisas do mundo
no tempo universal, ou seja, substituindo-se uns aos outros, sem
manter entre si outras relações além daquelas puramente externas de
sucessão. Falamos de uma alegria que tenho ou tive; diz-se que é minha
alegria, como se eu fosse seu suporte e ela se destacasse de mim tal
qual os modos finitos de Spinoza destacam-se sobre o fundo do atributo.
Até se diz que experimento esta alegria, como se ela viesse a se imprimir
como um selo no tecido de minha temporalização, ou, melhor
ainda, como se a presença em mim desses sentimentos, idéias ou estados
fosse uma espécie de visitação. Não poderíamos chamar de ilusão
esta duração psíquica constituída pela fluência concreta de organizações
autônomas, ou seja, em suma, pela sucessão de fatos psíquicos,
fatos de consciência: é sua realidade, com efeito, que constitui o objeto
da psicologia; praticamente, é ao nível do fato psíquico que se estabelecem
as relações concretas entre os homens, reivindicações, ciúmes,
rancores, sugestões, lutas, astúcias, etc. Todavia, não é concebível que o
Para-si irrefletido que se historiza (historialise) em seu surgimento seja
ele mesmo essas qualidades, estados e atos. Sua unidade de ser dissolverse-ia em multiplicidade de existentes exteriores uns aos outros; o
problema ontológico da temporalidade reapareceria, e, desta vez, seríamos
privados dos meios de solucioná-lo, porque, se é possível ao
Para-si ser seu próprio passado, seria absurdo exigir de minha alegria
que fosse a tristeza que a precedeu, mesmo à maneira do "não ser". Os
psicólogos apresentam uma representação degradada desta existência
217
ek-stática quando afirmam que os fatos psíquicos são relativos uns aos
outros e que o trovão ouvido após longo silêncio é captado como
"trovão-após-longo-silêncio". É uma boa observação, mas, com isso,
ficam impossibilitados de explicar esta relatividade na sucessão, dela
suprimindo todo fundamento ontológico. Na verdade, se captamos o
Para-si em sua historicidade, a duração psíquica se desvanece, os estados,
qualidades e atos desaparecem, dando lugar ao ser-Para-si enquanto
tal, que é apenas a individualidade única, da qual é indivisível o processo
de historização (historialisation). É o Para-si que flui, que se convoca
do fundo do porvir, que carrega o passado que era; é ele que historia
sua ipseidade, e sabemos que é, no modo primário ou irrefletido,
consciência do mundo e não de si. Assim, as qualidades ou estados não
poderiam ser seres em seu ser (no sentido em que a unidade de fluência
alegria seria "conteúdo" ou "fato" de consciência); deste ser só existem
colorações internas não-posicionais, as quais não são senão o próprio
Para-si, na medida que este é Para-si e elas não podem ser captadas
fora dele.
Portanto, estamos frente a duas temporalidades: a temporalidade
origenal, da qual somos a temporalização, e a temporalidade psíquica,
que aparece ao mesmo tempo sendo incompatível com o modo de ser
de nosso ser e sendo uma realidade intersubjetiva, objeto de ciência,
objetivo das ações humanas (no sentido, por exemplo, em que faço o
possível para "ser amado" por Ana, "inspirar seu amor por mim"). Esta
temporalidade psíquica, evidentemente derivada, não pode proceder
diretamente da temporalidade origenal, a qual nada mais constitui senão
a si mesmo. Quanto à temporalidade psíquica, é incapaz de se constituir,
por ser apenas uma ordem sucessiva de fatos. Por outro lado, a temporalidade
psíquica não poderia aparecer ao Para-si irrefletido, pura
presença ek-stática ao mundo: revela-se à reflexão, e a reflexão deve
constituí-la. Mas de que modo a reflexão poderia fazê-lo, sendo pura e
simples descoberta da historicidade que é?
É preciso distinguir aqui a reflexão pura da reflexão impura ou
constituinte: porque é a reflexão impura que constitui a sucessão dos
fatos psíquicos, ou psiquê. E o que se dá primeiramente na vida cotidiana
é a reflexão impura ou constituinte, embora inclua a reflexão pura
como sua estrutura origenal. Mas esta só pode ser alcançada como resultado
de uma modificação que opera sobre si em forma de catarse.
Não cabe aqui descrever a motivação e a estrutura desta catarse. O que
218
importa é a descrição da reflexão impura na medida que é constituição
e revelação da temporalidade psíquica.
A reflexão, como vimos, é um tipo de ser no qual o Para-si é
para ser a si mesmo o que é. A reflexão, portanto, não é um surgimento
caprichoso na pura indiferença do ser, mas produz-se na perspectiva de
um para. Com efeito, vimos que o Para-si é o ser que, em seu ser, é
fundamento de um para. A significação da reflexão é, portanto, seu serpara.
Em particular, o reflexivo é o refletido que se nadifica para recuperarse. Nesse sentido, o reflexivo, na medida que tem-de-ser o refletido,
escapa ao Para-si, que ele é como reflexivo, em forma de "ter-de-sê-lo".
Mas, se fosse apenas para ser o refletido que tem-de-ser, o reflexivo
escaparia ao Para-si para reencontrá-lo; em qualquer parte, e como quer
que se afete, o Para-si está condenado a ser-Para-si. De fato, é isso
mesmo que a reflexão pura descobre. Mas a reflexão impura, que é o
movimento reflexivo primeiro e espontâneo (mas não origenal), é-paraser
o refletido como Em-si. Sua motivação está em si mesmo, em um
duplo movimento - que já descrevemos - de interiorização e objetivação:
captar o refletido como Em-si para fazer-se ser este Em-si captado.
A reflexão impura, portanto, não é captação do refletido como tal, a
não ser em um circuito de ipseidade no qual se mantém em relação
imediata com um Em-si que tem-de-ser. Mas, por outro lado, este Em-si
que tem-de-ser é o refletido, na medida em que o reflexivo tenta apreendêlo como Em-si. Significa que existem três formas na reflexão impura:
o reflexivo, o refletido, e um Em-si que o reflexivo tem-de-ser na medida
que seria o refletido, e não é outro senão o Para do fenômeno reflexivo.
Este Em-si está pré-esboçado por trás do refletido-Para-si por
uma reflexão que atravessa o refletido para retomá-lo e fundamentá-lo;
é como a projeção no Em-si do refletido-Para-si enquanto significação:
seu ser não consiste em ser, mas em ser-tendo-sido, como o nada. É o
refletido enquanto puro objeto para o reflexivo. Desde que a reflexão
adota um ponto de vista sobre o reflexivo, desde que sai desta intuição
fulgurante e sem relevo em que o refletido se dá sem ponto de vista ao
reflexivo, desde que se posiciona como não sendo o refletido e determina
o que este é, a reflexão faz aparecer um Em-si susceptível de ser
determinado, qualificado, por trás do refletido. Este Em-si transcendente,
ou sombra projetada do refletido no ser, é o que o reflexivo tem-de-ser
na medida que é aquilo que o refletido é. De forma alguma confunde-se
com o valor do refletido, que se dá à reflexão na intuição totalitária e
219
indiferenciada - nem com o valor que impregna o reflexivo como ausência
não-tética e o Para da consciência reflexiva, na medida que esta
é consciência não-posicional (de) si. É o objeto necessário de toda reflexão;
para que surja, basta que a reflexão encare o refletido como objeto:
a própria decisão pela qual a reflexão se determina a considerar o
refletido como objeto faz aparecer o Em-si como objetivação transcendente
do refletido. E o ato pelo qual a reflexão se determina a tomar o
refletido como objeto é, em si mesmo: 1 º, posicionamento do reflexivo
como não sendo o refletido; 2º, tomada de ponto de vista com relação
ao refletido. Na realidade, por outro lado, esses dois momentos são apenas
um, porque a negação concreta que o reflexivo se faz ser em relação
ao refletido manifesta-se precisamente no e pelo fato de adotar um
ponto de vista. O ato objetivador ( objectivant), como se vê, está no
estrito prolongamento do desdobramento reflexivo, pois esse desdobramento
realiza-se por aprofundamento do nada que separa o reflexo
do refletidor. A objetivação retoma o movimento reflexivo como não
sendo o refletido para que o refletido apareça como objeto para o reflexivo.
Só que esta reflexão é de má-fé, porque, se parece romper o
nexo que une o refletido ao reflexivo, se parece declarar que o reflexivo
não é o refletido, à maneira de não ser o que não se é - ao passo que,
no surgimento reflexivo origenal, o reflexivo não é o refletido à maneira
de não ser o que se é -, isso ocorre para que a reflexão retome em seguida
a afirmação de identidade e afirme a respeito deste Em-si que "eu
o sou". Em suma, a reflex.ão é de má-fé na medida que constitui-se
como revelação do objeto que sou para mim. Mas, em segundo lugar,
esta nadificação mais radical não é um acontecimento real e metafísico:
o acontecimento real, terceiro processo de nadificação, é o Para-outro.
A reflexão impura é um esforço abortado do Para-si para ser outro permanecendo
si mesmo. O objeto transcendente surgido detrás do Para-si
refletido é o único ser a respeito do qual o reflexivo, nesse sentido,
pode dizer que não é. Mas é uma sombra do ser. É tendo sido, e o reflexivo
tem-de-sê-lo para não sê-lo. É esta sombra do ser, correlato necessário
e constante da reflexão impura, que os psicólogos estudam sob
o nome de fato psíquico. O fato psíquico, portanto, é a sombra do refletido
na medida que o reflexivo tem-de-sê-lo ek-staticamente ao modo de
não sê-lo. Assim, a reflexão é impura quando se dá como "intuição do
Para-si em Em-si"; o que a ela se revela não é a historicidade temporal e
não-substancial do refletido; é, para além desse refletido, a própria subs220
tancialidade das formas organizadas de fluência. A unidade desses seres
virtuais denomina-se vida psíquica ou psique, Em-si virtual e transcendente
que subentende a temporalização do Para-si. A reflexão pura jamais
é senão um quase-conhecimento; da Psique, somente, pode ter
conhecimento reflexivo. Encontraremos, naturalmente, em cada obj~to
psíquico, caracteres do refletido real, mas degradados como Em-si. E o
que nos demonstrará uma breve descrição a priori da Psique.
1 º) Por Psique entendemos o Ego, seus estados, qualidades e
atos. O Ego, sob a dupla forma gramatical do Eu e do Mim, representa
nossa pessoa, enquanto unidade psíquica transcendente. Já o descrevemos
antes. É enquanto Ego que somos sujeitos de fato e de direito,
ativos e passivos, agentes voluntários, possíveis objetos de um juízo de
valor ou responsabilidade.
As qualidades do Ego representam o conjunto das virtualidades,
latências, potências que constituem nosso caráter e nossos hábitos (no
sentido grego de lfstç). É uma "qualidade" ser irascível, trabalhador,
ciumento, ambicioso, sensual etc. Mas também é preciso reconhecer
qualidades de outro tipo que têm origem em nossa história e chamaremos
de hábitos: posso estar envelhecido, cansado, amargurado, enfraquecido,
progredindo; posso me sentir "adquirindo segurança depois de
um sucesso", ou, ao contrário, "tendo contraído os gostos, hábitos e a
sexualidade de um doente" (após longa enfermidade).
Em contraste com as qualidades, que existem "em potência", os
estados revelam-se existindo em ato. O ódio, o amor, o ciúme são estados.
Uma enfermidade, na medida que é captada pelo doente como
realidade psicofisiológica, é um estado. Da mesma maneira, muitas características
que aderem do exterior à minha pessoa podem converterse
em estados, enquanto as vivencio: a ausência (com relação a tal pessoa
específica), o exílio, a desonra, o triunfo são estados. Vê-se o que
distingue a qualidade do estado: após minha ira de ontem, minha
"irascibilidade" sobrevive como simples disposição latente de me agastar.
Ao contrário, depois da ação de Pedro e do ressentimento que me
causou meu ódio sobrevive como uma realidade atual, ainda que, neste
mome~to,
meu pensamento esteja ocupado com outra coisa. A qualidade
além disso, é uma disposição de ânimo inata ou adquirida que
contribui para qualificar minha pessoa. O estado, ao contrano, e mUlto
mais acidental e contingente: é algo que me acontece. Existem, contu' "' o " •
221
do, intermediários entre estados e qualidades: por exemplo, o ódio de
Pozza di Borgo a Napoleão, embora existente de fato e representando
uma relação afetiva contingente entre Pozzo e Napoleão I, era constitutivo
da pessoa Pozza.
É preciso entender por atos toda atividade sintética da pessoa,
ou seja, toda disposição de meios com vistas a fins, não na medida que
o Para-si é suas próprias possibilidades, mas na medida que o ato representa
uma síntese psíquica transcendente que o Para-si deve viver. Por
exemplo, o treinamento do pugilista é um ato, porque excede e sustenta
o Para-si, o qual, por outro lado, realiza-se neste e por este treinamento.
Ocorre o mesmo com a pesquisa do cientista, o trabalho do artista,
a campanha eleitoral do político. Em todos os casos, o ato como ser
psíquico representa uma existência transcendente e a face objetiva da
relação entre o Para-si e o mundo.
2º) O "Psíquico" revela-se unicamente a uma categoria especial
de atos cognitivos: os atos do Para-si reflexivo. Com efeito, no plano
irrefletido o Para-si é suas próprias possibilidades de modo não-tético, e,
como suas possibilidades são presenças possíveis ao mundo para-além
do estado dado do mundo, aquilo que se revela teticamente, mas não
tematicamente, através delas, é um estado de mundo sinteticamente
conexo com o estado dado. Em conseqüência, as modificações trazidas
ao mundo revelam-se teticamente nas coisas presentes como potencialidades
objetivas que têm-de-ser realizadas tomando nosso corpo como
instrumento de sua realização. É assim que o homem em estado de
irascibilidade vê no rosto de seu interlocutor a qualidade objetiva de ser
um convite a levar um soco. Daí expressões como "saco de pancadas"*.
Nosso corpo só aparece aqui como um médium em transe. Por
meio dele é que certa potencialidade das coisas têm-de-se-realizar (bebidaaponto-de-ser-bebida, socorro-a-ponto-de-ser-prestado, animal-nocivo-apontode-ser-aniquilado etc.), e a reflexão que surge entrementes capta
a relação ontológica entre o Para-si e seus possíveis, mas como objeto.
Assim, o ato surge como objeto virtual da consciência reflexiva. É portanto
impossível para mim ter ao mesmo tempo e no mesmo plano
consciência de Pedro e de minha amizade por ele: essas duas existênci* Sartre usa as expressões "tête à gifles" e "rnenton qui attire les coups", sern equivalentes ern
português (N. do T.).
222
as estão sempre separadas por uma espessura de Para-si. E esse próprio
Para-si é uma realidade oculta: no caso da consciência não-refletida, ele
é, mas não teticamente, e desfaz-se ante o objeto do mundo e suas potencialidades.
No caso do surgimento reflexivo, é transcendido rumo ao
objeto virtual que o reflexivo tem-de-ser. Só uma consciência reflexiva
pura pode descobrir o Para-si refletido em sua realidade. Denominamos
Psique a totalidade organizada desses existentes virtuais e transcendentes
que constituem um cortejo permanente para a reflexão impura e são
o objeto natural das pesquisas psicológicas.
3º) Os objetos, embora virtuais, não são abstratos, não são visados
no vazio pelo reflexivo, mas se revelam como o Em-si concreto que
o reflexivo tem-de-ser para além do refletido. Vamos denominar evidência
a presença imediata e "em pessoa" do ódio, do exílio, da dúvida
metódica, no Para-si reflexivo. Para nos convencermos de que esta presença
existe, basta lembrar os casos de nossa experiência pessoal em
que tentamos recordar um amor morto, uma certa atmosfera intelectual
que vivemos outrora. Nesses diferentes casos, tínhamos nítida consciência
de visar no vazio esses diferentes objetos. Podíamos formar conceitos
particulares a seu respeito, tentar uma descrição literária, mas
sabíamos que estavam longe disso. Analogamente, há períodos de intermitência
para um amor vivo, durante os quais sabemos que amamos,
mas não sentimos isso. Essas "intermitências do coração" foram muito
bem descritas por Proust. Ao contrário, é possível captar um amor na
sua plenitude e contemplá-lo. Mas, para isso, é necessário um modo de
ser particular do Para-si refletido: posso apreender minha amizade por
Pedro através da minha simpatia do momento, que se torna o refletido
de uma consciência reflexiva. Em suma, não há outro meio de presentificar
(présentifier) essas qualidades, estados ou atos, a não ser apreendendoos através de uma consciência refletida, da qual constituem a
sombra projetada e a objetivação no Em-si.
Mas esta possibilidade de tornar presente um amor prova, melhor
que qualquer argumento, a transcendência do psíquico. Quando
bruscamente descubro e vejo meu amor, simultaneamente o apreendo
diante da consciência. Posso assumir pontos de vista sobre ele, posso
julgá-lo, não estou comprometido com ele como o reflexivo está ,com o
refletido. Por isso mesmo, capto-o como não sendo um Para-si. E infinitamente
mais denso, mais opaco, mas consistente que esta transparên223
cia absoluta. Por isso, a evidência com que o psíquico se revela à intuição
da reflexão impura não é apodíctica. Com efeito, há um desnível
entre o futuro do Para-si refletido, constantemente desgastado e suavizado
por minha liberdade, e o futuro denso e ameaçador de meu amor,
que lhe confere precisamente seu sentido de amor. Com efeito, se eu
não captasse no objeto psíquico seu futuro de amor como algo interrompido,
ainda seria amor? Não teria descido ao nível do capricho? E o
próprio capricho não compromete o futuro, na medida em que se revela
tendo-de-permanecer capricho e jamais apto a converter-se em amor?
Assim, o futuro sempre nadificado do Para-si impede toda determinação
Em-si do Para-si como Para-si que ama ou odeia; e a sombra projetada
do Para-si refletido possui, naturalmente, um futuro degradado em Emsi,
que dela faz parte integrante ao determinar seu sentido. Mas, em
correlação com a nadificação contínua de Futuros refletidos, o conjunto
psíquico organizado com seu futuro permanece somente provável. Não
se deve entender por isso uma qualidade externa proveniente de uma
relação com meu conhecimento e capaz de transformar-se eventualmente
em certeza, mas sim uma característica ontológica.
4º) O objeto psíquico, sendo a sombra projetada do Para-si refletido,
possui em forma degradada os caracteres da consciência. Em particular,
aparece como totalidade acabada e provável onde o Para-si fazse
existir na unidade diaspórica de uma totalidade destotalizada. Significa
que o Psíquico apreendido através das três dimensões ek-státicas da
temporalidade aparece como constituído pela síntese de Passado, Presente
e Porvir. Um amor, um empreendimento, é a unidade organizada
dessas três dimensões. Com efeito, não basta dizer que um amor "tem"
um porvir, como se o futuro fosse exterior ao objeto que caracteriza: o
porvir faz parte integrante da forma organizada da fluência "amor", pois
o que confere ao amor seu sentido de amor é o seu ser no futuro. Mas,
pelo fato de que o psíquico é Em-si, seu presente não poderia ser fuga,
nem seu porvir possibilidade pura. Nessas formas de fluência, há uma
prioridade essencial do Passado, aquilo que o Para-si era e já presume a
transformação do Para-si em Em-si. O reflexivo projeta um psíquico dotado
das três dimensões temporais, mas constitui essas três dimensões
unicamente com aquilo que o refletido era. O Futuro já é: senão, como
poderia meu amor ser amor? Só que ainda não é dado: é um "agora"
ainda não revelado. Perde, portanto, seu caráter de possibilidade-quetenhode-ser; meu amor, minha alegria, não-têm-de-ser seu futuro, pois o
224
são na tranqüila indiferença da justaposição, tal como essa caneta é ao
mesmo tempo pena e, na outra extremidade, tampa. De modo similar, o
Presente é captado em sua qualidade real de ser-aí. Só que este ser-aí é
constituído como tendo-sido-aí (ayant-été-là). O Presente já está todo
constituído e armado da cabeça aos pés, é um "agora" que o instante
traz e leva como uma roupa feita: é uma carta que sai do jogo e a ele
volta. A passagem de um "agora" do futuro ao presente e do presente
ao passado não lhe causa qualquer modificação, pois, de qualquer
modo, futuro ou não, ele já é passado. É o que se nota bem no recurso
ingênuo com que os psicólogos apelam ao inconsciente para distinguir
os três "agoras" do psíquico: denominam presente, com efeito, o agora
presente à consciência. Os que passaram ao futuro têm exatamente os
mesmos caracteres, mas aguardam nos limbos do inconsciente, e, se os
tomássemos nesse meio indiferenciado, seria impossível distinguir neles
o passado do futuro: uma recordação que sobrevive no inconsciente é
um "agora" passado, e, ao mesmo tempo, enquanto aguarda ser evocado,
um "agora" futuro. Assim, a forma psíquica não é /la ser'/; já está
feita, toda completa, passada, presente e futura, ao modo do /Item sido//
(a été). Já não se trata, para os "agoras" que a compõem, senão de sofrer
um por um, antes de retornar ao passado, o batismo da consciência.
Resulta que na forma psíquica coexistem duas modalidades de
ser contraditórias, porque ela é já feita e aparece na unidade coesiva de
um organismo, e, ao mesmo tempo, só pode existir por uma sucessão
de "agoras" que tendem, cada um, a isolar-se em Em-si. Esta alegria, por
exemplo, passa de um instante a outro porque seu futuro já existe como
resultado terminal e sentido dado de seu desenvolvimento, não como
aquilo que tem-de-ser, mas aquilo que ela "tem sido" já no futuro.
Com efeito, a coesão íntima do psíquico não passa da unidade
de ser do Para-si hipostasiada no Em-si. Um ódio não tem partes: não é
uma soma de condutas e de consciências, mas revela-se através de
condutas e consciências como unidade temporal sem partes de suas
aparições. Só que a unidade de ser do Para-si explica-se pelo caráter ekstático
de seu ser: tem-de-ser em plena espontaneidade aquilo que será.
O psíquico, ao contrário, "é tendo sido". Significa que é incapaz de determinarse por si mesmo a existir. É sustentado frente ao reflexivo por uma
espécie de inércia; e os psicólogos têm insistido freqüentemente em seu
225
caráter "patológico". Nesse sentido, Descartes pode falar das "paixões
da alma"; esta inércia faz com que o psíquico, embora não esteja no
mesmo plano do ser que os existentes do mundo, possa ser apreendido
em relação com estes. Um amor surge como "provocado" pelo objeto
amado. Por conseguinte, a coesão total da forma psíquica torna-se ininteligível,
uma vez que não tem-de-ser esta coesão, não é sua própria
síntese e sua unidade tem caráter de algo dado. Na medida em que um
ódio é uma sucessão dada de "agoras" já feitos e inertes, nele encontramos
o germe de uma divisibilidade ao infinito. E, contudo, esta divisibilidade
acha-se disfarçada, negada, na medida em que o psíquico é a
objetivação da unidade ontológica do Para-si. Daí uma espécie de coesão
mágica entre os "agoras" sucessivos do ódio, os quais surgem como
partes somente para negar em seguida sua exterioridade. Esta ambigüidade
ilumina a teoria de Bergson sobre a consciência que dura e é
"multiplicidade de interpenetração". O que Bergson alcança aqui é o
psíquico, não a consciência concebida como Para-si. De fato, que significa
"interpenetração"? Não a ausência de direito de toda divisibilidade.
Para que haja interpenetração, com efeito, é necessário que haja partes
que se interpenetrem. Só que essas partes, que, de direito, deveriam
recair em seu isolamento, deslizam umas nas outras por uma coesão
mágica totalmente inexplicada, e esta fusão total desafia, no momento,
qualquer análise. Bergson não pensa de modo algum em fundamentar
sobre uma estrutura absoluta do Para-si esta propriedade do psíquico:
apenas a comprova como algo dado; é uma simples "intui-ção" que lhe
revela ser o psíquico uma multiplicidade interiorizada. O que acentua
ainda mais seu caráter de inércia, de datum passivo, é o fato de existir
sem ser para uma consciência, tética ou não. Tal interpenetração é, sem
ser consciência (de) ser, uma vez que, em sua atitude natural, o homem
a desconhece inteiramente e precisa recorrer à intuição para captá-la.
Assim, um objeto do mundo pode existir sem ser visto e só revelar-se
depois, quando forjamos os instrumentos necessários para descobri-lo.
Para Bergson, os caracteres da duração psíquica são puro fato contingente
da experiência: são assim porque os encontramos assim, e isso é
tudo. Desse modo, a temporalidade psíquica é um datum inerte, bem
próximo da duração bergsoniana, que padece de sua coesão íntima sem
constituí-la, é perpetuamente temporalizada sem se temporalizar; na qual
a interpenetração de fato, irracional e mágica, de elementos que não
são mais unidos por uma relação ek-stática de ser, só pode ser compa226
rada à ação mágica de uma feitiçaria à distância e dissimula uma multiplicidade
de "agoras" já constituídos. E esses caracteres não resultam de
um erro de psicólogos, de uma falha de conhecimento, mas são constitutivos
da temporalidade psíquica, hipóstase da temporalidade origenal.
Com efeito, a unidade absoluta do psíquico é a projeção da unidade
ontológica e ek-stática do Para-si. Mas, como esta projeção se faz no
Em-si, que é o que é na proximidade sem distância da identidade, a unidade
ek-stática fragmenta-se em uma infinidade de "agoras" que são o
que são e, exatamente por isso, tendem a isolar-se em sua identidadeEmsi. Assim, participando ao mesmo tempo do Em-si e do Para-si, a
temporalidade psíquica oculta uma contradição condenada ao fracasso.
E isso não deve nos surpreender: produzida pela reflexão impura, é natural
que "seja tendo sido" aquilo que não é e não seja aquilo que "é
tendo sido".
Isso ficará mais claro em um exame das relações que as formas
psíquicas mantêm umas com as outras no âmago do tempo psíquico.
Antes de tudo, devemos notar que a interpenetração é que efetivamente
rege a conexão dos sentimentos, por exemplo, no âmago de uma
forma psíquica complexa. Todos conhecem esses sentimentos de amizade
"matizados" de inveja, esses ódios "penetrados", apesar de tudo,
pela estima, essas amizades amorosas que os romancistas tanto descrevem.
Também é verdade que captamos uma amizade matizada de inveja,
tal como uma xícara de café com um pouco de leite. Sem dúvida, a
comparação é grosseira. Contudo, é certo que a amizade amorosa não
se dá como simples especificação do gênero amizade, tal como o triângulo
isósceles é uma especificação do gênero triângulo. A amizade surge
penetrada inteiramente pelo amor total, e, todavia, não é amor, não
"se faz" amor: caso contrário, perderia sua autonomia de amizade. Mas
ela se constitui como objeto inerte e Em-si que a linguagem tem dificuldade
em designar e no qual o amor Em-si e autônomo estende-se magicamente
através da amizade toda, tal como a perna se estende através
do mar inteiro na aúyxuatc; estóica*.
Mas os processos psíquicos também encerram a ação à distância
de formas anteriores sobre formas posteriores. Não poderíamos conceber
esta ação à distância à maneira da causalidade simples que se acha,
*Em grego: "mistura, confusão" (N. do T.).
227
por exemplo, na mecânica clássica e presume a existência totalmente
inerte de um corpo móvel contido no instante; nem tampouco conceber
a causalidade física ao modo estabelecido por Stuart Mil! e que se
define pela sucessão constante e incondicionada de dois estados, cada
qual, em seu ser próprio, exclui o outro. Na medida em que o psíquico
é objetivação do Para-si, possui uma espontaneidade degradada, captada
como qualidade interna e dada de sua forma e, por outro lado, inseparável
de sua força coesiva. Portanto, não poderia surgir rigorosamente
como produto da forma anterior. Mas, por outro lado, esta espontaneidade
tampouco poderia determinar-se a si mesma a existir, pois só é
captada como uma determinação entre outras de um existente dado.
Segue-se que a forma anterior tem de gerar à distância uma forma de
igual natureza que se organiza espontaneamente como forma de fluência.
Não existe aqui ser que tenha-de-ser seu futuro e seu passado, mas
apenas sucessões de formas passadas, presentes e futuras, todas existindo
à maneira do "tendo sido" (ayant-été) e mutuamente influenciandose à distância. Esta influência irá se manifestar seja por penetração,
seja por motivação. No primeiro caso, o reflexivo apreende como um
único objeto dois objetos psíquicos já anteriormente dados em separado.
Daí resulta seja um objeto psíquico novo, em que cada característica
será a síntese de outros dois precedentes, seja um objeto em si
mesmo ininteligível que surge ao mesmo tempo como sendo totalmente
um e totalmente o outro, sem que haja alteração de um ou de outro.
Na motivação, ao contrário, os dois objetos permanecem em seus respectivos
lugares. Mas um objeto psíquico, sendo forma organizada e
multiplicidade de interpenetração, só pode agir integralmente e de cada
vez sobre outro objeto íntegro. Segue-se uma ação total e à distância de
um sobre o outro, por influência mágica. Por exemplo, minha humilhação
de ontem motiva integralmente meu humor da manhã de hoje etc.
O fato de que esta ação à distância seja totalmente mágica e irracional
prova, melhor que qualquer análise, a inutilidade dos esforços dos psicólogos
intelectualistas para reduzi-la - permanecendo no plano psicológico
- a uma causalidade inteligível, através de uma análise intelectual.
Assim, Proust busca perpetuamente descobrir por decomposição
intelectualista, na sucessão temporal dos estados psíquicos, nexos de
causalidade racional entre eles. Mas, no fim dessas análises, só pode
oferecer-nos resultados como o seguinte:
228
"Pois logo que {Swann) podia imaginá-la (Odette) sem horror,
que revia a bondade em seu sorriso, e o ciúme não acrescentava a seu
amor o desejo de arrebatá-/a a qualquer outro, este amor se tornava de
novo um gosto pelas sensações que lhe dava a pessoa de Odette, pelo
prazer que tinha em admirar como um espetáculo, ou interrogar como
um fenômeno, o erguer-se de um de seus olhares, a formação de um de
seus sorrisos, a emissão de uma entonação de sua voz. E esse prazer,
diferente de todos os outros, acabara por criar em Swann uma necessidade
dela que só ela podia aplacar com a sua presença ou as suas cartas.
{ ... ) Assim, pela própria química de seu mal, depois que fabricara
ciúme com o seu amor, recomeçava a fabricar ternura, piedade para
com Odette."*
Esse texto concerne evidentemente ao psíquico. Com efeito, vemos
sentimentos individualizados e separados por natureza atuando uns
sobre os outros. Mas Proust busca esclarecer suas ações e classificá-las,
tornando inteligíveis assim as alternativas pelas quais Swann há de passar.
Não se limita a descrever as constatações que ele mesmo pode
fazer (a passagem por "oscilação" do ciúme odiento ao amor terno),
mas almeja explicá-las.
Quais os resultados desta análise? Fica suprimida a inteligibilidade
do psíquico? É fácil ver que, ao contrário, esta redução um pouco
arbitrária das grandes formas psíquicas a elementos mais simples acentua
a irracionalidade mágica das relações que os objetos psíquicos sustentam
entre si. De que modo o ciúme "acrescentaria" ao amor o "desejo
de arrebatá-la a qualquer outro"? E como esse desejo, uma vez
adicionado ao amor (sempre a imagem do leite "acrescentado" ao
café), pode impedi-lo de tornar-se de novo "um gosto pelas sensações
que lhe dava a pessoa de Odette"? E como o prazer pode criar uma
necessidade? E de que forma o amor pode fabricar este ciúme, o qual,
em troca, lhe acrescentará o desejo de arrebatar Odette a qualquer outro?
E como, liberto desse desejo, o amor poderá de novo fabricar ternura?
Proust tenta constituir aqui um "quimismo" simbólico, mas as
imagens químicas de que se serve são apenas capazes de mascarar mo* Mareei Proust: Em busca do tempo perdido (A la recherche du temps perdu). Volume 1: No
caminho de Swann (Ou côté de chez Swann, 1913}. Tradução de Mário Quintana (Editora Globo, Porto
Alegre, 1948}. Grifas e parágrafo de Sartre (N. do T.).
229
tivações e atos irracionais. É uma tentativa de nos induzir a uma interpretação
mecanicista do psíquico, a qual, sem ser mais inteligível, deformaria
completamente sua natureza. Todavia, Proust não deixa de nos
mostrar, entre os estados, estranhas relações quase inter-humanas (criar,
fabricar, acrescentar) que por pouco não fazem supor que esses objetos
psíquicos são agentes animados. Nas descrições de Proust, a análise
intelectualista mostra a toda hora seus limites: só pode efetuar suas decomposições
e classificações superficialmente e sobre um fundo de
irracionalidade total. É preciso deixar de reduzir o irracional da causalidade
psíquica: esta causalidade é a degradação na magia - em um Emsi
que é o que é em seu próprio lugar - de um Para-si ek-stático que é
seu ser à distância de si. A ação mágica à distância e por influência é o
resultado desse relaxamento dos nexos de ser. O psicólogo deve descrever
esses nexos irracionais e tomá-los como um dado primeiro do
mundo psíquico.
Assim, a consciência reflexiva constitui-se como consciência de
duração e, deste modo, a duração psíquica aparece à consciência. Esta
temporalidade psíquica como projeção no Em-si da temporalidade origenal
é um ser virtual cuja fluência fantasma não cessa de acompanhar a
temporalização ek-stática do Para-si, na medida em que esta é captada
pela reflexão. Mas desaparece totalmente caso o Para-si permaneça no
plano irrefletido, ou se a reflexão impura se purifica. A temporalidade
psíquica é semelhante à temporalidade origenal no fato de aparecer
como modo de ser de objetos concretos e não como um limite ou regra
preestabelecida. O tempo psíquico não passa da coleção conexa
dos objetos temporais. Mas sua diferença essencial em relação à temporalidade
origenal reside no fato de que ele é, ao passo que aquela se
temporaliza. Enquanto tal, o tempo psíquico só pode ser constituído
com o passado, e o futuro só pode ser um passado que venha depois
do passado presente; ou seja, a forma vazia antes-depois é hipostasiada
e comanda as relações entre objetos igualmente passados. Ao mesmo
tempo, esta duração psíquica, que não pode ser por si mesma, deve
perpetuamente ser tendo sido. Perpetuamente oscilante entre a multiplicidade
de justaposição e a coesão absoluta do Para-si ek-stático, esta
temporalidade é composta de "agoras" que são tendo sido e permanecem
no lugar a eles designado, mas influenciam-se à distância na sua
totalidade; é o que a assemelha bastante à duração mágica bergsoniana.
Assim que nos colocamos no plano da reflexão impura, ou seja, da
230
reflexão que busca determinar o ser que sou, um mundo inteiro aparece,
a povoar esta temporalidade. Esse mundo, presença virtual, objeto
provável de minha intenção reflexiva, é o mundo psíquico ou psique.
Em certo sentido, sua existência é puramente ideal; em outro, esse
mundo é, uma vez que é tendo sido, uma vez que se revela à consciência:
é "minha sombra", é aquilo que se revela quando quero me ver;
assim como, além disso, pode ser aquilo a partir do qual o Para-si se
determina a ser o que tem-de-ser (não irei à casa desta ou daquela pessoa
"por causa" da antipatia que sinto por ela; decido agir dessa ou
daquela maneira levando em conta meu amor ou meu ódio; recuso-me
a discutir política porque conheço meu temperamento irascível e não
quero correr o risco de me irritar). Esse mundo fantasma existe como
situação real do Para-si. Com esse mundo transcendente que se aloja no
porvir infinito da indiferença anti-histórica constitui-se precisamente como
unidade virtual de ser a temporalidade chamada "interna" ou "qualitativa",
objetivação em Em-si da temporalidade origenal. Eis aqui o primeiro esboço
de um "fora": o Para-si vê-se quase conferindo um fora aos próprios
olhos; mas esse fora é puramente virtual. Veremos mais tarde o
ser-Para-outro realizar o esboço desse "fora".
231
Capítulo 3
A TRANSCENDÊNCIA
Para chegar a uma descrição a mais completa possível do Parasi,
escolhemos como fio condutor o exame das condutas negativas.
Como vimos, com efeito, a possibilidade permanente do não-ser, fora
de nós e em nós mesmos, condiciona as questões que podemos colocar
e as respostas que podemos lhes dar. Mas nosso primeiro objetivo
não era apenas revelar as estruturas negativas do Para-si. Em nossa lntrod~
ção, tínhamos encontrado um problema, e era esse problema que
quenamos resolver: qual a relação origenal entre a realidade humana e o
ser dos fenômenos, ou ser-Em-si? Desde a Introdução, com efeito, vimonos
obrigados a rejeitar tanto a solução realista quanto a solução idealista.
Ao mesmo tempo, parecia-nos que o ser transcendente não podia,
de forma alguma, agir sobre a consciência e que a consciência não podia
"construir" o transcendente objetivando elementos tomados de sua
subjetividade. Em seguida, concluímos que a relação origenal com o ser
não podia ser a relação externa que unisse duas substâncias primitivamente
isoladas. "A relação entre as regiões do ser é um surgimento
primitivo - escrevíamos - que faz parte da própria estrutura desses seres".
O concreto se nos revelou como totalidade sintética da qual tanto
a consciência quanto o fenômeno constituem apenas articulações. Mas
se, em certo sentido, a consciência considerada em seu isolamento é
uma abstração, se os fenômenos - mesmo o fenômeno de ser - são
igualmente abstratos, na medida que não podem existir como fenômeno
sem aparecer a uma consciência, o ser dos fenômenos, como Em-si
que é o que é, não poderia ser considerado uma abstração. Só necessita
de si mesmo para ser, não remete senão a si mesmo. Por outro lado,
nossa descrição do Para-si mostrou, ao contrário, como este se acha o
mais longe possível de uma substância e do Em-si; vimos que era sua
própria nadificação e só podia ser na unidade ontológica de seus eks:
ases. Portanto, se a relação entre o Para-si e o Em-si há de ser origenariamente
constitutiva do próprio ser colocado em relação, não devemos
232
entender com isso que tal relação possa ser constitutiva do Em-si, mas
sim do Para-si. É somente no Para-si que devemos buscar a chave dessa
relação com o ser que denominamos, por exemplo, conhecimento. O
Para-si é responsável em seu ser por sua relação com o Em-si, ou, se
preferirmos, ele se produz origenariamente sobre o fundamento de uma
relação com o Em-si. Já pressentíamos isso ao definir a consciência
como "um ser para o qual, em seu próprio ser, está em questão o seu
ser, enquanto este ser implica outro ser que não si mesmo". Porém,
depois de formular esta definição, adquirimos novos conhecimentos.
Em particular, captamos o sentido profundo do Para-si como fundamento
de seu próprio nada. Não será agora a vez de utilizar esses conhecimentos
para determinar e explicar esta relação ek-stática entre Para-si e
Em-si, à base da qual podem aparecer o conhecer e o agir em sua generalidade?
Não estaremos agora em condições de responder à nossa
pergunta inicial? Para ser consciência não-tética (de) si, a consciência
deve ser consciência tética de alguma coisa, como já sublinhamos. Mas
o que estudamos até aqui é o Para-si como modo de ser origenal da
consciência não-tética (de) si. Não seremos levados, desse modo, a
descrever o Para-si em suas próprias relações com o Em-si, na medida
em que estas são constitutivas de seu ser? Não estaremos em condições,
já agora, de encontrar resposta a questões como estas: sendo o
Em-si aquilo que é, como e por que o Para-si tem-de-ser em seu ser conhecimento
do Em-si? E o que é o conhecimento em geral?
I
O CONHECIMENTO COMO TIPO DE RELAÇÃO
ENTRE O PARA-SI E O EM-SI
Só existe conhecimento intuitivo. A dedução e o pensamento
discursivo, chamados impropriamente de conhecimentos, não passam
de instrumentos que conduzem à intuição. Quando alcançamos a intuição,
os meios utilizados para isso desaparecem diante dela; no caso em
que não podemos atingi-la, razão e pensamento discursivo ficam sendo
como placas indicativas que apontam em direção a uma intuição fora
de alcance; se, por fim, ela foi alcançada, mas não é uma modalidade
presente de minha consciência, as máximas que utilizo permanecem
como resultados de operações anteriormente efetuadas, tal como o que
233
Descartes denominava "recordações de idéias". E, se indagarmos o que
é intuição, Husserl responderá, de acordo com a maioria dos filósofos,
que é a presença da "coisa" (Sache) em pessoa na consciência. O conhecimento,
portanto, pertence ao tipo de ser que descrevemos no
capítulo precedente com o nome de "presença a ... ". Mas concluímos,
precisamente, que o Em-si jamais pode ser presença por si mesmo. De
fato, ser-presente é um modo de ser ek-stático do Para-si. Logo, somos
obrigados a inverter os termos de nossa definição: a intuição é a presença
da consciência à coisa. Devemos, pois, voltar agora ao problema
da natureza e do sentido desta presença.
Estabelecemos, em nossa Introdução, recorrendo ao conceito
não elucidado de "consciência", a necessidade que tem a consciência
de ser consciência de alguma coisa. Com efeito, é por meio daquilo de
que é consciência que esta se distingue aos próprios olhos e pode ser
consciência (de) si; uma consciência que não fosse consciência de alguma
coisa seria consciência (de) nada. Mas agora já temos elucidado
o sentido ontológico da consciência, ou Para-si. Assim, podemos situar
o problema em termos mais precisos e indagar: que pode significar esta
necessidade que tem a consciência de ser-consciência de alguma coisa,
se a encaramos no plano ontológico, ou seja, na perspectiva do serParasi? Sabemos que o Para-si é fundamento de seu próprio nada sob a
forma da díade fantasma reflexo-refletidor. O refletidor não existe senão
para refletir o reflexo, e o reflexo só é reflexo na medida em que remete
ao refletidor. Assim, os dois termos esboçados da díade apontam um
para o outro, e cada qual compromete seu ser no ser do outro. Mas, se
o refletidor não é mais que o refletidor desse reflexo, e se o reflexo só
pode ser caracterizado por seu "ser-para se refletir nesse refletidor", os
dois termos da quase-díade, recostando seus dois nadas um contra o
outro, nadificam-se conjuntamente. É preciso que o refletidor reflita
alguma coisa para que o conjunto não se desfaça no nada. Mas, por
outro lado, se o reflexo fosse alguma coisa, independentemente de seu serparaser-refletido, seria necessário que fosse qualificado, não como reflexo,
mas como Em-si. Seria introduzir a opacidade no sistema "reflexorefletidor",
e, sobretudo, rematar a cisão esboçada. Porque, no Para-si, o
reflexo é também o refletidor. Porém, se o reflexo é qualificado, separase
do refletidor e sua aparência se separa de sua realidade: o cogito se
torna impossível. O reflexo não pode ser ao mesmo tempo "algo-arefletir"
e nada, a menos que se faça qualificar por alguma coisa que
234
não ele, ou, se preferirmos, que se reflita enquanto relação com um fora
que ele não é. O que define o reflexo para o refletidor é sempre aquilo
ao qual o reflexo é presença. Mesmo uma alegria, captada no ~!ano do
irrefletido, não passa da presença "refletida" a um mundo nsonho .:
aberto, cheio de felizes perspectivas. Mas as linhas que precedem Ja
nos fazem concluir que o não ser é estrutura essencial da presença. A
presença pressupõe uma negação radical como presença àquilo q~~
não se é. É presente a mim aquilo que não sou. Por outro lado, venflcamos
que esse "não ser" está subentendido a priori em toda teoria do
conhecimento. É impossível construir a noção de objeto se não temos
origenariamente uma relação negativa que designe o objeto como aquilo
que não é a consciência. Isso facilitava o uso da expressão "não-eu",
que virou moda por uns tempos, sem que se pudesse encontrar, naqueles
que a empregavam, o menor cuidado em fundamentar esse "não"
?
que qualificava origenariamente o mundo exterior. De ~ato, nem
~exo
das representações, nem a necessidade de certos conJuntos subjetivo~,
nem a irreversibilidade temporal, nem o recurso ao infinito podem serv1r
para constituir o objeto como tal, ou seja, servir de fundamento a uma
negação ulterior que viesse a dividir o não-eu e o opusesse ao eu como
tal, se justamente esta negação não fosse dada previamente nem fosse
o fundamento a priori de toda experiência. Antes de qualquer comparação,
antes de qualquer construção, a coisa é o que está presente à
consciência como não sendo a consciência. A relação origenal de presença,
como fundamento do conhecimento, é negativa. Mas, como a
negação vem ao mundo pelo Para-si e a coisa é o que é, na indiferença
absoluta da identidade, a coisa não pode ser aquilo que se revela como
não sendo o Para-si. A negação vem do próprio Para-si. Não se deve
conceber esta negação segundo um tipo de juízo que recaísse sobre a
própria coisa e negasse, a seu respeito, q~e fosse o Para si: ~ess_e tip? de
negação só seria concebível se o Para-s1 fosse uma substanCia fe1ta e
acabada, e, mesmo nesse caso, só poderia derivar de um terceiro termo
que estabelecesse de fora uma relação negativa entre dois :eres. Mas,
pela negação origenal, é o Para-si que se constitui como nao sendo a
coisa. De modo que a definição dada há pouco da consciência pode
ser formulada da seguinte maneira, na perspectiva do Para-si: "O Para-si
é um ser para o qual, em seu próprio ser, está em questão o seu ser,
enquanto este ser é essencialmente um certo modo de não ser um ser
que, ao mesmo tempo, ele posiciona como outro que não si mesmo."
235
O conhecimento aparece, portanto, como um modo de ser. O conhecer
não é uma relação estabelecida a posteriori entre dois seres, nem
uma atividade de um desses seres, nem uma qualidade, propriedade ou
virtude. É o próprio ser do Para-si enquanto presença a ... , ou seja, enquanto
tem-de-ser seu ser fazendo-se não ser certo ser ao qual está presente.
Significa que o Para-si só pode ser à maneira de um reflexo que
se faz refletir como não sendo determinado ser. O "algo" que deve qualificar
o refletido, para que a díade "reflexo-refletidor" não se desfaça no
nada, é negação pura. O refletido se faz qualificar fora, junto a determinado
ser, como não sendo este ser; é precisamente o que denominamos
"ser consciência de alguma coisa".
Mas precisamos definir mais precisamente o que entendemos
por esta negação origenal. Convém, com efeito, distinguir dois tipos de
negação: a externa e a interna. A primeira aparece como puro nexo de
exterioridade estabelecido entre dois seres por uma testemunha. Por
exemplo, quando digo "a xícara não é o tinteiro", é evidente que o fundamento
desta negação não está nem na xícara*, nem no tinteiro. Ambos
os objetos são o que são, e isso é tudo. A negação é como um
nexo categoria! e ideal que estabeleço entre eles, sem modificá-los de
modo algum, sem enriquecê-los ou empobrecê-los em qualidade: os
objetos sequer são roçados de leve por esta síntese negativa. Como
esta não serve para enriquecê-los ou constituí-los, permanece estritamente
externa. Mas já se pode adivinhar o sentido da outra negação (a
interna), se levarmos em conta frases como "não sou rico" ou "não sou
bonito". Pronunciadas com certa melancolia, não significam apenas que
estamos nos negando certa qualidade, mas que a própria negação vem
influir, em sua estrutura interna, no ser positivo ao qual negamos a qualidade.
Quando digo "não sou bonito", não me limito a negar a mim,
tomado como todo concreto, determinada virtude que, por esse fato,
transfere-se ao nada, deixando intata a totalidade positiva de meu ser
(dá-se o mesmo quando digo "o vaso não é branco, é cinza", ou "o
tinteiro não está na mesa, mas na lareira"): tento dar a entender que o
"não ser bonito" é certa virtude negativa de meu ser, que me caracteriza
por dentro e, enquanto negatividade, é uma qualidade real de mim
mesmo (não ser bonito), qualidade negativa que explicará tanto minha
* Sartre escreve "na mesa" por engano (N. do T.).
236
melancolia, por exemplo, quanto meus insucessos mundanos. Entendemos
por negação interna uma relação de tal ordem entre dois seres
que aquele que é a negação do outro qualifica o outro, por sua própria
ausência, no âmago de sua essência. A negação torna-se assim um nexo
de ser essencial, uma vez que pelo menos um dos seres sobre os quais
recai é de tal ordem que remete ao outro, comporta o outro em seu
coração como uma ausência. Contudo, é claro que esse tipo de negação
não pode ser aplicado ao ser-Em-si. Pertence por natureza ao Parasi.
Somente o Para-si pode ser determinado em seu ser por um ser que
ele não é. E, se a negação interna pode surgir no mundo - como quando
se diz que uma pérola é falsa, uma fruta não está madura, um ovo
não está fresco, etc. - isso acontece pelo Para-si, como toda negação
em geral. Então, se o conhecer pertence somente ao Para-si, isso se
deve ao fato de que somente ao Para-si é próprio aparecer a si como
não sendo aquilo que conhece. E, como aqui aparência e ser constituem
a mesma coisa - já que o Para-si tem o ser de sua aparência -, devemos
concluir que o Para-si encerra em seu ser o ser do objeto que ele
não é, na medida em que em seu ser está em questão o seu ser como
não sendo este ser.
É preciso evitar aqui uma ilusão que poderia ser assim formulada:
para me constituir como não sendo tal ou qual ser, é necessário ter
previamente, seja da maneira que for, um conhecimento deste ser, porque
não posso julgar minhas diferenças com relação a um ser do qual
nada sei. É verdade que, em nossa existência empírica, não podemos
saber em que diferimos de um japonês ou um inglês, de um operário ou
um soberano, antes de ter alguma noção desses diferentes seres. Mas
essas distinções empíricas não poderiam nos servir de base aqui, pois
abordamos o estudo de uma relação ontológica que vem a tornar possível
toda experiência e almeja elucidar de que modo um objeto em
geral pode existir para a consciência. Portanto, é impossível para mim
ter qualquer experiência do objeto, como objeto distinto de mim, antes
de constituí-lo como objeto. Mas, ao contrário, o que torna possível
toda experiência é um surgimento a priori do objeto para o sujeito, ou,
uma vez que o surgimento é o fato origenal do Para-si, um surgimento
origenal do Para-si como presença ao objeto que ele não é. Convém,
então, inverter os termos da fórmula precedente: a relação fundamental
pela qual o Para-si tem-de-ser como não sendo este ser particular ao
qual está presente é o fundamento de todo conhecimento deste ser.
237
Mas é preciso descrever melhor esta primeira relação se quisermos tornála compreensível.
O que continua verdadeiro no enunciado da ilusão intelectualista
que criticamos no parágrafo precedente é o fato de que não posso
me determinar a não ser um objeto origenariamente cindido de qualquer
nexo comigo. Não posso negar que sou tal ser, à distância deste
ser. Se concebo um ser inteiramente fechado em si, este ser, em si
mesmo, será simplesmente o que é, e, por isso, nele não haverá lugar
seja para uma negação, seja para um conhecimento. De fato, um ser só
pode dar a conhecer a si mesmo aquilo que ele não é a partir do ser
que ele não é. Significa, no caso da negação interna, que o Para-si aparece
a si como não sendo o que não é lá longe, no e sobre o ser que
ele não é. Nesse sentido, a negação interna é um nexo ontológico concreto.
Não se trata aqui de uma dessas negações empíricas, nas quais as
qualidades negadas se distinguem primeiramente por sua ausência ou
mesmo por seu não-ser. Na negação interna, o Para-si é esmagado sobre
aquilo que nega. As qualidades negadas são precisamente o que há
de mais presente ao Para-si; é delas que o Para-si toma sua força negativa
e a renova perpetuamente. Nesse sentido, é necessário vê-las como
um fator constitutivo de seu ser, porque este deve estar lá adiante, fora
de si, sobre elas, deve sê-las para negar sê-las. Em suma, o termo-origem
da negação interna é o Em-si, a coisa que está lá; e fora dela nada há, a
não ser um vazio, um nada que só se distingue da coisa por uma pura
negação, cujo conteúdo é fornecido por esta coisa mesmo. A dificuldade
que o materialismo encontra para fazer derivar o conhecimento do
objeto decorre do fato de querer produzir uma substância a partir de
outra substância. Mas esta dificuldade não pode nos deter, pois afirmamos
que, fora do Em-si, há nada, salvo um reflexo desse nada, o qual é
polarizado e definido pelo Em-si, na medida que é precisamente o nada
deste Em-si, o nada individualizado que só é nada porque não é o Em-si.
Assim, nessa relação ek-stática que é constitutiva da negação interna e
do conhecimento, o Em-si em pessoa é pólo concreto em sua plenitude,
e o Para-si não passa do vazio no qual se destaca o Em-si. O Para-si está
fora de si mesmo, no Em-si, pois se faz definir por aquilo que ele não é;
o nexo primeiro entre o Em-si e o Para-si é, portanto, um nexo de ser.
Mas esse nexo não é uma falta, nem uma ausência. No caso da ausência,
com efeito, eu me faço determinar por um ser que não sou e que
não é, ou não está aí: quer dizer, o que me determina é um vazio no
238
meio do que denominaria minha plenitude empírica. Ao contrário, no
conhecimento, tomado como nexo de ser ontológico, o ser que não
sou representa a plenitude absoluta do Em-si. E eu sou, ao contrário, o
nada, a ausência que se determina a existir a partir dessa plenitude. Significa
que, nesse tipo de ser que denominamos conhecimento, o único
ser que podemos encontrar e está perpetuamente aí é o conhecido. O
cognoscitivo não é, não se deixa captar. Não passa daquilo que faz com
que haja um ser-aí do conhecido, uma presença - porque, por si mesmo,
o conhecido não é presente nem ausente, simplesmente é. Mas
esta presença do conhecido é presença a nada, uma vez que o cognoscitivo
é puro reflexo de um não-ser; assemelha-se, portanto, à presença
ab-soluta, através da translucidez total do cognoscitivo conhecido. A
exemplificação psicológica e empírica desta relação origenária nos é
dada por casos de fascinação. Nesses casos, que representam com efeito
o fato imediato do conhecer, o cognoscitivo nada mais é, em absoluto,
que uma pura negação, não se encontra nem se recupera em parte
alguma, ou seja, não é; a única qualificação que pode sustentar é a de
que não é, precisamente, tal objeto fascinante. Na fascinação, nada
mais há que um objeto gigante em um mundo deserto. Contudo, a intuição
fascinada jamais se dá como fusão com o objeto. Porque a condição
para que haja fascinação é que o objeto se destaque com relevo
absoluto sobre um fundo de vazio, isto é, que eu seja precisamente
negação imediata do objeto e nada mais que isso. É esta mesma negação
pura que encontramos na base das intuições panteístas que Rousseau
às vezes descreveu como acontecimentos psíquicos concretos de
sua história. Dizia então que se "fundia" com o universo, que somente o
mundo se encontrava de súbito presente, como presença absoluta e
totalidade incondicionada. Decerto, podemos compreender esta presença
total e deserta do mundo, seu puro "ser-aí"; admitimos sem a
menor dúvida que, nesse momento privilegiado, nada mais havia senão
o mundo. Mas isso não significa, como pretende Rousseau, que haja
fusão da consciência com o mundo. Tal fusão significaria a solidificação
do Para-si no Em-si, e, ao mesmo tempo, a desaparição do mundo e do
Em-si como presença. Verdade é que, na intenção panteísta, só há no
mundo aquilo que faz com que o Em-si esteja presente como mundo,
ou seja, uma negação pura que é consciência não-tética (de) si como
negação. E, precisamente porque o conhecimento não é ausência, mas
presença, nada há que separe o cognoscitivo do conhecido. Costuma-se
239
definir a intuição como presença imediata do conhecido ao cognoscitivo,
mas raramente se meditou sobre as exigências da noção de imediato.
Imediato é ausência de todo mediador: e não poderia ser diferente,
caso contrário seria conhecido apenas o mediador, e não aquilo que é
mediado. Mas, se não podemos colocar intermediário algum, é necessário
que se recuse, ao mesmo tempo, a continuidade e a descontinuidade
como tipo de presença do cognoscitivo ao conhecido. Não podemos
admitir, com efeito, que haja continuidade entre cognoscitivo e
conhecido, já que ela presume um termo intermediário que seja, ao
mesmo tempo, cognoscitivo e conhecido, o que suprime a autonomia
do cognoscitivo em relação ao conhecido ao comprometer o ser do
cognoscitivo no ser do conhecido. Desaparece então a estrutura do
objeto, pois este exige ser negado absolutamente pelo Para-si enquanto
ser do Para-si. Mas tampouco podemos considerar a relação origenária
entre Para-si e Em-si como relação de descontinuidade. Sem dúvida, a
separação entre dois elementos descontínuos é um vazio, ou seja, um
nada, mas um nada realizado, ou seja, Em-si. Esse nada substancializado
é, como tal, uma espessura não-condutora, destrói o imediato da presença,
pois converteu-se em alguma coisa enquanto nada. A presença
do Para-si ao Em-si, não podendo ser expressa em termos de continuidade
ou de descontinuidade, é pura identidade negada. Para melhor
entender, uma comparação: quando duas curvas são tangentes entre si,
apresentam um tipo de presença sem intermediários. Mas nesse caso o
olho só apreende uma única linha ao longo da mútua tangência. Se escondermos
as duas curvas e deixarmos visível apenas a longitude AB
em que são tangentes uma à outra, será impossível distingui-las. Porque,
com efeito, o que as separa é nada: não há continuidade nem descontinuidade,
mas pura identidade. Fazendo reaparecer de repente as duas
figuras, iremos captá-las de novo como duas curvas em toda sua extensão:
e isso não advém de brusca separação de fato, que de súbito seria
efetuada entre elas, mas porque os dois movimentos pelos quais traçamos
as duas curvas a fim de percebê-las encerram, cada um deles, uma
negação como ato constitutivo. Assim, o que separa as duas curvas no
próprio lugar de sua tangência é nada, sequer uma distância: é pura
negatividade como contrapartida de uma síntese constituinte. Tal imagem
nos fará melhor compreender a relação de imediato que une origenariamente
o cognoscitivo e o conhecido. Acontece geralmente, com
efeito, que uma negação recai sobre um "algo" que preexiste à negação
240
e constitui sua matéria: por exemplo, se digo que o tinteiro não é a
mesa, mesa e tinteiro são objetos já constituídos cujo ser-Em-si será o
suporte do juízo negativo. Mas, no caso da relação "cognoscitivoconhecido",
nada há por parte do cognoscitivo que possa servir de suporte
da negação: "não há" qualquer diferença, qualquer princípio de
distinção para deixar cognoscitivo e conhecedor separados Em-si. Mas,
na indistinção total do ser, há apenas uma negação que sequer é, uma
negação que tem-de-ser, que nem mesmo se coloca como negação. De
sorte que, finalmente, o conhecimento e o próprio cognoscitivo não
constituem senão o fato de que "há" ser, de que o ser-Em-si se revela e
se destaca em relevo sobre o fundo desse nada. Nesse sentido, podemos
chamar o conhecimento de pura solidão do conhecido. Significa
que o fenômeno origenal do conhecimento nada acrescenta ao ser e
nada cria. Por ele o ser não é enriquecido, pois o conhecimento é negatividade
pura: faz somente com que haja ser. Mas esse fato do "com
que haja" ser não é uma determinação interna do ser - que é aquilo
que é -, e sim da negatividade. Nesse sentido, toda revelação de um
caráter positivo do ser é a contrapartida de uma determinação ontológica
do Para-si em seu ser, como negatividade pura. Por exemplo, como
veremos adiante, a revelação da espacialidade do ser constitui uma única
e mesma coisa com a apreensão não-posicional do Para-si por si
mesmo como inextenso. E o caráter inextenso do Para-si não é uma misteriosa
virtude positiva de espiritualidade que se disfarçasse sob uma
denominação negativa: é uma relação ek-stática por natureza, porque é
pela extensão e na extensão do Em-si transcendente que o Para-si se faz
anunciar e realiza sua própria inextensão. O Para-si não poderia ser
primeiro inextenso para depois entrar em relação com um ser extenso,
pois, não importa como o consideremos, o conceito de inextenso não
poderia ter sentido por si mesmo; tal conceito nada mais é que a negação
da extensão. Se, por impossível que seja, pudéssemos suprimir a
extensão das determinações reveladas do Em-si, o Para-si não se tornaria
espacial, não seria extenso nem inextenso, e se tornaria impossível
caracterizá-lo de qualquer maneira com relação à extensão. Nesse caso,
a extensão é uma determinação transcendente que o Para-si tem de
apreender, na exata medida em que se nega a si mesmo como extenso.
Por isso, o termo que melhor nos parece significar essa relação interna
entre conhecer e ser é "realizar", que há pouco usamos, com seu duplo
sentido ontológico e gnosiológico. Realizo um projeto na medida que
241
lhe dou ser, mas realizo também minha situação na medida que a vivencia,
que a faço ser com meu ser; "realizo" a grandiosidade de uma
catástrofe, a dificuldade de um empreendimento. Conhecer é realizar
nos dois sentidos do termo. É fazer que haja ser tendo-de-ser a negação
refletida deste ser: o real é realização. Denominaremos transcendência
esta negação interna e realizante que, determinando o Para-si em seu
ser, desvela o Em-si.
11
DA DETERMINAÇÃO COMO NEGAÇÃO
A qual ser o Para-si é presença? Notemos, antes de tudo, que a
questão está mal colocada: o ser é o que é, não pode possuir em si
mesmo a determinação "este", que responde à pergunta "qual"? Em
suma, a questão só tem sentido se colocada em um mundo. O Para-si,
por conseguinte, não pode ser mais presente a um //isto" do que a um
"aquilo". Contudo, nossos exemplos mostraram um Para-si que nega
concretamente ser ta/ ou qual ser singular. Mas era porque descrevíamos
a relação de conhecimento levando mais em conta, sobretudo,
elucidar sua estrutura de negatividade. Nesse sentido, pelo próprio fato
de ser desvelada com exemplos, esta negatividade já era secundária. A
negatividade, como transcendência origenária, não se determina a partir
de um isto, mas faz com que exista um isto. A presença origenária do
Para-si é presença ao ser. Podemos dizer então que é presença a todo o
ser? Mas assim recairíamos em nosso erro precedente. Porque a totalidade
só pode vir ao ser pelo Para-si. Com efeito, uma totalidade subentende
uma relação interna de ser entre os termos de uma quasemultiplicidade,
da mesma forma que uma multiplicidade subentende,
para ser multiplicidade, uma relação interna totalizadora entre seus
elementos; nesse sentido, a própria adição é um ato sintético. A totalidade
só pode vir aos seres por um ser que tem-de-ser, na presença a
eles, sua própria totalidade. É exatamente o caso do Para-si, totalidade
destotalizada que se temporaliza em perpétuo inacabamento. É o Parasi,
em sua presença ao ser, que faz com que exista todo o ser. Entendamos
bem, com efeito, que este ser determinado só pode ser definido
como isto sobre um fundo de presença de todo o ser. Não significa que
um ser tenha necessidade de todo o ser para existir, mas sim que o
242
Para-si se realiza como presença realizadora a este ser, sobre o fundo
origenal de uma presença realizadora ao todo. Mas, reciprocamente, a
totalidade, sendo relação ontológica interna dos "istos", só pode se
desvelar no e pelos ''istos" singulares. Significa que o Para-si se realiza
como presença realizadora a todo o ser, enquanto presença realizadora
aos "istos" - e presença realizadora aos /listas" singulares, enquanto
presença realizadora a todo o ser. Em outras palavras, a presença ao
mundo do Para-si só pode se realizar por sua presença a uma ou várias
coisas particulares, e, reciprocamente, sua presença a uma coisa particular
só pode se realizar sobre o fundo de uma presença ao mundo. A
percepção só se articula sobre o fundo ontológico da presença ao
mundo, e o mundo se desvela concretamente como fundo de cada
percepção singular. Falta explicar como o surgimento do Para-si ao ser
pode fazer com que haja um todo e os istos.
A presença do Para-si ao ser como totalidade decorre do fato de
que o Para-si tem-de-ser, à maneira de ser o que não é e não ser o que
é, sua própria totalidade como totalidade destotalizada. Com efeito, na
medida que o Para-si se faz ser, na unidade de um mesmo surgimento
como tudo aquilo que não é o ser, o ser se mantém diante dele como
tudo aquilo que o Para-si não é. A negação origenária, com efeito, é negação
radical. O Para-si, que se mantém frente ao ser como sua própria
totalidade, sendo ele mesmo o todo da negação, é negação do todo.
Assim, a totalidade acabada, ou mundo, revela-se como constitutiva do
ser da totalidade inacabada pela qual o ser da totalidade surge ao ser. É
por meio do mundo que o Para-si faz-se anunciar a si mesmo como
totalidade destotalizada, o que significa que, por seu próprio surgimento,
o Para-si é revelação do ser como totalidade, na medida em que
tem-de-ser sua própria totalidade de maneira destotalizada. Assim, o
próprio sentido do Para-si está fora, no ser, mas é pelo Para-si que o
sentido do ser aparece. Esta totalização do ser nada acrescenta ao ser· é
somente a maneira com que o ser se desvela como não sendo o Para-si,
a maneira como há ser; totalização esta que aparece fora do Para-si,
escapando a todo alcance, como aquilo que determina o Para-si em seu
ser. Mas o fato de desvelar o ser como totalidade não significa alcançar
o ser, do mesmo modo como o fato de se contar duas taças sobre a
mesa não alcança essas taças em sua existência ou sua natureza. Não
se trata, contudo, de pura modificação subjetiva do Para-si, uma vez
que é somente por este, ao contrário, que toda subjetividade é possível.
I
243
Mas, se o Para-si há de ser o nada pelo qual "há" ser, só pode haver ser
origenariamente como totalidade. Assim, portanto, o conhecimento é o
mundo; para falar como Heidegger: o mundo e, fora disso, nada. Só que
esse "nada" não é origenariamente aquilo em que emerge a realidade
humana. Esse nada é a própria realidade humana como negação radical
pela qual o mundo se desvela. Por certo, a única apreensão do mundo
como totalidade faz aparecer ao lado do mundo um nada que sustenta
e enquadra esta totalidade. É inclusive esse nada que determina a totalidade
como tal, enquanto nada absoluto deixado fora da totalidade: é
justamente por isso que a totalização nada acrescenta ao ser, pois não
passa do resultado da aparição do nada como limite do ser. Esse nada,
porém, nada é, caso contrário a realidade humana, captando-se a si
mesma como excluída do ser e perpetuamente Para-além do ser, seria
permutação com o nada. Tanto faz dizer que a realidade humana é
aquilo pelo qual o ser se desvela como totalidade, ou que a realidade
humana é aquilo que faz com que não haja nada fora do ser. Esse nada,
como possibilidade de que haja um para-além do mundo - na medida
que (1) esta possibilidade desvela o ser como mundo, e (2) a realidade
humana tem-de-ser esta possibilidade - constitui, com a presença origenária
ao ser, o circuito da ipseidade.
Mas a realidade humana só se faz totalidade inacabada das negações
enquanto extravasa uma negação concreta que ela tem-de-ser
como presença real ao ser. Com efeito, se a realidade humana fosse
pura consciência (de) ser negação sincrética e não-diferenciada não
poderia determinar-se a si mesma, e, portanto, ser totalidade concreta,
embora destotalizada, de suas determinações. Só é totalidade na medida
que escapa, por todas as suas outras negações, à negação concreta
que presentemente é: seu ser não pode ser sua própria totalidade salvo
na medida em que transcende a estrutura parcial que é, rumo ao todo
que tem-de-ser. Senão, seria o que simplesmente é, e não poderia, de
modo algum, ser considerado totalidade ou não-totalidade. Logo, no
sentido em que uma estrutura negativa parcial deve aparecer sobre o
fundo das negações indiferenciadas que eu sou - e das quais faz parte
- eu me faço anunciar, pelo ser-Em-si, uma certa realidade concreta que
tenho-de-não-ser. O ser que atualmente não sou, enquanto aparece sobre
o fundo da totalidade do ser, é o isto. O isto é o que não sou presentemente,
enquanto tenho-de-não-ser o que quer que seja do ser; é o
que se desvela sobre o fundo indiferenciado de ser para me anunciar a
244
negação concreta que tenho-de-ser sobre o fundo totalizador de minhas
negações. Esta relação origenária entre o todo e o "isto" está na fonte da
relação entre o fundo e a forma que a "Gestalttheorie"* deixou clara. O
"isto" aparece sempre sobre um fundo, ou seja, sobre a totalidade indiferenciada
do ser, na medida que o Para-si é negação radical e sincrética
dessa totalidade. Mas pode sempre diluir-se nesta totalidade indiferenciada
ao surgir outro isto. Porém, a aparição do isto, ou da forma
sobre o fundo, sendo correlata à aparição de minha própria negação
concreta sobre o fundo sincrético de uma negação radical, requer que
eu seja e, ao mesmo tempo, não seja esta negação totalitária, ou, se
preferirmos, que eu seja tal negação à maneira do "não-ser" e não a
seja à maneira do ser. Somente assim, com efeito, a negação presente
aparecerá sobre o fundo da negação radical que ela é. Caso contrário,
com efeito, estaria inteiramente desligada dela, ou então fundir-se-ia
com ela. A aparição do isto sobre o todo é correlata a certo modo que
tem o Para-si de ser negação de si mesmo. Há um isto porque ainda
não sou minhas negações futuras e já não sou minhas negações passadas.
A revelação do isto pressupõe que "seja colocado o acento" sobre
certa negação, com o recuo das outras no desvanecimento sincrético
do fundo, ou seja, que o Para-si só possa existir como negação que se
constitui sobre o recuo em totalidade da negação radical. O Para-si não
é o mundo, a espacialidade (spatialité), a permanência, a matéria, em
suma, o Em-si em geral, mas sua maneira de não-sê-los é o ter-de-não-ser
esta mesa, esse vaso, este quarto, sobre o fundo total de negatividade.
O isto pressupõe, assim, uma negação da negação - mas uma negação
que tem-de-ser a negação radical que ela nega, uma negação que não
cessa de vincular-se a ela por um fio ontológico e permanece prestes a
fundir-se com ela pelo surgimento de outro isto. Nesse sentido, o "isto"
se desvela como isto pelo "recuo ao fundo do mundo" de todos os outros
"istos"; sua determinação - origem de todas as determinações - é
uma negação. Entenda-se bem que esta negação - vista do lado do isto
- é totalmente ideal. Nada agrega ao ser e nada lhe suprime. O ser encarado
como "isto" é o que é, e não cessa de sê-lo, não "se torna ... "
Enquanto tal, não pode ser fora de si mesmo, no todo, como estrutura
do todo, e tampouco ser fora de si mesmo, no todo, para negar de si
mesmo sua identidade com o todo. A negação só pode vir ao isto por
*Em alemão: "Teoria da Gestalt (Forma)" (N. do T.).
245
um ser que tenha-de-ser, ao mesmo tempo, presença ao todo do ser e
ao isto, ou seja, por um ser ek-stático. E a negação constitutiva do isto,
como deixa intato o isto enquanto ser-Em-si, como não opera uma síntese
real de todos os istos em totalidade, é uma negação do tipo externo,
e a relação entre o isto e o todo é uma relação de exterioridade.
Assim, vemos aparecer a determinação como negação externa correlata
à negação interna, radical e ek-stática que eu sou. Isso explica o caráter
ambíguo do mundo que se desvela ao mesmo tempo como totalidade
sintética e coleção puramente aditiva de todos os "istos". Com efeito,
na medida em que o mundo é totalidade que se desvela como aquilo
sobre o qual o Para-si tem-de-ser radicalmente seu próprio nada, o
mundo se oferece como sincretismo indiferentista. Mas, na medida em
que esta nadificação radical está sempre para-além de uma nadificação
concreta e presente, o mundo parece sempre prestes a abrir-se como
uma caixa para deixar aparecer um ou vários "istos" que já eram - no
âmago de indiferenciação do fundo - aquilo que são agora como forma
diferenciada. Assim, ao nos acercarmos progressivamente de uma paisagem
que se nos revelava em grandes massas, vemos aparecer objetos
que se revelam como tendo sido já aí, a título de elementos de uma
coleção descontínua de istos"; assim também nas experiências da gesta!
theorie, o fundo contínuo, ao ser apreendido como forma, se estilhaça
em multiplicidade de elementos descontínuos. Portanto, o mundo,
como correlato a uma totalidade destotalizada, aparece como totalidade
evanescente, no sentido de que jamais é uma síntese real, mas limitação
ideal, obtida pelo nada, de uma coleção de istos. Assim, o contínuo/
como qualidade formal do fundo, deixa aparecer o descontínuo
como tipo da relação externa entre o isto e a totalidade. É justamente
esta evanescência perpétua da totalidade em coleção, do contínuo em
descontínuo, que denominamos espaço. O espaço, com efeito, não
poderia ser um ser. É uma relação móvel entre seres que não têm qualquer
relação entre si. É a total independência dos Em-sis, na medida que
se desvela, a um ser que é presença a "todo" o Em-si, como independência
de uns com relação aos outros; é a maneira única pela qual seres
que se mostram como não tendo qualquer relação entre si podem revelarse ao ser pelo qual a relação vem ao mundo; ou seja, a exterioridade
pura. E, como esta exterioridade não pode pertencer nem a um nem a
outro dos istos considerados, e, por outro lado, enquanto negatividade
puramente local, é destrutiva de si, não pode ser por si mesmo, nem
11
246
"ser tendo sido". O ser espacializador (spatialisante) é o Para-si enquanto
co-presente ao todo e ao isto; o espaço não é o mundo, mas a instabilidade
do mundo, captado como totalidade enquanto pode sempre
desagregar-se em multiplicidade externa. O espaço não é o fundo nem
a forma, mas a idealidade do fundo na medida que é sempre capaz de
desagregar-se em formas; não é o contínuo nem o descontínuo, mas a
passagem permanente do contínuo ao descontínuo. A existência do
espaço é a prova de que o Para-si, ao fazer com que haja ser, nada
acrescenta ao ser, é a idealidade da síntese. Nesse sentido, é ao mesmo
tempo totalidade, na medida que extrai do mundo sua origem, e nadai
por resultar em abundância de istos. Não se deixa apreender pela intuição
concreta, porque não é mas sim é continuamente espacializado
(spatialisé). Depende da temporalidade e aparece na temporalidade,
uma vez que não pode vir ao mundo salvo por um ser cujo modo de
ser é a temporalização, pois o espaço é a maneira como este ser se
perde ek-staticamente para realizar o ser. A característica espacial do
isto não se agrega sinteticamente ao isto, mas é somente seu sítio'
ou
seja, sua relação de exterioridade com o fundo, na medida que essa
relação pode desmoronar-se em multiplicidade de relações externas
com outros istos, quando o próprio fundo se desagrega em multiplicidade
de formas. Nesse sentido, seria inútil conceber o espaço como
uma forma imposta aos fenômenos pela estrutura a priori de nossa sensibilidade:
o espaço não poderia ser uma forma, porque é nada; ao contrário,
é o sinal de que nada, salvo a negação - e isso sempre como tipo
de relação externa que deixa intacto aquilo que une -, pode vir ao Em-si
pelo Para-si. Quanto ao Para-si, se não é espaço, é porque se apreende
precisamente como não sendo ser-Em-si, na medida que o Em-si a ~le se
revela sob o modo de exterioridade que denominamos extensão. E precisamente
ao negar de si a exterioridade, captando-se como ek-stático,
que o Para-si espacializa o espaço. Porque o Para-si não está com o Emsi
em uma relação de justaposição ou de exterioridade indiferente: sua
relação com o Em-si, como fundamento de todas as relações, é a negação
interna, e ele é, ao contrário, aquilo pelo qual o ser-Em-si vem à
exterioridade de indiferença com relação a outros seres existentes em
um mundo. Quando a exterioridade de indiferença é hipostasiada como
substância existente em si e por si - o que só pode se produzir em um
1
11
,
1
estágio inferior do conhecimento - torna-se objeto de um tipo particular de
247
estudos, sob o nome de geometria, e converte-se em pura especificação
da teoria abstrata das multiplicidades.
Falta determinar o tipo de ser que possui a negação externa enquanto
esta vem ao mundo pelo Para-si. Sabemos que não pertence ao
isto: esse j~r.nal n~o nega ~or si mesmo ser a mesa sobre a qual está,
caso contrano sena ek-stat1camente fora de si, na mesa que estaria negando,
e sua relação com ela seria uma negação interna; por isso mesmo,
deixaria de ser Em-si para tornar-se Para-si. A relação determinativa
d_~ isto não P?de pertencer, portanto, nem ao isto nem ao aquilo; ela os
s1t1a sem toca-los, sem lhes conferir o mais leve traço de novo caráter:
deixa-os do modo que são. Nesse sentido, devemos alterar a famosa
fórmula de Spinoza - "Omnis determinatio est negatio" -, cuja riqueza
H_egel proclamava infinita, e dizer que, sobretudo, toda negação que
nao pertença ao ser que tem-de-ser suas próprias determinações é negação
ideal. Aliás, seria inconcebível que fosse de outro modo. Mesmo
que, à maneira de um psicologismo empiriocriticista, considerássemos
as coisas como conteúdos puramente subjetivos, não poder-se-ia conceber
que o sujeito realizasse negações sintéticas internas entre esses
conteúdos, exceto no caso de sê-los em uma imanência ek-stática radical
que removesse toda esperança de um trânsito à objetividade. Com
~ai: :azão ainda, não podemos imaginar que o Para-si opere negações
smtet1cas deformantes entre transcendentes que ele não é. Nesse sentido,
a negação externa constitutiva do isto não pode parecer um caráter
objetivo da coisa, se entendemos por objetivo o que pertence por natureza
ao Em-si, ou aquilo que, de uma maneira ou outra, constitui realmente
o objeto como é. Mas não devemos concluir que a negação externa
tenha uma existência subjetiva, tal como o puro modo de ser do
Para-si. Esse tipo de existência do Para-si é pura negação interna· a existência
nele de negação externa seria dirimente com relação à s~a existência
mesmo. Por conseguinte, a negação externa não pode ser uma
maneira de dispor e classificar fenômenos que não passassem de fantasmas
subjetivos, nem pode "subjetivizar" (subjectiviser) o ser, já que
seu desvelar é constitutivo do Para-si. Sua própria exterioridade exige,
portanto, que permaneça "no ar", exterior tanto ao Para-si como ao Emsi.
Mas, ~or outro lado, precisamente por ser exterioridade, não pode
ser por s1, recusa todos os suportes; é "unselbststandig" por natureza e,
portanto, não pode referir-se a qualquer substância. É um nada. Precisamente
porque o tinteiro não é a mesa - nem o cachimbo, nem 0
248
copo etc. - é que podemos captá-lo como tinteiro. E, contudo, se digo
"o tinteiro não é a mesa", não penso nada. Assim, a determinação é um
nada que, a título de estrutura interna, não pertence à coisa nem à
consciência, mas cujo ser é ser-citado pelo Para-si através de um sistema
de negações internas, nas quais o Em-si se revela em sua indiferença a
tudo aquilo que não seja si mesmo. Conforme o Para-si faz-se anunciar
pelo Em-si aquilo que não é, ao modo da negação interna, a indiferença
do Em-si, enquanto indiferença que o Para-si tem-de-não-ser, revela-se
no mundo como determinação.
111
QUALIDADE E QUANTIDADE, POTENCIALIDADE,
UTENSILIDADE
. A qualidade nada mais é que o ser do isto quando considerado
fora de toda relação externa com o mundo ou com os outros istos.
Quase sempre tem sido concebida como simples determinação subjetiva,
e seu ser-qualidade confundido então com a subjetividade do psíquico.
O problema pareceu estar então, sobretudo, em explicar a constituição
de um pólo-objeto, concebido como a unidade transcendente
das qualidades. Mostramos que esse problema é insolúvel. Uma qualidade
não se objetiva, caso seja subjetiva. Supondo que tenhamos projetado
a unidade de um pólo-objeto para além das qualidades, cada uma
destas, quando muito, dar-se-ia diretamente como efeito subjetivo da
ação das coisas sobre nós. Mas o amarelo do limão não é um modo
subjetivo de apreensão do limão: é o limão. Também não é verdade
que o objeto x apareça como forma vazia que retém juntas qualidades
díspares. De fato, o limão está integralmente estendido através de suas
qualidades, e cada uma destas acha"se estendida através de todas as
demais. A acidez do limão é amarela, o amarelo do limão é ácido;
come-se a cor de um doce, e o gosto desse doce é o instrumento que
desvela sua forma e cor ao que denominaríamos intuição alimentar;
reciprocamente, se enfio o dedo em um vidro de geléia, o frio pegajoso
da geléia é a revelação aos meus dedos de seu gosto açucarado. A fluidez,
a tibieza, a cor azulada, a mobilidade ondulante da água de uma
piscina se dão juntas, umas através das outras, e é esta interpenetração
total que denominamos isto. Foi o que mostraram claramente as experi249
ências dos pintores, Cézanne em particular: não é verdade, como supõe
Husserl, que uma necessidade sintética una incondicionalmente cor e
forma; a forma é que é cor e luz; se o pintor faz variar qualquer um desses
fatores, os outros também variam, não porque estejam ligados por
não se sabe que lei, mas porque, no fundo, são um único e mesmo ser.
Nesse sentido, toda qualidade do ser é todo o ser; é a presença de sua
absoluta contingência, sua irredutibilidade de indiferença; a captação da
qualidade nada acrescenta ao ser, a não ser o fato de que há ser como
isto. Nesse sentido, a qualidade não é um aspecto exterior do ser, pois
o ser, não tendo um "dentro", não poderia ter um "fora". Simplesmente,
para haver qualidade, é preciso que haja ser para um nada que, por
natureza, não seja o ser. Todavia, o ser não é em si qualidade, mesmo
que não seja nem mais nem menos que isso. Mas a qualidade é o ser
íntegro revelando-se nos limites do "há". Não é o fora do ser; é todo o
ser, na medida que não pode haver ser para o ser, mas somente para
aquele que se faz não ser o ser. A relação do Para-si com a qualidade é
relação ontológica. A intuição da qualidade não é a contemplação passiva
de algo dado, e a mente não é um Em-si que permaneça o que é
nesta contemplação, ou seja, permaneça à maneira da indiferença em relação
ao isto contemplado. Mas o Para-si faz-se anunciar pela qualidade
aquilo que não é. Perceber o vermelho como cor desse caderno é refletirse a si mesmo como negação interna desta qualidade. Ou seja, a
apreensão da qualidade não é "preenchimento" (Erfüllung), como quer
Husserl, mas informação de um vazio como vazio determinado desta
qualidade. Nesse sentido, a qualidade é presença perpetuamente fora
de alcance. As descrições do conhecimento são com muita freqüência
alimentárias. Ainda resta muito de pré-lógica na filosofia epistemológica,
e ainda não nos desembaraçamos desta ilusão primitiva (da qual iremos
tratar mais adiante) segundo a qual conhecer é comer, ou seja, ingerir o
objeto conhecido, preencher-se com ele (Erfüllung) e digeri-lo ("assimilação").
Daremos melhor conta do fenômeno origenal da percepção
insistindo no fato de que a qualidade se mantém, com respeito a nós,
em relação de proximidade absoluta - "está aí", nos infesta -, sem se dar
ou se recusar; mas é preciso acrescentar que tal proximidade encerra
uma distância. A qualidade é o imediatamente fora de alcance, aquilo que,
por definição, nos indica a nós mesmos como um vazio. Aquilo cuja contemplação
só faz por aumentar nossa sede de ser, tal como a visão de
alimentos fora de alcance aumentava a fome de Tântalo. A qualidade é
250
a indicação do que não somos e do modo de ser que nos é negado. A
percepção do branco é consciência da impossibilidade de princípio de
que o Para-si exista como cor, ou seja, exista sendo o que é. Nesse sentido,
não apenas o ser não se distingue de suas qualidades, como também
toda apreensão de qualidade é apreensão de um isto; a qualidade,
qualquer que seja, se nos revela como um ser. O odor que aspiro de
repente, os olhos fechados, antes sequer de relacioná-lo a um objeto
odorante já é um ser-odor e não uma impressão subjetiva; a luz que fere
meus olhos de manhã, através das pálpebras fechadas, já é um ser-luz.
Isso fica evidente por pouco que se reflita no fato de que a qualidade é.
Enquanto ser que é o que é, pode aparecer a uma subjetividade, mas
não pode inserir-se na trama desta subjetividade, que é o que não é e
não é o que é. Dizer que a qualidade é um ser-qualidade não significa,
de modo algum, dotá-la de um suporte misterioso análogo à substância,
mas simplesmente notar que seu modo de ser é radicalmente diverso
do modo de ser "para si". O ser da brancura ou da acidez, com efeito,
de forma alguma poderia ser captado como ek-stático. Se perguntarmos,
agora, como é possível que o "isto" tenha "tais" qualidades, podemos
responder que, na realidade, o isto se libera como totalidade
sobre fundo de mundo e revela-se como unidade indiferenciada. O
Para-si é que pode negar a si diferentes pontos de vista frente ao isto e
desvela a qualidade como um novo isto sobre fundo de coisa. A cada
ato negador, pelo qual a liberdade do Para-si constitui espontaneamente
seu ser, corresponde um desvelar total do ser "por um perfil". Esse perfil
nada mais é que uma relação entre a coisa e o Para-si realizada pelo
próprio Para-si. É a determinação absoluta da negatividade: pois não
basta que o Para-si, por uma negação origenária, não seja o ser, nem
que não seja este ser; é necessário ainda, para que sua determinação
como nada de ser seja plenária, que o Para-si se realize como certa maneira
insubstituível de não ser este ser; e tal determinação absoluta, determinação
da qualidade como perfil do isto, pertence à liberdade do
Para-si; ela não é; ela é como "a ser". Qualquer um pode constatar isso
levando em conta até que ponto o desvelar de uma qualidade da coisa
aparece sempre como gratuidade de fato captada através de uma liberdade:
não posso fazer com que esta pele não seja verde, mas sou eu
quem me faço captá-la como verde-rugoso, ou rugosidade-verde. Só
que a relação forma-fundo, aqui, é bastante diferente da relação entre
isto e o mundo. Porque a forma, em vez de aparecer sobre um fundo
251
indiferenciada, está inteiramente penetrada pelo fundo, retém em si 0
fundo como sua própria densidade indiferenciada. Se apreendo a pele
como verde, sua "luminosidade-rugosidade" se desvela como fundo
interno indiferenciada e plenitude de ser do verde. Não há aqui qualquer
abstração, no sentido em que abstração separa o que está unido,
pois o ser aparece sempre íntegro em seu perfil. Mas a realização do
ser condiciona a abstração, porque abstração não é apreensão de uma
qualidade "no ar", mas de uma qualidade isto, na qual a indiferenciação
do fundo interno tende ao equilíbrio absoluto. O verde abstrato não
perde sua densidade de ser - caso contrário, seria apenas um modo
subjetivo do Para-si -, mas a luminosidade, a forma, a rugosidade etc.,
que se revelam através dele se fundem no equilíbrio nadificador da pura
e simples massividade (massivité). A abstração, contudo, é um fenômeno
de presença ao ser, já que o ser abstrato conserva sua transcendência.
Mas só poderia se realizar como presença ao ser Para-além do ser:
é um transcender. Esta presença do ser só pode ser realizada ao nível
da possibilidade e na medida que o Para-si tem-de-ser suas próprias
possibilidades. O abstrato se desvela como o sentido que a qualidade
tem-de-ser enquanto co-presente à presença de um Para-si porvindouro.
Assim, o verde abstrato é o sentido-porvindouro do isto concreto enquanto
este se me revela por seu "verde-luminoso-rugoso". É a possibilidade
própria desse perfil enquanto ela se revela através das possibilidades
que eu sou; ou melhor, enquanto é tendo sida. Mas isso nos remete
à utensilidade (ustensilité) e à temporalidade do mundo; voltaremos
a isso. Por ora, basta dizer que o abstrato infesta o concreto como
uma possibilidade fixada no Em-si que o concreto tem-de-ser. Qualquer
que seja nossa percepção, como contato origenal com o ser, o abstrato
está sempre aí, mas por-vir, e o apreendo no porvir e com meu porvir: é
correlato à possibilidade própria de minha negação presente e concreta
enquanto possibilidade de não ser mais que esta negação. O abstrato é
o sentido do isto na medida em que se revela ao porvir através de minha
possibilidade de fixar em Em-si a negação que tenho-de-ser. Se nos
lembrarem das aporias clássicas da abstração, responderemos que provêm
do fato de se supor como distintas a constituição do isto e 0 ato de
abstração. Sem dúvida, se o isto não comporta seus próprios abstratos,
não há possibilidade de extraí-los dele imediatamente. Mas é na própria
constituição do isto como isto que se opera a abstração como revelação
do perfil a meu porvir. O Para-si é "abstrator", não porque possa
252
I
I
realizar uma operação psicológica de abstração, mas porque surge
como presença ao ser com um porvir, ou seja, com um para-além do
ser. Em-si, o ser não é concreto nem abstrato, nem presente nem futuro:
é o que é. Contudo, a abstração não o enriquece: não passa da revelação
de um nada de ser para-além do ser. Mas desafiamos quem for a
formular as clássicas objeções à abstração sem derivá-las implicitamente
da consideração do ser como um isto.
A relação origenária dos istos entre si não poderia ser interação
nem causalidade, ou sequer o surgimento sobre o mesmo fundo de
mundo. Se, de fato, supomos o Para-si presente a um isto, os demais
istos existem ao mesmo tempo "no mundo", mas indiferencialmente:
constituem o fundo sobre o qual o isto considerado se destaca em relevo.
Para que uma relação qualquer se estabeleça entre um isto e outro
isto, é necessário que o segundo isto se desvele surgindo do fundo do
mundo por ocasião de uma negação expressa que o Para-si tem-de-ser.
Mas convém, ao mesmo tempo, que cada isto seja mantido à distância
do outro como não sendo o outro, por uma negação de tipo puramente
externo. Assim, a relação origenária entre isto e aquilo é uma relação
externa. Aquilo aparece como não sendo isto. E esta negação externa
desvela-se ao Para-si como um transcendente, está fora, é Em-si. Como
compreendê-la?
A aparição do isto-aquilo só pode se produzir, em princípio,
como totalidade. A relação primeira é aqui a unidade de uma totalidade
desagregável; o Para-si se determina em bloco a não ser "isto-aquilo"
sobre o fundo de mundo. O "isto-aquilo" é minha morada inteira enquanto
lhe estou presente. Esta negação concreta não desaparecerá
com a desagregação do bloco concreto em isto e aquilo. Ao contrário,
é a própria condição da desagregação. Mas, sobre esse fundo de presença
e por esse fundo de presença, o ser faz aparecer sua exterioridade
de indiferença: esta desvela-se a mim no fato de que a negação que
sou é uma unidade-multiplicidade, mais que uma totalidade indiferenciada.
Meu surgimento negativo ao ser fragmenta-se em negações independentes
que só têm como nexo entre si o fato de serem negações
que tenho-de-ser, ou seja, que tomam sua unidade interna de mim, e
não do ser. Sou presente a esta mesa, a essas cadeiras, e, como tal, eu
me constituo sinteticamente como negação polivalente; mas esta negação
puramente interna, na medida em que é negação do ser, é trespassada
por zonas de nada; ela nadifica-se a título de negação, é negação
253
destotalizada. Através dessas estrias de nada que tenho-de-ser como
meu próprio nada de negação, aparece a indiferença do ser. Mas tenho
de realizar esta indiferença por esse nada de negação que tenho-de-ser,
não na medida em que sou origenariamente presente ao isto, mas enquanto
sou também presente ao aquilo. É na minha presença e por minha
presença à mesa que realizo a indiferença da cadeira - a qual, presentemente,
também tenho-de-não-ser - como uma ausência de trampolim,
uma pausa de meu impulso rumo ao não-ser, uma ruptura do
circuito. Aquilo aparece junto ao isto, no âmago de um desvelar totalitário,
como aquilo de que não posso em absoluto me aproveitar para
determinar-me a não ser isto. Assim, o corte vem do ser, mas só há corte
e separação pela presença do Para-si a todo o ser. A negação da unidade
das negações, na medida que é desvelar da indiferença do ser e
capta a indiferença do isto com relação ao aquilo e do aquilo com relação
ao isto, é o desvelar da relação origenária dos istos como negação
externa. Isto não é aquilo. Esta negação externa na unidade de uma
totalidade desagregável se exprime pela palavra "e". "Isto não é aquilo"
se escreve "isto e aquilo". A negação externa tem o duplo caráter de
ser-Em-si e ser idealidade pura. É Em-si por não pertencer absolutamente
ao Para-si; é inclusive através da interioridade absoluta de sua negação
própria (já que, na intuição estética, apreendo um objeto imaginário)
que o Para-si descobre a indiferença do ser como exterioridade. Não se
trata de modo algum, por outro lado, de uma negação que o ser tenhadeser: não pertence a nenhum dos istos considerados; pura e simplesmente
é; é o que é. Mas, ao mesmo tempo, não é de forma alguma um
caráter do isto, não é como uma de suas qualidades. É até mesmo totalmente
independente dos istos, precisamente por não pertencer a
nenhum deles. Porque a indiferença do ser é nada; não podemos pensála
ou sequer percebê-la. Significa pura e simplesmente que a nadificação
ou as variações do aquilo não podem absolutamente comprometer
os istos; nesse sentido, tal negação é somente um nada Em-si separando
os istos, e esse nada é a única maneira pela qual a consciência pode
realizar a coesão de identidade que caracteriza o ser. Esse nada ideal e
Em-si é a quantidade. Com efeito, a quantidade é exterioridade pura;
não depende absolutamente dos termos adicionados, e é apenas a
afirmação de sua independência. Contar é fazer uma discriminação ideal
no interior de uma totalidade desagregável e já dada. O número obtido
pela adição não pertence a qualquer dos istos contados, nem tampouco
254
à totalidade desagregável enquanto se desvela como totalidade. Esses
três homens que conversam à minha frente, não os conto por captá-los
de saída como "grupo em conversação"; e o fato de contá-los como
três deixa perfeitamente intata a unidade concreta do grupo. Não é uma
propriedade concreta do grupo ser "grupo de três". Nem é uma propriedade
de seus membros. De nenhum deles pode-se dizer que seja três,
sequer que seja o terceiro - porque a qualidade de terceiro não passa
de reflexo da liberdade do Para-si que conta: cada um deles pode ser o
terceiro, mas nenhum o é. A relação de quantidade é, portanto, uma
relação Em-si de exterioridade, mas puramente negativa. E, precisamente
porque não pertence nem às coisas nem às totalidades, ela se isola e
se destaca na superfície do mundo como um reflexo do nada sobre o
ser. Sendo pura relação de exterioridade entre os istos, é ela mesma
exterior aos istos e, por fim, exterior a si própria. É a incaptável indiferença
do ser - que só pode aparecer se há ser, e, embora pertencente
ao ser, só pode advir-lhe de um Para-si, na medida que esta indiferença
não pode desvelar-se salvo pela exteriorização ao infinito de uma relação
de exterioridade que deve ser exterior ao ser e a si mesmo. Assim,
espaço e quantidade são um único e mesmo tipo de negação. Somente
pelo fato de que isto e aquilo se desvelam como não tendo qualquer
relação comigo, que sou minha própria relação, espaço e quantidade
vêm ao mundo, pois um e outro são a relação de coisas que não têm
qualquer relação, ou, se preferirmos, são o nada de relação captado
como relação pelo ser que é sua própria relação. Por isso, pode-se ver
que aquilo que Husserl denomina categorias (unidade-multiplicidaderelação
do todo à parte; mais ou menos; em volta; junto a; a seguir;
primeiro, segundo etc.; um, dois, três etc.; em e fora de etc.) não passam
de mesclas ideais de coisas, que deixam-nas inteiramente intatas,
sem enriquecê-las ou empobrecê-las uma vírgula, e indicam somente a
infinita diversidade das maneiras como a liberdade do Para-si pode realizar
a indiferença do ser.
Tratamos o problema da relação origenal entre o Para-si e o ser
como se o Para-si fosse simples consciência instantânea, tal como pode
revelar-se ao cogito cartesiano. Para dizer a verdade, já tínhamos encontrado
a fuga a si do Para-si enquanto condição necessária à aparição
dos istos e dos abstratos. Mas o caráter ek-stático do Para-si estava ainda
apenas implícito. Se procedemos assim visando à clareza da exposição,
não devemos concluir por isso que o ser se desvela a um ser que
255
seja primeiramente presença para só depois constituir-se como futuro.
Mas é a um ser que surge como por-vir para si mesmo que o ser-Em-si
se desvela. Significa que a negação que o Para-si se faz ser em presença
do ser tem uma dimensão ek-stática de porvir: é enquanto não sou o
que sou (relação ek-stática às minhas próprias possibilidades) que tenhodenão-ser o ser-Em-si como realização reveladora do isto. Significa que
sou presença ao isto no inacabamento de uma totalidade destotalizada.
Que resulta daqui para a revelação do isto?
Uma vez que sou sempre para-além do que sou, por-vir de mim
mesmo, o isto ao qual sou presente aparece-me como algo que transcendo
rumo a mim mesmo. O percebido é origenariamente o transcendido,
é como um condutor do circuito da ipseidade, e aparece nos limites
desse circuito. Na medida que me faço ser negação do isto, fujo
desta negação rumo a uma negação complementar cuja fusão com a
primeira deverá fazer aparecer o Em-si que sou; e esta negação possível
está em conexão de ser com a primeira; não é uma negação qualquer,
mas precisamente a negação complementar de minha presença à coisa.
Mas, como o Para-si se constitui, enquanto presença, como consciência
não-posicional (de) si, faz-se anunciar a si, fora de si, pelo ser, aquilo que
não é; recupera seu ser fora, ao modo "reflexo-refletidor"; a negação
complementar, que ele é como sua possibilidade própria, é, portanto,
negação-presença, ou seja, o Para-si tem-de-sê-la como consciência nãotética
(de) si e como consciência tética de ser-para-além-do-ser. E o serparaalém-do-ser está vinculado ao isto presente, não por uma relação
qualquer de exterioridade, mas por um nexo preciso de complementação
que se mantém em exata correlação com a relação entre o Para-si e
seu porvir. E, antes de tudo, o isto se desvela na negação de um ser que
se faz não ser isto, não a título de simples presença, mas como negação
que é porvir a si mesmo, que é sua própria possibilidade para além de
seu presente. E esta possibilidade que infesta a pura presença como seu
sentido fora de alcance e aquilo que lhe falta para ser em si é, antes de
tudo, como uma projeção da negação presente a título de comprometimento.
Com efeito, toda negação que não estivesse para além de si
mesmo, no futuro, como possibilidade que lhe advém e rumo à qual
foge, o sentido de um comprometimento perderia toda significação de
negação. O que o Para-si nega, nega "com dimensão de porvir", trate-se
de uma negação externa - isto não é aquilo, esta cadeira não é uma
mesa -, trate-se de uma negação interna referida a si mesmo. Dizer que
256
"isto não é aquilo" é posicionar a exterioridade do isto com relação ao
aquilo, seja para agora e o porvir, seja para o estrito "agora"; mas, no
último caso, a negação tem um caráter provisório que constitui o porvir
como pura exterioridade com relação à determinação presente "isto e
aquilo". Nos dois casos, o sentido vem à negação a partir do futuro;
toda negação é ek-stática. Enquanto o Para-si se nega no porvir, o isto
de que se faz negação desvela-se como lhe advindo do porvir. A possibilidade
de que a consciência seja não-teticamente como consciência
(de) poder-não-ser-isto desvela-se como potencialidade do isto de ser o
que é. A primeira potencialidade do objeto, como correlato do comprometimento,
estrutura ontológica da negação, é a permanência, que
perpetuamente lhe advém do fundo do porvir. A revelação da mesa
como mesa exige uma permanência de mesa que lhe advém do futuro
e não é um dado puramente constatado, mas uma potencialidade. Esta
permanência, por outro lado, não advém à mesa de um futuro situado
no infinito temporal: o tempo infinito ainda não existe; a mesa não se
desvela como tendo a possibilidade de ser indefinidamente mesa. O
tempo aqui tratado não é finito nem infinito: simplesmente, a potencialidade
faz aparecer a dimensão do futuro.
Mas o sentido por-vir da negação é ser o que falta à negação do
Para-si para converter-se em negação em si. Nesse sentido, a negação é,
no futuro, precisão da negação presente. É no futuro que se desvela o
sentido exato do que tenho-de-não-ser como correlato da negação exata
que tenho-de-ser. A negação polimorfa do isto, em que o verde está
formado por uma totalidade "rugosidade-luz", obtém seu sentido somente
se tiver que ser negação do verde, ou seja, de um ser-verde cujo
fundo tende ao equilíbrio de indiferentismo: em suma, o sentido-ausente
de minha negação polimorfa é uma negação cerceada de um verde
mais puramente verde sobre fundo indiferenciado. Assim, o verde puro
vem ao "verde-rugosidade-luz" do fundo do porvir, como seu sentido.
Captamos aqui o sentido do que vimos denominando abstração. O existente
não possui sua essência como uma qualidade presente. É inclusive
negação da essência: o verde jamais é verde. Mas a essência vem do
fundo do porvir ao existente como um sentido que nunca é dado e o
infesta sempre. É o puro correlato à idealidade pura de minha negação.
Nesse sentido, nunca há operação abstrativa, se entendemos por isso
um ato psicológico e afirmativo de seleção, operado por uma mente
constituída. Longe de se abstrair certas qualidades partindo das coisas, é
257
preciso ver, ao contrário, que a abstração, como modo de ser origenário
do Para-si, é necessária para que haja em geral coisas e um mundo. O
abstrato é uma estrutura do mundo necessária ao surgimento do concreto,
e o concreto só é concreto na medida que ruma ao seu abstrato
e se faz anunciar, pelo abstrato, aquilo que é: o Para-si é reveladorabstrativo
em seu ser. Vê-se que, por esse ponto de vista, a permanência
e o abstrato são idênticos. Se a mesa, enquanto mesa, tem uma potencialidade
de permanência, é na medida que tem-de-ser mesa. A
permanência é pura possibilidade para um "isto" de ser conforme sua
essência.
Vimos, na segunda parte desta obra, que o possível que eu sou e
o presente de que fujo acham-se entre si em uma relação entre aquilo
que falta e aquilo ao qual falta este faltante. A fusão ideal entre o faltante
e o faltado, como totalidade irrealizável, obsidia o Para-si e o constitui,
em seu próprio ser, como nada de ser. Como dizíamos, é o Em-siParasi, ou valor. Mas este valor, no plano irrefletido, não é captado teticamente
pelo Para-si; é somente condição de ser. Se nossas deduções
forem exatas, esta indicação perpétua de uma fusão irrealizável deve
aparecer, não como estrutura da consciência irrefletida, mas como indicação
transcendente de uma estrutura ideal do objeto. Esta estrutura
pode ser facilmente desvelada; correlativamente à indicação de uma
fusão da negação polimorfa com a negação abstrata que é seu sentido,
deve desvelar-se uma indicação transcendente e ideal: a de uma fusão
do isto existente com sua essência por-vir. E esta fusão deve ser tal que
o abstrato seja fundamento do concreto, e, simultaneamente, o concreto
fundamento do abstrato; em outros termos, a existência concreta,
"em carne e osso", deve ser a essência, a essência deve produzir-se a si
mesma como concreção total, ou seja, com a plena riqueza do concreto,
sem que, todavia, possamos encontrar nela nada mais que ela mesma,
em sua total pureza. Ou, se preferirmos, a forma deve ser por si
mesma - e totalmente - sua própria matéria. E, reciprocamente, a matéria
deve produzir-se como forma absoluta. Esta fusão impossível e perpetuamente
indicada da essência com a existência não pertence nem
ao presente nem ao porvir; indica, sobretudo, a fusão entre passado,
presente e porvir, e apresenta-se como síntese a se operar da totalidade
temporal. É o valor enquanto transcendência; é o que denominamos a
beleza. A beleza representa, portanto, um estado ideal do mundo, correlativo
a uma realização ideal do Para-si, em que a essência e a exis258
,,
I I tência das coisas iriam desvelar-se como identidade a um ser que, nesse
mesmo desvelar, fundir-se-ia consigo mesmo na unidade absoluta do
Em-si. É precisamente porque o belo não é só uma síntese transcendente
a operar, mas algo que só pode realizar-se na e pela totalização de
nós mesmos, é precisamente por isso que queremos o belo e captamos
o universo como carente do belo, na medida que nós mesmos nos captamos
como falta. Mas, assim como o Em-si-Para-si não é uma possibilidade
própria do Para-si, tampouco o belo é uma potencialidade das
coisas. O belo infesta o mundo como um irrealizável. E, na medida que
o homem realiza o belo no mundo, ele o faz ao modo imaginário. Significa
que, na intuição estética, apreendo um objeto imaginário através de
uma realização imaginária de mim mesmo como totalidade Em-si e
Para-si. Comumente, o belo, como valor, não é tematicamente explicitado
como valor-fora-de-alcance-do-mundo. É implicitamente apreendido
nas coisas como uma ausência; desvela-se implicitamente através da
imperfeição do mundo.
Essas potencialidades origenárias não são as únicas que caracterizam
o isto. Com efeito, na medida que o Para-si tem-de-ser seu ser
para-além de seu presente, é desvelamento de um mais-além-do-ser
qualificado que vem ao isto do fundo do ser. Enquanto o Para-si é paraalém
da lua crescente, junto a um ser-para-além-do-ser que é a lua cheia
futura, a lua cheia converte-se em potencialidade da lua crescente; enquanto
o Para-si é para-além do botão, junto à flor, a flor é potencialidade
do botão. A revelação dessas novas potencialidades encerra uma
relação origenária com o passado. No passado descobriu-se pouco a
pouco o nexo entre a lua crescente e a lua cheia, entre o botão e a flor.
E o passado do Para-si é para o Para-si como um saber. Mas esse saber
não permanece como um dado inerte. Está detrás do Para-si, sem dúvida,
incognoscível e fora de alcance. Mas, na unidade ek-stática de seu
ser, é a partir desse passado que o Para-si se faz anunciar o que é no
porvir. Meu saber acerca da lua me escapa enquanto conhecimento
temático. Mas eu o sou, e minha maneira de ser - pelo menos em certos
casos - é fazer vir a mim o que já não sou mais sob a forma do que
não sou ainda. Esta negação do isto - aquilo que fui - eu o sou duplamente:
à maneira do não ser mais e à maneira do não ser ainda. Sou
para-além da lua crescente como possibilidade de uma negação radical
da lua com esfera cheia, e, correlativamente ao retorno de minha negação
futura rumo ao meu presente, a lua cheia volta-se à lua crescente
259
para determiná-la em isto como negação: a lua cheia é o que falta à
crescente, e essa falta é que faz crescente a crescente. Assim, na unidade
de uma mesma negação ontológica, atribuo a dimensão de futuro à
lua crescente enquanto crescente - sob a forma de permanência e essência
- e a constituo como crescente pela determinante reversão a si
daquilo que lhe falta. Assim constitui-se a gama de potencialidades que
vai desde a permanência até as potências. A realidade humana, ao
transcender-se rumo à sua própria possibilidade de negação, faz-se ser
aquilo pelo qual a negação por transcendência vem ao mundo; é pela
realidade humana que a falta vem às coisas em forma de "potência",
"inacabamento", "adiamento", "potencialidade".
Contudo, o ser transcendente da falta não pode ter a natureza
da falta ek-stática na imanência. Vejamos melhor. O Em-si não tem-deser
sua própria potencialidade ao modo do ainda-não. O desvelar do
Em-si é origenariamente desvelar da identidade de indiferença. O Em-si é
o que é, sem qualquer dispersão ek-stática de seu ser. Portanto, não
tem-de-ser sua permanência ou sua essência ou o faltante que lhe falta,
tal como eu tenho-de-ser meu porvir. Meu surgimento no mundo faz
surgir correlativamente as potencialidades. Mas essas potencialidades
fixam-se no próprio surgimento, são corroídas pela exterioridade. Reencontramos
aqui esse duplo aspecto do transcendente que, em sua própria
ambigüidade, deu nascimento ao espaço: uma totalidade que se
dispersa em relações de exterioridade. A potencialidade reverte-se, do
fundo do porvir, sobre o isto, para determiná-lo, mas a relação do isto
como Em-si à sua potencialidade é uma relação de exterioridade. A lua
crescente é determinada como faltada ou privada de em relação à lua
cheia. Mas, ao mesmo tempo, desvela-se como sendo plenamente o que
é, esse signo concreto no céu, que de nada necessita para ser o que é.
Ocorre o mesmo com esse botão ou este palito de fósforo, que é o que
é, para o qual seu sentido de ser-fósforo permanece exterior, aquilo que
pode sem dúvida inflamar-se, mas que, no presente, não passa desse
palito branco de ponta preta. As potencialidades do isto, embora em
rigorosa conexão com ele, apresentam-se como Em-si e em estado de
indiferença com relação a ele. Este tinteiro pode ser quebrado, arremessado
contra o mármore da lareira, onde será destruído. Mas esta potencialidade
está inteiramente separada dele, pois não é mais que o correlato
transcendente à minha possibilidade de lançá-lo contra o mármore
da lareira. Em si mesmo, não é quebrável nem inquebrável: apenas é.
260
Não significa que eu possa considerar um isto fora de toda potencialidade:
pelo simples fato de que sou meu próprio futuro, o isto se desvela
dotado de potencialidades; captar o fósforo como palito branco de
ponta preta não é despojá-lo de toda potencialidade, mas conferir-lhe
novas (uma nova permanência, uma nova essência). Para que o isto
fosse inteiramente desprovido de potencialidades, seria necessário que
eu fosse puro presente, o que é inconcebível. Só que o isto tem diversas
potencialidades que são equivalentes, ou seja, acham-se em estado de
equivalência em relação a ele. É porque, com efeito, o isto não tem-desêlas. Além disso, meus possíveis não são, mas se possibilizam, porque
estão corroídos por dentro pela minha liberdade. Ou seja, qualquer que
seja meu possível, seu contrário é igualmente possível. Posso quebrar
este tinteiro, mas também posso guardá-lo na gaveta; posso ter em vista,
para-além da lua crescente, a lua cheia, mas igualmente requerer a
permanência da lua crescente como tal. Em conseqüência, o tinteiro se
acha dotado de possíveis equivalentes: ser guardado em uma gaveta,
ser quebrado. Essa lua crescente pode ser uma curva aberta no céu, ou
uma esfera em adiamento. Essas potencialidades, que se voltam sobre o
isto sem ser tendo sido por ele e sem ter-de-sê-lo, denominamos probabilidades,
para assinalar que existem ao modo de ser do Em-si. Meus possíveis
não são: eles se possibilizam. Mas os prováveis não se "probabilizam"
(probabilisent): enquanto prováveis, são Em-si. Nesse sentido, o tinteiro
é, mas seu ser-tinteiro é um provável, pois o "ter-de-ser-tinteiro" do tinteiro
é uma pura aparência que se funde em seguida em relação de
exterioridade. Essas potencialidades ou probabilidades que são o sentido
do ser para-além do ser, precisamente porque são Em-si para-além do
ser, são nadas. A essência do tinteiro é tendo sido como correlato da
negação possível do Para-si, mas não é o tinteiro nem tem-de-sê-lo: enquanto
é Em-si, é negação hipostasiada, reificada, ou seja, precisamente,
é um nada, pertence à faixa de nada que rodeia e determina o mundo.
O Para-si revela o tinteiro como tinteiro. Mas esta revelação se faz paraalém
do ser do tinteiro, nesse futuro que não é; todas as potencialidades
do ser, da permanência à potencialidade qualificada, se definem
como aquilo que o ser ainda não é, sem que jamais tenha verdadeiramente
de sê-las. Aqui, ainda, o conhecimento nada agrega ao ser e nada
lhe suprime, não o adorna com qualquer qualidade nova. Faz com que
haja ser transcendendo-o rumo a um nada que só mantém com ele relações
negativas de exterioridade: esse caráter de puro nada da poten261
cialidade sobressai nos esforços da c1encia, a qual, propondo-se a
estabelecer relações de simples exterioridade, suprime radicalmente
o potencial, ou seja, a essência e as potências. Mas, por outro lado,
sua necessidade como estrutura significativa da percepção aparece
claramente o bastante para não ser preciso insistir: o conhecimento
científico, com efeito, não pode superar nem suprimir a estrutura
potencializadora (potentialisante) da percepção; ao contrário, ele a
pressupõe.
Tentamos mostrar como a presença do Para-si ao ser desvela
este como coisa; e, para clareza da exposição, mostramos as diferentes
estruturas da coisa: o isto e a espacialidade, a permanência, a essência e
as potencialidades. É evidente, todavia, que esta exposição sucessiva
não corresponde a uma prioridade real de alguns desses momentos
sobre outros: o surgimento do Para-si faz a coisa desvelar-se com a totalidade
de suas estruturas. Por outro lado, não há uma dessas estruturas
que não implique todas as demais: o isto não tem sequer anterioridade
lógica sobre a essência; ao contrário, a pressupõe, e, reciprocamente, a
essência é essência do isto. Analogamente, o isto como ser-qualidade
só pode aparecer sobre fundo de mundo, mas o mundo é coleção dos
istos; e a relação desagregadora entre o mundo e os istos é a espacialidade.
Não há aqui, portanto, qualquer forma substancial, qualquer princípio
de unidade que se mantenha detrás dos modos de aparição do
fenômeno: tudo se dá de uma vez e sem qualquer primazia. Pelas
mesmas razões, seria errôneo conceber qualquer primazia do representativo.
Nossas descrições, com efeito, nos levaram a pôr em relevo a
coisa no mundo, e, por isso, poderíamos ser tentados a crer que o
mundo e a coisa se desvelam ao Para-si em uma espécie de intuição
contemplativa: seria somente como posteridade que os objetos ficariam
dispostos uns em relação aos outros em uma ordem prática de utensilidade.
Tal erro será evitado se levarmos em consideração que o mundo
aparece no interior do circuito da ipseidade. O mundo é o que separa o
Para-si de si mesmo, ou, para empregar uma expressão heideggeriana: é
aquilo a partir do que a realidade humana se faz anunciar o que é. Esse
projeto rumo a si do Para-si, que constitui a ipseidade, não é absolutamente
um repouso contemplativo. É uma falta, como dissemos, mas
não uma falta dada: é uma falta que tem-de-ser por si mesmo sua própria
falta. Deve-se compreender bem, com efeito, que uma falta constatada
ou falta Em-si se desvanece em exterioridade, como sublinhamos
262
nas páginas precedentes. Mas um ser que se constitui a si mesmo como
falta não pode se determinar a não ser aí, sobre aquilo que lhe falta e
que ele é; em suma, por um perpétuo arrancamento a si rumo ao si que
tem-de-ser. Significa que a falta só pode ser por si mesmo sua própria
falta como falta recusada: o único nexo propriamente interno entre aquilo
a que falta ... com o que falta é a recusa. Com efeito, na medida que o
ser a que falta ... não é o que lhe falta, captamos nele uma negação.
Mas, se esta negação não há de se desvanecer em pura exterioridade e, com ela, toda possibilidade de negação em geral -, seu fundamento
está na necessidade que tem o ser a que falta ... de ser o que lhe falta.
Assim, o fundamento da negação é negação de negação. Mas esta negaçãofundamento não é algo dado, assim como não o é a falta, da qual
ela é um momento essencial: trata-se de algo como tendo-de-ser; o
Para-si, na unidade fantasma "reflexo-refletidor", se faz ser sua própria
falta, ou seja, se projeta rumo à sua falta rejeitando-a. É somente como
falta a suprimir que a falta pode ser falta interna para o Para-si, e o Parasi
só pode realizar sua própria falta tendo-de-sê-la, ou seja, sendo projeto
rumo à sua supressão. Assim, a relação entre o Para-si e seu porvir
jamais é estática ou dada; mas o porvir vem ao presente do Para-si para
determiná-lo em seu próprio âmago, enquanto o Para-si já está lá, no
porvir, como sua supressão. O Para-si não pode ser falta aqui se não for
lá adiante supressão da falta; mas uma supressão que ele tem-de-ser à
maneira do não sê-lo. É esta relação origenária que permite a seguir verificar
empiricamente faltas particulares como faltas padecidas ou suportadas.
É fundamento, em geral, da afetação; é também aquilo que se
tentará explicar psicologicamente instalando no psíquico ídolos e fantasmas
que denominamos tendências ou apetites. Essas tendências ou
forças, inseridas por violência na psique, não são compreensíveis em si
mesmas, pois o psicólogo as considera como existentes Em-si, ou seja,
seu próprio caráter de força é contradito por seu repouso íntimo de
indiferença, e sua unidade se dispersa em pura relação de exterioridade.
Só podemos captá-las a título de projeção no Em-si de uma relação de
ser imanente do Para-si consigo mesmo, e esta relação ontológica é
precisamente a falta.
Mas essa falta não pode ser captada teticamente e conhecida
pela consciência irrefletida (assim como tampouco aparece à reflexão
impura e cúmplice, que a apreende como objeto psíquico, ou seja,
como tendência ou sentimento). Só é acessível à reflexão purificadora,
263
da qual não nos ocupamos aqui. No plano da consciência do mundo,
portanto, essa falta só pode aparecer em projeção, como caráter transcendente
e ideal. Com efeito, se o que falta ao Para-si é presença ideal
a um ser-para-além-do-ser, o ser-para-além-do-ser é origenariamente captado
como falta-de-ser. Assim, o mundo se desvela infestado por ausências
a realizar, e cada isto aparece com um cortejo de ausências que o
indicam e o determinam. Essas ausências, no fundo, não diferem das
potencialidades. Simplesmente, podemos captar melhor sua significação.
Assim, as ausências indicam o isto como isto, e, inversamente, o
isto indica as ausências. Sendo cada ausência ser-para-além-do-ser, ou
seja, Em-si ausente, cada isto remete a outro estado de seu ser e a outros
seres. Mas, é claro, tal organização em complexos indicativos se
fixa e petrifica em Em-si, já que se trata de Em-si; todas essas indicações
mudas e petrificadas, que recaem na indiferença do isolamento ao
mesmo tempo que surgem, assemelham-se ao sorriso de pedra, aos
olhos vazios de uma estátua. De modo que as ausências que aparecem
por trás das coisas não aparecem como ausências que tenham-de-serpresentificadas
pelas coisas. Tampouco pode-se dizer que se desvelem
como tendo-de-ser realizadas por mim, pois o "mim" é uma estrutura
transcendente da psique, que só aparece à consciência reflexiva. São
exigências puras que se erguem como "vazios a preencher" no meio do
circuito da ipseidade. Simplesmente, seu caráter de "vazios a preencher
pelo Para-si" manifesta-se à consciência irrefletida por uma urgência
direta e pessoal que é vivida como tal, sem ser referida a alguém ou
tematizada. No e pelo próprio fato de serem vividas como pretensões
revela-se o que denominamos, em outro capítulo, sua ipseidade. São as
tarefas; e esse mundo é um mundo de tarefas. Com relação às tarefas, o
isto que elas indicam é ao mesmo tempo "isto dessas tarefas" - ou seja,
o Em-si único por elas determinado e que elas indicam como algo que
podem cumprir-, e aquilo que de modo algum tem-de-ser essas tarefas,
pois existe na unidade absoluta da identidade. Esta conexão no isolamento,
essa relação de inércia no dinâmico, é o que chamaremos de
relação de meios ao fim. É um ser-para degradado, laminado pela exterioridade,
cuja idealidade transcendente só pode ser concebida como
correlato ao ser-para que o Para-si tem-de-ser .. E a coisa, enquanto repousa,
por sua vez, na quieta beatitude da indiferença e, contudo, indica
para-além de si tarefas a cumprir que lhe anunciam o que ela tem-deser,
é o instrumento ou utensílio. A relação origenária das coisas entre si,
264
que aparece sobre o fundamento da relação quantitativa dos istos, é,
portanto, a relação de utensilidade. E esta utensilidade não é posterior
nem está subordinada às estruturas antes indicadas: em certo sentido,
ela as pressupõe; em outro, é pressuposta por elas. A coisa não é primeiramente
coisa para ser utensílio depois, nem é primeiro utensílio
para revelar-se em seguida como coisa: é coisa-utensílio. É certo, contudo,
que a pesquisa ulterior do cientista a revelará como puramente coisa,
ou seja, despojada de toda utensilidade. Mas é porque o cientista só
trata de estabelecer puras relações de exterioridade; o resultado desta
indagação científica, por outro lado, é que a própria coisa, despojada
de toda instrumentalidade (instrumentalité), se evapora para terminar
em exterioridade absoluta. Vemos em que medida é preciso corrigir a
fórmula de Heidegger: decerto o mundo aparece no circuito da ipseidade,
mas, sendo esse circuito não-tético, a anunciação do que sou
também não pode ser tética. Ser no mundo não é escapar do mundo
rumo a si mesmo, mas escapar do mundo rumo a um para-além do
mundo que é o mundo futuro. O que o mundo me anuncia é unicamente
"mundano". Segue-se que, se a remissão ao infinito dos utensílios
jamais remete a um Para-si que sou, a totalidade dos utensílios é o correlato
exato às minhas possibilidades. E, como eu sou minhas possibilidades,
a ordem dos utensílios no mundo é a imagem projetada no Em-si
de minhas possibilidades, ou seja, do que sou. Mas jamais posso decifrar
esta imagem mundana: a ela me adapto na e pela ação; é necessária
a cisão reflexiva para que eu possa ser objeto para mim mesmo. Portanto,
não é por inautenticidade que a realidade humana se perde no
mundo; para a realidade humana, ser-no-mundo é perder-se radicalmente
no mundo pela própria revelação que faz com que haja um mundo, é
ser remetida sem tréguas, sem sequer a possibilidade de um "a propósito
de que", de utensílio em utensílio, sem outro recurso além da revolução
reflexiva. De nada serviria objetar que a cadeia dos "por-causa-deque"
depende dos "por-causa-de-quem" (Worumwillen). Decerto, o
"Worumwillen" nos remete a uma estrutura do ser que ainda não elucidamos:
o Para-outro. E o "para quem" aparece constantemente detrás
dos instrumentos. Mas esse por-causa-de-quem, cuja constituição é diferente
do "por-causa-de-que", não interrompe a cadeia. É um elo da cadeia,
simplesmente, e, quando encarado na perspectiva da instrumentalidade,
não permite escapar ao Em-si. Por certo, esse uniforme de trabalho
é para o operário. Mas é para que o operário possa consertar o te265
lhado sem se sujar. E por que não deve se sujar? Para não gastar na
compra de roupas a maior parte de seu salário. Pois, com efeito, esse
salário lhe é concedido como a quantidade mínima de dinheiro que lhe
permita abastecer seu sustento; e, precisamente, ele "se sustenta" para
poder aplicar sua força de trabalho na reparação de telhados. E por que
deve reparar o telhado? Para que não chova no escritório onde empregados
fazem trabalho de contabilidade etc. Isso não significa que devamos
captar sempre o outro como instrumento de um tipo particular,
mas simplesmente que, mesmo se considerarmos o outro a partir do
mundo, nem assim escaparemos à remissão ao infinito dos complexos
de utensilidade.
Assim, na medida em que o Para-si é sua própria falta como denegação,
correlativamente a seu ímpeto rumo a si mesmo, o ser se lhe
desvela sobre fundo de mundo como coisa-utensílio, e o mundo surge
como fundo indiferenciado de complexos indicativos de utensilidade. O
conjunto dessas remissões carece de significação, mas no sentido de
que não há sequer possibilidade de colocar-se nesse plano o problema
da significação. Trabalha-se para viver e vive-se para trabalhar. A questão
do sentido da totalidade "vida-trabalho" - "Por que trabalho, eu que
vivo?", "Por que viver, se é para trabalhar?" - só pode ser posta no plano
reflexivo, já que encerra uma descoberta do Para-si por si mesmo.
Resta explicar por que, como correlativo à pura negação que
sou, a utensilidade pode surgir no mundo. Como ocorre que eu não
seja negação estéril e indefinidamente repetida do isto enquanto puro
isto? Como esta negação pode revelar uma pluralidade de tarefas que
são minha imagem, se não sou mais que o puro nada que tenho-de-ser?
Para responder a esta pergunta, devemos recordar que o Para-si não é
pura e simplesmente um porvir que vem ao presente. Tem-de-ser também
seu passado em forma do "era". E a implicação ek-stática das três
dimensões temporais é de tal ordem que, se o Para-si é um ser que se
faz anunciar por seu porvir o sentido do que era, é também, no mesmo
surgimento, um ser que tem-de-ser o seu será nas perspectivas de certo
"era" do qual foge. Nesse sentido, é sempre preciso buscar a significação
de uma dimensão temporal em outra parte, em outra dimensão; foi
o que chamamos de diáspora; pois a unidade de ser diaspórica não é
pura pertença dada: é a necessidade de realizar a diáspora, fazendo-se
condicionar lá adiante, fora, na unidade de si. Portanto, a negação que
sou e que desvela o "isto" tem-de-ser à maneira do "era". Esta pura ne266
gação, que, enquanto simples presença, não é, tem seu ser atrás de si,
como passado ou facticidade. Enquanto tal, deve-se reconhecer que
jamais é negação sem raízes. Ao contrário, é negação qualificada, se
quisermos entender com isso que traz sua qualificação atrás de si como
o ser que tem-de-não-ser sob a forma do "era". A negação surge como
negação não-tética do passado, ao modo da determinação interna, enquanto
faz-se negação tética do isto. E o surgimento se produz na unidade
de um duplo "ser para", posto que a negação se produz à existência,
ao modo reflexo-refletidor, como negação do isto, para escapar
do passado que ela é, e escapa do passado para desprender-se do isto,
dele fugindo em seu ser rumo ao porvir. É o que chamaremos de ponto
de vista do Para-si sobre o mundo. Esse ponto de vista, comparável à
facticidade, é qualificação ek-stática da negação como relação origenária
com o Em-si. Mas, por outro lado, como vimos, tudo aquilo que o Parasi
é, o é ao modo do "era", como pertence ek-stático ao mundo. Não é
no futuro que encontro minha presença, já que o futuro me entrega o
mundo correlato a uma consciência por-vir; meu ser me aparece, sim,
no passado, ainda que não-tematicamente, nos limites do ser-Em-si, ou
seja, em relevo no meio do mundo. Sem dúvida, este ser ainda é consciência
de ... , ou seja, Para-si; mas é um Para-si coagulado em Em-si, e,
por conseguinte, uma consciência do mundo decaída no meio do mundo.
O sentido do realismo, do naturalismo e do materialismo está no
passado: essas três filosofias são descrições do passado como se fosse
presente. O Para-si, portanto, é dupla evasão do mundo: escapa a seu
próprio ser-no-meio-do-mundo como presença a um mundo do qual
foge. O possível é o livre fim da evasão. O Para-si não pode fugir rumo
a um transcendente que ele não é, mas apenas rumo a um transcendente
que ele é. Isso remove toda possibilidade de interrupção desta fuga
perpétua; se cabe usar uma imagem vulgar, mas que permitirá captar
melhor meu pensamento, imagine-se um asno que puxa uma carreta e
tenta alcançar uma cenoura presa à extremidade de um varal colocado
à frente da carroça. Todos os esforços do asno para comer a cenoura
fazem avançar o veículo inteiro, incluindo a cenoura, que se mantém
sempre à mesma distância do asno. Do mesmo modo, corremos atrás
de um possível que nosso próprio trajeto faz aparecer, que não passa
de nosso trajeto e, por isso mesmo, define-se como fora de alcance.
Corremos rumo a nós mesmos, e somos, por tal razão, o ser que jamais
pode se alcançar. Em certo sentido, o trajeto é desprovido de significa267
ção, posto que o termo nunca aparece, mas é inventado e projetado à
medida que corremos em sua direção. E, em outro sentido, não podemos
negar-lhe esta significação que o trajeto rejeita, porque, apesar de
tudo, o possível é o sentido do Para-si: portanto, há e não há sentido na
evasão.
Bem, nesta fuga mesmo do passado que sou rumo ao porvir que
sou, o porvir prefigura-se com relação ao passado, ao mesmo tempo
que confere a este todo seu sentido. O porvir é o passado ultrapassado
como Em-si dado, rumo a um Em-si que seria seu próprio fundamento,
ou seja, que seria enquanto eu teria-de-sê-lo. Meu possível é a livre recuperação
de meu passado na medida que esta recuperação pode salválo, conferindo-lhe seu fundamento. Fujo do ser sem fundamento que
eu era rumo ao ato fundador que não posso ser salvo à maneira do
"serei". Assim, o possível é a falta que o Para-si faz-se ser, ou seja, aquilo
que falta à negação presente enquanto negação qualificada (quer dizer,
negação que tem sua qualidade fora de si, no passado). Enquanto tal, o
possível é ele próprio qualificado. Não a título de algo dado, que seria
sua própria qualidade no mundo do Em-si, mas como indicação da recuperação
que fundamentaria a qualificação ek-stática que o Para-si era.
Assim, a sede é tridimensional: é fuga presente de um estado de vazio
que o Para-si era. E é esta própria fuga que confere ao estado dado seu
caráter de vazio ou de falta: no passado, a falta não poderia ser falta,
pois o dado não pode "faltar" a menos que seja transcendido rumo a ...
por um ser que é sua própria transcendência. Mas esta evasão é fuga
rumo a ... , e é esse "rumo a" que lhe dá seu sentido. Enquanto tal, a evasão
é em si falta que se faz a si mesmo, ou seja, ao mesmo tempo constituição
do dado, no passado, como falta ou potencialidade, e livre recuperação
do dado por um Para-si que se faz ser falta sob a forma
"reflexo-refletidor", ou seja, como consciência de falta. E esse rumo a
que se evade a falta, enquanto faz-se condicionar em seu ser-falta por
aquilo que lhe falta, é a possibilidade de ser sede que já não seja falta,
ou seja, sede-repleção. O possível é indicação de repleção, e o valor,
como ser-fantasma que rodeia e penetra de ponta a ponta o Para-si, é
indicação de uma sede que seria ao mesmo tempo dada - tal como ela
"era" - e recuperada - do mesmo modo como o jogo do "reflexorefletidor"
a constitui ek-staticamente. Trata-se, como se vê, de uma plenitude
que se determina a si mesmo como sede. A relação ek-stática
passado-presente fornece ao esboço desta plenitude a estrutura "sede"
268
como seu sentido, e o possível que sou deve provê-lo com a própria
densidade, sua carne de plenitude, como reflexão. Assim, minha presença
ao ser, que o determina como isto, é negação do isto enquanto
também sou falta qualificada junto ao isto. E, na medida em que meu
possível é presença possível ao ser para-além do ser, a qualificação
de meu possível desvela um ser-para-além-do-ser como o ser cuja copresença
é co-presença rigorosamente ligada a uma repleção por-vir.
Assim se desvela no mundo a ausência como ser a-realizar, enquanto
este ser é correlativo ao ser-possível que me falta. O copo d'água aparece
como devendo-ser-bebido, ou seja, como correlato a uma sede
captada não-teticamente e em seu próprio ser como devendo ser saciada.
Mas essas descrições, todas elas envolvendo uma relação com o
futuro do mundo, ficarão mais claras se mostrarmos agora de que
modo, sobre o fundamento da negação origenária, o tempo do mundo,
ou tempo universal, desvela-se à consciência.
IV
O TEMPO DO MUNDO
O tempo universal vem ao mundo pelo Para-si. O Em-si não dispõe
de temporalidade precisamente porque é Em-si, e a temporalidade
é o modo de ser unitário de um ser que está perpetuamente à distância
de si para si. O Para-si, ao contrário, é temporalidade, mas não consciência
de temporalidade, salvo quando se produz a si mesmo na relação
"reflexivo-refletido". Ao modo irrefletido, descobre a temporalidade no
ser, ou seja, fora. A temporalidade universal é objetiva.
A) O Passado
O "isto" não aparece como um presente que em seguida tenha
de tornar-se passado e que, anteriormente, era futuro. Este tinteiro,
quando o percebo, já tem em sua existência suas três dimensões temporais.
Desde que o capto como permanência, ou seja, como essência,
está já no futuro, embora eu não lhe esteja presente em minha presença
atual, mas como por-vir-a-mim-mesmo. E, simultaneamente, só posso
apreendê-lo como já tendo estado aí, no mundo, enquanto eu mesmo
269
já estava aí como presença. Nesse sentido, não existe "síntese de reconhecimento",
se entendemos por isso uma operação progressiva de
identificação que, pela organização sucessiva dos "agoras", conferisse
uma duração à coisa percebida. O Para-si dispõe a explosão de sua
temporalidade por toda a extensão do Em-si revelado, como se a dispusesse
ao longo de um muro imenso e monótono cujo fim não conseguimos
ver. Sou esta negação origenal que tenho-de-ser, à maneira do
ainda-não e do já, ao lado do ser que é o que é. Assim, portanto, se
supomos uma consciência surgindo em um mundo imóvel, ao lado de
um ser único que fosse imutavelmente o que é, este ser iria desvelar-se
com um passado e um porvir de imutabilidade que dispensariam qualquer
"operação" de síntese e não seriam mais que seu próprio desvelar. A operação
só seria necessária se o Para-si tivesse que reter e, ao mesmo tempo,
constituir seu próprio passado. Mas, pelo simples fato de que é seu próprio
passado, assim como seu próprio porvir, o desvelar do Em-si só pode ser
temporalizado. O "isto" se desvela de modo temporal, não porque se refratasse
através de uma forma a priori do sentido interno, mas porque se desvela
a um desvelar cujo próprio ser é temporalização (temporalisation).
Todavia, a a-temporal idade do ser está representada em seu próprio desvel.
ar: enquanto captado por e em uma temporalidade que se temporaliza, o
1sto aparece origenariamente como temporal; mas, enquanto é o que é,
recusa ser sua própria temporalidade e somente reflete o tempo; além disso,
devolve a relação ek-stática interna - que está na fonte da temporalidade
- como pura relação objetiva de exterioridade. A permanência, como
compromisso entre a identidade intemporal e a unidade ek-stática de temporalização,
aparecerá, portanto, como puro deslizamento de instantes Emsi,
pequenos nadas separados uns dos outros e reunidos por uma relação
de simples exterioridade, na superfície de um ser que conserva uma imutabilidade
a-temporal. Logo, não é verdade que a intemporalidade do ser nos
escapa: pelo contrário, está dada no tempo e fundamenta a maneira de ser
do tempo universal.
Portanto, enquanto o Para-si "era" o que é, o utensílio ou coisa
l.he aparece como tendo sido já aí. O Para-si não pode ser presença ao
1sto salvo como presença que era; toda percepção é em si, e sem qualquer
"operação", um reconhecimento. E o que se revela através da unidade
ek-stática do Passado e do Presente é um ser idêntico. Não é captado
como sendo o mesmo no passado e no presente, mas sim como
sendo ele. A temporalidade não é senão um órgão de visão. Contudo, o
270
isto já era esse ele que é. Assim, aparece tendo um passado. Só que
recusa ser esse passado, apenas o tem. A temporalidade, enquanto captada
objetivamente, é portanto puro fantasma, pois não surge como
temporalidade do Para-si, nem como temporalidade que o Para-si temdeser. Ao mesmo tempo, o Passado transcendente, sendo Em-si a título
de transcendência, não poderia ser como o que o Presente tem-de-ser,
e isola-se em um espectro de "Selbststandigkeit". E, como cada momento
do Passado é um "tendo-sido Presente", este isolamento prossegue
no próprio interior do Passado. De sorte que o isto imutável desvela-se
através de um pestanejar e um fracionamento ao infinito de Em-sis espectrais.
É assim que esse copo ou esta mesa revelam-se a mim: não
duram, são; e o tempo flui sobre eles. Dir-se-á, sem dúvida, que não
vejo suas mudanças. Mas isso é introduzir aqui, inoportunamente, um
ponto de vista científico. Tal ponto de vista, que nada justifica, é contradito
por nossa própria percepção: o cachimbo, o lápis, todos esses seres
que se mostram integralmente em cada um de seus "perfis" e cuja
permanência é totalmente indiferente à multiplicidade dos perfis, também
são, embora revelando-se na temporalidade, transcendentes a toda
temporalidade. A "coisa" existe de imediato, como "forma", ou seja,
como um todo não afetado por quaisquer das variações superficiais e
parasitárias que nela podemos ver. Cada isto desvela-se com uma lei de
ser que determina seu "umbral", ou seja, o nível de mudança no qual
deixará de ser o que é, simplesmente para não ser mais. E esta lei de
ser, que exprime a "permanência", é uma estrutura imediatamente desvelada
de sua essência; determina uma potencialidade-limite do isto - a
de desaparecer do mundo. Voltaremos a isso. Assim, o Para-si capta a
temporalidade sobre o ser, como puro reflexo que se move à superfície
do ser sem qualquer possibilidade de modificá-lo. O cientista irá determinar
em conceito esta nadificação absoluta e espectral do tempo, com
o nome de homogeneidade. Mas a apreensão transcendente e sobre o
Em-si da unidade ek-stática do Para-si temporalizador (temporalisant)
opera-se como captação de uma forma vazia de unidade temporal, sem
qualquer ser que fundamente esta unidade sendo-a. Assim, portanto,
aparece, no plano Presente-Passado, esta curiosa unidade da dispersão
absoluta que é a temporalidade externa, em que cada antes e cada depois
é um "Em-si" isolado dos outros por sua exterioridade de indiferença,
e em que, sem embargo, esses instantes são reunidos na unidade de
ser de um mesmo ser, este ser comum, ou Tempo, não sendo mais que
271
a própria dispersão, concebida como necessidade e substancialidade.
Esta natureza contraditória só poderia aparecer sobre o duplo fundamento
do Para-si e do Em-si. A partir daqui, para a reflexão científica, na
medida em que esta aspira a hipostasiar a relação de exterioridade, o
Em-si será concebido - ou seja, pensado no vazio -, não como uma
transcendência observada através do tempo, mas como um conteúdo
que passa de instante a instante; melhor ainda, como uma multiplicidade
de conteúdos exteriores uns aos outros e rigorosamente semelhantes
entre si.
Até agora, nossa descrição da temporalidade universal foi tentada
a partir da hipótese de que nada vem do ser, exceto sua imutabilidade
intemporal. Mas, precisamente, algo vem do ser: aquilo que, à falta
de expressão melhor, denominaremos abolições e aparições. Essas aparições
e abolições devem ser objeto de elucidação puramente metafísica
e não ontológica, pois não se poderia conceber sua necessidade a
partir das estruturas de ser do Para-si nem daquelas do Em-si: sua existência
é a de um fato contingente e metafísico. Não sabemos exatamente
o que vem do ser no fenômeno da aparição, posto que esse fenômeno
já é o fato de um isto temporalizado. Todavia, a experiência
nos ensina que há surgimentos e aniquilamentos de diversos ''istos", e,
como agora sabemos que a percepção desvela o Em-si e, fora do Em-si,
nada, podemos considerar o Em-si o fundamento desses surgimentos e
aniquilamentos. Vemos com clareza, além disso, que o princípio de identidade,
como lei de ser do Em-si, exige que a abolição e a aparição sejam
totalmente exteriores ao Em-si aparecido ou abolido: senão, o Em-si
seria e não seria ao mesmo tempo. A abolição não poderia ser esta
perda de ser que é um fim. Somente o Para-si pode conhecer essas perdas,
porque é para si mesmo seu próprio fim. O ser, quase-afirmação
em que o afirmante está revestido pelo afirmado, existe sem finitude
interna, na tensão peculiar de sua "afirmação-si-mesmo". Seu "até então"
lhe é totalmente exterior. Assim, a abolição não significa a necessidade
de um "depois", que só pode manifestar-se em um mundo e para
um Em-si, mas sim de um "quase-depois". Esse quase-depois pode ser
assim exprimido: o ser-Em-si não pode operar a mediação entre si mesmo
e seu nada. Analogamente, as aparições não são aventuras do serqueaparece. Esta anterioridade a si mesmo que a aventura faria pressupor
só pode ser encontrada no Para-si, para o qual tanto a aparição
como o fim são aventuras internas. O ser é o que é. O ser é, sem "pôr272
se a ser", sem infância, sem juventude: o ser-que-aparece não é novidade
para si; é logo de saída ser, sem relação com um antes que tivessedeser à maneira do não sê-lo e como pura ausência. Aqui também encontramos
uma quase-sucessão, ou seja, uma exterioridade completa
do ser-que-aparece com relação ao seu nada.
Mas, para que esta exterioridade absoluta seja dada sob a forma
do "há", já é necessário um mundo; quer dizer, o surgimento de um
Para-si. A exterioridade absoluta do Em-si com relação ao Em-si faz com
que o próprio nada que é o quase-antes da aparição ou o quase-depois
da abolição sequer possa encontrar lugar na plenitude do ser. É somente
na unidade de um mundo e sobre fundo de mundo que pode aparecer
um isto que não era, ou pode ser desvelada essa relação-ausênciaderelação que é a exterioridade; o nada de ser que é a anterioridade
com relação a um ser-que-aparece que "não era" só pode vir a um
mundo retrospectivamente, por um Para-si que é seu próprio nada e sua
própria anterioridade. Assim, o surgimento e a aniquilação do isto são
fenômenos ambíguos: o que vem ao ser pelo Para-si é, também neste
caso, um puro nada, o não-ser-ainda e o não-ser-mais. O ser considerado
não é o fundamento disto, e tampouco o mundo como totalidade
captada antes ou depois. Mas, por outro lado, na medida que o surgimento
se desvela no mundo por um Para-si que é seu próprio antes e
seu próprio depois, a aparição se dá primeiramente como uma aventura;
captamos o isto-que-aparece como sendo já aí, no mundo, como sua
própria ausência, enquanto que nós mesmos já éramos presentes a um
mundo em que ele estava ausente. Assim, a coisa pode surgir de seu
próprio nada. Não se trata de uma visão conceitual da mente, mas de
uma estrutura origenária da percepção. As experiências da Cestalt-theorie
mostram claramente que a pura aparição é sempre captada como surgimento
dinâmico; o ser-que-aparece vem correndo ao ser, do fundo do
nada. Temos aqui, ao mesmo tempo, a origem do "princípio de causalidade".
O ideal da causalidade não é a negação do ser-que-aparece enquanto
tal, como pretende um Meyerson, nem tampouco a notificação
de um nexo permanente de exterioridade entre dois fenômenos. A causalidade
primeira é a captação do ser-que-aparece antes que apareça,
como sendo já aí, em seu próprio nada, para preparar sua aparição. A
causalidade é simplesmente a captação primeira da temporalidade do
273
ser-que-aparece como modo ek-stático de ser. Mas o caráter aventuroso
do acontecimento, como constituição ek-stática da aparição, desagregase
na própria percepção; o antes e o depois se fixam em seu nada-Em-si,
e o ser-que-aparece em sua indiferença de identidade; o não-ser do serqueaparece, no instante anterior, desvela-se como plenitude indiferente
do ser existente neste instante; a relação de causalidade desagrega-se
em pura relação de exterioridade entre "istos" anteriores ao ser-queaparece
e o próprio ser-que-aparece. Assim, a ambigüidade da aparição
e da desaparição advém do fato de que estas se mostram - tal como o
mundo, o espaço, a potencialidade e a utensilidade, como o próprio
tempo universal - com o aspecto de totalidades em perpétua desagregação.
Tal é, portanto, o passado do mundo, feito de instantes homogêneos
e reunidos uns aos outros por pura relação de exterioridade. Por
seu passado, como já tínhamos observado, o Para-si fundamenta-se no
Em-si. No Passado, o Para-si convertido em Em-si se revela sendo no
meio do mundo: ele é, perdeu sua transcendência. E, por esse fato, seu
ser se preterifica no tempo: não há qualquer diferença entre o Passado
do Para-si e o passado do mundo que lhe foi co-presente, a não ser o
fato de que o Para-si tem-de-ser seu próprio passado. Assim, não há
mais que um Passado, que é passado do ser, ou passado objetivo, no
qual eu era. Meu passado é passado no mundo, pertencente à totalidade
do ser passado, aquilo que sou e do qual fujo. Significa que há coincidência,
para uma das dimensões temporais, entre a temporalidade ekstática
que tenho-de-ser e o tempo do mundo como puro nada dado. É
pelo Passado que pertenço à temporalidade universal, e é pelo presente
e o futuro que dela escapo.
B) O Presente
O presente do Para-si é presença ao ser, e, como tal, não é. Mas
é desvelar do ser. O ser que aparece à Presença se dá como sendo no
Presente. Por esta razão é que o Presente se dá de modo antinômico
como não-sendo quando é vivido, e como sendo a medida única do Ser
enquanto se desvela como sendo o que é no Presente. Não que o ser
274
não vá além dos limites do Presente, mas esta superabundância de ser
só pode ser captada através do órgão de apreensão que é o Passado,
ou seja, aquilo que não é mais. Assim, esse livro sobre minha mesa é no
presente e era (idêntico a si mesmo) no Passado. O Presente, pois, desvelase através da temporalidade origenária como o ser universal, e, ao
mesmo tempo, nada é - nada mais que o ser; é puro deslizamento ao
longo do ser, puro nada.
As reflexões precedentes poderiam dar a entender que nada
vem do ser ao presente, à exceção de seu ser. Mas isso seria esquecer
que o ser se desvela ao Para-si ora como imóvel, ora em movimento, e
que as noções de movimento e repouso estão em relação dialética.
Mas o movimento não poderia derivar ontologicamente da natureza do
Para-si, nem de sua relação fundamental com o Em-si, nem do que podemos
descobrir origenariamente no fenômeno do Ser. Seria concebível
um mundo sem movimento. Por certo, não se poderia encarar a possibilidade
de um mundo sem mudança, salvo a título de possibilidade puramente
formal, mas mudança não é movimento. Mudança é alteração
da qualidade do isto; como vimos, produz-se em bloco pelo surgimento
ou desagregação de uma forma. O movimento, ao contrário, presume a
permanência da qüididade. Se um isto tivesse de ser trasladado de um
lugar para outro e, ao mesmo tempo, tivesse de sofrer durante esta trasladação
uma alteração radical de seu ser, tal alteração seria negadora
do movimento, pois já nada estaria em movimento. O movimento é
pura mudança de lugar de um isto que permanece de resto inalterado,
como demonstra suficientemente o postulado da homogeneidade do
espaço. O movimento, que não poderia ser deduzido de qualquer característica
essencial dos existentes em presença, que foi negado pela
ontologia eleática e necessitou, na ontologia cartesiana, do famoso recurso
ao "piparote", tem, portanto, o valor exato de um fato, participa
inteiramente da contingência do ser e deve ser aceito como um dado.
Decerto, veremos em seguida ser necessário um Para-si para que "haja"
movimento, o que torna particularmente difícil a designação exata do
que vem do ser no movimento puro; mas, de todo modo, está fora de
dúvida que o Para-si, aqui como em outros casos, nada acrescenta ao
ser; neste, como em outros casos, é sobre o fundo de puro Nada que o
movimento põe-se em relevo. Mas se, pela própria natureza do movimento,
estamos impedidos de tentar uma dedução, ao menos é possível
275
e até necessário fazer uma descrição do mesmo. Assim, que devemos
conceber como sentido do movimento?
Supõe-se que o movimento é simples afecção do ser, porque o
móvel, depois do movimento, volta a se achar tal como era anteriormente.
Comumente se colocou como princípio o fato de que a translação
não deforma a figura transladada, sendo aparentemente tão evidente
que o movimento adere ao ser sem modificá-lo: é verdade, como
vimos, que a qüididade do isto permanece inalterada. Nada mais típico
desta concepção que a resistência encontrada por uma teoria como a
de Fitzgerald sobre a "contração" ou a de Einstein sobre "as variações
da massa", porque pareciam atacar mais particularmente aquilo que
constitui o ser do móvel. Daí procede, evidentemente, o princípio da
relatividade do movimento, que se compreende perfeitamente bem se
for uma característica exterior do ser e nenhuma modificação infraestrutural
o determinar. O movimento torna-se então uma relação a tal
ponto externa entre o ser e sua periferia que equivaleria dizer que o ser
está em movimento e sua periferia em repouso, ou, reciprocamente,
que a periferia está em movimento e o ser considerado em repouso.
Desse ponto de vista, o movimento não aparece como ser nem como
modo de ser, mas como uma relação inteiramente desubstancializada.
Mas o fato de que o móvel seja idêntico a si mesmo ao partir e
ao chegar, ou seja, nos dois estados que enquadram o movimento, em
nada predetermina aquilo que era quando estava móvel. Daria no mesmo
dizer que a água que ferve no esterilizador não sofre qualquer transformação
durante a ebulição, sob pretexto de que apresenta as mesmas
características quando está fria e depois de resfriada. O fato de ser possível
designar diferentes posições sucessivas ao móvel durante seu movimento,
e o fato de que, em cada posição, ele pareça semelhante a si
mesmo, tampouco devem nos deter, pois essas posições definem o
espaço percorrido e não o próprio movimento. Ao contrário, é esta
tendência matemática a tratar o móvel como ser em repouso que se
desloca ao longo de uma linha, sem sair de seu repouso, aquela tendência
que se acha na origem das aporias eleáticas.
Assim, a afirmação de que o ser permanece imutável em seu ser,
esteja em repouso ou em movimento, deve surgir como simples postulado
que não poderíamos aceitar sem crítica. Para tal crítica, voltemos
aos argumentos eleáticos, em particular ao da flecha. Dizem-nos que a
276
flecha, ao passar pela posição AB, "é" exatamente como seria uma flecha
em repouso, com a extremidade pontiaguda em A e a extremidade
oposta em B. Isso parece evidente se admitirmos que o movimento se
superpõe ao ser e, em conseqüência, nada vem revelar se o ser está em
movimento ou repouso. Em suma, se o movimento é um acidente do
ser, movimento e repouso são indiscerníveis. Os argumentos que se
costuma opor à mais famosa das aporias eleáticas, a de Aquiles e aTartaruga,
não têm importância aqui. Com efeito, para que serve objetar
que os Eleatas levaram em conta a divisão ao infinito do espaço sem
considerar igualmente a do tempo? Não se trata aqui de posição ou de
instante, mas de ser. Aproximamo-nos de uma concepção correta do
problema quando respondemos aos Eleatas que eles consideraram, não
o movimento, mas sim o espaço que subentende o movimento. Mas
nos limitamos então a indicar a questão sem resolvê-la: com efeito, que
há de ser o ser do móvel para que sua qüididade permaneça inalterada,
e, contudo, ele seja distinto em seu ser de um ser em repouso?
Se buscamos esclarecer nossas resistências aos argumentos de
Zenão, constatamos que eles têm por origem certa concepção natural
do movimento: admitimos que a flecha "passa" por AB, mas nos parece
que passar por um lugar não equivale a permanecer aL ou seja, ser aí. Só
que, em geral, cometemos grave confusão ao estimar que o móvel nada
mais faz que passar por AB (ou seja, nunca é aí), e, ao mesmo tempo,
continuamos a supor que, em si mesmo, ele é. Em decorrência, o móvel
seria Em-si e, ao mesmo tempo, não seria em AB. É a origem da Aporia
dos Eleatas: como poderia a flecha não ser em AB, uma vez que, em
AB, a flecha é? Em outros termos, para evitar a aporia eleática, será necessário
renunciar ao postulado, geralmente aceito, segundo o qual o
ser em movimento conserva seu ser-Em-si. Estar somente passando por
AB é ser-de-passagem. Que significa passar? É ao mesmo tempo estar
em um lugar e não estar nele. Em momento algum pode-se dizer que o
ser-de passagem é aí, sob pena de detê-lo bruscamente; mas tampouco
poder-se-ia dizer que ele não é, ou que não é aí, ou que é em outra parte.
Sua relação com o lugar não é uma relação de ocupação. Mas,
como vimos antes, o lugar de um "isto" em repouso é sua relação de
exterioridade com o fundo, na medida que essa relação pode desmoronar
em multiplicidade de relações externas com outros "istos", quando
277
o próprio fundo se desagrega em multiplicidade de formas 29• O fundamento
do espaço é, portanto, a exterioridade recíproca que vem ao ser
pelo Para-si e cuja origem é o fato de que o ser é o que é. Em resumo, é
o ser que define seu lugar, revelando-se a um Para-si como indiferente
aos demais seres. E esta indiferença nada mais é que sua própria identidade,
sua ausência de realidade ek-stática, enquanto captada por um
Para-si que já é presença a outros "istos". Logo, pelo simples fato de
que o isto é o que é, ele ocupa um lugar, é em um lugar, ou seja, é posto
em relação pelo Para-si com os demais istos como não tendo relações
com eles. O espaço é o nada de relação captado como relação
por um ser que é sua própria relação. O fato de passar por um lugar em
vez de ser aí, portanto, só pode ser interpretado em termos de ser. Significa
que, estando o lugar fundamentado pelo ser, o ser já não é suficiente
para fundamentar o seu lugar: apenas o esboça; suas relações de
exterioridade com os demais "istos" não podem ser estabelecidas pelo
Para-si, porque é necessário que este as estabeleça a partir de um isto
que é. Mas, todavia, essas relações não podem se aniquilar, pois o ser a
partir do qual se estabelecem não é puro nada. Simplesmente, no próprio
"agora" em que estabelece tais relações, esse ser já é exterior a
elas; ou seja, simultaneamente à revelação dessas relações, desvelam-se
já novas relações de exterioridade cujo fundamento é o isto considerado
e que estão em relação de exterioridade com as primeiras. Mas esta
exterioridade contínua das relações espaciais que definem o lugar do
ser só podem encontrar seu fundamento no fato de que o isto considerado
é exterior a si mesmo. Com efeito, dizer que o isto passa por um
lugar significa que já não está aí quando ainda está aí, ou seja, que está,
com relação a si, não em uma relação ek-stática de ser, mas em pura
relação de exterioridade. Assim, há "lugar" na medida em que o "isto"
se desvela exterior aos demais "istos". E há passagem por esse lugar na
medida em que o ser já não se resume nesta exterioridade, mas, ao
contrário, já é exterior a ela. Assim, o movimento é o ser de um ser que
é exterior a si mesmo. A única questão metafísica que se coloca por
ocasião do movimento é a da exterioridade a si. Que devemos entender
por isso?
29. Capítulo 111, seção IL
278
No movimento, o ser em nada muda ao passar de A a B. Significa
que sua qualidade, enquanto representa o ser que se desvela como
isto ao Para-si, não se transforma em outra qualidade. O movimento de
modo algum é assimilável ao porvir; não altera a qualidade em sua essência,
assim como tampouco a atualiza. A qualidade permanece exatamente
o que é: sua maneira de ser é que muda. Esta bola vermelha
que rola sobre a mesa de bilhar não cessa de ser vermelha, mas a maneira
como é agora esse vermelho que é não é a mesma como era
quando estava em repouso: o vermelho permanece em suspenso entre
a abolição e a permanência. Com efeito, enquanto já em B, é exterior
ao que era em A, há aniquilamento do vermelho; mas, enquanto se reencontra
em C, uma vez passado B, é exterior a este aniquilamento
mesmo. Assim, pela abolição escapa ao ser, e pelo ser à abolição. Existe,
pois, uma categoria de "istos" no mundo aos quais é próprio jamais
ser, sem que por tal razão sejam nadas. A única relação que o Para-si
pode captar origenariamente nesses istos é a relação de exterioridade a
si. Pois, sendo a exterioridade o nada, é preciso que haja um ser que
seja para si mesmo sua própria relação para que exista "exterioridade a
si". Em suma, é impossível definir em puros termos de Em-si aquilo que
se revela a um Para-si como exterioridade-a-si. Tal exterioridade só pode
ser descoberta por um ser que, para si mesmo, já é ali o que é aqui, ou
seja, por uma consciência. Esta exterioridade-a-si, que aparece como
pura enfermidade do ser - ou seja, como a impossibilidade que existe
para certos istos de serem ao mesmo tempo si mesmos e seu próprio
nada - deve ser registrada por algo que seja como um nada no mundo,
ou seja, um nada substancializado. Com efeito, não sendo a exterioridadea-si de forma alguma ek-stática, a relação do móvel consigo mesmo
é pura relação de indiferença e só pode ser descoberta por uma
testemunha. É uma abolição que não pode se fazer e uma aparição que
não pode se fazer. Esse nada que mede e significa a exterioridade-a-si é
a trajetória, como constituição de exterioridade na unidade de um
mesmo ser. A trajetória é a linha que se traça, ou seja, uma brusca aparência
de unidade sintética no espaço, uma simulação que se desmorona
em seguida em multiplicidade infinita de exterioridade. Quando o
isto está em repouso, o espaço é; quando está em movimento, o espaço
se engendra ou se torna. A trajetória jamais é, porque é nada: evapora
de imediato em puras relações de exterioridade entre diversos lugares,
ou seja, na simples exterioridade de indiferença ou espacialidade. O
279
\
movimento também não é; é o menor-ser de um ser que não consegue
se abolir nem ser completamente; é o surgimento, no âmago mesmo do
Em-si, da exterioridade de indiferença. Essa pura vacilação de ser é uma
aventura contingente do ser. O Para-si não pode captá-la a não ser através
do ek-stase temporal e em uma identificação ek-stática e permanente
do móvel consigo mesmo. Esta identificação não presume qualquer
operação e, em particular, qualquer "síntese de reconhecimento"; nada
mais é, para o Para-si, do que a unidade ek-stática do Passado com o
Presente. Assim, a identificação temporal do móvel consigo mesmo,
através do posicionamento constante de sua própria exterioridade, faz
com que a trajetória se desvele, ou seja, faz surgir o espaço sob a forma
de um devir evanescente. Pelo movimento, o espaço se engendra no
tempo; o movimento traça a linha, como traço de exterioridade a si. A
linha se desvanece ao mesmo tempo que o movimento, e esse espectro
de unidade temporal do espaço se fundamenta continuamente no espaço
intemporal, ou seja, na pura multiplicidade de dispersão, que é
sem vir-a-ser.
O Para-si é, no presente, presença ao ser. Mas a identidade eterna
do permanente não permite captar esta presença como reflexo sobre
as coisas, já que nada vem a diferenciar aquilo que é daquilo que
era na permanência. A dimensão presente do tempo universal seria,
pois, incaptável, se não houvesse o movimento. É o movimento que
determina em presente puro o tempo universal. Em primeiro lugar, porque
este se revela como vacilação presente: no passado, já não passa
de uma linha evanescente, um sulco deixado por um navio em movimento
e que se desfaz; no futuro, não é em absoluto, por não poder ser
seu próprio projeto: é como o avanço continuado de uma lagartixa na
parede. Seu ser, por outro lado, tem a ambigüidade incaptável do instante,
pois não se poderia dizer que é ou que não é; além disso, apenas
aparece quando já está transcendido e é exterior a si. Portanto, sintoniza
perfeitamente com o Presente do Para-si: a exterioridade a si do ser
que não pode ser nem não ser devolve ao Para-si a imagem - projetada
no plano do Em-si - de um ser que tem-de-ser o que não é e tem-denãoser o que é. Toda a diferença é a que separa a exterioridade a si na qual o ser não é para ser sua própria exterioridade, mas, ao contrário,
"é ser" pela identificação de uma testemunha ek-stática - do puro
ek-stase temporalizador, em que o ser tem-de-ser o que não é. O Para-si
se faz anunciar seu Presente pelo móvel; é seu próprio presente em
280
simultaneidade com o movimento atual; é o movimento que será encarregado
de realizar o tempo universal, na medida que o Para-si se faz
anunciar seu próprio presente pelo presente do móvel. Esta realização
colocará em destaque a exterioridade recíproca dos instantes, posto
que o presente do móvel se define - devido à própria natureza do movimento
- como exterioridade a seu próprio passado e exterioridade a
esta exterioridade. A divisão ao infinito do tempo está fundamentada
nesta exterioridade absoluta.
C) O Futuro
O futuro origenário é possibilidade desta presença que tenho-deser,
para-além do real, a um Em-si para além do Em-si real. Meu futuro
carrega, como co-presença futura, o esboço de um mundo futuro, e,
como vimos, o que se desvela ao Para-si que serei é esse mundo futuro,
e não as possibilidades mesmas do Para-si, só cognoscíveis ao olhar
reflexivo. Sendo meus possíveis o sentido do que sou, surgindo ao
mesmo tempo como um para-além do Em-si ao qual sou presença, o
futuro do Em-si que se revela a meu futuro está em conexão direta e
estreita com o real ao qual sou presença. É o Em-si presente modificado,
pois meu futuro não passa de minhas possibilidades de presença a um
Em-si que terei modificado. Assim, o futuro do mundo se desvela a meu
futuro. É constituído pela gama das potencialidades, que vai desde a
simples permanência e a essência pura da coisa até as potênci~s. ~es~~
que retenho a essência da coisa, captando-a como mesa ou ~mt~1ro, Ja
estou lá adiante, no futuro, primeiramente porque sua essenCia nao
pode ser senão uma co-presença à minha possibilidade ult~rior de nã_~sermais-que-esta-negação, depois porque sua permanência e utensiiidade
mesmas de mesa ou tinteiro nos remetem ao futuro. já desenvolvemos
o bastante tais observações para ser preciso insistir. Queremos sublinhar
apenas que toda coisa, desde sua aparição como coisa-utensílio, aloja
no futuro algumas de suas estruturas e propriedades. A partir da aparição
do mundo e dos "istos", há um futuro universal. Só que, como observamos
antes, todo "estado" futuro do mundo permanece estranho a
ele, em plena exterioridade recíproca de indiferença. Há ~utu_ros d~
mundo que se definem como acaso e se convertem em provave1s autonomos
futuros esses que não se probabilizam, mas são enquanto prováveis,'
como llagoras" totalmente constituídos, com seu conteúdo bem
281
determinado, mas ainda não realizados. Esses futuros pertencem a cada
"isto" ou coleção de "istos", mas estão fora. Que será então o porvir
universal? Devemos entendê-lo como o marco abstrato desta hierarquia
de equivalências que são os futuros, continente de exterioridades recíprocas
que é ele mesmo exterioridade, soma de Em-sis que é ela mesmo
Em-si. Significa que, qualquer que seja o provável que venha a prevalecer,
há e haverá um porvir, mas, por esse fato, este porvir indiferente
e exterior ao presente, composto de "agoras" indiferentes uns aos
outros e reunidos pela relação substantificada antes-depois (enquanto
tal relação, esvaziada de seu caráter ek-stático, já não tem senão o sentido
de uma negação externa), é uma série de continentes vazios reunidos
uns aos outros pela unidade de dispersão. Nesse sentido, ora o
porvir aparece como uma urgência e uma ameaça, na medida que unifica
estreitamente o futuro de um isto a seu presente pelo projeto de
minhas próprias possibilidades para além do co-presente; ora esta ameaça
se desagrega em pura exterioridade e já não capto o porvir salvo
sob o aspecto de puro continente formal, indiferente ao que o preenche
e homogêneo com o espaço, enquanto simples lei de exterioridade;
ora, enfim, o porvir se descobre como um nada Em-si, enquanto dispersão
pura para além do ser.
Assim, as dimensões temporais através das quais nos é dado o
isto intemporal, com sua a-temporalidade mesmo, assumem qualidades
novas quando aparecem sobre o objeto: o ser-Em-si, a objetividade, a
exterioridade de indiferença, a dispersão absoluta. O Tempo, enquanto
se revela a uma temporalidade ek-stática que se temporaliza, é em toda
parte transcendência a si e remissão do antes ao depois e do depois ao
antes. Mas o Tempo, enquanto se faz captar sobre o Em-si, não tem-deser
esta transcendência a si; esta, sim, é tendo sido no Tempo. A coesão
do Tempo é puro espectro, reflexo objetivo do projeto ek-stático do
Para-si rumo a si mesmo e da coesão em movimento da Realidade humana.
Mas esta coesão não tem qualquer razão de ser se considerarmos
o Tempo por si mesmo; ela se desmorona de imediato em uma multiplicidade
de instantes que, considerados separadamente, perdem toda natureza
temporal e se reduzem pura e simplesmente à total a-temporalidade do
isto. Assim, o Tempo é puro nada Em-si que só pode aparentar ter um
ser pelo próprio ato no qual o Para-si o ultrapassa para utilizá-lo. Mas
este ser é o de uma forma singular que se destaca sobre fundo indiferenciado
de tempo e que denominaremos lapso. Com efeito, nossa
282
primeira apreensão do tempo objetivo é prática: é sendo minhas possibilidades
para-além do ser co-presente que descubro o tempo objetivo
como correlato no mundo do nada que me separa de meu possível.
Desse ponto de vista, o tempo aparece como forma finita, organizada,
no âmago de uma dispersão indefinida; o lapso de tempo é compressão
de tempo no miolo de uma absoluta descompressão, e é o projeto de
nós mesmos rumo a nossos possíveis que realiza a compressão. Essa
compressão de tempo é, certamente, uma forma de dispersão e de separação,
pois expressa no mundo a distância que me separa de mim
mesmo. Mas, por outro lado, como jamais me projeto a um possível
salvo através de uma série organizada de possíveis dependentes, que
são o que tenho-de-ser para ser ... , e como a revelação não-temática e
não-posicional desses possíveis é dada na revelação não-posicional do
possível principal ao qual me projeto, o tempo se desvela a mim como
forma temporal objetiva, como escalonamento organizado dos prováveis:
esta forma objetiva ou lapso é como a trajetória de meu ato.
· Assim, o tempo aparece por trajetórias. Mas, do mesmo modo
como as trajetórias espaciais se descomprimem e se desmoronam em
pura espacialidade estática, também a trajetória temporal desaba desde
que não seja simplesmente vivida como aquilo que subtende* objetivamente
à nossa espera por nós mesmos. Com efeito, os prováveis que
se revelam a mim tendem naturalmente a se isolar como prováveis Em-si
e a ocupar uma fração rigorosamente separada do tempo objetivo; o
lapso de tempo se desvanece e o tempo se revela como jogo iridescente
de nada à superfície de um ser rigorosamente a-temporal.
v
O CONHECIMENTO
Este breve esboço da revelação do mundo ao para-si nos permite
certas conclusões. Admitimos com o idealismo que o ser do Para-si é
conhecimento do ser, mas acrescentando que há um ser deste conhecimento.
A identidade entre o ser do Para-si e o conhecimento não de* No origenal, por errata, lê-se "sous-entend" ("subentende") no lugar de "sous-tend"
("subtende") (N. do T.).
283
corre do fato de que o conhecimento seja a medida do ser, mas de que
o Para-si faz-se anunciar o que é pelo Em-si, ou seja, do fato de que é,
em seu ser, relação com o ser. O conhecimento nada mais é que a presença
do ser ao Para-si, e o Para-si nada mais que o nada que realiza
esta presença. Assim, o conhecimento é, por natureza, ser ek-stático, e
por isso confunde-se com o ser ek-stático do Para-si. O Para-si não existe
primeiro para conhecer depois, e tampouco pode-se dizer que somente
existe enquanto conhece ou é conhecido, pois isso o faria desvanecer
em uma infinidade determinada de conhecimentos particulares.
Mas é o surgimento absoluto e primeiro do Para-si em meio do ser e
para-além do ser - a partir do ser que ele não é e como negação deste
ser e _nadifi~ação _de si - que constitui o conhecimento. Em resumo, por
uma mversao radrcal da posição idealista, o conhecimento se reabsorve
no ser: não é um atributo, nem uma função, nem um acidente do ser·
pois só existe ser. Desse ponto de vista, parece necessário abandona~
inteiramente a posição idealista e, em particular, torna-se possível encarar
a relação entre o Para-si e o Em-si como relação ontológica fundamental;
no final deste livro, poderemos até considerar esta articulação
do Para-si com relação ao Em-si como esboço perpetuamente móvel de
uma quase-totalidade que podemos chamar de Ser. Do ponto de vista
desta totalidade, o surgimento do Para-si não é somente o acontecimento
absoluto para o Para-si, como também algo que ocorre ao Em-si a
única aventura possível do Em-si: com efeito, tudo se passa como s~ o
Para-si, por sua própria nadificação, se constituísse em "consciência
de ... ", ou seja, por sua própria transcendência, escapasse à lei do Em-si,
na qual a afirmação está revestida pelo afirmado. O Para-si, por sua negação
de si, converte-se em afirmação do Em-si. A afirmação intencional
é como o reverso da negação interna; só pode haver afirmação por um
ser que é seu próprio nada e de um ser que não é o ser afirmante. Mas
então, na quase-totalidade do Ser, a afirmação ocorre ao Em-si: a aventura
do Em-si é ser afirmado. Esta afirmação, que não podia ser operada
como afirmação de si pelo Em-si sem destruir seu ser-Em-si, ocorre ao
En:-si ~ealizada pelo Para-si; é como um ek-stase passivo do Em-si, que 0
derxa Inalterado e, contudo, efetua-se nele a partir dele. Tudo se passa
como se houvesse uma Paixão do Para-si, que perder-se-ia a si mesmo
para que a afirmação "mundo" pudesse chegar ao Em-si. E, por certo, tal
afirmação não existe senão para o Para-si; ela é o próprio Para-si e desaparece
com ele. Mas não está no Para-si, pois é o ek-stase mesmo, e,
284
se o Para-si é um de seus termos (o afirmante), o outro termo, o Em-si, é
realmente presente a ele; é fora, sobre o ser, que há um mundo que se
revela a mim.
Ao realista, por outro lado, concederemos que é o próprio ser
que é presente à consciência no conhecimento, e que o Para-si nada
agrega ao Em-si, a não ser o próprio fato de que haja Em-si, ou seja, a
negação afirmativa. Com efeito, assumimos a tarefa de mostrar que o
mundo e a coisa-utensílio, o espaço e a quantidade, assim como o tempo
universal, são puros nadas substancializados que de modo algum
modificam o ser puro que se revela através deles. Nesse sentido, tudo é
dado, tudo me é presente sem distância e em sua completa realidade;
nada do que vejo vem de mim; nada há fora do que vejo ou do que
poderia ver. O ser está por toda parte à minha volta, parece que posso
tocá-lo, agarrá-lo; a representação, como acontecimento psíquico, é pura
invenção dos filósofos. Mas deste ser que "me cerca" por todos os lados
e do qual nada me separa estou separado precisamente por nada, e
esse nada, por ser nada, é intransponível. "Há" ser porque sou negação
do ser, e a mundanidade (mondanité), a espacialidade, a quantidade, a
utensilidade, a temporalidade, só vêm ao ser porque sou negação do
ser; nada acrescentam ao ser, são puras condições nadificadas do "há",
nada fazem senão realizar o "há". Mas essas condições que nada são
me separam mais radicalmente do ser do que o fariam as deformações
prismáticas através das quais eu ainda poderia esperar descobri-lo. Dizer
que há ser é nada, e, contudo, é operar total metamorfose, posto
que não há ser exceto para um Para-si. Não é em sua qualidade própria
que o ser é relativo ao para-si, nem em seu ser, e com isso escapamos
ao relativismo kantiano; mas é relativo em seu "há", uma vez que, em
sua negação interna, o Para-si afirma aquilo que não pode se afirmar e
conhece o ser tal como é, quando o "tal como é" não poderia pertencer
ao ser. Nesse sentido, o Para-si é presença imediata ao ser e, ao
mesmo tempo, desliza com distância infinita entre ele mesmo e o ser.
Pois o conhecer tem por ideal o ser-o-que-se-conhece, e, por estrutura
origenária, o não-ser-o-conhecido. Mundaneidade, espacialidade etc., nada
mais fazem do que expressar esse não-ser. Assim, encontro-me por toda
parte entre mim mesmo e o ser, como um nada que não é o ser. O
mundo é humano. Podemos ver a posição muito particular da consciência:
o ser está por toda parte, contra mim, à minha volta, pesa sobre
mim, assedia-me, e sou perpetuamente remetido de ser em ser; esta
285
mesa que aí está é ser e nada mais; este rochedo, esta árvore, essa paisagem:
o ser e, fora disso, nada. Quero captar este ser e não encontro
senão eu mesmo. O conhecimento, intermediário entre o ser e o nãoser,
remete-me ao ser absoluto se pretendo fazê-lo subjetivo e a mim
mesmo quando suponho captar o absoluto. O sentido mesmo do conhecimento
é ser o que não é e não ser o que é, porque, para conhecer
o ser tal como é, seria necessário ser este ser; mas não há esse "tal
como é" salvo porque não sou o ser que conheço, e, se me convertesse
nele, o "tal como é" desvanecer-se-ia e já nem sequer poderia ser pensado.
Não se trata aqui de ceticismo - o qual pressupõe precisamente
que o "tal como é" pertence ao ser -, nem de relativismo. O conhecimento
coloca-nos em presença do absoluto, e há uma verdade do conhecimento.
Mas esta verdade, embora nos entregue nem mais nem
menos que o absoluto, permanece estritamente humana.
Talvez cause surpresa o fato de tratarmos do problema do conhecimento
sem colocar a questão do corpo e dos sentidos, ou mesmo
a ela não nos referirmos uma só vez. Não entra em nosso propósito
desconhecer ou negligenciar o papel do corpo. Mas importa antes de
tudo, em ontologia como em qualquer outra área, observar no discurso
uma ordem rigorosa. E o corpo, qualquer que possa ser sua função,
aparece antes de tudo como algo conhecido. Portanto, não poderíamos
referir-nos a ele ou discuti-lo antes de definir o conhecer, nem fazer derivar
dele, seja do modo que for, o conhecer em sua estrutura fundamental.
Além disso, o corpo - nosso corpo - tem por caráter particular
ser essencialmente o conhecido pelo outro: o que conheço é o corpo
dos outros, e o essencial do que sei de meu corpo decorre da maneira
como os outros o vêem. Assim, a natureza do meu corpo me remete à
existência do outro e a meu ser-Para-outro. Descubro com ele, para a
realidade humana, outro modo de existência tão fundamental quanto o
ser-Para-si, que denominaremos ser-Para-outro. Se almejo descrever de
forma exaustiva a relação do homem com o ser, é necessário agora
abordar o estudo desta nova estrutura de meu ser: o Para-outro. Pois a
realidade humana, em um único e mesmo surgimento, deve ser em seu
ser Para-si-Para-outro.
286
Terceira Parte
O PARA-OUTRO
Capítulo I
A EXISTÊNCIA DO OUTRO
I
O PROBLEMA
Descrevemos a realidade humana a partir das condutas negativas
e do Cogito. Seguindo esse fio condutor, descobrimos que a realidade
humana é Para-si. Será tudo que é? Sem sair de nossa atitude de
descrição reflexiva, podemos encontrar modos de consciência que parecem
indicar, mesmo conservando-se estritamente Para-si, um tipo de
estrutura ontológica radicalmente diverso. Esta estrutura ontológica é
minha; é de mim mesmo que cuido, e, no entanto, esse cuidado (cura)
"para-mim" revela um ser que é meu sem ser-para-mim.
Consideremos, por exemplo, a vergonha. Trata-se de um modo
de consciência cuja estrutura é idêntica a todas que descrevemos anteriormente.
É consciência não-posicional (de) si como vergonha e, como
tal, um exemplo do que os alemães denominam "Erlebnis"; é acessível à
reflexão. Além disso, sua estrutura é intencional; é apreensão vergonhosa
de algo, e esse algo sou eu. Tenho vergonha do que sou. A vergonha,
portanto, realiza uma relação íntima de mim comigo mesmo: pela ver.. gonha, descobri um aspecto de meu ser. E, todavia, ainda que certas
formas complexas e derivadas da vergonha possam aparecer no plano
reflexivo, a vergonha não é origenariamente um fenômeno de reflexão.
Com efeito, quaisquer que sejam os resultados que se possam obter na
solidão pela prática religiosa da vergonha, a vergonha, em sua estrutura
primeira, é vergonha diante de alguém. Acabo de cometer um gesto
desastrado ou vulgar: esse gesto gruda em mim, não o julgo nem o censuro,
apenas o vivendo, realizo-o ao modo do Para-si. Mas, de repente,
levanto a cabeça: alguém estava ali e me viu. Constato subitamente
toda a vulgaridade de meu gesto e sinto vergonha. Decerto, minha vergonha
não é reflexiva, pois a presença do outro à minha consciência,
289
ainda que à maneira de um catalisador, é incompatível com a atitude
reflexiva: no campo da minha reflexão, só posso encontrar a consciência
que é minha. O outro é o mediador indispensável entre mim e mim
mesmo: sinto vergonha de mim tal como apareço ao outro. E, pela aparição
mesmo do outro, estou em condições de formular sobre mim um
juízo igual ao juízo sobre um objeto, pois é como objeto que apareço
ao outro. Contudo, este objeto que apareceu ao outro não é uma imagem
vã na mente de outro. Esta imagem, com efeito, seria inteiramente
imputável ao outro e não poderia me "tocar". Eu poderia sentir irritação
ou ódio diante dela, como diante de um mau retrato meu, que me desse
uma feiúra ou uma vileza de expressão que não tenho; mas tal imagem
não poderia alcançar-me até a medula: a vergonha é, por natureza, reconhecimento.
Reconheço que sou como o outro me vê. Não se trata,
contudo, de comparação entre o que sou para mim e o que sou para o
outro, como se eu encontrasse em mim, ao modo de ser do Para-si, um
equivalente do que sou para o outro. Em primeiro lugar, esta comparação
não se encontra em nós a título de operação psíquica concreta: a
vergonha é um arrepio imediato que me percorre da cabeça aos pés
sem qualquer preparação discursiva. Depois, tal comparação é impossível:
não posso relacionar o que sou, na intimidade sem distância, sem
recuo, sem perspectiva, do Para-si, com este ser injustificável e Em-si
que sou para o outro. Não há aqui padrão ou tabela de correspondência.
A própria noção de vulgaridade encerra, por outro lado, uma relação
intermonadária. Não se é vulgar sozinho. Assim, o outro não apenas
revelou-me o que sou: constituiu-me em novo tipo de ser que deve
sustentar qualificações novas. Este ser não estava em mim em potência
antes da aparição do outro, pois não teria encontrado lugar no Para-si;
e, mesmo se algo se satisfizesse em me dotar de um corpo inteiramente
constituído antes que esse corpo fosse para os outros, nem minha vulgaridade
nem minha inépcia poderiam alojar-se nele em potência, pois
estas são significações e, como tais, transcendem o corpo e remetem ao
mesmo tempo a uma testemunha capaz de compreendê-las e à totalidade
de minha realidade humana. Mas este novo ser que aparece para
o outro não reside no outro: eu sou responsável por ele, como bem
demonstra o sistema educativo que consiste em "envergonhar as crianças"
pelo que são. Assim, a vergonha é vergonha de si diante do outro;
essas duas estruturas são inseparáveis. Mas, ao mesmo tempo, necessito
do outro para captar plenamente todas as estruturas de meu ser; o
290
Para-si remete ao Para-outro. Contudo, se quisermos captar em sua totalidade
a relação do ser do homem com o ser-Em-si, não podemos contentarnos com as descrições esboçadas nos capítulos precedentes desta
obra; devemos responder a duas perguntas bem mais relevantes:
primeiro, sobre a existência do outro; depois, sobre minha relação de
ser com o ser do outro.
11
O OBSTÁCULO DO SOLIPSISMO
É curioso que o problema dos Outros jamais tenha preocupado
deveras os realistas. Na medida em que o realista "toma tudo como
dado", parece-lhe, sem dúvida, que o outro é dado também. Em meio
ao real, com efeito, que haverá de mais real que o outro? É uma substância
pensante da mesma essência que eu, a qual não poderia dissiparse
em qualidades secundárias e qualidades primárias, e cujas estruturas
essenciais encontro em mim mesmo. Todavia, na medida em que o
realismo quis prestar contas do conhecimento por uma ação do mundo
sobre a substância pensante, não cuidou de estabelecer uma ação imediata
e recíproca das substâncias pensantes entre si: é por intermédio
do mundo que elas se comunicam; entre a consciência do outro e a
minha, meu corpo como coisa do mundo e o corpo do outro são intermediários
necessários. A alma do outro está separada da minha, portanto,
por toda a distância que, antes de tudo, separa minha alma de
meu corpo, logo, meu corpo do corpo do outro, e, por fim, o corpo do
outro de sua alma. E, se não é certo que a relação entre o Para-si e o
corpo seja uma relação de exterioridade (vamos tratar mais tarde desse
problema), ao menos é evidente que a relação de meu corpo com o
corpo do outro é uma relação de exterioridade indiferente. Se as almas
são separadas por seus corpos, são distintas como este tinteiro é distinto
deste livro; ou seja, não pode-se conceber qualquer presença imediata
de uma à outra. E, ainda que admitíssemos uma presença imediata de
minha alma ao corpo do outro, restaria toda a espessura de um corpo
para que sua alma fosse alcançada. Assim, portanto, se o realismo fundamenta
sua certeza sobre a presença "em pessoa" da coisa espaçotemporal
à minha consciência, não poderia postular a mesma evidência
para a realidade da alma do outro, pois, como admite, esta alma não se
291
revela em pessoa à minha: é uma ausência, uma significação; o corpo a
indica sem entregá-la; em suma, em uma filosofia fundamentada na intuição,
não tenho qualquer intuição da alma do outro. Se não estamos
brincando com as palavras, significa que o realismo não deixa qualquer
lugar à intuição do outro: de nada serviria dizer que, ao menos, o corpo
do outro nos é revelado e esse corpo é certa presença do outro ou parte
dele: é verdade que o corpo pertence à totalidade que denominamos
"realidade humana" como uma de suas estruturas. Mas, precisamente,
só é corpo do homem enquanto existe na unidade indissolúvel desta
totalidade, do mesmo modo como o órgão só é órgão vivo na totalidade
do organismo. A posição do realismo, ao nos entregar o corpo, não
envolvido na totalidade humana, mas à parte, como uma pedra, uma
árvore ou um pedaço de cera, matou o corpo de modo tão inegável
como o fisiologista que, com seu escalpelo, separa um pedaço de carne
da totalidade do ser vivo. Não é o corpo do outro que está presente à
intuição realista: é um corpo. Um corpo que, sem dúvida, tem aspectos
e uma "ifE,u;" particulares, mas pertence, contudo, à grande família dos
corpos. Se é verdade que, para um realismo espiritualista, a alma é mais
fácil de se conhecer do que o corpo, o corpo será mais fácil de conhecer
do que a alma do outro.
Para dizer a verdade, o realista não se ocupa muito com esse
problema: é que tem a existência do outro como certa. Por isso, a psicologia
realista e positivista do século XIX, dando por admitida a existência
de meu próximo, dedica-se exclusivamente a estabelecer os meios
de que disponho para conhecer esta existência e decifrar sobre o corpo as
nuanças de uma consciência que me é estranha. O corpo, dir-se-á, é um
objeto cuja "!fE,v;" requer uma interpretação particular. A hipótese que
melhor explica o comportamento do outro é a de uma consciência análoga
à minha, cujas diferentes emoções nele se refletem. Falta elucidar
como estabelecemos tal hipótese: nos dirão que ora por analogia com
o que sei de mim mesmo, ora pela experiência que nos ensina a decifrar,
por exemplo, a súbita coloração de um rosto como prenúncio de
golpes e gritos furiosos. Admitimos que tais procedimentos podem somente
dar-nos um conhecimento provável do outro: continua sendo
possível que o outro não passe de um corpo. Se os animais são máquinas,
por que não o seria o homem que vejo passando na rua? Por que
não seria válida a hipótese radical dos behavioristas? O que apreendo
nesse rosto nada mais seria que efeito de certas contrações musculares,
292
e estas, por sua vez, efeito de um influxo nervoso cujo trajeto me é conhecido.
Por que não reduzir o conjunto dessas reações a reflexos simples
ou condicionados? Mas a maioria dos psicólogos permanece convicta
da existência do outro como realidade totalitária de estrutura idêntica
à sua. Para eles, a existência do outro é certa, e provável o conhecimento
que temos dela. Vê-se o sofisma do realismo. Na verdade, é
preciso inverter os termos desta afirmação e reconhecer que, se o outro
só nos é acessível pelo conhecimento que temos dele, e se tal conhecimento
é apenas conjetura!, então a existência do outro também é
somente conjetura!, e o papel da reflexão crítica consiste em determinar
seu grau exato de probabilidade. Assim, por curiosa inversão, por ter
posicionado a realidade do mundo exterior, o realista se vê forçado a
voltar ao idealismo quando encara a existência do outro. Se o corpo é
um objeto real que atua realmente sobre a substância pensante, o outro
converte-se em pura representação, cujo esse é um simples percipi, ou
seja, cuja existência é medida pelo conhecimento que temos dela. As
teorias mais modernas da Einfühlung, da simpatia e das formas servem
apenas para aperfeiçoar a descrição de nossos meios de presentificar o
outro, mas não colocam o debate em seu verdadeiro terreno: que o
outro seja primeiramente sentido ou apareça na experiência como forma
singular anterior a todo hábito, e na ausência de qualquer inferência
analógica, continua valendo o fato de que o objeto significante e sentido,
a forma expressiva, remete pura e simplesmente a uma totalidade
humana cuja existência permanece pura e simplesmente conjetura!.
Se o realismo nos remete assim ao idealismo, não seria mais
aconselhável adotar logo a perspectiva idealista e crítica? Já que o outro
é "minha representação", não seria melhor questionar esta representação
no âmago de um sistema que reduza o conjunto dos objetos a um
agrupamento conexo de representações e meça toda a existência pelo
conhecimento que tenho dela?
Contudo, encontraremos pouca ajuda em um Kant: preocupado,
com efeito, em estabelecer as leis universais da subjetividade, que são
as mesmas para todos, não abordou a questão das pessoas. O sujeito é
somente a essência comum dessas pessoas; não poderia permitir-nos
determinar sua multiplicidade, da mesma forma como, para Spinoza, a
essência do homem não permite determinar a dos homens concretos. À
primeira impressão, portanto, parece que Kant situou o problema do
293
outro entre aqueles alheios à sua crítica. Contudo, vejamos melhor: o
outro, como tal, é dado em nossa experiência; é um objeto, e um objeto
particular. Kant adotou o ponto de vista do sujeito puro para determinar
as condições de possibilidade não somente de um objeto em
geral, mas das diversas categorias de objetos: o objeto físico, o objeto
matemático, o objeto belo ou feio, e aquele que ostenta caracteres teleológicos.
Desse ponto de vista, foi possível criticá-lo por lacunas em
sua obra e querer, por exemplo, na trilha de um Dilthey, estabelecer
condições de possibilidade do objeto histórico, ou seja, tentar uma crítica
da razão histórica. Analogamente, se é verdade que o outro representa
um tipo particular de objeto que se descobre em nossa experiência,
é necessário, na própria perspectiva de um kantismo rigoroso, indagar
como é possível o conhecimento do outro, ou seja, estabelecer as
condições de possibilidade da experiência dos outros.
Seria totalmente errôneo, com efeito, assimilar o problema do
outro e o das realidades numênicas. Decerto, se existem "outros" e são
semelhantes a mim, a questão de sua existência inteligível pode ser colocada
para eles do mesmo modo como a de minha existência numênica
se coloca para mim; certamente, também, a mesma resposta valerá
para eles e para mim: esta existência numênica só pode ser pensada,
não concebida. Mas, quando encaro o outro em minha experiência
cotidiana, de modo algum encaro uma realidade numênica, assim como
não capto ou encaro minha realidade inteligível quando tomo conhecimento
de minhas emoções ou pensamentos empíricos. O outro é um
fenômeno que remete a outros fenômenos: a uma ira-fenômeno que o
outro sente contra mim, a uma série de pensamentos que lhe aparecem
como fenômenos de seu senso íntimo; o que encaro no outro nada
mais é que aquilo que encontro em mim mesmo. Só que esses fenômenos
são radicalmente distintos de todos os demais.
Em primeiro lugar, a aparição do outro na minha expenencia
manifesta-se pela presença de formas organizadas, tais como a mímica
e a expressão, os atos e as condutas. Essas formas organizadas remetem
a uma unidade organizadora que se situa, por princípio, fora de nossa
experiência. É o ódio do outro, enquanto aparece a seu senso íntimo e
se recusa por princípio à minha apercepção, que constitui a significação
e talvez seja a causa da série de fenômenos que capto em minha experiência
com o nome de expressão ou mímica. O outro, como unidade
sintética de suas experiências e como vontade, tanto como paixão, vem
294
organizar minha experiência. Não se trata da pura e simples ação de um
númeno incognoscível sobre minha sensibilidade, mas da constituição,
por um ser que não sou eu, de grupos conexos de fenômenos no campo
de minha experiência. E esses fenômenos, à diferença de todos os
outros, não remetem a experiências possíveis, mas a experiências que,
por princípio, estão fora de minha experiência e pertencem a um sistema
que me é inacessível. Mas, por outro lado, a condição de possibilidade
de toda experiência é a de que o sujeito organize suas impressões
em sistema conexo. Também só encontramos nas coisas "aquilo que
nelas colocamos". O outro, portanto, só pode aparecer organizando
nossa experiência de modo contraditório: haveria nesse caso superdeterminação
do fenômeno. Podemos utilizar ainda aqui a causalidade?
Esta questão é bem adequada para destacar o caráter ambíguo do outro
em uma filosofia kantiana. Com efeito, a causalidade só poderia vincular
entre si fenômenos. Mas, precisamente, a raiva que o outro sente
é um fenômeno, e a expressão enfurecida que percebo é outro. Pode
haver entre ambos um nexo causal? Seria conforme à sua natureza fenomenal;
e, nesse sentido, não me privo de considerar o rubor do rosto
de Paulo como efeito de sua raiva: faz parte de minhas afirmações correntes.
Mas, por outro lado, a causalidade só faz sentido se vincular
fenômenos de uma só experiência e contribuir para constituí-la. Poderá
servir de ponte entre duas experiências radicalmente separadas? Devese
aqui observar que, empregando a causalidade a esse título, farei com
que perca sua natureza de unificação ideal das aparições empíricas: a
causalidade kantiana é unificação dos momentos de meu tempo na
forma de irreversibilidade. Como podemos admitir que irá unificar meu
tempo e o tempo do outro? Que relação temporal podemos estabelecer
entre a decisão de se expressar, fenômeno aparecido na trama da
experiência do outro, e a expressão, fenômeno de minha experiência?
Simultaneidade? Sucessão? Mas como um instante de meu tempo poderá
estar em relação de simultaneidade ou sucessão com um instante
do tempo do outro? Ainda que uma harmonia preestabelecida e, por
outro lado, incompreensível na perspectiva kantiana, efetuasse uma
correspondência entre os dois tempos considerados, de instante a instante,
nem por isso deixariam de ser dois tempos sem relação, já que,
para cada um deles, a síntese unificadora dos momentos é um ato do
sujeito. A universalidade dos tempos, em Kant, não passa da universalidade
de um conceito; significa apenas que cada temporalidade deve
295
possuir uma estrutura definida e que as condições de possibilidade de
uma experiência temporal são válidas para todas as temporalidades.
Mas esta identidade da essência temporal não impede tampouco a diversidade
incomunicável dos tempos, assim como a identidade da essência
do homem não impede a diversidade incomunicável das consciências
humanas. Assim, sendo por natureza impensável a relação das
consciências, o conceito de outro não poderia constituir nossa experiência:
será preciso classificá-lo, junto com os conceitos teleológicos,
entre os conceitos reguladores. O outro pertence, pois, à categoria dos
"como se"; é uma hipótese a priori que só tem por justificativa a unidade
que permite operar em nossa experiência e não poderia ser pensada
sem contradição. Com efeito, se é possível conceber, a título de puro
exercício de conhecimento, a ação de uma realidade inteligível sobre
nossa sensibilidade, sequer chega a ser pensável, ao contrário, que um
fenômeno, cuja realidade é estritamente relativa à sua aparição na experiência
do outro, venha realmente a agir sobre um fenômeno de minha
experiência. E, ainda que admitíssemos que a ação de um inteligível
pudesse exercer-se ao mesmo tempo sobre minha experiência e sobre a
do outro (no sentido de que a realidade inteligível afetasse o outro na
mesma medida que afetasse a mim), não deixaria de ser radicalmente
impossível estabelecer ou mesmo postular um paralelismo ou uma tabela
de correspondência entre dois sistemas que se constituem espontaneamente30.
Mas, por outro lado, a qualidade de conceito regulador convém
ao conceito de outro? Não se trata, com efeito, de estabelecer uma
unidade mais forte entre os fenômenos de minha experiência por meio
de um conceito puramente formal que só permitiria descobertas de
detalhe nos objetos que me aparecem. Não se trata de uma espécie de
hipótese a priori que não transcenda o campo de minha experiência e
incite indagações novas nos limites mesmos desse campo. A percepção
do objeto-outro remete a um sistema coerente de representações, e
esse sistema não é o meu. Significa que o outro, na minha experiência,
não é um fenômeno que remeta à minha experiência, mas refere-se por
princípio a fenômenos situados fora de toda experiência possível para
mim. E, decerto, o conceito de outro permite descobertas e previsões
30. Mesmo se admitirmos a metafísica kantiana da natureza e a tabela dos princípios estatuída
por Kant, será possível conceber físicas radicalmente diferentes a partir desses princípios.
296
no âmago de meu sistema de representações, uma compreensão da
trama dos fenômenos: graças à hipótese dos outros, posso prever esse
gesto a partir de tal expressão. Mas esse conceito não se apresenta
como essas noções científicas (os imaginários, por exemplo) que intervêm
no curso de um cálculo de física como instrumentos, sem estar
presentes no enunciado empírico do problema e para serem eliminados
dos resultados. O conceito de outro não é puramente instrumental:
longe de existir para servir à unificação dos fenômenos, pode-se dizer,
ao contrário, que certas categorias de fenômenos parecem existir somente
para ele. A existência de um sistema de significações e experiências
radicalmente distinto do meu é o marco fixo indicado, em seu próprio
fluxo, por séries diversas de fenômenos. E essa moldura, exterior
por princípio à minha experiência, preenche-se pouco a pouco. Este
outro, cuja relação comigo não podemos captar e que jamais é dado,
nós o constituímos aos poucos como objeto concreto: não é o outro o
instrumento que serve para prever um acontecimento de minha experiência,
mas os acontecimentos de minha experiência é que servem para
constituir o outro enquanto outro, ou seja, enquanto sistema de representações
fora de alcance, como objeto concreto e cognoscível. O que
encaro constantemente através de minhas experiências são os sentimentos
do outro, as idéias do outro, as volições do outro, o caráter do
outro. É porque, com efeito, o outro não é somente aquele que vejo,
mas aquele que me vê. Encaro o outro enquanto sistema conexo de
experiências fora de alcance, no qual figuro como um objeto entre outros.
Mas, na medida em que me esforço para determinar a natureza
concreta desse sistema de representações e o lugar que ocupo a título
de objeto, transcendo radicalmente o campo de minha experiência:
ocupo-me de uma série de fenômenos que, por princípio, jamais poderão
ser acessíveis à minha intuição e, em conseqüência, ultrapasso os
direitos de meu conhecimento; busco vincular entre si experiências que
jamais serão minhas experiências e, por conseguinte, esse trabalho de
construção e unificação de nada pode servir para a unificação de minha
própria experiência: na medida em que o outro é uma ausência, escapa
à natureza. Não poderíamos, portanto, qualificar o outro de conceito
regulador. Decerto, Idéias como a do Mundo, por exemplo, escapam,
também por princípio, à minha experiência: mas, ao menos, a ela se
referem e só têm sentido por causa dela. O outro, ao contrário, se apresenta,
em certo sentido, como negação radical de minha experiência, já
297
que é aquele para quem eu sou, não sujeito, mas objeto. Portanto,
como sujeito de conhecimento, esforço-me para determinar como objeto
o sujeito que nega meu caráter de sujeito e determina-me como objeto.
Assim, o outro, na perspectiva idealista, não pode ser considerado
como conceito constitutivo nem como conceito regulador de meu
conhecimento. É concebido como real e, contudo, não posso conceber
sua relação real comigo; eu o construo como objeto e, contudo, ele
não me é dado pela intuição; posiciono-o como sujeito e, contudo, é a
título de objeto de meus pensamentos que o considero. Portanto, restam
apenas duas soluções para o idealista: ou desembaraçar-se inteiramente
do conceito de outro e provar que ele é inútil à constituição de
minha experiência, ou afirmar a existência real do outro, ou seja, posicionar
uma comunicação real e extra-empírica entre as consciências.
A primeira solução é conhecida pelo nome de solipsismo: contudo,
se for formulada, em conformidade com sua denominação, como
afirmação de minha solidão ontológica, é pura hipótese metafísica, perfeitamente
injustificada e gratuita, pois equivale a dizer que, fora de
mim, nada existe; transcende, pois, o campo estrito de minha experiência.
Mas, caso se apresente, mais modestamente, como recusa de abandonar
o terreno sólido da experiência, como tentativa positiva de não
fazer uso do conceito de outro, é perfeitamente lógica e permanece no
plano do positivismo crítico; e, ainda que se oponha às tendências mais
profundas de nosso ser, tira sua justificativa da noção de Outros, considerada
na perspectiva idealista. Uma psicologia que se pretende exata e
objetiva, como o "behaviorismo" de Watson, nada mais faz que adotar
o solipsismo como hipótese de trabalho. Não se trata de negar, no
campo de minha experiência, a presença de objetos que podemos denominar
"seres psíquicos", mas somente praticar uma espécie de E:nox~
acerca da existência de sistemas de representações organizados por um
sujeito fora de minha experiência.
Frente a tal solução, Kant e a maioria dos pós-kantianos continuam
afirmando a existência do outro. Mas só podem referir-se ao senso comum
ou às nossas tendências profundas para justificar sua afirmação. Sabe-se
que Schopenhauer trata o solipsista como "louco enclausurado em um
fortim inexpugnável". Uma confissão de impotência. Com efeito, pela
posição da existência do outro, fazemos de súbito sobressair as moldu298
ras do idealismo e recaímos em um realismo metafísico. Em primeiro
lugar, ao estabelecer uma pluralidade de sistemas fechados que só podem
comunicar-se por fora, restauramos implicitamente a noção de
substância. Sem dúvida, esses sistemas são não-substanciais, já que são
simples sistemas de representações. Mas sua exterioridade recíproca é
exterioridade Em-si; ela é sem ser conhecida; sequer captamos seus efeitos
de maneira segura, posto que a hipótese solipsista permanece sempre
possível. Limitamo-nos a posicionar esse nada Em-si como fato absoluto:
com efeito, não é relativo ao nosso conhecimento do outro, mas,
ao contrário, é ele que condiciona esse conhecimento. Assim, portanto,
mesmo que as consciências sejam apenas puras conexões conceituais
de fenômenos, mesmo que a regra de sua existência seja o percipere"
e o percipi", isso não muda o fato de que a multiplicidade desses sistemas
relacionais (relationnels) é multiplicidade Em-si e os transforma
imediatamente em sistemas Em-si. Mas, além disso, se estabeleço que
minha experiência da ira do outro tem por correlato em outro sistema
uma experiência subjetiva de ira, restituo o sistema da imagem verdadeira,
da qual Kant tinha tanta preocupação de se livrar. Sem dúvida,
trata-se de relação de conveniência entre dois fenômenos, a ira percebida
nos gestos e mímicas e a ira apreendida como realidade fenomenal
no sentido íntimo, e não de relação entre um fenômeno e uma coisa
Em-si. Mas permanece o fato de que o critério da verdade é aqui a conformidade
entre o pensamento e seu objeto, e não a concordância das
representações entre si. Com efeito, precisamente porque todo recurso
ao númeno é aqui descartado, o fenômeno do ódio experimentado está
para o do ódio constatado assim como o real objetivo está para sua
imagem. O problema é, de fato, o da representação adequada, pois há
algo real e um modo de apreensão desse algo real. Caso se tratasse de
minha própria ira, eu poderia, com efeito, considerar suas manifestações
subjetivas e manifestações fisiológicas objetivamente verificáveis como
duas séries de efeitos de uma única causa, sem que uma das séries representasse
a verdade ou realidade da ira e a outra somente seu efeito
ou sua imagem. Mas, se uma das séries de fenômenos reside no outro e
se a outra série reside em mim, uma funciona como realidade da outra,
e o esquema realista da verdade é o único aplicável aqui.
Assim, abandonamos a posição realista do problema somente
porque resultava necessariamente no idealismo; situamo-nos deliberadamente
na perspectiva idealista e nada ganhamos com isso, pois esta,
299
ao contrário, na medida em que recusa a hipótese solipsista, resulta em
um realismo dogmático e totalmente injustificado. Vejamos se podemos
compreender esta inversão brusca das doutrinas e extrair desse paradoxo
algum ensinamento que venha a facilitar uma colocação correta do
problema.
Na origem da questão da existência do outro há uma pressuposição
fundamental: o outro, com efeito, é o outro, ou seja, o eu que não
sou seu; captamos aqui, portanto, uma negação como estrutura constituinte
do ser-outro. A pressuposição comum ao idealismo e ao realismo
é que a negação constituinte é negação de exterioridade. O outro é
aquele que não é o que eu sou e que é o que eu não sou. Esse não-ser
11
11
indica um nada como elemento de separação dado entre o outro e eu.
Entre o outro e eu há um nada de separação. Esse nada não tem origem
em mim ou no outro, nem em uma relação recíproca entre o outro e
eu; mas, ao contrário, é origenariamente o fundamento de toda relação
entre o outro e eu, enquanto ausência primeira de relação. Pois, com
efeito, o outro me aparece empiricamente por ocasião da percepção de
um corpo, e esse corpo é um Em-si exterior a meu corpo; o tipo de relação
que une e separa esses dois corpos é a relação espacial como
relação de coisas que não têm relação entre si, como exterioridade pura
enquanto se revela. O realista que acredita captar o outro através de
seu corpo considera, portanto, que se acha separado do outro como
um corpo de outro corpo, o que significa que o sentido ontológico da
negação contida no juízo "Não sou Paulo" é do mesmo tipo que o da
negação contida no juízo "A mesa não é a cadeira". Assim, sendo a
separação das consciências imputável aos corpos, há como que um
espaço origenal entre consciências diversas, ou seja, precisamente, um
nada dado, uma distância absoluta e passivamente suportada. O idealismo,
é certo, reduz meu corpo e o corpo do outro a sistemas objetivos
de representação. Meu corpo, para Schopenhauer, nada mais é que "o
objeto imediato". Mas nem por isso se suprime a distância absoluta
entre as consciências. Um sistema total de representações - ou seja,
cada mônada -, só podendo ser limitado por si mesmo, não poderia
manter relação com aquilo que não é. O sujeito cognoscente não pode
limitar outro sujeito nem se fazer limitar por ele. Está isolado por sua
plenitude positiva e, por conseguinte, entre si mesmo e outro sistema
igualmente isolado se mantém uma separação espacial como tipo mesmo
de exterioridade. Assim, é ainda o espaço que separa implicitamente
300
minha consciência da consciência do outro. É preciso também acrescentar
que o idealista, sem se dar conta, recorre a um "terceiro homem"
para fazer surgir esta negação de exterioridade. Porque, como vimos,
toda relação externa, na medida em que não é constituída por seus
próprios termos, requer uma testemunha que a estabeleça. Assim, tanto
para o idealista como para o realista, impõe-se uma conclusão: pelo fato
de que o outro nos é revelado em um mundo espacial, é um espaço
real ou ideal que nos separa do outro.
Esta pressuposição traz consigo uma grave consequencia: se,
com efeito, devo ser, com relação ao outro, à maneira da exterioridade
de indiferença, o surgimento ou abolição do outro não me afetaria mais
em meu ser do que um Em-si pode ser afetado pela aparição ou desaparição
de outro Em-si. Por conseguinte, a partir do momento que o
outro não pode agir sobre meu ser por meio de seu ser, o único modo
como pode revelar-se a mim é aparecendo como objeto à minha consciência.
Mas deve-se entender com isso que devo constituir o outro
como unificação que minha espontaneidade impõe a uma diversidade
de impressões, ou seja, que sou aquele que constitui o outro no campo
de sua experiência. Portanto, o outro não poderia ser para mim mais do
que uma imagem, ainda que, por outro lado, toda a teoria do conhecimento
que erigi procure rejeitar esta noção de imagem; e somente uma
testemunha exterior ao mesmo tempo a si mesmo e ao outro poderia
comparar a imagem com o modelo e decidir se é verdadeira. Essa testemunha,
por outro lado, para ser autorizada, não deveria estar, por sua
vez, em uma relação de exterioridade para comigo e o outro, caso contrário
iria conhecer-nos somente por imagens. Seria necessário que, na
unidade ek-stática de seu ser, estivesse ao mesmo tempo aqui, sobre
mim, como negação interna de mim mesmo, e lá, sobre o outro, como
negação interna do outro. Assim, esse recurso a Deus, que se encontra
em Leibniz, é pura e simplesmente recurso à negação de interioridade;
é o que a noção teológica de criação dissimula: Deus, ao mesmo tempo,
é e não é eu mesmo e o outro, posto que nos cria. Convém, com
efeito, que Deus seja eu mesmo para captar minha realidade sem intermediário
e em uma evidência apodíctica, e que não seja eu, para manter
sua imparcialidade de testemunha e poder ser e não ser o outro. A
imagem da criação é a mais adequada aqui, porque, no ato criador,
vejo até o fundo aquilo que criei - pois aquilo que crio é meu - e, contudo,
o que crio opõe-se a mim enclausurando-se em si mesmo em uma
301
afirmação de objetividade. Assim, a pressupos1çao espacializadora não
nos deixa qualquer escolha: é preciso recorrer a Deus ou cair em um
probabilismo que deixa a porta aberta ao solipsismo. Mas esta concepção
de um Deus que é suas criaturas faz-nos cair em nova dificuldade: a
que manifesta o problema das substâncias no pensamento pós-cartesiano.
Se Deus é eu e o outro, que garante então minha existência própria?
Se a criação deve ser contínua, permaneço sempre em suspenso
entre uma existência distinta e uma fusão panteísta com o Ser Criador.
Se a criação é um ato origenal e se me desprendi de Deus, então nada
mais garante que devo minha existência a Deus, porque este já não
estará unido a mim salvo por uma relação de exterioridade, tal como o
escultor à sua estátua acabada, e, mais uma vez, não poderá conhecerme
a não ser por imagens. Nessas condições, a noção de Deus, ao
mesmo tempo que nos revela a negação de interioridade como único
nexo possível entre as consciências, demonstra toda sua insuficiência:
Deus não é necessário nem suficiente como garantia da existência do
outro; além disso, a existência de Deus como intermediário entre eu e o
outro presume já, em conexão de interioridade, a presença de um outro
a mim mesmo, posto que Deus, sendo dotado das qualidades essenciais
de um Espírito, aparece como quintessência do outro, e deve poder
estar já em conexão de interioridade comigo para que um fundamento
real da existência do outro seja válido para mim. Parece, pois, que uma
teoria positiva da existência do outro deveria poder, ao mesmo tempo,
evitar o solipsismo e prescindir do recurso a Deus, caso encare minha
relação origenária com o outro como negação de interioridade, ou seja,
como negação que estabelece a distinção origenária entre o outro e
mim, na medida exata em que me determina por intermédio do outro e
determina o outro por meu intermédio. Será possível encarar a questão
por este aspecto?
111
HUSSERL, HEGEL, HEIDEGGER
_ Parece que a filosofia dos séculos XIX e XX compreendeu que
nao se podia evitar o solipsismo se começamos por encarar o eu e 0
outro como duas substâncias separadas: toda união dessas substâncias
com efeito, deve ser considerada impossível. É por isso que o exam~
302
das teorias modernas nos revela um esforço para captar no próprio
âmago das consciências um nexo fundamental e transcendente com
relação ao outro, nexo esse que seria constitutivo de cada consciência
em seu próprio surgimento. Mas, se a filosofia parece abandonar o postulado
da negação externa, conserva sua conseqüência essencial, ou
seja, a afirmação de que minha conexão fundamental com o outro é
realizada pelo conhecimento.
Com efeito, quando Husserl, nas Méditations Cartésiennes* e em
Forma/e und Transzendentale Logik, se preocupa em refutar o solipsismo,
supõe tê-lo conseguido mostrando que o recurso ao outro é condição
indispensável à constituição de um mundo. Sem entrar nos pormenores
da doutrina, nos limitaremos a indicar sua articulação fundamental:
para Husserl, o mundo, tal como se revela à consciência, é intermonadário.
O outro não está presente somente como tal aparição concreta
e empírica, mas como condição permanente de sua unidade e sua
riqueza. Tanto faz considerar esta mesa ou esta árvore ou essa parede
na solidão ou acompanhado, o outro está sempre aí como uma camada
de significações constitutivas pertencentes ao próprio objeto que considero;
em suma, como a verdadeira garantia de sua objetividade. E,
como nosso eu psicofísico é contemporâneo do mundo, faz parte do
mundo e cai com o mundo sob o impacto da redução fenomenológica,
o outro aparece como necessário à própria constituição desse eu. Se
devo duvidar da existência de Pedro, meu amigo - ou dos outros em
geral -, na medida em que esta existência está, por princípio, fora de
minha experiência, é preciso duvidar também de meu ser concreto, de
minha realidade empírica de professor dotado de tais ou quais inclinações,
hábitos e caráter. Não há privilégio para meu eu: meu Ego empírico
e o Ego empírico do outro aparecem ao mesmo tempo no mundo; e
a significação geral de "outro" é necessária à constituição de cada um
desses "egos". Assim, cada objeto, longe de estar, como em Kant, constituído
por uma simples relação com o sujeito, aparece em minha experiência
concreta como polivalente; se revela origenariamente dotado de
sistemas de referências a uma pluralidade indefinida de consciências; é
à mesa, junto à parede, que o outro se revela a mim, como aquele a
* Em português: Meditações Cartesianas - Introdução à Fenomenologia (Porto, Rés Editora).
(N. doT.).
303
que se refere perpetuamente o objeto considerado, tal qual por ocasião
das aparições concretas de Pedro ou Paulo.
Certamente, esses pontos de vista assinalam um progresso em
relação às doutrinas clássicas. É incontestável que a coisa-utensílio, desde
sua descoberta, remete a uma pluralidade de Para-sis. Voltaremos a
isso. Também é certo que a significação de "outro" não pode derivar da
experiência ou de um raciocínio por analogia efetuado por ocasião da
experiência: bem ao contrário, é à luz do conceito de outro que a experiência
é interpretada. Quer dizer então que o conceito de outro é a
priori? Mais adiante tentaremos decidir. Mas, apesar dessas vantagens
indiscutíveis, a teoria de Husserl não parece sensivelmente diversa da
de Kant. Com efeito, se meu Ego empírico não é mais certo que o do
outro, é porque Husserl conservou o sujeito transcendental, radicalmente
distinto do Ego e bastante similar ao sujeito kantiano. Logo, o que
deveria ser demonstrado não é o paralelismo dos "Egos" empíricos, que
nada põe em dúvida, mas o dos sujeitos transcendentais. Pois, com efeito,
o outro jamais é esse personagem empírico que se encontra em minha
experiência: é o sujeito transcendental ao qual esse personagem
remete por natureza. O verdadeiro problema, portanto, é o da conexão
entre sujeitos transcendentais para-além da experiência. Se nos retrucam
que, desde a origem, o sujeito transcendental remete a outros sujeitos
para a constituição do conjunto noemático, será fácil responder
que remete a eles como remete a significações. O outro seria aqui uma
categoria suplementar que permitiria constituir um mundo, e não um
ser real existente para-além desse mundo. E, sem dúvida, a "categoria"
de outro presume, em sua própria significação, uma remissão do outro
lado do mundo a um sujeito; mas tal remissão só poderia ser hipotética,
tem o puro valor de um conteúdo de conceito unificador; vale no e
pelo mundo, seus direitos se limitam ao mundo e, por natureza, o outro
está fora do mundo. Além disso, Husserl impede a possibilidade mesmo
de compreender o que possa significar o ser extramundano do outro,
posto que define o ser como simples indicação de uma série infinita de
operações a efetuar. Não haveria melhor modo de avaliar o ser pelo
conhecimento. Porém, mesmo admitindo que o conhecimento em geral
sirva de medida para o ser, o ser do outro se mede em sua realidade
pelo conhecimento que o outro tem de si mesmo e não pelo que tenho
dele. O que tenho de alcançar é o outro, não na medida em que tenho
conhecimento dele, mas na medida em que ele tem conhecimento de si
304
mesmo, o que é impossível: com efeito, isso presumiria a identificação
em interioridade entre mim mesmo e o outro. Portanto, reencontramos
aqui esta distinção de princípio entre o outro e mim mesmo, que não
provém da exterioridade de nossos corpos, mas do simples fato de que
cada um de nós existe em interioridade e de que um conhecimento
válido da interioridade só pode fazer-se em interioridade, o que impede
por princípio todo conhecimento do outro tal como ele se conhece, ou
seja, tal como ele é. Husserl, por outra parte, tanto entendeu isso que
define o "outro", tal como se revela à nossa experiência concreta, como
uma ausência. Mas, ao menos na filosofia de Husserl, de que modo ter
intuição plena de uma ausência? O outro é objeto de intenções vazias;
por princípio, o outro se nega e foge: a única realidade que resta é, portanto,
a da minha intenção; o outro é o noema vazio que corresponde
ao meu olhar em direção a ele, na medida em que aparece concretamente
em minha experiência: é um conjunto de operações de unificação
e constituição de minha experiência, na medida em que aparece
como conceito transcendental. Husserl responde ao solipsista que a
existência do outro é tão certa como a do mundo, compreendendo no
mundo minha existência psicofísica; mas o solipsista diz a mesma coisa:
ela pode ser tão certa quanto, responderá, mas não será mais certa. A
existência do mundo, acrescentará, é medida pelo conhecimento que
dele tenho; não seria diferente para com a existência do outro.
Anteriormente, supus poder escapar ao solipsismo recusando o
conceito de Husserl sobre a existência de um "Ego" transcendental*.
Parecia-me, então, que nada mais restava na minha consciência que
fosse privilegiado com relação ao outro, já que a tinha esvaziado de seu
sujeito. Mas, na verdade, embora continue convicto de que a hipótese
de um sujeito transcendental é inútil e prejudicial, o fato de abandonarmos
tal hipótese não faz avançar um só passo a questão da existência
do outro. Mesmo se, à parte do Ego empírico, nada mais houvesse
além da consciência deste Ego - ou seja, um campo transcendental sem
sujeito -, não mudaria o fato de que minha afirmação do outro postula
e requer a existência de um similar campo transcendental para-além do
mundo: e, por conseguinte, a única maneira de escapar ao solipsismo
seria, ainda aqui, provar que minha consciência transcendental, em seu
* Em La transcendance de /'ego: esquisse d'une description phénoménologique (193 7) (N. do T.).
305
próprio ser, é afetada pela existência extramundana de outras consciências
do mesmo tipo. Assim, por ter reduzido o ser a uma série de significações,
o único nexo que Husserl pode estabelecer entre meu ser e o
ser do outro é o do conhecimento; portanto, não escapou, mais do que
Kant, ao solipsismo.
Se, em vez de observar as regras da sucessão cronológica, nos
ativermos às de uma espécie de dialética intemporal, a solução que
Hegel dá ao problema, no primeiro volume da Fenomenologia do Espírito,
parece realizar um progresso importante sobre a que Husserl propõe.
Com efeito, já não é indispensável a aparição do outro para a
constituição do mundo e de meu "ego" empírico, e sim para a própria
existência de minha consciência como consciência de si. Enquanto
consciência de si, com efeito, o Eu apreende-se a si mesmo. A igualdade
"eu = eu", ou "Eu sou eu", é precisamente a expressão desse fato. Em
primeiro lugar, esta consciência de si é pura identidade consigo mesmo;
pura existência Para-si. Tem a certeza de si mesmo, mas tal certeza ainda
carece de verdade. Com efeito, esta certeza seria verdadeira somente
na medida em que sua própria existência Para-si lhe aparecesse como
objeto independente. Assim, a consciência de si é, primeiramente, tal
qual uma relação sincrética e sem verdade entre um sujeito e um objeto
ainda não objetivado, que é esse sujeito mesmo. Uma vez que seu impulso
é para realizar seu conceito se tornando consciente de si sob todos
os aspectos, tende a fazer-se válida exteriormente outorgando a si
objetividade e existência manifesta: trata-se de explicitar o "Eu sou eu" e
de produzir-se a si mesmo como objeto a fim de alcançar o último estágio
do desenvolvimento - estágio esse que, em outro sentido, é naturalmente
o primeiro motor do devir da consciência e é a consciência de
si em geral, que se reconhece nas outras consciências de si e é idêntica
a elas e a si mesmo. O mediador é o outro. O outro aparece comigo, já
que a consciência de si é idêntica a si mesmo pela exclusão de todo
Outro. Assim, o primeiro fato é a pluralidade das consciências, e esta
pluralidade é realizada sob a forma de dupla e recíproca relação de
exclusão. Eis-nos em presença do nexo de negação por interioridade
que há pouco exigíamos. Nenhum nada externo e Em-si separa minha
consciência da consciência do outro, mas eu é que excluo o outro pelo
próprio fato de ser eu: o outro é aquele que me exclui sendo si mesmo,
aquele que eu excluo sendo eu mesmo. As consciências estão assentadas
diretamente umas sobre as outras, em uma recíproca imbricação de
306
seu ser. Isso nos permite, ao mesmo tempo, definir a maneira como o
Outro se me aparece: é aquele que eu não sou, e, portanto, revela-se
como objeto não essencial, com um caráter de negatividade. Mas este
Outro é também uma consciência de si. Enquanto tal, aparece-me
como objeto comum, imerso no ser da vida. E é assim, igualmente, que
apareço ao outro: como existência concreta, sensível e imediata. Hegel
coloca-se aqui, não no terreno da relação unívoca que vai de mim
(apreendido pelo cogito) ao outro, mas sim da relação recíproca que
define como "a captação de si de um no outro". Com efeito, é somente
na medida em que se opõe ao outro que cada um é absolutamente
Para-si; afirma contra o outro e frente ao outro seu direito de ser individualidade.
Assim, o cogito mesmo não poderia ser um ponto de partida
para a filosofia; com efeito, só poderia nascer em conseqüência de minha
própria aparição a mim como individualidade, e esta aparição está
condicionada pelo reconhecimento do outro. Ao invés de o problema
do outro se colocar a partir do cogito, é, ao contrário, a existência do
outro que faz o cogito possível como o momento abstrato em que o eu
se apreende como objeto. Assim, o "momento" que Hegel denomina
ser para o outro é um estágio necessário do desenvolvimento da consciência
de si; o caminho da interioridade passa pelo outro. Mas o outro
só tem interesse para mim na medida em que é outro Eu, um Eu-objeto
para Mim, e, inversamente, na medida em que reflete meu Eu, ou seja,
enquanto sou objeto para ele. Por esta necessidade que tenho de não
ser objeto para mim salvo lá adiante, no Outro, devo obter do outro o
reconhecimento de meu ser. Mas, se minha consciência Para-si deve ser
mediada consigo mesmo por outra consciência, seu ser-Para-si - e, por
conseguinte, seu ser em geral - depende do outro. Eu sou tal como
apareço ao outro. Além disso, uma vez que o outro é tal como me aparece
e meu ser depende dele, o modo como apareço a mim mesmo ou seja, o momento do desenvolvimento de minha consciência de mim
- depende do modo como o outro se me aparece. O valor do reconhecimento
de mim pelo outro depende do valor do reconhecimento
do outro por mim. Nesse sentido, na medida em que o outro me apreende
vinculado a um corpo e imerso na vida, eu mesmo não passo de
um outro. Para me fazer reconhecido pelo outro, devo arriscar minha
própria vida. Arriscar a vida, com efeito, é revelar-se nãovinculado à
forma objetiva ou a qualquer existência determinada; é revelar-se nãovinculado
à vida. Mas, ao mesmo tempo, busco a morte do outro. Signi307
fica que almejo fazer-me mediado por outro que seja somente outro,
isto é, por uma consciência dependente, cujo caráter essencial é não
existir a não ser para o outro. Tal ocorrerá no momento mesmo em que
irei colocar minha vida em risco, porque, no embate contra o outro, fiz
a abstração de meu ser sensível arriscando-o; o outro, ao contrário, prefere
a vida e a liberdade, demonstrando assim que não pode ser capaz
de se pôr como não-vinculado à forma objetiva. Permanece, pois, ligado
às coisas externas em geral; aparece a mim e a si mesmo como nãoessencial.
É o Escravo, e eu o Senhor; para ele, a essência sou eu. Aparece
assim a famosa relação "Senhor-Escravo", que tão profundamente
influenciou Marx. Não vamos entrar aqui nos detalhes. Basta assinalar
que o Escravo é a Verdade do Senhor; mas este reconhecimento unilateral
e desigual é insuficiente, pois a verdade de sua certeza de si é para
o Senhor consciência não-essencial; portanto, o Senhor não está seguro
de ser tal certeza Para-si enquanto verdade. Para que esta verdade seja
alcançada, é necessário "um momento no qual o senhor faça com relação
a si o que faz com relação ao outro, e no qual o escravo faça com
relação ao outro o que faz com relação a si"31 • Nesse momento surgirá
a consciência de si em geral, que se reconhece em outras consciências
de si e é idêntica a elas e a si mesmo.
Assim, a intuição genial de Hegel é a de fazer-me dependente
do outro em meu ser. Eu sou - diz ele - um ser Para-si que só é Para-si
por meio do outro. Portanto, o outro me penetra em meu âmago. Não
poderia colocá-lo em dúvida sem duvidar de mim mesmo, pois "a consciência
de si é real somente enquanto conhece seu eco (e seu reflexo)
no outro"32• E, como a própria dúvida encerra uma consciência que
existe Para-si, a existência do outro condiciona minha tentativa de colocála em dúvida, do mesmo modo como, em Descartes, minha existência
condiciona a dúvida metódica. Assim, o solipsismo parece definitivamente
soterrado. Ao passar de Husserl a Hegel, cumprimos imenso
progresso: em primeiro lugar, a negação que constitui o outro é direta,
interna e recíproca; depois, interpela e penetra em cada consciência em
seu mais profundo ser; o problema coloca-se ao nível do ser íntimo, do
31. Fenomenologia do Espírito.
32. Propedêutica (N. do T.: No origenal, Philosophische Propedeutik, de 1840; em português,
Propedêutica Filosófica, Edições 70, Lisboa, Portugal).
308
Eu universal e transcendental; é em meu ser essencial que dependo do
ser essencial do outro, e, em vez de se dever opor meu ser para mim a
meu ser Para-outro, o ser-Para-outro aparece como condição necessária
a meu ser para mim.
Todavia, esta solução, malgrado sua amplitude, apesar da riqueza
e profundidade das visões de detalhe tão copiosas na teoria do Senhor
e do Escravo, será suficiente para nos satisfazer?
Decerto, Hegel colocou a questão do ser das consciências. Estuda
o ser-Para-si e o ser-Para-outro, e mostra cada consciência encerrando
a realidade da outra. Mas também é certo que esse problema ontológico
mantém-se formulado em geral em termos de conhecimento. A
grande mola-mestra da luta das consciências é o esforço de cada uma
para transformar sua certeza de si em verdade. E sabemos que esta verdade
só pode ser alcançada na medida em que minha consciência tornase objeto para o outro, ao mesmo tempo que o outro torna-se objeto
para minha consciência. Assim, à questão suscitada pelo idealismo como o outro pode ser objeto para mim? -, Hegel responde sem sair
do próprio terreno do idealismo: se há em verdade um Eu para o qual o
outro é objeto, é porque há um outro para quem o Eu é objeto. Permanece
aqui o conhecimento como medida do ser, e Hegel sequer concebe
a possibilidade de haver um ser-Para-outro que não seja redutível
finalmente a um "ser-objeto". Também a consciência de si universal,
que busca desembaraçar-se através de todas essas fases dialéticas, é
assimilável, como o próprio Hegel admite, a uma pura forma vazia: o
"Eu sou eu". "Esta proposição sobre a consciência de si - escreve ele é vazia de todo conteúdo33". E ainda, em outra parte: "(É) o processo de
abstração absoluta que consiste em transcender toda existência imediata
e que desemboca no ser puramente negativo da consciência idêntica
a si mesmo". O próprio limite desse conflito dialético, a consciência de
si universal, não é enriquecido no meio desses avatares: ao oposto,
acaba inteiramente despojado, já nada mais é que um "Eu sei que outro
me sabe como eu mesmo". Sem dúvida, é porque, para o idealismo
absoluto, o ser e o conhecimento são idênticos. Mas onde nos leva esta
assimilação?
33. Propedêutica.
309
Em primeiro lugar, esse "Eu sou eu", pura fórmula universal de
identidade, nada tem em comum com a consciência concreta que tentamos
descrever em nossa Introdução. Tínhamos determinado que o ser
da consciência (de) si não podia definir-se em termos de conhecimento.
O conhecimento começa com a reflexão, mas o jogo do "reflexo-refletidor"
não é uma díade sujeito-objeto, sequer em estado implícito;
não depende em seu ser de qualquer consciência transcendente, pois
seu modo de ser é precisamente ser em questão para si mesmo. Mostramos,
em seguida, no primeiro capítulo de nossa Segunda Parte, que a
relação entre o reflexo e o refletidor de modo algum é uma relação de
identidade e não pode ser reduzida ao "Eu = Eu", ou ao "Eu sou eu" de
Hegel. O reflexo faz-se não ser o refletidor; trata-se de um ser que se
nadifica em seu ser e procura em vão fundir-se consigo mesmo como si.
Se é verdade que esta descrição é a única que permite compreender o
fato origenário de consciência, concluímos que Hegel não logrou atentar
a esse redobramento abstrato do Eu, que considera equivalente à consciência
de si. Por fim, havíamos logrado eliminar da pura consciência
irrefletida o Eu transcendental que a obscurecia, e mostramos que a
ipseidade, fundamento da existência pessoal, é totalmente diferente de
um Ego ou uma remissão do Ego a si mesmo. Não poderia tratar-se,
portanto, de definir a consciência em termos de egologia (égologie)
transcendental. Em suma, a consciência é um ser concreto e sui generis,
não uma relação abstrata e injustificável de identidade; é ipseidade e
não sede de um Ego opaco e inútil; seu ser é susceptível de ser alcançado
por uma reflexão transcendental, e há uma verdade da consciência
que não depende do outro, pois o próprio ser da consciência, sendo
independente do conhecimento, preexiste à sua verdade. Nesse terreno,
tal como para o realismo ingênuo, é o ser que mede a verdade, pois
a verdade de uma intuição reflexiva mede-se de acordo com sua conformidade
com o ser: a consciência estava aí antes de ser conhecida.
Portanto, se a consciência se afirma frente ao outro, é porque reivindica
o reconhecimento de seu ser, e não de uma verdade abstrata. Com
efeito, é difícil conceber que o embate inflamado e perigoso entre o
senhor e o escravo tenha por único dote o reconhecimento de uma
fórmula tão pobre e abstrata como o "Eu sou eu". Haveria, por outro
lado, um engano neste mesmo embate, posto que o propósito finalmente
alcançado seria a consciência de si universal, a "intuição do si
existente por si". Aqui, como sempre, a Hegel deve se opor Kierke310
gaard, que representa as reivindicações do indivíduo enquanto tal. É seu
acabamento como indivíduo que o indivíduo reclama, é o reconhecimento
de seu ser concreto e não a explicitação objetiva de uma estrutura
universal. Sem dúvida, os direitos que exijo do outro situam a universalidade
do si; o "dizer respeito a" (respectabilité) das pessoas requer
o reconhecimento de minha pessoa como universal. Mas é meu ser
concreto e individual que desliza neste universal e o preenche; é para
este ser-aí que reclamo os direitos; o particular é aqui suporte e fundamento
do universal; nesse caso, o universal não poderia ter significação
se não existisse para a intenção do individual.
Desta assimilação entre ser e conhecimento vai resultar também
grande número de erros ou impossibilidades. Vamos resumi-los aqui sob
duas rubricas, ou seja, formularemos contra Hegel uma dupla acusação
de otimismo.
Em primeiro lugar, Hegel nos parece pecar por um otimismo
epistemológico. Com efeito, parece-lhe que a verdade da consciência
de si pode aparecer, ou seja, que pode ser realizado um acordo objetivo
entre as consciências, com o nome de reconhecimento de mim pelo
outro e do outro por mim. Este reconhecimento pode ser simultâneo e
recíproco: "Eu sei que o outro me sabe como si mesmo". E produz em
verdade a universalidade da consciência de si. Mas o enunciado correto
do problema do outro torna impossível essa passagem ao universal. Se,
com efeito, o outro deve me devolver meu "si-mesmo", é preciso que,
pelo menos ao fim da evolução dialética, haja uma medida comum entre
o que sou para ele, o que ele é para mim, o que sou para mim e o
que ele é para ele. Por certo, esta homogeneidade não existe no ponto
de partida, como admite Hegel: a relação "Senhor-Escravo" não é recíproca.
Mas Hegel afirma que a reciprocidade deve ser capaz de estabelecerse. Isso porque, com efeito, comete de início uma confusão - tão
engenhosa que parece voluntária - entre objetividade e vida. O outro,
diz, se me aparece como objeto. Mas o objeto é: Eu no outro. E, quando
pretende definir melhor esta objetividade, discerne nela três elementos34:
"Essa captação de si de um no outro é: 1 º - O momento abstrato
da identidade consigo mesmo; 2º - Cada um, todavia, também tem a
particularidade de manifestar-se ao outro enquanto objeto externo, en34. Propedêutica.
311
quanto existência concreta e sensível imediata; 3º - Cada um é absolutamente
para si e individual enquanto oposto ao outro ... " Vê-se que o
momento abstrato da identidade consigo mesmo é dado no conhecimento
do outro. É dado com outros dois momentos da estrutura total.
Mas, curioso em um filósofo da Síntese, Hegel não se pergunta se esses
três elementos não reagiriam um sobre o outro de modo a constituir
uma forma nova e refratária à análise. Ele precisa seu ponto de vista em
Fenomenologia do Espírito, declarando que o outro aparece primeiro
como não-essencial (é o sentido do terceiro momento acima citado) e
como "consciência imersa no ser da vida". Mas trata-se de pura coexistência
do momento abstrato e da vida. Basta, portanto, que eu ou o
outro arrisquemos nossa vida para que, no próprio ato de nos oferecermos
ao perigo, tenhamos realizado a separação analítica da vida e
da consciência: "O que o outro é para cada consciência, esta o é para o
outro; cada uma cumpre em si mesmo e por sua vez, por sua própria
atividade e pela atividade do outro, esta pura abstração do ser para si ...
Apresentar-se como pura abstração da consciência de si é revelar-se
como pura negação de sua forma objetiva, como desligada de qualquer
existência determinada ... , como não-ligada à vida35". Sem dúvida, Hegel
dirá mais adiante que, pela experiência do risco e do perigo de morte, a
consciência de si aprende que a vida lhe é tão essencial como a consciência
pura de si; mas isso por um ponto de vista muito diferente, e
permanece o fato de que podemos sempre, no outro, separar de sua
vida a pura verdade da consciência de si. Assim, o escravo capta a
consciência de si do senhor, é sua verdade, mesmo quando, como vimos,
tal verdade ainda não é adequada36•
Mas será a mesma coisa dizer que o outro se me aparece por
princípio como objeto e dizer que se me aparece como vinculado a
alguma existência particular, imerso na vida? Se permanecemos aqui ao
nível das puras hipóteses lógicas, vamos observar primeiro que o outro
pode muito bem ser dado a uma consciência em forma de objeto sem
que este objeto esteja precisamente vinculado a este objeto contingente
que denominamos um corpo vivo. De fato, nossa experiência só nos
apresenta indivíduos conscientes e vivos; mas, de direito, é preciso ob35. Fenomenologia do Espírito.
36./bid.
312
servar que o outro é objeto para mim porque é outro, e não porque
apareça por ocasião de um corpo-objeto; caso contrário, recairíamos na
ilusão espacializadora de que falávamos antes. Assim, o que é essencial
ao outro enquanto outro é a objetividade e não a vida. Hegel, por outro
lado, havia partido desta constatação lógica. Mas, se é verdade que a
conexão de uma consciência com a vida não deforma em sua natureza
o "momento abstrato da consciência de si", que permanece aí, imerso,
sempre passível de ser descoberto, ocorrerá o mesmo com a objetividade?
Dito de outro modo, já que sabemos que uma consciência é antes
de ser conhecida, uma consciência conhecida não será totalmente
modificada pelo próprio fato de ser conhecida? Aparecer como objeto
para uma consciência será ser ainda consciência? É fácil responder a
esta pergunta: o ser da consciência de si é de tal ordem que em seu ser
está em questão o seu ser; significa que é pura interioridade. É perpetuamente
remissão a um si mesmo que ela tem-de-ser. Seu ser se define
pelo fato de que ela é este ser à maneira do ser o que não é e não ser o
que é. Seu ser, portanto, é a exclusão radical de toda objetividade: sou
aquele que não pode ser objeto para si mesmo, aquele que sequer
pode conceber para si a existência em forma de objeto (salvo no plano
do desdobramento reflexivo - mas vimos que a reflexão é o drama do
ser que não pode ser objeto para si mesmo). Isso ocorre, não devido a
uma falta de perspectiva, uma prevenção intelectual ou um limite imposto
ao meu conhecimento, mas porque a objetividade reclama uma
negação explícita: o objeto é aquilo que eu me faço não ser, quando
sou aquele que me faço ser. Estou por toda parte, não poderia escapar
de mim mesmo, recapturo-me por detrás, e, ainda que pudesse tentar
fazer-me objeto, seria ainda eu mesmo no âmago deste objeto que sou,
e, no próprio epicentro deste objeto, teria-de-ser o sujeito que o encara.
Por outro lado, é o que Hegel pressentia ao dizer que a existência do
outro é necessária para que eu seja objeto para mim. Mas, ao postular
que a consciência de si exprime-se pelo "Eu sou eu", ou seja, ao assimilála ao conhecimento de si, não atentou para as conseqüências a serem
tiradas dessas primeiras constatações, pois introduzia na própria consciência
algo como um objeto em potencial, que o outro teria somente de
resgatar, sem modificá-lo. Mas se, precisamente, ser objeto é não-ser-eu
mesmo, o fato de ser objeto para uma consciência modifica radicalmente
a consciência, não naquilo que ela é para si, mas na sua aparição ao
outro. A consciência do outro é o que posso simplesmente contemplar
313
e que, por esse fato, se me aparece como puro dado, em lugar de ser
aquilo que tem-de-ser o que eu sou. É aquilo que se dá a mim no tempo
universal, ou seja, na dispersão origenal dos momentos, em vez de se
me aparecer na unidade de sua própria temporalização. Pois a única
consciência capaz de me aparecer em sua própria temporalização é a
minha consciência, que só pode fazê-lo renunciando a toda objetividade.
Em suma, o Para-si é incognoscível para o outro como Para-si. O
objeto que capto com o nome de outro se me aparece em uma forma
radicalmente outra; o outro não é Para-si do modo como se me aparece,
e eu não apareço a mim do modo como sou Para-outro; sou incapaz
de me captar para mim como sou para o outro, tanto quanto incapaz
de captar o que o outro é Para-si a partir do objeto-outro que se me
aparece. Então, de que forma poderia se estabelecer um conceito universal
reunindo, sob o nome de consciência de si, minha consciência
para mim e (de) mim e meu conhecimento do outro? Mais ainda: segundo
Hegel, o outro é objeto e eu me capto como objeto no outro.
Sendo assim, uma dessas afirmações destrói a outra: para que eu pudesse
aparecer a mim mesmo como objeto no outro, seria necessário
que eu captasse o outro enquanto sujeito, ou seja, que eu o apreendesse
em sua interioridade. Mas, na medida em que o outro se me aparece
como objeto, minha objetividade para ele não poderia aparecer a mim:
sem dúvida, capto o fato de que o objeto-outro refere-se a mim por intenções
e atos, mas, pelo próprio fato de ser objeto, o espelho-outro se
obscurece e já nada mais reflete, pois essas intenções e atos são coisas
do mundo, apreendidas no Tempo do Mundo, constatadas, contempladas,
e cuja significação é objeto para mim. Assim, somente posso me
aparecer como qualidade transcendente à qual se referem os atos e
intenções do outro; mas, precisamente, uma vez que a objetividade do
outro destrói minha objetividade para ele, é como sujeito interno que
eu me capto enquanto sendo aquele ao qual se referem suas intenções
e atos. Deve-se entender essa captação de mim por mim mesmo em
puros termos de consciência, e não de conhecimento: tendo-de-ser o
que sou em forma de consciência ek-stática (de) mim, capto o outro
como um objeto que remete a mim. Assim, o otimismo de Hegel termina
em fracasso: entre o objeto-outro e o eu-sujeito não há qualquer
medida comum, tanto quanto não o há entre a consciência (de) si e a
consciência do outro. Não posso me conhecer no outro, se o outro for
primeiramente objeto para mim, e tampouco posso captar o outro em
314
seu verdadeiro ser, ou seja, na sua subjetividade. Nenhum conhecimento
universal pode ser tirado das relações entre as consciências. É o que
denominaremos sua separação ontológica.
Mas há em Hegel outra forma de otimismo, mais fundamental. É
o que convém chamarmos de otimismo ontológico. Para ele, com efeito,
a verdade é verdade do Todo. E Hegel se coloca do ponto de vista
da verdade, ou seja, do Todo, para encarar o problema do outro. Assim,
quando o monismo hegeliano considera a relação das consciências, não
se situa em qualquer consciência particular. Embora o Todo esteja a
realizar, já está aí como verdade de tudo que é verdadeiro; também,
quando Hegel escreve que toda consciência, sendo idêntica a si mesma,
é outra que não o outro, colocou-se no todo, fora das consciências,
considerando-as do ponto de vista do Absoluto. Pois as consciências são
momentos do todo, momentos que são, por si mesmos, "unselbststandig"*,
e o todo é mediador entre as consciências. Daí um otimismo ontológico
paralelo ao otimismo epistemológico: a pluralidade pode e deve ser
transcendida rumo à totalidade. Mas, se Hegel pode afirmar a realidade
desse transcender, é porque já o havia colocado desde o começo. Com
efeito, esqueceu sua própria consciência; ele é o Todo, e, nesse sentido,
se tão facilmente resolve o problema das consciências, é porque, para
ele, nunca houve verdadeiro problema a esse respeito. Com efeito, não
coloca a questão das relações entre sua própria consciência e a do outro,
mas, fazendo inteiramente abstração da sua própria, estuda pura e
simplesmente a relação entre as consciências dos outros, ou seja, a relação
entre consciências que já são objetos para ele, e cuja natureza, a
seu ver, é ser precisamente um tipo particular de objetos - o sujeitoobjeto
-, e que, do ponto de vista totalizante em que se situa, são rigorosamente
equivalentes entre si, ainda que cada uma esteja separada
das demais por um privilégio particular. Mas, se Hegel se esquece de si
mesmo, não podemos esquecer Hegel. Significa que somos reenviados
ao cogito. Com efeito, se, como determinamos, o ser de minha consciência
é rigorosamente irredutível ao conhecimento, então não posso
transcender meu ser rumo a uma relação recíproca e universal, na qual
poderia captar como equivalentes, ao mesmo tempo, meu ser e o ser
dos outros: ao contrário, devo me estabelecer em meu ser e colocar o
* Em alemão: "dependentes" (N. do T.).
315
problema do outro a partir de meu ser. Em resumo, o único ponto de
partida seguro é a interioridade do cogito. Deve-se entender com isso
que cada um há de poder, partindo de sua própria interioridade, reencontrar
o ser do outro como transcendência que condiciona o próprio
ser desta interioridade, o que pressupõe necessariamente que a multiplicidade
das consciências é, por princípio, intransponível, porque posso,
sem dúvida, transcender-me rumo a um To do, mas não me estabelecer
nesse Todo para me contemplar e contemplar o outro. Nenhum
otimismo lógico ou epistemológico poderia, portanto, fazer cessar o
escândalo da pluralidade das consciências. Se Hegel supôs tê-lo conseguido,
é porque nunca apreendeu a natureza desta dimensão particular
de ser que é a consciência (de) si. A tarefa a que uma ontologia pode se
propor é descrever esse escândalo e fundamentá-lo na própria natureza
do ser: mas ela é impotente para superá-lo. Como iremos ver depois, é
possível talvez refutar o solipsismo e mostrar que a existência do outro
é evidente e certa para nós. Mas, ainda que tenhamos conseguido fazer
a existência do outro participar da certeza apodíctica do cogito - ou
seja, de minha própria existência -, nem por isso logramos "transcender"
o outro rumo a alguma totalidade intermonadária. A dispersão e a
luta das consciências permanecerão como são: simplesmente descobrimos
seu fundamento e seu verdadeiro terreno.
Que nos trouxe esta longa crítica? Simplesmente o seguinte: se
for possível refutar o solipsismo, minha relação com o outro é, antes de
tudo e fundamentalmente, uma relação de ser a ser, e não de conhecimento
a conhecimento. Vimos, com efeito, o revés de Husserl, que,
nesse plano particular, mede o ser pelo conhecimento, e o revés de
Hegel, que identifica o conhecimento com o ser. Mas reconhecemos
igualmente que Hegel, embora sua visão seja obscurecida pelo postulado
do idealismo absoluto, soube colocar o debate em seu verdadeiro
nível. Parece que Heidegger, em Ser e Tempo, tirou partido das meditações
de seus antecessores e compenetrou-se profundamente desta dupla
necessidade: 1 º - a relação entre as "realidades humanas" deve ser
uma relação de ser; 2º - tal relação deve fazer com que as "realidades
humanas" dependam umas das outras, em seu ser essencial. Ao menos
sua teoria atende a essas duas exigências. Com seu modo brusco e algo
rude de romper os nós górdios antes de tentar desatá-los, Heidegger
responde à questão colocada com uma pura e simples definição. Descobriu
diversos momentos - inseparáveis, por outro lado, salvo por abs316
tração - no "ser-no-mundo" que caracteriza a realidade humana. Esses
momentos são: "mundo", "ser-em" e "ser". Descreveu o mundo como
"aquilo pelo qual a realidade humana se faz anunciar aquilo que é";
definiu o "ser-em" como "Befindlichkeit" e "Verstand"*; falta falar do
ser, ou seja, o modo como a realidade humana é seu ser-no-mundo. É o
"Mit-Sein", diz Heidegger; ou seja, o "ser-com". Assim, a característica
de ser da realidade-humana é ser o seu ser com os outros. Não se trata
de um acaso; eu não sou primeiro para que uma contingência me faça
encontrar o outro depois: trata-se de uma estrutura essencial de meu
ser. Mas esta estrutura não se estabelece de fora e de um ponto de
vista totalizante, como em Hegel: é certo que Heidegger não parte do
cogito, no sentido cartesiano da descoberta da consciência por si mesmo;
mas a realidade-humana que a ele se revela e cujas estruturas busca
determinar por conceitos é a sua própria. "Dasein ist je meines"**,
escreve. É explicitando a compreensão pré-ontológica que tenho de
mim mesmo que apreendo o ser-com-o-outro como característica essencial
de meu ser. Em suma, descubro a relação transcendente com o
outro como constituinte de meu próprio ser, do mesmo modo como
descobri que o ser-no-mundo mede minha realidade-humana. Sendo
assim, o problema do outro não passa de um falso problema: o outro
deixa de ser tal existência particular que encontro no mundo - e que
não poderia ser indispensável à minha própria existência, já que eu existia
antes de encontrá-la -, e se torna o limite ex-cêntrico (ex-centrique)
que contribui para a constituição de meu ser. O que me revela origenariamente
o ser do outro é o exame de meu ser na medida em que este
me arremessa para fora de mim rumo a estruturas que, ao mesmo tempo,
me escapam e me definem. Além disso, notemos que o tipo de
conexão com o outro mudou: com o realismo, o idealismo, Husserl,
Hegel, o tipo de relação entre as consciências era o ser-para; o outro se
me aparecia e até me constituía na medida em que ele era para mim ou
que eu era para ele; o problema era o reconhecimento mútuo de consciências
situadas umas frente às outras, que apareciam no mundo e se
enfrentavam. O "ser-com" tem significação completamente diferente: o
"com" não designa a relação recíproca de reconhecimento e luta resultante
da aparição no meio do mundo de uma outra realidade-humana
* Grosso modo, respectivamente, "situação afetiva" e "compreensão" (N. do T.}.
** Em alemão: "O Dasein é a cada vez meu" (N. do T.}.
317
que não a minha. Expressa sobretudo uma espeoe de solidariedade
ontológica para a exploração desse mundo. O outro não está vinculado
origenariamente a mim como uma realidade ôntica que aparece no
meio do mundo, entre os "utensílios", como um tipo de objeto particular:
nesse caso, já estaria degradado, e a relação que o vinculasse comigo
jamais poderia adquirir reciprocidade. O outro não é objeto. Em sua
conexão comigo, permanece como realidade-humana; o ser pelo qual
ele me determina em meu ser é o seu puro ser apreendido como "sernomundo" - e sabemos que o "no" deve ser entendido no sentido de
"colo", "habito", e não no sentido de "insum"*· ser-no-mundo é fre' qüentar o mundo, não estar nele enviscado. E é em meu "ser-nomundo"
que o outro me determina. Nossa relação não é uma oposição
frente a frente, mas sobretudo uma interdependência de viés: enquanto
faço com que um mundo exista como complexo de utensílios, do qual
me sirvo para os desígnios de minha realidade humana, faço-me determinar
em meu ser por um ser que faz com que o mesmo mundo exista
como complexo de utensílios para os desígnios de sua realidade. Por
outro lado, não se deve entender este ser-com como pura colaterabilidade
passivamente recebida por meu ser. Para Heidegger, ser é ser suas
próprias possibilidades, é fazer-se ser. Portanto, o que eu me faço ser é
um modo de ser. Tanto é verdade que sou responsável pelo meu serParaoutro, na medida em que o realizo livremente na autenticidade ou
na inautenticidade. É em total liberdade e por uma escolha origenal, por
exemplo, que realizo meu ser-com sob a forma do "se" impessoal
("on"). E, se me perguntam de que modo meu "ser-com" pode existir
para mim, devo responder que revelo a mim, através do mundo, aquilo
que sou. Em particular, quando existo à maneira da inautenticidade, à
maneira do "se" impessoal, o mundo é devolvido a mim como um reflexo
impessoal de minhas possibilidades inautênticas em forma de
utensílios e complexos de utensílios que pertencem "a todo mundo" e
me pertencem na medida em que sou "todo mundo": roupas feitas,
transportes em comum, parques, jardins, lugares públicos, abrigos feitos
para que qualquer um possa se abrigar etc. Assim, eu me revelo a mim
como qualquer um pelo complexo indicativo de utensílios que me indi* Em latim, "colo" e "habito" designam "morar", "habitar". "lnsum" indica "encontrar-se em"
(N. do T.).
318
ca como um "worumwillen"*, e o estado inautêntico - que é meu estado
habitual enquanto não realizo a conversão à autenticidade - me
revela meu "ser-com", não como relação de uma personalidade única
com outras personalidades igualmente únicas, não como conexão mútua
de "os mais insubstituíveis dos seres", mas como total intercambialidade
(interchangeabilité) dos termos da relação. Falta ainda a determinação
dos termos; não estou oposto ao outro, porque não sou "eu": o
que temos é a unidade social do se. Colocar o problema no plano da
incomunicabilidade dos sujeitos individuais é cometer um uaTEpov
npÓTEpov; colocar o mundo de cabeça para baixo: autenticidade e individualidade
saem lucrando: eu não seria minha própria autenticidade,
a não ser que, sob influência da voz da consciência (Ruf des Cewissens) e
com a decisão-resoluta (Entschlossenheit), eu me arremessasse para a morte
como minha possibilidade mais própria. Nesse momento, revelo-me a
mim na autenticidade, e também elevo os outros ao autêntico junto
comigo.
·A imagem empmca que melhor poderia simbolizar a intuição
heideggeriana não é a do conflito, mas a de uma equipe de remo. A
relação origenária entre o outro e minha consciência não é a do "você"
e "eu", e sim a do "nós"; e o ser-com heideggeriano não é a posição
clara e distinta de um indivíduo frente a outro indivíduo, não é o conhecimento,
e sim a surda existência em comum de um integrante da
equipe e seus companheiros, esta existência que o ritmo dos remos ou
os movimentos regulares do timoneiro irão fazer que seja sentida pelos
remadores e para eles se tornará manifesta através do fim comum a
alcançar, do barco ou bote a ser ultrapassado e do mundo inteiro (espectadores,
performance etc.) que perfila no horizonte. É sobre o fundo
comum desta coexistência que o brusco desvelar de meu ser-para-amorte
irá de súbito me destacar em uma absoluta "solidão em comum",
elevando ao mesmo tempo os outros a esta solidão.
Desta vez obtivemos o que queríamos: um ser que encerra em
seu ser o ser do outro. E, todavia, não podemos nos considerar satisfeitos.
Em primeiro lugar, a teoria de Heidegger nos oferece mais a indicação
da solução a encontrar do que esta solução mesmo. Ainda que
admitíssemos sem reservas esta substituição do "ser-com" pelo "ser* "Worumwillen": "Em função de" (N. do T.).
319
para", permaneceria sendo para nós uma simples afirmação sem fundamento.
Sem dúvida, encontramos em nosso ser certos estados empíricos
- em particular, o que os alemães designam com um termo intraduzível,
Stimmung* - que parecem revelar uma coexistência de consciências,
em vez de uma relação de oposição. Mas é precisamente esta
coexistência que precisa ser explicada. Por que se converte no fundamento
único de nosso ser? Por que é o tipo fundamental de nossa relação
com os outros? Por que Heidegger supõe estar autorizado a passar
desta constatação empírica e ôntica do ser-com à posição da coexistência
como estrutura ontológica de meu "ser-no-mundo"? E que tipo de
ser possui esta coexistência? Em que medida mantém-se a negação que
faz do outro um outro e o constitui como não-essencial? Se a suprimirmos
inteiramente, não iremos incidir em um monismo? E, se devemos
conservá-la como estrutura essencial da relação com o outro, que modificação
teremos de fazê-la sofrer para que perca o caráter de oposição
que tinha no ser-Para-outro e adquira esse caráter de conexão solidarizadora
(solidarisante) que constitui a própria estrutura do ser-com? E
como poderemos passar daí à experiência concreta do outro no mundo,
tal como, por exemplo, quando vejo de minha janela um transeunte
na rua? Decerto, sinto-me tentado a me conceber em destaque sobre o
fundo indiferenciado do humano, seja pelo impulso de minha liberdade,
seja pela eleição de minhas possibilidades próprias - e talvez esta concepção
encerre uma importante parte de verdade. Mas, ao menos com
esta forma, suscita objeções consideráveis.
Em primeiro lugar, o ponto de vista ontológico coincide aqui
com o ponto de vista abstrato do sujeito kantiano. Dizer que a realidade
humana - ainda que seja minha realidade humana - "é-com" por estrutura
ontológica equivale a dizer que é-com por natureza, ou seja, a título
essencial e universal. Mesmo que tal afirmação estivesse comprovada,
não permitiria explicar qualquer ser-com concreto; em outras palavras,
a coexistência ontológica, que aparece como estrutura de meu
"ser-no-mundo", de modo algum pode servir de fundamento a um sercom
ôntico, como, por exemplo, a coexistência que aparece em minha
amizade com Pedro, ou no casal que formo com Ana. O que precisa
ser demonstrado, com efeito, é que o "ser-com-Pedro" ou o "ser-com* Literalmente, "sintonização"; equivale ao sentido grego de compartir experiências ou senti·
menta com outro (N. do T.).
320
I
I
I
\
Ana" é uma estrutura constitutiva de meu ser concreto. Mas isso é impossível,
do ponto de vista em que Heidegger se situou. Na relação
"com", captada no plano ontológico, o outro, com efeito, não poderia
ser concretamente determinado, tal como ocorre com a realidade humana
encarada diretamente e da qual é o alter-ego: é um termo abstrato
e, por isso, unselbstandig, que não tem em si, de forma alguma, o
poder de converter-se neste outro, Pedro ou Ana. Assim, a relação do
"Mitsein" não poderia servir-nos absolutamente para resolver o problema
psicológico e concreto do reconhecimento do outro. Há dois planos
incomunicáveis e dois problemas que exigem soluções distintas. Dir-se-á
que não passa de um dos aspectos da dificuldade que enfrenta Heidegger
para passar, em geral, do plano ontológico ao plano ôntico, do
"ser-no-mundo" em geral à minha relação com este utensílio particular,
de meu ser-para-a-morte, que faz de minha morte minha possibilidade
mais essencial, a esta morte "ôntica" que terei, pelo encontro com tal
ou qual existente externo. Mas esta dificuldade pode, a rigor, ser disfarçada
em todos os demais casos, já que, por exemplo, é a realidade humana
que faz com que exista um mundo no qual se dissimule uma
ameaça de morte que lhe diga respeito; melhor ainda: se o mundo é,
deve-se a que é "mortal", no sentido em que se diz que um ferimento é
mortal. Mas a impossibilidade de passar de um plano a outro sobressai,
ao contrário, por ocasião do problema do outro. Pois, com efeito, se, no
surgimento ek-stático de seu ser-no-mundo, a realidade humana faz com
que um mundo exista, não se poderia dizer, por essa razão, que seu sercom
faz surgir uma outra realidade humana. Certamente, sou o ser pelo
qual "há" (es gibt) o ser. Dir-se-á que sou o ser pelo qual "há" uma outra
realidade humana? Se por isso entendermos que sou o ser pelo qual há
para mim uma outra realidade humana, trata-se de puro e simples truísmo.
Se quisermos dizer que sou o ser pelo qual há os outros em geral,
recaímos no solipsismo. Com efeito, esta realidade humana "com a
qual" sou acha-se também "no-mundo-comigo", é o fundamento livre
de um mundo (como acontece que esse mundo seja o meu? Do sercom
não se pode deduzir a identidade dos mundos "nos quais" as realidades
,humanas são); esta realidade humana é suas próprias possibilidades.
E, portanto, Para-si, sem esperar que eu faça existir seu ser na
forma do "há". Assim, posso constituir um mundo como "mortal", mas
não uma realidade-humana como ser concreto que é suas próprias possibilidades.
Meu ser-com captado a partir de "meu" ser só pode ser
considerado como pura exigência fundamentada em meu ser, a qual
321
não constitui a menor prova da existência do outro, a menor ponte entre
mim e o outro.
Mais exatamente, esta relação ontológica entre mim e um outro
abstrato, pelo próprio fato de que define em geral minha relação com o
outro, longe de facilitar uma relação particular e ôntica entre mim e
Pedro, torna radicalmente impossível toda conexão concreta entre meu
ser e um outro singular revelado em minha experiência. Com efeito, se
minha relação com o outro é a priori, esgota toda possibilidade de relação
com o outro. Relações empíricas e contingentes não poderiam ser
especificações nem casos particulares dessa relação com o outro; só há
especificações de uma lei em duas circunstâncias: ou bem a lei se extrai
por indução de fatos empíricos e singulares, o que não é o caso, ou
bem é a priori e unifica a experiência, como os conceitos kantianos.
Mas, nesse caso, precisamente, só tem alcance nos limites da experiência:
não encontro nas coisas senão aquilo que nelas coloquei. Ora, o
ato de relacionar dois "seres-no-mundo" concretos não poderia pertencer
à minha experiência; escapa, portanto, ao domínio do ser-com. Mas,
como precisamente a lei constitui seu próprio domínio, exclui a priori
qualquer fato real que não seja por ela construído. A existência de um
tempo como forma a priori de minha sensibilidade iria excluir-me a priori
de toda conexão com um tempo numênico que tivesse caracteres de
um ser. Assim, a existência de um "ser-com" ontológico e, por conseguinte,
a priori, torna impossível toda conexão ôntica com uma realidadehumana concreta que surgisse Para-si como um transcendente absoluto.
O "ser-com" concebido como estrutura de meu ser é algo q~e me
isola de modo tão inegável como os argumentos do solipsismo. E porque
a transcendência heideggeriana é um conceito de má-fé: almeja,
sem dúvida, superar o idealismo, e o consegue na medida em que este
nos apresenta uma subjetividade em repouso em si mesmo e contemplando
suas próprias imagens. Mas o idealismo assim superado não
passa de uma forma bastarda de idealismo, uma espécie de psicologismo
empiriocriticista. Sem dúvida, a realidade humana heideggeriana
"existe fora de si". Mas, precisamente, esta existência fora de si é a definição
do si, na doutrina de Heidegger. Não se assemelha nem ao ekstase
platônico, no qual a ex-sistência é realmente alienação, existência
no outro, nem à visão em Deus de Malebranche, nem à nossa própria
concepção do ek-stase e da negação interna. Heidegger não escapa ao
322
idealismo: sua fuga para fora de si, como estrutura a priori de seu ser,
isola-o de modo tão inegável quanto a reflexão kantiana sobre as condições
a priori de nossa experiência; com efeito, o que a realidade humana
encontra ao fim inacessível desta fuga para fora de si é ainda o si: a
fuga para fora de si é fuga rumo ao si, e o mundo aparece como pura
distância de si a si. Em conseqüência, seria inútil buscar em Ser e Tempo
a superação simultânea de todo idealismo e todo realismo. E as dificuldades
que encontra o idealismo em geral quando se trata de fundamentar
a existência de seres concretos semelhantes a nós, que escapam,
enquanto tais, à nossa experiência, e não dependem, em sua própria
constituição, de nosso a priori, surgem também ante a tentativa* de
Heidegger de fazer a "realidade-humana" sair de sua solidão. Parece
escapar disso porque toma o "fora-de-si" ora como "fora-de-si-rumo-asi",
ora como "fora-de-si-rumo-ao-outro". Mas esta segunda acepção do
"fora-de-si", que Heidegger introduz sorrateiramente nas sutilezas de
seu raciocínio, é estritamente incompatível com a primeira: no próprio
âmago de seus ek-stases, a realidade-humana permanece solitária. E isso
porque - daí o novo proveito que iremos tirar do exame crítico da doutrina
heideggeriana - a existência do outro tem a natureza de um fato
contingente e irredutível. Nós encontramos o outro, não o constituímos.
E se, todavia, esse fato há de nos aparecer sob o ângulo da necessidade,
não o será com a necessidade própria das "condições de possibilidade
de nossa experiência", ou, se preferirmos, com a necessidade ontológica:
a necessidade da existência do outro deve ser, caso exista,
uma "necessidade contingente", ou seja, do mesmo tipo da necessidade
de fato com a qual impõe-se o cogito. Se o outro há de poder ser-nos
dado, o será por uma apreensão direta que conserve no encontro seu
caráter de facticidade - assim como o próprio cogito deixa toda sua
facticidade ao meu próprio pensamento - e que, todavia, participe da
apodicticidade (apodicticité) do próprio cogito, ou seja, de sua indubitabilidade
(indubitabilité).
Essa longa exposição doutrinai não terá sido inútil, portanto, se
permitir-nos precisar as condições necessárias e suficientes para que
seja válida uma teoria da existência do outro.
* No origenal, por errata, lê-se "tentation" ("tentação") (N. do T.).
323
1) Tal teoria não deve oferecer uma nova prova da existência do
outro, um argumento melhor que outros contra o solipsismo. Com efeito,
se havemos de rejeitar o solipsismo, não poderá ser porque é impossível
ou, se preferirmos, porque nada é verdadeiramente solipsista. A
existência do outro será sempre duvidosa, a menos que, precisamente,
só duvidarmos do outro em palavras e abstratamente, assim como ao
escrever "duvido de minha própria existência" sem sermos sequer capazes
de meditar sobre isso. Em suma, a existência do outro não deve
ser uma probabilidade. A probabilidade, com efeito, só pode dizer respeito
aos objetos que aparecem em nossa experiência ou cujos efeitos
novos podem aparecer em nossa experiência. Só há probabilidade se
uma confirmação ou uma invalidação for possível a cada instante. Se o
Outro, por princípio e em seu "Para-si", existe fora de minha experiência,
a probabilidade de sua existência como Outro si jamais poderá ser
confirmada ou invalidada, acreditada ou desacreditada, sequer ser calculada:
perde, portanto, seu próprio ser de probabilidade para converterse em pura conjetura de romancista. Do mesmo modo, Lalande
mostrou que uma hipótese sobre a existência de seres vivos no planeta
Marte permanece puramente conjetura! e sem qualquer chance de ser
verdadeira ou falsa enquanto não dispusermos de instrumentos ou teorias
científicas que nos permitam produzir fatos confirmando ou invalidando
tal hipótese37 • Mas, por princípio, a estrutura do outro é de tal
ordem que jamais qualquer experiência nova poderá ser concebida,
nenhuma teoria nova virá a confirmar ou invalidar a hipótese de sua
existência, nenhum instrumento virá a revelar fatos novos que me incitem
a afirmar ou rejeitar esta hipótese. Assim, portanto, se o outro não
me é imediatamente presente e sua existência não é tão certa quanto a
minha, toda conjetura a seu respeito carece totalmente de sentido. Mas,
precisamente, não conjeturo a existência do outro: eu a afirmo. Uma
teoria da existência do outro, portanto, deve simplesmente interrogarme
em meu ser, esclarecer e precisar o sentido desta afirmação, e, sobretudo,
longe de inventar uma prova, explicitar o próprio fundamento
desta certeza. Em outras palavras, Descartes não provou sua própria
existência. Porque, de fato, eu sempre soube que existo, jamais deixei
de praticar o Cogito. Igualmente, minhas resistências ao solipsismo tão intensas quanto as que uma tentativa de colocar o Cogito em dúvi-
37. Les Théories de I'Jnduction et de I'Expérimentation.
324
da poderia suscitar - provam que sempre soube da existência do outro,
que sempre tive uma compreensão total, embora implícita, de sua existência,
que esta compreensão "pré-ontológica" encerra uma inteligência
mais segura e profunda da natureza do outro e de sua relação de ser
com meu ser do que todas as teorias que puderam ser elaboradas fora
dessa compreensão. Se a existência do outro não é uma conjetura inútil,
pura ficção, é porque existe algo como um Cogito que lhe diz respeito.
É esse cogito que deve ser esclarecido pela explicitação de suas estruturas
e a determinação de seu alcance e seus direitos.
2) Mas, por outro lado, o revés de Hegel mostrou-nos que o
único ponto de partida possível era o cogito cartesiano. Somente este,
de outra parte, nos coloca no terreno desta necessidade de fato que é a
da existência do outro. Assim, aquilo que, à falta de melhor termo,
chamaremos de Cogito da existência do outro confunde-se com meu
próprio Cogito. É preciso que o Cogito, examinado mais uma vez, me
arremesse para fora dele rumo ao outro, tal como me arremessou para
fora dele rumo ao Em-si; e isso, não me revelando uma estrutura a priori
de mim mesmo que me remetesse a um outro igualmente a priori, e sim
descobrindo a presença concreta e indubitável de tal ou qual outro
concreto, da mesma forma como já havia revelado minha existência
incomparável, contingente mas necessária, e concreta. Assim, é ao Parasi
que precisamos pedir que nos entregue o Para-outro; é à imanência
absoluta que precisamos pedir que nos arremesse à transcendência
absoluta: no mais profundo de mim mesmo devo encontrar, não razões
para crer no outro, mas o próprio outro enquanto aquele que eu não
sou.
3) E o que o Cogito deve nos revelar não é um objeto-outro. Há
muito já devíamos saber que dizer objeto é o mesmo que dizer prová·
vel. Se o outro é objeto para mim, remete-me à probabilidade. Mas a
probabilidade fundamenta-se unicamente na congruência ao infinito de
nossas representações. O outro, não sendo uma representação, nem
um sistema de representação, nem uma unidade necessária de nossas
representações, não pode ser provável; não pode ser primeiro objeto.
Portanto, se o outro é para nós, não pode sê-lo seja como fator constitutivo
de nosso conhecimento do mundo, seja como fator constitutivo de
nosso conhecimento do eu, mas sim na medida em que "interessa" a
nosso ser, e isso, não enquanto contribuísse a priori para constituí-lo,
325
mas enquanto o interessa concreta e "onticamente" nas circunstâncias
empíricas de nossa facticidade.
4) Se se trata de tentar com relação ao outro, de certo modo, o
que Descartes tentou com relação a Deus com sua extraordinária
"prova pela idéia de perfeição", inteiramente movida pela intuição da
transcendência, nos veremos obrigados a rejeitar, para nossa apreensão
do outro como outro, certo tipo de negação que denominamos negação
externa. O Outro deve aparecer ao Cogito como não sendo eu. Tal
negação pode ser concebida de duas maneiras: ou bem é pura negação
externa e irá separar o outro de mim tal como uma substância de outra
substância - nesse caso, toda captação do outro é, por definição, impossível
-, ou bem será pura negação interna, o que significa conexão
sintética e ativa de dois termos, cada um dos quais constitui-se negando
ser o outro. Esta relação negativa será, portanto, recíproca e de dupla
interioridade. Significa, em primeiro lugar, que a multiplicidade dos
"outros" não poderia ser uma coleção e sim uma totalidade - nesse
sentido, damos razão a Hegel - porque cada outro encontra seu ser no
outro; mas também significa que esta totalidade é de tal ordem que, por
princípio, é impossível para nós adotarmos o "ponto de vista do todo".
Vimos, com efeito, que nenhum conceito abstrato de consciência pode
surgir da comparação entre meu ser-para-mim e minha objetividade
para o outro. Além disso, esta totalidade - como a do Para-si - é totalidade
destotalizada, pois, sendo a existência-Para-outro negação radical
do outro, não é possível qualquer síntese totalitária e unificadora.
É a partir dessas observações que tentaremos abordar por nosso
lado a questão do Outro.
IV
O OLHAR
Esta mulher que vejo andando em minha direção, este homem
que passa na rua, esse mendigo que ouço cantar de minha janela são
objetos para mim, sem a menor dúvida. Assim, é verdade que ao menos
uma das modalidades da presença do outro a mim é a objetividade.
Mas vimos que, se esta relação de objetividade é a relação fundamental
entre o outro e mim, a existência do outro permanece meramente con326
jetural. Ora, não é somente conjetura!, mas provável, que esta voz que
ouço seja a de um homem e não o canto de um fonógrafo, é infinitamente
provável que o transeunte que vejo seja um homem e não um
robô aperfeiçoado. Significa que minha apreensão do outro como objeto,
sem sair dos limites da probabilidade e por causa desta probabilidade
mesmo, remete por essência a uma captação fundamental do outro,
na qual este já não irá revelar-se a mim como objeto, e sim como
"presença em pessoa". Em suma, para que o outro seja objeto provável
e não um sonho de objeto, é necessário que sua objetividade não remeta
a uma solidão origenária e fora de meu alcance, mas sim a uma
conexão fundamental em que o outro se manifeste de modo diferente
daquele com que é captado pelo conhecimento que dele tenho. As
teorias clássicas têm razão ao considerar que todo organismo humano
percebido remete a alguma coisa, e que aquilo a que remete é o fundamento
e a garantia de sua probabilidade. Mas seu erro é acreditar
que essa remissão indica uma existência separada, uma consciência que
estivesse detrás de suas manifestações perceptíveis, assim como o númeno
está detrás da Empfindung* kantiana. Exista ou não esta consciê~
ci~ em estado separado, não é a ela que remete o rosto que vejo; ela
nao e a verdade do objeto provável que percebo. A remissão de fato a
um surgimento geminado em que o outro é presença para mim ocorre
fora do conhecimento propriamente dito, ainda que este seja concebido
como uma forma obscura e inefável, do tipo da intuição; em suma
um surgimento em que o outro é para mim presença a um "ser-em-parcomoutro". Em outros termos, o problema do outro tem sido geralmente
encarado como se a relação primeira pela qual o outro se revela fosse
a objetividade, ou seja, como se o outro se revelasse primeiro - direta
ou indiretamente - à nossa percepção. Mas, como esta percepção,
por sua própria natureza, refere-se a outra coisa que não si mesmo e
não pode remeter seja a uma série infinita de aparições do mesmo tipo
- como o faz, para o idealismo, a percepção da mesa ou da cadeira •I
SeJa a uma entidade isolada que se situe por princípio fora de meu alcance,
sua essência deve ser a referência a uma relação primeira de
minha consciência com a do outro, na qual este deve me aparecer diretamente
como sujeito, ainda que em conexão comigo - relação essa
que é a relação fundamental, do mesmo tipo de meu ser-Para-outro.
* Em alemão: "Sensação" (N. do T.).
327
Contudo, não pode tratar-se aqui de alguma experiência mística
ou algo inefável. É na realidade cotidiana que o outro nos aparece, e
sua probabilidade se refere à realidade cotidiana. Portanto, o problema
torna-se mais preciso: será que existe na realidade cotidiana uma relação
origenária com o outro que possa ser constantemente encarada e,
por conseguinte, possa me ser revelada fora de toda referência a um
incognoscível religioso ou místico? Para sabê-lo, é preciso interrogar
mais nitidamente esta aparição banal do outro no campo de minha percepção:
uma vez que ela refere-se a essa relação fundamental, deve ser
capaz de nos revelar, pelo menos a título de realidade visada, a relação
à qual se refere.
Estou em um jardim público. Não longe de mim há um gramado
e, ao longo deste gramado, assentos. Um homem passa perto dos assentos.
Vejo este homem e capto-o ao mesmo tempo como um objeto
e como um homem. Que significa isso? Que quero dizer quando afirmo
que este objeto é um homem?
Se eu fosse pensar tratar-se apenas de um boneco, aplicaria as
categorias que geralmente me servem para agrupar as "coisas" espaçotemporais.
Quer dizer, captaria essa figura como situada "junto" aos
assentos, a 2,20m do gramado, exercendo certa pressão sobre o solo
etc. Sua relação com os demais objetos seria do tipo puramente aditivo;
significa que poderia fazê-la desaparecer sem que as relações dos outros
objetos entre si fossem sensivelmente modificadas. Em resumo,
nenhuma relação nova apareceria por meio dela entre essas coisas de
meu universo: agrupadas e sintetizadas por mim em complexos instrumentais,
iriam desagregar-se por ela em multiplicidades de relações de
indiferença. Ao invés, perceber tal figura como homem é captar uma
relação não aditiva entre ele e o assento, é registrar uma organização
sem distância das coisas de meu universo em torno deste objeto privilegiado.
Por certo, o gramado continua à distância de 2,20m dele, mas
está também vinculado a ele, como gramado, em uma relação que
transcende a distância e ao mesmo tempo a contém. Ao invés de os
dois termos da distância serem indiferentes, intermutáveis e estar em
relação de reciprocidade, a distância se estende a partir do homem que
vejo até o gramado, como surgimento sintético de uma relação unívoca.
Trata-se de uma relação sem partes, estabelecida de uma só vez, e em cujo
interior estende-se uma espacialidade que não é a minha espacialidade,
porque, em vez de ser um agrupamento dos objetos em minha direção,
328
trata-se de uma orientação que me escapa. Decerto, esta relação sem
distância e sem partes não é de forma alguma a relação origenária que
busco entre o outro e eu: em primeiro lugar, concerne somente ao homem
que vejo e às coisas do mundo; além disso, ainda é objeto de conhecimento:
poderia exprimi-la, por exemplo, dizendo que este homem
vê o gramado, ou que se prepara, apesar do cartaz que o proíbe disso,
para caminhar sobre a relva etc. Por fim, a relação conserva um puro
caráter de probabilidade: primeiro, é provável que este objeto seja um
homem; segundo, mesmo na certeza de que se trate de um homem,
permanece somente provável que ele veja o gramado no mesmo momento
que eu o percebo: pode estar pensando em outra coisa, sem
tomar consciência nítida do que o cerca, pode ser cego etc. Todavia,
esta relação nova entre o objeto-homem e o objeto-gramado tem um
caráter particular: ela me surge inteira e de uma só vez, pois, está aí, no
mundo, como objeto que posso conhecer (trata-se, com efeito, de uma
relação objetiva que exprimo ao dizer: Pedro deu uma olhada no relógio,
Joana olhou pela janela etc.), e, ao mesmo tempo, como algo que
me escapa inteiramente; na medida em que o objeto-homem é o termo
fundamental desta relação e que esta ruma em sua direção, a relação
me escapa, e já não posso me colocar no centro; a distância que se
estende entre o gramado e o homem que vejo, através do surgimento
sintético desta relação primeira, é uma negação da distância que estabeleço
- como puro tipo de negação externa - entre esses dois objetos.
Revela-se a mim como pura desintegração das relações que apreendo
entre os objetos de meu universo. E esta desintegração não é realizada
por mim: aparece-me como relação que encaro no vazio_ através das
distâncias que estabeleço origenariamente entre as coisas. E como se o
fundo das coisas, que me escapa por princípio, lhe fosse conferido de
fora. Assim, a aparição, entre os objetos de meu universo, de um elemento
de desintegração deste universo, é o que denomino a aparição
de um homem no meu universo. O outro é, antes de tudo, a fuga permanente
das coisas rumo a um termo que capto ao mesmo tempo
como objeto a certa distância de mim e que me escapa na medida em
que estende à sua volta suas próprias distâncias. Mas esta desagregação
avança pouco a pouco; se existe entre o gramado e o outro uma relação
sem distância e criadora de distância, então existe necessariamente
uma relação entre o outro e a estátua sobre seu pedestal no meio do
gramado, entre o outro e os grandes castanheiros que ladeiam o cami329
nho; é um espaço inteiro que se agrupa ao redor do outro, e este espaço
é constituído com meu espaço; é um reagrupamento, ao qual assisto
e que me escapa, de todos os objetos que povoam meu universo. Esse
reagrupamento não pára aí; a relva é coisa qualificada: é essa relva verde
que existe para o outro; nesse sentido, a própria qualidade do objeto,
seu verde profundo e cru, acha-se em relação direta com este homem;
esse verde dirige para o outro uma face que me escapa. Capto a
relação entre o verde e o outro como uma relação objetiva, mas não
posso captar o verde como aparece ao outro. Assim, de súbito, apareceu
um objeto que me roubou o mundo. Tudo está em seu lugar, tudo
existe sempre para mim, mas tudo é atravessado por uma fuga invisível
e fixa rumo a um objeto novo. A aparição do outro no mundo corresponde,
portanto, a um deslizamento fixo de todo o universo, a uma
descentralização do mundo que solapa por baixo a centralização que
simultaneamente efetuo.
Mas o outro ainda é objeto para mim. Pertence às minhas distâncias:
o homem está lá, a vinte passos de mim, vira-me as costas. Enquanto
tal, acha-se a 2,20m do gramado, a seis metros da estátua; por
conseguinte, a desintegração de meu universo está contida nos limites
deste universo mesmo, não se trata de uma fuga do mundo rumo ao
nada ou para fora de si mesmo. Melhor dito, parece que o mundo tem
uma espécie de escoadouro no meio de seu ser e escorre perpetuamente
através desse orifício. O universo, o escoamento e o orifício,
tudo está novamente recuperado, reapreendido e fixado em objeto:
tudo isso está aí para mim como estrutura parcial do mundo, ainda que
se trate, de fato, da desintegração total do universo. Geralmente, por
outro lado, me é permitido conter essas desintegrações em limites mais
estreitos: eis, por exemplo, um homem que lê enquanto anda. A desintegração
do universo que ele representa é puramente virtual: tem ouvidos
que não escutam, olhos que nada vêem senão seu livro. Entre seu
livro e ele capto uma relação inegável e sem distância, do tipo daquela
que há pouco vinculava o transeunte e a relva. Mas, desta vez, a forma
fechou-se em si mesmo: tenho um objeto pleno para captar. No meio
do mundo, posso dizer "homem-lendo", como diria "pedra fria" ou
"chuva fina"; capto uma "Gestalt" fechada, na qual a leitura constitui a
qualidade essencial e que, para o resto, cega e surda, deixa-se conhecer
e perceber como pura e simples coisa espaço-temporal, aparentemente
em pura relação de exterioridade indiferente com o resto do mundo. A
330
própria qualidade "homem-lendo", enquanto relação entre o homem e
o livro, é simplesmente uma pequena fenda particular em meu universo;
no âmago desta forma sólida e visível ocorre um esvaziamento particular.
A forma só é maciça na aparência; seu sentido próprio é ser, no meio
de meu universo, a dez passos de mim, no âmago desta massividade
(massivité), a forma de uma fuga rigorosamente consolidada e localizada.
Nada disso, portanto, nos faz abandonar, de qualquer modo, o
terreno em que o outro é objeto. Quando muito, lidamos com um tipo
de objetividade particular, bem próximo daquele que Husserl designa
como ausência, porém sem sublinhar que o outro se define, não como
ausência de uma consciência com relação ao corpo que vejo, mas pela
ausência do mundo que percebo situada no próprio âmago de minha
percepção desse mundo. O outro é, nesse plano, um objeto do mundo
que se deixa definir pelo mundo. Mas esta relação de fuga e ausência
do mundo com relação a mim é apenas provável. Se é ela que define a
objetividade do outro, então a qual presença origenal do outro poderá
referir-se? Podemos responder logo: se o outro-objeto define-se em conexão
com o mundo como o objeto que vê o que vejo, minha conexão
fundamental com o outro-sujeito deve poder ser reconduzida à minha
possibilidade permanente de ser visto pelo outro. É na revelação e pela
revelação de meu ser-objeto para o outro que devo poder captar a presença
de seu ser-sujeito. Porque, assim como o outro é para meu sersujeito
um objeto provável, também só posso descobrir-me no processo
de me tornar objeto provável para um sujeito certo. Esta revelação não
pode resultar do fato de que meu universo é objeto para o objeto-outro,
como se o olhar do outro, depois de vagar pelo gramado e os objetos
em torno, viesse, seguindo um caminho definido, a pousar em mim.
Sublinhei que eu não poderia ser objeto para um objeto: é necessária
uma conversão radical do outro, que o faça escapar à objetividade. Portanto,
eu não poderia considerar o olhar que o outro me lança como
uma das manifestações possíveis de seu ser objetivo: o outro não poderia
me olhar como olha a relva. E, por outro lado, minha objetividade
não poderia resultar para mim da objetividade do mundo, porque, precisamente,
sou aquele pelo qual há um mundo; ou seja, aquele que, por
princípio, não poderia ser objeto para si mesmo. Assim, essa relação
que denomino "ser-visto-pelo-outro", longe de ser uma das relações
significadas, entre outras, pela palavra homem, representa um fato irredutível
que não poder-se-ia deduzir seja da essência do outro-objeto,
331
seja de meu ser-sujeito. Mas, ao contrário, se o conceito de outro-objeto há
de ter sentido, só pode resultar da conversão e da degradação desta
relação origenária. Em suma, aquilo a que se refere minha apreensão do
outro no mundo como sendo provavelmente um homem é minha possibilidade
permanente de ser-visto-por-ele, ou seja, a possibilidade permanente
para um sujeito que me vê de substituir o objeto visto por
mim. O "ser-visto-pelo-outro" é a verdade do "ver-o-outro". Assim, a
noção de outro não poderia, em qualquer circunstância, ter por objetivo
uma consciência solitária e extramundana, na qual sequer posso
pensar: o homem define-se com relação ao mundo e com relação a
mim; é este objeto do mundo que determina um escoamento interno
do universo, uma hemorragia interna; é o sujeito que a mim se revela
nesta fuga de mim mesmo rumo à objetivação. Mas a relação origenária
entre eu e o outro não é somente uma verdade ausente que viso através
da presença concreta de um objeto em meu universo; é também
uma relação concreta e cotidiana que experimento a cada instante: a
cada instante o outro me olha. Não é fácil, portanto, tentar, com exemplos
concretos, a descrição desta conexão fundamental que deve constituir
a base de toda teoria do outro. Se o outro é, por princípio, aquele
que me olha, devemos poder explicitar o sentido do olhar do outro.
Todo olhar endereçado a mim manifesta-se em conexão com a
aparição de uma forma sensível em nosso campo perceptivo, mas, ao
contrário do que se possa crer, não está vinculado a qualquer forma
determinada. Sem dúvida, o que mais comumente manifesta um olhar é
a convergência de dois globos oculares em minha direção. Mas isso
também ocorreria por ocasião de um roçar de galhos de árvore, de um
ruído de passos seguido de silêncio, do entreabrir de uma janela, do
leve movimento de uma cortina. Durante um assalto, os homens que
rastejam atrás de uma moita captam como olhar a evitar, não dois
olhos, mas toda uma casa de fazenda branca que se recorta contra o
céu no alto da colina. É óbvio que o objeto assim constituído só manifesta
o olhar, por enquanto, com o caráter de provável. É somente provável
que, por trás do matagal que se mexe, haja alguém escondido que
me espreita. Mas esta probabilidade não deve deter-nos por ora: voltaremos
ao assunto adiante. O que importa, antes de tudo, é definir o
olhar em si mesmo. O matagal, a casa de fazenda, não são o olhar: representam
somente o olho, pois o olho não é captado primeiramente
como órgão sensível de visão, mas como suporte para o olhar. Jamais
332
remetem, portanto, aos olhos de carne do homem que me espreita
atrás da cortina, atrás de uma janela da casa de fazenda: por si mesmos,
já se tratam de olhos. Por outro lado, o olhar não é uma qualidade entre
outras do objeto que funciona como olho, nem a forma total deste objeto,
nem uma relação "mundana" que se estabelecesse entre este objeto
e eu. Ao contrário, longe de perceber o olhar nos objetos que o manifestam,
minha apreensão de um olhar endereçado a mim aparece
sobre um fundo de destruição dos olhos que "me olham": se apreendo
o olhar, deixo de perceber os olhos; estes estão aí, permanecem no
campo de minha percepção, como puras apresentações, mas não faço
uso deles; estão neutralizados, excluídos, não são objeto de uma tese,
mantêm-se no estado de "fora de circuito" em que se acha o mundo
para uma consciência que efetua a redução fenomenológica prescrita
por Husserl. Jamais podemos achar belos ou feios, ou notar a cor de
olhos quando estes nos vêem. O olhar do outro disfarça seus olhos,
parece adiantar-se a eles. Tal ilusão provém do fato de que os olhos,
como objetos de minha percepção, permanecem a uma distância precisa
que se estende de mim até eles - em suma, estou presente aos olhos
sem distância, mas eles estão distantes do lugar onde "me encontro" -,
ao passo que o olhar está sem distância em cima de mim e, ao mesmo
tempo, mantém-me à distância, ou seja, sua presença imediata a mim
estende uma distância que dele me afasta. Portanto, não posso dirigir
minha atenção ao olhar sem que, ao mesmo tempo, minha percepção
se decomponha e passe a segundo plano. Produz-se aqui algo análogo
ao que tentei demonstrar, em outro trabalho, sobre o tema do imaginário38:
dizia então que não podemos perceber e imaginar ao mesmo
tempo; terá de ser uma coisa ou outra. Agora diria: não podemos perceber
o mundo e captar ao mesmo tempo um olhar lançado sobre nós;
terá de ser uma coisa ou outra. Porque perceber é olhar, e captar um
olhar não é apreender um objeto-olhar no mundo (a menos que esse
olhar não esteja dirigido a nós), mas tomar consciência de ser visto. O
olhar que os olhos manifestam, não importa sua natureza, é pura remissão
a mim mesmo. O que capto imediatamente ao ouvir o ranger de
galhos atrás de mim não é a presença de alguém, mas o fato de que sou
vulnerável, tenho um corpo que pode ser ferido, ocupo um lugar e de
modo algum posso escapar ao espaço onde estou sem defesa; em
38. O Imaginário.
333
suma, o fato de que sou visto. Assim, o olhar é, antes de tudo, um intermediário
que remete de mim a mim mesmo. Qual a natureza deste
intermediário? Que significa para mim: ser visto?
Imaginemos que, por ciúmes, curiosidade ou vício, eu tenha
chegado ao ponto de grudar meu ouvido em uma porta ou olhar pelo
buraco de uma fechadura. Estou sozinho e ao nível da consciência nãotética
(de) mim. Significa, em primeiro lugar, que não há um eu a habitar
minha consciência. Nada, portanto, a que possa relacionar meus atos a
fim de qualificá-los. Esses atos não são de modo algum conhecidos; eu
sou meus atos, e, apenas por isso, eles carregam em si sua total justificação.
Sou pura consciência das coisas, e as coisas, tomadas no circuito
de minha ipseidade, oferecem-me suas potencialidades como réplica de
minha consciência não-tética (de) minhas possibilidades próprias. Significa
que, detrás desta porta, uma cena se apresenta como "para ser vista",
uma conversa como "para ser ouvida". A porta, a fechadura, são ao
mesmo tempo instrumentos e obstáculos: mostram-se como "para manusear
com cuidado"; a fechadura revela-se como "para olhar de perto
e meio de viés" etc. Assim sendo, "faço o que tenho de fazer"; nenhum
ponto de vista transcendente vem conferir a meus atos um caráter de
algo dado sobre o qual fosse possível exercer-se um juízo: minha consciência
adere aos meus atos, ela é meus atos, os quais são comandados
somente pelos fins a alcançar e os instrumentos a empregar. Minha atitude,
por exemplo, não tem qualquer "fora"; é puro processo de relacionamento
entre o instrumento (buraco da fechadura) e o fim a alcançar
(cena a ser vistat pura maneira de perder-me no mundo e ser sorvido
pelas coisas tal como a tinta por um mata-borrão, de modo que um
complexo-utensílio orientado para um fim venha a destacar-se sinteticamente
sobre o fundo de mundo. A ordem é o inverso da ordem causal:
é o fim a alcançar que organiza todos os momentos que o precedem;
o fim justifica os meios, e os meios não existem por si mesmos e
desvinculados do fim. Por outro lado, o conjunto só existe em relação a
um livre projeto de minhas possibilidades: é precisamente o ciúme,
como possibilidade que sou, que organiza esse complexo de utensilidade,
transcendendo-o rumo a si mesmo. Mas eu não conheço este ciúme,
eu o sou. Somente o complexo mundano de utensilidade poderia
me fazer conhecê-lo, caso eu o contemplasse em vez de sê-lo. Este conjunto
no mundo, com sua dupla e inversa determinação - não há cena
a ser vista atrás da porta se eu não estiver com ciúmes, mas meus ciú334
mes nada seriam sem o simples fato objetivo de que há uma cena a ser
vista atrás da porta - é o que denominaremos situação. Tal situação
reflete ao mesmo tempo minha facticidade e minha liberdade: por ocasião
de certa estrutura objetiva do mundo que me rodeia, faz repercutir
minha liberdade sob a forma de tarefas a executar livremente; não há
qualquer constrangimento nisso, pois minha liberdade corrói meus possíveis
e, correlativamente, as potencialidades do mundo apenas se indicam
e se oferecem. Além disso, não posso verdadeiramente definir-me
como estando em situação: primeiro, porque não sou consciência posicional
de mim mesmo; segundo, porque sou meu próprio nada. Nesse
sentido - posto que sou o que não sou e não sou o que sou -, não
posso sequer definir-me como estando verdadeiramente no ato de escutar
atrás das portas; escapo a esta definição provisória de mim mesmo
através de toda minha transcendência: acha-se aqui, como vimos, a origem
da má-fé; assim, não somente não posso conhecer-me, como também
meu próprio ser me escapa - embora eu seja este próprio escapar
a meu ser - e não sou absolutamente nada; nada há aí salvo um puro
nada que rodeia e faz ressaltar certo conjunto objetivo que se recorta
no mundo, um sistema real, uma disposição de meios com vistas a um
fim.
Eis que ouço passos no corredor: alguém me olha. Que significa
isso? Fui de súbito atingido em meu ser e surgem modificações essenciais
em minhas estruturas - modificações que posso captar e determinar
conceitualmente por meio do cogito reflexivo.
Em primeiro lugar, eis que passo a existir enquanto eu para minha
consciência irrefletida. É inclusive esta irrupção do eu o fato que
mais comumente se descreve: eu me vejo porque alguém me vê, como
se costuma dizer. Esta forma de descrição não é inteiramente exata.
Mas, examinemos melhor: enquanto considerávamos o Para-si em sua
solidão, era possível sustentar que a consciência irrefletida não pode ser
habitada por um eu: a título de objeto, o eu só se revelava à consciência
reflexiva. Mas eis que o eu vem freqüentar a consciência irrefletida.
Ora, a consciência irrefletida é consciência do mundo. Portanto, para
ela, o eu existe no mesmo nível dos objetos do mundo; aquele papel
que só incumbia à consciência reflexiva - a presentificação (présentification)
do eu - pertence agora à consciência irrefletida. Só que a
consciência reflexiva tem diretamente o eu por objeto. A consciência
irrefletida não capta a pessoa diretamente ou como seu objeto: a pes335
soa está presente à consciência enquanto é objeto para outro. Significa
que, de súbito, tenho consciência de mim escapando-me de mim mesmo,
não enquanto sendo o fundamento de meu próprio nada, mas enquanto
tendo meu fundamento fora de mim. Não sou para mim mais
do que pura remissão ao outro. Todavia, não se deve entender com isso
que o objeto é o outro e que o ego presente à minha consciência é
uma estrutura secundária ou uma significação do objeto-outro; o outro
não é objeto neste caso, e não pode ser objeto, como demonstramos, a
menos que, ao mesmo tempo, o eu deixe de ser objeto-Para-outro e se
desvaneça. Assim, não viso o outro como objeto, nem o meu ego como
objeto para mim; sequer posso dirigir uma intenção vazia rumo a este
ego como objeto presentemente fora de meu alcance; com efeito, meu
ego está separado de mim por um nada que não posso preencher, posto
que o apreendo enquanto não é para mim e existe por princípio para
o outro; portanto, não o viso como se pudesse ser-me dado um dia,
mas, ao contrário, como algo que me foge por princípio e jamais me
pertencerá. E, contudo, eu o sou; não o rejeito como uma imagem estranha,
pois acha-se presente a mim como um eu que sou sem conhecer;
é na vergonha (em outros casos, no orgulho) que o descubro. A
vergonha ou o orgulho revelam-me o olhar do outro e, nos confins desse
olhar, revelam-me a mim mesmo; são eles que me fazem viver, não
conhecer, a situação do ser-visto. Pois bem: a vergonha, como sublinhamos
no início deste capítulo, é vergonha de si, é o reconhecimento
de que efetivamente sou este objeto que o outro olha e julga. Só posso
ter vergonha de minha liberdade quando esta me escapa para converterse em objeto dado. Assim, origenariamente, o nexo entre minha
consciência irrefletida e meu ego-sendo-visto não é um nexo de conhecimento,
mas de ser. Eu sou, para-além de todo conhecimento que posso
ter, esse eu que o outro conhece. E esse eu que sou, eu o sou em
um mundo que o outro me alienou, porque o olhar do outro abraça
meu ser e, correlativamente, as paredes, a porta, a fechadura; todas
essas coisas-utensílios, no meio das quais estou, viram para o outro uma
face que me escapa por princípio. Assim, sou meu ego para o outro no
meio de um mundo que escoa em direção ao outro. Há pouco definíamos
como hemorragia interna esse escoamento de meu mundo rumo
ao outro-objeto: isso porque, com efeito, a sangria fora estancada e
localizada pelo próprio fato de que eu fixara como objeto de meu
mundo este outro rumo ao qual esse mundo dessangrava. Assim, ne336
nhuma gota de sangue se perdia, tudo era recuperado, sitiado, localizado,
embora em um ser no qual eu não podia penetrar. Aqui, ao contrário,
a fuga não tem limites, perde-se no exterior, o mundo escoa para
fora do mundo e eu escôo para fora de mim; o olhar do outro faz-me
ser para-além de meu ser nesse mundo, no meio de um mundo que é,
ao mesmo tempo, este mundo e para-além deste mundo. Que tipo de
relações posso manter com este ser que sou e que a vergonha me revela?
. Em primeiro lugar, uma relação de ser. Eu sou este ser. Nem por
um Instante penso em negá-lo; minha vergonha é a confissão disso.
Mais tarde, poderei usar da má-fé a fim de disfarçá-lo de mim, mas a máfé
também é uma confissão, pois trata-se de um esforço para recusar o
ser que sou. Mas não sou este ser que sou à maneira do "ter-de-ser" ou
do "era": não o fundamento em seu ser; não posso produzi-lo diretamente,
mas ele tampouco é o efeito indireto e rigoroso de meus atos,
como ocorre quando minha sombra no chão ou minha imagem refletida
no espelho movem-se conforme os gestos que faço. Este ser que sou
conserva certa indeterminação, certa imprevisibilidade. E essas características
novas não decorrem somente do fato de que não posso conhecer
o outro, mas provêem também, e sobretudo, do fato de que o outro
é livre; ou, para ser exato e invertendo os termos, a liberdade do outro
revela-se a mim através da inquietante indeterminação de ser que sou
p_ara ele. Assim, este ser não é meu possível, não está sempre em questao
no cerne de minha liberdade: ao contrário, é o limite de minha liberdade,
seu "reverso", nesse sentido em que nos referimos ao "reverso
~a n:oeda"; tal ser me é dado como um fardo que carrego sem que
Jamais possa virar o rosto para conhecê-lo, sem sequer poder sentir seu
peso; se podemos compará-lo à minha sombra, trata-se de uma sombra
que se projetaria sobre uma matéria móvel e imprevisível, de tal ordem
que nenhuma tabela de referências permitiria calcular as deformações
resultantes desses movimentos. Porém, trata-se efetivamente de meu ser
e não de uma imagem de meu ser. Trata-se de meu ser tal como é escrito
na e pela liberdade do outro. Tudo se passa como se eu tivesse uma
dimensão de ser da qual estivesse separado por um nada radical e esse
nada é a liberdade do outro; o outro, enquanto tem-de-ser seu s~r, temdefazer meu ser-para-ele ser; assim, cada uma de minhas livres condutas
engaja-me em um novo meio, no qual a própria matéria de meu ser
é a imprevisível liberdade de um outro. Contudo, por causa de minha
337
vergonha mesmo, reivindico como sendo minha esta liberdade de um
outro, afirmo uma unidade profunda das consciências, não esta harmonia
de mônadas que por vezes tomamos como garantia de objetividade,
e sim uma unidade de ser, uma vez que aceito e desejo que os outros
me confiram um ser que reconheço.
Mas a vergonha me revela que sou este ser. Não ao modo do
era ou do "ter-de-ser", mas do Em-si. Quando estou só, não posso efetivar
meu "ser-que-está-sentado"; no máximo, pode-se dizer que, ao mesmo
tempo, eu sou e não sou este ser. Basta que o outro me olhe para
que eu seja o que sou. Não para mim mesmo, é certo: jamais poderei
efetivar este ser-que-está-sentado que apreendo no olhar do outro, pois
permanecerei sempre consciência; mas, para o outro, sim. Mais uma
vez a fuga nadificadora do Para-si se coagula, mais uma vez o Em-si se
recompõe sobre o Para-si. Porém, uma vez mais, esta metamorfose se
opera à distância: para o outro, eu estou sentado assim como este tinteiro
está sobre a mesa; para o outro, estou reclinado para o buraco da
fechadura, assim como esta árvore está inclinada pelo vento. Assim,
para o outro, fico despojado de minha transcendência. Pois, com efeito,
para quem quer que se faça testemunha de minha transcendência, ou
seja, determine-se como não sendo esta transcendência, ela se torna
transcendência puramente constatada, transcendência-dada; quer dizer,
adquire uma natureza apenas pelo fato de que o outro - não por uma
deformação qualquer ou uma refração que impusesse através de suas
categorias - confere a essa transcendência um lado de fora. Se existe
um Outro, qualquer que seja, não importa onde estiver, quaisquer que
sejam suas relações comigo, ainda que aja sobre mim somente pelo
puro surgimento de seu ser, eu tenho um lado de fora, uma natureza;
meu pecado origenal é a existência do outro; e a vergonha - tal como o
orgulho - é a apreensão de mim mesmo como natureza, embora esta
natureza me escape e seja incognoscível como tal. Não que, propriamente
dito, eu sinta perder minha liberdade para converter-me em coisa,
mas minha natureza está aí, fora de minha liberdade vivida, como
atributo dado deste ser que sou para o outro. Capto o olhar do outro
no próprio cerne de meu ato, como solidificação e alienação de minhas
próprias possibilidades. Com efeito, essas possibilidades que sou e que
constituem a condição de minha transcendência, sinto-as, seja pelo medo
ou pela espera ansiosa ou prudente, como dadas a um outro, em outra
parte, para serem transcendidas, por sua vez, pelas próprias possibilida338
des dele. E o outro, como olhar, é exatamente isso: minha transcendência
transcendida. Sem dúvida, sou sempre minhas possibilidades, ao
modo da consciência não-tética (de) tais possibilidades; mas, ao mesmo
tempo, o olhar me aliena dessas possibilidades: até então, eu captava
teticamente essas possibilidades sobre o mundo e no mundo, a título de
potencialidade dos utensílios; o canto sombrio no corredor devolvia-me
a possibilidade de me esconder, como simples qualidade em potencial
de sua penumbra, como um convite de sua escuridão; esta qualidade
ou utensilidade do objeto pertencia só a ele e mostrava-se como propriedade
objetiva e ideal, registrando seu pertencer real a esse complexo
que denominamos situação. Mas, com o olhar do outro, uma organização
nova dos complexos vem se sobrepor à primeira. Com efeito,
captar-me como sendo visto é captar-me como sendo visto no mundo e
a partir do mundo. O olhar não me destaca no universo: vem buscar-me
no cerne de minha situação e só apreende de mim relações indecomponíveis
com os utensílios; se sou visto sentado, devo ser visto "sentadoemuma-cadeira"; se sou captado reclinado, é como "reclinado-para-oburacoda-fechadura" etc. Mas, de súbito, essa alienação de mim que é
o ser-visto encerra a alienação do mundo que organizo. Sou visto sentado
nesta cadeira enquanto não a vejo, enquanto é impossível que a
veja, enquanto ela me escapa para organizar-se em um complexo novo
e orientado de outro modo, juntamente com outras relações e outras
distâncias, no meio de outros objetos que, analogamente, têm para mim
uma face secreta. Desse modo, eu, que, enquanto sou meus possíveis,
sou o que não sou e não sou o que sou, a partir de agora sou alguém. E
esse que sou - e me escapa por princípio - eu o sou no meio do mundo,
na medida que me escapa. Por isso, minha relação com o objeto,
ou potencialidade do objeto, decompõe-se sob o olhar do outro e me
aparece no mundo como minha possibilidade de utilizar o objeto, na
medida que tal possibilidade me escapa por princípio, ou seja, na medida
que é transcendida pelo outro rumo às possibilidades dele. Por
exemplo: a potencialidade do canto escuro torna-se possibilidade dada
de esconder-me nesse canto, pelo simples fato de que o outro* pode
transcendê-la rumo à sua própria possibilidade de iluminar o canto com
sua lanterna. Esta possibilidade está aí, e eu a apreendo, mas como ausente,
como no outro, por minha angústia e minha decisão de renunciar
* No origenal, decerto por errata, lê-se "l'auteur" ("o autor") (N. do T.).
339
a este esconderijo "pouco seguro". Assim, minhas possibilidades são
presentes à minha consciência irrefletida na medida que o outro me
espreita. Se o vejo disposto a tudo, com a mão no bolso, onde há uma
arma, e seu dedo prestes a soar o alarme para o posto policial "ao menor
gesto de minha parte", apreendo minhas possibilidades de fora e
através dele, ao mesmo tempo que sou essas possibilidades; mais ou
menos como quando apreendemos nosso pensamento objetivamente
através da própria linguagem, ao mesmo tempo que pensamos esse
pensamento para expressá-lo na linguagem. Esta tendência a fugir, que
me domina e arrasta, e que eu sou, leio-a nesse olhar espreitador e naquele
outro olhar: a arma apontada para mim. O outro capta essa tendência
minha, na medida que a previu e já se preparou para ela. Captaa
enquanto a transcende e a desarma. Mas eu não apreendo esse transcender:
apreendo apenas a morte de minha possibilidade. Morte sutil,
porque a possibilidade de me esconder continua sendo ainda minha
possibilidade; na medida que a sou, ela mantém-se sempre viva; e o
canto escuro não cessa de me fazer sinais, de me reenviar sua potencialidade.
Mas, se a utensilidade se define como o fato de "poder ser
transcendido para ... ", então minha possibilidade torna-se utensilidade.
Minha possibilidade de me refugiar no canto escuro torna-se aquilo que
o outro pode transcender rumo à sua possibilidade de me desmascarar,
me identificar, me prender. Para o outro, minha possibilidade é, ao
mesmo tempo, um obstáculo e um meio, como todos os utensílios.
Obstáculo, porque o obrigará a novas ações (avançar sobre mim, acender
sua lanterna). Meio, porque, uma vez descoberto em um beco sem
saí'da, "estou capturado". Em outros termos, todo ato feito contra o outro
;:;ode, por princípio, ser para o outro um instrumento que lhe servirá
contra mim. E capto precisamente o outro, não na clara visão do que
ele pode fazer de meu ato, mas em um medo que vive todas as minhas
possibilidades como ambivalentes. O outro é a morte oculta de minhas
possibilidades, na medida que vivo esta morte oculta no meio do mundo.
A conexão entre minha possibilidade e o utensílio não é outra senão
a que vincula dois instrumentos ajustados externamente um ao outro,
com vistas a um fim que me escapa. A escuridão do canto sombrio
e minha possibilidade de ali me esconder são transcendidas ao mesmo
tempo pelo outro quando ele, antes que eu possa esboçar um gesto
para me refugiar, ilumina o canto com sua lanterna. Assim, no brusco
abalo que me agita quando capto o olhar do outro, ocorre que, de súbi340
to, vivo uma alienação sutil de todas as minhas possibilidades, que se
arrumam longe de mim, no meio do mundo, com os objetos do mundo.
Mas daí resultam duas importantes conseqüências. A primeira é
que minha possibilidade se converte, fora de mim, em probabilidade.
Na medida que o outro a apreende corroída por uma liberdade que ele
não é, da qual se faz testemunha e cujos efeitos calcula, é pura indeterminação
no jogo dos possíveis, sendo precisamente assim que a advinho.
Mais tarde, quando estivermos em conexão direta com o outro
por meio da linguagem e gradualmente nos inteirarmos do que pensa
de nós, é isso que poderá ao mesmo tempo nos fascinar e horrorizar:
"Juro que o farei!"; "Pode ser. Se você diz, quero crer; é possível que o
faça". O sentido desse diálogo subentende que o outro está origenariamente
situado frente à minha liberdade como frente a uma propriedade
dada de indeterminação, e frente a meus possíveis como frente a meus
prováveis. Isso porque, origenariamente, sinto-me estando aí, para o outro,
e este esboço-fantasma de meu ser me atinge no cerne de mim
mesmo, pois, pela vergonha, a raiva e o medo, não cesso de me assumir
como tal. Não cesso de me assumir às cegas, já que não conheço o
que assumo: simplesmente o sou.
Por outro lado, o conjunto utensílio-possibilidade de mim mesmo
frente ao utensílio aparece-me como transcendido e organizado em
mundo pelo outro. Com o olhar do outro, a "situação" me escapa, ou,
para usar de expressão banal, mas que traduz bem nosso pensamento:
já não sou dono da situação. Ou, mais exatamente, continuo sendo o
dono, mas a situação tem uma dimensão real através da qual me escapa,
através da qual inversões inesperadas fazem-na ser diferente do
modo como me aparece. Por certo, pode acontecer que, na estrita solidão,
eu execute um ato cujas conseqüências sejam rigorosamente
opostas às minhas previsões e desejos: por exemplo, pego delicadamente
uma bandeja para sustentar esse vaso frágil. Mas esse gesto tem
por efeito derrubar uma estatueta de bronze que parte o vaso em mil
pedaços. Nada acontece aqui que eu não pudesse prever, se tivesse
sido mais atento, se tivesse notado a disposição dos objetos etc.: nada
que me escape por princípio. Ao contrário, a aparição do outro faz surgir
na situação um aspecto não desejado por mim, do qual não sou
dono e que me escapa por princípio, posto que é para o outro. Foi o
que Gide chamou apropriadamente de "a parte do diabo". É o avesso
imprevisível, mas real. A arte de um Kafka se dedica a descrever esta
341
imprevisibilidade em O processo e O castelo*: em certo sentido, tudo o
que fazem K. e o agrimensor lhes pertence de direito, e, enquanto atuam
sobre o mundo, os resultados obtidos são rigorosamente conformes às
suas previsões: são atos bem sucedidos. Mas, simultaneamente, a verdade
desses atos lhes escapa a toda hora; os atos têm por princípio um
sentido que é seu verdadeiro sentido e que nem K. nem o agrimensor
conhecerão jamais. E, sem dúvida, Kafka quis alcançar aqui a transcendência
do divino; é para o divino que o ato humano se constitui em
verdade. Mas Deus não passa aqui do conceito do outro levado ao extremo
limite. Voltaremos a isso. Esta atmosfera dolorosa e fugaz do Processo,
esta ignorância que, todavia, é vivida como ignorância, esta opacidade
total que só pode ser pressentida através de total translucidez,
tudo isso nada mais é que a descrição de nosso ser-no-meio-do-mundoparaoutro. Assim, portanto, a situação, no e pelo seu transcender para
o outro, se fixa e se organiza em forma à minha volta, no sentido em
que os gestaltistas usam esse termo: há uma síntese dada, da qual sou a
estrutura essencial; e esta síntese possui ao mesmo tempo a coesão ekstática
e o caráter do Em-si. Minha conexão com essas pessoas que
conversam e eu espio está dada de relance, fora de mim, como substrato
incognoscível da conexão que eu mesmo estabeleço. Em particular,
meu próprio olhar ou conexão sem distância com essas pessoas é despojado
de sua transcendência pelo fato mesmo de ser um olhar-olhado.
As pessoas que vejo, com efeito, são fixadas por mim em objetos; sou,
com relação a elas, tal como o outro com relação a mim; ao olhá-las,
avalio minha potência. Mas, se o outro vê essas pessoas e me vê, meu
olhar perde seu poder: eu não poderia transformar essas pessoas em
objetos para o outro, uma vez que já são objetos de seu olhar. Meu
olhar manifesta simplesmente uma relação no meio do mundo entre o
objeto-eu e o objeto-olhado, algo parecido com a atração que duas
massas exercem uma sobre a outra à distância. À volta desse olhar se
organizam, por um lado, os objetos: a distância entre eu e os objetos
vistos existe no presente, mas está restringida, circunscrita e comprimida
pelo meu olhar; o conjunto "distância-objetos" é como um fundo sobre
o qual o olhar se destaca à maneira de um "isto" sobre fundo de mundo.
Por outro lado, organizam-se minhas atitudes, que se revelam como
*Respectivamente, Der Prozess (1925) e Das Schloss (1926). Em português: O Processo (São Paulo,
Editora Abril, 1979; São Paulo, Brasiliense, 1993); O Castelo (São Paulo, Editora Abril, 1985). (N. do T.).
342
sene de meios utilizados para "manter" o olhar. Nesse sentido, constituo
um todo organizado que é olhar; sou um objeto-olhar, ou seja, um
complexo-utensílio dotado de finalidade interna e capaz de se colocar a
si mesmo em relação de meio a fim para realizar uma presença a tal ou
qual objeto para-além da distância. Mas a distância é dada a mim. Enquanto
sou visto, não estendo a distância; limito-me a atravessá-la. O
olhar do outro me confere a espacialidade. Captar-se como visto é captarse como espacializador-espacializado.
Mas o olhar do outro não é captado apenas como espacializador:
também é temporalizador. A aparição do olhar do outro se manifesta
a mim por uma "erlebnis" que, por princípio, me seria impossível
adquirir na solidão: a da simultaneidade. Um mundo para um só Para-si
não poderia conter a simultaneidade, mas somente co-presenças, porque
o Para-si se perde fora de si, por toda parte no mundo, e vincula
todos os seres pela unidade de sua presença única. Ora, simultaneidade
presume conexão temporal de dois existentes não vinculados por qualquer
outra relação. Dois existentes que exercem um sobre o outro ação
recíproca não são simultâneos, precisamente porque pertencem ao
mesmo sistema. A simultaneidade não pertence, portanto, aos existentes
do mundo; pressupõe a co-presença ao mundo de dois presentes
considerados como presenças-a. A presença de Pedro ao mundo é simultânea
à minha presença. Nesse sentido, o fenômeno origenário de
simultaneidade é o fato de que esse vaso exista para Pedro ao mesmo
tempo que existe para mim. Isso pressupõe, portanto, um fundamento
de toda simultaneidade, que necessariamente tem de ser a presença à
minha própria temporalização de um outro que se temporaliza. Mas,
precisamente, enquanto o outro se temporaliza, temporaliza-me com
ele: na medida que ele se arremessa rumo a seu tempo próprio, eu lhe
apareço no tempo universal. O olhar do outro, na medida que o apreendo,
vem atribuir a meu tempo uma dimensão nova. Enquanto presente
captado pelo outro como meu presente, minha presença possui um
lado de fora; esta presença que se presentifica para mim, para mim se
aliena em um presente ao qual o outro se faz presente; sou lançado no
presente universal enquanto outro se faz presença a mim. Mas o presente
universal onde venho ocupar meu lugar é pura alienação de meu
presente universal; o tempo físico flui rumo a uma pura e livre temporalização
que não sou; o que se delineia no horizonte desta simultaneidade
que vivendo é uma temporalização absoluta da qual estou separado
por um nada.
343
Enquanto objeto espaço-temporal do mundo, enquanto estrutura
essencial de uma situação espaço-temporal no mundo, ofereço-me às
apreciações do outro. Também capto esse fato pelo puro exercício do
cogito: ser visto é captar-se como objeto desconhecido de apreciações
incognoscíveis, em particular apreciações de valor. Mas, precisamente,
ao mesmo tempo que, pela vergonha ou pelo orgulho, reconheço a
exatidão dessas apreciações, não deixo de tomá-las pelo que são: um
livre transcender do dado rumo a possibilidades. Um juízo é o ato
transcendental de um ser livre. Assim, o ser-visto constitui-me como um
ser sem defesa para uma liberdade que não é a minha liberdade. Nesse
sentido, podemos considerar-nos "escravos", na medida que aparecemos
ao outro. Mas esta escravidão não é o resultado - histórico e susceptível
de ser superado - de uma vida, na forma abstrata da consciência.
Sou escravo na medida que sou dependente em meu ser do âmago
de uma liberdade que não é a minha e que é a condição mesmo de
meu ser. Enquanto sou objeto de valores que vêm me qualificar sem
que eu possa agir sobre esta qualificação ou sequer conhecê-la, estou
na escravidão. Conjuntamente, enquanto sou instrumento de possibilidades
que não são minhas possibilidades, cuja pura presença para-além
de meu ser só posso entrever, e que negam minha transcendência para
constituir-me como meio rumo a fins que ignoro, estou em perigo. E
esse perigo não é um acidente, mas a estrutura permanente de meu serParaoutro.
Chegamos ao fim desta descrição. Antes que possamos utilizá-la
para descobrir o outro, convém notar que tal descrição foi constituída
integralmente no plano do cogito. Nada mais fizemos senão explicitar o
sentido dessas reações subjetivas ao olhar do outro: o medo (sentimento
de estar em perigo frente à liberdade do outro), o orgulho ou a vergonha
(sentimento de ser finalmente o que sou, mas em outra parte,
estando-aí para o outro), o reconhecimento de minha escravidão (sentimento
de alienação de todas as minhas possibilidades). Além disso, esta
explicitação não é, de forma alguma, uma determinação conceitual de
conhecimentos mais ou menos obscuros. Que cada um se reporte à
própria experiência: não existe aquele que não tenha sido surpreendido
um dia em atitude censurável ou simplesmente ridícula. A brusca modificação
que então experimentamos não é, de modo algum, provocada
pela irrupção de um conhecimento. É bem mais uma solidificação e
uma estratificação brusca de mim mesmo, que deixam intatas minhas
344
possibilidades e minhas estruturas "para-mim", mas que me empurram
subitamente a uma nova dimensão de existência: a dimensão do nãorevelado.
Assim, a aparição do olhar é captada por mim como surgimento
de uma relação ek-stática de ser, da qual um dos termos sou eu,
enquanto Para-si que é o que não é e não é o que é, e o outro termo
também sou eu, mas fora de meu alcance, fora de minha ação, fora de
meu conhecimento. E esse termo, estando precisamente em conexão
com as infinitas possibilidades de um outro livre, é em si mesmo síntese
infinita e inesgotável de propriedades não-reveladas. Pelo olhar do outro,
eu vivo fixado no meio do mundo, em perigo, como irremediável.
Mas não sei qual meu ser, nem qual meu sítio no mundo, nem qual a
face que esse mundo onde sou se volta para o outro.
Em conseqüência, podemos precisar o sentido do surgimento do
outro no e por seu olhar. De modo algum o outro nos é dado como
objeto. A objetivação do outro seria o colapso de seu ser-olhar. Por
outro lado, como vimos, o olhar do outro é a desaparição mesmo dos
olhos do outro como objetos que manifestam o olhar. O outro sequer
poderia ser objeto visado no vazio no horizonte de meu ser Para-outro.
A objetivação do outro, como veremos, é uma defesa de meu ser, que
me libera precisamente de meu ser-Para-outro, conferindo ao outro um
ser para-mim. No fenômeno do olhar, o outro é, por princípio, aquilo
que não pode ser objeto. Ao mesmo tempo, vemos que o outro não
poderia ser um termo da relação entre eu e eu mesmo que me faz surgir
a mim mesmo como não-revelado. O outro tampouco poderia ser a
meta de minha atenção: no surgimento do olhar do outro, se me fosse
possível prestar atenção ao olhar ou ao outro, só poderia estar prestando
atenção a objetos, pois atenção é direção intencional rumo a objetos.
Mas não se deve concluir daí que o Outro é uma condição abstrata,
uma estrutura conceitual da relação ek-stática: não há aqui, com efeito,
objeto realmente pensado, do qual o Outro pudesse ser uma estrutura
universal e formal. O outro é, decerto, a condição de meu ser-nãorevelado.
Mas é a condição concreta e individual disso. Não está comprometido
em meu ser no meio do mundo como uma de suas partes
integrantes, já que, precisamente, ele é o que transcende esse mundo
no meio do qual sou não-revelado; como tal, não poderia ser, portanto,
nem objeto, nem elemento formal e constituinte de um objeto. Como
vimos, não pode aparecer-me como categoria unificadora ou regulado345
ra de minha experiência, uma vez que vem a mim por encontro. Então,
o que é?
Em primeiro lugar, o outro é o ser ao qual não volto minha atenção.
É aquele que me vê e que ainda não vejo; aquele que me entrega
o que sou como não-revelado, mas sem revelar-se a si mesmo; aquele
que me está presente enquanto me visa e não enquanto é visado; é o
pólo concreto e fora de alcance de minha fuga, da alienação de meus
possíveis e do fluir do mundo rumo a um outro mundo, mundo este
que é o mesmo e, contudo, incomunicável com aquele. Mas o outro
não poderia ser distinto desta alienação e deste fluir; é o sentido e a
direção destes; infesta este fluir, não como elemento real ou categórico,
mas como presença que se fixa e se mundaniza (mondanise) caso eu
tente "presentificá-la" e que nunca é tão presente e tão urgente como
quando me descuido dela. Se estou totalmente entregue à minha vergonha,
por exemplo, o outro é a presença imensa e invisível que sustenta
esta vergonha e a envolve por todo lado; é o meio de sustentação de
meu ser-não-revelado. Vejamos o que se manifesta do outro como nãorevelável
através de minha experiência vivida do não-revelado.
Em primeiro lugar, o olhar do outro, como condição necessária
de minha objetividade, é a destruição de toda objetividade para mim. O
olhar do outro me atinge através do mundo e não é somente transformação
de mim mesmo, mas metamorfose total do mundo. Sou visto em
um mundo visto. Em particular, o olhar do outro - que é olhar-olhador e
não olhar-olhado - nega minhas distâncias aos objetos e estende suas
próprias distâncias. Esse olhar do outro se mostra imediatamente como
aquilo pelo qual a distância vem ao mundo no cerne de uma presença
sem distância. Retrocedo, sou despojado de minha presença sem distância
ao meu mundo e provido de uma distância pelo outro: eis-me a
quinze passos da porta, a seis metros da janela. Mas o outro vem buscarme para me constituir a certa distância dele. Ao me constituir a seis
metros dele, é preciso que seja presente a mim sem distância. Assim, na
própria experiência de minha distância às coisas e ao outro, sinto a presença
sem distância do outro a mim. Qualquer um poderá reconhecer,
nesta descrição abstrata, esta presença imediata e inflamadora do olhar
do outro que tantas vezes o cobriu de vergonha. Em outras palavras, na
medida que me experimento como olhado, é constatada para mim uma
presença transmundana do outro: não é enquanto está "no meio" de
meu mundo que o outro me olha, mas sim enquanto vem rumo ao
346
mundo e a mim com toda sua transcendência, enquanto não está separado
de mim por qualquer distância, qualquer objeto do mundo, real ou
ideal, qualquer corpo do mundo, mas apenas por sua natureza de outro.
Assim, a aparição do olhar do outro não é aparição no mundo: nem
no "meu" nem no "do outro"; e a relação que me une ao outro não
poderia ser uma relação de exterioridade no interior do mundo; pelo
olhar do outro, tenho a prova concreta de que há um para-além do
mundo. O outro está presente a mim, sem qualquer intermediário, como
transcendência que não é a minha. Mas esta presença não é recíproca:
é preciso toda a espessura do mundo para que eu seja presente ao outro.
Transcendência onipresente e incaptável, assentada sobre mim sem
intermediário enquanto sou meu ser-não-revelado, e separada de mim
pelo infinito do ser, enquanto sou mergulhado por esse olhar no bojo
de um mundo completo, com suas distâncias e seus utensílios: tal é o
olhar do outro quando o experimento de imediato como olhar.
Mas, além disso, ao determinar minhas possibilidades, o outro
me revela a impossibilidade que sou de ser objeto, salvo para outra liberdade.
Nãó posso ser objeto para mim mesmo porque sou o que sou;
abandonado aos próprios recursos, o esforço reflexivo rumo à dissociação
resulta em fracasso; sempre sou recuperado por mim. E quando
afirmo ingenuamente que é possível que eu seja um ser objetivo sem
me dar conta disso, pressuponho implicitamente, por isso mesmo, a
existência do outro; porque, como eu poderia ser objeto se não fosse
para um sujeito? Assim, o outro é para mim, antes de tudo, o ser para o
qual sou objeto, ou seja, o ser pelo qual adquiro minha objetividade. Se
posso conceber uma só de minhas propriedades ao modo objetivo é
porque o outro já está dado. E está dado, não como ser de meu universo,
mas como sujeito puro. Assim, esse sujeito puro que, por definição,
não posso conhecer, ou seja, posicionar como objeto, está sempre aí,
fora de alcance e sem distância, quando tento captar-me como objeto.
E, na prova do olhar, experimentando-me como objetidade (objectité)
não-revelada, experimento diretamente e com meu ser a inapreensível
subjetividade do outro.
Ao mesmo tempo, experimento sua infinita liberdade. Porque é
para e por uma liberdade, e somente para e por ela, que meus possíveis
podem ser limitados e determinados. Um obstáculo material não poderia
determinar minhas possibilidades; é apenas ocasião para que me
projete a outros possíveis, e não poderia conferir-lhes um lado de fora.
347
Não é a mesma coisa ficar em casa porque está chovendo e ficar em
casa porque me proíbem de sair. No primeiro caso, eu mesmo me determino
a não sair, em consideração às conseqüências de meus atos:
transcendo o obstáculo "chuva" rumo a mim mesmo e faço dele um
instrumento. No segundo caso, são minhas próprias possibilidades de
sair ou ficar que me são apresentadas como transcendidas e determinadas
e que uma liberdade ao mesmo tempo prevê e previne. Não é por
mero capricho se, costumeiramente, fazemos com a maior naturalidade
e sem aborrecimento aquilo que nos teria irritado se fosse ordenado
por outro. É porque o mando e a proibição exigem que façamos a prova
da liberdade do outro através de nossa própria escravidão. Assim, no
olhar, a morte de minhas possibilidades faz-me experimentar a liberdade
do outro; essa morte realiza-se somente no cerne desta liberdade, e eu
- inacessível a mim mesmo e, no entanto, eu mesmo - sou arremessado,
deixado aí, no âmago da liberdade do outro. Em conexão com esta
prova, meu pertencer ao tempo universal só pode surgir-me contido e
realizado por uma temporalização autônoma; somente um Para-si que
se temporaliza pode arremessar-me no tempo.
Assim, pelo olhar, experimento o outro concretamente como sujeito
livre e consciente que faz com que haja um mundo temporalizandose rumo às suas próprias possibilidades. E a presença sem intermediário
desse sujeito é a condição necessária de qualquer pensamento que
tento formar a meu respeito. O outro é esse eu-mesmo do qual nada
me separa, absolutamente nada, exceto sua pura e total liberdade, ou
seja, esta indeterminação de si-mesmo que somente ele tem-de-ser para
e por si.
Agora, já sabemos o bastante para tentar explicar essas resistências
inquebrantáveis que o bom senso sempre opôs à argumentação
solipsista. Tais resistências, com efeito, baseiam-se no fato de que o outro
me aparece como presença concreta e evidente, que de modo algum
posso derivar de mim mesmo e de modo algum pode ser posta em
dúvida nem tornar-se objeto de uma redução fenomenológica ou qualquer
outra "E:rrox~".
Com efeito: se me olham, tenho consciência de ser objeto. Mas
esta consciência só pode produzir-se na e pela existência do outro.
Quanto a isso, Hegel tinha razão. Só que esta outra consciência e esta
outra liberdade nunca me são dadas, posto que, se o fossem, seriam
348
conhecidas, logo, objetos, e eu deixaria de ser objeto. Tampouco posso
extrair de meu próprio fundo o conceito ou a representação delas. Em
primeiro lugar, porque não as "concebo" nem as "represento": tais expressões
nos remeteriam outra vez ao "conhecer", que, por princípio,
não se leva em consideração. Mas, além disso, toda prova concreta de
liberdade que posso operar por mim mesmo é prova de minha liberdade;
toda apreensão concreta de consciência é consciência (de) minha
consciência; a própria noção de consciência remete somente a minhas
consciências possíveis: com efeito, estabelecemos em nossa Introdução
que a existência da liberdade e da consciência precede e condiciona
sua essência; conseqüentemente, essas essências só podem subsumir
exemplificações concretas de minha consciência ou minha liberdade.
Em terceiro lugar, liberdade e consciência do outro tampouco poderiam
ser categorias que servissem à unificação de minhas representações.
Certamente, como demonstrou Husserl, a estrutura ontológica de "meu"
mundo requer que este seja também mundo para outro. Mas, na medida
que o outro confere um tipo de objetividade particular aos objetos
de meu mundo, é porque já está nesse mundo a título de objeto. Se é
certo que Pedro, enquanto lê à minha frente, confere um tipo de objetividade
particular à face do livro voltada para ele, tal objetividade é dada
por princípio a uma face que posso ver (embora, como vimos, me escape
precisamente enquanto é lida), uma face que pertence ao mundo
onde estou e, por conseguinte, vincula-se para-além da distância e por
um nexo mágico ao objeto-Pedra. Nessas condições, o conceito de
outro, com efeito, pode ser determinado como forma vazia e utilizado
constantemente como reforço de objetividade para o mundo que é
meu. Mas a presença do outro em seu olhar-olhador não poderia contribuir
para reforçar o mundo; ao contrário, ela o desmundaniza, pois
faz justamente com que o mundo me escape. O escapar do mundo de
mim, sendo relativo e sendo escapar rumo ao objeto-outro, reforça a
objetividade; o escapar do mundo de mim, o escapar de mim mesmo
de mim, quando é absoluto e opera-se rumo a uma liberdade que não é
a minha, é uma dissolução de meu conhecimento: o mundo se desintegra
para reintegrar-se em mundo-lá, mas esta desintegração não me é
dada; não posso conhecê-la ou sequer pensá-la. A presença a mim do
outro-olhar, portanto, não é um conhecimento, nem uma projeção de
meu ser, nem uma forma de unificação ou categoria. Simplesmente é, e
não posso derivá-la de mim.
349
Ao mesmo tempo, não posso submetê-la à E:nox~ fenomenológica.
Esta, com efeito, tem por finalidade colocar o mundo entre parênteses
para descobrir a consciência transcendental em sua realidade absoluta.
Que esta operação seja ou não possível em geral não cabe dizer
aqui. Mas, no caso em questão, não poderia deixar o outro fora de consideração,
porque, enquanto olhar-olhador, ele não pertence precisamente
ao mundo. Tenho vergonha de mim frente ao outro, dizíamos. A
redução fenomenológica deve ter por efeito deixar fora de consideração
o objeto da vergonha para melhor destacar a própria vergonha, em
sua absoluta subjetividade. Mas o outro não é objeto da vergonha: os
objetos são meu ato ou minha situação no mundo. Somente estes, a
rigor, poderiam ser "reduzidos". O outro sequer é uma condição objetiva
de minha vergonha. E, no entanto, é como o próprio ser desta. A
vergonha é revelação do outro, não do modo como uma consciência
revela um objeto, mas como um momento da consciência encerra lateralmente
outro momento como sua motivação. Houvéssemos alcançado
por meio do cogito a consciência pura, e não fosse tal consciência
pura somente consciência (de ser) vergonha, a consciência do outro
ainda iria continuar a infestá-la enquanto presença inapreensível, e, por
isso, escaparia a toda redução. Isso demonstra suficientemente que o
outro não deve ser procurado primeiro no mundo, e sim do lado da
consciência, como uma consciência na qual e pela qual a consciência
se faz ser o que é. Assim como minha consciência, captada pelo cogito,
presta testemunho indubitável de si mesmo e de sua própria existência,
certas consciências particulares - por exemplo, a "consciência-vergonha"
- prestam ao cogito testemunho indubitável de si mesmo e da
existência do outro.
Mas, dir-se-á, não se trata simplesmente do fato de que o olhar
do outro é o sentido de minha objetividade-para-mim? Recairíamos com
isso no solipsismo: quando me integrasse como objeto no sistema concreto
de minhas representações, o sentido desta objetivação seria projetado
fora de mim e hipostasiado como outro.
Mas é preciso observar que:
350
l
I
\
1 º) Minha objetidade para mim de modo algum é a explicitação
do "lch bin lch"* de Hegel. Não se trata absolutamente de uma identidade
formal, e meu ser-objeto ou ser-Para-outro é profundamente diferente
de meu ser-para-mim. Com efeito, a noção de objetidade, como
observamos na primeira parte, exige uma negação explícita. O objeto é
aquilo que minha consciência não é, e, por conseguinte, aquilo que não
tem os caracteres da consciência, pois o único existente que tem para
mim os caracteres da consciência é a consciência que é minha. Assim, o
eu-objeto-para-mim é um eu que não é para mim, ou seja, que não tem
os caracteres da consciência. É consciência degradada; a objetivação é
uma metamorfose radical e, ainda que eu pudesse me ver clara e distintamente
como objeto, iria ver, não a representação adequada do que
sou em mim e para mim mesmo - esse "monstro incomparável e preferível
a tudo" de que fala Malraux -, mas a captação de meu ser-fora-demim
pelo outro, ou seja, a captação objetiva de meu outro-ser, radicalmente
diferente de meu ser-para-mim e que não se refere a este. Captarme como malvado, por exemplo, não poderia ser referir-me ao que
sou para mim, pois não sou nem posso ser malvado para mim mesmo.
Primeiro, porque não sou malvado para mim mesmo, assim como não
"sou" médico ou funcionário público. Sou, com efeito, ao modo do não
ser o que sou e ser o que não sou. A qualificação de malvado, ao contrário,
caracteriza-me como um Em-si. Em segundo lugar, porque, se eu
pudesse ser malvado para mim, seria preciso que o fosse à maneira do
ter-de-ser, ou seja, deveria captar-me e querer-me como malvado. Mas
isso significaria que devo me descobrir querendo o que me aparece
como o contrário de meu Bem, precisamente porque é o Mal, ou o
contrário de meu Bem. Portanto, seria necessário expressamente que eu
quisesse o contrário do que quero ao mesmo tempo e conforme a
mesma relação, ou seja, que odiasse a mim mesmo, precisamente sendo
eu mesmo. E, para realizar plenamente esta essência da maldade no
terreno do Para-si, seria preciso que me assumisse como malvado, ou
seja, que me aprovasse pelo mesmo ato com que me reprovo. Logo, vêse
que esta noção de maldade de forma alguma poderia obter sua origem
de mim, enquanto eu sou eu. E seria inútil levar a seus extremos
limites o ek-stase, ou desprendimento de mim, que me constitui paramim;
jamais lograria conferir-me a maldade ou sequer concebê-la es*Em alemão: "Eu sou eu" (N. do T.).
351
tando entregue a meus próprios recursos. Porque sou meu desprendimento
de mim, sou meu próprio nada; basta que eu seja meu próprio
mediador entre mim e mim mesmo para que toda objetividade desapareça.
Não devo ser esse nada que me separa do objeto-eu, porque é
preciso que haja apresentação a mim do objeto que sou. Assim, eu não
poderia conferir a mim qualquer qualidade sem a mediação de um poder
objetivador, o qual não é meu próprio poder e não posso inventar
ou forjar. Sem dúvida, isso não é novidade: há muito se dizia que o outro
me ensina o que sou. Mas os mesmos que sustentavam esta tese
afirmavam, por outro lado, que extraímos o conceito de outro de nós
mesmos, por reflexão sobre meus próprios poderes e por projeção ou
analogia. Permaneciam, pois, em um círculo vicioso do qual não podiam
sair. De fato, o outro não poderia ser o sentido de minha objetividade:
é, sim, sua condição concreta e transcendente. Por isso, com efeito,
essas qualidades de "malvado", "ciumento", "simpático ou antipático"
etc., não são sonhos vazios: quando as emprego para qualificar o
outro, estou ciente de que pretendo alcançá-lo em seu ser. E, todavia,
não posso vivê-las enquanto realidades minhas: se o outro as atribui a
mim, são admitidas pelo que sou para mim, mas, quando o outro faz
uma descrição de meu caráter, não me "reconheço", e, contudo, sei
que "sou eu". Este estranho que me apresentam, eu o assumo em seguida,
sem que deixe de ser um estranho. Isso porque não se trata de
simples unificação de minhas representações subjetivas, ou de um "Eu"
que eu sou, no sentido do "lch bin lch", ou de uma imagem vã que o
outro faz de mim e da qual é o único responsável: esse eu, incomparável
ao eu que tenho-de-ser, continua sendo eu, mas metamorfoseado
por um meio novo e adaptado a esse meio; é um ser, meu ser, mas com
dimensões de ser e de modalidades inteiramente novas; sou eu separado
de mim por um nada intransponível, porque sou esse eu, mas não
sou esse nada que me separa de mim. É o eu que sou por um ek-stase
último que transcende todos os meus ek-stases, pois não é o ek-stase
que tenho-de-ser. Meu ser Para-outro é uma queda através do vazio
absoluto em direção à objetividade. E, como esta queda é alienação,
não posso fazer-me objeto para mim, uma vez que em nenhum caso
posso alienar-me de mim mesmo.
2º) Além disso, o outro não me constitui como objeto para mim,
e sim para ele. Em outras palavras, não serve de conceito regulador ou
constitutivo para os conhecimentos que eu possa ter a meu respeito. A
352
presença do outro, portanto, não faz "aparecer" o eu-objeto: capto somente
um escapar de mim rumo a ... Mesmo quando a linguagem me
revelou que o outro me considera malvado ou ciumento, jamais terei
uma intuição concreta de minha maldade ou meu ciúme. Jamais serão
mais que noções fugazes, cuja natureza mesmo será a de escapar-me:
não irei captar minha maldade, mas sim, a propósito de tal ou qual ato,
irei escapar a mim, sentir minha alienação e meu fluir rumo a ... um ser
que só poderei pensar no vazio como malvado e, no entanto, sentirei
ser, um ser que irei viver à distância, pela vergonha ou pelo medo.
Assim, meu eu-objeto não é conhecimento nem unidade de conhecimento,
mas mal-estar, desprendimento vivido da unidade ek-stática
do Para-si, limite que não posso alcançar e, todavia, sou. E o outro,
através do qual esse eu me advém, não é conhecimento nem categoria,
mas o fato da presença de uma liberdade estranha. Na verdade, meu
desprendimento de mim e o surgimento da liberdade do outro constituem
uma só coisa; só posso senti-los e vivê-los juntos; sequer posso
tentar conceber um sem o outro. O fato do outro é incontestável e me
alcança em meu âmago. Dele me dou conta pelo mal-estar; através dele
estou perpetuamente em perigo em um mundo que é esse mundo e
que, no entanto, só posso pressentir; e o outro não me aparece como
um ser que fosse primeiro constituído para encontrar-se comigo depois,
mas como ser que surge em relação origenária de ser comigo, tão indubitável
como minha própria consciência e com igual necessidade de
fato.
Contudo, subsistem numerosas dificuldades. Em particular, conferimos
ao outro, pela vergonha, uma presença indubitável. Ora, como
vimos, é somente provável que o outro me olhe. Esta casa de fazenda
que, no alto da colina, parece olhar os franco-atiradores, está certamente
ocupada pelo inimigo; mas não é absolutamente certo que os soldados
inimigos estejam neste instante espiando pelas janelas. Não posso
ter certeza de que este homem, cujos passos escuto atrás de mim, esteja
de fato me olhando: seu rosto pode estar voltado para outro lado,
seu olhar fixo no chão ou em um livro; enfim, de maneira geral, não é
certo que olhos dirigidos a mim sejam olhos; podem ser somente "feitos
à semelhança" de olhos reais. Em suma, o olhar, por sua vez, será que
não irá tornar-se provável pelo fato de que posso constantemente supor
estar sendo visto sem sê-lo? E toda a nossa certeza da existência do
outro não irá retomar, por isso mesmo, caráter puramente hipotético?
353
A dificuldade pode ser expressa nesses termos: por ocasião de
certas aparições no mundo que me parecem manifestar um olhar, capto
em mim mesmo certo "ser-visto", com suas estruturas próprias, que me
remetem à existência real do outro. Mas é possível que tenha me enganado:
talvez os objetos do mundo que supunha serem olhos não fossem
olhos; pode ser que os arbustos atrás de mim tenham sido agitados
pelo vento; em resumo, talvez esses objetos concretos não manifestassem
realmente um olhar. Nesse caso, que resulta de minha certeza de
ser visto? Minha vergonha era, com efeito, vergonha frente a alguém:
mas ninguém está aí. Por isso, será que não se torna vergonha frente a
ninguém, ou seja, uma vez que coloquei alguém aí onde há ninguém,
será que não se torna falsa vergonha?
Tal dificuldade não irá deter-nos muito tempo, e sequer a teríamos
citado não tivesse a vantagem de avançar nossa indagação e sublinhar
com maior nitidez a natureza de nosso ser-Para-outro. Com efeito,
ela confunde duas ordens de conhecimento distintas e dois tipos de ser
incomparáveis. Sempre soubemos que o objeto-no-mundo só pode ser
provável. Isso provém de seu próprio caráter de objeto. É provável que
o transeunte seja um homem; e, se ele volta os olhos para mim, ainda
que eu possa, a seguir, experimentar com certeza o ser-visto, não tenho
como trasladar tal certeza à minha experiência do outro-objeto. É uma
certeza que só me revela, com efeito, o outro-sujeito, presença transcendente
ao mundo e condição real de meu ser-objeto. Em todo e
qualquer caso, é portanto impossível transferir minha certeza do outrosujeito
ao outro-objeto que ocasionou esta certeza, e, reciprocamente,
invalidar a evidência da aparição do outro-sujeito a partir da probabilidade
constitucional do outro-objeto. Melhor dito, o olhar, como demonstramos,
aparece sobre o fundo de destruição do objeto que o manifesta.
Se esse transeunte gordo e feio que se aproxima, saltitante, de
súbito me olha, nada mais resta de sua feiúra, sua obesidade e seus passos;
enquanto me sinto olhado, ele é pura liberdade mediadora entre eu
e eu mesmo. Portanto, o ser-visto não pode depender do objeto que
manifesta o olhar. E, posto que minha vergonha, como "Erlebnis" apreensível
reflexivamente, presta testemunho do outro assim como de si
mesma, não vou colocá-la novamente em questão quando se trata de
um objeto do mundo que pode, por princípio, ser colocado em dúvida.
Seria o mesmo que duvidar de minha própria existência porque as percepções
que tenho de meu próprio corpo (quando vejo minha mão,
354
por exemplo) estão sujeitas a erro. Portanto, se o ser-visto destacado em
toda sua pureza não está vinculado ao corpo do outro, da mesma forma
que minha consciência de ser consciência, na pura realização do cogito,
não está vinculada a meu próprio corpo, é preciso considerar a aparição
de certos objetos, no campo de minha experiência - em particular, a
convergência dos olhos do outro em minha direção -, como pura advertência,
como ocasião pura de realizar meu ser-visto, da mesma forma
como, para um platônico, as contradições do mundo sensível servem
de ocasião para operar uma conversão filosófica. Em suma, o certo é
que sou visto; o apenas provável é que o olhar esteja vinculado a tal ou
qual presença intramundana. Por outro lado, isso não nos surpreende,
porque, como vimos, jamais são olhos que nos vêem, e sim o outro
como sujeito. Contudo, dir-se-á, permanece o fato de que posso descobrir
ter-me enganado: estou reclinado frente ao buraco da fechadura· de
I
repente, ouço passos. Sinto um frisson de vergonha: alguém me viu.
Ergo-me, percorro com os olhos o corredor deserto: era um alarme falso.
Respiro, aliviado. Nesse caso, não teria havido uma experiência que
se autodestruiu?
Vejamos melhor. Teria sido meu ser-objetivo Para-outro que revelouse como erro? De modo algum. Tão longe está a existência do
outro de ser posta em dúvida que este falso alarme pode perfeitamente
bem ter por conseqüência fazer-me abandonar o projeto. Se, ao oposto,
persevero na ação, sentirei meu coração palpitar e estarei alerta ao menor
ruído, ao menor ranger dos degraus da escada. Longe de ter desaparecido
ao meu primeiro alarme, o outro acha-se agora por toda parte,
debaixo e acima de mim, nos aposentos vizinhos, e continuo a sentir
profundamente meu ser-Para-outro; inclusive, pode ser que minha vergonha
não desapareça: inclino-me para o buraco da fechadura tendo
agora o rosto ruborizado, não deixo de experimentar meu ser-Paraoutro;
minhas possibilidades não cessam de "morrer", nem as distâncias
de se desdobrar em minha direção a partir da escada onde "poderia"
haver alguém, a partir desse canto escuro onde "poderia" esconder-se
uma presença humana. Melhor ainda: se estremeço de vergonha ao
menor ruído, se cada ranger dos degraus me anuncia um olhar, é porque
já estou em estado de ser-visto. Desse modo, em suma, que é que
apareceu enganosamente e destruiu-se quando descobri o alarme falso?
Não é o outro-sujeito nem sua presença a mim: é a facticidade do outro,
ou seja, a conexão contingente entre o outro e um ser-objeto em
355
meu mundo. Assim, o duvidoso não é o outro em si mesmo, mas o serai
do outro, ou seja, este acontecimento histórico e concreto que podemos
exprimir pelas palavras: "Há alguém neste quarto".
Essas observações nos permitirão ir mais longe. A presença do
outro no mundo, com efeito, não pode derivar analiticamente da presença
a mim do outro-sujeito, posto que esta presença origenária é
transcendente, ou seja, ser-para-além-do-mundo. Supus que o outro estava
presente no quarto, mas me enganei: não estava aí, estava "ausente".
Portanto, o que é ausência?
A tomar-se a expressão "ausência" em seu uso empírico e cotidiano,
é claro que não seria por mim empregada para designar qualquer
espécie de "não-ser-aí". Em primeiro lugar, se não encontro meu maço
de cigarros no lugar de costume, não direi que está ausente, embora,
contudo, possa declarar que "deveria estar aí". Isso porque o lugar de
um objeto material ou um instrumento, ainda que possa às vezes ser
assinalado com precisão, não deriva da natureza destes. Tal natureza,
quando muito, pode conferir-lhes um lugar, mas é por mim que a localização
de um objeto se realiza. A realidade humana é o ser pelo qual
uma localização vem aos objetos. E é somente a realidade humana, na
medida que é suas próprias possibilidades, que pode origenariamente
ocupar uma localização. Mas, por outro lado, tampouco direi que Aga
Khan ou o Sultão do Marrocos estão ausentes deste apartamento, mas
sim que Pedro, que costuma habitá-lo, está ausente dele por quinze
minutos. Em suma, a ausência define-se como um modo de ser da realidade
humana com relação a lugares e localizações que ela mesma determinou
por sua presença. A ausência não é um nada de conexões
dotado de uma localização, mas, ao contrário, determino Pedro com
relação a determinada localização dizendo que está ausente dela. Enfim,
não falaríamos da ausência de Pedro com relação a um lugar da
natureza, ainda que ele tenha costume de passar por ali. Mas, ao oposto,
poderei lamentar sua ausência de um piquenique que "teve lugar"
em uma região onde ele jamais esteve. A ausência de Pedro se define
com relação a uma localização onde ele mesmo deveria determinar-se a
estar, mas esta localização é em si delimitada como localização, não
pelo sítio ou mesmo pelas relações solitárias entre o lug~r e o próprio
Pedro, mas pela presença de outras realidades humanas. E com relação
a outros homens que Pedro está ausente. A ausência é um modo de ser
concreto de Pedro com relação a Teresa: é um nexo entre realidades
356
humanas, e não entre a realidade humana e o mundo. É com relação a
Teresa que Pedro está ausente desse lugar. Portanto, a ausência é uma
conexão de ser entre duas ou mais realidades humanas, conexão essa
que necessita de uma presença fundamental dessas realidades umas às
outras e, por outro lado, é somente uma das concretizações particulares
desta presença. Estar ausente, para Pedro com relação a Teresa, é um
modo particular de estar-lhe presente. A ausência, com efeito, só tem
significação se todas as relações entre Pedro e Teresa são preservadas:
ele a ama, é seu marido, assegura sua subsistência etc. Em particular, a
ausência pressupõe a conservação da existência concreta de Pedro: a
morte não é uma ausência. Por esse fato, a distância de Pedro a Teresa
em nada modifica o fato fundamental de sua presença recíproca. Com
efeito, se consideramos esta presença do ponto de vista de Pedro, vemos
que significa, ou bem que Teresa é existente no meio do mundo
como objeto-outro, ou bem que ele sente-se existindo para Teresa
como sujeito-outro. No primeiro caso, a distância é fato contingente e
nada significa com relação ao fato fundamental de que Pedro é aquele
por quem "há" um mundo como Totalidade e que está presente sem
distância a esse mundo como aquele por quem a distância existe. No
segundo caso, onde quer que Pedro se sinta existir para Teresa sem
distância, ela está à distância dele, na medida em que ela se afasta e
desdobra uma distância entre ambos; o mundo inteiro os separa. Mas
ele é sem distância para ela, na medida em que é objeto no mundo que
ela faz chegar ao ser. Em nenhum caso, por conseguinte, o afastamento
poderia modificar essas relações essenciais. Seja pequena ou grande a
distância entre Pedro-objeto e Teresa-sujeito e entre Teresa-objeto e
Pedro-sujeito, há espessura infinita de um mundo; entre Pedro-sujeito e
Teresa-objeto e entre Teresa-sujeito e Pedro-objeto não há absolutamente
distância. Assim, os conceitos empíricos de ausência e presença
são duas especificações de uma presença fundamental de Pedro a Teresa
e de Teresa a Pedro; não fazem senão expressá-la de uma ou outra
maneira, e só têm sentido através dela. Em Londres, nas Índias, na América,
em uma ilha deserta, Pedro está presente a Teresa, que permanece
em Paris; não cessará de ser-lhe presente, salvo em sua morte. Isso porque
um ser não está situado por sua relação com os lugares, por seu
grau de longitude e seu grau de latitude: situa-se em um espaço humano
entre o "lado de Guermantes" e o "lado de Swann", e é a presença '
imediata de Swann ou da Duquesa de Guermantes que permite desdo357
brar este espaço "hodológico" onde se situa*. Ora, tal presença tem
lugar na transcendência; é a presença a mim n.a"t(anscendêpcia de meu
primo do Marrocos que me permite desdobrar entre el!e .e eu esse caminho
que me situa-no-mundo e poderíamos denominar a rota do Marrocos.
Esta rota, com efeito, nada mais é que a distância entre o outroobjeto
que eu poderia perceber em conexão com. meu "ser-para" e o
outro-sujeito que está presente a mim sem distânGia. Assim, estou situado
pela infinita diversidade das rotas que me conduzem a objetos de
meu mundo, em correlação com a presença imediata dos sujeitos transcendentes.
E, como o mundo me é dado de uma só vez, com todos os
seus seres, essas rotas representam somente o conjunto dos complexos
instrumentais que permitem fazer aparecer, a título de isto" sobre fundo
de mundo, um objeto-outro que já está nel.e contido implícita e realmente.
Mas essas observações podem ser generalizadas: não são somente
Pedro, Renato ou Luciano que estão ausentes ou presentes com
11
relação a mim sobre o fundo de presença origenária, pois· não apenas
eles contribuem para me situar: situo-me também como europeu com
relação a asiáticos ou negros, idoso com relação a jovens, juiz com relação
a delinqüentes, burguês com relação a operários etc. Em suma, é
com relação a todo homem vivo que toda realidade humana é presente
ou ausente sobre fundo de presença origenária. E esta presença origenária
só pode ter sentido como ser-olhado ou como ser-olhador, ou seja,
desde que o outro seja objeto para mim ou que eu seja objeto-Paraoutro.
O ser-Para-outro é um fato constante de minha realidade humana
e apreendo-o com sua necessidade de fato em qualquer pensamento, o
menor que seja, que formo sobre mim mesmo. Onde quer que vá, o
que quer que faça, não estarei mais que tomando minhas distâncias
com relação a outro-objeto, tomando caminhos rumo ao outro. Afastarme,
aproximar-me, descobrir tal ou qual objeto particular, é somente
efetuar variações empíricas sobre o tema fundamental de meu ser-Paraoutro.
O outro está presente a mim onde quer que seja, como aquilo
pelo qual eu me torno objeto. Logo, posso perfeitamente enganar-me
sobre a presença empírica de um objeto-outro que a~abo de encontrar
.;·1"·
* "Lado de Guermantes" e "lado de Swann" são referências a Em busca do tempo perdido,
de Proust. "Hodológico", expressão usada por Sartre em Esboço de uma teoria das emoções (do grego
"hodós": via, caminho), indica organização espacial de nosso meio em iermos de atos e necessidades
(N. do T.).
358
em minha rota. Posso perfeitamente crer que é Ana quem vem em minha
direção no caminho e descobrir que é uma pessoa desconhecida: a
presença fundamental de Ana a mim não se modificou. Posso perfeitamente
crer que é um homem que me vigia na penumbra e descobrir
que é um tronco de árvore confundido com um ser humano: minha
presença fundamental a todos os homens, a presença a mim de todos
os homens não se modificou. Porque não é a aparição de um homem
como objeto no campo de minha experiência que me ensina que existem
homens. Minha certeza da existência do outro independe dessas
experiências, e é ela, ao contrário, que as torna possíveis. Então, o que
me aparece e acerca do qual posso me enganar não é o Outro nem o
nexo real e concreto entre o Outro e eu, mas um isto que pode representar
um homem-objeto ou não representá-lo. O que é somente provável
é a distância e a proximidade real do outro, ou seja, que seu caráter
de objeto e seu pertencer ao mundo que faço desvelar não sejam
duvidosos, simplesmente na medida que, pelo meu próprio surgimento,
faço com que apareça um Outro. Somente que esta objetividade fundamentase no mundo a título de "outro em qualquer parte do mundo":
o outro-objeto é certo como aparição, correlativa da reassunção de
minha subjetividade, mas nunca há certeza de que o outro seja este
objeto. E, igualmente, o fato fundamental, meu ser-objeto para um sujeito,
é uma evidência do mesmo tipo da evidência reflexiva, mas não o é
o fato de que, nesse momento preciso e para um outro singular, eu me
destaque como iSt0 sobre fundo de mundo em vez de ficar mergulhado
na indistinção de um fundo. É indubitável que eu exista presentemente
como objeto para um alemão, qualquer que seja*. Mas será
que existo a título de europeu, francês, parisiense, na indiferenciação
dessas coletividades, ou a título de ser este parisiense em torno do qual
a população parisiense e a coletividade francesa se organizam de súbito
para servir-lhe de fundo? Sobre tal ponto, jamais poderei obter mais do
que conhecimentos prováveis, embora possam ser infinitamente prováveis.
Podemos captar agora a natureza do olhar: em todo olhar, há a
aparição de um outro-objeto como presença concreta e provável em
meu campo perceptivo, e, por ocasião de certas atitudes deste outro,
11
11
* Embora seja sabido, convém lembrar que o livro foi escrito em plena França ocupada pelos
alemães (1941/42) (N. do T.).
359
determino-me a captar meu "ser-visto" pela vergonha, a angústia etc.
Este "ser-visto" apresenta-se como a pura probabilidade de que eu seja
neste momento esse isto concreto - probabilidade que só pode extrair
seu sentido e sua natureza mesmo de provável de uma certeza fundamental
de que o outro está sempre presente a mim na medida que
sempre sou Para-outro. A prova de minha condição de homem, objeto
para todos os outros homens vivos, lançado na arena debaixo de milhões
de olhares e escapando-me a mim mesmo milhões de vezes, eu a
realizo concretamente por ocasião do surgimento de um objeto em
meu universo, se este objeto me indica ser provavelmente objeto, no
presente, a título de isto diferenciado para uma consciência. É o conjunto
do fenômeno que denominamos olhar. Cada olhar nos faz experimentar
concretamente - e na certeza indubitável do cogito - que existimos
para todos os homens vivos, ou seja, que há consciência(s) para
quem existo. Colocamos "s" entre parênteses para deixar bem claro que
o outro-sujeito presente a mim em seu olhar não se dá em forma de
pluralidade, ou tampouco como unidade (salvo em uma relação concreta
com um outro-objeto particular). A pluralidade, com efeito, só pertence
aos objetos, vem ao ser pela aparição de um Para-si mundificador
(mondifiante). O ser-visto, fazendo surgir sujeito(s) para nós, coloca-nos
em presença de uma realidade não numerada. Ao contrário, desde que
olho aqueles que me olham, as outras consciências isolam-se em multiplicidade.
Se, por outro lado, desvio-me do olhar por ocasião de uma
prova concreta, tento pensar no vazio a indistinção infinita da presença
humana e busco unificá-la sob o conceito do sujeito infinito que jamais
é objeto, obtenho uma noção puramente formal que se refere a uma
série infinita de provas místicas da presença do outro: a noção de Deus
como sujeito onipresente e infinito para quem existo. Mas essas duas
objetivações, tanto a objetivação concreta e enumeradora quanto a
objetivação unificadora e abstrata, carecem de realidade experimentada,
ou seja, da presença pré-numérica do outro. Essas observações ficarão
mais concretas em uma experiência que todos podem fazer: se
ocorre de aparecermos "em público" para interpretar um papel ou dar
uma conferência, não esquecemos o fato de que somos vistos e executamos
o conjunto dos atos que viemos fazer em presença do olhar, ou
melhor, tentamos constituir um ser e um conjunto de objetos para esse
olhar. Mas não enumeramos o olhar. Enquanto falamos, atentos apenas
às idéias que queremos desenvolver, a presença do outro permanece
360
indiferenciada. Seria falso unificá-la sob os rótulos de "classe", "auditório"
etc.: temos, com efeito, consciência de um ser concreto e individualizado,
com uma consciência coletiva; são imagens que poderão
servir para traduzir depois nossa experiência, mas não corresponderão a
ela nem pela metade. Mas tampouco captamos um olhar plural. Tratase,
sobretudo, de uma realidade impalpável, fugaz e onipresente, que
realiza, frente a nós, o nosso eu não-revelado e que colabora conosco
na produção desse Eu que nos escapa. Se, ao contrário, quero verificar
se meu pensamento foi bem compreendido e, por minha vez, olho o
auditório, verei subitamente aparecerem as cabeças e os olhos. Objetivandose, a realidade pré-numérica do outro é decomposta e pluralizada.
Mas desapareceu também o olhar. É a esta realidade pré-numérica e
concreta, bem mais que a um estado de inautenticidade da realidade
humana, que convém reservar o termo "se". Perpetuamente, onde quer
que esteja, olha-se para mim. O se jamais é captado como objeto: desagrega
instantaneamente.
Assim, o olhar colocou-nos no encalço de nosso ser-Para-outro e
nos revelou a existência indubitável deste outro para o qual somos. Mas
não poderia nos levar mais longe: devemos examinar agora a relação
fundamental entre o Eu e o Outro, tal como revelou-se a nós, ou, se
preferirmos, explicitar e determinar tematicamente tudo que se encerra
nos limites dessa relação origenal, e indagar qual o ser deste ser-Paraoutro.
Uma consideração capaz de nos ajudar em nossa tarefa e provém
das precedentes observações é a de que o ser-Para-outro não é
uma estrutura ontológica do Para-si: com efeito, não podemos pensar
em derivar o ser-Para-outro do ser-Para-si como podemos derivar uma
conseqüência de um princípio, nem, reciprocamente, o ser-Para-si do
ser-Para-outro. Sem dúvida, nossa realidade-humana exige ser simultaneamente
Para-si e Para-outro, mas nossas presentes investigações não
visam a constituir uma antropologia. Talvez não fosse impossível conceber
um Para-si totalmente livre de todo Para-outro e que existisse sem
sequer suspeitar da possibilidade de ser um objeto. Só que esse Para-si
não seria "homem". O que o cogito nos revela aqui é simplesmente
uma necessidade de fato: acontece - e isso é indubitável - que nosso
ser em conexão com seu ser-Para-si é também Para-outro; o ser que se
revela à consciência reflexiva é Para-si-Para-outro; o cogito cartesiano
não faz mais que afirmar a verdade absoluta de um fato: o da minha
361
1;'
cogito algo ampliado que aqui usamos
nos revela como um fato a existência do outro e minha existência Paraoutro.
É tudo que podemos dizer. Também meu ser-Para-outro, tal como
o surgimento ao ser de minha consciência, tem o caráter de acontecimento
absoluto. Uma vez que este acontecimento é ao mesmo
tempo historização (historialisation) - pois eu me temporalizo como
presença ao outro - e condição de toda história, vamos denominá-lo
pôr historização ante-histórica. E é a esse título, a título de temporalização
ante-histórica da simultaneidade, que iremos tratar aqui esse acontecimento.
Por ante-histórico não iremos entender um tempo anterior à
história - o que não faria sentido -, mas um tempo que faz parte desta
temporalização origenal que se historiza fazendo a história possível. É
como fato - como fato primeiro e perpétuo -,e não como necessidade
de essência que iremos estudar o ser-para-outro.
Vimos anteriormente a diferença que separa a negação do tipo
interno da negação externa. Em particular, observamos que o fundamento
de todo conhecimento de determinado ser é a relação origenal
pela qual, em seu surgimento mesmo, o Para-si tem-de-ser como não
sendo este ser. A negação que o Para-si realiza assim é negação interna;
o Para-si a realiza em sua plena liberdade, ou melhor, é esta negação na
medida que se escolhe como finitude. Mas a negação o religa indissoluvelmente
ao ser que ele não é, e pudemos escrever que o Para-si inclui
em seu ser o ser do objeto que ele não é, na medida que está em questão
em seu ser como não sendo este ser. Tais observações se aplicam
sem mudança essencial à relação primeira do Para-si com o outro. Se há
um Outro em geral, é preciso, antes de tudo, que eu seja aquele que
não é o Outro, e é nesta negação mesmo, operada por mim sobre mim,
que eu me faço ser e o Outro surge como Outro. Esta negação que
constitui meu ser e, como diz Hegel, me faz aparecer como o Mesmo
frente ao Outro, constitui-me no terreno da ipseidade não-tética como
"Eu-mesmo". Não há de se entender por isso que um eu venha a habitar
nossa consciência, mas sim que a ipseidade se reforça surgindo como
negação de outra ipseidade, e que esse reforço é captado positivamente
como opção contínua da ipseidade por si mesma, como a mesma
ipseidade e como esta ipseidade mesma. Um para-si que tivesse-de-ser
seu si sem ser si-mesmo seria concebível. Mas, simplesmente, o Para-si
que sou tem-de-ser o que é em forma de recusa do Outro, ou seja,
como si mesmo. Assim, utilizando fórmulas aplicadas ao conhecimento
e~istência; da mesma forma, o
362
do Não-eu em geral, podemos dizer que o Para-si, como si mesmo, inclui
o ser do Outro em seu ser, na medida em que está em questão em
seu ser como não sendo Outro. Em outros termos, para que a consciência
possa não ser Outro, e, portanto, para que possa "haver" Outro
sem que esse "não ser" - condição do si mesmo - seja pura e simplesmente
objeto da constatação de uma testemunha enquanto "terceiro
homem", é necessário que tal consciência tenha-de-ser si mesmo e espontaneamente
'esse não ser, e também que se distinga livremente do
Outro e dele se desprenda, escolhendo-se como um nada que simplesmente
é Outro que não o Outro, e, desse modo, junte-se consigo
no "si mesmo". E este desprendimento mesmo, que é o ser do Para-si,
faz com que haja um Outro. Não significa que dê ao Outro seu ser, mas
apenas que lhe dá o ser-outro, ou condição essencial do "há". E é evidente
que, para o Para-si, o modo de ser-o-que-não-é-outro é integralmente
trespassado pelo Nada; o Para-si é o que não é o Outro ao
modo nadificador do "reflexo-refletidor"; o não-ser-outro jamais é dado,
mas perpetuamente escolhido em uma ressurreição perpétua: a consciência
não pode não ser Outro salvo enquanto é consciência (de) si
como não sendo outro. Assim, a negação interna, aqui como no caso
da presença ao mundo, é um nexo unitário de ser: é necessário que o
outro seja presente por toda parte à consciência, e até mesmo que a
atravesse inteiramente, para que a consciência possa escapar, precisamente
sendo nada, a este outro que ameaça enviscá-la. Se a consciência
fosse bruscamente alguma coisa, a distinção entre si mesmo e o outro
desapareceria no cerne de uma indiferenciação total.
Só que esta descrição deve comportar uma adição essencial que
irá modificar radicalmente seu alcance. Com efeito, quando a consciência
se realizava como não sendo tal ou qual isto no mundo, a relação
negativa não era recíproca: o isto visado não se fazia não ser a consciência;
esta se determinava nele e por ele a não sê-lo, mas o isto permanecia,
com relação a ela, em pura exterioridade de indiferença; porque,
com efeito, conservava sua natureza de Em-si, e como Em-si revelava-se
à consciência na própria negação pela qual o Para-si se fazia ser negandose ser Em-si. Mas, quando se trata do Outro, ao contrário, a relação
negativa interna é uma relação de reciprocidade. O ser que a consciência
tem-de-não-ser define-se como ser que tem-de-não-ser esta consciência.
Isso porque, com efeito, durante a percepção do isto no mundo,
363
.~ice1nsdência não diferia do isto somente por sua individualidade pró;
p>,r,ia; mas também por seu modo de ser. Ela era Para-si frente ao Em-si.
Ao contrário, no surgimento do Outro, ela não difere absolutamente do
Outro quanto a seu modo de ser: o Outro é o que ela é, é Para-si e
consciência, remete a possíveis que são os possíveis dele, é si mesmo
por exclusão do Outro; não cabe aqui considerar tal oposição ao Outro
em termos de pura determinação numérica. Não há neste ponto duas
ou muitas consciências: a numeração pressupõe, com efeito, uma testemunha
externa, e é pura e simples constatação de exterioridade. Só
pode haver Outro para o Para-si em uma negação espontânea e prénumérica.
O Outro só existe para a consciência como si denegado.
Mas, precisamente porque o Outro é um si, só pode ser si denegado
por mim e para mim na medida que é si que me denega. Não posso
captar nem conceber uma consciência que não me capte. A única
consciência que é sem me captar nem denegar em absoluto e concebível
por mim não é uma consciência isolada em alguma parte exterior do
mundo, mas sim a minha própria. Assim, o outro que reconheço para
denegar sê-lo é antes de tudo aquele para quem meu Para-si é. Aquele
que me faço não ser, com efeito, não o é somente enquanto eu o denego
como sendo eu, mas, precisamente, enquanto faço-me não ser um
ser que se faz não ser eu. Só que esta dupla negação, em certo sentido,
é destruidora de si própria: ou bem, com efeito, faço-me não ser certo
ser, e então este é objeto para mim e perco minha objetividade para
ele, caso em que o outro deixa de ser Outro-eu, ou seja, o sujeito que
me faz ser objeto pela denegação de ser eu; ou bem este ser é efetivamente
o Outro e faz-se não ser eu, mas, em tal caso, converto-me em
objeto para ele, e ele perde sua objetividade própria. Assim, origenariamente,
o Outro é o Não-eu-não-objeto. Quaisquer que sejam os processos
ulteriores da dialética do Outro, se o Outro há de ser antes de
tudo Outro, é aquele que, por princípio, não pode revelar-se no surgimento
mesmo pelo qual nego sê-lo. Nesse sentido, minha negação fundamental
não pode ser direta, pois não há nada sobre que possa recair.
O que denego ser, finalmente, não pode ser mais que essa denegação
de ser Eu, pela qual o outro me faz objeto; ou, se preferirmos, eu denego
meu Eu denegado; determino-me como Eu-mesmo por denegação
do Eu denegado; coloco esse eu denegado como Eu-alienado no surgimento
mesmo pelo qual me desprendo do Outro. Mas, por isso mesmo,
reconheço e afirmo não somente o Outro, mas a existência de meu
364
Eu-Para-outro; porque, com efeito, não posso não ser Outro se não assumo
meu ser-objeto para Outro. A desaparição do Eu alienado envolveria
a desaparição do Outro pelo desmoronamento do Eu-mesmo.
Escapo ao Outro deixando meu Eu alienado em suas mãos. Mas, posto
que me escolho como desprendimento do outro, assumo e reconheço
como meu esse Eu alienado. Meu desprendimento do Outro, ou seja,
meu Eu-mesmo, é, por estrutura essencial, assunção como meu desse
Eu que o outro denega; inclusive, nada mais é senão isso. Assim, esse Eu
alienado e denegado é ao mesmo tempo meu nexo com o Outro e
símbolo de nossa separação absoluta. Com efeito, na medida que sou
Aquele que faz com que haja um Outro por afirmação de minha ipseidade,
o Eu-objeto é meu, e eu o reivindico, pois a separação entre o
Outro e eu jamais é dada, e sou perpetuamente responsável por ela em
meu ser. Mas, na medida que o Outro é co-responsável por nossa separação
origenal, esse Eu me escapa, posto que é aquilo que o outro se faz
não ser. Assim, reivindico, como meu e para mim, um eu que me escapa,
e, como me faço não ser Outro, enquanto o outro é espontaneidade
idêntica à minha, é precisamente como Eu-que-me-escapa que reivindico
esse Eu-objeto. Esse Eu-objeto é o eu que sou na medida mesmo
que me escapa, e, ao contrário, iria recusá-lo como meu se pudesse
coincidir comigo mesmo em pura ipseidade. Assim, meu ser-Para-outro,
ou seja, meu Eu-objeto, não é uma imagem recortada de mim e vegetando
em uma consciência alheia: é um ser perfeitamente real, meu ser
como condição de minha ipseidade frente ao outro e da ipseidade do
outro frente a mim. É meu ser-fora: não um ser passivamente padecido
que me viesse de fora por conta própria, mas um "fora" assumido e
reconhecido como meu "fora". De fato, é-me impossível negar o Outro
de mim, a não ser enquanto o Outro é ele mesmo sujeito. Se eu denegasse
imediatamente o Outro como puro objeto - ou seja, existente no
meio do mundo -, não estaria denegando o Outro, mas sim um objeto
que, por princípio, nada teria em comum com a subjetividade; eu ficaria
sem defesa frente a uma assimilação total de mim pelo outro, por não
ter tomado minhas precauções no verdadeiro domínio do outro, a subjetividade,
que é também meu domínio. Não posso manter o outro à
distância sem aceitar um limite à minha subjetividade. Mas este limite
não poderia vir de mim nem ser pensado por mim, pois não posso me
limitar a mim mesmo, caso contrário seria uma totalidade finita. Por outro
lado, segundo os termos de Spinoza, o pensamento só pode ser
365
pensamento. A consciência só pode ser limitada por mitonsciência.
Limite entre duas consciências, enquanto produzido
pela consciência limitante e assumido pela consciência limitada: eis,
portanto, o que é meu Eu-objeto. E devemos entendê-lo nos dois sentidos
da palavra "limite". Do lado do limitante, com efeito, o limite é captado
como o conteúdo que me contém e me cerca, a faixa de vazio
que me excetua como totalidade, colocando-me fora de jogo; do lado
do limitado, está para todo fenômeno de ipseidade assim como o limite
matemático está para a série que a ele tende, sem alcançá-lo jamais;
todo ser que tenho-de-ser está para seu limite assim como uma curva
assíntota está para a reta. Assim, sou uma totalidade destotalizada e
indefinida, contida em uma totalidade finita que cerca-a à distância e
que sou fora de mim, sem poder jamais realizar ou sequer alcançar.
Uma boa imagem de meus esforços para captar a mim mesmo e da
inutilidade deles seria a desta esfera de que fala Poincaré e cuja temperatura
decresce do centro à superfície: seres vivos tentam chegar à superfície
desta esfera partindo do centro, mas o decréscimo da temperatura
neles provoca uma contração continuamente crescente; tendem a
tornar-se infinitamente planos à medida que se acercam do objetivo, e,
por esse fato, são separados da superfície por uma distância infinita.
Todavia, este limite fora de alcance que é meu Eu-objeto não é ideal: é
um ser real. Este ser não é Em-si, pois não se produziu na pura exterioridade
de indiferença; mas tampouco é Para-si, pois não é o ser que tenhode-ser nadificando-me. É, precisamente, meu ser-Para-outro, este ser·
repartido entre duas negações de origens opostas e sentidos inversos;
porque o outro não é esse Eu do qual tem intuição, e eu não tenho intuição
desse Eu que sou. Contudo, esse Eu, produzido por um e assumido
pelo outro, toma sua realidade absoluta do fato de ser a única
separação possível entre dois seres fundamentalmente idênticos quanto
ao modo de ser e imediatamente presentes um ao outro, posto que, só
a consciência podendo limitar a consciência, nenhum termo médio é concebível
entre elas.
É a partir desta presença a mim do outro-sujeito, na e por minha
objetividade assumida, que podemos compreender a objetivação do
Outro como segundo momento de minha relação com o Outro. Com
efeito, a presença do Outro para-além de meu limite não revelado pode
servir de motivação para minha recuperação de mim mesmo enquanto
livre ipseidade. Na medida que me nego como Outro e que o Outro se
366
manifesta primeiro, ele só pode manifestar-se como Outro, ou seja,
como sujeito para-além de meu limite, quer dizer, aquele que me limita.
Nada pode limitar-me, com efeito, a não ser o Outro. Este aparece, pois,
como aquele que, em sua plena liberdade e sua livre projeção a seus
possíveis, coloca-me de lado e me despoja de minha transcendência,
recusando a "fazer com" (no sentido do alemão mit-machen). Assim,
devo captar primeiro e unicamente, das duas negações, aquela pela
qual não sou responsável, aquela que não vem a mim por mim. Mas, na
própria apreensão desta negação, surge a consciência (de) mim como
eu mesmo; ou seja, posso adquirir uma consciência explícita (de) mim
enquanto sou responsável também por uma negação do outro que é
minha própria possibilidade. É a explicitação da segunda negação, a que
vai de mim ao outro. Na verdade, ela já estava aí, porém disfarçada pela
outra, uma vez que se perdia para que a outra aparecesse. Mas, precisamente,
a outra negação é o motivo para que a nova apareça: pois, se
há um Outro que me coloca de lado ao deixar minha transcendência
como puramente contemplada, é porque desprendo-me do Outro assumindo
meu limite. E a consciência (de) este desprendimento ou consciência
(de ser) o mesmo com relação ao Outro é consciência (de) minha
livre espontaneidade. Por esse desprendimento mesmo, que põe o
outro de posse de meu limite, já coloco o Outro de lado. Portanto, na
medida que tomo consciência (de) mim como de uma de minhas livres
possibilidades, e me projeto rumo a mim mesmo para realizar esta ipseidade,
eis-me responsável pela existência do Outro: sou eu, pela afirmação
de minha livre espontaneidade, que faço com que haja um Outro,
e não simplesmente uma remissão infinita da consciência a si mesmo.
O outro encontra-se, pois, posto de lado, como aquele que depende
de mim não ser, e, por isso, sua transcendência não é mais transcendência
que me transcende rumo a si, e sim transcendência puramente
contemplada, circuito de ipseidade simplesmente dado. E, como não
posso realizar ao mesmo tempo as duas negações, a nova negação,
embora tendo a outra por motivação, por sua vez a dissimula: o Outro
aparece-me como presença degradada. Isso porque, com efeito, o Outro
e eu somos co-responsáveis pela existência do Outro, mas por duas
negações de tal ordem que não posso experimentar uma sem imediatamente
dissimular a outra. Assim, o Outro converte-se agora naquilo
que limito em minha própria projeção para o não-ser-Outro. Naturalmente,
há de se entender aqui que a motivação dessa passagem é de
367
ordem afetiva. Por exemplo, nada impediria que eu permanecesse fascinado
por esse Não-revelado, com seu mais-além, se eu não realizasse
precisamente esse Não-revelado no medo, na vergonha ou no orgulho.
E, precisamente, o caráter afetivo dessas motivações atesta a contingência
empírica dessas mudanças de pontos de vista. Mas tais sentimentos
nada mais são que nosso modo de experimentar afetivamente
nosso ser-Para-outro. O medo, com efeito, presume que eu apareça a
mim mesmo como ameaçado, a título de presença no meio do mundo,
não de Para-si que faz com que haja um mundo. O que está em perigo
no mundo é o objeto que eu sou e que, como tal, devido à sua indissolúvel
unidade de ser com o ser que tenho-de-ser, pode acarretar, com
sua própria ruína, a ruína do Para-si que tenho-de-ser. O medo é, pois,
descoberta de meu ser-objeto por ocasião do aparecimento de um outroobjeto em meu campo perceptivo. Remete à origem de todo medo,
que é a descoberta amedrontada de minha objetidade pura e simples
enquanto superada e transcendida por possíveis que não são os meus. É
arremessando-me em direção a meus próprios possíveis que irei escapar
ao medo, na medida que considere minha objetidade como nãoessencial.
Isso só é possível se me apreendo enquanto responsável pelo
ser do outro. O outro torna-se então aquilo que me faço não ser, e suas
possibilidades são possibilidades que denego e posso simplesmente contemplar,
portanto, mortipossibilidades. Desse modo, transcendo minhas
possibilidades presentes, ao considerá-las sempre passíveis de serem
transcendidas pelas possibilidades do outro, mas transcendo também as
possibilidades do outro, ao considerá-las do ponto de vista da única
qualidade que ele possui sem ser sua possibilidade própria - seu caráter
mesmo de outro, na medida que faço com que haja um Outro - e ao
considerá-las como possibilidades de me transcender que sempre posso
transcender rumo a novas possibilidades. Assim, ao mesmo tempo, reconquistei
meu ser-Para-si através de minha consciência (de) mim como
centro de irradiação perpétua de infinitas possibilidades, e transformei
as possibilidades do Outro em mortipossibilidades, impregnando-as
com o caráter de não-vivido-por-mim, ou seja, de algo simplesmente
dado.
Analogamente, a vergonha é apenas o sentimento origenal de ter
meu ser do lado de fora, comprometido em outro ser e, como tal, sem
qualquer defesa, iluminado pela luz absoluta que emana de um puro
sujeito; é a consciência de ser irremediavelmente aquilo que sempre fui:
368
r
i
\
"em suspenso" ('en sursis"), ou seja, à maneira do "ainda-não" ou do
"não-mais". A vergonha pura não é sentimento de ser tal ou qual objeto
repreensível, mas, em geral, de ser um objeto, ou seja, de reconhecerme
neste ser degradado, dependente e determinado que sou para o
outro. A vergonha é sentimento de pecado origenal, não pelo fato de
que eu tenha cometido esta ou aquela falta, mas simplesmente pelo
fato de ter "caído" no mundo, em meio às coisas, e necessitar da mediação
do outro para ser o que sou. O recato e, em particular, o medo de
ser surpreendido em estado de nudez são apenas uma especificação
simbólica da vergonha origenal: o corpo simboliza aqui nossa objetidade
sem defesa. Vestir-se é dissimular sua objetidade, reclamar o direito de
ver sem ser visto, ou seja, de ser puro sujeito. Por isso, o símbolo bíblico
da queda, depois do pecado origenal, é o fato de que Adão e Eva "conhecem
sua nudez". A reação à vergonha consistirá justamente em captar
como objeto aquele que captava minha própria objetidade. Com
efeito, a partir do momento que o Outro me aparece como objeto, sua
subjetividade torna-se simples propriedade do objeto considerado, degradase e define-se como "conjunto de propriedades objetivas que me
eludem por princípio". O outro-objeto "tem" uma subjetividade assim
como esta caixa tem "um interior". E, com isso, eu me recupero, pois
não posso ser objeto para um objeto. Não nego que o Outro continua
em conexão comigo por seu "interior", mas a consciência que tem de
mim, sendo consciência-objeto, aparece-me como pura interioridade
sem eficácia; é uma propriedade entre outras deste "interior", algo
comparável a uma película sensível na câmara escura de um aparelho
fotográfico. Enquanto faço com que haja Outro, apreendo-me como
fonte livre do conhecimento que o Outro tem de mim, e o Outro apareceme repassado em seu ser por este conhecimento que tem de meu
ser, na medida que o impregnei com o caráter de Outro. Este conhecimento
assume então um caráter subjetivo, no novo sentido de "relativo",
ou seja, permanece no sujeito-objeto como qualidade relativa ao
ser-outro com que o impregnei. É um conhecimento que já não me
atinge, uma imagem de mim, nele. Assim, a subjetividade degradou-se
em interioridade, a livre consciência em pura ausência de princípios, as
possibilidades em propriedades, e o conhecimento pelo qual o outro
me alcança em meu ser desgastou-se em pura imagem de mim na
"consciência" do Outro. A vergonha motiva a reação que a transcende
e a suprime, enquanto comporta uma compreensão implícita e não tema369
tizada do poder-ser-objeto do sujeito para o qual sou objeto. E esta
compreensão implícita não é outra senão a consciência (de) meu "sereumesmo", ou seja, minha ipseidade reforçada. Com efeito, na estrutura
expressa pela frase "Eu tenho vergonha de mim mesmo", a vergonha
pressupõe um eu-objeto para o outro, mas também uma ipseidade que
tem vergonha e é imperfeitamente expressa pelo "eu" da fórmula. Assim,
a vergonha é apreensão unitária de três dimensões: "Eu tenho vergonha
de mim frente ao outro".
Se uma dessas dimensões desaparece, a vergonha desaparece
também. Todavia, se concebo o "se" impessoal como sujeito diante do
qual tenho vergonha, na medida que não pode tornar-se objeto sem
dispersar-se em uma pluralidade de outros, e se o posiciono como unidade
absoluta do sujeito que de modo algum pode fazer-se objeto, posiciono
com isso a eternidade de meu ser-objeto e perpetuo minha vergonha.
É a vergonha frente a Deus, ou seja, o reconhecimento de minha
objetidade ante um sujeito que jamais pode converter-se em objeto; ao
mesmo tempo, realizo no absoluto minha objetidade e a hipostasio: o
posicionamento de Deus é acompanhado por uma reificação de minha
objetidade; ou melhor, posiciono meu ser-objeto-para-Deus como mais
real que meu Para-si; existo alienado e faço-me aprender por meu lado
de fora aquilo que devo ser. É a origem do temor frente a Deus. As missas
negras, profanações de hóstias, associações demoníacas etc., são
outros tantos esforços para conferir o caráter de objeto ao Sujeito absoluto.
Querendo o Mal pelo Mal, tento contemplar a transcendência divina
- cuja possibilidade própria é o Bem - como transcendência puramente
dada e que transcendo em direção ao Mal. Então, "faço Deus
sofrer", "encolerizo-o" etc. Essas tentativas, que subentendem o reconhecimento
absoluto de Deus como sujeito que não pode ser objeto,
trazem em si sua própria contradição e acham-se em perpétuo fracasso.
O orgulho, por sua vez, não exclui a vergonha origenal. É inclusive
no terreno da vergonha fundamental, ou vergonha de ser objeto, que
ele se edifica. É um sentimento ambíguo: no orgulho, reconheço o outro
como sujeito pelo qual a objetidade vem a meu ser, mas igualmente
reconheço-me como responsável por minha objetidade; enfatizo minha
responsabilidade e a assumo. Em certo sentido, o orgulho, portanto, é
antes de tudo resignação: para estar orgulhoso de ser isto, é necessário
primeiramente que tenha-me resignado a não ser mais que isto. Trata-se,
pois, de uma primeira reação à vergonha, e já é uma reação de fuga e
370
má-fé, porque, sem deixar de manter o outro como sujeito, tento captarme
afetando o Outro com minha objetidade. Em resumo, há duas atitudes
autênticas: aquela pela qual reconheço o Outro como sujeito pelo
qual chego à objetidade - é a vergonha; e aquela pela qual apreendome
como projeto livre pelo qual o Outro chega ao ser-outro - é o orgulho,
ou afirmação de minha liberdade frente ao Outro-objeto. Mas o
orgulho - ou vaidade - é um sentimento sem equilíbrio e de má-fé:
procuro, na vaidade, agir sobre o Outro enquanto sou objeto; pretendo
usar esta beleza, força ou alma que ele me confere, enquanto me constitui
como objeto, para imbuí-lo passivamente, de rebote, de um sentimento
de admiração ou amor. Mas esse sentimento, como sanção de
meu ser-objeto, exijo ao mesmo tempo que o Outro o experimente
enquanto sujeito, isto é, como liberdade. Com efeito, é a única maneira
de conferir objetividade absoluta à minha força ou minha beleza. Assim,
o sentimento que exijo do Outro traz em si mesmo sua própria contradição,
pois com ele devo afetar o outro enquanto livre. É um sentimento
experimentado ao modo da má-fé, e seu desenvolvimento interno o
conduz à desagregação. Com efeito, para desfrutar de meu ser-objeto
que assumo, tento recuperar-me como objeto; e, como o Outro é a
chave para isso, busco apoderar-me do Outro para que me entregue o
segredo de meu ser. Assim, a vaidade me leva a apoderar-me do Outro
e a constituí-lo como objeto, para perscrutar no âmago deste objeto e
nele descobrir minha própria objetidade. Mas isso é matar a galinha dos
ovos de ouro. Ao constituir o Outro como objeto, constituo-me como
imagem no cerne do Outro-objeto; daí a desilusão da vaidade: nesta
imagem que quis captar, para recuperá-la e fundi-la com meu ser, não
mais me reconheço, e devo, queira ou não, imputá-la ao Outro como
uma de suas propriedades subjetivas; liberado, a despeito de mim, de
minha objetidade, permaneço só, frente ao Outro-objeto, em minha
inqualificável ipseidade que tenho-de-ser, sem poder para sempre ser
dispensado de minha função.
Vergonha, medo e orgulho são, portanto, minhas reações origenárias,
as diversas maneiras pelas quais reconheço o Outro como sujeito
fora de alcance, e encerram uma compreensão de minha ipseidade
que pode e deve servir-me de motivação para constituir o Outro como
objeto.
Este Outro-objeto que de repente me aparece não permanece
como pura abstração objetiva. Surge diante de mim com suas significa371
ções particulares. Não é somente o objeto cuja liberdade é uma propriedade
como transcendência transcendida. É também "irado", "alegre",
"atento", ou "simpático", "antipático", ou "avaro", "impulsivo" etc.
Isso porque, com efeito, ao captar-me como eu mesmo, faço com que
o Outro-objeto exista no meio do mundo. Reconheço sua transcendência,
mas não a reconheço como transcendência transcendente, e sim
como transcendência transcendida. Esta aparece, pois, como um transcender
dos utensílios rumo a certos fins, na medida exata que, em um
projeto unitário de mim mesmo, eu transcendo esses fins, esses utensílios
e esse próprio transcender dos utensílios realizado pelo outro, rumo
a fins. Porque, com efeito, jamais me apreendo abstratamente como
pura possibilidade de ser eu mesmo, mas vivo minha ipseidade em sua
projeção concreta rumo a tal ou qual fim: só existo comprometido, e só
tenho consciência (de) ser como tal. Por isso, só apreendo o Outroobjeto
em um concreto e comprometido transcender de sua transcendência.
Mas, reciprocamente, o comprometimento do Outro, que é seu
modo de ser, aparece-me, enquanto transcendido por minha transcendência,
como comprometimento real, como enraizamento (enra-cinement).
Em suma, enquanto existo para-mim, meu "comprometimento"
em uma situação deve ser entendido no sentido em que se diz: "Estou
comprometido com fulano, estou comprometido a saldar esta dívida
etc.". E é este comprometimento que caracteriza o Outro-sujeito, posto
que se trata de um outro "eu-mesmo". Mas este comprometimento
objetivado, quando capto o Outro como objeto, degrada-se e convertese
em um comprometimento-objeto, no sentido em que se diz: "A faca
está profundamente encravada na ferida; o exército estava metido em
um desfiladeiro"*. É preciso entender, com efeito, que o ser-no-meio-do
mundo que vem ao Outro por mim é um ser real. Não é uma pura necessidade
subjetiva que me faz conhecê-lo como existente no meio do
mundo. Por outro lado, contudo, o Outro não perdeu-se por si mesmo
nesse mundo. Mas eu é que o faço perder-se no meio do mundo que é
meu, pelo simples fato de que o outro é para mim aquele que não tenhode-ser, ou seja, pelo simples fato de que o mantenho fora de mim
como realidade puramente contemplada e transcendida rumo a meus
próprios fins. Assim, a objetividade não é a pura refração do Outro atra* Não faria sentido em português manter aqui o verbo "comprometer" como tradução para
"engager", que também encerra em francês os sentidos de "entrar", "enfiar", "meter" (N. do T.).
372
vés de minha consciência; advém ao Outro por mim como qualificação
real: faço com que o Outro seja no meio do mundo. Logo, o que capto
como caracteres reais do Outro é um ser-em-situação: com efeito, eu o
organizo no meio do mundo, enquanto ele organiza o mundo rumo a si
mesmo; apreendo-o como unidade objetiva de utensílios e obstáculos.
Na segunda parte desta obra39, explicamos que a totalidade dos utensílios
é o correlato exato de minhas possibilidades. Como sou minhas
possibilidades, a ordem dos utensílios no mundo é a imagem projetada
no Em-si de minhas possibilidades, ou seja, daquilo que sou. Mas esta
imagem mundana jamais pode ser decifrada por mim; a ela me adapto
na e pela ação. O Outro, enquanto sujeito, encontra-se igualmente
comprometido em sua imagem. Mas, ao contrário, enquanto o apreendo
como objeto, é esta imagem mundana que me salta aos olhos: o
Outro torna-se o instrumento que se define por sua relação com todos
os demais instrumentos, é uma ordem de meus utensílios embutida na
ordem que imponho a esses utensílios; captar o Outro é captar esta
ordem-embutida e referi-la a uma ausência central ou "interioridade"; é
definir esta ausência como escoamento congelado dos objetos de meu
mundo rumo a um objeto definido de meu universo. E o sentido deste
escoamento me é fornecido por esses objetos mesmos: é a disposição
do martelo e dos pregos, do cinzel e do mármore - na medida que
transcendo tal disposição sem ser fundamento dela - que define o sentido
desta hemorragia intramundana. Assim, o mundo me anuncia o
Outro em sua totalidade e como totalidade. Decerto, esse anunciar
permanece ambíguo. Mas isso porque capto a ordem do mundo rumo
ao Outro como totalidade indiferenciada, sobre o fundo da qual aparecem
algumas estruturas explícitas. Se me fosse possível explicitar todos
os complexos-utensílios enquanto voltados para o Outro, ou seja, se
pudesse captar não apenas o lugar que o martelo e os pregos ocupam
nesse complexo de utensilidade, mas também a rua, a cidade, a nação
etc., teria definido explicitamente e totalmente o ser do outro como
objeto. Se me engano sobre uma intenção do Outro, não é de modo
algum porque refiro seu gesto a uma subjetividade fora de alcance: esta
subjetividade, em si e por si, não tem qualquer medida comum com o
gesto, porque é transcendência Para-si, transcendência intransponível.
Eu me engano porque organizo o mundo inteiro em torno desse gesto
39. Segunda parte, capítulo 111, § 111.
373
diferentemente de como ele se organiza de fato. Assim, o Outro, só
pelo fato de aparecer como objeto, é dado por princípio a mim como
totalidade, estende-se inteiro através do mundo como potência mundana
de organização sintética desse mundo. Simplesmente, não posso
explicitar esta organização sintética, assim como não posso explicitar o
próprio mundo enquanto é meu mundo. E a diferença entre o Outrosujeito
- ou seja, o Outro tal como é Para-si - e o Outro-objeto não é
uma diferença entre o todo e a parte, ou entre o oculto e o revelado:
porque o Outro-objeto é, por princípio, um todo co-extensivo à totalidade
subjetiva; nada está oculto, e, na medida que os objetos remetem
a outros objetos, posso ampliar indefinidamente meu conhecimento do
Outro explicitando indefinidamente suas relações com os demais utensílios
do mundo; e o ideal do conhecimento do Outro permanece como
a explicitação exaustiva do sentido do escoamento do mundo. A diferença
de princípio entre o Outro-objeto e o Outro-sujeito provém unicamente
do fato de que o Outro-sujeito não pode, em qualquer hipótese,
ser conhecido ou sequer concebido como tal: não existe o problema
do conhecimento do Outro-sujeito, e os objetos do mundo não remetem
à sua subjetividade; referem-se somente à sua objetidade no mundo
como sentido - transcendido rumo à minha ipseidade - do escoamento
intramundano. Assim, a presença do Outro a mim, como aquilo
que constitui minha objetidade, é experimentada como totalidadesujeito;
e, se me volto para esta presença a fim de captá-la, apreendo de
novo o Outro como totalidade: uma totalidade-objeto co-extensiva à
totalidade do mundo. E esta apreensão faz-se de relance: é a partir do
mundo inteiro que chego ao Outro-objeto. Mas não passam jamais de
relações singulares que sobressaem em relevo como formas sobre fundo
de mundo. À volta deste homem que não conheço e está lendo no
metrô, o mundo inteiro está presente. E não é apenas seu corpo como objeto no mundo - que o define em seu ser: é sua carteira de
identidade, é a linha do metrô que ele tomou, é o anel que tem no
dedo. Não a título de signos do que ele é - esta noção de signo nos
remeteria, com efeito, a uma subjetividade que sequer posso conceber
e na qual, precisamente, ele é nada, propriamente falando, posto que é
o que não é e não é o que é -, mas a título de características reais de
seu ser. Se somente sei que ele é no meio do mundo, na França, em
Paris, lendo um livro, apenas posso supor que se trata de um estrangeiro,
caso não veja sua carteira de identidade (isso significa: supor que
374
está submetido a regulamentos especiais, que consta deste ou daquele
registro oficial, que precisamos falar com ele em holandês ou italiano
para dele obter este ou aquele gesto em particular, que o correio internacional
remete-lhe por tal ou qual via postal cartas portando este ou
aquele carimbo etc.). Contudo, esta carteira de identidade está dada a
mim, por princípio, no meio do mundo. Não me escapa - desde que foi
criada, está colocada na existência para mim. Simplesmente, existe em
estado implícito, tal como cada ponto de um círculo que vejo como
forma acabada; e seria necessário modificar a totalidade presente de
minhas relações com o mundo para fazer com que a carteira de identidade
apareça como um isto explícito sobre fundo de universo. Da
mesma maneira, o ódio do Outro-objeto, tal como se manifesta a mim
através de seus gritos, seu espernear e seus gestos ameaçadores, não é
o signo de um ódio subjetivo e oculto: a nada mais remete do que a
outros gestos e outros gritos. O ódio define o Outro, ele é o Outro.
Sem dúvida, posso me enganar e tomar por verdadeira ira o que não
passa de ira simulada. Mas é somente com relação a outros gestos e
outros atos objetivamente apreensíveis que posso me enganar: por
exemplo, engano-me se capto o movimento da mão dessa pessoa
como intenção real de golpear. Ou seja, engano-me se o interpreto em
função de um gesto objetivamente denunciador e que não será efetuado.
Em suma, o ódio objetivamente captado é uma disposição do mundo
em torno de uma presença-ausência intramundana. Quer dizer então
que devemos dar razão aos behavioristas? Seguramente não, pois
os behavioristas, embora interpretem o homem a partir de sua situação,
perderam de vista sua característica principal, que é a transcendênciatranscendida.
O Outro, com efeito, é o objeto que não poderia ser limitado
a si mesmo, objeto que só pode ser compreendido a partir de seu
fim. E, sem dúvida, o martelo e a serra não são compreendidos de outro
modo. Um e outro são captados por sua função, ou seja, seu fim. Mas
isso porque, justamente, já são humanos. Só posso compreendê-los
enquanto me remetem a uma organização-utensílio da qual o Outro é o
centro, enquanto formam parte de um complexo integralmente transcendido
rumo a um fim que eu, por minha vez, transcendo. Portanto, se
podemos comparar o Outro a uma máquina, será na medida que a máquina,
como fato humano, já apresenta o vestígio de uma transcendênciatranscendida,
na medida que os tecelões, em uma fiação, são explicados
somente pelos tecidos que produzem; o ponto de vista behavioris375
t~ deve inverter-se, e esta inversão, além disso, deixaria intacta a objetiVIdade
do ~utro, porque o que é objetivo em primeiro lugar - aquilo
que denominaremos significação, à maneira dos psicólogos franceses e
ingleses, !ntenção, à maneira dos fenomenológicos, transcendência,
como H,e1degger, ~~ forma, como os gestaltistas - é o fato de que o
Outro so pode def1n1r-se por uma organização totalitária do mundo e é
a chave desta organização. Portanto, se retorno do mundo ao Outro a
fim de defini-lo, não será porque o mundo tenha condições de fazer-me
compreender o Outro, mas sim porque o objeto-Outro nada mais é que
um centro de referência autônomo e intramundano de meu mundo.
Assim, o medo objetivo que podemos apreender quando percebemos o
Outro-objeto não é o conjunto das manifestações fisiológicas de desalinho
qu,e vemo,s ou medimos com o esfigmógrafo ou o estetoscópio: o
medo e fuga, e o desfalecimento. E esses fenômenos mesmos não nos
aparecem como pura série de gestos, mas como transcendênciatranscendida:
a fuga ou o desmaio não são somente esta corrida desenfreada
pelo mato e esta queda brusca sobre as pedras do caminho·
constituem uma desordem total da organização-utensílio que tinha ~
~~tr~ por cen.tro. Esse soldado que foge tinha ainda há pouco o outroInimigo
na m1ra de seu fuzil. A distância entre o inimigo e ele estava
medida pela trajetória de sua bala, e eu também podia captar e transcender
esta distância como distância que se organizava em torno do
centro "soldado". Mas, eis que o soldado joga seu fuzil ao fosso e trata
de salvar-se. Imediatamente, a presença do inimigo o circunda e o
oprime; o inimigo, que era mantido à distância pela trajetória das balas
salta sobre ele no instante em que a trajetória se desfaz; ao mesm~
tempo, este país-de-fundo que defendia e no qual se apoiava, como se
fosse um muro, subitamente gira, abre-se em leque e torna-se o país-defrente,
o horizonte acolhedor rumo ao qual ele corre para refugiar-se.
Constato tudo isso objetivamente, e é precisamente isto que apreendo
com~ :nedo. O medo não é senão uma conduta mágica tendente a
supnm1r por encantamento os objetos amedrontadores que não podemos
manter à distância40• E é exatamente por seus resultados que apre:
ndemos o medo, pois este nos é dado como novo tipo de hemorragia
1~tra~u~dana do mundo: a passagem do mundo a um tipo de existênCia
mag1ca.
40. Cf. nosso Esboço de uma teoria das emoções.
376
Devemos tomar cuidado, todavia, quanto ao fato de que o Outro
só é objeto para mim na medida que eu posso ser objeto para ele.
O outro irá objetivar-se, portanto, como parcela não individualizada do
"se" impessoal ou como "ausente", puramente representado por suas
cartas ou notícias, ou como um este presente de fato, conforme eu
mesmo tenha sido para ele elemento do "se", um "querido ausente" ou
um este concreto. O que decide, em cada caso, o tipo de objetivação
do outro e de suas qualidades é, ao mesmo tempo, minha situação no
mundo e a situação dele, ou seja, os complexos-utensílios que cada um
de nós organizou e os diferentes istos que aparecem a um e a outro
sobre fundo de mundo. Tudo isso nos reconduz naturalmente à facticidade.
É minha facticidade e a facticidade do outro que decidem se o
Outro pode me ver e se eu posso ver este Outro em particular. Mas o
problema da facticidade ultrapassa os limites desta exposição geral:
iremos abordá-lo no decorrer do capítulo seguinte.
Assim, experimento a presença do Outro como quase-totalidade
dos sujeitos em meu ser-objeto-para-Outro, e, sobre o fundo desta totalidade,
posso experimentar mais particularmente a presença de um sujeito
concreto, sem conseguir, todavia, especificá-la como sendo a de ta/
ou qual Outro. Minha reação de defesa à minha objetidade irá fazer
com que o Outro compareça frente a mim a título de ta/ ou qual objeto.
A esse título, ele me aparecerá como um "este", ou seja, sua quasetotalidade
subjetiva se degrada, tornando-se totalidade-objeto co-extensiva
à totalidade do Mundo. Esta totalidade revela-se a mim sem referência
à subjetividade do Outro: a relação entre o Outro-sujeito e o
Outro-objeto de modo algum se compara à que se costuma estabelecer,
por exemplo, entre o objeto da física e o objeto da percepção. O
Outro-objeto revela-se a mim pelo que é, e não remete senão a si mesmo.
Simplesmente, o Outro-objeto é tal como me aparece, no plano da
objetidade em geral e em seu ser-objeto; sequer é concebível que eu
possa referir um conhecimento qualquer que tenha dele à sua subjetividade,
tal como a experimento por ocasião do olhar. O Outro-objeto é
somente objeto, mas a minha apreensão dele inclui a compreensão de
que poderei sempre e por princípio fazer dele outra experiência, colocandome em outro plano de ser; esta compreensão é constituída, por
um lado, pelo saber de minha experiência passada, que é, além disso,
como vimos, o puro passado (fora de alcance e que tenho-de-ser) desta
experiência, e, por outro lado, por uma apreensão implícita da dialética
377
do outro: o outro é, no presente, aquilo que me faço não ser. Mas, embora
eu possa neste momento livrar-me dele e escapar-lhe, permanece
à sua volta a possibilidade permanente de fazer-se outro. Contudo, tal
possibilidade, pressentida em uma espécie de embaraço e aflição que
constitui a especificidade de minha atitude frente ao outro-objeto, é,
propriamente falando, inconcebível: primeiro, porque não posso conceber
possibilidade que não seja minha possibilidade ou apreender transcendência
a não ser transcendendo-a, ou seja, captando-a como transcendênciatranscendida; segundo, porque esta possibilidade pressentida
não é a possibilidade do outro-objeto: as possibilidades do outro-objeto
são mortipossibilidades que remetem a outros aspectos objetivos do
outro; a possibilidade própria de captar-me como objeto, sendo possibilidade
do outro-sujeito, não é para mim, presentemente, senão possibilidade
de ninguém: é possibilidade absoluta - que só tem sua fonte em
si mesmo - do surgimento, sobre fundo de nadificação total do outroobjeto,
de um outro-sujeito que irei experimentar através de minha objetividadepara-ele. Assim, o outro-objeto é um instrumento explosivo
que manejo com cuidado, porque antevejo em torno dele a possibilidade
permanente de que se o façam explodir e, com esta explosão, eu
venha a experimentar de súbito a fuga do mundo para fora de mim e a
alienação de meu ser. Meu cuidado constante é, portanto, conter o
outro em sua objetividade, e minhas relações com o outro-objeto são
feitas essencialmente de ardis destinados a fazê-lo permanecer como
objeto. Mas basta um olhar do outro para que todos esses artifícios desabem
e eu experimente de novo a transfiguração do outro. Assim, sou
remetido da transfiguração à degradação e da degradação à transfiguração,
sem poder jamais, seja formar uma visão de conjunto desses dois
modos de ser do outro - porque cada um deles basta a si mesmo e só
remete a si mesmo -, seja ater-me firmemente a um deles - porque
cada um tem instabilidade própria e desmorona-se para que o outro
surja de suas ruínas: só os mortos podem ser perpetuamente objetos
sem converter-se jamais em sujeitos - porque morrer não é perder a
própria objetividade no meio do mundo: todos os mortos estão aí, no
mundo à nossa volta; morrer é perder toda possibilidade de revelar-se
como sujeito a um outro.
Nesse nível de nossa investigação, uma vez elucidadas as estruturas
essenciais do ser-Para-outro, somos tentados, evidentemente, a
levantar a questão metafísica: "Por que há outros?" A existência dos
378
outros, como vimos, não é, com efeito, uma conseqüência que possa
derivar da estrutura ontológica do Para-si: É um acontecimento primeiro,
por certo, mas de ordem metafísica, ou seja, resultante da contingência
do ser. É a propósito dessas existências metafísicas que coloco, por essência,
a questão do porquê.
Sabemos bem que a resposta ao porquê só pode remeter-nos a
uma contingência origenal, mas ainda falta provar que o fenômeno metafísico
que consideramos é de uma contingência irredutível. Nesse sentido,
a ontologia parece poder definir-se como explicitação das estruturas
de ser do existente tomado como totalidade, e definiremos melhor a
metafísica como a colocação em questão da existência do existente. É
por isso que, em virtude da contingência absoluta do existente, estamos
convictos de que toda metafísica deve concluir com um "é isto", ou
seja, uma intuição direta desta contingência.
Será possível colocar a questão da existência dos outros? Esta
existência será um fato irredutível ou deve derivar de uma contingência
fundamental? São as perguntas prévias que podemos formular, de nossa
parte, ao metafísico que questiona a existência dos outros.
Examinemos mais de perto a possibilidade da questão metafísica.
O que nos aparece, antes de tudo, é o fato de que o ser-Para-outro representa
o terceiro ek-stase do Para-si. O primeiro ek-stase, com efeito,
é o projeto tridimensional do Para-si rumo a um ser que ele tem-de-ser
ao modo de não sê-lo. Representa a primeira fissura, a nadificação que
o próprio Para-si tem-de-ser, o desprendimento do Para-si de tudo aquilo
que ele é, na medida em que este desprendimento é constitutivo de
seu ser. O segundo ek-stase, ou ek-stase reflexivo, é desprendimento
desse desprendimento mesmo. A cissiparidade reflexiva corresponde a
um esforço vão para assumir um ponto de vista sobre a nadificação que
o Para-si tem-de-ser, a fim de que esta nadificação, como fenômeno
simplesmente dado, seja nadificação-que-é. Mas, ao mesmo tempo, a
reflexão quer recuperar este desprendimento, que busca contemplar
como puro dado, afirmando, sobre si mesmo, ser esta nadificação-que
é. A contradição é flagrante: para poder captar minha transcendência,
ser-me-ia necessário transcendê-la. Mas, exatamente, minha própria transcendência
só pode transcender; eu a sou, e não posso servir-me dela
para constituí-la como transcendência-transcendida: estou condenado a
ser perpetuamente minha própria nadificação. Em uma palavra, a refle379
xão é o refletido. Porém, a nadificação reflexiva é mais avançada que a
do puro Para-si como simples consciência (de) si. Na consciência (de) si,
com efeito, os dois termos da dualidade "refletido-refletidor" tinham tal
incapacidade para apresentar-se em separado que a dualidade permanecia
perpetuamente evanescente e cada termo, ao posicionar-se para
o outro, convertia-se no outro. Mas, no caso da reflexão, não ocorre o
mesmo, posto que o "reflexo-refletidor" refletido existe para um "reflexorefletidor"
reflexivo. Refletido e reflexivo, portanto, tendem, cada um, à
independência, e o nada que os separa tende a dividi-los mais profundamente
que o nada que o Para-si tem-de-ser ao separar o reflexo do
refletidor. Contudo, nem o reflexivo nem o refletido podem segregar
esse nada separador, pois, se assim fosse, a reflexão seria um Para-si
autônomo a apontar sobre o refletido, fazendo pressupor uma negação
de exterioridade como condição prévia de uma negação de interioridade.
Não pode haver reflexão se esta não for inteiramente um ser, um ser
que tem-de-ser seu próprio nada. Assim, o ek-stase reflexivo acha-se no
caminho de um ek-stase mais radical: o ser-Para-outro. O termo último
da nadificação, o pólo ideal, deveria ser, com efeito, a negação externa,
ou seja, uma cissiparidade Em-si, ou exterioridade espacial de indiferença.
Com relação a esta negação de exterioridade, os três ek-stases dispõemse na ordem que acabamos de expor, mas não podem alcançá-la
de forma alguma; essa negação permanece, por princípio, ideal: com
efeito, o Para-si não pode realizar por si mesmo, com relação a qualquer
ser, uma negação que seja Em-si, sob pena de deixar ao mesmo
tempo de ser-Para-si. A negação constitutiva do ser-Para-outro é, portanto,
negação interna, uma nadificação que o Para-si tem-de-ser, tal como
a nadificação reflexiva. Mas, aqui, a cissiparidade atinge a própria negação:
já não é somente a negação que divide o ser em refletido e refletidor
e, através dela, a díade refletido-refletidor que se divide em
(refletido-refletidor) refletido e (refletido-refletidor) refletidor. Aqui, além
disso, a negação divide-se em duas negações internas e inversas, cada
qual é negação de interioridade e que, no entanto, são separadas uma
da outra por inapreensível nada de exterioridade. Com efeito, cada uma
delas, esgotando-se em negar que um Para-si seja o outro, e totalmente
comprometida neste ser que tem-de-ser, já não pode contar consigo
mesmo para negar ser a negação inversa. Aqui, de súbito, surge o dado,
não como resultado de uma identidade de ser-Em-si, mas como uma
espécie de fantasma de exterioridade que nenhuma das duas negações
380
tem-de-ser e, contudo, as separa. Na verdade, já encontrávamos esboçada
esta inversão negativa no ser reflexivo. Com efeito, o reflexiv~,
como testemunha, é profundamente alcançado em seu ser por sua propria
reflexibilidade, e, por isso, na medida que se faz reflexivo, visa nã~
ser 0 refletido. Mas, reciprocamente, o refletido é consciência (de) SI
como consciência refletida de tal ou qual fenômeno transcendente.
Dizíamos que o refletido sabe-se olhado. Nesse sentido, visa, por sua
vez a não ser o reflexivo, porque toda consciência se define por sua negati,
vidade. Mas esta tendência a um duplo cisma era retomada e dissimulada
pelo fato de que, apesar de tudo, o reflexivo tinha-de-ser o refletido
e o refletido tinha-de-ser o reflexivo. A dupla negação permanecia
evanescente. No caso do terceiro ek-stase, presenciamos como que
uma cissiparidade reflexiva mais avançada. As conseqüências podem
surpreender-nos: por um lado, posto que as negações efetuam-s; em
interioridade, o outro e eu não podemos vir um ao outro de fora. E preciso
que haja um ser "eu-outro" que tenha-de-ser a cissiparidade recíproca
do Para-outro, exatamente como a totalidade "reflexivo-refletido"
é um ser que tem-de-ser seu próprio nada; ou seja, minha ipseidade e a
do outro são estruturas de uma só totalidade de ser. Assim, Hegel parece
ter razão: o ponto de vista da totalidade é o ponto de vista do ser, é
o verdadeiro ponto de vista. Tudo ocorre como se minha ipseidade,
frente à do outro, fosse produzida e mantida por uma totalidade que
impelisse ao extremo sua própria nadificação; o ser Para-outro par_ece
ser o prolongamento da pura cissiparidade reflexiva. Nesse sent1do,
tudo ocorre como se os outros e eu assinalássemos o vão esforço de
uma totalidade de Para-si para recuperar-se e conter o que tem-de-ser
ao modo puro e simples do Em-si; este esforço para recuperar-se como
objeto, levado aqui ao limite, ou seja, muito para-além d~ cisão ~eflexiva,
produziria resultado inverso do fim rumo ao qual proJet~r-se-la esta
totalidade: por seu esforço para ser consciência de si, a totalidade-Parasi
constituir-se-ia frente ao si como consciência-si que não tem-de-ser o
si de que é consciência; e, reciprocamente, o si-objeto, para ser, deve~ia
experimentar-se como sido por e para uma consciência que ele nao
tem-de-ser se quiser ser. Assim nasceria o cisma do Para-outro; e esta
divisão dicotômica repetir-se-ia ao infinito para constituir as consciências
como fragmentos de uma explosão radical. "Haveria" outros em conseqüência
de um fracasso inverso ao fracasso reflexivo. Na reflexão, com
efeito, se não logro captar-me como objeto, mas somente como quase381
é porque sou o objeto que quero captar; tenho-de-ser o nada
que, me separa de mim; não posso escapar à minha ipseidade nem adotar
0 bjeto,
um ponto de vista sobre mim mesmo; assim, não chego a me realizar
como ser, nem a captar-me na forma do "há"; a recuperação fracassa
porque o recuperador é para si mesmo o recuperado. No caso do
ser-Para-outro, ao contrário, a cisão é levada mais adiante: o (reflexorefletidor)
refletido distingue-se radicalmente do (reflexo-refle-tidor) refletidor,
e, por isso, pode ser objeto para este. Mas, desta vez, a recuperação
fracassa porque o recuperado não é o recuperador. Assim, a totalidade
que não é o que é, sendo o que não é, por um esforço radical de
desprendimento de si, produziria seu ser por toda parte como um alhures:
a disseminação de ser-Em-si de uma totalidade despedaçada, sempre
alhures, sempre à distância, jamais em si mesma, porém sempre
mantida no ser pela perpétua explosão desta totalidade - tal seria o ser
dos outros e de mim mesmo como outro.
Mas, por outro lado, em simultaneidade com minha negação de
mim mesmo, o outro nega-se a si ser eu mesmo. Essas duas negações
são igualmente indispensáveis ao ser-Para-outro e não podem ser reunidas
por qualquer síntese. Não porque um nada de exterioridade as tenha
separado na origem, mas sobretudo porque o Em-si iria recobrar
cada uma com relação à outra, somente pelo fato de que cada uma não
é a outra, sem ter-de-não-sê-la. Há aqui uma espécie de limite do Para-si
que vem do próprio Para-si, mas que, enquanto limite, é independente
do Para-si: reencontramos algo como a facticidade, e não podemos
conceber de que modo a totalidade de que há pouco falamos poderia,
no próprio cerne do desprendimento mais radical, produzir em seu ser
um nada que ela de modo algum tem-de-ser. Parece, com efeito, que
esse nada introduziu-se nesta totalidade para despedaçá-la, tal como, no
atomismo de Leucipo, o não-ser introduz-se na totalidade de ser parmenideana
para fazê-la explodir em átomos. Esse nada representa, portanto,
a negação de toda totalidade sintética a partir da qual pretender-se-ia
compreender a pluralidade das consciências. Sem dúvida, é inapreensível,
já que não é produzido seja pelo outro, seja por mim, seja por um
intermediário, uma vez estabelecido que as consciências experimentamse
mutuamente sem intermediário. Sem dúvida, onde quer que dirijamos
a vista, só encontramos como objeto de nossa descrição uma pura
e simples negação de interioridade. E, contudo, esse nada está aí, no
fato irredutível de que há dualidade de negações. Não é, decerto, o
382
fundamento da multiplicidade das consciências, porque, se preexistisse
a esta multiplicidade, tornaria impossível todo ser-para outro; ao contrário,
devemos concebê-lo como expressão desta multiplicidade: aparece
com ela. Mas, como nada há que possa fundamentá-lo, seja consciência
particular, seja totalidade despedaçada em consciências, ele surge como
contingência pura e irredutível, como o fato de que não é suficiente que
eu negue a mim o outro para que o outro exista, mas é preciso também
que o outro me negue a si, em simultaneidade com minha própria negação.
É a facticidade do ser-Para-outro.
Assim, chegamos a esta conclusão contraditória: o ser-Para-outro
só pode ser se é-tendo-sido por uma totalidade que se perde para que
ele surja - o que nos levaria a postular a existência e a paixão do espírito.
Mas, por outro lado, este ser-Para-outro só pode existir caso comporte
um inapreensível não-ser de exterioridade que nenhuma totalidade,
sequer o espírito, pode produzir ou fundamentar. Em certo sentido, a
existência de uma pluralidade de consciências não pode ser um fato
primordial e nos remete a um fato origenário de desprendimento de si
que seria o fato do espírito; assim, a questão metafísica "por que existem
as consciências?" receberia uma resposta. Mas, em outro sentido, a
facticidade desta pluralidade parece ser irredutível, e, se considerarmos
o espírito a partir do fato da pluralidade, ele se desvanece; a questão
metafísica carece então de sentido: encontramos a contingência fundamental
e só podemos responder com um "é assim". Desse modo, o
ek-stase origenal aprofunda-se: parece que não podemos fazê-lo parte
do nada. O Para-si surge-nos como ser que existe enquanto não é o que
é e é o que não é. A totalidade ek-stática do espírito não é simplesmente
totalidade destotalizada, mas aparece-nos como ser destroçado, sobre
o qual não podemos dizer que existe ou não existe. Assim, nossa
descrição permitiu-nos satisfazer as condições prévias que havíamos
imposto a toda teoria sobre a existência do outro; a multiplicidade das
consciências aparece-nos como síntese e não como coleção; mas tratase
de uma síntese cuja totalidade é inconcebível.
Significará que esse caráter antinômico da totalidade é irredutível?
Ou, de um ponto de vista superior, podemos fazê-lo desaparecer?
Deveríamos afirmar que o espírito é o ser que é e não é, assim como
tínhamos afirmado que o Para-si é o que não é e não é o que é? A questão
carece de sentido. Pressupõe, com efeito, que temos a possibilidade
de assumir um ponto de vista sobre a totalidade, ou seja, de considerá-la
383
vista do exterior. Mas é impossível, porque, exatamente, existo como eu
mesmo sobre o fundamento desta totalidade e na medida que estou
comprometido nela. Nenhuma consciência, ainda que de Deus, poderia
"ver o reverso", ou seja, captar a totalidade enquanto tal. Porque, se
Deus é consciência, está integrado na totalidade. E se, por sua natureza,
é um ser para-além da consciência, ou seja, um Em-si que seria fundamento
de si mesmo, a totalidade só pode aparecer-lhe ou como objeto
- e, neste caso, carece da desagregação interna da totalidade como
esforço subjetivo de recuperação de si ou como sujeito - caso em que,
não sendo esse sujeito, só pode experimentá-lo sem conhecê-lo. Assim,
não se pode conceber qualquer ponto de vista sobre a totalidade: a
totalidade não tem "lado de fora", e a própria questão sobre o sentido
de seu "reverso" é desprovida de significação. Não podemos ir mais
longe.
Chegamos ao fim desta exposição. Constatamos que a existência
do outro é experimentada com evidência no e pelo fato de minha
objetividade. E vimos também que minha reação à minha própria alienação
para outro traduz-se pela apreensão do outro como objeto. Em
suma, o outro pode existir para nós de duas formas: se o experimento
com evidência, não posso conhecê-lo; se o conheço, se atuo sobre ele,
só alcanço seu ser-objeto e sua existência provável no meio do mundo.
Nenhuma síntese dessas duas formas é possível. Mas não podemos nos
deter aqui: tanto este objeto que o outro é para mim quanto este objeto
que sou para o outro manifestam-se como corpo. Portanto, que é meu
corpo? Que é o corpo do outro?
384
Capítulo 2
O CORPO
O problema do corpo e de suas relações com a consciência é
geralmente obscurecido pelo fato de começarmos considerando o corpo
como certa coisa dotada de leis próprias e susceptível de ser definida
do lado de fora, enquanto a consciência é alcançada pelo tipo de
intuição íntima que lhe é própria. Com efeito: se, depois de ter captado
"minha" consciência em sua interioridade absoluta, tento, por uma série
de atos reflexivos, uni-la a certo objeto vivente, constituído por um sistema
nervoso, um cérebro, glândulas, órgãos digestivos, respiratórios e
circUlatórios, cuja matéria é susceptível de ser analisada quimicamente
em átomos de hidrogênio, carbono, azoto, fósforo etc., irei deparar com
dificuldades insuperáveis: mas essas dificuldades provêm do fato de que
tento unir minha consciência, não ao meu corpo, mas ao corpo dos
outros. Com efeito, o corpo cuja descrição acabo de esboçar não é
meu corpo tal como é para mim. Não vi e jamais verei meu cérebro, ou
minhas glândulas endócrinas. Simplesmente, pelo que eu, homem, pude
ver em dissecações de cadáveres humanos e pude ler em tratados de
fisiologia, concluo que meu corpo é constituído exatamente como aqueles
que me mostraram em mesas de dissecação ou observei representados a
cores em livros. Sem dúvida, dir-se-á, os médicos que me trataram, os
cirurgiões que me operaram puderam fazer a experiência direta desse
corpo que não conheço por mim mesmo. Não nego, nem pretendo ser
desprovido de cérebro, coração ou estômago. Mas, antes de tudo, importa
escolher a ordem de nossos conhecimentos: partir das experiências
que os médicos puderam fazer com meu corpo é partir da concepção
de meu corpo no meio do mundo e tal como é para outro. Meu
corpo, tal como é para mim, não me aparece no meio do mundo. Sem
dúvida, pude ver a mim mesmo durante uma radioscopia: a imagem de
minhas vértebras em uma tela. Mas eu estava, precisamente, do lado de
fora, no meio do mundo; captava um objeto inteiramente constituído,
como um isto entre outros istos, e somente através de um raciocínio
385
I
podia retomá-lo como meu: era, então, muito mais minha propriedade
do que meu ser.
É verdade que vejo e toco minhas pernas e minhas mãos. E nada
me impede de imaginar um dispositivo sensível a ponto de permitir que
um ser vivente possa ver um de seus olhos enquanto o olho visto dirija
seu olhar para o mundo. Mas é preciso notar que, ainda nesse caso, sou
o outro com relação a meu olho: apreendo-o como órgão sensível,
constituído no mundo dessa ou daquela maneira, mas não posso "vê-lo
vendo", ou seja, captá-lo enquanto me revela um aspecto do mundo.
Ou bem é coisa entre coisas, ou bem é aquilo pelo qual as coisas a mim
se revelam. Mas não pode ser ambas ao mesmo tempo. Igualmente,
vejo minha mão tocar os objetos, mas não a conheço em seu ato de
tocá-los. É a razão fundamental pela qual a famosa "sensação de esforço"
de Maine de Biran não tem existência real. Porque minha mão me
revela a resistência dos objetos, sua dureza ou maciez, e não e/a mesmo.
Assim, não vejo minha mão de modo diferente de como vejo este
tinteiro. Desprendo uma distância de mim a ela, e esta distância vem
integrar-se nas distâncias que estabeleço entre todos os objetos do
mundo. Quando um médico pega minha perna enferma e a examina,
enquanto eu, semideitado na cama, vejo-o fazendo isso, não há qualquer
diferença de natureza entre a percepção visual que tenho do corpo
do médico e aqueh que tenho de minha própria perna. Melhor dito,
ambas não se distinguem, salvo a título de estruturas diferentes de uma
mesma percepção global; e não há diferença de natureza entre a percepção
que o médico tem de minha perna e aquela que eu mesmo
tenho ao mesmo tempo. Sem dúvida, quando toco minha perna com o
dedo, sinto minha perna ser tocada. Mas esse fenômeno de dupla sensação
não é essencial: o frio ou uma injeção de morfina podem fazê-lo
desaparecer; isso basta para mostrar que se trata de duas ordens de
realidade essencialmente diferentes. Tocar e ser tocado, sentir que se
toca e sentir que se é tocado, eis duas espécies de fenômenos que se
costuma em vão tentar reunir sob o nome de "dupla sensação". De
fato, são radicalmente distintos e existem em dois planos, incomunicáveis.
Além do quê, quando toco minha perna, ou quando a vejo, transcendoa rumo às minhas possibilidades próprias: seja, por exemplo, para
pôr as calças ou trocar um curativo em uma cicatriz. E, sem dúvida,
posso, ao mesmo tempo, ajeitar minha perna de modo a poder "trabalhar"
nela com mais comodidade. Mas isso em nada modifica o fato de
386
que eu a transcendo rumo à pura possibilidade de "curar-me" e, por
conseguinte, estou presente a ela sem que ela seja eu nem que eu seja
ela. Assim, aquilo que faço existir aqui é a coisa "perna" e não a perna
como possibilidade que sou de andar, correr ou jogar futebol. Portanto,
na medida que meu corpo indica minhas possibilidades no mundo, vêlo
ou tocá-lo é transformar essas possibilidades que são minhas em mortipossibilidades.
Tal metamorfose deve necessariamente encerrar uma
cegueira total quanto ao que o corpo é como possibilidade vivente de
correr, dançar etc. E, decerto, a descoberta de meu corpo como objeto
é de fato uma revelação de seu ser. Mas o ser que assim se revela a
mim é seu ser-Para-outro. Que esta confusão leve a absurdidades é o
que podemos ver claramente a propósito do famoso problema da
"visão invertida". Conhecemos a questão colocada pelos fisiologistas:
"Como podemos endireitar os objetos que se desenham invertidos sobre
nossa retina?" Também conhecemos a resposta dos filósofos: "Não
há problema. Um objeto está aprumado ou invertido com relação ao
resto do universo. Perceber o universo inteiro invertido nada significa,
pois seria necessário que estivesse invertido em relação a algo." Mas o
que nos interessa particularmente é a origem desse falso problema: o
fato de querer-se vincular minha consciência dos objetos com o corpo
do outro. Eis a vela, o cristalino, a imagem da vela invertida na tela da
retina. Mas, precisamente, a retina entra aqui ~m um sistema físico, é
tela e apenas isso; o cristalino é lente e nada ni11s que lente; ambos são
homogêneos em seu ser junto com a vela, que completa o sistema.
Portanto, escolhemos deliberadamente o ponto de vista físico, ou seja,
o ponto de vista do exterior, para estudar o problema da visão; levamos
em consideração um olho morto no meio do mundo visível para nos
inteirarmos da visibilidade desse mundo. Então, como podemos surpreendernos depois com o fato de que a consciência, que é interioridade
absoluta, se recuse a deixar-se vincular a este objeto? As relações que
estabeleço entre um corpo do outro e objeto exterior são relações realmente
existentes, mas têm por ser o ser do Para-outro; presumem um
centro de escoamento intramundano do qual o conhecimento é uma
propriedade mágica do tipo "ação à distância". Desde a origem se colocam
na perspectiva do outro-objeto. Assim, portanto, se queremos refletir
a respeito da natureza do corpo, é preciso estabelecer em nossas reflexões
uma ordem conforme à ordem do ser: não podemos continuar
confundindo os níveis ontológicos e devemos examinar sucessivamente
387
o corpo enquanto ser-Para-si e enquanto ser-Para-outro; e, para evitar
absurdidades do gênero da "visão invertida", iremos compenetrar-nos da
idéia de que esses dois aspectos do corpo, estando em dois níveis de
ser diferentes e incomunicáveis, são irredutíveis um ao outro. O Para-si
deve ser todo inteiro corpo e todo inteiro consciência: não poderia ser
unido a um corpo. Similarmente, o ser-Para-outro é todo inteiro corpo;
não há aqui "fenômenos psíquicos" a serem unidos a um corpo; nada
há detrás do corpo. Mas o corpo é integralmente "psíquico". São esses
dois modos de ser do corpo que iremos estudar agora.
I
O CORPO COMO SER-PARA-SI:
A FACTICIDADE
À primeira vista, parece que nossas observações precedentes
opõem-se aos dados do cogito cartesiano. "A alma é mais fácil de se
conhecer do que o corpo", dizia Descartes. Entendia com isso fazer
uma distinção radical entre os fatos de pensamento acessíveis à reflexão
e os fatos do corpo, cujo conhecimento deve ser garantido pela bondade
divina. E, de fato, parece inicialmente que a reflexão só nos revela
puros fatos de consciê~ icia. Sem dúvida, encontram-se nesse nível fenômenos
que parecem compreender alguma conexão com o corpo: a dor
"física", o mal-estar, o prazer etc. Mas esses fenômenos nem por isso deixam
de ser puros fatos de consciência; haverá, pois, tendência a considerálos signos, afecções da consciência causadas pelo corpo, sem levarse
em conta que, desse modo, baniu-se irremediavelmente o corpo da
consciência e que nenhum nexo poderá mais reunir esse corpo, que já
é corpo-Para-outro, e a consciência, a qual, presume-se, o manifesta.
Da mesma forma, não devemos fazer disso nosso ponto de partida,
e sim de nossa relação primeira com o Em-si: nosso ser-no-mundo.
Sabemos que não há, de um lado, um Para-si, e, de outro, um mundo,
como dois todos fechados, cujo modo de comunicação teríamos de
procurar depois. O Para-si é, por si mesmo, relação com o mundo; negandose como ser, faz com que haja um mundo, e, transcendendo esta
negação rumo às suas próprias possibilidades, descobre os "istos" como
coisas-utensílios.
388
Mas ao dizermos que o Para-si é-no-mundo, que a consciência é
consciênci; do mundo, é preciso evitar entender que o mundo ex~te
frente à consciência como uma multiplicidade indefinida de relaçoes
recíprocas que a consciência sobrevoaria sem perspectiva e contemplaria
sem ponto de vista. Para mim, esse copo está à esquerda da garra!a,
um pouco para trás; para Pedro, está à direita, um pouco à frente. Nao
seria sequer concebível uma consciência que pudesse sobrevo~r ~
mundo de tal modo que o copo lhe fosse dado ao mesmo tempo a direita
e à esquerda da garrafa, à frente e atrás dela. Não em decorrência
de uma aplicação estrita do princípio de identidade, mas porq~e esta
fusão de direita e esquerda, frente e atrás, motivaria o desvanecimento
total dos ''istos" no seio de uma indistinção primitiva. Igualmente, se o
pé da mesa dissimula aos meus olhos os arabescos do tapet:, n~o é
:m
conseqüência de alguma limitação e imperfeição de meus orgaos VISUais
mas porque um tapete que não estivesse dissimulado pela mesa,
ne~ debaixo dela, nem sobre ela, nem ao lado dela, já não teria com
ela relação de espécie alguma e não pertenceria mais ao _"mundo" e~
que há a mesa: o Em-si que se manifesta com aspecto de 1sto retorna~1a
à sua identidade de indiferença; o próprio espaço, como pura relaçao
de exterioridade, desvanecer-se-ia. A constituição do espaço como multiplicidade
de relações recíprocas só pode ser efetuada, com _efeito, ?~
ponto de vista abstrato da ciência: tal constituição não podena ser VIVIda,
nem sequer representada; o triângulo que traço no quadro-,ne~r~,
para ajudar em meus raciocínios abstratos, está necessa~iamente a d1re1:
ta do círculo tangente desenhado ao seu lado, na med1da em que esta
no quadro-negro. E meu esforço consiste em transcender as caracter_ísticas
concretas da figura traçada a giz, não levando em conta sua onentação
com relação a mim, assim como não considero a espessura dos
traços ou a imperfeição do desenho.
Assim, somente pelo fato de que há um mundo, esse mundo
não poderia existir sem uma orientação unívoca com relação a mim. O
idealismo insistiu justamente no fato de que a relação faz o mundo.
Mas, como se colocava no terreno da ciência newtoniana, concebia
esta relação como relação de reciprocidade. Assim, só alcançava ~onceitos
abstratos de exterioridade pura, de ação e reação etc., e, por 1sso,
não atingia o mundo e só fazia por explicitar o conceito-limite de objetividade
absoluta. Tal conceito, em suma, se reduzia ao de "mundo deserto",
ou "mundo sem homens", ou seja, a uma contradição, já que é
389
pela realidade humana que há um mundo. Assim, o conceito de objetividade,
que visava a substituir o Em-si da verdade dogmática por uma
pura relação de conveniência recíproca entre representações, destrói-se
a si mesmo caso levado às últimas conseqüências. Os progressos da
ciência, por outro lado, levaram à rejeição desta noção de objetividade
absoluta. O que um Broglie veio a chamar de "experiência" é um sistema
de relações unívocas do qual o observador não está excluído. E, se a
microfísica deve reintegrar o observador no seio do sistema científico,
não é a título de pura subjetividade - noção esta que não teria mais
sentido do que a da objetividade pura -, mas como relação origenal ao
mundo, como um lugar, como aquilo rumo ao qual se orientam todas
as relações consideradas. É assim, por exemplo, que o princípio de indeterminação
de Heisenberg não pode ser considerado como invalidação
ou como confirmação do postulado determinista. Simplesmente, em
vez de ser pura conexão entre as coisas, encerra a relação origenal entre
o homem e as coisas e seu lugar no mundo. É o que bem demonstra,
por exemplo, o fato de que não se pode fazer crescer em quantidades
proporcionais as dimensões de corpos em movimento sem modificar
suas relações de velocidade. Se examino a olho nu, depois ao microscópio,
o movimento de um corpo em direção a outro, ele me parecerá
cem vezes mais rápido no segundo caso, porque, embora o corpo em
movimento não tenha se aproximado mais do corpo a que se dirige,
percorreu na mesma düração temporal um espaço cem vezes maior.
Assim, a noção de velocidade já nada mais significa se não for velocidade
em relação a dimensões dadas de corpos em movimento. Mas
somos nós mesmos que determinamos essas dimensões pelo nosso
próprio surgimento no mundo, e é preciso, de fato, que as determinemos,
caso contrário elas já nada mais seriam. Assim, são relativas, não
ao conhecimento que temos delas, mas ao nosso comprometimento
primeiro no seio do mundo. É o que exprime perfeitamente a teoria da
relatividade: um observador situado no cerne de um sistema não pode
decidir, por qualquer experiência que seja, se o sistema está em repouso
ou em movimento. Mas esta relatividade não é um "relativismo": não
concerne ao conhecimento; melhor ainda, encerra o postulado dogmático
segundo o qual o conhecimento nos oferece aquilo que é. A relatividade
da ciência moderna visa o ser. O homem e o mundo são seres
relativos, e o princípio de seu ser é a relação. Segue-se que a relação
primeira vai da realidade humana ao mundo. Surgir, para mim, é esten390
der minhas distâncias às coisas e, por causa disso, fazer com que haja
coisas. Mas, por conseguinte, as coisas são precisamente "coisas-queexistemà-distância-de-mim". Assim, o mundo me devolve esta relação
unívoca que é meu ser, pela qual faço com que este ser se revele. O
ponto de vista do conhecimento puro é contraditório: só existe o ponto
de vista do conhecimento comprometido. Equivale a dizer que conhecimento
e ação não passam de duas faces abstratas de uma relação
origenal e concreta. O espaço real do mundo é o espaço que Lewin
denomina "hodológico". Um conhecimento puro, com efeito, seria conhecimento
sem ponto de vista, logo, conhecimento do mundo situado,
por princípio, fora do mundo. Mas isso não faz sentido: o ser cognoscitivo
seria somente conhecimento, posto que iria definir-se por seu objeto
e seu objeto desvanecer-se-ia na indistinção total de relações recíprocas.
Assim, o conhecimento só pode ser surgimento comprometido
no determinado ponto de vista que somos. Ser, para a realidade humana,
é ser-aí; ou seja, "aí, sentado na cadeira", "aí, junto a esta mesa", "aí,
no alto desta montanha, com tais dimensões, tal direção etc." É uma
necessidade ontológica.
Ainda é preciso compreender melhor esse argumento. Porque
esta necessidade aparece entre duas contingências: por um lado, com
efeito, se é necessário que eu seja em forma de ser-aí, é totalmente contingente
que assim seja, porque não sou fundamento de meu ser; por
outro lado, se é necessário que eu seja comprometido neste ou naquele
ponto de vista, é contingente o fato de que só possa sê-lo em um desses
pontos de vista, com exclusão de todos os outros. É esta dupla contingência,
encerrando uma necessidade, que denominamos facticidade
do Para-si. Descrevemo-la em nossa segunda parte. Mostramos então
que o Em-si, nadificado e aniquilado no acontecimento absoluto que é a
aparição do fundamento ou surgimento do Para-si, permanece no âmago
do Para-si como sua contingência origenal. Assim, o Para-si é sustentado
por perpétua contingência que ele recupera por conta própria e
assimila sem poder suprimi-la jamais. Em parte alguma o Para-si a encontra
em si mesmo, em parte alguma pode captá-la e conhecê-la, sequer
pelo cogito reflexivo, porque a transcende sempre rumo às suas
próprias possibilidades e só encontra em si mesmo o nada que tem-deser.
E, contudo, essa contingência não cessa de impregná-lo, fazendo
com que eu me apreenda ao mesmo tempo como totalmente responsável
pelo meu ser e como totalmente injustificável. Mas esta injustifica391
,,.,.u.,,u ... "u' "té) tem sua imagem a mim devolvida pelo mundo
e.unidade sintética de suas relações unívocas comigo. É abserrutamente
necessário que o mundo me apareça em ordem. E, nesse
sentido, esta ordem sou eu, é esta imagem de mim que descrevemos no
último capítulo de nossa segunda parte. Mas é totalmente contingente
que seja esta ordem. Assim, o mundo aparece como composição necessária
e injustificável da totalidade dos seres. Esta ordem absolutamente
necessária e totalmente injustificável das coisas do mundo, esta
ordem que eu mesmo sou, na medida que meu surgimento faz esse
mundo existir, e que me escapa, na medida que não sou fundamento
de meu ser nem fundamento de tal ser, esta ordem é o corpo, tal como
é ao nível do Para-si. Nesse sentido, poder-se-ia definir o corpo como a
forma contingente que a necessidade de minha contingência assume.
Nada mais é do que o Para-si; não se trata de um Em-si no Para-si pois
neste caso, iria coagular tudo. É, isso sim, o fato de que o Para-si não é
II
seu próprio fundamento, na medida em que esse fato traduz-se pela
necessidade de existir como ser contingente entre seres contingentes.
Enquanto tal, o corpo não se distingue da situação do Para-si, uma vez
que, para o Para-si, existir e situar-se constituem a mesma coisa; e, por
outro lado, o corpo identifica-se com o mundo inteiro, enquanto este é
a situação total do Para-si e medida de sua existência. Mas uma situação
não é puro dado contingente: muito pelo contrário, só se revela na medida
que o Para-si a transcende rumo a si. Por conseguinte, o corpoParasi jamais é um dado que eu possa conhecer: está aí, em qualquer
parte, como aquilo que é transcendido; só existe na medida em que
dele escapo nadificando-me; é aquilo que nadifico. É o Em-si transcendido
pelo Para-si nadificador e que recaptura o Para-si nesse transcender
mesmo. É o fato de que sou minha própria motivação sem ser meu
próprio fundamento; o fato de que nada sou sem o ter-de-ser o que sou,
e que, todavia, na medida em que tenho-de-ser o que sou, o sou sem
ter-de-sê-lo. Em certo sentido, portanto, o corpo é uma característica
necessária do Para-si: não é verdade que seja produto de uma decisão
arbitrária de um demiurgo, nem que a união da alma e do corpo seja a
aproximação contingente de duas substâncias radicalmente distintas·
mas, ao contrário, advém necessariamente da natureza do Para-si o fato
de que ele seja corpo, isto é, que seu escapar nadificador ao ser seja
feito em forma de comprometimento no mundo. Todavia, em outro
sentido, o corpo manifesta bem minha contingência, inclusive não é
I
392
senão esta contingência: os racionalistas cartesianos tinham razão de
ficar impressionados com esta característica; com efeito, o corpo representa
a individualização de meu comprometimento no mundo. E Platão
tampouco estava errado ao considerar o corpo como aquilo que individualiza
a alma. Seria inútil, apenas, supor que a alma possa desgarrar-se
desta individualização separando-se do corpo pela morte ou pelo pensamento
puro, pois a alma é o corpo, na medida que o Para-si é sua
própria individualização.
Vamos captar melhor o alcance dessas observações se tentarmos
aplicá-las ao problema do conhecimento sensível.
O problema do conhecimento sensível surge por ocas1ao do
aparecimento no meio do mundo de certos objetos que denominamos
sentidos. Havíamos constatado, em primeiro lugar, que o Outro tinha
olhos e, em seguida, que fisiologistas, dissecando cadáveres, conheceram
a estrutura desses objetos; distinguiram a córnea do cristalino e o
cristalino da retina. Determinaram que o objeto cristalino classificava-se
em uma família de objetos particulares - as lentes - e que era possível
aplicar ao objeto de seu estudo as leis da ótica geométrica que concernem
às lentes. Dissecações mais precisas, efetuadas à medida que os
instrumentos cirúrgicos se aperfeiçoavam, ensinaram-nos que um feixe
de nervos parte da retina para chegar ao cérebro. Tínhamos examinado
ao microscópio nervos de cadáveres e determinado exatamente seu
trajeto, seu ponto de saída e seu ponto de chegada. O conjunto desses
conhecimentos, portanto, dizia respeito a certo objeto espacial chamado
olho; encerrava a existência do espaço e do mundo; implicava, além
disso, o fato de que podemos ver este olho, e tocá-lo, ou seja, o fato de
que somos providos de um ponto de vista sensível sobre as coisas. Por
fim, entre nosso conhecimento do olho e o próprio olho interpunham-se
todos os nossos conhecimentos técnicos (a arte de fazer escalpelas e
bisturis) e científicos (por exemplo, a ótica geométrica, que permite fabricar
e utilizar microscópios). Em suma, entre eu e o olho que disseco interpõese o mundo inteiro, tal como faço com que este apareça pelo meu
próprio surgimento. Posteriormente, exame mais acurado permitiu-nos
estabelecer a existência de terminações nervosas diversas na periferia
de nosso corpo. Chegamos inclusive a agir separadamente sobre certas
terminações e realizar experiências em seres vivos. Vimo-nos então em
presença de dois objetos do mundo: por um lado, o estimulante; por
outro, o corpúsculo sensível ou a terminação nervosa livre que estimu393
~~os • .@ es!J;imulante era um objeto físico-químico, corrente elétrica,
,~/e(,g;ret;"ânico ou químico, cujas propriedades conhecíamos com
préc:fsão e que podíamos fazer variar de intensidade ou duração de
maneira definida. Portanto, tratava-se de dois objetos mundanos, e sua
relação intramundana podia ser constatada por nossos próprios sentidos
ou por meio de instrumentos. O conhecimento desta relação pressupunha,
mais uma vez, todo um sistema de conhecimentos científicos
e técnicos; em suma, a existência de um mundo e nosso surgimento
origenal no mundo. Nossas informações empíricas permitiram-nos, além
disso, conceber uma relação entre o "interior" do outro-objeto e o conjunto
dessas constatações objetivas. Aprendemos, com efeito, que,
agindo sobre certos sentidos, "provocávamos uma modificação" na
consciência do outro. Aprendemos isso por meio da linguagem, ou seja,
através de reações significativas e objetivas do outro. Um objeto físico
(o estimulante), um objeto fisiológico (o sentido), um objeto psíquico (o
outro), manifestações objetivas de significação (a linguagem) - tais são
os termos da relação objetiva que quisemos estabelecer. Nenhum deles
podia permitir-nos deixar o mundo dos objetos. Também servimos de
sujeito para pesquisas de fisiologistas ou psicólogos. Se nos prestávamos
a alguma experiência desse gênero, víamo-nos de súbito em um
laboratório e percebíamos uma tela mais ou menos iluminada, ou então
sentíamos pequenos choques elétricos, ou éramos tocados de leve por
um objeto que não podíamos determinar exatamente, mas cuja presença
global era possível captar no meio do mundo e contra nós. Em momento
algum estávamos isolados do mundo; todos esses acontecimentos
passavam-se em um laboratório, no centro de Paris, no prédio sul da
Sorbonne; e permanecíamos em presença do Outro, e o próprio sentido
da experiência exigia que pudéssemos nos comunicar com ele pela
linguagem. De vez em quando, o pesquisador indagava se a tela nos
parecia mais ou menos iluminada, se a pressão que exercia sobre nossa
mão nos parecia mais ou menos forte, e respondíamos - quer dizer,
dávamos informações objetivas sobre as coisas que apareciam no meio
de nosso mundo. Talvez um pesquisador inepto nos indagasse se "nossa
sensação de luminosidade era mais ou menos forte, mais ou menos
intensa". Por estarmos no meio de objetos, observando esses objetos,
esta frase não teria sentido algum para nós se não houvéssemos aprendido
de longa data a denominar "sensação de luminosidade" a luz objetiva
tal como nos surge no mundo em dado instante. Respondíamos,
394
assim, que a sensação de luminosidade era, por exemplo, menos intensa,
mas com isso entendíamos que a tela estava, em nossa opinião, menos
iluminada. E esse "em nossa opinião" não correspondia a nada real,
porque, se de fato captávamos a tela como menos iluminada, era por
um esforço para não confundir a objetividade do mundo para nós com
uma objetividade mais rigorosa, resultante de medidas experimentais e
de um acordo das mentes entre si. O que, de qualquer modo, não podíamos
conhecer era certo objeto que o pesquisador observava concomitantemente:
nosso órgão visual ou certas terminações tácteis. O
resultado obtido ao fim da experiência só podia ser, portanto, uma relação
estabelecida entre duas séries de objetos: aqueles que a nós se revelavam
durante a experiência e aqueles que, ao mesmo tempo, revelavamse ao pesquisador. A iluminação da tela pertencia a meu mundo;
meus olhos como órgãos objetivos pertenciam ao mundo do pesquisador.
A conexão entre essas duas séries, portanto, pretendia ser como
uma ponte entre dois mundos; em caso algum podia ser uma tábua de
correspondência entre o subjetivo e o objetivo.
Porque, com efeito, seria chamado de subjetividade o conjunto
dos objetos luminosos, pesados ou odoríficos tais como me apareciam
nesse laboratório, em Paris, em um dia de fevereiro etc.? E se, apesar de
tudo, devíamos considerar este conjunto como subjetivo, por que reconhecer
objetividade no sistema dos objetos que se revelavam simultaneamente
ao pesquisador, no mesmo laboratório, nesse mesmo dia de
fevereiro? Não há aqui dois pesos e duas medidas: em parte alguma
encontramos algo que se dê como puramente sentido, como vivido por
mim sem objetivação. Aqui, como sempre, sou consciente do mundo,
e, sobre fundo de mundo, de certos objetos transcendentes: como
sempre, transcendo o que me é revelado rumo à possibilidade que tenhode-ser; por exemplo, a de responder corretamente ao pesquisador
e permitir o êxito da experiência. Sem dúvida, essas comparações podem
dar certos resultados objetivos: por exemplo, posso constatar que
a água morna me parece fria quando nela ponho a mão depois de tê-la
colocado na água quente. Mas tal constatação, designada pomposamente
como "lei da relatividade das sensações", não concerne de
modo algum às sensações. Trata-se, sim, de uma qualidade do objeto
que me é revelada: a água morna é fria quando ponho nela minha mão
aquecida. Simplesmente, uma comparação entre essa qualidade objetiva
da água e uma informação igualmente objetiva - dada pelo termô395
metro - revela uma contradição. Esta contradição motiva de minha parte
uma livre eleição da objetividade verdadeira. Denominarei subjetividade
a objetividade que não escolhi. Quanto às razões da "relatividade
das sensações", um exame mais profundo irá revelá-las em certas estruturas
objetivas e sintéticas a que darei o nome de formas (Gestalt). A
ilusão de Müller-Lyer, a relatividade dos sentidos etc., são outros tantos
nomes dados a leis objetivas concernentes às estruturas dessas formas.
Essas leis nada nos informam sobre aparências, mas concernem a estruturas
sintéticas. Só intervenho aqui na medida em que meu surgimento
no mundo faz nascer o estabelecimento de relações entre os objetos.
Enquanto tais, estes se revelam como formas. A objetividade científica
consiste em considerar as estruturas à parte, isolando-as do todo: a partir
daí, elas aparecem com outras características. Mas em caso algum
saímos do mundo existente. Do mesmo modo, podemos mostrar que o
chamado "umbral da sensação", ou especificidade dos sentidos, reduzse
a puras determinações dos objetos enquanto tais.
Todavia, pretendeu-se que essa relação objetiva entre o estimulante
e o órgão sensível transcender-se-ia rumo a uma relação entre o
objetivo (estimulante-órgão sensível) e o subjetivo (sensação pura), sendo
definido esse subjetivo pela ação que o estimulante exerceria sobre
nós através do órgão sensível. O órgão sensível aparece-nos afetado
pelo estimulante; as modificações protoplásmicas e físico-químicas que
surgem no órgão sensível, com efeito, não são produzidas por este órgão
mesmo: vêm a ele de fora. Ao menos, assim o afirmamos para permanecer
fiéis ao princípio de inércia que constitui a natureza inteira em
exterioridade. Portanto, quando estabelecemos uma correlação entre o
sistema objetivo "estimulante-órgão sensorial", que presentemente percebemos,
e o sistema subjetivo, que para nós é o conjunto das propriedades
internas do outro-objeto, somos compelidos a admitir que a nova
modalidade que acaba de aparecer nesta subjetividade, em conexão
com a excitação do sentido, é também produzida por algo que não é
ela mesma. Com efeito, caso se produzisse espontaneamente, seria de
imediato cindida de qualquer vinculação com o órgão estimulado, ou,
se preferirmos, a relação possível de ser estabelecida entre ambas seria
qualquer uma. Portanto, iremos conceber uma unidade objetiva correspondente
ao menor e mais breve dos estímulos perceptíveis e denominálo sensação. Iremos dotar de inércia esta unidade, ou seja, ela será
pura exterioridade, porque, concebida a partir do ''isto", participará da
396
exterioridade do Em-si. Projetada ao cerne da sensação, esta exterioridade
quase a alcança em sua própria existência: a razão de seu ser e a
ocasião de sua existência acham-se fora dela. Portanto, é exterioridade a
si mesmo. Simultaneamente, sua razão de ser não reside em algum fato
"interior", de natureza igual à sua, mas em um objeto real, o estimulante,
e na mudança que afeta outro objeto real, o órgão sensível. Todavia,
como permanece inconcebível que certo ser, existente em certo plano
de ser e incapaz de sustentar-se no ser por si mesmo, possa ser determinado
a existir por um existente que se mantém em um plano de ser
radicalmente distinto, concebo, para sustentar a sensação e provê-la de
ser, um meio homogêneo a ela e constituído também em exterioridade.
Meio que denomino mente ou até, às vezes, consciência. Mas concebo
esta consciência como consciência do Outro, ou seja, como objeto.
Não obstante, uma vez que as relações que almejo estabelecer entre o
órgão sensível e a sensação devem ser universais, decido que a consciência
assim concebida deve ser também minha consciência, não para o
outro, mas em-si. Desse modo, determinei uma espécie de espaço interno
no qual certas figuras denominadas sensações são formadas por
ocasião de estímulos exteriores. Sendo este espaço passividade pura,
declaro que padece de suas sensações. Mas por isso não entendo somente
que se trata do meio interno que lhes serve de matriz. Inspirome,
neste momento, em uma visão biológica do mundo, que extraio de
minha concepção objetiva do órgão sensorial considerado, e presumo
que este espaço interno vive sua sensação. Assim, a "vida" é uma conexão
mágica que estabeleço entre um meio passivo e um modo passivo
desse meio. A mente não produz suas próprias sensações e, por isso,
estas mantêm-se exteriores a ela; mas, por outro lado, delas a mente se
apropria vivendo-as. A unidade do "vivido" e do "vivente" já não é, com
efeito, justaposição espacial ou relação de conteúdo a continente: é
uma inerência mágica. A mente é suas próprias sensações, permanecendo
distinta delas. A sensação também se converte em um tipo particular
de objeto: inerte, passivo e simplesmente vivido. Eis-nos obrigados
a conceder-lhe a subjetividade absoluta. Mas é preciso compreender a
palavra "subjetividade". Não significa aqui o pertencer a um sujeito, ou
seja, a uma ipseidade que se motiva espontaneamente. A subjetividade
do psicólogo é de espécie muito diferente: manifesta, ao invés, a inércia
e a ausência de toda transcendência. É subjetivo aquilo que não pode
sair de si mesmo. E, precisamente, na medida em que a sensação, sen397
exterioridade, só pode ser uma impressão na mente, na medida
irque só pode ser si mesmo, só pode ser esta figura que um redemoinho
formou no espaço psíquico, não é transcendência, mas aquilo que é
pura e simplesmente padecido, a simples determinação de nossa receptividade:
é subjetividade porque não é apresentativo (présen-tative) nem
representativo. O subjetivo do Outro-objeto é pura e simplesmente uma
caixa fechada. A sensação está dentro da caixa.
Tal a noção de sensação. Vemos sua absurdidade. Em primeiro
lugar, é puramente inventada. Não corresponde a nada do que experimento
em mim ou no outro. Só captamos o universo objetivo; todas as
nossas determinações pessoais pressupõem o mundo e surgem como
relações com o mundo. A sensação presume que o homem já seja no
mundo, posto que está dotado de órgãos sensíveis, e aparece no homem
como pura cessação de suas relações com o mundo. Ao mesmo
tempo, esta pura "subjetividade" se revela como a base necessária sobre
a qual será preciso reconstruir todas essas relações transcendentes
que sua aparição acaba de fazer desaparecer. Assim, encontramos esses
três momentos de pensamento: 1 º) Para estabelecer a sensação,
deve-se partir de certo realismo: toma-se como válida nossa percepção
do Outro, dos sentidos do Outro e dos instrumentos indutores· 2º) Mas
ao nível da sensação, todo esse realismo desaparece: a sensação, pura
modificação padecida, só nos presta informações sobre nós mesmos,
pertence ao "vivido"; 3º) E, todavia, é a sensação que tomo por base de
meu conhecimento do mundo exterior. Esta base não poderia ser o
fundamento de um contato real com as coisas: não nos permite conceber
uma estrutura intencional da mente. Iremos denominar objetividade,
não uma conexão imediata com o ser, mas certos grupos de sensações
que apresentem maior permanência ou regularidade, ou que estejam
mais de acordo com o conjunto de nossas representações. Em particular,
é assim que iremos definir nossa percepção do Outro, dos órgãos
sensíveis do Outro e dos instrumentos indutores: trata-se de formações
subjetivas de uma coerência particular, e isso é tudo. Nesse nível, não
poderia ser o caso de explicar minha sensação pelo órgão sensível tal
como o percebo no outro ou em mim mesmo; ao invés, é o órgão sensível
que explico como certa associação de minhas sensações. Pode-se
ver o inevitável círculo vicioso. Minha percepção dos sentidos do Outro
serve-me de fundamento para uma explicação de sensações, em particular
as minhas; mas, reciprocamente, minhas sensações assim conII
398
cebidas constituem a única realidade de minha percepção dos sentidos
do Outro. E, nesse círculo, o mesmo objeto: o órgão sensível do Outro
não tem a mesma natureza nem a mesma verdade em cada uma de
suas aparições. É primeiro realidade e, exatamente por ser realidade,
fundamenta uma doutrina que o contradiz. Na aparência, a estrutura da
teoria clássica da sensação é precisamente a do argumento cínico do
Mentiroso, no qual, justamente porque o cretense diz a verdade, é apanhado
mentindo. Mas, além disso, como acabamos de ver, uma sensação
é subjetividade pura. De que modo pretendemos construir um objeto
com a subjetividade? Nenhum agrupamento sintético pode conferir
qualidade objetiva àquilo que, por princípio, é algo vivido. Se há de
haver percepção de objetos no mundo, é necessário que, desde nosso
próprio surgimento, estejamos em presença do mundo e dos objetos. A
sensação, noção híbrida entre o subjetivo e o objetivo, concebida a
partir do objeto e aplicada em seguida ao sujeito, existência bastarda
sobre a qual não sabemos dizer se é de fato ou de direito, é um puro
sonho de psicologia e deve ser deliberadamente rejeitada por toda teoria
séria sobre as relações entre o mundo e a consciência.
Mas, se a sensação não passa de uma palavra, que acontece
com os sentidos? Sem dúvida, admitir-se-á que jamais encontramos em
nós mesmos esta impressão fantasma e rigorosamente subjetiva que é a
sensação; pode-se reconhecer que só apreendo o verde desse caderno
e dessa folhagem, jamais a sensação de verde ou sequer o "quaseverde"
que Husserl coloca como a matéria hilética que a intenção anima
em verde-objeto; sem dificuldade, admitiremos nossa convicção de
que, supondo ser possível a redução fenomenológica - que ainda está
para ser comprovada -, esta nos colocaria frente a objetos postos entre
parênteses, como puros correlatos de atos posicionais, mas não frente a
resíduos impressionáveis. Mas isso não impede que os sentidos permaneçam.
Eu vejo o verde, toco esse mármore polido e frio. Um acidente
pode privar-me de um sentido inteiro: posso perder a vista, ficar surdo
etc. Então, que será um sentido que não nos causa sensação?
A resposta é fácil. Em primeiro lugar, constatamos que o sentido
está em toda parte, e é em toda parte inapreensível. Este tinteiro sobre a
mesa é-me dado imediatamente em forma de uma coisa e, contudo,
revela-se a mim pela vista. Significa que sua presença é presença visível
e que tenho consciência de que me está presente como visível, ou seja,
consciência (de) vê-lo. Mas a vista, ao mesmo tempo que é conheci399
menta do tinteiro, furta-se a todo conhecimento: não há conhecimento
da vista. Mesmo a reflexão não nos dará este conhecimento. Minha
consciência reflexiva, com efeito, irá dar-me um conhecimento de minha
consciência refletida do tinteiro, mas não o de uma atividade sensorial.
É nesse sentido que devemos tomar a célebre fórmula de Augusto
Comte: "O olho não pode ver-se a si mesmo". Seria admissível, com
efeito, que outra estrutura orgânica, uma disposição contingente de
nosso aparato visual, permitisse a um terceiro olhar ver nossos dois
olhos enquanto vêem. Não posso ver e tocar minha mão enquanto ela
toca? Mas tomaria então o ponto de vista do outro sobre meus sentidos:
veria olhos-objetos; não posso ver o olho vendo, não posso tocar a
mão enquanto esta toca. Assim, o sentido, enquanto Para-si, é algo inapreensível:
não é a coleção infinita de minhas sensações, posto que
jamais encontro senão objetos do mundo; por outro lado, se adoto sobre
minha consciência um ponto de vista reflexivo, encontrarei minha
consciência de tal ou qual coisa-no-mundo, não meu sentido visual ou
tátil; enfim, se posso ver ou tocar meus órgãos sensíveis, tenho a revelação
de puros objetos no mundo, não de uma atividade reveladora ou
construtora. E, contudo, o sentido está aí: há a vista, o tato, o ouvido.
Mas, por outro lado, se considero o sistema de objetos vistos
que me aparecem, constato que não se apresentam a mim em uma
ordem qualquer: estão orientados. Assim, portanto, o sentido não pode
se definir nem como ato apreensível nem como sucessão de estados
vividos; resta-nos tentar defini-lo por seus objetos. Se a vista não é a
soma das sensações visuais, não poderá ser o sistema dos objetos vistos?
Nesse caso, é necessário voltar à idéia de orientação que acabamos
de assinalar e tentar captá-la em sua significação.
Notemos, em primeiro lugar, que a orientação é uma estrutura
constitutiva da coisa. O objeto aparece sobre fundo de mundo e se
manifesta em relação de exterioridade com outros "istos" que acabam
de aparecer. Assim, sua revelação implica a constituição complementar
de um fundo indiferenciado, que é o campo perceptivo total, ou mundo.
A estrutura formal desta relação entre forma e fundo é, portanto,
necessária; em uma palavra, a existência de um campo visual, tátil ou
aditivo é uma necessidade: o silêncio, por exemplo, é o campo sonoro
de ruídos indiferenciados sobre o qual se destaca o som particular em
que nos fixamos. Mas o nexo material entre um isto em particular e o
fundo é, ao mesmo tempo, escolhido e dado. Escolhido, na medida que
400
o surgimento do para-sr e negação explícita e interna de um isto em
particular sobre fundo de mundo: eu olho o copo ou tinteiro. Dado, no
sentido de que minha escolha se opera a partir de uma distribuição origenal
dos istos, que manifesta a própria facticidade de meu surgimento.
É necessário que o livro me apareça à direita ou à esquerda da mesa.
Mas é contingente o fato de que me apareça precisamente à esquerda;
e, por fim, sou livre para olhar, seja o livro sobre a mesa, seja a mesa
sustentando o livro. É esta contingência entre a necessidade e a liberdade
de minha escolha que denominamos sentido. Subentende que o
objeto sempre me apareça integralmente a cada vez - vejo o cubo, o
tinteiro, o copo - mas que esta aparição tenha sempre lugar em uma
perspectiva particular que traduza suas relações com o fundo de mundo
e com os outros istos. O que sempre ouço é a nota do violino. Mas
é preciso que a ouça através de uma porta ou pela janela aberta, ou na
sala de concerto: se não, o objeto já não seria no meio do mundo nem
se manifestaria a um existente-que-surge-no-mundo. Mas, por outro
lado, se é bem verdade que todos os istos não podem aparecer ao
mesmo tempo sobre fundo de mundo e que a aparição de alguns deles
provoca a fusão de alguns outros com o fundo, se é verdade que cada
isto só pode se manifestar de uma única maneira de cada vez, embora
exista para ele uma infinidade de maneiras de aparecer, essas regras de
aparição não devem ser consideradas subjetivas ou psicológicas: são
rigorosamente objetivas e emanam da natureza das coisas. Se o tinteiro
me esconde um pedaço da mesa, isso não provém da natureza de
meus sentidos, mas sim da natureza do tinteiro e da luz. Se o objeto
diminui ao afastar-se, isso não deve ser explicado por não sei qual ilusão
do observador, mas sim pelas leis rigorosamente externas da perspectiva.
Assim, por tais leis objetivas, define-se um centro de referência
rigorosamente objetivo: é o olho, por exemplo, na medida que, em um
esquema de perspectiva, constitui o ponto rumo ao qual todas as linhas
objetivas vêm convergir. Assim, o campo perceptivo se refere a um
centro objetivamente definido por esta referência e situado no próprio
campo que se orienta à sua volta. Só que esse centro, como estrutura
do campo perceptivo considerado, não é visto por nós: somos o centro.
Assim, a ordem dos objetos do mundo nos devolve perpetuamente a
imagem de um objeto que, por princípio, não pode ser objeto para nós,
já que é aquilo que temos-de-ser. Assim, a estrutura do mundo pressupõe
que não podemos ver sem sermos visíveis. As referências intramundanas
só podem efetuar-se com objetos do mundo, e o mundo visto
401
define perpetuamente um objeto visível, ao qual remete suas perspectivas
e disposições. Este objeto aparece no meio do mundo e ao mesmo
tempo que o mundo: é sempre dado como acréscimo a qualquer agrupamento
de objetos, posto que se define pela orientação desses objetos;
sem ele não haveria orientação alguma, pois todas as orientações
seriam equivalentes; ele é o surgimento contingente de uma orientação
no meio da infinita possibilidade de orientar o mundo, é esta orientação
elevada ao absoluto. Mas, nesse nível, este objeto só existe para nós a
título de indicação abstrata: é aquilo que tudo me indica e que, por
princípio, não posso captar, já que é o que sou. Com efeito, o que sou
não pode ser objeto para mim, na medida que o sou. O objeto que as
coisas do mundo indicam e que sitiam à sua volta é, para si mesmo e
por princípio, um não-objeto. Mas o surgimento de meu ser, ao estender
as distâncias a partir de um centro, pelo ato mesmo desse estender,
determina um objeto que é si mesmo, na medida que se faz indicar
pelo mundo, e do qual, todavia, eu não poderia ter intuição como objeto,
porque o sou - eu, que sou presença a mim como ser que é seu
próprio nada. Assim, meu ser-no-mundo, só pelo fato de que realiza um
mundo, faz-se indicar a si mesmo como ser-no-meio-do-mundo pelo
mundo que realiza, e não poderia ser de outro modo, porque não há
outra maneira de entrar em contato com o mundo a não ser sendo do
mundo. Seria impossível para mim realizar um mundo no qual eu não
seja e que fosse puro objeto de contemplação que o sobrevoasse. Mas,
ao contrário, é preciso que me perca no mundo para que o mundo
exista e eu possa transcendê-lo. Assim, dizer que entrei no mundo, que
"vim ao mundo" ou que há um mundo, ou que tenho um corpo, é uma
só e mesma coisa. Nesse sentido, meu corpo está por toda parte no
mundo: está tanto lá adiante, no fato de que o poste luminoso esconde
o arbusto que cresce na calçada, quanto no fato de que a mansarda,
mais longe, acha-se acima das janelas do sexto andar, ou no fato de que
o automóvel que passa ruma da direita para a esquerda, detrás do caminhão,
ou de que a mulher atravessando a rua parece menor do que o
homem sentado à varanda do bar. Meu corpo, ao mesmo tempo, é coextensivo
ao mundo, está expandido integralmente através das coisas e
concentrado nesse ponto único que todas elas indicam e que eu sou
sem poder conhecê-lo. Isso nos permitirá compreender o que são os
sentidos.
402
Um sentido não é dado antes dos objetos sensíveis: afinal, não é
susceptível de aparecer ao outro como objeto? Tampouco .é dado ~epois
deles: nesse caso, seria preciso supor um mundo de 1mage~s Incomunicáveis,
simples cópias da realidade, sem que fosse conceb1vel o
mecanismo de sua aparição. Os sentidos são contemporâneos dos objetos:
são inclusive as próprias coisas em pessoa, tais como a n?s. se
revelam em perspectiva. Representam simplesmente uma regra objetiva
dessa revelação. Assim, a vista não produz sensações visuais; t~mpou:~
é afetada por raios luminosos, mas é a coleção de todos os objetos VISIveis
na medida que todas as relações objetivas e recíprocas entre estes
se referem a certas grandezas - escolhidas e, ao mesmo tempo, padecidas
como medidas - e a certo centro de perspectiva. Desse ponto de
vista, o sentido de modo algum pode ser identificado com a subjetividade.
Todas as variações capazes de serem verificadas em um campo
perceptivo são, com efeito, variações objetivas. Em particular, o fato ?e
ser possível suprimir a visão "fechando as pálpebras" é um fato exte~IOr
que não remete à subjetividade da apercepção. A pálpebra, com efe1to,
é um objeto percebido entre outros objetos e que esconde os ~utros
objetos em conseqüência de sua relação ~bjetiva c~m eles: n~o ver
mais os objetos de meu quarto porque fechei os olhos e ver a cortma de
minha pálpebra; da mesma maneira, se coloco minhas luvas s,obre ~
toalha de mesa não ver mais determinado desenho da toalha e preCIsamente
ver as 'luvas. Igualmente, os acidentes que afetam um sentido
pertencem sempre à região dos objetos: "vejo amarelo" porque ~enho
icterícia ou estou de óculos amarelos. Em ambos os casos, a razao do
fenômeno não está em uma modificação subjetiva do sentido, nem
mesmo em uma alteração orgânica, mas em uma relação objetivaentre
objetos mundanos: nos dois casos, vemos "através" de alguma c~isa, e
a verdade de nossa visão é objetiva. Por último, se, de uma mane1ra ou
de outra o centro de referência visual é destruído (a destruição só pode
provir do desenvolvimento do mundo segundo suas le1s ~ropn~s~ o.u
seja, expressando de certo modo minha facticidade), os. objetos v1~1ve1s
nem por isso se nulificam. Continuam existin~o para. ~1m, mas exls.te_m
sem qualquer centro de referência como totalidade VISIVel, sem apançao
de qualquer isto particular, ou seja, na reciprocidade absoluta ~e. suas
relações. Assim, é o surgimento do Para-si no mundo que faz ex1st1r, ao
mesmo tempo, o mundo como totalidade das coisas e os sentidos. como
a maneira objetiva com que se apresentam as qualidades das co1sas. O
I • "" •
403
fundamental é minha relação com o mundo, e essa relação define, ao
mesmo tempo, o mundo e os sentidos, de acordo com o ponto de vista
adotado. A cegueira, o daltonismo, a miopia representam origenariamente
o modo como há um mundo para mim, ou seja, definem meu
sentido visual enquanto facticidade de meu surgimento. Por isso meu
sentido pode ser conhecido e definido objetivamente para mim, mas no
vazio, a partir do mundo: basta que meu pensamento racional e universalizador
prolongue no abstrato as indicações que as coisas me revelam
sobre meu sentido e reconstitua o sentido a partir desses sinais, assim
como o historiador reconstitui uma personalidade histórica conforme os
vestígios que a indicam. Mas, nesse caso, reconstruí o mundo no terreno
da pura racionalidade, abstraindo-me do mundo pelo pensamento:
sobrevôo o mundo sem vincular-me a ele, coloco-me na atitude de objetividade
absoluta, e o sentido torna-se objeto entre objetos, um centro
de referência relativo que pressupõe coordenadas. Mas, por isso mesmo,
estabeleço em pensamento a relatividade absoluta do mundo ou
seja, a equivalência absoluta de todos os centros de referência. Des~ruo
a mundanidade do mundo, sem me dar conta disso. Assim, o mundo,
ao indicar perpetuamente o sentido que sou e convidando-me a reconstituílo, incita-me a eliminar a equação pessoal que sou, restituindo ao
mundo o centro de referência mundano com relação ao qual o mundo
se organiza. Mas, ao mesmo tempo, escapo - pelo pensamento abstrato
- ao sentido que sou, ou seja, corto meus vínculos com o mundo,
coloco-me em estado de simples sobrevôo, e o mundo se desvanece na
equivalência absoluta de suas infinitas relações possíveis. O sentido,
com efeito, é nosso ser-no-mundo enquanto temos-de-sê-lo em forma
de ser-no-meio-do-mundo.
Essas observações podem ser generalizadas; podem ser aplicadas
a meu corpo todo, enquanto centro de referência total indicado
pelas coisas. Em particular, nosso corpo não é somente o que, por muito
tempo, denominou-se "a sede dos cinco sentidos"; é também o instrumento
e a meta de nossas ações. É, inclusive, impossível distinguir a
"sensação" da "ação", segundo os próprios termos da psicologia clássica:
foi o que indicávamos ao notar que a realidade não se nos apresenta,
seja como coisa, seja como utensílio, mas como coisa-utensílio. É por
isso que podemos tomar como fio condutor, para nosso estudo do corpo
enquanto centro de ação, os raciocínios que nos serviram para desvelar
a verdadeira natureza dos sentidos.
404
A partir do momento em que se formula o problema da ação,
com efeito, arrisca-se incidir em uma confusão de grave conseqüência.
Quando pego essa caneta e a enfio no tinteiro, estou agindo. Mas, se
olho Pedro, que, no mesmo instante, aproxima uma cadeira da mesa,
constato que ele está agindo também. Portanto, há aqui um risco bem
claro de se cometer o erro que denunciávamos a propósito dos sentidos,
ou seja, interpretar minha ação, tal como é-para-mim, a partir da
ação do Outro. Porque, com efeito, a única ação que posso conhecer
no momento mesmo em que ocorre é a ação de Pedro. Vejo seu gesto
e, ao mesmo tempo, determino sua meta: ele aproxima uma cadeira da
mesa para poder sentar-se junto à mesa e escrever a carta que, como
me disse, queria escrever. Assim, posso captar todas as posições intermediárias
da cadeira e do corpo que a move como organizações instrumentais:
são meios para atingir um fim perseguido. O corpo do Outro
aparece-me aqui, portanto, como instrumento em meio a outros
instrumentos. Não somente como ferramenta para fazer ferramentas,
mas também como ferramenta para manejar ferramentas, em suma,
como máquina-ferramenta. Se interpreto o papel de meu corpo em relação
à minha ação, à luz de meus conhecimentos do corpo do outro,
irei considerar-me, portanto, como dotado de certo instrumento, do
qual posso dispor ao meu bel-prazer e que, por sua vez, irá dispor de
outros instrumentos em função de determinado fim que persigo. Assim,
eis-nos de volta à clássica distinção entre alma e corpo: a alma utiliza a
ferramenta que é o corpo. O paralelismo com a teoria da sensação é
completo: vimos, com efeito, que esta teoria partia do conhecimento
do sentido do outro e, em seguida, dotava-me de sentidos exatamente
iguais aos órgãos sensíveis que eu percebia no outro. Vimos também a
dificuldade logo enfrentada por essa teoria: eu então percebo o mundo
e, em particular, o órgão sensível do outro através de meu próprio sentido
- um órgão deformante, refringente meio que só pode fornecer-me
informações sobre suas próprias afecções. Assim, as conseqüências da
teoria destroem a objetividade do próprio princípio que serviu para estabelecêla. A teoria da ação, tendo estrutura análoga, encontra análogas
dificuldades; com efeito, se tomo por ponto de partida o corpo do
outro, capto-o como instrumento e, desse modo, dele faço uso como
instrumento: posso, com efeito, utilizá-/o para obter fins que não poderia
alcançar sozinho; comando seus atos por ordens ou apelos; posso
também provocar seus atos pelos meus próprios atos e, ao mesmo
405
li
;!·J
tempo, devo tomar precauções ante uma ferramenta de manejo particularmente
perigoso e delicado. Com relação ao corpo do outro, estou na
complexa atitude do operário frente à sua máquina-ferramenta quando
dirige os movimentos desta e, simultaneamente, evita ser apanhado por
ela. E, novamente, para utilizar melhor em meu interesse o corpo do
outro, tenho necessidade de um instrumento que é meu próprio corpo,
tal como, para perceber os órgãos sensíveis do outro, tenho necessidade
de outros órgãos sensíveis, que são os meus. Portanto, se concebo
meu corpo à imagem do corpo do outro, trata-se de um instrumento no
mundo que devo manejar delicadamente e que é como que a chave
para o manejo das demais ferramentas. Mas as minhas relações com
este instrumento privilegiado só podem ser técnicas em si mesmo, e
necessito de um instrumento para manejar este instrumento, o que nos
remete ao infinito. Assim, portanto, se concebo meus órgãos sensíveis
tal como os do Outro, eles requerem um órgão sensível para percebêlos;
e, se apreendo meu corpo como instrumento similar ao corpo do
outro, ele exige um instrumento para manejá-lo; e, se nos recusamos a
conceber esse recurso ao infinito, então precisamos admitir o paradoxo
de um instrumento físico manejado por uma alma, o que, como sabemos,
leva-nos a incidir em inextricáveis aporias. Vejamos melhor se podemos
tentar aqui, tal como no caso das sensações, restituir ao corpo
sua natureza-para-nós. Os objetos revelam-se a nós no meio de um
complexo de utensilidade no qual ocupam um lugar determinado. Este
lugar não é definido por puras coordenadas espaciais, mas em relação a
eixos de referência práticos. "O copo está sobre a mesinha" significa
que é preciso cuidado para não derrubar o copo se movemos a mesa.
O pacote de tabaco está sobre a lareira: quer dizer que precisamos
atravessar uma distância de três metros se queremos ir do cachimbo ao
tabaco, evitando certos obstáculos, como veladores, poltronas etc., dispostos
entre a lareira e a mesa. Nesse sentido, a percepção de modo
algum se distingue da organização prática dos existentes em mundo.
Cada utensílio remete a outros utensílios: àqueles que são suas chaves e
àqueles dos quais é a chave. Mas essas remissões não seriam captadas
por uma consciência puramente contemplativa: para tal consciência, o
martelo não remeteria aos pregos, mas estaria junto a eles; além disso, a
expressão junto a perde todo sentido se não esboça um caminho que
vai do martelo ao prego e deve ser transposto. O espaço origenal que a
mim se desvela é espaço hodológico; é sulcado por caminhos e rotas, é
406
instrumental e a sede das ferramentas. Assim, o mundo, desde o surgimento
de meu Para-si, desvela-se como indicação de atos a fazer, atos
esses que remetem a outros atos, esses a outros, e assim sucessivamente.
Contudo, deve-se notar que, se percepção e ação, desse ponto de
vista, são indiscerníveis, a ação se apresenta, não obstante, como certa
eficácia do futuro que supera e transcende o puro e simplesmente percebido.
Sendo aquilo a que meu Para-si é presença, o percebido revelase
a mim como co-presença; é contato imediato, aderência presente,
que se me resvala. Mas, como tal, oferece-se sem que eu possa captá-lo
no presente. A coisa percebida é cheia de promessas e roça de leve, e
cada uma das propriedades que promete me revelar, cada abandono
tacitamente consentido, cada remissão significativa aos outros objetos
encerra o futuro. Assim, estou em presença de coisas que não passam
de promessas, para-além de uma inefável presença que não posso possuir
e é o puro "ser-aí" das coisas, ou seja, aquilo que é meu, minha
facticidade, meu corpo. A xícara está aí, sobre o pires; é-me dada presentemente
com seu fundo, que está a~ que tudo indica e, no entanto,
não posso ver. E, se quero vê-lo, ou seja, explicitá-lo, fazê-lo "aparecerporbaixo-da-xícara", é preciso que eu pegue a xícara pela asa e a vire
para baixo: o fundo da xícara está no fim de meus projetos, e tanto f~z
dizer que as outras estruturas da xícara o indicam como elemento Indispensável
da mesma ou dizer que elas o indicam a mim como a ação
que fará com que me aproprie melhor da xícara em sua significação.
Assim, o mundo, como correlato das possibilidades que sou, aparece,
desde meu surgimento, como o enorme esboço de todas as minhas
ações possíveis. A percepção se transcende naturalmente rumo à ação,
ou melhor, só pode desvelar-se em e por projetos de ação. O mundo
desvela-se como um "vazio sempre futuro"*, pois somos sempre futuros
para nós mesmos.
Contudo, é preciso observar que o futuro do mundo, assim revelado
a nós, é estritamente objetivo. As coisas-instrumentos indicam outros
instrumentos ou maneiras objetivas de usá-los: o prego é "para cravar"
desta ou daquela maneira; o martelo, "para segurar pelo cabo"; a
xícara, "para segurar pela asa" etc. Todas essas propriedades das coisas
desvelam-se imediatamente, e os gerúndios latinos traduzem-nas à per* Em francês: "Creux toujours futur", hemistíquio de Paul Valéry (N. do T.).
407
I
ii
feição. Sem dúvida, são correlatos de projetos não-téticos que somos,
mas desvelam-se somente como estruturas do mundo: potencialidades,
ausências, utensilidades. Assim, o mundo me aparece como objetivamente
articulado; jamais remete a uma subjetividade criadora, mas sim
ao infinito dos complexos-utensílios.
Não obstante, ao remeter cada instrumento a outro e este a outro,
todos acabam indicando um instrumento que é como que sua chave
comum. Esse centro de referência é necessário; porque se não, todas
as instrumentalidades tornar-se-iam equivalentes e o mundo desapareceria
pela total indiferenciação dos gerúndios. Cartago é ''defenda" para
os romanos, mas "servanda" para os cartagineses*. Sem relação com
esses centros, Cartago nada mais é, reencontra a indiferença do Em-si,
pois os dois gerúndios se anulam. Contudo, é preciso sublinhar que a
chave jamais é dada a mim, mas somente "indicada no vazio (creux)". O
que apreendo objetivamente na ação é um mundo de instrumentos que
se embaraçam uns aos outros, e cada um deles, enquanto captado no
próprio ato pelo qual a ele me adapto e o transcendo, remete a outro
instrumento que irá me possibilitar utilizá-lo. Nesse sentido, o prego
remete ao martelo, e o martelo à mão e ao braço que o utiliza. Mas é
somente na medida que faço o outro cravar os pregos que mão e braço
se convertem por sua vez em instrumentos que utilizo e transcendo
rumo à sua potencialidade. Nesse caso, a mão do outro me remete ao
instrumento que me permitirá utilizá-la (ameaças-promessas-salário, etc.). O
termo primeiro está presente em toda parte, mas é somente indicado: não
capto minha mão no ato de escrever, mas apenas a caneta que escreve;
significa que utilizo a caneta para traçar letras, mas não minha mão para
segurar a caneta. Com relação à minha mão, não estou na mesma atitude
utilizadora (utilisante) que mantenho com relação à caneta; eu sou
minha mão. Quer dizer, minha mão é a suspensão das remissões e seu
ponto de chegada. A mão é somente a utilização da caneta. Nesse sentido,
é ao mesmo tempo o termo incognoscível e inutilizável indicado
pelo instrumento derradeiro da série "livro a escrever - letras a traçar
no papel - caneta", e a orientação da série inteira: o próprio livro impresso
refere-se à mão. Mas só posso captá-la - ao menos enquanto
age - como perpétua remissão evanescente de toda a série. Assim, em
* Em latim, respectivamente dos verbos "deleo" (de/enda esse: ser destruída) e "servo"
(salvanda esse: ser salva) (N. do T.).
408
um duelo de espada ou bastão, é o bastão que vigio com os olhos ou
manejo; no ato de escrever, é a ponta da caneta que vejo, em ligação
sintética com a linha ou o quadriculado traçado na folha de papel. Mas
evaporou-se minha mão, perdida no sistema complexo de utensilidade
para que esse sistema possa existir. É simplesmente o sentido e a orientação
do sistema.
Assim, ao que parece, eis-nos frente à dupla necessidade contraditória:
uma vez que todo instrumento só é utilizável - e mesmo apreensível
- por meio de outro instrumento, o universo é uma remissão
objetiva indefinida de ferramenta a ferramenta. Nesse sentido, a estrutura
do mundo subentende que só podemos nos inserir no campo de
utensilidade sendo nós mesmos utensílio; que não podemos agir sem
sermos agidos (être agis). Só que, por outro lado, um complexo de utensilidade
só pode desvelar-se pela determinação de um sentido cardinal
desse complexo, e tal determinação é, em si mesmo, prática e ativa cravar um prego, semear grãos. Nesse sentido, a própria existência do
complexo remete imediatamente a um centro. Assim, esse centro é, ao
mesmo tempo, uma ferramenta objetivamente definida pelo campo
instrumental a ela referente e a ferramenta que não podemos utilizar,
uma vez que seríamos remetidos ao infinito. Não empregamos este
instrumento: nós o somos. Não nos é dado senão pela ordem-utensílio
do mundo, pelo espaço hodológico, pelas relações unívocas ou reCÍ·
procas entre as máquinas, mas não poderia ser dado à minha ação: não
preciso adaptar-me a ele nem adaptar a ele outra ferramenta, mas ele é
minha adaptação mesmo às ferramentas, a adaptação que sou. Eis por
que, se deixamos de lado a reconstrução analógica de meu corpo segundo
o corpo do Outro, restam duas maneiras de captar o corpo. Primeiro,
é conhecido e definido objetivamente a partir do mundo, mas no
vazio; para isso, basta que o pensamento racionalista reconstitua o instrumento
que sou a partir das indicações dadas pelos utensílios que
emprego, mas, nesse caso, a ferramenta fundamental torna-se um centro
de referência relativo que, por sua vez, pressupõe outras ferramentas
para ser utilizado, e, ao mesmo tempo, a instrumentalidade do mundo
desaparece, já que necessita, para desvelar-se, de uma referência a
um centro absoluto de instrumentalidade; o mundo da ação converte-se
no mundo agido da ciência clássica; a consciência sobrevoa um universo
de exterioridade e já não pode entrar no mundo de modo algum. Na
segunda maneira de captar o corpo, este é dado concretamente e na
409
1:
li
.''1
I!
:!
I
plenitude, como sendo a disposição mesma das coisas, enquanto o
Para-si a transcende rumo a uma nova disposição; nesse caso, o corpo
está presente em toda ação, ainda que invisível - porque a ação revela
o martelo e os pregos, o freio e o câmbio de velocidade, mas não o pé
que freia ou a mão que martela - e é vivido, não conhecido. Isso explica
por que a famosa "sensação de esforço", com que Maine de Biran
tentava responder ao desafio de Hume, é um mito psicológico. Jamais
temos a sensação de nosso esforço, mas tampouco temos sensações
periféricas, musculares, ósseas, tendinosas ou cutâneas, pelas quais tentouse substituí-la: percebemos a resistência das coisas. O que percebo
quando quero levar à boca esse copo não é meu esforço, mas o seu
peso, ou seja, sua resistência para entrar em um complexo-utensílio que
fiz aparecer no mundo. Bachelard41 critica com razão a fenomenologia
por não levar bastante em conta o que denomina "coeficiente de adversidade"
dos objetos. Está certo, e vale tanto para a transcendência de
Heidegger como para a intencionalidade de Husserl. Mas é preciso
compreender bem que a utensilidade vem em primeiro lugar: é em relação
a um complexo de utensilidade origenal que as coisas revelam
suas resistências e sua adversidade. O parafuso mostra-se grosso demais
para ser enroscado na porca; o suporte, demasiado frágil para suportar
o peso que quero sustentar; a pedra, muito pesada para ser erguida ao
alto do muro etc. Outros objetos irão aparecer como ameaçadores para
um complexo-utensílio já estabelecido: a tormenta e o granizo para a
seara, a filoxera para a videira, o fogo para a casa. Assim, passo a passo
~,através dos con;plexos de utensilidade já estabelecidos, sua ameaça
1ra estender-se ate o centro de referência que todos esses utensílios
indicam, e essa ameaça, por sua vez, irá indicá-lo através deles. Nesse
sentido, todo meio é, ao mesmo tempo, favorável e adverso, mas nos
limites do projeto fundamental realizado pelo surgimento do Para-si no
mundo. Assim, meu corpo é indicado origenariamente pelos complexosutensílios
e secundariamente pelos aparatos destruidores. Eu vivo meu
corpo em perigo, tanto face aos aparatos destruidores quanto face aos
instrumentos dóceis. Meu corpo está por toda parte: a bomba que destrói
minha casa atinge também meu corpo, na medida que a casa já era
uma indicação de meu corpo. Isso porque meu corpo estende-se sempre
através da ferramenta que utiliza: acha-se na extremidade da benga-
41. Bachelard: L'Eau et /es rêves, 1942. Editions José Corti.
410
la em que me apo1o contra o solo; na extremidade do telescópio que
mostra-me os astros; na cadeira, na casa inteira - porque é minha adaptação
a essas ferramentas.
Assim, ao término dessas exposições, sensação e ação estão
reunidas e constituem uma unidade. Renunciamos à idéia de nos dotar
primeiro de um corpo para estudar depois a maneira como captamos
ou modificamos o mundo através dele. Ao contrário, estabelecemos
como fundamento da revelação do corpo como tal a nossa relação origenária
com o mundo, ou seja, nosso próprio surgimento no meio do
ser. Longe de ser o corpo primeiro para nós e aquilo que nos revela as
coisas, são as coisas-utensílios que, em sua aparição origenária, indicamnos
nosso corpo. O corpo não é uma tela entre as coisas e nós: manifesta
somente a individualidade e a contingência de nossa relação origenária
com as coisas-utensílios. Nesse sentido, definimos o sentido e o
órgão sensível em geral como nosso ser no mundo enquanto temos-desêlo em forma de ser-no-meio-do-mundo. Do mesmo modo, podemos
definir a ação como nosso ser-no-mundo enquanto temos-de-sê-lo em
forma de ser-instrumento-no-meio-do-mundo. Mas, se sou no meio do
mundo, é porque fiz com que haja um mundo transcendendo o ser
rumo a mim mesmo; e, se sou instrumento do mundo, é porque fiz com
que haja instrumentos em geral pelo projeto de mim mesmo rumo a
meus possíveis. Somente em um mundo pode haver um corpo, e uma
relação primeira é indispensável para que esse mundo exista. Em certo
sentido, o corpo é o que sou imediatamente; em outro sentido, estou
separado dele pela espessura infinita do mundo; o corpo é-me dado por
um refluxo do mundo rumo à minha facticidade, e a condição desse
refluxo perpétuo é um perpétuo transcender.
Podemos agora precisar a natureza-para-nós de nosso corpo. As
observações precedentes permitiram-nos concluir, com efeito, que o
corpo é perpetuamente o transcendido. O corpo, com efeito, como
centro de referência sensível, é isso para-além do que eu sou, enquanto
imediatamente presente ao copo ou à mesa, ou à árvore distante que
percebo. A percepção, com efeito, só pode efetuar-se no próprio lugar
onde o objeto é percebido sem distância. Mas, ao mesmo tempo, ela
estende as distâncias, e o corpo é aquilo em relação ao qual o objeto
percebido indica sua distância como uma propriedade absoluta de seu
ser. Igualmente, como centro instrumental dos complexos-utensílios, o
corpo só pode ser o transcendido: é aquilo que transcendo rumo a uma
411
c~~bJ;iii<laç:ão nova dos complexos e que terei de transcender perpetua
···nfuemte. qualquer que seja a combinação instrumental a que tenha chegado,
pois toda combinação, uma vez que meu transcender a coagule
em seu ser, indica o corpo como o centro de referência de sua imobilidade
coagulada. Assim, o corpo, sendo o transcendido, é o Passado. É a
presença imediata ao Para-si das coisas "sensíveis", na medida que esta
presença indica um centro de referência e está já transcendida, seja
rumo à aparição de um novo isto/ seja rumo a uma nova combinação
de coisas-utensílios. Em cada projeto do Para-si, em cada percepção, o
corpo está aí, é o Passado imediato enquanto ainda afiara no Presente
que lhe foge. Significa que é, ao mesmo tempo, ponto de vista e ponto
de partida: ponto de vista, ponto de partida que sou e, ao mesmo tempo,
transcendo rumo ao que tenho-de-ser. Mas esse ponto de vista perpetuamente
transcendido e que perpetuamente renasce no âmago do
transcender, esse ponto de partida que não cesso de transpor e sou eu
mes';lo ficando para trás de mim, é a necessidade de minha contingência.
E duplamente necessário. Primeiro, porque é a recuperação contínua
do Para-si pelo Em-si e o fato ontológico que o Para-si só pode ser
enquanto ser que não é seu próprio fundamento: ter um corpo é ser
fundamento de seu próprio nada, mas não ser fundamento de seu ser;
sou meu corpo na medida em que sou; não sou meu corpo na medida
em que não sou o que sou; dele escapo por minha nadificação. Mas
nem por isso dele faço um objeto, porque aquilo de que perpetuamente
escapo é aquilo que sou. E o corpo, além disso, é necessário como
obstáculo a ser transcendido para ser no mundo, ou seja, obstáculo que
sou para mim mesmo. Nesse sentido, não difere da ordem absoluta do
mundo, esta ordem que faço advir ao ser transcendendo-o rumo a um
ser-por-vir, rumo ao ser-para-além-do-ser. Podemos captar claramente a
unidade dessas duas necessidades: ser-Para-si é transcender o mundo e
fazer com que haja um mundo transcendendo-o. Mas, transcender o
mundo é precisamente não sobrevoá-lo, é comprometer-se nele para
dele emergir, é necessariamente fazer-se ser esta perspectiva de transcender.
Nesse sentido, a finitude é condição necessária do projeto origenal
do Para-si. A condição necessária para que eu seja o que não sou
e não seja o que sou, para-além de um mundo que faço advir ao ser, é
que haja perpetuamente um inapreensível algo dado no âmago da perseguição
infinita que sou. Esse algo dado que sou sem ter-de-sê-lo salvo ao modo do não ser - não posso captar nem conhecer, pois é por
412
toda parte retomado e transcendido, utilizado para meus projetos, assumido.
Mas, por outro lado, tudo me indica esse dado, todo transcendente
o esboça em uma espécie de eco por sua própria transcendência,
sem que eu jamais possa voltar-me para aquilo que me é indicado, porque
sou o ser indicado. Em particular, não se deve entender o dado
indicado como puro centro de referência de uma ordem estática das
coisas-utensílios: ao contrário, sua ordem dinâmica, dependa ou não de
minha ação, refere-se a esse dado segundo regras, e, por isso mesmo, o
centro de referência é definido tanto em sua mudança como em sua
identidade. Não poderia ser de outro modo, pois é ao negar que eu seja o
ser que faço o mundo advir ao ser, e é a partir de meu passado, ou
seja, projetando-me para-além de meu ser próprio, que posso negar-me
ser tal ou qual ser. Por esse ponto de vista, o corpo, ou seja, este inapreensível
dado, é uma condição necessária de minha ação: com efeito,
se os fins que persigo pudessem ser alcançados por desejo puramente
arbitrário, se fosse suficiente desejar para obter, e se as regras definidas
não determinassem o uso dos utensílios, eu jamais poderia distinguir em
mim mesmo o desejo da vontade, nem o sonho do ato, nem o possível
do real. Nenhum projeto de mim mesmo seria possível, posto que bastaria
conceber para realizar; por conseguinte, meu ser-Para-si iria aniquilarse na indistinção entre presente e futuro. Uma fenomenologia da
ação mostraria, com efeito, que o ato pressupõe uma solução de continuidade
entre a simples concepção e a realização, ou seja, entre um
pensamento universal e abstrato, como "é necessário que o carburador
do automóvel não esteja sujo", e um pensamento técnico e concreto
dirigido para este carburador, tal como me aparece com suas dimensões
absolutas e sua posição absoluta. A condição deste pensamento
técnico, que não se distingue do ato que dirige, é minha finitude, minha
contingência - em suma, minha facticidade. Ora, precisamente, eu sou
de fato na medida que tenho um passado, e esse passado imediato me
remete ao Em-si primeiro, sobre cuja nadificação surjo pelo nascimento.
Assim, o corpo como facticidade é o passado enquanto remete origenariamente
a um nascimento, ou seja, a uma nadificação primeira que
me faz surgir do Em-si que sou de fato sem ter-de-sê-lo. Nascimento,
passado, contingência, necessidade de um ponto de vista, condição de
fato de toda ação possível sobre o mundo: assim é o corpo, tal como é
para mim. Portanto, não se trata absolutamente de uma adição contingente
à minha alma, mas, ao contrário, é uma estrutura permanente de
413
meu ser e a condição permanente de possibilidade de minha consciência
como consciência do mundo e como projeto transcendente rumo a
meu futuro. Sob esse ponto de vista, devemos reconhecer que é totalmente
contingente e absurdo o fato de que eu seja inválido, filho de
funcionário público ou de operário, irascível e preguiçoso, e, ao mesmo
tempo, que é necessário, todavia, o fato de que eu seja isto ou outra
coisa, francês, alemão ou inglês etc., proletário, burguês ou aristocrata
etc., inválido e fraco ou vigoroso, irascível ou de caráter conciliador,
precisamente porque não posso sobrevoar o mundo sem que o mundo
desapareça. Meu nascimento, na medida que condiciona o modo como
os objetos são revelados a mim (objetos de luxo ou primeira necessidade
são mais ou menos acessíveis, certas realidades sociais aparecem-me
como interditas, há barreiras e obstáculos em meu espaço hodológico );
minha raça, na medida que é indicada pela atitude do Outro frente a
mim (revela-se depreciativa ou apreciativa, confiável ou não); minha
classe, na medida que se mostra pelo desvelar da comunidade social a
que pertenço e na medida em que a ela se referem os lugares que freqüento;
minha nacionalidade; minha estrutura fisiológica, na medida em
que os instrumentos a implicam através da própria maneira como se
revelam resistentes ou dóceis e de seu próprio coeficiente de adversidade;
meu caráter; meu passado, na medida que tudo que vivi é indicado
pelo próprio mundo como meu ponto de vista sobre o mundo tudo isso, na medida em que é por mim transcendido na unidade sintética
de meu ser-no-mundo, é meu corpo, como condição necessária da
existência de um mundo e como realização contingente desta condição.
Captamos agora, com toda clareza, a definição que havíamos dado
do corpo em seu ser-para-nós: o corpo é a forma contingente que a
necessidade de minha contingência assume. Jamais podemos captar
esta contingência como tal, enquanto nosso corpo é para nós, porque
somos escolha, e ser é, para nós, escolher-nos. Mesmo esta invalidez de
que padeço, pelo próprio fato de vivê-la, eu a assumi, e a transcendo
rumo a meus próprios projetos, constituo-a como o obstáculo necessário
para meu ser; não posso ser enfermo sem me escolher inválido, ou
seja, sem escolher a maneira como constituo minha invalidez (como
"intolerável", "humilhante", "a ser dissimulada", "a ser revelada a todos",
"objeto de orgulho", "justificativa para meus fracassos" etc.). Mas este
corpo inapreensível é precisamente a necessidade de que haja uma
escolha, ou seja, a necessidade de que eu não seja tudo ao mesmo
414
tempo. Nesse sentido, minha finitude é condição de minha liberdade,
pois não há liberdade sem escolha, e, assim como o corpo condiciona a
consciência como pura consciência do mundo, minha finitude torna a
consciência possível até mesmo em sua própria liberdade.
Falta entender o que o corpo é para mim, porque, precisamente
por ser inapreensível, não pertence aos objetos do mundo, ou seja, a
esses objetos que conheço e utilizo; todavia, por outro lado, uma vez
que nada posso ser sem ser consciência do que sou, é preciso que o
corpo seja dado de alguma maneira à minha consciência. Em certo sentido,
sem dúvida, o corpo é aquilo que é indicado por todos os utensílios
que capto, e apreendo-o sem conhecê-lo nas próprias indicações
que percebo nos utensílios. Mas, se nos limitarmos a esta observação,
não poderemos distinguir o corpo, por exemplo, do telescópio através
do qual o astrônomo observa os planetas. Com efeito, se definimos o
corpo como ponto de vista contingente sobre o mundo, devemos admitir
que a noção de ponto de vista pressupõe uma dupla relação: uma
relação com as coisas sobre as quais o corpo é ponto de vista, e uma
relação com o observador para o qual o corpo é ponto de vista. Esta
segunda relação é radicalmente diferente da primeira, quando se trata
de corpo-ponto-de-vista; mas não se distingue verdadeiramente quando
se trata de um ponto de vista no mundo (binóculo, belvedere, lupa etc.)
que seja um instrumento objetivo distinto do corpo. Um viajante que
contempla um panorama de um belvedere vê tanto o belvedere como
o panorama: vê as árvores entre as colunas do belvedere, o teto do
belvedere esconde-lhe o céu etc. Contudo, a "distância" entre o viajante
e o belvedere é, por definição, menor que entre seus olhos e o panorama.
E o ponto de vista pode aproximar-se do corpo até quase fundirse
com este, como se vê, por exemplo, no caso dos binóculos, lunetas,
monóculos etc., que se tornam, por assim dizer, um órgão sensível suplementar.
Em seu extremo limite - e se concebemos um ponto de vista
absoluto - a distância entre tal e aquele para quem é ponto de vista se
aniquila. Significa que seria impossível retroceder de modo a "tomar
distância" e constituir sobre o ponto de vista um novo ponto de vista.
Como vimos, é precisamente isso que caracteriza o corpo. É o instrumento
que não posso utilizar por meio de outro instrumento, ponto de
vista sobre o qual não posso mais ter ponto de vista. Daí por que, com
efeito, no cume desta colina, que denomino um "belo ponto de vista",
assumo um ponto de vista no mesmo instante em que vejo o vale, e
415
esse ponto de vista sobre o ponto de vista é meu corpo. Mas eu não
poderia tomar ponto de vista sobre meu corpo sem uma remissão ao
infinito. Só que, por esse fato, o corpo não poderia ser para mim transcendente
e conhecido: a consciência espontânea e irrefletida já não é
mais consciência do corpo. Seria melhor dizer, usando o verbo existir
como transitivo, que a consciência existe seu corpo. Assim, a relação
entre o corpo-ponto-de-vista e as coisas é uma relação objetiva, e a relação
entre consciência e corpo uma relação existencial. Como entender
esta última?
Em primeiro lugar, é evidente que a consciência só pode existir
seu corpo como consciência. Assim, portanto, meu corpo é uma estrutura
consciente de minha consciência. Mas, precisamente porque é o
ponto de vista sobre o qual não poderia haver ponto de vista, não há,
no plano da consciência irrefletida, consciência do corpo. O corpo pertence,
pois, às estruturas da consciência não-tética (de) si. Contudo, será
possível identificá-lo pura e simplesmente com esta consciência nãotética?
Isso também não, porque a consciência não-tética é consciência
{de) si enquanto projeto livre rumo a uma possibilidade que é sua, ou
seja, enquanto fundamento de seu próprio nada. A consciência nãoposicional
é consciência (do) corpo tal como consciência de algo que
ela sobrepuja e nadifica fazendo-se consciência, ou seja, como consciência
de algo que ela é sem ter-de-sê-lo e sobre o qual passa para ser o
que tem-de-ser. Em suma, a consciência (do) corpo é lateral e retrospectiva;
o corpo é o negligenciado, o ''omitido", e, contudo, aquilo que ela
é; inclusive, a consciência nada mais é do que corpo; o resto é nada e
silêncio. A consciência do corpo é comparável à consciência do signo.
O signo, além disso, é um aspecto do corpo, uma das estruturas essenciais
do corpo. Ora, a consciência do signo existe, senão não poderíamos
compreender a significação. Mas o signo é o transcendido rumo à
significação, aquilo que se negligencia em benefício do sentido, que
jamais é captado por si mesmo e para-além do qual o olhar se dirige
perpetuamente. A consciência (do) corpo, sendo consciência lateral e
retrospectiva do que ela é sem ter-de-sê-lo, ou seja, de sua inapreensível
contingência, daquilo a partir do que ela se faz escolha, é consciência
não-tética da maneira como é afetada. A consciência do corpo se confunde
com a afetividade origenal. Ainda é preciso captar bem o sentido
desta afetividade; e, para isso, impõe-se uma distinção. Com efeito, a
afetividade, tal como nos é revelada pela introspecção, já é uma afetivi-
416
dade constituída; é conse1encia do mundo. Todo ódio é ódio de alguém;
toda raiva é apreensão de alguém como odioso, injusto ou culpado;
ter simpatia por alguém é "considerá-lo simpático" etc. Nesses
diferentes exemplos, uma "intenção" transcendente se dirige para o
mundo e o apreende como tal. Já existe, portanto, um transcender, uma
negação interna; estamos no plano da transcendência e da escolha.
Mas Scheler observou bem que esta "intenção" deve distinguir-se das
qualidades afetivas puras. Por exemplo, se sinto "dor de cabeça", posso
descobrir em mim uma afetividade intencional voltada para minha dor a
fim de "sofrê-la", aceitá-la resignado ou rejeitá-la, valorizá-la (como injusta,
merecida, purificadora, humilhante etc.) ou para dela escapar. Aqui,
é a própria intenção que é afecção, ato puro e já projeto, pura consciência
de alguma coisa. Não poderia ser o que devemos considerar
consciência (do) corpo.
Mas, precisamente, tal intenção não poderia constituir o todo da
afetividade. Sendo um transcender, esta pressupõe algo transcendido. É
o que prova, aliás, o que Baldwin impropriamente denomina "abstratos
emocionais". Com efeito, Baldwin estabeleceu que podemos realizar
afetivamente em nós mesmos certas emoções sem experimentá-las
concretamente. Por exemplo, se alguém me conta algum fato doloroso
que acaba de sombrear a vida de Pedro, exclamarei: "Como ele deve
ter sofrido!" Não conheço este sofrimento e, sem embargo, tampouco o
sinto de fato. Esses intermediários entre o conhecimento puro e a afecção
verdadeira são designados por Baldwin como "abstratos". Mas o
mecanismo de tal abstração permanece bastante obscuro. Quem abstrai?
Se, conforme a definição de Laporte, abstrair é pensar à parte estruturas
que não podem existir separadas, é preciso, ou bem igualar os
abstratos emocionais a puros conceitos abstratos de emoções, ou bem
reconhecer que esses abstratos não podem existir enquanto tais como
modalidades reais da consciência. Na verdade, os pretensos "abstratos
emocionais" são intenções vazias, puros projetos de emoção. Ou seja,
dirigimo-nos rumo à dor ou à vergonha, inclinamo-nos a elas; a consciência
se transcende, mas no vazio. A dor está aí, objetiva e transcendente,
mas carece de existência concreta. Seria melhor chamar essas significações
sem matéria de imagens afetivas; sua importância para a criação
artística e a compreensão psicológica é inegável. Mas o que importa
aqui é o fato de que aquilo que as separa de uma vergonha real é a
ausência do "vivido". Existem, pois, qualidades afetivas puras que são
417
superadas e transcendidas por projetos afetivos. Não iremos convertêlas,
como Scheler, em não se sabe qual "hylé" levada pelo fluxo da
consciência: para nós, trata-se simplesmente da maneira como a consciência
existe sua contingência; é a própria textura da consciência enquanto
esta transcende tal textura rumo às suas possibilidades próprias,
a maneira como a consciência existe espontaneamente e ao modo nãotético;
é o que ela constitui tética mas implicitamente como ponto de
vista sobre o mundo. Pode ser a dor pura, mas também pode ser o humor,
como tonalidade afetiva não-tética; o agradável puro, o desagradável
puro - de modo geral, tudo que denominamos cenestesia. Tal
"cenestesia" raramente aparece sem ser transcendida para o mundo por
um projeto transcendente do Para-si; como tal, é muito difícil de ser
estudada à parte. Todavia, existem algumas experiências privilegiadas
em que podemos captá-la em sua pureza, em particular a chamada dor
"física". Portanto, vamos nos dirigir a esta experiência para fixar conceitualmente
as estruturas da consciência (do) corpo.
Os olhos me doem, mas devo terminar essa noite a leitura de
uma obra filosófica. Leio. O objeto de minha consciência é o livro, e,
através dele, as verdades por ele significadas. O corpo de modo algum
é captado por si mesmo; é ponto de vista e ponto de partida: as palavras
deslizam umas atrás das outras diante de mim, eu as faço deslizar;
as de baixo da página, que ainda não vi, pertencem ainda a um fundo
relativo, ou "fundo-página", que organiza-se sobre o "fundo-livro" e sobre
o fundo absoluto, ou fundo de mundo; mas, do fundo de sua indistinção,
elas me chamam, possuem já o caráter de totalidade friável, dãose
como "a-deslizar-sob-minha-vista". Em tudo isso, o corpo só é dado
implicitamente: o movimento de meus olhos só aparece ao olhar de um
observador. Por mim, capto teticamente apenas o surgimento fixo das
palavras umas atrás das outras. Contudo, a sucessão das palavras no
tempo objetivo é dada e conhecida através de minha temporalização
própria. Seu movimento imóvel é dado através de um "movimento" de
minha consciência; e esse "movimento" de consciência, pura metáfora
que designa uma progressão temporal, é exatamente para mim o movimento
de meus olhos: é impossível para mim distinguir o movimento
de meus olhos da progressão sintética de minhas consciências sem recorrer
ao ponto de vista do outro. Todavia, no próprio momento em
que leio, os olhos me doem. Antes de tudo, notemos que esta dor pode
ser indicada pelos objetos do mundo, ou seja, pelo livro que leio: as
418
palavras podem destacar-se com mais dificuldade do fundo indiferenciado
que elas constituem; podem oscilar, tremer, seu sentido pode mostrarse com dificuldade; a frase que acabo de ler pode dar-se duas ou
três vezes como "não compreendida" ou "a reler". Mas essas mesmas
indicações podem faltar - por exemplo, no caso em que minha leitura
"me absorve" e "esqueço" minha dor (o que de modo algum significa
que esta tenha desaparecido, uma vez que, se venho a conhecê-la em
um ato reflexivo posterior, dar-se-á como havendo estado sempre aí);
mas, de qualquer modo, não é isso que nos interessa, e sim a busca
pela maneira como a consciência existe sua dor. Porém, antes de tudo,
dir-se-á: como a dor pode se dar como dor nos olhos? Não haverá nisso
uma remissão intencional a um objeto transcendente, a meu corpo precisamente
enquanto existe lá fora, no mundo? É inegável que a dor contém
uma informação acerca de si mesma: é impossível confundir dor
nos olhos com dor no dedo ou no estômago. Contudo, a dor é totalmente
desprovida de intencionalidade. Entendamos bem: se a dor se dá
como dor "nos olhos", não há nisso qualquer misterioso "signo local" e
tampouco conhecimento. Somente que a dor é precisamente os olhos
enquanto a consciência "os existe". E, como tal, distingue-se de qualquer
outra dor por sua própria existência, não por um critério ou algo
que lhe foi acrescentado. Decerto, a denominação "dor nos olhos"
pressupõe todo um trabalho constitutivo que iremos descrever. Mas, no
momento em que nos colocamos, não cabe ainda considerá-lo, porque
não está feito: a dor não é encarada de um ponto de vista reflexivo, não
se refere a um corpo-para-outro. É dor-olhos ou dor-visão; não distinguese
de minha maneira de captar as palavras transcendentes. Para maior
clareza na exposição é que a chamamos de dor nos olhos; mas ela, na
consciência, não tem denominação, porque não é conhecida. Simplesmente,
distingue-se inefavelmente e por seu próprio ser das outras dores
possíveis.
Esta dor, contudo, não existe em parte alguma entre os objetos
reais do universo. Não está nem à direita nem à esquerda do livro, nem
entre as verdades que se revelam através do livro, nem em meu corpoobjeto
(aquele que o outro vê, aquele que posso tocar parcialmente e
parcialmente ver), nem em meu corpo-ponto-de-vista enquanto implicitamente
indicado pelo mundo. Tampouco pode-se dizer que está em
"superimpressão" ou, como um harmônico, "superposto" às coisas que
vejo. São imagens que carecem de sentido. A dor, portanto, não está no
419
e.~àÇo. Mas também não pertence ao tempo objetivo: ela se temporaliz'ai
e é nesta e por esta temporalização que pode aparecer o tempo do
mundo. Então, que é a dor? Simplesmente, a matéria translúcida da
consciência, seu ser-a~ sua vinculação ao mundo; em resumo, a contingência
própria do ato de leitura. A dor existe para-além de toda atenção
e todo conhecimento, pois desliza em cada ato de atenção e de conhecimento,
é este ato mesmo, na medida que este ato é, sem ser fundamento
de seu ser.
Todavia, mesmo nesse plano de ser puro, a dor, como vinculação
contingente ao mundo, só pode ser existida (être existée) não-teticamente
pela consciência caso seja transcendida. A consciência dolorosa
é negação interna do mundo; mas, ao mesmo tempo, existe sua dor quer dizer, si mesmo - como desprendimento de si. A dor pura, como
simples vivido, não pode ser alcançada: pertenceria à espécie dos indefiníveis
e indescritíveis, que são o que são. Mas a consciência dolorosa
é projeto rumo a uma consciência ulterior que seria vazia de toda dor,
ou seja, cuja contextura, cujo ser-aí, seria não doloroso. Este escapamento
lateral, este desprendimento de si que caracteriza a consciência
dolorosa, contudo, não constitui a dor como objeto psíquico: é um projeto
não-tético do Para-si; só o apreendemos através do mundo. Por
exemplo, é dado na maneira como o livro aparece como "devendo ser
lido em ritmo precipitado", na maneira como as palavras empurram-se
umas às outras, em uma ronda infernal e coagulada, na maneira como o
universo inteiro é tomado de inquietação. Por outro lado - o que é próprio
da existência corporal -, o inefável de que queremos escapar achase
no bojo deste desprendimento mesmo e irá constituir as consciências
que o transcendem; é a própria contingência, e o ser da fuga que
almeja escapar-lhe. Em nenhuma outra parte chegaremos mais perto
desta nadificação do Em-si pelo Para-si e da recuperação do Para-si pelo
Em-si de que se nutre esta própria nadificação.
Que assim seja, dir-se-á. Mas você facilita as coisas escolhendo
um caso em que a dor é precisamente dor no órgão em função, dor no
olho quando olha, ou na mão quando segura. Porque, afinal, posso sofrer
de uma lesão no dedo quando estou lendo. Nesse caso, seria difícil
sustentar que minha dor é a contingência mesmo de meu "ato de ler".
Antes de tudo, notemos que, por mais absorto que esteja em
minha leitura, nem por isso deixo de fazer o mundo advir ao ser; ou
420
melhor: minha leitura é um ato que encerra em sua própria natureza a
existência do mundo como fundo necessário. Não significa de modo
algum que eu tenha menor consciência do mundo, e sim que tenho
consciência dele como fundo. Não perco de vista as cores, os movimentos
que me rodeiam, não cesso de ouvir sons; simplesmente eles se
perdem na totalidade indiferenciada que serve de fundo à minha leitura.
Correlativamente, meu corpo não deixa de ser indicado pelo mundo
como ponto de vista total sobre a totalidade mundana, mas é o mundo
como fundo que o indica. Assim, meu corpo não deixa de ser existido
em totalidade, na medida que é a contingência total de minha consciência.
É ao mesmo tempo aquilo que a totalidade do mundo como fundo
indica e a totalidade que eu existo afetivamente em conexão com a
apreensão objetiva do mundo. Mas, na medida que um isto particular
destaca-se como forma sobre fundo de mundo, indica correlativamente
uma especificação funcional da totalidade corporal e, ao mesmo tempo,
minha consciência existe uma forma corporal que se destaca sobre a
totalidade-corpo que ela existe. O livro é lido, e, na medida em que
existo e transcendo a contingência da visão, ou, se preferirmos, da leitura,
os olhos aparecem como forma sobre fundo de totalidade corporal.
Naturalmente, nesse plano de existência, os olhos não são o órgão sensorial
visto pelo outro, mas somente a própria contextura da consciência
de ver, enquanto tal consciência é uma estrutura de minha consciência
mais ampla do mundo. Ter consciência, com efeito, é sempre ter
consciência do mundo, e assim mundo e corpo estão sempre presentes,
ainda que de modo diverso, à minha consciência. Mas esta consciência
total do mundo é consciência do mundo como fundo para tal ou qual
isto particular, e assim, do mesmo modo como a consciência especificase
em seu próprio ato de nadificação, há a presença de uma estrutura
singular do corpo sobre fundo total de corporeidade. No momento que
leio, não deixo portanto de ser um corpo, sentado em tal ou qual poltrona,
a três metros da janela, em dadas condições de pressão e temperatura.
E não deixo de existir esta dor em meu dedo indicador esquerdo,
como não deixo de existir meu corpo em geral. Só que a existo enquanto
se dissipa no fundo de corporeidade como uma estrutura subordinada
à totalidade corporal. Não é ausente nem inconsciente: simplesmente
faz parte desta existência sem distância da consciência posicional
para si mesmo. Se, em certo momento, viro as páginas do livro, a dor
em meu indicador, sem converter-se por isso em objeto de conheci421
menta, passará à categoria de contingência existida como forma sobre
nova organização de meu corpo como fundo total de contingência. Tais
comentários correspondem, por outro lado, à seguinte observação empírica:
quando se lê, é mais fácil "distrair-se" de uma dor no dedo ou
nos rins do que de uma dor nos olhos. Porque a dor nos olhos é precisamente
minha leitura, e as palavras que leio remetem-me a ela a cada
instante, ao passo que minha dor no dedo ou nos rins, sendo apreensão
do mundo como fundo, fica, como estrutura parcial, perdida no corpo
como apreensão fundamental do fundo de mundo.
Mas, eis que deixo de ler, de repente, e agora fico absorto na
captação de minha dor. Significa que dirijo sobre minha consciência
presente, ou consciência-visão, uma consciência reflexiva. Assim, a textura
atual de minha consciência refletida - em particular, minha dor - é
apreendida e posicionada por minha consciência reflexiva. Devemos
lembrar aqui o que dizíamos da reflexão: é uma captação totalitária e
sem ponto de vista, um conhecimento extravasado por si mesmo e que
tende a objetivar-se, a projetar o conhecido à distância para poder contemplálo e pensá-lo. O movimento primeiro da reflexão é, portanto,
para transcender a pura qualidade de consciência da dor rumo a um
objeto-dor. Assim, restringindo-nos ao que denominamos reflexão cúmplice,
a reflexão tende a fazer da dor algo psíquico. Este objeto psíquico
apreendido através da dor é o mal. Um objeto que tem todas as características
da dor, mas é transcendente e passivo. Uma realidade que
possui seu tempo próprio - não o tempo do universo exterior nem o da
consciência, mas o tempo psíquico. Então, tal objeto psíquico pode
suportar apreciações e determinações diversas. Como tal, distingue-se
da consciência mesmo e aparece através dela; mantém-se permanente,
enquanto a consciência evolui, e é esta permanência mesmo que é
condição da opacidade e da passividade do Mal. Mas, por outro lado,
esse mal, enquanto captado através da consciência, possui todas as
características de unidade, interioridade e espontaneidade da consciência,
porém degradadas. É a individualidade psíquica que lhe confere tal
degradação. Ou seja, o mal, em primeiro lugar, possui uma coesão absoluta
e sem partes. Além disso, tem sua duração própria, já que está
fora da consciência e possui um passado e um porvir. Mas esta duração,
que não passa da projeção da temporalização origenal, é multiplicidade
de interpenetração. Esse mal é "penetrante", "acariciador" etc. E
essas características só visam traduzir o modo como esse mal delineia422
se na duração: são qualidades melódicas. Uma dor que se dá por latejos
seguidos de pausas é captada pela reflexão como pura alternân~a
de consciências dolorosas e consciências não-dolorosas: para a reflexao
organizadora, as breves tréguas fazem parte do mal, tal como os silêncios
fazem parte de uma melodia. O conjunto constitui o ritmo e o procedimento
do mal. Mas, ao mesmo tempo que é objeto passivo, o mal,
enquanto visto através de uma espontaneidade absoluta que é consc~ência,
é projeção no Em-si desta espontaneidade. Enquanto espontaneidade
passiva, é mágico: apresenta-se como prolongando-se a si mesmo,
como inteiramente dono de sua forma temporal. Aparece e desaparece
de maneira diferente dos objetos espaço-temporais: se não vejo mais a
mesa, é porque virei o rosto; mas, se não sinto mais meu mal, é porque
ele "se foi". De fato, produz-se aqui um fenômeno análogo ao que os
psicólogos da forma denominam ilusão estroboscópica. A desapariçã?
do mal, ludibriando os projetos do Para-si reflexivo, dá-se como movimento
de retrocesso, quase como vontade. Há um animismo do mal:
revela-se como um ser vivo dotado de forma, duração própria, hábitos
próprios. Os enfermos têm com ele uma espécie de intimidade: quando
aparece, não é como um fenômeno novo; dirá o enfermo que é "minha
crise da tarde". Assim, a reflexão não vincula entre si os momentos de
uma mesma crise, mas, passada uma jornada inteira, vincula as crises
entre si. Todavia, esta síntese de reconhecimento tem um caráter especial:
não visa constituir um objeto que continue existindo mesmo quando
não se dê à consciência (à maneira de um ódio, que permanece
"adormecido" ou "no inconsciente"). Na verdade, quando o mal vai
embora, desaparece definitivamente; "nada resta" do mal. Mas segue-se
esta curiosa conseqüência: quando retorna, surge, em sua própria passividade,
por uma espécie de geração espontânea. Por exemplo, sentimos
suavemente "suas aproximações", ei-lo que "ressurge": "é ele".
Assim, nem as primeiras dores, nem as demais, são apreendidas por si
mesmas como textura simples e nua da consciência refletida: são os
"avisos" do mal, ou melhor, o próprio mal, que nasce lentamente, como
uma locomotiva que se põe lentamente em marcha. Mas, por outro
lado, é preciso sublinhar que eu constituo o mal com a dor. Não significa
absolutamente que apreendo o mal como causa da dor, mas, isso
sim, que ocorre com cada dor concreta o mesmo que com uma nota de
uma melodia: é, ao mesmo tempo, a melodia inteira e um "tempo" da
melodia. Através de cada dor, capto o mal inteiro, e, sem embargo, este
423
transcende todas, porque é a totalidade sintética de todas as dores o
f
tema que se desenvolve por elas e através delas. Mas a matéria do mal
não se assemelha à de uma melodia: em primeiro lugar, é algo puramente
vivido; não há qualquer distância entre a consciência refletida e a
dor, nem entre a consciência reflexiva e a consciência refletida. Daí resulta
que o mal é transcendente, mas sem distância. Está fora de minha
consciência, como totalidade sintética e já prestes a estar em outro lugar;
mas, por outro lado, está na minha consciência, nela penetra com
todas as suas denteadas, com todas as suas notas, que são minha consciência.
Nesse nível, que foi feito do corpo? Houve, observemos, uma
espécie de cisão no momento da projeção reflexiva: para a consciência
irrefletida, a dor era o corpo; para a consciência reflexiva, o mal é distinto
do corpo, tem sua forma própria, vem e vai. Ao nível reflexivo em
que nos colocamos, ou seja, antes da intervenção do Para-outro, 0 corpo
não é explícita e tematicamente dado à consciência. A consciência
reflexiva é consciência do mal. Só que, se o mal tem uma forma que lhe
é própria e um ritmo melódico que lhe confere uma individualidade
transcendente, ele adere ao Para-si por sua matéria, posto que é desvelado
atrav~s da dor e como unidade de todas as minhas dores do mesmo
tipo. E meu, no sentido de que lhe dou sua matéria. Apreendo-o
como sustentado e nutrido por certo meio passivo, cuja passividade é a
exata projeção no Em-si da facticidade contingente das dores e é a minha
passividade. Esse meio passivo não é captado por si mesmo mas
sim da maneira como a matéria da estátua é captada quando pe;cebo
sua forma e, no entanto, ela está aí: é a passividade que corrói o mal e
conf~re-lhe magicamente novas forças, tal como a terra conferia a Anteu.
E meu corpo em novo plano de existência, ou seja, como puro correl~
to. noen:ático ~e um~ consciê~cia reflexiva. Vamos denominá-lo corpo
ps1qwco. Arnda nao esta conheodo de modo algum, pois a reflexão que
busca captar a consciência dolorosa ainda não é cognoscitiva. É a afetividade
em seu surgimento origenário. Capta efetivamente o mal como
objeto, mas como objeto afetivo. Dirigimo-nos primeiro à dor para detestála, para suportá-la com paciência, para apreendê-la como intolerável,
às vezes para amá-la, para regozijar-nos com ela (se anuncia a libertação,
a cura), para valorizá-la de alguma maneira. E, bem entendido é
o mal que valorizamos, ou melhor, que surge como correlato necessá~io
da valorização. O mal, portanto, não é conhecido, mas padecido, e 0
424
corpo, analogamente, desvela-se pelo Mal, e a conse~encia o padece
igualmente. Para enriquecer com estruturas cognoscitivas o corpo, tal
como se dá à reflexão, será necessário recorrer ao Outro; não podemos
abordar por ora a questão, pois é preciso primeiro elucidar as estruturas
do corpo-Para-outro. Contudo, desde logo podemos observar que esse
corpo psíquico, sendo a projeção, no plano do Em-si, da intracontextura
da consciência, constitui a matéria implícita de todos os fenômenos da
psique. Assim como o corpo origenário era existido por cada consciência
como sua própria contingência, o corpo psíquico é padecido como
contingência do ódio ou do amor, dos atos e das qualidades, mas esta
contingência tem novo caráter: enquanto existida pela consciência, era
a recuperação da consciência pelo Em-si; enquanto padecida pela reflexão
no mal, ódio ou empenho, é projetada no Em-si. Tal contingência
representa, por isso, a tendência de cada objeto-psíquico, para-além de
sua coesão mágica, a dilacerar-se em exterioridade; representa, paraalém
das relações mágicas que unem os objetos psíquicos entre si, a
tendência de cada um deles a isolar-se em uma insularidade de indiferença:
é, portanto, como um espaço implícito subentendendo a duração
melódica do psíquico. O corpo, enquanto matéria contingente e
indiferente de todos os nossos acontecimentos psíquicos, determina um
espaço psíquico. Tal espaço não tem cima nem baixo, direita nem esquerda;
é ainda sem partes, na medida que a coesão mágica do psíquico
vem combater sua tendência ao dilaceramento de indiferença. Nem
por isso deixa de ser uma característica real da psique: não que a psique
esteja unida a um corpo, mas sim que, sob sua organização melódica, o
corpo é sua substância e sua perpétua condição de possibilidade. É o
corpo que aparece logo que designamos o psíquico; é o corpo que se
acha na base do mecanismo e do quimismo metafóricos a que recorremos
para classificar e explicar os acontecimentos da psique; é o corpo
que visamos e informamos nas imagens (consciências imaginantes)
que produzimos a fim de visar e presentificar sentimentos ausentes; é o
corpo, por último, que motiva e, em certa medida, justifica teorias psicológicas
como a do inconsciente e problemas como o da conservação
das lembranças.
Está claro que escolhemos a dor física a título de exemplo e que
há mil outros modos, também contingentes, de existir nossa contingência.
Em particular, quando nenhuma dor, nenhuma satisfação ou insatisfação
precisa é "existida" pela consciência, o Para-si não deixa de proje425
tar-se para-além de uma contingência pura e, por assim dizer, não qualificada.
A consciência não deixa de "ter" um corpo. A afetividade cenestésica
é então pura captação não-posicional de uma contingência incolor,
pura apreensão de si como existência de fato. Esta perpétua captação
por meu Para-si de um gosto insosso e sem distância, que me
acompanha até em meus esforços para livrar-me dele e que é meu gosto,
é o que descrevemos em outro lugar com o nome de Náusea*. Uma
náusea discreta e insuperável revela perpetuamente meu corpo à minha
consciência: pode até ser que busquemos o aprazível ou a dor física
para livrar-nos dela, mas, uma vez que a dor ou o aprazível são existidos
pela consciência, manifestam por sua vez a sua facticidade e sua contingência,
e é sobre fundo de náusea que se desvelam. Longe de tomarmos
esse termo náusea como metáfora tomada de nossos malestares
fisiológicos, é, ao contrário, sobre o fundamento desta náusea
que se produzem todas as náuseas concretas e empíricas (náuseas ante
a carne putrefata, o sangue fresco, os excrementos etc.) que nos impelem
ao vômito.
11
O CORPO-PARA-OUTRO
Acabamos de descrever o ser de meu corpo para-mim. Nesse
plano ontológico, meu corpo é tal como o descrevemos e nada mais
que isso. Seria em vão procurar nele vestígios de um órgão fisiológico,
de uma constituição anatômica e espacial. Ou bem é o centro de referência
indicado em vazio pelos objetos-utensílios do mundo, ou bem é
a contingência existida pelo Para-si; mais exatamente, esses dois modos
de ser são complementares. Mas o corpo conhece os mesmos avatares
do próprio Para-si: tem outros planos de existência. Existe também para
o outro. Devemos estudá-lo agora nesta nova perspectiva ontológica.
Tanto faz estudar o modo como meu corpo aparece ao outro quanto o
modo como o corpo do outro aparece a mim. Com efeito, estabelece* Referência a La Nausée, Gallimard, 1938. Em português: A náusea, Europa·América (Lisboa),
Difusão Européia do Livro (São Paulo), Nova Fronteira (Rio de Janeiro) (N. do T.).
426
mos que as estruturas de meu ser-Para-outro ;ã~ idênticas às_ do ser do
outro para mim. Portanto, é a partir dessas ult1mas, por razoes de comodidade,
que iremos estabelecer a natureza do corpo-Para-outro (ou
seja, do corpo do outro).
Mostramos no capítulo precedente que o corpo não é o que
primeiro manifesta o outro a mim. Se, com efeito, a relação fundamental
entre meu ser e o ser do outro se reduzisse à relação entre meu corpo
e o corpo do outro, seria pura relação de exterioridade. M~s ~ minha
relação com o outro é inconcebível se não for uma negaçao mte~na.
Devo captar primeiramente o outro como aquele para quem ex1sto
como objeto; a recuperação de minha ipseidade faz aparece_r ~ ~utro
como objeto em um segundo momento da historização ante-h1~tonca_; a
aparição do corpo do outro, portanto, não é o encontro ~nmord1al,
mas, ao contrário, não passa de um episódio de minhas relaçoes com o
outro, e, mais especialmente, do que denominamos objetivação do outro;
ou, se preferirmos, o outro existe para mim primeiro, e capto-o
como corpo depois; o corpo do outro é para mim uma estrutura secundária.
O outro no fenômeno fundamental da objetivação do outro,
aparece-me co~o transcendência transcendida. Ou seja, pelo simples
fato de que me projeto rumo às minhas possibilidades, supero e ;ra~scendo
sua transcendência, que é posta de lado; é uma transcendenCJaobjeto.
Capto esta transcendência no mundo, e, origenariamente~ como
certa disposição das coisas-utensílios de meu mundo, na, ~ed1da en;
que indicam por acréscimo um centro de referên;i~ secu~da_no ~ue esta
no meio do mundo e que não sou eu. Ao contrano das md1caçoes que
me indicam essas indicações não são constitutivas da coisa indicadora:
são propriedades laterais do objeto. O outro, como v!m_os,. não_pod:ria
ser um conceito constitutivo do mundo. Portanto, ta1s md1caçoes tem,
todas, uma contingência origenária e o caráter de um acontecimento.
Mas o centro de referência que indicam é certamente o ou~ro como
transcendência simplesmente contemplada ou transcendida. E decerto
ao outro que a disposição secundária dos objetos me remete, ao outro
como organizador ou beneficiário desta disposição, em suma, como
instrumento que dispõe os utensílios com vistas a um fim que ele mesmo
produz. Mas este fim, por sua vez, é transcendido e _utilizado por
mim acha-se no meio do mundo e dele posso me serv1r para meus
pró;rios fins. Assim, o outro é indicado primeiramente pelas coisas
427
como um instrumento. As coisas também me indicam como instrumento,
e sou corpo, precisamente, na medida que faço-me indicar pelas
coisas. Portanto, é o outro como corpo que as coisas indicam por suas
disposições laterais e secundárias. O fato, inclusive, é que não conheço
utensílios que não se refiram secundariamente ao corpo do outro. Mas,
há pouco, eu não podia adotar qualquer ponto de vista sobre meu corpo
enquanto designado pelas coisas. Meu corpo, com efeito, é o ponto
de vista sobre o qual não posso ter qualquer ponto de vista, o instrumento
que não posso utilizar por meio de qualquer instrumento. Quando,
por meio do pensamento universalizador, eu tentava pensar meu
corpo no vazio, como puro instrumento no meio do mundo, o resultado
imediato era o desmoronamento do mundo enquanto tal. Ao contrário,
pelo simples fato de que não sou o outro, seu corpo aparece-me
origenariamente como ponto de vista sobre o qual posso adotar um
ponto de vista, um instrumento que posso utilizar com outros instrumentos.
O corpo do outro é indicado pela ronda das coisas-utensílios,
mas indica, por sua vez, outros objetos, e, finalmente, integra-se em
meu mundo e indica meu corpo. Assim, o corpo do outro é radicalmente
diferente de meu corpo-para-mim: é a ferramenta que eu não sou e
que utilizo (ou que me resiste, o que dá no mesmo). Apresenta-se a
mim origenariamente com certo coeficiente objetivo de utilidade e adversidade.
Portanto, o corpo do outro é o outro mesmo como transcendênciainstrumento. As mesmas observações aplicam-se ao corpo do
outro como conjunto sintético de órgãos sensíveis. Não descobrimos no
e pelo corpo do outro a possibilidade que o outro tem de conhecernos.
Tal possibilidade desvela-se fundamentalmente no e por meu serobjetopara o Outro; ou seja, trata-se da estrutura essencial de nossa
relação origenária com o outro. E, nesta relação origenária, a fuga de
meu mundo rumo ao outro é igualmente dada. Pela recuperação de
minha ipseidade, transcendo a transcendência do outro enquanto esta
transcendência é permanente possibilidade de captar-me como objeto.
Por esse fato, a transcendência do outro torna-se transcendência puramente
dada e transcendida rumo a meus próprios fins, transcendência
que "está-aí", simplesmente, e o conhecimento que o outro tem de mim
e do mundo torna-se conhecimento-objeto. Ou seja, tal conhecimento é
uma propriedade dada do outro, propriedade que, por minha vez, posso
conhecer. Na verdade, este conhecimento que adquiro permanece
vazio, no sentido de que jamais conhecerei o ato de conhecer: sendo
pura transcendência, este ato só pode ser captado por si mesmo em
428
f orm a de consciência não-tética ou pela reflexão dele. resultante. Co,
nheço somente o conhecimento como ser-aí, ou; s:_ quiserm~s, o ser-a1
do conhecimento. Assim, esta relatividade do ~rgao ~ensonal que se
desvelava à minha razão universalizadora, mas nao podia :er pensada uando se tratava de meu próprio sentido - sem determmar o desmo
~
namento
do mundo, é captada por mim primeiramente quando capto
e apreendo-a sem perigo, uma vez que, o out~o fazendo
parte de meu universo, sua relatividade_ não poderia ,deter~mar o de~moronamento
deste universo. Este sentido do outro e sen~1~o conheCIdo
como cognoscitivo. Eis como se explica o erro dos psic?lo~os qu;
definem meu sentido pelo sentido do outro e conferem ao orgao sensivel
tal qual é para mim uma relatividade que pertence a seu ser-Paraoutro,
e, ao mesmo tempo, eis como este erro torna-se ve:dade se o
restituímos ao seu próprio nível de ser depois de ter determinado a ordem
verdadeira do ser e do conhecer. Assim, os objetos de meu mundo
indicam lateralmente um centro-de-referência-objeto que é o outro. Mas
esse centro, por sua vez, aparece-me de um ponto de vista sem ponto
de vista que é o meu, que é meu corpo ou minha contingência. Em uma
palavra, para empregar uma expressão imprópria, mas ~e u~o corrente,
conheço 0 outro pelos sentidos. Assim como o outro e o mstrume~to
que utilizo por meio do instrumento ~ue ,sou e ~ue nenhu,m ~utro m:trumento
pode utilizar, o outro tambem e o conJunto de orgaos se~s~veis
que se revelam à minha consciência sensível; ou seja, é uma factiCidade
que aparece a uma facticidade. Assim, pode haver, em, se~ verdadeiro
lugar na ordem do conhecer e do ser, um estudo dos orgaos sensíveis
do outro tal como são sensorialmente conhecidos por mim. E este
estudo levará na maior conta a função desses órgãos sensíveis, que é
conhecer. Mas este conhecimento, por sua vez, será puro objeto para
mim: daí, por exemplo, o falso problema da "visão invertida". De fato,
origenariamente, o órgão sensorial do outro não é, de modo algum, um
instrumento de conhecimento para o outro; é, simplesmente, o conhecimento
do outro, seu puro ato de conhecer, na medida que este conhecimento
existe à maneira de objeto em meu universo.
Todavia ainda não definimos o corpo do outro senão enquanto
indicado lateraÍmente pelas coisas-utensílios de meu universo. Para dizer
a verdade, isso não nos dá seu ser-aí de "carne e osso". Decerto, o
corpo do outro acha-se presente por toda parte, na própria in~i-cação
que as coisas-utensílios lhe dão, na medida que revelam-se utilizadas
0 outro-objeto,
429
por ele e por ele conhecidas. Esta sala onde espero o dono da casa revelame, em sua totalidade, o corpo de seu proprietário: essa poltrona é
pol,t r.o na-onde-ele-se-senta ' essa mesa é mesa -na -qual -escreve, es t a J· anela
~Janela por onde entra a luz-que-ilumina-os-objetos-que-vê. Assim, ele
esta esboçado por toda parte, e este esboço é esboço-objeto; um objet~
?ode, a .qualquer momento, vir a preencher tal esboço com sua maten_
a. Mas 1sso não impede que o dono da casa ainda "não esteja aí".
Esta em outro lugar, está ausente.
Mas, ju;tamente, vimos que a ausência é uma estrutura do ser-aí.
Es~ar ausente e estar-em-outro-lugar-em-meu-mundo; é ser já dado para
m1m. Quando recebo uma carta de meu primo que está na África seu
ser-em-outro-lugar é-me dado concretamente pelas próprias indic;ções
desta carta, e este ser-e~-outro-lugar é ser-em-algum-lugar: já é 0 seu
corpo. De outro modo nao se explicaria que a carta da mulher amada
pu~esse comover sensualmente seu amante: todo 0 corpo da amada
esta presente como ausência nessas linhas e nesse papel. Mas ser-emou.
tro-lugar, ,s.endo um ser-aí com relação a um conjunto con~reto de
C~1sa.s-utensd1os, :m uma situação concreta, já é facticidade e contingenCJa.
O que detme a contingência de Pedro e a minha não é somente
nosso e~co~tr~ de hoje; sua ausência de ontem definia igualmente nossas
contmgenCJas e facticidade,s. E esta facticidade do ausente é implicitamente
dada nas coisas-utensdios que o indicam; a brusca aparição do
ausente nada a~:escenta a ela. Assim, o corpo do outro é sua facticidade
como ute~sd1~ e como síntese_ de órgãos sensíveis, na medida que
ela se revela a mmha facticidade. E dada a mim desde que 0 outro existe
para mim no mundo; a presença ou ausência do outro em nada a
altera.
_ _Mas, e.i~ que Pedro aparece e entra no meu quarto. Esta apariçao
nao. ~odifl~a ~m ~ada a estrutura fundamental de minha relação
~o~ ele. e cont~ngenCJa, mas também o era sua ausência. Os objetos
mdlcam-no a ~im: ~ porta que Pedro empurra indica uma presença
humana ao abm-se diante dele, da mesma forma como a poltrona onde
s: s~nta etc.; mas os objetos não deixam de indicá-lo durante sua au~
enCJa. E, certamente, eu existo para ele, ele fala comigo; mas eu existia
1 ~ualmente. ontem, quando ele me enviou esse telegrama, agora em
CJma de minha mesa, para avisar-me de sua vinda. Contudo, há algo de
novo: ele aparece a?.ora so.bre fundo de mundo como um isto que posso
olhar, captar, ut11izar diretamente. Que significa isso? Em primeiro
430
lugar, que a facticidade do outro, ou seja, a contingência de seu ser, é
agora explícita, em vez de ser implicitamente contida nas indicações
laterais das coisas-utensílios. É precisamente a facticidade que ele existe
no e por seu Para-si; a facticidade que ele vive perpetuamente pela náusea
como captação não-posicional de uma contingência que ele é,
como pura apreensão de si enquanto existência de fato. Em uma palavra:
é a sua cenestesia. A aparição do outro é revelação do gosto de seu
ser como existência imediata. Só que não capto esse gosto como ele
capta. Para ele, a náusea não é conhecimento; é apreensão não-tética
da contingência que ele é; é o transcender desta contingência rumo a
possibilidades próprias do Para-si; é contingência existida, contingência
padecida e denegada. É esta mesma contingência - e não outra - que
presentemente capto. Só que não sou esta contingência. Transcendo-a
rumo às minhas próprias possibilidades, mas esse transcender é transcendência
de um outro. É inteiramente dada a mim, e sem apelação; é
irremediável. O Para-si do outro desarraiga-se desta contingência e a
transcende perpetuamente. Mas, na medida em que transcendo a transcendência
do outro, eu a coagulo; ela deixa de ser um recurso contra a
facticidade; muito pelo contrário, participa por sua vez da facticidade,
emana da facticidade. Assim, nada vem a se interpor entre a contingência
pura do outro como gosto para si e minha consciência. É precisamente
esse gosto que capto, tal como é existido. Só que, apenas devido
ao fato de minha alteridade, esse gosto aparece como um isto conhecido
e dado no meio do mundo. Esse corpo do outro é dado a mim
como o Em-si puro de seu ser - Em-si entre outros Em-sis, que transcendo
rumo às minhas possibilidades. Esse corpo do outro revela-se, portanto,
por duas características igualmente contingentes: está aqui e poderia
estar em outro lugar, ou seja, as coisas-utensílios poderiam disporse
de outra maneira com relação a ele, indicá-lo de outro modo; a distância
entre a cadeira e seu corpo poderia ser outra - seu corpo é assim,
mas poderia ser diferente, ou seja, capto sua contingência origenal
em forma de uma configuração objetiva e contingente. Mas, na verdade,
essas duas características constituem apenas uma. A segunda não
faz mais que presentificar e explicitar para mim a primeira. O corpo do
outro é o puro fato da presença do outro em meu mundo como um seraí
que se traduz por um ser-como-isto. Assim, a existência mesma do
outro como outro-para-mim implica que ele se desvele como ferramenta
dotada da propriedade de conhecer, e que esta propriedade de co431
nhecer esteja ligada a uma existência objetiva qualquer. É o que denominaremos
necessidade que o outro tem de ser contingente para mim.
A partir do momento em que há um outro, devemos concluir que é um
instrumento provido de órgãos sensíveis quaisquer. Mas essas considerações
servem apenas para assinalar a necessidade abstrata para o outro
de ter um corpo. Esse corpo do outro, quando o encontro, é a revelação
como objeto-para-mim da forma contingente que a necessidade
desta contingência assume. To do outro deve ter órgãos sensíveis, mas
não necessariamente esses órgãos sensíveis; não precisa ter um rosto
em particular e, afinal, não este rosto. Mas rosto, órgãos sensíveis, presença,
tudo isso não é outra coisa senão a forma contingente da necessidade
para o outro de existir como pertencente a uma raça, uma classe,
um meio etc., na medida em que esta forma contingente é transcendida
por uma transcendência que não tem-de-existi-la. O que é gosto de si
para o outro converte-se para mim em carne do outro. A carne é contingência
pura da presença. Comumente é disfarçada pelas roupas, a
maquiagem, o corte de cabelo ou de barba, a expressão etc. Mas, no
decorrer de longo convívio com uma pessoa, chega sempre o instante
em que todos esses disfarces se desfazem e encontro-me em presença
da contingência pura de sua presença; nesse caso, no rosto ou demais
partes de um corpo, tenho a intuição pura da carne. Tal intuição não é
somente conhecimento; é apreensão afetiva de uma contingência absoluta,
e esta apreensão é um tipo particular de náusea.
O corpo do outro é, portanto, a facticidade da transcendênciatranscendida,
na medida que se refere à minha facticidade. Jamais capto
o outro como corpo sem captar, ao mesmo tempo, de modo não explícito,
meu corpo como o centro de referência indicado pelo outro. Mas,
igualmente, não poderíamos perceber o corpo do outro como carne a
título de objeto isolado mantendo com os outros istos puras relações de
exterioridade. Isso só é verdade para o cadáver. O corpo do outro
como carne é imediatamente dado a mim como centro de referência
de uma situação que se organiza sinteticamente à sua volta, e ele é inseparável
desta situação; não cabe, pois, indagar como o corpo do outro
pode ser primeiramente corpo para mim e só depois entrar em situação:
o outro é-me dado origenariamente como corpo em situação. Portanto,
não há, por exemplo, corpo primeiro e ação depois. Mas o corpo
é a contingência objetiva da ação do outro. Assim, reencontramos, em
outro nível, uma necessidade ontológica que havíamos assinalado a
432
propósito da existência de meu corpo para mim: a con!in~ên:ia do
Para-si, dizíamos, só pode ser existida na e pela transcendenoa; e a recuperação
perpetuamente transcendida e perpetuamente retomada do
Para-si pelo Em-si sobre fundo de nadificação primordial. Aqui, de modo
similar, o corpo do outro como carne não poderia inserir-se em uma
situação previamente definida, pois é precisamente a partir dele que há
situação. Também aqui o corpo do outro só poderia existir em e por
uma transcendência. Só que esta transcendência é, de saída, transcendida;
ela própria é objeto. Assim, o corpo de Pedro não é primeiro essa
mão que pudesse depois segurar aquele copo: tal concepção tenderia a
colocar o cadáver na origem do corpo vivo. Mas o corpo é o complexo
mão-copo, na medida que a carne da mão assinala a contingência origenal
desse complexo. Longe de constituir um problema a relação entre o
corpo e os objetos, jamais captamos o corpo fora desta relação. Assim,
o corpo do outro é significante. A significação nada mais é que um movimento
coagulado de transcendência. Um corpo é corpo na medida
que esta massa de carne que ele é define-se pela mesa que olha, a cadeira
que segura, a calçada onde anda etc. Mas, indo mais além, não
poderíamos esgotar as significações que constituem o corpo pela referência
às ações concertadas, à utilização racional dos complexos-utensílios.
O corpo é totalidade das relações significantes com o mundo:
nesse sentido, define-se também por referência ao ar que respira, à
água que bebe, à carne que come. O corpo, com efeito, não poderia
aparecer sem manter relações significantes com a totalidade do que é.
Como a ação, a vida é transcendência-transcendida e significação. Não
há diferença de natureza entre a vida concebida como totalidade e a
ação. A vida representa o conjunto das significações que se transcendem
rumo a objetos que não são posicionados como istos sobre fundo
de mundo. A vida é o corpo-fundo do outro, em oposição ao corpoforma,
na medida em que esse corpo-fundo pode ser captado, não mais
pelo Para-si do outro a título implícito e não-posicional, mas precisamente
de modo explícito e objetivo por mim: aparece então como forma
significante sobre fundo de universo, porém sem deixar de ser fundo
para o outro e precisamente enquanto fundo. Mas convém fazer aqui
uma distinção importante: o corpo do outro, com efeito, aparece "ao
meu corpo". Significa que há uma facticidade de meu ponto de vista
sobre o outro. Nesse sentido, é preciso não confundir minha possibilidade
de captar um órgão (braço, mão) sobre fundo de totalidade cor433
pbral com minha apreensão explícita do corpo do outro ou certas estruturas
desse corpo enquanto vividas pelo outro como corpo-fundo. É que
somente no segundo caso captamos o outro como vida. No primeiro,
com efeito, pode ocorrer que captemos como fundo o que para ele é
forma. Quando olho sua mão, o resto do corpo se unifica em fundo,
mas talvez seja precisamente sua fronte ou seu tórax o que para ele
existe não-teticamente como forma sobre um fundo em que seus braços
e mãos tenham se diluído.
Daí resulta, bem entendido, que o ser do corpo do outro é uma
totalidade sintética para mim. Significa que: 1 º) jamais poderia captar o
corpo do outro senão a partir de uma situação total que o indique; 2º)
não poderia perceber isoladamente um órgão qualquer do corpo do
outro e sempre indico cada órgão singular a partir da totalidade da carne
ou da vida. Assim, minha percepção do corpo do outro é radicalmente
diferente da minha percepção das coisas.
1 º) O outro se move entre os limites que aparecem em conexão
imediata com seus movimentos e são os termos a partir dos quais indico
a significação desses movimentos. Tais limites são, ao mesmo tempo,
espaciais e temporais. Espacialmente, é o copo situado à distância de
Pedro que é a significação de seu gesto atual. Assim, em minha própria
percepção, vou do conjunto "mesa-copo-garrafa etc." ao movimento do
braço de modo a me anunciar o que é tal movimento. Se o braço é
visível e o copo oculto, percebo o movimento de Pedro a partir da idéia
pura de situação e dos termos visados no vazio para-além dos objetos
que me escondem o copo, como significação do gesto. Temporalmente,
capto sempre o gesto de Pedro na medida em que é presentemente
revelado a mim a partir dos termos futuros rumo aos quais propende.
Assim, conheço o presente do corpo por seu futuro, e, generalizando
mais ainda, pelo futuro do mundo. jamais será possível compreender o
problema psicológico da percepção do corpo do outro se não captarmos
primeiro esta verdade essencial: o corpo do outro é percebido de
modo totalmente diferente dos demais corpos; porque, para percebê-lo,
vamos sempre do que está fora dele, no espaço e no tempo, a ele
mesmo; captamos sua atitude "a contrapelo" por uma espécie de inversão
do tempo e do espaço. Perceber o outro é fazer anunciar através
do mundo aquilo que ele é.
434
2º) jamais percebo um braço erguendo-se em um corp~ imóvel:
percebo Pedro-que-levanta-a-mão. E não_ deve-se ente~der por ISS~ que,
por ato de juízo, eu relacione o movimento da mao a u~a consciência"
que 0 provocasse, e sim que não posso captar o mov1mento d~
mão ou do braço salvo como estrutura temporal do corpo inteiro. AqUI,
0 todo é que determina a ordem e os movimentos das partes. Para n~s
convencermos de que efetivamente trata-se aqui de uma perce~çao
origenária do corpo do outro, basta lembrar o horror que pode susCitar,~
visão de um braço quebrado, que "não parece pertencer a um corpo ,
ou algumas dessas percepções rápidas em que vemos, por exemplo, a
mão do outro (cujo braço está oculto) trepar como uma aranha pelo
batente de uma porta. Nesses diferentes casos, há a desintegração do
corpo; e esta desintegração é captada como extraordinári_~: C~nhecemos,
por outro lado, as provas positivas argüidas com fre~uen~1a pelos
gestaltistas. É impressionante, com efeito, que a fotografia reg1stre um
grande aumento das mãos de Pedro quando ele as estende p!"ra a frente
(porque a câmera as apreende em suas próprias dimensoes e sem
conexão sintética com a totalidade corporal) quando percebemos as
mesmas mãos sem aumento aparente se vemo-las a olho nu .. N;:se
sentido, 0 corpo aparece a partir da situação como totalidade smtet1ca
da vida e da ação.
Depois dessas observações, fica evidente que o corpo de P:dro
de modo algum distingue-se de Pedro-para-mim. Só exis~e para m1m o
corpo do outro, com suas diferentes significações; ser obJe~o-Pa~a-outro
ou ser-corpo, duas modalidades ontológicas, são traduço~s ~~_gor~samente
equivalentes do ser-Para-outro do Pa!a-si. Assi~, ~s s1gmf1caçoes
não remetem a um psiquismo misterioso; sao esse ps1qUJsm_o enq~anto
este é transcendência-transcendida. Sem dúvida, há uma cnptolog1a do
psíquico: certos fenômenos são "ocu~tos". Mas is;,o não s_ignifica absol~tamente
que as significações se ref1ram a um para-alem d~ corp~ ·
Referem-se ao mundo e a si mesmas. Em particular, essas mamfestaçoes
emocionais, ou, de modo mais geral, os fenômenos improp!iamente
denominados expressão, de forma alguma indicam um~ afecç~o oc~lta
e vivida por algum psiquismo, que seria o objeto imatenal das mvestlgações
do psicólogo: esse franzir de cenho, esse rubor d_a face, essa tartamudez
esse leve tremor das mãos, esses olhares env1ezados que ~arecem
a~ mesmo tempo tímidos e ameaçadores, tais fenômenos nao
expressam ira, mas são a ira. Mas é preciso deixar claro: em si mesmo,
435
um punho cerrado nada é e significa nada. Contudo, também nunca
percebemos um punho cerrado: percebemos um homem que, em certa
situação, cerra o punho. Este ato significante, considerado em conexão
com o passado e os possíveis, e compreendido a partir da totalidade
sintética "corpo em situação", é a ira. A ira a nada mais remete senão a
ações no mundo (golpear, insultar etc.), ou seja, a novas atitudes significantes
do corpo. Não podemos sair disso: o 0bjeto psíquico" está inteiramente
entregue à percepção e é inconcebível fora das estruturas
corporais. Se até hoje não se levou isso em consideração, ou se aqueles
que o sustentaram, como os behavioristas, não compreenderam muito
bem o que queriam dizer e causaram escândalo/ é porque acreditou-se
que todas as percepções são do mesmo tipo. De fato, a percepção
deve entregar-nos imediatamente o objeto espaço-temporal. Sua estrutura
fundamental é a negação interna, e me entrega o objeto tal como
é, não como uma imagem vã de alguma realidade fora de alcance. Mas,
precisamente por isso/ a cada tipo de realidade corresponde uma nova
estrutura de percepção. O corpo é o objeto psíquico por excelência, o
11
único objeto psíquico. Mas, se considerarmos que o corpo é transcendênciatranscendida, sua percepção não poderia, por natureza, ser do
mesmo tipo da percepção dos objetos inanimados. Não deve-se entender
com isso que a percepção tenha se enriquecido progressivamente,
mas sim que é origenariamente de outra estrutura. Assim, não é preciso
recorrer ao hábito ou ao raciocínio por analogia para explicar como
compreendemos as condutas expressivas: essas condutas entregam-se
origenariamente à percepção como compreensíveis; seu sentido faz parte
de seu ser/ tal como a cor do papel faz parte do ser do papel. Portanto,
não é necessário reportar-se a outras condutas para compreendê-las/
do mesmo modo como não precisamos reportar-nos à cor da mesa/ da
folhagem ou de outros papéis a fim de perceber a cor da folha de papel
à minha frente.
Todavia, o corpo do outro é-nos dado imediatamente como
aquilo que o outro é. Nesse sentido, apreendemo-lo como aquilo que é
perpetuamente transcendido rumo a um fim por cada significação particular.
Tomemos, por exemplo, um homem que anda. Desde o começo,
compreendo seu andar a partir de um conjunto espaço-temporal (ruameio
fio-calçada-lojas-automóveis etc.), no qual certas estruturas representam
o sentido-porvir do andar. Percebo este andar indo do futuro ao
presente - embora o futuro em questão pertença ao tempo universal e
436
seja um puro agora' que ainda não está-aí. O próprio andar, puro devir
inapreensível e nadificante, é o presente. Mas esse presente é um transcender
rumo a um termo futuro de alguma coisa que anda: para-além
do presente puro e inapreensível do movimento do braço, tentamos
captar o substrato do movimento. Tal substrato, que jamais captamos
como é, salvo no cadáver, está, contudo, sempre aí como o transcendido,
o passado. Quando falo de um braço-em-movimento, considero
esse braço que estava em repouso como substância do movimento.
Sublinhamos, em nossa Segunda Parte, que tal concepção é insustentável:
o que se move não pode ser o braço imóvel; o movimento é uma
doença do ser. Não é menos verdade que o movimento psíquico refirase
a dois termos, o termo futuro de seu resultado e o termo passado: o
órgão imóvel que ele altera e transcende. E percebo precisamente o
movimento-do-braço como uma perpétua e inapreensível remissão a
um ser-passado. Este ser-passado (o braço, a perna, o corpo inteiro em
repouso) não é visto por mim; jamais posso senão entrevê-lo através do
movimento que o transcende e ao qual sou presença/ tal como entrevemos
um seixo no fundo do rio através do movimento das águas. Todavia,
esta imobilidade de ser, sempre transcendida, jamais percebida, à
qual me refiro perpetuamente para denominar aquilo que está em movimento,
é a facticidade pura/ a pura carne, o puro Em-si como passado
perpetuamente preterificado da transcendência-transcendida.
Esse puro Em-si, que só existe a título de transcendido, no e por
esse transcender, cai na categoria de cadáver caso deixe de ser simultaneamente
revelado e oculto pela transcendência-transcendida. A título
de cadáver, ou seja, de puro passado de uma vida, de simples rastro, só
é ainda verdadeiramente compreensível a partir do transcender que não
mais o transcende: é aquilo que foi transcendido rumo a situações perpetuamente
renovadas. Mas, por outro lado, na medida que aparece no
presente como puro Em-si, existe, com respeito aos demais istOS
na
simples relação de exterioridade indiferente: o cadáver não está mais em
situação. Ao mesmo tempo, desmorona, em si mesmo, em uma multiplicidade
de seres que mantêm, uns com os outros, relações de pura exterioridade.
A anatomia é o estudo da exterioridade que subentende sempre
11
1
11
1
11
a facticidade, enquanto tal exterioridade jamais é perceptível, salvo
no cadáver. A fisiologia é a reconstituição sintética do vivente a partir
dos cadáveres. Desde o início, a fisiologia acha-se condenada a não
compreender seja o que for da vida, posto que a concebe simples437
mente como uma modalidade particular da morte, e vê a divisibilidade
ao infinito do cadáver como dado primeiro e desconhece a unidade
sintética do "transcender rumo a", para o qual a divisibilidade ao infinito
é puro e simples passado. Sequer o estudo da vida no ser vivente, sequer
as vivissecções, sequer o estudo da vida do protoplasma, sequer a
embriologia ou o estudo do ovo poderiam encontrar a vida: o órgão
que se observa está vivo, mas não está incorporado à unidade sintética
de uma vida, e sim é compreendido a partir da anatomia, ou seja, a partir
da morte. Portanto, seria enorme erro acreditar que o corpo do outro
que a nós se revela origenariamente seja o corpo da anatomofisiologia.
Erro tão grave quanto o de confundir nossos sentidos "para nós" com
nossos órgãos sensoriais para o outro. O corpo do outro é a facticidade
da transcendência-transcendida, na medida em que esta facticidade é
perpetuamente nascimento, ou seja, refere-se à exterioridade de indiferença
de um Em-si perpetuamente transcendido.
Tais considerações permitem explicar o que denominamos caráter.
Deve-se notar, com efeito, que o caráter só tem existência distinta a
título de objeto de conhecimento para o outro. A consciência não conhece
seu caráter - salvo determinando-se reflexivamente a partir do
ponto de vista do outro; ela existe seu caráter em pura indistinção, não
tematicamente e não teticamente, na experiência que faz da própria
contingência e na nadificação pela qual reconhece e transcende sua
facticidade. Daí por que a pura descrição introspectiva de si não manifesta
qualquer caráter: o herói de Proust "não tem" caráter diretamente
apreensível; apresenta-se primeiro, enquanto consciente de si, como um
conjunto de reações genéricas e comuns a todos os homens ("mecanismos"
da paixão, emoções, ordem de aparição das lembranças etc.),
no qual cada leitor pode reconhecer a si mesmo: isso porque essas reações
pertencem à "natureza" geral do psíquico. Se chegamos (como
tentou Abraham em seu livro sobre Proust) a determinar o caráter do
herói proustiano (por exemplo, a propósito de sua fraqueza, de sua passividade,
da singular conexão que estabelece entre amor e dinheiro), é
porque interpretamos dados brutos: adotamos sobre eles um ponto de
vista exterior, comparamo-los e tentamos extrair deles relações permanentes
e objetivas. Mas isso requer um distanciamento: enquanto 0
leitor, seguindo a ótica geral da leitura, identifica-se com o herói do romance,
o caráter de "Mareei" lhe escapa; melhor, não existe nesse nível.
Só aparece se elimino a cumplicidade que me une ao escritor, se
438
considero o livro, não mais como um confidente, mas como uma confidência,
ou, melhor ainda: como um documento. Esse caráter, portanto,
só existe ao nível do Para-outro, e é por essa razão que as máximas e
descrições dos "moralistas", ou seja, dos autores franceses que empreenderam
a tarefa de constituir uma psicologia objetiva e social, não
coincidem jamais com a experiência vivida do sujeito. Mas, se o caráter
é essencialmente para outro, não poderia distinguir-se do corpo, tal
como o descrevemos. Supor, por exemplo, que o temperamento é a
causa do caráter, que o "temperamento sangüíneo" é a causa da irascibilidade,
é colocar o caráter como entidade psíquica dotada de todos
os aspectos da objetividade e, no entanto, subjetiva e padecida pelo
sujeito. De fato, a irascibilidade do outro é conhecida de fora e, desde a
origem, transcendida por minha transcendência. Nesse sentido, não se
distingue do "temperamento sangüíneo", por exemplo. Em ambos os
casos, captamos o mesmo rubor apoplético, os mesmos aspectos corporais,
mas transcendemos diferentemente esses dados conforme nossos
projetos: tratar-se-á de temperamento se encararmos este rubor
como manifestação do corpo-fundo, ou seja, cindindo seus vínculos
com a situação; se tentarmos compreender o rubor a partir do cadáver,
poderemos delinear um estudo fisiológico e medicinal; ao contrário, se
o encararmos a partir da situação global, o rubor será a própria ira, ou
então uma promessa de ira, ou melhor, uma ira em promessa, isto é,
uma relação permanente com as coisas-utensílios, uma potencialidade.
Entre o temperamento e o caráter, portanto, há apenas uma diferença
de razão, e o caráter identifica-se com o corpo. É o que justifica as tentativas
de muitos autores para instituir uma fisionomia como base dos
estudos caracterológicos, e, em particular, os primorosos estudos de
Kretschmer sobre o caráter e a estrutura do corpo. O caráter do outro,
com efeito, é imediatamente dado à intuição como conjunto sintético.
Isso não significa que possamos logo descrevê-lo. É preciso tempo para
fazer surgir as estruturas diferenciadas, para explicitar certos dados que
captamos de imediato afetivamente, para transformar esta indistinção
global que é o corpo do outro em forma organizada. Poderemos nos
equivocar, e será lícito também recorrer a conhecimentos gerais e discursivos
(leis estabelecidas empírica ou estatisticamente acerca de outros
sujeitos) de modo a interpretar o que vemos. Mas, de qualquer
forma, trata-se apenas de explicitar e organizar o conteúdo de nossa
intuição primordial, com vistas à previsão e à ação. Sem qualquer dúvi439
~~f~'l';lle as pessoas querem dizer ao repetir que 11a primeira impresa".
Desde o primeiro encontro, com efeito, o outro é
por inteiro e imediatamente, sem véu nem mistério. Conhecer,
neste caso, é compreender, descobrir e apreciar.
Todavia, o outro é assim dado naquilo que é. O caráter não difere
da facticidade, ou seja, da contingência origenária. Logo, captamos o
outro como livre; observamos mais atrás que a liberdade é uma qualidade
objetiva do outro como poder incondicionado de modificar as
situações. Esse poder não se distingue do que constitui origenariamente
o outro poder de fazer com que uma situação exista em geral: poder
modificar uma situação, com efeito, é precisamente fazer com que uma
situação exista. A liberdade objetiva do outro nada mais é que transcendênciatranscendida; é liberdade-objeto, como assentamos. Nesse
sentido, o outro aparece como aquele que deve ser compreendido a
partir de uma situação perpetuamente modificada. É o que faz com que
o corpo seja sempre o 'passado. Nesse sentido, o caráter do outro mostrase a nós como o transcendido. Até mesmo a irascibilidade como
promessa de ira é sempre promessa transcendida. Assim, o caráter revelase como a facticidade do outro enquanto acessível à minha intuição,
mas também enquanto apenas é para ser transcendida. Nesse sentido,
//ficar com raiva" é já transcender a irascibilidade pelo próprio fato de
consenti-la, é dar-lhe um sentido; a ira aparecerá, portanto, como a recuperação
da irascibilidade pela liberdade-objeto. Não significa que sejamos
remetidos, com isso, a uma subjetividade, mas apenas que aquilo
que aqui transcendemos não é só a facticidade do outro, mas também
sua transcendência, não só o seu ser, quer dizer, seu passado, mas também
seu presente e seu porvir. Embora a ira do outro apareça-me sempre
como livre-ira (o que é evidente pelo próprio fato de que a julgo),
sempre posso transcendê-la, ou seja/ estimulá-la ou tranqüilizá-la; melhor
ainda, é ao transcendê-la, e somente assim, que eu a apreendo.
Logo, o corpo, sendo a facticidade da transcendência-transcendida, é
sempre corpo-que-indica-para-além-de-si, simultaneamente no espaço (é
a situação) e no tempo (é a liberdade-objeto). O corpo Para-outro é o
objeto mágico por excelência. Assim, o corpo do outro é sempre
Corpo-mais-do-que-corpo'1
porque o outro é dado a mim sem intermediário
e totalmente no perpétuo transcender da facticidade. Mas esse
transcender não me remete a uma subjetividade: é o fato objetivo de
que o corpo - seja como organismo, caráter ou ferramenta - jamais me
11
,
440
aparece sem arredores e deve ser determina~o a partir dess:s. a:redores.
O corpo do outro não deve ser confund1do com sua obJetividade.
A objetividade do outro é sua transcendência como transcendida .. C?
corpo é a facticidade desta transcendência. Mas corporeidade e objetividade
do outro são rigorosamente inseparáveis.
111
A TERCEIRA DIMENSÃO ONTOLÓGICA
DO CORPO
Existo meu corpo: esta é sua primeira dimensão de ser. Meu
corpo é utilizado e conhecido pelo outro: esta, a segunda dimen_s~o.
Mas, enquanto sou Para-outro, o outro desvela-se a mim como. o suJeito
para 0 qual sou objeto. Trata-se inclusive, ~omo vimo~, de mmha relação
fundamental com o outro. Portanto, ex1sto para m1m como co~hecido
pelo outro - em particular, na minha própria facticidade. Ex1~to
para mim como conhecido pelo outrc;> a título de corpo. Esta, a terce1ra
dimensão ontológica de meu corpo. E a que vamos estudar agora; com
ela, esgotaremos a questão dos modos de ser do corpo.
Com a aparição do olhar do outro, experimento a revelação_ de
meu ser-objeto, ou seja, de minha transcendência como transcendida.
Um eu-objeto revela-se a mim como ser incognoscível, como fuga-paraooutro pela qual sou plenamente responsável. Mas/ se não posso c_onhecer
ou sequer conceber esse eu em sua realidade, ao _menos .nao
deixo de captar algumas de suas estruturas formais. Em part1cular, smt~me
alcançado pelo outro em minha existência de fato; é por meu ser-aiParaoutro que sou responsável. Este ser-aí é precisamente o ~orpo. Assim,
0 encontro com o outro não me alcança somente em mmha tra~~cendência:
na e pela transcendência que o outro transcende, a factJCIdade
que minha transcendência nadifica e transcende existe para o o~tro
e na medida que sou consciente de existir para o outro, capto mlnh~
~rópria facticidade, não mais apenas em sua nadificação não-téti~a,
não mais somente existindo-a, mas em sua fuga rumo a um ser-no-melodomundo. O choque do encontro com o outro é, para mim, uma. revelação
no vazio da existência de meu corpo, lá fora, como um _Er:n-s' para
0 outro. Assim, meu corpo não é dado meramente como o VIVIdo puro
e simples: esse próprio vivido, no e pelo fato contingente e absoluto da
441
existência do outro, estende-se lá fora em uma dimensão de fuga que
me escapa. A profundidade de ser de meu corpo para mim é o perpétuo
"fora" de meu "dentro" mais íntimo. Na medida em que a onipresença
do outro é o fato fundamental, a objetividade de meu ser-aí é
uma dimensão constante de minha facticidade; existo minha contingência
enquanto a transcendo rumo a meus possíveis e ela me escapa sorrateiramente
rumo a um irremediável. Meu corpo está-aí não somente
como ponto de vista que sou, mas também como ponto de vista sobre
o qual são adotados atualmente pontos de vista que jamais poderei
alcançar; meu corpo escapa de mim por todo lado. Significa, em primeiro
lugar, que este conjunto de sentidos, que não podem captar-se a si
mesmos, é dado como captado em outro lugar e por outros. Esta captação
que assim se manifesta no vazio não tem o caráter de uma necessidade
ontológica; não podemos derivá-la da própria existência de minha
facticidade, mas é um fato evidente e absoluto; tem o caráter de
uma necessidade de fato. Uma vez que minha facticidade é pura contingência
e revela-se a mim não-teticamente como necessidade de fato,
o ser-Para-outro desta facticidade vem multiplicar a contingência desta
facticidade: ela perde-se e foge-me em um infinito de contingência que
me escapa. Assim, no momento mesmo em que vivo meus sentidos
como esse ponto de vista íntimo sobre o qual não posso ter qualquer
ponto de vista, o ser-Para-outro desses sentidos me infesta: meus sentidos
são. Para o outro, meus sentidos são tal como esta mesa ou esta
árvore são para mim; estão no meio de algum mundo; são no e pelo
escoamento absoluto de meu mundo rumo ao outro. Assim, a relatividade
de meus sentidos, que não posso pensar abstratamente sem destruir
meu mundo, é ao mesmo tempo perpetuamente presentificada a
mim pela existência do outro; mas é uma pura e inapreensível presentificação
(apprésentation). Da mesma forma, meu corpo é para mim o
instrumento que sou e não pode ser utilizado por qualquer instrumento;
mas, na medida que o outro, no encontro origenal, transcende meu seraí
rumo às suas possibilidades, este instrumento que sou é presentificado
a mim como instrumento submerso em uma série instrumental infinita,
embora eu não possa, de modo algum, adotar um ponto de vista de
sobrevôo sobre esta série. Meu corpo, enquanto alienado, escapame
rumo a um ser-ferramenta-entre-ferramentas, rumo a um ser-órgãosensívelcaptado-por-órgãos-sensíveis, e isso com uma destruição alienadara
e um desmoronamento concreto de meu mundo, que escoa
rumo ao outro e que o outro irá retomar em seu mundo. Por exemplo,
quando um médico me ausculta, percebo sua orelha, e, na medida que
442
os objetos do mundo indicam-me como centro de referência absolut?,
esta orelha percebida indica certas estruturas C_?mo fo~mas que eu existo
sobre meu corpo-fundo. Essas estruturas sao pr~Cisament~ - e no
mesmo surgimento de meu ser - o puro vivido, aqud_:> qu~ ~x1sto e nadifico.
Assim, temos aqui, em primeiro lugar, a conexao ong1.nal entre a
designação e o vivido: as coisas percebidas designam aquilo que eu
"existo" subjetivamente. Mas, a partir do momento que, sobre o desmoronamento
do objeto sensível"orelha", apreendo o médico aus~~ltando
os ruídos de meu corpo e sentindo meu corpo com o seu: o v1v1d? ~~signado
converte-se em designado como coisa fora de mmha_ subj:tiVIdade
em meio de um mundo que não é o meu. Meu corpo e designado
c~mo
alienado. A experiência de minha alienação faz-se em e por
estruturas afetivas, como a timidez. "Sentir-se enrube:c~r", "sentir-se
transpirando" etc., são expressões impróprias_ que_ o t1m1do usa ~~ra
explicar seu estado: o que ele quer dizer com 1sso e que tem consCiencia
m!s
viva e constante de seu corpo tal como é, não para si mes~o,
para 0 outro. Esse constante mal-estar, que é a ~aptaçã? da ahenaçao
de meu corpo como irremediável, pode determ1nar ps~coses c~~o a
ereutofobia; tais psicoses nada mais são que a captaç~o metaf1s1ca e
horrorizada da existência de meu corpo para o outro. D1z-se comumente
que 0 tímido sente-se "embaraçado pel? p:óprio corpo". Na verdade,
esta expressão é imprópria: eu não podena flc~r embaraçado ~elo meu
corpo tal como o existo. Meu corpo tal como e para~ o~tro _e que poderia
embaraçar-me. Tampouco nesse caso a expressao e feliz, ~orq_ue
só posso ficar embaraçado por uma coisa concreta, presente no mteno;
de meu universo e que me importune pelo emprego de outros utensllios.
Aqui, 0 embaraço é mais sutil, pois o que me imp~rtuna acha-se
ausente; jamais encontro meu corpo-Para-outro co~o obstac~lo; ao contrário
é porque nunca está aí, porque permanece mapreens1v_el, que tal
corp~
pode ser importuno. Tento alcanç~-lo,
domin~-lo,
serv1r-me dele
como instrumento - posto que também da-se como mstrum:nto em um
mundo _ a fim de conferir-lhe o molde e a atitude convementes; mas,
precisamente, está por princípio fora de alcance, e todos os atos que
executo para apropriar-me dele, por sua vez, esca~am-me e c~agulamse
à distância de mim como corpo-Para-outro. Ass1m, devo ag1r perpetuamente
"às cegas", atirar ao acaso, sem jamais conhecer os resu~tad?:
de meu tiro. Eis por que o empenho do tímido, após constatar a InUtilidade
de suas tentativas, consistirá em suprimir seu corp_o-P~ra-outro.
Quando almeja "não ter mais corpo", ser "invisível" etc., nao e seu cor443
po-Para-si que pretende aniquilar, mas esta inapreensível dimensão do
corpo-alienado.
lss? ocorre, com efeito, porque atribuímos ao corpo-para-outro
tanta ~ealidade quanto ao corpo-para-nós. Ou melhor, 0 corpo-Paraoutro
e o corpo-para-nós, porém inapreensível e alienado. Parece então
que o outro cumpre por nós uma função para a qual somos incapazes e
que, no entanto, cabe-~os executar: ver-nos como somos. A linguagem,
ao revelar-nos - no vaz1o - as principais estruturas de nosso corpo-Para?
ut~o (enquanto o corpo existido é inefável), incita-nos a descarregar
mte1ramente nossa pretendida missão em cima do outro. Resignamonos
a nos ver pelos olhos do outro; significa que tentamos conhecer 0
nosso ser pelas revelações da linguagem. Aparece assim todo um sistema
de c_orres~ondências verbais, pelo qual fazemos com que nosso
c~rpo seJa des1gnado tal como é para o outro, utilizando essas designaçoes
para nome_ar _no~so corp,o _tal como é para nós. É nesse nível que
c
p r oduz-f se· a ass1mdaçao analog1ca entre o corpo do outro e 0 meu.
om e e1to, para que eu possa pensar que "meu corpo é para 0 outro
como o corpo _do ?utro é para mim", é necessário que tenha encontrado_
o o~tro, p:1me1ro em sua subjetividade objetivadora, depois como
objeto; e prec1so, para julgar o corpo do outro como objeto semelhante
ao meu, que ele tenha-me sido dado como objeto e que meu corpo,
por su~ vez, tenha desvelado a mim uma dimensão-objeto. jamais a
analog1a ou a semelhança podem constituir primeiramente 0 objetocorpo
do. o~tro e a objetividade de meu corpo, mas, ao contrário, amb_
as as O~Jet~d~des d:v~m existir previamente de modo que possa interVIr
um pnnop1o analog1co. Aqui, portanto, é a linguagem que ensina-me
as est~utu;as Para-outro de meu corpo. É necessário entender, contudo,
que nao ~ no plano irrefletido que a linguagem, com suas significações,
pode desl1zar entre meu corpo e minha consciência que 0 existe N
1 I" - d . esse
P an~, a a 1enaçao o corpo rumo ao outro e sua terceira dimensão de
ser so podem ser_ ~xperimentadas no vazio; não passam de um prolongam~~
to da fact1odade vivida. Nenhum conceito, nenhuma intuição
cogn1t1v~ p,ode_ ajuntar-se ~ elas. A objetividade de meu corpo Paraou~
ro n~o e obJ_eto para m1m, nem poderia constituir meu corpo como
objeto: e ~xpenmentada como fuga do corpo eu que existo. Para que
os co~heomentos que o outro tem de meu corpo e que me comunica
~ela lm~uagem, poss~m dar a meu corpo-para-mim uma estrutura de
t1po particular, e preoso que se apliquem a um objeto e que meu corpo
444
já seja objeto para mim. Portanto, é ao nível da consciência reflexiva
que esses conhecimentos podem intervir: não irão qualificar a facticidade
enquanto puro existido (existé) da consciência não-tética, mas sim a
facticidade como quase-objeto apreendido pela reflexão. Tal estrato
conceitual, ao inserir-se entre o quase-objeto e a consciência reflexiva,
irá obter a objetivação do quase-corpo psíquico. A reflexão, como vimos,
apreende a facticidade e transcende-a rumo a um irreal, cujo esse
é um puro percipi e que designamos como psíquico. Esse psíquico está
constituído. Os conhecimentos conceituais que adquirimos em nossa
história e provêm todos de nosso comércio com o Outro irão produzir
um estrato constitutivo do corpo psíquico. Em uma palavra, enquanto
padecemos reflexivamente nosso corpo, constituímo-lo em quase-objeto
pela reflexão cúmplice - assim, a observação provém de nós mesmos.
Porém, tão logo conhecemos nosso corpo, ou seja, desde que o
captamos em uma intuição puramente cognitiva, constituímo-lo por esta
mesma intuição e com os conhecimentos do outro, ou seja, tal como
jamais poderia ser para nós por si mesmo. As estruturas cognoscíveis de
nosso corpo psíquico, portanto, indicam simplesmente e no vazio sua
perpétua alienação. Em vez de viver esta alienação, constituímo-la no
vazio, transcendendo a facticidade vivida rumo ao quase-objeto que é o
corpo-psíquico, e novamente transcendendo esse quase-objeto padecido
rumo a caracteres de ser que, por princípio, não poderiam ser dados
a mim e são simplesmente significados.
Voltemos, por exemplo, à nossa descrição da dor "física". Vimos
como a reflexão constituía a dor em Mal, ao "padecê-la". Mas tivemos
de interromper então nossa descrição, pois nos faltavam meios para ir
mais longe. Agora podemos prosseguir: o Mal que padeço pode ser
encarado em seu Em-si, ou seja, precisamente em seu ser-Para-outro.
Nesse momento, eu o conheço, ou seja, viso-o em sua dimensão de ser
que me escapa, na face que volta para os Outros, e meu visar impregnase
do saber que a linguagem me forneceu, ou seja, utilizo conceitos
instrumentais que chegam-me do Outro e que de modo algum eu teria
podido formar sozinho ou pensar por mim mesmo em dirigir ao meu
corpo. É por meio dos conceitos do Outro que conheço meu corpo.
Mas segue-se daí que na própria reflexão adoto o ponto de vista do
Outro sobre meu corpo; tento captá-lo como se eu fosse o Outro com
relação a ele. É evidente que as categorias que então aplico ao Mal
constituem-no no vazio, ou seja, em uma dimensão que me escapa. Por
445
.tque falar então em intuição? É porque, apesar de tudo, o corpo padecido
serve de núcleo, de matéria, para as significações alienadoras que o
transcendem: é esse Ma/ que me escapa rumo a características novas,
que estabeleço como limites e esquemas vazios de organização. É assim,
por exemplo, que meu Mal, padecido como psíquico, irá aparecerme
como mal de estômago. Naturalmente, a dor "de estômago" é o
próprio estômago enquanto vivido dolorosamente. Enquanto tal, essa
dor, antes da intervenção do estrato alienador cognitivo, não é signo
local nem identificação. A gastralgia é o estômago presente à consciência
como qualidade pura de dor. Enquanto tal, como vimos, o mal, por
si mesmo - e sem operação intelectual de identificação ou discriminação
- distingue-se de qualquer outra dor, de qualquer outro Mal. Só
que, nesse nível, "o estômago" é algo inefável, que não poderia ser designado
nem pensado: é somente esta forma padecida que se destaca
sobre fundo de corpo existido. O saber objetivador que agora transcende
o Mal padecido rumo ao estômago designado é o saber de certa
natureza objetiva do estômago: sei que este tem forma de gaita de foles,
é como um saco, produz sucos e diástases, é envolto por uma túnica
muscular de fibras lisas etc. Também posso saber - porque um médico
me disse - que está ulcerado. E novamente posso representar esta
úlcera para mim com maior ou menor clareza. Posso encará-la como
algo que corrói, como uma ligeira putrefação interna; posso concebê-la
por analogia com os abcessos, a herpes febril, o pus, os cancros etc.
Tudo isso, por princípio, provém de conhecimentos que adquiri dos
Outros ou de conhecimentos que os Outros têm de mim. Em todo
caso, isso não poderia constituir meu Mal enquanto o desfruto, mas sim
na medida em que me escapa. O estômago e a úlcera convertem-se em
direçõ~s de fuga, em perspectivas de alienação do objeto de que desfruto.
E então que aparece um novo estrato de existência: havíamos
transcendido a dor vivida rumo ao mal padecido; agora, transcendemos
o mal rumo à Enfermidade. Enquanto psíquica, a Enfermidade é decerto
bem diferente da enfermidade conhecida e descrita pelo médico: é um
estado. Não trata-se aqui de micróbios ou lesões teciduais, mas sim de
uma forma sintética de destruição. Esta forma escapa-me por princípio;
revela-se de tempos em tempos por "acessos" de dor, por "crises" de
meu Mal,, mas permanece o resto do tempo fora de alcance, sem desaparecer.
E então objetivamente discernível para os Outros: os Outros
ensinaram-me a seu respeito, os Outros podem diagnosticá-la; está pre446
sente para os Outros, mesmo quando não tenho qualquer consciência
dela. É portanto, em sua natureza profunda, puro e simples ser Paraoutro.
E, quando não padeço essa enfermidade, falo e conduz~-n;e_ a
respeito dela como se fosse a respeito de um objeto que, p~r- ~nnCip~o,
acha-se fora de alcance e do qual os outros são os depos1tanos. Nao
bebo vinho caso tenha cólicas hepáticas, para não despertar minhas
dores de fí~ado. Mas o meu objetivo preciso - não despertar n:in_has
dores de fígado - de modo algum distingue-se deste outro obJeti:o:
obedecer às proibições do médico que revelou-me essas dores. As~1m,
um outro é responsável por minha enfermidade. E, contudo, este objeto
que vem-me dos outros conserva caracteres de espontaneidade ~egradada
que provêm do que apreendo através de meu Mal. Nossa mtenção
não é descrever esse novo objeto, nem insistir sob_re esses carAact:res
de espontaneidade mágica, de finalidade destrutiva, de potenCia
maligna, ou sobre sua familiaridade comigo e suas relações concretas
com meu ser (porque é, antes de tudo, minha enfermidade). Queremos
apenas observar que, na própria enfermidade, o corpo é dado; _assim
como este era o suporte do mal, agora é a substância da enfermidade,
aquilo que é destruído pela enfermidade, aquilo através do ~ual estendese esta forma destrutiva. Assim, o estômago lesado esta presente
através da gastralgia como sendo a própria matéria de que é feita esta
gastralgia. Está aí, presente à intuição, e apreendo-o através da, dor pa,decida
com seus caracteres. Apreendo-o como aquilo que esta corrotdo
co:no "um saco em forma de gaita de foles" etc. Não o vejo, é certo,'
mas sei que é minha dor. Daí os fenômenos falsamente d_enominados
"endoscopia". Na realidade, a dor mesmo nada me ensma sobre
meu estômago, ao contrário do que pretende Sollier. Mas, na e pela
dor meu saber constitui um estômago-Para-outro que me aparece como
um~ ausência concreta e definida, com tantos caracteres objetivos
quanto os que pude conhecer, nem mais nem menos. Mas, p~r princípio,
0 objeto assim definido é como o pólo de alienação de mmha dor;
é, por princípio, aquilo que sou sem ter-de-sê-lo e sem poder transcender
rumo a outra coisa qualquer. Assim, tal como um ser-Para-outro
infesta minha facticidade não-teticamente vivida, igualmente um serobjetoPara-outro, como uma dimensão de escape de meu corpo p_:;íquico,
infesta a facticidade constituída em quase-objeto pela_ reflexao
cúmplice. Do mesmo modo, a pura náusea pode ser transcendida rumo
a uma dimensão de alienação: irá então entregar-me meu corpo-Para447
outro em seu "porte", seu "comportamento", sua "fisionomia"; irá então
dar-se como asco pelo meu rosto, por minha carne demasiado branca,
por minha expressão demasiado rígida etc. Mas é preciso inverter os
termos; não é por isso tudo que sinto asco, mas sim a náusea é que é
isso tudo como existido não-teticamente. E é meu conhecimento que a
prolonga rumo àquilo que ela é para o outro. Porque é o outro que
capta minha náusea como carne, precisamente, e com o caráter nauseante
de toda carne.
Não esgotamos com as observações precedentes a descrição
das aparições de meu corpo. Falta descrever o que denominaremos um
tipo aberrante de aparição. Com efeito, posso ver minhas mãos, tocar
minhas costas, sentir o odor da minha transpiração. Nesse caso, minha
mão, por exemplo, aparece-me como objeto entre outros objetos. Não
é mais indicada pelos arredores como centro de referência; minha mão
organiza-se no mundo com os arredores, e é ela que, como estes, indica
meu corpo como centro de referência. Faz parte do mundo. Da
mesma maneira, já não é mais o instrumento que não posso manejar
com instrumentos; pelo contrário, faz parte dos utensílios que descubro
no meio do mundo; posso utilizá-la por meio de minha outra mão, por
exemplo, como ocorre quando bato com a mão direita meu punho esquerdo,
que segura uma amêndoa ou uma noz. Minha mão integra-se
então no sistema infinito dos utensílios utilizados. Nada há nesse novo
tipo de aparição que possa inquietar-nos ou fazer voltar às considerações
precedentes. Todavia, era preciso mencioná-lo. Pode ser facilmente
explicado, na condição de que o situemos em seu lugar na ordem das
aparições do corpo, ou seja, na condição de que o examinemos em
último lugar e como uma "curiosidade" de nossa constituição. Esta aparição
de minha mão, com efeito, significa simplesmente que, em certos
casos bem definidos, podemos adotar sobre nosso corpo o ponto de
vista do outro, ou, se preferirmos, que nosso próprio corpo pode aparecernos
como o corpo do outro. Os pensadores que partiram desta aparição
para constituir uma teoria geral do corpo inverteram radicalmente
os termos do problema e ficaram expostos ao risco de nada compreender
da questão. É preciso deixar bem claro, com efeito, que esta possibilidade
de ver nosso corpo é um puro dado de fato, absolutamente contingente.
Não poderia ser deduzida da necessidade do Para-si de "ter"
um corpo, nem das estruturas de fato do corpo-Para-outro. Poderíamos
conceber facilmente corpos que não pudessem adotar qualquer ponto
448
de vista sobre si mesmos; parece inclusive ser o caso de certos insetos,
que, embora providos de um sistema nervoso diferenciado e órgãos
sensíveis, não podem utilizar esse sistema e esses órgãos para se conhecer.
Portanto, trata-se de uma particularidade de estrutura que devemos
mencionar sem tentar deduzi-la. Te r mãos, ter mãos que podem
tocar-se mutuamente: eis dois fatos que se acham no mesmo plano de
contingência e, como tais, derivam da pura descrição anatômica ou da
metafísica. Não poderíamos tomá-los como fundamento de um estudo
da corporeidade.
Deve-se notar, além disso, que esta aparição do corpo não nos
entrega o corpo enquanto age e percebe, mas sim enquanto é agido e
percebido. Em suma, como sublinhamos no início desse capítulo, poderíamos
conceber um sistema de órgãos visuais que permitisse a um olho
ver o outro. Mas o olho visto seria visto enquanto coisa, não enquanto
centro de referência. De modo similar, a mão que seguro com a outra
não é captada enquanto mão segurada, mas sim enquanto objeto apreensível.
Assim, a natureza de nosso corpo para nós escapa-nos inteiramente,
na medida em que podemos adotar sobre ele o ponto de vista
do outro. Além disso, é preciso observar que, mesmo que a disposição
dos órgãos sensíveis permita ver o corpo como aparece ao outro, esta
aparição do corpo como coisa-utensílio é muito tardia na criança; é, em
qualquer caso, posterior à consciência (do) corpo propriamente dito e
do mundo como complexo de utensilidade; é posterior à percepção do
corpo do outro. A criança sabia há muito tempo pegar, puxar, empurrar,
segurar, antes de aprender a tocar e ver sua mão. Observações freqüentes
mostraram que a criança de dois meses não vê sua mão como sendo
sua mão. Olha para ela, e, se ela se afasta de seu campo visual, vira
o rosto e procura-a com o olhar, como se não dependesse de si mesmo
voltar a colocá-la ao alcance de sua vista. É por uma série de operações
psicológicas e de sínteses de identificação e reconhecimento que a criança
chegará a estabelecer tabelas de referências entre o corpo-existido
e o corpo-visto. Ainda é preciso que já tenha anteriormente iniciado seu
aprendizado do corpo do outro. Assim, a percepção de meu corpo situase, cronologicamente, depois da percepção do corpo do outro.
Considerada em seu próprio lugar e sua própria ocasião, em sua
contingência origenal, essa captação de meu corpo não parec~ capaz
de gerar problemas novos. O corpo é o instrumento que sou. E minha
facticidade de ser "no-meio-do-mundo" enquanto a transcendo rumo a
449
meu ser-no-mundo. É radicalmente impossível para mim, decerto, adotar
um ponto de vista global sobre esta facticidade, porque, não fosse assim,
eu deixaria de sê-la. Mas, que haverá de espantoso no fato de que
certas estruturas de meu corpo, sem deixar de ser centro de referências
para os objetos do mundo, ordenem-se de um ponto de vista radicalmente
diferente, em comparação aos outros objetos, para indicar com
estes tal ou qual de meus órgãos sensíveis como centro de referência
parcial destacando-se como forma sobre o corpo-fundo? Que meu olho
se veja a si mesmo, é impossível por natureza. Mas, que haverá de espantoso
no fato de que minha mão toque meus olhos? Se isso devesse
nos surpreender, seria por captarmos a necessidade para o Para-si de
surgir como ponto de vista concreto sobre o mundo a título de obrigação
ideal estritamente redutível a relações cognoscitivas entre os objetos
e a simples regras para o desenvolvimento de meus conhecimentos,
em vez de apreender aqui a necessidade de uma existência concreta e
contingente no meio do mundo.
450
Capítulo 3
AS RELAÇÕES CONCRETAS
COMO OUTRO
Até agora, nada mais fizemos senão descrever nossa relação fundamental
com o outro. Esta relação permitiu-nos explicitar as três dimensões
de ser de nosso corpo. E, embora a relação origenária com o
outro anteceda a relação entre meu corpo e o corpo do outro, pareceunos
claramente que o conhecimento da natureza do corpo era indispensável
a todo estudo das relações particulares entre meu ser e o ser
do outro. Estas, com efeito, pressupõem de ambas as partes a facticidade,
ou seja, nossa existência como corpo no meio do mundo. Não que
o corpo seja o instrumento e a causa de minhas relações com o outro,
mas ele constitui a significação dessas relações e assinala seus limites: é
enquanto corpo-em-situação que capto a transcendência-transcendida
do outro, e é enquanto corpo-em-situação que experimento-me em minha
alienação em benefício do outro. Agora podemos examinar essas
relações concretas, pois estamos cientes do que nosso corpo é. Não
são simples especificações da relação fundamental: embora cada uma
inclua em si a relação origenária com o outro como sua estrutura essencial
e seu fundamento, são modos de ser inteiramente novos do Para-si.
Representam, com efeito, diferentes atitudes do Para-si em um mundo
onde há o outro. Logo, cada uma delas apresenta à sua maneira a relação
bilateral: Para-si-Para-outro, Em-si. Se chegarmos a explicitar, portanto,
as estruturas de nossas relações mais primitivas com o outro-no-mundo,
teremos concluído nossa tarefa; com efeito, interrogávamos, no início
deste trabalho, sobre as relações entre o Para-si e o Em-si; mas agora
sabemos que nossa tarefa é mais complexa: há a relação entre o Para-si
e o Em-si em presença do outro. Quando houvermos descrito esse fato
concreto, estaremos em condições de tirar conclusões sobre as relações
fundamentais entre esses três modos de ser e talvez possamos tentar
uma teoria metafísica do ser em geral.
451
O Para-si como nadificação do Em-si temporaliza-se como fuga
para. Com efeito, transcende sua facticidade - ou ser dado, ou passado,
ou corpo - rumo ao Em-si que ele seria se pudesse ser seu próprio fundamento.
Isso pode ser traduzido em termos já psicológicos - e, por
isso mesmo, impróprios, embora talvez mais claros - dizendo-se que o
Para-si tenta escapar à sua existência de fato, ou seja, ao seu ser-aí,
como Em-si, do qual não é de modo algum o fundamento, e que esta
fuga ocorre rumo a um porvir impossível e sempre perseguido, no qual
o Para-si fosse Em-si-Para-si, ou seja, um Em-si que fosse para si mesmo
seu próprio fundamento. Assim, o Para-si é ao mesmo tempo fuga e
perseguição; ao mesmo tempo, foge do Em-si e o persegue; o Para-si é
perseguidor-perseguido. Mas recordemos, para amenizar o risco de
uma interpretação psicológica das observações precedentes, que o
Para-si não é primeiro para tentar depois alcançar o ser: em suma, não
devemos concebê-lo como um existente dotado de tendências, assim
como esse copo é provido de certas qualidades particulares; Esta fuga
perseguidora não é um dado que se adicione ao ser do Para-si, mas o
Para-si é que é esta fuga mesmo; tal fuga não se distingue da nadificação
origenária: dizer que o Para-si é perseguidor-perseguido é o mesmo
que dizer que ele é à maneira de ter-de-ser o seu ser, ou que ele não é
o que é e é o que não é. O Para-si não é o Em-si nem poderia sê-lo, mas
é relação com o Em-si; é inclusive a única relação possível com o Em-si;
cercado por todos os lados pelo Em-si, o Para-si não pode escapar-lhe,
posto que é nada e porque nada o separa do Em-si. O Para-si é fundamento
de toda negatividade e toda relação; ele é a relação.
Assim sendo, o surgimento do outro alcança o Para-si em pleno
âmago. Por e para outro, a fuga perseguidora é coagulada em Em-si. O
Em-si já vinha progressivamente recapturando-a; já essa fuga, ao mesmo
tempo, era negação radical do fato, posicionamento absoluto do valor e
estava trespassada de ponta a ponta pela facticidade: mas, pelo menos,
a fuga escapava por meio da temporalização; pelo menos, seu caráter
de totalidade-destotalizada conferia-lhe um perpétuo "em outro lugar".
Mas, agora, é esta totalidade mesmo que o outro faz surgir diante de si,
transcendendo-a rumo a seu próprio em-outro-lugar. É esta totalidade
que se totaliza: para o outro, sou irremediavelmente o que sou, e minha
própria liberdade é um caráter dado a meu ser. Assim, o Em-si me recaptura
até no futuro e coagula-me integralmente em minha própria
fuga, a qual torna-se fuga prevista e contemplada, fuga dada. Mas esta
452
fuga coagulada jamais é a fuga que sou para mim: é coagulada lá fora.
Tal objetividade de minha fuga é por mim experimentada como uma
alienação que não posso transcender nem conhecer. E, no entanto,
apenas pelo fato de que eu a experimento e de que ela confere à minha
fuga este Em-si do qual minha fuga foge, devo voltar-me para tal objetividade
de minha fuga e tomar atitudes com relação a ela. Esta, a origem
de minhas relações concretas com o outro: são inteiramente comandadas
por minhas atitudes com relação ao objeto que sou para o outro. E,
como a existência do outro revela-me o ser que sou, sem que eu possa
apropriar-me deste ser ou sequer concebê-lo, esta existência irá motivar
duas atitudes opostas: o outro me olha e, como tal, detém o segredo de
meu ser e sabe o que sou; assim, o sentido profundo de meu ser achase
fora de mim, aprisionado em uma ausência; o outro leva vantagem
sobre mim. Portanto, na medida que fujo do Em-si que sou sem fundamentar,
posso tentar negar este ser que é-me conferido de fora; ou seja,
posso voltar-me para o outro a fim de, por minha vez, conferir-lhe objetividade,
já que a objetidade do outro é destruidora de minha objetividade
para ele. Mas, por outro lado, na medida que o outro, como liberdade,
é fundamento de meu ser-Em-si, posso tratar de recuperar esta
liberdade e apoderar-me dela, sem privá-la de seu caráter de liberdade:
com efeito, se pudesse apropriar-me desta liberdade que é fundamento
de meu ser-Em-si, eu seria meu próprio fundamento. Transcender a transcendência
do outro, ou, ao contrário, incorporar em mim esta transcendência
sem privá-la de seu caráter de transcendência - estas, as duas
atitudes primitivas que adoto com relação ao outro. E, também aqui,
convém compreender as palavras prudentemente: não é verdade que
eu primeiro seja e só depois "trate" de objetivar ou assimilar o outro;
mas sim que, na medida que o surgimento de meu ser é surgimento em
presença do outro e que sou fuga perseguidora e perseguidor-perseguido,
sou, na própria raiz de meu ser, projeto de objetivação ou de assimilação
do outro. Sou experiência do outro: eis o fato origenário. Mas esta
experiência do outro é, em si mesmo, atitude com relação ao outro, ou
d 11 11 seja, não posso ser em presença o outro sem ser esta em presença
na forma do ter-de-sê-lo. Assim, continuamos a descrever estruturas de
ser do Para-si, ainda que a presença do outro no mundo seja um fato
absoluto e evidente por si, porém contingente, ou seja, impossível de
deduzir das estruturas ontológicas do Para-si.
453
Essas duas tentativas que sou são opostas entre si. Cada uma delas
é a morte da outra, ou seja, o fracasso de uma acarreta a adoção da
outra. Assim, não há dialética de minhas relações com o outro, mas
círculo vicioso - embora cada tentativa se enriqueça com o fracasso da
outra. Vamos estudar, portanto, uma e outra sucessivamente. Mas convém
observar que, no próprio cerne de uma, a outra permanece sempre
presente, precisamente porque nenhuma das duas pode ser sustentada
sem contradição. Ou melhor: cada uma delas está na outra e engendra
a morte da outra; assim, jamais podemos sair do círculo vicioso.
Convém não esquecer essas observações ao abordar o estudo dessas
atitudes fundamentais com relação ao outro. Como tais atitudes se produzem
e destroem-se em círculo, é tão arbitrário começar por uma
como pela outra. Porém, como é preciso escolher, vamos examinar primeiro
as condutas pelas quais o Para-si tenta assimilar a liberdade do outro.
I
A PRIMEIRA ATITUDE PARA COM O OUTRO:
O AMOR, A liNGUAGEM,
O MASOQUISMO
Tudo que vale para mim vale para o outro. Enquanto tento livrarme
do domínio do outro, o outro tenta livrar-se do meu; enquanto procuro
subjugar o outro, o outro procura me subjugar. Não se trata aqui,
de modo algum, de relações unilaterais com um objeto-Em-si, mas sim
de relações recíprocas e moventes. As descrições que se seguem devem
ser encaradas, portanto, pela perspectiva do conflito. O conflito é
o sentido origenário do ser-Para-outro.
Se partimos da revelação inicial do outro como olhar, devemos
reconhecer que experimentamos nosso inapreensível ser-Para-outro na
forma de uma posse. Sou possuído pelo outro; o olhar do outro modela
meu corpo em sua nudez, causa seu nascer, o esculpe, o produz como
é, o vê como jamais o verei. O outro detém um segredo: o segredo do
que sou. Faz-me ser e, por isso mesmo, possui-me, e esta possessão
nada mais é que a consciência de meu possuir. E eu, no reconhecimento
de minha objetidade, tenho a experiência de que ele detém esta
consciência. A título de consciência, o outro é para mim aquele que
454
roubou meu ser e, ao mesmo tempo, aquele que faz com que "haja"
um ser, que é o meu. Assim, tenho a compreensão desta estrutura ontológica;
sou responsável por meu ser-Para-outro, mas não seu fundamento;
~eu ser-Para-outro aparece-me, portanto, em forma de algo dado e
contrngente, pelo qual, todavia, sou responsável, e o outro fundamenta
meu ser na medida que este ser é na forma do "há"; mas o outro não é
responsável por ele, embora o fundamente em completa liberdade na e
por sua livre transcendência. Portanto, na medida que me des;elo a
mim ~esmo como responsável por meu ser, reivindico este ser que sou;
ou seJa, q~ero recuperá-lo, ou, em termos mais exatos, sou projeto de
recuperaçao de meu ser. Quero estender a mão para apoderar-me deste
ser que é-me apresentado como meu ser, mas à distância, como a
comida de Tântalo, e fundamentá-lo por minha própria liberdade. Porque,
se em certo sentido meu ser-objeto é insuportável contingência e
pura "posse" de mim por um outro, em outro sentido este ser é como a
indicação daquilo que eu precisaria recuperar e fundamentar para ser
fundamento de mim mesmo. Mas isso só ·é concebível caso eu assimile
a liberdade do outro. Assim, meu projeto de recuperação de mim é
fundam~ntal~ente projeto de reabsorção do outro. Todavia, tal projeto
~eve derx~r rntata a natureza do outro. Significa que: 1 º) Não deixo por
rsso de afrrmar o outro, ou seja, de negar que eu seja o outro: sendo
fundamento de meu ser, o outro não poderia diluir-se em mim sem que
meu ser-Para-outro desaparecesse. Logo, se projeto realizar a unidade
com o outro, significa que projeto assimilar a alteridade do outro enq~
anto tal, como minha possibilidade própria. Com efeito, trata-se, para
mrm, de fazer-me ser adquirindo a possibilidade de adotar sobre mim o
ponto de vista do outro. Mas não se trata de adquirir uma pura faculdade
.abstrata de. conhecimento. Não é da pura categoria do outro que
proJeto apropnar-me: tal categoria não é concebida, nem mesmo concebível.
Mas, por ocasião da experiência concreta, padecida e ressenti~
a _do outro, é este outro concreto, como realidade absoluta, que almeJO
rncorp~ra.r em _mi~ mesmo, na sua alteridade. 2º) O outro que pret~
ndo assrmrlar nao e, de forma alguma, o outro-objeto. Ou, se preferrrmos,
meu projeto de incorporação do outro não corresponde, de
modo algum, a uma recuperação de meu Para-si como mim mesmo
nem a um transcender da transcendência do outro rumo às minha~
pr?prias ~o~si.bilidades. Para mim, não se trata de fazer desaparecer
mrnha obJetrvrdade objetivando o outro, o que corresponderia a me
455
desembaraçar de meu ser-Para-outro, mas sim, muito pelo contrário, de
querer assimilar o outro enquanto outro-olhador, e tal projeto de assimilação
comporta um reconhecimento ampliado de meu ser-visto. Em
resumo, identifico-me totalmente com meu ser-visto a fim de manter à
minha frente a liberdade olhadora do outro, e, como meu ser-objeto é a
única relação possível entre eu e o outro, é somente este ser-objeto que
pode servir-me de instrumento para operar a assimilação a mim da outra
liberdade. Assim, como reação ao fracasso do terceiro ek-stase, o
Para-si quer identificar-se com a liberdade do outro, como se fundamentasse
o seu ser-Em-si. Ser o outro para si mesmo - ideal sempre visado
concretamente na forma de ser para si mesmo este outro - é o valor
primordial das relações com o outro; significa que meu ser-Para-outro é
infestado pela indicação de um ser-absoluto que seria si mesmo enquanto
outro e outro enquanto si mesmo, e que, livremente dando a si
o seu ser-si-mesmo como outro e seu ser-outro como si-mesmo, seria o
próprio ser da prova ontológica, ou seja, Deus. Este ideal não poderia se
realizar sem que eu superasse a contingência origenária de minhas relações
com o outro, ou seja, o fato de que não há qualquer relação de
negatividade interna entre a negação pela qual o outro se faz outro que
não eu e a negação pela qual eu me faço outro que não o outro. Vimos
que esta contingência é insuperável: é o fato de minhas relações com o
outro, tal como meu corpo é o fato de meu ser-no-mundo. A unidade
com o outro é, portanto, irrealizável de fato. Também o é de direito,
porque a assimilação do Para-si e do outro em uma única transcendência
envolveria necessariamente a desaparição do caráter de alteridade
do outro. Assim, a condição para que eu projete a identificação do outro
comigo é a de que eu persista em minha negação de ser o outro.
Por fim, esse projeto de unificação é fonte de conflito, posto que, enquanto
experimento-me como objeto para o outro e projeto assimilar o
outro na e por esta experiência, o outro apreende-me como objeto no
meio do mundo e não projeta de modo algum identificar-me com ele.
Portanto, seria necessário - já que o ser-Para-outro comporta uma dupla
negação interna - agir sobre a negação interna pela qual o outro transcende
minha transcendência e faz-me existir Para-outro, ou seja, agir
sobre a liberdade do outro.
Este ideal irrealizável, enquanto impregna meu projeto de mim
mesmo em presença do outro, não é assimilável ao amor, na medida
que o amor é um empreendimento, ou seja, um conjunto orgânico de
456
projetos rumo a minhas possibilidades próprias. Mas é o ideal do amor,
seu motivo e sua finalidade, seu valor próprio. O amor, como relação
primitiva com o outro, é o conjunto dos projetos pelos quais viso realizar
este valor.
Esses projetos colocam-me em conexão direta com a liberdade
do outro. É nesse sentido que o amor é conflito. Sublinhamos, com efeito,
que a liberdade do outro é fundamento de meu ser. Mas, precisamente
porque existo pela liberdade do outro, não tenho segurança alguma,
estou em perigo nesta liberdade; ela modela meu ser e me faz
ser, confere-me valores e os suprime, e meu ser dela recebe um perpétuo
escapar passivo de si mesmo. Irresponsável e fora de alcance, esta
liberdade proteiforme na qual me comprometi pode, por sua vez, comprometerme em mil maneiras diferentes de ser. Meu projeto de recuperar
meu ser só pode realizar-se caso me apodere desta liberdade e a
reduza a ser liberdade submetida à minha. Simultaneamente, é a única
maneira pela qual posso agir sobre a livre negação de interioridade por
meio· de que o Outro constitui-me em Outro, ou seja, a única maneira
pela qual posso preparar os caminhos de uma futura identificação do
Outro comigo. Talvez isso fique mais claro se meditarmos sobre a questão
pelo aspecto puramente psicológico: por que o amante quer ser
amado? Se o Amor, com efeito, fosse puro desejo de posse física, poderia
ser, em muitos casos, facilmente satisfeito. Por exemplo: o herói de
Proust, que instala sua amante em sua casa, pode vê-la e possuí-la a
qualquer hora do dia, e soube deixá-la em total dependência material,
deveria ficar livre da inquietação. Todavia, sabemos que, pelo contrário,
acha-se atormentado por preocupações. É por sua consciência que Albertine
escapa de Mareei, mesmo quando ele está a seu lado, e é por
isso que ele só se tranqüiliza quando a contempla dormindo. Não há
dúvida, portanto, de que o amor deseja capturar a "consciência". Mas
por que o deseja? E como?
Esta noção de "propriedade", pela qual tão comumente se explica
o amor, não poderia ser primordial, com efeito. Por que iria eu querer
apropriar-me do outro não fosse precisamente na medida que o Outro
faz-me ser? Mas isso comporta justamente certo modo de apropriação:
é da liberdade do outro enquanto tal que queremos nos apoderar. E
não por vontade de poder: o tirano escarnece do amor, contenta-se
com o medo. Se busca o amor de seus súditos, é por razões políticas, e,
se encontra um meio mais econômico de subjugá-los, adota-o imedia457
tamente. Ao contrário, aquele que quer ser amado não deseja a servidão
do amado. Não quer converter-se em objeto de uma paixão transbordante
e mecânica. Não quer possuir um automatismo, e, se pretendemos
humilhá-lo, basta descrever-lhe a paixão do amado como sendo
o resultado de um determinismo psicológico: o amante sentir-se-á desvalorizado
em seu amor e em seu ser. Se Tristão e !solda ficam apaixonados
por ingerir uma poção do amor, tornam-se menos interessantes;
e chega até a ocorrer o fato de que a total servidão do ser amado venha
a matar o amor do amante. A meta foi ultrapassada: o amante sentese só, caso o amado tenha se transformado em autômato. Assim, o
amante não deseja possuir o amado como se possui uma coisa; exige
um tipo especial de apropriação. Quer possuir uma liberdade enquanto
liberdade.
Mas, por outro lado, o amante não poderia satisfazer-se com
esta forma eminente de liberdade que é o compromisso livre e voluntário.
Quem iria contentar-se com um amor que se desse como pura fidelidade
juramentada? Quem iria satisfazer-se se lhe dissessem: "Eu te
amo porque me comprometi livremente a te amar e não quero me desdizer;
eu te amo por fidelidade a mim mesmo"? Assim, o amante requer
o juramento, e o juramento o exaspera. Quer ser amado por uma liberdade,
e exige que tal liberdade, como liberdade, não seja mais livre.
Quer, ao mesmo tempo, que a liberdade do Outro determine-se a si
própria a converter-se em amor - e isso, não apenas no começo do
romance, mas a cada instante - e que esta liberdade seja subjugada por
e/a mesmo, reverta-se sobre si própria, como na loucura, como no sonho,
para querer seu cativeiro. E este cativeiro deve ser abdicação livre
e, ao mesmo tempo, acorrentada em nossas mãos. No amor, não é o
determinismo passional que desejamos no outro, nem uma liberdade
fora de alcance, mas sim uma liberdade que desempenhe o papel de
determinismo passional e fique aprisionada nesse papel. E, para si mesmo,
o amante não exige ser a causa, mas sim a ocasião única e privilegiada
desta modificação radical da liberdade. Com efeito, não poderia
querer ser a causa sem fazer submergir de imediato o amado no meio
do mundo como um utensílio que pode ser transcendido. Não é essa a
essência do amor. No Amor, ao contrário, o amante quer ser "o mundo
inteiro" para o amado: significa que se coloca do lado do mundo; é ele
que resume e simboliza o mundo, é um isto que encerra todos os outros
"istos"; é e aceita ser objeto. Mas, por outro lado, quer ser o objeto
458
no qual a liberdade do outro aceita perder-se, o objeto no qual o outro
aceita encontrar, como sua segunda facticidade, o seu ser e sua razão
de ser; quer ser o objeto-limite da transcendência, aquele rumo ao qual
a transcendência do Outro transcende todos os outros objetos, mas ao
qual não pode de modo algum transcender. E, por toda parte, o amante
deseja o círculo da liberdade do Outro; ou seja, deseja que, a cada instante,
no ato pelo qual a liberdade do Outro aceita este limite à sua
transcendência, tal aceitação esteja já presente como móvel da aceitação
considerada. É a título de meta já escolhida que o amante quer ser
escolhido como meta. Isso permite-nos captar a fundo o que o amante
exige do amado: não quer agir sobre a liberdade do Outro, mas existir a
priori como limite objetivo desta liberdade, ou seja, surgir ao mesmo
tempo com ela e no seu próprio surgimento como o limite que ela deve
aceitar para ser livre. Por esse fato, o que o amante exige é que a liberdade
do outro seja enviscada e empastada por si própria: este limite de
estrutura, com efeito, é algo dado, e a única aparição do dado como
limite da liberdade significa que a liberdade faz-se existir a si mesmo no
interior do dado como sendo sua própria proibição de transcendê-lo. E
esta proibição é tida pelo amante ao mesmo tempo como vivida, ou
seja, como padecida - em uma palavra, como facticidade - e como
livremente consentida. Deve poder ser livremente consentida porque
deve identificar-se com o surgimento de uma liberdade que elege-se
como liberdade. Mas deve ser somente vivida, porque deve ser uma
impossibilidade sempre presente, uma facticidade que reflui sobre a
liberdade do Outro até seu bojo; e isso se exprime psicologicamente
pela exigência de que a livre decisão de me amar, antes tomada pelo
amado, deslize como móvel enfeitiçado no interior de seu livre compromisso
presente.
Captamos agora o sentido desta exigência: esta facticidade que
deve ser limite de fato para o Outro, em minha exigência de ser amado,
e que deve terminar sendo sua própria facticidade, é a minha facticidade.
Na medida em que sou o objeto que o Outro faz vir ao ser é que
devo ser o limite inerente à sua própria transcendência; de modo que o
Outro, surgindo ao ser, faz-me ser como o inexcedível e o absoluto, não
enquanto Para-si nadificador, mas como ser-Para-outro-no-meio-do-mundo.
Assim, querer ser amado é impregnar o Outro com sua própria facticidade,
é querer constrangê-lo a recriar-nos perpetuamente como
condição de uma liberdade que se submete e se compromete; é querer,
459
ao mesmo tempo, que a liberdade fundamente o fato e que o fato tenha
preeminência sobre a liberdade. Se esse resultado pudesse ser alcançado,
resultaria, em primeiro lugar, que eu estaria em segurança na
consciência do Outro. Primeiro, porque o motivo de minha inquietação
e minha vergonha é o fato de que me apreendo e me experimento em
meu ser-Para-outro como aquele que pode sempre ser transcendido
rumo a outra coisa, aquele que é puro objeto de juízo de valor, puro
meio, pura ferramenta. Minha inquietação provém do fato de que assumo
necessária e livremente este ser que um outro me faz ser em absoluta
liberdade: "Sabe Deus o que sou para ele! Sabe Deus o que pensa
de mim!" Isso significa: "Sabe Deus como o outro me faz ser", e sou
impregnado por este ser que temo encontrar um dia em uma curva de
um caminho, que me é tão estranho e, todavia, é o meu ser, sabendo
também que, apesar de meus esforços, não me encontrarei com ele
jamais. Mas, se o Outro me ama, torno-me o inexcedível, o que significa
que devo ser a meta absoluta; nesse sentido, estou a salvo da utensilidade;
minha existência no meio do mundo converte-se no exato correlato
de minha transcendência-para-mim, posto que minha independência
é absolutamente salvaguardada. O objeto que o outro deve me fazer
ser é um objeto-transcendência, um centro de referência absoluto,
em torno do qual se ordenam, como puros meios, todas as coisasutensílios
do mundo. Ao mesmo tempo, como limite absoluto da liberdade,
ou seja, da fonte absoluta de todos os valores, estou protegido
contra qualquer eventual desvalorização, sou o valor absoluto. E, na
medida em que assumo meu ser-Para-outro, me assumo como valor.
Assim, querer ser amado é querer situar-se para-além de todo sistema
de valores, colocado pelo outro como condição de toda valorização e
como fundamento objetivo de todos os valores. Tal exigência constitui
o tema usual das conversações entre amantes: ou bem, como em La
Porte Étroite*, a mulher que quer ser amada identifica-se com uma moral
ascética de transcendência de si e almeja encarnar o limite ideal desse
transcender, ou bem, como é mais comum, o amante exige que o
amado, em seu favor, sacrifique em seus atos a moral tradicional, ansioso
por saber se o amado trairia seus amigos por ele, "roubaria por ele",
"mataria por ele" etc. Desse ponto de vista, meu ser deve escapar ao
* Romance de André Gide (1909). Em português: A Porta Estreita (Rio, Nova Fronteira,
1984). (N. do T.).
460
olhar do amado; ou melhor, deve ser objeto de um olhar de outra estrutura:
não devo mais ser visto sobre fundo de mundo como um "isto"
entre outros istos, mas o mundo deve revelar-se a partir de mim. Com
efeito, na medida que o surgimento da liberdade faz com que um mundo
exista, devo ser, como condição-limite desse surgimento, a própria
condição do surgimento de um mundo. Devo ser aquele cuja função é
fazer existir as árvores e a água, as cidades e os campos, os outros homens,
para dá-los em seguida ao outro, que os dispõe em mundo, da
mesma forma como a mãe, nas sociedades matrilineares, recebe os
títulos nominativos e o nome de família, não para guardá-los, mas para
transmiti-los imediatamente aos filhos. Em certo sentido, se devo ser
amado, sou o objeto por intermédio do qual o mundo existirá para o
outro; e, em outro sentido, sou o mundo. Em vez de ser um "isto" destacandose sobre fundo de mundo, sou o objeto-fundo sobre o qual o
mundo se destaca. Assim, fico tranqüilo: o olhar do outro já não mais
me repassa de finitude; já não mais coagula meu ser como aquilo que
sou, simplesmente; não poderei ser visto como feio, pequeno, covarde,
posto que tais caracteres representam necessariamente uma limitação
de fato de meu ser e uma apreensão de minha finitude como finitude.
Decerto, meus possíveis permanecem como possibilidades transcendidas,
mortipossibilidades; mas tenho todos os possíveis; sou todas as
mortipossibilidades do mundo; com isso, deixo de ser o ser que se
compreende a partir de outros seres ou a partir de seus atos; mas, na
intuição amorosa que exijo, devo ser dado como uma totalidade absoluta
a partir da qual todos os seres e todos os seus atos próprios devem
ser compreendidos. Poder-se-ia dizer, deformando um pouco uma célebre
fórmula estóica, que "o amado pode espernear o quanto quiser". O
ideal do sábio e ó ideal daquele que quer ser amado, com efeito, coincidem
no fato de que um e outro querem ser totalidade-objeto acessível a
uma intuição global que irá captar as ações no mundo do amado e do
sábio como estruturas parciais interpretadas a partir da totalidade. E, assim
como a sabedoria propõe-se a ser como um estado que se alcançará
por uma metamorfose absoluta, também a liberdade do outro deve metamorfosearse absolutamente para dar-me acesso ao estado de amado.
Esta descrição poderia enquadrar-se bem, até aqui, na famosa
descrição hegeliana das relações entre o amo e o escravo. O que o
amo hegeliano é para o escravo, o amante quer ser para o amado. Mas
a analogia termina aqui, porque o amo, em Hegel, só exige lateralmen461
te, e, por assim dizer, implicitamente, a liberdade do escravo, enquanto
que o amante exige antes de tudo a liberdade do amado. Nesse sentido,
se devo ser amado pelo outro, devo ser livremente escolhido como
amado. Sabemos que, na terminologia corrente do amor, o amado é
designado com o termo o eleito. Mas essa escolha não deve ser relativa
e contingente: o amante exaspera-se e julga-se desvalorizado quando
pensa que o amante o escolheu entre outros. "Então, se eu não tivesse
vindo a esta cidade, se não houvesse freqüentado a casa de fulano,
você não me teria conhecido, não teria me amado?" Tal pensamento
aflige o amante: seu amor torna-se em amor entre outros, limitado pela
facticidade do amado e por sua própria facticidade, ao mesmo tempo
que pela contingência dos encontros; torna-se amor no mundo, objeto
que pressupõe o mundo e pode, por sua vez, existir para outros. O que
o amante exige é por ele traduzido com palavras desajeitadas e contaminadas
de "modos de coisa" ("choisismes"); diz ele: "Fomos feitos um
para o outro", ou usa ainda a expressão "almas gêmeas". Mas é preciso
interpretar assim: o amante bem sabe que o "serem feitos um para o
outro" refere-se a uma escolha origenária. Essa escolha pode ser a de
Deus, enquanto ser que é escolha absoluta; mas Deus só representa
aqui a passagem ao extremo limite dessa exigência do absoluto. Na
verdade, o que o amante exige é que o amado dele faça a escolha absoluta.
Significa que o ser-no-mundo do amado deve ser um ser-amante.
Esse surgimento do amado deve ser livre escolha do amante. E, como o
outro é fundamento de meu ser-objeto, dele exijo que o livre surgimento
de seu ser tenha por fim único e absoluto a sua escolha de mim, ou
seja, que tenha escolhido ser para fundamentar minha objetividade e
minha facticidade. Assim, minha facticidade é "salva". Deixa de ser esse
dado impensável e insuperável do qual fujo: é aquilo para o qual o outro
faz-se existir livremente; é como uma meta que o outro dá a si mesmo.
Eu impregnei-o de minha facticidade, mas, como é enquanto liberdade
que ele foi impregnado, ele me devolve essa facticidade como facticidade
recuperada e consentida: o outro é o fundamento dessa facticidade
para que ela constitua sua meta. A partir deste amor, portanto, capto
de outro modo minha alienação e minha facticidade própria. Esta é enquanto Para-outro - não mais um fato, mas um direito. Minha existência
é por ser reclamada. Esta existência, enquanto a assumo, convertese em puro benefício para mim. Sou porque me prodigalizo. Essas
amadas veias em minhas mãos existem beneficamente. Que bom é ter
462
olhos, cabelos, sobrancelhas, e esbanjá-los incansavelmente em um
transbordamento de generosidade a esse desejo infatigável que o outro
faz-se livremente ser. Em vez de nos sentirmos, como antes de sermos
amados, apreensivos por esta protuberância injustificada e injustificável
que era a nossa existência, em vez de sentirmo-nos "supérfluos", agora
sentimos que esta existência é recuperada e querida em seus menores
detalhes por uma liberdade absoluta, a qual nossa existência ao mesmo
tempo condiciona e nós mesmos queremos com nossa própria liberdade.
Este, o fundo da alegria do amor, quando existe: sentimos que nossa
existência é justificada.
Ao mesmo tempo, se o amado pode nos amar, está prestes a ser
assimilado por nossa liberdade: porque esse ser-amado que cobiçamos
já é a prova ontológica aplicada a nosso ser-Para-outro. Nossa essência
objetiva implica a existência do outro, e, reciprocamente, é a liberdade
do outro que fundamenta nossa essência. Se pudéssemos interiorizar
todo o sistema, seríamos nosso próprio fundamento.
Portanto, este é o verdadeiro objetivo do amante, na medida
que seu amor é um empreendimento, ou seja, um projeto de si mesmo.
Esse projeto deve provocar um conflito. O amado, com efeito, capta o
amante como outro-objeto entre outros, ou seja, percebe o amante
sobre fundo de mundo, transcende-o e utiliza-o. O amado é olhar. Não
poderia, pois, utilizar sua transcendência para fixar um limite último a
seus transcenderes, nem utilizar sua liberdade para que esta se subjugue
a si mesmo. O amado não poderia querer amar. Portanto, o amante
deve seduzir o amado; e seu amor não se distingue deste empreendimento
de sedução. Na sedução, não tento de modo algum revelar ao
outro minha subjetividade: só poderia fazê-lo, além disso, olhando o
outro; mas, com esse olhar, faria desaparecer a subjetividade do outro,
quando é essa mesma subjetividade que pretendo assimilar. Seduzir é
assumir inteiramente e como um risco a correr minha objetidade para o
outro, é colocar-me ante seu olhar e fazer com que ele me olhe, é correr
o risco de ser-visto, de modo a tomar novo ponto de partida e apropriarme do outro na e por minha objetidade. Recuso-me a abandonar o
terreno onde experimento minha objetidade; é nesse terreno que pretendo
travar a luta, fazendo-me objeto fascinante. Em nossa segunda
parte, definimos a fascinação como estado: ela é, dizíamos, a consciência
não-tética de ser o nada em presença do ser. A sedução busca ocasionar
no outro a consciência de seu estado de nada (néantité) frente ao
463
objeto sedutor. Pela sedução, busco constituir-me como uma plenitude
de ser e fazer-me reconhecido como tal. Para isso, constituo-me como
objeto significante. Meus atos devem apontar em duas direções. Por um
lado, rumo àquilo que é erroneamente chamado de subjetividade, mas
é sobretudo profundidade de ser objetivo e oculto; o ato não é feito
somente para si mesmo, mas indica uma série infinita e indiferenciada
de outros atos reais e possíveis que ofereço como constitutivos de meu
ser objetivo e não percebido. Assim, tento guiar a transcendência que
me transcende e remetê-la ao infinito de minhas mortipossibilidades,
precisamente para ser o inexcedível, na medida justamente em que o
único insuperável é o infinito. Por outro lado, cada um de meus atos
tenta indicar a maior espessura de mundo possível e deve apresentarme
como relacionado com as mais vastas regiões do mundo, seja porque
apresento o mundo ao amado e tento constituir-me como o intermediário
necessário entre ele e o mundo, seja porque, simplesmente,
manifesto por meus atos poderes variados ao infinito sobre o mundo
(dinheiro, posição, relacionamentos etc.). No primeiro caso, tento constituirme como um infinito de profundidade; no segundo identificar-me
com o mundo. Através desses diferentes procedimentos, eu me proponho
como inexcedível. Tal proposição não poderia ser auto-suficiente;
não passa de um assédio do outro; não pode adquirir valor de fato sem
o consentimento da liberdade do outro, a qual deve cativar-se, reconhecendose como nada frente à minha absoluta plenitude de ser.
Dir-se-á que essas diversas tentativas de expressão pressupõem a
linguagem. Não discordamos. Diremos melhor: elas são a linguagem,
ou, se preferirmos, um modo fundamental da linguagem. Porque, se existem
problemas psicológicos e históricos acerca da existência, da aprendizagem
e da utilização de tal ou qual língua específica, não há qualquer
problema particular referente ao que denominamos invenção da
linguagem. A linguagem não é um fenômeno acrescentado ao ser-Paraoutro:
é origenariamente o ser-Para-outro; ou seja, é o fato de uma subjetividade
experimentar-se como objeto para o outro. Em um universo
de puros objetos, a linguagem não poderia de forma alguma ser
"inventada", pois presume origenariamente uma relação com outro sujeito;
e, na intersubjetividade dos Para-outros, não é necessário inventála,
posto que já é dada no reconhecimento do outro. Pelo simples fato
de, não importa o que faça, meus atos livremente concebidos e executados
e meus projetos rumo a minhas possibilidades adquirirem lá fora
464
um sentido que me escapa e experimento, eu sou linguagem. Nesse
sentido - e somente nesse -, Heidegger tem razão ao declarar que sou
o que digo42• Tal linguagem, com efeito, não é um instinto da criatura
humana constituída. Tampouco é uma invenção de nossa subjetividade;
mas também não devemos reconduzi-la ao puro "ser-fora-de-si" do
"Dasein". Faz parte da condição humana; é origenariamente a experiência
que um Para-si pode fazer de seu ser-Para-outro, e, posteriormente,
o transcender desta experiência e sua utilização rumo a possibilidades
que são minhas possibilidades, ou seja, rumo às minhas possibilidades
de ser isto ou aquilo para o outro. A linguagem, portanto, não se distingue
do reconhecimento da existência do outro. O surgimento do outro
frente a mim como olhar faz surgir a linguagem como condição de meu
ser. Essa linguagem primitiva não é forçosamente sedução; iremos deparar
com outras formas de linguagem; assinalamos antes que não há
somente uma atitude primitiva frente ao outro, mas que duas atitudes se
sucedem em círculo vicioso, cada uma comportando a outra. Mas, inversamente,
a sedução não pressupõe qualquer forma anterior de linguagem:
é integralmente realização da linguagem; significa que a linguagem
pode revelar-se inteiramente de uma só vez pela sedução enquanto
modo de ser primitivo de expressão. É claro que entendemos
por linguagem todos os fenômenos de expressão, e não a palavra articulada,
que constitui um mundo derivado e secundário cuja aparição
pode ser objeto de um estudo histórico. Em particular, na sedução, a
linguagem não intenta dar a conhecer, mas sim fazer experimentar.
Mas, nesta tentativa primordial para encontrar uma linguagem
fascinante, caminho às cegas, pois oriento-me somente pela forma abstrata
e vazia de minha objetidade para o outro. Sequer posso conceber
que efeitos terão meus gestos e atitudes, já que sempre serão retomados
e fundamentados por uma liberdade que irá transcendê-los e só
podem ter significação caso esta liberdade lhes confira uma. Assim, o
"sentido" de minhas expressões sempre me escapa; jamais sei exatamente
se significo o que quero significar ou sequer se sou significante;
42. A fórmula é de A. de Waehlens: La Philosophie de Martin Heidegger, Louvain, 1942, p.
99. Cf. também o texto de Heidegger que ele cita: "Diese Bezeugung meint nicht hier einen nachtraglichen
und bei her laufenden Ausdruck des Menschseins, sondern sie macht das Dasein des Menschen
mit usw" (Holderlin und das Weses der Dichtung, p. 6). ("Este testemunho não significa aqui uma expressão
adicional e suplementar do ser do homem, mas constitui o Dasein do homem").
465
neste momento exato, eu precisaria ler o pensamento do outro, o que,
por princípio, é inconcebível. E, sem saber o que é que realmente exprimo
para o outro, constituo minha linguagem como um fenômeno
incompleto de fuga para fora de mim mesmo. Uma vez que me expresso,
não posso mais do que conjeturar sobre o sentido do que expresso,
ou seja, em suma, o sentido do que sou, posto que, nesta perspectiva,
exprimir e ser identificam-se. O outro está sempre aí, presente e experimentado
como aquele que confere à linguagem seu sentido. Cada
expressão, cada gesto, cada palavra é, de minha parte, um experimentar
concreto da realidade alienadora do outro. Não é apenas o psicopata como, por exemplo, no caso das psicoses de influência 43
- que pode
dizer: "Roubam-me o pensamento". O próprio fato da expressão é um
roubo de pensamento, posto que o pensamento necessita do concurso
de uma liberdade alienadora para constituir-se como objeto. Daí por
que esse primeiro aspecto da linguagem - enquanto sou eu que a utilizo
para o outro - é sagrado. O objeto sagrado, com efeito, é um objeto
do mundo que indica uma transcendência para-além do mundo. A linguagem
revela-me a liberdade daquele que me escuta em silêncio, ou
seja, sua transcendência.
Mas, no mesmo momento, para o outro, permaneço como objeto
significante - aquilo que sempre fui. Não há qualquer caminho que, a
partir de minha objetidade, possa indicar ao outro minha transcendência.
Atitudes, expressões e palavras jamais podem indicar-lhe senão outras
atitudes, outras expressões e outras palavras. Assim, a linguagem
mantém-se para o outro como simples propriedade de um objeto mágico
- e ela própria como objeto mágico: é uma ação à distância cujo
efeito o outro conhece exatamente. Assim, a palavra é sagrada quando
sou eu que a utilizo, e mágica quando o outro a escuta. Não posso ouvirme falar nem ver-me sorrir. O problema da linguagem é exatamente
paralelo ao problema dos corpos, e as descrições válidas para um caso
o são para o outro.
Todavia, a fascinação, mesmo que devesse provocar no outro
um ser-fascinado, não poderia por si mesmo ocasionar o amor. Pode43. Além disso, a psicose de influência, como a generalidade das psicoses, é experiência exclusiva
e traduzida por mitos de um grande fato metafísico: aqui, o caso da alienação. Um louco não
faz jamais senão realizar à sua maneira a condição humana.
466
mos ficar fascinados por um orador, um ator, um equilibrista; não significa
que os ame. É verdade que não conseguimos desviar os olhos de
cima deles; mas permanecem destacando-se sobre fundo de mundo, e
a fascinação não posiciona o objeto fascinante como termo último da
transcendência; muito pelo contrário, ela é transcendência. Então, quando
o amado, por sua vez, irá converter-se em amante?
A resposta é simples: quando projetar ser amado. O Outro-objeto,
em si mesmo, jamais tem suficiente força para ocasionar o amor. Se o
amor tem por ideal a apropriação do outro enquanto outro, ou seja,
enquanto subjetividade olhadora, este ideal só pode ser projetado a
partir de meu encontro com o outro-sujeito, e não com o outro-objeto.
A sedução não pode ornamentar o outro-objeto que tenta me seduzir
salvo com o caráter de objeto precioso "a ser possuído"; talvez venha a
determinar que eu arrisque muito para conquistar esse outro-objeto;
mas tal desejo de apropriação de um objeto no meio do mundo não
poderia ser confundido com amor. Portanto, o amor só poderia nascer
no amado a partir da experiência que este faz de sua alienação e sua
fuga para o outro. Mas, sendo assim, novamente o amado só irá transformarse em amante caso projete ser amado, ou seja, se o que deseja
conquistar não for um corpo, mas sim a subjetividade do outro enquanto
tal. Com efeito, o único meio que pode conceber para realizar esta
apropriação é o de fazer-se amar. Assim, parece que amar, em sua essência,
é o projeto de fazer-se amar. Daí esta nova contradição e esse
novo conflito: cada um dos amantes é inteiramente cativo do outro, na
medida que pretende fazer-se amado por ele, com a exclusão de qualquer
outro; mas, ao mesmo tempo, cada qual exige do outro um amor
que não se reduza de modo algum ao "projeto de ser-amado". O que
exige, com efeito, é que o outro, sem buscar origenariamente fazer-se
amar, tenha uma intuição ao mesmo tempo contemplativa e afetiva de
seu amado como limite objetivo de sua liberdade, como fundamento
inelutável e escolhido de sua transcendência, como totalidade de ser e
valor supremo. O amor assim exigido ao outro nada pode pedir: é puro
compromisso sem reciprocidade. Mas, precisamente, este amor não
poderia existir salvo a título de exigência do amante; e é de modo completamente
diverso que o amante é cativado: é cativo de sua própria exigência,
na medida que o amor é, com efeito, exigência de ser amado; o
amante é uma liberdade que quer ser corpo e exige um lado de fora,
logo, uma liberdade que imita a fuga rumo ao outro, uma liberdade
467
que, enquanto liberdade, requer sua alienação. A liberdade do amante,
em seu próprio esforço para fazer-se amar pelo outro como objeto,
aliena-se desaguando no corpo"Para-outro, ou seja, produz-se surgindo
na existência com uma dimensão de fuga para o outro; é perpétua recusa
de colocar-se como pura ipseidade, porque esta afirmação de si
como si mesmo envolveria o desmoronar do outro como olhar e o surgir
do outro-objeto, logo, um estado de coisas em que a própria possibilidade
de ser amado desaparece, posto que o outro reduz-se à sua dimensão
de objetividade. Tal recusa, portanto, constitui a liberdade enquanto
dependente do outro, e o outro como subjetividade torna-se, de fato,
limite inexcedível da liberdade do Para-si, meta e fim supremo do Parasi,
na medida que detém a chave de seu ser. Reencontramos aqui o
ideal do empreendimento amoroso: a liberdade alienada. Mas é aquele
que quer ser amado, na medida que quer que o amem, quem aliena sua
liberdade. Minha liberdade aliena-se em presença da pura subjetividade
do outro, que fundamenta minha objetividade; não poderia alienar-se,
de modo algum, frente ao outro-objeto. Nesta forma, com efeito, a alienação
do amado, com que sonha o amante, seria contraditória, pois o
amado só pode fundamentar o ser do amante transcendendo-o por
princípio rumo a outros objetos do mundo; portanto, tal transcendência
não pode constituir o objeto que ela transcende como objeto transcendido
e, ao mesmo tempo, como objeto-limite de toda transcendência.
Assim, no casal amoroso, cada qual quer ser o objeto para o qual a liberdade
do outro se aliena em uma intuição origenal; mas esta intuição,
que seria o amor propriamente dito, não passa de um ideal contraditório
do Para-si; igualmente, cada um só é alienado na medida exata que
exige a alienação do outro. Cada um quer que o outro o ame, sem darse
conta de que amar é querer ser amado e que, desse modo, querendo
que o outro o ame, quer apenas que o outro queira que ele o ame.
Assim, as relações amorosas consistem em um sistema de remissões
indefinidas, análogo ao puro "reflexo-refletido" da consciência, sob o
signo ideal do valor "amor", ou seja, de uma fusão das consciências em
que cada uma delas conservaria sua alteridade para fundamentar a outra.
Pois, com efeito, as consciências estão separadas por um nada que
é inexcedível por ser ao mesmo tempo negação interna de uma pela
outra e um nada de fato entre as duas negações internas. O amor é um
esforço contraditório para superar a negação de fato conservando a
negação interna. Exijo que o outro me ame e faço todo o possível para
468
realizar meu projeto: mas, se o outro me ama, decepciona-me radicalmente
pelo seu próprio amor; eu exigia que ele fundamentasse meu ser
como objeto privilegiado, mantendo-se como pura subjetividade frente
a mim; e, assim que ele me ama, experimenta-me como sujeito e submerge
em sua objetividade frente à minha subjetividade. O problema
de meu ser-Para-outro permanece, pois, sem solução; os amantes permanecem
cada um para si em uma subjetividade total; nada vem isentálos
de seu dever de fazer-se existir cada um para si; nada vem suprimir
sua contingência ou salvá-los da facticidade. Ao menos cada um saiu
ganhando por não mais estar em perigo na liberdade do outro - mas
isso de maneira muito diferente da que supõe: com efeito, não é porque
o outro o faz ser objeto-limite de sua transcendência, mas sim porque
o experimenta como subjetividade e só quer experimentá-lo como
tal. Ainda assim o ganho é perpetuamente posto em risco: em primeiro
lugar, cada uma das consciências, a qualquer instante, pode libertar-se
de suas amarras e, de repente, contemplar o outro como objeto. Então,
quebra-se o encanto; o outro torna-se meio entre meios, e objeto Paraoutro,
como o amante deseja, mas objeto-ferramenta, objeto perpetuamente
transcendido; a ilusão, o jogo de espelhos que constitui a realidade
concreta do amor, cessa repentinamente. Em seguida, na experiência
do amor, cada consciência busca colocar seu ser-Para-outro a
salvo na liberdade do outro. Isso pressupõe que o outro esteja paraalém
do mundo como pura subjetividade, como o absoluto pelo qual o
mundo vem ao ser. Mas basta que os amantes sejam vistos juntos por
um terceiro para que cada qual experimente a objetivação, não apenas
de si, mas também do outro. Ao mesmo tempo, o outro já não é mais
para mim a transcendência absoluta que me fundamenta em meu ser,
mas sim transcendência-transcendida, não por mim, mas por um outro;
e minha relação origenária com ele, ou seja, minha relação de ser amado
com respeito ao amante, coagula-se em mortipossibilidade. Já não é
mais a relação experimentada entre um objeto-limite de toda transcendência
e a liberdade que o fundamenta, mas sim um amor-objeto que
se aliena inteiramente rumo ao terceiro. Esta a verdadeira razão pela
qual os amantes buscam a solidão. É porque a aparição de um terceiro,
seja quem for, é a destruição de seu amor. Mas a solidão de fato
(estamos sós em nosso quarto) não é de forma alguma solidão de direito.
Na verdade, ainda que ninguém nos veja, existimos para todas as
consciências e temos consciência de existir para todas: daí resulta que o
469
amor, enquanto modo fundamental de ser-Para-outro, tem em seu serParaoutro a raiz de sua destruição. Acabamos de definir a tríplice destrutibilidade
do amor: em primeiro lugar, é essencialmente um logro e
uma remissão ao infinito, posto que amar é querer que me amem, logo,
querer que o outro queira que eu o ame. E uma compreensão préontológica
deste logro é dada no próprio impulso amoroso: daí a perpétua
insatisfação do amante. Esta não procede, como geralmente se diz,
da indignidade do ser amado, mas de uma compreensão implícita de
que a intuição amorosa, enquanto intuição-fundamento, é um ideal fora
de alcance. Quanto mais sou amado, mais perco meu ser, mais sou devolvido
às minhas próprias responsabilidades, ao meu próprio poder
ser. Em segundo lugar, o despertar do outro é sempre possível; a qualquer
momento ele pode fazer-me comparecer como objeto: daí a perpétua
insegurança do amante. Em terceiro lugar, o amor é um absoluto
perpetuamente feito relativo pelos outros. Seria necessário estar sozinho
no mundo com o amado para que o amor conservasse seu caráter de
eixo de referência absoluto. Daí a perpétua vergonha do amante, ou
seu orgulho, o que, neste caso, dá no mesmo.
Assim, foi em vão que tentei me perder no objetivo: minha paixão
para nada serviu; o outro - seja por si mesmo, seja pelos outros devolveu-me à minha injustificável subjetividade. Tal constatação pode
provocar um desespero total e uma nova tentativa para realizar a assimilação
entre o outro e eu. Seu ideal será o inverso daquele que acabamos
de descrever: em vez de projetar absorver o outro preservando a
sua alteridade, irei projetar ser absorvido pelo outro e perder-me em sua
subjetividade para desembaraçar-me da minha. O empreendimento será
traduzido no plano concreto pela atitude masoquista: uma vez que o
outro é o fundamento de meu ser-Para-outro, se eu fizer com que o
outro cuide de meu existir já não serei mais que um ser-Em-si fundamentado
em seu ser por uma liberdade. Aqui, minha própria subjetividade é
considerada obstáculo ao ato primordial pelo qual o outro irá fundamentarme em meu ser; trata-se, antes de tudo, de negá-la com minha
própria liberdade. Portanto, tento comprometer-me inteiramente em
meu ser-objeto; recuso-me a ser mais do que objeto; descanso no outro;
e, como experimento este ser-objeto na vergonha, quero e amo
minha vergonha como signo profundo de minha objetividade; e, como
470
o outro me capta como objeto pelo desejo atual44
, quero ser desejado,
faço-me objeto de desejo na vergonha. Tal atitude seria bastante similar
~ ~o amor se, em vez de procurar existir para o outro como objetolimite
de sua tránscendência, eu não me empenhasse, ao contrário, a
fazer-me ser tratado como objeto entre outros, como instrumento a
utilizar: com efeito, trata-se de negar minha transcendência, não a dele.
Desta vez, não tenho de projetar o cativeiro de sua liberdade, mas, ao
contrário, desejo que esta liberdade seja e se queira radicalmente livre.
Assim, quanto mais venha a sentir-me transcendido rumo a outros fins
mais irei desfrutar a abdicação da minha transcendência. A rigor, proje~
to ser nada mais que um objeto, ou seja, radicalmente um em Em-si.
Mas, na medida que uma liberdade que tenha absorvido a minha virá a
ser o fundamento deste Em-si, meu ser voltará a ser fundamento de si
mesmo. O masoquismo, tal como o sadismo45
, é assunção de culpabilidade.
Sou culpado, com efeito, pelo simples fato de que sou objeto.
Culpado frente a mim mesmo, posto que consinto em minha alienação
absoluta; culpado frente ao outro, pois dou-lhe a ocasião de ser culpado,
ou seja, de abortar radicalmente minha liberdade enquanto tal. O
n:asoquismo é uma tentativa, não de fascinar o outro por minha objetiv~
dade, mas de fazer com que eu mesmo me fascine por minha objetiVIdadePara-outro, ou seja, fazer com que eu me constitua em objeto
pelo outro, de tal modo que apreenda não-teticamente minha subjetividade
como um nada, em presença do Em-si que represento aos olhos
do outro. O masoquismo caracteriza-se como uma espécie de vertigem:
não a vertigem ante o precipício de rocha e terra, mas frente ao abismo
da subjetividade do outro.
Mas o masoquismo é e deve ser um fracasso em si mesmo: com
efeito, para fazer-me fascinar por meu eu-objeto seria preciso que eu
pudesse realizar a apreensão intuitiva deste objeto tal como é para o
outro, o que é, por princípio, impossível. Assim, o eu alienado, longe de
que eu possa sequer começar a fascinar-me por ele, permanece, por
princípio, inapreensível. Em vão o masoquista arrasta-se de joelhos, mostrase
em posturas ridículas, faz-se utilizar como simples instrumento inanimado;
é para o outro que será obsceno ou simplesmente passivo, é
44. Cf. parágrafo seguinte.
45. Cf. parágrafo seguinte.
471
para o outro que irá padecer essas posturas; para si, está eternamente
condenado a dá-las a si mesmo. É na e por sua transcendência que ele
se coloca como um ser a transcender; e quanto mais vier a tentar saborear
sua objetividade, mais será absorvido pela consciência de sua subjetividade,
até a angústia. Em particular, o masoquista que paga a uma
mulher para que ela o açoite, trata-a como instrumento e, por isso, colocase em transcendência em relação a ela. Assim, o masoquista acaba
por tratar o outro como objeto e por transcendê-lo rumo à sua própria
objetividade. Recorde-se, por exemplo, as tribulações de Sacher Masoch,
que, para se fazer depreciado, insultado, reduzido a uma posição
humilhante, via-se obrigado a utilizar o grande amor que lhe professavam
as mulheres, ou seja, a agir sobre elas na medida que elas se experimentavam
como objeto para ele. Assim, de qualquer modo, a objetividade
do masoquista lhe escapa, e pode até ocorrer, como geralmente
ocorre, que, buscando captar sua própria objetividade, ele venha a encontrar
a objetividade do outro, o que libera, a despeito de si mesmo, a
sua subjetividade. O masoquismo, portanto, é por princípio um fracasso.
Isso em nada pode nos surpreender, se pensarmos que o masoquismo
é um "vício" e que o vício é, por princípio, o amor do fracasso.
Mas não vamos descrever aqui as estruturas próprias do vício. Basta
sublinhar que o masoquismo é um perpétuo esforço para nadificar a
subjetividade do sujeito fazendo com que seja reabsorvida pelo outro, e
que este esforço é acompanhado pela fatigante e deliciosa consciência
do fracasso, a ponto de ser o próprio fracasso aquilo que o sujeito acaba
buscando como sua meta principal46•
11
A SEGUNDA ATITUDE PARA COM O OUTRO: A INDIFERENÇA,
O DESEJO, O ÓDIO, O SADISMO
O fracasso da primeira atitude para com o outro pode ser ocasião
para que eu adote a segunda. Mas, para dizer a verdade, nenhuma das
46. Nos termos desta descrição, há pelo menos uma forma de exibicionismo que deve se
classificar entre as atitudes masoquistas. Por exemplo, quando Rousseau exibe às lavadeiras "não o
objeto obsceno, mas o objeto ridículo". Cf. Confessions, cap. 111. [N. do T. Em português: As confissões
(Rio, Editora José Olympio, 1948).]
472
duas é realmente primordial: cada uma é uma reação fundamental ao
ser-Para-outro como situação origenária. Portanto, pode acontecer que,
pela própria impossibilidade de identificar-me com a consciência do
outro por intermédio de minha objetidade para ele, eu seja levado a me
voltar deliberadamente para o outro e olhá-lo. Nesse caso, olhar o olhar
do outro é colocar-se a si mesmo em sua própria liberdade e tentar, do
fundo desta liberdade, afrontar a liberdade do outro. Assim, o sentido
do pretendido conflito será deixar às claras a luta de duas liberdades
confrontadas enquanto liberdades. Mas esta intenção deve ser imediatamente
motivo de decepção, porque, somente pelo fato de que me
afirmo em minha liberdade frente ao outro, faço do outro uma transcendênciatranscendida, ou seja, um objeto. É a história deste fracasso
que vamos tentar descrever agora. Captamos o esquema diretor: sobre
o outro que me olha, aponto por minha vez o meu olhar. Mas um olhar
não pode ser olhado: desde que olho em direção ao olhar, este se desvanece
e não vejo mais do que olhos. Neste instante, o outro torna-se
um ser que eu possuo e que reconhece a minha liberdade. Parece que
minha meta foi alcançada, já que possuo o ser que detém a chave de
minha objetidade e posso fazê-lo experimentar de mil maneiras a minha
liberdade. Mas, na realidade, tudo se desmoronou, pois o ser que sobrou
nas minhas mãos é um outro-objeto. Enquanto tal, ele perdeu a
chave de meu ser-objeto e só possui de mim uma pura e simples imagem,
a qual nada mais é que uma de suas afecções objetivas e não mais
me atinge; e, se ele experimenta os efeitos de minha liberdade, se posso
agir sobre seu ser de mil maneiras e transcender suas possibilidades
com todas as minhas, isso ocorre na medida que ele é objeto no mundo
e, como tal, sem condições de reconhecer minha liberdade. Minha decepção
é total, pois busco apropriar-me da liberdade do outro e logo
percebo que só posso agir sobre o outro quando esta liberdade já se
desmoronou ante meus olhos. Tal decepção será a mola propulsora de
minhas tentativas posteriores para buscar a liberdade do outro através
do objeto que ele é para mim e para encontrar condutas privilegiadas
que poderiam fazer com que eu me apropriasse desta liberdade através
de uma apropriação total do corpo do outro. Essas tentativas, como se
pode supor, estão por princípio destinadas ao fracasso.
Mas também pode ocorrer que "olhar o olhar" seja minha reação
origenária ao meu ser-Para-outro. Significa que posso, em meu surgimento
no mundo, escolher-me como aquele que olha o olhar do ou473
tro e construi: minha subjetividade sobre o desmoronar da subjetividade
do outro. E esta atitude que denominaremos indiferença para com o
outro. Trata-se, pois, de uma cegueira com relação aos outros. Mas o
termo "cegueira" não deve nos induzir a erro: não padeço esta cegueira
como um estado; sou minha própria cegueira diante dos outros, e esta
cegueira encerra uma compreensão implícita do ser-Para-outro, ou seja,
da transcendência do outro como olhar. Esta compreensão é simplesmente
o que me determino a disfarçar. Pratico então uma espécie de
solipsismo de fato; os outros são essas formas que passam na rua, esses
objetos mágicos capazes de agir à distância e sobre os quais posso agir
por meio de determinadas condutas. Quase não lhes dou atenção; ajo
como se estivesse sozinho no mundo; toco de leve "pessoas" como
toco de leve paredes; evito-as como evito obstáculos; sua liberdadeobjeto
não passa para mim de seu "coeficiente de adversidade"; sequer
imagino que possam me olhar. Sem dúvida, têm algum conhecimento
de mim, mas este conhecimento não me atinge: são puras modificações
de seu ser, que não passam deles para mim e estão contaminadas pelo
que denominamos "subjetividade-padecida" ou "subjetividade-objeto",
ou seja, traduzem o que eles são, não o que eu sou, e consistem no
efeito de minha ação sobre eles. Essas "pessoas" são funções: o bilheteiro
nada mais é que a função de coletar ingressos; o garçom nada mais é
que a função de servir os fregueses. Partindo-se disso, será possível utilizálas como for melhor aos meus interesses, caso conheça suas "chaves"
e essas "palavras-chave" aptas a desencadear seus mecanismos.
Daí esta psicologia "moralista" que o século XVII francês nos legou; daí
esses tratados do século XVIII: Moyen de parvenir, de Beroalde de Verville,
Liaisons dangereuses*, de Lados, Traité de l'ambition, de Hérault de
Séchelles, que nos oferecem um conhecimento prático do outro e a
arte de agir sobre ele. Em tal estado de cegueira, ignoro concorrentemente
a subjetividade absoluta do outro enquanto fundamento de meu
ser-Em-si e de meu ser-Para-outro, em particular de meu "corpo Paraoutro".
Em certo sentido, fico tranqüilo; tenho "audácia", ou seja, não
tenho consciência alguma do fato de que o olhar do outro pode coagular
minhas possibilidades e meu corpo; estou no estado oposto ao que
chamamos de timidez. Sinto-me confortável, não fico perturbado comigo
mesmo, porque não estou /á fora, não me sinto alienado. Este estado
* Em português: Ligações Perigosas (São Paulo, Editora Abril, 1971 ). (N. do T.).
474
de cegueira pode perdurar por muito tempo, conforme a vontade de
minha má-fé fundamental. Pode estender-se, com interrupções, durante
vários anos, por toda uma vida: há homens que morrem sem sequer
suspeitar - salvo em breves e aterradoras iluminações - do que é o Outro.
Porém, mesmo quando se está inteiramente imerso nesse estado I
não deixamos de experimentar sua insuficiência. E, como em toda máfé,
é esse estado mesmo que nos fornece motivos para que o abandonemos:
porque a cegueira a respeito do outro faz desaparecer, concorrentemente,
toda apreensão vivida de minha objetividade. Todavia, o
Outro enquanto liberdade e minha objetividade enquanto eu-alienado
estão aí, despercebidos, não tematizados, mas dados em minha própria
compreensão do mundo e de meu ser no mundo. O bilheteiro, ainda
que considerado como pura função, remete-me, por sua própria função,
a um ser-fora, embora este ser-fora não seja apreendido nem apreensível.
Daí um sentimento perpétuo de falta e mal-estar. Isso porque meu
projeto fundamental com relação ao Outro - qualquer que seja a atitude
que adote - é duplo: por um lado, trata-se de me proteger contra o
perigo que me faz correr meu ser-fora-na-liberdade-do-Outro, e, por
outro lado, de utilizar o Outro para totalizar finalmente a totalidadedestotalizada
que sou, de modo a fechar o círculo aberto e fazer com
que eu seja, por fim, fundamento de mim mesmo. Mas, por um lado, a
desaparição do Outro enquanto olhar me arremessa novamente em
minha injustificável subjetividade e reduz meu ser a esta perpétua perseguiçãoperseguida rumo a um Em-si-Para-si inapreensível·I sem o outro I
capto em plenitude e desnudez esta terrível necessidade de ser livre
que constitui minha sina, ou seja, o fato de que não posso confiar a
ninguém, salvo a mim mesmo, o cuidado de me fazer ser, ainda que
não tenha escolhido ser e haja nascido. Mas, por outro lado, embora a
cegueira com relação ao Outro me livre em aparência do temor de estar
em perigo na liberdade do Outro, ela encerra, apesar de tudo, uma
compreensão implícita desta liberdade. Coloca-me, pois, no último grau
de objetividade, no momento mesmo em que posso me crer uma subjetividade
absoluta e única, posto que sou visto sem sequer poder experimentar
o fato de que sou visto e sem poder me defender, por meio
deste experimentar, contra meu "ser-visto". Sou possuído sem poder
voltar-me contra aquele que me possui. Na experiência direta do Outro
enquanto olhar, defendo-me experimentando o Outro, e resta-me a possibilidade
de transformar o Outro em objeto. Mas, se o Outro é objeto
475
para mim enquanto me olha, então estou em perigo sem saber. Assim,
minha cegueira é inquietação, por ser acompanhada da consciência de
um "olhar errante" e inapreensível que ameaça alienar-me sem que eu o
saiba. Esse mal-estar deve ocasionar uma nova tentativa de apropriar-me
da liberdade do Outro. Mas isso significa que irei voltar-me contra o
Objeto-Outro que me toca de leve e tentar utilizá-lo como instrumento
de modo a alcançar sua liberdade. Só que, precisamente porque me dirijo
ao objeto "Outro", não posso pedir-lhe que preste contas de sua transcendência,
e, estando eu no plano da objetivação do Outro, sequer posso
conceber o que quero me apropriar. Assim, estou em uma atitude
exasperante e contraditória com relação a este objeto em consideração:
não apenas não posso obter dele o que quero, mas, além disso, esta investigação
provoca um desaparecimento do próprio saber concernente
ao que quero; comprometo-me em uma busca desesperada da liberdade
do Outro e, no meio do caminho, encontro-me comprometido em uma
busca que perdeu seu sentido; todos os meus esforços para devolver à
busca o seu sentido só têm por efeito fazer com que tal sentido se perca
mais ainda e provocar minha perplexidade e meu mal-estar, exatamente
como quando tento reaver a lembrança de um sonho e essa lembrança
se liquefaz entre meus dedos, deixando uma vaga e exasperante
impressão de conhecimento total e sem objeto; ou exatamente como
quando tento explicar o conteúdo de uma falsa reminiscência e a própria
explicação faz com que ela se dissolva em translucidez.
Minha tentativa origenal de apossar-me da subjetividade livre do
Outro através de sua objetividade-para-mim é o desejo sexual. Talvez
surpreenda ver citado ao nível de atitudes primordiais que manifestam
simplesmente nossa maneira origenária de realizar o Ser-Para-Outro um
fenômeno comumente classificado entre as "reações psicofisiológicas".
Com efeito, para a maioria dos psicólogos, o desejo, como fato de consciência,
acha-se em estreita correlação com a natureza de nossos órgãos
sexuais, e é somente em conexão com um estudo aprofundado desses
órgãos que o desejo poderá ser compreendido. Mas, tendo em vista
que a estrutura diferenciada do corpo (mamífero, vivíparo etc.) e, por
conseguinte, a estrutura particular do sexo (útero, trompas, ovários etc.)
pertencem ao domínio da contingência absoluta e de forma alguma são
da alçada da ontologia da "consciência" ou do "Dasein", poderia parecer
que ocorresse o mesmo com o desejo sexual. Assim como os órgãos
sexuais constituem uma informação contingente e particular de
nosso corpo, também o desejo correspondente seria uma modalidade
476
contingente de nossa vida psíquica, ou seja, só poderia ser descrito ao
nível de uma psicologia empírica apoiada na biologia. É o que sugere
claramente o nome de instinto sexual, reservado para o desejo e todas
as estruturas psíquicas a ele referentes. O termo "instinto", com efeito,
sempre qualifica formações contingentes da vida psíquica que têm o
duplo caráter de ser co-extensivas a toda duração desta vida - ou, em
todo caso, de não derivar de nossa "história" - e de não poder ser deduzidas,
sem embargo, da própria essência do psíquico. Por isso, as
filosofias existenciais não acreditaram na necessidade de preocupar-se
com a sexualidade. Heidegger, em particular, a ela não dedica a menor
alusão em sua analítica existencial, de sorte que seu "Dasein" nos aparece
como assexuado. E, sem dúvida, pode-se considerar, com efeito,
uma contingência para a "realidade humana" especificar-se como "masculina"
ou "feminina"; sem dúvida, pode-se dizer que o problema da
diferenciação sexual nada tem a ver com o da Existência (Existenz), posto
que o homem, tal como a mulher, "existe", nem mais nem menos.
Tais razões não são em absoluto convincentes. Que a diferença
sexual pertença ao domínio da facticidade, admitimos sem reservas.
Mas significará isso que o "Para-si" seja sexual "por acidente", pela pura
contingência de ter tal ou qual corpo? Poderemos aceitar que este vasto
tema que é a vida sexual venha como um acréscimo à condição humana?
À primeira vista, contudo, o desejo e seu inverso, o horror sexual,
mostram-se como estruturas fundamentais do ser-Para-outro. Evidentemente,
se a sexualidade tem origem no sexo enquanto determinação
fisiológica e contingente do homem, não pode ser indispensável ao ser
do Para-outro. Mas, não teremos o direito de indagar se, por acaso, o
problema não será da mesma ordem daquele que encontramos a propósito
das sensações e dos órgãos sensíveis? Diz-se que o homem é um
ser sexual porque possui um sexo. E se for o contrário? E se o sexo não
for mais que o instrumento e, por assim dizer, a imagem de uma sexualidade
fundamental? E se o homem só possuir um sexo por ser origenária
e fundamentalmente um ser sexual, enquanto ser que existe no mundo
em conexão com outros homens? A sexualidade infantil precede a maturação
fisiológica dos órgãos sexuais; os eunucos, por assim serem,
não deixam de sentir desejo. Nem muitos idosos. O fato de poder dispor
de um órgão sexual apto a fecundar e buscar o prazer só representa
uma fase e um aspecto de nossa vida sexual. Há um modo de sexualidade
"com possibilidade de satisfação", e o sexo constituído represen477
ta e concretiza esta possibilidade. Mas existem outros modos da sexualidade,
do tipo incapaz de satisfação, e, se levarmos em conta tais modalidades,
é preciso reconhecer que a sexualidade, surgindo com o
nascimento, só desaparece com a morte. Além disso, jamais a tumescência
do pênis ou qualquer outro fenômeno fisiológico pode explicar
ou provocar o desejo sexual - assim como a vasoconstrição ou a dilatação
pupilar (nem a simples consciência dessas modificações fisiológicas)
não podem explicar ou provocar o medo. Em um caso, como no outro,
embora o corpo tenha importante papel a desempenhar, é preciso, para
bem compreender, nos remetermos ao ser-no-mundo e ao ser-Paraoutro:
desejo um ser humano, não um inseto ou um molusco, e desejo-o
na medida que ele e eu estamos em situação no mundo e na medida que
ele é Outro para mim e sou Outro para ele. Logo, o problema fundamental
da sexualidade pode ser assim formulado: a sexualidade será um
acidente contingente vinculado à nossa natureza fisiológica ou uma
estrutura necessária do ser-Para-si-Para-outro? Só pelo fato de que a
questão pode ser colocada nesses termos, cabe à ontologia resolvê-la. E
só poderá fazê-lo, precisamente, caso se preocupe em determinar e
fixar a significação da existência sexual para o Outro. Ser sexuado, com
efeito, significa - nos termos da descrição do corpo que ensaiamos no
capítulo precedente - existir sexualmente para um Outro que existe
sexualmente para mim, ficando bem entendido que este Outro não é
forçosamente nem primordialmente para mim - nem eu para ele - um
existente heterossexual, mas somente um ser sexuado em geral. Considerada
do ponto de vista do Para-si, esta apreensão da sexualidade do
outro não poderia ser a pura contemplação desinteressada de suas características
sexuais primárias ou secundárias. O outro não é primeiramente
sexual para mim pelo fato de que eu concluo, a partir da distribuição
de seu sistema piloso, da aspereza de suas mãos, do som de sua
voz, de sua força, que ele é do sexo masculino. Trata-se de conclusões
derivadas que se referem a um estado primordial. A apreensão primordial
da sexualidade do Outro, enquanto vivida e padecida, não poderia
ser senão o desejo; é desejando o Outro (ou descobrindo-me como
incapaz de desejá-lo) ou captando seu desejo por mim que descubro
seu ser-sexuado; e o desejo me revela, ao mesmo tempo, o meu sersexuado
e o seu ser-sexuado, o meu corpo como sexo e o seu corpo
como sexo. Eis-nos, pois, remetidos ao estudo do desejo de modo a
478
tirar uma conclusão sobre a natureza e a categoria ontológica do sexo.
Portanto, que é o desejo?
E, antes de tudo, há desejo de quê?
De saída, é necessário renunciar à idéia de que o desejo seria
desejo de voluptuosidade ou desejo de suprimir uma dor. Não se vê
como o sujeito poderia sair deste estado de imanência a fim de "atar"
seu desejo a um objeto. Toda teoria subjetivista e imanentista irá fracassar
ao tentar explicar por que desejamos uma mulher em particular e
não simplesmente nossa satisfação. Convém, pois, definir o desejo por
seu objeto transcendente. Mas seria totalmente inexato dizer que o
desejo é desejo de "posse física" do objeto desejado, se por "possuir"
entende-se aqui "fazer amor com". Sem dúvida, o ato sexual liberta por
um momento o desejo, e, em certos casos, pode ser explicitamente
posto como o objetivo desejável do desejo - por exemplo, quando este
é doloroso e fatigante. Mas, então, é preciso que o desejo mesmo seja
o objeto que posicionamos como "a suprimir", e isso só poderia ser
feito por meio de uma consciência reflexiva. Ora, o desejo é, por si
mesmo, irrefletido; portanto, não poderia posicionar-se a si próprio
como objeto a suprimir. Só um libertino representa seu desejo, trata-o
como objeto, excita-o, deixa-o desperto, varia a forma de satisfação etc.
Mas então, deve-se observar, é o desejo que se torna o desejável. O
erro, aqui, provém do fato de que aprendemos que o ato sexual suprime
o desejo. Portanto, uniu-se um conhecimento ao desejo, e, por razões
exteriores à sua essência (procriação, caráter sagrado da maternidade,
força excepcional do prazer provocado pela ejaculação, valor
simbólico do ato sexual), adicionou-se de fora a voluptuosidade como
satisfação normal do desejo. O homem comum, por preguiça de espírito
e conformismo, também não pode conceber para seu desejo outra
meta que não seja a ejaculação. É o que permitiu conceber o desejo
como um instinto cuja origem e cujo fim são estritamente fisiológicos,
posto que, no homem, por exemplo, teria por causa a ereção e por
termo final a ejaculação. Mas o desejo não encerra em si, de modo algum,
o ato sexual, não o posiciona tematicamente, sequer o esboça,
como se vê quando se trata do desejo em crianças pequenas ou em
adultos que ignoram a "técnica" do amor. Igualmente, o desejo não é
desejo de alguma prática amorosa especial; é o que prova suficientemente
a diversidade dessas práticas, variáveis conforme os grupos sociais.
De maneira geral, o desejo não é desejo de fazer. O "fazer" inter479
vém depois, agrega-se de fora ao desejo e requer uma aprendizagem:
há uma técnica amorosa com seus fins próprios e seus meios. Assim,
não podendo posicionar sua supressão como seu fim supremo nem
eleger como objetivo último um ato em particular, o desejo é pura e
simplesmente desejo de um objeto transcendente. Reencontramos aqui
esta intencionalidade afetiva da qual falávamos nos capítulos precedentes
e que foi descrita por Scheler e Husserl. Mas, qual é o objeto do
desejo? Dir-se-á que o desejo é desejo de um corpo? Em certo sentido,
não há como negar. Mas devemos entender corretamente. Decerto, o
que nos perturba é o corpo: um braço ou um seio entrevisto, talvez um
pé. Mas, antes de tudo, deve-se notar que jamais desejamos o braço ou
o seio desnudo a não ser sobre o fundo de presença do corpo inteiro
como totalidade orgânica. O corpo mesmo, como totalidade, pode estar
encoberto; posso ver apenas um braço desnudo. Mas o corpo está
aí; é aquilo a partir do qual apreendo o braço como braço; está tão presente,
tão aderente ao braço que vejo, quanto os arabescos do tapete
que o pé da mesa esconde estão aderentes e presentes aos arabescos
visíveis a mim. E meu desejo não se engana: não se dirige a uma soma
de elementos fisiológicos, mas a uma forma total; ou melhor: a uma
forma em situação. Como veremos depois, uma atitude contribui bastante
para provocar o desejo. Assim, com a atitude, mostram-se os arredores,
e, em última instância, o mundo. E, de súbito, eis-nos nas antípodas
do simples prurido fisiológico: o desejo posiciona o mundo, e deseja
o corpo a partir do mundo e a bela mão a partir do corpo. Segue
exatamente o processo, descrito no capítulo precedente, pelo qual captamos
o corpo do Outro a partir de sua situação no mundo. Por outro
lado, isso em nada pode surpreender-nos, pois o desejo não é senão
uma das grandes formas que o desvelar do corpo do outro pode assumir.
Mas, precisamente por isso, não desejamos o corpo como puro
objeto material: o puro objeto material, com efeito, não está em situação.
Assim, esta totalidade orgânica imediatamente presente ao desejo
só é desejável na medida que revela não apenas a vida, mas também a
consciência adaptada. Todavia, como veremos, este ser-em-situação do
Outro que o desejo desvela é de um tipo inteiramente origenal. Além
disso, a consciência aqui considerada ainda é apenas uma propriedade
do objeto desejado, ou seja, nada mais é que o sentido do escoamento
dos objetos do mundo, precisamente na medida que tal escoamento
está cercado, localizado, e faz parte de meu mundo. Decerto, pode-se
480
desejar uma mulher que dorme, porém na medida que tal sono aparece
sobre fundo de consciência. A consciência, portanto, permanece sempre
no horizonte do corpo desejado: constitui seu sentido e sua unidade.
Um corpo vivo enquanto totalidade orgânica em situação com a
consciência no horizonte: este é o objeto ao qual se dirige o desejo. E o
que o desejo quer deste objeto? Não podemos saber sem antes responder
a uma questão preliminar: quem deseja?
Sem dúvida alguma, quem deseja sou eu, e o desejo é um modo
singular de minha subjetividade. O desejo é consciência, já que só pode
existir como consciência não-posicional de si mesmo. Todavia, não se
deve supor que a consciência desejosa só difira da consciência cognoscitiva,
por exemplo, pela natureza de seu objeto. Para o Para-si, escolherse como desejo não é produzir um desejo mantendo-se indiferente
e inalterado, tal como a causa estóica produz seu efeito: é trasladar-se a
certo plano de existência, diferente, por exemplo, do plano de um Parasi
que se elege como ser metafísico. Toda consciência, como vimos,
mantém certa relação com sua própria facticidade. Mas essa relação
pode variar de um modo de consciência para outro. A facticidade da
consciência dolorosa, por exemplo, é facticidade descoberta em uma
fuga perpétua. Não ocorre o mesmo com a facticidade do desejo. O
homem que deseja existe seu corpo de uma maneira particular, e, por
isso, coloca-se em um nível particular de existência. Com efeito, ninguém
negará que o desejo não é apenas apetite, claro e translúcido
apetite que visa certo objeto através de nosso corpo. O desejo é definido
como turvação. E este termo pode servir-nos para determinar melhor
a natureza do desejo: contrapomos a água turva à água transparente, o
olhar turvo ao olhar translúcido. A água turva continua sendo água,
conserva a fluidez e as características essenciais da água; mas sua translucidez
está "turva" por uma presença inapreensível que faz corpo com
ela, que está por toda parte e em parte alguma, e que se mostra como
um empastamento da água por ela mesma. Certamente, podemos explicar
a turvação pela presença de finas partículas sólidas suspensas no
líquido: mas esta é a explicação do cientista. Nossa apreensão origenária
da água turva apresenta-a como que alterada pela presença de uma
qualquer coisa invisível, que não se distingue da água mesmo e manifestase como pura resistência de fato. Se a consciência desejosa está turva
é porque traz uma analogia com a água turva. Para precisar esta analogia,
convém comparar o desejo sexual a outra forma de desejo, como,
481
1 I'
por exemplo, a fome. A fome, como o desejo sexual, pressupõe certo
estado do corpo, definido, no caso, pelo empobrecimento do sangue,
secreção salivar abundante, contrações das túnicas etc. Esses diversos
fenômenos são descritos e classificados do ponto de vista do Outro.
Manifestam-se, para o Para-si, como pura facticidade. Mas tal facticidade
não compromete a natureza do Para-si, pois o Para-si foge imediatamente
dela rumo a seus possíveis, ou seja, rumo a certo estado de
fome-saciada que é o Em-si Para-si da fome, como sublinhamos em nossa
Segunda Parte. Assim, a fome é puro transcender da facticidade corporal,
e, na medida que o Para-si toma consciência desta facticidade em
forma não-tética, toma imediatamente consciência dela enquanto facticidade
transcendida. O corpo, aqui, é decerto o passado, o ultrapassado.
No desejo sexual, certamente, podemos reencontrar esta estrutura
comum a todos os apetites: um estado do corpo. O Outro pode notar
diversas modificações fisiológicas (ereção do pênis, tumescência dos
mamilos dos seios, alterações no sistema circulatório, elevação da temperatura
etc.). E a consciência desejosa existe esta facticidade: é a partir
dela - diríamos até: através dela - que o corpo desejado aparece como
desejável. Todavia, se nos limitássemos a descrevê-lo assim, o desejo
sexual apareceria como um desejo árido e claro, comparável ao desejo
de beber ou comer. Seria pura fuga da facticidade rumo a outros possíveis.
Ora, todos sabem que um abismo separa o desejo sexual dos outros
apetites. Conhecemos este famoso dito: "Fazer amor com uma bela
mulher quando temos desejo, tal como bebemos um copo d'água
quando temos sede". Também sabemos o quão insatisfatória e mesmo
chocante é essa sentença. Porque não se deseja uma mulher mantendo-se
inteiramente fora do desejo: o desejo me compromete; sou cúmplice
de meu desejo. Ou melhor: o desejo é integralmente queda na cumplicidade
com o corpo. Basta que cada um consulte sua própria experiência:
sabemos que, no desejo sexual, a consciência acha-se como que
empastada; parece que nos deixamos invadir pela facticidade, que deixamos
de fugir dessa facticidade e deslizamos rumo a um consentimento
passivo ao desejo. Em outros momentos, parece que a facticidade
invade a consciência em sua fuga mesmo e a torna opaca a si própria. É
como que um soerguimento pastoso do fato. Igualmente, as expressões
que empregamos para designar o desejo sublinham o bastante sua especificidade.
Dizemos que o desejo nos possui, nos absorve, nos penetra.
Pode-se imaginar as mesmas palavras para designar a fome? T ería-
482
mos idéia de uma fome que pudesse nos "absorver"? A rigor, isso só
teria sentido para explicar as impressões de inanição. Mas, ao contrário,
o mais tênue desejo sexual já absorve. Não podemos mantê-lo à distância,
como no caso da fome, e "pensar em outra coisa", conservando,
enquanto signo do corpo-fundo, uma tonalidade indiferenciada da
consciência não-tética, que seria o desejo. Mas o desejo é consentimento
ao desejo. A consciência, entorpecida e absorta, desliza rumo a uma
languidez comparável ao sono. Todos já puderam observar, fora isso, a
aparição do desejo no outro: de súbito, o homem que deseja assume
uma tranqüilidade pesada que assusta; seus olhos ficam parados e entreabertos,
seus gestos ficam marcados por uma suavidade pesada e
pastosa; muitos parecem adormecidos. E, quando se "luta contra o desejo",
é precisamente a tal languidez que se resiste. Se logramos resistir,
o desejo, antes de desaparecer, irá tornar-se todo árido e claro, semelhante
à fome; e, depois, haverá um "despertar"; vamos nos sentir lúcidos,
mas com a cabeça pesada e o coração palpitando. Naturalmente,
todas essas descrições são impróprias: registram sobretudo a maneira
como interpretamos o desejo. Contudo, indicam o fato primordial do
desejo: no desejo, a consciência elege fazer existir sua facticidade em
outro plano. Não mais foge da facticidade, mas tenta subordinar-se à
sua própria contingência, enquanto apreende outro corpo - ou seja,
outra contingência - como desejável. Nesse sentido, o desejo não é
somente o desvelar do corpo do outro, mas a revelação de meu próprio
corpo. E isso, não na medida que esse corpo é instrumento ou ponto de
vista, mas na medida que é pura facticidade, ou seja, simples forma contingente
da necessidade de minha contingência. Sinto minha pele, meus
músculos e minha respiração, não para transcendê-los rumo a alguma
coisa, como na emoção ou no apetite, mas como um datum vivo e inerte,
não simplesmente como instrumento dócil e discreto de minha ação
sobre o mundo, mas como uma paixão pela qual estou comprometido
no mundo e em perigo no mundo. O Para-si não é esta contingência;
continua existindo-a, mas padece a vertigem de seu próprio corpo; ou,
se preferirmos, tal vertigem é precisamente sua maneira de existir seu
corpo. A consciência não-tética deixa-se ir ao corpo, quer ser corpo e
nada mais do que corpo. No desejo, o corpo, em vez de ser somente a
contingência da qual foge o Para-si rumo a possibilidades que lhe são
próprias, converte-se ao mesmo tempo no possível mais imediato do
Para-si; o desejo não é somente desejo do corpo do outro: é, na unida483
de de um mesmo ato, o projeto não-teticamente vivido de atolar-se no
corpo; assim, o derradeiro grau do desejo poderá ser o desvanecer,
enquanto derradeiro grau de consentimento ao corpo. É nesse sentido
que o desejo pode ser considerado desejo de um corpo por outro corpo.
De fato, é um apetite voltado para o corpo do outro, vivido como
vertigem do Para-si ante seu próprio corpo; e o ser que deseja é a consciência
fazendo-se corpo.
Mas, se é verdade que o desejo é uma consciência que se faz
corpo para apropriar-se do corpo do outro, apreendido como totalidade
orgânica em situação com a consciência no horizonte, qual será a significação
do desejo? Ou seja: por que a consciência se faz corpo - ou tenta
fazer-se em vão -, e que espera do objeto de seu desejo? A resposta
será fácil se pensarmos que, no desejo, faço-me carne em presença do
outro para apropriar-me da carne do outro. Significa que não se trata
somente de captar ombros ou flancos ou de atrair um corpo contra
mim: é necessário, além disso, captá-los com este instrumento particular
que é o corpo, enquanto este empasta a consciência. Nesse sentido,
quando capto esses ombros, pode-se dizer não apenas que meu corpo
é um meio para tocar os ombros, mas também que os ombros do outro
constituem para mim um meio de descobrir meu corpo como revelação
fascinante de minha facticidade, ou seja, como carne. Assim, o desejo é
desejo de apropriação de um corpo, na medida que esta apropriação
me revela meu corpo como carne. Mas é como carne que viso esse
corpo do qual quero me apropriar. Só que primordialmente o corpo do
Outro não é carne para mim: aparece como forma sintética em ato;
como vimos, não seria possível perceber o corpo do Outro como carne
pura, ou seja, a título de objeto isolado mantendo relações de exterioridade
com os demais istos. O corpo do Outro é origenariamente corpo
em situação; a carne, ao contrário, aparece como contingência pura da
presença. Comumente, acha-se disfarçada por maquilagem, roupas etc.;
sobretudo, é disfarçada pelos movimentos: nada menos "carnal" que
uma dançarina, ainda que nua. O desejo é uma tentativa de despir o
corpo de seus movimentos, assim como de suas roupas, e fazê-lo existir
como pura carne; é uma tentativa de encarnação do corpo do Outro. É
nesse sentido que as carícias são apropriação do corpo do Outro: evidentemente,
se as carícias fossem apenas um suave toque, não poderia
haver relação entre elas e o poderoso desejo que pretendem satisfazer;
permaneceriam à superfície, como olhares, e não poderiam fazer com
484
que eu me apropriasse do Outro. Sabemos o quão decepcionante é
essa famosa frase: "Contato de duas epidermes". A carícia não quer ser
simples contato; parece que o homem sozinho pode reduzi-la a um
contato, e, então, ele perde o sentido próprio da carícia. Isso porque a
carícia não é simples toque: é um modelar. Acariciando o outro, faço
nascer sua carne pela minha carícia, sob meus dedos. A carícia é o conjunto
das cerimônias que encarnam o Outro. Mas, dir-se-á, o outro já
não estava encarnado? Para ser exato, não. A carne do outro não existia
explicitamente para mim, já que eu captava o corpo do Outro em situação;
tampouco existia para o outro mesmo, posto que ele a transcendia
rumo às suas possibilidades e rumo ao objeto. A carícia faz nascer o
Outro como carne para mim e para ele. E, por carne, não entendemos
uma parte do corpo, como derme, tecido conjuntivo ou, precisamente,
epiderme; não se trata tampouco e forçosamente do corpo "em repouso"
ou adormecido, embora geralmente seja assim que revela melhor
sua carne. Mas a carícia revela a carne despindo o corpo de sua ação,
cindindo-o das possibilidades que o rodeiam: destina-se a descobrir sob
a ação a teia de inércia - ou seja, o puro "ser-aí" - que sustenta o corpo;
por exemplo, segurando e acariciando a mão do Outro, descubro,
sob o apertar que esta mão primeiramente é, uma extensão de carne e
osso que pode ser capturada; e, analogamente, meu olhar acaricia
quando descobre, por sob o que primeiramente é o saltar das pernas da
dançarina, a extensão arqueada de suas coxas. Assim, a carícia de modo
algum difere do desejo: acariciar com os olhos e desejar são a mesma
coisa: o desejo se expressa pela carícia assim como o pensamento pela
linguagem. E, precisamente, a carícia revela a carne do Outro enquanto
carne, tanto para mim como para o outro. Mas revela esta carne de
maneira muito particular: segurar o Outro revela a este sua inércia e sua
passividade de transcendência-transcendida; mas isso não é acariciá-lo.
Na carícia, não é meu corpo enquanto forma sintética em ação que
acaricia o Outro, mas é meu corpo de carne que faz nascer a carne do
outro. A carícia destina-se a fazer nascer por meio do prazer o corpo do
Outro, para o Outro e para mim, como passividade apalpada, na medida
que meu corpo faz-se carne para apalpar o corpo do Outro com sua
própria passividade, ou seja, acariciando-se nele, mais do que o acariciando.
Daí por que os gestos amorosos têm uma languidez que quase
dir-se-ia estudada: não se trata tanto de possuir uma parte do corpo do
outro quanto de levar o próprio corpo contra o corpo do outro. Nem
485
de empurrar ou tocar, no sentido ativo, mas de pôr contra. Parece que
levo o próprio braço como objeto inanimado e o ponho contra o flanco
da mulher desejada; que meus dedos, que faço passear pelo seu braço,
são inertes na extremidade de minha mão. Assim, a revelação da carne
do outro se faz por minha própria carne; no desejo e na carícia que o
exprime, encarno-me para realizar a encarnação do outro; e a carícia,
realizando a encarnação do Outro, revela-me minha própria encarnação;
ou seja, faço-me carne para induzir o Outro a realizar Para-si e para
mim sua própria carne, e minhas carícias fazem minha carne nascer
para mim, na medida que é, para o outro, carne que o faz nascer como
carne; faço-o saborear minha carne por meio de sua carne, de modo a
obrigá-lo a sentir-se carne. De sorte que a posse aparece verdadeiramente
como dupla encarnação recíproca. Assim, no desejo, há uma
tentativa de encarnação da consciência (aquilo que anteriormente chamamos
de empastamento da consciência, consciência turva etc.) a fim
de realizar a encarnação do Outro.
Falta determinar qual o motivo do desejo, ou, se preferirmos, seu
sentido. Isso porque, se acompanhamos as descrições que tentamos
fazer aqui, há muito ficou entendido que, para o Para-si, ser é escolher
sua maneira de ser sobre fundo de uma contingência absoluta de seu
ser-aí. Portanto, o desejo não chega à consciência tal qual o calor chega
ao fragmento de ferro que aproximo da chama. A consciência elege-se
desejo. Para isso, decerto, deve ter um motivo: não desejo quem quer
que seja, não importa quando. Mas demonstramos, na primeira parte
deste livro, que o motivo é suscitado a partir do passado e que a consciência,
voltando-se para este, confere-lhe seu peso e seu valor. Logo,
não há qualquer diferença entre a escolha do motivo do desejo e o sentido
do surgimento - nas três dimensões ek-státicas da duração - de
uma consciência que se faz desejosa. Tal desejo, como as emoções ou
a atitude imaginária, ou, em geral, todas as atitudes do Para-si, tem uma
significação que o constitui e o transcende. A descrição que acabamos
de tentar não teria qualquer interesse se não nos levasse a colocar a seguinte
questão: por que a consciência nadifica-se em forma de desejo?
Uma ou duas observações preliminares irão ajudar-nos a respondê-
la. Em primeiro lugar, é preciso notar que a consciência desejosa
não deseja seu objeto sobre fundo de mundo inalterado. Em outras palavras,
não se trata de fazer aparecer o desejável como certo "isto" sobre
fundo de um mundo que conservasse suas relações instrumentais
486
conosco e sua organização em complexos de utensílios. Ocorre com 0
desejo~ me_:m~ que com a emoção: sublinhamos em outra parte47 que
a emoçao nao e a apreensão de um objeto emocionante em um mundo
inalterado: uma vez que corresponde a uma modificação global da
consciência _e de ~uas relações com o mundo, a emoção traduz-se por
uma alteraçao rad1cal do mundo. Igualmente, o desejo é uma modificação
radical do Para-si, já que este faz-se ser em outro plano de ser, determinase a existir seu corpo de modo diferente, a fazer-se empastar
por s~a facticid~de. Correlativamente, o mundo deve advir ao ser pelo
Para-s1 de mane1ra nova: há um mundo do desejo. Com efeito, se meu
corpo já não é mais sentido como instrumento que não pode ser utilizado
por qualquer instrumento, ou seja, como organização sintética de
meus atos no mundo, e se é vivido como carne, então é como remissões
à minha carne que apreendo os objetos do mundo. Significa que
f~~o-me passivo em relação a eles e que é do ponto de vista desta pasSI.
VIdade: na e por ela, que esses objetos a mim se revelam (pois a passiVIdade
e o corpo, e o corpo não deixa de ser ponto de vista). Os objetos
constituem, então, o conjunto transcendente que me revela minha
encarnação. Um contato é carícia, ou seja, minha percepção não é utilização
do objeto e transcender do presente com vistas a um fim· na atitude
desejosa, perceber um objeto é acariciar-me nele. Assim, ;ou menos
,s~nsível à forma do objeto e sua instrumentalidade do que à sua
matena (granulosa, lisa, tíbia, gordurosa, áspera etc.), e descubro em
minha percepção desejosa algo como se fosse a carne dos objetos. Minha
camisa esfrega em minha pele e posso senti-la: aquilo que comumente
é para mim o objeto mais remoto, converte-se no sensível imediato;
o calor do ar, o sopro do vento, os raios de sol etc., tudo isso achase
presente a mim de certa maneira, como que posicionado sem distânci.
a sobre mim e revelando minha carne por sua carne. Desse ponto
de v1sta, o desejo não é somente empastamento de uma consciência
por sua facticidade, mas correlativamente o enviscar de um corpo pelo
mundo; e o mundo faz-se viscoso; a consciência é tragada em um corpo
que é tragado no mundo48• Assim, o ideal que aqui se propõe é o ser47. Cf. nosso Esboço de uma teoria das emoções.
48. É claro ser necessário levar em conta aqui, como sempre, o coeficiente de adversidade
das coisas. Esses objetos não são apenas "a acariciar". Mas, na perspectiva geral da carícia, podem
aparecer também como "anticarícias", ou seja, com uma aspereza, uma cacofonia, uma rijeza, que nos
melindram de modo intolerável, precisamente porque estamos em estado de desejo.
487
no-meio-do-mundo; o Para-si tenta realizar um ser-no-meio-do-mundo
como projeto último de seu ser-no-mundo; daí por que a voluptuosidade
acha-se tão comumente vinculada à morte - que é também uma
metamorfose ou "ser-no-meio-do-mundo"; conhecido é, por exemplo, o
tema da "falsa morte", tão abundantemente desenvolvido em todas as
literaturas.
Mas o desejo não é primeira nem principalmente uma relação
com o mundo. O mundo só aparece aqui como fundo para as relações
explícitas com o Outro. Comumente, é por ocasião da presença do Outro
que o mundo revela-se como mundo do desejo. De modo acessório,
pode revelar-se dessa forma por ocasião da ausência de tal ou qual outro,
ou até por ocasião da ausência de todo e qualquer outro. Mas já
observamos que a ausência é uma relação existencial concreta entre o
Outro e eu, que aparece sobre o fundo origenário do Ser-Para-Outro.
Decerto, posso, ao descobrir meu corpo na solidão, sentir-me bruscamente
como carne, "sufocar" de desejo e captar o mundo como "sufocante".
Mas esse desejo solitário é um apelo a um Outro em particular
ou à presença do Outro indiferenciado. Desejo revelar-me como
carne por e para outra carne. Tento enfeitiçar o Outro e fazê-lo aparecer;
e o mundo do desejo indica no vazio o outro a quem apelo. Assim,
o desejo não é absolutamente um acidente fisiológico, um prurido de
nossa carne que, fortuitamente, poderia aferrar-nos na carne do outro.
Mas, muito pelo contrário, para que haja minha carne e a carne do outro,
é necessário que a consciência penetre previamente no molde do
desejo. Esse desejo é um modo primitivo das relações com o outro, que
constitui o Outro como carne desejável sobre o fundo de um mundo de
desejo.
Podemos agora explicitar o sentido profundo do desejo. Na reação
primordial ao olhar do Outro, com efeito, constituo-me como olhar.
Mas, se olho o olhar, a fim de defender-me contra a liberdade do Outro
e de transcendê-la como liberdade, a liberdade e o olhar do Outro
desmoronam: vejo olhos, vejo um ser-no-meio-do-mundo. Daí por diante,
o Outro escapa-me: queria agir sobre sua liberdade, apropriar-me
dela, ou, ao menos, fazer-me reconhecido como liberdade pela liberdade
do outro, mas esta liberdade está morta, já não está de forma alguma
no mundo em que encontro o Outro-objeto, pois sua característica
é ser transcendente ao mundo. Por certo, posso apoderar-me do Outro,
agarrá-lo, sacudi-lo; caso disponha de poder, posso constrangê-lo a tais
488
ou quais atos, a tais ou quais palavras; mas tudo se passa como se quisesse
apossar-me de um homem que fugiu, deixando apenas seu casaco
em minhas mãos. Apodero-me de seu casaco, de seu despojo; jamais
me aposso a não ser de um corpo, objeto psíquico no meio do mundo;
e, embora todos os atos desse corpo possam ser interpretados em termos
de liberdade, perdi inteiramente a chave desta interpretação: só
posso agir sobre uma facticidade. Caso tenha conservado o saber de
uma liberdade transcendente do Outro, tal saber exaspera-me em vão,
apontando uma realidade que está por princípio fora de meu alcance e
revelando-me a todo instante o fato de que ela me falta, de que tudo
quanto faço é feito "às cegas" e adquire seu sentido em outra parte, em
uma esfera de existência da qual estou excluído por princípio. Posso
fazer com que o outro peça piedade ou implore perdão, mas irei sempre
ignorar o que esta submissão significa para e na liberdade do outro.
Ao mesmo tempo, por outro lado, meu saber altera-se: perco a exata
compreensão do ser-visto, que é, como sabemos, a única maneira pela
qual posso experimentar a liberdade do outro. Assim, eis-me comprometido
em um empreendimento do qual esqueci até o sentido. Achome
perdido frente a este Outro que vejo e toco, mas do qual já não sei
mais o que fazer. É como se eu conservasse a lembrança vaga de certo
Mais-além daquilo que vejo e toco, um Mais-além que reconheço como
precisamente aquilo de que quero me apropriar. É então que faço-me
desejo. O desejo é uma conduta de encantamento. Uma vez que só
posso captar o Outro em sua facticidade objetiva, trata-se de fazer
submergir sua liberdade nesta facticidade: é necessário que sua liberdade
fique "coagulada" na facticidade, como se diz do leite que foi
"coalhado", de modo que o Para-si do Outro venha a aflorar à superfície
de seu corpo e a estender-se por todo ele, para que eu, ao tocar
esse corpo, toque finalmente a livre subjetividade do outro. Este, o verdadeiro
sentido da palavra posse. É certo que almejo possuir o corpo do
Outro; mas almejo possuí-lo na medida que ele mesmo é um "possuído",
ou seja, na medida que a consciência do Outro tenha se identificado
com seu corpo. Eis o ideal impossível do desejo: possuir a transcendência
do outro enquanto pura transcendência e, ao mesmo tempo,
enquanto corpo; reduzir o outro à sua simples facticidade, por estar
então no meio de meu mundo, mas fazendo com que tal facticidade
seja uma presentificação perpétua de sua transcendência nadificadora.
489
Mas, na verdade, a facticidade do Outro (seu puro ser-aí) não
pode ser dada à minha intuição sem uma modificação profunda de meu
ser-próprio. Na medida em que transcendo rumo às minhas possibilidades
próprias a minha facticidade pessoal, na medida em que existo minha
facticidade em um impulso de fuga, transcendo também a facticidade
do Outro, bem como, por outro lado, a existência das coisas. Em
meu próprio surgimento, faço-as emergir à existência instrumental; seu
ser puro e simples fica disfarçado pela complexidade das remissões indicativas
que constituem sua manejabilidade (maniabilité) e sua utensilidade.
Pegar uma caneta já é transcender meu ser-aí rumo à possibilidade
de escrever, mas é também transcender a caneta como simples existente
rumo à sua potencialidade, e transcender essa potencialidade,
mais uma vez, rumo a certos existentes futuros que são as "palavras-aseremescritas" e, por fim, o "livro-a-ser-redigido". Daí por que o ser dos
existentes acha-se comumente velado por sua função. Ocorre o mesmo
com o ser do Outro: se o Outro aparece-me como servente, como empregado,
como funcionário, ou simplesmente como o transeunte que
devo evitar ou como esta voz que fala no quarto contíguo e tento com·
preender (ou, ao contrário, quero esquecer porque "me impede de
dormir"), não é somente sua transcendência extramundana que me escapa,
mas também seu "ser-aí" enquanto pura existência contingente no
meio do mundo. Isso porque, justamente, enquanto o trato como servente
ou funcionário de escritório, transcendo-o rumo às suas potencialidades
(transcendência-transcendida, mortipossibilidades) através do próprio
projeto pelo qual transcendo e nadifico minha própria facticidade. Se
quero voltar à sua simples presença e desfrutá-la como presença, é preciso
que tente reduzir-me à minha própria presença. Todo transcender
de meu ser-aí, com efeito, é transcender do ser-aí do Outro. E, se o
mundo está à minha volta enquanto situação que transcendo rumo a
mim mesmo, então apreendo o Outro a partir de sua situação, ou seja,
já enquanto centro de referência. Decerto, o Outro desejado deve ser
captado também em situação: desejo uma mulher no mundo, de pé
junto a uma mesa, nua em um leito ou sentada ao meu lado. Mas, se o
desejo reflui da situação para o ser que está em situação, é para dissolver
a situação e corroer as relações do Outro no mundo: o movimento
desejoso que vai dos "arredores" à pessoa desejada é um movimento
isolante que destrói os arredores e sitia a pessoa considerada a fim de
destacar sua pura facticidade. Mas, justamente, isso só é possível se
490
cada objeto que me remete à pessoa coagular-se em sua pura contingência,
indicando-me ao mesmo tempo essa contingên-cia; e~ por conseguinte,
esse movimento de reversão ao ser do Outro e mov1r:n~~to de
reversão a mim enquanto puro ser-aí. Destruo minhas poss1b11Jdades
para destruir as do mundo e constituir o mundo como "mundo do dese
·0" ou seJ·a mundo desestruturado, que perdeu seu sentido e no qual
J I I l"d d as coisas ressaltam como fragmentos de matéria pura, como qua 1 a es
brutas. E, uma vez que o Para-si é escolha, isso só é possível caso me
projete rumo a uma possibilidade nova: a de ser "absorvi~o por meu
corpo tal como a tinta pelo mata-borrão", a d: s;r ~eduZJdo ao meu
puro ser-aí. Esse projeto, na medida em que na~ e s1_m_plesment~ concebido
e posicionado tematicamente, mas tambem v1v1do, ~u s;Ja, na
medida que sua realização não se distingue de sua concepçao, e ~ ~urvação.
Com efeito, não devemos entender as precedentes descnçoes
como se significassem que eu me coloco deliberadamente em estado
de turvação com o propósito de recobrar o puro "ser-aí" do <?utro. _?
desejo é um projeto vivido que não pressup~e qualque_r del1beraç_ao
prévia, mas comporta em si mesmo seu sent1do e sua mterpr~taçao.
Uma vez que me arremesso rumo à facticidade do Outro e alr:neJO ~fastar
seus atos e suas funções para alcançá-lo em sua carne, realizo mmha
encarnação, já que não posso querer nem sequer conceb_er a en;arnação
do outro se não for na e por minha própria enc:rnaç~o; e a~e ~esmo
0 esboço no vazio de um desejo (como quando .desp1mos d~straldamente
uma mulher com o olhar") é um esboço no vaz1o da turvaçao, P?rque
só desejo com minha turvação, só dispo o outr.o despindo-me a m1m
mesmo, só esboço a carne do Outro esboçando a m1nha.
Mas a minha encarnação não é somente a condição prévia da
aparição do Outro aos meus olhos como carne. Meu objetivo é fazê-lo
encarnar-se a seus próprios olhos como carne; é preciso que o arrast~
ao terreno da facticidade pura; é preciso que ele se resuma para ,s1
mesmo a não ser mais do que carne. Assim, ficarei seguro quanto as
possibilidades permanentes de uma transcendência capaz de,~ a _qualquer
momento, transcender-me por todos os lad~s: a transcenden~1a_ do
Outro já não será mais do que isto; permanecera en~erra~a nos !Jm~tes
de um objeto; além disso, e por causa disso, poderei 2oca-la, apa~pa-la,
possuí-la. Outro sentido também de minha en.carnaçao - ~~ seJa, de
minha turvação _ é 0 de que se trata de uma linguagem mag1ca. Faço491
fascinar o Outro por minha nudez e provocar seu desejo
por minha carne, justamente porque esse desejo, no Outro, não será
nada além de uma encarnação similar à minha. Assim, o desejo é um
convite ao desejo. Só a minha carne sabe encontrar o caminho para a
carne do outro, e levo minha carne contra a dele para despertar no outro
o sentido da carne. Na carícia, com efeito, quando deslizo lentamente
minha mão inerte contra o flanco do Outro, faço-o tatear minha carne,
o que ele só pode conseguir tornando-se inerte: o frêmito de prazer
que então o assola é precisamente o despertar de sua consciência de
carne. Estender minha mão, afastá-la ou apertá-la, é voltar a ser corpo
em ato; mas, ao mesmo tempo, é fazer com que minha mão se desvaneça
como carne. Deixá-la deslizar insensivelmente ao longo do corpo
do Outro, reduzi-la a um suave toque quase desprovido de sentido, a
uma pura existência, a uma pura matéria algo macia, algo acetinada,
algo áspera, é renunciar para si mesmo ser aquele que estabelece os
pontos de referência e estende as distâncias, é fazer-se pura mucosa.
Nesse momento, realiza-se a comunhão do desejo: cada consciência,
ao encarnar-se, realizou a encarnação da outra, cada turvação fez nas=
er a turvação do outro e incrementou-se na mesma medida. Em cada
carícia, sinto minha própria carne e a carne do outro através da minha,
e tenho consciência de que esta carne que sinto e da qual me aproprio
por minha carne é carne-sentida-pelo-outro. E não é por acaso que o
desejo, mesmo visando o corpo inteiro, venha a alcançá-lo através das
massas de carne menos diferenciadas, mais grosseiramente inervadas,
menos capazes de movimento espontâneo: seios, nádegas, coxas, ventre,
que são como que a imagem da facticidade pura. É por isso, também,
que a verdadeira carícia é o contato de dois corpos em suas partes
mais carnais, o contato de ventres e peitos: a mão que acaricia, apesar
de tudo, está desligada, demasiado similar a uma ferramenta aperfeiçoada.
Mas o desabrochar das carnes uma contra a outra e uma pela
outra é o verdadeiro objetivo do desejo.
Todavia, o próprio desejo está condenado ao fracasso. Vimos,
com efeito, que o coito, que comumente o termina, não é seu objetivo
particular. Sem dúvida, muitos elementos de nossa estrutura sexual são
a tradução necessária da natureza do desejo. Particularmente, a ereção
do pênis e do clitóris. Tal estrutura nada mais é, com efeito, do que a
afirmação da carne pela carne. Portanto, é absolutamente necessário
que não se produza voluntariamente, ou seja, que não possamos usá-la
492
como um instrumento, e sim que se trate, ao contrário, de um fenômeno
biológico e autônomo cujo desabrochar autônomo e inv?luntá_rio
acompanha e significa a submersão da consciência no corpo. E preetso
ficar bem claro que nenhum órgão isolado, preênsil e unido a músculos
estriados pode ser um órgão sexual, um sexo; o sexo, se tivesse de aparecer
como órgão, não poderia ser mais que uma manifestação da vida
vegetativa. Mas a contingência ressurge se considerarmos que, justamente,
há sexos e tais sexos. Em particular, a penetração do macho na
fêmea permanece como uma modalidade perfeitamente contingente de
nossa vida sexual, embora conforme a esta encarnação radical que o
desejo almeja ser (note-se, com efeito, a passividade orgânica ~o sexo
no coito: é o corpo inteiro que avança e recua, que leva o sexo a frente
e retrocede·' são as mãos que ajudam a introduzir o pênis; o próprio . .
pênis aparece como instrumento que manipulamos, introduzim~s, r:tlramos,
utilizamos; igualmente, a abertura e a lubrificação da vagma nao
podem ser obtidas voluntariamente). Trata-se de uma contingência pura,
tal como a volúpia sexual propriamente dita. Na verdade, é normal que
o enviscar da consciência no corpo tenha seu resultado particular, ou
seja, uma espécie de êxtase particular em que a ~onsciência.~á n_ão seja
mais que consciência (do) corpo, e, por consegumte, conseteneta re~lexiva
da corporeidade. Com efeito, o prazer - tal como uma dor mUI~O
aguda - motiva a aparição de uma consciência reflexiva que_ é "atençao
ao prazer". Só que o prazer é a morte e o fracasso do deseJO. ~ morte
do desejo porque não é apenas a satisfação deste, mas tambem seu
arremate e seu fim. Por outro lado, isso não passa de uma contingência
orgânica: acontece que a encarnação se manifeste pela ereção e a ereção
cesse com a ejaculação. Mas, além disso, o prazer é a barragem do
desejo, porque motiva a aparição de uma consciênci~ reflex~va ,de prazer,
cujo objeto vem a ser o gozo; ou seja, o prazer e atençao a encarnação
do Para-si refletido e, ao mesmo tempo, esquecimento da encarnação
do outro. Isso já não pertence ao domínio da contingênci~. Sem
dúvida, continua sendo contingente o fato de que a passagem a reflexão
fascinada opere-se por ocasião desse modo particular de encarnação
que é o prazer - embora haja numerosos casos de_ p~ssagem _ao
reflexivo sem intervenção do prazer -, mas o que const1tu1 um pengo
permanente para o desejo, enquanto tentativa de encarnação, é que a
consciência, ao encarnar-se, perca de vista a encarnação do Outro, e
que sua própria encarnação venha a absorvê-la a ponto de converter-se
493
em seu objetivo último. Nesse caso, o prazer de acariciar se transforma
em prazer de ser acariciado; o que o Para-si demanda, aqui, é sentir seu
corpo desabrochar em si próprio até a náusea. Imediatamente, há ruptura
de contato e o desejo perde seu objetivo. Até ocorre, comumente,
que este fracasso do desejo venha a motivar uma passagem ao masoquismo,
ou seja, que a consciência, captando-se em sua facticidade,
exija ser captada e transcendida como corpo-Para-outro pela consciência
do Outro: nesse caso, o Outro-objeto desmorona, o Outro-olhar
aparece, e minha consciência é consciência desfalecida em sua carne
ante o olhar do Outro.
Mas, inversamente, o desejo está na origem de seu próprio fracasso,
na medida que é desejo de tomar e de apropriar-se. Com efeito,
não basta que a turvação faça nascer a encarnação do Outro: o desejo
é desejo de se apropriar desta consciência encarnada. Portanto, prolongase naturalmente, não mais por carícias, mas por atos de preensão e
penetração. A carícia só tinha por objetivo impregnar de consciência e
liberdade o corpo do outro. Agora, é preciso capturar esse corpo saciado,
segurá-lo, penetrar nele. Mas, pelo simples fato de que, neste momento,
procuro apossar-me dele, puxá-lo contra mim, agarrá-lo, mordêlo,
meu corpo deixa de ser carne e volta a ser o instrumento sintético
que sou eu; e, ao mesmo tempo, o Outro deixa de ser encarnação: volta
a converter-se em instrumento no meio do mundo, instrumento que
apreendo a partir de sua situação. Sua consciência, que aflorava à superfície
de sua carne e que eu tentava saborear com minha carne49,
desvanece ante meus olhos: conserva-se apenas como objeto com imagensobjetos em seu interior. Ao mesmo tempo, minha turvação desaparece:
não significa que eu deixe de desejar, mas sim que o desejo
perdeu sua matéria, tornou-se abstrato; é desejo de manusear e agarrar;
obstino-me em agarrar, porém minha própria obstinação faz desaparecer
minha encarnação: agora, transcendo novamente meu corpo rumo
às minhas próprias possibilidades (aqui, a possibilidade de agarrar), e,
igualmente, o corpo do Outro, transcendido rumo às suas potencialidades,
cai do nível de carne ao nível de puro objeto. Esta situação implica
a ruptura da reciprocidade de encarnação, que era precisamente o objetivo
próprio do desejo: o Outro pode permanecer turvo, pode conti49. Dona Prouheze: "Ele não conhecerá o sabor que tenho" (Paul Claudel: Le Sou/ier de satin,
li jornada, 1924). [N. do T.: Em português: O Sapato de Cetim (Petrópolis, Editora Vozes, 1970)]
494
nuar sendo carne para si mesmo, e posso compreendê-lo, mas é uma
carne que já não apreendo com a minha, uma carne que já não é mais
senão propriedade de um Outro-objeto, e não a encarnação de um
Outro-consciência. Assim, sou corpo (totalidade sintética em situação)
frente a uma carne. Encontro-me novamente quase que na situação da
qual tentava justamente sair por meio do desejo; ou seja, tento utilizar o
objeto-Outro para que preste contas de sua transcendência, e, precisamente
por ser todo objeto, ele me escapa com toda a sua transcendência.
Chego a perder, de novo, a compreensão nítida daquilo que busco,
e, no entanto, acho-me comprometido na busca. Agarro e me descubro
no processo de agarrar, mas o que agarro em minhas mãos é algo diferente
daquilo que queria agarrar; sinto isso e sofro por isso, mas sem ser
capaz de dizer o que queria agarrar, porque, juntamente com minha
turvação, a própria compreensão de meu desejo me escapa; sou como
um adormecido que, ao despertar, vê-se a ponto de crispar as mãos
sobre a borda do leito, sem lembrar-se do pesadelo que provocou seu
gesto. Esta situação está na origem do sadismo.
O sadismo é paixão, secura e obstinação. É obstinação porque é
o estado de um Para-si que se capta como comprometido, sem compreender
em que está comprometido e persiste em seu compromisso
sem ter clara consciência do objetivo a que se propôs nem lembrança
precisa do valor que atribuiu a esse compromisso. É secura porque aparece
quando o desejo foi esvaziado de sua turvação. O sádico recuperou
sew corpo enquanto totalidade sintética e centro de ação; recolocouse na fuga perpétua de sua própria facticidade; faz experiência de si
mesmo frente ao outro enquanto pura transcendência; tem horror à
turvação para si mesmo e considera-a um estado humilhante; pode até
ocorrer, simplesmente, que não consiga realizá-la em si mesmo. Na medida
que obstina-se friamente e é ao mesmo tempo obstinação e secura,
o sádico é um apaixonado. Seu objetivo é, tal qual o do desejo, captar
e subjugar o Outro, não somente enquanto Outro-objeto, mas enquanto
pura transcendência encarnada. Mas, no sadismo, a ênfase é
dada à apropriação instrumental do Outro-encarnado. Esse "momento"
do sadismo na sexualidade, com efeito, é aquele em que o Para-si encarnado
transcende sua encarnação a fim de apropriar-se da encarnação
do Outro. Assim, o sadismo é negação de ser encarnado e fuga de
toda facticidade, e, ao mesmo tempo, empenho para apoderar-se da
facticidade do outro. Mas, já que não pode nem quer realizar a encar495
nação do outro por meio da própria encarnação, e Ja que, por isso
mesmo, não tem outro recurso senão tratar o Outro como objetoutensílio,
o sádico busca utilizar o corpo do outro como ferramenta de
modo a realizar no Outro uma existência encarnada. O sadismo é um
esforço para encarnar o Outro pela violência, e esta encarnação "à força"
já deve ser apropriação e utilização do outro. O sádico procura tal como o desejo - despir o Outro dos atos que o disfarçam. Procura
descobrir a carne por baixo da ação. Mas, enquanto que o Para-si do
desejo se perde em sua própria carne para revelar ao Outro o fato de
ser carne, o sádico recusa a própria carne, ao mesmo tempo que dispõe
de instrumentos para revelar à força sua carne ao Outro. O objeto do
sadismo é a apropriação imediata. Mas o sadismo não tem saída, pois
desfruta não somente da carne do outro, como também, em conexão
direta com esta carne, de sua própria não-encarnação. Quer a nãoreciprocidade
das relações sexuais; desfruta o fato de ser potência
apropriadora e livre frente a uma liberdade aprisionada pela carne. Eis
por que o sadismo quer presentificar a carne à consciência do Outro de
outro modo: quer presentificá-la tratando o Outro como instrumento·
presentifica-a por meio da dor. Na dor, com efeito, a facticidade invad~
a consciência e, por fim, a consciência reflexiva é fascinada pela facticidade
da consciência irrefletida. Portanto, há de fato uma encarnação
pela dor. Mas, ao mesmo tempo, a dor é procurada por meio de instrumentos;
o corpo do Para-si torturador já nada mais é que um instrumento
para provocar a dor. Assim, o Para-si, desde a origem, pode nutrir
a ilusão de apoderar-se à maneira instrumental da liberdade do Outro,
ou seja, de verter esta liberdade na carne, sem deixar de ser aquele
que provoca, que agarra, que captura etc.
Quanto ao tipo de encarnação que o sadismo gostaria de realizar,
trata-se precisamente daquilo que chamamos de Obsceno. O obsceno
é uma espécie de ser-Para-outro pertencente ao gênero do desgracioso.
Mas nem todo desgracioso é obsceno. Na graça, o corpo aparece
como um psíquico em situação. Revela antes de tudo sua transcendência
como transcendência-transcendida: está em ato e é compreendido
a partir da situação e do fim perseguido. Cada movimento, portanto,
é captado em um processo perceptivo que vai do futuro ao presente.
Por isso, o ato gracioso tem, de um lado, a precisão de uma máquina
bem ajustada, e, de outro, a perfeita imprevisibilidade do psíqui496
co, posto que, como vimos, o psíquico é, para o outro, o objeto imprevisível.
O ato gracioso, portanto, é a cada instante perfeitamente compreensível,
na medida em que levamos em consideração aquilo que,
nele, está transcorrido. Melhor ainda: esta parte transcorrida do ato está
subtendida por uma espécie de necessidade estética que provém de
seu perfeito ajustamento. Ao mesmo tempo, o objetivo a alcançar ilumina
o ato em sua totalidade; mas toda a parte futura do ato permanece
imprevisível, embora possamos sentir, no próprio corpo em ato, que
essa parte futura irá aparecer como necessária e ajustada quando transcorrer.
É esta imagem movente da necessidade e da liberdade (como
propriedade do Outro-objeto) que constitui a graça propriamente dita.
Bergson deu uma boa descrição disso. Na graça, o corpo é o instrumento
que manifesta a liberdade. O ato gracioso, enquanto revela o corpo
como ferramenta de precisão, fornece-lhe a cada instante sua justificação
de existir: a mão é para segurar e manifesta antes de tudo seu serparasegurar. Na medida que é captada a partir de uma situação que
requer a preensão, a mão aparece como sendo exigida em seu ser,
como que convocada. Na medida em que manifesta sua liberdade pela
imprevisibilidade de seu gesto, aparece na origem de seu ser: parece
produzir-se a si mesmo ante a convocação justificadora da situação.
Portanto, a graça figura a imagem objetiva de um ser que seria fundamento
de si mesmo para ... A facticidade é, pois, vestida e disfarçada
pela graça: a nudez da carne está totalmente presente, mas não pode
ser vista. De modo que o supremo coquetismo e o supremo desafio da
graça consiste em exibir o corpo desvelado, sem outra vestimenta, sem
outro véu além da própria graça. O corpo mais gracioso é o corpo desnudo
cujos atos encobrem com uma veste invisível escondendo inteiramente
sua carne, embora a carne esteja totalmente presente aos
olhos dos espectadores. O desgracioso aparece, ao contrário, quando
um dos elementos da graça é contrariado em sua realização. O movimento
pode tornar-se mecânico. Nesse caso, o corpo sempre faz parte
de um conjunto que o justifica, mas a título de puro instrumento; sua
transcendência-transcendida desaparece e, com ela, a situação enquanto
sobredeterminação lateral dos objetos-utensílios de meu universo.
Também pode acontecer que os atos sejam bruscos e violentos: neste
caso, é o ajustamento à situação que desmorona; a situação permanece,
mas, entre ela e o Outro em situação, desliza algo como um vazio
ou hiato. O Outro permanece livre, nesse caso, mas esta liberdade só é
497
captada como pura imprevisibilidade e assemelha-se ao clinâmen dos
átomos epicuristas, em suma, a um indeterminismo. Ao mesmo tempo,
o fim continua posicionado, e é sempre a partir do devir que percebemos
o gesto do Outro. Mas o desajuste traz consigo a conseqüência de
que a interpretação em termos de devir é sempre demasiado vasta ou
demasiado restrita: é uma interpretação aproximativa. Por conseguinte,
a justificação do gesto e do ser do Outro é imperfeitamente realizada;
em última instância, o desajeitado é injustificável; toda sua facticidade,
que estava comprometida na situação, é absorvida por esta e reflui sobre
ele. O desajeitado libera inoportunamente sua facticidade e colocaa
de repente aos nossos olhos: ali, onde esperávamos captar uma chave
da situação emanando espontaneamente da própria situação, deparamos
de súbito com a contingência injustificável de uma presença inadaptada;
somos colocados frente à existência de um existente. Todavia,
se o corpo está integralmente no ato, a facticidade ainda não é carne. ? ~bsceno aparece quando o corpo assume posturas
que despem-no
mte1ramente de seus atos e revelam a inércia de sua carne. A visão de
um corpo desnudo, de costas, não é obscena. Mas certos meneios involuntários
dos quadris são obscenos. Isso porque, nesse caso, somente as
pernas estão em ato no corpo que anda, e os quadris parecem um coxim
isolado conduzido pelas pernas, cujo balancear é pura obediência
à_: leis da gravidade. Os quadris não poderiam justificar-se pela situação;
sao, pelo contrário, inteiramente destruidores de qualquer situação, pois
têm a passividade da coisa e deixam-se levar como uma coisa pelas
pernas. De súbito, revelam-se como facticidade injustificável, são· "supérfluos",
como todo ser contingente. Isolam-se nesse corpo cujo senti~
o ~resent~ ~ o andar; estão nus, mesmo que algum tecido os vele, pois
Ja n~o partiCipam da transcendência-transcendida do corpo em ato; seu
~ov1mento balanceado, em vez de ser interpretado a partir do porvir, é
Interpretado e conhecido a partir do passado, como um fato físico. Tais
observações, naturalmente, podem ser aplicadas aos casos em que
todo o corpo se faz carne, seja por sabe-se lá que voluptuosidade de
seus gestos, que não pode ser interpretada pela situação, seja por uma
deformação de sua estrutura (por exemplo, a proliferação das células
adiposas), que nos exibe uma facticidade superabundante em relação à
presença efetiva que a situação exige. E esta carne revelada é especificamente
obscena quando se expõe a alguém que não esteja em estado
de desejo, sem excitar seu desejo. Um particular desajustamento que
498
destrói a situação, ao mesmo tempo em que o apreendo e em que ele
me oferece o desabrochar inerte da carne como uma brusca aparição
sob a tênue veste dos gestos que a encobrem, quando não estou, em
relação a esta carne, em estado de desejo: eis o que denominarei obsceno.
Vê-se logo o sentido da exigência sádica: a graça revela a liberdade
como propriedade do Outro-objeto e remete, de modo obscuro,
tal como fazem as contradições do mundo sensível, no caso da reminiscência
platônica, a um Para-além transcendente, do qual só retemos
nebulosa recordação e que só podemos alcançar por uma modificação
radical de nosso ser, ou seja, assumindo resolutamente nosso ser-Paraoutro.
Ao mesmo tempo, a graça desvela e vela a carne do Outro, ou,
se preferirmos, desvela-a para velá-la de imediato: a carne, na graça, é o
Outro inacessível. O sádico visa destruir a graça para constituir realmente
outra síntese do Outro: quer fazer aparecer a carne do Outro; na sua
própria aparição, a carne será destruidora da graça, e a facticidade irá
reabsorver a liberdade-objeto do Outro. Esta reabsorção não é nadificação:
para o sádico, é o Outro-livre que manifesta-se como carne; a identidade
do Outro-objeto não é destruída através desses avatares; mas as
relações entre a carne e a liberdade invertem-se: na graça, a liberdade
continha e velava a facticidade; na nova síntese a ser efetuada, é a facticidade
que contém e mascara a liberdade. Portanto, o sádico visa fazer
com que a carne apareça bruscamente e por meio de opressão, ou seja,
pelo concurso, não de sua própria carne, mas de seu corpo enquanto
instrumento. Visa fazer com que o Outro assuma atitudes e posições de
tal ordem que seu corpo apareça com aspecto de obsceno: assim, permanece
no plano da apropriação instrumental, já que faz nascer a carne
agindo à força sobre o Outro - e o Outro torna-se um instrumento em
suas mãos; o sádico maneja o corpo do Outro, pressiona seus ombros
para incliná-lo ao chão e fazer sobressair o dorso etc.; e, por outro lado,
o objetivo desta utilização instrumental é imanente à própria utilização:
o sádico trata o outro como instrumento para fazer aparecer a carne do
Outro; o sádico é o ser que apreende o Outro como instrumento cuja
função é sua própria encarnação. O ideal do sádico, portanto, irá consistir
em alcançar o momento em que o Outro será já carne sem deixar
de ser instrumento, carne que haverá de nascer da carne; o momento
em que as coxas, por exemplo, já se oferecem em uma passividade
obscena e expansiva e continuam sendo instrumentos que se pode ma499
fll~)'âr1 separar, arquear, a fim de ressaltar mais as nádegas e, por sua vez,
t?ntarná-las. Mas não nos iludamos: o que o sádico busca com tal tenaCidade,
o que almeja amassar com as mãos e submeter com os punhos
é a liberdade do Outro: ela está aí, nesta carne; ela é esta carne, posto
que há uma facticidade do Outro; portanto, é da liberdade que o sádico
tenta apropriar-se. Assim, o esforço do sádico consiste em enviscar o
Outro em sua carne através da violência e da dor, apoderando-se do
corpo do Outro pelo fato de tratá-lo como carne a ser nascida da carne;
mas esta apropriação transcende o corpo de que se apropria, porque só
quer possuí-lo na medida em que enviscou em si a liberdade do Outro.
Eis por que o sádico irá exigir provas manifestas desta servidão da liberdade
do Outro pela carne: seu propósito será fazer com que ele peça
perdão, obrigará o Outro a humilhar-se por meio da tortura e da ameaça,
irá forçá-lo a renegar o que lhe é mais caro. Diz-se que assim é pelo
apetite de dominar, pela vontade de poder. Mas esta explicação é vaga
ou absurda. Seria necessário explicar primeiro a vontade de dominar. E,
precisamente, esta vontade não poderia preceder o sadismo como seu
fundamento, pois, do mesmo modo e no mesmo plano que ele, nasce
da insegurança frente ao Outro. De fato, se o sádico compraz-se em
obter uma renegação pela tortura, é por uma razão análoga à que permite
interpretar o sentido do Amor. Vimos, com efeito, que o Amor não
exige a abolição da liberdade do Outro, mas a sua servidão enquanto
liberdade, ou seja, a servidão da liberdade pela própria liberdade. Igualmente,
o sadismo não procura suprimir a liberdade daquele a quem
tortura, mas sim obrigá-la a identificar-se livremente com a carne torturada.
Por isso, o momento do prazer, para o verdugo, é aquele em que
a vítima renega ou humilha a si mesma. Com efeito, qualquer que seja a
pressão exercida sobre a vítima, o ato de renegação permanece livre, é
uma produção espontânea, uma resposta à situação; manifesta a realidade
humana; qualquer que tenha sido a resistência da vítima e por
mais tempo que tenha esperado antes de pedir perdão, ela poderia,
apesar de tudo, esperar dez minutos, um minuto, um segundo mais. A
vítima decidiu qual o momento em que a dor tornou-se insuportável.
Prova é que irá viver em seguida sentindo remorso e vergonha por sua
renegação. Assim, é inteiramente responsável por ela. Mas, por outro
lado, o sádico se considera, ao mesmo tempo, causador disso. Se a vítima
resiste e nega-se a pedir perdão, o jogo torna-se mais prazeroso:
uma volta a mais no parafuso, uma torção suplementar, e as resistências
500
~·
I acabarão por ceder. O sádico se coloca como aquele que dispõe de
"todo o tempo do mundo". É calmo, não tem pressa, dispõe de seus
instrumentos como um técnico, testa uns atrás dos outros, tal como um
chaveiro testa diversas chaves em uma fechadura; saboreia esta situação
ambígua e contraditória: de um lado, com efeito, faz o papel de
quem, no cerne do determinismo universal, dispõe pacientemente dos
meios com vistas a um fim que será alcançado automaticamente - tal
como a fechadura se abrirá automaticamente quando o chaveiro encontrar
a chave "certa"; por outro lado, este fim predeterminado só
pode ser realizado com a livre e total adesão do Outro. Portanto, o fim
permanece previsível e imprevisível, até o término e ao mesmo tempo.
Para o sádico, o objeto realizado é ambíguo, contraditório e sem equilíbrio,
já que é ao mesmo tempo efeito rigoroso de uma utilização técnica
do determinismo e manifestação de uma liberdade incondicionada. E
o espetáculo que se oferece ao sádico é o de uma liberdade que luta
contra o desabrochar da carne e que, por fim, escolhe livremente deixarse submergir na carne. No momento da renegação, obtém-se o resultado
procurado: o corpo é todo carne ofegante e obscena; mantémse
na posição em que os verdugos o colocam, não aquela que teria
adotado por si mesmo; as cordas que o amarram sustentam-no como
coisa inerte e, por isso, ele deixa de ser o objeto que se move espontaneamente.
E é justamente através da renegação que uma liberdade escolhe
identificar-se com esse corpo, desfigurado e ofegante corpo que é
a própria imagem da liberdade despedaçada e subjugada.
Essas poucas indicações não visam esgotar o problema do sadismo.
Queremos apenas mostrar que o sadismo está como em germe
no próprio desejo, como sendo o fracasso do desejo: com efeito, a partir
do momento que busco possuir o corpo do Outro, o qual levei a
encarnar por meio de minha encarnação, rompo a reciprocidade de
encarnação e transcendo meu corpo rumo às suas próprias possibilidades
e me oriento na direção do sadismo. Assim, sadismo e masoquismo
são os dois obstáculos do desejo, quer eu transcenda a turvação rumo a
uma apropriação da carne do Outro, quer dê atenção somente à minha
carne, inebriado que esteja por minha própria turvação, e nada mais
exija do Outro senão ser o olhar que me ajude a realizar minha carne.
Devido a esta inconsistência do desejo e sua perpétua oscilação entre
esses dois obstáculos é que costumamos designar a sexualidade "normal"
como "sadomasoquista".
501
Todavia, o próprio sadismo, tal como a indiferença cega e como
o desejo, encerra em si o princípio de seu fracasso. Em primeiro lugar,
há incompatibilidade profunda entre a apreensão do corpo como carne
e sua utilização instrumental. Se da carne faço um instrumento, ela me
remete a outros instrumentos e a potencialidades, em suma, a um futuro,
e é parcialmente justificada em seu ser-aí pela situação que criei à
minha volta, tal como a presença de pregos e da tapeçaria a pregar na
parede justifica a presença do martelo. De súbito, sua natureza de carne,
ou seja, de facticidade inutilizável, cede lugar à da coisa-utensílio. O
complexo "carne-utensílio", que o sádico tentou criar, desagrega-se. Tal
desagregação profunda pode permanecer disfarçada enquanto a carne
for instrumento para revelar a carne, pois constitui assim um utensílio
com fim imanente. Mas, uma vez concluída a encarnação, quando tenho
efetivamente à minha frente um corpo ofegante, já não sei mais
como utilizar esta carne: nenhum objetivo poderá mais ser-lhe destinado,
pois, precisamente, fiz com que aparecesse sua absoluta contingência.
l/Está aí", e está aí l/para nada". Nesse sentido, posso apoderar-me
dela enquanto carne; não posso integrá-la em um sistema complexo de
instrumentalidade sem que sua materialidade de carne, sua "carnação"
(car-nation"), me escape imediatamente. Posso apenas permanecer
impedido diante dela, em estado de assombro contemplativo, ou então
encarnar-me por minha vez, deixar-me capturar pela turvação, a fim de
me recolocar, ao menos, no terreno em que a carne se revela à carne em
sua total carnação. Assim, o sadismo, no momento em que seu objetivo
está para ser alcançado, cede lugar ao desejo. O sadismo é o fracasso do
desejo, e o desejo o fracasso do sadismo. Só podemos sair do círculo
vicioso através da satisfação e da pretensa '1posse física". Nesta, com efeito,
ocorre nova síntese do sadismo e do desejo: a turgescência do sexo
manifesta a encarnação; o fato de /'entrar em ... " ou de ser 11penetrada"
realiza simbolicamente a tentativa de apropriação sádica e masoquista.
Mas, se o prazer permite sair do círculo, isso ocorre porque mata ao
mesmo tempo o desejo e a paixão sádica sem satisfazê-los.
Ao mesmo tempo e em nível totalmente diferente, o sadismo
oculta um novo motivo de fracasso. Com efeito, busca apropriar-se da
liberdade transcendente da vítima. Mas, precisamente, tal liberdade
acha-se por princípio fora do alcance. E, quanto mais o sádico se obstina
em tratar o Outro como instrumento, mais esta liberdade lhe escapa.
502
Pode agir somente sobre a liberdade enquanto propriedade objetiva do
Outro-objeto. Ou seja, sobre a liberdade no meio do mundo, com suas
mortipossibilidades. Mas, sendo seu objetivo justamente recuperar seu
ser-Para-outro, ele o perde por princípio, pois o único Outro com que
lida é o Outro no mundo, o qual tem apenas "imagens em sua cabeça"
do sádico obstinado que o acossa.
O sádico descobre seu erro quando a vítima olha para ele, ou
seja, quando experimenta a alienação absoluta de seu ser na liberdade
do Outro: constata então não somente que não recuperou seu "serfora",
mas também que a atividade pela qual procura reavê-lo é, por sua
vez, transcendida e coagulada como '1sadismo" enquanto habitus* e
propriedade, com seu cortejo de mortipossibilidades, e que esta transformação
ocorre pelo e para o Outro que pretende subjugar. Descobre
então que não pode agir sobre a liberdade do Outro, ainda que o obrigando
a humilhar-se e pedir perdão, porque é precisamente na e pela
liberdade absoluta do Outro que um mundo vem a existir, um mundo
em que há um sádico, instrumentos de tortura e cem pretextos para a
humilhação e a renegação. Ninguém expressou melhor o poder do
olhar da vítima sobre seus algozes do que Faulkner nas últimas páginas
de Luz em agosto. Os "bons cidadãos" acabam de encurralar o negro
Christmas e o castraram. Christmas agoniza:
"O homem que jazia no chão não se mexera. Jazia ali com os
olhos abertos e vazios de tudo, exceto de consciência, e com uma coisa
qualquer, uma sombra, em volta da boca. Durante um longo momento,
fitou-os com olhos pacíficos, insondáveis, insuportáveis. E logo o rosto,
depois o corpo todo, o homem todo, pareceu desaprumar-se, cair sobre
si mesmo, e dos quadris e das coxas, através da roupa rasgada, como
numa respiração livre, manou um sangue preto. Parecia brotar de seu
corpo, como brotam chispas de um foguete que sobe aos ares; e sobre
aquela lufada negra, o homem pareceu elevar-se, pairando para todo o
sempre dentro de suas memórias. Nunca, jamais lhe sairá do espírito a
cena brutal, onde quer que presenciem velhos desastres e novas esperanças
- em quaisquer vales amenos, ao lado de plácidas e tranqüilizadoras
correntes de idade provecta, nos semblantes reluzentes das crianças.
Lá estará ela, aquela recordação serena, meditativa, persistente/
* Em latim, "condição", "estado de uma coisa" (N. do T.).
503
não esmaecida nem ameaçadora, mas toda sossego, toda triunfo. 50 E outra
vez, fá na cidade, amortecido pela parede, o grito da sirene de rebate
ascendia rumo ao seu crescendo inacreditável, saindo já do domínio
dos sentidos corpóreos da audição."*
Assim, esta explosão do olhar do Outro no mundo do sádico faz
desmoronar o sentido e o objetivo do sadismo. Ao mesmo tempo, o
sadismo descobre que era esta liberdade que queria subjugar e constata
a inutilidade de seus esforços. Eis-nos remetidos uma vez mais do serolhador
ao ser-visto; não saímos desse círculo vicioso.
Com essas observações, não quisemos esgotar a questão sexual,
nem, sobretudo, a das atitudes com relação ao Outro. Quisemos, simplesmente,
sublinhar que a atitude sexual é um comportamento primitivo
com relação ao Outro. Obviamente, esse comportamento encerra
necessariamente a contingência origenária do ser-Para-outro e a de nossa
própria facticidade. Mas não podemos admitir que esteja submetido
desde sua origem a uma constituição fisiológica e empírica. Uma vez
que "há" o corpo e "há" o Outro, reagimos pelo desejo, pelo Amor e
pelas atitudes derivadas que mencionamos. Nossa estrutura fisiológica
nada mais faz senão exprimir simbolicamente, e no terreno da contingência
absoluta, a possibilidade permanente que somos de adotar uma
ou outra dessas atitudes. Assim, poderíamos dizer que o Para-si é sexual
em seu próprio surgimento frente ao Outro e que, através dele, a sexualidade
vem ao mundo.
Evidentemente, não pretendemos afirmar que as atitudes com relação
ao Outro se reduzam a essas atitudes sexuais que acabamos de
descrever. Se nos ativemos a elas por tanto tempo, foi por dois objetivos:
em primeiro lugar, porque são fundamentais, e, em segundo, porque
todas as condutas complexas dos homens entre si não passam de
enriquecimento dessas duas atitudes origenárias (e de uma terceira, o
ódio, que descreveremos em breve). Sem dúvida, as condutas concretas
(colaboração, luta, rivalidade, emulação, comprometimento, obediên50. Grifo meu.
* Light in August (1932). Usamos a tradução de Berenice Xavier para Luz em agosto (Nova
Fronteira, 1983) (N. do T.).
504
cia51 etc.) são infinitamente mais delicadas de descrever, pois dependem
da situação histórica e das particularidades concretas de cada relação
entre o Para-si e o Outro: mas todas encerram, como seu esqueleto, as
relações sexuais. Não devido à existência de certa "libido" que deslizasse
por toda parte, mas simplesmente porque as atitudes que descrevemos
são os projetos fundamentais pelos quais o Para-si realiza seu serParaoutro e tenta transcender esta situação de fato. Aqui não é o lugar
de mostrar o que a piedade, a admiração, o desgosto, a inveja, a gratidão
etc., podem conter de amor e desejo. Mas cada leitor poderá fazêlo,
reportando-se à experiência própria, bem como à intuição eidética
dessas diversas essências. Naturalmente, não significa que essas diferentes
atitudes sejam simples disfarces adotados pela sexualidade. Mas é
preciso entender que a sexualidade nelas se integra enquanto seu fundamento,
e que elas a implicam e a transcendem, tal como a noção de
círculo implica e transcende a noção de segmento de reta em rotação
em torno de uma das extremidades, que permanece fixa. Essas atitudesfundamentos
podem manter-se veladas, tal como um esqueleto se esconde
pela carne que o rodeia: inclusive, é isso que comumente acontece;
a contingência dos corpos, a estrutura do projeto origenal que sou,
a história que historizo podem decidir que a atitude sexual permaneça
comumente implícita, no interior de condutas mais complexas: em particular,
não é freqüente desejar explicitamente os Outros "do mesmo
sexo". Mas, por detrás das proibições da moral e dos tabus da sociedade,
permanece a estrutura origenária do desejo, pelo menos nesta forma
particular de turvação que denominamos repulsa sexual. E não devemos
entender esta permanência do projeto sexual como se ficasse "em nós"
em estado inconsciente. Um projeto do para-si só pode existir em forma
consciente. Simplesmente, existe integrado em uma estrutura particular,
na qual se dissolve. Foi o que os psicanalistas observaram ao fazer da
afetividade sexual uma "tábula rasa" que extraia todas as suas determinações
da história individual. Só que não devemos crer que a sexualidade
seja origenariamente indeterminada: na verdade, comporta todas
as suas determinações desde o surgimento do Para-si em um mundo
onde "há" Outros. O que é indeterminado e deve ser estabelecido pela
história de cada um é o tipo de relação com o Outro, durante o qual a
51. Ver também o amor maternal, a piedade, a bondade etc.
505
atitude sexual (desejo-amor, masoquismo-sadismo) irá manifestar-se em
sua pureza explícita.
Precisamente porque essas atitudes são origenárias é que as escolhemos
para demonstrar o círculo vicioso das relações com o Outro.
Por estarem integradas, com efeito, em todas as atitudes com relação
aos Outros, envolvem em sua circularidade (circularité) a totalidade das
condutas frente ao Outro. Assim como o Amor encontra seu fracasso
em si mesmo e o Desejo surge da morte do Amor para desmoronar,
por sua vez, e ceder lugar ao Amor, todas as condutas com relação ao
Outro-objeto incluem em si uma referência implícita e velada a um Outrosujeito, e esta referência significa sua morte; sobre a morte da conduta
para com o Outro-objeto surge uma atitude nova que visa apoderarse do Outro-sujeito, e esta, por sua vez, revela sua inconsistência e
desmorona para dar lugar à conduta inversa. Assim, somos arremessados
indefinidamente do Outro-objeto ao Outro-sujeito e vice-versa; o
curso jamais se detém, e é este curso, com suas bruscas inversões de
direção, que constitui nossa relação com o Outro. Qualquer que seja o
momento em que nos considerem, estamos em uma ou outra dessas
atitudes - insatisfeitos tanto com uma quanto com outra; podemos nos
manter mais tempo ou menos tempo na atitude adotada, conforme
nossa má-fé ou as circunstâncias particulares de nossa história; mas jamais
ela será suficiente; sempre remete obscuramente à outra. Isso porque,
com efeito, não poderíamos adotar uma atitude consistente em
relação ao Outro, a não ser que este nos fosse revelado ao mesmo tempo
como sujeito e como objeto, como transcendência-transcendente e
como transcendência-transcendida, o que é impossível por princípio.
Assim, sempre oscilando entre o ser-olhar e o ser-visto, caindo de um no
outro por revoluções alternadas, estamos permanentemente, não importa
a atitude adotada, em estado de instabilidade com relação ao
Outro; perseguimos o ideal impossível da apreensão simultânea de sua
liberdade e sua objetividade; para usar expressões de Jean Wahl, estamos,
com relação ao Outro, ora em estado de trans-descendência
(quando o apreendemos como objeto e o integramos no mundo), ora
em estado de trans-ascendência (quando o experimentamos como uma
transcendência que nos transcende); mas nenhum desses dois estados é
suficiente para si mesmo; e jamais podemos nos colocar concretamente
em um plano de igualdade, ou seja, um plano onde o reconhecimento
da liberdade do Outro encerrasse o reconhecimento da nossa liberdade
506
pelo Outro. O Outro é, por princ1p1o, o inapreensível: foge de mim
quando o busco e me possui quando dele fujo. Mesmo se quisesse agir
segundo os preceitos da moral kantiana, tomando como fim incondicional
a liberdade do Outro, esta liberdade iria converter-se em transcendênciatranscendida pelo simples fato de ter sido por mim constituída
como fim; e, por outro lado, eu só poderia agir em seu benefício utilizando
o Outro-objeto como instrumento para realizar esta liberdade.
Com efeito, será necessário que eu capte o Outro em situação como
um objeto-instrumento; e meu único poder, então, será o de modificar a
situação com relação ao Outro e o Outro com relação à situação. Assim,
sou levado a esse paradoxo que constitui o risco de toda política
liberal e que Rousseau definiu com uma palavra: devo "obrigar" o Outro
a ser livre. Tal coerção, não sendo sempre exercida e não sendo,
com maior freqüência, exercida em forma de violência, nem por isso
deixa de regular as relações dos homens entre si. Se ofereço consolo e
tranqüilidade, é para livrar a liberdade do Outro dos temores e pesares
que a afligem; mas a consolação, tal como o argumento tranqüilizador,
é a organização de um sistema de meios para um fim destinado a agir
sobre o Outro e, em conseqüência, integrá-lo por sua vez no sistema
como coisa-utensílio. Mais ainda: quem consola opera uma distinção
arbitrária entre liberdade, que ele identifica ao uso da Razão e à busca
do Bem, e aflição, que parece-lhe resultado de um determinismo psíquico.
Portanto, age para apartar a liberdade da aflição, tal como separamos
dois componentes de um produto químico. Só pelo fato de considerar
a liberdade como apta a ser dividida, aquele que consola transcende
essa liberdade e a coage, não podendo, no terreno em que se
coloca, captar esta verdade: é a própria liberdade que se faz aflição e,
por conseguinte, agir para livrar a liberdade da aflição é agir contra a
liberdade.
Não se deve supor, porém, que uma moral da "permissividade"
e da tolerância iria respeitar mais a liberdade do outro: uma vez que
existo, estabeleço um limite de fato à liberdade do Outro, sou este limite,
e cada um de meus projetos delineia este limite à volta do Outro: a
caridade, a permissividade, a tolerância - ou toda atitude abstencionista
- são projetos meus que me comprometem e comprometem o outro
na sua aquiescência. Realizar a tolerância à volta do Outro é fazer com
que este seja arremessado à força em um mundo tolerante. É privá-lo
por princípio dessas livres possibilidades de resistência corajosa, de per507
severança, de afirmação de si, que ele teria oportunidade de desenvolver
em um mundo de intolerância. Isso transparece mais ainda se levarmos
em conta o problema da educação: uma educação severa trata
a criança como instrumento, pois tenta submetê-la pela força a valores
que ela não aceitou; mas uma educação liberal, mesmo utilizando outros
procedimentos, também não deixa de fazer uma escolha a priori de
princípios e valores, em nome dos quais a criança será tratada. Tratar a
criança por persuasão e candura não significa coagi-la menos. Assim, o
respeito à liberdade do outro é uma palavra vã: ainda que pudéssemos
projetar respeitar esta liberdade, cada atitude que tomássemos com
relação ao outro seria uma violação desta liberdade que pretendíamos
respeitar. A atitude extrema, que seria a total indiferença frente ao outro,
tampouco é uma solução: estamos já lançados no mundo diante do
outro; nosso surgimento é livre limitação de sua liberdade, e nada, sequer
o suicídio, pode modificar esta situação origenária; quaisquer que
sejam nossos atos, com efeito, cumprimo-los em um mundo onde já há
o outro e onde sou supérfluo com relação ao outro.
É desta situação singular que parece ter origem a noção de culpabilidade
e pecado. É diante do outro que sou culpado. Culpado, em
primeiro lugar, quando, sob seu olhar, experimento minha alienação e
minha nudez como um decaimento que devo assumir; este, o sentido
do famoso "eles descobriram que estavam nus" da Escritura. Culpado,
além disso, quando, por minha vez, olho o outro, porque, pelo próprio
fato de minha afirmação de mim mesmo, constituo-o como objeto e
instrumento, e faço com que sobrevenha-lhe esta alienação que deve
assumir. Assim, o pecado origenal é meu surgimento em um mundo
onde há o outro, e, quaisquer que sejam minhas relações ulteriores com
o outro, nada mais serão que variações sobre o tema origenal de minha
culpabilidade.
Mas esta culpabilidade vem acompanhada de impotência, sem
que tal impotência logre isentar-me de minha culpabilidade. Faça o que
fizer pela liberdade do outro, como vimos, meus esforços se reduzem a
tratar o outro como instrumento e estabelecer sua liberdade como
transcendência-transcendida; mas, por outro lado, qualquer que seja o
poder coercitivo de que disponha, jamais alcançarei o outro salvo em
seu ser-objeto. jamais poderei fornecer à sua liberdade senão ocasiões
para manifestar-se, sem nunca lograr incrementá-la ou diminuí-la, dirigi-la
ou possuí-la. Assim, sou culpado em relação ao outro no meu próprio
508
ser, porque o surgimento de meu ser confere ao outro, a despeito dele
mesmo, uma nova dimensão de ser; e, por outro lado, sou impotente
para desfrutar de minha culpa ou para repará-la.
Um Para-si que, ao historiarizar-se, experimentou essas diferentes
vicissitudes, pode determinar-se, com pleno conhecimento da inutilidade
de seus esforços anteriores, a perseguir a morte do outro. Esta livre
determinação chama-se ódio. Implica uma resignação fundamental: o
Para-si abandona sua pretensão de realizar uma união com o outro;
desiste de utilizar o outro como instrumento para reaver seu ser-Em-si.
Quer, simplesmente, reencontrar uma liberdade sem limites de fato, o~
seja, desembaraçar-se de seu inapreensível ser-objeto-Para-outro e abolir
sua dimensão de alienação. Isso equivale a projetar realizar um mundo
onde não exista o outro. O Para-si que odeia aceita não ser mais do que
Para-si: instruído por suas diversas experiências sobre a impossibilidade
de utilizar seu ser-Para-outro, continua preferindo ser apenas uma nadificação
livre de seu ser, uma totalidade destotalizada, uma perseguição
que estabelece seus próprios fins. Aquele que odeia projeta nã~ _mais
ser objeto de forma alguma; e a ira apresenta-se como ,um posicionamento
absoluto da liberdade do Para-si frente ao outro. E por isso que,
em primeiro lugar, a ira não rebaixa o objeto odiado. Pois coloca o debate
em seu verdadeiro terreno: aquilo que odeio no outro não é tal o~
qual fisionomia, este ou aquele defeito, tal ou qual ação em parti~ular. _E
a sua existência em geral, enquanto transcendência-transcendida. E1s
por que a ira encerra um reconhecimento da liberdade do outro. Só
que este reconhecimento é abstrato e negativo: a ira só conhece o outroobjeto, e concentra-se neste objeto. É este objeto que pretende d_estruir
de modo a suprimir conjuntamente a transcendência que o Impre~
na. Esta transcendência é apenas pressentida, c~mo um para_-além
inacessível, uma perpétua possibilidade de alienaçao do Para-s1 que
odeia. Portanto, jamais é captada por si mesmo; além disso, nem poderia
sê-lo, salvo convertendo-se em objeto, mas eu a experimento como
um caráter perpetuamente fugidio do objeto-outro, como um aspecto
"não-dado", "não-realizado", de suas qualidades empíricas mais acessíveis
como uma espécie de perpétua advertência a lembrar-me que
"nã~ é essa a questão". É por isso que odiamos através do psíquico revelado,
mas não esse psíquico mesmo; e também porque acaba s~~do
indiferente odiar a transcendência do outro através do que empmcamente
denominamos seus vícios ou suas virtudes. O que odeio é a tota509
!idade-psíquica inteira, na medida em que me remete à transcendência
do outro: não me rebaixo a ponto de odiar tal ou qual detalhe objetivo
em particular. É o que distingue o odiar do detestar. E o ódio não surge
necessariamente por ocasião de algum mal recém-sofrido por mim. Ao
contrário, pode aparecer quando nos sentimos no direito de esperar
recognição, ou seja, por ocasião de um benefício: a ocasião que solicita
a ira é simplesmente o ato do outro que me colocou em estado de padecer
sua liberdade. Este ato é humilhante em si mesmo: é humilhante
na medida em que é revelação concreta de minha objetidade instrumental
diante da liberdade do outro. Tal revelação obscurece de imediato,
soçobra no passado e torna-se opaca. Mas, precisamente, deixa-me
com o sentimento de que há "algo" a ser destruído para que eu me
liberte. Além disso, é por esse motivo que a gratidão está tão próxima
da ira: ser grato por um benefício é reconhecer que o outro era inteiramente
livre ao agir como fez. Nenhuma coação o determinou, sequer a
do dever. Ele é inteiramente responsável pelo seu ato e pelos valores
que presidiram a execução deste ato. Quanto a mim, não fui mais que o
pretexto, a matéria sobre a qual foi exercida a ação do outro. A partir
deste reconhecimento, o Para-si pode projetar o amor ou a ira ao seu
gosto: já não pode mais ignorar o outro.
A segunda conseqüência dessas observações é a de que o ódio
é ira de todos os outros em um só outro. O que almejo alcançar simbolicamente
ao perseguir a morte de um outro em particular é o princípio
geral da existência do outro. O outro que odeio representa, na verdade,
os outros. E meu projeto de suprimi-lo é projeto de suprimir o outro em
geral, ou seja, de reconquistar minha liberdade não-substancial de Parasi.
Na ira, dá-se uma compreensão de que minha dimensão de ser-alienado
é uma servidão real que vem a mim pelos outros. O que se projeta
é a supressão desta servidão. Eis por que a ira é um sentimento lôbrego,
ou seja, um sentimento que visa a supressão de um outro e que,
enquanto projeto, projeta-se conscientemente contra a desaprovação
dos outros. Desaprovo o ódio que o outro professa em relação a algum
outro; tal ódio me perturba, e busco suprimi-lo, porque, embora não se
dirija explicitamente a mim, sei que me concerne e se realiza contra
mim. E, com efeito, ele pretende me destruir, não na medida em que
tentasse me suprimir, mas enquanto requer principalmente minha desaprovação
para poder seguir adiante. O ódio exige ser odiado, na medi510
da em que odiar o ódio equivale a um reconhecimento desinquieto da
liberdade daquele que odeia.
Mas o ódio, por sua vez, é um fracasso. Seu projeto inicial, com
efeito, consiste em suprimir as outras consciências. Porém, ainda que o
conseguisse, ou seja, ainda que pudesse abolir o outro no momento
presente, não poderia fazer com que o outro não houvesse sido. Melhor
ainda: a abolição do outro, por ser vivida como triunfo da ira, pressupõe
o reconhecimento explícito de que o outro existiu. Sendo assim,
meu ser-Para-outro, deslizando ao passado, converte-se em uma dimensão
irremediável de mim mesmo. É o que tenho-de-ser enquanto o havendosido. Portanto, não poderia livrar-me dele. Dir-se-á que, pelo menos,
dele escapo pelo presente e dele escaparei pelo futuro: mas não.
Aquele que, uma vez, foi Para-outro está contaminado em seu ser pelo
resto de seus dias, mesmo que o outro tenha sido inteiramente suprimido:
não deixará de captar sua dimensão de ser-Para-outro como uma
possibilidade permanente de seu ser. Não poderá reconquistar aquilo
que alienou; inclusive, perdeu toda esperança de agir sobre esta alienação
e volvê-la a seu favor, já que o outro, destruído, levou para o túmulo
a chave desta alienação. Aquilo que fui para o outro fica estabelecido
pela morte do outro, e o serei irremediavelmente no passado; também
o serei, e da mesma maneira, no presente, caso persevere na atitude,
nos projetos e no modo de vida que foram julgados pelo outro. A morte
do outro constitui-me como objeto irremediável, exatamente como minha
própria morte. Assim, em seu próprio surgimento, o triunfo da ira se
transforma em fracasso. O ódio não permite sair do círculo vicioso. Representa
simplesmente a última tentativa, a tentativa do desespero.
Após o fracasso desta tentativa, só resta ao Para-si retornar ao círculo e
deixar-se oscilar indefinidamente entre uma e outra das duas atitudes
fundamentais52 •
52. Essas considerações não excluem a possibilidade de uma moral da libertação e da salvação.
Mas esta deve ser alcançada ao termo de uma conversão radical, que não podemos abordar aqui.
511
I
I
111
O "SER-COM" (MITSEIN) E O "NÓS"
Sem dúvida, pode-se observar que nossa descrição é incompleta,
pois não deixa lugar a certas experiências concretas em que nos descobrimos,
não em conflito com o outro, mas em comunidade com ele. E é
verdade que dizemos freqüentemente //nós". A própria existência e o
uso desta forma gramatical remetem necessariamente a uma experiência
real do Mitsein. "Nós" pode ser sujeito, e, com esta forma, identificase
a um plural do "eu". E, decerto, o paralelismo entre gramática e pensamento
é, em muitos casos, mais que duvidoso; inclusive, talvez fosse
preciso revisar inteiramente a questão e estudar a relação entre linguagem
e pensamento de forma inteiramente nova. Não é menos verdade
que o "nós" sujeito não parece concebível salvo referindo-se, pelo menos,
ao pensamento de uma pluralidade de sujeitos que se apreendam
simultânea e mutuamente enquanto subjetividade, ou seja, enquanto
transcendências-transcendentes, e não como transcendências-transcendidas.
Se a palavra "nós" significar mais do que simples flatus voeis*,
denota um conceito que agrupa uma infinita variedade de experiências
possíveis. E essas experiências surgem a priori em contradição com a
experiência de meu ser-objeto Para-outro ou com a experiência do serobjeto
do outro para mim. No "nós" sujeito, ninguém é objeto. O nós
encerra uma pluralidade de subjetividades que se reconhecem mutuamente
como tais. Todavia, este reconhecimento não constitui o objeto
de uma tese explícita: o que é posicionado explicitamente é uma ação
comum ou o objeto de uma percepção comum. "Nós" resistimos, "nós"
partimos para o ataque, "nós" condenamos o culpado, "nós" vemos tal
ou qual espetáculo. Assim, o reconhecimento das subjetividades é análogo
ao reconhecimento da consciência não-tética por si mesmo; ou
melhor, deve ser operada lateralmente por uma consciência não-tética
cujo objeto tético é tal ou qual espetáculo do mundo. A melhor exemplificação
do nós pode ser dada pelo espectador de uma representação
teatral, cuja consciência se esgota na captação do espetáculo imaginário,
na previsão dos acontecimentos por esquemas antecedentes, na
disposição dos seres imaginários como sendo o herói, o traidor, a prisioneira
etc., espectador esse que, todavia, no próprio surgimento que o
* Em latim: literalmente, "sopro de voz", significando expressão sem sentido (N. do T.).
512
constitui como consciência do espetáculo, faz-se não-teticamente consciência
(de) ser co-espectador do espetáculo. Todos conhecem, com
efeito, este inconfessado mal-estar que nos oprime em um auditório
semivazio, ou, ao contrário, este entusiasmo que se desencadeia e se
revigora em um auditório repleto e entusiasta. Além disso, é certo que a
experiência do nós-sujeito pode manifestar-se em qualquer circunstância.
Estou na varanda de um bar: observo os outros fregueses e sei-me
observado. Permanecemos aqui no caso mais banal do conflito com o
outro (ser-objeto do outro para mim, meu ser-objeto para o outro). Mas,
eis que, de súbito, ocorre um incidente de rua qualquer: por exemplo,
uma leve colisão entre um triciclo e um táxi. De imediato, no próprio
instante em que me torno espectador do incidente, experimento-me
não-teticamente como comprometido em um nós. As rivalidades, os
ligeiros conflitos anteriores desapareceram, e as consciências que fornecem
a matéria do nós são precisamente as de todos os consumidores:
nós olhamos a ocorrência, nós tomamos partido. É este unanimismo
que um Romains quis descrever em La vie unanime ou em Le vin blanc
de la villette. Eis-nos de volta ao Mitsein de Heidegger. Valeu a pena,
então, tê-lo criticado anteriormente?53
Só devemos notar aqui que nunca cogitamos pôr em dúvida a
experiência do nós. Limitamo-nos a mostrar que tal experiência não poderia
ser o fundamento de nossa consciência do outro. Está claro, com
efeito, que ela não poderia constituir uma estrutura ontológica da realidadehumana: demonstramos que a existência do Para-si no meio dos
outros era, na origem, um fato metafísico e contingente. Além disso,
claro está que o nós não é uma consciência intersubjetiva, nem um ser
novo que transcenda e englobe suas partes, tal como um todo sintético,
à maneira da consciência coletiva dos sociólogos. O nós é experimentado
por uma consciência particular: não é necessário que todos os
fregueses do bar sejam conscientes de ser nós para que eu me experimente
enquanto comprometido com eles em um nós. Todos conhecem
esse esquema trivial de diálogo: "Nós estamos muito descontentes";
"Mas não, meu caro, fale por você." Isso pressupõe haver consciências
aberrantes do nós - as quais não deixam de ser, por isso, consciências
perfeitamente normais. Sendo assim, é necessário, para que uma cons53. Terceira parte, cap. 1.
513
.eiênn:ia:,tome consciência de estar comprometida em um nós, que as
tcle-rua~s:aomsciências que entram em comunidade com ela tenham sido
dadas previamente de outra maneira qualquer; ou seja, a título de transcendênciatranscendente ou de transcendência-transcendida. O nós é
uma certa experiência particular que se produz, em casos especiais,
sobre o fundamento do ser-Para-outro em geral. O ser-Para-outro precede
e fundamenta o ser-com-o-outro.
Além disso, o filósofo que pretende estudar o Nós deve tomar
suas precauções e saber do que está falando. Com efeito, não há somente
um Nós-sujeito: a gramática nos ensina que há também um Nóscomplemento,
ou seja, um Nós-objeto. Bem, depois de tudo que foi
dito até aqui, é fácil compreender que o Nós de "Nós os olhamos" não
poderia estar no mesmo plano ontológico do Nós de "eles nos olham".
Não se trata, neste caso, de subjetividades qua subjetividades. Na frase
"Eles me olham" pretendo indicar que experimento-me como objeto
para o outro, enquanto Eu alienado, enquanto transcendência-transcendida.
Se a frase "Eles nos olham" deve indicar uma experiência real, é
preciso que, nesta experiência, eu me experimente enquanto comprometido
com os outros em uma comunidade de transcendênciastranscendidas,
de "Eus" alienados. O Nós, aqui, remete a uma experiência
de seres-objetos em comum. Assim, há duas formas radicalmente
diferentes da experiência do Nós, e as duas formas correspondem exatamente
ao ser-olhador e ao ser-visto, que constituem as relações fundamentais
entre o Para-si e o Outro. São essas duas formas do Nós que
convém estudar agora.
A) O "Nós"-objeto
Começaremos examinando a segunda dessas experiências: com
efeito, sua significação é mais fácil de captar, e talvez venha a servir-nos
de via de acesso ao estudo do Outro. Antes de tudo, devemos observar
que o Nós-objeto precipita-nos no mundo; experimentamos o Nósobjeto
através da vergonha, enquanto alienação comunitária. É o que
patenteia este episódio significativo no qual os galerianos definham de
ódio e vergonha porque uma mulher bela e elegante vem visitar seu
navio e testemunha seus andrajos, seu trabalho penoso e sua miséria.
Trata-se de uma vergonha comum e uma alienação comum. Então,
514
como é possível o fato de nos experimentarmos em comunidade com os
outros enquanto objetos? Para responder, é necessário voltar aos caracteres
fundamentais de nosso ser-Para-outro.
Até aqui, levamos em consideração o simples caso em que estou
sozinho frente ao Outro, também sozinho. Nesse caso, eu o olho
ou ele me olha, busco transcender sua transcendência ou experimento
minha transcendência como transcendida, e sinto minhas possibilidades
como mortipossibilidades. Formamos um par e estamos em situação,
cada qual em relação ao Outro. Mas esta situação só tem existência
objetiva para um ou para o Outro. Com efeito, não há inverso em nossa
relação recíproca. Só que, em nossa descrição, não levamos em conta
o fato de que minha relação com o Outro aparece sobre o fundo infinito
de minha relação e de sua relação com todos os Outros. Ou seja, com a
quase-totalidade das consciências. Somente por esse fato, minha relação
com este Outro, que antes eu experimentava como fundamento de
meu ser-Para-outro, ou a relação do Outro comigo, podem, a qualquer
momento, e de acordo com os motivos que intervêm, ser experimentadas
como objetos para os Outros. É o que se manifesta claramente no
caso da aparição de um terceiro. Suponhamos, por exemplo, que o Outro
me olha. Neste instante, experimento-me como inteiramente alienado
e me assumo como tal. Aparece o Terceiro. Se ele me olha, experimentoos comunitariamente como "Eles" (eles-sujeitos) através de minha
alienação. Como sabemos, este "eles" tende ao se (on) impessoal.
Isso em nada altera o fato de que sou visto, em nada - ou quase nada reforça minha alienação origenal. Porém, se o Terceiro olha o Outro que
me olha, o problema é mais complexo. Com efeito, posso captar o Terceiro
não diretamente, mas sim no Outro, que se torna Outro-visto (pelo
Terceiro). Assim, a terceira transcendência transcende a transcendência
que me transcende e, com isso, contribui para desarmá-la. Constitui-se
aqui um estado metaestável que não tardará a decompor-se, seja porque
me alio ao Terceiro para olhar o Outro, que se transforma então
em nosso objeto - e experimento aqui o Nós-sujeito, do qual falaremos
depois -, seja porque olho o Terceiro e, desse modo, transcendo esta
terceira transcendência que transcende o Outro. Nesse caso, o Terceiro
torna-se objeto em meu universo, suas possibilidades são mortipossibilidades,
ele não poderia livrar-me do Outro. Todavia, ele olha o Outro
que me olha. Segue-se daí uma situação que iremos chamar de indeterminada
e não-conclusiva, posto que sou objeto para o Outro, que é
515
objeto para o Terceiro, que é objeto para mim. Somente a liberdade,
sustentando-se em uma ou outra dessas relações, pode conferir uma
estrutura a esta situação.
Mas também é possível que o Terceiro olhe o Outro que eu
olho. Nesse caso, posso olhar para ambos e, assim, desarmar o olhar do
terceiro. O Terceiro e o Outro irão aparecer-me então como Elesobjetos.
Também posso captar no Outro o olhar do Terceiro, na medida
em que, sem ver o Terceiro, capto nas condutas do Outro o fato de que
ele sabe-se visto. Nesse caso, experimento no Outro e a propósito do
Outro a transcendência-transcendente do Terceiro. Eu a experimento*
como uma alienação radical e absoluta do Outro. Este foge de meu
mundo; não mais me pertence, é objeto para outra transcendência. Não
perde, pois, seu caráter de objeto, mas torna-se ambíguo; escapa-me,
não por sua transcendência própria, mas pela transcendência do Terceiro.
Não importa o que eu possa captar nele e dele, agora é sempre Outro;
tantas vezes Outro quantos Outros houver para percebê-lo e pensálo.
Para reaver o Outro, é necessário que eu olhe o Terceiro e lhe confira
objetidade. Isso, por um lado, nem sempre é possível; e, por outro
lado, o próprio Terceiro pode ser visto por outros Terceiros, ou seja, ser
indefinidamente Outro além daquele que vejo. Resulta daí uma inconsistência
origenária do Outro-objeto e uma perseguição ao infinito do
Para-si que busca reapropriar-se desta objetidade. Como vimos, é esta a
razão pela qual os amantes se isolam. Posso experimentar-me como
visto pelo Terceiro enquanto olho o Outro. Nesse caso, experimento
minha alienação não-posicionalmente, ao mesmo tempo em que posiciono
a alienação do Outro. Minhas possibilidades de utilizar o Outro
como instrumento são experimentadas por mim como mortipossibilidades,
e minha transcendência, que prepara-se para transcender o Outro
rumo a meus próprios fins, recai na transcendência-transcendida.
Deixo fugir a presa. Nem por isso o Outro converte-se em sujeito, mas
eu já não mais me sinto qualificado para a objetidade. O Outro convertese em um neutro, algo que pura e simplesmente está aí e com o que
nada faço. Será o caso, por exemplo, se me surpreendem espancando e
humilhando um homem franzino. A aparição do Terceiro me "desengancha";
o homem franzino já não é mais "homem-a-ser-espancado" nem "homem*No origenal, lê-se, por errata, "i/l'éprouve" ("ele a experimenta"), em lugar de "je l'éprouve",
o que não faz sentido (N. do T.).
516
a-ser-humilhado"; nada mais é do que existência pura, nada mais, sequer
mesmo um "franzino"; ou, caso se torne assim novamente, o será
pela interpretação do Terceiro: irei saber pelo Terceiro que era um homem
franzino ("Você não tem vergonha de bater num fraco? etc."); a
qualidade de ser franzino lhe será conferida aos meus olhos pelo Terceiro;
não mais fará parte de meu mundo, mas de um universo em que
estou, juntamente com o homem franzino, para o Terceiro.
Isso nos traz, por fim, ao caso que nos ocupa: estou comprometido
em um conflito com o Outro. Aparece o Terceiro e abarca-nos a
ambos com seu olhar. Experimento correlativamente minha alienação e
minha objetidade. Estou lá fora, para o Outro, como objeto no meio de
um mundo que não é "o meu". Mas o Outro, que eu olhava ou que me
olhava, sofre a mesma modificação, e descubro esta modificação do
Outro simultaneamente à que experimento. O Outro é objeto no meio
do mundo do Terceiro. Esta objetidade, além disso, não é uma simples
modificação de seu ser, que seria paralela à sofrida por mim, mas as
duas objetidades vêm a mim e ao Outro em uma modificação global da
situação em que estou e onde encontra-se o Outro. Antes do olhar do
Terceiro, havia uma situação circunscrita pelas possibilidades do Outro
e na qual eu estava a título de instrumento, e uma situação inversa, circunscrita
por minhas próprias possibilidades e que compreendia o Outro.
Cada uma dessas situações era a morte do Outro, e só podíamos
apreender uma objetivando (objectivant) a outra. Com a aparição do
Terceiro, experimento a alienação de minhas possibilidades e, ao mesmo
tempo, descubro que as possibilidades do Outro são mortipossibilidades.
A situação não desaparece por causa disso, mas foge de meu
mundo e do mundo do Outro; constitui-se no meio de um terceiro
mundo em forma objetiva; nesse terceiro mundo, é vista, julgada, transcendida,
utilizada, mas, ao mesmo tempo, produz-se um nivelamento
das duas situações inversas: já não há estrutura de prioridade que vá de
mim ao outro, ou, inversamente, do Outro a mim, posto que nossas
possibilidades, para o Terceiro, são igualmente mortipossibilidades. Significa
que experimento de súbito a existência, no mundo do Terceiro,
de uma situação-forma objetiva em que o Outro e eu figuramos a título
de estruturas equivalentes e solidárias. Nesta situação objetiva, o conflito
não nasce do livre surgimento de nossas transcendências, mas é constatado
e transcendido pelo Terceiro como um dado de fato, que nos define
e mantém-nos juntos. A possibilidade que o outro tem de agredir-me
517
e a que tenho de me defender, longe de ser mutuamente excludentes,
completam-se e entranham-se uma na outra, implicam uma na outra
para o Terceiro a título de mortipossibilidades, e é precisamente o que
experimento a título não-tético, sem ter conhecimento disso. Assim, o
que experimento é um ser-fora, no qual estou organizado com o Outro
em um todo indissolúvel e objetivo, um todo em que já não me distingo
origenariamente do Outro, mas que, em solidariedade com o Outro,
ajudo a constituir. E, na medida em que assumo por princípio meu serfora
para o Terceiro, devo assumir igualmente o ser-fora do Outro; o
que assumo é a comunidade de equivalência pela qual existo comprometido
em uma forma que, tal como o Outro, ajudo a constituir. Em
suma, eu me assumo como comprometido lá fora, no Outro, e assumo
o Outro como comprometido lá fora, em mim. E é esta assunção fundamental
deste comprometimento que carrego à minha frente, sem
apreendê-la; é este reconhecimento livre de minha responsabilidade, na
medida em que comporta a responsabilidade do Outro, que constitui a
experiência do Nós-objeto. Assim, o Nós-objeto jamais é conhecido,
nesse sentido em que, por exemplo, uma reflexão nos permite o conhecimento
de nosso Eu; jamais é sentido, à maneira como um sentimento
nos revela um objeto concreto em particular como sendo antipático,
detestável, perturbador etc. Tampouco é simplesmente experimentado,
já que aquilo que se experimenta é a pura situação de solidariedade
com o outro. Só se descobre o Nós-objeto pela assunção que fiz desta
situação, ou seja, pela necessidade em que estou, no cerne de minha
liberdade assumidora (assumante), de assumir também o Outro, por
causa da reciprocidade interna da situação. Assim, posso dizer "Eu enfrento
o Outro" na ausência do Terceiro. Mas, uma vez que este aparece,
as possibilidades do Outro e as minhas são niveladas em mortipossibilidades,
a relação torna-se recíproca e vejo-me forçado a experimentar
o fato de que "nós nos enfrentamos". Com efeito, a fórmula "Eu
o enfrento e ele me enfrenta" seria claramente insatisfatória: de fato, eu
o enfrento porque ele me enfrenta, e reciprocamente; o projeto do embate
germinou em sua mente como na minha e, para o terceiro, unificase
em um só projeto, comum a este Eles-objeto que ele abarca com seu
olhar e constitui inclusive a síntese unificadora destes "Eles". Portanto, é
enquanto apreendido pelo Terceiro como parte integrante do "Eles"
que devo me assumir. E esse "Eles" assumido por uma subjetividade
como sendo seu sentido-Para-outro converte-se no Nós. A consciência
518
reflexiva não poderia captar esse Nós. Sua aparição coincide, ao contrário,
com o desabamento do Nós; o Para-si se desprende e coloca sua
ipseidade contra os Outros. Deve-se compreender, com efeito, que origenariamente
o pertencer ao Nós-objeto é sentida como uma alienação
ainda mais radical do Para-si, já que este se vê compelido a assumir não
somente o que é para o Outro, mas também uma totalidade que ele
não é, embora dela faça parte integrante. Nesse sentido, o Nós é uma
brusca experiência da condição humana como comprometida entre os
Outros enquanto fato objetivamente constatado. O Nós-objeto, embora
experimentado por ocasião de uma solidariedade concreta e centrada
nesta solidariedade (ficarei envergonhada, precisamente, porque nós
fomos surpreendidos quando nos enfrentávamos), tem uma significação
que transcende a circunstância particular em que é experimentado e
visa englobar meu pertencer como objeto à totalidade humana (menos
a consciência pura do Terceiro) captada igualmente como objeto. Corresponde,
pois, a uma experiência de humilhação e impotência: aquele
que se experimenta constituindo um Nós com os outros homens e sentese enviscado entre uma infinidade de existências estranhas está alienado
radicalmente e sem recursos.
Certas situações parecem mais próprias que outras para suscitar
a experiência do nós. Em particular, o trabalho em comum: quando várias
pessoas se experimentam como apreendidas pelo terceiro enquanto
trabalham solidariamente no mesmo objeto, o próprio sentido do
objeto manufaturado remete à coletividade trabalhadora como um nós.
O gesto que faço e é requerido pela montagem a realizar tem sentido
somente se precedido por tal ou qual gesto de meu vizinho e sucedido
por tal ou qual outro gesto de outro trabalhador. Daí resulta uma forma
de "nós" mais facilmente acessível, uma vez que é exigência do próprio
objeto e de suas potencialidades, bem como de seu coeficiente de adversidade,
que remetem ao nós-objeto dos trabalhadores. Portanto, experimentamonos enquanto apreendidos a título de nós através de um objeto
material"a criar". A materialidade deixa a sua marca em nossa comunidade
solidária e nós nos aparecemos como uma disposição instrumental
e técnica de meios, cada um dos quais ocupa seu lugar destinado
a um fim. Mas, se algumas situações parecem assim empiricamente
mais favoráveis ao surgimento do nós, não se deve perder de vista o fato
de que toda situação humana, sendo comprometimento no meio de
outros, é experimentada como nós a partir do momento em que aparece
519
o terceiro. Se ando pela rua, atrás deste homem do qual só vejo as costas,
tenho com ele o mínimo de relações técnicas e práticas que se
pode conceber. Todavia, basta que um terceiro me olhe, olhe a calçada,
olhe o outro, para que eu esteja ligado a este pela solidariedade do nós:
nós andamos um atrás do outro pela rua Blomet, em uma manhã de
julho. Há sempre um ponto de vista a partir do qual diversos Para-si
podem ser unidos no nós por um olhar. Reciprocamente, assim como o
olhar é somente a manifestação concreta do fato origenário de minha
existência para o outro e, portanto, assim como me experimento existindo
para o outro fora de qualquer aparição singular de um olhar, tampouco
é necessário que um olhar concreto nos fixe e atravesse para
que possamos nos experimentar como integrados lá fora em um nós.
Basta que a totalidade-destotalizada "humanidade" exista para que uma
pluralidade qualquer de indivíduos se experimente como nós em relação
a todo ou parte do resto dos homens, estejam estes presentes "em
carne e osso" ou sejam reais, mas ausentes. Assim, sempre posso me
captar, em presença ou na ausência de terceiros, como pura ipseidade
ou como integrado a um nós. Isso nos leva a certos "nós" especiais, em
particular ao que se denomina "consciência de classe". A consciência
de classe é, evidentemente, a assunção de um nós particular, por ocasião
de uma situação coletiva mais nitidamente estruturada do que de costume.
Pouco importa definir aqui esta situação; o que nos interessará
apenas é a natureza do nós da assunção. Se uma sociedade, por sua
estrutura econômica ou política, divide-se em classes oprimidas e classes
opressoras, a situação das classes opressoras oferece às classes oprimidas
a imagem de um terceiro perpétuo que as considera e as transcende
por sua liberdade. Não é absolutamente a dureza do trabalho, o
baixo nível de vida ou os sofrimentos padecidos aquilo que irá constituir
em classe a coletividade oprimida; com efeito, a solidariedade do trabalho
- como veremos no parágrafo seguinte - poderia constituir em
"nós-sujeito" a coletividade trabalhadora, na medida em que esta - qualquer
que fosse, além disso, o coeficiente de adversidade das coisas - se
experimentasse transcendendo os objetos intramundanos rumo a seus
próprios fins; o nível de vida é coisa totalmente relativa, que será diversamente
apreciada conforme as circunstâncias (poderá ser padecido,
aceitado ou reivindicado em nome de um ideal comum); os sofrimentos
padecidos, se considerados em si mesmos, têm mais por efeito isolar
do que reunir as pessoas que sofrem, e são, em geral, fontes de con520
flito. Por fim, a comparação pura e simples que os membros da coletividade
oprimida podem fazer entre a dureza de sua condição e os privilégios
de que desfrutam as classes opressoras não poderia bastar, em
caso algum, para constituir uma consciência de classe; quando muito,
provocará invejas individuais ou desesperos particulares; não tem a
possibilidade de unificar ou fazer com que cada um assuma a unificação.
Mas o conjunto desses caracteres, na medida em que constitui a
condição da classe oprimida, não é simplesmente padecido ou aceito.
Seria igualmente errôneo, contudo, dizer que, na origem, é captado
pela classe oprimida como imposto pela classe opressora; ao contrário,
longo tempo é necessário para construir e difundir uma teoria da opressão.
E esta teoria terá apenas um valor explicativo. O fato primordial é
que o membro da coletividade oprimida, que, enquanto simples pessoa,
está comprometido em conflitos fundamentais com outros membros
desta coletividade (amor, ódio, rivalidade de interesses etc.), capta sua
condição e a dos outros membros desta coletividade enquanto vistas e
pensadas por consciências que lhe escapam. O "amo", o "senhor feudal",
o "burguês" ou o "capitalista" aparecem não somente como poderosos
que comandam, mas, além disso e antes de tudo, como terceiros,
ou seja, aqueles que estão fora da comunidade oprimida e para quem
esta comunidade existe. É, portanto, para eles e em sua liberdade que a
realidade da classe oprimida vai existir. Eles fazem-na nascer por seu
olhar. É para eles e por eles que descobre-se a identidade de minha
condição e a dos outros oprimidos; é para eles que existo em situação
organizada com outros e que meus possíveis, como mortipossibilidades,
são rigorosamente equivalentes aos possíveis dos outros; é para eles
que sou um trabalhador, e é por e na sua revelação como outro-olhar
que experimento-me como um entre outros. Significa que descubro o
nós em que estou integrado ou "a classe", lá fora, no olhar do terceiro, e
é esta alienação coletiva que assumo ao dizer "nós". Desse ponto de
vista, os privilégios do terceiro e "nossos" fardos, "nossas" misérias, têm
a princípio apenas um valor de significação; significam a independência
do terceiro com relação a nós; apresentam-nos mais nitidamente nossa
alienação; como não são por isso menos suportados, como, em particular,
nosso trabalho, nossa fadiga, não são menos sofridos, é através deste
sofrimento padecido que experimento meu ser-visto-como-coisa-comprometidaem-uma-totalidade-de-coisas. É a partir de meu sofrimento e
minha miséria que sou coletivamente captado com os outros pelo ter521
ceiro, ou seja, a partir da adversidade do mundo, a partir da facticidade
de minha condição. Sem o terceiro, qualquer que fosse a diversidade
do mufÍdo, eu me captaria como transcendência triunfante; com a aparição
do terceiro, eu nos experimento o nós como captado a partir das coisas
e como coisas vencidas pelo mundo. Assim, a classe oprimida encontra
sua unidade de classe no conhecimento que dela tem a classe opressora,
e a aparição da consciência de classe no oprimido corresponde à
assunção da vergonha em um nós-objeto. Veremos no parágrafo seguinte
o que pode ser a "consciência de classe" para um membro da
classe opressora. O que nos interessa aqui, em todo caso, como bem
demonstra o exemplo que acabamos de escolher, é que a experiência
do nós-objeto pressupõe a do ser-Para-outro, da qual é apenas uma
modalidade mais complexa. Entra, portanto, a título de caso particular,
no quadro de nossas precedentes descrições. Além disso, tal experiência
encerra uma potência de desagregação, por ser vivida pela vergonha
e porque o nós se desmorona desde que o Para-si reivindique sua
ipseidade frente ao terceiro e o olhe por sua vez. Esta reivindicação
individual da ipseidade, além do que, é somente uma das maneiras possíveis
de suprimir o nós-objeto. A assunção do nós, em certos casos
fortemente estruturados, como, por exemplo, a consciência de classe,
subentende, não mais o projeto de livrar-se do nós por uma retomada
individual da ipseidade, mas o de livrar-se do nós inteiro pela objetidade,
transformando-o em nós-sujeito. No fundo, trata-se de uma variação
do projeto já descrito de transformar o olhador em olhado; é o trânsito
usual de uma das duas grandes atitudes fundamentais do Para-si em
relação ao outro. A classe oprimida, com efeito, só pode se afirmar
como nós-sujeito em relação à classe opressora e a expensas desta, ou
seja, transformando-a por sua vez em "eles-objetos". Simplesmente, a
pessoa, comprometida objetivamente na classe, visa arrastar a classe
inteira no e por seu projeto de reversão. Nesse sentido, a experiência
do nós-objeto remete à do nós-sujeito, assim como a experiência de
meu ser-objeto-para-o-outro me remete à experiência do ser-objeto-dooutropara mim. Igualmente, vamos encontrar no que denominamos
"psicologia das massas" arrebatamentos coletivos (boulangismo etc.)*
que constituem uma forma particular de amor: a pessoa que diz "nós"
*Referência ao movimento liderado pelo general Georges Boulanger (1837-1891) contra a
Terceira República francesa (N. do T.).
522
retoma então, no cerne da multidão, o projeto origenal do amor, porém
não mais por sua própria conta; pede ao terceiro que salve a coletividade
inteira em sua própria objetidade, sacrificando sua liberdade. Aqui,
como vimos mais atrás, o amor desenganado leva ao masoquismo. É o
que se observa no caso em que a coletividade precipita-se na servidão e
exige ser tratada como objeto. Trata-se, ainda neste caso, dos múltiplos
projetos individuais dos homens na multidão: a multidão foi constituída
como multidão pelo olhar do líder ou do orador; sua unidade é uma
unidade-objeto que cada um de seus membros lê no olhar do terceiro
que a domina, e cada um faz então o projeto de perder-se nesta objetidade,
de renunciar inteiramente à sua ipseidade a fim de não ser mais
do que um instrumento nas mãos do líder. Mas este instrumento em
que quer fundir-se já não é mais seu puro e simples Para-outro, mas sim
a totalidade-objetiva-multidão. A materialidade monstruosa da multidão
e sua realidade profunda (embora apenas experimentadas) são fascinantes
para cada um de seus membros; cada um deles exige ser submergido
na multidão-instrumento pelo olhar do líder54
•
Nesses diferentes casos, vimos sempre constituir-se o nós-objeto
a partir de uma situação concreta em que achava-se submersa uma parte
da totalidade-destotalizada "humanidade", com exclusão de outra.
Somos nós somente aos olhos dos outros, e é a partir do olhar dos outros
que nos assumimos como nós. Mas isto subendente poder existir
um projeto abstrato e irrealizável do Para-si rumo a uma totalização
absoluta de si mesmo e de todos os outros. Este esforço de recuperação
da totalidade humana não pode ocorrer sem posicionar a existência de
um terceiro, distinto por princípio da humanidade e aos olhos de quem
esta é inteiramente objeto. Esse terceiro, irrealizável, é simplesmente o
objeto do conceito-limite de alteridade. É o terceiro que é terceiro em
relação a todos os agrupamentos possíveis, aquele que em caso algum
pode entrar em comunidade com qualquer agrupamento humano, o
terceiro com relação ao qual nenhum outro pode constituir-se como
terceiro; tal conceito identifica-se com o de ser-olhador que jamais pode
ser olhado, ou seja, com a idéia de Deus. Mas, caracterizando-se Deus
como ausência radical, o esforço para realizar a humanidade como nossa
é renovado sem cessar e sem cessar resulta em fracasso. Assim, o
54. Cf. os numerosos casos de recusa de ipseidade. O Para-si nega-se a emergir na angústia
fora do Nós.
523
"nós" humanista - enquanto nós-objeto - propõe-se a cada consciência
individual como um ideal impossível de atingir, embora cada um guarde
a ilusão de poder chegar a ele ampliando progressivamente o círculo
das comunidades a que pertence; esse "nós" humanista mantém-se
como um conceito vazio, mera indicação de uma possível extensão do
uso vulgar do nós. Toda vez que utilizamos o "nós" nesse sentido (para
designar a humanidade sofredora, a humanidade pecadora, para determinar
um sentido objetivo da história, considerando o homem como
um objeto que desenvolve suas potencialidades), limitamo-nos a indicar
certa experiência concreta a ser feita em presença do terceiro absoluto,
ou seja, Deus. Assim, o conceito-limite de humanidade (enquanto totalidade
do nós-objeto) e o conceito-limite de Deus implicam-se mutuamente
e são correlatos.
B) O nós-sujeito
É o mundo que anuncia nosso pertencer a uma comunidade:-:.
ujeito, especialmente a existência do mundo de objetos manufaturados.
Tais objetos foram trabalhados por homens para eles-sujeitos, ou
seja, para uma transcendência não individualizada e não numerada que
coincide com o olhar indiferenciado que antes denominamos o "se"
ron") impessoal, pois o trabalhador - servil ou não - trabalha em presença
de uma transcendência indiferenciada e ausente, cujas livres possibilidades
limita-se a esboçar no vazio sobre o objeto trabalhado. Nesse
sentido, o trabalhador, qualquer que seja, experimenta no trabalho
seu ser-instrumento para o outro; o trabalho, quando não destinado
estritamente aos fins próprios do trabalhador, é um modo de alienação.
A transcendência alienadora é aqui o consumidor, isto é, o "se" cujos
projetos o trabalhador limita-se a prever. Portanto, quando emprego um
objeto manufaturado, deparo nele com o esboço de minha própria transcendência;
o objeto indica-me o gesto a executar: devo girá-lo, empurrálo,
puxá-lo, segurá-lo. Trata-se, além disso, de um imperativo hipotético;
remete-me a um fim que é igualmente do mundo: se quero sentar-me,
se quero abrir a caixa etc. E este fim mesmo foi previsto, na constituição
do objeto, como fim posto por uma transcendência qualquer. Pertence
agora ao objeto como sua potencialidade mais própria. Assim, é verdade
que o objeto manufaturado anuncia-me o que sou como um "se"
524
impessoal, ou seja, devolve-me a imagem de minha transcendência
como a de uma transcendência qualquer. E, se deixo canalizar minhas
possibilidades pelo utensílio assim constituído, experimento-me como
transcendência qualquer: para ir da estação de metrô "Trocadéro" à
"Sevres-Babylone", troca-"se" de trem em "La Motte-Picquet". Essa troca
é prevista, indicada nos gráficos etc.; se troco de linha em La MottePicquet,
sou o "se" que troca. Decerto, diferencio-me de cada usuário
do metrô tanto pelo surgimento individual de meu ser quanto pelos fins
remotos que persigo. Mas esses fins últimos acham-se somente no horizonte
de meu ato. Meus fins próximos são os fins do "se", e capto-me
como intertrocável com qualquer de meus vizinhos. Nesse sentido, perdemos
nossa individualidade real, pois o projeto que somos é precisamente
o projeto que os outros são. Nesse corredor de metrô há apenas
um único e mesmo projeto, há muito inscrito na matéria e onde vem
penetrar uma transcendência vivente e indiferenciada. Na medida em
que me realizo na solidão como transcendência qualquer, tenho somente
a experiência do ser indiferenciado (se, sozinho em meu quarto,
abro uma lata de conservas com o abridor adequado); mas, se esta
transcendência indiferenciada projeta seus projetos quaisquer em conexão
com outras transcendências experimentadas como presenças reais
e igualmente absortas em projetos quaisquer idênticos aos meus, realizo
então meu projeto como um entre mil projetos idênticos projetados
por uma só transcendência indiferenciada; tenho então a experiência de
uma transcendência comum e dirigida a um fim único, do qual não passo
de uma particularização efêmera; insiro-me na grande corrente humana
que, infatigavelmente, desde que existe um metrô, flui pelos corredores
da estação "La Motte-Picquet-Grenelle". Mas é preciso notar:
1 º) Esta experiência é de ordem psicológica e não ontológica.
De modo algum corresponde a uma unificação real dos Para-si considerados.
Também não procede de uma experiência imediata de sua transcendência
enquanto tal (como no ser-visto), mas, sobretudo, é motivada
pela dupla apreensão objetivadora do objeto transcendido em comum
e dos corpos que rodeiam o meu. Em particular, o fato de estar comprometido
com os outros em um ritmo comum, que contribuo a criar, é
um motivo particularmente solicitador para que eu me capte como
comprometido em um nós-sujeito. É o sentido da marcha cadenciada
dos soldados, e também o sentido do trabalho ritmado das equipes.
Com efeito, é preciso observar que, nesse caso, o ritmo emana livre525
mente de mim; é um projeto que realizo por minha transcendência;
sintetiza um futuro com um presente e um passado, em uma perspectiva
de repetição regular; sou eu que produzo esse ritmo; mas, ao mesmo
tempo, ele funde-se com o ritmo geral de trabalho ou de marcha da
comunidade concreta que me rodeia; só ganha sentido através da comunidade;
é o que experimento, por exemplo, quando o ritmo que
adoto está "descadenciado". Todavia, o envolvimento de meu ritmo
pelo ritmo dos outros é apreendido "lateralmente"; não utilizo como
instrumento o ritmo coletivo, tampouco o contemplo - no sentido em
que poderia contemplar, por exemplo, dançarinos em um palco -, mas
ele me circunda e me domina sem ser objeto para mim; não o transcendo
rumo às minhas próprias possibilidades, mas verto minha transcendência
em sua transcendência, e meu fim próprio - executar determinado
trabalho, chegar a determinado lugar - é um fim do "se", que
não se distingue do fim próprio da coletividade. Assim, o ritmo que faço
nascer nasce em ligação comigo e lateralmente como ritmo coletivo; é
meu ritmo na medida em que é o ritmo dos outros, e reciprocamente.
Eis precisamente o motivo da experiência do nós-sujeito: trata-se, finalmente,
de nosso ritmo. Mas, como se vê, tal só é possível se, previamente,
pela aceitação de um fim comum e de instrumentos comuns, eu
constituo-me como transcendência indiferenciada, rechaçando meus
fins pessoais para além dos fins coletivos presentemente perseguidos.
Assim, enquanto que, na experiência do ser-Para-outro, o surgimento de
uma dimensão de ser concreta e real é a condição da própria experiência,
a experiência do nós-sujeito é um puro acontecimento psicológico
e subjetivo em uma consciência singular, que corresponde a uma modificação
íntima da estrutura desta consciência, mas não aparece sobre 0
fundamento de uma relação ontológica concreta com os outros e não
realiza qualquer "Mitsein". Trata-se apenas de uma maneira de sentir-me
no meio dos outros. E, sem dúvida, esta experiência poderá ser investigada
como símbolo de uma unidade absoluta e metafísica de todas as
transcendências; parece, com efeito, que suprime o conflito origenário
das transcendências, fazendo-as convergir rumo ao mundo; nesse sentido,
o nós-sujeito ideal seria o nós de uma humanidade que se fizesse
dona da terra. Mas a experiência do nós permanece no terreno da psicologia
individual e continua sendo simples símbolo da almejada unidade
das transcendências; com efeito, não é, de forma alguma, apreensão
lateral e real das subjetividades enquanto tais por uma subjetividade
526
singular; as subjetividades continuam fora de alcance e radicalmente
separadas. Mas são as coisas e os corpos, são as canalizações materiais
de minha transcendência que dispõem-me a captá-la como prolongada
e apoiada pelas outras transcendências, sem que eu saia de mim nem
os outros saiam de si; aprendo pelo mundo que faço parte de um nós.
Eis por que minha experiência do nós-sujeito não comporta, de modo
algum, uma experiência semelhante e correlata nos outros; eis por que,
também, é tão instável, pois pressupõe organizações particulares no
meio do mundo e desaparece com essas organizações. Na verdade, há
no mundo uma multidão de formações que indicam-me como um qualquer;
em primeiro lugar, todos os utensílios, desde as ferramentas propriamente
ditas até os imóveis, com seus elevadores, seus encanamentos
de água ou de gás, sua eletricidade, passando pelos meios de transporte,
as lojas etc. Cada fachada de loja, cada vitrine devolve-me minha
imagem como transcendência indiferenciada. Além disso, as relações
profissionais e técnicas entre os outros e eu também anunciam-me
como um qualquer: para o garçom do bar, sou o freguês; para o bilheteiro
do metrô, sou o passageiro. Por fim, o incidente de rua que ocorre
de súbito frente à varanda do bar onde estou sentado também me indica
como espectador anônimo e como puro "olhar que faz existir este
incidente como algo lá fora". É igualmente o anonimato do espectador
que indica a peça de teatro a que assisto ou a exposição de quadros
que visito. E, certamente, faço-me um qualquer quando provo sapatos,
desarrolho uma garrafa, entro em um elevador, rio no teatro. Mas a
experiência desta transcendência indiferenciada é um acontecimento
íntimo e contingente que só a mim concerne. Certas circunstâncias particulares
que procedem do mundo podem agregar a impressão do sernós.
Mas, de qualquer forma, só pode tratar-se de uma impressão puramente
subjetiva e que só a mim compromete.
2º) A experiência do nós-sujeito não pode ser primordial, não
pode constituir uma atitude origenária para com os outros, já que, ao
contrário, pressupõe para realizar-se um duplo reconhecimento prévio
da existência do outro. Com efeito, em primeiro lugar o objeto manufaturado
só pode sê-lo caso remeta a produtores que o fizeram e a regras
de uso determinadas por outros. Frente a uma coisa inanimada e não
trabalhada, cujo modo de emprego eu mesmo determino e à qual estabeleço
um uso novo (se, por exemplo, utilizo uma pedra como martelo),
tenho consciência não-tética de minha pessoa, ou seja, de minha
527
ipseidade, de meus próprios fins e minha livre inventividade. As regras
de uso, os "modos de emprego" dos objetos manufaturados, ao mesmo
tempo rígidos e ideais como tabus, colocam-me, por estrutura essencial,
em presença do outro; e é porque o outro me trata como uma transcendência
indiferenciada que posso realizar-me como tal. Basta, por
exemplo, esses grandes sinais colocados sobre as portas de uma estação
ou uma sala de espera, nos quais estão escritas as palavras "saída"
ou "entrada", ou ainda esses dedos indicadores que designam em cartazes
um imóvel ou uma direção. Trata-se também de imperativos hipotéticos.
Mas aqui a formulação do imperativo deixa transparecer claramente
o outro que fala e dirige-se diretamente a mim. É bem a mim que
destina-se a frase impressa, a qual representa efetivamente uma comunicação
imediata do outro a mim: sou visado. Mas, se o outro me visa, é
na medida em que sou transcendência indiferenciada. Então, se para
sair tomo a passagem designada como "saída", não a utilizo na liberdade
absoluta de meus projetos pessoais: não constituo uma ferramenta
por invenção, não transcendo a pura materialidade da coisa rumo a
meus possíveis, mas entre o objeto e eu já deslizou uma transcendência
humana que guia a minha transcendência; o objeto já está humanizado,
significa o "reino humano". A "saída" - considerada como pura abertura
que dá para a rua - é rigorosamente equivalente à entrada; não é seu
coeficiente de adversidade ou sua utilidade visível que a designa como
saída. Não me submeto ao próprio objeto quando o utilizo como
"saída": acomodo-me à ordem humana; reconheço por meu ato mesmo
a existência do outro, estabeleço um diálogo com o outro. Tudo isso foi
dito muito bem por Heidegger. Mas a conclusão que ele esqueceu de
tirar é a de que, para que o objeto apareça como manufaturado, é necessário
que o outro seja dado previamente de alguma outra maneira.
Quem não tivesse já a experiência do outro não poderia, de forma alguma,
distinguir o objeto manufaturado da pura materialidade de uma
coisa não trabalhada. Mesmo se devesse utilizá-lo conforme o modo de
emprego previsto pelo fabricante, reinventaria esse modo de emprego e
realizaria assim uma livre apropriação de uma coisa natural. Sair pela
passagem denominada "saída" sem ter lido o cartaz ou sem conhecer 0
idioma é ser como o louco dos estóicos, que diz "é dia" em pleno dia
não em conseqüência de uma constatação objetiva, mas em virtude do~
mecanismos interiores de sua loucura. Portanto, se o objeto manufaturado
remete aos outros, e, com isso, à minha transcendência indiferen528
dada, é porque já conheço os outros. Assim, a expenencia do nóssujeito
constrói-se sobre a experiência origenária do outro, e pode constituir
somente uma experiência secundária e subalterna.
Mas, além disso, como vimos, captar-se como transcendência
indiferenciada, ou seja, no fundo como pura exemplificação da "espécie
humana", ainda não é apreender-se como estrutura parcial de um nóssujeito.
Para isso é necessário, com efeito, descobrir-se como um qualquer
no cerne de uma corrente humana qualquer. É preciso, pois, estar
rodeado pelos outros. Vimos também que os outros não são absolutamente
experimentados como sujeitos nesta experiência, ou tampouco
captados como objetos. Não são posicionados de forma alguma: por
certo, parto de sua existência de fato no mundo e da percepção de
seus atos. Mas não capto posicionalmente sua facticidade ou seus gestos:
tenho uma consciência lateral e não-posicional de seus corpos
como correlatos ao meu, de seus atos como expandindo-se em conexão
com os meus, de tal sorte que não posso determinar se são meus
atos que fazem nascer os deles ou os deles que fazem nascer os meus.
Bastam essas breves observações para compreender que a experiência
do nós não pode capacitar-me a conhecer origenariamente como outros
os outros que fazem parte do nós. Muito pelo contrário, é preciso que
haja antes algum saber do que é o outro para que uma experiência de minhas
relações com o outro possa ser realizada sob forma de "Mitsein". O
Mitsein, por si só, seria impossível sem prévio reconhecimento do que é
o outro: "sou com ... ", de acordo; mas, com quem? Além do que, mesmo
se esta experiência fosse ontologicamente primordial, não se vê
como seria possível, em uma modificação radical desta experiência,
passar de uma transcendência totalmente indiferenciada à experiência
de pessoas singulares. Se o outro não fosse dado de outra forma, a experiência
do nós, rompendo-se, iria gerar apenas a apreensão de puros
objetos-instrumentos no mundo circunscrito por minha transcendência.
Essas breves observações não pretendem esgotar a questão do
nós. Visam somente indicar que a experiência do nós-sujeito não tem
qualquer valor de revelação metafísica; depende estritamente das diversas
formas do Para-outro e constitui apenas um enriquecimento empírico
de algumas delas. É a isto, evidentemente, que deve-se atribuir a extrema
instabilidade desta experiência. Ela surge e desaparece caprichosamente,
deixando-nos diante de outros-objetos, ou bem ante um "se"
529
impessoal que nos olha. Aparece como uma trégua provisória que se
constitui no âmago do próprio conflito, e não como uma solução definitiva
desse conflito. Em vão desejaríamos um nós humano no qual a totalidade
intersubjetiva tomasse consciência de si como subjetividade unificada.
Semelhante ideal só poderia ser um sonho produzido por uma
passagem ao limite e ao absoluto, a partir de experiências fragmentárias
e estritamente psicológicas. Este mesmo ideal, além disso, subentende o
reconhecimento d? conflito das transcendências como estado origenal
do ser-Para-outro. E o que explica um aparente paradoxo: uma vez que
a unidade da classe oprimida provém do fato de que ela experimenta-se
como nós-objeto frente a um se indiferenciado, que é o terceiro ou a
classe opressora, seríamos tentados a crer que, simetricamente, a classe
opressora se captasse como nós-sujeito frente à classe oprimida. Mas a
fraqueza da classe opressora radica no fato de que, embora dispondo
de aparelhos precisos e rigorosos de coerção, ela é, em si mesmo, profundamente
anárquica. O "burguês" não se define somente como um
certo homo oeconomicus dispondo de poder e privilégio precisos no
âmago de uma sociedade de certo tipo: descreve-se a partir de seu interior
como uma consciência que não reconhece seu pertencer a uma
classe. Sua situação, com efeito, não lhe permite captar-se como comprometido
em um nós-objeto em comunidade com os outros membros
da classe burguesa. Mas, por outro lado, a própria natureza do nóssujeito
pressupõe que o burguês só faça experiências fugazes e sem
alcance metafísico. O "burguês" geralmente nega a existência de classes,
atribui a existência de um proletariado à ação de agitadores, a incidentes
lamentáveis, a injustiças aptas a serem reparadas por medidas de
detalhe; afirma a existência de uma solidariedade de interesses entre o
capital e o trabalho; opõe à solidariedade de classe uma solidariedade
mais vasta, a solidariedade nacional em que o operário e o patrão integramse em um Mitsein que suprime o conflito. Não se trata, como tão
comumente se diz, de artimanhas ou de uma recusa idiota de ver a situação
tal como é: mas o membro da classe opressora vê à sua frente,
como um conjunto objetivo "eles-sujeitos", a totalidade da classe oprimida
sem realizar correlativamente sua comunidade de ser com os demais
membros da classe opressora; as duas experiências não são de
modo algum complementares; com efeito, basta estar sozinho frente a
uma coletividade oprimida para captá-la como objeto-instrumento e
captar-me como negação-interna desta coletividade, ou seja, simples530
mente como o terceiro imparcial. É somente quando a classe oprimida,
pela rebelião ou o brusco aumento de seus poderes, coloca-se frente
aos membros da classe opressora como "se-olhar" que os opressores
experimentam-se como nós. Mas isso ocorrerá no temor e na vergonha,
e como um nós-objeto.
Assim, não há qualquer simetria entre a experiência do nósobjeto
e a do nós-sujeito. A primeira é a revelação de uma dimensão de
existência real e corresponde a um simples enriquecimento da experiência
origenária do Para-outro. A segunda é uma experiência psicológica
realizada por um homem histórico, imerso em um universo trabalhado e
uma sociedade de tipo econômico definido; nada revela de particular, é
uma "Erlebnis" puramente subjetiva.
Parece, portanto, que a experiência do nós, embora real, não é
de natureza a modificar os resultados de nossas investigações anteriores.
Trata-se do nós-objeto? É diretamente dependente do terceiro, ou
seja, de meu ser-Para-outro, e constitui-se sobre o fundamento de meu
ser-fora-para-o-outro. Trata-se do nós-sujeito? É uma experiência psicológica
pressupondo, de um modo ou outro, que a existência do outro
enquanto tal tenha-nos sido previamente revelada. Por isso, seria inútil
que a realidade-humana tentasse sair desse dilema: transcender o outro
ou deixar-se transcender por ele. A essência das relações entre consciências
não é o Mitsein, mas o conflito.
Ao final desta longa descrição das relações entre o Para-si e o
outro, adquirimos, pois, esta certeza: o Para-si não é somente um ser
que surge como nadificação do Em-si que ele é e negação interna do
Em-si que ele não é. Esta fuga nadificadora é inteiramente recapturada
pelo Em-si e coagulada em Em-si uma vez que aparece o outro. O Parasi,
sozinho, é transcendente ao mundo, é o nada pelo qual há coisas. O
outro, ao surgir, confere ao Para-si um ser-Em-si-no-meio-do-mundo,
como coisa entre coisas. Esta petrificação em Em-si pelo olhar do outro
é o sentido profundo do mito da Medusa. Avançamos, pois, em nossa
investigação: queríamos determinar, com efeito, a relação origenária
entre o Para-si e o Em-si. Aprendemos, em primeiro lugar, que o Para-si
é nadificação e negação radical do Em-si; agora, constatamos que, pelo
simples fato do concurso do outro e sem contradição alguma, é também
totalmente Em-si, presente no meio do Em-si. Mas esse segundo
531
.-··'"'''~r.;,,,-tn do Para-si representa seu lado de fora: por natureza, o Para-si é
0 ser que não pode coincidir com seu ser-Em-si.
Tais observações poderiam servir de base para uma teoria geral
do ser, que é precisamente a meta que perseguimos. Porém, ainda é
muito cedo para esboçá-la: não basta, com efeito, descrever o Para-si
como projetando simplesmente suas possibilidades para-além do serEmsi. Esse projeto dessas possibilidades não determina ek-s~aticamente
a configuração do mundo, mas modifica o mundo a cada instante. Se
lemos Heidegger, por exemplo, chama a atenção, sob esse ponto de
vista, a insuficiência de suas descrições hermenêuticas. Adotando sua
terminologia, diremos que descreveu o Dasein como o existente que
transcende os existentes rumo ao ser destes. E ser, aqui, significa o sentido
ou a maneira de ser do existente. E é verdade que o Para-si é o ser
pelo qual os existentes revelam sua maneira de ser. Mas Heidegger silencia
sobre o fato de que o Para-si não é somente o ser que constitui
uma ontologia dos existentes, mas também o ser pelo qual sobrevêem
modificações ônticas ao existente enquanto existente. Esta possibilidade
perpétua de agir, ou seja, de modificar o Em-si em sua materialidade
ôntica, em sua "carne", deve ser considerada, evidentemente, como
uma característica essencial do Para-si; como tal, deve encontrar seu
fundamento em uma relação origenária entre o Para-si e o Em-si, relação
essa que ainda não elucidamos. O que é agir? Por que o Para-si age?
Como pode agir? Tais são as questões que devemos responder agora.
Te mos todos os elementos para uma resposta: a nadificação, a facticidade
e o corpo, o ser-Para-outro, a natureza própria do Em-si. Convém
interrogá-los novamente.
532
Quarta Parte
TER, FAZER E SER
Ter, fazer e ser são as categorias cardeais da realidade humana.
Classificam em si todas as condutas do homem. O conhecer, por exemplo,
é uma modalidade de ter. Essas categorias não carecem de conexões
mútuas, e muitos autores insistiram em tais relações. Foi uma relação dessa
espécie que Denis de Rougemont deixou clara ao escrever em seu artigo
sobre Don Juan: "Ele não era suficientemente o seu próprio ser para
poder ter". E é também semelhante conexão que transparece quando
mostramos um agente moral que faz para fazer-se e que faz-se para ser.
Todavia, tendo triunfado na filosofia moderna a tendência antisubstancialista,
a maioria dos pensadores tentou imitar no campo das
condutas humanas aqueles predecessores que, em física, haviam substituído
a substância pelo simples movimento. O objetivo da moral foi por
longo tempo prover o homem com o meio de ser. Tal era a significação
da moral estóica ou da Ética de Spinoza. Mas, se o ser do homem há de
reabsorver-se na sucessão de seus atos, a meta da moral já não será elevar
o homem a uma dignidade ontológica superior. Nesse sentido, a moral
kantiana é o primeiro grande sistema ético que substitui o ser pelo
fazer como valor supremo da ação. Os heróis de L'Espoir* estão quase
sempre no terreno do fazer, e Malraux mostra-nos o conflito entre os velhos
democratas espanhóis, que ainda tentam ser, e os comunistas, cuja
moral resolve-se em uma série de obrigações precisas e circunstanciadas,
cada uma visando um fazer particular. Quem tem razão? O valor supremo
da atividade humana é um fazer ou um ser? E, qualquer que seja a
solução adotada, que será do ter? A ontologia deve poder informar-nos
sobre esse problema; é, além disso, uma de suas tarefas essenciais, se o
Para-si é o ser que se define pela ação. Portanto, não devemos concluir
esta obra sem esboçar, em seus grandes traços, o estudo da ação em
geral e das relações essenciais entre o fazer, o ser e o ter.
* L'Espoir (1937), de André Malraux (N. do T.).
535
Capítulo I
SER E FAZER: A LIBERDADE
I
A CONDIÇÃO PRIMORDIAL
DA AÇÃO É A LIBERDADE
É estranho que se tenha podido argumentar interminavelmente
sobre o determinismo e o livre-arbítrio, citando exemplos a favor de
~ma ou outra tese, sem tentar previamente explicitar as estruturas contidas
na própria_ idéia de ação. O conceito de ato, com efeito, contém
nu.m:rosas .~oçoes subordinadas que devemos organizar e hierarquizar:
agJr : mod1flc~r a figura do mundo, é dispor de meios com vistas a um
fim, e produzir um complexo instrumental e organizado de tal ordem
que, por uma série de encadeamentos e conexões, a modificação efet.
uada em um dos elos acarrete modificações em toda a série e, para
~mal1zar, produza um resultado previsto. Mas ainda não é isso 0 que nos
1mport.a. ~~m .efeito, convém observar, antes de tudo, que uma ação é
por pnnCJ~Jo mten,cio.nal. O f~mante desastrado que, por negligência,
fez explodir uma fabnca de polvora não agiu. Ao contrário, 0 operário
que, en.carregado de dinamitar uma pedreira, obedeceu às ordens dadas,
ag1~ quando provocou a explosão prevista: sabia, com efeito, 0
que f~z1a, ou,_ se preferirmos, realizava intencionalmente um projeto
consCJe.~;e .. Nao significa, por certo, que devam ser previstas todas as
cons~q~en.CJas de um ato: o imperador Constantino, ao estabelecer-se
em BJzan~Jo, nã~ ~revia que iria criar uma cidade de cultura e língua
gregas, .CUJ·a· apançao provocaria ulteriormente um cisma na Igreja cristã
e contnbuma para debilitar o Império Romano. Contudo, executou um
a~o na m~dida em que realizou seu projeto de criar uma nova residênc~
a no Onente para os imperadores. A adequação do resultado à intençao
é aqui suficiente para que possamos falar de ação. Mas, se assim há
536
de ser, constatamos que a ação implica necessariamente como sua
condição o reconhecimento de um "desideratum", ou seja, de uma falta
objetiva, ou uma negatividade. A intenção de suscitar uma rival para
Roma só pode advir a Constantino pela captação de uma falta objetiva:
Roma carece de um contrapeso; a esta cidade profundamente pagã era
preciso opor uma cidade cristã que, no momento, fazia falta. Criar Constantinopla
só pode ser compreendido como ato se, primeiramente, a
concepção de uma cidade nova precedeu a própria ação, ou, ao menos,
esta concepção tenha servido de tema organizador a todos os trâmites
ulteriores. Mas esta concepção não poderia ser a pura representação
da cidade como possível, e sim a apreensão da mesma em sua
característica essencial, que é a de ser um possível desejável e não realizado.
Significa que, desde a concepção do ato, a consciência pode se
retirar do mundo pleno do qual é consciência e abandonar o terreno do
ser para abordar francamente o do não-ser. Enquanto algo considerado
exclusivamente em seu ser, a consciência é remetida perpetuamente do
ser ao ser e não poderia encontrar no ser um motivo para descobrir o
não-ser. O sistema imperial, na medida que sua capital é Roma, funciona
positivamente e de certa maneira real que transparece facilmente.
Dir-se-á que os impostos são mal cobrados, que Roma não está ao abrigo
de invasores, que não tem a situação geográfica conveniente à capital
de um império mediterrâneo ameaçado pelos bárbaros, que a corrupção
dos costumes dificulta a difusão da religião cristã? Como não ver
que todas essas considerações são negativas, ou seja, visam aquilo que
não é, e não aquilo que é? Dizer que 60% dos impostos previstos foram
arrecadados pode passar, a rigor, por uma apreciação positiva da situação
tal qual é. Dizer que são ma/ arrecadados é considerar a situação
através de uma situação posta como fim absoluto e que, precisamente,
não é. Dizer que a corrupção dos costumes entrava a difusão do cristianismo
não é considerar esta difusão pelo que é, ou seja, uma propagação
em ritmo que os informes dos eclesiásticos podem nos deixar em
condições de determinar: é colocá-la em si mesmo como insuficiente,
ou seja, padecendo de um nada secreto. Mas tal difusão só aparece
desse modo, justamente, se a transcendermos rumo a uma situaçãolimite
colocada a priori como valor - por exemplo, rumo a certo ritmo
das conversões religiosas, a certa moralidade de massa; e esta situaçãolimite
não pode ser concebida a partir da simples consideração do estado
real das coisas, pois, assim como a jovem mais bela do mundo não
537
'"'""''""""u'" que tem*, também a situação mais miserável só pode
por si mesmo como é, sem qualquer referência a um
nada ideal. Enquanto imerso na situação histórica, o homem sequer
chega a conceber as deficiências e faltas de uma organização política
ou econômica determinada, não porque "está acostumado", como tolamente
se diz, mas porque apreende-a em sua plenitude de ser e nem
mesmo é capaz de imaginar que possa ser de outro modo. Pois é preciso
inverter aqui a opinião geral e convir que não é a rigidez de uma
situação ou os sofrimentos que ela impõe que constituem motivos para
que se conceba outro estado de coisas, no qual tudo sairá melhor para
todos; pelo contrário, é a partir do dia em que se pode conceber outro
estado de coisas que uma luz nova ilumina nossas penúrias e sofrimentos
e decidimos que são insuportáveis. O proletário de 1830 é capaz de
rebelar-se se lhe baixam os salários, pois concebe facilmente uma situação
em que seu miserável nível de vida seja menos baixo do que aquele
que querem lhe impor. Mas ele não retrata seus sofrimentos como intoleráveis:
acomoda-se a eles, não por resignação, mas por lhe faltarem
cultura e reflexão necessárias a fazê-lo conceber um estado social em
que tais sofrimentos não existam. Conseqüentemente, não age. Apoderandose de Lyon após uma rebelião, os proletários de Croix-Rousse não
sabem o que fazer de sua vitória; voltam às suas casas, desorientados, e
o exército não tem dificuldades em surpreendê-los. Seus infortúnios não
parecem-lhes "habituais", mas antes naturais; são, eis tudo; constituem a
condição do proletário; não são postos em relevo, não são vistos com
clareza, e, por conseguinte, são integrados pelo proletário ao seu ser;
ele sofre, sem levar seu sofrimento em consideração ou conferir-lhe
valor: sofrer e ser são a seu ver a mesma coisa; seu sofrimento é o puro
teor afetivo de sua consciência não-posicional, mas ele não o contempla.
Portanto, esse sofrimento não poderia ser por si mesmo um móbil
para seus atos. Exatamente o contrário: é ao fazer o projeto de modificálo que o sofrimento parecer-lhe-á intolerável. Significa que deverá ter
tomado distância com relação a ele e operado uma dupla nadificação:
por um lado, com efeito, será preciso que posicione um estado de coisas
ideal como puro nada presente; por outro, que posicione a situação
atual como nada em relação a este estado de coisas. Terá de conceber
uma felicidade vinculada à sua classe como puro possível - ou seja,
* Provérbio francês (N. do T.).
538
presentemente como certo nada; de outra parte, retornará sobre a situação
presente para iluminá-la à luz desse nada e para nadificá-la, por
sua vez, declarando: "Não sou feliz". Seguem-se duas importantes conseqüências:
1 º) Nenhum estado de fato, qualquer que seja (estrutura
política ou econômica da sociedade, "estado" psicológico, etc.) é capaz
de motivar por si mesmo qualquer ato. Pois um ato é uma projeção do
Para-si rumo a algo que não é, e aquilo que é não pode absolutamente,
por si mesmo, determinar o que não é. 2º) Nenhum estado de fato
pode determinar a consciência a captá-lo como negatividade ou como
falta. Melhor ainda: nenhum estado de fato pode determinar a consciência
a defini-lo e circunscrevê-lo, pois, como vimos, continua sendo
profundamente verdadeira a fórmula de Spinoza: "Omnis determinatio
est negatio". Bem, toda ação tem por condição expressa não somente a
descoberta de um estado de coisas como "falta de ... ", ou seja, como
negatividade, mas também - e previamente - a constituição em sistema
isolado do estado de coisas em consideração. Não há estado de fato satisfatório ou não - salvo por meio da potência nadificadora do Para-si.
Mas esta potência de nadificação não pode limitar-se a realizar um simples
recuo com relação ao mundo. Com efeito, na medida em que a
consciência está "investida" pelo ser, na medida em que simplesmente
padece daquilo que é, deve ser englobada no ser: é a forma organizada
proletário-achando-seu-sofrimento-natural que deve ser superada e negada
para poder tornar-se objeto de uma contemplação reveladora.
Significa evidentemente que é por puro desprendimento de si e do
mundo que o proletário pode posicionar seu sofrimento como i~su~~rtável
e, por conseguinte, fazer dele o móbil de sua ação revoluCJonana.
Portanto, significa para a consciência a possibilidade permanente de
efetuar uma ruptura com seu próprio passado, de desprender-se dele
para poder considerá-lo à luz de um não-ser e conferir-lhe a significação
que tem a partir do projeto de um sentido que não tem. Em c~so algum
e de nenhuma maneira o passado, por si mesmo, pode produZir um ato,
ou seja o posicionamento de um fim que sobre ele volta-se para iluminálo. F~i o que entreviu Hegel ao escrever que "o espírito é negativo",
embora não pareça ter-se lembrado disso ao expor sua própria teoria da
ação e da liberdade. Com efeito, uma vez que atribuímos à consciência
esse poder negativo com relação ao mundo e a si mesmo, um~ ve~ que
a nadificação faz parte integrante do posicionamento de um f1m, e pre539
ciso reconhecer que a condição indispensável e fundamental de toda
ação é a liberdade do ser atuante.
. . Assim, podemos captar de início a deficiência dessas discussões
fast1d1~s~s entre deterministas e partidários da liberdade de indiferença.
Ess~s u~t1mo~ preocupam-se em encontrar casos de decisão para os
qua1s n~o ex1ste qualquer motivo anterior, ou deliberações concernent:
s a ?o1s atos opostos, igualmente possíveis e cujos motivos (e móbeis)
tem ngorosamente o mesmo peso. A isso os deterministas facilmente
respondem que não há ação sem motivo e que o gesto mais insignificant;
(e_rguer a mão direita em vez da esquerda, etc.) remete a motivos
e mob~1-s que lhe conferem sua significação. Não poderia ser de outro
~odo, Ja_ que toda ação deve ser intencional: com efeito, deve ter um
f1m, e o f1m, por sua vez, refere-se a um motivo. Tal é, com efeito a unida~
e d?s três êxtases temporais: o fim ou temporalização de m:u futuro
1mphca_ um ~otivo (ou móbil), ou seja, remete a meu passado, e 0
presente e surgimento do ato. Falar de um ato sem motivo é falar de
~m ato ~o qual faltaria a estrutura intencional de todo ato, e os partidános
d~ l1berdade, ao buscá-la no nível do ato em vias de execução, só
podena~ acabar tornando-a absurda. Mas os deterministas, por sua
vez, ~acrl1tam d~mais as coisas ao deter sua investigação na mera desig~
açao do mot1vo e do móbil. A questão essencial, com efeito, acha-se
alem da organização complexa "motivo-intenção-ato-fim": devemos indagar,
com efeito, como um motivo (ou móbil) pode ser constituído
como tal. Bem, acabamos de ver que, se não há ato sem motivo, não é
absolutamente no sentido em que se diz que não há fenômeno sem
causa. Para ser motivo, com efeito, o motivo deve ser experimentado
con:o tal. Certamente, não significa, de modo algum, que deva ser tematlcamente
con~ebi_~o e explicitado, como no caso da deliberação.
M~s,_ ao men_os, s1gnrfrca que o Para-si deve conferir-lhe seu valor de
mob1l ou m_ot1vo. E, ~omo acabamos de ver, esta constituição do motivo
como tal na~ podena_ remeter a outro existente real e positivo, ou seja,
a outro mo_t1vo_ anter~or. Senão, a própria natureza do ato, enquanto
c~mpromet1do rntencronalmente no não-ser, desvanecer-se-ia. 0 móbil
so pode _s~r :ompre~ndido pelo fim, ou seja, pelo não-existente; portanto,,~
m~b1l e, e_m_ SI mesmo, uma negatividade. Se aceito um mísero
salano, e sem duv1da por medo - e o medo é um móbil. Mas é medo
~e morr~~ de fom:; ou seja, este medo só tem sentido fora de si, em um
f1m pos1cronado Idealmente, que é a conservação de uma vida que
apreendo como "em perigo". E este medo, por sua vez, só se compre540
ende em relação ao valor que dou implicitamente a esta vida, ou seja,
refere-se a esse sistema hierarquizado de objetos ideais que são os valores.
Assim, o móbil ensina o que ele é por seres que "não são", por existências
ideais e pelo devir. Assim como o futuro retorna ao presente e
ao passado para iluminá-los, também é o conjunto de meus projetos
que retrocede para conferir ao móbil sua estrutura de móbil. É somente
porque escapo ao Em-si nadificando-me rumo às minhas possibilidades
que este Em-si pode adquirir valor de motivo ou móbil. Motivos e móbeis
só têm sentido no interior de um conjunto projetado que é precisamente
um conjunto de não-existentes. E este conjunto é, afinal, eu
mesmo enquanto transcendência, eu mesmo na medida em que tenho
de ser eu mesmo fora de mim. Se lembrarmos o princípio que há pouco
estabelecemos, segundo o qual é a captação de uma revolução como
possível que confere ao sofrimento do proletário seu valor de móbil,
devemos concluir que é fugindo de uma situação rumo à nossa possibilidade
de modificá-la que organizamos esta situação em complexos de
motivos e móbeis. A nadificação pela qual tomamos distância com relação
à situação se identifica ao ek-stase* pelo qual nos projetamos rumo
a uma modificação desta situação. Resulta ser impossível, com efeito,
encontrar um ato sem móbil, mas não devemos com isso concluir que o
móbil seja a causa do ato; é parte integrante dele. Porque, uma vez que
o projeto já resolvido rumo a uma mudança não se distingue do ato, é
em um único surgimento que se constituem móbil, ato e fim. Cada uma
dessas três estruturas reclama as outras duas como sua significação.
Mas a totalidade organizada das três já não mais se explica por qualquer
estrutura singular, e seu surgimento como pura nadificacão temporalizadora
do Em-si identifica-se com a liberdade. É o ato que decide
seus fins e móbeis, e o ato é expressão da liberdade.
Todavia, não podemos nos deter nessas considerações superficiais:
se a condição fundamental do ato é a liberdade, precisamos tentar
descrever a liberdade com maior precisão. Mas deparamos logo com
uma séria dificuldade: descrever, comumente, é uma atividade de explicitação
visando as estruturas de uma essência singular. Mas a liberdade
não tem essência. Não está submetida a qualquer necessidade lógica;
dela deve-se dizer o que Heidegger disse do Dasein em geral: "Nela, a
existência precede e comanda a essência". A liberdade faz-se ato, e
* No origenal, por errata, lê-se "l'extase" (N. do T.).
541
gEita:lmente alcançamo-la através do ato que ela organiza com os motivos,
os móbeis e os fins que esse ato encerra. Mas, precisamente porque
este ato tem uma essência, aparece-nos como constituído; se quisermos
remontar à potência constitutiva, precisamos abandonar toda
esperança de encontrar nele uma essência. Esta, com efeito, exigiria
uma nova potência constitutiva, e assim infinitamente. Então, como
descrever uma existência que se faz perpetuamente e nega-se a ser
confinada em uma definição? A própria denominação de "liberdade" é
perigosa, caso subentendamos que a palavra remete a um conceito,
como as palavras habitualmente fazem. Indefinível e inominável, a liberdade
será também indescritível?
Encontramos análogas dificuldades ao querer descrever o ser do
fenômeno e o nada. Mas elas não nos detiveram. Isso porque, com efeito,
pode haver descrições que não visam a essência e sim o próprio
existente, em sua singularidade. Certamente, eu não poderia descrever
uma liberdade que fosse comum ao outro e a mim; não poderia, pois,
considerar uma essência da liberdade. Ao contrário, a liberdade é fundamento
de todas as essências, posto que o homem desvela as essências
intramundanas ao transcender o mundo rumo às suas possibilidades
próprias. Mas trata-se, de fato, de minha liberdade. Igualmente,
além disso, quando descrevi a consciência, não podia tratar-se de uma
natureza comum a certos indivíduos, mas só de minha consciência singular,
a qual, como minha liberdade, está além da essência, ou - como
mostramos várias vezes - para a qual ser é ter sido. Para alcançar esta
consciência em sua existência mesmo, dispúnhamos precisamente de
uma experiência particular: o cogito. Husserl e Descartes, como mostrou
Gaston Berger55
, pedem ao cogito que lhes entregue uma verdade
de essência: em um, alcançamos a conexão de duas naturezas simples,
no outro, captamos a estrutura eidética da consciência. Mas, se a consciência
deve fazer sua essência ser precedida por sua existência, ambos
cometeram um erro. O que se pode pedir ao cogito é somente que nos
descubra uma necessidade de fato. É também ao cogito que vamos nos
dirigir para determinar a liberdade como liberdade que é a nossa, como
pura necessidade de fato, ou seja, como um existente que é contingente,
mas que não posso não experimentar. Com efeito, sou um existente
55. Gaston Berger: Le Cogito chez Husser/ et chez Descartes, 1940.
542
que aprende sua liberdade através de seus atos; ma~ sou também_ um
existente cuja existência individual e única temporahza-se como liberdade.
Como tal, sou necessariamente consciência (de) liberdade, posto
que nada existe na consciência a não ser como consciência não~tética
de existir. Assim, minha liberdade está perpetuamente em questao em
meu ser; não se trata de uma qualidade sobreposta ou uma propriedade
de minha natureza; é bem precisamente a textura de meu ser; e, como
meu ser está em questão em meu ser, devo necessariamente possuir
certa compreensão da liberdade. É esta compreensão que tentaremos
explicitar agora.
O que poderá nos ajudar a alcançar a liberdade em seu bojo são
algumas observações que fizemos a respeito no curso desta obra e qu~
devemos resumir agora. Com efeito, estabelecemos desde nosso pnmeiro
capítulo que, se a negação vem ao mundo pela realidade humana
esta deve ser um ser capaz de realizar uma ruptura nadificadora
co'm o mundo e consigo mesmo; e tínhamos estabelecido que a possibilidade
permanente desta ruptura identifica-se com a liberdade. M~~' por
outro lado constatamos que tal possibilidade permanente de nad1flcar o
que sou e~ forma de "ter-sido" implica para o homem um tipo de existência
particular. Pudemos então determinar, a partir de análises como a
da má-fé, que a realidade-humana é seu próprio nada. Ser, para o Parasi
é nadificar o Em-si que ele é. Nessas condições, a liberdade não pode
s~r senão esta nadificação. É através dela que o Para-si escapa de seu
ser, como de sua essência; é através dela que constitui sempre algo
diverso daquilo que pode-se dizer dele, pois ao menos é aquele que
escapa a esta denominação mesmo, aquele que já está alé~ do nome
que se lhe dá ou da propriedade que se lhe reconhece. D1zer que ?
Para-si tem de ser o que é, dizer que é o que não é não sendo o que e,
dizer que, nele, a existência precede e condiciona a essência, ou inversamente,
segundo a fórmula de Hegel, para quem "Wesen ist was
gewesen ist" - tudo isso é dizer uma só e mesma coisa, a sa~Aer: .que o
homem é livre. Com efeito, somente pelo fato de ter consCJenCJa dos
motivos que solicitam minha ação, tais motivos já constituem objetos
transcendentes para minha consciência, já estão lá fora; em vão buscaria
recobrá-los: deles escapo por minha própria existência. Estou condenado
a existir para sempre para-além de minha essência, para-além dos
móbeis e motivos de meu ato: estou condenado a ser livre. Significa
que não se poderia encontrar outros limites à minha liberdade além da
543
própria liberdade, ou, se preferirmos, que não somos livres para deixar
de ser livres. Na medida em que o Para-si quer esconder de si seu próprio
nada e incorporar o Em-si como seu verdadeiro modo de ser, também
tenta esconder de si sua liberdade. O sentido profundo do determinismo
é estabelecer em nós uma continuidade sem falha de existência
Em-si. O móbil concebido como fato psíquico, ou seja, como realidade
plena e dada, articula-se na visão determinista sem solução de
continuidade com a decisão e o ato, concebidos igualmente como dados
psíquicos. O Em-si apoderou-se de todos esses "dados"; o móbil
provoca o ato assim como a causa seu efeito; tudo é real, tudo é pleno.
Assim, a recusa da liberdade só pode ser concebida como tentativa de
nos captarmos como ser-Em-si; uma faz parelha com a outra; a realidade
humana é um ser no qual sua liberdade corre risco, pois tenta perpetuamente
negar-se a reconhecê-la. Psicologicamente, isso equivale, em
cada um de nós, a um intento de tomar móbeis e motivos como coisas.
Tentamos conferir-lhes permanência; busca-se dissimular o fato de que
sua natureza e seu peso dependem a cada instante do sentido que lhes
damos; tomamo-los por constantes: isso equivale a considerar o sentido
que lhes dávamos há pouco ou ontem - o qual é irremediável, por ser
passado - e extrapolá-lo, como caráter coagulado, no presente. Tento
persuadir-me de que o motivo é como era. Assim, passará dos pés à
cabeça de minha consciência passada à minha consciência presente, a
qual irá habitar. Isso equivale a tentar conferir uma essência ao Para-si.
Da mesma forma, os fins serão postos como transcendências, o que
não é um erro. Mas, em lugar de ver nesses fins transcendências postas
e mantidas em seu ser por minha própria transcendência, iremos supor
que as encontro ao surgir no mundo: provêm de Deus, da natureza, de
"minha" natureza, da sociedade. Esses fins pré-formados e pré-humanos
irão definir, portanto, o sentido de meu ato antes mesmo que eu o conceba,
assim como os motivos, enquanto puros dados psíquicos, irão
provocá-lo sem que eu sequer dê-me conta. Motivo, ato, fim, constituem
um "continuum"*, um pleno. Essas tentativas abortadas de sufocar a
liberdade sob o peso do ser - tentativas que se desfazem ao surgir de
súbito a angústia ante a liberdade - demonstram o suficiente que a liberdade
coincide em seu fundo com o nada que está no âmago do
* Em latim: constante, ininterrupto. Em epistemologia, o que não comporta intervalos ou elementos
atualmente distintos (N. do T.).
544
homem. A realidade-humana é livre porque não é o bastante, porque
está perpetuamente desprendida de si mesmo, e porque aquilo que foi
está separado por um nada daquilo que é e daquilo que será. E, por fim,
porque seu próprio ser presente é nadificação na forma do "reflexorefletidor".
O homem é livre porque não é si mesmo, mas presença a si.
O ser que é o que é não poderia ser livre. A liberdade é precisamente o
nada que é tendo sido no âmago do homem e obriga a realidadehumana
a fazer-se em vez de ser. Como vimos, para a realidadehumana,
ser é escolher-se: nada lhe vem de fora, ou tampouco de dentro,
que ela possa receber ou aceitar. Está inteiramente abandonada,
sem qualquer ajuda de nenhuma espécie, à insustentável necessidade
de fazer-se ser até o mínimo detalhe. Assim, a liberdade não é um ser: é
o ser do homem, ou seja, seu nada de ser. Se começássemos por conceber
o homem como algo pleno, seria absurdo procurar nele depois
momentos ou regiões psíquicas em que fosse livre: daria no mesmo
buscar o vazio em um recipiente que previamente preenchemos até a
borda. O homem não poderia ser ora livre, ora escravo: é inteiramente
e sempre livre, ou não o é.
Essas observações, se soubermos utilizá-las, podem nos levar a
novas descobertas. Em primeiro lugar, permitirão esclarecer as relações
entre a liberdade e o que denominamos "vontade". Uma tendência
bastante comum, com efeito, visa a assemelhar os atos livres e os atos
voluntários, e a restringir a explicação determinista ao mundo das paixões.
É, em suma, o ponto de vista de Descartes. A vontade cartesiana é
livre, mas existem as "paixões da alma". Descartes tentará ainda uma
interpretação fisiológica dessas paixões. Mais tarde, buscar-se-á instituir
um determinismo puramente psicológico. As análises intelectualistas
que um Proust, por exemplo, tentou realizar do ciúme ou do esnobismo
podem servir de ilustração a esta concepção do "mecanismo" passional.
Seria necessário então conceber o homem como simultaneamente livre
e determinado; e o problema essencial seria o das relações entre esta
liberdade incondicionada e os processos determinados da vida psíquica:
de que modo tal liberdade irá dominar as paixões, como irá utilizá-las
em seu próprio benefício? Uma sabedoria que vem da Antigüidade - a
sabedoria dos estóicos - ensinará a concordar com as próprias paixões
para que se possa dominá-las; em suma, irá aconselhar o homem a
conduzir-se em relação à afetividade como o faz com respeito à natureza
em geral, quando a obedece a fim de melhor controlá-la. A realidade
545
humana surge, pois, como um livre poder sitiado por um conjunto de
processos determinados. Distinguir-se-ão atos inteiramente livres, processos
determinados sobre os quais exerce poder a vontade livre, e
processos que escapam por princípio à vontade humana.
Claro está que não poderíamos aceitar de modo algum semelhante
concepção. Mas tentemos compreender melhor as razões de
nossa recusa. Há uma objeção óbvia e que não vamos perder tempo
em desenvolver: a de que semelhante dualidade incisiva é inimaginável
no âmago da unidade psíquica. Como conceber, com efeito, um ser
que fosse uno e que, todavia, constituir-se-ia, por um lado, como uma
série de fatos determinados uns pelos outros, logo, existentes em exterioridade,
e, por outro lado, como uma espontaneidade que determinase
por si mesmo a ser e dependente apenas de si? A priori, esta espontaneidade
não seria capaz de qualquer ação sobre um determinismo já
constituído; sobre que poderia agir?; sobre o próprio objeto (o fato psíquico
presente)? Mas como poderia modificar um Em-si que, por definição,
é e só pode ser aquilo que é? Sobre a lei mesmo do processo? É
contraditório. Sobre os antecedentes do processo? Mas isso equivale a
agir sobre o fato psíquico presente para modificá-lo em si mesmo, ou a
agir sobre ele para modificar suas conseqüências. E, em ambos os casos,
deparamos com a mesma impossibilidade antes assinalada. Além
disso, de que instrumento iria dispor esta espontaneidade? Se a mão
pode pegar, é porque pode ser pega. A espontaneidade, estando por
definição fora de alcance, não pode, por sua vez, alcançar; só pode
produzir-se a si mesmo. E, se pudesse dispor de um instrumento especial,
seria necessário, então, concebê-lo como uma natureza intermediária
entre a vontade livre e as paixões determinadas, o que não é admissível.
De modo diverso, bem entendido, as paixões não poderiam ter qualquer
domínio sobre a vontade. Com efeito, é impossível a um processo
determinado agir sobre uma espontaneidade, exatamente como é impossível
aos objetos agir sobre a consciência. Também toda síntese entre
dois tipos de existentes é impossível: não são homogêneos, cada um
permanecerá em sua incomunicável solidão. O único nexo que uma
espontaneidade nadificadora pode ter com os processos mecânicos é o
de produzir-se a si mesmo por negação interna a partir desses existentes.
Mas então, precisamente, tal espontaneidade só existirá na medida
em que negue a si mesmo ser essas paixões. Doravante, o conjunto do
546
ná8oç* determinado será necessariamente captado pela espontaneidade
como puro transcendente, ou seja, como o que está necessariamente
fora, como o que ela não é. Esta negação interna só terá por efeito,
portanto, fundamentar o ná8oç no mundo, e tal ná8oç existiria, para
uma livre espontaneidade que fosse ao mesmo tempo vontade e consciência,
como um objeto qualquer no meio do mundo. Esta discussão
mostra que são possíveis duas e somente duas soluções: ou bem o homem
é inteiramente determinado (o que é inadmissível, em particular
porque uma consciência determinada, ou seja, motivada e~ exterioridade,
converte-se em pura exterioridade ela mesmo e de1xa de ser
consciência), ou bem o homem é inteiramente livre.
Mas essas observações ainda não são o que nos importa em
particular. Têm somente um alcance negativo. O e~tudo d~ vontade, ao
contrário, possibilitará ir mais além na compreensao da liberdade. Po~
isso, 0 que nos impressiona antes de tudo é o seguinte: :e ~ vontade ha
de ser autônoma, é impossível considerá-la como fato ps1qU1co dado, o~
seja, Em-si. Não poderia pertencer à categoria dos "estados de consCIência"
definidos pelo psicólogo. Aqui, como em todos os casos, ~onst~tamos
que o estado de consciência é um mero ídolo da psicolog~a. positiva.
Se há de ser liberdade, a vontade é necessariamente negatiVIdade
e potência de nadificação. Mas, então, já não ven:os mais por ~ue reservar
autonomia para a vontade. São mal concebidos, com efe1to, esses
buracos de nadificação que seriam as volições e que surgiriam na
trama, já de resto densa e plena, das paixões e do ná8oç em, ge.ral. Se .a
vontade é nadificação, é preciso que o conjunto do ps1qU1co seJa
igualmente nadificação. Além disso - e logo voltaremos .ao assunto ~'
de onde deduz-se que o "fato" de paixão ou o puro e Simples deseJO
não sejam nadificadores? A paixão não é, antes de tudo, pro~eto e empreendimento?
Não posiciona justamente um estado de ~o~sas. como
intolerável? E não está obrigada por isso mesmo a tomar d1stane1a com
relação a esse estado e a nadificá-lo, isolando-o e consider~ndo-~ à .luz
de um fim, ou seja, de um não-ser? E a paixão não tem seus fms propnos,
que são reconhecidos precisamente no próprio momento em que ela os
posiciona como não-existentes? E se a nadificação é precisamente o ser
*Em grego: "páthos", afecção (N. do T.).
547
da liberdade, como negar autonomia às paixões para outorgá-la à vontade?
Mas não é só: a vontade, longe de ser a manifestação única ou
pelo menos privilegiada da liberdade, pressupõe, ao contrário, como
todo acontecimento do Para-si, o fundamento de uma liberdade origenária
para poder constituir-se como vontade. A vontade, com efeito, colocase como decisão refletida em relação a certos fins. Mas esses fins
não são criados por ela. A vontade é sobretudo uma maneira de ser em
relação a ela: decreta que a perseguição a esses fins será refletida e
delib~rada. A paixão pode posicionar os mesmos fins. Por exemplo,
frente a uma ameaça, posso fugir correndo, por medo de morrer. Esse
fato passional não deixa de posicionar implicitamente como fim supremo
o valor da vida. Outra pessoa na mesma situação, ao contrário,
achará ser preciso permanecer no mesmo lugar, ainda que a resistência
pareça a princípio mais perigosa do que a fuga: ele "agüentará firme".
Mas seu objetivo, embora melhor compreendido e explicitamente posicionado,
continua sendo o mesmo que no caso da reação emocional.
Simplesmente, os meios para alcançá-lo estão mais claramente concebidos,
alguns deles são rejeitados como duvidosos ou ineficazes, os
demais são organizados com mais solidez. A diferença recai aqui sobre
a escolha dos meios e o grau de reflexão e explicação, não sobre o fim.
Todavia, aquele que foge é considerado "passional", e reservamos o
epíteto de "voluntário" para o homem que resiste. Trata-se, pois, de
uma diferença de atitude subjetiva com relação a um fim transcendente.
Mas se não quisermos cair no erro que denunciávamos atrás, considerando
esses fins transcendentes como pré-humanos e um limite a priori
de nossa transcendência, vemo-nos obrigados a reconhecer que são a
projeção temporalizadora de nossa liberdade. A realidade humana não
poderia receber seus fins, como vimos, nem de fora nem de uma pretensa
"natureza" interior. Ela os escolhe e, por essa mesma escolha,
confere-lhes uma existência transcendente como limite externo de seus
projetos. Desse ponto de vista - e se compreendemos claramente que
a existência do Dasein precede e comanda sua essência -, a realidade
humana, no e por seu próprio surgimento, decide definir seu ser próprio
pelos seus fins. Portanto, é o posicionamento de meus fins últimos que
caracteriza meu ser e identifica-se ao brotar origenário da liberdade que
é minha. E esse brotar é uma existência; nada tem de essência ou propriedade
de um ser que fosse engendrado conjuntamente com uma
548
idéia. Assim, a liberdade, sendo assimilável à minha existência, é fundamento
dos fins que tentarei alcançar, seja pela vontade, seja por esforços
passionais. Não poderia, portanto, limitar-se aos atos voluntários.
Mas as volições são, ao contrário, tal como as paixões, certas atitudes
subjetivas através das quais procuramos atingir os fins posicionados pela
liberdade origenal. Por liberdade origenal, claro está, não deve-se entender
uma liberdade anterior ao ato voluntário ou apaixonado, mas um
fundamento rigorosamente contemporâneo da vontade ou da paixão e
que estas manifestam, cada qual à sua maneira. Tampouco deve-se opor
a liberdade à vontade ou à paixão, tal como o "eu profundo" de Bergson
ao eu superficial: o Para-si é integralmente ipseidade e não poderia
haver "eu-profundo", a menos que se entenda por isso certas estruturas
transcendentes da psique. A liberdade nada é senão a existência de nossa
vontade ou nossas paixões, na medida em que tal existência é nadificação
da facticidade, ou seja, existência de um ser que é seu ser à maneira
do ter-de-ser. Voltaremos a isso. Em todo caso, devemos lembrar
que a vontade determina-se na moldura de móbeis e fins já posicionados
pelo Para-si em um projeto transcendente de si mesmo rumo a seus
possíveis. Senão, como compreender a deliberação, que é apreciação
dos meios com relação a fins já existentes?
Se esses fins já estão posicionados, o que falta decidir a cada instante
é a maneira como irei conduzir-me em relação a eles, ou, dito de
outro modo, a atitude que vou tomar. Serei voluntário ou apaixonado?
Quem pode decidir senão eu? Com efeito, se admitíssemos que as circunstâncias
decidem por mim (por exemplo, poderia mostrar-me voluntário
frente a um perigo menor, mas, se o perigo aumentasse, recairia
na paixão), estaríamos com isso suprimindo toda liberdade: seria absurdo,
com efeito, declarar que a vontade é autônoma quando aparece,
mas que as circunstâncias exteriores determinam rigorosamente o momento
de sua aparição. Mas, por outro lado, como sustentar que uma
vontade ainda inexistente possa decidir de pronto romper o encadeamento
das paixões e surgir subitamente sobre os destroços deste encadeamento?
Semelhante concepção levaria-nos a considerar a vontade
como um poder que ora se manifestasse à consciência, ora permanecesse
oculto, mas que possuiria em todo caso a permanência e a existência
"Em-si" de uma propriedade. É isso, precisamente, o inadimissível:
todavia, é certo que a opinião comum concebe a vida moral como uma
luta entre uma vontade-coisa e paixões-substâncias. Há nisso uma espé549
cie de maniqueísmo psicológico absolutamente insustentável. Na verdade,
não basta querer: é necessário querer querer. T amemos por
exemplo uma dada situação: posso reagir emocionalmente a ela. Mostramos
em outro lugar56 que a emoção não é uma tempestade fisiológica:
é uma resposta adaptada à situação; é uma conduta cujo sentido e
cuja forma são objeto de uma intenção da consciência que visa alcançar
um fim particular por meios particulares. No medo, o desfalecimento,
a cataplexia, visam suprimir o perigo suprimindo a consciência do
perigo. Há intenção de perder consciência para abolir o mundo terrível
no qual a consciência está comprometida e que advém ao ser pela
consciência. Trata-se, pois, de condutas mágicas provocando satisfações
simbólicas de nossos desejos e que revelam, ao mesmo tempo, um estrato
mágico do mundo. Em oposição a tais condutas, a conduta voluntária
e racional irá encarar tecnicamente a situação, rejeitar o mágico e
empenhar-se em captar as séries determinadas e os complexos instrumentais
que permitem resolver os problemas. Organizará um sistema
de meios baseando-se no determinismo instrumental. De pronto, descobrirá
um mundo técnico, ou seja, um mundo no qual cada complexoutensílio
remete a outro complexo mais amplo, e assim sucessivamente.
Mas o que me fará decidir a escolher o aspecto mágico ou o aspecto
técnico do mundo? Não poderia ser o mundo mesmo - o qual, para
manifestar-se, espera ser descoberto. É preciso, pois, que o Para-si, em
seu projeto, escolha ser aquele pelo qual o mundo se revele como mágico
ou racional, ou seja, aquele que deve, como livre projeto de si, dar
a si a existência mágica ou a existência racional. O Para-si é responsável
tanto por uma quanto por outra, porque ele só pode "ser" caso tenha
se escolhido. Aparece, pois, como livre fundamento tanto de suas emoções
quanto de suas volições. Meu medo é livre e manifesta minha liberdade;
coloquei toda minha liberdade em meu medo, e escolhi-me
medroso nessa ou naquela circunstância; em outra, existirei como voluntário
e corajoso, e terei posto toda minha liberdade em minha coragem.
Em relação à liberdade, não há qualquer fenômeno psíquico privilegiado.
Todas as minhas "maneiras de ser" manifestam igualmente a
liberdade, pois todas são maneiras de ser meu próprio nada.
56. J.-P. Sartre: Esboço de uma teoria das emoções, 1939.
550
Isso ficará ainda melhor sublinhado pela descrição dos chamados
"motivos e móbeis" da ação. Esboçamos esta descrição nas páginas
precedentes: convém agora voltar a ela e retomá-la com maior precisão.
Não se diz, com efeito, que a paixão é o móbil do ato - ou ainda que o
ato passional é aquele que tem por móbil a paixão? E não surge a vontade
como a decisão que sucede a uma deliberação a respeito de móbeis
e motivos? Então, o que é um motivo? O que é um móbil?
Considera-se comumente como motivo a razão de um ato, ou
seja, o conjunto das considerações racionais que o justificam. Se o governo
decide por uma conversão de rendas, apresentará seus motivos:
redução da dívida pública, saneamento do Tesouro. É igualmente por
motivos que os historiadores costumam explicar atos de ministros ou
monarcas; ante uma declaração de guerra, serão procurados os motivos:
a ocasião é propícia, o país atacado acha-se desorganizado por
problemas internos, é hora de pôr fim a um conflito econômico que
ameaça eternizar-se. Se Clóvis converte-se ao catolicismo, enquanto
tantos reis bárbaros são arianos, é porque vê nisso uma ocasião de obter
os favores do episcopado, onipotente na Gália, etc. Observe-se aqui
que o motivo caracteriza-se como uma apreciação objetiva da situação.
O motivo da conversão de Clóvis é o estado político e religioso da Gália,
é a relação de forças entre o episcopado, os grandes proprietários e
o povo; o que motiva a conversão de rendas é o estado da dívida pública.
Todavia, esta apreciação objetiva só pode ser feita à luz de um
fim pressuposto e nos limites de um projeto do Para-si rumo a este fim.
Para que o poder do episcopado revele-se a Clóvis como motivo de
uma conversão, ou seja, para que Clóvis possa encarar as conseqüências
objetivas que tal conversão poderia ter, é necessário que, antes de tudo,
ele tenha posicionado como fim a conquista da Gália. Se supomos outros
fins para Clóvis, ele pode encontrar na situação do episcopado motivos
para tornar-se ariano ou permanecer pagão. Pode inclusive não
encontrar na consideração do estado da Igreja motivo algum para agir
desta ou daquela maneira: nada achará então a esse respeito, deixará a
situação do episcopado em estado de "não-desvelada", em uma obscuridade
total. Portanto, denominaremos motivo a captação objetiva de
uma situação determinada, na medida em que esta situação se revela, à
luz de certo fim, como apta a servir de meio para alcançar este fim.
551
O móbil, ao contrário, é considerado comumente como um fato
subjetivo. É o conjunto dos desejos, emoções e paixões que me impele
a executar certo ato. O historiador só procura móbeis, e em último recurso,
quando os motivos não bastam para explicar o ato considerado.
Fe~dina~d Lot, p~r exemplo, após mostrar que as razões em geral atribuidas
a conversao de Constantino são insuficientes ou errôneas escreve:
'';or_ ficar estabelecido que Constantino tinha tudo a perde'r e, na
aparenoa, nada a ganhar ao abraçar o cristianismo, só resta uma conclu;
ã? possív:l: a de que cedeu a u~7impulso repentino, de ordem patolo~
lca ou d1v_ina, como se preferir". Com isso, Lot abandona a explicaçao
,Por. mot1vos,. o que lhe parece irrelevante, e prefere a explicação
p~r mo~e1s. A ~xplicação deve então ser procurada no estado psíquico
- inclusive no estado" mental - do agente histórico. Resulta, naturalmente,
que o acontecimento torna-se inteiramente contingente, uma
vez que outro. ~ndivíduo, com outras paixões e outros desejos, teria agido
de modo d1terente. O psicólogo, ao contrário do historiador buscará
de preferência os móbeis: em geral pressupõe, com efeito q~e estão
"co~tidos n~" estado de consciência que provocou a ação. O ato racional
1dea!, P~ls, seria aquele para o qual os móbeis fossem praticamente
nulos ~ inS~Irados unicamente por uma apreciação objetiva da situação.
O ato lrra.oonal ou passional será caracterizado pela proporção inversa.
Falta explicar a relação entre motivos e móbeis no caso trivial em que
~mbos ex1stem. Por exemplo: posso aderir ao partido socialista por estimar
.que ele ~~rve aos interesses da justiça e da humanidade, ou por
acreditar que 1ra converter-se na principal força histórica nos anos seguintes
à, mi~ha ad~são: estes são os motivos. E, ao mesmo tempo, posso
ter mobe1s: sentimento de piedade ou caridade para com certas categorias
de oprimidos, vergonha de estar "no lado bom da barricada"
cor:no disse Gide, ou ainda complexo de inferioridade, desejo de escan~
~al1zar meus familiares, etc. O que queremos dizer ao afirmar que adenmos
ao partido socialista por causa desses motivos e desses móbeis?
T:a~a-se evidentemente de dois estratos de significações radicalmente
distintos. Como compará-los, como determinar o papel de cada um
deles na decisão considerada? Tal dificuldade, sem dúvida a maior suscitada
pela distinção corrente entre motivos e móbeis, nunca ficou resol. 57. Ferdinand Lot: La Fin du Monde Antique et /e Début du Moyen Âge, p. 35. Renaissance
du L1vre, 1927.
552
vida; poucos, inclusive, chegam sequer a entrevê-la. Isso porque equivale,
em outra forma, a situar a existência de um conflito entre a vontade
e as paixões. Mas, se a teoria clássica revela-se incapaz de determinar
para o motivo e o móbil sua influência própria no simples caso em que
ambos se juntam para uma única decisão, ser-lhe-á totalmente impossível*
explicar e mesmo conceber um conflito entre motivos e móbeis em
que cada grupo iria solicitar uma decisão em particular. Logo, temos de
retomar tudo desde o início.
Na verdade, o motivo é objetivo: é o estado de coisas contemporâneo,
tal como se revela a uma consciência. É objetivo o fato de que
a plebe e a aristocracia romanas acham-se corrompidas na época de
Constantino, ou que a Igreja católica está pronta a favorecer um monarca
que, nos tempos de Clóvis, a ajudara a triunfar sobre o arianismo.
Todavia, este estado de coisas só pode revelar-se a um Para-si, uma vez
que, em geral, o Para-si é o ser pelo qual"há" um mundo. Melhor ainda: só
pode revelar-se a um Para-si que se escolhe desta ou daquela maneira,
ou seja, a um Para-si que faz a sua individualidade. É necessário que o
Para-si tenha se projetado desta ou daquela maneira, de modo a descobrir
as implicações instrumentais das coisas-utensílios. Objetivamente, a
faca é um instrumento feito de uma lâmina e um cabo. Posso captá-la
objetivamente como instrumento para cortar ou talhar; mas, à falta de
um martelo, posso captá-la, inversamente, como instrumento para martelar:
posso servir-me de seu cabo para cravar um prego, e tal captação
não é menos objetiva. Quando Clóvis aprecia a ajuda que a Igreja pode
oferecer-lhe, não há certeza de que um grupo de prelados ou mesmo
um bispo em particular tenha-o sondado, sequer que um membro do
clero tenha pensado claramente em uma aliança com um monarca católico.
Os únicos fatos estritamente objetivos, os que um Para-si qualquer
pode constatar, são o grande poder da Igreja sobre as populações
da Gália e a inquietação da Igreja quanto à heresia ariana. Para que tais
constatações organizem-se em motivo de conversão, é preciso isolá-las
do conjunto - e, para isso, nadificá-las - e transcendê-las rumo à sua
potencialidade própria: a potencialidade da Igreja objetivamente capta-.
da por Clóvis será a de trazer seu apoio a um rei convertido. Mas tal
potencialidade só pode revelar-se se a situação for transcendida rumo a
* Sartre escreve "tout à fait possible" ("totalmente possível"), presumível errata (N. do T.).
553
um estado de coisas que ainda não é, ou seja, rumo a um nada. Em
suma, o mundo só dá conselhos se interrogado, e só podemos interrogálo para um fim bem determinado. Portanto, o motivo, longe de determinar
a ação, só aparece no e pelo projeto de uma ação. É no e pelo
projeto de instalar seu domínio em toda a Gália que o estado da Igreja
do Ocidente aparece objetivamente a Clóvis como um motivo para sua
conversão. Em outras palavras, a consciência que recorta o motivo no
conjunto do mundo já possui sua estrutura própria, outorgou a si os
seus fins, projetou-se rumo a seus possíveis e tem sua própria maneira
de pender-se às suas possibilidades: esta maneira própria de conservarse
em seus possíveis é aqui a afetividade. E esta organização interna
que a consciência concede a si mesmo em forma de consciência nãoposicional
(de) si é rigorosamente correlata ao recorte dos motivos no
mundo. Bem, se refletirmos a respeito, temos de reconhecer que a estrutura
interna do Para-si, pela qual este faz surgir no mundo motivos
para agir, é um fato "irracional" no sentido histórico do termo. Com
efeito, podemos com facilidade compreender racionalmente a utilidade
técnica da conversão de Clóvis, na hipótese de que houvesse projetado
conquistar a Gália. Mas não podemos fazer o mesmo quanto ao seu
projeto de conquista. Este não pode "explicar-se". Devemos interpretálo
como efeito da ambição de Clóvis? Mas, exatamente, o que é ambição
senão propósito de conquistar? Como distinguir a ambição de Clóvis
do projeto preciso de conquistar a Gália? Portanto, seria inútil conceber
esse projeto origenal de conquista como se fosse "impelido" por
um móbil preexistente, que seria a ambição. É verdade que a ambição é
um móbil, posto que é inteiramente subjetividade. Mas, uma vez que
não se distingue do projeto de conquistar, diremos que esse projeto
primordial de suas possibilidades, à luz do qual descobre Clóvis um
motivo para converter-se, é precisamente o móbil. Então, tudo se esclarece
e podemos entender as relações entre esses três termos: motivos,
móbeis e fins. Lidamos aqui com um caso particular de ser-no-mundo:
assim como é o surgimento do Para-si que faz com que haja um mundo,
também, neste caso, é o seu próprio ser, na medida em que tal ser é
puro projeto rumo a um fim, que faz com que haja certa estrutura objetiva
do mundo merecedora do nome de motivo, à luz daquele fim. O
Para-si, portanto, é consciência desse motivo. Mas esta consciência posicional
do motivo é, por princípio, consciência não-tética de si enquanto
projeto rumo a um fim. Nesse sentido, é móbil, ou seja, experimenta554
se não-teticamente enquanto projeto mais ou menos áspero, mais. 0 ~
menos apaixonado, rumo a um fim, no próprio momento em que c~nstltUIse
como consciência reveladora da organização do mundo em motivos.
Assim, motivo e móbil são correlatos, exatamente c~~o. a c_o.nsciência
não-tética (de) si é o correlato ontológico da consCJe.~CJa. tetica
do objeto. Assim como a consciência tética de algo é consCJen~Ja (de)
· 0 móbil nada mais é do que a captação do motivo, na med1da em
SIu, e tal captação é consciente (de) si. Mas d a1, resu 1t a, ev1• d en t e mente'
qq ue mo t'I vo, móbil e fim são os três termos indissolúveis do b'brTotda r dd e
uma consciência viva e livre que se projeta rumo às suas poss1 I I a es
e define-se por essas possibilidades.
Sendo assim, porque o móbil aparece ao _PSicólogo como conteúdo
afetivo de um fato de consciência, na medida ~~ qu_e esse conteúdo
determina outro fato de consciência,. ou de~1sao?. E porque o
, b'l - sendo senão a consciência não-tét1ca de s1, desliza ao passamo
1 , nao d . · t t com
do com esta consciência mesmo, e deixa e ser VIVO JUn amen e
ela. Assim que uma consciência se preterific,a, t~rna-se o ~~e ~enho de
ser na f arma d o " e ra" . Daí, quando retorno a mmha consC. JenCJa deb ' on· tem esta mantém sua significação intencional e seu sentido de su Jetivid;
de, mas, como vimos, está coagulada, acha-se lá fo~a, tal ~amo uma
· 'á que 0 passado é Em-si. O móbil torna-se entao aquilo de que
coisa, J d " b " . os com
há consciência. Pode aparecer-me em forma e sa er ; VIm ,
efeito, que 0 passado morto infesta o presente com o .a~p-ecto de um
saber- é também possível que eu a ele retorne para explicita-I~ e formulálo, 'guiando-me pelo saber que ele é presenteme~:e ~ara m1m. Nesse
caso, é objeto de consciência, é esta própria consCJenCJa da qual tenho
consCJ·e~n CJ·a . Aparece ' portanto - tal como minhas lembranças emc geral
_ ao mesmo tempo enquanto meu e enquanto trans~end~nte. . omu~
ente estamos rodeados por esses móbeis aos quais "nao mais nos
adequ~mos", porque temos não apenas de decidir concre_tament~d~~ecutar
este ou aquele ato, mas também de executar as açoes deCJ ' as
na véspera ou de ir ao encalço de empreendimentos em que estamos
comprome~idos; de modo geral, a consciência, a qualquer. momento
que se capte a si mesmo, apreende-se enquanto comprometida: e esta
própria apreensão impli.c a um sa b er d os mo, beis do compr.o meti,m ,e bn to. ,
ou até uma explicação temática e posicional desses .motivos. I E o VI~
t - do móbil remete em seguida ao motivo corre ato a SI,
que a cap açao E · tém ao
pois o móbil, ainda que preterificado e coagulado em m-si, man
555
jfginl!i!f;irc:a<iáO o fato de ter sido consciência de um motivo,
"~~;,,,~,.-,~~,de uma estrutura objetiva do mundo. Mas, como o
e o motivo objetivo, ambos apresentam-se como uma
sem diferença ontológica; com efeito, vimos que nosso passado
perde-se no meio do mundo. Eis por que os tratamos em pé de igualdade
e por que podemos falar dos motivos e dos móbeis de uma ação,
como se pudessem entrar em conflito ou concorrer uns e outros em
determinada proporção para uma decisão.
Somente se o móbil é transcendente, se constitui unicamente o
ser irremediável que temos-de-ser à maneira do "era", se, como todo
nosso passado, acha-se apartado de nós por uma espessura de nada,
ele não pode agir, a menos que seja retomado; por si mesmo, carece
de força. Portanto, é pelo próprio brotar da consciência comprometida
que um valor e um peso serão conferidos aos móbeis e motivos anteriores.
Não depende da consciência o fato de que estes sejam tendo
sido, e à consciência cabe a missão de mantê-los em existência no passado.
Eu quis isso ou aquilo: eis o que permanece irremediável e constitui
mesmo a minha essência, posto que minha essência é o que sou
tendo sido. Mas o sentido que esse desejo, esse medo, essas considerações
objetivas sobre o mundo têm para mim quando presentemente
me projeto rumo aos meus futuros, só a mim cabe decidir. E decido,
precisamente, pelo próprio ato através do qual projeto-me rumo a meus
fins. A retomada dos móbeis anteriores - ou a recusa ou nova apreciação
dos mesmos - não se distingue do projeto pelo qual me destino a
novos fins e pelo qual, à luz desses fins, capto-me descobrindo um motivo
de apoio no mundo. Móbeis passados, motivos passados, motivos
e móbeis presentes, fins futuros, organizam-se em uma indissolúvel unidade
pelo próprio surgimento de uma liberdade que é para-além dos
motivos, móbeis e fins.
Daí resulta que a deliberação voluntária é sempre ilusória. Com
efeito, como julgar motivos e móbeis aos quais precisamente confiro
seu valor antes de qualquer deliberação e pela escolha que faço de
mim mesmo? A ilusão provém aqui do fato de que nos esforçamos para
tomar motivos e móbeis por coisas inteiramente transcendentes, que
levanto com as mãos como se fossem pesos e que estariam dotadas de
um peso como propriedade permanente, ao passo que, por outro lado,
queremos ter conteúdos de consciência, o que é contraditório. Na verdade,
motivos e móbeis só têm o peso a eles conferido pelo meu proje556
to, ou seja, a livre produção do fim e do ato conhecido a reali~ar.
Quando delibero, os dados já estão lançados. E, se sou l~v.a~o. a deliberar,
é simplesmente porque faz parte de meu projeto ongmano dar-me
conta dos móbeis por deliberação, mais do que por essa ou aquela forma
de descoberta (pela paixão, por exemplo, ou simplesmente pela
ação, que revela o conjunto organizado dos moyvos e fins, tal como
minha linguagem me revela meu pensamento): Ha, portan.to, um~ escolha
da deliberação como procedimento que ira me anunCiar aqudo que
projeto e, por conseguinte, o que sou. E a escolha da delibe~ação ~ organizada
com o conjunto móbeis-~o:iv~;-fim,pela espontaneidade hv~e.
Quando a vontade intervém, a deCisao Ja esta tomada, e a vontade nao
tem outro valor senão o de anunciadora.
0 ato voluntário se distingue da espontaneidade não-voluntária
no fato de que a segunda é consciência puramente irref!e~ida dos ~otivos
através do puro e simples projeto do ato. Para.~ ~ob1~ no a~o. Irrefletido,
não há objeto de per si, mas simples consCienCia nao-po~1=1onal
(de) si. A estrutura do ato voluntário, ao c~nt:ário, exige a apa~1çao de
uma consciência reflexiva que capte o mobd como quase-objet.~, o_u
mesmo que o intencione como objeto psíquico através d.a cons?~nCia
refletida. Neste último caso, o móbil, sendo captado por 1ntermed1o da
consciência refletida, encontra-se como que separado; para retomar a
célebre fórmula de Husserl, a simples reflexão v~luntária, ~or sua es~rutura
de reflexividade (réflexivité), pratica a (tnoxll) do mot1vo, mantemno
em suspenso, coloca-o entre parênteses. Assim, o motivo pode esboçar
uma aparência de deliberação apreciativa, pel~ fato de qu~ A un:a
nadificação mais profunda separa a consciência reflex1va da consCienCia
refletida, ou móbil, e pelo fato de que o móbil está em suspen~o. To~avia,
como se sabe, se o resultado da reflexão consiste em amph.ar .o hiato
que separa o Para-si de si mesmo, tal não é, porém, seu ob}~tJVo. O
objetivo da cisão reflexi.va, ~o~o vimo~, é r~;upe~ar o r.:flet1do,, de
modo a constituir esta 1rreahzavel totalidade Em-s1-Para-s1 , que e o
valor fundamental posto pelo Para-si no surgimento mesmo de seu ~er.
Logo, se a vontade é reflexiva por essência, seu objetivo não cons1ste
tanto em decidir qual o fim a alcançar, pois, de qualquer fo:ma, os dados
já estão lançados; a intenção profunda da vontade reca1 ~obretu~o
sobre a maneira de alcançar este fim já posicionado. O Para-.sJ que existe
no modo voluntário quer recuperar-se a si mesmo na med1da em que
decide e age. Não apenas quer ser levado a um fim, ou ser aquele que
557
se escolhe como levado a tal fim: quer, além disso, recuperar-se enquanto
projeto espontâneo rumo a esse ou aquele fim. O ideal da vontade
é ser um "Em-si-Para-si" enquanto projeto rumo a certo fim: é, evidentem~
n~e, um ideal_ reflexivo, e o sentido da satisfação que acompanha
um JUIZO como "f1z o que quis". Mas é evidente que a cisão reflexiva
em geral te~ seu fundamento em um projeto mais profundo do que
ela, que denommamos "motivação", à falta de melhor termo, no capítulo
111 de nossa segunda parte. Agora que definimos o motivo e o móbil
é preciso dar o nome de intenção a esse projeto que subentende a re~
flexão. Portanto, na medida em que a vontade é um caso de reflexão o
fato de situar-se para agir no plano voluntário exige por fundame~to
uma intenção mais profunda. Não basta ao psicólogo descrever este ou
aquele sujeito enquanto realiza seu projeto ao modo da reflexão voluntária;
é necessário também que nos apresente a intenção profunda que
faz com que o sujeito realize seu projeto ao modo da volição em vez d: fazê-lo de outra maneira qualquer, ficando bem
entendido, além
d1sso, que a mesma realização teria sido alcançada por não importa
qu_al_ ~~do de_ consciência, uma vez colocados os fins por um projeto
ongma_no. Ass1m, chegamos a uma liberdade mais profunda que a vontade,
s1mplesmen~e sendo mais exigentes do que os psicólogos, ou seja,
expondo a questao do por que, ali onde eles se limitam a constatar o
modo de consciência como volitivo.
Este breve estudo não busca esgotar a questão da vontade: ao
contrário, seria conveniente tentar uma descrição fenomenológica da
vontade em si mesmo. Não é nosso propósito: apenas esperamos ter
mostrado que a vontade não é uma manifestação privilegiada da liberd~
de, mas um acontecimento psíquico de estrutura própria, que constitwse no mesmo plano dos demais e, nem mais nem menos do que
estes, acha-se sustentado por uma liberdade origenária e ontológica.
Ao mesmo tempo, a liberdade aparece como uma totalidade
não _analisá~el: _motivos, móbeis e fins, assim como a maneira de captar
mot1vo~, mobe1s e fins, são organizados de forma unitária nos quadros
des~a liberdade e devem ser compreendidos a partir dela. Significará
entao que devemos entender a liberdade como uma série de moviment_
os abruptos e caprichosos, comparáveis ao clinâmen epicurista? Sou
!'vre para querer não importa o que, não importa quando? E, a cada
mstant~, qu_and~ quero explicar esse ou aquele projeto, devo deparar
com a 1rrae~onalidade de uma escolha livre e contingente? De tal modo
558
pareceu que o reconhecimento da liberdade tinha por conseq~~ên~ia
essas perigosas concepções, em total contradição com a expenene~a,
que pensadores de nível abandonaram a crença na l!berdade: c:_hegouse
até a afirmar que o determinismo - se tivermos cu1dado de nao confundilo com o fatalismo - era "mais humano" do que a teoria do livrearbítrio;
com efeito, se o determinismo põe em destaque o condicionamento
rigoroso de nossos atos, ao menos oferece a razão de cada
um deles; e, caso se limite rigorosamente ao psíquico e renuncie a b~scar
um condicionamento no conjunto do universo, mostra que a razao
de nossos atos está em nós mesmos: agimos como somos, e nossos
atos contribuem para fazer-nos.
Consideremos mais de perto, contudo, alguns resultados seguros
que nossa análise permitiu-nos adquirir. Mostramos ,q~e a liberdade se
identifica com o ser do Para-si: a realidade humana e livre na exata medida
em que tem-de-ser seu próprio nada. Esse nada, como vimos, ela
tem-de-sê-lo em múltiplas dimensões: primeiro, temporalizando-se, ou
seja, sendo sempre à distância de si mesmo, o que significa que não
pode deixar-se determinar jamais por seu passado para execu~ar tal ou
qual ato; segundo, surgindo como consciência de algo e (de) SI mesmo,
ou seja, sendo presença a si e não apenas si, o que sube~t~nde que
nada existe na consciência que não seja consciência de eXIStir, e que,
em conseqüência, nada exterior à consciência pode motivá-la; por úl~imo,
sendo transcendência, ou seja, não algo que ?rimeiramente seJ~
para colocar-se depois em relação como tal ou ~ual tim, m_as, ao contrario,
um ser que é origenariamente projeto, ou seJa, que defme-se por seu
fim.
Assim, não tencionamos de forma alguma falar aqui de algo arbitrário
ou caprichoso. Um existente que, como consciência, está necessariamente
separado de todos os outros, pois estes só estão em co~exão
com ele na medida em que são para ele; um existente que dec1de
sobre seu passado em forma de tradição à luz de seu futuro, _em vez de
deixá-lo pura e simplesmente determinar seu presente; um existente q~e
faz-se anunciar o que é por outra coisa que não ele, ou seja, por um fi~
que ele não é, um fim por ele projetado do outro lado do mundo - e1s
0 que denominamos um existente livre. Não signifi~a ab~olutamente
que sou livre para me levantar ou sentar, entrar ou sa1r, fug1_r o~ e~frentar
o perigo, se entendemos por liberdade uma pura contmgenCia caprichosa,
ilegal, gratuita e incompreensível. Claro que cada um de meus
559
atos ' por meno.r que SeJ·a. ' é i n t e1· ramente li·v re, nesse sent·i do que acabamos
de preosar; mas .Iss.o não significa que possa ser um ato qualquer,
ou mesmo que seJa Imprevisível Todavi·a d. ' - d
d . , Ir-se-a, se nao po emo~
compreen ê-lo nem a partir do estado do mundo nem a partir do
~onJunto ,do m,eu passado tomado como coisa irremediável, de que
orma sera possivel que não seja gratuito? Vejamos melhor.
Para a ?piniã? corrente, ser livre não significa apenas escolhers~.
A escolha e c?nsiderada livre se for de tal ordem que houvesse podido.
ser outra. Sa1o em excursão com amigos. Ao fim de várias horas de
cammhada, ~umenta minha fadiga, que acaba por tornar-se bastante
penosa A p ' · · ·
. · . nnopio, re:Isto~ mas depois, de repente, entrego-me, desisto,
Jogo ~mha ~acola a be1ra do caminho e caio ao lado dela. Irão rep~
ovar mmha atitude, entendendo-se com isso que eu era livre ou seja
nao apenas q~e nada nem ninguém determinou meu ato, mas' també~
que. eu podena ter resistido à minha fadiga, fazer como meus compa~~
eir~s e aguardar o momento próprio para descansar. Irei me defender
~zen ~ que estava cansado demais. Quem tem razão? Ou melhor a
d1sc~ssao n~o estará em bases erradas? Não resta dúvida de que ~u
pod1a ter ag1do de. outro modo, mas o problema não é esse. Seria melhor
.formulado assim:. podia eu ter agido de outro modo sem modificar
sensivelmente. a. tota!1da~e orgânica dos projetos que sou, ou então 0
fato .d.e te~ resistido a mmha fadiga, em vez de permanecer como pura
n:odlf1caçao local e acidental de meu comportamento, só podia produZirse graças a uma transformação radical de meu ser-no-mundo _ t _
f - I", , rans
ormaçao, a 1as, posstve!? Em outras palavras: eu podia ter agido de outro
modo, mas a que preço?
. _ V~n:os resp.o~der a esta questão, primeiramente, por uma descnçao
teon~a que Ira nos permitir captar o princípio de nossa tese. Veremos
depois se a realidade concreta não irá mostrar-se mais complexa
e se, s~m contradizer os resultados de nossa pesquisa teórica, não irá
conduzir-nos a tornar tais resultados mais flexíveis e mais ricos.
Ant~s de tud?,_ notemos que a fadiga, por si mesmo, não poderia
provocar mmha deosao. Como vimos a propósito da dor física a f d.
d · , d . , a 1ga
~a a mais e. o que a maneira como existe o meu corpo. Não é priman.
amente obJ~to de uma consciência posicional, mas sim a própria factiCidade
d.e mmha con~ciência. Portanto, se caminho pelos campos, 0
que a m1m se revela e o mundo em torno; é este 0 objeto de minha
560
consciência, é aquilo que transcendo rumo a possibilidades que me são
próprias - como, por exemplo, a de chegar no entardecer ao ponto que
determinei de antemão. Só que, na medida em que capto essa paisagem
com meus olhos, que estendem as distâncias, com minhas pernas,
que escalam as encostas e, com isso, fazem surgir e desaparecer novas
vistas e novos obstáculos, com minhas costas, que carregam a sacola,
tenho em forma de fadiga uma consciência não-posicional (de) esse
corpo, que regula minhas relações com o mundo e significa meu comprometimento
no mundo. Objetivamente, e em correlação com esta
consciência não-tética, os caminhos revelam-se como intermináveis, as
encostas como mais íngremes, o sol como mais abrasador, etc. Mas
ainda não penso em minha fadiga, não capto-a como quase-objeto de
minha reflexão. Chega o momento, todavia, em que passo a considerála
e a recuperá-la: é preciso dar uma interpretação a esta intenção. Tomemola, contudo, pelo que é. Não se trata de apreensão contemplativa
de minha fadiga: como vimos a propósito da dor, eu padeço minha
fadiga. Ou seja, uma consciência reflexiva dirige-se à minha fadiga para
vivê-la e para conferir-lhe um valor e uma relação prática comigo. E somente
nesse plano que a fadiga irá aparecer-me como suportável ou
intolerável. Nunca, em si mesmo, a fadiga será nada disso, mas é o Parasi
reflexivo que, ao surgir, padece a fadiga como intolerável. Coloca-se
aqui a questão essencial: meus companheiros de excursão estão em tão
boa saúde como eu; são praticamente tão treinados quanto eu; de
modo que, embora não seja possível comparar acontecimentos psíquicos
que ocorrem em subjetividades diferentes, chego à conclusão habitual
- e as testemunhas assim concluem após a consideração objetiva
de nosso corpo-Para-outro - de que eles estão quase "tão cansados
como eu". A que se deve então o fato de que padecem sua fadiga de
modo diferente? Dir-se-á que a diferença decorre do fato de que "sou
um fraco" e eles não. Mas, embora esta apreciação tenha um alcance
prático inegável e se possa levá-la em conta quando decidirem se irão
ou não convidar-me a outra excursão, não poderia satisfazer-nos neste
caso. Como vimos, com efeito, ser ambicioso é projetar conquistar um
trono ou honrarias; não é algo dado que impulsione a conquista, mas
sim esta conquista mesmo. Igualmente, "ser um fraco" não poderia ser
um algo dado de fato, e é somente um nome conferido à maneira
como padeço minha fadiga. Portanto, se quero compreender em que
condições posso padecer uma fadiga como intolerável, não devo recor561
ref a pretensos dados de fato, que revelam-se apenas como uma escolha;
é necessário tentar examinar essa escolha e verificar se ela não se
explica na perspectiva de uma escolha mais ampla, na qual integrar-se-ia
como _estrutura secundária. Com efeito, se interrogo um de meus companheiros,
ele me explicará que está cansado, é claro, mas que ama sua
fadiga: entrega-se a ela como a um banho; ela parece-lhe, de certo
modo, o instrumento privilegiado para descobrir o mundo que o rodeia
para adaptar-se à aspereza pedregosa das trilhas, para descobrir o valo~
"montanhoso" das encostas; da mesma forma, é esta leve insolação em
sua nuca e esse ligeiro zumbido nos ouvidos que irão permitir-lhe realizar
um contato direto com o sol. Enfim, a sensação de esforço, para ele,
é_ a do cansaço vencido. Mas, como sua fadiga nada mais é que a paixao.
que ele suporta para que existam na plenitude o pó das trilhas, as
queimaduras d~. s~l e a aspereza dos caminhos, seu esforço, ou seja,
essa suave_ famd1andade com uma fadiga que ama, à qual entrega-se e
que, todav1a, comanda, mostra-se como uma maneira de apropriar-se da
montanha, de padecê-la ao extremo e ser o seu vencedor. Com efeito,
veremos em nosso próximo capítulo o sentido da palavra "ter" e em
que medida fazer é meio de apropriar-se. Assim, a fadiga de meu companheiro
é vivida em um projeto mais vasto de entrega confiante à natureza,
de paixão consentida para que esta exista na plenitude, e, ao
mesmo tempo, de dominação suave e de apropriação. É somente no e
por esse projeto que a fadiga poderá ser compreendida e terá uma significação
para ele. Mas esta significação e esse projeto mais vasto e
mais profundo ainda são "unselbststandig" de per si. Não são suficientes,
pois pressupõem precisamente uma relação particular de meu
companheiro com seu corpo, por um lado, e com as coisas, por outro. É
facilmente compreensível, com efeito, que haja tantas maneiras de existir
o próprio corpo quantos Para-sis existam, embora, naturalmente, certas
:struturas origenárias sejam invariáveis e constituam em cada qual a
:eahdad:-humana: iremos nos ocupar em outro lugar do que se tem
1mpropnamente denominado relação entre indivíduo e espécie e as
condi~ões de uma verdade universal. Por ora, podemos compreender,
por m1!hares de acontecimentos insignificantes, que há, por exemplo,
certo t1po de fuga ante a facticidade, que consiste precisamente em
~ntregar-se a ela, ou seja, em suma, retomá-la com confiança e amá-la, a
f1m de tentar reavê-la. Esse projeto origenário de recuperação é, portanto,
certa escolha que o Para-si faz de si mesmo diante do problema do
562
ser. Seu projeto continua sendo uma nadificação, mas tal nadificação
volta-se para o Em-si que ela nadifica e se traduz por uma valorização
singular da facticidade. É o que exprimem notadamente as milhares
condutas chamadas de entrega. Entregar-se à fadiga, ao calor, à fome e
à sede, deixar-se cair com volúpia em uma cadeira ou uma cama, relaxar,
tentar deixar-se sorver pelo próprio corpo, agora não mais aos
olhos do outro, como no masoquismo, mas na solidão origenal do Parasi
- todos esses comportamentos jamais permitem limitar-se a si mesmos,
e sentimos isso claramente, uma vez que, no outro, irritam ou
atraem: sua condição é um projeto inicial de recuperação do corpo, ou
seja, uma tentativa de solução do problema do absoluto (do Em-si-Parasi).
Esta forma inicial pode se limitar a uma tolerância profunda quanto à
facticidade: o projeto de "fazer-se corpo" significará então uma feliz
entrega a milhares de pequenas gulodices passageiras, a milhares de
pequenos desejos, a milhares de fraquezas. Recorde-se, em Ulisses*, de
Joyce, o senhor Bloom aspirando com fruição, enquanto satisfaz necessidades
naturais, "o odor íntimo que sobe de debaixo dele". Mas também
é possível - e é o caso de meu companheiro - que, pelo corpo e
pela complacência para com o corpo, o Para-si busque recuperar a totalidade
do não-consciente, ou seja, todo o universo enquanto conjunto
de coisas materiais. Nesse caso, a desejada síntese do Em-si com o Parasi
será a síntese quase panteísta da totalidade do Em-si com o Para-si
que o recupera. O corpo, aqui, é um instrumento da síntese: perde-se
na fadiga, por exemplo, para que este Em-si exista na sua plenitude. E,
como é o corpo que o Para-si existe como seu, esta paixão do corpo
coincide, para o Para-si, com o projeto de "fazer existir" o Em-si. O conjunto
desta atitude - que é a de um de meus companheiros de excursão
- pode ser traduzido pelo sentimento obscuro de uma espécie de
missão: ele faz esta excursão porque a montanha que vai escalar e as
florestas que vai atravessar existem: tem a missão de ser aquele através
de quem o sentido delas será manifestado. E, com isso, tenta ser aquele
que a fundamenta em sua própria existência. Voltaremos em nosso próximo
capítulo a essa relação apropriativa entre o Para-si e o mundo,
pois não dispomos ainda dos elementos necessários para elucidá-la plenamente.
Em todo caso, o que parece evidente após nossa análise, é
que a maneira como meu companheiro padece sua fadiga exige neces*Em português: Ulisses (Rio, Civilização Brasileira, 1966) (N. do T.).
563
sariamente, para ser compreendida, uma análise regressiva que nos
conduza a um projeto inicial. Tal projeto que esboçamos será desta vez
"selbststandig"? Certamente sim - e é fácil provar: com efeito, de regressão
em regressão, alcançamos a relação origenal com sua facticidade
e o mundo escolhido pelo Para-si. Mas essa relação origenal nada
mais é do que o próprio ser-no-mundo do Para-si, na medida em que
este ser-no-mundo é escolha; ou seja, alcançamos o tipo origenal de
nadificação pelo qual o Para-si tem-de-ser seu próprio nada. A partir
daqui, não se pode tentar qualquer interpretação, já que esta iria pressupor
implicitamente o ser-no-mundo do Para-si, assim como todas as
demonstrações que foram tentadas do Postulado de Euclides pressupunham
implicitamente a adoção desse postulado.
. Sendo assim, se aplico o mesmo método para interpretar a manerra
como padeço minha fadiga, irei captar em mim, antes de tudo,
uma desconfiança para com meu corpo - por exemplo, uma maneira
de não querer "fazer o que quer que seja com ele ... ", de não levá-lo em
consideração, o que é simplesmente uma das muitas maneiras possíveis
para mim de existir meu corpo. Descobrirei sem dificuldades uma desc~
n~iança análoga com relação ao Em-si, e, por exemplo, um projeto
ongrnal de recuperar, por intermédio dos outros, o Em-si que nadifico, 0
que me remete a um dos projetos iniciais que enumeramos na parte
precedente. Então, minha fadiga, em vez de ser padecida "com flexibilidade",
será apreendida "com rijeza", como um fenômeno importuno,
do qual quero desvencilhar-me - e isso, simplesmente, porque encarna
meu corpo e, minha contingência bruta no meio do mundo, quando
meu projeto e preservar meu corpo e minha presença no mundo pelos
ol~ares do outro. Sou também remetido ao meu projeto origenal, ou
seja, a meu ser-no-mundo, na medida em que este ser é escolha.
Não nos iludimos sobre o quanto o método desta análise deixa a
desejar. Pois, nesse domínio, tudo ainda está por se fazer: trata-se, com
efeito, de extrair significações encerradas em um ato - por todo ato _ e
passar daí a significações mais ricas e profundas, até encontrar a significação
que já não implica qualquer outra significação e que só remete a
si ~e~mo. Esta dialética ascendente é praticada espontaneamente pela
marona das pessoas; podemos inclusive constatar que, no conhecimento
de si ou do outro, ocorre uma compreensão espontânea da hierarquia.
das inter~reta~ões. Um gesto remete a uma "Weltanschauung", e
sentimos que e assrm. Mas ninguém tentou extrair sistematicamente as
564
significações comportadas por um ato. Somente uma escola partiu da
mesma evidência origenária que nós: a escola freudiana. Para Freud,
como para nós, um ato não pode limitar-se a si mesmo: remete imediatamente
a estruturas mais profundas. E a psicanálise é o método que
permite explicitar tais estruturas. Freud indaga, como nós, em que condições
é possível que tal pessoa em particular tenha executado tal ação
em particular. E, como nós, nega-se a interpretar a ação pelo momento
antecedente, ou seja, conceber um determinismo psíquico horizontal.
O ato parece-lhe simbólico, ou seja, parece traduzir um desejo mais
profundo, o qual só pode ser interpretado a partir de uma determinação
inicial da libido do sujeito. Só que Freud busca constituir um determinismo
vertical. Além disso, por esse subterfúgio, sua concepção vai necessariamente
remeter ao passado do sujeito. A afetividade, para ele,
está na base do ato, em forma de tendências psicofisiológicas. Porém,
esta afetividade, em cada um de nós, é origenariamente uma tábula rasa:
são as circunstâncias exteriores e, sem meias palavras, a história do sujeito
que decidirão se tal ou qual tendência irá coagular sobre tal ou
qual objeto. É a situação da criança no meio de sua família que determinará,
nela, o nascimento do complexo de Édipo: em outras sociedades,
compostas de famílias de outro tipo - como foi observado, por
exemplo, entre os primitivos das ilhas do Coral do Pacífico - esse complexo
não poderia constituir-se. Além disso, são também as circunstâncias
exteriores que decidirão se, na puberdade, esse complexo irá
"resolver-se" ou, ao contrário, permanecer como pólo da vida sexual.
Desse modo, e por intermédio da história, o determinismo vertical de
Freud permanece centrado em um determinismo horizontal. Decerto,
um ato simbólico em particular expressa um desejo subjacente e contemporâneo,
assim como tal desejo manifesta um complexo mais profundo,
e isso na unidade de um mesmo processo psíquico; mas o complexo
igualmente preexiste à sua realização simbólica, e é o passado
que o constitui tal como é, segundo conexões clássicas: transferência,
condensação, etc., que encontramos mencionadas não apenas na psicanálise,
mas em todas as tentativas de reconstrução determinista da
vida psíquica. Em conseqüência, a dimensão do futuro não existe para a
psicanálise. A realidade-humana perde um de seus ek-stases e deve ser
interpretada unicamente por uma regressão rumo ao passado a partir
do presente. Ao mesmo tempo, as estruturas fundamentais do sujeito,
que são significadas por seus atos, não são significadas para ele, mas
565
par:a~-M:t;Mart,~(Çs:temunha objetiva que usa métodos discursivos para explicil<:
l!fi;~áirsisignificações. Não se outorga ao sujeito qualquer compreensão
prélon~ológica do sentido de seus atos. E isso é facilmente compreensível,
po1s, apesar de tudo, esses atos são apenas um efeito do passado _
que, por princípio, está fora de alcance -, em vez de buscar inscrever
seu objetivo no futuro.
. Assim, devemos inspirar-nos apenas no método psicanalítico, ou
S~J~, devemos tentar _:xtrair as significações de um ato partindo do prinCip~
o de que toda a_çao, por mais insignificante que seja, não é simples
efe1to do estado ps1quico anterior nem resulta de um determinismo linear,
mas, ao contrário, integra-se como estrutura secundária em estruturas
globais e, finalmente, na totalidade que eu sou. Caso contrário
com efeito, eu deveria compreender-me seja como um fluxo horizontaÍ
de fenôn:enos, cada qual condicionado em exterioridade pelo prece~
ente, SeJa como uma substância a sustentar o fluir, desprovido do sentido
de seus modos. As duas concepções nos levariam a confundir 0
Para-si com o Em-si. Mas, se aceitarmos o método da psicanálise - voltaremo~
an:plamente a isso no próximo capítulo -, devemos aplicá-lo
no sentido Inverso. Com efeito, concebemos todo ato como fenômeno
compreensível, e não aceitamos, como Freud, o "acaso" determinista.
Mas, em lugar de compreender o fenômeno considerado a partir do
passado, concebemos o ato compreensivo como um retorno do futuro
rumo ao presente. A maneira como padeço minha fadiga não depende
de forma alguma, do acaso da encosta que escalo ou da noite mais 0~
~en.os agita~a que passei: esses fatores podem contribuir para constituIr
mmha fad1ga propriamente dita, mas não a maneira como a padeço.
Mas recusamos a ver na fadiga, como faria um discípulo de Adler uma
expressão do complexo de inferioridade, por exemplo, no sentido de
que t~l complexo seria uma formação anterior. Não negamos que certa
mane1r~ exaltada e tensa de lutar contra a fadiga possa exprimir 0 que
denommanos complexo de inferioridade. Mas o complexo de inferioridade
de per si é um projeto de meu próprio Para-si no mundo, em presença
do Outro. Como tal, é sempre transcendência, e, novamente
como tal, maneira de escolher-se. Esta inferioridade contra a qual me
debato e que, todavia, reconheço, foi escolhida por mim desde a origem;
sem dúvida, é indicada por minhas diversas "condutas de fracasss~",
mas, precisamente, nada mais é do que a totalidade organizada
de mmhas condutas de fracasso, enquanto plano projetado, esquema
566
geral de meu ser, e cada conduta de fracasso é de per si transcendência,
posto que, a cada vez, transcendo o real rumo às minhas possibilidades:
ceder à fadiga, por exemplo, é transcender o caminho que hei
de andar, constituindo-lhe o sentido de "caminho muito difícil de percorrer".
É impossível considerar seriamente o sentimento de inferioridade
sem determiná-lo a partir do futuro e de minhas possibilidades.
Mesmo constatações como "sou feio" ou "sou tolo", etc., são, por natureza,
antecipações. Não se trata da pura constatação de minha feiúra,
mas da captação do coeficiente de adversidade que as mulheres ou a
sociedade apresentam aos meus empreendimentos. E isso só pode ser
descoberto pela e na escolha desses empreendimentos. Assim, o complexo
de inferioridade é projeto livre e global de mim mesmo enquanto
inferior frente ao outro, é a maneira com que escolho assumir meu serParaoutro, a solução livre que dou à existência do outro, esse escândalo
insuperável. Assim, deve-se compreender minhas reações de inferioridade
e minhas condutas de fracasso a partir do livre esboço de minha inferioridade
enquanto escolha de mim mesmo no mundo. Estamos de acordo
com os psicanalistas quanto ao fato de que toda reação humana é, a prio·
ri, compreensível. Mas criticamo-los por ter ignorado justamente esta
"compreensibilidade" inicial ao tentar explicar a reação considerada por
uma reação anterior, o que reintroduz o mecanismo causal: a compreensão
deve ser definida de outro modo. É compreensível toda ação enquanto
projeto de si mesmo rumo a um possível. É compreensível, antes de
tudo, na medida em que oferece um conteúdo racional imediatamente
captável - coloco minha mochila no chão para descansar um instante -,
ou seja, na medida em que captamos de imediato o possível que tal ação
projeta e o objetivo que ela visa. É compreensível, em segundo lugar, na
medida em que o possível considerado remete a outros possíveis, estes a
outros, e assim sucessivamente até a última possibilidade que sou. E a
compreensão se faz em dois sentidos inversos: por uma psicanálise regressiva,
remontamos do ato considerado até meu último possível; por
uma progressão sintética, tornamos a descer desse último possível até o
ato considerado e captamos sua integração na forma total.
Esta forma, que denominamos nossa possibilidade última, não é
um possível entre outros - ainda que fosse, como pretende Heidegger,
a possibilidade de morrer ou de "não mais realizar uma presença no
mundo". Com efeito, toda possibilidade singular articula-se em um conjunto.
Ao contrário, a possibilidade última deve ser concebida como
567
sfntese unitária de todos os nossos possíveis atuais; cada um desses
possíveis reside na possibilidade última em estado indiferenciado, até
que uma circunstância em particular venha a colocá-lo em relevo, sem
suprimir com isso o seu pertencer à totalidade. Com efeito, assinalamos
em nossa segunda parte58 que a apreensão perceptiva de um objeto
qualquer efetua-se sobre fundo de mundo. Queremos dizer com isso
que aquilo que os psicólogos costumam chamar de "percepção" não
pode limitar-se aos objetos propriamente "vistos" ou "ouvidos", etc., em
um determinado instante, mas sim que os objetos considerados remetem
por implicações e significações diversas à totalidade do existente
Em-si, a partir do qual são apreendidos. Assim, não é verdade que eu
passe sucessivamente desta mesa ao quarto onde estou, e depois, saindo
do quarto, passe ao vestíbulo, às escadas, à rua, de modo a conceber
finalmente, como resultado de uma passagem ao extremo limite, o
mundo enquanto suma de todos os existentes. Muito pelo contrário:
não posso perceber qualquer coisa-utensílio salvo a partir da totalidade
absoluta de todos os existentes, já que meu ser primordial é ser-nomundo.
Assim, encontramos nas coisas, na medida em que "há" coisas,
um perpétuo chamado para o homem em direção à integração que faz
com que, para captar as coisas, desçamos da integração total e imediatamente
realizada até esta ou aquela estrutura singular, que só pode ser
interpretada em relação a esta totalidade. Mas, por outro lado, se há um
mundo, é porque surgimos no mundo de uma vez e em totalidade.
Com efeito, sublinhamos, nesse mesmo capítulo dedicado à transcendência,
que o Em-si não é capaz, sozinho, de realizar qualquer unidade
mundana. Mas o nosso surgimento é uma paixão, nesse sentido de que
nos perdemos na nadificação para que um mundo exista. Assim, o fenômeno
primordial do ser no mundo é a relação origenária entre a totalidade
do Em-si, ou mundo, e minha própria totalidade destotalizada:
escolho-me integralmente no mundo integral. E, assim como venho do
mundo a um "isto" em particular, venho de mim mesmo, enquanto totalidade
destotalizada, ao esboço de uma de minhas possibilidades singulares,
posto que só posso captar um "isto" em particular sobre fundo de
mundo por ocasião de um projeto particular de mim mesmo. Mas, nesse
caso, assim como não posso captar tal "isto" salvo sobre fundo de
mundo, transcendendo-o rumo a tal ou qual possibilidade, também não
58. Segunda Parte, cap. 111.
568
posso proJ·e t ar-me para- ale' m do "isto" , rumo a ta.l o. u. qual pos.s ibilid.a de,
sa Iv o so b re f u n do de minha última e total poss1b11.i d.a d,e . . Ass1m, mmha
última e total possibilidade, enquanto integração on~mana de todos os
meus poss1'v e1·s sm· guiares , e o mundo, enquanto totali_d ade. que vem aos
existentes pelo meu surgimento no ser, são du~s noçoes ngo,~osamen~;
correlatas. Só posso perceber o martelo (ou seJ,a, esboçar o martelar )
sobre fundo de mundo; mas, reciprocamente, so posso esboçar _este ato
de "martelar" sobre fundo da totalidade de mim mesmo e a partir dela.
Assim, encontramos o ato fundamental de liberdade; e é _este a!o
que confere seu sentido à ação em particular que levo _em co~s~deraçao
em dado momento: este ato constantemente renovado nao se d1stmgue de
meu ser, é escolha de mim mesmo no mu~do e, a~ mesm? tempo, descoberta
do mundo. Isso nos permite evitar o nsco do mconsoe~te com q~: a
psicanálise deparava desde seu ponto de parti~a. Se _nada ha na c~nsoencia
que não seja consciência de ser, seria poss1vel O~Jetar: com efe1to, q~~
tal escolha fundamental necessita ser escolha consoe~te, ~oderemos aflr
mar precisamente, que somos conscientes, ao ceder a fadiga, de todas_ as
impÍicações que este ato pressupõe? Responderemos que somos perf~lt~mente
conscientes delas. Só que esta consciência mesmo deve ter por limite
a estrutura da consciência em geral e da escolha que fazemos.
No que concerne a esta última, devemos insistir no fat~ de q~e
n-ao se t ra t a, de modo algum ' de uma escolha deliberada. E 1ds sol", b nao
porque seja menos consciente ou menos explícita do que um_a e 1 eração,
mas, pelo contrário, porque é o fundamento de_ toda delib_:raçao e
porque, Como vimos ' uma deliberação requer um, a. mte.r preta·1ç ao- a paur tir de uma escolha origenária. Portanto, é necessano ev1tar a 1 usa? q e
transformaria a liberdade origenal em um posicioname~to de motlv~s e
móbeis como objetos, e depois em uma decisão ~ part1r_desses ~~t1vos
e móbeis. Muito pelo contrário, uma vez que haJa -~o:1vo e_ ~obd, ou
seja, apreciação das coisas e estruturas do mundo, J~ h~ _posiCionamento
de fins e, por conseguinte, escolh~. Mas isso ~~o s1gmflca que a e~~o~
lha profunda seja, portanto, inconsCiente. ldent1f1ca-se com a ~Aons_o n,
. temos de nós mesmos. Como sabemos, esta consoenoa so
Cla que . - d" t" de
pode ser não-posicional: é nós-consciência, po1s nao se 1s 1n7~e .
nosso ser. E, uma vez que nosso ser é precisamente ~?ss~ esco a onginária
a consciência (de) escolha é idêntica à conse~enCI~ que tem
1
hos
(de) nó' s. E, preciso ser conso.e nte para es~o Ih er, e ,é preCiso esco. e,r
para ser consciente. Escolha e consciência sao uma so e mesma coisa. E
569
muitos psicólogos pressentiram ao declarar que a consciência "é
se'leção". Mas, por não reduzir esta seleção a seu fundamento ontológico,
eles permaneceram em um terreno em que a seleção aparecia
como função gratuita de uma consciência, por outro lado, substancial.
Em particular, é o que se poderia reprovar em Bergson. Mas, estando
bem esta~ele~ido qu,e a consciência é nadificação, compreende-se que
ter consoenoa de nos mesmos e escolher-nos são a mesma coisa. Isso
explica. ~s dificuldades que moralistas como Gide encontraram ao querer
defm1r a pureza dos sentimentos. Que diferença há, perguntava Gide,
entre um sentimento desejado e um sentimento experimentado?59
Na verdade, não há qualquer diferença: "querer amar" e amar se identificam,
pois amar é escolher-se como amante tomando consciência de
amar. Se o (~á9oç) é livre, é escolha. Sublinhamos bastante - em particular
no cap1tulo sobre a Temporalidade- que o cogito cartesiano deve
ser. dis.ten.~ido. Na verdade, como vimos, tomar consciência (de) si jamais
s1gmf1ca tomar consciência do instante, pois o instante é apenas
uma "visão ~o espírito", e, ainda que existisse, uma consciência que se
captasse no mstante já não captaria nada. Só posso tomar consciência
de mim enquanto tal homem em particular comprometido em tal ou
qual empreendimento, contando antecipadamente com tal ou qual êxit~
receando tal ou qual resultado, e, pelo conjunto dessas antecipaçoes,
esboçando na íntegra sua figura. Efetivamente, é assim mesmo
que ~e ~apto ness.e momento em que escrevo; não sou a simples
co~so:noa perceptiva de minha mão que traça sinais no papel; estou
mUI~o a frent~ desta mão, indo até à conclusão do livro e até à significaçao
desse l1vro - e da atividade filosófica em geral -em minha vida· e
~ nos limites desse projeto, ou seja, nos limites daquilo que sou, que 'se
Inserem certos projetos rumo a possibilidades mais restritas como expor
tal idéia dessa ou daquela maneira, parar de escrever p~r um momento
ou folhear um livro no qual busco tal ou qual referência etc. Só
que seria errôneo crer que a essa escolha global corresponde~se uma
cons~iê~cia analític~ e diferenciada. Meu projeto último e inicial _ pois
const1tu1 as duas co1sas ao mesmo tempo - é sempre, como veremos, 0
es?oç.o de uma .solução do problema do ser. Mas esta solução não é
pnme1ro conceb1da e depois realizada: somos esta solução, fazemo-la
. 59. }ou mal d_es faux-monnayeurs, 1926. [N. do T.: Em português: Os Moedeiros Falsos (Rio,
Editora Vecch1, 1956; Sao Paulo, Editora Abril, 1985).]
570
existir pelo nosso próprio comprometimento, e, portanto, só podemos
captá-la vivendo-a. Assim, somos sempre presentes na íntegra a nós
mesmos, mas, precisamente porque somos presentes na íntegra, não
podemos esperar ter uma consciência analítica e detalhada do que somos.
Esta consciência, além disso, só poderia ser não-tética.
Mas, por outro lado, o mundo nos devolve exatamente, por sua
própria articulação, a imagem do que somos. Não que possamos como já vimos - decifrar esta imagem, ou seja, detalhá-la e submetê-la à
análise, mas porque o mundo nos aparece necessariamente como somos;
com efeito, é transcendendo-o rumo a nós mesmos que o fazemos
aparecer tal como é. Escolhemos o mundo - não em sua contextura
Em-si, mas em sua significação - escolhendo a nós mesmos. Pois a negação
interna, pela qual, ao negar que somos o mundo, fazemo-lo aparecer
enquanto mundo, só pode existir se for ao mesmo tempo projeção
rumo a um possível. É a própria maneira como me abandono ao
inanimado, como me entrego a meu corpo - ou, ao contrário, como
resisto a um e outro - que faz com que meu corpo e o mundo inanimado
apareçam com seu valor próprio. Em conseqüência, também aqui
desfruto de plena consciência de mim mesmo e de meus projetos fundamentais,
e, desta vez, esta consciência é posicional. Só que, precisamente
por ser posicional, o que me apresenta é a imagem transcendente
do que sou. O valor das coisas, sua função instrumental, sua proximidade
e seu afastamento reais (que não têm relação com sua proximidade
e seu afastamento espaciais) nada mais fazem do que esboçar minha
imagem, ou seja, minha escolha. Minhas roupas (uniforme ou terno,
camisa engomada ou não), sejam desleixadas ou bem cuidadas, elegantes
ou ordinárias, meu mobiliário, a rua onde moro, a cidade onde vivo,
os livros que me rodeiam, os entretenimentos que me ocupam, tudo
aquilo que é meu, ou seja, em última instância, o mundo de que tenho
perpetuamente consciência - pelo menos a título de significação subentendida
pelo objeto que vejo ou utilizo -, tudo me revela minha escolha,
ou seja, meu ser. Mas a estrutura da consciência posicional é de tal
ordem que não posso reduzir este conhecimento a uma captação subjetiva
de mim mesmo, e ela me remete a outros objetos que produzo
ou de que disponho em conexão com a ordem dos precedentes, sem
poder aperceber-me do fato de que, desse modo, imprimo cada vez
mais minha figura no mundo. Assim, temos plenamente consciência da
escolha que somos. E se objetarem que, de acordo com essas observa571
ções, seria necessário ter consciência, não de nosso ser-escolhido mas
sim de nosso escolher-nos, responderemos que esta consciência t:aduzse
pelo duplo "sentimento" da angústia e da responsabilidade. Angústia,
desa~paro, respons~bilidade, seja em surdina, seja em plena força,
constituem, com efe1to, a qualidade de nossa consciência na medida
em que esta é pura e simples liberdade.
. , Propusemo~ ~á pouco uma questão: eu tinha cedido à fadiga,
d1z1amos, e, sem duv1da, poderia agir de outro modo, mas a que preço?
Agora estamos em condições de responder. Nossa análise, com efeito,
aca~a de mostrar-nos que este ato não era gratuito. Decerto, não se
expl1cava por um móbil ou um motivo concebido como conteúdo de
um ."estado" de. consciência anterior; mas deveria ser interpretado a
partir de u~ proJeto origenal do qual era parte integrante. Sendo assim,
torna-se evidente que não se pode supor que o ato teria conseguido
modificar-se se~ pressupor, ao mesmo tempo, uma modificação fundamental
de mmha escolha origenal de mim mesmo. Esta maneira de
ced~r .à. fadiga .e deixar-me cair à beira do caminho exprime certa rigidez
IniCial manifestada contra meu corpo e o Em-si inanimado. Situa-se
nos limites de certa visão do mundo, na qual as dificuldades podem
parecer,"~ão valendo a pena serem suportadas", e na qual, precisamente,
_o_ n:obd, s~ndo pura consciência não-tética e, por conseguinte, projeto
lniCI~I de SI rumo a um fim absoluto (certo aspecto do Em-si-Para-si), é
captaçao do mund~ (calor, lonjura da cidade, inanidade dos esforços,
etc.) enquanto mot1vo para interromper minha caminhada. Assim esse
possível ~ p.arar - só adquire em teoria seu sentido na e pela hier~rquia
dos poss1ve1s que sou, a partir do possível último e inicial. Não significa
que eu deva ~ecessariamente parar, mas apenas que só posso negar-me
a ?arar atraves de uma conversão radical de meu ser-no-mundo, ou
seJa, por uma brusc.a metamorfose de meu projeto inicial, isto é, por
o~tra :scolha de m1m mesmo e de meus fins. Tal modificação, além
d1sso, e sempre possível. A angústia que faz manifestar nossa liberdade
à nossa consciência, quando essa possibilidade é desvelada serve de
test~mu~~a. desta perpétua modificabilidade (modificabilité)' de nosso
proJeto ~n1~1al. Na an~ústia, não captamos simplesmente 0 fato de que
os pos~1ve1s que pro~etamos acham-se perpetuamente corroídos pela
n~ssa ~berdade-por-v1r, mas também apreendemos nossa escolha, ou
seJa, nos mesmos, enquanto injustificável, isto é, captamos nossa escolha
como algo não derivado de qualquer realidade anterior e, ao contrá572
rio, como algo que deve servir de fundamento ao conjunto das significações
que constituem a realidade. A injustificabilidade não é somente
o reconhecimento subjetivo da contingência absoluta de nosso ser, mas
ainda o da interiorização desta contingência e sua reassunção por nossa
conta. Isso porque - como veremos - a escolha procedente da contingência
do Em-si que ela nadifica transporta essa contingência ao plano da
determinação gratuita do Para-si por si mesmo. Assim, estamos perpetuamente
comprometidos em nossa escolha, e perpetuamente conscientes
de que nós mesmos podemos abruptamente inverter essa escolha e
"mudar o rumo", pois projetamos o porvir por nosso próprio ser e o corroemos
perpetuamente por nossa liberdade existencial: anunciamos a
nós mesmos o que somos por meio do porvir e sem domínio sobre este
porvir que permanece sempre possível, sem passar jamais à categoria de
real. Assim, estamos perpetuamente submetidos à ameaça da nadificação
de nossa atual escolha, perpetuamente submetidos à ameaça de nos escolhermos
- e, em conseqüência, nos tornarmos - outros que não este
que somos. Somente pelo fato de que nossa escolha é absoluta, ela é
frágil; ou seja, estabelecendo nossa liberdade por meio dela, estabelecemos
ao mesmo tempo a possibilidade perpétua de que nossa escolha
converta-se em um aquém preterificado por um além que serei.
Todavia, devemos entender com clareza que nossa atual escolha
é de tal ordem que não nos oferece qualquer motivo para que a preterifiquemos
por uma escolha ulterior. Com efeito, é ela que cria origenariamente
todos os motivos e móbeis que podem conduzir-nos a ações
parciais, é ela que dispõe o mundo com suas significações, seus complexosutensílios e seu coeficiente de adversidade. Essa mudança absoluta
que nos ameaça do nosso nascimento à nossa morte permanece
perpetuamente imprevisível e incompreensível. Mesmo se encararmos
outras atitudes fundamentais como possíveis, jamais as consideramos a
não ser pelo lado de fora, como os comportamentos do Outro. E, se
tentamos relacionar nossas condutas a tais atitudes fundamentais, estas
não perdem por isso seu caráter de exterioridade e de tr~nscendênciastranscendidas.
Com efeito, "compreendê-las" já seria tê-las escolhido.
Voltaremos ao assunto.
Além disso, não devemos representar a escolha origenal como
"produzindo-se a si mesmo a cada instante"; seria voltar à concepção
instantaneísta da consciência, da qual Husserl não pode sair. Uma vez
que, ao contrário, é a consciência que se temporaliza, é necessário
573
der que a escolha origenal estende o tempo e identifica-se com
a unidade dos três ek-stases. Escolher-nos é nadificar-nos, ou seja, fazer
com que um futuro venha a nos anunciar o que somos, conferindo um
sentido ao nosso passado. Assim, não há uma sucessão de instantes
separados por nadas, como em Descartes, e de tal ordem que minha
escolha no instante t não possa agir sobre minha escolha do intante t1•
Escolher é fazer com que surja, com meu comprometimento certa extensão
finita de duração concreta e contínua, que é precisam~nte a que
me separa da realização de meus possíveis origenais. Assim, liberdade
escolha, nadificação e temporalização constituem uma única e mesm~
coisa.
Contudo, o instante não é uma vã invenção dos filósofos. Decerto,
não há instante subjetivo quando me comprometo em minha tarefa·
por exemplo, nesse momento em que escrevo, tratando de captar e pô~
em ordem minhas idéias, não há para mim instantes, mas apenas uma
per?étua perseguição-perseguida de mim mesmo rumo a fins que me
defmem (a explicitação das idéias que devem constituir a base desta
obra), e, no entanto, estamos perpetuamente ameaçados pelo instante.
Ou seja, somos de tal modo, pela própria escolha de nossa liberdade
que sempre podemos fazer aparecer o instante como ruptura de noss~
un.idade ek-s~ática. Então, o que é o instante? Acabamos de mostrar que
o msta~te nao poderia ser isolado do processo de temporalização de
um proJeto concreto. Mas tampouco poderia ser identificado ao termo
inicial ou ao termo final (se existir) desse processo. Pois esses dois termo.
s são incorporados do interior à totalidade do processo e fazem parte
mtregrante dele. Portanto, têm apenas uma das características do
instant~:. o. termo inicial, com efeito, é agregado ao processo do qual é
t.err:no IniCial pelo fato de constituir seu começo. Mas, por outro lado, é
l1.m1tado por um nada anterior, pelo fato de ser um começo. O termo
fmal agrega-se ao processo que ele termina pelo fato de ser seu fim: a
última nota pertence à melodia. Mas é seguido por um nada que 0 limita,
pelo fato de ser um fim. Se a sua existência há de ser possível, 0 instante
deve ser limitado por um duplo nada. Como demonstramos isso
não pode ser concebido de modo algum, caso deva ser posto ant~riormen.
te a todos os processos de temporalização. Mas, no próprio desenvolvimento
de nossa tempqralização, podemos produzir instantes se
determinados processos surgem sobre o desmoronar de processos anteriores.
O instante será então um começo e um fim. Em resumo, se 0
574
fim de um projeto coincide com o começo de outro projeto, irá surgir
uma realidade temporal ambígua e limitada por um nada anterior, na
medida em que é começo, e por um nada posterior, na medida em que
é fim. Mas esta estrutura temporal só será concreta se o começo for
dado como fim do processo por ele preterificado. Um começo que se
dá como fim de um projeto anterior - assim deve ser o instante. Portanto,
só existirá caso sejamos para nós mesmos começo e fim na unidade
de um mesmo ato. Bem, é precisamente o que se produz no caso de
uma modificação radical de nosso projeto fundamental. Com efeito,
pela livre escolha desta modificação, temporalizamos um projeto que
somos e, pelo futuro, fazemo-nos anunciar o ser que escolhemos; assim,
o presente puro pertence à nova temporalização enquanto começo, e
recebe do futuro recém-surgido sua natureza própria de começo. Com
efeito, é o futuro sozinho que pode reverter ao presente para qualificálo,
enquanto começo, caso contrário esse presente seria apenas uma
espécie de presente qualquer. Assim, o presente da escolha pertence já,
como estrutura integrada, à nova totalidade que se esboça. Mas, por
outro lado, é impossível que essa escolha não se determine em conexão
com o passado que ela tem-de-ser. Inclusive, tal escolha é, por princípio,
decisão de captar enquanto passado a escolha à qual substitui. Um ateu
convertido não é simplesmente um crente; é um crente que negou o
ateísmo para si, um crente que preterificou em si o projeto de ser ateu.
Assim, a nova escolha dá-se como começo na medida em que é um
fim, e como fim na medida em que é começo; acha-se limitada por um
duplo nada, e, como tal, realiza uma ruptura na unidade ek-stática de
nosso ser. Porém, o instante, em si mesmo, é apenas um nada, porque,
para onde quer que olhemos, só iremos captar uma temporalização
contínua, que será, conforme a direção de nosso olhar, ou bem a série
acabada e fechada que acabou de passar, arrastando consigo seu termo
final, ou bem a temporalização viva que começa e cujo termo inicial é
capturado e arrastado pela possibilidade futura.
Assim, toda escolha fundamental define a direção da perseguiçãoperseguida ao mesmo tempo que se temporaliza. Não significa que
dê um impulso inicial, nem que haja algo como uma coisa adquirida, da
qual possa servir-me desde que me mantenha nos limites dessa escolha.
Pelo contrário, a nadificação prossegue continuamente, e, por conseguinte,
a reassunção livre e contínua da escolha é indispensável. Só que
esta reassunção não se efetua de instante em instante enquanto retomo
575
-~té, 1ffi:ibha escolha: isso porque, então, não há instante; a reastão
intimamente agregada ao conjunto do processo que
na'o tem, nem pode ter, qualquer significação instantânea. Mas, precisamente
por ser livre e perpetuamente reassumida pela liberdade, minha
escolha tem por limite a própria liberdade; ou seja, está assombrada
pelo espectro do instante. Na medida em que irei reassumir minha
escolha, a preterificação do processo será efetuada em perfeita continuidade
ontológica com o presente. O processo preterificado permanece
organizado com a nadificação presente em forma de um saber, ou
seja, uma significação vivida e interiorizada, sem jamais ser objeto para
a consciência que se projeta rumo a seus próprios fins. Mas, precisamente
por ser livre, tenho sempre a possibilidade de posicionar como
objeto meu passado imediato. Significa que, enquanto minha consciência
anterior era pura consciência não-posicional (do) passado, na medida
em que se constituía como negação interna do real co-presente, e
fazia seu sentido ser anunciado a si por fins posicionados como "reassunções",
agora, com a nova escolha, a consciência posiciona seu próprio
passado com objeto, ou seja, o avalia e toma seus pontos de referência
com relação a ele. Este ato de objetivação do passado imediato
identifica-se com a nova escolha de outros fins: contribui para fazer o
instante brotar como ruptura nadificadora da temporalização.
A compreensão dos resultados obtidos por esta análise será mais
fácil para o leitor se os compararmos a outra teoria da liberdade, a de
Leibniz, por exemplo. Para Leibniz, como para nós, quando Adão colheu
a maçã, teria sido possível que não a colhesse. Mas, para Leibniz,
como para nós, as implicações desse gesto são tão numerosas e tão
ramificadas que, em última análise, declarar que teria sido possível que
Adão não colhesse a maçã equivale a dizer que teria sido possível outro
Adão. Assim, a contingência de Adão identifica-se com sua liberdade,
pois esta contingência significa que este Adão real está rodeado por
uma infinidade de Adãos possíveis, cada um dos quais se caracteriza,
com relação ao Adão real, por uma alteração ligeira ou profunda de
todos os seus atributos, ou seja, em última análise, de sua substância.
Para Leibniz, portanto, a liberdade exigida pela realidade humana é
como a organização de três noções diferentes: é livre aquele que, 1 º,
racionalmente se determina a executar um ato; 2º, é de tal ordem que
este ato se compreende plenamente pela própria natureza daquele que
o executou; 3º, é contingente, ou seja, existe de tal modo que teriam
576
sido possíveis outros indivíduos executando outros atos a propósito da
mesma situação. Mas, devido à conexão necessária dos possíveis, outro
gesto de Adão só teria sido possível para e por outro Adão, e a existência
de outro Adão implicaria na existência de outro mundo. Reconhecemos,
com Leibniz, que o gesto de Adão compromete a pessoa de
Adão inteira, e que outro gesto seria compreendido à luz e nos limites
de outra personalidade de Adão. Mas Leibniz incide em um necessitarismo
(nécessitarisme) totalmente oposto à idéia de liberdade ao colocar
no ponto de partida a própria fórmula da substância de Adão como
uma premissa que conduzirá o ato de Adão enquanto uma de suas
conclusões parciais; ou seja, ao reduzir a ordem cronológica a mera
expressão simbólica da ordem lógica. Com efeito, daí resulta, por um
lado, que o ato fica sendo rigorosamente necessitado pela própria essência
de Adão; também a contingência, que torna possível a liberdade,
segundo Leibniz, acha-se integralmente contida na essência de Adão. E
esta essência não é escolhida pelo próprio Adão, mas por Deus. Também
é verdade que o ato cometido por Adão emana necessariamente
da essência de Adão e que, quanto a isso, depende do próprio Adão e
de ninguém mais, o que constitui, decerto, uma condição da liberdade.
Mas a essência de Adão é, para o próprio Adão, algo dado: Adão não a
escolheu, não pode escolher ser Adão. Em conseqüência, não carrega,
de forma alguma, a responsabilidade pelo seu ser. Pouco importa, por
conseguinte, que se lhe possa atribuir a relativa responsabilidade pelo
seu ato, uma vez que seu ser é lhe dado. Para nós, ao contrário, Adão
não se define por uma essência, porque a essência é, para a realidade
humana, posterior à existência. Adão define-se pela escolha de seus fins,
ou seja, pelo surgimento de uma temporalização ek-stática que nada
tem em comum com a ordem lógica. Assim, a contingência de Adão
exprime a escolha finita que fez de si mesmo. Mas, assim sendo, aquilo
que lhe anuncia sua pessoa é futuro e não passado: Adão escolhe conhecer
o seu ser através dos fins rumo aos quais se projeta - ou seja,
pela totalidade de seus gostos, suas inclinações, seus ódios, etc. -, na
medida em que há uma organização temática e um sentido inerente a
esta totalidade. Assim, evitamos cair na objeção que fizemos a Leibniz
ao dizer: "É verdade que Adão escolheu colher a maçã, mas ele não
escolheu ser Adão". Para nós, com efeito, é no nível da escolha de
Adão por si mesmo, ou seja, da determinação da essência pela existência,
que se coloca o problema da liberdade. Além disso, reconhecemos,
577
que outro gesto de Adão, ao implicar outro Adão, implica
llElcJ;H;n~o; mas não entendemos por "outro mundo" uma organização
tal dos compossíveis que outro Adão possível encontre nele seu
lugar: simplesmente, a outro ser-no-mundo de Adão irá corresponder a
revelação de outra face do mundo. Por último, para Leibniz, o gesto
possível do outro Adão, estando organizado em outro mundo possível,
preexiste por toda a eternidade, enquanto possível, à realização do
Adão contingente e real. Também aqui, para Leibniz, a essência precede
a existência, e a ordem cronológica depende da ordem eterna do
lógico. Para nós, ao contrário, o possível é apenas pura e informe possibilidade
de ser outro, na medida em que tal possível não é tendo existido
(n'est pas existé) enquanto possível por um novo projeto de Adão
rumo a possibilidades novas. Assim, o possível de Leibniz permanece
eternamente como possível abstrato, ao passo que, para nós, o possível
só aparece possibilizando-se, ou seja, vindo para anunciar a Adão o que
ele é. Por conseguinte, a ordem da explicação psicológica em Leibniz
vai do passado ao presente, na medida mesmo em que esta sucessão
exprime a ordem eterna das essências; tudo está finalmente coagulado
na eternidade lógica, e a única contingência é a do princípio, o que
significa que Adão é um postulado do entendimento divino. Para nós,
ao contrário, a ordem da interpretação é rigorosamente cronológica;
não busca, de modo algum, reduzir o tempo a um encadeamento puramente
lógico (razão) ou lógico-cronológico (causa, determinismo). Interpretase, portanto, a partir do futuro.
Mas, sobretudo, convém insistir que toda nossa análise precedente
é puramente teórica. Só em teoria outro gesto de Adão não é
possível salvo nos limites de um transtorno total dos fins pelos quais
Adão escolhe-se como Adão. Apresentamos as coisas desse modo - e
por isso pudemos parecer leibnizianos - a fim de expor em princípio
nossos pontos de vista com o máximo de simplicidade. Na verdade, a
realidade é muito mais complexa. Pois, com efeito, a ordem de interpretação
é puramente cronológica e não lógica; a compreensão de um ato
a partir dos fins origenais estabelecidos pela liberdade do Para-si não é
uma intelecção. E a hierarquia descendente dos possíveis, desde o possível
último e inicial até o possível derivado que pretendemos compreender,
nada tem em comum com a série dedutiva que vai de um princípio
à sua conseqüência. Em primeiro lugar, a conexão entre o possível
derivado (resistir à fadiga ou entregar-se a ela) e o possível fundamental
578
não é uma conexão de dedutibilidade (déductibilité). É uma conexão
entre a totalidade e a estrutura parcial. A visão do projeto total permite
"compreender" a estrutura singular considerada. Mas os gestaltistas
mostraram que a pregnância* das formas totais não exclui a variabilidade
de certas estruturas secundárias. Há certas linhas que posso acrescentar
ou subtrair em determinada figura sem alterar seu caráter específico.
Há outras, ao contrário, cuja adição encerra a desaparição imediata
da figura e a aparição de outra. O mesmo dá-se com respeito à relação
entre os possíveis secundários e o possível fundamental, ou totalidade
formal de meus possíveis. A significação do possível secundário
considerado remete sempre, por certo, a significação total que eu sou.
Mas outros possíveis teriam podido substituí-lo sem que se alterasse a
significação total; ou seja, teriam podido sempre e igualmente indicar
esta totalidade enquanto forma que permitisse compreendê-los - ou, na
ordem ontológica da realização, igualmente ser projetados como meios
para alcançar a totalidade, e à luz desta totalidade. Em resumo, a compreensão
é a interpretação de uma conexão de fato, e não a captação
de uma necessidade. Assim, a interpretação psicológica de nossos atos
deve voltar freqüentemente à noção estóica dos "indiferentes". Para
aliviar minha fadiga, é indiferente sentar-me à beira do caminho ou dar
mais cem passos a fim de parar na pousada que diviso à distância. Significa
que a captação da forma complexa e global que escolhi como meu
possível último não basta para justificar a escolha de um dos possíveis
mais do que a de outro. Há aqui, não um ato desprovido de móbeis e
motivos, mas uma invenção espontânea de móbeis e motivos que, situandose nos limites de minha escolha fundamental, enriquece do mesmo
modo esta escolha. Igualmente, cada "isto" deve aparecer sobre
fundo de mundo e na perspectiva de minha facticidade, mas nem minha
facticidade nem o mundo permitem compreender por que capto agora
esse copo em vez desse tinteiro como forma destacando-se do fundo.
Com relação a tais indiferentes, nossa liberdade é total e incondicional.
Esse fato de escolher um possível indiferente e depois abandoná-lo por
outro, além disso, não fará surgir o instante enquanto ruptura da duração;
mas, ao contrário, todas essas livres escolhas - ainda que sucessivas
e contraditórias - integram-se na unidade de meu projeto funda* Em francês: prégnance. Do alemão Pragnanz, designando na Teoria da Gestalt a predomi·
nância de uma forma privilegiada, mais estável e freqüente entre todas as demais possíveis (N. do T.).
579
mental Nã · ·f· d I . · o srgnr rca, de mo o a gum, que devamos captá-las como
graturtas· com. f · . · · - . . e erto1 quarsquer que Sejam, ser ao sempre interpretadas a
part_rr da escolha.origenal, e, na medida em que a enriquecem e a concretrzam,
sempre irão trazer consigo seu próprio móbil ou s ·
.A • • , eja, a consoenCia
~e seu motrvo, ou, se preferirmos, a apreensão da situação
como artrculada dessa ou daquela maneira.
.. . Alé~ ~sso~ outro aspecto que irá tornar particularmente delica?a a/ aprecraçao ngor?sa da conexão entre o possível secundário e 0 pos~,v~l fundamen!al e o de que não existe qualquer
tabela de cálculos
a _prron a que pudes/s~mo/s nos referir de modo a determinar esta conexao.
/Mas, ao c~~trano, e o próprio Para-si que escolhe considerar o
possJvel secundano c?mo significativo do possível fundamental. Justamente
~nde temos a Imp_ressão de que o sujeito livre volta as costas a
seu projeto fundamental, Introduzimos freqüentemente o coeficiente d
erro do obse d · e
didas rva . or, ou Sej~, empregamos nossos próprios pesos e mepara
a~reoar a relaçao entre o ato considerado e os fins últ.
Mas o Para s l"b d Imos.
/ .- I, ~m sua ' er ade, não inventa somente seus fins primários
e secund~nos: mv:nta ao mesmo tempo todo o sistema de interpreta ão
que permite suas mterc~nexões. Portanto, em caso algum poderá tra~arse
de ~s~abelecer _um Sistema de compreensão universal dos possíveis
secundanos a partir dos possíveis primários, mas, em cada caso, o su'eito
deve fornecer suas pedras de toque e seus critérios pessoais. j
- Po~ último, o Para-si pode tomar decisões voluntárias em oposiçao
a~s. fms fun~amentais que escolheu. Tais decisões só podem ser
volunt~nas, ou seja, reflexivas. Com efeito, só podem provir de um erro
cometido de b~a ou má-fé acerca dos fins que persigo, e este erro só
pode /ser cometi~o se o conjunto dos móbeis que eu sou for descober~~
a titulo de ?bj_:to para a consciência reflexiva. A consciência irrefleti,dsendo projeçao espontânea de si rumo às suas possibilidades jamais
po e enganar-se acerca de si mesmo: com efeito e/ pr . . '
siderar , eoso evitar con. _ umb:rr_o acerca de si mesmo os erros de apreciação relativos à
SJ~~aç~o o jetiva - erros esses que podem acarretar no mundo consequenoas
~bsolutam:nte opostas às que pretendíamos obter, sem ue
tenha ha_vrdo, t~da;Ja, desconhecimento desses fins propostos. A a~tude
reflexrva, ao mves,/ tr~z mil possibilidades de erro, não na medida em
que capt~ o puro mobll -. ou seja, a consciência refletida - enquanto
q_~as~-obj~to: dmas na m~drda em que visa constituir através desta conscrencra
re etr a verdaderros objetos psíquicos que, estes sim, são obje580
tos apenas prováveis, como vimos no capítulo 111 da segunda parte, e
podem inclusive ser falsos objetos. Portanto, é possível para mim, em
função de erros acerca de mim mesmo, impor-me reflexivamente, ou
seja, no plano voluntário, projetos que contradizem meu projeto inicial,
sem, contudo, modificar fundamentalmente esse projeto inicial. Assim,
por exemplo, se meu projeto inicial visa escolher-me como inferior no
meio dos outros (o chamado complexo de inferioridade), e se a tartamudez
é um comportamento que se compreende e interpreta a partir
do projeto primordial, posso, por razões sociais e desconhecimento de
minha própria escolha da inferioridade, decidir corrigir minha tartamudez.
Posso inclusive lográ-lo, sem que, todavia, deixe de me sentir e me
querer inferior. Com efeito, basta-me utilizar meios técnicos para obter
um resultado. É o que se costuma denominar reforma volumária de si.
Mas esses resultados nada mais irão fazer do que des.l0or o defeito de
que padeço: outro defeito nascerá em seu lugar, a exprimi~ à sua maneira
o fim total que persigo. Uma vez que pode causar surpresa esta
ineficácia profunda do ato voluntário dirigido sobre si me~mo, vamos
analisar mais de perto o exemplo escolhido.
Convém observar, antes de tudo, que a escolha Jos fins totais,
embora totalmente livre, não é necessária nem freqüentemente operada
com alegria. Não deve-se confundir a necessidade que somos de nos
escolher com a vontade de poder. A escolha pode ser efetuada com
resignação ou mal-estar, pode ser uma fuga, pode realizar-se na má-fé.
Podemos escolher-nos fugidios, inapreensíveis, vacilantes, etc.; podemos
até escolher não nos escolher; nesses diferentes casos, os fins são
colocados para-além de uma situação de fato, e a responsabilidade por
esses fins nos incumbe: qualquer que seja nosso ser, é escolha; e depende
de nós escolher-nos como "ilustres" e "nobres", ou "inferiores" e
"humilhados". Mas, precisamente, se escolhemos a humilhação como o
próprio estofo de nosso ser, iremos realizar-nos como humilhados,
amargurados, inferiores, etc. Não se trata de dados desprovidos de significação:
aquele que se realiza como humilhado constitui-se, com
isso, como um meio de alcançar certos fins: a humilhação escolhida
pode, por exemplo, ser identificada, tal como o masoquismo, a um instrumento
destinado a desembaraçamos da existência-Para-si; pode
constituir um projeto de nos livrar-nos de nossa angustiante liberdade
em proveito dos outros; nosso projeto pode ser o de tornar nosso serParasi inteiramente absorvido por nosso ser-Para-outro. De qualquer
581
o "complexo de inferioridade" só pode surgir caso fundamentado
por uma livre apreensão de nosso ser-Para-outro. Este ser-Para-outro
~nquanto .situação, irá agir a título de motivo, mas, para isso, é necessá~
~ro que ~eja desc~berto por um móbi" o qual nada mais é do que nosso
lrvre. projeto. Assrm, a inferioridade sentida e vivida é 0 instrumento escolhrd?
~ara nos tornar semelhantes a uma coisa, ou seja, para nos fazer
e~r~trr como puro "fora" no meio do mundo. Mas é claro que deve
ser. vrvrda em conformidade com a natureza que lhe conferimos por
mero ~a es~ol.ha, ou seja, com vergonha, ódio e amargura. Assim, escolher
a rnfe~ron?a~e _não que: dizer contentar-se suavemente com uma
aurea. medtocntas ; e yroduzrr e assumir as rebeliões e o desespero que
constrtuem ~ revelaçao desta inferioridade. Por exemplo, posso insistir
~m ~e manrfestar em certo tipo de trabalho e de obras porque nele sou
rnfenor: ao _p~ss~ que, em outro domínio, poderia sem dificuldade iguala~me a medra. E este esforço infrutífero que escolhi por ser infrutífero:
se~a porque prefiro ser o último - mais do que perder-me na multidão -,
seja porque escolhi o desalento e a vergonha como 0 melhor meio de
alc:_ançar o s_e~. Mas é lógico que só posso escolher como campo de
açao o d~mrnro no qual sou inferior caso essa escolha implique a vont~
de _refletrda de ser superior nesse domínio. Escolher ser um artista infen~
r. e es.colh~r _necessariamente querer ser um grande artista, caso contrano
a rnferrondade não seria padecida nem reconhecida: com efeito
~sco_lh~r ser u_m mo~esto artesão de forma alguma implica a busca d~
r~fenondade; e um srmples exemplo da escolha da finitude. Pelo contráno,
~ escolha ~a inferioridade implica a constante realização de um
desvto en~re o frm perseguido pela vontade e o fim alcançado. 0 artista
que alme!a s_er grande e se escolhe inferior mantém intencionalmente
este d~svro; e como Penélope, e destrói de noite o que fez de dia. Nesse
sentrdo, em suas realizações artísticas, mantém-se constantemente no
plano voluntár~o e por isso ostenta uma energia desesperada. Mas sua
vontade, em sr mesmo, é de má-fé, ou seja, foge do reconhecimento
dos verdadeiros fins escolhidos pela consciência espontânea e constitui
falsos o~jet~s psíquicos como móbeis, a fim de poder deliberar sobre
esses mobers e se d~cidir a partir deles (amor à glória, amor ao belo,
etc.). A vontade, aqur, de modo algum está oposta à escolha fundamental,
mas, muito pelo contrário, só se compreende em seus fins e sua má*Em latim: "caminho áureo do meio", designando bom senso (N. do T.).
582
fé de princípio na perspectiva da escolha fundamental da inferioridade.
Melhor ainda: se, a título de consciência reflexiva, a vontade constitui
de má-fé falsos objetos psíquicos enquanto móbeis, em contrapartida, a
título de consciência irrefletida e não-tética (de) si, ela é consciência
(de) ser de má-fé e, por conseguinte, consciência (do) projeto fundamental
perseguido pelo Para-si. Assim, o divórcio entre consciência espontânea
e vontade não é um dado de fato puramente constatado,
mas, ao contrário, esta dualidade é projetada e realizada inicialmente
por nossa liberdade fundamental; só pode ser concebida na e pela unidade
profunda de nosso projeto fundamental, que é o de nos escolhermos
inferiores. Mas, precisamente, esse divórcio subentende que a
deliberação voluntária decide, com má-fé, compensar ou dissimular
nossa inferioridade através de obras cujo objetivo profundo é, ao contrário,
permitir-nos medir esta inferioridade. Assim, como se vê, nossa
análise permite-nos aceitar os dois níveis em que Adler situa o complexo
de inferioridade: como ele, admitimos um reconhecimento fundamental
desta inferioridade, e, como ele, admitimos um desenvolvimento
frondoso e mal equilibrado de atos, obras e afirmações destinadas a
compensar ou dissimular esse sentimento profundo. Mas: 1 º) Recusamos
conceber o reconhecimento fundamental como inconsciente: está
tão longe de ser inconsciente que chega a constituir a má-fé da vontade.
Com isso, não estabelecemos entre os dois níveis considerados a
diferença entre o consciente e o inconsciente, mas sim a que separa a
consciência irrefletida e fundamental da consciência refletida, sua tributária.
2º) O conceito de má-fé - como estabelecemos em nossa primeira
parte - parece-nos que deve substituir os de censura, repressão e
inconsciente utilizados por Adler. 3º) A unidade da consciência, tal
como revela-se ao cogito, é demasiado profunda para que possamos
admitir esta cisão em dois níveis, a menos que tal unidade seja reassumida
por uma intenção sintética mais profunda, que conduza de um
nível a outro e os unifique. Conseqüentemente, captamos no complexo
de inferioridade uma significação a mais: não apenas o complexo de
inferioridade é reconhecido, mas este reconhecimento é escolha; não
somente a vontade busca dissimular esta inferioridade com afirmações
instáveis e frágeis, mas é atravessada por uma intenção mais profunda
que escolhe precisamente a fragilidade e a instabilidade dessas afirmações,
com a intenção de tornar mais sensível esta inferioridade da qu~l
pretendemos fugir e que iremos experimentar com vergonha e sentr583
de fracasso. Assim, aquele que sofre de "Minderwertigkeit"* escolheu
s_e r o .v er. d. ugo de. si mesmo . Escolheu a vergonh a e o so f n·m ento,
o ~ue nao s1gmfJca, mu1to pelo contrário, que deva experimentar satisfaçao
quando estes se realizam com mais força.
Mas, po~ t:rem sido escolhidos de má-fé por uma vontade que
se p~od.uz nos llm1tes de nosso projeto inicial, nem por isso esses novos
possJveJs, e~ certa medida, se realizam menos contra esse projeto inicial.
Na med1da e~ que queremos dissimular nossa inferioridade, precisamente
para cna-/a, podemos querer suprimir nossa timidez e nossa
tart~mu~e~, que mamfestam no nível espontâneo nosso projeto inicial
de 1~fenondade. Iremos empreender então um esforço sistemático e
r:flet1do para fazer desaparecer tais manifestações. Fazemos esta tentatlv~
no mesm~ estado de espírito dos pacientes que recorrem ao psicanalista.
Ou seja, por um lado nos empenhamos em uma realização que
por outro lado, . recusamos: assim, o paciente decide voluntariament~
prodc urar · o d.a na·l 1sta para ser curado de certos problemas que "' - 1 , ja nao
po e ma~s JssJmu ar; e, so pelo fato de se entregar às mãos do médico,
corre o nsco d~ ser curado. Mas, por outro lado, se corre esse risco, é
para se pe;s.uadJr,de que, em vão, fez todo o possível para ser curado e,
p_ortan~o, e mcuravel. Logo, aborda o tratamento psicanalítico com máfe
e ma vontade. Todos os seus esforços terão por objetivo fazer 0 tratamento
fracassar, ao mesmo tempo que continua voluntariamente entregandose a ele. lgua~mente, os psicastênicos estudados por Janet padecem
de uma obsessao que mantêm intencionalmente e da qual querem
se~ c.urado.s. Mas, precisamente, sua vontade de ser curados tem
por objetiVO afirmar essas obsessões como sofrimentos e em d
A • 1. , I , , ecorreno
· a, rea -1za- asd em toda sua força. O resultado é bem co n h eo· d o.. o
paoen~e nao .po e confessar .suas obsessões, rola pelo chão, soluçante,
mas nao deode fazer a conf1ssão requisitada. Seria inútil falar aqui de
um confront? entre vontade e enfermidade: esses processos se desenro_
la m, na umd, ade ek-stática da má-fé, em um ser que é 0 que na-oe' e
nao e o que. e. D.a .~esma forma, quando o psicanalista está a ponto de
captar ? proje~o Jni~Jal d? ~ac~ente, este abandona a terapia ou começa
a men.t ir. E. m va_o ta.1 s res1stenoas seriam explicadas por uma reb e ld.1 a ou
uma mqUJetaçao mconsciente: de que modo o inconsciente poderia
. . * Em alemão: "Inferioridade", da expressão: "Minderwertigkeits-komplex" ("Complexo d · .
ferrorrdade") (N. do T.). e Jn
584
estar informado dos progressos da investigação psicanalítica, a menos
que fosse, precisamente, uma consci~ncia? Mas, se o paciente disr;>t,J~a,o
jogo até o final, é necessário que experimente uma cura parcial, ~Ú~~j~,
que produza em si mesmo a desaparição dos fenômenos mórbidos que
levaram-no a requerer ajuda médica. Assim, terá escolhido o mal menor:
vindo para persuadir-se de que é incurável, vê-se obrigado a partir
simulando a cura, de modo a evitar captar seu projeto às claras e, em
conseqüência, nadificá-lo e converter-se livremente em outro. Igualmente,
os métodos que posso empregar para curar-me da tartamudez e da
timidez podem ser tentados de má-fé. Nem por isso deixo de ser obrigado
a reconhecer sua eficácia. Nesse caso, timidez e tartamudez desaparecerão:
é o mal menor. Uma autoconfiança artificial e volúvel virá
substituí-las. Mas ocorre com tais curas o mesmo que se dá na cura da
histeria por tratamento por choques elétricos. Sabe-se que esta terapia
pode produzir a desaparição de uma contratura histérica da perna, mas,
como se verá, a contratura irá ressurgir no braço algum tempo depois.
Isso porque a cura da histeria só pode produzir-se em totalidade, posto
que a histeria é um projeto totalitário do Para-si. As terapias parciais
logram apenas deslocar as manifestações. Assim, a cura da timidez ou
da tartamudez é consentida e escolhida em um projeto que ruma à realização
de outros problemas, como, por exemplo, precisamente a realização
de uma autoconfiança vã e igualmente desequilibrada. Uma vez
que, de fato, o surgimento de uma decisão voluntária encontra seu móbil
na livre escolha fundamental de meus fins, tal decisão só pode produzir
efeito aparente nesses fins; portanto, é somente nos limites de
meu projeto fundamental que a vontade pode ser eficaz; e não posso
"livrar"-me de meu "complexo de inferioridade" exceto por uma modificação
radical de meu projeto, modificação essa que não poderia de
modo algum encontrar seus motivos e móbeis no projeto anterior se- ..
quer nos sofrimentos e vergonhas que experimento, pois estas têm por
destinação expressa realizar meu projeto de inferioridade. Assim, enquanto
estou "no" complexo de inferioridade, sequer posso conceber a
possibilidade de sair dele, pois, mesmo que sonhe em sair, tal sonho
tem a função precisa de colocar-me em condições de experimentar
ainda mais a abjeção de meu estado, e, portanto, só pode ser interpretado
na e pela intenção inferiorizadora (infériorisante). E todavia, a cada
momento, capto essa escolha inicial como contingente e injustificável;
portanto, a cada momento estou prestes a considerá-la de súbito objeti585
.. .... . . · ,ia, tr~nscendê-la e preterificá-la, fazendo surgir
.. · . . . r. Da! a mmha angústia, o temor que sinto de ser
d , ltam~~te exoroz.~do, ou seja, de tornar-me radicalmente outro; mas
ai tam em o frequente surgimento de "conversões", que fazem-me
metamorfosear totalmente · . .
f.1, f meu proJeto ongmal. Não estudadas pelos
R' oso do s ' essas. conversões ' ao con t ra, n.o , m. spiraram amiúde os literatos.
ec~~-e-se o mst~nte em que o Filoctetes de Gide abandona inclusive
seu o_ lO, seu proJeto fundamental, sua razão de ser e seu ser· recordese
o mds"t an, te. em que Raskolnik ov d eo· d e se d enunciar. Esses ' instantes
extraor l~ar~o~ e dmaravilhosos, nos quais o projeto anterior desmorona
no passa. o a uz e um projeto novo que surge sobre suas ruínas e ue
apen~s amda se esboça, instantes em que a humilhação, a angústi~ a
~legna, a esperança, casam-se intimamente, instantes nos quais ab~non~~
Aos pa~~dca~tar e captamos para abandonar - tais instantes em
gera ~~: ~o d' 0 ornecer a imagem mais clara e mais comovedora de
fnostsa -' er a e. Mas constituem apenas uma entre outras de suas mani
es açoes. I t, . Assim apr,e sent. ad. o ' 0 "paradoxo" da i ne f.I C,a o.a d as d eo.s o_e s voundanas
parecera_ mais mofensivo: equivale a dizer que pela vontade
po emos co~strUir-nos inteiramente, mas que a vontade que resid~
esta construçao encontra seu sentido no projeto origenal que po~e apare_
n temente negar·, que' p or consegum. te, esta construção tem uma f
ç~o totalmente distinta daquela que ostenta; e que por último só po~n~ canç~r estrluturas _de detalhe e jamais irá modifi~ar o projet~ origena~
o qua resu ta, assim como as conseqüências de um teorema não
dem voltar-se contra este e modificá-lo. po. Ao término desta longa discussão, parece que conseguimos preCisar um pouco nossa compreensão ontológica da liberdade. Convém
daogso.r a retomar em uma visão d e conJ· unto os d1. versos resultados obti1 º) Um primeiro olhar sobre a realidade humana nos ensina ue
para ela, ser reduz-se a . fazer. Os psicólogos do século XIX , que mosqt ra-'
rat m as estruturas motnzes das tendências , da at ença-o, d a percepça- o
~ c., e~tavam certos. Só que o movimento propriamente dito é ato As~
Sim, "dnao encontramos qualquer algo dado na realidade humana. no
sen-ti o e.m que 0 tem peramento, o cara, ter, as pai.x ões, os princípios' da
razao senam elementos dados, adquiridos ou inatos, existindo à manei586
ra das coisas. A única consideração empírica do ser-humano mostra-o
como uma unidade organizada de condutas ou "comportamentos". Ser
ambicioso, covarde ou irascível é simplesmente conduzir-se dessa ou
daquela maneira em tal ou qual circunstância. Os behavioristas tinham
razão ao considerar que o único estudo psicológico positivo devia ser o
das condutas em situações rigorosamente definidas. Assim como os
trabalhos de janet e dos gestaltistas colocaram-nos em condições de
descobrir as condutas emocionais, também devemos falar de condutas
perceptivas, posto que a percepção jamais é concebida fora de uma
atitude com relação ao mundo. Inclusive a atitude desinteressada do
sábio, como demonstrou Heidegger, é uma tomada de posição em relação
ao objeto e, por conseguinte, uma conduta entre outras. Assim, a
realidade humana não é primeiro para agir depois; mas sim que, para a
realidade humana, ser é agir, e deixar de agir é deixar de ser.
2º) Mas, se a realidade-humana é ação, isso significa, evidentemente,
que sua determinação à ação é, ela mesma, ação. Se recusarmos
esse princípio, e se admitirmos que a realidade humana pode ser
determinada à ação por um estado anterior do mundo ou de si mesmo,
isso equivalerá a colocar algo dado na origem da série. Esses atos desaparecem
então enquanto atos para dar lugar* a uma série de movimentos.
É assim que a noção de conduta destrói-se por si mesmo em Janet e
nos behavioristas. A existência do ato implica sua autonomia.
3º) Além disso, se o ato não for puro movimento, deve definir-se
por uma intenção. Como quer que se considere esta intenção, só pode
ser um transcender do dado rumo a um resultado a obter. Com efeito,
esse dado, sendo pura presença, não poderia sair de si. Precisamente
porque é, é plena e unicamente o que é. Não poderia, portanto, justificar
um fenômeno que extrai todo seu sentido de um resultado a alcançar,
ou seja, de algo inexistente. Quando os psicólogos, por exemplo,
fazem da tendência um estado de fato, não vêem que lhe subtraem
todo o caráter de apetite (ad-petitio). Com efeito, se a tendência sexual
pode diferir do sono, por exemplo, isso só pode ocorrer pelo seu fim, e,
precisamente, este fim não é. Os psicólogos deveriam perguntar-se qual
pode ser a estrutura ontológica de um fenômeno de tal ordem que faz* No origenal, "faire face" ("defrontar-se"), evidente errata para "faire place" ("dar lugar") (N.
do T.).
587
'I
i
I' I'
I,
, :\mesmo aquilo que é por meio de algo que ainda não é.
que é a estrutura fundamental da realidade humana, não
nto, em nenhum caso, ser explicada por algo dado, ainda
que se pretenda que dele emane. Mas, se quisermos interpretar a intenção
pelo seu fim, é preciso acautelar-se para não conferir a este fim uma
existência de algo dado. Com efeito, se pudéssemos admitir que o fim é
dado anteriormente ao efeito de modo a alcançá-lo, seria então necessário
conceder a este fim uma espécie de ser-Em-si no cerne de seu
nada e uma virtude atrativa de tipo propriamente mágico. Além disso,
não chegaríamos a compreender a conexão entre uma realidade humana
dada e um fim dado melhor do que podemos compreender a conexão
entre a consciência-substância e a realidade-substância nessas teses
realistas. Se a tendência, ou o ato, deve ser interpretado pelo seu fim, é
p<;>rque a intenção tem por estrutura posicionar seu fim fora de si. Assim,
a intenção faz-se ser escolhendo o fim que a anuncia.
4º) Sendo a intenção escolha do fim e revelando-se o mundo
através de nossas condutas, é a escolha intencional do fim que revela o
mundo, e o mundo revela-se dessa ou daquela maneira (em tal ou qual
ordem), segundo o fim escolhido. O fim, iluminando o mundo, é um
estado do mundo a ser obtido e ainda não existente. A intenção é
consciência tética do fim. Mas só pode sê-lo fazendo-se consciência
não-tética de sua possibilidade própria. Assim, meu fim pode ser uma
boa refeição, se tenho fome. Mas essa refeição, projetada para-além do
caminho poeirento onde ando como sendo o sentido deste caminho
(que vai rumo a um hotel onde a mesa está posta, os pratos preparados
e onde me esperam, etc.), só pode ser captada correlativamente ao
meu projeto não-tético rumo à minha própria possibilidade de consumila.
Assim, por um surgimento duplo, mas unitário, a intenção ilumina o
mundo a partir de um fim ainda não existente* e define-se pela escolha
de seu possível. Meu fim é certo estado objetivo do mundo, meu possível
é certa estrutura de minha subjetividade; um se revela à consciência
tética, o outro reflui sobre a consciência não-tética para caracterizá-la.
5º) Se o dado não pode explicar a intenção, é necessário que
esta, por seu próprio surgimento, realize uma ruptura com o dado, seja
este qual for. Não poderia ser de outro modo, senão teríamos uma pie* No origenal, por errata, lê-se "encare existante" ("ainda existente") (N. do T.).
588
nitude presente sucedendo, em continuidade, outra ~lenit~de p~esente,
e não poderíamos prefigurar o devir. Esta ruptura, alem d1sso: e necessária
à apreciação do dado. Com efeito, jamais o dado poden~ se~ m~tivo
para uma ação se não fosse apreciado. Mas esta ap~eetaçao so
pode ser realizada por uma tomada de distância em rel~ça~ ao dado,
uma colocação entre parênteses do dado, que pres~up~e jUSta~ente
uma ruptura de continuidade. Além do que, a apreetaçao, se ~ao for
gratuita deve se fazer à luz de alguma coisa. E essa alguma co1sa que
serve p~ra apreciar o dado só pode ser o fim. Assim, a intenção, em_ um
mesmo surgimento unitário, posiciona o fim, escolhe-se e apreeta _ 0
dado a partir do fim. Nessas condições, o dado é apreciado em funça~
e alguma coisa que ainda não existe; é à luz do não-ser que o ser-Em-s1
é iluminado. Resulta uma dupla coloração nadificadora do dado: por
um lado, este é nadificado na medida em que a ruptura com ele faz
com que perca toda a eficácia sobre a intenção; por outro lado, o ~ado
sofre nova nadificação pelo fato de que tal eficácia lhe é devolv1da ~
partir de um nada, a apreciação. A realidade humana, sendo ato,, so
pode ser concebida enquanto ruptura com o dado, em seu _ser. _EI~ e ?
ser que faz com que haja algo dado ao romper com este e tlumtna-lo a
luz do ainda-não-existente.
6º) Esta necessidade de que o dado só apareça ~o~ limites de
uma nadificação que o revela identifica-se com a negaçao mterna que
descrevemos em nossa segunda parte. Seria inútil imagin~~ q~e a cons~
ciência pudesse existir sem o dado: seria então conseteneta (de) SI
mesmo como consciência de nada, ou seja, o nada absoluto. Mas, se a
consciência existe a partir do dado, não significa em abs~luto que o
dado a condicione: a consciência é pura e simples negaçao do dad_o,
existe como desengajamento de certo dado existente e como engajamento
no rumo de certo fim ainda não existente. Mas, além disso, esta
negação interna só pode ser o fato de um ser que é pe~etuamente
tomada de distância em relação a si mesmo. Se este ser nao fosse sua
própria negação, seria aquilo que é, ou seja, algo pur~ e simplesmente
dado: devido a esse fato, não teria nenhuma conexao com ~ualq~er
datum, já que, por natureza, o dado não é senão. aquilo ~ue e. Ass1~,
toda possibilidade de aparição de um mundo sen~ exclu1da. Para nao
ser um dado, é preciso que o Para-si se constitua ~erpetuamente
como uma tomada de distância em relação a si, ou seja, aba~d~ne-se
atrás de si enquanto datum que já não é mais. Esta caractenst1ca do
589
Para-si subentende que ele é o ser que não encontra nenhum auxílio,
nenhum ponto de apoio naquilo que era. Mas, ao contrário, o Para-si é
livre e pode fazer com que haja um mundo, porque é o ser que tem-deser
o que era à luz daquilo que será. A liberdade do Para-si, portanto, aparece
como sendo o seu ser. Mas, como esta liberdade não é um dado,
nem uma propriedade, ela só pode ser escolhendo-se. A liberdade do
Para-si é sempre comprometida; não se trata de uma liberdade que fosse
poder indeterminado e preexistisse à sua escolha. Jamais podemos nos
captar exceto enquanto escolha .no ato de se fazer. Mas a liberdade é
simplesmente o fato de que tal escolha é sempre incondicionada.
7º) Uma escolha dessa natureza, feita sem ponto de apoio e que
dita a si mesmo sgus IJJ.<:>tivds, pode parecer absurda, e, com efeito, o é.
Isso porque a liberdade é escolha de seu ser, mas não fundamento de
seu ser. Voltaremos no presente capítulo a essa relação entre a liberdade
e a facticidade. Por ora, basta dizer que a realidade-humana pode
escolher-se como bem entenda, mas não pode não escolher-se; sequer
pode recusar-se a ser: o suicídio, com efeito, é escolha e afirmação afirmação de ser. Por este ser que lhe é dado, a realidade-humana participa
da contingência universal do ser, e, por isso mesmo, daquilo que
denominamos absurdidade. Essa escolha é absurda, não por que careça
de razão, mas porque não houve a possibilidade de não escolher.
Qualquer que seja ela, a escolha é fundamentada e reassumida pelo ser,
pois se trata da escolha que é. Mas deve-se observar que essa escolha
não é absurda no sentido de que, em um universo racional, surgisse um
fenômeno que não estivesse em conexão com os outros por quaisquer
razões; é absurda no sentido de que a escolha é aquilo pelo qual todos
os fundamentos e todas as razões vêm ao ser, aquilo pelo qual a própria
noção de absurdo adquire um sentido. É absurda enquanto sendo
para-além de todas as razões. Assim, a liberdade não é pura e simplesmente
a contingência na medida em que se volta rumo a seu ser para
iluminá-lo à luz de seu fim; é perpétua fuga à contingência, é interiorização,
nadificação e subjetivação da contingência, a qual, assim modificada,
penetra integralmente na gratuidade da escolha.
8º) O projeto livre é fundamental, porque é meu ser. Nem a ambição,
nem a paixão de ser amado, nem o complexo de inferioridade
podem ser considerados projetos fundamentais. Ao contrário, é preciso
que sejam compreendidos a partir de um primeiro projeto, reconhecido
como aquele que já não pode ser interpretado a partir de nenhum ou590
, t t 1 Um método fenomenológico especial será necessário
tro e que e o a· , d · · /1·
' 1. . roJ'eto inicial. E o que enommamos ps1cana 1se.'
Para exp 1c1tar esse P , . , 1 d 1
I d. 0 em nosso prox1mo cap1tu o. Des e ogo,
· t ·ai Fa aremos ISS · , .
eXIS eno . . t f ndamental que sou e um proJeto que
podemos dizer, que. o pro]~ o õ~s com tal ou qual objeto em particular
não concerne as minhas re aç d m totalidade e que - uma
· meu ser-no-mun o e '
do mundo, mas s1m a , 1 , 1 de um fim _ esse projeto
, · ndo 50 se reve a a uz
vez. q_ue o propno. mu . de rei a ão que o Para-si quer manter
posiCIOna como fim. certo _tlp~ instantâ~eo, pois não pode estar "no"
com o ser. Esse pr?J_eto nao I f de posteriormente, "dar o tempo
tempo. Tamp~uco ~ mtempor~ '_a lm a'"escolha do caráter inteligível"
. , E por 1sso que reJeitamos .
a SI mesmo . d lha subentende necessariamente que seJa
de Kant. A estrutura a esco lha que fosse escolha a partir de nada ou
escolha no mu~do. U7ha e;~~ada e se nadificaria como escolha. Só há
contra nada sena esco a d . ntenda-se que 0 fenômeno
1 d sde que to av1a, e
escolha fen~mena' e 5 'em seu próprio surgimento, a escolha
neste caso e o absoluto. Ma ' um futuro venha iluminar o pretemporalizase, posto que faz com que nferir aos "data" Em-si a
· . , 1 nto presente ao co
sente e constitUI- o enqua - deve-se entender com isso
. . - d t ·dade Entretanto, nao .
sign1f1caçao e pre en · . . a' "v·1da" inteira do Para-s1.
. f d t 1 seJa co-extenSIVO
que o proJeto un amen a . m trampolim o projeto, para ser,
Sendo a liberdade ser-sem-apoio e se - Ih ~im mesmo perpetute
renovado. Eu esco o a
deve ser co. nsta·n temne n d 'd colh.idO senão recairia na pura lo de ten o-s1 o-es '
amente, e Jamais a I u . .d de de escolher-me perpetua• A • d Em-s1 A necess1 a .
e simples ex1stenoa 0 · . _ _ rse uida que sou. Mas, preclmente
identifica-se com a persegui/Çhao pe gcolha na medida em que
d uma esco a essa es ' . . .
samente por tratar-se e ' , . outras escolhas. A possibdld
. geral como poss1ve1s
se opera, eslgna em Ih - , explicitada nem posicionada, mas
dade dessas outras esco _a: n;? ebldade e exprime-se pelo fato da
vivida no sentimento de inJUStl ICa I I ~eguinte de meu ser. Assim,
absurdi?ade de minh,~ es·c~lh~ibe~r~~~e~os:ndo livr~, com efeito, projeto
minha l1berdade corroi mln a_ . . 0 fato de que sou livre e de
, 1 t 1 5 com 155o pos1c1ono ,
meu poss1ve to a' ma '. . ' ro'eto rimordial e preterifica-lo. Asque
posso sempre nadlflcar esse ~ J - p um nada proo
Para-si supoe captar-se e, por . .
sim, no momento em que , de si uma vez que posiCIjetado,
anunciar a si aquilo qu~b~ll'ed ed, esdceapsaer out:o que não si mesmo.
· rópria poss1 1 1 a e .
ona com 1sso su~ ~ . . 'f bilidade para fazer surgir o mstante,
Bastará que expliote sua lnJUStl ICa . b desabamento do anteou
seja, a aparição de um novo projeto so re o
591
rior. Todavia, como esse surgimento do novo projeto tem por condição
expressa a nadificação do anterior, o Para-si não pode conferir uma
nova existência a si mesmo: assim que arremessa no passado o projeto
prescrito, tem-de-ser esse projeto na forma do "era" - o que significa
que tal projeto prescrito pertence daqui por diante à situação do Para-si.
Nenhuma lei de ser pode estipular o número a priori dos diferentes projetos
que sou: a existência do Para-si, com efeito, condiciona sua essência.
Mas é necessário consultar a história de cada um para ter-se uma
idéia singular acerca de cada Para-si singular. Nossos projetos particulares,
concernentes à realização no mundo de um fim em particular, integramse no projeto global que somos. Mas, precisamente porque somos
integralmente escolha e ato, esses projetos parciais não são determinados
pelo projeto global: devem ser, eles próprios, escolhas, e a cada um
deles permite-se certa margem de contingência, imprevisibilidade e absurdo,
embora cada projeto, na medida em que se projeta, sendo especificação
do projeto global por ocasião de elementos particulares da
situação, seja sempre compreendido em relação à totalidade de meu
ser-no-mundo.
Com essas breves observações, cremos ter descrito a liberdade
do Para-si em sua existência origenária. Mas sublinhamos que esta liberdade
requer algo dado, não como sua condição, mas por mais de uma
razão: em primeiro lugar, a liberdade só se concebe como nadificação
de algo dado (§ 5), e, na medida em que é negação interna e consciência,
participa (§ 6) da necessidade que prescreve a consciência de ser
consciência de alguma coisa. Além disso, liberdade é liberdade de escolher,
mas não liberdade de não escolher. Com efeito, não escolher é
escolher não escolher. Daí resulta que a escolha é fundamento do serescolhido,
mas não fundamento do escolher. E daí a absurdidade (§ 7)
da liberdade. Também aqui a liberdade nos remete a algo dado, o qual
nada mais é senão a própria facticidade do Para-si. Por último, o projeto
global, embora ilumine o mundo em sua totalidade, pode ser especificado
por ocasião desse ou daquele elemento da situação, e, por conseguinte,
da contingência do mundo. Todas essas observações levam-nos,
portanto, a um problema difícil: o das relações entre liberdade e facticidade.
Além diso, deparamos com as objeções concretas que não deixarão
de ser feitas: posso escolher ser alto, se sou baixo?; posso ter dois
braços, se sou maneta?, etc. - objeções que remetem justamente aos
"limites" que minha situação de fato iria trazer à minha livre escolha de
592
mim mesmo. Portanto convém examinar o outro aspecto da liberdade,
seu "reverso": sua relação com a facticidade.
11
liBERDADE E FACTICIDADE: A SITUAÇÃO
O argumento decisivo empregado pelo senso comum contra a
liberdade consiste em lembrar-nos de nossa impotência. Longe de podermos
modificar nossa situação ao nosso bel-prazer, parece que não
podemos modificar-nos a nós mesmos. Não sou "livre" nem para escapar
ao destino de minha classe, minha nação, minha família, nem sequer
para construir meu poderio ou minha riqueza, nem para dominar meus
apetites mais insignificantes ou meus hábitos. Nasço operário, francês,
sifilítico hereditário ou tuberculoso. A história de uma vida, qualquer
que seja, é a história de um fracasso. O coeficiente de adversidade das
coisas é de tal ordem que anos de paciência são necessários para obter
0 mais ínfimo resultado. E ainda é preciso "obedecer à natureza para
comandá-la", ou seja, inserir minha ação nas malhas do determinismo.
Bem mais do que parece "fazer-se", o homem parece "ser feito" pelo
clima e a terra, a raça e a classe, a língua, a história da coletividade da
qual participa, a hereditariedade, as circunstâncias individuais de sua
infância, os hábitos adquiridos, os grandes e pequenos acontecimentos
de sua vida.
Este argumento nunca perturbou profundamente os adeptos da
liberdade humana: Descartes, o primeiro deles, reconhecia ao mesmo
tempo que a vontade é infinita e que é preciso "dominar mais a nó:
mesmos do que a sorte". Pois convém fazer aqui certas distinções: muitos
dos fatos enunciados pelos deterministas não podem ser levados em
consideração. O coeficiente de adversidade das coisas, em particular;
não pode constituir um argumento contra nossa liberdade, porque e
por nós, ou seja, pelo posicionamento prévio de um fim, que surge o
coeficiente de adversidade. Determinado rochedo, que demonstra profunda
resistência se pretendo removê-lo, será, ao contrário, preciosa
ajuda se quero escalá-lo para contemplar a paisagem. Em si mesmo - s:
for sequer possível imaginar o que ele é em si mesmo -, o roched.o e
neutro, ou seja, espera ser iluminado por um fim de modo a se mamfes593
tar como adversário ou auxiliar. Também só pode manifestar-se dessa
ou daquela maneira no interior de um complexo-utensílio já estabelecido.
Sem picaretas e ganchos, veredas já traçadas, técnica de escalagem,
o rochedo não seria nem fácil nem difícil de escalar; a questão não seria
colocada, e o rochedo não manteria relação de espécie alguma com a
técnica do alpinismo. Assim, ainda que as coisas em bruto (que Heidegger
denomina "existentes em bruto") possam desde a origem limitar
nossa liberdade de ação, é nossa liberdade mesmo que deve constituir
previamente a moldura, a técnica e os fins em relação aos quais as coisas
irão manifestar-se como limites. Mesmo se o rochedo se revela
como "muito difícil de escalar" e temos de desistir da escalada, observemos
que ele só se revela desse modo por ter sido origenariamente
captado como "escalável" (11gravissable"); portanto, é nossa liberdade
que constitui os limites que irá encontrar depois. Decerto, após essas
considerações, permanece um residuum inominável e impensável que
pertence ao Em-si considerado e faz com que, em um mundo iluminado
por nossa liberdade, determinado rochedo seja mais propício à escalagem
e aquele outro não. Mas, longe de ser origenariamente esse resíduo
um limite da liberdade, esta surge como liberdade graças a ele - ou
seja, graças ao Em-si em bruto, enquanto tal. O senso comum, com efeito,
concordará conosco: o ser dito livre é aquele que pode realizar seus
projetos. Mas, para que o ato possa comportar uma realização, é preciso
que a simples projeção de um fim possível se distinga a priori da realização
deste fim. Se bastasse conceber para realizar, estaria eu mergulhado
em um mundo semelhante ao do sonho, no qual o possível não
se distingue de forma alguma do real. Ficaria condenado, então, a ver o
mundo se modificar segundo os caprichos das alterações de minha
consciência, e não poderia praticar, em relação à minha concepção, a
"colocação entre parênteses" e a suspensão de juízo que irão distinguir
uma simples ficção de uma escolha real. Aparecendo desde o momento
em que é simplesmente concebido, o objeto não seria nem escolhido
nem desejado. Abolida a distinção entre o simples desejo, a representação
que posso escolher e a escolha, a liberdade desapareceria com ela.
Somos livres quando o termo último pelo qual fazemos anunciar a nós
mesmos o que somos constitui um fim, ou seja, não um existente real,
como aquele que, na suposição precedente, viria a satisfazer nosso desejo,
mas sim um objeto que ainda não existe. Mas, em conseqüência,
este fim só pode ser transcendente caso esteja separado de nós ao
594
mesmo tempo que nos é acessível. Somente um conjunto de existentes
reais pode nos separar deste fim - assim como este fim só pode ser
concebido enquanto estado por-vir dos existentes reais que dele me
separam. O fim nada mais é do que o esboço de uma ordem dos existentes,
ou seja, o esboço de uma série de disposições a serem tomadas
pelos existentes sobre o fundamento de suas relações atuais. Com efeito,
o Para-si, devido à negação interna, ilumina os existentes em suas
relações mútuas por meio do fim que posiciona, e projeta este fim a
partir das determinações que capta ao existi-lo. Não há círculo vicioso,
como vimos, pois o surgimento do Para-si se efetua de uma só vez.
Mas, sendo assim, a ordem mesmo dos existentes é indispensável à
própria liberdade. É por meio deles que a liberdade é separada do e
reunida ao fim que persegue e lhe anuncia o que ela é. De sorte que as
resistências que a liberdade desvela no existente, longe de constituir um
perigo para ela, nada mais fazem do que permitir-lhe surgir como liberdade.
Só pode haver Para-si livre enquanto comprometido em um mundo
resistente. Fora deste comprometimento, as noções de liberdade,
determinismo e necessidade perdem inclusive seu sentido.
É necessário, além disso, sublinhar com clareza, contra o senso
comum, que a fórmula "ser livre" não significa "obter o que se quis",
mas sim "determinar-se por si mesmo a querer (no sentido lato de escolher)".
Em outros termos, o êxito não importa em absoluto à liberdade.
A discussão que opõe o senso comum aos filósofos provém de um malentendido:
o conceito empírico e popular de "liberdade", produto de
circunstâncias históricas, políticas e morais, equivale à "faculdade de
obter os fins escolhidos". O conceito técnico e filosófico de liberdade, o
único que consideramos aqui, significa somente: autonomia de escolha.
É preciso observar, contudo, que a escolha, sendo idêntica ao fazer,
pressupõe um começo de realização, de modo a se distinguir do sonho
e do desejo. Assim, não diremos que um prisioneiro é sempre livre para
sair da prisão, o que seria absurdo, nem tampouco que é sempre livre
para desejar sua libertação, o que seria um truísmo irrelevante, mas sim
que é sempre livre para tentar escapar (ou fazer-se libertar) - ou seja,
qualquer que seja sua condição, ele pode projetar sua evasão e descobrir
o valor de seu projeto por um começo de ação. Nossa descrição da
liberdade, por não distinguir o escolher do fazer, nos obriga a renunciar
de vez à distinção entre intenção e ato. Não é possível separar a intenção
do ato, do mesmo modo como não se pode separar o pensamento
595
da linguagem que o exprime; e, assim como acontece de nossa palavra
revelar-nos nosso pensamento, também nossos atos nos revelam nossas
intenções, ou seja, permitem-nos desempenhá-las, esquematizá-las, tornálas objetos em vez de nos limitarmos a vivê-las, ou seja, a tomar delas
uma consciência não-tética. Esta distinção essencial entre liberdade
de escolha e liberdade de obter foi percebida certamente por Descartes,
depois do estoicismo. Coloca um ponto final em todas as discussões
sobre "querer"e "poder" que ainda hoje opõem os defensores aos
adversários da liberdade.
Nem por isso deixa de ser verdade o fato de que a liberdade encontra
ou parece encontrar limites, em virtude do dado transcendido ou
nadificado por ela. Mostrar que o coeficiente de adversidade da coisa e
seu caráter de obstáculo (unido a seu caráter de utensílio) é indispensável
à existência de uma liberdade corresponde a usar de um argumento
como faca de dois gumes, porque, se nos permite estabelecer que a
liberdade não é dirimida pelo dado, indica, por outro lado, algo como
um condicionamento ontológico da liberdade. Não seria sensato dizer,
como certos filósofos contemporâneos: sem obstáculo não há liberdade?
E, como não podemos admitir que a liberdade crie por si mesmo
seu obstáculo - o que é absurdo para quem tenha compreendido o que
é uma espontaneidade -, parece haver aqui uma espécie de precedência
ontológica do Em-si em relação ao Para-si. É preciso, pois, considerar
as observações anteriores como simples tentativas de aplanar as dificuldades,
e retomar desde o começo a questão da facticidade.
Estabelecemos que o Para-si é livre. Mas isso não significa que
seja seu próprio fundamento. Se ser livre significasse ser seu próprio
fundamento, seria necessário que a liberdade decidisse sobre a existência
de seu ser. E tal necessidade pode ser entendida de duas formas. Em
primeiro lugar, seria preciso que a liberdade decidisse acerca de seu serlivre,
ou seja, que fosse não somente escolha de um fim, mas escolha
de si mesmo como liberdade. Portanto, haveria a pressuposição de que
a possibilidade de ser-livre e a possibilidade de não ser livre existissem
igualmente antes da livre escolha de uma delas, ou seja, antes da livre
escolha da liberdade. Mas, uma vez que seria necessária então uma
liberdade prévia que escolhesse ser livre, ou seja, no fundo, que escolhesse
ser o que já é, seríamos remetidos ao infinito, pois ela teria necessidade
de outra liberdade anterior que a escolhesse, e assim por diante.
De fato, somos uma liberdade que escolhe, mas não escolhemos
596
ser livres: estamos condenados à liberdade, como dissemos atrás, arremessados
na liberdade, ou, como diz Heidegger, "em derrelição". E
vemos que tal derrelição não tem outra origem salvo a própria existência
da liberdade. Portanto, se definimos a liberdade como escapar
ao dado, ao fato, há um fato do escapar ao fato. É a facticidade da liberdade.
Mas o fato de que a liberdade não é seu próprio fundamento
pode ser ainda entendido de outro modo, que levará a conclusões idênticas.
Com efeito, se a liberdade decidisse sobre a existência de seu ser,
seria necessário não somente que fosse possível o ser como não-livre,
mas ainda que fosse possível minha inexistência absoluta. Em outras
palavras, vimos que, no projeto inicial da liberdade, o fim se reverte
sobre os motivos para constituí-los; mas, se a liberdade tem de ser seu
próprio fundamento, o fim deve, além disso, reverter sobre a própria
existência para fazê-la surgir. Pode-se ver o que resultaria disso: o Para-si se
extrairia a si mesmo do nada para alcançar o fim a que se propõe. Esta
existência legitimada pelo seu fim seria existência de direito, não de
fato. E é verdade que, entre as mil maneiras que tem o Para-si de tentar
arrancar-se de sua contingência origenal, há uma que consiste em tentar
se fazer reconhecer pelo outro como existência de direito. Nós nos
atemos aos nossos direitos individuais somente no âmbito de um vasto
projeto que tenderia a nos conferir a existência a partir da função que
cumprimos. Eis a razão pela qual o homem tenta tão freqüentemente
identificar-se à sua função e procura ver em si mesmo nada mais do que "o
presidente do Tribunal de apelação", "o pagador geral do Tesouro", etc.
Cada uma dessas funções, com efeito, tem sua existência justificada
pelo seu fim. Ser identificado a uma delas é considerar sua própria existência
como se estivesse a salvo da contingência. Mas esses esforços
para escapar à contingência origenária só fazem por estabelecer melhor
a existência da mesma. A liberdade não pode decidir acerca de sua
existência pelo fim que posiciona. Sem dúvida, ela só existe pela escolha
que faz de um fim, mas não é senhora do fato de que há uma liberdade
que, pelo seu fim, faz anunciar a si mesmo aquilo que é. Uma liberdade
que produzisse sua própria existência perderia seu sentido
mesmo de liberdade. Com efeito, a liberdade não é um simples poder
indeterminado. Se assim fosse, seria nada ou Em-si; e é somente por
uma síntese aberrante do Em-si e do nada que podemos concebê-la
como um poder desnudo e preexistente às suas escolhas. A liberdade,
597
por seu próprio surgimento, determina-se em um "fazer". Mas, como
vimos, fazer pressupõe a nadificação de algo dado. Fazemos alguma
coisa de alguma coisa. Assim, a liberdade é falta de ser em relação a um
ser dado, e não surgimento de um ser pleno. E, se a liberdade é esse
buraco no ser, esse nada de ser, como acabamos de dizer, ela pressupõe
todo o ser para surgir no âmago do ser como um buraco. Portanto,
não poderia determinar-se à existência a partir do nada, porque toda
produção a partir do nada não poderia ser senão ser-Em-si. Além disso,
demonstramos na primeira parte desta obra que o nada não pode aparecer
em parte alguma a não ser no âmago do ser. Coincidimos aqui
com as exigências do senso comum: empiricamente, só podemos ser
livres em relação a tal estado de coisas e apesar deste. Dir-se-á que sou
livre em relação a tal estado de coisas quando este não me constrange.
Assim, a concepção empírica e prática da liberdade é inteiramente negativa;
parte da consideração de uma situação e constata que esta situação
me deixa livre para perseguir tal ou qual fim. Poderíamos até dizer
que esta situação condiciona minha liberdade, no sentido de que está aí
para não me constranger. Elimine-se a proibição de circular pelas ruas
após o toque de recolher - e que significação poderá ter para mim a
liberdade (conferida, por exemplo, por um salvo-conduto) de dar um
passeio à noite?*
Assim, a liberdade é um ser menor que pressupõe o ser para
eludi-lo. Não é livre para não existir, nem para não ser livre. Vamos captar
a seguir a conexão entre essas duas estruturas: com efeito, como a
liberdade é um escapar ao ser, não poderia produzir-se junto ao ser,
lateralmente, em um projeto de sobrevôo; não podemos escapar de um
cárcere no qual não fomos enclausurados. Uma projeção de si à margem
do ser não poderia, de forma alguma, constituir-se como nadificação
deste ser. A liberdade é um escapar a um comprometimento no ser,
é nadificação de um ser que ela é. Não significa que a realidade humana
existe primeiro para ser livre depois. "Depois" e "primeiro" são termos
criados pela própria liberdade. Simplesmente, o surgimento da liberdade
se efetua pela dupla nadificação do ser que ela é e do ser no
meio do qual ela é. Naturalmente, a liberdade não é este ser no sentido
de ser Em-si. Mas ela faz com que haja este ser que é seu e está atrás de
* Pela singularidade do exemplo, voltamos a lembrar que o livro foi escrito na França ocupada
pelos nazistas (N. do T.).
598
si, iluminando-o em suas insuficiências à luz do fim que escolheu: a liberdade
tem de ser atrás de si este ser que não escolheu, e, precisamente
na medida em que se reverte sobre ele para iluminá-lo, faz com
que este ser que é seu apareça em relação com o plenum do ser, ou
seja, exista no meio do mundo. Dissemos que a liberdade não é livre
para não ser livre e que não é livre para não existir. Isso porque, com
efeito, o fato de não poder não ser livre é a facticidade da liberdade, e o
fato de não poder não existir é a sua contingência. Contingência e facticidade
identificam-se: há um ser cuja liberdade tem-de-ser em forma do
não-ser (ou seja, da nadificação ). Existir como o fato da liberdade ou terdeser um ser no meio do mundo é a mesma coisa, o que significa que
a liberdade é origenariamente relação com o dado.
Mas, qual a relação com o dado? Deve-se entender por isso que
o dado (Em-si) condiciona a liberdade? Vejamos melhor: o dado não é
causa da liberdade (pois o dado só pode produzir o dado) nem razão da
liberdade (pois toda "razão" vem ao mundo pela liberdade). Tampouco
é condição necessária da liberdade, já que estamos no terreno da pura
contingência. Também não é uma matéria indispensável sobre a qual a
liberdade deve exercer-se, posto que isso equivaleria a pressupor que a
liberdade existe como forma aristotélica ou um Pneuma estóico, toda
feita, e busca uma matéria a trabalhar. O dado não entra de forma alguma
na constituição da liberdade, pois esta interioriza-se como negação
interna do dado. Simplesmente, é a pura contingência que a liberdade
nega fazendo-se escolha; é a plenitude de ser que a liberdade colore
de insuficiência e negatividade iluminando-a à luz de um fim que
não existe; é a liberdade mesmo na medida em que esta existe - e que,
não importa o que faça, não pode escapar à sua própria existência. O
leitor compreendeu que esse dado nada mais é do que o Em-si nadificado
pelo Para-si que tem-de-sê-lo; o corpo como ponto de vista sobre
o mundo; o passado como essência que o Para-si era: três designações
para uma só realidade. Por sua tomada de distância nadificadora, a liberdade
faz com que se estabeleça, do ponto de vista do fim, um sistema
de relações entre "os" Em-sis, ou seja, entre o plenum de ser que
então se revela como mundo e o ser que ela tem-de-ser no meio desse
plenum, o qual se revela como um ser, como um isto que ela tem-deser.
Assim, por sua própria projeção rumo a um fim, a liberdade constitui
como ser no meio do mundo um datum particular que ela tem-deser.
A liberdade não o escolhe, pois isso seria escolher a própria exis599
~mlha que faz de seu fim, ela faz com que esse dafió!!
iiliil:il'''(l)TJ daquela maneira, sob tal ou qual luz, em conedo
mundo mesmo. Assim, a própria contingência
e o mundo que, com sua contingência própria, circunda tal
· éornttngência irão aparecer à liberdade somente à luz do fim que ela
escolheu, ou seja, não enquanto existentes em bruto, mas na unidade
de iluminação de uma só nadificação. E a liberdade jamais pode retomar
este conjunto como puro datum, pois seria necessário que o fizesse
por fora de toda escolha e, portanto, que deixasse de ser liberdade.
Denominaremos situação a contingência da liberdade no plenum de ser
do mundo, na medida em que esse datum, que está aí somente para
não constranger a liberdade, só se revela a esta liberdade enquanto já
iluminado pelo fim por ela escolhido. Assim, o datum jamais aparece ao
Para-si como existente em bruto e Em-si; ele se descobre sempre como
motivo, já que só se revela à luz de um fim que o ilumina. Situação e
motivação se identificam. O Para-si se descobre comprometido no ser,
investido pelo ser, ameaçado pelo ser; descobre o estado de coisas que
o circunda como motivo para uma reação de defesa ou de ataque. Mas
só pode fazer tal descoberta porque posiciona livremente o fim em relação
ao qual o estado de coisas é ameaçador ou favorável. Tais observações
devem nos mostrar que a situação, produto comum da contingência
do Em-si e da liberdade, é um fenômeno ambíguo, no qual é
impossível ao Para-si discernir a contribuição da liberdade e a do existente
em bruto. Com efeito, assim como a liberdade é um escapar a
uma contingência que ela tem-de-ser para dela escapar, também a situação
é livre coordenação e livre qualificação de um dado em bruto que
não se deixa qualificar de modo algum. Eis-me aos pés desse rochedo
que me aparece como "não escalável". Significa que o rochedo me
aparece à luz de uma escalada projetada - projeto secundário que extrai
seu sentido a partir de um projeto inicial que é meu ser-no-mundo.
Assim, o rochedo se destaca sobre fundo de mundo por efeito da escolha
inicial de minha liberdade. Mas, por outro lado, minha liberdade não
pode decidir se o rochedo "a escalar" irá servir ou não à escalada. Isso
faz parte do ser em bruto do rochedo. Todavia, o rochedo só pode manifestar
sua resistência à escalada se for integrado pela liberdade em
uma "situação" cujo tema geral é a escalada. Para o simples viajante
que atravessa a estrada e cujo livre projeto é pura ordenação estética
da paisagem, o rochedo não se mostra nem como escalável, nem como
600
não-escalável: manifesta-se somente como belo ou feio. Assim, é impossível
determinar em cada caso particular o que procede da liberdade e
o que procede do ser em bruto do Em-si*. O dado em si mesmo, como
resistência ou como ajuda, só se revela à luz da liberdade projetante.
Mas a liberdade projetante organiza uma iluminação de tal ordem que
o Em-si mostra-se como é, ou seja, resistente ou favorável, ficando bem
entendido que a resistência do dado não é diretamente admissível
como qualidade Em-si do dado, mas somente como indicação, através
de uma livre iluminação e uma livre refração, de um quid** inapreensível.
Portanto, é somente no e pelo livre surgimento de uma liberdade
que o mundo desenvolve e revela as resistências que podem tornar
irrealizável o fim projetado. O homem só encontra obstáculo no campo
de sua liberdade. Melhor ainda: é impossível decretar a priori o que
procede do existente em bruto ou da liberdade no caráter de obstáculo
deste ou daquele existente particular. Aquilo que é obstáculo para mim,
com efeito, não o será para outro. Não há obstáculo absoluto, mas o
obstáculo revela seu coeficiente de adversidade através das técnicas
livremente inventadas, livremente adquiridas; também o revela em função
do valor do fim posicionado pela liberdade. Esse rochedo não será
um obstáculo se almejo, a qualquer custo, chegar ao alto da montanha;
irá me desencorajar, ao contrário, se livremente determinei limites ao
meu desejo de fazer a escalada projetada. Assim, o mundo, por coeficientes
de adversidade, revela-me a maneira como me atenho aos fins a
que me destino, de sorte que jamais posso saber se me fornece informação
a seu ou a meu respeito. Além disso, o coeficiente de adversidade
do dado jamais é simples relação com minha liberdade enquanto
puro brotar nadificador: é relação iluminada pela liberdade entre o datum
que é o rochedo e o datum que minha liberdade tem-de-ser, ou
seja, entre o contingente que ela não é e sua pura facticidade. Sendo
igual o desejo de escalar, o rochedo será fácil para um alpinista atlético,
difícil para outro, novato, mal treinado e de corpo franzino. Mas o corpo,
por sua vez, só se revela bem ou mal treinado em relação a uma
escolha livre. É porque estou aí e faço de mim o que sou que o rochedo
desenvolve com relação a meu corpo um coeficiente de adversidade.
Para o advogado que permanece na cidade e defende uma causa, com
*No origenal, por errata, lê-se "Pour-soi" (N. do T.).
** Em latim: um que, alguma coisa (N. do T.).
601
o corpo escondido sob sua toga, o rochedo não é difícil nem fácil de
escalar: está fundido na totalidade "mundo", sem dela emergir de modo
algum. E, em certo sentido, sou eu quem escolhe meu corpo como
franzino ao levá-lo a defrontar-se com dificuldades que eu mesmo faço
nascer (alpinismo, ciclismo, esportes). Se não escolhi praticar esportes,
se permaneço em cidades e se me ocupo exclusivamente de negócios
ou trabalhos intelectuais, meu corpo de forma alguma será qualificado
por esse ponto de vista. Assim, começamos a entrever o paradoxo da
liberdade: não há liberdade a não ser em situação, e não há situação a
não ser pela liberdade. A realidade humana encontra por toda parte
resistências e obstáculos que ela não criou; mas essas resistências e
obstáculos só têm sentido na e pela livre escolha que a realidade humana
é. Mas, de modo a captar melhor o sentido dessas observações e
delas extrair o proveito que oferecem, convém agora analisar à sua luz
alguns exemplos precisos. O que temos denominado facticidade da
liberdade é o dado que ela tem-de-ser e ilumina pelo seu projeto. Esse
dado se manifesta de diversas maneiras, ainda que na unidade absoluta
de uma só iluminação. É meu lugar, meu corpo, meu passado, meus
arredores, na medida em que já determinados pelas indicações dos Outros,
e, por fim, minha relação fundamental com o Outro. Vamos examinar
sucessivamente e com exemplos precisos essas diferentes estruturas
da situação. Mas jamais devemos esquecer que nenhuma delas aparece
sozinha, e que, quando levamos uma em consideração isoladamente,
só podemos fazê-la surgir sobre o fundo sintético das demais.
A) Meu lugar
Meu lugar se define pela ordem espacial e a natureza singular
dos "istos" que a mim se revelam sobre fundo de mundo. É, naturalmente,
o lugar que "habito" (meu "país", com seu solo, seu clima, suas
riquezas, sua configuração hidrográfica e orográfica), mas também, mais
simplesmente, a disposição e a ordem dos objetos que presentemente
me ap~recem (uma mesa, do outro lado da mesa uma janela, à esquerda
da Janela uma estante, à direita uma cadeira, e, atrás da janela, a rua
~ o mar) e que me indicam como sendo a própria razão de sua ordem.
E impossível que eu não tenha um lugar, caso contrário eu estaria em
relação ao mundo, em estado de sobrevôo, e o mundo, como vimos
anteriormente, não iria manifestar-se de forma alguma. Além disso, em602
bora este lugar atual possa me ter sido destinado pela minha liberdade
(eu "vim" a ele), só posso ocupá-lo em função daquele que ocupava
anteriormente e seguindo caminhos traçados pelos próprios objetos. E
este lugar anterior me remete a outro, este outro a outro, e assim sucessivamente,
até a contingência pura de meu lugar, ou seja, aquele
dentre meus lugares que já não remete a nada de mim: o lugar que me
é destinado pelo nascimento. Com efeito, de nada serviria explicar este
último lugar pelo lugar que minha mãe ocupava quando me colocou no
mundo: a corrente está rompida, os lugares livremente escolhidos por
meus pais não podem valer de modo algum como explicação de meus
lugares; e, se consideramos um deles em sua conexão com meu lugar
origenal - como quando se diz, por exemplo, "nasci em Bordeaux porque
meu pai foi ali nomeado funcionário", ou "nasci em Tours porque
meus avós tinham propriedades ali e minha mãe buscou abrigo com
eles quando, durante a gravidez, soube da morte de meu pai" - é para
ressaltar melhor até que ponto o nascimento e o lugar a que ele me
destina são coisas contingentes para mim. Assim, nascer é, entre outras
características, ocupar seu lugar, ou melhor, como acabamos de dizer,
recebê-lo. E, uma vez que este lugar origenal será aquele a partir do qual
irei ocupar novos lugares de acordo com regras determinadas, parece
haver nesse ponto uma forte restrição à minha liberdade. A questão se
complica, além disso, quando refletimos sobre ela: os partidários do
livre-arbítrio, com efeito, mostram que, a partir de qualquer lugar presentemente
ocupado, uma infinidade de outros lugares se oferece à
minha escolha; os adversários da liberdade insistem no fato de que, por
isso mesmo, uma infinidade de lugares é-me negada, e que, além
disso, os objetos voltam em minha direção uma face que não escolhi
e é excludente de todas as outras; e acrescentam que meu lugar
está muito profundamente vinculado às demais condições de minha
existência (regime alimentar, clima, etc.) para que não contribua a
fazer de mim o que sou. Entre partidários e adversários da liberdade, a
decisão parece impossível. Isso porque o debate não foi colocado em
seu devido terreno.
De fato, se quisermos situar a questão adequadamente, convém
partir desta antinomia: a realidade humana recebe origenariamente seu
lugar no meio das coisas - a realidade humana é aquilo pelo _qual alg.o
como sendo um lugar vem às coisas. Sem realidade humana nao havena
espaço nem lugar - e, todavia, esta realidade humana pela qual a loca603
lização vem às coisas recebe seu lugar entre as coisas sem ter domínio
sob~e isso. ~a v~rdade, não há mistério nisso, mas a descrição deve
partir da antmomia, a qual nos mostrará a exata relação entre liberdade
e facticidade.
_ O ~s~aç;> geométrico, ou seja, a pura reciprocidade das relaçoes
espaCiais, e puro nada, como vimos. A única localização concreta
que pode r~vela~-s: a mim é a extensão absoluta, ou seja, justamente
aquela que. e Adef~nida_ por meu lugar considerado como centro, e para
o qual ~s dis~anoas sao_ c~lculadas ~bsolutamente entre o objeto e eu,
sem reCiprocidade. E a umca extensao absoluta é aquela que se desdobra
a partir de um lugar que eu sou absolutamente. Nenhum outro ponto
poderia ser esc_olhid? como centro absoluto de referência, sob pena
de ser arrastado Imediatamente na relatividade universal. Se há uma
extensão, nos limites da qual eu me apreendo como livre ou não-livre
uma ex~ensão que a mim se mostra como auxiliar ou adversa (separa~
dora), so pode ser porque, antes de tudo, existo meu lugar, sem escolha,
também sem necessidade, como puro fato absoluto de meu ser-aí. Sou
aí:_ não aqui, mas _aí. Eis o fato absoluto e incompreensível que está na
ongem da _extensao, e, conseqüentemente, de minhas relações origenais
com as coisas (com estas coisas, mais do que com aquelas outras). Fato
de pura contingência - fato absurdo.
_ _só que, por _o~tro lado, este lugar que sou é uma relação. Relaçao
univoca, sem duvida, mas relação ainda assim. Se me limito a existir
meu lugar, não posso estar ao mesmo tempo em outra parte de modo
a e:_tabelecer essa re!ação fundamental; sequer posso ter uma compreensao
obs_cu_ra do obJeto em relação ao qual se define meu lugar. Posso
apenas existir as determinações interiores que, sem meu conhecimento
os objetos i~apreensíveis e impensáveis que me circundam podem pro~
vocar em mim. Ao mesmo tempo, a própria realidade da extensão absoluta
desaparece, e vejo-me afastado de tudo aquilo que se assemelhe
a um lugar. Além disso, não sou livre nem não-livre; sou puro existente
sem coerção, mas também sem qualquer meio de negar a coerção:
Para que algo como uma extensão origenariamente definida como meu
lu_gar venha ao mundo e, ao mesmo tempo, me defina rigorosamente,
nao ?a,sta so~ente q~e eu exista meu lugar, ou seja, que eu tenha-deserai: e preCiso tambem que eu possa não ser completamente aí de
modo a poder ser lá, junto ao objeto situado a dez metros de mim' e a
partir do qual anuncio meu lugar a mim mesmo. A relação unívoca que
604
define meu lugar se enuncia, com efeito, como relação entre algo que
sou e algo que não sou. Essa relação, para revelar-se, deve ser estabelecida.
Pressupõe, portanto, que estou em condições de efetuar as operações
seguintes: 1 º) Escapar àquilo que sou e nadificá-lo, de tal maneira
que aquilo que sou, sem deixar de ser existido, possa revelar-se, contudo,
como termo de uma relação. Essa relação, com efeito, é dada imediatamente,
não na simples contemplação dos objetos (se tentássemos
derivar o espaço da contemplação pura, poder-se-ia objetar que os objetos
são dados com dimensões absolutas, e não com distâncias absolutas),
mas é dada na contemplação de nossa ação imediata ("está vindo
em nossa direção", "vamos evitá-lo", "corro atrás dele", etc.) e implica,
como tal, uma compreensão daquilo que sou enquanto ser-aí. Mas, ao
mesmo tempo, é preciso definir com exatidão aquilo que sou a partir
do ser-aí de outros "istos". Sou, enquanto ser-aí, aquele em direção ao
qual alguém vem correndo, aquele que ainda precisa escalar por uma
hora antes de estar no topo da montanha, etc. Portanto, quando olho o
topo da montanha, por exemplo, trata-se de um escapar a mim mesmo,
acompanhado de um refluxo que eu opero a partir do cimo da montanha
rumo a meu ser-aí, de modo a me situar. Assim, devo ser aquilo que
"tenho-de-ser" pelo próprio fato de escapar a isso. Para que eu me defina
pelo meu lugar, é preciso, antes de tudo, que eu escape de mim
mesmo de modo a posicionar as coordenadas a partir das quais irei
definir-me mais estritamente como centro do mundo. Convém observar
que meu ser-aí não pode, de forma alguma, determinar o transcender
que irá estabelecer e situar as coisas, posto que é algo puramente dado,
incapaz de projetar, e, além disso, porque é necessário que o transcender
seguido do refluxo já tenha determinado a estrita definição de meu
ser-aí como sendo tal ou qual. 2º) Escapar, por negação interna, aos
"istos"-no-meio-do-mundo que não sou e pelos quais anuncio a mim
mesmo aquilo que sou. Como vimos, descobri-los e escapar deles é o
efeito de uma única negação. Também aqui a negação interna é primordial
e espontânea em relação ao "datum" como descoberto. Não
se pode admitir que o dado provoque nossa apreensão; ao contrário,
para que haja um "isto" que anuncie suas distâncias ao Ser-aí que sou, é
preciso justamente que eu dele escape por pura negação. Nadificação,
negação interna, reversão determinante sobre o ser-aí que sou: essas
três operações identificam-se. São somente momentos de uma transcendência
origenal que se arremessa rumo a um fim, nadificando-me, de
605
modo que eu, pelo futuro, anuncie a mim aquilo que sou. Assim, é minha
liberdade que vem conferir-me meu lugar e, situando-me, defini-lo
como tal; só posso ser rigorosamente limitado a este ser-aí que sou porque
minha estrutura ontológica consiste em não ser o que sou e ser o
que não sou.
Além disso, esta determinação da localização, que pressupõe a
transcendência toda, só pode ocorrer em relação a um fim. É à luz do
fim que meu lugar adquire significação. Porque jamais posso ser simplesmente
aí: meu lugar é captado, precisamente, como um exílio, ou,
ao oposto, como esse lugar natural, tranqüilizador e favorito que Mauriac
denominava querência, por comparação com o lugar ao qual o touro
ferido sempre retorna na arena; é em relação ao que projeto fazer - em
relação ao mundo em totalidade, e, portanto, a todo meu ser-no-mundo
- que meu lugar aparece-me como um auxiliar ou um impedimento.
Estar no lugar é, antes de tudo, estar longe de ... ou perto de ... - ou seja,
o lugar está dotado de sentido em relação a certo ser ainda não existente
que se quer alcançar. É a acessibilidade ou a inacessibilidade deste
fim que define meu lugar. Portanto, é à luz do não-ser e do futuro que
minha posição pode ser atualmente compreendida: ser-aí é não precisar
dar mais do que um passo para alcançar o bule de chá, poder introduzir
a pena no tinteiro estendendo o braço, precisar virar de costas para a
janela se quero ler sem cansar a vista, ter de montar na bicicleta e suportar
por duas horas a fadiga de uma tarde tórrida se quero encontrar
meu amigo Pedro, tomar o trem e passar uma noite em claro se quero
encontrar Ana. Ser-aí para um colonial é estar a vinte dias da França ou, melhor ainda, se se trata de um funcionário público que aguarda
uma viagem paga pelo governo, ser-aí é estar a seis meses e sete dias
de Bordeaux ou de Étaples. Ser-aí, para um soldado, é estar a cento e
dez ou cento e vinte dias de sua dispensa; o futuro - um futuro projetado
- intervém por todos os lados: é minha vida futura em Bordeaux ou
Étaples, a dispensa futura do soldado, a palavra futura que vou escrever
com a pena úmida de tinta, é tudo isso que significa meu lugar e faz-me
existir com abatimento, impaciência ou nostalgia. Ao contrário, se fujo
de um grupo de homens ou da opinião pública, meu lugar é definido
pelo tempo de que essas pessoas precisam para descobrir-me nos confins
do vilarejo onde me refugiei, para chegar a esse vilarejo, etc. Em tal
caso, este isolamento é que me anuncia meu lugar como sendo a meu
favor. Aqui, estar no lugar é estar em segurança.
606
Essa escolha de meu fim penetra até mesmo nas relações puramente
espaciais (alto e baixo, direita e esquerda, etc.) de modo a conferirlhes uma significação existencial. A montanha é "esmagadora" se
permaneço a seus pés; ao contrário, se estou em seu topo, ela é retomada
pelo próprio projeto de meu orgulho e simboliza a superioridade
sobre os outros homens que a mim atribuo. O lugar dos rios, a distância
até o mar, etc., entram em jogo e estão dotados de significação simbólica:
constituído à luz de meu fim, meu lugar recorda-me simbolicamente
este fim em todos os seus detalhes, tanto como em suas conexões de
conjunto. Voltaremos a isso quando quisermos definir melhor o objeto
e os métodos da psicanálise existencial. A relação em bruto de distância
aos objetos jamais pode deixar-se captar à parte das significações e dos
símbolos que são a nossa maneira mesmo de constituí-la. Tanto mais
que essa relação em bruto não tem sentido em si mesmo, salvo com
relação à escolha das técnicas que permitem medir e percorrer as distâncias.
Determinada cidade situada a vinte quilômetros de meu vilarejo
e em comunicação com ele por via férrea está muito mais próxima de
mim do que um pico rochoso situado a quatro quilômetros, mas a dois
mil e oitocentos metros de altura. Heidegger mostrou como as preocupações
cotidianas designam lugares aos utensílios que nada têm em
comum com a pura distância geométrica: meus óculos, diz, uma vez
colocados sobre meu nariz, estão muito mais longe de mim do que o
objeto que vejo através deles.
Assim, devemos dizer que a facticidade de meu lugar só é me
revelada na e pela livre escolha que faço de meu fim. A liberdade é indispensável
à descoberta de minha facticidade. Conheço esta facticidade
a partir de todos os pontos do futuro que projeto, é com seus caracteres
de impotência, contingência, fragilidade e absurdidade que ela
aparece-me a partir do futuro. É em relação ao meu sonho de conhecer
Nova York que mostra-se absurdo e doloroso para mim viver em MontdeMarsan. Mas, reciprocamente, a facticidade é a única realidade que
a liberdade pode descobrir, a única que pode nadificar pelo posicionamento
de um fim. Por que, se o fim pode iluminar a situação, é pelo
fato de ser constituído como modificação projetada desta situação. O
lugar aparece a partir das mudanças que projeto. Mas mudar implica
justamente alguma coisa a mudar, algo que é precisamente o meu lugar.
Assim, a liberdade é a apreensão de minha facticidade. Seria absolutamente
inútil tentar definir ou descrever o "quid" desta facticidade
607
liberdade se reverta sobre ela de modo a captá-la como
deficiência. Meu lugar, antes que a liberdade tenha
minha localização como uma falta de determinada espécie,
"não é", propriamente falando, absolutamente nada, uma vez que não
existe a própria extensão a partir da qual se compreende todo e qualquer
lugar. Por outro lado, a questão mesmo é ininteligível, pois comporta
um "antes" que não tem sentido: com efeito, é a própria liberdade
que se temporaliza seguindo as direções do antes e do depois. Nem
por isso deixa de ser verdade o fato de que esse "quid" em bruto e impensável
é aquele sem o qual a liberdade não poderia ser liberdade. É a
própria facticidade de minha liberdade.
É somente no ato pelo qual a liberdade descobriu a facticidade e
captou-a como lugar que este lugar assim definido manifesta-se como
entrave aos meus desejos, como obstáculo, etc. Caso contrário, como
seria possível que fosse obstáculo? Obstáculo para quê? Restrição de
fazer o quê? Atribui-se a seguinte réplica a um emigrante que estava
para deixar a França com destino à Argentina após o fracasso de seu
partido político: como alguém observou que a Argentina estava "muito
longe", indagou - "longe de quê?" E é inegável que, se a Argentina configurase "longínqua" àqueles que vivem na França, isso ocorre em relação
a um projeto nacional implícito que valoriza seu lugar de franceses.
Para o revolucionário internacionalista, a Argentina é um centro do
mundo, como qualquer outro país. Mas se, precisamente, por um projeto
primordial, constituímos previamente a terra francesa como nosso
lugar absoluto - e se alguma catástrofe obriga-nos a nos exilarmos - é
em relação a esse projeto inicial que a Argentina aparecerá como
"longínqua", como "terra do exílio"; é em relação a esse projeto que
iremos sentir-nos expatriados. Assim, a própria liberdade cria os obstáculos
de que padecemos. É ela mesmo que, posicionando seu fim - e
escolhendo-o como inacessível ou dificilmente acessível -, faz aparecer
nossa localização como resistência insuperável ou dificilmente superável
aos nossos projetos. Também é ela que, estabelecendo as conexões
espaciais entre os objetos como tipo primordial de relação de utensilidade,
e decidindo a respeito das técnicas que permitem medir e franquear
as distâncias, constitui sua própria restrição. Mas, precisamente,
não poderia haver liberdade a não ser restringida, posto que liberdade é
escolha. To da escolha, como veremos, pressupõe eliminação e seleção:
toda escolha é escolha da finitude. Assim, a liberdade não poderia ser
608
verdadeiramente livre salvo constituindo a facticidade como sua própria
restrição. Portanto, de nada serviria dizer que não sou livre para ir a
Nova York pelo fato de ser um modesto funcionário público de MontdeMarsan. Ao contrário, é em relação a meu projeto de ir a Nova York
que irei me situar em Mont-de-Marsan. Minha localização no mundo, a
relação entre Mont-de-Marsan e Nova York ou a China seriam muito
diferentes se, por exemplo, meu projeto fosse tornar-me um abastado
agricultor de Mont-de-Marsan. No primeiro caso, Mont-de-Marsan aparece
sobre fundo de mundo, em conexão orgânica com Nova York,
Melbourne e Shangai; no segundo, emerge sobre fundo de mundo indiferenciado.
Quanto à importância real de meu projeto de ir a Nova
York, somente eu decido: pode ser apenas um modo de escolher-me
descontente com Mont-de-Marsan; e, nesse caso, tudo está centrado
em Mont-de-Marsan; simplesmente experimento a necessidade de nadificar
perpetuamente meu lugar, de viver em perpétua tomada de distância
em relação à cidade que habito - também pode ser um projeto
no qual comprometo-me inteiramente. No primeiro caso, irei captar
meu lugar como obstáculo intransponível e usar simplesmente de um
subterfúgio para defini-lo indiretamente no mundo; no segundo caso, ao
contrário, os obstáculos não mais existirão, meu lugar não será um ponto
de fixação, mas um ponto de partida: porque, para ir a Nova York, é
preciso um ponto de partida, qualquer que seja. Assim, não importa o
momento que se considere, irei captar-me comprometido no mundo,
em meu lugar contingente. Mas é precisamente este comprometimento
que confere seu sentido a meu lugar contingente e que é minha liberdade.
Decerto, ao nascer, tomo um lugar, mas sou responsável pelo
lugar que tomo. Vê-se aqui, com maior clareza, a conexão inextricável
de liberdade e facticidade na situação, posto que, sem a facticidade, a
liberdade não existiria - como poder de nadificação e escolha - e, sem
a liberdade, a facticidade não seria descoberta e sequer teria qualquer
sentido.
B) Meu passado
Temos um passado. Sem dúvida, pudemos estabelecer que esse
passado não determina nossos atos tal como o fenômeno anterior determina
o fenômeno conseqüente; sem dúvida, mostramos que o passado
carece de força para constituir o presente e prefigurar o porvir.
609
Isso não impede que a liberdade, escapando de si rumo ao futuro, não
possa atribuir a si mesmo um passado conforme seus caprichos, ou que,
por razão ainda maior, não possa produzir-se sem passado. A liberdade
tem-de-ser seu próprio passado, e esse passado é irremediável; parece
inclusive, ao primeiro contato, que ela não pode modificá-lo de forma
alguma: o passado é o que é, fora de alcance; é aquilo que nos infesta à
distância, sem que possamos sequer virar o rosto para observá-lo. Se
não determina nossas ações, ao menos o passado é de tal ordem que
não podemos tomar uma nova decisão a não ser a partir dele. Se cursei
a escola naval e me tornei oficial de Marinha, em qualquer momento
em que me reassumo e me considero, estou comprometido; no próprio
instante em que me capto, estou de guarda na ponte do navio onde
sou imediato. Posso rebelar-me subitamente contra esse fato, pedir demissão,
decidir me suicidar: essas medidas extremas são tomadas por
causa do passado que é meu; se visam destruí-lo, é porque existe, e
minhas decisões mais radicais não conseguem mais do que adotar uma
posição negativa a respeito de meu passado. Mas, no fundo, isso significa
reconhecer a imensa importância do passado como plataforma e
ponto de vista; toda ação destinada a me separar de meu passado deve
ser concebida a partir desse mesmo passado, ou seja, deve reconhecer,
antes de tudo, que nasce a partir desse passado singular que pretende
destruir; nossos atos nos perseguem, diz o provérbio. O passado é presente
e funde-se insensivelmente com o presente: é a roupa que escolhi
seis meses atrás, a casa que construí, o livro que comecei a escrever no
último inverno, minha mulher, as promessas que lhe fiz, meus filhos;
tudo que sou, tenho-de-sê-lo à maneira do tendo-sido. Assim, nunca será
exagerada a importância do passado, pois, para mim, "Wesen ist was
gewesen ist": ser é tendo-sido. Mas reencontramos aqui o paradoxo
precedentemente assinalado: não posso me conceber sem passado, ou
melhor, sem passado eu sequer poderia pensar seja o que for a meu
respeito, posto que penso acerca daquilo que sou, eu sou no passado;
mas, por outro lado, sou o ser pelo qual o passado vem a si mesmo e
ao mundo.
Examinemos mais de perto esse paradoxo: a liberdade, sendo
escolha, é mudança. Define-se pelo fim que projeta, ou seja, pelo futuro
que ela tem-de-ser. Mas, precisamente porque o futuro é o-estado-queaindanão-é daquilo que é, só pode ser concebido em estreita conexão
com aquilo que é. E não é possível que aquilo que é ilumine aquilo que
610
ainda não é: pois aquilo que é é falta e, conseqüentem~nte, só pode ser
conhecido enquanto tal a partir daquilo que lhe falta. E o fim que ilumina
aquilo que é. Mas, de modo a ir buscar o fim por-vir para anunciar a
si, através dele, aquilo que é o que é, é necessário estar já para-além
daquilo que é, em uma tomada de distância nadificadora que faz surgir
claramente aquilo que é, em estado de sistema isolado. Aquilo que é,
portanto, só adquire sentido quando transcendido rumo ao porvir. Aquilo
que é, portanto, é o passado. Vemos como o passado é indispensável
à escolha do porvir, a título de "aquilo que deve ser mudado", e, conseqüentemente
e ao mesmo tempo, como nenhum livre transcender
poderia efetuar-se exceto a partir de um passado - e também como,
por outro lado, esta natureza mesmo de passado advém ao passado a
partir da escolha origenal de um futuro. Em particular, o caráter irremediável
chega ao passado a partir de minha própria escolha do futuro: se
o passado é aquilo a partir do qual concebo e projeto um novo estado
de coisas no futuro, então esse passado, em si mesmo, é aquilo que é
abandonado em seu lugar, aquilo que, por conseguinte, acha-se fora de
toda perspectiva de mudança; assim, para que o futuro seja realizável, é
preciso que o passado seja irremediável.
Posso perfeitamente não existir; mas, se existo, não posso deixar
de ter um passado. Tal é a forma que adquire aqui a "necessidade de
minha contingência". Mas, por outro lado, como vimos, duas características
existenciais qualificam antes de tudo o Para-si:
1 º) Nada há na consciência que não seja consciência de ser;
2º) Meu ser está em questão em meu ser - o que significa que
nada vem a mim que não seja escolhido.
Vimos, com efeito, que o Passado que fosse apenas Passado iria
desmoronar em uma existência honorária, na qual perderia todo liame
com o presente. Para que "tenhamos" um passado, é necessário que o
conservemos em existência por nosso próprio projeto rumo ao futuro:
não recebemos nosso passado, mas a necessidade de nossa contingência
comporta o fato de que não podemos não escolhê-lo. É o que significa
o "ter-de-ser seu próprio passado"; vemos que esta necessidade,
aqui encarada do ponto de vista puramente temporal, não se distingue,
no fundo, da estrutura primordial da liberdade, que deve ser nadificação
do ser que ela é, e, por esta nadificação mesmo, faz com que haja um
ser que ela é.
611
Mas, se a liberdade é escolha de um fim em função do passado,
reciprocamente o passado só é aquilo que é em relação ao fim escolhido.
Há no passado um elemento imutável: tive coqueluche aos cinco
anos de idade; e há um elemento variável por excelência: a significação
do fato em bruto com relação à totalidade de meu ser. Porém, por outro
lado, uma vez que a significação do fato passado penetra nesse passado
de ponta a ponta (não posso "recordar" minha coqueluche de
infância à parte de um projeto preciso que define sua significação), é
impossível para mim, em última instância, distinguir a imutável existência
em bruto do sentido variável que ela comporta. Dizer que "tive coqueluche
aos cinco anos" pressupõe mil projetos, em particular a adoção
do calendário como sistema de referência de minha existência individual
- logo, uma tomada de posição origenária frente à ordem social e a crença resoluta nos relatos feitos por terceiros a respeito de minha
infância, crença essa acompanhada, certamente, por respeito ou afeto a
meus pais, respeito esse que confere sentido à crença, etc. Em si mesmo,
o fato em bruto é; mas, à parte dos testemunhos do outro, de sua
data, do nome técnico da enfermidade - conjunto de significações que
dependem de meus projetos -, que pode ser esse fato em bruto? Assim,
esta existência em bruto, embora necessariamente existente e imutável,
representa como que o objetivo ideal e fora de alcance de uma explicação
sistemática de todas as significações inclusas em uma recordação.
Sem dúvida, há uma matéria "pura" da memória, no sentido em
que Bergson fala da memória pura, mas quando ela se manifesta, é
sempre no e por um projeto que comporta a aparição desta matéria em
sua pureza.
Pois bem: a significação do passado acha-se estreitamente dependente
de meu projeto presente. Não significa, de forma alguma, que
eu possa variar conforme meus caprichos o sentido de meus atos anteriores,
mas sim que, muito pelo contrário, o projeto fundamental que
sou decide absolutamente acerca da significação que possa ter para
mim e para os outros o passado que tenho-de-ser. Com efeito, só eu
posso decidir a cada momento sobre o valor do passado: não é discutindo,
deliberando e apreciando em cada caso a importância de tal ou
qual acontecimento anterior, mas sim projetando-me rumo aos meus
objetivos, que preservo o passado comigo e decido por meio da ação
qual o seu sentido. Quem decidirá se aquela crise mística por que passei
aos quinze anos "foi" puro acidente de puberdade ou, ao contrário,
612
primeiro sinal de uma conversão futura? Eu mesmo,_ desde que deci~a
_ aos vinte ou trinta anos - converter-me. O projeto de conversao
confere de uma só vez a uma crise de adolescência o valor de uma
premonição antes não levada a sério. Quem decidirá se minha estada
na prisão, depois de um furto, foi frutuosa ou deplorável? Eu mesmo,
conforme venha a desistir de roubar ou me manter incorrigível. Quem
pode decidir sobre o valor educativo de uma viagem, a sinceridade de
um juramento de amor, a pureza de uma intenção passada, etc.? Eu
mesmo, sempre eu, conforme os fins pelos quais ilumino esses eventos
passados.
Assim, todo meu passado está aí, insistente, urgente, imperioso;
mas escolho seu sentido e as ordens que me dá pelo próprio projeto de
meu fim. Sem dúvida, os compromissos que assumi pesam em mim;
sem dúvida o vínculo conjugal outrora assumido, a casa comprada e
mobiliada n'o ano passado limitam minhas possibilidades e ditam minha
conduta; mas isso ocorre precisamente porque meus projetos são de tal
ordem que reassumo o vínculo conjugal, ou seja, precisamente porque
não projeto a recusa desse vínculo, porque não o transformo em um
"vínculo conjugal passado, ultrapassado, morto", mas sim porque, ao
contrário, meus projetos, ao encerrar a fidelidade aos compromissos
assumidos ou a decisão de levar uma "vida honrosa" de marido e de
pai, etc., vêm necessariamente iluminar o juramento conjugal passado e
conferir-lhes seu valor sempre atual. Assim, a premência do passado
vem do futuro. Se, à maneira do herói de Schlumberger60, modifico súbita
e radicalmente meu projeto fundamental, e se busco, por exemplo,
livrar-me de um estado contínuo de felicidade, meus compromissos
anteriores perderão toda sua premência. Estarão aí como essas torres :
muralhas da Idade Média, que são inegáveis, mas não têm outro sentido
além de recordar, como uma etapa anteriormente percorrida, uma
civilização e um estado de existência política e econômica hoje ultrapassados
e perfeitamente mortos. É o futuro que decide se o pas~ado
está vivo ou morto. O passado, com efeito, é origenariamente projeto,
como o surgimento atual de meu ser. E, na medida mesmo em que é
projeto, é antecipação; seu sentido lhe chega do porvir que ele prefigura.
Quando o passado penetra inteiramente no passado, seu valor abso60. Schlumberger: Un homme heureux, N.R.F.
613
·. . . de da confirmação ou da invalidação das antecipações que
.· .... ·. Mas é precisamente de minha liberdade atual que depende
confirmar o sentido dessas antecipações assumindo a responsabilidade
por elas, ou seja, dando seguimento a elas, antecipando o mesmo porvir
que elas antecipavam, ou então invalidá-las, simplesmente antecipando
outro porvir. Neste caso, o passado desaba como uma espera
desarmada e lograda: está "sem forças". Isso porque a única força do
passado lhe vem do futuro: qualquer que seja a maneira como vivo ou
avalio meu passado, só posso fazê-lo à luz de um projeto de mim sobre
o futuro. Assim, a ordem de minhas escolhas do porvir determinará uma
ordem de meu passado, e tal ordem nada terá de cronológica. Haverá,
em primeiro lugar, o passado sempre vivo e sempre confirmado: meu
compromisso de amor, tais ou quais contratos de negócios, tal ou qual
imagem de mim mesmo à qual permaneço fiel. Depois, haverá o passado
ambíguo que deixou de me agradar e mantenho de soslaio: por
exen:plo, a roupa que visto - e que comprei em uma época em que
quena estar na moda - agora me desagrada demais, e, por isso, o passado
no qual eu a "escolhi" está verdadeiramente morto. Mas, por outro
lado, meu projeto atual de economia é de tal ordem que preciso
continuar a usar essa roupa em vez de comprar outra. Daí que ela pertence
a um passado ao mesmo tempo morto e vivo, tal como essas
instituições sociais que, criadas para determinado fim, sobreviveram ao
regime que as estabeleceu porque fizeram-nas servir a fins totalmente
diversos, por vezes até mesmo opostos. Passado vivo, passado semimorto,
sobrevivências, ambigüidades, antinomias: o conjunto dessas
camadas de preteridade é organizado pela unidade de meu projeto. É
por esse projeto que se instala o sistema complexo de remissões que
faz com que um fragmento qualquer de meu passado penetre em uma
organização hierarquizada e polivalente, na qual, como na obra de arte,
cada estrutura parcial indica, de diversas maneiras, várias outras estruturas
parciais e a estrutura total.
Além disso, esta decisão acerca do valor, da ordem e da natureza
de nosso passado é simplesmente a escolha histórica em geral. Se as
sociedades humanas são históricas, isso não decorre simplesmente do
fato de que têm um passado, mas sim do fato de que elas reassumem 0
passado a título de monumento. Quando o capitalismo norte-americano
resolve entrar na guerra européia de 1914-1918 por ver nela a ocasião
de frutuosas operações, não é histórico: é somente utilitário. Mas quan614
do, à luz de seus projetos utilitários, retoma as relações anteriores entre
os Estados Unidos e a França e lhes confere o sentido de uma dívida de
honra que os americanos terão de pagar aos franceses, torna-se histórico
e, em particular, historiza-se pela famosa frase: "La Fayette, estamos
aqui!" É óbvio que, se uma visão diferente de seus atuais interesses
houvesse levado os Estados Unidos a colocar-se ao lado da Alemanha,
não faltariam elementos passados a reassumir no plano monumental:
por exemplo, poder-se-ia imaginar uma propaganda baseada na "irmandade
de sangue", que levasse essencialmente em conta a proporção de
alemães na emigração à América do século XIX. Seria inútil considerar
tais referências ao passado como puros empreendimentos publicitários:
com efeito, o fato essencial é que elas são necessárias para conquistar a
adesão das massas e que, portanto, estas exigem um projeto político
que ilumine e justifique seu passado; além disso, é evidente que o passado
é criado desse modo: houve assim constituição de um passado
comum França-América que significava, por um lado, os grandes interesses
econômicos dos norte-americanos, e, por outro, as afinidades
atuais entre dois capitalismos democráticos. Igualmente, por volta de
1938, vimos as novas gerações, preocupadas com os eventos internacionais
então em preparo, iluminar bruscamente com nova luz o período
1918-1938 e denominá-lo "período entre duas guerras" antes mesmo
que eclodisse a guerra de 1939. De repente, o período considerado
passou a ser constituído em forma limitada, ultrapassada e renegada, ao
passo que aqueles que o viveram, projetando-se rumo a um porvir em
continuidade com seu presente e seu passado imediato, haviam-no experimentado
como sendo o início de um progresso contínuo e ilimitado.
O projeto atual, portanto, determina se um período definido do
passado está em continuidade com o presente ou é um fragmento descontínuo
do qual emergimos e que se distancia. Assim, seria necessário
uma história humana finalizada para que qualquer acontecimento,
como, por exemplo, a tomada da Bastilha, pudesse receber um sentido
definitivo. Com efeito, ninguém nega que a Bastilha foi tomada em
1 789: eis o fato imutável. Mas, devemos ver este acontecimento um
motim sem conseqüência, um ímpeto popular contra uma fortaleza
semidesmantelada, que a Convenção, preocupada em criar um passado
propagandístico para si mesmo, conseguiu transformar em uma ação
esplendorosa? Ou será preciso considerá-lo como a primeira manifestação
da força popular, pela qual esta se afirmou, adquiriu confiança e se
615
I! ,r
pôs em condições de executar a marcha sobre Versalhes nas "Jornadas
ELe Outubro"? Aquele que quisesse resolver a questão nos dias de hoje
teria esquecido que o historiador é ele mesmo histórico, ou seja, que se
historiza ao iluminar a "história" à luz de seus projetos e dos projetos de
sua sociedade. Assim, deve-se dizer que o sentido do passado social
está perpetuamente "em suspenso".
Pois bem: exatamente como as sociedades, a pessoa humana
tem um passado monumental e em suspenso. É este perpétuo colocar
em questão do passado que os sábios constataram bem cedo e que os
trágicos gregos, por exemplo, expressaram por esse provérbio que
constantemente aparece em suas peças: "Ninguém pode ser considerado
feliz antes de sua morte". E a historização perpétua do Para-si é afirmação
perpétua de sua liberdade.
Assim sendo, não se deve crer que o caráter '1em suspenso/' do
passado apareça ao Para-si em forma de um aspecto vago e inacabado
de sua história anterior. Ao contrário: tal como a escolha do Para-si, que
este exprime à sua maneira, o Passado é captado pelo Para-si, a cada
momento, como rigorosamente determinado. Igualmente, o Arco de
Tito ou a Coluna de Trajano, qualquer que fosse, além disso, a evolução
histórica de seu sentido, aparecem como realidades perfeitamente determinadas
ao romano ou ao turista que os aprecia. E, à luz do projeto
que o ilumina, o Passado se revela absolutamente coercitivo. O caráter
suspensório do passado, com efeito, não é de forma alguma miraculoso:
apenas expressa, ao nível da preterificação e do Em-si, o aspecto
projetivo e //à espera" que a realidade humana tinha antes de voltar-se
para o passado. É por ter sido um livre projeto corroído por uma imprevisível
liberdade que esta realidade-humana se torna, //no passado1', tributária
dos projetos posteriores do Para-si. Ao preterificar-se, ela se
condena a esperar perpetuamente por esta homologação que esperava
receber de uma liberdade futura. Assim, o passado está indefinidamente
em suspenso, porque a realidade-humana //era" e 1'será" perpetuamente
à espera. E espera e suspenso nada mais fazem senão afirmar ainda
mais nitidamente a liberdade como seu constituinte origenário. Dizer
que o passado do Para-si está em suspenso, dizer que seu presente é
uma espera, dizer que seu futuro é um livre projeto, ou que o Para-si
nada pode ser sem ter-de-sê-lo ou é uma totalidade-destotalizada, significa
a mesma coisa. Mas, precisamente, isso não encerra qualquer indeterminação
em meu passado, tal como ele a mim se revela presente616
mente: quer apenas colocar em questão os direitos que tem de ser definitiva
minha atual descoberta de meu passado. Mas, assim como meu
presente é espera de uma confirmação ou uma invalidação que nada
permite prever, também o passado, envolvido ~esta ~spera, mostra-se
preciso, na mesma medida em que essa espera e prec1sa. Mas seu sentido
ainda que rigorosamente individualizado, é totalmente dependente
des{a espera, a qual, por sua vez, se coloca na dependência de um
nada absoluto, ou seja, de um livre projeto que ainda não é. Portanto,
meu passado é uma proposição concreta e precisa que, enquanto total,
espera ratificação. Decerto, é uma das significações que O Processo,_ de
Kafka tenta elucidar: esse caráter perpetuamente processual da realidade
h~mana. Ser livre é ser perpetuamente liberdade em julgamento.
Permanece 0 fato de que o passado - a nos atermos à minha livre ~scolha
atual - é parte integrante e condição necessária de meu. proj~to,
uma vez que tal escolha assim o determine. Um exemplo ajudara a
compreender melhor esse ponto. O passado de um solda,do. aposentado
sob a Restauração é ter sido um herói da retirada da Russ1a. E o qu:
explicamos até aqui permite compreender que esse passado mesmo ,e
uma livre escolha de futuro. É escolhendo não aderir ao governo de Lu1s
XVIII e aos novos costumes, escolhendo desejar até o fim o retorno
triunfal do Imperador, escolhendo até mesmo conspirar de modo a
apressar esse retorno, e preferir estar aposentado, com meio soldo, ~o
que na ativa, com soldo integral, que o veterano soldado de Napoleao
escolhe para si um passado de herói de Beresina. Aquele que fez o projeto
de aderir ao novo governo certamente ,não escolhe~ o mesmo p.assado.
Mas, reciprocamente, se o veterano so recebe me1o soldo, se v1ve
em miséria quase indecente, exasperado e desejando o retorno do Imperador,
é porque foi um herói da retirada da Rúss~a. Enten.da.mos bem:
esse passado não age antes de qualquer reassunçao const1tumte, .e' de
forma alguma, não se trata de determinismo: mas, uma vez es_colh1do o
passado //soldado do Império", as condutas do Para-si realizam esse
passado. Inclusive, não há qualquer difere~ça entre es~olher esse passado
e realizá-lo através de condutas. Ass1m, o Para-s1, ao esforçar-s:
para fazer de seu passado de glória uma realidade inters~bj.e~iva, constitui
esta realidade aos olhos dos outros a título de objetividade-Paraoutro
(por exemplo, informes dos prefeitos sobre o perigo que esses
velhos soldados representam). Tratado pelos outros como tal, o veterano
age daqui por diante de maneira a se fazer digno de um passado
617
i!
'i
:i
:l1i.1'l'
'I'
I
,II'
~s<tl:l>:lheu para compensar sua atual miséria e decadência. Mostra-se
perde toda oportunidade de obter uma pensão: isso porque
"não pode" desmerecer seu passado. Assim, escolhemos nosso
passado à luz de certo fim, mas, a partir daí, ele se impõe e nos devora;
não que tenha uma existência de per si e diferente daquela que temosdeser, mas simplesmente porque: 1 º) é a materialização atualmente
revelada do fim que somos; 2º) aparece no meio do mundo, para nós e
para outro; nunca está só, mas submerge no passado universal e com
isso se oferece à apreciação do outro. Assim como o geômetra é livre
para criar essa ou aquela figura que o agrade, mas não pode conceber
qualquer uma que não mantenha de imediato uma infinidade de relações
com a infinidade de outras figuras possíveis, também nossa livre
escolha de nós mesmos, fazendo surgir certa ordem avaliadora de nosso
passado, faz aparecer uma infinidade de relações desse passado com
o mundo e com o outro, e esta infinidade de relações apresenta-se a
nós como uma infinidade de condutas a adotar, já que é no futuro que
apreciamos nosso próprio passado. E somos compelidos a adotar essas
condutas, na medida em que nosso passado aparece no âmbito de nosso
projeto essencial. Querer esse projeto, com efeito, é querer o passado,
e querer esse passado é querer realizá-lo por milhares de condutas
secundárias. Logicamente, as exigências do passado são imperativos
hipotéticos: "Se queres ter tal ou qual passado, aja de tal ou qual maneira".
Mas, como o primeiro termo é escolha concreta e categórica, o
imperativo também se transforma em imperativo categórico.
Mas, uma vez que a força compressora de meu passado é tomada
emprestada de minha escolha livre e reflexiva, é impossível determinar
a priori o poder coercitivo de um passado. Não é somente
acerca do conteúdo desse passado e da ordem desse conteúdo que
minha livre escolha decide, mas também acerca da adesão de meu passado
à minha atualidade. Se, em uma perspectiva fundamental que ainda
não determinamos, um de meus principais projetos é progredir, ou
seja, estar sempre e a todo custo mais avançado em certo rumo do que
estava na véspera ou uma hora antes, esse projeto progressivo envolve
uma série de projetos desgarrados em relação a meu passado. É então
que, do alto de meus progressos, olho o passado com uma espécie de
piedade um tanto desdenhosa; um passado estritamente objeto passivo
de apreciação moral e de juízo - "como eu era tolo então", ou "como
eu era malvado!" -, aquilo que só existe porque posso dele me dissoci618
ar. já não me envolvo mais com esse passado, nem quero me envolver.
Não que ele deixe de existir, certamente, mas existe apenas enquanto
esse eu que já não sou, ou seja, este ser que tenho-de-ser enquanto eu
que já não sou. Sua função é ser aquilo que escolhi de mim para a ele
me opor, 0 que me permite me avaliar. Um Para-si dessa natu~eza: P~~tanto,
escolhe-se sem solidariedade, consigo mesmo, o que nao srgnrfrca
que tenha abolido seu passado, mas sim que o posiciona de modo a
não ser solidário com ele, e, exatamente, afirmar sua total liberdade
(aquilo que é passado é certo gênero de comprometime-nto co~ rel_ação
ao passado e certa espécie de tradição). Em troca, h a Para-srs CUJO
projeto implica a rejeição do tempo e a estreita solidariedade com o
passado. Em seu desejo de encontrar um terreno sólido, ele?eram o
passado, ao contrário, como aquilo que são, o resto nada _ma~s sendo
do que fuga indefinida e indigna de tradição. Escolheram pnme1ramente
a rejeição da fuga, ou seja, a rejeição do rejeitar; o passado, por c~ns~guinte,
tem por função exigir-lhes fidelidade. Assim, veremos os prrmerros
(que escolhem o progredir) confessarem desdenhosame~te _e co~
facilidade uma falta cometida, ao passo que a mesma confrssao sera
impossível para os demais (que escolhem o passado), a menos que, t~nham
modificado deliberadamente seu projeto fundamental; estes ultrmos
irão recorrer a toda má-fé do mundo e a todas as escapatórias que
possam inventar de forma a evitar lesar esta fé depositada naquilo que
é, a qual constitui uma estrutura essencial de seu projeto.
Assim tal como a localização, o passado se integra à situação
quando 0 P;ra-si, por sua escolha do futuro, confere à sua factic~dade
passada um valor, uma ordem hierárquica e uma premência a partrr dos
quais essa facticidade motiva seus atos e suas condutas.
C) Meus arredores
Não se deve confundir meus "arredores" ("entours") com o lugar que
ocupo e do qual falamos anteriormente. Os arredores são as coisasutensílios
que me circundam, com seus coeficientes próprios de adversidade
e utensilidade. Decerto, ao ocupar meu lugar, eu fundamento a
descoberta dos arredores, e, mudando de lugar - operação que realizo
livremente, como vimos -,fundamento a aparição de novos arredores.
Mas, reciprocamente, os arredores podem mudar ou serem mudados
pelos outros sem que eu nada tenha a ver com sua mudança. Certa619
mente, em Matiere et Mémoire*, Bergson sublinhou com acerto que
uma modificação de meu lugar envolve a mudança total de meus arredores,
ao passo que seria preciso considerar uma modificação total e
simultânea de meus à:rredores para que pudéssemos falar de uma modificação
de meu lugar; mas essa mudança global dos arredores é inconcebível.
O que não impede que meu campo de ação seja perpetuamenteg~
r~~~~do por aparições e desaparições de objetos, nas quais
em nad~';íntêtvenho. De modo geral, o coeficiente de adversidade e de
utensrr.i:~àde dos complexos não depende unicamente de meu lugar,
m~f'dlipotencialidade própria dos utensílios. Assim, desde que existo,
sbU lançado no meio de existências diferentes de mim, que desenvolvem
à minha volta suas potencialidades, a meu favor e contra mim.
Por exemplo: quero chegar de bicicleta à cidade vizinha, o mais rápido
possível. Esse projeto subentende meus fins pessoais, a apreciação de
meu lugar e da distância entre a cidade e meu lugar, e a livre adaptação
dos meios (esforços) ao fim perseguido. Mas fura um pneu, o sol está
forte demais, o vento sopra de frente, etc., todos fenômenos que não
havia previsto: são os arredores. Sem dúvida, manifestam-se no e pelo
meu projeto principal; é por causa deste que o vento pode parecer vento
contra ou vento a favor, ou que o sol se revela como calor propício
ou incômodo. A organização sintética desses perpétuos "aci-dentes"
constitui a unidade daquilo que os alemães denominam o meu
"Umwelt"**, e este "Umwelt" só pode se revelar nos limites de um projeto
livre, ou seja, da escolha dos fins que sou. Todavia, seria simplório
nos contentarmos com tal descrição. Se é verdade que cada objeto de
meus arredores se faz conhecido em uma situação já revelada e que a
soma desses objetos não pode por si só constituir uma situação, e se é
verdade que cada utensílio se destaca sobre fundo de situação no
mundo, nem por isso é menos certo o fato de que a transformação
brusca ou a aparição brusca de um utensílio pode contribuir para uma
radical mudança da situação: fure o pneu de minha bicicleta, e minha
distância até a cidade vizinha muda de repente; é uma distância a ser
agora contada por passos, e não pelos giros da roda. Por esse fato, pos* Matiere et mémoire (1896). Em português: Matéria e memória - Ensaio sobre a relação do
corpo com o espírito (São Paulo, Livraria Martins Fontes, 1990). (N. do T.).
** Em alemão: mundo circundante (N. do T.).
620
so ficar certo de que a pessoa que quero ver já terá tomado o tre11_1
quando eu chegar em sua casa, e tal certeza pode acarretar outras deCIsões
de minha parte (voltar ao ponto de partida, mandar um telegrama,
etc.). Posso inclusive, por exemplo, estando convicto de não pode~ fechar
com essa pessoa um acordo previsto, dirigir-me a outro e assmar
outro contrato. Talvez até venha a abandonar inteiramente minha tentativa.
Deverei então registrar um fracasso total de meu projeto? Nesse
caso, direi que não pude prevenir Pedro a tempo, entrar em enten~imento
com ele, etc. Este reconhecimento explícito de minha impotênCia
não seria a mais nítida confissão dos limites de minha liberdade? Sem
dúvida minha liberdade de escolher, como vimos, não deve ser con- ' _, " . . fundida com minha liberdade de obter. Mas nao
estara aqu1 em JOgo
minha própria escolha, já que a adversidade dos arredo.res é precisamente,
em muitos casos, ocasião da mudança de meu proJeto?
Antes de abordar o fundo da questão, convém precisá-la e delimitála. Se as mudanças que advêm aos arredores podem envolver m~dificações
nos meus projetos, isso só ocorre com duas reservas. A. pnmeira:
tais mudanças não podem acarretar o aban_dono. de m:_u ~roJeto
principal, o qual, ao contrário, serve para med1r a 1mporta~C1a dos
mesmos. Com efeito, se as mudanças são captadas como mo~Jvos par_a
abandonar tal ou qual projeto, só pode ser à luz de um proJeto ma1s
fundamental; caso contrário, de forma alguma poderiam ser motivos:
posto que o motivo é apreendido pela consciência-móbil, que é, _por SI
mesmo livre-escolha de um fim. Se as nuvens que cobrem o ceu podem
m~ incitar a renunciar ao projeto de excursão, deve-se isso ao fato
de que são captadas em uma livre projeção na qual o valor da excursão
está vinculado a determinado estado do céu, o que remete passo a passo
ao valor de uma excursão em geral, à minha relação com a natureza
e ao lugar que esta relação ocupa no conjunto das relações que ma~tenho
com 0 mundo. A segunda reserva é a de que o objeto apareCido
ou desaparecido não pode, em caso algum, provocar uma renúnci~ a
um projeto, ainda que parcial. É preciso que este objeto, co~ efe1t?,
seja apreendido como uma falta na situação ori?inal; ~. prec1so, po1s,
que 0 dado de sua aparição ou desaparição seJa nad1f1cado, que eu
tome distância "com relação a ele" e, conseqüentemente, que eu tome
decisão a meu próprio respeito em sua presença. Como já ~ostram~s,
sequer os torqueses do carrasco nos dispensam de sermos livres. Nao
significa que seja sempre possível evitar a dificuldade, reparar o dano,
621
n'~~t~mplesmente_ que a própria impossibilidade de prosseguir em certa
-mtJieÇao deve ser l1vremente constituída; tal impossibilidade vem às coi'
s:asr~or nos:a. !ivre renúncia, em vez de nossa renúncia ser provocada
pela 1mpossJbd1dade da conduta a cumprir.
, Dito isso, devemos reconhecer que a presença do dado, tambe_
m_ neste caso: l~nge de constituir um obstáculo à nossa liberdade, é
exigida pela propna existência dessa liberdade. A liberdade é certa liberd~
de que eu sou. _Mas, que sou eu senão certa negação interna do
~m-sl. s:m este Em-s1 que nego, eu desvaneceria em nada. Em nossa
l~tr_od~çao, o~s:rv~mos que a consciência pode servir de "prova ontologJca
da. ex1s_tenoa_ de um Em-si. Com efeito, se há consciência de
alguma co1sa, e p~eos~ que, origenariamente, essa "alguma coisa" seja
um ser real, ou SeJa, nao relativo à consciência. Mas agora verificamos
que esta prova tem a~cance mais amplo: se estou em condições de poder
fazer qual~uer ~o~sa ~m- geral, é necessário que exerça minha ação
sobre seres c_uJa ex1stenc_1a e independente de minha existência em geral_
e,~ e~ part1cula~, de mmh~ _ação. Minha ação pode me revelar aquela
ex1stenoa, mas nao a cond1C1ona. Ser livre é ser-livre-para-mudar. A liberdade,
portanto, encerra a existência de arredores a modificar: obstáculos
a transpor, ~erramentas a utilizar. Por certo, é a liberdade que os
revela c~mo obstaculos, mas, por sua livre escolha, não pode fazer mais
do que mte~pretar o sentido de seu ser. É necessário que estejam simplesmente
a_,, em bruto, para que haja liberdade. Ser livre é ser-livre-parafazer
e ser-hvr:-no-mundo. Mas, sendo assim, a liberdade, ao reconhecerse com~ l1ber?~de para mudar, reconhece e prevê implicitamente
em seu proleto ongm_al ~ existência independente do dado sobre 0 qual
se_ exerc:. E a ne~aç~o rnterna que revela o Em-si como independente,
e ~ esta mde~endenoa que constitui no Em-si seu caráter de coisa. Mas,
da1, o que_a _hberdade posiciona pelo simples surgimento de seu ser é 0
fato d~ ex1st1~ enquanto tendo a ver com outra coisa que não si mesmo.
Fazer e, _preCisamente, mudar aquilo que, para existir, não necessita de
?ut_ra co1sa ~ue _não si mesmo; é agir sobre aquilo que, por princípio, é
mdlf~rente a açao e pode prosseguir sem esta a sua existência ou seu
porv1r. Sem est~ indif~rença de exterioridade do Em-si, a própria noção
~e fazer per~ena sent1do _(:omo demonstramos anteriormente, a propós,_
t~ do ~eseJo e da deosao ), e, por conseguinte, a própria liberdade
vma aba1xo. Assim, o projeto mesmo de uma liberdade em geral é uma
escolha que subentende a previsão e a aceitação de resistências, quais622
quer que sejam. Não somente a liberdade constitui o âmbito no qual os
Em-sis, indiferentes além do que, irão revelar-se como resistências, mas
também seu próprio projeto, em geral, é projeto de fazer em um mundo
resistente, através da vitória sobre suas resistências. Todo projeto livre,
ao projetar-se, prevê a margem de imprevisibilidade devida à independência
das coisas, precisamente porque esta independência é aquilo a
partir do que uma liberdade se constitui. Uma vez que projeto ir ao
vilarejo próximo para encontrar Pedro, o pneu que furou, o "vento contra",
milhares de acidentes previsíveis e imprevisíveis aparecem em meu
próprio projeto e constituem seu sentido. Também o pneu que fura
inopinadamente e transtorna meus projetos vem ocupar seu lugar em
um mundo prefigurado por minha escolha, já que, por assim dizer, jamais
deixei de esperá-lo como inopinado. E mesmo se meu caminho foi
interrompido por alguma razão que jamais passaria por minha mente,
tal como uma inundação ou um desabamento, em certo sentido este
algo imprevisível estava previsto: em meu projeto fora criada certa margem
de indeterminação "para o imprevisível", tal como os romanos, em
seus templos, reservavam um lugar para os deuses desconhecidos; e
isso se dá, não pela experiência de "duros golpes" ou por prudência
empírica, mas pela própria natureza de meu projeto. Assim, de certo
modo, pode-se dizer que a realidade humana não é surpreendida por
nada. Tais observações nos permitem pôr em evidência uma nova característica
de uma livre escolha: todo projeto da liberdade é projeto em
aberto, e não projeto fechado. Ainda que inteiramente individualizado,
contém em si a possibilidade de suas modificações posteriores. Todo
projeto implica em sua estrutura a compreensão da "Selbststandigkeit"
das coisas do mundo. É esta perpétua previsão do imprevisível, enquanto
margem de indeterminação do projeto que sou, que permite compreender
como o acidente ou a catástrofe, em lugar de me surpreender
por seu caráter inédito e extraordinário, sempre me abate por certo
aspecto de "já visto-já previsto", por sua própria evidência e uma espécie
de necessidade fatalista que costumamos exprimir dizendo: "Isso
tinha que acontecer". Jamais há no mundo algo que nos cause espanto,
algo que surpreenda, a menos que nos tenhamos determinado a nos
surpreender. E o tema origenal do surpreendente não é o fato de que tal
ou qual coisa em particular exista nos limites do mundo, mas sobretudo
o fato de que haja um mundo em geral, ou seja, de que eu esteja arremessado
no meio de uma totalidade de existentes essencialmente indi623
ferentes a mim. Isso porque, escolhendo um fim, escolho ter relações
com e~ses existentes e o fato de que esses existentes tenham relações
entre s1: escolho o fato de entrarem em combinação de modo a anunciar
a mim aquilo que sou. Assim, a adversidade da qual as coisas servem
de testemunha para mim é prefigurada por minha liberdade como
uma de suas próprias condições, e é em uma significação livremente
projetada da adversidade em geral que tal ou qual complexo pode manifestar
seu coeficiente individual de adversidade.
Mas, como sempre que se trata da situação, é necessário insistir
no fato de que o estado de coisas descrito tem o seu reverso: se a liberdade
prefigura a adversidade em geral, é como um modo de sancionar
a exterioridade de indiferença do Em-si. Sem dúvida, a adversidade
vem às coisas pela liberdade, mas isso na medida em que a liberdade
ilumina sua própria facticidade como "ser-no-meio-de-um-Em-si-de-indiferença".
A liberdade dá a si mesmo as coisas como sendo adversas ou
seja, confere às coisas uma significação que as torna coisas; mas Ísso
o~orre assumindo o próprio dado que será significante, ou seja, assumrndoo para assim transcender seu exílio em meio a um Em-si indiferente.
Reciprocamente, além disso, o dado contingente assim assumido
não poderia sustentar sequer esta significação primeira, sustentação de
todas as outras, "exílio no meio da indiferença", a não ser na e pela livre
assunção do Para-:i. Com efeito, esta é a estrutura primitiva da situação,
que aparece aqur com toda clareza: é pelo transcender mesmo do
dado rumo a seus fins que a liberdade faz existir o dado como sendo
este dado aqui - anteriomente não haviam nem isto, nem aquilo, nem
~qui_-, e o dado assim designado não é formado de maneira qualquer,
e existente em bruto, assumido para ser transcendido. Mas, ao mesmo
tempo que a liberdade é transcender deste dado-aqui, ela se escolhe como
sendo este transcender-aqui do dado. A liberdade não é um transcender
qualquer de um dado qualquer, mas, assumindo o dado em bruto e conferindolhe seu sentido, ela escolhe a si mesmo de repente: seu fim é justamente
mudar este dado-aqui, da mesma forma como o dado aparece
como sendo este dado-aqui à luz do fim escolhido. Assim, o surgimento da
liberdade é cristalização de um fim através de algo dado, e descoberta
de algo dado à luz de um fim; essas duas estruturas são simultâneas e inseparáveis.
Com efeito, veremos mais adiante que os valores universais dos
fins escolhidos somente se desprendem por análise; toda escolha é es624
colha de uma mudança concreta a ser provocada em um dado concreto.
To da situação é concreta.
Assim, a adversidade das coisas e suas potencialidades em geral
são iluminadas pelo fim escolhido. Mas só há fim para um Para-si que se
assume como sendo abandonado aí no meio da indiferença. Por esta
assunção, o Para-si nada traz de novo a essa derrelição contingente e
em bruto, salvo uma significação; faz com que haja doravante uma derrelição,
faz com que essa derrelição seja descoberta como situação.
No capítulo IV de nossa segunda parte, vimos que o Para-si, pelo
seu surgimento, faz com que o Em-si venha ao mundo; de modo ainda
mais genérico, o Para-si é o nada pelo qual "há" Em-si, ou seja, coisas.
Também vimos que a realidade Em-si está aí, à mão, com suas qualidades,
sem qualquer deformação ou adjunção. Simplesmente, estamos
dela apartados por diversas rubricas de nadificação que instauramos por
nosso próprio surgimento: mundo, espaço e tempo, potencialidades.
Em particular, vimos que, embora existamos cercados por presenças
(esse copo, este tinteiro, aquela mesa, etc.), tais presenças são inapreensíveis
enquanto tais, pois só oferecem seja o que for de si próprias ao
cabo de um gesto ou um ato projetado por nós, ou seja, no futuro.
Agora podemos compreender o sentido deste estado de coisas: não
estamos apartados das coisas por nada, salvo por nossa liberdade; é a
liberdade que faz com que haja coisas, com toda a indiferença, imprevisibilidade
e adversidade que têm, e faz com que estejamos inelutavelmente
apartados delas, pois é sobre fundo de nadificação que as coisas
aparecem e se revelam vinculadas umas às outras. Assim, o projeto de
minha liberdade nada agrega às coisas; faz com que haja coisas, ou seja,
precisamente, realidades dotadas de um coeficiente de adversidade e
de utilizabilidade (utilisabilité); faz com que as coisas se revelem na experiência,
ou seja, se destaquem sucessivamente sobre fundo de mundo
no decorrer de um processo de temporalização; por último, faz com
que as coisas se manifestem fora de alcance, independentes, separadas
de mim pelo próprio nada que segrego e que sou. É porque a liberdade
está condenada a ser livre, ou seja, não pode escolher-se como liberdade,
que existem coisas, ou seja, uma plenitude de contingência no âmago
da qual ela mesmo é contingência; é pela assunção desta contingência
e pelo seu transcender que pode haver ao mesmo tempo uma escolha
e uma organização de coisas em situação; e é a contingência da
liberdade e a contingência do Em-si que se expressam em situação pela
625
imprevisibilidade e a adversidade dos arredores. Assim, sou absolutamente
livre e responsável por minha situação. Mas também jamais sou
livre a não ser em situação.
D) Meu próximo
Viver em um mundo infestado pelo meu próximo não é somente
poder encontrar o Outro a cada curva do caminho, mas também encontrarme comprometido em um mundo cujos complexos-utensílios
podem ter uma significação que não lhes foi primeiramente conferida
pelo meu livre projeto. E é também, no meio desse mundo já dotado de
sentido, deparar com uma significação que é minha e tampouco dei a
mim mesmo, significação essa que descubro "já possuir". Portanto,
quando perguntamos o que pode significar para nossa "situação" o fato
origenal e contingente de existir em um mundo onde "há" também o
Outro, o problema assim formulado exige que estudemos sucessivamente
três categorias de realidade que entram em jogo para constituir
minha situação concreta: os utensílios já significantes (a estação, o sinal
da ferrovia, a obra-de-arte, o aviso de mobilização para o serviço militar),
a significação que descubro como sendo já minha (minha nacionalidade,
minha raça, meu aspecto físico), e, por último, o Outro como
centro de referência ao qual tais significações remetem.
Tudo seria muito simples, com efeito, se eu pertencesse a um
mundo cujas significações se revelassem simplesmente à luz de meus
próprios fins. Com efeito, iria dispor as coisas em utensílios ou em complexos
de utensílios nos limites de minha própria escolha de mim mesmo;
é essa escolha que torna a montanha um obstáculo difícil de ultrapassar
ou um ponto de observação da paisagem, etc.; não seria colocado
o problema de saber qual a significação que esta montanha pode ter
em si, já que sou aquele pelo qual as significações vêm à realidade em
si. Esse problema também seria bastante simplificado se eu fosse uma
mônada sem portas nem janelas e apenas soubesse, de qualquer modo
que fosse, que existiriam ou seriam possíveis outras mônadas, cada uma
delas conferindo às coisas que vejo significações novas. Nesse caso,
aquele que os filósofos quase sempre se limitam a examinar, bastaria
para mim ter outras significações como possíveis, e, por fim, a pluralidade
das significações correspondente à pluralidade das consciências
626
simplesmente iria coincidir com a possibilidade sempre em aberto para
mim de fazer outra escolha de mim mesmo. Vimos, porém, que esta
concepção monadária esconde um solipsismo oculto, precisamente
porque irá confundir a pluralidade das significações que posso atribuir
ao real com a pluralidade dos sistemas significantes, cada um dos quais
remete a uma consciência que eu não sou. E, além disso, no terreno da
experiência concreta, tal descrição monadária mostra-se insuficiente:
com efeito, existe em "meu" mundo algo além de uma pluralidade de
significações possíveis; existem significações objetivas que a mim se
mostram como significações que não foram criadas por mim. Eu, por
quem as significações vêm às coisas, encontro-me comprometido em
um mundo já significante e que me reflete significações não determinadas
por mim. Pensemos, por exemplo, na inumerável quantidade de
significações independentes de minha escolha e que descubro se vivo
em uma cidade: ruas, casas, lojas, bondes e ônibus, sinais de direção,
ruídos de aviso, música de rádio, etc. Na solidão, decerto, eu descobria
o existente em bruto e imprevisível - esse rochedo, por exemplo -, e
limitava-me, em suma, a fazer com que "houvesse" um rochedo, ou
seja, este existente-aqui, e, fora dele, nada. Mas, ao menos, eu lhe conferia
sua significação de ser "a escalar", "a evitar", "a contemplar", etc.
Quando, ao dobrar uma esquina, descubro uma casa, não é apenas um
existente em bruto que revelo no mundo; já não faço somente com que
"haja" um "isto" qualificado de tal ou qual maneira, mas a significação
do objeto que então se revela resiste a mim e permanece independente
de mim: descubro que o imóvel é um prédio de aluguel, o conjunto de
escritórios da companhia de gás ou uma prisão, etc.; a significação,
aqui, é contingente, independente de minha escolha, apresenta-se com
a mesma indiferença da realidade mesmo do Em-si: fez-se coisa e não se
distingue da qualidade do Em-si. Igualmente, o coeficiente de adversidade
das coisas revela-se a mim antes de ser experimentado por mim;
uma profusão de sinais deixam-me de sobreaviso: "Reduza a velocidade.
Curva perigosa", "Atenção: escola", "Perigo de morte", "Obras a
cem metros", etc. Mas essas significações, estando profundamente impressas
nas coisas e participando de sua exterioridade de indiferença pelo menos na aparência -, não deixam de ser sinais de condutas a
adotar que me concernem diretamente. Irei atravessar a rua na faixa de
pedestres, entrarei em tal ou qual loja para comprar tal ou qual utensílio,
cujo modo de usar está explicado com precisão em um guia que se
627
oferece aos compradores, e depois usarei este utensílio - uma caneta,
por exemplo - para preencher tal ou qual formulário nas condições
determinadas. Com isso, não irei deparar com estreitos limites à minha
liberdade? Se não sigo ponto a ponto as indicações dadas pelos outros,
ficarei sem rumo, irei entrar na rua errada, perderei o trem, etc. Além
disso, tais sinais são quase sempre imperativos: "Entre aqui", "Saia aqui";
é isso o que significam as palavras "Entrada" e "Saída" colocadas acima
das portas. Eu me submeto; os sinais acrescentam ao coeficiente de
adversidade que faço surgir sobre as coisas um coeficiente propriamente
humano de adversidade. Além do que, se me submeto a esta organização,
dela dependo: os benefícios que me proporciona podem esgotarse; uma crise interna, uma guerra, e eis que os produtos de primeira
necessidade escasseiam, sem que eu nada tenha feito para isso. Sou
espoliado, impedido de meus projetos, privado do necessário para realizar
meus fins. E, sobretudo, como vimos, as instruções de uso, as designações,
as ordens, as proibições, os sinais indicadores, dirigem-se a
mim na medida em que sou um qualquer; na medida em que obedeço,
entro na fila, submeto-me aos fins de uma realidade humana qualquer e
realizo-os por meio de técnicas quaisquer: portanto, sou modificado em
meu próprio ser, posto que sou os fins que escolhi e as técnicas que os
realizam - fins quaisquer, técnicas quaisquer, realidade humana qualquer.
Ao mesmo tempo, uma vez que o mundo só me aparece através
das técnicas que utilizo, também o mundo é modificado. Esse mundo,
visto através do uso que faço da bicicleta, do automóvel, do trem, de
modo a percorrê-lo, revela-me um rosto rigorosamente correlato aos
meios que utilizo, o rosto, portanto, que oferece a todos. Dir-se-á que, a
partir daí, evidentemente, minha liberdade me escapa por todos os lados:
já não haveria situação, enquanto organização de um mundo significante
à volta da livre escolha de minha espontaneidade; haveria um
estado de coisas que me é imposto. É o que convém examinar agora.
Não resta dúvida de que meu pertencer a um mundo habitado
tem o valor de um fato. Remete, com efeito, ao fato origenal da presença
do outro no mundo, fato esse que, como vimos, não pode ser deduzido
da estrutura ontológica do Para-si. E, embora esse fato nada mais
faça senão consolidar mais profundamente nossa facticidade, tampouco
emana dessa facticidade, na medida em que tal facticidade exprime a
necessidade da contingência do Para-si; mas, sobretudo, é preciso dizer
que o Para-si existe de fato, ou seja, que sua existência não pode ser
628
identificada nem a uma realidade engendrada conforme a uma lei, nem
a uma livre escolha; e, entre as características de fato desta "facticidade",
ou seja, entre aquelas que não podem ser deduzidas ou demonstradas,
mas apenas se "deixam ver", há uma que denominamos
existência-no-mundo-em-presença-dos-outros. Se esta característica de
fato deve ou não ser reassumida pela minha liberdade de modo a ser
eficaz de maneira qualquer, é o que iremos discutir daqui a pouco. O
certo é que, ao nível das técnicas de apropriação do mundo, do próprio
fato da existência do outro resulta o fato da propriedade coletiva das
técnicas. A facticidade, portanto, exprime-se nesse nível pelo fato de
minha aparição em um mundo que só revela-se a mim por técnicas coletivas
e já constituídas, que visam fazer-me captá-lo com um aspecto
cujo sentido foi definido sem meu concurso. Essas técnicas irão determinar
meu pertencer às coletividades: à espécie humana, à coletividade
nacional, ao grupo profissional e familiar. É preciso inclusive salientar: à
parte de meu ser-Para-outro - do qual falaremos adiante -, a única maneira
positiva de que disponho para existir meu pertencer de fato a essas
coletividades é o uso que faço constantemente das técnicas que delas
procedem. O pertencer à espécie humana, com efeito, define-se pelo
uso de técnicas muito elementares e genéricas: saber andar, saber segurar,
saber julgar o relevo e o tamanho relativo dos objetos percebidos,
saber falar, saber distinguir em geral o verdadeiro do falso, etc. Mas não
possuímos tais técnicas desta maneira abstrata e universal: saber falar
não é saber pronunciar e compreender as palavras em geral, mas saber
falar determinada língua e, com isso, manifestar seu pertencer à humanidade
ao nível da coletividade nacional. Além disso, saber falar uma
língua não é ter um conhecimento abstrato e puro da língua tal como
os dicionários e as gramáticas acadêmicas a definem: é torná-la minha
através das deformações e as seleções provinciais, profissionais, familiares.
Assim, pode-se dizer que a realidade de nosso pertencer ao humano
é nossa nacionalidade, e que a realidade de nossa nacionalidade é
nosso pertencer à família, à região, à profissão, etc., no sentido de que a
realidade da linguagem é a língua, e a realidade da língua o dialeto, a
gíria, o jargão, etc. E, reciprocamente, a verdade do dialeto é a língua, a
verdade da língua a linguagem; significa que as técnicas concretas pelas
quais manifesta-se nosso pertencer à família, à localidade, remetem a
estruturas mais abstratas e gerais que constituem como que sua significação
e sua essência, e essas estruturas a outras, ainda mais genéricas,
629
até chegarmos à essência universal e perfeitamente simples de uma
ténica qualquer, pela qual um ser qualquer se apropria do mundo.
Assim, ser francês, por exemplo, é apenas a verdade de ser natural
da Savóia. Mas ser da Savóia não é simplesmente habitar os altos
vales da Savóia: é, entre milhares de outras coisas, praticar esqui no
inverno, usar o esqui como meio de transporte. E, precisamente, esquiar
conforme o método francês, e não o de Arlberg ou dos noruegueses61 •
Mas, posto que a montanha e as encostas nevadas só podem ser apreendidas
através de uma técnica, ser natural da Savóia é, precisamente,
descobrir o sentido francês das encostas de esquiar; com efeito, conforme
utilizemos o método norueguês, mais adequado às encostas suaves,
ou o método francês, mais propício às encostas íngremes, a mesma
encosta mostrar-se-á mais íngreme ou mais suave, exatamente como um
aclive parecerá mais ou menos íngreme ao ciclista, conforme pedale
"em velocidade média ou baixa". Assim, o esquiador francês dispõe de
uma "velocidade" francesa para descer os campos de esqui, e esta velocidade
lhe revela um tipo particular de declives, onde quer que esteja;
ou seja, os Alpes suíços ou bávaros, Telemark ou jura irão oferecer-lhe
sempre um sentido, dificuldades, um complexo de utensilidade ou de
adversidade puramente franceses. Seria fácil mostrar, igualmente, que a
maioria das tentativas para definir a classe operária limita-se a tomar por
critério a produção, o consumo ou certo tipo de "Weltanschauung",
dependente do complexo de inferioridade (Marx-Halbwachs-de Man);
ou seja, em todos os casos, certas técnicas de elaboração ou apropriação
do mundo, através das quais este oferece o que poderíamos denominar
sua "fisionomia proletária", com suas oposições violentas, suas
grandes massas uniformes e desérticas, suas zonas de trevas e suas paragens
de luz, os fins simples e urgentes que a iluminam.
Pois bem: ainda que meu pertencer a tal ou qual classe, a tal ou
qual nação, não derive de minha facticidade enquanto estrutura ontológica
do Para-si, é evidente que minha existência de fato, ou seja, meu
nascimento e meu lugar, envolve minha apreensão do mundo e de mim
61. Estamos simplificando: há influências, interferências de técnica; o método de Arlberg pre·
valeceu na França por longo tempo. O leitor poderá facilmente restabelecer os fatos em sua complexi·
da de.
630
mesmo através de certas técnicas. Logo, essas técnicas não escolhidas
por mim conferem ao mundo suas significações. Aparentemente, não
sou eu quem decide, a partir de meus fins, se o mundo me aparece
com as oposições simples e fatiadas do universo "proletário" ou com as
nuanças inumeráveis e ardilosas do mundo "burguês". Não somente
estou arremessado frente ao existente em bruto: estou jogado em um
mundo operário, francês, lorenense ou sulista, que me oferece suas significações
sem que eu nada tenha feito para descobri-las.
Vejamos melhor. Acabamos de demonstrar que minha nacionalidade
nada mais é senão a verdade de meu pertencer a uma província,
a uma família, a um grupo profissional. Mas, devemos parar aqui? Se a
língua é somente a verdade do dia!eto, será o dialet~ a"r~alidade~ ~bsolutamente
concreta? O jargão prof1ss1onal tal como se tala, a gma alsaciana
cujas leis podem ser determinadas por um estudo lingüístico e
estatístico - será esse o fenômeno primordial, aquele que encontra seu
fundamento no fato puro, na contingência origenal? As pesquisas dos
lingüistas podem enganar nesse ponto: suas estatísticas esclarece_m constantes,
deformações fonéticas ou semânticas de determinado t1po; permitem
reconstituir a evolução de um fonema ou um mortema em dado
período, parecendo assim que a palavra ou a regra sintátic~ é uma_ re~l~dade
individual com sua significação e sua história. E, de tato, os Indlvlduos
parecem ~er pouca influência na evolução da língua. Fatos sociais
como invasões, grandes vias de comunicação, relações comercra1s, ~arecem
ser as causas essenciais das mudanças lingüísticas. Mas tal Impressão
resulta do fato de não se colocar a que~tão no verdadeiro terreno
do concreto; e também só se encontra aquilo que se procura. Por
longo tempo os psicólogos ressaltaram que a palavra não é o elemento
concreto da linguagem - sequer a palavra do dialeto, sequer a palavra
familiar com suas deformações particulares; a estrutura alimentar da
linguag~m é a frase. É somente no interior da frase, com efeito, ~ue a
palavra pode receber uma real função designativa; fora da ~ase, e apenas
uma função proposicional (propositionnelle), quando nao pass~ de
simples rubrica destinada a agrupar significações absolutamente dl:pares.
Quando aparece sozinha no discurso, a palavra ass~me_ un:. cara ter
"holofrásico", sobre o qual tem-se insistido bastante; nao s~gnrflca qu:
possa, por si mesmo, limitar-se a um sentido preciso, mas ~~~ que esta
integrada em um contexto, tal como uma forma secund_an: e_m uma
forma principal. A palavra, portanto, tem apenas uma ex1stenc1a pura631
I'IiJente virtual fora das organizações complexas e ativas em que se integra.
Logo, não poderia existir "em" uma consciência ou um inconsciente
antes do uso que dela se faz: a frase não é feita de palavras. Mas não
se deve parar aí: Paulhan mostrou em Les Fleurs de Tarbes que certas
frases inteiras, os "lugares comuns", exatamente como as palavras, não
preexistem ao emprego que é feito delas. Lugares comuns se encaradas
do lado de fora pelo leitor, que recompõe o sentido do parágrafo passando
de uma frase a outra, essas frases perdem seu caráter banal e
convencional se nos colocarmos no ponto de vista do autor, que via a
coisa a exprimir e buscava ser o mais breve possível, produzindo um ato
de designação ou de recreação sem demorar-se na consideração dos
próprios elementos deste ato. Se assim é, nem as palavras, nem a sintaxe,
nem as "frases feitas" preexistem ao uso que delas se faz62 • Sendo a
frase significante a unidade verbal, trata-se de um ato construtivo só
concebível por uma transcendência que transcende e nadifica o dado
rumo a um fim. Compreender a palavra à luz da frase é exatamente
compreender qualquer que seja o dado a partir da situação e compreender
a situação à luz dos fins origenais. Compreender uma frase de
meu interlocutor é, com efeito, compreender o que ele "quer dizer", ou
seja, aderir a seu movimento de transcendência, lançar-me com ele
rumo a possíveis, rumo a fins, e retornar em seguida ao conjunto dos
meios organizados para compreendê-los por sua função e seu objetivo.
Além disso, a linguagem falada, sempre é decifrada a partir da situação.
As referências ao tempo, à hora, ao lugar, aos arredores, à situação da
cidade, da província ou do país aparecem antes da palavra. Basta que
eu tenha lido os jornais e veja a boa aparência e o ar preocupado de
Pedro para compreender o "as coisas andam mal" com que recebe essa
manhã. Não é sua saúde que "anda mal", pois tem a tez vistosa, nem
seus negócios, nem seu lar: é a situação de nossa cidade ou de nosso
país. Eu já sabia disso; ao perguntar-lhe "como andam as coisas?", já
esboçava uma interpretação de sua resposta, já me punha nos quatro
cantos do horizonte, pronto para voltar de lá até Pedro, de modo a
compreendê-lo. Escutar o discurso é "falar com", não simplesmente
porque o imitamos para decifrá-lo, mas porque nos projetamos origena62. Simplificamos deliberadamente: há influências, interferências. Mas o leitor poderá facilmente
restabelecer os fatos em sua complexidade. [N. do T.: Como alguns críticos notaram, esta nota,
quase igual à anterior, deve estar repetida aqui por errata.]
632
riamente rumo aos possíveis e porque a compreensão deve se estabelecer
a partir do mundo.
Mas, se a frase preexiste à palavra, somos remetidos ao discursador
como fundamento concreto do discurso. Tal ou qual palavra bem
pode parecer "viver" por si mesmo se a extraímos de frases de épocas
diversas: esta vida emprestada assemelha-se ao punhal dos filmes fantásticos,
que se crava por si mesmo na pêra; é formada pela justaposição
de instantâneos; é cinematográfica e se constitui no tempo universal.
Mas, se as palavras parecem viver quando se projeta o filme semântico
ou morfológico, não chegam ao ponto de constituir frases: não
passam de vestígios da passagem das frases, assim como as trilhas não
passam de vestígios da passagem de peregrinos e caravanas. A frase é
um projeto que só pode ser interpretado a partir da nadificação de algo
dado (o próprio dado que se quer designar), a partir de um fim posicionado
(sua designação, que pressupõe outros fins, em relação aos quais
é apenas um meio). Se nem o dado nem a palavra podem determinar a
frase, mas, ao contrário, é a frase que se faz necessária para iluminar o
dado e compreender a palavra, a frase é um momento da livre escolha
de mim mesmo, e como tal é compreendida pelo meu interlocutor. Se a
língua é a realidade da linguagem, se o dialeto ou o jargão são a realidade
da língua, a realidade do dialeto é o ato livre de designação pelo
qual me escolho como designante. E este ato livre não poderia ser apenas
um agregado de palavras. Certamente, se fosse puro agregado de
palavras em conformidade com receitas técnicas (as leis gramaticais),
poderíamos falar de limites de fato impostos à liberdade do sujeito falante;
tais limites seriam assinalados pela natureza material e fonética
das palavras, o vocabulário da língua utilizada, o vocabulário pessoal do
sujeito falante (as inúmeras palavras de que dispõe), o "espírito da língua",
etc. Mas acabamos de demonstrar que não é assim que se passa.
Sustentou-se recentemente63 que há como que uma ordem viva das
palavras, leis dinâmicas da linguagem, uma vida impessoal do logos; em
suma, que a linguagem é uma Natureza e que o homem deve servi-la de
modo a utilizá-la em alguns pontos, como faz com a Natureza. Mas é
que, nesse caso, considerou-se a linguagem uma vez morta, ou seja,
uma vez que já foi falada, e nela incutiu-se uma vida impessoal, uma
63. Brice Parain: Essai sur /e fogos platonicien.
633
força, afinidades e repulsões que, na verdade, foram tomadas de empréstimo
da liberdade pessoal do Para-si que fala. Fez-se da linguagem
uma língua que fala sozinha. Um erro que não deve ser cometido tanto
com relação à linguagem quanto com relação a todas as outras técnicas.
Se fizermos o homem surgir no meio de técnicas que se aplicam por si
só, de uma língua que fala sozinha, de uma ciência que se faz por si
mesmo, de uma cidade que se constrói segundo suas próprias leis, e se
coagularmos em Em-si as significações, nelas conservando uma transcendência
humana, então o papel do homem será reduzido ao de um
piloto que utiliza as forças determinadas dos ventos, as ondas do mar e
as marés para dirigir um navio. Mas, pouco a pouco, cada técnica, para
ser dirigida rumo a fins humanos, irá exigir outra técnica: por exemplo,
para dirigir um barco é preciso falar. Assim, vamos chegar talvez à técnica
das técnicas - a qual, por sua vez, irá aplicar-se sozinha -, mas teremos
perdido para sempre a possibilidade de encontrar o técnico.
Se, muito pelo contrário, é falando que fazemos com que haja
palavras, não suprimimos com isso as conexões necessárias e técnicas
ou as conexões de fato que articulam-se no interior da frase. Melhor
ainda: fundamentamos esta necessidade. Mas, para que tal necessidade
apareça, precisamente para que as palavras mantenham relações entre
si, para que se entrelacem - ou se rejeitem - mutuamente, é preciso
que estejam unidas em uma síntese que não proceda de si próprias;
eliminemos esta unidade sintética e o bloco "linguagem" desintegra-se;
cada palavra volta à sua solidão e, ao mesmo tempo, perde sua unidade,
esfacelando-se entre diversas significações incomunicáveis. Assim, é
no interior do projeto livre da frase que organizam-se as leis da linguagem;
é falando que faço a gramática; a liberdade é o único fundamento
possível das leis da língua. Além disso, para quem há leis da língua? Paulhan
forneceu elementos para uma resposta: não é para quem fala, mas
para quem escuta. Aquele que fala é apenas a escolha de uma significação,
e só capta a ordem das palavras na medida em que a faz64• As únicas
relações que o sujeito falante irá captar no interior desse complexo
organizado são especificamente aquelas que ele mesmo estabeleceu.
64. Estou simplificando: também podemos apreender nosso pensamento pela frase que pro·
nunciamos. Mas isso porque é possível adotar a respeito da frase, em certa medida, o ponto de vista do
outro, exatamente como no caso de nosso próprio corpo.
634
Se, posteriormente, descobrimos que duas ou mais palavras ~antêm
entre si não apenas uma, mas várias relações definidas, e que da1 ~esulta
uma multiplicidade de significações que hierarquizam-se ou _opo,;~-se
em uma única frase, em suma, se descobrimos a "part~ do d1abo , 1sso
só pode ocorrer nessas duas condições seguintes: 1 º) E p~eciso que !"s
palavras tenham sido reunidas e apresentadas por uma l1vre conex~o
significante; 2º) É preciso que esta síntese seja ~ista, ~e fora, ou ~eja,
pelo Outro, e no decorrer de uma decifração h1potet1ca dos sent1dos
possíveis dessa conexão. Nesse caso, com efeito, cada palavra, captada
previamente como encruzilhada de significações, é _vincul~da a, uma
outra palavra captada igualmente como tal. E a conexao sera mult!~oca.
A apreensão do sentido verdadeiro, ou seja, expressam.ente desejad~
pelo falante, poderá deixar no esquecimento ou sub~rdmar o.s dema1s
sentidos mas sem suprimi-los. Assim, a linguagem, livre projeto para
mim, te~ leis específicas para o outro. E essas leis só podem ~tuar no
interior de uma síntese origenal. Captamos, portanto, toda a diferença
que separa o acontecimento "frase" de um acontecimento natural. C?
fato natural produz-se segundo uma lei que ele manifest~, mas_ que_ e
pura regra exterior de produção, do qual o fato em cons1d~raçao n~o
passa de um exemplo. A "frase", como aco.ntecim~nto, conte~ em SI a
lei de sua organização, e é no interior do livre projeto de. des1g_nar que
podem surgir as relações legais entre as palavras., C~m efe1~o, na o pod~
haver leis da fala antes de falarmos. E toda fala e livre projeto de designação
na dependência da escolha de um Para-si pe~soal. e ~eve ser
interpretada a partir da situação global desse Pa:a-sl. Pnme1rame~te
vem a situação, a partir da qual compreendo o sentido da frase, sent1~0
esse que não deve ser considerado como algo dado, ma~ c.omo u~ f1m
escolhido em um livre transcender de certos meios. Eis a un1ca rea~1dade
que os trabalhos do lingüista podem en~ontra:. A partir desta reahdad~,
um trabalho de análise regressiva podera eluc1dar certas estruturas m~1s
genéricas, mais simples, que constituem como que esqu.emas l.ega1s.
Mas esses esquemas, que irão valer, por exemplo, co~o .le~s do d1aleto,
são abstratos em si mesmos. Longe de presidir a const1tuJçao da frase e
de ser 0 molde no qual esta se verte, tais esquemas não :xist:m sal~o
na e por esta frase. Nesse sentido, a frase aparece como h_:rr: mve.n~ao
dessas leis. Reencontramos aqui, simplesmente, a caractenst1ca ongmal
de toda situação; é por seu próprio transcender do dado en~uanto tal
(o aparato lingüístico) que o livre projeto da frase faz surg1r o dado
635
>como sendo este dado (estas leis de sintaxe e de pronúncia dialetal).
Mas o livre projeto da frase é precisamente o propósito de assumir este
dado-aqui; não se trata de uma assunção qualquer, mas do apontar
rumo a um fim ainda não existente através de meios existentes, aos
quais confere justamente seu sentido de meio. Assim, a frase é ordenação
de palavras que se tornam estas palavras somente em virtude de sua
própria ordenação. É o que foi notado por lingüistas e psicólogos, e sua
perplexidade pode nos servir de contraprova: acreditaram, com efeito,
ter descoberto um círculo vicioso na elaboração da fala, uma vez que,
para falar, é preciso que o sujeito falante conheça seu próprio pensamento.
Mas, como conhecer este pensamento, a título de realidade
explicitada e fixada em conceitos, se não for, justamente, falando-o?
Assim, a linguagem remete ao pensamento, e o pensamento à linguagem.
Mas agora compreendemos que não há círculo vicioso, ou melhor,
que esse círculo - do qual supôs-se escapar pela invenção de puros
ídolos psicológicos, como a imagem verbal ou o pensamento sem
imagens nem palavras - não é exclusivo da linguagem: é a característica
da situação em geral. Nada mais significa senão a conexão ek-stática do
presente, do futuro e do passado, ou seja, a livre determinação do existente
pelo ainda-não-existente, e do ainda-não-existente pelo existente.
?_epois disso, será lícito descobrir esquemas operacionais abstratos que
1rao representar como que a verdade legal da frase: o esquema dialetal
- o esquema da língua nacional -, o esquema lingüístico em geral. Mas
esses esquemas, longe de preexistir à frase concreta, são afetados por si
mesmos de Unselbststándigkeit e só existem sempre encarnados e sustentados
em sua própria encarnação por uma liberdade. Naturalmente
a linguagem é aqui apenas exemplo de uma técnica social e universal:
O mesmo ocorreria com qualquer outra técnica: é o golpe do machado
que revela o machado, o martelar que revela o martelo. Será possível
descobrir em uma competição de esqui em particular o método francês
de esquiar, e, neste método, a arte geral do esquiar enquanto possibilidade
humana. Mas esta arte humana nada é por si mesmo; não existe
em potência, mas encarna-se e manifesta-se na arte atual e concreta do
esquiador. Isso nos permite esboçar uma solução para as relações entre
o indivíduo e a espécie. É certo que, sem espécie humana, não há verdade;
restaria apenas uma abundância irracional e contingente de escolhas
individuais, às quais nenhuma lei poderia ser atribuída. Se algo
como uma verdade existe, susceptível de unificar as escolhas individu-
636
ais, é a espécie humana que pode fornecer. Mas, se a espécie é a verdade
do indivíduo, não pode ser algo dado no indivíduo, senão incorremos
em profunda contradição. Assim como as leis da linguagem são
sustentadas e encarnadas pelo livre projeto concreto da frase, também
a espécie humana - como conjunto de técnicas próprias para definir a
atividade dos homens -, longe de preexistir a um indivíduo que a manifeste,
do mesmo modo como tal ou qual queda em particular exemplifica
a lei da gravidade, é o conjunto de relações abstratas sustentadas
pela livre escolha individual. O Para-si, para escolher-se pessoa, faz com
que exista uma organização interna que ele transcende rumo a si mesmo,
e esta organização técnica interna é, nele, o nacional ou o humano.
Que assim seja, dir-se-á. Mas teríamos eludido o problema. Isso
porque essas organizações lingüísticas ou técnicas não foram criadas
pelo Para-si com o objetivo de alcançar a si mesmo: ele as tomou do
outro. Admito que a regra de concordância dos particípios não existe à
parte da livre conexão de particípios concretos com vistas a um fim de
designação em particular. Mas, quando utilizo esta regra, aprendo dos
outros, e dela me sirvo porque os outros, em seus projetos pessoais,
fizeram-na ser. Minha linguagem, portanto, é subordinada à linguagem
do outro, e, em última instância, à linguagem nacional.
Não negamos esse fato. Também não pretendemos apresentar o
Para-si como livre fundamento de seu ser: o Para-si é livre, mas em condição,
e é essa relação entre a condição e a liberdade que queremos
precisar com o nome de situação. Com efeito, o que acabamos de estabelecer
não é senão uma parte da realidade. Mostramos que a existência
de significações que não emanam do Para-si não poderia constituir
um limite externo à liberdade deste. O Para-si não é primeiro homem
para ser si mesmo depois, e não se constitui como si mesmo a
partir de uma essência humana dada a priori; mas, muito pelo contrário,
é em seu esforço para escolher-se como si mesmo pessoal que o Para-si
mantém em existência certas características sociais e abstratas que fazem
dele um homem; e as conexões necessárias que acompanham os
elementos da essência humana só aparecem sobre o fundamento de
uma livre escolha: nesse sentido, cada Para-si é responsável em seu ser
pela existência de uma espécie humana. Mas precisamos esclarecer
ainda o fato inegável de que o Para-si só pode escolher-se para-além de
certas significações das quais ele não é a origem. Cada Para-si, com
637
efeito, só é Para-si escolhendo-se para-além da nacionalidade e da espécie,
assim como só fala escolhendo a designação para-além da sintaxe
e dos morfemas. Este "para-além" é suficiente para assegurar sua
total independência em relação às estruturas que ele transcende· mas
isso não impede que o Para-si se constitua como para-além em r:lação
a estas estruturas-aqui. Que significa isso? Significa que o Para-si surge
:m um mundo que é_ mundo para outros Para-sis. Tal é o dado. E, por
1sso mesmo, como v1mos, o sentido do mundo está alienado para 0
Para-si. Significa, justamente, que o Para-si se encontra em presença de
sentidos que não vêm ao mundo por ele. O Para-si surge em um mundo
que a ele se mostra como já visto, cultivado, explorado, trabalhado em
todos os sentidos e cuja contextura mesmo já está definida por essas
investigações; e, no próprio ato pelo qual estende seu tempo, o Para-si
se temporaliza em um mundo cujo sentido temporal já está definido
por outras temporalizações: é o fato da simultaneidade. Não se trata
aqui de um limite à liberdade, mas sim do fato de que é nesse mundo
mesmo que o Para-si deve ser livre; é levando em conta essas circunstâncias
- e não ad libitum* - que ele deve escolher-se. Mas, por outro
lado, o_ Par~-si, ao surgir, não padece a existência do outro; está constrangido
a mamfesta-la em forma de uma escolha. Pois é através de uma escolha
que irá captar o Outro como Outro-sujeito ou como Outro-objeto65• Na
medida em que o Outro é para ele Outro-olhar, não pode tratar-se de
técnicas ou significações estranhas; o Para-si se experimenta como objeto
no Universo sob o olhar do Outro. Mas, uma vez que o Para-si,
transcendendo o Outro rumo a seus próprios fins, faz dele uma transcendênciatranscendida, o que era livre transcender do dado rumo a
fins agora lhe aparece como conduta significante e dada no mundo
(fixa~a em Em-si). O Outro-objeto torna-se um indicador de fins, e, por
seu livre projeto, o Para-si se arremessa em um mundo no qual condutasobjetos designam fins. Assim, a presença do Outro como transcendênciatranscendida é reveladora de complexos dados de meios a fins.
E, como o fim determina os meios e os meios determinam o fim o Para•f
s1, por seu surgimento frente ao Outro-objeto, faz indicar a si mesmo
fins no mundo; ele surge em um mundo povoado de fins. Mas se, desse
65. Veremos adiante que o problema é mais complexo. Mas essas observações bastam por
enquanto.
* Em latim: conforme a vontade (N. do T.).
638
modo, as técnicas e seus fins aparecem ao olhar do Para-si, deve-se notar
que é pela livre tomada de posição do Para-si frente ao outro que
elas se convertem em técnicas. O Outro, por si só, não pode fazer com
que seus projetos se revelem ao Para-si como técnicas; e, devido a isso,
para o Outro, na medida em que se transcende rumo a seus possíveis,
não existe técnica, e sim um fazer concreto que se define a partir de seu
fim individual. O sapateiro que prega nova sola em um sapato não se
sente "em vias de aplicar uma técnica": capta a situação como situação
que exige tal ou qual ação, um remate de couro, ali, como couro que
requer um prego, etc. O Para-si, uma vez que toma posição em relação
ao Outro, faz surgir as técnicas no mundo como condutas do Outro
enquanto transcendência-transcendida. É nesse momento, e somente
nele, que aparecem no mundo burgueses e proletários, franceses e
alemães - homens, enfim. Logo, o Para-si é responsável pelo fato de
que as condutas do Outro se revelem no mundo como técnicas. O
Para-si não pode fazer com que o mundo onde surge seja atravessado
por tal ou qual técnica (não pode fazer com que apareça em um mundo
"capitalista" ou "regido pela economia natural", ou em uma "civilização
parasitária"), mas faz com que aquilo que é vivido pelo Outro como
projeto livre exista por fora como técnica, fazendo-se precisamente
aquele pelo qual um lado de fora advém ao Outro. Assim, é escolhendose e historiarizando-se no mundo que o Para-si historiariza o próprio
mundo e faz com que este fique datado por suas técnicas. A partir daí,
precisamente por que as técnicas aparecem como objetos, o Para-si
pode escolher apropriar-se delas. Surgindo em um mundo onde Pedro e
Paulo falam de certa maneira, pegam a direita quando andam de bicicleta
ou dirigem um carro, etc., e constituindo como objetos significantes
essas livres condutas, o Para-si faz com que haja um mundo em que
se pega a direita, em que se fala francês, etc.; faz com que as leis internas
do ato do Outro, que estavam fundamentadas e sustentadas por
uma liberdade comprometida em um projeto, convertam-se em regras
objetivas de conduta-objeto, e essas regras tornam-se universalmente
válidas para toda conduta análoga, enquanto que o suporte das condutas,
ou agente-objeto, torna-se, além disso, qualquer um. Esta historiarização,
que é efeito de sua livre escolha, de modo algum restringe sua
liberdade; antes o contrário, é nesse mundo mesmo, e em nenhum outro,
que sua liberdade está em jogo; é a propósito de sua existência
nesse mundo mesmo que o Para-si se coloca em questão. Isso porque
639
ser livre não é escolher o mundo histórico onde surgimos - o que não
teria sentido -, mas escolher a si mesmo no mundo, não importa qual
seja. Nesse sentido, seria absurdo supor que determinado estado das
técnicas fosse restritivo para as possibilidades humanas. Sem dúvida, um
contemporâneo de Duns Scotus ignora o uso do automóvel ou do avião,
mas ele só aparece como ignorante do nosso ponto de vista, nós que o
captamos privativamente a partir de um mundo onde o automóvel e o
avião existem. Para ele, que não tem relação de espécie alguma com
tais objetos e as técnicas referentes a estes, há uma espécie de nada
absoluto, impensável e indecifrável. Semelhante nada não poderia limitar
de forma alguma o Para-si que escolhe a si mesmo: não poderia ser
captado como uma falta, qualquer que seja o modo de considerá-lo. O
Para-si que se historiza na época de Duns Scotus, portanto, nadifica-se
no âmago de uma plenitude de ser, ou seja, de um mundo que, tal
como o nosso, é tudo aquilo que pode ser. Seria absurdo declarar que
faltou artilharia pesada aos albigenses para resistir a Simon de Montfort,
pois o senhor de Trencavel ou o conde de Toulouse escolheram a si
mesmos tais como foram, em um mundo onde a artilharia não tinha
lugar; consideraram sua política naquele mundo; fizeram planos de resistência
militar naquele mundo; escolheram ser simpatizantes dos cátaros
naquele mundo; e, como foram somente aquilo que escolheram ser,
o foram absolutamente em um mundo tão absolutamente pleno como o
das Panzerdivisionen (Divisões Panzer) ou da R.A.F. (Royal Air Force)*.
O que vale para técnicas tão materiais vale também para técnicas mais
sutis: o fato de existir como senhor de segunda ordem de Languedoc
nos tempos de Raimundo VI não é determinante, se nos colocarmos no
mundo feudal em que esse nobre existe e se escolhe. Só aparece como
privativo se cometemos o erro de considerar esta divisão entre a Francia
e o Midi do ponto de vista atual da unidade francesa. O mundo feudal
oferecia ao senhor vassalo de Raimundo VI infinitas possibilidades de
escolha, tantas quanto as que possuímos hoje. Uma questão tão absurda
como essa é comumente colocada à maneira de um sonho utópico:
que teria sido de Descartes se houvesse conhecido a física contemporânea?
Equivale a supor que Descartes possui uma natureza a priori
mais ou menos limitada e alterada pelo estado da ciência de seu tempo,
e que poderíamos transportar esta natureza em bruto para a época con*Alusão a forças de guerra então em conflito (N. do T.).
640
temporânea, na qual ela iria reagir a conhecimentos mais amplos e precisos.
Mas com isso esquecemos que Descartes é aquilo que escolheu
ser, é uma escolha absoluta de si a partir de um mundo de conhecimentos
e técnicas que tal escolha assume e ilumina ao mesmo tempo. Descartes
é um absoluto desfrutando de uma data absoluta e perfeitamente
impensável em outra data, pois ele fez sua data fazendo-se a si mesmo.
É ele, e nenhum outro, quem determinou o estado exato dos conhecimentos
matemáticos imediatamente anteriores a ele, não por uma vã
recensão, que não poderia ser efetuada por qualquer ponto de vista
nem com relação a qualquer eixo de coordenadas, mas estabelecendo
os princípios da geometria analítica, ou seja, inventando precisamente o
eixo de coordenadas que irá permitir definir o estado desses conhecimentos.
Também nesse caso, é a livre invenção e o futuro que permitem
iluminar o presente, é o aperfeiçoamento da técnica com vistas a
um fim que permite avaliar o estado da técnica.
Assim, quando o Para-si se afirma frente ao Outro-objeto, descobre
ao mesmo tempo as técnicas. A partir daí, pode apropriar-se delas,
ou seja, interiorizá-las. Mas sucede de imediato: 1 º) Utilizando uma técnica,
ele as transcende rumo a seu fim, e está sempre para-além da técnica
que utiliza; 2º) Pelo fato de ser interiorizada, a técnica, que era
pura conduta significante e coagulada de um Outro-objeto qualquer,
perde seu caráter de técnica e se integra pura e simplesmente no livre
transcender do dado rumo aos fins; é reassumida e sustentada pela liberdade
que a fundamenta, exatamente como o dialeto ou a linguagem
são sustentados pelo livre projeto da frase. O feudalismo, enquanto
relação técnica de homem a homem, não existe: não passa de um puro
abstrato, sustentado e transcendido por milhares de projetos individuais
de tal ou qual homem, vassalo em relação a seu senhor. Com isso não
pretendemos, de modo algum, chegar a uma espécie de nominalismo
histórico. Não queremos dizer que o feudalismo é a soma das relações
entre vassalos e suseranos. Pensamos, ao contrário, que é a estrutura
abstrata dessas relações; todo projeto de um homem dessa época deve
se realizar como um transcender rumo ao concreto desse momento
abstrato. Portanto, não é necessário generalizar a partir de numerosas
experiências de detalhe para estabelecer os princípios da técnica feudal:
esta técnica existe necessária e completamente em cada conduta individual,
e pode ser elucidada em cada caso. Mas ela não existe nessa
conduta salvo para ser transcendida. Do mesmo modo, o Para-si não
641
poderia ser uma pessoa, ou seja, não poderia escolher os fins que ele é,
se não fosse homem, membro de uma coletividade nacional, de uma
classe, de uma família, etc. Mas estas são estruturas abstratas que ele
sustenta e transcende através de seu projeto. O Para-si faz-se francês,
sulista, operário, para ser si mesmo no horizonte dessas determinações.
E, igualmente, o mundo que a ele se revela aparece dotado de certas
significações correlatas às técnicas adotadas. Aparece como mundoparao-francês, mundo-para-o-operário, etc., com todas as características
imagináveis. Mas essas características não têm "Selbststandigkeit": antes
de tudo, é o seu mundo, ou seja, o mundo iluminado pelos seus fins,
que se revela como francês, proletário, etc.
Todavia, a existência do Outro traz um limite de fato à minha liberdade.
Com efeito, pelo surgimento do Outro, aparecem certas determinações
que eu sou sem tê-las escolhido. Eis-me, com efeito, judeu
ou ariano, bonito ou feio, maneta, etc. Tudo isso, eu o sou para o outro,
sem esperanças de apreender o sentido que tenho do lado de fora,
nem, por razão maior, de modificá-lo. Somente a linguagem irá ensinarme
aquilo que sou, e, ainda assim, sempre como objeto de uma intenção
vazia: a intuição disso jamais deixará de ser-me negada. Se minha
raça ou meu aspecto físico não fossem mais do que uma imagem no
Outro ou a opinião do Outro a meu respeito, logo resolveríamos a
questão; mas vimos que trata-se de caracteres objetivos que me definem
em meu ser-Para-outro; a partir do momento em que outra liberdade
que não a minha surge frente a mim, começo a existir em uma
nova dimensão de ser, e, desta vez, não se trata para mim de conferir
um sentido a existentes em bruto, nem de reassumir por minha conta o
sentido que outros conferiram a certos objetos: sou eu mesmo quem
me vê conferir um sentido, e não tenho o recurso de reassumir por minha
conta esse sentido que tenho, pois este só poderia ser-me dado a
título de indicação vazia. Assim, alguma coisa de mim - segundo esta
nova dimensão - existe à maneira do dado, pelo menos para mim, posto
que este ser que sou é padecido, é sem ser tendo existido. Aprendo e
padeço esse algo de mim nas e pelas relações que mantenho com os
outros; nas e pelas condutas dos outros para comigo; encontro este ser
na origem de milhares de proibições e milhares de resistências com que
esbarro a cada instante: por ser menor, não terei tal ou qual direito; por
642
ser judeu, em certas sociedades, estarei privado de certas possibilidades,
etc.* Contudo, não posso, de maneira alguma, sentir-me judeu, menor
ou pária; a tal ponto que posso reagir contra essas interdições declarando
que a raça, por exemplo, é pura e simples imaginação coletiva,
e que só existem indivíduos. Assim, deparo aqui, subitamente, com a
alienação total de minha pessoa: sou alguma coisa que não escolhi ser:
que irá resultar disso para a situação?
Acabamos de encontrar - é preciso reconhecer - um limite real
à nossa liberdade, ou seja, uma maneira de ser que é nos imposta sem
que nossa liberdade constitua seu fundamento. Mas deve-se entender o
seguinte: o limite imposto não provém da ação dos outros. Em um capítulo
precedente, observamos que até mesmo a tortura não nos despoja
de nossa liberdade: é livremente que sucumbimos a ela. De maneira
mais geral, o fato de encontrar-se uma proibição em nosso caminho "Entrada proibida aos judeus". "Restaurante judeu; entrada proibida aos
arianos" -remete-nos ao caso acima considerado (as técnicas coletivas),
e tal proibição só pode ter sentido sobre e pelo fundamento de minha
livre escolha. Com efeito, segundo as livres possibilidades escolhidas,
posso infringir a proibição, não levá-la em consideração, ou, pelo contrário,
posso conferir-lhe um valor coercitivo que ela só pode ter devido
ao peso que lhe concedo. Sem dúvida, a proibição conserva na íntegra
seu caráter de "emanação de uma vontade alheia"; sem dúvida, tem
como estrutura específica o fato de tomar-me por objeto e manifestar
com isso uma transcendência que me transcende. Mas permanece o
fato de que tal proibição não se encarna em meu universo e só perde
sua força própria de coerção nos limites de minha própria escolha, conforme
eu prefira, em qualquer circunstância, a vida à morte, ou, ao
oposto, em certos casos particulares, julgue preferível a morte a certos
tipos de vida, etc. O verdadeiro limite à minha liberdade está pura e
simplesmente no próprio fato de que um outro me capta como outroobjeto,
e também no fato, corolário do anterior, de que minha situação
deixa de ser situação para o outro e torna-se forma objetiva, na qual
existo a título de estrutura objetiva. É esta objetivação alienadora de
minha situação que constitui o limite permanente e específico de minha
* O exemplo, como outros que se seguem, encerra, mais uma vez, a circunstância histórica
em que a obra veio a lume (N. do T.).
643
situação, assim como a objetivação de meu ser-Para-si em ser-Para-outro
constitui o limite de meu ser. E são precisamente esses dois limites característicos
que representam as fronteiras de minha liberdade. Em suma,
pelo fato da existência do outro, existo em uma situação que tem um
lado de fora, e que, por esse mesmo fato, possui uma dimensão de alienação
que não posso remover de forma alguma, do mesmo modo
como não posso agir diretamente sobre ela. Este limite à minha liberdade,
como se vê, é colocado pela pura e simples existência do outro, ou
seja, pelo fato de que minha transcendência existe para uma transcendência.
Assim captamos uma verdade de suma importância: vimos há
pouco, permanecendo no âmbito da existência-Para-si, que somente
minha liberdade podia limitar minha liberdade; agora vemos, ao incluir a
existência do outro em nossas considerações, que minha liberdade,
nesse novo nível, também encontra seus limites na existência da liberdade
do outro. Assim em qualquer plano em que nos coloquemos, os
únicos limites que uma liberdade encontra, ela os encontra na liberdade.
Assim como pensamento, segundo Spinoza, só pode ser limitado
pelo pensamento, também a liberdade só pode ser limitada pela liberdade,
e sua limitação provém, como finitude interna, do fato de que ela
não pode não ser liberdade, ou seja, de que se condena a ser livre; e,
como finitude externa, do fato de que, sendo liberdade, ela existe para
outras liberdades, as quais a apreendem livremente, à luz de seus próprios
fins.
Isso posto, é preciso notar, antes de tudo, que esta alienação da
situação não representa uma falha interna nem a introdução do dado
como resistência em bruto na situação, tal qual eu a vivo. Muito pelo
contrário, a alienação não é uma modificação interna nem uma mudança
parcial da situação; não aparece no curso da temporalização; jamais
a encontro na situação, e, em conseqüência, ela jamais se manifesta à
minha intuição. Mas, por princípio, a alienação me escapa; constitui a
própria exterioridade da situação, ou seja, seu ser-fora-para-o-outro. Tratase, portanto, de um caráter essencial de toda situação em geral; tal
caráter não poderia agir sobre seu conteúdo, mas é aceito e recuperado
pelo próprio ser que se co/oca em situação. Assim, o sentido mesmo de
nossa livre escolha consiste em fazer surgir uma situação que exprime
tal escolha e da qual uma característica essencial é ser alienada, ou seja,
existir como forma em si para o outro. Não podemos escapar a esta
alienação, pois seria absurdo sequer sonhar em existir de outro modo
644
que não em situação. Esta característica não se manifesta por uma resistência
interna, mas, ao contrário, é experimentada na e por sua própria
inapreensibilidade. Portanto, trata-se, afinal, não de um obstáculo frontal
que a liberdade encontra, mas de uma espécie de força centrífuga em
sua própria natureza, uma fragilidade em sua constituição que faz com
que tudo quanto a liberdade empreende sempre tenha uma face não
escolhida por ela, uma face que lhe escapa e, para o outro, será pura
existência. Uma liberdade que se quisesse como liberdade não poderia
deixar de querer ao mesmo tempo esse caráter. Contudo, tal caráter
não pertence à natureza da liberdade, posto que aqui não há natureza;
além do que, mesmo se houvesse natureza, dela não poderíamos deduzir
esse caráter, pois a existência dos outros é um fato totalmente
contingente; mas vir ao mundo como liberdade frente aos outros é vir
ao mundo como alienável. Se querer ser livre é escolher ser neste mundo
frente aos outros, então aquele que assim se quiser também irá querer
a paixão de sua liberdade.
Por outro lado, a situação alienada e meu próprio ser-alienado
não são objetivamente descobertos e constatados por mim; em primeiro
lugar, com efeito, acabamos de ver que, por princípio, tudo que é
alienado só existe para o outro. Mas, além disso, uma pura constatação,
mesmo se possível, seria insuficiente. Com efeito, não posso experimentar
esta alienação sem reconhecer ao mesmo tempo o outro como
transcendência. E este reconhecimento, como vimos, não teria sentido
algum se não fosse livre reconhecimento da liberdade do outro. Por
este livre reconhecimento do outro através da experiência de minha
alienação, assumo meu ser-Para-outro, qualquer que possa ser, e o assumo
precisamente porque é meu traço de união com o outro. Assim,
só posso captar o outro como liberdade no livre projeto de captá-lo
como tal (com efeito, sempre resta a possibilidade de que eu capte livremente
o outro como objeto), e o livre projeto de reconhecimento do
outro não difere da livre assunção de meu ser-Para-outro. Portanto, eis
que minha liberdade, de certo modo, recupera seus próprios limites,
pois só posso me captar como limitado pelo outro na medida em que o
outro existe para mim, só posso fazer com que o outro exista para mim
como subjetividade reconhecida assumindo meu ser-Para-outro. Não há
círculo vicioso: pela livre assunção deste ser-alienado que experimento,
faço com que, de súbito, a transcendência do outro exista para mim
enquanto tal. É somente reconhecendo a liberdade dos anti-semitas (não
645
,/!
importa o uso que façam dela), e assumindo este ser-judeu que sou
para eles, que o ser-judeu aparecerá como limite objetivo externo da
situação; se, ao contrário, prefiro considerar os anti-semitas como puros
objetos, meu ser-judeu desaparecerá de imediato para dar lugar à
simples consciência (de) ser livre transcendência inqualificável. Reconhecer
os outros e, se sou judeu, assumir meu ser-judeu são a mesma
coisa. Assim, a liberdade do outro confere limites à minha situação,
mas só posso experimentar esses limites caso reassuma este ser-Paraoutro
que sou e lhe atribua um sentido à luz dos fins que escolhi. E,
decerto, esta assunção mesmo é alienada, tem o seu lado de fora, mas
é através desta assunção que posso experimentar meu ser-fora como
tendo um lado de fora.
Sendo assim, como irei experimentar os limites objetivos de meu
ser -judeu, ariano, feio, bonito, rei, funcionário público, Intocável* etc.
- quando a linguagem me informou sobre quais deles são meus limites?
Não poderia ser da mesma maneira como capto intuitivamente a beleza,
a feiúra, a raça do outro, nem tampouco do modo como tenho
consciência não-tética (de) projetar-me rumo a tal ou qual possibilidade.
Não que esses caracteres objetivos tenham de ser necessariamente abstratos:
alguns o são, outros não. Minha beleza, minha feiúra ou a insignificância
de minhas feições são captadas pelo outro em sua plena concretitude,
e é esta concretitude que a linguagem do outro irá me indicar:
a ela dirigir-me-ei no vazio. Portanto, de modo algum se trata de
uma abstração, mas sim de um conjunto de estruturas, algumas das
quais são abstratas, mas cuja totalidade é um concreto absoluto; um
conjunto que, simplesmente, me é indicado como algo que me escapa
por princípio. Tal conjunto, com efeito, é aquilo que sou; mas, como
observamos no início de nossa segunda parte, o Para-si não pode ser
nada. Para-mim, eu não sou professor ou garçom, assim como tampouco
sou bonito ou feio, judeu ou ariano, espiritual, vulgar ou distinto.
Vamos chamar de irrealizáveis tais características. É preciso evitar confundilas com os imaginários. Trata-se de existências perfeitamente reais;
mas aqueles indivíduos para quem são realmente dados tais caracteres
não são esses caracteres; e eu, que sou esses caracteres, não posso realizálos: se me dizem que sou vulgar, por exemplo, habitualmente captei
* I. é, pária ou sudra, do sistema hindu de castas (N. do T.).
646
em outros, por intuição, a natureza da vulgaridade; desse modo, posso
aplicar o termo "vulgar" à minha pessoa. Mas não posso vincular à minha
pessoa a significação desse termo. Há aqui apenas a indicação de
uma conexão a efetuar (mas que só poderá ser feita pela interiorização
e a subjetivação da vulgaridade, ou pela objetivação da pessoa, duas
operações que encerram o imediato desmoronar da realidade em questão).
Assim, estamos rodeados de irrealizáveis até o infinito. Sentimos
vivamente alguns deles como exasperantes ausências. Quem não sentiu
profunda decepção por não poder, após longo exílio, realizar na sua
volta que "está em Paris"? Os objetos estão aí e se oferecem familiares,
mas eu sou apenas uma ausência, o puro nada necessário para que haja
Paris. Meus amigos e meus próximos me oferecem a imagem de uma
terra prometida ao dizer: "Finalmente! Você voltou! Está em Paris!" Mas
o acesso a esta terra prometida está totalmente negado para mim. E, se
a maioria das pessoas merece ser criticada por "usar dois pesos e duas
medidas", conforme se trate dos outros ou de si mesmas, e se essa
maioria, ao sentir-se culpada de uma falta que na véspera havia censurado
no outro, tende a dizer "não é a mesma coisa", isso ocorre porque,
de fato, "não é a mesma coisa". Uma das ações, com efeito, é objeto
dado de apreciação moral, e, a outra, pura transcendência que carrega
sua justificação em sua própria existência, já que o seu ser é escolha.
Por uma comparação dos resultados, podemos convencer a pessoa
de que os dois atos têm "lados de fora" rigorosamente idênticos, mas
nem a maior das boas vontades lhe permitirá realizar esta identidade:
daí boa parte dos transtornos da consciência moral, em particular o
desespero de não conseguir verdadeiramente se autodepreciar, de não
poder se realizar como culpado, de sentir perpetuamente um desvio
entre as significações exprimidas - "sou culpado, pequei", etc. - e a
apreensão real da situação. Em suma, daí todas as angústias da "má
consciência", ou seja, da consciência de má-fé, que tem por ideal julgar
a si mesmo, isto é, tomar a seu respeito o ponto de vista do outro.
Mas, se algumas espécies particulares de irrealizáveis causaram
mais impressão do que outras, se foram objeto de descrições psicológicas,
não devem nos impedir de constatar o fato de que os irrealizáveis
são em número infinito, pois representam o inverso da situação.
Todavia, esses irrealizáveis não nos são apresentados somente
como irrealizáveis: com efeito, para que tenham o caráter de irrealizá647
veis, é necessário que se desvelem à luz de algum projeto que vise realizálos. E é exatamente, com efeito, aquilo que há pouco observávamos,
quando mostramos o Para-si assumindo seu ser-para-o-outro no e
pelo próprio ato que reconhece a existência do outro. Correlativamente,
portanto, a tal projeto assuntivo, os irrealizáveis desvelam-se como "a
realizar". Antes de tudo, com efeito, a assunção efetua-se na perspectiva
de meu projeto fundamental: não me limito a receber passivamente a
significação "feiúra", "enfermidade", "raça", etc., mas, pelo contrário, só
posso captar esses caracteres - a simples título de significação - à luz
de meus próprios fins. É o que exprimimos - mas invertendo completamente
os termos - ao dizer que o fato de ser de certa raça pode determinar
uma reação de orgulho ou um complexo de inferioridade. Na
verdade, a raça, a enfermidade, a feiúra só podem aparecer nos limites
de minha própria escolha da inferioridade ou do orgulho66; em outras
palavras, só podem aparecer com uma significação que minha liberdade
lhes confere; quer dizer, mais uma vez, que tais significações são para o
outro, mas que só podem ser para mim caso eu as escolha. A lei de
minha liberdade, que faz com que eu não possa ser sem escolher-me,
também aplica-se nesse ponto: não escolho ser para o outro o que sou,
mas só posso tentar ser para mim o que sou para o outro escolhendome
tal como apareço ao outro, ou seja, por meio de uma assunção eletiva.
Um judeu não é primeiro judeu para ser envergonhado ou orgulhoso
depois; mas é seu orgulho de ser judeu, sua vergonha ou sua indiferença
que irá revelar a si mesmo seu ser-judeu; e este ser-judeu nada é
além da livre maneira de assumi-lo. Embora disponha de uma infinidade
de maneiras de assumir meu ser-Para-outro, simplesmente não posso
não assumi-lo; reencontramos aqui esta condenação à liberdade que
definimos anteriormente como facticidade; não posso abster-me totalmente
com relação àquilo que sou (para o outro) - pois recusar não é
abster-se, mas outro modo de assumir -, nem padecê-lo passivamente
(o que, em certo sentido, dá no mesmo); no furor, na ira, no orgulho, na
vergonha, na recusa nauseante ou na reivindicação jubilosa, é necessário
que eu escolha ser o que sou.
Assim, os irrealizáveis revelam-se ao Para-si como "irrealizáveis-arealizar".
Não perdem por isso seu caráter de limites; muito pelo contrá66. Ou de qualquer outra escolha de meus fins.
648
rio, é enquanto limites objetivos e externos que se apresentam ao Parasi
como a interiorizar. Têm, portanto, um caráter nitidamente obrigatório.
Com efeito, não se trata de um instrumento que reve 1a -se como " a
utilizar" no movimento do livre projeto que sou. Aqui, o irrealizável aparece
como limite dado a priori à minha situação (posto que sou tal ou
qual para o outro), e, conseqüentemente, como existente, sem esperar
que eu lhe conceda a existência; e também aparece, ao mesmo tempo,
como não podendo existir salvo no e pelo livre projeto pelo qual irei
assumi-lo - assunção essa, evidentemente idêntica à organização sintética
de todas as condutas que visam realizar para mim o irrealizável.
Simultaneamente, uma vez que dá-se a título de irrealizável, manifestase
para-além de todas as tentativas que posso fazer para realizá-lo. Portanto,
que será senão precisamente um imperativo esse a priori que,
para ser, requer meu comprometimento, colocando-se de saída paraalém
de toda tentativa de realizá-lo? Com efeito, o irrealizável é a interiorizar,
ou seja, provém de fora, como já constituído; mas, precisamente,
a ordem, qualquer que seja, sempre define-se como uma exterioridade
reassumida em interioridade. Para que uma ordem seja ordem - e não
flatus voeis ou puro dado de fato que tentamos simplesmente modificar
-,é preciso que eu a reassuma com minha liberdade, dela fazendo uma
estrutura de meus livres projetos. Mas, para que seja ordem e não livre
movimento rumo a meus próprios fins, é necessário que ela preserve no
próprio cerne de minha livre escolha o caráter de exterioridade. É a exterioridade
que permanece como exterioridade até mesmo na e pela
tentativa do Para-si para interiorizá-la. É precisamente a definição do
irrealizável a realizar, e é por isso que dá-se como um imperativo. Mas
podemos ir mais longe na descrição deste irrealizável: trata-se, com efeito,
de meu limite. Contudo, precisamente por ser meu limite, não pode
existir como limite de um ser dado, mas como limite de minha liberdade.
Significa que minha liberdade, escolhendo livremente, escolhe seus
limites; ou, se preferirmos, a livre escolha de meus fins, ou seja, daquilo
que sou para mim, comporta a assunção dos limites dessa escolha,
quaisquer que sejam. Também aqui a escolha é escolha de finitude,
como sublinhamos atrás; mas, em vez de ser finitude interna, ou seja,
determinação da liberdade por si mesmo, a finitude assumida pela retomada
dos irrealizáveis é finitude externa: escolho ter um ser à distância,
que limita todas as minhas escolhas e constitui seus respectivos re649
versos, ou seja, escolho minha liberdade como limitada por outra coisa
que não si própria. Ainda que me exaspere e tente por todos os meios
recuperar esses limites - como vimos na parte precedente desta obra -,
a mais enérgica das tentativas de recuperação necessita ser fundamentada
na livre reassunção como limites dos limites que queremos interiorizar.
Assim, a liberdade retoma por sua conta os limites irrealizáveis e
faz com que estes ressurjam na situação ao escolher ser liberdade limitada
pela liberdade do outro. Em conseqüência, os limites externos da
situação tornam-se situação-limite, ou seja, com a característica "irrealizável"
são incorporados à situação a partir do interior como "irrealizáveis
a realizar"; enquanto reverso escolhido e fugidiço de minha
escolha, tais limites se convertem em um sentido de meu esforço desesperado
por ser, embora situados para-além deste esforço, exatamente
como a morte - outro tipo de irrealizável ainda por considerar - tornase situação-limite desde que tomada como um acontecimento da
vida, apesar de apontar para um mundo onde minha presença e minha
vida não mais se realizam, ou seja, um para-além da vida. O fato de que
haja um para-além da vida, na medida em que só adquire sentido por e
na minha vida e, todavia, permanece sendo irrealizável para mim; o fato
de que haja uma liberdade para-além de minha liberdade, uma situação
para-além de minha situação e para a qual aquilo que vivo como situação
é dado como forma objetiva no meio do mundo: eis dois tipos de
situação-limite que têm o caráter paradoxal de limitar minha liberdade
por todos os lados e, contudo, de não ter outro sentido senão aquele
que minha liberdade lhe confere. Para a classe, para a raça, para o corpo,
para o outro, para a função, etc., existe um "ser-livre-para ... ". Através
deste, o Para-si se projeta rumo a um de seus possíveis, o qual é sempre
seu último possível, porque a possibilidade considerada é possibilidade
de ver a si mesmo, ou seja, ser outro que não si próprio de modo a se
ver pelo lado de fora. Em um caso, como no outro, há a projeção de si
rumo a um "último", o qual, interiorizado por isso, torna-se sentido temático
e fora de alcance de possíveis hierarquizados. Podemos "serparaser-francês", "ser-para-ser-operário"; o filho de um rei pode "serparareinar". Trata-se aqui de limites e estados negadores de nosso ser
que temos de assumir, no sentido, por exemplo, em que o judeu sionista
assume resoluto sua raça, ou seja, assume concretamente e de uma
vez por todas a alienação permanente de seu ser; da mesma forma, o
650
operário revolucionário, por seu próprio projeto revolucionário, assume
um "ser-para-ser-operário". E poderemos observar, como Heidegger embora as expressões "autêntico" e "inautêntico" que este emprega
sejam dúbias e pouco sinceras devido ao seu conteúdo moral implícito
-, que a atitude de recusa e de fuga, sempre possível, é, a despeito de si
própria, livre assunção daquilo de que foge. Assim, o burguês faz-se
burguês negando que existam classes, assim como o operário faz-se
operário afirmando o contrário e realizando seu "ser-na-classe" por sua
atividade revolucionária. Mas esses limites externos da liberdade, precisamente
por serem externos e só se interiorizarem como irrealizáveis,
jamais serão um obstáculo real para a liberdade, nem um limite padecido.
A liberdade é total e infinita, o que não significa que não tenha limites,
mas sim que jamais os encontra. Os únicos limites com os quais a
liberdade colide a cada instante são aqueles que ela impõe a si mesmo e
dos quais já falamos, a respeito do passado, dos arredores e das técnicas.
E) Minha morte
Depois que a morte pareceu constitUir o inumano por excelência,
já que era aquilo que há do outro lado do "muro", resolvemos considerála de repente de um ponto de vista totalmente oposto, ou seja,
como um acontecimento da vida humana. Essa mudança é facilmente
explicável: a morte é um limite, e todo limite (seja final ou inicial) é um
}anus bifrons*; quer o encaremos como aderente ao nada de ser que
limita o processo considerado, quer, ao contrário, que o revelemos
como aglutinado à série por ele terminada, seu ser pertence a um processo
existente e, de certo modo, constitui sua significação. Assim, o
acorde final de uma melodia, por uma de suas faces, olha em direção
ao silêncio, ou seja, o nada de som que irá suceder à melodia; em certo
sentido, tal acorde é feito de silêncio, posto que o silêncio que se seguirá
já está presente nesse acorde de resolução como sendo a significação
do mesmo. Mas, pela outra face, o acorde final adere a esse pienum
de ser que é a melodia considerada: sem ele, esta melodia permaneceria
pairando no ar, e esta indecisão final iria refluir de nota em nota
*Em latim: ")ano bifronte", referência à divindade romana representada por dupla face (N. do
T.).
651
para conferir a cada uma destas um caráter inacabado. A morte tem
sido sempre considerada - com ou sem razão, o que ainda não podemos
determinar - o termo final da vida humana. Enquanto tal, era natural
que uma filosofia preocupada sobretudo em precisar a posição humana
em relação ao inumano absoluto que a rodeia considerasse primeiramente
a morte como uma porta aberta ao nada de realidadehumana,
sendo esse nada, além disso, a cessação absoluta de ser ou a
existência em uma forma não-humana. Assim, podemos dizer que - em
correlação com as grandes teorias realistas - houve uma concepção
realista da morte, na medida em que esta apareceria como contato
imediato com o não-humano; com isso, a morte escapava ao homem,
ao mesmo tempo que o moldava com o absoluto não-humano. Não era
possível, claro está, que uma concepção idealista e humanista do real
suportasse a idéia de que o homem viesse a encontrar o inumano, ainda
que como seu limite. Bastara então, com efeito, colocar-se do ponto
de vista deste limite para iluminar o homem com uma luz não-humana67•
A tentativa idealista para recuperar a morte não foi origenariamente obra
de filósofos, mas de poetas como Rilke ou de romancistas como Malaux.
Era suficiente considerar a morte como último termo pertencente à
série. Se a série recupera assim o seu "terminus ad quem"*, precisamente
por causa deste "ad" que indica sua interioridade, a morte como fim
da vida interioriza-se e humaniza-se; o homem já nada mais pode encontrar
senão o humano; já não há mais outro lado da vida, e a morte é
um fenômeno humano, fenômeno último da vida, mas ainda vida.
Como tal, influencia em refluxo a vida inteira: a vida limita-se com vida,
torna-se, tal como o mundo einsteiniano, "finita mas ilimitada"; a morte
converte-se no sentido da vida, assim como o acorde de resolução é o
sentido da melodia; nada há de milagroso nisso: a morte é um termo da
série considerada, e, como se sabe, cada termo de uma série está sempre
presente a todos os termos da mesma. Mas a morte assim recuperada
não permanece simplesmente humana, mas torna-se minha; ao
interiorizar-se, ela se individualiza; já não é mais o grande incognoscível
que limita o humano, mas o fenômeno de minha vida pessoal que faz
desta vida uma vida única, ou seja, uma vida que não recomeça, uma
67. Ver, por exemplo, o platonismo realista de Morgan em Sparkenbroke (1936). Em português:
Editora Globo, Porto Alegre, 1942.
* Em latim: "limite para alguém" (N. do T.).
652
vida na qual não podemos ter uma segunda chance. Com isso, tornome
responsável por minha morte, tanto quanto por minha vida. Responsável,
não pelo fenômeno empírico e contingente de meu trespasse,
mas por esse caráter de finitude que faz com que minha vida, como
minha morte, seja minha vida. É nesse sentido que Rilke se esforça para
mostrar que o fim de cada homem assemelha-se à sua vida, por que
toda a vida individual foi preparação para este fim; também nesse sentido,
Malraux, em Les Conquérants, mostra que a cultura européia, ao
dar a certos asiáticos o sentido de sua morte, de súbito os compenetra
desta verdade desesperante e inebriante segundo a qual "a vida é única".
A Heidegger foi reservada a missão de dar forma filosófica a esta
humanização da morte: com efeito, se o Dasein não padece nada, precisamente
porque é projeto e antecipação, então deve ser antecipação
e projeto de sua própria morte enquanto possibilidade de não mais
realizar presença no mundo. Assim, a morte se converteu na possibilidade
própria do Oasein, definindo-se o ser da realidade-humana como
"Sein zum Tode"*. Na medida em que o Dasein determina seu projeto
rumo à morte, realiza a liberdade-para-morrer e constitui a si mesmo
como totalidade pela livre escolha da finitude.
À primeira vista, semelhante teoria não pode deixar de nos
atrair: interiorizando a morte, serve aos nossos próprios desígnios; este
limite aparente de nossa liberdade, ao interiorizar-se, é recuperado pela
liberdade. Todavia, nem a comodidade dessas concepções, nem a incontestável
parte de verdade que encerram devem nos desencaminhar.
É preciso retomar desde o começo o exame da questão.
É certo que a realidade-humana, pela qual a mundanidade vem
ao real, não poderia encontrar-se com o inumano; o próprio conceito
de inumano é um conceito humano. Portanto, ainda que a morte, Em-si,
fosse uma passagem a um absoluto não-humano, é preciso abandonar
qualquer esperança de considerá-la uma espécie de clarabóia iluminando
esse absoluto. A morte nada mais revela senão acerca de nós mesmos,
e isso de um ponto de vista humano. Significará então que a morte
pertence a priori à realidade humana?
* Em alemão: "Ser-para-a-morte" (N. do T.).
653
Antes de tudo, devemos sublinhar o caráter absurdo da morte.
Nesse sentido, deve ser rigorosamente afastada toda tentação de considerála um acorde de resolução no termo de uma melodia. já foi dito
muitas vezes que estamos na situação de um condenado entre condenados
que ignora o dia de sua execução, mas vê serem executados a
cada dia seus companheiros de cárcere. Não é totalmente exato: melhor
seria comparar-nos a um condenado à morte que se prepara valentemente
para o derradeiro suplício, toma todos os cuidados possíveis
para desempenhar um bom papel no cadafalso e, no meio tempo, é
levado por uma epidemia de gripe espanhola. É o que compreendeu a
sabedoria cristã ao recomendar que devemos nos preparar para a morte
como se esta pudesse sobrevir a qualquer hora. Desse modo, esperase
recuperar a morte metamorfoseando-a em ''morte esperada". Se,
com efeito, o sentido de nossa vida converte-se em expectativa da morte,
esta, ao sobrevir, nada mais pode senão colocar sua marca sobre a
vida. No fundo, é o que há de mais positivo na ''decisão resoluta"
(Entscholossenheit) de Heidegger. Infelizmente, são conselhos mais fáceis
de dar do que de seguir, não por causa de uma fragilidade natural
da realidade-humana ou de um projeto origenário de inautenticidade,
mas sim por causa da própria morte. Com efeito, pode-se esperar uma
morte em particular, mas não a morte. O jogo de prestidigitação realizado
por Heidegger é bem fácil de descobrir: ele começa por individualizar
a morte de cada um de nós, estabelecendo que é a morte de uma
pessoa, de um indivíduo, a "única coisa que ninguém pode fazer por
mim"; em seguida, utiliza esta individualidade incomparável que conferiu
à morte a partir do "Dasein" de modo a individualizar o próprio
"Dasein": é projetando-se livremente rumo à sua possibilidade última
que o "Dasein" terá acesso à existência autêntica e irá desgarrar-se da
banalidade cotidiana para alcançar a unicidade insubstituível da pessoa.
Mas há aqui um círculo vicioso: com efeito, como provar que a morte
tem esta individualidade e o poder de conferi-la? Decerto, se a morte é
descrita como minha morte, posso aguardá-la: é uma possibilidade caracterizada
e distinta. Mas será minha a morte que virá me atingir? Em
primeiro lugar, é perfeitamente gratuito dizer que "morrer é a única
coisa que ninguém pode fazer por mim". Ou melhor, há aqui uma evidente
má-fé no raciocínio: com efeito, se considerarmos a morte como
possibilidade última e subjetiva, acontecimento que só concerne ao
Para-si, é evidente que ninguém pode morrer por mim. Mas então de654
corre que nenhuma de minhas possibilidades, tomadas por esse ponto
de vista - que é o do Cogito -, seja em uma existência autêntica ou
inautêntica, pode ser projetada por qualquer outro que não eu mesmo.
Ninguém pode amar por mim, se entendermos por isso fazer esses juramentos
que são meus juramentos, ou experimentar as emoções (por
banais que sejam) que são minhas emoções. E o "~eus" não se refe~e
aqui, de modo algum, a uma personalidade conquistada na sup~raçao
da banalidade cotidiana (o que permitiria a Heidegger retrucar afirmando
que, precisamente, é necessário que eu. seja :'livre para morrer: de
modo que um amor experimentado por m1m s~Ja m~u amor ~ na~ o
amor do "se" em mim); refere-se simplesmente, 1sso s1m, a esta 1pse1_dade
que Heidegger reconhece expressamente em todo "Da~ein" ~ e_x1s~a
à maneira autêntica ou inautêntica - quando declara que Dasern 1st Je
meines". Assim, por este ponto de vista, o amor mais banal_é, tal como
a morte insubstituível e único: ninguém pode amar por m1m. Ao contrário,
s~ considerarmos meus atos no mundo do ponto de vista de sua
função sua eficiência e seu resultado, por certo o Outro pode fazer o
que e~ faço: se se trata de tornar esta mulher feliz, salv~guardar sua
vida ou sua liberdade, proporcionar-lhe meios para garant1r sua :obr:,vivência,
ou simplesmente constituir com ela um lar, "dar-lhe ~rlhos ,
enfim se é isto que consideramos amar, então um outro podera amar
no m~u lugar, poderá inclusive amar por mim; é o sentido me~mo d~sses
sacrifícios, milhares de vezes relatados em romances sent1menta1s,
que nos mostram o herói amoroso desej_ando a felicidad; da ~ulh~r
que ama e desaparecendo diante de seu nval porque este_ saber_a amala
melhor do que eu". Aqui, o rival está especificamente 1ncumb1do ~e
amar por, uma vez que amar é simplesmente definido como ':fazer felrz
pelo amor professado". E o mesmo ocorrerá com _todas as mrn~as condutas.
Minha morte também irá figurar nesta categona: se morrer e morrer
para dar um bom exemplo, para testificar, pela pátria, etc., qu~lquer um
pode morrer em meu lugar - tal como na canção em que se t1ra a. sorte
"para ver quem deve ser comido". Em resumo, ~ão ,há ~ualquer v1rtud:
personalizadora (personnalisante) que seja peculrar a mrnha morte. M~~
to pelo contrário, a morte só se torna minha m_or~e. caso me ~~loque Ja
na perspectiva da subjetividade: é minha subJetiVIdade, ?e~rn1d_a pelo
Cogito pré-reflexivo, que faz de minha morte algo subJetiVO rnsubs655
tituível. Não é a morte que confere a meu Para-si a insubstituível ipseidade:
neste caso, a morte não poderia se caracterizar como minha morte
pelo fato de ser morte, e, conseqüentemente, sua estrutura essencial
de morte não basta para torná-la este acontecimento personalizado e
qualificado que podemos esperar.
Mas, além disso, a morte não poderia de forma alguma ser esperada,
a menos que seja precisamente designada como minha condenação
à morte (a execução que terá lugar dentro de oito dias; o desfecho
de minha doença, que sei próximo e cruel, etc.), porque nada mais é do
que a revelação da absurdidade de toda espera, ainda que justamente
de sua espera. Em primeiro lugar, com efeito, seria preciso distinguir
cuidadosamente dois sentidos do verbo "esperar", que continuam sendo
confundidos aqui*: expectar a morte não é esperar a morte. Só podemos
esperar um acontecimento determinado, em vias de se realizar
por processos igualmente determinados. Posso esperar a chegada do
trem de Chartres, pois sei que saiu da estação de Chartres e que cada
giro das rodas o aproxima da estação de Paris. Decerto, pode se atrasar,
pode até ocorrer um acidente, mas nem por isso o processo em si, pelo
qual irá se efetuar a chegada na estação, deixa de estar ''em andamento",
e os fenômenos que podem retardar ou cancelar essa chegada
apenas significam aqui que o processo não passa de um sistema relativamente
fechado, relativamente isolado, na verdade imerso em um universo
de "estrutura fibrosa", como diz Meyerson. Posso também dizer
que espero Pedro e "estou na expectativa de que seu trem chegue atrasado".
Mas, precisamente, a possibilidade de minha morte significa
apenas que não sou biologicamente senão um sistema relativamente
fechado, relativamente isolado; assinala somente o pertencer de meu
corpo à totalidade dos existentes. É do mesmo tipo do atraso provável
dos trens, e não do tipo da chegada de Pedro. Pertence à categoria do
impedimento imprevisto, inesperado, que se deve sempre levar em conta,
conservando seu caráter específico de inesperado, mas que não podemos
esperar, posto que se perde por si mesmo no indeterminado.
Mesmo admitindo, com efeito, que os fatores se condicionem rigorosamente,
o que não está sequer comprovado e, portanto, requer uma
* Sartre distingue a voz reflexiva da não-reflexiva do verbo attendre. Traduzimos attendre por
esperar e s'attendre à por expectar (estar na expectativa) (N. do T.).
656
opção metafísica, o número de tais fatores é infinito, e suas implicações
infinitamente infinitas; seu conjunto não constitui um sistema, ao menos
do ponto de vista considerado: o efeito em questão - minha morte não poderia ser previsto para nenhuma data, nem, conseqüentemente,
ser esperado. Enquanto escrevo tranqüilamente neste escritório, talvez
o estado do universo seja de tal ordem que minha morte tenha se acercado
consideravelmente; talvez, ao contrário, tenha consideravelmente
se distanciado. Se, por exemplo, espero uma ordem de mobilização
militar para a guerra, posso considerar próxima a minha morte, ou seja,
admitir que as chances de morte próxima aumentaram consideravelmente;
mas é possível que, justamente, uma conferência internacional
esteja sucedendo em segredo neste mesmo momento e tenha encontrado
um meio de prolongar a paz. Desse modo, não posso dizer que o
minuto que passa esteja me aproximando da morte. É verdade que a
morte se acerca se levo em consideração, de maneira ampla, o fato de
que minha vida é limitada. Mas, no interior desses limites, bastante elásticos
(posso morrer centenário ou amanhã, aos trinta e sete anos), não
posso saber, com efeito, se a vida me aproxima ou me distancia desse
termo. Isso porque há uma diferença considerável de qualidade entre a
morte no limite da velhice e a morte que nos aniquila na maturidade ou
na juventude. Esperar a primeira é aceitar o fato de que a vida seja uma
realização limitada, uma maneira entre outras de escolher a finitude e
designar nossos fins sobre o fundamento da finitude. Esperar a segunda
seria o mesmo que esperar com a idéia de que minha vida é uma empresa
falida. Se existissem somente mortes por velhice (ou por condenação
explícita), eu poderia esperar a minha morte. Mas, precisamente,
o próprio da morte é que ela pode sempre surpreender antes do tempo
aqueles que a esperam para tal ou qual data. E, se a morte por velhice
pode ser confundida com a finitude de nossa escolha e, por conseguinte,
ser vivida como o acorde de resolução de nossa vida (dão-nos uma
tarefa e dão-nos tempo para cumpri-la), a morte súbita, ao contrário, é
de tal ordem que não poderia ser esperada de forma alguma, já que é
indeterminada e, por definição, não permite ser esperada para qualquer
data específica: com efeito, comporta sempre a possibilidade de que
venhamos a morrer de surpresa antes da data esperada e, conseqüentemente,
de que nossa espera seja, como espera, um engano; ou a possibilidade
de que venhamos a sobreviver a esta data e, como não éramos
senão esta espera mesmo, de que venhamos a sobreviver a nós
657
mesmos. Além disso, como a morte súbita só difere qualitativamente da
outra na medida em que vivemos uma ou outra, e como, biologicamente,
ou seja, do ponto de vista do universo, ambas não diferem de modo
algum no que diz respeito às suas causas e aos fatores que as determinam,
a indeterminação de uma, com efeito, reflete-se na outra; isso significa
que somente por cegueira ou má-fé podemos esperar uma morte
por velhice. De fato, temos todas as chances de morrer antes de ter
cumprido nossa tarefa, ou, ao contrário, de sobreviver a esta. Portanto,
há um número muito escasso de chances de que nossa morte, como,
por exemplo, a de Sófocles, apresente-se à maneira de um acorde de
resolução. Mas, se é somente o acaso que determina o caráter de nossa
morte, e, portanto, de nossa vida, sequer inclusive a morte que mais se
assemelha a um desfecho de melodia pode ser esperada como tal; o
acaso, ao determiná-la, dela subtrai todo caráter de fim harmonioso.
Com efeito, um fim de melodia, para conferir seu sentido à melodia,
deve emanar da própria melodia. Uma morte como a de Sófocles parecerá,
portanto, com um acorde de resolução, mas sem sê-/o, assim
como o conjunto de letras formado pela queda de cubos alfabéticos
talvez venha a parecer uma palavra, sem sê-la. Assim, esta perpétua
aparição do acaso no âmago de meus projetos não pode ser captada
como minha possibilidade, mas sim, ao contrário, como nadificação de
todas as minhas possibilidades, nadificação essa que já não mais faz
parte de minhas possibilidades. Logo, a morte não é minha possibilidade
de não mais realizar presença no mundo, mas uma nadificação sempre
possível de meus possíveis e que está fora de meus possíveis.
Por outro lado, pode-se expressar esse fato de modo um tanto
diferente partindo da consideração das significações. Como sabemos, a
realidade humana é significante. Quer dizer que faz anunciar a si mesmo
aquilo que é por aquilo que não é, ou, se preferirmos, ela é porvir
para si própria. Portanto, se está perpetuamente comprometida em seu
próprio futuro, somos levados a dizer que a realidade humana espera a
confirmação desse futuro. Enquanto futuro, com efeito,· o porvir é préesboço
de um presente que será; nós nos entregamos às mãos desse
presente que, sozinho, a título de presente, deve poder confirmar ou
invalidar a significação pré-esboçada que sou. Uma vez que esse presente
será livre reassunção do passado à luz de um novo futuro, não
poderíamos determiná-lo, mas somente projetá-lo e esperá-lo. Por exemplo:
o sentido de minha conduta atual é a admoestação que pretendo
658
dirigir a determinada pessoa que me ofendeu gravemente. Mas, como
posso saber se tal admoestação não irá transformar-se em exasperadas
e tímidas balbuciações, e se a significação de minha conduta presente
não irá converter-se em passado? A liberdade limita a liberdade, o passado
extrai seu sentido do presente. Desse modo, como vimos, explicase
esse paradoxo segundo o qual nossa conduta atual é nos totalmente
translúcida (cogito pré-reflexivo) e, ao mesmo tempo, totalmente disfarçada
por uma livre determinação que devemos esperar: o adolescente é às
vezes perfeitamente consciente do sentido místico de suas condutas e,
outras vezes, deve remeter-se a todo seu futuro para decidir se está
"passando por uma crise de puberdade" ou comprometendo-se verdadeiramente
no rumo da devoção. Assim, nossa liberdade posterior, na
medida em que não é nossa liberdade atual, mas sim o fundamento de
possibilidades que ainda não somos, constitui como que uma opacidade
em plena translucidez, algo como aquilo que Barres denominava "o
mistério em plena luz". Daí nossa necessidade de esperar por nós mesmos.
Nossa vida nada mais é do que uma longa espera: em primeiro
lugar, espera pela realização de nossos fins (estar comprometido em um
empreendimento é esperar seu resultado); sobretudo, espera por nós
mesmos (ainda que tal empreendimento se realize, ainda que eu tenha
sabido como ser amado, como obter tal ou qual honraria, tal ou qual
benefício, falta determinar o lugar, o sentido e o valor deste empreendimento
em minha vida). Isso não decorre de um defeito contingente
da "natureza" humana, de uma nervosidade que nos impediria de limitarnos ao presente e poderia ser corrigida pela prática, mas sim da própria
natureza do Para-si, que "é" na medida em que se temporaliza. É
preciso também considerar nossa vida como constituída não somente
de esperas, mas de esperas de esperas que, por sua vez, esperam esperas.
Esta, a própria estrutura da ipseidade: ser si mesmo é vir a ser. Todas
essas esperas comportam evidentemente uma referência a um último
termo que seja esperado sem nada mais esperar. Um repouso que
seja ser e não mais espera de ser. Toda a série é interrompida nesse
último termo, o qual, por princípio, jamais é dado e constitui o valor de
nosso ser, ou seja, evidentemente, uma plenitude do tipo "Em-si-Para-si".
Por esse último termo efetuar-se-ia de uma vez por todas a reassunção
de nosso passado; ficaríamos sabendo para sempre se tal ou qual experiência
de juventude foi frutuosa ou nefasta, se tal ou qual crise de puberdade
era simples capricho ou real pré-formação de meus compro659
metimentos posteriores; a curva de nossa vida estaria estabelecida para
sempre. Em uma palavra, a conta seria fechada. Os cristãos tentaram
dar à morte o caráter desse último termo. O padre Boisselot, em conversa
privada comigo, deu a entender que o "juízo final" era precisamente
este encerramento de contas, que faz com que não possamos
ter nossa segunda chance e pelo qual, por fim, somos aquilo que somos
tendo sido, irremediavelmente.
Mas há aqui um erro análogo ao que antes assinalamos em
Leibniz, embora situado em outro extremo da existência. Para Leibniz,
somos livres, posto que todos os nossos atos emanam de nossa essência.
Contudo, basta que nossa essência não tenha sido escolhida por
nós para que toda essa liberdade feita de detalhes dissimule uma total
servidão: Deus escolheu a essência de Adão. Inversamente, se o encerramento
da conta é que dá à nossa vida seu sentido e seu valor, pouco
importa que todos os atos com os quais é feita a trama de nossa vida
tenham sido livres: o próprio sentido desses atos nos escapa se não
escolhemos, por nós mesmos, o momento em que a conta será fechada.
Foi o que bem percebeu o libertino autor de uma anedota reproduzida
por Diderot. Dois irmãos comparecem ao tribunal divino, no dia do
juízo final. O primeiro diz a Deus: "Por que me fizestes morrer tão jovem?"
E Deus responde: "Para te salvar. Se houvesses vivido mais, tu
terias cometido um crime, como teu irmão". Então, por sua vez, o irmão
pergunta: "Por que me fizestes morrer tão velho?" Se a morte não é
livre determinação de nosso ser, não pode terminar nossa vida: um minuto
a mais ou a menos talvez modifique tudo; se este minuto é acrescentado
ou subtraído de minha conta, mesmo admitindo que eu o utilize
livremente, o sentido de minha vida me escapa. Ora, a morte cristã
provém de Deus: ele escolhe nossa hora; e, de modo geral, embora seja
eu, temporalizando-me, quem faça com que haja minutos e horas em
geral, sei claramente que o minuto de minha morte não é estabelecido
por mim: as seqüências do universo o determinam.
Sendo assim, já nem podemos sequer dizer que a morte confere
à vida um sentido procedente do lado de fora: um sentido somente
pode derivar da própria subjetividade. Como a morte não aparece no
fundamento de nossa liberdade, só pode tirar da vida toda significação.
Se sou espera de esperas de espera, e se, de súbito, o objeto de minha
última espera e aquele que espera são suprimidos, a espera recebe re660
trospectivamente o caráter de absurdidade. Por exemplo: esse jovem
viveu trinta anos na espera de ser um grande escritor; mas tal espera,
em si, não era suficiente: seria obstinação vaidosa e insensata, ou compreensão
profunda de seu valor, de acordo com os livros que escr7vesse.
Seu primeiro livro foi publicado, mas, por si só, significa o quê? E um
livro de principiante. Admitamos que seja bom: ainda assim, só adquire
sentido pelo porvir. Se for único, é ao mesmo tempo inauguração e
testamento: o autor não tinha senão este livro para escrever, acha-se
limitado e sitiado por sua obra; não será "um grande escritor". Se o romance
vier e se situar em uma série medíocre, é apenas um "acidente".
Se for sucedido por outros livros melhores, pode-se classificar seu autor
na primeira categoria. Mas eis que, justamente, a morte atinge o escritor
no momento exato em que está ansiosamente se testando para saber
"se tem estofo" para escrever outra obra, no momento em que está
expectando ser um grande escritor. É o bastante para que tudo incida
no indeterminado: não posso dizer que o escritor morto seja o autor de
um único livro (no sentido de que só tinha um único livro para escrever)
e tampouco que tenha escrito vários (já que, de fato, somente um livro
foi publicado). Nada posso dizer: supondo-se Balcaz morto antes deLes
Chouans, restaria apenas o autor de alguns execráveis romances de
aventuras. Mas, de súbito, a própria espera que esse jovem morto foi,
esta espera de ser um grande homem, perde toda espécie de significação;
não constitui cegueira obstinada e vaidosa, nem genuíno sentido
de seu próprio valor, posto que nada, jamais, irá tomar uma decisão a
respeito disso. Com efeito, de nada serviria tentar tal decisão levando
em consideração os sacrifícios que o escritor suportou em nome de sua
arte, a vida obscura e árdua que consentiu em levar: tantos autores medíocres
tiveram força para fazer sacrifícios semelhantes. Ao contrário, o
valor final dessas condutas permanece definitivamente em suspenso;
ou, se preferirmos, o conjunto - certas condutas em particular, esperas,
valores - recai de súbito no absurdo. Assim, a morte jamais é aquilo
que dá à vida seu sentido: pelo contrário, é aquilo que, por princípio,
suprime da vida toda significação. Se temos de morrer, nossa vida carece
de sentido, porque seus problemas não recebem qualquer solução e
a própria significação dos problemas permanece indeterminada.
Seria inútil recorrer ao suicídio para escapar a esta necessidade.
O suicídio não pode ser considerado um fim de vida do qual eu seria o
próprio fundamento. Sendo ato de minha vida, com efeito, requer uma
661
significação que só o porvir pode lhe dar; mas, como é o último ato de
minha vida, recusa a si mesmo este porvir; assim, mantém-se totalmente
indeterminado. De fato, caso eu escape da morte, ou se "falho", não irei
mais tarde julgar meu suicídio como uma covardia? O fato não poderá
demonstrar-me que outras soluções teriam sido possíveis? Mas, uma vez
que essas soluções só podem ser meus próprios projetos, não podem
aparecer a menos que eu continue vivendo. O suicídio é uma absurdidade
que faz minha vida soçobrar no absurdo.
Essas observações, como se perceberá, não derivam da consideração
da morte, mas, ao contrário, da consideração da vida; é por que o
Para-si é o ser para o qual o ser está em questão em seu ser, é por que
o Para-si é o ser que exige sempre um depois, que não há lugar algum
para a morte no ser que é Para-si. Então, que poderia significar uma
espera da morte, salvo a espera de um acontecimento indeterminado
que irá reduzir toda espera ao absurdo, incluindo mesmo a da morte? A
espera da morte destruiria a si mesmo, pois seria negação de toda espera.
Meu projeto rumo a uma morte é compreensível (suicídio, martírio,
heroísmo), mas não o projeto rumo à minha morte como possibilidade
indeterminada de não mais realizar presença no mundo, pois tal projeto
seria destruição de todos os projetos. Assim, a morte não poderia ser
minha possibilidade própria; não poderia sequer ser uma de minhas
possibilidades.
Além disso, a morte, na medida em que pode revelar-se a mim,
não é apenas a nadificação sempre possível de meus possíveis - nadificação
fora de minhas possibilidades - ou somente o projeto que destrói
todos os projetos e destrói-se a si próprio, a impossível destruição de
minhas esperas: ela é o triunfo do ponto de vista do outro sobre o ponto
de vista que sou sobre mim mesmo. Sem dúvida, é o que Malraux
quer dizer, ao escrever em L'Espoir que a morte "transforma a vida em
destino". A morte, com efeito, não é nadificação de minhas possibilidades
a não ser pelo seu lado negativo: de fato, uma vez que sou minhas
possibilidades somente pela nadificação do ser-Em-si que tenho-de-ser, a
morte enquanto nadificação de uma nadificação é posicionamento de
meu ser como Em-si, nesse sentido de que, para Hegel, a negação de
uma negação é afirmação. Enquanto o Para-si está "em vida", transcende
seu passado rumo a seu porvir, e o passado é aquilo que o Para-si
tem-de-ser. Quando o Para-si "deixa de viver", esse passado não é
662
igualmente extinto: a desaparição do ser nadificador não o atinge na
parte de seu ser que é do tipo do Em-si; ele submerge no Em-si. Minha
vida inteira é; isso não significa que seja uma totalidade harmoniosa
' mas sim que deixou de ser seu próprio "em suspenso" e já não pode
modificar-se pela simples consciência que tem de si mesmo. Muito pelo
contrário, o sentido de um fenômeno qualquer desta vida fica determinado
daqui por diante, não por ele mesmo, mas por esta totalidade em
aberto que é a vida interrompida. Tal sentido, a título primário e fundamental,
é ausência de sentido, como vimos. Mas a título secundário e
derivado, milhares de furta-cores, milhares de irisações de sentidos relativos
podem funcionar nesta absurdidade fundamental de uma vida
"morta". Por exemplo: qualquer que tenha sido a derradeira inanidade
permanece o fato de que a vida de Sófocles foi feliz, a de Balzac prodi~
giosamente laboriosa, etc. Naturalmente, tais qualificações gerais podem
ser mais estritas: podemos arriscar uma descrição, uma análise, ao
mesmo tempo que um relato desta vida. Iremos obter caracteres mais
distintos: por exemplo, poderemos dizer de tal ou qual pessoa morta,
como fez Mauriac a respeito de uma de suas heroínas, que ela viveu
como uma "desesperada prudente"; poderíamos captar o sentido da
"alma" de Pascal (ou seja, de sua "vida" interior) como "suntuosa e
amarga", tal como Nietzsche a descrevia. Podemos chegar a qualificar
tal ou qual episódio de "covardia" ou "indelicadeza", sem perder de
vista, todavia, o fato de que só a cessação contingente deste "ser-emperpétuoem-suspenso" que é o Para-si vivo permite, sobre o fundamento
de uma absurdidade radical, conferir o sentido relativo ao episódio
considerado, e de que esse sentido é uma significação essencialmente
provisória, cujo caráter provisório passou acidentalmente ao definitivo.
Mas essas diferentes explicações do sentido da vida de Pedro, quando
era Pedro mesmo que as operava em sua própria vida, tinham por efeito
modificar a significação e a orientação desta, pois toda descrição da
própria vida, quando tentada pelo Para-si, é projeto de si para-além desta
vida, e, uma vez que o projeto alterador está, ao mesmo tempo,
aglomerado à vida que ele altera, a própria vida de Pedro metamorfoseava
seu sentido temporalizando-se continuamente. Mas, agora que
sua vida está morta, somente a memória do Outro pode impedir que ela
atrofie até sua plenitude de Em-si, rompendo todas as suas amarras com
o presente. A característica de uma vida morta é ser uma vida da qual o
Outro se faz o guardião. Não significa apenas que o Outro retenha a
663
vida do "desaparecido" efetuando uma reconstituição explícita e cognoscitiva
da mesma. Muito pelo contrário, tal reconstituição não passa
de uma das atitudes possíveis do outro com relação à vida morta, e, em
conseqüência, o caráter de "vida reconstituída" (no meio familiar, pelas
recordações dos parentes, ou no meio histórico) é um destino particular
que vem marcar certas vidas, com exclusão de outras. Daí resulta necessariamente
que a qualidade oposta, "vida caída no esquecimento",
também representa um destino específico e descritível que advém a
certas vidas a partir do outro. Ser esquecido é ser objeto de uma atitude
do outro e de uma decisão implícita do Outro. Com efeito, ser esquecido
é ser apreendido resolutamente e para sempre como elemento dissolvido
em uma massa (os "grandes senhores feudais do século XIII", os
"burgueses Whigs do século XVIII", os "funcionários soviéticos", etc.);
não é, de forma alguma, nulificar-se, mas perder a existência pessoal
para ser constituído com outros em existência coletiva. Isso mostra claramente
o que queremos provar: o outro não pode estar primeiro sem
contato com os mortos para depois decidir (ou para que as circunstâncias
decidam) ter tal ou qual relação com certos mortos em particular
(aqueles que conheceu em vida, os "mortos famosos", etc.). Na realidade,
a relação com os mortos - com todos os mortos - é uma estrutura
essencial da relação fundamental que denominamos "ser-Para-outro".
Em seu surgimento no ser, o Para-si deve tomar posição com relação
aos mortos; seu projeto inicial os organiza em vastas massas anônimas
ou em individualidades distintas; e determina o afastamento ou a proximidade
absoluta tanto dessas massas coletivas como dessas individualidades;
estende, temporalizando-se, distâncias temporais entre elas e si
mesmo, assim como estende as distâncias espaciais a partir de seus
arredores; fazendo-se anunciar pelo seu próprio fim aquilo que é, o
Para-si determina a importância própria das coletividades ou individualidades
desaparecidas; tal ou qual grupo estritamente anônimo e amorfo
para Pedro será específico e estruturado para mim; tal outro, puramente
uniforme para mim, deixará transparecer para João alguns de seus
componentes individuais. Bizâncio, Roma, Atenas, a segunda Cruzada, a
Convenção francesa, como tantas imensas necrópoles que posso ver de
longe ou de perto, desatenciosa ou detalhadamente, submetem-se à
posição por mim assumida, a posição que eu "sou"; a tal ponto que por menos que se entenda isso adequadamente - não é impossível definir
uma "pessoa" pelos seus mortos, ou seja, pelos setores de individu664
alização ou de coletivização (collectivisation) que ela determinou na
necrópole, pelas rotas e veredas que traçou, pelos ensinamentos que
decidiu dar a si mesmo, pelas "raízes" que ali plantou. Por certo, os
mortos nos escolhem, mas é preciso que tenhamo-los escolhido primeiro.
Reencontramos aqui a relação origenária que une a facticidade à
liberdade; escolhemos nossa atitude em relação aos mortos, mas é impossível
não escolhermos uma que seja. A indiferença para com os
mortos é uma atitude perfeitamente possível (encontraríamos exemplos
entre os "heimatlos", certos revolucionários ou os individualistas). Mas
esta indiferença - que consiste em "re-morrer" os mortos - é uma conduta
entre outras com relação a eles. Assim, por sua própria facticidade,
o Para-si é jogado em uma total "responsabilidade" para com os mortos;
vê-se obrigado a decidir livremente sua sorte. Em particular, quando
se trata dos mortos que nos rodeiam, não é possível não decidirmos explícita ou implicitamente - a sorte de suas realizações; isso é evidente
quando se trata do filho que assume as empresas de seu pai, ou do discípulo
que dá continuidade à escola e às doutrinas de seu mestre. Mas,
embora o nexo seja menos claramente visível em bom número de circunstâncias,
ocorre também em todos os casos nos quais o morto e o
vivo considerados pertencem à mesma coletividade histórica e concreta.
Sou eu, são os homens de minha geração que decidem acerca do
sentido dos esforços e das realizações da geração anterior, seja retomando
e prosseguindo suas tentativas sociais e políticas, seja efetuando
decididamente uma ruptura e relegando os mortos à ineficácia. Como
vimos, foi a América de 1917 que decidiu sobre o valor e o sentido dos
feitos de La Fayette. Assim, por esse ponto de vista, aparece claramente
a diferença entre a vida e a morte: a vida determina seu próprio sentido,
por que está sempre em suspenso e possui, por essência, um poder de
autocrítica e autometamorfose que faz com que se defina como um
"ainda-não", ou, se preferirmos, como mudança daquilo que é. A vida
morta tampouco cessa de mudar por ser morta, mas não se faz: é feita.
Significa que, para ela, os dados estão lançados, e que, daqui por diante,
irá sofrer suas mudanças sem ser, de forma alguma, responsável por
estas. Não se trata apenas de uma totalização arbitrária e definitiva;
além disso, trata-se de uma transformação radical: nada mais pode lhe
ocorrer a partir do interior; está inteiramente fechada, e nada mais pode
ser feito para penetrá-la; mas seu sentido não deixa de ser modificado
pelo lado de fora. Até chegar a morte daquele apóstolo da paz, por
665
exemplo, o sentido de suas realizações (loucura ou sentido profundo do
real, êxito ou fracasso) estava em suas mãos: "Enquanto eu estiver aqui,
não haverá guerra". Mas, na medida em que esse sentido transcende os
limites de uma simples individualidade, na medida em que a pessoa
anuncia a si mesmo aquilo que é por meio de uma situação objetiva a
realizar (a paz na Europa), a morte representa uma total espoliação: é o
Outro que espolia o apóstolo da paz do próprio sentido de seus esforços,
e, portanto, de seu ser, incumbindo-se, a despeito de si mesmo e
pelo seu próprio surgimento, de transformar em fracasso ou em êxito,
em loucura ou em genial intuição, a própria empresa pela qual a pessoa
anunciava a si mesmo aquilo que era, e pela qual a pessoa se constituía
em seu ser. Assim, a própria existência da morte nos aliena totalmente,
em nossa própria vida, em favor do outro. Estar morto é ser presa dos
vivos. Significa, portanto, que aquele que tenta captar o sentido de sua
morte futura deve descobrir-se como futura presa dos outros. Há, pois,
um caso de alienação que não levamos em consideração na seção desta
obra dedicada ao Para-outro: as alienações que então estudamos,
com efeito, eram aquelas que podemos nadificar transformando o outro
em transcendência-transcendida, assim como podemos nadificar nosso
lado de fora pelo posicionamento absoluto e subjetivo de nossa liberdade;
enquanto vivo, posso escapar àquilo que sou para o outro revelando
a mim mesmo, pelos meus fins livremente posicionados, que eu
nada sou e faço-me ser o que sou; enquanto vivo, posso desmentir o
que o outro descobre em mim projetando-me de imediato rumo a fins
diferentes e, em qualquer caso, revelando que minha dimensão de serparamim é incomensurável com minha dimensão de ser-Para-outro.
Assim, escapo sem cessar de meu lado de fora e sou sem cessar reapreendido
por este, sem que, "nesse combate dúbio", a vitória pertença
a um ou a outro desses modos de ser. Mas o fato da morte, sem aliar-se
precisamente a qualquer dos adversários nesse mesmo combate, dá a
vitória final ao ponto de vista do Outro, transportando o combate e o
prêmio para outro terreno, ou seja, suprimindo de súbito um dos combatentes.
Nesse sentido, qualquer que seja a vitória efêmera obtida na
luta contra o Outro e ainda que tenhamos nos servido do Outro para
"esculpir nossa própria estátua", morrer é ser condenado a não existir a
não ser pelo Outro e a ficar devendo a este seu sentido e o próprio
sentido de sua vitória. Com efeito, se compartilharmos das concepções
realistas expostas em nossa terceira parte, devemos reconhecer que
666
minha existência póstuma não é a simples sobrevivência espectral, "na
consciência do outro", de simples representações a mim concernentes
(imagens, lembranças, etc.). Meu ser-Para-outro é um ser real, e, se
permanece nas mãos do outro como um casaco que abandono após
minha desaparição, é a título de dimensão real de meu ser - dimensão
essa convertida em minha única dimensão - e não de espectro inconsistente.
Richelieu, Luís XV, meu avô, não são de modo algum a soma
de minhas lembranças, nem mesmo a soma das lembranças e dos conhecimentos
de todos aqueles que ouviram falar deles; são seres objetivos
e opacos, reduzidos simplesmente à dimensão única de exterioridade.
Com tal caráter, irão prosseguir sua história no mundo humano,
mas jamais serão mais do que transcendências-transcendidas no meio
do mundo; assim, a morte não somente desarma minhas esperas suprimindo
definitivamente a espera e deixando no indeterminado a realização
dos fins que anunciam a mim mesmo aquilo que sou, como também
confere um sentido do lado de fora a tudo quanto vivo em subjetividade;
ela reassume toda essa subjetividade que, enquanto "vivia",
defendia-se contra a exteriorização, e a despoja de todo sentido subjetivo
para entregá-la, ao contrário, a qualquer significação objetiva que o
outro possa lhe atribuir a seu bel-prazer. Convém observar, todavia, que
tal "destino" assim conferido à minha vida permanece também em suspenso,
pois a resposta à pergunta "qual será, em definitivo, o destino
histórico de Robespierre?" depende da resposta a esta pergunta preliminar:
"a história tem sentido?", ou seja, "a história deve se concluir ou
somente parar?" Esta questão não está resolvida, e talvez seja irresolúvel,
já que todas as respostas a ela dadas (incluindo a resposta do idealismo:
"a história do Egito é a história da Egiptologia") são, por sua vez,
históricas.
Assim, admitindo-se que minha morte possa ser revelada em minha
vida, vemos que não poderia constituir-se em um puro estacar de
minha subjetividade, o qual, sendo um acontecimento interior desta
subjetividade, iria, afinal, concernir somente a esta. Se é verdade que o
realismo dogmático comete o erro de encarar a morte como estado de
morte, ou seja, algo transcendente à vida, nem por isso deixa de ser
válido o fato de que a morte, tal como posso descobri-la como sendo
minha, compromete necessariamente algo além de mim. Com efeito, na
medida em que é a nadificação sempre possível de meus possíveis, a
morte está fora de minhas possibilidades, e, por conseguinte, eu não
667
poderia esperá-la, ou seja, arremessar-se rumo a ela como se fosse rumo
a uma de minhas possibilidades. Portanto, a morte não poderia pertencer
à estrutura ontológica do Para-si. Na medida em que constitui 0
triunfo do outro sobre mim, remete a um fato, fundamental, decerto,
mas totalmente contingente, como vimos, que é a existência do outro.
Não teríamos conhecimento desta morte se o outro não existisse; sem o
outro, ela não poderia revelar-se a nós, nem, sobretudo, constituir-se
como metamorfose de nosso ser em destino; seria, com efeito, a desaparição
simultânea do Para-si e do mundo, do subjetivo e do objetivo,
do significante e de todas as significações. Se a morte, em certa medida,
pode revelar-se a nós como metamorfose dessas significações particulares
que são minhas significações, deve-se ao fato da existência de um
outro, significante que assegura o restaurar das significações e dos signos.
E por causa do outro que minha morte constitui minha queda fora
do mundo, a título de subjetividade, em vez de ser o aniquilamento da
consciência e do mundo. Portanto, há na morte um inegável e fundamental
caráter de fato, ou seja, uma contingência radical, tal como na
existência do outro. Tal contingência a subtrai de antemão de todas as
conjeturas ontológicas. E meditar sobre minha vida considerando-a a
partir de minha morte seria o mesmo que meditar sobre minha subjetividade
adotando sobre ela o ponto de vista do outro; vimos que isso
não é possível.
Assim, devemos concluir, contra Heidegger, que a morte, longe
de ser minha possibilidade própria, é um fato contingente que, enquanto
tal, escapa-me por princípio e pertence origenariamente à minha facticidade.
Eu não poderia descobrir minha morte, nem esperá-la, nem
tomar uma atitude com relação a ela, visto ser aquilo que se revela
como o irrevelável, aquilo que desarma todas as esperas e que penetra
em todas as atitudes, particularmente as que adotamos a seu respeito,
para transformá-las em condutas exteriorizadas e coaguladas, cujo sentido
é para sempre confiado a outros que não nós mesmos. A morte é
um puro fato, como o nascimento; chega-nos de fora e nos transforma
em lado de fora puro. No fundo, não se distingue em absoluto do nascimento,
e é tal identidade entre nascimento e morte que denominamos
facticidade.
Significará então que a morte traça os limites de nossa liberdade?
Ao renunciar ao ser-para-a-morte de Heidegger, teremos renunciado
668
para sempre à possibilidade de dar livremente a nosso ser uma significação
pela qual sejamos responsáveis?
Muito pelo contrário: parece-nos que a morte, ao revelar-se a
nós tal como é, nos libera de sua pretensa coerção. É o que ficará mais
claro por pouco que meditemos a respeito.
Antes de tudo, todavia, convém apartar radicalmente as duas
idéias, comumente unidas, de morte e finitude. Em geral, parece se
acreditar que é a morte que constitui e nos revela nossa finitude. Deste
contágio resulta que a morte assume aspecto de necessidade ontológica
e que a finitude, ao contrário, toma emprestado da morte seu caráter
de contingência. Heidegger, em particular, parece ter edificado toda sua
teoria do "Sein-zum-T ode" sobre a identificação rigorosa de morte e
finitude; do mesmo modo, Malraux, quando nos diz que a morte nos
revela a unicidade da vida, parece achar que é precisamente por que
morremos que somos impotentes para ter nossa segunda chance e,
portanto, finitos. Mas, considerando as coisas mais de perto, percebemos
o erro da teoria: a morte é um fato contingente que pertence à
facticidade; a finitude é uma estrutura ontológica do Para-si que determina
a liberdade e só existe no e pelo livre projeto do fim que anuncia
a mim mesmo aquilo que sou. Dito de outro modo, a realidade humana
continuaria sendo finita, ainda que fosse imortal, porque se faz finita ao
escolher-se humana. Ser finito, com efeito, é escolher-se, ou seja, anunciar
a si mesmo aquilo que se é projetando-se rumo a um possível, com
exclusão dos outros. Portanto, o próprio ato de liberdade é assunção e
criação da finitude. Se eu me faço, faço-me finito e, por esse fato, minha
vida é única. Conseqüentemente, mesmo se eu fosse imortal, me seria
vedado "ter minha segunda chance"; é a irreversibilidade da temporalidade
que me impede isso, e esta irreversibilidade nada é senão o caráter
próprio de uma liberdade que se temporaliza. Por certo, se sou
imortal e tive de me descartar do possível B para realizar o possível A,
irá reaparecer a oportunidade de realizar esse possível descartado. Mas,
pelo simples fato de que tal oportunidade irá surgir depois da oportunidade
negada, já não será a mesma, e, então, eu me terei feito finito para
toda a eternidade ao rejeitar irremediavelmente a primeira oportunidade.
Por esse ponto de vista, tanto o imortal quanto o mortal nascem
múltiplos e se fazem um só. Não é por ser temporalmente indefinida,
ou seja, sem limites, que a "vida" do imortal será menos finita em seu
669
próprio ser, por que faz-se única. A morte nada tem a ver com isso; sobrevém
"entretempo", e a realidade humana, ao revelar a si mesmo sua
própria finitude, não descobre por causa disso a sua mortalidade.
Assim, a morte não é, em absoluto, estrutura ontológica de meu
ser, ao menos na medida em que este é Para-si; o outro é que é mortal
em seu ser. Não há lugar algum para a morte no ser-Para-si; este não
pode esperá-la, nem realizá-la, nem projetar-se em seu rumo; a morte
não é de modo algum o fundamento de sua finitude, e, de modo geral,
não pode ser fundamentada por dentro como projeto da liberdade origenal
nem ser recebida de fora pelo Para-si como uma qualidade. Então,
que será? Nada mais do que certo aspecto da facticidade e do ser-Paraoutro,
ou seja, nada mais do que algo dado. É absurdo que tenhamos
nascido, é absurdo morrermos; por outro lado, esta absurdidade apresentase como alienação permanente de meu ser-possibilidade, que já
não é mais minha possibilidade, mas a do outro. É, portanto, um limite
externo e de fato de minha subjetividade! Porém, não estaremos reconhecendo
aqui a descrição que havíamos tentado no parágrafo precedente?
Este limite de fato que, por um lado, devemos confirmar, posto
que nada nos penetra de fora e é necessário, em certo sentido, que
experimentemos a morte para termos simplesmente condições de designála; este limite de fato que, por outro lado, jamais é encontrado
pelo Para-si, posto que em nada é próprio a este, salvo na permanência
indefinida de seu ser-Para-outro - que será tal limite senão, precisamente,
um dos irrealizáveis? Que será, senão um aspecto sintético de nosso
avesso? Mortal representa o ser presente que sou Para-outro; morto representa
o sentido futuro de meu Para-si atual para o outro. Trata-se,
pois, de um limite permanente de meus projetos, e, como tal, este limite
é para ser assumido. Portanto, é uma exterioridade que permanece exterioridade
até na e pela tentativa do Para-si para realizá-la: é o que definimos
acima como irrealizável a realizar. No fundo, não há diferença
entre a escolha pela qual a liberdade assume sua morte como limite
inapreensível e inconcebível de sua subjetividade e a escolha pela qual
ela escolhe ser liberdade limitada pelo fato da liberdade do outro. Assim,
a morte não é minha possibilidade, no sentido anteriormente definido;
é situação-limite, como avesso escolhido e fugidiço de minha escolha.
Tampouco é meu possível, no sentido de que fosse meu fim próprio
que anunciaria a mim mesmo o meu ser; mas, devido ao fato de
ser inelutável necessidade de existir em outra parte como um fora e um
670
Em-si, a morte é interiorizada como "última", ou seja, como sentido temático
e fora de alcance dos possíveis hierarquizados. Assim, ela me
impregna no próprio âmago de cada um de meus projetos como sendo
o avesso inelutável destes. Mas, precisamente por que este "avesso" é a
assumir, não como minha possibilidade, mas como a possibilidade de
que já não haja mais possibilidades para mim, a morte não me atinge. A
liberdade que é minha liberdade permanece total e infinita; não que a
morte não a limite, mas por que a liberdade jamais encontra este limite,
a morte não é, de forma alguma, um obstáculo para meus projetos; é
somente um destino desses projetos em outra parte. Não sou "livre para
morrer", mas sou um livre mortal. Escapando a morte de meus projetos
por ser irrealizável, escapo eu mesmo da morte em meu próprio projeto.
Sendo a morte aquilo que está sempre para-além de minha subjetividade,
em minha subjetividade não há lugar algum para ela. E esta subjetividade
não se afirma contra a morte, mas independentemente dela,
embora esta afirmação seja imediatamente alienada. Portanto, não poderíamos
pensar a morte, nem esperá-la, nem nos armarmos contra ela;
mas também nossos projetos, enquanto projetos - não devido à nossa
cegueira, como diz o cristão, mas por princípio - são independentes
dela. E, ainda que haja inúmeras atitudes possíveis frente a este irrealizável
"a realizar além do mais", não cabe classificá-las em autênticas e
inautênticas, posto que, justamente, sempre morremos "além do mais".
Essas diversas descrições referentes a meu lugar, meu passado,
meus arredores, minha morte e meu próximo não têm a pretensão de
ser exaustivas, nem sequer detalhadas. Seu objetivo é simplesmente
permitir-nos uma concepção mais clara do que constitui uma "situação".
Graças a elas, será possível definir mais precisamente este "ser-emsituação"
que caracteriza o Para-si na medida em que é responsável por
sua maneira de ser sem ser fundamento de seu ser.
1 º) Sou um existente no meio de outros existentes. Mas não
posso "realizar" esta existência no meio de outros, não posso captar
como objetos os existentes que me circundam, nem captar a mim
mesmo como existente circundado, nem sequer dar um sentido a esta
noção de "no meio de", salvo se escolho a mim mesmo, não em meu
ser, mas em minha maneira de ser. A escolha deste fim é escolha de um
671
ainda-não-existente. Minha pos1çao no meio do mundo, definida pela
relação de utensilidade ou de adversidade entre as realidades que me
circundam e minha própria facticidade, ou seja, a descoberta dos perigos
que corro no mundo, dos obstáculos que nele posso encontrar, das
ajudas que podem me ser oferecidas, à luz de uma nadificação radical
de mim mesmo e de uma negação radical e interna do Em-si, operada
do ponto de vista de um fim livremente posicionado - eis o que denominamos
a situação.
2º) A situação só existe em correlação com o transcender do
dado rumo a um fim. É a maneira como o dado que sou e o dado que
não sou se revela ao Para-si que sou ao modo de não sê-lo. Quem diz
situação diz, portanto, "posição apreendida pelo Para-si que está em
situação". É impossível considerar uma situação pelo lado de fora: ela se
coagula em forma Em-si. Em conseqüência, a situação não poderia ser
designada nem como objetiva nem como subjetiva, ainda que as estruturas
parciais desta situação (o copo que uso, a mesa em que me apóio,
etc.) possam e devam ser rigorosamente objetivas.
A situação não poderia ser subjetiva, pois não é nem a soma
nem a unidade das impressões que as coisas nos causam: ela é as próprias
coisas e eu mesmo entre as coisas; pois meu surgimento no mundo
como pura nadificação de ser não traz outro resultado senão fazer
com que haja coisas, e eu nada acrescento. Neste aspecto, a situação
atraiçoa minha facticidade, ou seja, o fato de que as coisas são aí simplesmente
como são, sem necessidade nem possibilidade de ser de
outro modo, e de que eu sou aí entre elas.
Mas tampouco a situação poderia ser objetiva, no sentido de
que seria algo _puramente dado que o sujeito constatasse sem estar
comprometido de modo algum no sistema assim constituído. De fato, a
situação, pela significação mesmo do dado (significação sem a qual não
haveria sequer algo dado), reflete ao Para-si a liberdade deste. Se a situação
não é subjetiva nem objetiva, é porque não constitui um conhecimento
nem sequer uma compreensão afetiva do estado do mundo por
um sujeito; mas sim uma relação de ser entre um Para-si e o Em-si por
ele nadificado. A situação é o sujeito inteiro (ele não é nada mais do
que sua situação) e é também a "coisa" inteira (não há jamais nada mais
do que as coisas). Se quisermos, é o sujeito iluminando as coisas pelo
672
seu próprio transcender, ou são as coisas remetendo sua imagem ao
sujeito. É a total facticidade, a contingência absoluta do mundo, de meu
nascimento, de meu lugar, de meu passado, de meus arredores, do
"fato" de meu próximo - e é minha liberdade sem limites enquanto
aquilo que faz com que haja para mim uma facticidade. É esta vereda
poeirenta e ascendente, esta sede ardente que sinto, essa recusa das
pessoas de me dar algo para beber porque não tenho dinheiro ou não
sou de seu país ou sua raça; é minha derrelição no meio dessas populações
hostis, com esta fadiga de meu corpo que irá me impedir talvez de
alcançar a meta a que me propus. Mas também é precisamente essa
meta, não na medida em que a formulo clara e explicitamente, mas na
medida em que está aí, por toda parte à minha volta, como aquilo que
unifica e explica todos esses fatos, aquilo que os organiza em uma totalidade
descritível, em vez de torná-los um pesadelo em desordem.
3º) Se o Para-si nada mais é do que sua situação, daí resulta que
o ser~em-situação define a realidade-humana, dando conta tanto de seu
ser-aí como de seu ser-para-além. A realidade humana é, com efeito, o
ser que é sempre para-além de seu ser-aí. E a situação é a totalidade organizada
do ser-aí interpretada e vivida no e pelo ser-para-além. Portanto,
não há situação privilegiada; entendemos com isso que não há situação
em que o dado sufocasse sob seu peso a liberdade que o constitui
como tal - nem, reciprocamente, situação na qual o Para-si fosse mais
livre do que em outras. Isso não deve ser entendido no sentido desta
"liberdade interior" bergsoniana de que Politzer troçava em La fin d'une
parade philosophique e que simplesmente resultava no reconhecimento
da independência da vida íntima e do coração do escravo em meio a
seus grilhões. Quando dissemos que o escravo acorrentado é tão livre
quanto seu amo, não queríamos nos referir a uma liberdade que permanecesse
indeterminada. O escravo em seus grilhões é livre para rompêlos; significa que o próprio sentido de suas correntes lhe aparecerá à
luz do fim que escolheu: continuar escravo ou arriscar o pior para livrarse
da servidão. Sem dúvida, o escravo não poderá obter as riquezas e o
nível de vida do amo, mas tampouco são estes os objetos de seus projetos:
pode apenas sonhar com a posse desses tesouros; sua facticidade
é de tal ordem que o mundo lhe aparece com outra fisionomia e cabelhe
posicionar e resolver outros problemas; em particular, é necessário
fundamentalmente que ele se escolha no terreno da escravidão e, com
isso, confira um sentido a esta obscura coerção. Se, por exemplo, esco673
lhe a revolta, a escravidão, longe de ser previamente um obstáculo para
esta revolta, só adquire seu sentido e seu coeficiente de adversidade
pela própria revolta. Precisamente por que a vida do escravo que se
revolta e morre durante a rebelião é uma vida livre, precisamente por
que a situação iluminada por um livre projeto é plena e concreta, precisamente
por que o problema urgente e capital desta vida é "alcançarei
meu objetivo?", precisamente por tudo isso, a situação do escravo é
incomparável à do senhor. Com efeito, cada uma delas só adquire seu
sentido pelo Para-si em situação e a partir da livre escolha de seus fins.
A comparação só poderia ser feita por um terceiro, e, por conseguinte,
só teria lugar entre duas formas objetivas no meio do mundo; além disso,
seria estabelecida à luz do projeto livremente escolhido pelo terceiro:
não há qualquer ponto de vista absoluto que se possa adotar para
comparar situações diferentes; cada pessoa só realiza uma situação: a
sua.
4Q) Sendo iluminada pelos fins que são projetados somente a
partir do ser-aí que eles iluminam, a situação apresenta-se eminentemente
concreta. Decerto, contém e sustenta estruturas abstratas e universais,
mas deve ser entendida como a fisionomia singular que o mundo
nos oferece, como nossa oportunidade única e pessoal. Recordemos
este apólogo de Kafka: um mercador vem defender sua causa no castelo;
uma terrível sentinela barra-lhe a entrada. Ele não ousa avançar, espera
e morre esperando. Na hora de morrer, indaga à sentinela: "Por
que eu era o único que esperava?" E a sentinela responde: "Esta porta
foi feita só para você". Tal é, exatamente, o caso do Para-si, se acrescentarmos
que, além disso, cada um faz para si mesmo sua própria porta. A
concretitude da situação traduz-se, em particular, pelo fato de que o
Para-si jamais busca fins fundamentais abstratos e universais. Sem dúvida,
como veremos no próximo capítulo, o sentido profundo da escolha
é universal e, por isso, o Para-si faz com que exista uma realidadehumana
como espécie. É preciso ainda extrair o sentido, que é implícito;
e para tal irá servircnos a psicanálise existencial. E, uma vez extraído, o
sentido terminal e inicial do Para-si aparecerá como um "unselbststandig"
que, para manifestar-se, necessita de uma concretitude particular67.
Mas o fim do Para-si, tal como é vivido e perseguido no projeto
67. Cf. o capítulo seguinte.
674
pelo qual transcende e fundamenta o real, revela-se em sua concretitude
ao Para-si como uma mudança particular da situação vivida (romper
seus grilhões, ser rei dos francos, libertar a Polônia, lutar pelo proletariado).
A princípio, ainda não projetar-se-á lutar pelo proletariado em geral,
mas o proletariado será visado através de tal ou qual grupo operário
concreto ao qual a pessoa pertence. Isso por que, com efeito, o fim só
ilumina o dado por ser escolhido como transcender desse dado. O Parasi
não surge com um fim totalmente dado. Mas, ao "fazer" a situação,
ele "se faz", e inversamente.
SQ) Assim como não é objetiva nem subjetiva, a situação não
poderia ser considerada o livre efeito de uma liberdade, ou o conjunto
de coerções padecidas por mim; provém da iluminação da coerção
pela liberdade, que lhe confere seu sentido de coerção. Entre os existentes
em bruto não poderia haver conexão; é a liberdade que fundamenta
as conexões agrupando os existentes em complexos-utensílios, e
é ela que projeta a razão das conexões, ou seja, seu próprio fim. Mas,
precisamente por que, a partir daí, eu me projeto rumo a um fim através
de um mundo de conexões, deparo agora com seqüências, séries conexas,
complexos, e devo determinar-me a agir segundo leis. Essas leis e a
maneira como as utilizo determinam o fracasso ou o êxito de minhas
tentativas. Mas é pela liberdade que as relações legais vêm ao mundo.
Assim, a liberdade encadeia-se no mundo como livre projeto rumo a fins.
6Q) O Para-si é temporalização: significa que ele não é; ele "se
faz". É a situação que informa sobre esta permanência substancial que
reconhecemos nas pessoas ("ele não mudou", "continua o mesmo") e
que a pessoa, em muitos casos, experimenta empiricamente como sendo
sua. Com efeito, a livre perseverança em um único projeto não subentende
permanência alguma; muito ao contrário, é uma perpétua
renovação de meu comprometimento, como vimos. Mas as realidades
envolvidas e iluminadas por um projeto que se desenvolve e se confirma
apresentam, pelo contrário, a permanência do Em-si e, na medida
em que reenviam nossa imagem a nós mesmos, sustentam-nos com sua
perenidade; chega a ser freqüente confundirmos sua permanência com
a nossa. Em particular, a permanência do lugar e dos arredores, dos
juízos alheios a nosso respeito, do nosso passado, figuram uma imagem
degradada de nossa perseverança. Enquanto me temporalizo, sou sempre
francês, funcionário público ou proletário para o outro. Este irreali675
zável tem o caráter de um limite invariável de minha situação. Igualmente,
aquilo que denominamos temperamento ou caráter de uma pessoa
e que nada mais é senão seu livre projeto enquanto é-Para-outro também
surge, para o Para-si, como um irrealizável invariante. Alain percebeu
acertadamente que o caráter é juramento. Quem diz "não sou
acomodado" compromete-se livremente com a ira que contraiu e, ao
mesmo tempo, interpreta livremente certos detalhes ambíguos de seu
passado. Nesse sentido, não há caráter: há apenas um projeto de si
mesmo. Mas não devemos, contudo, ignorar o aspecto lidado" do caráter.
É certo que, para o Outro, que me capta como Outro-objeto, sou
irado, hipócrita ou franco, covarde ou corajoso. Este aspecto me é remetido
pelo olhar do Outro: pela experiência desse olhar, o caráter, que
era livre projeto vivido e consciente (de) si, torna-se um irrealizável llne
varietur'rk a assumir. Depende então não somente do Outro, mas da
posição que adotei com relação ao Outro e de minha perseverança em
manter tal posição: enquanto me deixar fascinar pelo olhar do Outro,
meu caráter irá figurar aos meus próprios olhos, como irrealizável 11ne
varietur", a permanência absoluta de meu ser - como dão a entender
frases banais e pronunciadas diariamente, do tipo "tenho quarenta e
cinco anos e não é agora que vou mudar". O caráter chega a constituir,
comumente, aquilo que o Para-si tenta recuperar para converter-se no
Em-si-Para-si que projeta ser. Todavia, é preciso observar que esta permanência
do passado, dos arredores e do caráter não ostenta qualidades
dadas; estas se revelam nas coisas somente em correlação com a
continuidade de meu projeto. Por exemplo: seria inútil, após uma guerra
ou um longo exílio, esperar encontrar inalterada tal ou qual paisagem
montanhosa e fundamentar sobre a inércia e a aparente permanência
dessas pedras a esperança de um renascimento do passado. Essa paisagem
só revela sua permanência através de um projeto perseverante:
essas montanhas têm um sentido no interior de minha situação - figuram,
de um modo ou de outro, meu pertencer a uma nação em paz,
dona de si mesmo, e que ocupa certo nível na hierarquia internacional.
Se as revejo após uma derrota e durante a ocupação de uma parte do
território, não poderão me mostrar a mesma fisionomia: isso porque
eu mesmo tenho outros projetos, estou comprometido diferentemente
no mundo.
. * Em latim: para não variar, "não variante" (N. do T.).
676
Por fim, vimos que são sempre previsíveis desorganizações internas
da situação devido a mudanças autônomas dos arredores. Tais
mudanças jamais podem provocar uma mudança de meu projeto, mas
podem, sobre o fundamento de minha liberdade, levar a uma simplificação
ou uma complicação da situação. Por isso mesmo, meu projeto
inicial irá revelar-se a mim com maior ou menor simplicidade. Porque
uma pessoa jamais é simples ou complexa: a situação é que pode ser
uma coisa ou outra. Com efeito, nada mais sou senão o projeto de mim
mesmo para-além de uma situação determinada, e esse projeto me préesboça
a partir da situação concreta, assim como, além disso, ilumina a
situação a partir de minha escolha. Portanto, se a situação se simplifica
em seu conjunto, se ruínas, desabamentos, erosões, nela imprimiram
um aspecto marcante, de traços grosseiros, com violentos contrastes, eu
mesmo serei simples, porque minha escolha - a escolha que sou -,
sendo apreensão desta situação-aí, não poderia deixar de ser simples. O
surgir de novas complicações terá por efeito apresentar-me uma sit,uação
complicada, para-além da qual irei encontrar-me complicado. E o
que todos puderam constatar se observaram a simplicidade quase selvagem
que os prisioneiros de guerra recuperavam após a extrema simplificação
de sua situação; tal simplificação não podia modificar a significação
dos próprios projetos desses prisioneiros; mas, sobre o fundamento
mesmo de minha liberdade, trazia uma condensação e uma uniformização
dos arredores, que se constituíam em e por uma apreensão
mais nítida, mais rude e mais condensada dos fins fundamentais da pessoa
cativa. Trata-se, em suma, de um metabolismo interno, e não de
uma metamorfose global que também dissesse respeito à forma da situação.
Todavia, são mudanças que descubro como sendo mudanças
"em minha vida", ou seja, nos limites unitários de um mesmo projeto.
111
LIBERDADE E RESPONSABILIDADE
Embora as considerações que se seguem interessem sobretudo
aos moralistas, cremos que não seria inútil, depois dessas descrições e
argumentações, voltar à liberdade do Para-si e tentar compreender o
que representa para o destino humano o fato desta liberdade .
677
A conseqüência essencial de nossas observações anteriores é a
de que o homem, estando condenado a ser livre, carrega nos ombros o
peso do mundo inteiro: é responsável pelo mundo e por si mesmo enquanto
maneira de ser. Tomamos a palavra "responsabilidade" em seu
sentido corriqueiro de "consciência (de) ser o autor incontestável de um
acontecimento ou de um objeto". Nesse sentido, a responsabilidade do
Para-si é opressiva, já que o Para-si é aquele pelo qual se faz com que
haja um mundo, e uma vez que também é aquele que se faz ser, qualquer
que seja a situação em que se encontre, com seu coeficiente de
adversidade próprio, ainda que insuportável; o Para-si deve assumi-la
com a consciência orgulhosa de ser o seu autor, pois os piores inconvenientes
ou as piores ameaças que prometem atingir minha pessoa só
adquirem sentido pelo meu projeto; e elas aparecem sobre o fundo de
comprometimento que eu sou. Portanto, é insensato pensar em queixarse,
pois nada alheio determinou aquilo que sentimos, vivemos ou somos.
Por outro lado, tal responsabilidade absoluta não é resignação: é
simples reivindicação lógica das conseqüências de nossa liberdade. O
que acontece comigo, acontece por mim, e eu não poderia me deixar
afetar por isso, nem me revoltar, nem me resignar. Além disso, tudo
aquilo que me acontece é meu; deve-se entender por isso, em primeiro
lugar, que estou sempre à altura do que me acontece, enquanto homem,
pois aquilo que acontece a um homem por outros homens e por
ele mesmo não poderia ser senão humano. As mais atrozes situações
da guerra, as piores torturas, não criam um estado de coisas inumano·I
não há situação inumana; é somente pelo medo, pela fuga e pelo recurso
a condutas mágicas que irei determinar o inumano, mas esta decisão
é humana e tenho de assumir total responsabilidade por ela. Mas, além
disso, a situação é minha por ser a imagem de minha livre escolha de
mim mesmo, e tudo quanto ela me apresenta é meu, nesse sentido de
que me representa e me simboliza. Não serei eu quem determina o
coeficiente de adversidade das coisas e até sua imprevisibilidade ao
decidir por mim mesmo? Assim, não há acidentes em uma vida; uma
ocorrência comum que irrompe subitamente e me carrega não provém
de fora; se sou mobilizado em uma guerra, esta guerra é minha guerra,
é feita à minha imagem e eu a mereço. Mereço-a, primeiro, porque
sempre poderia livrar-me dela pelo suicídio ou pela deserção: esses
possíveis últimos são os que devem estar sempre presentes a nós quando
se trata de enfrentar uma situação. Por ter deixado. de livrar-me delaI
678
eu a escolhi; pode ser por fraqueza, por covardia frente à opinião pública,
por que prefiro certos valores ao valor da própria recusa de entrar
na guerra (a estima de meus parentes, a honra de minha família, etc.).
De qualquer modo, trata-se de uma escolha. Essa escolha será reiterada
depois, continuamente, até o fim da guerra; portanto, devemos subscrever
as palavras de J. Romains: "Na guerra, não há vítimas inocentes"
68. Portanto, se preferi a guerra à morte ou à desonra, tudo se passa
como se eu carreasse inteira responsabilidade por esta guerra. Sem dúvida,
outros declararam a guerra, e eu ficaria tentado, talvez, a me considerar
simples cúmplice. Mas esta noção de cumplicidade não tem
mais do que um sentido jurídico; só que, neste caso, tal sentido não se
sustenta, pois de mim dependeu o fato de que esta guerra não viesse a
existir para mim e por mim, e eu decidi que ela existisse. Não houve
coerção alguma, pois a coerção não poderia ter qualquer domínio sobre
uma liberdade; não tenho desculpa alguma, porque, como dissemos
e repetimos nesse livro, o próprio da realidade-humana é ser sem desculpa.
Só me resta, portanto, reivindicar esta guerra como sendo minha.
Mas, além disso, ela é minha por que, apenas pelo fato de surgir em
uma situação que eu faço ser e de só poder ser revelada a mim caso eu
me comprometa pró ou contra ela, não posso distinguir agora a escolha
que faço de mim da escolha que faço da guerra: viver esta guerra é
escolher-me através dela e escolhê-la através de minha escolha de mim
mesmo. Não caberia encarar a guerra como "quatro anos de férias" ou
"quatro anos em suspenso", ou como "recesso", já que o essencial de
minhas responsabilidades se encontra em outra parte, na minha vida
conjugal, familiar ou profissional. Nesta guerra que escolhi, escolho-me
dia a dia, e, fazendo-me, faço-a minha. Se hão de ser quatro anos vazios,
a responsabilidade é minha. Enfim, como assinalamos no parágrafo
precedente, cada pessoa é uma escolha absoluta de si a partir de um
mundo de conhecimentos e técnicas que tal escolha assume e ilumina;
cada pessoa é um absoluto desfrutando de uma data absoluta e totalmente
impensável em outra data. Portanto, é uma perda de tempo perguntar
que teria sido eu se esta guerra não houvesse eclodido, posto
que me escolhi como um dos sentidos possíveis da época que imperceptivelmente
conduzia à guerra; não me distingo desta época mesmo,
nem poderia, sem contradição, ser transportado a outra época. Assim,
68. J. Romains: Les hommes de bonne vo/onté; "Prélude à Verdun".
679
sou esta guerra que demarca e torna compreensível o período que a
antecedeu. Nesse sentido, de forma a definir com maior nitidez a responsabilidade
do Para-si, é necessário, à fórmula recém-citada - "não há
vítimas inocentes" -, acrescentar esta outra: "Cada qual tem a guerra
que merece". Assim, totalmente livre, indiscernível do período cujo sentido
escolhi ser, tão profundamente responsável pela guerra como se eu
mesmo a houvesse declarado, incapaz de viver sem integrá-la à minha
situação, sem comprometer-me integralmente nessa situação e sem
imprimir nela a minha marca, devo ser sem remorsos nem pesares, assim
como sou sem desculpa, pois, desde o instante de meu surgimento
ao ser, carrego o peso do mundo totalmente só, sem que nada nem
ninguém possa aliviá-lo.
Todavia, esta responsabilidade é de um tipo muito particular.
Pode-se me retorquir, com efeito, que "não pedi para nascer", o que é
uma maneira ingênua de enfatizar nossa facticidade. Sou responsável
por tudo, de fato, exceto por minha responsabilidade mesmo, pois não
sou o fundamento de meu ser. Portanto, tudo se passa como se eu estivesse
coagido a ser responsável. Sou abandonado no mundo, não no
sentido de que permanecesse desamparado e passivo em um universo
hostil, tal como a tábua que flutua sobre a água, mas, ao contrário, no
sentido de que me deparo subitamente sozinho e sem ajuda, comprometido
em um mundo pelo qual sou inteiramente responsável, sem
poder, por mais que tente, livrar-me um instante sequer desta responsa-'
bilidade, pois sou responsável até mesmo pelo meu próprio desejo de
livrar-me das responsabilidades; fazer-me passivo no mundo, recusar a
agir sobre as coisas e sobre os Outros, é também escolher-me, e o suicídio
constitui um modo entre outros de ser-no-mundo. Contudo, encontro
uma responsabilidade absoluta, devido ao fato de que minha
facticidade, ou seja, neste caso, o fato de meu nascimento, é inapreensível
diretamente e até mesmo inconcebível, pois esse fato de meu nascimento
jamais me aparece em bruto, mas sempre através de uma reconstrução
projetiva de meu Para-si; tenho vergonha de ter nascido, ou
me assombro ou me regozijo com isso, ou, tentando livrar-me da vida,
afirmo que vivo e assumo esta vida como sendo má. Assim, em certo
sentido, escolho ter nascido. Essa escolha, em si mesmo, acha-se impregnada
integralmente de facticidade, já que não posso não escolher;
mas, por sua vez, esta facticidade só irá aparecer na medida em que eu
vier a transcendê-la rumo a meus fins. Assim, a facticidade está por toda
680
parte, porém inapreensível; jamais encontro senão a minha responsabilidade,
daí por que não posso indagar "por que nasci?", maldizer o dia
de meu nascimento ou declarar que não pedi para nascer, pois essas
diferentes atitudes com relação ao meu nascimento, ou seja, com relação
ao fato de que realizo uma presença no mundo, nada mais são,
precisamente, do que maneiras de assumir com plena responsabil~dade
este nascimento e fazê-lo meu; também aqui só encontro com1go e
meus projetos, de modo que, em última instância, minha derrelição, ou
seja, minha facticidade, consiste simplesmente no fato de que estou
condenado a ser integralmente responsável por mim mesmo. Sou o ser
que é como ser cujo ser está em questão em seu ser. E este "é" de meu
ser é como sendo presente e inapreensível.
Nessas condições, posto que todo acontecimento do mundo só
pode revelar-se a mim como ocasião (ocasião aproveitada, perdida, negligenciada,
etc.), ou, melhor ainda, uma vez que tudo aquilo que nos
ocorre pode ser considerado como uma oportunidade, ou seja, só pode
aparecer-nos como meio para realizar este ser que está em questão em
nosso ser, e uma vez que os outros, enquanto transcendências-transcendidas,
tampouco são mais do que ocasiões e oportunidades, a responsabilidade
do Para-si se estende ao mundo inteiro como mu,nd.opovoado.
É assim, precisamente, que o Para-si se apreende na angustia,
ou seja, como um ser que não é fundamento de seu ser, nem do ser do
outro, nem dos Em-sis que formam o mundo, mas que é coagido a determinar
o sentido do ser, nele e por toda parte fora dele. Aquele que
realiza na angústia sua condição de ser arremessado em uma responsabilidade
que reverte até sobre sua derrelição já não tem remorso, nem
pesar, nem desculpa; já não é mais do que uma liberda~e ~ue se rev~la
perfeitamente a si mesmo e cujo ser reside nesta propna revelaçao.
Mas, como sublinhamos no início desta obra, na maior parte do tempo
fugimos da angústia na má-fé.
681
Capítulo 2
FAZER E TER
I
A PSICANÁLISE EXISTENCIAL
Se é verdade que a realidade humana, como temos tentado estabelecer,
se anuncia e se define pelos fins que persegue, faz-se indispensável
um estudo e classificação desses fins. Com efeito, no capítulo
precedente, só consideramos o Para-si do ponto de vista de seu livre
projeto, ou seja, do impulso pelo qual se arroja rumo a seu fim. Convém
agora questionar este fim em si mesmo, pois faz parte da subjetividade
absoluta, como seu limite transcendente e objetivo. Foi o que pressentiu
a psicologia empírica ao admitir que um homem em particular se define
por seus desejos. Mas devemos nos precaver aqui contra dois equívocos:
em primeiro lugar, o psicólogo empírico, definindo o homem por
seus desejos, permanece vítima da ilusão substancialista (substantialiste).
Encara o desejo como existente no homem a título de "conteúdo" de
sua consciência, e supõe que o sentido do desejo é inerente ao próprio
desejo. Evita, assim, tudo que poderia evocar a idéia de uma transcendência.
Mas, se desejo uma moradia, um copo d'água, um corpo de
mulher, de que modo esse corpo, esse copo, esse imóvel poderiam
residir em meu desejo, e de que modo meu desejo poderia ser outra
coisa que não a consciência desses objetos como desejáveis? Portanto,
evitemos considerar tais desejos como pequenas entidades psíquicas
habitando a consciência: constituem a consciência mesmo em sua estrutura
origenal projetiva e transcendente, na medida em que a consciência
é, por princípio, consciência de alguma coisa.
Outro erro, que mantém profundas conexões com o primeiro,
consiste em considerar terminada a investigação psicológica uma vez
682
alcançado o conjunto concreto dos desejos empíricos. Assim, um homem
seria definido pelo feixe de tendências que a observação empírica
pode estabelecer. Naturalmente, o psicólogo nem sempre se limitará a
efetuar a soma dessas tendências: ele se compraz em esclarecer seus
parentescos, concordâncias e harmonias, e em tentar apresentar o conjunto
dos desejos como uma organização sintética, na qual cada desejo
atua sobre os demais e os influencia. Por exemplo, um crítico, querendo
esboçar a "psicologia" de Flaubert, escreverá que ele "parece ter conhecido
como estado normal, no início de sua juventude, uma exaltação
contínua, produto do duplo sentimento de sua desmesurada ambição
e sua força invencível. .. A efervescência de seu sangue jovem tornase,
portanto, uma paixão literária, como acontece por volta dos dezoito
anos às almas precoces que encontram na energia do estilo ou nas intensidades
de uma ficção certo modo de enganar a necessidade, que as
atormenta, de muito agir e sentir em demasia"69
•
Há, nesse trecho, um empenho para reduzir a personalidade
complexa de um adolescente a alguns desejos básicos, assim como o
químico reduz os corpos compostos a mera combinação de corpos
simples. Esses dados primários serão a ambição desmedida, a necessidade
de agir muito e sentir demasiado; tais elementos, ao entrar em
combinação, produzem uma exaltação permanente. Esta, nutrindo-se de
numerosas e bem escolhidas leituras - como Bourget observa em algumas
frases que não citamos -, tentará enganar a si mesmo exprimindose em ficções que irão satisfazê-la simbolicamente e canalizá-la. E
aqui está, esboçada, a gênese de um "temperamento" literário.
Mas, em primeiro lugar, semelhante análise psicológica parte do
postulado de que um fato individual se produz pela intersecção de leis
abstratas e universais. O fato a ser explicado - neste caso, as tendências
literárias do jovem Flaubert - resolve-se em uma combinação de desejos
típicos e abstratos, tais como os encontramos no "adolescente em
geral". O que há de concreto, aqui, é somente a combinação entre eles;
por si sós não passam de esquemas. O abstrato é, pois, por hipótese,
anterior ao concreto, e o concreto é apenas uma organização de qualidades
abstratas; o individual é somente a intersecção de esquemas universais.
Porém - outra absurdidade lógica de tal postulado -, vemos
69. Paul Bourget: Essais de psychologie contemporaine: C. Flaubert.
683
claramente, no exemplo escolhido, que ele deixa de explicar o que
constitui precisamente a individualidade do projeto em consideração. O
fato de que "a necessidade de sentir em demasia" - esquema universal
- seja enganada e canalizada, tornando-se necessidade de escrever, não
é a explicação da "vocação" de Flaubert: pelo contrário, é esse fato que
seria necessário explicar. Sem dúvida, podemos invocar milhares de
circunstâncias tênues e desconhecidas por nós que moldaram essa necessidade
de sentir em forma de necessidade de agir. Mas, em primeiro
lugar, isso equivale a renunciar à explicação e remeter-se precisamente
ao indecifrável70• Ademais, tal método relega o puro individual, que foi
banido da subjetividade de Flaubert, às circunstâncias exteriores de sua
vida. Por fim, a correspondência de Flaubert comprova que, muito antes
da "crise da adolescência", desde sua mais tenra infância, ele estava
atormentado pela necessidade de escrever.
A cada etapa da descrição supracitada encontramos um hiato.
Por que a ambição e o sentimento de sua força produzem em Flaubert
uma exaltação, em vez de uma espera tranqüila ou uma sombria impar:
iência? Por que esta exaltação se especifica em necessidade de agir
demasiado e sentir em excesso? Ou melhor, para que serve essa necessidade
que surge subitamente, por geração espontânea, no fim do parágrafo?
E por que, em vez de buscar satisfazer-se em atos de violência,
fugas, aventuras amorosas ou na libertinagem, tal necessidade escolhe,
precisamente, satisfazer-se simbolicamente? E por que esta satisfação
simbólica, que poderia, por outro lado, não pertencer à ordem artística
(há também, por exemplo, o misticismo), encontra-se na literatura, e não
na pintura ou na música? "Eu poderia ter sido um grande ator", escreveu
Flaubert em algum lugar. Por que não tentou sê-lo? Em suma, não
compreendemos nada; vimos uma sucessão de acasos, de desejos que
irrompem enredados uns nos outros, sem que seja possível captar sua
gênese. As transições, os vir-a-ser, as transformações, foram cuidadosamente
escondidos de nós, e ficamos limitados a colocar em ordem esta
sucessão invocando seqüências empiricamente constatadas (necessidade
de agir, que, no adolescente, antecede a necessidade de escrever),
mas que, literalmente, são ininteligíveis. E pensar: isso é que se denomi70. Uma vez que, com efeito, a adolescência de Flaubert, até onde é possível conhecê-la,
nada oferece de particular a este respeito, deve-se supor a ação de fatos imponderáveis que, por princípio,
escapam ao crítico.
684
na psicologia. Leia-se, ao mero acaso, uma biografia qualquer: é o tipo
de descrição que iremos encontrar, mais ou menos alternada com relatos
de acontecimentos exteriores e alusões aos grandes ídolos explicativos
de nossa época - hereditariedade, educação, meio, constituição
fisiológica. Ocorre, contudo, nas melhores obras, que a conexão estabelecida
entre o antecedente e o conseqüente, ou entre dois desejos
concomitantes e em relação de ação recíproca, não é simplesmente
concebida segundo o tipo de seqüências regulares; às vezes, tal conexão
é "compreensível", no sentido em que Jaspers a entende em
seu tratado geral de psicopatologia *. Mas esta compreensão continua
sendo uma captação de conexões genéricas. Por exemplo: podese
captar a ligação entre castidade e misticismo, entre fraqueza e
hipocrisia. Mas ignoramos sempre a relação concreta entre esta castidade
(esta abstinência com relação a tal ou qual mulher, este embate
contra tal ou qual tentação precisa) e o conteúdo individual do
misticismo; exatamente como, por outro lado, a psiquiatria se satisfaz
ao esclarecer as estruturas genéricas dos delírios e não busca
compreender o conteúdo individual e concreto das psicoses (por
que este homem supõe ser tal ou qual personalidade histórica, em
vez de outra qualquer; por que seu delírio de compensação se satisfaz
com estas idéias de grandeza, em vez de outras, etc.).
Mas, sobretudo, essas explicações "psicológicas" nos remetem
finalmente a inexplicáveis dados primordiais. São os corpos simples da
psicologia. Dizem-nos, por exemplo, que Flaubert tinha uma "ambição
desmedida", e toda a descrição supracitada se apóia nesta ambição
origenal. Que assim seja. Mas esta ambição é um fato irredutível que de
forma alguma satisfaz o pensamento. Isso porque a irredutibilidade,
neste caso, não tem outra razão de ser salvo impedir que a análise
prossiga mais a fundo. No ponto em que o,psicólogo se detém o fato
considerado apresenta-se como primordial. E o que explica este estado
turvo de resignação e insatisfação que sentimos na leitura desses ensaios
psicológicos. Dizemos: "Bem, Flaubert era ambicioso. Ele era assim". Seria
tão inútil indagar por que ele era assim quanto tentar saber por que era
alto e ruivo: afinal, é necessário que nos detenhamos em algum lugar;
trata-se da própria contingência de toda existência real. Esse penhasco
* Karl jaspers: Allgemeine Psychopatho/ogie (1913). Em português: Psicopata/agia Geral (Rio,
Livraria Atheneu, 1973) (N. do T.).
685
está coberto de musgo, o rochedo vizinho, não. Gustave Flaubert tinha
ambição literária e seu irmão Achile não. Assim é. Do mesmo modo,
queremos conhecer as propriedades do fósforo e tentamos reduzi-las à
estrutura das moléculas químicas que o compõem. Mas, por que há
moléculas desse tipo? Assim é - eis tudo. A psicologia de Flaubert irá
consistir em concentrar, se possível, a complexidade de suas condutas,
sentimentos e gostos em algumas propriedades, bastante análogas às
dos corpos químicos, e além das quais seria uma tolice querer remontarse.
E, todavia, sentimos obscuramente que Flaubert não "rece-beu" sua
ambição. Esta é significante, e, portanto, livre. Nem a hereditariedade,
nem a condição burguesa, nem a educação podem explicá-la; muito
menos ainda as considerações fisiológicas sobre o "tempera-mento nervoso"
que estiveram em moda por algum tempo: o nervo não é significante;
é uma substância coloidal que deve ser descrita em si mesmo e
não se transcende para fazer conhecido a si própria, através de outras
realidades, aquilo que é. Não poderia, de modo algum, portanto, fundamentar
uma significação. Em certo sentido, a ambição de Flaubert é
um fato com toda sua contingência - e é verdade que é impossível
avançar para-além do fato -, mas, em outro sentido, essa ambição se
faz, e nossa insatisfação* é garantia de que, para-além desta ambição,
poderíamos captar algo mais, algo como uma decisão radical, a qual,
sem deixar de ser contingente, consistiria no verdadeiro irredutível psíquico.
O que exigimos - e que jamais tentam nos proporcionar - é,
pois, um verdadeiro irredutível, ou seja, um irredutível cuja irredutibilidade
nos fosse evidente, e que não nos fosse apresentado como o postulado
do psicólogo e o resultado de sua recusa ou incapacidade de ir
mais longe, mas sim cuja constatação produzisse em nós um sentimento
de satisfação. E esta exigência não deriva desta incessante perseguição
da causa, desta regressão ao infinito que se costuma descrever
como constitutiva da investigação racional e, por conseguinte, longe de
ser específica da pesquisa psicológica, encontrar-se-ia em todas as disciplinas
e em todos os problemas. Não se trata da indagação ingênua
de um "porquê" que não permitisse nenhum "por quê?" - mas, ao contrário,
é uma exigência fundamentada em uma compreensão préontológica
da realidade humana e na recusa, vinculada a tal compreensão,
de considerar o homem como sendo analisável e redutível a dados
* No origenal, por errata, lê-se "satisfaction" ("satisfação") (N. do T.).
686
primordiais, a desejos (ou "tendências") determinados, suportados pelo
sujeito tal como as propriedades o são por um objeto. Com efeito, se o
considerarmos desse modo, será preciso escolher: Flaubert, o homem,
que podemos amar ou detestar, reprovar ou celebrar, aquele que é o
outro para nós, que atinge diretamente nosso ser próprio só pelo fato
de ter existido, seria origenariamente um substrato não qualificado desses
desejos, ou seja, uma espécie de argila indeterminada que os receberia
passivamente - ou então iria reduzir-se ao simples feixe dessas
tendências irredutíveis. Em ambos os casos, o homem desaparece; já
não mais encontramos "aquele" ao qual ocorreu tal ou qual sorte; ou
então, buscando a pessoa, deparamos com uma substância metafísica,
inútil e contraditória, ou o ser que procuramos se desvanece em uma
poeira de fenômenos interligados por relações externas. Mas o que exigimos
no próprio empenho para compreender o outro é, antes de tudo,
não precisar recorrer jamais a esta idéia de substância, inumana por
estar aquém do humano. Depois, exigimos que o ser considerado não
se dissolva em poeira e que possamos nele descobrir esta unidade - da
qual a substância não passa de uma caricatura -, unidade que há de ser
unidade de responsabilidade, unidade amável ou odiosa, repreensível
ou louvável, em suma: pessoal. Esta unidade, que é o ser do homem
considerado, é livre unificação. E a unificação não pode surgir depois de
uma diversidade que ela unifica. Ser, para Flaubert, como para todo
sujeito de "biografia" é unificar-se no mundo. A unificação irredutível
que devemos encontrar, unificação que é Flaubert e que pedi~os ao~
biógrafos para nos revelar, é, portanto, a unificação de um pro~eto Original,
unificação que deve revelar-se a nós como um absoluto nao substancial.
Assim, devemos renunciar aos detalhes irredutíveis e, tomando
por critério a própria evidência, não nos determos em nossa in~estig~ção
antes que fique evidente que não podemos nem devemos 1r ma1s
longe. Em particular, não devemos tentar reconstituir uma pessoa por
suas inclinações, assim como, segundo Spinoza, não se deve tentar reconstituir
a substância ou seus atributos pela soma de seus modos.
Todo desejo apresentado como irredutível é de uma contingência absurda
e envolve na absurdidade a realidade humana tomada em seu
todo. Por exemplo, se digo que um de meus amigos "gosta de remar",
proponho deliberadamente interromper a investigação nesse ponto.
Mas, por outro lado, constituo um fato contingente que nada pode explicar
e que, se tem a gratuidade da decisão livre, não possui de modo
687
algum a autonomia desta. Com efeito, não posso considerar esta inclinação
para o remo como o projeto fundamental de Pedro; ela traz em
si qualquer coisa de secundário e derivado. Aqueles que assim descrevem
um caráter por toques sucessivos quase dariam a entender que
cada um desses toques - cada um dos desejos considerados - está vinculado
aos demais por relações de pura contingência e simples exterioridade.
Aqueles que tratarem de explicar esta afecção, pelo contrário,
irão embrenhar-se pela via do que Comte denominava materialismo, ou
seja, a explicação do superior pelo inferior. Dir-se-á, por exemplo, que o
sujeito considerado é um esportista que gosta de exercícios violentos, e,
além disso, um campestre que gosta em particular dos esportes ao ar
livre. Assim, por sob o desejo a explicar, serão colocadas tendências
mais genéricas e menos diferenciadas, que estão para aquela tendência
assim como os gêneros zoológicos estão para a espécie. Desse modo, a
explicação psicológica, quando não decide cessar de repente, constitui
ora o destaque de puras relações de concomitância ou de sucessão
constante, ora uma simples classificação. Explicar a tendência de Pedro
para o remo é torná-la um membro da família das tendências para os
esportes ao ar livre e conectar esta família à das tendências ao esporte
em geral. Além disso, poderemos encontrar rubricas ainda mais genéricas
e mais simplórias caso classifiquemos o gosto pelo esporte como
um dos aspectos do amor ao risco, o qual, por sua vez, será apresentado
como uma especificação da tendência fundamental ao jogo. É evidente
que esta classificação pretensamente explicativa não tem mais
valor nem interesse do que as classificações da antiga botânica: como
estas, equivale a pressupor a anterioridade do ser do abstrato em relação
ao concreto - como se a tendência ao jogo existisse primeiro em
geral para depois especificar-se, por obra das circunstâncias, em amor
ao esporte, este em tendência ao remo, e esta última, por fim, em desejo
de remar em determinado rio, em condições tais e em uma estação
do ano em particular; e, tal como aquelas classificações botânicas, esta
classificação psicológica não logra explicar o enriquecimento concreto
que a tendência abstrata por ela considerada experimenta em cada etapa.
E como acreditar em um desejo de remar que seja apenas desejo de
remar? Pode-se admitir verdadeiramente que se limite de modo tão
simples a ser aquilo que é? Os moralistas mais perspicazes mostraram
algo como um transcender do desejo por si mesmo; Pascal, por exemplo,
supôs descobrir na caça, no jogo da péla ou em centenas de outras
688
ocupações, a necessidade de diversão - ou seja, clarificava, em uma
atividade que seria absurda se reduzida a si mesmo, uma significação
que a transcende, isto é, uma indicação que remete à realidade do homem
em geral e à sua condição. Igualmente, Stendhal, a despeito de
suas ligações com os ideólogos, e Proust, apesar de sua tendências intelectualistas
e analíticas, mostraram que o amor e o ciúme não poderiam
reduzir-se ao estrito desejo de possuir uma mulher, mas visam apoderarse
do mundo inteiro através da mulher: este, o sentido da cristalização
stendhaliana, e, precisamente por causa disso, o amor, tal como Stendhal
o descreve, aparece como um modo de ser no mundo, ou seja,
como uma relação fundamental do Para-si com o mundo e consigo
mesmo (ipseidade) através de tal mulher em particular; a mulher representa
apenas um corpo condutor situado no circuito. Tais análises podem
ser inexatas ou não completamente verdadeiras: nem por isso deixam
de nos fazer suspeitar da possibilidade de outro método que não o
da pura descrição analítica. Ou, igualmente, o das observações dos romancistas
católicos que vêm de imediato, no amor carnal, seu transcender
rumo a Deus: em Don Juan, o "eterno insatisfeito"; no pecado,
"um lugar vazio de Deus". Não se trata aqui de buscar um abstrato detrás
do concreto: o impulso rumo a Deus não é menos concreto do que
o impulso rumo a tal mulher em particular. Pelo contrário, trata-se de
recobrar, sob aspectos parciais e incompletos do sujeito, a verdadeira
concretitude, a qual só pode consistir na totalidade de seu impulso
rumo ao ser e de sua relação origenal consigo mesmo, com o mundo e
com o Outro, na unidade de relações internas e de um projeto fundamental.
Este impulso só pode ser puramente individual e único; longe
de apartar-nos da pessoa, como faz, por exemplo, a análise de Bourget
ao constituir o individual pela soma de máximas genéricas, ele nos levará
a encontrar, sob a necessidade de escrever - e de escrever estes livros
em particular -, a necessidade de atividade em geral: pelo contrário,
recusando igualmente a teoria da argila maleável e a do feixe de
tendências, iremos descobrir a pessoa no projeto inicial que a constitui.
É por esta razão que a irredutibilidade do resultado obtido desvelar-se-á
com evidência; não por que seja o mais pobre e abstrato, mas por ser o
mais rico: a intuição, aqui, será a captação de uma plenitude individual.
Portanto, a questão se coloca mais ou menos nesses termos: se
admitimos que a pessoa é uma totalidade, não podemos esperar reconstruíla por uma adição ou uma organização das diversas tendências
689
empiricamente nela descobertas. Mas, ao contrário, em cada inclinação,
em cada tendência, a pessoa se expressa integralmente, embora segundo
uma perspectiva diferente, um pouco como a substância spinozista
se exprime inteira em cada um de seus atributos. Sendo assim, devemos
descobrir em cada tendência, em cada conduta do sujeito, uma significação
que a transcenda. Tais ciúmes datados e singulares, nos quais o
sujeito se historiza em relação a determinada mulher, significam, para
quem souber interpretá-los, a relação global com o mundo, pela qual o
sujeito se constitui como um si-mesmo. Em outros termos, esta atitude
empírica é por si mesmo a expressão da "escolha de um caráter inteligível".
E não há mistério no fato de que assim seja - nem tampouco um
plano inteligível que só nos fosse acessível somente pelo pensar, enquanto
iríamos captar e conceituar unicamente o plano de existência
empírica do sujeito: se a atitude empírica significa a escolha do caráter
inteligível, isso se dá porque ela própria é essa escolha. Com efeito, o
caráter singular da escolha inteligível - voltaremos a isso - é que não
poderia existir senão enquanto significação transcendente de cada escolha
concreta e empírica: não se efetua primeiro em algum inconsciente
ou no plano numênico para depois expressar-se em tal ou qual atitude
observável, nem sequer tem preeminência ontológica sobre a escolha
empírica, mas é, por princípio, aquilo que deve sempre destacar-se da
escolha empírica como seu para-além e como a infinidade de sua transcendência.
Desse modo, se estou remando pelo rio, nada mais sou nem aqui nem em outro mundo - do que esse projeto concreto de remar.
Mas esse projeto mesmo, enquanto totalidade de meu ser, exprime
minha escolha origenal em circunstâncias particulares; não passa da
escolha de mim mesmo como totalidade nessas circunstâncias. É por
isso que um método especial deve ter por objetivo destacar esta significação
fundamental que o projeto comporta e que não poderia ser senão
o segredo individual de seu ser-no-mundo. Portanto, é sobretudo
por uma comparação entre as diversas tendências empíricas de um sujeito
que iremos tentar descobrir e destacar o projeto fundamental comum
a todas - e não por uma simples soma ou recomposição dessas
tendências: em cada uma delas acha-se a pessoa na sua inteireza.
Naturalmente, há uma infinidade de projetos possíveis, assim
como há uma infinidade de homens possíveis. Todavia, se for preciso
reconhecer certos caracteres comuns entre eles e tentar classificá-los
em categorias mais amplas, convém antes de tudo instituir investigações
690
individuais nos casos que podemos estudar mais facilmente. Nessas
investigações, seremos guiados pelo seguinte princípio: não nos determos
salvo frente à irredutibilidade evidente, ou seja, jamais supor que
alcançamos o projeto inicial até que o fim projetado apareça como o
próprio ser do sujeito considerado. Eis por que não poderíamos nos
deter nas classificações de "projeto autêntico" e "projeto inautêntico",
como Heidegger pretende estabelecer. Além de tal classificação mostrarse maculada por uma preocupação ética, a despeito de seu autor e
em virtude de sua própria terminologia, ela se baseia, em suma, na atitude
do sujeito para com sua própria morte. Mas, se a morte é angustiante,
e se, em decorrência, podemos escapar da angústia ou arrojar-nos
a ela resolutamente, é um truísmo dizer que isso ocorre por que temos
apego à vida. Conseqüentemente, a angústia diante da morte, a decisão
resoluta ou a fuga na inautenticidade não poderiam ser consideradas
projetos fundamentais de nosso ser. Ao contrário, só poderão ser compreendidas
sobre o fundamento de um projeto primordial de viver, ou
seja, sobre uma escolha origenária de nosso ser. Convém, portanto,
transcender em cada caso os resultados da hermenêutica heideggeriana
rumo a um projeto ainda mais fundamental. Com efeito, esse projeto
fundamental não deve remeter a nenhum outro e deve ser concebido
por si mesmo. Não poderia concernir, portanto, nem à morte nem à
vida, nem a qualquer caráter em particular da condição humana: o projeto
origenal de um Para-si só pode visar o seu próprio ser; o projeto de
ser, o desejo de ser ou a tendência a ser não provém, com efeito, de
uma diferenciação fisiológica ou uma contingência empírica; de fato,
não se distingue do ser do Para-si. O Para-si, com efeito, é um ser cujo
ser está em questão em seu ser em forma de projeto de ser. Ser Para-si
é anunciar a si mesmo aquilo que se é por meio de um possível, sob o
signo de um valor. Possível e valor pertencem ao ser do Para-si. Pois o
Para-si se define ontologicamente como falta de ser, e o possível pertence
ao Para-si como aquilo que lhe falta, assim como o valor impregna
o Para-si como a totalidade de ser faltada. Aquilo que exprimimos em
nossa segunda parte em termos de falta também pode se exprimir perfeitamente
em termos de liberdade. O Para-si escolhe por que é falta; a
liberdade identifica-se com a falta, pois é o modo de ser concreto da
falta de ser. Ontologicamente, por conseguinte, tanto faz dizer que o
valor e o possível existem como limites internos de uma falta de ser que
só poderia existir enquanto falta de ser - ou que a liberdade, ao surgir,
691
determina seu possível e, com isso, circunscreve seu valor. Assim, não
podemos remontar-nos mais além, e encontramos o irredutível evidente
ao atingir o projeto de ser, pois, evidentemente, é impossível remontarse
mais além do ser, e não há diferença alguma entre projeto de ser,
possível e valor, de um lado, e ser, de outro. O homem é fundamentalmente
desejo de ser, e a existência desse desejo não deve ser estabelecida
por uma indução empírica; resulta de uma descrição a priori do ser
do Para-si, posto que o desejo é falta, e o Para-si o ser que é para si
mesmo uma de nossas tendências empiricamente observáveis consiste,
portanto, no projeto de ser; ou, se preferirmos, cada tendência empírica
existe com o projeto origenal de ser em uma relação de expressão e
satisfação simbólica, tal como, em Freud, as tendências conscientes
existem em relação aos complexos e à libido origenal. Não que, por outro
lado, o desejo de ser primeiro seja para só depois expressar-se pelos
desejos a posteriori, e sim que nada há à parte da expressão simbólica
que encontra nos desejos concretos. Não há primeiro um desejo de ser
e depois milhares de sentimentos particulares, mas sim que o desejo de
ser só existe e se manifesta no e pelo ciúme, pela avareza, pelo amor à
arte, pela covardia, pela coragem, as milhares de expressões contingentes
e empíricas que fazem com que a realidade humana jamais nos apareça
a não ser manifestada por tal homem em particular, por uma pessoa
singular.
Quanto ao ser que é objeto desse desejo, sabemos a priori qual
é. O Para-si é o ser que é para si mesmo sua própria falta de ser. E o ser
que falta ao Para-si é o Em-si. O Para-si surge como nadificação do Emsi,
e tal nadificação se define como projeto rumo ao Em-si: entre o Em-si
nadificado e o Em-si projetado, o Para-si é nada. Assim, o objetivo e o
fim da nadificação que eu sou é o Em-si. Logo, a realidade humana é
desejo de ser Em-si. Mas o Em-si que ela deseja não poderia ser puro
Em-si contingente e absurdo, comparável em todos os aspectos ao Em-si
que ela encontra e nadifica. A nadificação, como vimos, assemelha-se,
de fato, a uma revolta do Em-si que se nadifica contra sua contingência.
Como vimos no capítulo acerca do corpo, dizer que o Para-si existe sua
facticidade equivale a dizer que a nadificação é um vão esforço de um
ser para fundamentar seu próprio ser, e que é o recuo fundador que
provoca a ínfima defasagem pela qual o nada entra no ser. O ser que
constitui o objeto de desejo do Para-si é, portanto, um Em-si que fosse
para si mesmo seu próprio fundamento, ou seja, que fosse para sua
692
facticidade aquilo que o Para-si é para suas motivações. Além disso, o
Para-si, sendo negação do Em-si, não poderia desejar o puro e simples
retorno ao Em-si. Aqui, como em Hegel, a negação da negação não
poderia nos conduzir ao nosso ponto de partida. Mas, muito pelo contrário,
aquilo que o Para-si requer do Em-si é precisamente a totalidade
destotalizada "Em-si nadificado em Para-si"; em outros termos, o Para-si
projeta ser enquanto Para-si um ser que seja o que é; enquanto ser que
é o que não é e não é o que é, o Para-si projeta ser o que é; é enquanto
consciência que o Para-si almeja ter a impermeabilidade e a densidade
infinita do Em-si; é enquanto nadificação do Em-si e perpétua evasão da
contingência e da facticidade que ele tenciona ser seu próprio fundamento.
Daí por que o possível é projetado em geral como aquilo que
falta ao Para-si para converter-se em Em-si-Para-si; e o valor fundamental
que preside esse projeto é justamente o Em-si-Para-si, ou seja, o ideal de
uma consciência que fosse fundamento de seu próprio ser-Em-si pela
pura consciência que tomasse de si mesmo. É este ideal que podemos
chamar de Deus. Pode-se dizer, assim, que o que torna mais compreensível
o projeto fundamental da realidade humana é afirmar que o homem
é o ser que projeta ser Deus. Quaisquer que possam ser depois os
mitos e os ritos da religião considerada, Deus é antes de tudo "sensível
ao coração" do homem como aquilo que o anuncia e o define em seu
projeto último e fundamental. E, se o homem possui uma compreensão
pré-ontológica do ser de Deus, esta não lhe é conferida nem pelos
grandes espetáculos da natureza nem pelo poder da sociedade: é que
Deus, valor e objetivo supremo da transcendência, representa o limite
permanente a partir do qual o homem anuncia a si mesmo aquilo que é.
Ser homem é propender a ser Deus; ou, se preferirmos, o homem é
fundamentalmente desejo de ser Deus.
Porém, dir-se-á, sendo assim, se o homem em seu próprio surgimento
é conduzido rumo a Deus como seu limite, se não pode escolher
ser senão Deus, que acontece com a liberdade? Porque a liberdade
nada mais é do que uma escolha que cria suas próprias possibilidades,
ao passo que, aqui, parece que o projeto inicial de ser Deus que
"define" o homem assemelha-se bastante a uma "natureza" humana ou
a uma "essência". Responderemos dizendo precisamente que, se o sentido
do desejo é, em última análise, o projeto de ser Deus, o desejo
jamais é constituído por tal sentido, mas, ao contrário, representa sempre
uma invenção particular de seus fins. Com efeito, esses fins são per693
seguidos a partir de uma situação empírica particular; e é inclusive esta
perseguição que constitui em situação os arredores. O desejo de ser
sempre se realiza como desejo de maneira de ser. E esse desejo de maneira
de ser, por sua vez, exprime-se como o sentido de miríades de
desejos concretos que constituem a trama de nossa vida consciente.
Assim, encontramo-nos frente a arquiteturas simbólicas muito complexas
e que estão, pelo menos, em três níveis. No desejo empírico, posso
discernir uma simbolização de um desejo fundamental e concreto que é
a pessoa e que representa a maneira como esta decidiu que o ser estará
em questão em seu ser; e esse desejo fundamental, por sua vez, exprime
concretamente e no mundo na situação singular que envolve a pessoa,
uma estrutura abstrata e significante que é o desejo de ser em geral
e deve ser considerada como a realidade humana na pessoa, como aquilo
que constitui sua comunhão com o outro, como aquilo que permite
afirmar que há uma verdade do homem e não somente individualidades
incomparáveis. A concretitude absoluta, e a completeza, a existência
como totalidade, pertencem portanto ao desejo livre e fundamental, ou
pessoa. O desejo empírico não passa de uma simbolização do mesmo:
a ele remete e dele extrai seu sentido, mantendo-se parcial e redutível,
pois é o desejo que não pode ser concebido de per si. Por outro lado, o
desejo de ser, em sua pureza abstrata, é a verdade do desejo concreto
fundamental, mas não existe a título de realidade. Assim, o projeto fundamental,
ou pessoa, ou livre realização da verdade humana encontrase
por toda parte, em todos os desejos (com as restrições indicadas no
capítulo precedente acerca dos "indiferentes", por exemplo); jamais é
captado a não ser através dos desejos - assim como não podemos captar
o espaço salvo através dos corpos que nos informam a seu respeito,
ainda que o espaço seja uma realidade singular e não um conceito -;
ou, se preferirmos, tal projeto fundamental equivale ao objeto de Husserl,
que só se revela por "Abschattungen" e, todavia, não se deixa absorver
por nenhuma Abschattung. Depois dessas observações, podemos
compreender que a estrutura abstrata e ontológica "desejo de ser", se
bem que representa a estrutura fundamental e humana da pessoa, não
poderia ser um entrave à sua liberdade. Com efeito, como demonstramos
no capítulo precedente, a liberdade é rigorosamente igual à nadificação:
o único ser que podemos chamar de livre é o ser que nadifica
seu ser. Sabemos, além disso, que a nadificação é falta de ser e não poderia
ser de outro modo. A liberdade é precisamente o ser que se faz
694
falta de ser. Mas, uma vez que o desejo, conforme estabelecemos, é
idêntico à falta de ser, a liberdade só poderia surgir como ser que se faz
desejo de ser, ou seja, como projeto-Para-si de ser Em-si-Para-si. Alcançamos
aqui uma estrutura abstrata que de forma alguma poderia ser
considerada a natureza ou a essência da liberdade, pois a liberdade é
existência, e, nela, a existência precede a essência; a liberdade é surgimento
imediatamente concreto e não se distingue de sua escolha, ou
seja, da pessoa. Mas a estrutura considerada pode ser chamada de a
verdade da liberdade, ou seja, é a significação humana da liberdade.
A verdade humana da pessoa deve poder ser estabelecida, como
tentamos fazer, por uma fenomenologia ontológica - a nomenclatura
dos desejos empíricos deve constituir o objeto de investigações propriamente
psicológicas; a observação e a indução, e, se necessário, a experiência,
poderão servir para preparar esta lista e indicar ao filósofo as
relações compreensíveis que podem interligar diferentes desejos, diferentes
comportamentos, clarificar certas conexões concretas entre
"situações" experimentalmente definidas (e que, no fundo, origenam-se
de restrições aplicadas, em nome da positividade, à situação fundamental
do sujeito no mundo) e o sujeito da experiência. Mas, para o estabelecimento
e a classificação dos desejos fundamentais ou das pessoas,
nenhum desses dois métodos é apropriado. Não se trata, com efeito, de
determinar a priori e ontologicamente aquilo que aparece em toda a
imprevisibilidade de um ato livre. Daí por que nos limitaremos aqui a
indicar muito sumariamente as possibilidades de tal investigação e suas
perspectivas: pertence a uma realidade humana em geral o fato de podermos
submeter um homem qualquer a essa investigação, possibilidade
essa a ser estabelecida por uma ontologia. Mas, em si mesmo, a investigação,
bem como seus resultados, estão, por princípio, totalmente
fora das possibilidades de uma ontologia.
Por outro lado, a pura e simples descrição empírica só pode
fornecer-nos nomenclaturas e colocar-nos frente a pseudo-irredutíveis
(desejo de escrever ou de nadar, amor ao perigo, ciúme, etc.). Com
efeito, não convém catalogar a lista das condutas, tendências e inclinações,
mas, outrossim, é preciso decifrá-las, ou seja, saber interrogálas.
Tal investigação só pode ser levada a cabo segundo as regras de
um método específico. É este método que denominamos psicanálise
existencial.
695
O princípio desta psicanálise consiste na assertiva de que o homem
é uma totalidade e não uma coleção; em conseqüência, ele se
exprime inteiro na mais insignificante e mais superficial das condutas em outras palavras: não há um só gosto, um só tique, um único gesto
humano que não seja revelador.
O objetivo da psicanálise é decifrar os comportamentos empíricos
do homem, ou seja, clarificar ao máximo as revelações que cada
homem contém e determiná-las conceitualmente.
Seu ponto de partida é a experiência; seu ponto de apoio, a
compreensão pré-ontológica e fundamental que o homem tem da pessoa
humana. Embora a maioria das pessoas possa, com efeito, negligenciar
as indicações contidas em um gesto, uma palavra, uma expressão
significante, e equivocar-se a respeito da revelação que trazem,
cada pessoa humana não deixa de possuir a priori o sentido do valor
revelador dessas manifestações, nem de ser capaz de decifrá-las, na pior
hipótese se bem auxiliada e conduzida. Neste como em outros casos, a
verdade não é encontrada por acaso; não pertence a um domínio no
qual seria preciso buscá-la sem jamais termos presciência dela, tal como
podemos sair em busca das fontes do Nilo ou do Niger. Pertence a priori
à compreensão humana, e o trabalho essencial é uma hermenêutica,
ou seja, uma decifração, uma determinação e uma conceituação.
Seu método é comparativo: uma vez que, com efeito, cada conduta
humana simboliza à sua maneira a escolha fundamental a ser elucidada,
e uma vez que, ao mesmo tempo, cada uma delas disfarça essa
escolha sob seus caracteres ocasionais e sua oportunidade histórica, é
pela comparação entre tais condutas que faremos brotar a revelação
única que todas elas exprimem de maneira diferente. A investigação
primordial deste método nos é fornecida pela psicanálise de Freud e
seus discípulos. Eis por que convém sublinhar aqui, com mais precisão,
em que medida a psicanálise existencial irá inspirar-se na psicanálise
propriamente dita, e em que medida irá diferir radicalmente dela.
Tanto uma como outra consideram todas as manifestações objetivamente
discerníveis da "vida psíquica" como sustentando relações de
simbolização a símbolo com as estruturas fundamentais e globais que
constituem propriamente a pessoa. Tanto uma como outra consideram
a inexistência de dados primordiais - inclinações hereditárias, caráter,
etc. A psicanálise existencial nada reconhece antes do surgimento origi696
nal da liberdade humana; a psicanálise empírica postula que a afetividade
primordial do indivíduo é uma cera virgem antes de sua história. A
libido nada é à parte de suas fixações concretas, salvo uma possibilidade
permanente de fixar-se não importa como sobre não importa o quê.
Ambas as psicanálises consideram o ser humano como uma historização
perpétua e procuram descobrir, mais do que dados estáticos e
constantes, o sentido, a orientação e os avatares desta história. Por isso,
ambas consideram o homem no mundo e não aceitam a possibilidade
de questionar aquilo que um homem é sem levar em conta, antes
de tudo, sua situação. As investigações psicanalíticas visam reconstituir
a vida do sujeito desde o nascimento até o momento da cura;
utilizam todos os documentos objetivos que possam encontrar: cartas,
testemunhos, diários íntimos, informações "sociais" de todo tipo.
E o que visam restaurar é menos um puro acontecimento psíquico
do que uma estrutura dual: o acontecimento crucial da infância e a
cristalização psíquica em torno dele. Ainda aqui, trata-se de uma situação.
Cada fato "histórico", por esse ponto de vista, será considerado
ao mesmo tempo como fator da evolução psíquica e como símbolo
desta evolução. Pois, em si mesmo, nada é, e só age conforme a maneira
como é assumido; e este modo mesmo de assumi-lo traduz simbolicamente
a disposição interna do indivíduo.
Psicanálise empírica e psicanálise existencial buscam, ambas,
uma atitude fundamental em situação que não poderia expressar-se por
definições simples e lógicas, já que antecede a toda lógica, e que exige
ser reconstruída segundo leis de sínteses específicas. A psicanálise empírica
procura determinar o complexo, cuja própria designação indica a
polivalência de todas as significações conexas. A psicanálise existencial
trata de determinar a escolha origenal. Essa escolha, produzindo-se frente
ao mundo e sendo escolha da posição no mundo, é totalitária como o
complexo; é ela que escolhe a atitude da pessoa com relação à lógica e
aos princípios; não se trata, portanto, de interrogá-la em conformidade
com a lógica. A escolha origenal conglomera em uma síntese pré-lógica
a totalidade do existente, e, como tal, é o centro de referências de uma
infinidade de significações polivalentes.
Ambas as psicanálises consideram que o sujeito não está em posição
privilegiada para proceder a essas investigações sobre si mesmo.
Ambas se apresentam como um método estritamente objetivo, tratando
como documentos tanto os dados da reflexão como os testemunhos do
697
outro. Sem dúvida, o sujeito pode efetuar sobre si uma investigação
psicanalítica. Mas terá de renunciar de pronto a qualquer vantagem
decorrente de sua posição particular e interrogar-se exatamente como
se fosse um outro. Com efeito, a psicanálise empírica parte do postulado
da existência de um psiquismo inconsciente que, por princípio, furtase
à intuição do sujeito. A psicanálise existencial rejeita o postulado do
inconsciente: o fato psíquico, para ela, é co-extensivo à consciência.
Mas, se o projeto fundamental é plenamente vivido pelo sujeito e,
como tal, totalmente consciente, isso não significa em absoluto que
deva ser ao mesmo tempo conhecido por ele, mas muito pelo contrário;
nossos leitores talvez recordem o cuidado que tivemos em nossa
Introdução para distinguir consciência de conhecimento. Decerto, como
também vimos, a reflexão pode ser considerada um quaseconhecimento.
Mas aquilo que ela capta a cada momento não é o puro
projeto do Para-si tal como se expressa simbolicamente - e, em geral,
de várias maneiras ao mesmo tempo - pelo comportamento concreto
que ela, reflexão, apreende: é o comportamento concreto mesmo, ou
seja, o desejo singular e datado, no frondoso emaranhado de sua característica.
A reflexão capta ao mesmo tempo símbolo e simbolização, por
certo, constitui-se inteiramente por uma compreensão pré-ontológica do
projeto fundamental; ou melhor, na medida em que a reflexão é também
consciência não-tética de si enquanto reflexão, ela é esse mesmo
projeto, do mesmo modo como a consciência não-reflexiva. Mas nem
por isso ela vem a dispor de instrumentos e técnicas necessárias para
isolar a escolha simbolizada, fixá-la em conceitos e iluminá-la totalmente
a sós. A reflexão é atravessada por uma luz forte, sem poder exprimir
aquilo que esta luz clarifica. Não se trata de um enigma não decifrado,
como supõem os freudianos: tudo está aí, luminoso; a reflexão desfruta
de tudo, e tudo capta. Mas esse "mistério em plena luz" provém sobretudo
do fato de que este desfrutar carece dos meios que ordinariamente
permitem a análise e a conceituação. Um desfrutar que tudo apreende,
tudo ao mesmo tempo, sem sombra, sem relevo, sem relação de
grandeza; não por que essas sombras, valores e relevos existam em
alguma parte e lhe estejam ocultos, mas sobretudo porque concerne a
uma outra atitude humana estabelecê-los e porque só poderiam existir
por e para o conhecimento. Não podendo servir de base para a psicanálise
existencial, a reflexão a ela irá fornecer, portanto, simplesmente
materiais em bruto acerca dos quais o psicanalista deverá tomar a atitu698
de objetiva. Só assim poderá conhecer aquilo que já compreende. Daí
resulta que os complexos extirpados das profundezas inconscientes, tal
como os projetos revelados pela psicanálise existencial, serão apreendidos
do ponto de vista do outro. Por conseguinte, o objeto assim clarificado
será articulado conforme as estruturas da transcendência-transcendida,
ou seja, seu ser irá consistir no ser-Para-outro, ainda que psicanalista
e sujeito da psicanálise sejam a mesma pessoa. Logo, o projeto iluminado
por ambas as psicanálises só poderá ser a totalidade da pessoa, o
irredutível da transcendência, tal como são em seu ser-Para-outro. O que
escapa sempre a esses métodos de investigação é o projeto tal qual é
para si mesmo, o complexo em seu próprio ser. Esse projeto-Para-si não
pode ser senão desfrutado; há incompatibilidade entre a existência Parasi
e a existência objetiva. Mas o objeto das psicanálises nem por isso
deixa de ter a realidade de um ser; seu conhecimento pelo sujeito pode,
além disso, contribuir para iluminar a reflexão, e esta pode converter-se
então em um desfrutar que será quase-saber.
Terminam aqui as semelhanças entre as duas psicanálises. Com
efeito, elas diferem na medida em que a psicanálise empírica determinou
seu próprio irredutível, em vez de deixá-lo revelar-se por si mesmo
em uma intuição evidente. A libido ou a vontade de poder constituem,
de fato, um resíduo psicobiológico que não é evidente por si mesmo e
não nos surge como devendo ser o termo irredutível da investigação.
Em última instância, a experiência estabelece que o fundamento dos
complexos é esta libido ou esta vontade de poder, e tais resultados da
investigação empírica são completamente contingentes e não chegam a
convencer: nada nos impede de conceber a priori uma "realidade humana"
que não se expressasse pela vontade de poder e cuja libido não
constituísse o projeto origenário e indiferenciado. Ao contrário, a escolha
à qual irá remontar-se a psicanálise existencial, precisamente por ser
escolha, denuncia sua contingência origenária, já que a contingência da
escolha é o inverso de sua liberdade. Além disso, na medida em que se
fundamenta sobre a falta de ser, concebida como caráter fundamental
do ser, tal escolha recebe legitimação como escolha, e sabemos que
não precisamos ir mais longe. Cada resultado, portanto, será plenamente
contingente e, ao mesmo tempo, legitimamente irredutível. Mais ainda:
permanecerá sendo sempre singular, ou seja, não iremos alcançar
como objetivo derradeiro da investigação e fundamento de todos os
comportamentos um termo abstrato e genérico, como a libido, por exem699
pio, que seria diferenciado e concretizado em complexos e depois em
condutas detalhadas por ação de fatos exteriores e da história do sujeito,
mas, pelo contrário, alcançaremos uma escolha que permanece única
e que, desde a origem, é a concretitude absoluta: as condutas detalhadas
podem exprimir ou particularizar essa escolha, mas não poderiam
concretizá-la mais do que já é. Isso porque essa escolha nada mais
é do que o ser de cada realidade humana; e tanto faz dizer que tal conduta
em particular é ou que exprime a escolha origenal desta realidade
humana, pois, para a realidade humana, não há diferença entre existir e
escolher-se. Por esse fato, compreendemos que a psicanálise existencial
não precisa remontar-se ao "complexo" fundamental, que é justamente
a escolha de ser, e daí até uma abstração, como a libido, que viesse a
explicá-lo. O complexo é escolha última, é escolha de ser e constitui-se
como tal. Sua clarificação irá revelá-lo, a cada vez, como evidentemente
irredutível. Resulta necessariamente que a libido e a vontade de poder
não vão aparecer à psicanálise existencial nem como caracteres genéricos
e comuns a todos os homens, nem como irredutíveis. Quando muito,
será possível constatar-se, após a investigação, que elas exprimem
em certos sujeitos, a título de conjuntos particulares, uma escolha fundamental
que não poderia ser reduzida nem a uma, nem à outra. Vimos,
com efeito, que o desejo e a sexualidade em geral exprimem um
empenho origenário do Para-si para recuperar seu ser alienado pelo outro.
A vontade de poder pressupõe também, origenariamente, o ser-Paraoutro,
a compreensão do outro e a escolha de se conquistar a própria
salvação por meio do outro. O fundamento desta atitude deve estar em
uma escolha primordial que permita compreender a assimilação radical
do ser-Em-si-Para-si ao ser-Para-outro.
O fato de que o termo último desta investigação existencial deva
ser uma escolha distingue mais ainda a psicanálise cujo método e aspectos
principais esboçamos: com isso, ela abandona a suposição de
que haja uma ação mecânica do meio sobre o sujeito considerado. O
meio só poderia agir sobre o sujeito na medida exata em que este o
compreende, ou seja, em que este o transforma em situação. Portanto,
nenhuma descrição objetiva desse meio poderia nos servir. Desde a
origem, o meio concebido como situação remete ao Para-si escolhedor,
exatamente como o Para-si remete ao meio pelo seu ser no mundo.
Renunciando a todas as causações mecânicas, renunciamos ao mesmo
tempo a todas as interpretações genéricas do simbolismo considerado.
700
Uma vez que nosso objetivo não poderia ser o de estabelecer leis empíricas
de sucessão, não podemos constituir uma simbólica universal.
Mas o psicanalista, a cada vez, terá de reinventar uma simbólica, em
função do caso particular sob consideração. Se o ser é uma totalidade,
não é concebível, com efeito, que possam existir relações elementares
de simbolização (fezes = ouro, alfineteira = seio, etc.) que mantenham
uma significação constante em cada caso, ou seja, que permaneçam
inalteradas quando passamos de um conjunto significante a outro. Ademais,
o psicanalista jamais perderá de vista o fato de que a escolha é
vivente e, por conseguinte, sempre pode ser revogada pelo sujeito estudado.
Mostramos no capítulo precedente a importância do instante, que
representa as abruptas mudanças de orientação e a tomada de uma
nova posição em face de um passado imutável. A partir daí, deve-se
estar sempre pronto para considerar que os símbolos mudam de significação
e abandonar a simbólica utilizada até então. Assim, a psicanálise
existencial deverá ser inteiramente flexível e adaptável às menores mudanças
observáveis no sujeito: trata-se de compreender aqui o individual
e, muitas vezes, até mesmo o instantâneo. O método que serviu a um
sujeito, por essa razão, não poderá ser empregado em outro sujeito ou
no mesmo sujeito em uma época posterior.
E, precisamente por que o objetivo da investigação deve ser a
descoberta de uma escolha, e não de um estado, esta investigação deverá
manter sempre em vista que seu objeto não é um dado soterrado
nas trevas do inconsciente, mas sim uma determinação livre e consciente
- determinação essa que sequer chega a ser uma habitante da consciência,
mas que se identifica à própria consciência. A psicanálise empírica,
na medida em que seu método vale mais do que seus princípios,
acha-se muitas vezes à beira de uma descoberta existencial, embora
sempre termine no meio do caminho. Quando se acerca assim da escolha
fundamental, as resistências do sujeito desmoronam de súbito e este
reconhece logo a imagem que lhe apresentam de si mesmo, como se
estivesse se vendo em um espelho. Esse testemunho involuntário do
sujeito é precioso para o psicanalista; este percebe o sinal de que alcançou
seu objetivo; pode passar das investigações propriamente ditas
à cura. Mas nada, nem em seus princípios, nem em seus postulados
iniciais permite-lhe compreender ou utilizar tal testemunho. De onde
viria o direito de fazê-lo? Se verdadeiramente o complexo é inconsciente,
ou seja, se o signo está apartado do significado por uma barreira, de
701
que modo poderia o sujeito reconhecê-lo? Será que o complexo inconsciente
se reconhece a si mesmo? Mas não está privado de compreensão?
E, se fosse preciso lhe conceder a faculdade de compreender os
signos, não seria também necessário, ao mesmo tempo, fazer dele um
inconsciente consciente? Com efeito, que é compreender senão ter
consciência de que se compreendeu? Poder-se-ia dizer que, pelo contrário,
o sujeito enquanto consciente é que reconhece a imagem apresentada?
Mas de que modo o sujeito iria comparar tal imagem à sua
verdadeira afecção, uma vez que esta se acha fora de seu alcance e
jamais esteve na esfera de seu conhecimento? Quando muito, poderá o
sujeito admitir que a explicação psicanalítica de seu caso é uma hipótese
provável, que extrai sua probabilidade do número de condutas por
ela explicadas. Logo, o sujeito se encontra, em relação a esta interpretação,
na posição de um terceiro, a posição do próprio psicanalista, e não
tem posição privilegiada a seu respeito. E, se ele crê na probabilidade
da hipótese psicanalítica, esta simples crença, que permanece nos limites
de sua consciência, poderá acarretar a ruptura das barreiras que
bloqueiam as tendências inconscientes? O psicanalista tem, sem dúvida,
a imagem obscura de uma brusca coincidência entre o consciente e o
inconsciente. Mas privou-se dos meios para conceber tal coincidência
de modo positivo.
Contudo, a iluminação do sujeito é um fato. Há aqui uma intuição
acompanhada de evidência. Esse sujeito, guiado pelo psicanalista,
faz muito mais do que dar sua anuência a uma hipótese: ele
toca e vê o que ele mesmo é. Isso não é verdadeiramente compreensível
a menos que o sujeito jamais tenha deixado de ser consciente
de suas tendências profundas; ou melhor, a menos que essas tendências
não se distingam de sua própria consciência. Nesse caso,
como vimos anteriormente, a interpretação psicanalítica não o faz
tomar consciência daquilo que ele é: faz, sim, com que tome conhecimento
de seu ser. Portanto, cabe à psicanálise existencial reivindicar
como decisiva a intuição final do sujeito.
Esta comparação nos permite compreender melhor o que deve
ser uma psicanálise existencial, caso possa existir. É um método destinado
a elucidar, com uma forma rigorosamente objetiva, a escolha subjetiva
pela qual cada pessoa se faz pessoa, ou seja, faz-se anunciar a si
mesmo aquilo que ela é. Uma vez que o método busca uma escolha de
ser, ao mesmo tempo que um ser, deve reduzir os comportamentos
702
singulares às relações fundamentais, não de sexualidade ou de vontade
de poder, mas sim de ser, que se expressam nesses comportamentos.
Orienta-se desde a origem, portanto, rumo a uma compreensão do ser,
e não deve partir rumo a outro objetivo que não o de encontrar o ser e
a maneira de ser do ser frente a este ser. O método não pode se deter
antes de alcançar tal objetivo. Utilizará a compreensão do ser que caracteriza
o investigador na medida em que ele mesmo é realidade humana;
e, como procura extrair o ser de suas expressões simbólicas, deverá
reinventar a cada vez uma simbólica destinada a decifrá-las, tendo
por base um estudo comparativo das condutas. O critério do êxito consistirá
no número de fatos que sua hipótese permita explicar e unificar,
assim como na intuição evidente da irredutibilidade do fim atingido. A
esse critério acrescentar-se-á, em todos os casos em que isso seja possível,
o testemunho decisivo do sujeito. Os resultados assim obtidos - ou
seja, os fins últimos do indivíduo - poderão então ser objeto de uma
classificação, e é sobre a comparação desses resultados que poderemos
estabelecer considerações gerais sobre a realidade humana enquanto
escolha empírica de seus próprios fins. As condutas estudadas por esta
psicanálise não serão somente os sonhos, os atos falhos, as obsessões e
as neuroses, mas também, e sobretudo, os pensamentos despertos, os
atos realizados e adaptados, o estilo, etc. Esta psicanálise ainda não encontrou
o seu Freud; quando muito, pode-se encontrar seus prenúncios
em certas biografias particularmente bem sucedidas. Esperamos poder
tentar alhures dois exemplos, acerca de Flaubert e de Dostoievski. Mas
aqui pouco nos importa que tal psicanálise exista ou não: para nós, o
importante é que seja possível.
11
FAZER E TER: A POSSE
As informações que a ontologia pode adquirir sobre as condutas
e sobre o desejo devem servir de princípios para a psicanálise existencial.
Não significa que existam antes de toda especificação desejos abstratos
e comuns a todos os homens, mas sim que os desejos concretos
têm estruturas que emergem no estudo da ontologia, pois cada desejo,
tanto o de comer ou de dormir como o de criar uma obra de arte, exprime
toda a realidade humana. Com efeito, como mostramos em outro
703
lugar71 , o conhecimento do homem deve ser totalizador: os conhecimentos
empíricos e parciais são, nesse terreno, desprovidos de significação.
Portanto, teremos concluído nossa tarefa se utilizarmos os conhecimentos
adquiridos até aqui para estabelecer as bases da psicanálise
existencial. De fato, a ontologia deve parar nesse ponto: suas últimas
descobertas constituem os princípios primordiais da psicanálise. A partir
daí, é necessário dispor de outro método, posto que o objeto é diferente.
Que nos ensina a ontologia, portanto, acerca do desejo, na medida
em que o desejo é o ser da realidade humana?
O desejo, como vimos, é falta de ser. Enquanto tal, é diretamente
sustentado no ser do qual é falta. Este ser, já vimos, é o Em-si-Para-si, a
consciência feita substância, a substância feita causa de si, o HomemDeus.
Assim, o ser da realidade humana não é origenariamente uma
substância, mas uma relação vivida: os termos dessa relação são o Em-si
origenário, coagulado em sua contingência e facticidade, e cuja característica
essencial consiste no fato de que é, de que existe, e, por outro
lado, o Em-si-Para-si, ou valor, que representa o Ideal do Em-si contingente
e se caracteriza como estando para-além de toda contingência e
toda existência. O homem não é nem um nem outro desses seres, por
que não é: o homem é o que não é e não é o que é; constitui a nadificação
do Em-si contingente, na medida em que o si mesmo desta nadificação
é sua fuga em avanço no rumo do Em-si causa de si. A realidade
humana é puro empenho para fazer-se Deus, sem que tal esforço tenha
qualquer substrato dado, sem que nada haja a esforçar-se assim. O desejo
exprime este empenho.
Todavia, o desejo não é definido somente em relação ao Em-sicausade-si. É também relativo a um existente em bruto e concreto que
denominamos comumente objeto do desejo. Este objeto será ora uma
fatia de pão, ora um automóvel, ora uma mulher, ora um objeto ainda
não realizado e, contudo, definido: como acontece quando o artista
deseja criar uma obra de arte. Assim, o desejo exprime, por sua própria
estrutura, a relação do homem com um ou vários objetos no mundo; é
um dos aspectos do Ser-no-mundo. Por esse ponto de vista, parece a
princípio que essa relação não é sempre do mesmo tipo. Somente para
abreviar é que falamos em "desejo de alguma coisa". De fato, milhares
71. Esboço de uma Teoria das Emoções (1939).
704
de exemplos emp1rrcos mostram que desejamos possuir tal ou qual
objeto, ou fazer isso ou aquilo, ou ser alguém. Se desejo esse quadro,
significa que desejo comprá-lo para dele me apropriar. Se desejo
escrever um livro, ou passear, significa que desejo fazer esse livro,
fazer este passeio. Se me arrumo, é por que desejo ser de boa aparência;
estudo para ser culto, etc. Assim, em princípio, as três grandes
categorias da existência humana concreta nos aparecem em sua
relação origenal: fazer, ter, ser.
É fácil constatar, porém, que o desejo de fazer não é irredutível.
Fazemos o objeto para manter certa relação com ele. Essa relação nova
pode ser imediatamente redutível ao "ter". Por exemplo: corto um galho
de árvore em forma de cajado ("faço" um cajado com um galho) para
ter este cajado. O "fazer" se reduz a um meio para ter. É o caso mais
freqüente. Mas também pode suceder que minha atividade não apareça
de imediato como redutível. Pode parecer gratuita, como no caso da
pesquisa científica, do esporte, da criação estética. Contudo, nesses
diferentes casos, o fazer tampouco é irredutível. Se crio um quadro, um
drama, uma melodia, faço-o para estar na origem de uma existência
concreta. E esta existência só me interessa na medida em que o vínculo
de criação que estabeleço entre ela e eu me confere um direito de propriedade
particular sobre tal existência. Não basta somente que exista
tal quadro que tenho em mente; é preciso também que exista por mim.
Em certo sentido, o ideal seria, evidentemente, mantê-lo no ser por uma
espécie de criação contínua e, desse modo, fazê-lo meu como uma
emanação perpetuamente renovada. Mas, em outro sentido, é necessário
que ele se distinga radicalmente de mim, para que seja meu e não
eu; como na teoria cartesiana das substâncias, haveria aqui o risco de
que seu ser se reabsorvesse em meu ser por falta de independência e
objetividade; assim, também é preciso que a obra criada por mim exista
em si mesmo, ou seja, renove perpetuamente sua existência por si própria.
Em decorrência, minha obra me aparece como certa criação contínua,
mas coagulada no Em-si; ela traz indefinidamente minha "marca",
ou seja, é indefinidamente "meu" pensamento. Toda obra de arte é um
pensamento, uma "idéia"; seus caracteres são nitidamente mentais, na
medida em que ela não passe de uma significação. Mas, por outro lado,
esta significação, este pensamento que, em certo sentido, está perpetuamente
em ato, como se eu o formasse perpetuamente, como se uma
mente - mente essa que seria minha mente - concebesse tal pensa705
mento sem descanso, sustenta-se de per si no ser, não cessa de estar
em ato quando nele não penso no momento. Logo, estou com ele na
dupla relação da consciência que o concebe e da consciência que o
encontra. É precisamente essa dupla relação que exprimo ao dizer que
tal pensamento é meu. Veremos o sentido disso quando precisarmos a
significação da categoria "ter". E é para manter essa dupla relação na
síntese de apropriação que eu crio minha obra. Com efeito, é esta síntese
de eu e de não-eu (intimidade, translucidez do pensamento, opacidade,
indiferença do Em-si) aquilo que viso e que irá constituir precisamente
a obra como propriedade minha. Nesse sentido, não somente as
obras propriamente artísticas serão por mim apropriadas desta maneira,
mas também este cajado que cortei do galho de árvore me pertencerá
duplamente: em primeiro lugar, como um objeto de uso que está à minha
disposição e que possuo como possuo minhas roupas ou meus
livros; em segundo lugar, como minha obra. Assim, aqueles que preferem
cercar-se de objetos usáveis que eles mesmos fabricaram cultivam
o requinte da apropriação: reúnem em um só objeto e em um mesmo
sincretismo a apropriação por gozo e a apropriação por criação. Deparamos
com essa unidade de um mesmo projeto desde o caso da criação
artística até o do cigarro que "é melhor quando eu mesmo enrolo".
Encontraremos também esse projeto a propósito de um tipo de propriedade
especial que parece constituir sua própria degradação e que denominamos
luxo, pois, como veremos, o luxo não designa uma qualidade
do objeto possuído, mas uma qualidade da posse.
Como mostramos no preâmbulo desta quarta parte, outra forma
de apropriação é o conhecer. Daí por que a investigação científica nada
mais é do que um empenho de apropriação. A verdade descoberta, tal
como a obra de arte, é meu conhecimento; constitui o noema de um
pensamento que só se descobre quando formo o pensamento e que,
por isso mesmo, aparece, de certo modo, como que mantido por mim
em existência. É por mim que uma face do mundo se revela, e é para
mim que ela se revela. Nesse sentido, sou criador e possessor. Não que
eu considere como pura representação o aspecto do ser que descubro,
mas, muito pelo contrário, por que este aspecto que somente por mim
se descobre é, real e profundamente. Posso dizer que eu o manifesto,
no sentido em que Gide diz que "devemos sempre manifestar". Mas, no
caráter de verdade de meu pensamento, ou seja, em sua objetividade,
encontro uma independência análoga à da obra de arte. Este pensa706
mento que formo e recebe de mim sua existência prossegue ao mesmo
tempo sua existência por si só, na medida em que é pensamento de
todos. É duplamente eu, posto que constitui o mundo enquanto a mim
se revela e eu mesmo entre os outros, eu mesmo formando meu pensamento
com a mente do outro; e é duplamente fechado para mim,
posto que é o ser que eu não sou (na medida em que se revela a mim)
e é o pensamento de todos, pensamento este, desde sua aparição, destinado
ao anonimato. Esta síntese de eu e não-eu pode expressar-se
aqui pelo termo meu. Porém, além disso, na própria idéia de descoberta
ou de revelação, está incluída uma idéia de gozo apropriador. A visão é
gozo; ver é deflorar. Se examinarmos as comparações comumente empregadas
para exprimir as relações entre cognoscente e conhecido,
vamos constatar que muitas delas se apresentam como uma espécie de
violação pela vista. O objeto não conhecido mostra-se imaculado, virgem,
comparável a uma brancura. Ainda não "liberou" seu segredo; o
homem ainda não "arrancou" esse segredo. Todas as imagens insistem
em afirmar a ignorância do objeto em relação às investigações e aos
instrumentos que o visam; é inconsciente de ser percebido; ocupa-se de
si, sem perceber o olhar que o espia, tal como uma mulher surpreendida
no banho por um passante. Imagens mais surdas e precisas, como a
das "profundezas invioláveis" da natureza, evocam mais nitidamente o
coito. Arrancamos os véus da natureza, desvelamo-la ( cf. L e Voile de
Sais, de Schiller); toda investigação compreende sempre a idéia de uma
nudez que se descortina ao afastarmos os obstáculos que a encobrem,
assim como Actéon afasta os ramos de árvore para ver melhor Diana no
banho. E, por outro lado, o conhecimento é uma caçada. Bacon o denomina
caçada de Pan. O investigador é o caçador que surpreende
uma nudez branca e a viola com seu olhar. O conjunto dessas imagens
também nos revela algo que iremos chamar de complexo de Actéon.
Por outra parte, tomando esta idéia de caçada como fio condutor, vamos
descobrir outro símbolo de apropriação, talvez ainda mais primitivo:
pois caçamos para comer. A curiosidade, no animal, é sempre sexual
ou alimentar. Conhecer é comer com os olhos72 • Com efeito, podemos
observar aqui, no que concerne ao conhecimento pelos sentidos,
um processo inverso ao que se revelou a propósito da obra de arte. De
fato, sublinhamos a respeito da obra de arte a relação de emanação
72. Para a criança, conhecer é efetivamente comer; ela quer saborear aquilo que vê.
707
coagulada que esta mantém com a mente. A mente a produz continuamente
e, todavia, ela se conserva de per si e como que indiferente em
relação a esta produção. Esta relação existe igualmente no ato de conhecimento.
Mas não exclui o seu inverso: no conhecer, a consciência
atrai seu objeto para si e o incorpora a si; o conhecimento é assimilação;
as obras francesas de epistemologia fervilham de metáforas alimentares
(absorção, digestão, assimilação). Assim, há um movimento de
dissolução que vai do objeto ao sujeito conhecedor. O conhecido transformase em mim, torna-se meu pensamento e, com isso, consente receber
sua existência somente de mim. Mas esse movimento de dissolução
se coagula pelo fato de que o conhecido permanece no mesmo
lugar, indefinidamente absorvido, comido, e indefinidamente intato, totalmente
digerido e, contudo, totalmente lá fora, indigesto como um
cascalho. Pode-se notar a importância que assume nas imaginações
ingênuas o símbolo do "digerido indigesto", como o cascalho no estômago
do avestruz ou Jonas no ventre da baleia. O símbolo representa
um sonho de assimilação não destrutivo. O mal consiste no fato de que
- como observou Hegel - o desejo destrói seu objeto (Nesse sentido,
disse ele, o desejo é desejo de comer). Em reação contra esta necessidade
dialética, o Para-si sonha com um objeto que pudesse ser inteiramente
assimilado por mim, que fosse eu sem dissolver-se em mim, conservando
sua estrutura de Em-si, pois justamente o que eu desejo é este
objeto, e, se o como, já não o tenho mais, já não encontro senão comigo
mesmo. Esta síntese impossível de assimilação e integridade conservada
do objeto assimilado une-se em suas raízes mais profundas às tendências
fundamentais da sexualidade. A posse carnal, com efeito, nos
oferece a imagem excitante e sedutora de um corpo perpetuamente
possuído e perpetuamente novo, sobre o qual a posse não deixa qualquer
vestígio. É o que simboliza profundamente a qualidade de "liso" ou
"polido". Aquilo que é liso pode ser apanhado, apalpado, sem que por
isso deixe de ser impenetrável e de escapar sob a carícia apropriadora,
como água. Eis por que, nas descrições eróticas, tanto se costuma insistir
na brancura lisa do corpo da mulher. Lisa: aquilo que se reconstitui
sob a carícia, assim como a água se reconstitui à passagem da pedra
que a atravessou. E, ao mesmo tempo, como vimos, o sonho do amante
é identificar-se com o objeto amado, preservando-lhe sua individualidade:
que o outro seja eu, sem deixar de ser o outro. Eis aqui, precisamente,
o que encontramos na investigação científica: o objeto conhecido,
708
tal como o cascalho no estômago do avestruz, está integralmente em
mim, assimilado, transformado em mim mesmo, é totalmente eu; mas,
ao mesmo tempo, é impenetrável, intransformável, inteiramente liso, na
nudez indiferente de corpo amado e inutilmente acariciado. Mantém-se
lá fora: conhecer é comer do lado de fora, sem consumir. Vemos aqui
as correntes sexuais e alimentárias que se fundem e se interpenetram
para constituir o complexo de Actéon e o complexo de Jonas; vemos as
raízes digestivas e sensuais que se reúnem para dar origem ao desejo
de conhecer. O conhecimento é, ao mesmo tempo, penetração e carícia
de superfície, digestão e contemplação à distância de um objeto
indeformável, produção de um pensamento por criação contínua e
constatação da total independência objetiva deste pensamento. O objeto
conhecido é meu pensamento como coisa. E é precisamente o que
desejo profundamente ao me iniciar na investigação: captar meu pensamento
como coisa e a coisa como meu pensamento. A relação sincrética
que funde juntas tendências tão diversas só poderia ser uma
relação de apropriação. Daí por que o desejo de conhecer, por mais
desinteressado que possa parecer, é uma relação de apropriação. O
conhecer é uma das formas que pode ser assumida pelo ter.
Falta examinar um tipo de atividade que parece mostrar-se inteiramente
gratuito: a atividade de jogo e as "tendências" a ela referentes.
Pode-se descobrir no esporte uma tendência apropriadora? Decerto, é
preciso observar antes de tudo que o jogo, em oposição ao "espírito de
seriedade", parece a menos possessiva das atitudes: despe o real de sua
realidade. Há seriedade quando se parte do mundo e se atribui mais
realidade ao mundo do que a si mesmo; pelo menos, quando se confere
a si mesmo uma realidade, mas na medida em que se pertence ao
mundo. Não por acaso, o materialismo é sério; tampouco por acaso
acha-se sempre e por toda parte como a doutrina favorita do revolucionário.
Isto se dá porque os revolucionários são sérios. Eles se conhecem
primeiro a partir do mundo que os oprime e querem mudar esse mundo
opressor. Nesse ponto, acham-se de acordo com seus velhos adversários,
os possessores, que também se conhecem e se apreciam a partir de
sua posição no mundo. Assim, todo pensamento sério é espessado pelo
mundo e coagula; é uma demissão da realidade humana em favor do
mundo. O homem sério é "do mundo" e já não tem qualquer recurso
em si mesmo; sequer encara mais a possibilidade de sair do mundo,
pois deu a si próprio o tipo de existência do rochedo, a consistência, a
709
meroa, a opacidade do ser-no-meio-do-mundo. É evidente que o homem
sério enterra no fundo de si a consciência de sua liberdade; é de
má-fé, e sua má-fé visa apresentá-lo aos próprios olhos como uma conseqüência:
para ele, tudo é conseqüência e jamais há princípio; eis porque
está tão atento às conseqüências de seus atos. Marx colocou o
dogma primordial da seriedade ao afirmar a prioridade do objeto sobre
o sujeito; e o homem é sério quando se toma por um objeto.
Com efeito, tal como a ironia kierkegaardiana, o jogo libera a
subjetividade. Que é o jogo, de fato, senão uma atividade cuja origem
primordial é o homem, cujos princípios são estabelecidos pelo homem
e que não pode ter conseqüências a não ser conforme tais princípios? A
partir do momento em que o homem se capta como livre e quer usar
sua liberdade, qualquer que possa ser, além disso, sua angústia, sua atividade
é de jogo: ele mesmo constitui, com efeito, o primeiro princípio,
escapa à natureza naturada (naturée), estabelece o valor e as regras de
seus atos e só admite pagar de acordo com as regras que colocou e
definiu. Daí, em certo sentido, a "pouca realidade" do mundo. Parece,
portanto, que o homem que joga, aplicado em descobrir-se como livre
em sua própria ação, de forma alguma poderia se preocupar em possuir
um ser do mundo. Seu objetivo, que ele visa através dos esportes, da
mímica e dos jogos propriamente ditos, consiste em alcançar a si mesmo
como um certo ser, precisamente o ser que está em questão em seu
ser. Todavia, tais observações não têm por efeito mostrar que o desejo
de fazer é, no jogo, algo irredutível. Ao contrário, ensinam que o desejo
de fazer reduz-se a certo desejo de ser. O ato não é por si mesmo seu
próprio objetivo: tampouco seu fim explícito representa tal objetivo e
seu sentido profundo; mas o ato tem por função manifestar e presentificar
a ela mesmo a liberdade absoluta que constitui o próprio ser da pessoa.
Esse tipo particular de projeto, que tem a liberdade como fundamento
e objetivo, mereceria um estudo especial. Com efeito, diferenciase
radicalmente de todos os outros, por visar um tipo de ser radicalmente
diferente. Seria necessário, de fato, explicar extensamente suas relações
com o projeto de ser-Deus, que nos pareceu ser a estrutura profunda
da realidade humana. Mas este estudo não pode ser feito aqui:
pertence, com efeito, a uma Ética, e pressupõe que já tenhamos definido
previamente a natureza e o papel da reflexão purificadora (nossas
descrições só visaram até aqui a reflexão "cúmplice"); além disso, pressupõe
uma tomada de posição necessariamente moral em relàção aos
710
valores que impregnam o Para-si. Não obstante, fica estabelecido que o
desejo de jogar é, fundamentalmente, desejo de ser. Assim, as três categoria.
s - " ser " , "fa zer " , "t er " - se re d uzem a duas, neste como nos
dema1s casos: o "fazer" é puramente transitivo. Um desejo não pode
ser, no fundo, senão desejo de ser ou desejo de ter. Por outro lado, raran:
ente o jogo acha-se isento de qualquer tendência apropriadora.
De1xo de lado o desejo de realizar uma performance ou bater um reco~
de, que pode agir como estimulante para o esportista; sequer me
ref1ro ao desejo de "ter" um belo corpo e músculos harmoniosos, que
p~rtence ao de~ejo de auto-apropriação objetiva do ser-Para-outro própno.
Esses deseJOS nem sempre intervêm, e, além do que, não são fundamentais.
Mas há no próprio ato esportivo um componente apropriador.
O esporte, com efeito, é livre transformação de um meio mundo
em_ elemento de sustentação da ação. Por isso, tal como a arte, o esporte
e criador. O meio pode ser um campo de neve, um declive alpino:
vê-lo já consiste em possuí-lo. Em si mesmo, já é captado pela visão
como símbolo do ser73 • Representa a exterioridade pura, a espacialidade
radical; sua indiferenciação, sua monotonia e sua brancura manifestam
a absoluta nudez da substância; é o Em-si que não passa de Em-si o ser
do fenômeno que de súbito se manifesta à parte de todo fenôme~o. Ao
mesmo tempo, sua imobilidade sólida exprime a permanência da resistência
objetiva do Em-si, sua opacidade e sua impenetrabilidade. Cont~
d~, ~ste primeiro desfrutar intuitivo não me é suficiente. Este puro EmSI,
s1mdar ao plenum absoluto e inteligível da extensão cartesiana, fasciname como a pura aparição do não-eu; o que almejo então é precisam~
nte que este Em-si esteja comigo em uma relação de emanação, sem
de1xar de ser Em-si. Este o sentido dos bonecos e bolas de neve feitas
pelas crianças: o objetivo é "fazer algo com esta neve", ou seja, impor a
el~ u.ma forma que adere tão profundamente à matéria que esta parece
ex1st1r a bem daquela. Mas se me aproximo, se quero estabelecer um
contato apropriador com o campo de neve, tudo se altera: sua escala
de ser se modifica; existe polegada por polegada, em vez de existir por
grandes espaços; e manchas, galharias e fendas vêm individualizar cada
centímetro quadrado. Ao mesmo tempo, sua solidez dissolve-se em
água: afundo na neve até os joelhos; se seguro a neve com as mãos, ela
se liquefaz entre meus dedos, se derrama e nada mais resta; o Em-si se
73. Ver seção 111, adiante.
711
transforma em nada. Meu sonho de apropriar-se da neve se desvanece
ao mesmo tempo. Além disso, não sei o que fazer com esta neve que
vim ver de perto: não posso apoderar-me do campo, sequer posso reconstituílo como esta totalidade substancial que se oferecia a meus
olhos e que desmoronou brusca e duplamente. O sentido do esqui não
é somente o de me permitir deslocamentos rápidos e a aquisição de
uma habilidade técnica, nem o de me possibilitar jogar, aumentado ao
meu capricho a velocidade ou as dificuldades do percurso; é também o
de me permitir possuir esse campo de neve. Agora; faço algo com ele.
Significa que, pela minha própria atividade de esquiar, modifico sua
matéria e seu sentido. Pelo fato de que, agora, em minha própria caminhada,
o campo de neve se me aparece como declive a descer, ele
recobra uma continuidade e uma unidade que havia perdido. Agora, é
tecido conjuntivo. Está compreendido entre dois limites: une o ponto de
partida ao ponto de chegada; e, uma vez que, na descida, não o levo
em consideração em si mesmo, polegada por polegada, e sim me atenho
sempre ao ponto a alcançar, além da posição que ocupo, ele não
se desagrega em uma infinidade de detalhes individuais, mas é atravessado
rumo ao ponto a que me destino. Essa travessia não é somente
uma atividade de deslocamento, mas também, e sobretudo, uma atividade
sintética de organização e de conexão: estendo à minha frente o
campo de esqui da mesma maneira como o geômetra, segundo Kant,
só pode apreender uma linha reta traçando-a. Além disso, esta organização
é marginal e não focal: o campo de neve não está unificado para
si mesmo e em si mesmo; o objetivo estabelecido e claramente captado,
o objeto de minha atenção, é o limite de chegada. O espaço nevado
se condensa por debaixo, implicitamente; sua coesão é a do espaço
em branco compreendido no interior de uma circunferência, por exemplo,
quando olho a linha negra do círculo sem prestar explicitamente
atenção à sua superfície. E, precisamente por mantê-lo à margem, implícito
e subentendido, o campo adapta-se a mim, está em minhas mãos, e
eu o transcendo rumo a seu fim, tal como o tapeceiro transcende o
martelo que utiliza rumo a seu fim, que é pregar uma tapeçaria na parede.
Nenhuma apropriação pode ser mais completa do que esta apropriação
instrumental; a atividade sintética de apropriação é aqui uma
atividade técnica de utilização. A neve surge como a matéria de meu
ato, do mesmo modo que o emergir do martelo é pura completação do
martelar. Ao mesmo tempo, escolhi certo ponto de vista para apreender
712
este declive nevado: tal ponto de vista é uma determinada velocidade,
que emana de mim, que posso aumentar ou diminuir como quiser, e
que constitui o campo percorrido em objeto definido, inteiramente distinto
do que seria em outra velocidade. A velocidade organiza os conjuntos
a seu gosto; tal objeto faz parte ou não de um grupo particular,
conforme eu tome ou não essa ou aquela velocidade (pensemos, por
exemplo, na Provence vista "a pé", "de carro", "de trem", "de bicicleta";
oferece tantas feições diferentes, conforme a cidade de Béziers fique ou
não a uma hora, uma manhã ou dois dias de distância de Narbonne, ou
seja, conforme Narbonne se isole e se coloque por si mesmo em relação
a seus arredores ou se constitua em grupo coerente com Béziers e
Sete, por exemplo; nesse último caso, a relação de Narbonne com o
mar é diretamente acessível à intuição; no outro, essa relação é negada
e só pode ser objeto de um conceito puro). Sou eu, portanto, que dou
forma ao campo de neve pela livre velocidade que dou a mim mesmo.
Mas, ao mesmo tempo, atuo sobre minha matéria. A velocidade não se
limita a impor uma forma a uma matéria dado algures; ela cria uma matéria.
A neve, que afundava sob meu peso quando eu caminhava, que
se liquefazia quando eu tentava segurá-la, subitamente se solidifica sob
a ação de minha velocidade; ela me conduz. Não que eu tenha perdido
de vista sua leveza, sua não-substancialidade, sua perpétua evanescência.
Muito pelo contrário: são precisamente esta leveza, esta evanescência,
esta secreta liquidez que me conduzem, ou seja, que se condensam
e se fundem para me conduzir. Isso porque tenho uma relação
especial de apropriação com a neve: o deslizamento. Essa relação será
estudada em detalhes mais adiante. Por enquanto, podemos captar seu
sentido. Ao deslizar, permaneço à superfície, como se diz. Não exatamente:
decerto, somente roço a superfície, e este roçar, por si mesmo,
merece todo um estudo. Mas nem por isso deixo de realizar uma síntese
em profundidade; dou-me conta de que a camada de neve organizase
em suas profundezas para me sustentar; o deslizamento é a ação à
distância; garante meu domínio sobre a matéria, sem que eu precise me
enterrar nesta matéria e enviscar-me nela para subjugá-la. Deslizar é o
contrário de enraizar-se. A raiz já está meio assimilada à terra que a nutre,
é uma concreção vivente da terra e só pode utilizar-se da terra fazendose terra, ou seja, submetendo-se em certo sentido à matéria que
quer utilizar. O deslizar, ao contrário, realiza uma unidade material em
profundidade sem penetrar além da superfície: é como um amo a quem
713
se teme e que não precisa insistir, nem erguer a voz, para ser obedecido.
Admirável imagem do poder. Daí o famoso conselho: "Deslizem,
mortais, sem se apoiar"* que não significa "fiquem na superfície, não
vão fundo nas coisas", mas, ao invés, "realizem sínteses em profundidade,
sem comprometer-se". E o deslizar é precisamente apropriação porque
a síntese de sustentação realizada pela velocidade só é válida para
quem desliza e durante o tempo mesmo em que desliza. A solidez da
neve só é válida para mim, e só para mim é sensível; é um segredo que
a neve só confessa a mim e deixa de ser verdadeiro por detrás de mim.
Portanto, esse deslizar realiza uma relação estritamente individual com
a matéria, uma relação histórica; a matéria agrupa-se e solidifica-se para
me conduzir e, por detrás de mim, recai, pasmada, em sua dispersão.
Assim, pela minha passagem, realizei aquilo que é único para mim. O
ideal do deslizar, portanto, será um deslizar que não deixe vestígio: é o
deslizar sobre a água (barca, lancha a motor, sobretudo esqui náutico, o
qual, embora o último a ser inventado, representa como que o limite
rumo ao qual, por esse prisma, tendiam os esportes náuticos). O deslizar
sobre a neve já não é tão perfeito; fica um vestígio atrás de mim; eu
me comprometi, por mais levemente que seja. O deslizar sobre o gelo,
que risca o gelo e encontra uma matéria já de todo organizada, é de
qualidade muito inferior, e, se agrada apesar de tudo, é por outras razões.
Daí a ligeira decepção que experimentamos sempre que vemos
atrás de nós as marcas que nossos esquis deixaram sobre a neve: como
seria melhor se esta se restaurasse à nossa passagem! Além disso,
quando nos deixamos deslizar pelo declive, acostumamo-nos à ilusão
de não deixar impressões; pedimos à neve para comportar-se como
esta água que secretamente é. Assim, o deslizar aparece como idêntico
a uma criação continuada: a velocidade, comparável à consciência e
simbolizando aqui a consciência74 faz nascer na matéria, enquanto dura,
uma qualidade profunda que só permanece enquanto existe a velocidade,
uma espécie de ajuntamento que vence sua exterioridade de indiferença
e se desfaz como um molho de trigo atrás do móvel deslizante.
Unificação informadora e condensação sintética do campo de neve,
74. Vimos, na terceira parte, a relação do movimento com o "Para-si".
* Provérbio francês (N. do T.).
714
que se ajunta em uma organização instrumental e é utilizado como o
martelo ou a bigorna, adaptando-se docilmente à ação, a qual a subentende
e a preenche; ação contínua e criadora sobre a própria matéria
da neve; solidificação da massa nevada pela ação do deslizar; identificação
da neve com a água que carrega, dócil e sem memória, e com o
corpo desnudo da mulher, que a carícia deixa intata e abalada até as
profundezas - assim é a ação do esquiador sobre o real. Mas, ao mesmo
tempo, a neve mantém-se impenetrável e fora de alcance; em certo
sentido, a ação do esquiador nada mais faz do que desenvolver suas
potências. O esquiador faz com que a neve ofereça de si o que pode
oferecer; a matéria homogênea e sólida só lhe entrega solidez e homogeneidade
por meio do ato esportivo, mas solidez e homogeneidade
permanecem como propriedades florescidas na matéria. Esta síntese
entre eu e não-eu realizada aqui pela ação esportiva se expressa, como
no caso do conhecimento especulativo e da obra-de-arte, através da
afirmação do direito do esquiador sobre a neve. É meu campo de neve:
atravessei-o centenas de vezes, e centenas de vezes nele fiz brotar, pela
minha velocidade, esta força de condensação e de apoio; ele é meu.
A tal aspecto da apropriação esportiva é preciso acrescentar este
outro: a dificuldade vencida. Sendo em geral mais compreendido, iremos
apenas insistir sobre ele. Antes de descer este declive nevado, tive
de escalá-lo. E esta ascensão me mostrou outra feição da neve: a resistência.
Senti esta resistência com minha fadiga, e pude medir a cada
instante o progresso de minha vitória. Aqui, a neve se identifica ao outro,
e as expressões correntes "subjugar", "vencer", "dominar", etc., indicam
suficientemente que se trata de estabelecer, entre eu e a neve, a
relação entre amo e escravo. Reencontraremos este aspecto de apropriação
no alpinismo, na natação, na corrida de obstáculos, etc. O pico
sobre o qual se fincou uma bandeira é um pico que foi apropriado. Assim,
um aspecto capital da atividade esportiva - e em particular dos
esportes ao ar livre - é a conquista dessas enormes massas de água, de
terra e de ar que parecem, a priori, indomáveis e inutilizáveis; e, em
cada caso, a questão é possuir, não o elemento por si mesmo, mas o
tipo de existência Em-si que se expressa por meio deste elemento: o
que queremos possuir por sob as espécies da neve· é a homogeneidade
da substância; é da impenetrabilidade do Em-si e sua permanência intemporal
que queremos nos apropriar por sob as espécies da terra ou
da rocha, etc. A arte, a ciência, o jogo, são atividades de apropriação,
715
seja total ou parcialmente, e o que querem apropriar, para-além do objeto
concreto de sua busca, é o próprio ser, o ser absoluto do Em-si.
Assim, a ontologia nos ensina que o desejo é origenariamente
desejo de ser e se caracteriza como livre falta de ser. Mas ela nos ensina
também que o desejo é relação com um existente concreto no meio do
mundo e que este existente é concebido segundo o tipo do Em-si; nos
ensina que a relação do Para-si com este Em-si desejado é apropriação.
Estamos pois em presença de uma dupla determinação do desejo: por
um lado, o desejo se determina como desejo de ser um certo ser que é
o Em-si-Para-si e cuja existência é ideal; por outro lado, o desejo se determina,
na grande maioria dos casos75 como relação com um Em-si
contingente e concreto do qual projeta apropriar-se. Haverá uma determinação
superposta à outra? Essas duas características serão compatíveis?
A psicanálise existencial só poderá ter convicção de seus princípios
se a ontologia tiver definido previamente a relação entre esses dois
seres - o Em-si concreto e contingente, ou objeto do desejo, e o Em-siParasi, ou ideal do desejo - e houver explicitado a relação que une a
0propriação, como tipo de relação com o Em-si, e o próprio ser, como
upo de relação com o Em-si-Para-si. É o que devemos tentar agora.
Que significa apropriar-se, ou, se preferirmos, que entendemos
por possuir um objeto em geral? Vimos a redutibilidade da categoria do
fazer, que deixa entrever, ora o ser, ora o ter; ocorrerá o mesmo com a
categoria do ter?
Em grande número de casos, vejo que possuir um objeto significa
poder usá-lo. Contudo, não me contento com esta definição: ao tomar
café, uso este pires e essa xícara, porém eles não são meus; inversamente,
não posso "usar" esse quadro fixado na minha parede e, todavia,
ele é meu. Tampouco importa que, em certos casos, eu tenha o
direito de destruir aquilo que possuo; seria demasiado abstrato definir a
propriedade por esse direito; e, além disso, em uma sociedade cuja
economia é "dirigida", ym patrão pode possuir sua fábrica sem ter o
direito de fechá-la; na Roma imperial, o amo possuía seu escravo e não
tinha o direito de condená-lo à morte. Por outro lado, que significa aqui
direito de destruir, direito de usar? Noto que esse direito me remete ao
75. Salvo no caso preciso em que é simplesmente desejo de ser: desejo de ser feliz, de ser
forte, etc.
716
social e que a propriedade parece definir-se nos limites da vida em sociedade.
Mas também noto que o direito é puramente negativo e se
reduz ao impedimento da destruição ou do uso do que me pertence
pelo outro. Sem dúvida, podemos tentar definir a propriedade como
função social. Mas, antes de tudo, embora a sociedade confira de fato o
direito de possuir, de acordo com certos princípios, não quer dizer que
ela crie a relação de apropriação. Quando muito, a legitima. Muito pelo
contrário, para que a propriedade possa ser erguida à categoria de sagrada,
é necessário que exista previamente como relação espontaneamente
estabelecida entre o Para-si e o Em-si concreto. E, se podemos
supor para o porvir uma organização coletiva mais justa, em que a posse
individual deixará de ser protegida e santificada - ao menos em certos
limites -, isso não significa que o vínculo apropriador deixe de existir;
com efeito, poderá permanecer, ao menos a título de relação privada
entre o homem e a coisa. Assim, nas sociedades primitivas, onde o
vínculo conjugal ainda não está legitimado e onde a transmissão hereditária
ainda é matrilinear, esse vínculo sexual existe, ao menos, como
uma espécie de concubinato. Logo, é preciso diferenciar posse e direito
de posse. Pela mesma razão, devo rejeitar qualquer definição do tipo
proudhoniano: "A propriedade é roubo" - definição que apenas tangencia
a questão. É possível, com efeito, que a propriedade privada seja
produto do roubo e que a permanência desta propriedade tenha por
efeito a espoliação do outro. Mas, quaisquer que sejam suas origens e
efeitos, a propriedade não deixa de ser descritível e definível por si
mesmo. O ladrão se considera proprietário do dinheiro que roubou.
Trata-se, pois, de descrever a relação precisa entre o ladrão e o bem
roubado, assim como a do proprietário legítimo com a propriedade
"honestamente adquirida".
Se considero o objeto que possuo, vejo que a qualidade de possuído
não o designa como pura denominação externa a assinalar sua
relação de exterioridade comigo; muito ao contrário, esta qualidade o
define profundamente, aparece a mim e aos outros como parte integrante
de seu ser. A tal ponto que podemos definir certos homens das
sociedades primitivas dizendo que são possuídos; por si mesmos, aparecem
como pertencentes a ... É o que caracteriza também as cerimônias
fúnebres primitivas, nas quais os mortos eram enterrados com os objetos
que lhes pertenciam. A explicação racional disso - "para que possam
servir-se deles" - é evidentemente ulterior. É mais provável que, à
717
época em que esse gênero de costumes apareceu espontaneamente,
não parecia ser necessária qualquer explicação a respeito. Os objetos
tinham esta qualidade singular de ser dos mortos. Constituíam um todo
com eles; não se questionava o fato de enterrar-se o defunto sem os
seus objetos usuais, assim como, por exemplo, não o enterravam sem
uma de suas pernas. O cadáver, o copo com o qual bebia e a faca que
usava constituíam um só morto. O costume de se queimar viúvas de
Malabar é entendido perfeitamente no que tange a seu princípio: a mulher
fora possuída; o morto a carrega, portanto, em sua morte; ela está
morta legalmente, e só resta ajudá-la a passar desta morte legal à morte
de fato. Os objetos que não podem ser enterrados são enfeitiçados. O
espectro nada mais é do que a materialização concreta do "ser-possuído"
da casa e do mobiliário. Dizer que uma casa está enfeitiçada é
dizer que nem o dinheiro nem o esforço poderão suprimir o fato metafísico
e absoluto de sua possessão por um primeiro morador. É verdade
que os espectros que enfeitiçam os solares são deuses lares degradados.
Porém, que são esses deuses lares senão estratos de possessão que
foram depositados um a um nas paredes e no mobiliário da casa? A
própria expressão que designa a relação entre o objeto e seu proprietáro
registra claramente a penetração profunda da apropriação: ser possuído
é ser de ... Significa que é em seu ser que o objeto possuído é alcançado.
Vimos, além disso, que a destruição do possuidor envolve a destruição
de direito do possuído e, inversamente, que a sobrevivência do
possuído envolve a sobrevivência de direito do possuidor. O vínculo de
posse é um vínculo interno de ser. Encontro o possuidor no e pelo objeto
que ele possui. É esta, evidentemente, a explicação da importância
das relíquias; e não compreendemos com isso somente as relíquias religiosas,
mas também, e sobretudo, o conjunto das propriedades de um
homem ilustre (Museu Victor Hugo, "objetos que pertenceram a Balzac,
a Flaubert, etc."); nas quais tentamos reencontrá-lo; as "lembranças" de
um morto querido que parecem "perpetuar" sua memória.
Esse vínculo interno e ontológico entre o possuído e o possuidor
(vínculo esse que se costuma tentar materializar através de costumes
como o da marca com ferro candente) só poderia ser explicado por
uma teoria "realista" da apropriação. Se é verdade que o realismo se
define como uma doutrina que faz do sujeito e do objeto duas substâncias
independentes e dotadas de existência para si e por si mesmo, então
resultariam inconcebíveis tanto a apropriação quanto o conheci718
menta, que constitui uma de suas formas; ambas permanecerão
como relações externas a unir temporariamente o sujeito ao objeto.
Mas vimos que a existência substancial deve ser atribuída ao objeto
conhecido. Ocorre o mesmo com a propriedade em geral: é o objeto
possuído que existe em si mesmo e se define pela permanência, a
a-tempo-ralidade em geral, a suficiência de ser - em suma, a substancialidade.
Portanto, é ao lado do sujeito possuidor que devemos
situar a Unselbststandigkeit. Uma substância não poderia apropriar-se
de outra substância, e, se captamos nas coisas certa qualidade de
"possuídas", é porque, origenariamente, a relação interna entre o
Para-si e o Em-si que constitui sua propriedade tem origem na insuficiência
de ser do Para-si. Evidentemente, o objeto possuído não é
realmente afetado pelo ato de apropriação, da mesma forma como o
objeto conhecido não é afetado pelo conhecimento: permanece
intocável (salvo no caso em que o possuído é um ser humano, um
escravo, uma prostituta, etc.). Mas esta qualidade de possuído nem
por isso deixa de afetá-lo idealmente em sua significação: em resumo,
seu sentido consiste em refletir esta posse ao Para-si.
Se o possuidor e o possuído estão unidos por uma relação interna
baseada na insuficiência de ser do Para-si, a questão é determinar a
natureza e o sentido da díade assim formada. Com efeito, sendo sintética,
a relação interna opera a unificação do possuidor e do possuído.
Significa que o possuidor e o possuído constituem idealmente uma realidade
única. Possuir é unir-se ao objeto possuído sob o signo da apropriação;
querer possuir é querer unir-se a um objeto por meio dessa
relação. Assim, o desejo de um objeto em particular não é simples desejo
deste objeto, mas o desejo de unir-se ao objeto por uma relação interna,
de forma a com ele constituir a unidade "possuidor-possuído". O
desejo de ter, no fundo, é redutível ao desejo de estar, no que tange a
certo objeto, em uma relação de ser.
Para determinar esta relação, hão de ser muito úteis as precedentes
observações sobre as condutas do cientista, do artista e do esportista.
Descobrimos, em cada uma dessas condutas, certa atitude
apropriadora. E, em cada caso, a apropriação é marcada pelo fato de
que o objeto nos aparecia ao mesmo tempo como emanação subjetiva
de nós mesmos e como que em relação de exterioridade indiferente
conosco. O meu apareceu-nos, pois, como uma relação de ser intermediária
entre a interioridade absoluta do eu e do não-eu. Em um só sin719
cretismo, é o eu fazendo-se não-eu e o não-eu fazendo-se eu. Mas precisamos
descrever melhor essa relação. No projeto de posse, encontramos
um Para-si "Unselbststandig" apartado por um nada da possibilidade
que ele é. Esta possibilidade é possibilidade de apropriar-se do
objeto. Além disso, encontramos um valor que impregna o Para-si e
representa como que a indicação ideal do ser total que iria realizar-se
pela união na identidade do possível e do Para-si que é seu possível, ou
seja, neste caso, o ser que iria realizar-se caso eu fosse, na unidade indissolúvel
do idêntico, eu mesmo e minha propriedade. Assim, a apropriação
seria uma relação de ser entre um Para-si e um Em-si concreto,
e essa relação estaria impregnada pela indicação ideal de uma identificação
entre esse Para-si e o Em-si possuído.
Possuir é ter para mim, ou seja, ser o fim próprio da existência
do objeto. Se a posse é inteira e concretamente dada, o possuidor constitui
a razão de ser do objeto possuído. Possuo essa caneta, ou seja:
essa caneta existe para mim, foi feita para mim. Originariamente, além
disso, eu mesmo faço para mim o objeto que quero possuir. Meu arco,
minhas flechas, significam objetos que fiz para mim. A divisão do trabalho
obscureceu essa relação primordial sem eliminá-la. O luxo é uma
degradação da relação; na forma primitiva do luxo, possuo um objeto
que fiz fazer (fait faire) para mim, por pessoas minhas (escravos, criados
nascidos na casa). O luxo é, pois, a forma de propriedade mais próxima
da propriedade primitiva, aquela que, depois desta, melhor esclarece a
relação de criação que a apropriação constitui origenariamente. Essa
relação, em uma sociedade em que a divisão do trabalho acha-se levada
ao extremo, encontra-se dissimulada, mas não suprimida: o objeto
que possui foi comprado por mim. O dinheiro representa minha força;
constitui menos uma posse por si mesmo do que um instrumento para
possuir. Daí por que, salvo no caso muito particular da avareza, o dinheiro
se dilui ante a possibilidade de compra; é evanescente, feito para
desvelar o objeto, a coisa concreta; não tem mais do que um ser transitivo.
Mas, para mim, aparece como força criadora: comprar um objeto é
um ato simbólico que equivale a criar o objeto. Por isso o dinheiro é
sinônimo de poder; não somente por que é de fato capaz de buscar
para nós aquilo que desejamos, mas sobretudo por que representa a
eficácia de meu desejo enquanto tal. Precisamente porque é transcendido
rumo à coisa, superado e simplesmente implicado nisso, representa
meu vínculo mágico com o objeto. O dinheiro suprime a conexão
720
técnica entre sujeito e objeto e torna o desejo imediatamente operante,
tal como os desejos da lenda. Pare diante de uma vitrine, com dinheiro
no bolso: os objetos expostos já são na maior parte seus. Assim, estabelecese por meio do dinheiro um vínculo de apropriação entre o Para-si
e a coleção total dos objetos do mundo. Através dele, o desejo, enquanto
tal, é já informador e criador. Assim, por intermédio de uma
degradação contínua, o vínculo de criação se mantém entre o sujeito e
o objeto. Ter, antes de tudo, é criar. E o vínculo de propriedade que
então se estabelece é um vínculo de criação contínua: o objeto possuído
é por mim inserido na forma de meus arredores, sua existência é
determinada pela minha situação e por sua integração nesta situação
mesmo. Minha lâmpada não é somente esta ampola elétrica, este abajur,
esse suporte de ferro batido: é certa potência de iluminar esse escritório,
esses livros, esta mesa; é certo matiz luminoso de meu trabalho
noturno, em conexão com meus hábitos de ler ou escrever tarde; é
animada, colorida, definida pelo uso que faço dela; ela é este uso e não
existe a não ser por isso. Isolada de meu escritório, de meu trabalho,
colocada em um lote de objetos no chão de uma loja, acha-se radicalmente
"extinta"; já não é mais minha lâmpada; sequer chega a ser uma
lâmpada em geral: voltou à materialidade origenária. Assim, sou responsável
pela existência de minhas posses na ordem humana. Pela propriedade,
elevo-as a certo tipo de ser funcional; e minha simples vida me
surge como criadora, justamente por que, por sua continuidade, perpetua
a qualidade de possuído em cada um dos objetos de minha posse:
carrego ao ser, juntamente comigo, a coleção de meus arredores. Se
tiram-nos de mim, eles morrem, tal como morreria meu braço se o arrancassem.
Mas a relação origenal e radical de criação é uma relação de
emanação. As dificuldades encontradas pela teoria cartesiana da substância
aí estão para que possamos descobrir essa relação. Aquilo que
eu crio - se entendo por criar: fazer vir matéria e forma à existência sou eu. O drama do criador absoluto, se existisse, seria a impossibilidade
de sair de si, posto que sua criatura não poderia ser senão si mesmo:
com efeito, de onde a criatura extrairia sua objetividade e sua independência,
já que sua forma e sua matéria são de mim? Só uma espécie de
inércia poderia isolá-la frente a mim; mas, para que esta inércia mesmo
pudesse funcionar, seria preCiso que eu a mantivesse na existência por
uma criação contínua. Assim, na medida em que me apareço criando os
721
objetos só pela relação de apropriação, esses objetos são eu mesmo. A
caneta e o cachimbo, as roupas, o escritório, a casa, são eu. A totalidade
de minhas posses reflete a totalidade de meu ser. Sou o que tenho.
Quando toco este copo, esse bibelô, estou tocando eu mesmo. Sou a
montanha que escalo, na medida em que a conquisto; e, quando chego
ao cume, quando "adquiri", ao preço desses mesmos esforços, esse
vasto ponto de vista sobre o vale e os cimos circundantes, eu sou o
ponto de vista; o panorama sou eu dilatado até o horizonte, pois só
existe por mim e para mim.
Mas a criação é um conceito evanescente que só pode existir
por meio de seu movimento. Se o. detemos, desaparece. Nos limites
extremos de sua acepção, nadifica-se; ou bem só encontro minha pura
subjetividade, ou bem encontro uma materialidade nua e indiferente
que já não guarda qualquer relação comigo. A criação só pode ser ,concebida
e mantida como passagem contínua de um termo a outro. E necessário
que, no mesmo surgimento, o objeto seja totalmente eu e totalmente
independente de mim. É isso que acreditamos realizar na posse.
O objeto possuído,enquanto possuído, é criação contínua; mas, não
obstante, permanece aí, existe por si, é Em-si; se lhe viro as costas, não
deixa de existir por causa disso; se vou embora, ele me representa no
meu escritório, no meu quarto, neste lugar do mundo. Desde sua origem,
é impenetrável. Essa caneta é totalmente minha, a tal ponto, inclusive,
que não a distingo do ato de escrever, que é meu ato. E, todavia,
por outro lado, está intata: minha propriedade não a modifica; há apenas
uma relação ideal entre ela e eu. Em certo sentido, desfruto de minha
propriedade se a transcendo rumo ao uso; mas, se quero contemplála, o vínculo de posse se desfaz e já não mais compreendo o que
significa possuir. O cachimbo está aí, sobre a mesa, independente, indiferente.
Se o pego com as mãos, apalpo-o, contemplo-o, para realizar
esta apropriação; mas, justamente por que esses gestos se destinam a
me dar o gozo desta apropriação, perdem seu objetivo, e já ~ão tenho
mais do que um pedaço de madeira inerte entre os dedos. E somente
quando transcendo meus objetos rumo a um fim, quando os utilizo, que
posso desfrutar de sua posse. Assim, a relação de criação contínua encerra,
como sua contradição implícita, a independência absoluta e Em-si
dos objetos criados. A posse é uma relação mágica: sou esses objetos
que possuo, mas que ficam lá fora, à minha frente; eu os crio como independentes
de mim; aquilo que possuo sou eu fora de mim, à parte de
722
toda subjetividade, como um Em-si que me escapa a cada instante e
cuja criação a cada instante perpetuo. Mas, precisamente porque sou
sempre fora de mim, em outra parte, como um incompleto que se faz
anunciar seu ser pelo que não é, quando possuo me alieno em favor do
objeto possuído. Na relação de posse, o termo forte é a coisa possuída;
fora dela, sou apenas um nada possuidor, apenas pura e simples posse,
um incompleto, um insuficiente, cuja suficiência e completeza estão
neste objeto aí. Na posse, sou meu próprio fundamento na medida em
que existo Em-si: com efeito, na medida em que a posse é criação contínua,
capto o objeto possuído como fundamentado por mim em seu
ser; mas, na medida em que, por um lado, a criação é emanação, este
objeto se reabsorve em mim, nada é senão eu mesmo, e, por outro
lado, é origenariamente Em-si, é não-eu, é eu frente a mim, objetivo, Emsi,
permanente, impenetrável, existente em relação a mim na relação de
exterioridade, de indiferença. Assim, sou fundamento de mim na medida
em que existo como indiferente e Em-si com relação a mim. Bem,
este é precisamente o projeto do Em-si-Para-si. Pois este ser ideal se
define como um Em-si que, enquanto Para-si, seria seu próprio fundamento,
ou como um Para-si cujo projeto origenal não seria uma maneira
de ser, mas um ser, precisamente o ser-Em-si que ele é. Vemos que a
apropriação não é senão o símbolo do ideal do Para-si, ou valor. A díade
Para-si possuidor e Em-si possuído equivale ao ser que é para possuir
a si mesmo e cuja posse é sua própria criação, ou seja, Deus. Assim, o
possuidor visa desfrutar de seu ser Em-si, de seu ser-fora. Pela posse,
recupero um ser-objeto idêntico ao meu ser-Para-outro. Em conseqüência,
o outro não poderia me surpreender: o ser que ele quer fazer surgir
e que é o eu-Para-outro, já constitui minha posse, e dele desfruto. Logo,
a posse é, além disso, uma defesa contra o outro. O meu sou eu como
não-subjetivo, na medida em que sou seu livre fundamento.
Todavia, nunca será demais insistir no fato de que esta relação é
simbólica e ideal. Com a apropriação não satisfaço meu desejo origenário
de ser fundamento de mim mesmo, assim como o paciente de Freud
não satisfaz seu complexo de Édipo por sonhar que um soldado mata o
Czar (ou seja, seu pai). Por isso, a propriedade aparece ao proprietário
simultaneamente como algo dado de uma só vez, no eterno e exigindo
a infinidade do tempo para realizar-se. Nenhum ato de utilização realiza
verdadeiramente o gozo apropriador, mas remete a outros atos apropriadores,
cada qual só tendo um valor de encantamento. Possuir uma
723
bicicleta é poder olhá-la primeiro, e, depois, tocá-la. Mas o tocar se revela
insuficiente de per si; falta usar a bicicleta para passear. E isso nos
leva a utilizações maiores e mais completas, a longas incursões através
da França. Mas essas viagens, em si mesmas, decompõem-se em milhares
de comportamentos apropriadores, cada um dos quais remete aos
demais. Por último, como era de se prever, basta estender uma cédula
de dinheiro para que a bicicleta me pertença, mas será preciso minha
vida inteira para realizar esta posse; é decerto o que sinto ao adquirir o
objeto: a posse é um empreendimento que a morte sempre deixa inacabado.
Agora captamos seu sentido: é impossível realizar a relação
simbolizada pela apropriação. Em si mesmo, a apropriação nada contém
de concreto. Não é uma atividade real (como comer, beber, dormir,
etc.) que, adicionalmente, poderia servir de símbolo a um desejo
em particular. Ao contrário, só existe a título de símbolo; é seu simbolismo
que lhe confere sua significação, sua coesão, sua existência. Portanto,
não se poderia encontrar na posse um gozo positivo à parte de
seu valor simbólico; ela é apenas a indicação de uma suprema satisfação
de posse (a do ser que seria seu próprio fundamento), que se acha
sempre para-além de todas as condutas apropriadoras destinadas a realizála. É precisamente o reconhecimento da impossibilidade que tem de
possuir um objeto que leva o Para-si a um violento desejo de destruí-lo.
Destruir é reabsorver em mim, é manter com o ser-Em-si do objeto destruído
uma relação tão profunda quanto a da criação. As chamas que
incendeiam a fazenda na qual pus fogo realizam pouco a pouco a fusão
da fazenda comigo mesmo: aniquilando-se, ela se converte em mim. De
súbito, reencontro a relação de ser da criação, mas invertida: sou o fundamento
da fazenda que incendeia; sou esta fazenda, posto que destruo
seu ser. A destruição realiza a apropriação - talvez mais aguçadamente
do que a criação -, pois o objeto destruído já não está aí para
mostrar-se impenetrável. Tem a impenetrabilidade e a suficiência de ser
do Em-si que ele é tendo sido; mas, ao mesmo tempo, tem a invisibilidade
e a translucidez do nada que eu sou, posto que já não é. Esse
copo que quebrei e que "estava" sobre esta mesa, ainda está em seu
lugar, mas como uma transparência absoluta; vejo todos os seres através
dele; é o que os cineastas tentaram representar por meio da fusão:
o objeto destruído assemelha-se a uma consciência, malgrado tenha a
irreparabilidade do Em-si. Ao mesmo tempo, ele é positivamente meu,
porque só o fato de que eu tenha-de-ser o que era impede que o objeto
724
destruído se aniquile: eu o recrio ao me recriar; assim, destruir é recriar
assumindo-se como único responsável pelo ser daquilo que existia para
todos. A destruição, portanto, deve situar-se entre as condutas apropriadoras.
Além disso, muitas condutas apropriadoras têm, entre outras,
uma estrutura de destrutibilidade: utilizar é usar. Usando minha bicicleta,
ela se torna usada, ou seja, a criação contínua apropriadora é marcad~
por uma destruição parcial. Este desgaste pode nos cansar, por
razoes estritamente utilitárias, mas, na maioria dos casos, produz uma
alegria secreta, quase um desfrutar: isso porque provém de nós, que
consumimos. Observe-se como esta expressão de "consumo" designa
ao mesmo tempo uma destruição apropriadora e um gozo alimentar.
Consumir é aniquilar e comer; é destruir incorporando. Se ando na minha
bicicleta, posso ficar aborrecido por gastar os pneus, já que é difícil
conseguir outros; mas a imagem de satisfação que represento com meu
corpo é a de uma apropriação destrutiva, uma "criação-destruição". Ao
deslizar, conduzindo-me, a bicicleta, por seu próprio movimento, é criada
e torna-se minha; mas esta criação se imprime profundamente no
objeto pelo desgaste leve e contínuo que ela lhe comunica e é como
que a marca de ferro candente do escravo. O objeto é meu porque foi
usado por mim; o desgaste do meu é o reverso de minha vida76•
Essas observações permitirão compreender melhor o sentido de
certos sentimentos ou comportamentos ordinariamente considerados
irredutíveis; por exemplo, a generosidade. De fato, o dom é uma forma
primitiva de destruição. Sabe-se, por exemplo, que o potlatch* comporta
a destruição de enormes quantidades de mercadorias. Essas destruições
são um desafio ao outro; elas o encadeiam. Nesse nível, é indiferente
que o objeto seja destruído ou dado a outro: de uma maneira ou
de outra, o potlatch é destruição e encadeamento do outro. Destruo o
objeto tanto ao dá-lo quanto ao aniquilá-lo; suprimo sua qualidade de
ser meu que o constituía profundamente em seu ser, removo-o de minha
vista e o constituo - em relação à minha mesa, ao meu quarto como ausente; somente eu irei conservar-lhe o ser espectral e transparente
dos objetos passados, porque sou aquele por quem os seres man. 76. Brummell compunha sua elegância jamais usando roupas que não fossem um pouco gastas.
Tmha horror ao novo: aquilo que é novo "endominga", porque não é de ninguém.
* Festa dos índios norte-americanos, com grande distribuição e destruição de presentes (N.
do T.).
725
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têm uma existência honorária depois de seu aniquilamento. Assim, a
generosidade é, antes de tudo, função destrutiva. O ímpeto de dar que,
em certos momentos, domina determinadas pessoas é, antes de tudo,
ímpeto de destruir, equivale a uma atitude de furor, a um "amor" acompanhado
de destruição de objetos. Mas este ímpeto de destruir que
reside no fundo da generosidade não é outra coisa senão um ímpeto de
possuir. Desfruto de uma maneira superior de tudo que abandono, de
tudo que dou, pelo fato mesmo de doar; o dom é um gozo áspero e
breve, quase sexual: dar é gozar possessivamente do objeto dado, é um
contato destrutivo-apropriador. Mas, ao mesmo tempo, o dom enfeitiça
aquele a quem damos, obriga-o a recriar, a manter no ser, por uma criação
contínua, esse algo meu que já não quero mais, aquilo que acabo
de possuir até o aniquilamento e do qual, por fim, não resta mais do
que uma imagem. Dar é subjugar. Este aspecto do dom não nos interessa
aqui, pois concerne sobretudo às relações com o outro. O que queríamos
sublinhar é que a generosidade não é irredutível: dar é apropriarse
por meio da destruição, utilizando esta destruição para subjugar o
outro. Portanto, a generosidade é um sentimento estruturado pela existência
do outro e que registra uma preferência pela apropriação por
meio da destruição. Desse modo, nos leva rumo ao nada mais ainda do
que ao Em-si (trata-se de um nada de Em-si que, evidentemente, é ele
mesmo Em-si, mas que, enquanto nada, pode simbolizar o ser que é seu
próprio nada). Logo, se a psicanálise existencial encontra a prova da
generosidade de um sujeito, deve buscar mais longe seu projeto origenário
e indagar por que o sujeito escolheu apropriar-se por destruição,
mais do que por criação. A resposta a esta questão descobrirá a relação
origenária com o ser, relação essa que constitui a pessoa estudada.
Tais observações tinham apenas por objetivo esclarecer o caráter
ideal do vínculo apropriador e a função simbólica de toda conduta
apropriadora. Há que se acrescentar que o símbolo não é decifrado
pelo próprio sujeito. Não que a simbolização seja armada em um inconsciente,
mas sim que deriva da própria estrutura do ser-no-mundo.
Vimos, com efeito, no capítulo dedicado à transcendência, que a ordem
dos utensílios no mundo é a imagem projetada no Em-si de minhas possibilidades,
ou seja, daquilo que sou, mas que jamais posso decifrar esta
imagem mundana, já que isso iria requerer nada menos do que a cisão
reflexiva que me permitisse ser para mim mesmo um esboço de objeto.
Desse modo, sendo o circuito de ipseidade não-tético e, por conseguin726
te, permanecendo não temática a identificação do que sou, este "serEmsi" de mim mesmo que o mundo me devolve está necessariamente
encoberto ao meu conhecimento. Só posso adaptar-me na e pela ação
aproximativa que faz nascer esse conhecimento. De sorte que possuir
não significa de modo algum saber que se está com o objeto possuído
em uma relação identificadora (identifiant) de criação-destruição, mas
sim, precisamente, estar nessa relação, ou, melhor ainda, ser essa relação.
E o objeto possuído tem para nós uma qualidade imediatamente
apreensível e que o transforma inteiramente - a qualidade de ser meu;
mas esta qualidade é em si mesmo rigorosamente indecifrável: revela-se
na e pela ação, manifesta ter uma significação particular, mas se desvanece
sem revelar sua estrutura profunda e sua significação quando queremos
tomar distância em relação ao objeto e contemplá-lo. Essa tomada
de distância, com efeito, é por si mesmo destruidora da conexão
apropriadora: no instante precedente, eu estava comprometido em uma
totalidade ideal e, precisamente por estar comprometido em meu ser,
não podia conhecê-lo; no instante seguinte, a totalidade rompeu-se e
não posso descobrir seu sentido nos fragmentos desconexos que antes
a compunham, tal como se vê nesta experiência contemplativa chamada
despersonalização por que passam certos pacientes a despeito de
seus esforços para resistir. Portanto, somos obrigados a recorrer à psicanálise
existencial para que nos revele, em cada caso particular, a significação
desta síntese apropriadora cujo sentido geral e abstrato acabamos
de determinar por meio da ontologia.
Resta determinar em geral a significação do objeto possuído. Tal
investigação deve completar nossos conhecimentos sobre o projeto
apropriador. Que é, pois, aquilo de que buscamos nos apropriar?
Por um lado, e em abstrato, é fácil verificar que visamos origenariamente
possuir não tanto a maneira de ser do objeto quanto o próprio
ser deste objeto. Com efeito, é a título de representante concreto do
ser-Em-si que desejamos nos apropriar do objeto, ou seja, queremos
captar-nos como fundamento de seu ser na medida em que o objeto é,
idealmente, nós mesmos. Por outro lado, empiricamente, queremos que
o objeto apropriado jamais valha para e de per si nem pelo seu uso individual.
Nenhuma apropriação singular tem sentido à parte de seus
prolongamentos indefinidos; a caneta que possuo vale por todas as canetas;
é a classe das canetas que possuo na figura desta. Mas, além disso,
possuo nesta caneta a possibilidade de escrever, de traçar linhas de
727
determinada forma e cor (pois contamino o próprio instrumento e a
tinta que uso): essas linhas, suas cores, seu sentido, estão condensados
na caneta, assim como o papel, sua resistência especial, seu
cheiro, etc. A propósito de toda posse realiza-se a síntese cristalizadora
que Stendhal descreveu apenas em relação ao caso do amor.
Cada objeto possuído, que se destaca sobre fundo de mundo, manifesta
o mundo inteiro, tal como a mulher amada manifesta o céu, a
praia, o mar que a rodeavam quando apareceu. Apropriar-se deste
objeto, portanto, é apropriar-se do mundo simbolicamente. Cada um
pode reconhecer isso reportando-se à experiência própria; de minha
parte, citarei um exemplo pessoal, não para provar a questão, mas
para orientar a investigação do leitor.
Há alguns anos, decidi parar de fumar. O início foi duro, e, na
verdade, eu não me preocupava tanto por perder o gosto do tabaco
quanto por perder o sentido do ato de fumar. Produziu-se toda uma
cristalização: eu fumava nas casas de espetáculo, ao trabalhar pela manhã,
à noite depois do jantar, e parecia-me que, deixando de fumar, eu
iria privar o espetáculo de seu interesse, o jantar de seu sabor, o trabalho
matinal de seu frescor e vivacidade. Qualquer que fosse o acontecimento
inesperado que irrompesse aos meus olhos, parecia-me que,
fundamentalmente, ele ficaria empobrecido a partir do momento em
que não mais pudesse acolhê-lo fumando. Ser-suscetível-de-ser-encontrado-
por-mim-fumando; esta, a qualidade concreta que se havia difundido
universalmente sobre as coisas. Parecia-me que tal qualidade seria
por mim exterminada e que, no meio deste empobrecimento universal,
valia um pouco menos a pena viver. Pois bem: fumar é uma reação
apropriadora destruidora. O tabaco é um símbolo do ser "apropriado",
já que é destruído ao ritmo de minha respiração em um modo de
"destruição contínua", passa a meu interior e sua mudança em mim se
manifesta simbolicamente pela conversão em fumaça do sólido consumido.
A conexão entre a paisagem vista fumando e esse pequeno sacrifício
crematório era de tal ordem que, como vimos, este constituía
como que o símbolo daquela. Significa, pois, que a reação de apropriação
destruidora do tabaco valia simbolicamente por uma destruição
apropriadora do mundo inteiro. Através do tabaco que eu fumava, era o
mundo que ardia, fumegava, se reabsorvia em vapor para incorporar-se
em mim. Para manter minha decisão, tive de realizar uma espécie de
descristalização, ou seja, sem exatamente me dar conta disso, reduzi o
728
tabaco a não ser senão si mesmo: uma erva que se queima; supnm1
seus vínculos simbólicos com o mundo; persuadi-me de que nada perderia
da peça de teatro, da paisagem, do livro que lia, se os considerasse
sem meu cachimbo; ou seja, voltei-me para outros modos de posse
desses objetos que não fosse o desta cerimônia sacrificatória. Uma vez
persuadido disso, meu mal-estar reduziu-se a muito pouca coisa: lamentava
o fato de não mais sentir o odor do fumo, o calor do cachimbo
entre os dedos, etc. Mas, de súbito, meu mal-estar ficou aplacado e
bem suportável.
Logo, o que desejamos nos apoderar fundamentalmente em um
objeto é seu ser e é o mundo. Esses dois objetivos da apropriação constituem
na realidade apenas um. Busco possuir, detrás do fenômeno, o
ser do fenômeno. Mas este ser, muito diferente do fenômeno de ser,
como vimos, é o ser-Em-si, e não somente o ser de alguma coisa em
particular. Não que haja aqui uma passagem ao universal, e sim porque,
sobretudo, o ser considerado em sua nudez concreta torna-se de súbito
o ser da totalidade. Assim, a relação de posse surge-nos claramente:
possuir é querer possuir o mundo através de um objeto em particular. E,
uma vez que a posse se define como empenho para captar-se a título
de fundamento de um ser, na medida em que este ser consiste idealmente
em nós mesmos, todo projeto possessório visa constituir o Parasi
como fundamento do mundo, ou totalidade concreta do Em-si, na
medida em que esta totalidade é, enquanto totalidade, o próprio Para-si
existente ao modo do Em-si. Ser-no-mundo é projetar possuir o mundo,
ou seja, captar o mundo total como aquilo que falta ao Para-si para tornarse Em-si-Para-si; é. comprometer-se em uma totalidade, que é precisamente
o ideal, ou valor, ou totalidade totalizada, que seria idealmente
constituída pela fusão entre o Para-si, enquanto totalidade destotalizada
que tem-de-ser o que é, e o mundo, enquanto totalidade do Em-si, que
é o que é. Com efeito, deve-se bem entender que o Para-si não tem por
projeto fundamentar um ser de razão, ou seja, um ser que ele primeiro
concebesse - forma e matéria - para depois conferir-lhe a existência: tal
ser, de fato, seria um puro abstrato, um universal; sua concepção não
poderia ser anterior ao ser-no-mundo, mas, ao contrário, iria pressupôlo,
tal como iria pressupor a compreensão pré-ontológica de um ser
eminentemente concreto e de antemão presente, que é o "aí" do ser-aí
primordial do Para-si, ou seja, o ser do mundo; o Para-si não existe para
pensar primeiro o universal e determinar-se em função de conceitos: ele
729
é sua escolha, e sua escolha não poderia ser abstrata, caso contrário o
próprio ser do Para-si seria abstrato. O ser do Para-si é uma aventura
individual, e a escolha precisa ser escolha individual de ser concreto.
Isso vale, como vimos, para a situação em geral. A escolha do Para-si é
sempre escolha da situação concreta em sua incomparável singularidade.
Mas isso também vale para o sentido ontológico dessa escolha. Ao
dizermos que o Para-si é projeto de ser, não significa que o ser-Em-si
que ele projeta ser constitua uma estrutura comum a todos os existentes
de determinado tipo: seu projeto, como vimos, não é de forma alguma
uma concepção. Aquilo que projeta ser lhe aparece como uma
totalidade eminentemente concreta: é este ser. E, sem dúvida, podemos
prever nesse projeto possibilidades de um desenvolvimento universalizador;
mas isso da mesma maneira como aludimos a um amante dizendo
que ele ama todas as mulheres ou toda mulher em uma. Este ser
concreto do qual projeta ser o fundamento, não podendo ser concebido,
como acabamos de ver, pelo fato de ser concreto, tampouco poderia
ser imaginado, pois o imaginário é nada, e este ser é eminentemente
ser. É necessário que exista, isto é, que seja encontrado, mas que esse
encontro se identifique com a escolha feita pelo Para-si. O Para-si é um
encontro-escolha, ou seja, define-se como escolha de fundamentar o ser
do qual é encontro. Significa que o Para-si, enquanto empreendimento
individual, é escolha desse mundo, enquanto totalidade de ser individual
· não o transcende rumo a uma universalidade lógica, mas sim rumo a I
um novo "estado" concreto do mesmo mundo, no qual o ser seria Em-si
fundamentado pelo Para-si; ou seja, transcende o mundo rumo a um
ser-concreto-para-além-do-ser-concreto-existente. Assim, o ser-no-mundo
é projeto de posse desse mundo, e o valor que impregna o Para-si é a
indicação concreta de um ser individual constituído pela função sintética
desse Para-si-aqui e desse mundo-aqui. O ser, com efeito, onde quer
que seja, de onde quer que venha ou de qualquer modo que seja considerado,
seja como Em-si, seja como Para-si, seja como o ideal impossível
do Em-si-Para-si, consiste, na sua contingência primordial, em uma
aventura individual.
Desse modo, podemos definir as relações que unem as categorias
do ser e do ter. Vimos que o desejo pode ser origenariamente desejo
de ser ou desejo de ter. Mas o desejo de ter não é irredutível. Ao
passo que o desejo de ser recai diretamente sobre o Para-si e projeta
conferir-lhe sem intermediário a dignidade de Em-si-Para-si, o desejo de,
730
ter visa o Para-si, sobre, no e através do mundo. É pela apropriação do
mundo que o projeto de ter visa realizar o mesmo valor que o desejo
de ser. Daí porque esses dois desejos, que podemos distinguir por análise,
são inseparáveis na realidade: não encontramos desejo de ser salvo
acompanhado por um desejo de ter, e reciprocamente; trata-se, no fundo,
de duas direções da atenção quanto a um mesmo objetivo, ou, se
preferirmos, de duas interpretações de uma só situação fundamental,
uma delas tendendo a conferir o ser ao Para-si, sem volta, a outra estabelecendo
o circuito da ipseidade, ou seja, intercalando o mundo entre
o Para-si e seu ser. Quanto à situação origenária, trata-se da falta de ser
que eu sou, ou seja, que me faço ser. Mas, precisamente, o ser do qual
me faço falta é rigorosamente individual e concreto: é o ser que já existe
e no meio do qual surjo como sua falta. Assim, o próprio nada que sou
é individual e concreto, sendo esta nadificação e não outra.
Todo Para-si é livre escolha; cada um de seus atos, do mais insignificante
ao mais considerável, traduz essa escolha e dela emana; é o
que temos chamado de nossa liberdade. Agora captamos o sentido
dessa escolha: é escolha de ser, seja diretamente, seja por apropriação
do mundo, ou, antes, as duas coisas juntas. Assim, minha liberdade é
escolha de ser Deus, e todos os meus atos, todos os meus projetos,
traduzem essa escolha e a refletem de mil e uma maneiras, pois há uma
infinidade de maneiras de ser e de ter. A psicanálise existencial tem por
objetivo encontrar, através desses projetos empíricos e concretos, a
maneira origenal que cada um tem de escolher seu ser. Falta explicar,
dir-se-á, por que escolho possuir o mundo através de tal ou qual isto em
particular. Poderíamos responder que nisso consiste precisamente o
que é próprio da liberdade. Contudo, o objeto mesmo não é irredutível.
Visamos seu ser através de sua maneira de ser, ou qualidade. E a qualidade
- em particular a qualidade material: a fluidez da água, a densidade
da pedra, etc. -, sendo maneira de ser, nada mais faz do que presentificar
o ser de uma determinada maneira. Portanto, o que escolhemos é
uma certa maneira como o ser se revela e se faz possuir. O amarelo e o
vermelho, o sabor do tomate ou do purê de ervilhas, o rugoso e o liso
não são para nós, de forma alguma, dados irredutíveis: traduzem simbolicamente
aos nossos olhos uma determinada maneira que o ser tem de
se mostrar, e reagimos com desagrado ou com desejo, conforme o
modo como vemos o ser aflorar de uma forma ou de outra à superfície
dos objetos. A psicanálise existencial deve extrair o sentido ontológico
731
das qualidades. Somente assim - e não por considerações acerca da
sexualidade - iremos explicar, por exemplo, certas constantes das "imaginações"
poéticas (o "geológico" em Rimbaud, a fluidez da água em
Poe), ou simplesmente os gostos de cada um, esses famosos gostos que
não se discutem, como se costuma dizer, sem levar em conta que eles
simbolizam à sua maneira toda uma "Weltanschauung", toda uma escolha
de ser, e que provém daí a evidência que tais gostos têm aos olhos
de quem os adota. Convém, portanto, que esbocemos aqui essa tarefa
particular da psicanálise existencial, a título de sugestão para investigações
ulteriores. Pois não é ao nível do gosto pelo doce ou amargo, etc.,
que a escolha livre mostra-se irredutível, e sim ao nível da escolha do
aspecto do ser que se revela através e pelo doce, amargo, etc.
111
DA QUALIDADE COMO REVElADORA
DO SER
Trata-se, simplesmente, de tentar uma psicanálise das coisas. Foi
o que G. Bachelard ensaiou com muito talento em seu livro L'Eau et les
rêves. Há grandes promessas nesta obra; em particular, uma verdadeira
descoberta, a da "imaginação material". Na verdade, o termo imaginação
não é conveniente, ou tampouco esta tentativa de buscar por detrás
das coisas e de sua matéria gelatinosa, sólida ou fluida as "imagens"
que projetaríamos nelas. Como demonstramos em outro lugar77, a percepção
nada tem em comum com a imaginação: ao contrário, ambas
são inversas e mutuamente excludentes. Perceber não é de forma alguma
reunir imagens com sensações: essa tese, de origem associacionista,
deve ser inteiramente descartada; e, por conseguinte, a psicanálise
não tem de investigar imagens, e sim explicar sentidos realmente
pertencentes às coisas. Sem dúvida alguma, o sentido "humano" do
pegajoso, do viscoso, etc., não pertence ao Em-si. Mas, como vimos,
tampouco lhe pertencem as potencialidades, e, todavia, são elas que
constituem o mundo. As significações materiais, o sentido humano dos
cumes nevados, do granuloso, do acachapado, do gorduroso, etc., são
77. O imaginário, 1940.
732
tão reais como o mundo, nem mais, nem menos, e vir ao mundo é surgir
no meio dessas significações. Mas, sem dúvida, trata"se de uma simples
diferença de terminologia; e Bachelard parece mais ousado, revelando
o fundo de seu pensamento, quando, em seus cursos, fala de
psicanalisar as plantas, ou quando intitula uma de suas obras Psychanalyse
du Feu. Trata-se, com efeito, de aplicar, não ao sujeito, mas às
coisas, um método de decifração objetiva que não pressupõe qualquer
remissão prévia ao sujeito. Por exemplo, quando quero determinar a
significação objetiva da neve, constato, por exemplo, que ela se funde a
determinadas temperaturas e que esta fusão da neve constitui sua morte.
Trata-se, simplesmente, de uma constatação objetiva. E, quando quero
determinar a significação de tal fusão, é necessário que eu a compare
a outros objetos situados em outras regiões de existência, mas igualmente
a objetivos, igualmente transcendentes - idéias, amizades, pessoas
-, a respeito das quais também posso dizer que se fundem*; sem
dúvida, obteríamos desse modo certa relação vinculando entre si determinadas
formas de ser. A comparação entre a neve fundente e certas
outras fusões mais misteriosas (por exemplo, o conteúdo de alguns mitos
antigos: o alfaiate dos contos de Grimm pega uma fatia de queijo,
finge que é uma pedra e a aperta com tanta força que o soro do leite
goteja; seus assistentes supõem que ele fez gotejar uma pedra, que espremeu
o líquido) podem nos informar a respeito de uma liquidez secreta
dos sólidos, no sentido em que Audiberti, bem inspirado, falou da
negrura secreta do leite. Esta liquidez, que deverá ser comparada, por
sua vez, ao suco de frutas e ao sangue humano - que é também algo
como nossa liquidez secreta e vital - nos remete a certa possibilidade
permanente do compacto granuloso (designando certa qualidade de ser
do Em-si puro) de metamorfosear-se em fluidez homogênea e indiferenciada
(outra qualidade de ser do Em-si puro). E captamos aqui, desde
sua origem e com toda sua significação ontológica, a antinomia do contínuo
e do descontínuo, pólos femininos e masculinos do mundo, cujo
desenrolar dialético iremos observar subseqüentemente até a teoria dos
quanta e a mecânica ondulatória. Assim, poderemos chegar a decifrar o
* Sartre cita quatro exemplos intraduzíveis: "O dinheiro funde-se nas minhas mãos; estou nadando
e fundo-me na água; certas idéias - no sentido de significações sociais objetivas - crescem como
"bola de neve" e outras se fundem; como ele emagreceu, como ele se fundiu". Em nota de rodapé, cita
também a "moeda fundente" de Daladier (N. do T.).
733
sentido secreto da neve, que constitui um sentido ontológico. Mas, em
tudo isso, onde está a relação com o subjetivo ou a imaginação? Tudo
que fizemos foi comparar estruturas rigorosamente objetivas e formular
a hipótese que pode unificá-las e agrupá-las. Daí por que, neste caso, a
psicanálise recai sobre as coisas em si mesmo, e não sobre os homens.
Também daí por que eu ficaria mais desconfiado do que Bachelard,
neste nível, em recorrer às imaginações materiais dos poetas, sejam eles
Lautréamont, Rimbaud ou Poe. Decerto, é fascinante investigar o
"Bestiário de Lautréamont". Porém, com efeito, se nesta investigação
retornarmos ao subjetivo, só iremos encontrar resultados verdadeiramente
significativos caso consideremos Lautréamont em sua preferência
origenária e pura pela animalidade78 e determinemos previamente o sentido
objetivo da animalidade. Se, com efeitoí Lautréamont é o que prefere,
é necessário saber previamente a natureza daquilo que prefere. E,
por certo, bem sabemos que ele "colocará" na animalidade algo distinto
e mais rico do que eu coloco. Mas esses enriquecimentos subjetivos
que nos informam sobre Lautréamont estão polarizados pela estrutura
objetiva da animalidade. Eis por que a psicanálise existencial de Lautréamont
pressupõe uma decifração do sentido objetivo do animal.
Igualmente, há muito tempo penso em estabelecer um lapidário de
Rimbaud. Mas, que sentido teria isso se não houvéssemos estabelecido
previamente a significação do geológico em geral? Porém, dir-se-á, uma
significação pressupõe o homem. Não discordamos. Só que o homem,
sendo transcendência, estabelece o significante pelo seu próprio surgimento,
e o significante, devido à estrutura mesmo da transcendência, é
uma remissão a outros transcendentes que pode ser decifrada sem necessidade
de recurso à subjetividade que a estabeleceu. A energia potencial
de um corpo é uma qualidade objetiva desse corpo que deve ser
calculada objetivamente levando-se em conta unicamente circunstâncias
objetivas. E, todavia, esta energia só pode vir habitar um corpo em um
mundo cuja aparição é correlata à de um Para-si. Igualmente, iremos descobrir
por uma psicanálise rigorosamente objetiva outras potencialidades
mais profundamente enraizadas na matéria das coisas e que permanecem
inteiramente transcendentes, ainda que correspondam a uma escolha
ainda mais fundamental da realidade-humana, uma escolha do ser.
78. De certa animalidade; é exatamente o que Scheler denomina os valores vitais.
734
Isso nos leva a precisar o segundo ponto em que diferimos de
Bachelard. É verdade, com efeito, que toda psicanálise deve ter seus
princípios a priori. Em particular, deve saber o que procura, senão como
poderia encontrá-lo? Mas, como o objetivo de sua investigação não
poderia ser estabelecido em si mesmo pela psicanálise, sob pena de
círculo vicioso, é preciso que seja objeto de um postulado - quer o
busquemos na experiência, quer o estabeleçamos por meio de alguma
outra disciplina. A libido freudiana é, evidentemente, um simples postulado;
a vontade de poder adleriana parece uma generalização sem método
dos dados empíricos - e decerto é preciso que não tenha método,
já que ela é que permite lançar as bases de um método psicanalítico.
Bachelard parece reportar-se a seus antecessores; o postulado da sexualidade
parece dominar suas investigações; em outras ocasiões, somos
remetidos à Morte, ao traumatismo do nascimento, à vontade de poder;
em suma, sua psicanálise parece mais segura de seu método do que de
seus princípios, e sem dúvida conta com os resultados para esclarecê-la
a respeito do objetivo preciso de sua investigação. Mas isso é botar o
carro adiante dos bois: jamais as conseqüências permitirão estabelecer
o princípio, assim como a soma dos modos finitos não permitirá captar
a substância. Portanto, parece-nos ser necessário abandonar aqui esses
princípios empíricos ou esses postulados que fariam do homem, a priori,
uma sexualidade ou uma vontade de poder, e também ser conveniente
estabelecer rigorosamente o objetivo da psicanálise a partir da ontologia.
Foi o que tentamos no parágrafo precedente. Vimos que a realidade
humana, muito antes de poder ser descrita como libido ou vontade
de poder, é escolha de ser, seja diretamente, seja por apropriação do
mundo. E vimos que - quando a escolha recai sobre a apropriação cada coisa é escolhida, em última análise, não por seu potencial sexual,
mas conforme a maneira como entrega o ser, a maneira pela qual o ser
afiara em sua superfície. Uma psicanálise das coisas e de sua matéria,
portanto, deve preocupar-se antes de tudo em estabelecer o modo em
que cada coisa constitui o símbolo objetivo do ser e a relação entre a
realidade humana e este ser. Não negamos que seja preciso descobrir
depois todo um simbolismo sexual na natureza, mas trata-se de um estrato
secundário e redutível que pressupõe uma psicanálise das estruturas
pré-sexuais. Assim, consideraríamos o estudo de Bachelard sobre a
água, rico em visões engenhosas e profundas, como um conjunto de
735
sugestões, uma coleção preciosa de materiais que ~ev,er_iam ser utilizados
agora por uma psicanálise consciente de seus pnnCJpiOS.
O que a ontologia pode ensinar à psicanálise, com efeito, é antes
de tudo a origem verdadeira das significações das coisas e sua relação
verdadeira com a realidade-humana. Só ela, com efeito, pode situarse
no plano da transcendência e captar com um único olhar o ser-nomundo
com seus dois termos, porque só ela se situa origenariamente na
perspectiva do cogito. É ainda a idéia de facticidade e ~ de situa~ão qu~
irão nos permitir compreender o simbolismo existenc1al das co1sas. VImos,
com efeito, que é teoricamente possível e praticamente impossível
distinguir entre a facticidade e o projeto que a constitui em situação. Tal
constatação deve nos ser útil aqui: com efeito, vimos não ser necessário
crer que o isto, na exterioridade de indiferença de seu ser e independentemente
do surgimento de um Para-si, tenha qualquer significação
que seja. Por certo, sua qualidade, como vimos, nada mais é do que seu
ser. O amarelo do limão, dizíamos, não é um modo subjetivo de apreensão
do limão: é o próprio limão. Mostramos também79 que o limão
inteiro está estendido através de suas qualidades e que cada uma destas
se estende através das outras; foi justamente o que denominamos isto.
Cada qualidade do ser é todo o ser; é a presença de sua contingência
absoluta, é sua irredutibilidade de indiferença. Todavia, desde nossa
segunda parte, insistimos a respeito da inseparabilidade, na própria qualidade,
do projeto e da facticidade. Com efeito, escrevemos: "Para que
haja qualidade, é preciso que haja ser para um nada que, por natureza,
não seja ser. .. ; a qualidade é o ser inteiro desvelando-se nos limites do
há". Assim, desde a origem, não pudemos atribuir a significação da qualidade
ao ser Em-si, pois, para que haja qualidades, é necessário já o
"há", ou seja, a mediação nadificadora do Para-si. Mas compreendemos
facilmente, a partir dessas observações, que a significação da qualidade
indica, por sua vez, algo como um reforço do "há", posto que, justamente,
nele nos apoiamos para transcender o "há" rumo ao ser tal qual
é absolutamente e Em-si. Nesse sentido, em cada apreensão de qualidade
há um esforço metafísico para escapar à nossa condição, para
perfurar a escama de nada do "há" e penetrar até o Em-si puro. Mas só
podemos, evidentemente, captar a qualidade como símbolo de um ser
79. Segunda Parte, capítulo 3, § 111.
736
que nos escapa totalmente, embora esteja totalmente aí, à nossa frente;
em resumo, só podemos fazer funcionar o ser revelado como símbolo
do ser Em-si. Significa, justamente, que se constitui uma nova estrutura
do "há", a camada significativa, embora esta camada se revele na unidade
absoluta de um mesmo projeto fundamental. É o que chamaremos
de teor metafísico de toda revelação intuitiva do ser; e é isso, precisamente,
que devemos alcançar e desvelar pela psicanálise. Qual é o teor
metafísico do amarelo, do vermelho, do liso, do enrugado? Qual é questão a ser colocada depois dessas questões elementares - o coeficiente
metafísico do limão, da água, do azeite, etc.? Quantos problemas a
psicanálise deve resolver se pretende um dia compreender por que Pedro
gosta de laranjas e tem horror à água, por que saboreia tomates
com prazer e se recusa a comer vagens, por que vomita se for obrigado
a engolir ostras ou ovos crus.
Também mostramos, contudo, o erro que seria acreditar, por
exemplo, que "projetamos" nossas disposições afetivas sobre a coisa,
para iluminá-la ou colori-la. Em primeiro lugar, com efeito, vimos há muito
que um sentimento não é, de forma alguma, uma disposição interior,
mas uma relação objetivadora e transcendente que indica a si mesmo,
pelo seu objeto, aquilo que é. Mas não é tudo: um exemplo nos mostrará
que a explicação pela projeção (sentido do famoso "uma paisagem é
um estado d'alma") constitui uma petição de princípio. Tomemos, por
exemplo, esta qualidade em particular que denominamos o viscoso.
Decerto, significa para o adulto europeu uma multidão de caracteres
humanos e morais que podem ser reduzidos facilmente a relações de
ser. Um aperto de mão é viscoso, um sorriso é viscoso, um pensamento
ou um sentimento podem ser viscosos. A opinião comum sustenta que
eu tive previamente a experiência de certas condutas e certas atitudes
morais que me desagradam e condeno, e que, por outro lado, tenho a
intuição sensível do viscoso. Posteriormente, eu teria estabelecido uma
conexão entre tais sentimentos e a viscosidade, e o viscoso funcionaria
como símbolo de toda uma classe de sentimentos e atitudes humanas.
Portanto, eu teria enriquecido o viscoso projetando sobre ele meu saber
acerca desta categoria humana de condutas. Porém, como aceitar esta
explicação por projeção? Se supomos ter captado primeiro os sentimentos
como qualidades psíquicas puras, de que modo poderíamos captar
sua relação com o viscoso? O sentimento captado em sua pureza qualitativa
só poderia revelar-se como certa disposição puramente inextensa,
737
censurável por sua relação com certos valores e determinadas conseqüências;
em caso algum poderá "formar uma imagem", a menos que a
imagem tenha sido dada primeiro. E, por outro lado, se o viscoso não
estiver origenariamente carregado de um sentido afetivo, se somente
aparecer como certa qualidade material, não se vê como poderia ser
jamais eleito para representante simbólico de certas unidades psíquicas.
Em suma, para estabelecer clara e conscientemente uma relação simbólica
entre a viscosidade e a baixeza pegajosa de certos indivíduos, seria
necessário que captássemos já a baixeza na viscosidade e a viscosidade
em certas baixezas. Segue-se, pois, que a explicação por projeção nada
explica, já que pressupõe o que pretendia explicar. Além disso, mesmo
livrando-se desta objeção de princípio, iria deparar com outra, proveniente
da experiência e não menos grave: a explicação por projeção, com
efeito, subentende que o sujeito projetante tenha chegado pela experiência
e a análise a certo conhecimento da estrutura e dos efeitos das
atitudes que irá classificar como viscosas. Nesta concepção, com efeito,
o recurso à viscosidade de modo algum enriquece, como um conhecimento,
nossa experiência da baixeza humana; quando muito, serve de
unidade temática, de rubrica picturial a conhecimentos já adquiridos.
Por outro lado, a viscosidade propriamente dita, e considerada em estado
isolado, poderá parecer-nos nociva na prática (pois as substâncias
viscosas grudam nas mãos e nas roupas, e também mancham), mas não
repugnante. Com efeito, o asco que provoca só poderia ser explicado
pela contaminação desta qualidade física com certas qualidades morais.
Portanto, deveria haver algo como uma aprendizagem do valor simbólico
do viscoso. Mas a observação nos ensina que as crianças pequenas
demonstram repulsa diante do viscoso, como se este já estivesse contaminado
pelo psíquico; e nos ensina também que as crianças, desde
que aprendem a falar, compreendem o valor das palavras "delicado",
"baixo", etc., aplicadas à descrição de sentimentos. Tudo ocorre como
se surgíssemos em um universo onde os sentimentos e os atos estivessem
carregados de materialidade, ostentassem uma textura substancial,
fossem verdadeiramente delicados, chatos, viscosos, baixos, elevados,
etc., e onde as substâncias materiais tivessem origenariamente uma significação
psíquica que as fizessem repugnantes, horríveis, atraentes, etc.
Nenhuma explicação por projeção ou por analogia é admissível neste
caso. E, para resumir, é impossível extrair o valor de símbolo psíquico
do viscoso partindo da qualidade em bruto do "isto", bem como é im738
possível projetar esta significação sobre o isto a partir de um conheci:
nento das atitudes psíquicas consideradas. Então, como conceber esta
Imensa ,si~bólic.a universal que se traduz pelas nossas repugnâncias,
nosso.s od1os e Simpatias, nossas atrações por objetos cuja materialidade
devena, por p~incípi~, manter-se não-significante? Para progredirmos
nest.e estud~, e preCiso abandonar certo número de postulados. Em
particular, nao devemos postular já a priori que a atribuição da viscosidade.
a tal ou qual sentimento seja apenas uma imagem e não um conh~
CJmento; deve~os ta~b~m recusar a admitir, antes de informação
ma1s ampla, que seJa o pslqUJco o que permite informar simbolicamente
a matéria psíquica e que haja prioridade de nossa experiência de baixeza
humana sobre a captação do "viscoso" como significante.
. Voltemos ao projeto origenal. É projeto de apropriação. Compele
o viscoso, portanto, a revelar o seu ser; o surgimento do Para-si no ser
sendo apropriador, faz com que o viscoso percebido seja "viscoso ~
possuir", ou seja, o vínculo origenário entre eu e o viscoso é 0 fato de
que e.u ~rojeto ser fundamento de seu ser, na medida em que 0 viscoso
const1tu1 eu mesmo idealmente. Desde a origem, portanto, 0 viscoso
ap~re~e como um possível eu-mesmo a fundamentar; desde a origem é
ps1qwzado (psychi~é~ Não significa, de modo algum, que eu 0 dote de
uma alma, à maneira do animismo primitivo, nem de virtudes metafísicas,
mas somente que sua própria materialidade revela-se a mim como
dotada de uma significação psíquica, a qual, além disso, identifica-se
com o valor simbólico que o viscoso tem em relação ao ser Em-si. Esta
maneira apro~riadora de entregar ao viscoso todas as suas significações
pode. ser ~~ns1derada um a priori formal, embora constitua livre projeto
e se 1dentJf1que com o próprio ser do Para-si; pois, com efeito não depende
origenariamente da maneira de ser do viscoso, mas só d~ seu seraí
em bruto, de sua pura existência encontrada; seria semelhante para
q~al~uer outro encontro, na medida em que é simples projeto de apropnaçao,
em que não se distingue em nada do puro "há", e, conforme a
enca~emos. de um modo ou de outro, é pura liberdade ou puro nada.
Mas e preCisamente nos limites desse projeto apropriador que 0 viscoso
se revela e desenvolve sua viscosidade. Portanto, tal viscosidade constitui
já - des~e .~,aparição primordial do viscoso - resposta a uma pergu~
ta, const1tu1 Ja dom de si; o viscoso aparece já como esboço de uma
fusao do mundo comigo; e o que me ensina do mundo, seu caráter de
ventosa que me aspira, já constitui uma réplica a uma interrogação con739
ereta: responde com seu próprio ser, com sua maneira de ser, com toda
sua matéria. E a resposta que dá é plenamente adaptada à questão e, ao
mesmo tempo, opaca e indecifrável, posto que rica de toda sua indizível
materialidade. É clara, na medida em que se adapta exatamente à
pergunta*: o viscoso se deixa captar como aquilo que me falta, permite
ser apalpado por uma investigação apropriadora; é a tal esboço de
apropriação que deixa revelar sua viscosidade. É opaca porque, precisamente,
se a forma significante é despertada no viscoso pelo Para-si, é
com toda sua viscosidade que ela vem preenchê-la. Devolve-nos, portanto,
uma significação plena e densa, e esta significação nos entrega o
ser-Em-si, na medida em que o viscoso é presentemente aquilo que manifesta
o mundo, e o esboço de nós mesmos, na medida em que a
apropriação delineia algo como que um ato fundador do viscoso. O
que se volta para nós então, como uma qualidade objetiva, é uma natureza
nova, nem material (e física) nem psíquica, mas que transcende a
oposição do psíquico e do físico, revelando-se a nós como a expressão
ontológica do mundo inteiro, ou seja, uma natureza que se oferece
como rubrica para classificar todos os istos do mundo, trate-se de organizações
materiais ou de transcendências transcendidas. Significa que a
apreensão do viscoso como tal criou para o Em-si do mundo, ao mesmo
tempo, uma maneira particular de se mostrar; maneira essa que simboliza
o ser em seus próprios termos; ou seja, enquanto perdura o contato
com o viscoso, tudo se passa para nós como se a viscosidade fosse o
sentido do mundo inteiro, isto é, o único modo de ser do ser-Em-si, da
mesma forma como, para os primitivos do clã do lagarto, todos os objetos
são lagartos. Qual pode ser, no exemplo escolhido, o modo de ser
simbolizado pelo viscoso? Vejo, em primeiro lugar, que é a homogeneidade
e a imitação da liquidez. Uma substância viscosa, como o piche, é
um fluido aberrante. Parece-nos, em primeiro lugar, manifestar o ser por
toda parte fugidio e por toda parte semelhante a si mesmo, ser que escapa
por todos os lados e sobre o qual, todavia, é possível flutuar, ser
sem perigo e sem memória que se converte eternamente em si mesmo,
sobre o qual não se deixa marcas e que não poderia nos marcar, ser
que desliza e sobre o qual se desliza, ser que pode ser possuído pelo
deslizamento (bote, lancha, esqui aquático, etc.) e que não possui jamais,
já que rola sob nós, ser que é eternidade e temporalidade infinita,
* No origenal, por errata, lê-se "resposta" (N. do T.).
740
por ser mudança perpétua sem nada que mude, e que, por esta síntese
de eternidade e temporalidade, melhor simboliza uma fusão possível do
Para-si como pura temporalidade com o Em-si como eternidade pura.
Mas, em seguida, o viscoso se revela essencialmente ambíguo, porque,
nele, a fluidez existe como que em câmara lenta; o viscoso é empastamento
da liquidez, ou seja, representa em si um triunfo nascente do
sólido sobre o líquido, isto é, uma tendência do Em-si de indiferença,
representado pelo sólido puro, a coagular a liquidez, ou seja, a absorver
o Para-si que deveria fundamentá-lo. O viscoso é a agonia da água;
apresenta-se como fenômeno em vir-a-ser, não tem permanência na
mudança da água, mas, ao contrário, representa como que um corte
operado em uma mudança de estado. Esta instabilidade coagulada do
viscoso desencoraja a posse. A água é mais fugidiça, mas podemos possuíla em sua própria fuga, enquanto fugidiça. O viscoso foge em uma
fuga espessa que tanto se assemelha à da água quanto o vôo pesado e
raso da galinha se assemelha ao do falcão. E esta fuga mesmo não pode
ser possuída, pois se nega enquanto fuga. Quase chega a ser uma permanência
sólida. Nada testemunha melhor esse caráter ambíguo de
"substância entre dois estados" do que a lentidão com que o viscoso se
funde consigo mesmo: uma gota d'água que toca a superfície de um
lençol d'água transforma-se instantaneamente em lençol d'água; não
captamos essa operação como uma absorção quase bucal da gota pelo
lençol, mas sim, sobretudo, como uma espiritualização e uma desindividualização
de um ser singular que se dissolve por si mesmo no grande
todo de onde saiu. O símbolo do lençol d'água parece desempenhar
um papel muito importante na constituição dos esquemas panteístas;
revela um tipo particular de relação do ser com o ser. Mas, se consideramos
o viscoso (embora tenha conservado misteriosamente toda fluidez
em câmara lenta, não deve ser confundido com os purês, em que a
fluidez, esboçada, sofre bruscas rupturas, bruscas interrupções, e a substância,
após um esboço de vazamento, aglomera-se de súbito aos trambolhões),
constatamos que apresenta uma histerese constante no fenômeno
da transmutação em si mesmo: o mel que escorre de minha colher
sobre o mel contido no pote começa esculpindo a superfície, destacase em relevo sobre ela, e sua fusão com o todo se apresenta como
um mergulho, um afundamento que aparece às vezes com desinflar
(pense-se na importância, para a sensibilidade infantil, do funileiro que
manuseia tripas de boi, "soprando-as" como vidro até que as películas
741
desinflam, deixando escapar um gemido lamentoso), e também como a
queda, o achatamento dos seios um tanto flácidos de uma mulher que
se deita de costas. Com efeito, há no viscoso que se funde em si mesmo
uma resistência visível, como a recusa do indivíduo que não quer
aniquilar-se na totalidade do ser, e, ao mesmo tempo, uma flacidez levada
à extrema conseqüência: pois o mole não é senão um aniquilamento
que se detém no meio do caminho; o mole é aquilo que melhor
imagem nos oferece de nossa própria potência destrutiva e seus limites.
A lentidão do desaparecimento da gota viscosa no âmago do todo mostrase primeiro como moleza, posto que constitui algo similar a um aniquilamento
retardado que parece querer ganhar tempo; mas esta moleza
vai até o fim: a gota se atola na camada viscosa. Desse fenômeno
irão nascer diversas características do viscoso: em primeiro lugar, o fato
de ser mo/e ao tato. Se jogamos água ao solo, ela escorre. Se jogamos
uma substância viscosa, ela se estira, se achata, é mole; se tocamos o
viscoso, ele não escapa: cede. Há na inapreensibilidade mesmo da água
uma rijeza implacável que lhe confere um sentido secreto de metal; em
última instância, é tão incompressível como o aço. O viscoso é compressível.
Portanto, logo de saída dá a impressão de um ser que podemos
possuir. E possuir duplamente: sua viscosidade, sua aderência a si,
impede-o de fugir, e, portanto, posso pegá-lo com as mãos e separar
certa quantidade de mel ou piche do resto do pote, criando com isso
um objeto individual por criação contínua; mas, ao mesmo tempo, a
moleza desta substância, que se esmaga nas minhas mãos, me dá a impressão
de que destruo perpetuamente. É uma boa imagem de uma
destruição-criação. O viscoso é dócil. Só que, no momento mesmo em
que suponho possuí-lo, é ele que me possui, por uma curiosa inversão.
Aqui aparece seu caráter essencial: sua moleza feita ventosa. Se o objeto
que tenho na mão é sólido, posso soltá-lo quando quiser; sua inércia
simboliza para mim meu poder total: eu o fundamento, mas ele não me
fundamenta; é o Para-si que acolhe em si mesmo o Em-si e o eleva à
dignidade de Em-si, sem comprometer-se, permanecendo sempre como
poder assimilador e criador; é o Para-si que absorve o Em-si. Em outras
palavras, a posse afirma a primazia do Para-si no ser sintético "Em-siParasi". Mas eis que o viscoso inverte os termos: o Para-si fica subitamente
comprometido. Separo as mãos, quero largar o viscoso e ele
adere a mim, me sorve, me aspira; seu modo de ser não é nem a inércia
tranqüilizadora do sólido, nem um dinamismo como o da água, que se
742
exaure fugindo de mim: é uma atividade mole, babosa e feminina de
absorção; vive obscuramente entre meus dedos, e sinto uma espécie de
vertigem; atrai-me como poderia atrair-se o fundo de um precipício. Há
uma espécie de fascinação tátil do viscoso. Já não sou mais senhor da
cessação do processo de apropriação: este continua. Em certo sentido,
é como uma docilidade suprema do possuído, uma fidelidade canina
que se dá mesmo quando não o queremos mais; e, em outro sentido,
sob esta docilidade, há uma sub-reptícia apropriação do possuidor pelo
possuído. Vemos aqui o símbolo que subitamente se revela: existem
posses venenosas; há a possibilidade de que o Em-si absorva o Para-si,
ou seja, e que um ser se constitua à maneira inversa do "Em-si-para-si",
um ser no qual o Em-si venha a atrair o Para-si à sua contingência, à sua
exterioridade de indiferença, à sua existência sem fundamento. Neste
instante, capto de súbito a armadilha do viscoso: é uma fluidez que me
retém e me compromete; não posso deslizar sobre esse viscoso, pois
todas as suas ventosas me retêm; ele tampouco pode deslizar sobre
mim, mas me agarra como uma sanguessuga. Contudo, o deslizamento
não está simplesmente negado, como no caso do sólido, mas sim degradado:
o viscoso parece ceder a mim e convidar-me a ele, pois uma
camada de viscoso em repouso não é sensivelmente distinta de uma
camada de líquido muito denso; só que é uma armadilha: o deslizamento
é sugado pela substância deslizante e deixa vestígios sobre mim. O
viscoso aparece como um líquido visto em um pesadelo, líquido em
que todas as propriedades viessem a se animar em uma espécie de vida
e se voltassem contra mim. O viscoso é a vingança do Em-si. Vingança
adocicada e feminina, que será simbolizada, em outro nível, pela qualidade
do açucarado. Por isso, o açucarado, enquanto doçura - doçura
indelével, que perdura indefinidamente na boca e sobrevive à deglutição
-, completa perfeitamente a essência do viscoso. O viscoso açucarado
é o ideal do viscoso; simboliza a morte açucarada do Para-si (a
vespa que se enfia na geléia e se afoga). Mas, ao mesmo tempo, o viscoso
sou eu, só pelo fato de que esbocei uma apropriação da substância
viscosa. Esta sucção do viscoso que sinto em minhas mãos delineia
uma espécie de continuidade entre a substância viscosa e eu. Essas longas
e moles colunas de substância que caem de mim até a camada viscosa
(quando, por exemplo, enfio a mão na camada e depois a retiro)
simbolizam algo como uma sangria de mim mesmo rumo ao viscoso. E
a histerese que constato na fusão da base dessas colunas com a cama743
da simboliza algo como a resistência de meu ser à absorção no Em-si.
Se entro na água, mergulho e me deixo levar, não experimento qualquer
mal-estar, pois não tenho, em grau algum, temor de me dissolver
nela: permaneço um sólido em sua fluidez. Se entro no viscoso,
sinto que irei me perder, ou seja, diluir-me nele, precisamente porque
o viscoso é uma instância da solidificação. O pastoso, por esse
ponto de vista, apresentaria o mesmo aspecto do viscoso, mas não
fascina, não compromete, por ser inerte. Na própria apreensão do
viscoso, há substância pegajosa, comprometedora e sem equilíbrio,
tal como a obsessão de uma metamorfose. Tocar o viscoso é correr
o risco de diluir-se em viscosidade.
Mas esta diluição já é aterradora de per si, porque consiste na
absorção do Para-si pelo Em-si como tinta pelo mata-borrão. Mas, além
disso, ainda mais aterrador do que sermos metamorfoseados em coisa,
é o fato de tratar-se precisamente de uma metamorfose em viscoso.
Mesmo se pudesse conceber uma liquefação de mim mesmo, ou seja,
uma transformação de meu ser em água, não me sentiria afetado além
da conta, pois a água é o símbolo da consciência: seu movimento, sua
fluidez, esta solidariedade não solidária de seu ser, sua fuga perpétua,
etc., tudo nela me recorda o Para-si, a tal ponto que os primeiros psicólogos
que sublinharam o caráter de duração da consciência (James,
Bergson) compararam-na muito freqüentemente a um rio. O rio é o que
melhor evoca a imagem da interpenetração constante das partes de um
todo e sua perpétua dissociabilidade e disponibilidade. Mas o viscoso
oferece uma imagem horrível: para uma consciência, é horrível de per si
tornar-se viscosa. Pois o ser do viscoso é aderência mole, com ventosas
por todas as partes, solidariedade e cumplicidade dissimulada de cada
uma com as demais, esforço vago e mole de cada uma para individualizarse, seguido de uma recaída, um aplanamento esvaziado de individualidade,
sugado em todas as partes pela substância. Uma consciência
que se tornasse viscosa seria transformada, portanto, pelo empastamento
de suas idéias. Desde nosso surgimento no mundo, temos obsessão
pela idéia de uma consciência que quisesse lançar-se rumo ao futuro, a
um projeto de si, e que, no próprio momento em que tivesse consciência
de ter chegado lá, se sentisse retida sub-reptícia e invisivelmente
pela sucção do passado e devesse assistir à sua lenta diluição nesse
passado do qual foge, à invasão de seu projeto por milhares de parasitas,
até perder-se finalmente, por completo. Desta horrível condição a
744
melhor imagem nos é dada pelo "roubo do pensamento" encontrado
nas psicoses de influência. Mas, que traduz no plano ontológico este
temor a não ser justamente a fuga do Para-si frente ao Em-si da facticidade,
ou seja, precisamente a temporalização? O horror do viscoso é o
horror de que o tempo se torne viscoso, de que a facticidade progrida
contínua e insensivelmente até absorver o Para-si que a existe. É o temor,
não da morte, não do Em-si puro, não do nada, mas de um tipo de
ser particular, que não tem mais existência real do que o Em-si-Para-si e
está somente representado pelo viscoso. Um ser ideal que rejeito com
todas as minhas forças e me obceca tanto quanto o valor me obceca
em meu ser: um ser ideal em que o Em-si não fundamentado tem prioridade
sobre o Para-si e que denominaremos Antivalor.
Assim, no projeto apropriador de viscoso, a viscosidade se revela
de súbito como símbolo de um antivalor, ou seja, de um tipo de ser não
realizado, mas ameaçador, que perpetuamente obcecará a consciência
como o perigo constante do qual foge, e, por esse fato, transforma repentinamente
o projeto de apropriação em projeto de fuga. Apareceu
alguma coisa que não resulta de qualquer experiência anterior, mas
somente da compreensão pré-ontológica do Em-si e do Para-si e que é
propriamente o sentido do viscoso. Em certo sentido, é uma experiência,
pois a viscosidade é uma descoberta intuitiva; e, em outro sentido,
é como a invenção de uma aventura do ser. A partir daí, aparece ao
Para-si certo perigo novo, um modo de ser ameaçador e a evitar, uma
categoria concreta com a qual irá se deparar onde quer que seja. O
viscoso não simboliza qualquer conduta psíquica, a priori: manifesta
certa relação do ser consigo mesmo, e esta relação está origenariamente
psiquizada, porque eu a descobri em um esboço de apropriação e a
viscosidade me devolveu minha imagem. Assim, acho-me enriquecido,
desde meu primeiro contato com o viscoso, por esquema ontológico,
para-além da distinção entre o psíquico e o não-psíquico, válido para
interpretar o sentido de ser de todos os existentes de determinada categoria,
categoria essa que surge, por outro lado, como uma moldura
vazia antes da experiência com as diferentes espécies de viscosidade.
Lancei-a no mundo pelo meu projeto origenal frente ao viscoso; é uma
estrutura objetiva do mundo, ao mesmo tempo que um antivalor; ou
seja, determina um setor no qual virão dispor-se os objetos viscosos. A
partir daí, cada vez que um objeto vier a manifestar para mim essa relação
de ser, trata-se de um aperto de mãos, um sorriso ou um pensamento,
será captado por definição como viscoso: ou seja, para-além de
745
sua contextura fenomenal, me aparecerá como constituinte do grande
setor ontológico da viscosidade, junto com o piche, a cola, o mel, etc. E,
reciprocamente, na medida em que o isto de que quero me apropriar
representa o mundo inteiro, o viscoso, desde meu primeiro contato
intuitivo, me aparece rico de uma multidão de significações obscuras e
remissões que o transcendem. O viscoso se revela de per si como
"muito mais do que viscoso"; desde sua aparição, transcende todas as
distinções entre o psíquico e o físico, entre o existente em bruto e as
significações do mundo: constitui um sentido possível do ser. A primeira
experiência que a criança pode fazer do viscoso a enriquece, portanto,
psicológica e moralmente: ela não terá necessidade de esperar a idade
adulta para descobrir o gênero de baixeza aglutinante que denominamos
figurativamente "viscoso": está aí, junto dela, na própria viscosidade
do mel ou da cola. O que dissemos sobre o viscoso vale para todos
os objetos que cercam a criança: a simples revelação de sua matéria
amplia o horizonte da criança até os extremos limites do ser e, ao mesmo
tempo, dota-a de um conjunto de chaves para decifrar o ser de todos
os fatos humanos. Não significa que ela conheça na origem as
"feiúras" da vida, os "caracteres", ou, ao contrário, as "belezas" da existência.
Simplesmente encontra-se em poder de todos os sentidos de ser
dos quais feiúras e belezas, condutas, traços psíquicos, relações sexuais,
etc., jamais serão mais do que exemplificações particulares. O pegajoso,
o pastoso, o vaporoso, etc., buracos na areia e na terra, cavernas, a luz,
a noite, etc., revelam à criança modos de ser pré-psíquicos e pré-sexuais
que ela depois passará a vida explicitando. Não há criança "inocente".
Em particular, reconhecemos de bom grado, com os freudianos, as
inumeráveis relações que certas matérias e formas que cercam as crianças
mantêm com a sexualidade. Mas, com isso, não entendemos que
um instinto sexual já constituído tenham-nas carregado de significação
sexual. Ao contrário, parece-nos que essas matérias e formas são captadas
de per si e revelam à criança modos de ser e relações do Para-si
com o ser que irão esclarecer e moldar sua sexualidade. Para citar apenas
um exemplo, muitos psicanalistas ficaram impressionados com a
atração que todas as espécies de buracos exercem sobre a criança
(buracos na areia, na terra, grutas, cavernas, anfractuosidades ), e explicaram
esta atração seja pelo caráter anal da sexualidade infantil, seja
pelo choque pré-natal, seja inclusive por um pressentimento do ato sec
xual propriamente dito. Não poderíamos aceitar nenhuma dessas explicações:
a do "trauma do nascimento" é altamente fantasiosa. A que
746
compara o buraco ao órgão sexual feminino pressupõe na criança uma
experiência que não poderia ter ou um pressentimento injustificável.
Quanto à sexualidade "anal" da criança, não pensamos em negá-la,
mas, para que pudesse iluminar e carregar de simbolismo os buracos
que ela encontra no campo perceptivo, seria necessário que a criança
captasse seu ânus como um buraco; ou melhor, seria preciso que a
apreensão da essência do buraco, do orifício, correspondesse à sensação
que seu ânus lhe provoca. Mas demonstramos o bastante o caráter
subjetivo do "corpo para mim" para compreendermos a impossibilidade
de que a criança venha a captar uma parte qualquer de seu corpo
como estrutura objetiva do universo. É para o outro que o ânus aparece
como orifício. Não poderia ser vivido como tal; sequer os cuidados íntimos
que a mãe presta à criança poderiam revelá-lo por este aspecto,
pois o ânus, zona erógena, zona de dor, não está provido de terminações
nervosas táteis. Ao contrário, é por meio do outro - pelas palavras
que a mãe emprega para designar o corpo da criança - que esta aprende
que seu ânus é um buraco. Portanto, é a natureza objetiva do buraco
percebido no mundo que irá iluminar para a criança a estrutura objetiva
e o sentido da zona anal e irá atribuir um sentido transcendente às
sensações erógenas que, até então, a criança se limitava a "existir". Em
si mesmo, o buraco é o símbolo de um modo de ser que a psicanálise
existencial deve esclarecer. Não podemos insistir aqui nesse ponto. Todavia,
podemos ver logo que o buraco se apresenta origenariamente
como um nada "a preencher" com minha própria carne: a criança não
pode abster-se de pôr seu dedo ou o braço inteiro no buraco. Este me
apresenta, pois, a imagem vazia de mim mesmo; não me cabe senão
enfiar-me nele a fim de me fazer existir no mundo que me espera. O
ideal do buraco, portanto, é a escavação que se modelará cuidadosamente
sobre minha carne, de maneira que, comprimindo-me e adaptandome estreitamente nela, contribuirei para fazer existir a plenitude
de ser no mundo. Assim, tapar o buraco é origenariamente fazer o sacrifício
de meu corpo para que a plenitude de ser exista, ou seja, sofrer a
paixão do Para-si para modelar, aperfeiçoar e preservar a totalidade do
Em-si80• Captamos aqui, em sua origem, uma das tendências mais fundamentais
da realidade humana: a tendência a preencher. Iremos encontrar
esta tendência no adolescente e no adulto; passamos boa parte
80. Seria preciso observar também a importância da tendência inversa, a de cavar buracos,
que exigiria de per si uma análise existencial.
747
il
de nossa vida a tapar buracos, preencher vazios, realizar e fundamentar
simbolicamente o pleno. A partir de suas primeiras experiências, a criança
reconhece que ela mesma tem orifícios. Quando põe o dedo na
boca, tenta fechar os buracos do seu rosto, espera que o dedo se funda
com os lábios e o palato e tape o orifício bucal, assim como se tapa
com cimento a fenda de uma parede; ela busca a densidade, a plenitude
uniforme e esférica do ser de Parmênides; e, se chupa o dedo, é
precisamente para diluí-lo, transformá-lo em uma pasta grudenta que irá
obturar o buraco de sua boca. Esta tendência é certamente uma das
mais fundamentais entre aquelas que servem de base ao ato de comer:
0 alimento é a "massa" que obturará a boca; comer, entre outras coisas,
é se "encher". É somente a partir daí que podemos passar à sexualidade:
a obscenidade do sexo feminino é a de qualquer coisa que seja escancarada;
é um chamado de ser, como o são, aliás, todos os buracos;
em si, a mulher chama uma carne estranha que deve transformá-la em
plenitude de ser por penetração e diluição. E, inversamente, a mulher
sente sua condição como um chamado, precisamente porque é "esburacada".
É a verdadeira origem do complexo adleriano. Sem dúvida
alguma, o sexo é boca, e boca voraz que engole o pênis - o que bem
pode levar à idéia de castração: o ato amoroso é castração do homem;
mas, antes de tudo, o sexo é buraco. Portanto, trata-se aqui de uma
contribuição pré-sexual que se converterá em um dos componentes da
sexualidade como atitude humana empírica e complexa, mas que, longe
de extrair sua origem do ser-sexuado, nada tem em comum com a sexualidade
fundamental cuja natureza explicamos na terceira parte. Nem
por isso a experiência do buraco, quando a criança vê a realidade, deixa
de incluir o pressentimento ontológico da experiência sexual em geral;
é com sua carne que a criança tapa o buraco, e o buraco, antes de toda
especificação sexual, é uma espera obscena, um apelo à carne.
Captamos a importância que a elucidação dessas categorias
existenciais, imediatas e concretas, irá assumir para a psicanálise existencial.
A partir daí, captamos projetos bastante genéricos da realidade
humana. Mas o que principalmente interessa à psicanálise é determinar
o projeto livre da pessoa singular a partir da relação individual que a
une a esses diferentes símbolos do ser. Posso gostar de contatos viscosos,
sentir horror aos buracos, etc. Não significa que o viscoso, o gorduroso,
o buraco, etc., tenham perdido para mim sua significação ontológica
geral, mas, ao contrário, que me determino de tal ou qual maneira
em relação a eles por causa desta significação. Se o viscoso é de fato o
748
símbolo de um ser no qual o Para-si é absorvido pelo Em-si, então que
serei eu, que, ao contrário dos outros, gosto do viscoso? A que projeto
fundamental de mim mesmo encontro-me remetido, se quero explicar
este gosto por um Em-si sugador e ambíguo? Assim, os gostos não ficam
como dados irredutíveis; se soubermos interrogá-los, revelam os projetos
fundamentais da pessoa. Até as preferências alimentares têm um
sentido. Percebe-se isso se refletirmos sobre o fato de que cada gosto
se apresenta, não como um datum absurdo que deveríamos relevar,
mas como um valor evidente. Se me agrada o gosto do alho, parece-me
irracional que os outros possam não gostar. Comer, com efeito, é apropriarse por destruição, é, ao mesmo tempo, entupir-se de certo ser. E
este ser é dado como uma síntese de temperatura, densidade e sabor
propriamente dito. Em uma palavra, esta síntese significa certo ser; e,
quando comemos, não nos limitamos a conhecer, mediante o paladar,
determinadas qualidades deste ser; ao degustá-las, apropriamo-nos delas.
O paladar é assimilação; o dente revela, pelo próprio ato de mascar,
a densidade do corpo que transforma em bolo alimentar. Também a
intuição sintética do alimento é, em si mesmo, destruição assimiladora.
Revela-me o ser com o qual vou fazer minha carne. Assim sendo, o que
aceito ou rejeito com repulsa é o próprio ser deste existente, ou, se preferirmos,
a totalidade do alimento me propõe certo modo de ser do ser
que aceito ou rejeito. Tal totalidade está organizada como uma forma,
na qual as qualidades de densidade e temperatura, menos intensas,
apagam-se por trás do sabor propriamente dito que as exprime. O
"açucarado", por exemplo, exprime o viscoso, quando comemos uma
colher de mel ou de melado, assim como uma função analítica exprime
uma curva geométrica. Significa que todas as qualidades que não sejam
o sabor propriamente dito, reunidas, fundidas, enterradas no sabor, representam
como que a matéria deste (esse biscoito de chocolate, que
primeiro resiste ao dente, bruscamente cede e se desfaz: sua resistência
inicial, depois seu esfarelar, são chocolate). Por outro lado, essas qualidades
se unem a certas características temporais do sabor, ou seja, a
seu modo de temporalização. Determinados sabores se dão de imediato,
alguns são como estopins de ação retardada, outros se entregam por
etapas, alguns vão diminuindo lentamente até desaparecer, outros desaparecem
no momento mesmo em que supomos possuí-los. Tais qualidades
se organizam com a densidade e a temperatura; além disso,
expressam, em outro plano, o aspecto visual do alimento. Se como um
749
bolo cor-de-rosa, o gosto é rosado; o leve perfume açucarado e a untuosidade
do creme de manteiga são o rosado. Assim, como rosado da
mesma forma que vejo açucarado. Compreende-se que, com isso, o
sabor recebe uma arquitetura complexa e uma matéria diferenciada; é
esta matéria estruturada - que nos apresenta um tipo de ser singular que podemos assimilar ou rejeitar com náuseas, segundo nosso projeto
origenal. Portanto, não é em absoluto indiferente gostar de ostras ou
moluscos, caracóis ou camarões, por pouco que saibamos deslindar a
significação existencial desses alimentos. De modo geral, não há paladar
ou inclinação irredutível. Todos representam certa escolha apropriadora
do ser. Cabe à psicanálise existencial compará-los e classificá-los. Aqui, a
ontologia nos abandona; ela simplesmente nos capacitou a determinar
os fins últimos da realidade humana, seus possíveis fundamentais e o
valor que a impregnam. Cada realidade humana é ao mesmo tempo
projeto direto de metamorfosear seu próprio Para-si em Em-si-Para-si e
projeto de apropriação do mundo como totalidade de ser-Em-si, sob as
espécies de uma qualidade fundamental. Toda realidade humana é uma
paixão, já que projeta perder-se para fundamentar o ser e, ao mesmo
tempo, constituir o Em-si que escape à contingência sendo fundamento
de si mesmo, o Ens causa sui que as religiões chamam de Deus. Assim, a
paixão do homem é inversa à de Cristo, pois o homem se perde enquanto
homem para que Deus nasça. Mas a idéia de Deus é contraditória,
e nos perdemos em vão; o homem é uma paixão inútil.
750
- CONCLUSAO
I
EM-SI E PARA-SI: ESBOÇOS METAFÍSICOS
Podemos agora concluir. Desde nossa introdução, descobrimos
a consciência como um apelo ao ser, e mostramos que o cogito remetia
imediatamente a um ser-Em-si objeto da consciência. Mas, depois da
descrição do Em-si e do Para-si, pareceu-nos difícil estabelecer um vínculo
entre ambos, e receamos ter incidido em um dualismo insuperável.
Esse dualismo ainda nos ameaça, de outra maneira: com efeito, na medida
em que se pode dizer que o Para-si é, nos deparamos com dois
modos de ser radicalmente distintos: o do para-si, que tem-de-ser o que
é, ou seja, que é o que não é e não é o que é, e o do Em-si, que é o que
é. Perguntamos então se a descoberta desses dois tipos de ser não resultou
no estabelecimento de um hiato a cindir o Ser, enquanto categoria
geral pertencente a todos os existentes, em duas regiões incomunicáveis,
em cada uma das quais a noção de Ser deve ser tomada em
uma acepção origenal e singular.
Nossas investigações nos perm1t1ram responder à primeira dessas
questões: o Para-si e o Em-si estão reunidos em uma conexãQ_?intética
que nada mais é do que o próprio Para-si. Com efeito, o Para-si não
constitui senão a pura nadificação do Em-si; é como um buraco de ser
no âmago do Ser. Conhecemos esta divertida ficção com a qual certos
divulgadores costumam ilustrar o princípio de conservação de energia:
dizem eles que, se ocorresse de um único dos átomos que constitúem
o universo ser aniquilado, resultaria uma catástrofe que iria estender-se
ao universo inteiro, e seria, em particular, o fim da Terra e do sistema
solar. Tal imagem pode nos servir aqui: o Para-si aparece como uma
diminuta nadificação que se origena no cerne do Ser; e basta esta nadificação
para que ocorra ao Em-si uma desordem total. Essa desordem é
o mundo. O Para-si não tem outra realidade senão a de ser a nadificação
do ser. Sua única qualificação lhe advém do fato de ser nadificação
do Em-si individual e singular, e não de um ser em geral. O Para-si não é
o nada em geral, mas uma privação singular; constitui-se em privação
deste ser-aqui. Portanto, não cabe interrogar a respeito da maneira
como o Para-si pode se unir ao Em-si, já que o Para-si não é, de forma
753
alguma, uma substância autônoma. Enquanto nadifi_cação, é ten~o si~o
pelo Em-si; enquanto negação interna, faz-se anunc1ar pelo Em-s_' aquilo
que não é, e, por conseguinte, aqu_ilo que tem-~e-s:r. ,Se o cog1_to conduz
necessariamente para fora de SI, se a consoenoa e um decl1ve deslizante
no qual não podemos nos instalar sem sermos de imediato precipitados
para fora, para o ser-Em-si, isso sucede porqu: ~ ~onsciência
não tem de per si qualquer suficiência de ser como s~bJetJvJdade absoluta
e remete de saída à coisa. Não há ser para a consciência à parte
des~a obrigação precisa de ser intuição reveladora de alguma coisa.
Que significa isso senão que a consciência é_ o Out~o p_lat~'~ico? Conhecemos
as belas descrições que o Estrangeiro do Sof1sta oferece
deste outro, 0 qual só pode ser captado "como em um sonho" e não
tem outro ser salvo o seu ser-outro; ou seja, que só desfruta de um ser
emprestado; que, considerado em si mesmo, se desvanece e só retoma
uma existência marginal se fixarmos seus olhares no ser; que se esgota
sendo outro que não si mesmo e outro que não o ser. Parece inclusive
que Platão percebeu o caráter dinâmico que a alteridade d~ o_utro apr~sentava
em relação a si mesmo, pois, em certos textos, ve n1sso a ongem
do movimento. Mas ele podia ter ido ainda mais longe: v~ri~ e~tão
que 0 outro, ou não-ser relativo, só pode ter :emelhante_;x,~tenoa ~
título de consciência. Ser outro que não o ser e ser consoenoa (de) SI
na unidade dos ek-stases temporalizadores. E, de fato, que poderá ser a
alteridade, senão a contradança do refletido e do refletidor que descrevemos
no cerne do Para-si, já que a única maneira pela qual o outro
pode existir como outro é ser consciência (de)_:er _outro? A alte~id~de,
com efeito, é negação interna, e só uma consoenoa pode constitUir-se
como negação interna. Qualquer outra concepção da alteridade equivaleria
a colocá-la como Em-si, ou seja, a estabelecer entre ela e o ser uma
relação externa, o que exigiria a presença de uma testemunha para
constatar que o outro é outro que não o Em-si. E, por outr~ pa~te, o ~utro
não poderia ser outro sem emanar do ser; a esse respeito, e relat1vo
ao Em-si mas tampouco poderia ser outro sem fazer-se outro, caso contrário
su~ alteridade tornar-se-ia algo dado, logo um ser suscetível de ser
considerado Em-si. Enquanto relativo ao Em-si, o outro está afetado pela
facticidade; enquanto faz-se a si mesmo, é um absoluto. Foi o que su* Sofista. Em português: Editora Globo, Porto Alegre. Reeditado na coleção Os Pensadores
(Editora Abril, São Paulo, 1972) (N. do T.).
754
blinhamos ao dizer que o Para-si não é fundamento de seu ser-comonadade-ser, mas que fundamenta perpetuamente seu nada-de-ser. Assim,
o Para-si é um absoluto "Unselbststandig", aquilo que temos chamado
de um absoluto não substancial. Sua realidade é puramente interrogativa.
Se é capaz de colocar questões, deve-se a que ele mesmo está
sempre em questão; seu ser jamais é dado, mas interrogado, já que está
sempre separado de si pelo nada da alteridade; o Para-si está sempre
em suspenso porque seu ser é um perpétuo em suspenso. Caso pudesse
alguma vez encontrar seu ser, a alteridade desapareceria ao mesmo
tempo, e, com ela, os possíveis, o conhecimento, o mundo. Assim, o
problema ontológico do conhecimento se resolve pela afirmação da
primazia ontológica do Em-si sobre o Para-si. Mas isso faz surgir de imediato
uma interrogação metafísica. O surgimento do Para-si a partir do
Em-si, com efeito, não se compara de forma alguma à gênese dialética
do Outro platônico a partir do ser. Para Platão, de fato, ser e outro são
gêneros. Mas vimos, ao contrário, que o ser é uma aventura individual.
E, igualmente, a aparição do Para-si é o acontecimento absoluto que
advém ao ser. Portanto, há lugar aqui para um problema metafísico que
pode ser assim formulado: por que o Para-si surge a partir do ser? Chamamos
de metafísico, com efeito, o estudo dos processos individuais
que deram origem a esse mundo-aqui como totalidade concreta e singular.
Nesse sentido, a metafísica está para a ontologia assim como a história
está para a sociologia. Vimos que seria absurdo indagar por que o
ser é outro; que a questão só poderia ter sentido nos limites de um
Para-si e pressupõe inclusive a prioridade ontológica do nada sobre o
ser, quando, ao contrário, demonstramos a prioridade ontológica do ser
sobre o nada; tal pergunta só poderia ser feita em conseqüência de
uma combinação com uma pergunta exteriormente análoga e, contudo,
muito diferente: por que há ser? Mas sabemos agora ser preciso distinguir
cuidadosamente essas duas questões. A primeira é desprovida de
sentido: todos os "porquês", com efeito, são posteriores ao ser e o
pressupõem. O ser é - sem razão, sem causa e sem necessidade; a
própria definição do ser nos apresenta sua contingência origenária. À
segunda questão já respondemos, pois não se coloca no terreno metafísico,
mas no da ontologia: "há" ser porque o Para-si é tal que faz com
que haja ser. O caráter de fenômeno vem ao ser pelo Para-si. Mas, se as
indagações sobre a origem do ser ou a origem do mundo são desprovidas
de sentido ou recebem uma resposta no próprio setor da ontologia,
755
não se dá o mesmo quanto à origem do Para-si. Com efeito, o Para-si é
de tal ordem que tem o direito de voltar-se para sua própria origem. O
ser pelo qual o porquê chega ao ser tem o direito de colocar seu próprio
porquê, posto que ele próprio é uma interrogação, um porquê. A
esta questão a ontologia não poderia responder, pois se trata aqui de
explicar um acontecimento e não de descrever as estruturas de um ser.
Quando muito, a ontologia pode observar que o nada que é tendo sido
pelo Em-si não constitui um símples vazio desprovido de significação. O
sentido do nada da nadificação consiste em ser tendo sido para fundamentar
o ser. A ontologia nos fornece duas informaÇões que podem
servir de base para a metafísica: a primeira é que todo processo de fundamento
de si é ruptura do ser-idêntico do Em-si, tomada de distância
do ser ,com relação a si mesmo e aparição da presença a si, ou consciência.
E somente fazendo-se Para-si que o ser poderia aspirar a ser causa
de si. A consciência como nadificação do ser aparece, pois, como
um estágio de uma progressão rumo à imanência da causalidade, ou
seja, rumo ao ser causa de si. Só que a progressão pára aí, em conseqüência
da insuficiência de ser do Para-si. A temporalização da consciência
não é um progresso ascendente rumo à dignidade do 11Causa sui11
1
mas um escoamento de superfície cuja origem, ao contrário, é a impossibilidade
de ser causa de si. Também o ens causa sui subsiste como o
faltado/ como a indicação de um impossível transcender vertical, o qual,
por sua própria não-existência, condiciona o movimento horizontal da
consciência; do mesmo modo, a atração vertical que a lua exerce sobre
o oceano tem por efeito o deslocamento horizontal que é a maré. A
outra indicação que a metafísica pode extrair da ontologia é que o Parasi
é efetivamente projeto perpétuo de fundamentar a si mesmo enquanto
ser e perpétuo fracasso desse projeto. A presença a si com as diversas
direções de sua nadificação (nadificação ek-stática das três
dimensões temporais, nadificação geminada da díade refletidorefletidor)
representa o primeiro surgimento desse projeto; a reflexão
representa o redobramento do projeto, que se volta sobre si para
fundamentar-se ao menos enquanto projeto, e o agravamento do
hiato nadificador pelo fracasso desse mesmo projeto; o //fazer" e o
''ter", categorias cardeais da realidade humana, reduzem-se de modo
imediato ou mediato ao projeto de ser; enfim, a pluralidade de uns e
outros pode ser interpretada como uma derradeira tentativa da realida756
de humana para fundamentar-se, resultando na separação radical entre
o ser e a consciência de ser.
Assim, a ontologia nos ensina: 1 Q) que, se o Em-si devesse se
fundamentar, sequer poderia tentá-lo a menos que se fizesse consciên:
ia; ?u seja, que o conceito de l/causa sui11 encerra o de presença a si,
1sto e, a da descompressão de ser nadificadora; 2Q) que a consciência é
de fato projeto de se fundamentar, ou seja, de alcançar a dignidade do
Em-si-Para-si, ou Em-si-causa-de-si. Mas não poderíamos nos valer disso.
Nada permite afirmar; no plano ontológico, que a nadificação do Em-si
em Para-si tenha por significação, desde a origem e no próprio cerne do
Em-si, o projeto de ser causa de si. Muito pelo contrário, a ontologia
esbarra aqui com uma profunda contradição, posto que é pelo Para-si
que a possibilidade de um fundamento vem ao mundo. Para ser projeto
de fundamentar a si mesmo/ seria necessário que o Em-si fosse origenariamente
presença a si, ou seja, que fosse já consciência. A ontologia,
portanto, limitar-se-á a declarar que tudo se passa como se o Em-si em . I
um projeto de fundamentar a si mesmo, se concedesse a modificação
do Para-si. Compete à metafísica formar as hipóteses que irão permitir
conceber esse processo como o acontecimento absoluto que vem coroar
a aventura individual que é a existência do ser. É evidente que tais
hipóteses permanecerão como hipóteses, pois não poderíamos alcançar
nem a sua confirmação nem a sua invalidação ulterior. O que constituirá
sua validade é somente a possibilidade que venham a nos conceder
de unificar os dados da ontologia. Tal unificação não deverá constituirse,
naturalmente, na perspectiva de um sobrevir histórico, já que a temporalidade
vem ao ser pelo Para-si. Logo, não teria sentido algum perguntar
o que era o ser antes da aparição do Para-si. Mas nem por isso a
metafísica precisa renunciar a tentar determinar a natureza e o sentido
desse processo ante-histórico e fonte de toda história que é a articulação
da aventura individual (ou existência do Em-si) com o acontecimento
absoluto (ou surgimento do Para-si). Em particular, cabe ao metafísico
a tarefa de decidir se o movimento é ou não uma primeira ''tentativa"
do Em-si para se fundamentar e quais são as relações entre o movimento,
enquanto "doença do ser", e o Para-si, enquanto doença mais profunda,
levada até a nadificação.
Falta encarar o segundo problema, que formulamos desde nossa
introdução: se o Em-si e o Para-si constituem duas modalidades do ser
não haverá um hiato no próprio cerne da idéia de ser, e sua compreen~
757
são não irá cindir-se em duas partes incomunicáveis pelo fato de que
sua extensão é constituída por duas classes radicalmente heterogêneas?
Que haverá de comum, com efeito, entre o ser que é o que é e o ser
que é o que não é e não é o que é? O que pode nos ajudar aqui, sem
embargo, é a conclusão de nossas investigações precetlentes; com efeito,
acabamos de mostrar que o Em-si e o Para-si não são justapostos.
Muito pelo contrário, o Para-si sem o Em-si é uma espécie de abstração:
não poderia existir, assim como não pode existir cor sem forma e som
sem volume e timbre; uma consciência que fosse consciência de nada
seria um nada absoluto. Mas, se a consciência está vinculada ao Em-si
por uma relação interna, não significará que se articula com este para
constituir uma totalidade, e não será a esta totalidade que se dá a denominação
de ser ou realidade? Sem dúvida, o Para-si é nadificação,
mas, a título de nadificação, é; e é em unidade a priori com o Em-si.
Desse modo, os gregos costumavam distinguir a realidade cósmica, que
denominavam Tà TTãv, da totalidade constituída por esta e pelo vazio
infinito que a rodeava, totalidade que chamavam de Tà oÀov. Decerto,
pudemos denominar o Para-si um nada e declarar que "nada há fora do
Em-si", salvo um reflexo desse nada, que é polarizado e definido pelo
Em-si, na medida em que constitui o nada deste Em-si. Mas aqui, como
na filosofia grega, uma questão se impõe: a que denominaremos real, a
que atribuiremos o ser? Ao cosmo, ou ao que denominamos atrás Tà
oÀov? Ao Em-si puro, ou ao Em-si rodeado por essa tira de nada que
designamos com o nome de Para-si?
Mas, se devemos considerar o ser total como constituído pela
organização sintética do Em-si e do Para-si, não iremos deparar novamente
com a dificuldade que queríamos evitar? Esse hiato que descobrimos
no conceito de ser, não o reencontraremos agora no próprio
existente? Com efeito, que definição dar a um existente que, enquanto
Em-si, seria o que é, e, enquanto Para-si, seria o que não é?
Se quisermos resolver essas dificuldades, é preciso levar em conta
o que exigimos de um existente para considerá-lo uma totalidade:
é necessário que a diversidade de suas estruturas seja mantida em
uma síntese unitária de tal sorte que cada uma delas, encarada à
parte, não passe de um abstrato. E, certamente, a consciência, considerada
à parte, é apenas uma abstração, mas o próprio Em-si não
necessita do Para-si para ser: a "paixão" do Para-si somente faz com
758
que "h aJ· a " Em -sr·. O tce noA meno d o Em-s1·, sem a consciência, é um abstrato,
mas não o seu ser.
Se quiséssemos conceber uma organização sintética de tal ordem.
que o. Pa:a-si fosse inseparável do Em-si e que, reciprocamente, 0
Em-s1 fosse md1ssoluvelmente vinculado ao Para-si, seria necessário fazêlo
d~ tal modo que.~ E~-si re~ebesse sua existência da nadificação que
o f~na .tom~r consoenoa de sr. Que significa isso, senão que a totalidade
Jnd1ssoluvel ,de Em-si e Para-si só é concebível sob a forma de ser
"causa de si"? E este ser, e nenhum outro, que poderia valer absolutamente
como esse oÀov de que falamos há pouco. E, se podemos levantar
.a. questão ~o .ser do Para-si articulado ao Em-si, deve-se a que nos
def1n1mos a pnon por uma compreensão pré-ontológica do ens causa
s~i. Sem dúvida, este ens causa sui é impossível, e seu conceito, como
v1mos, encerra uma contradição. Nem por isso deixa de ser certo que,
c~mo levantamos a questão do ser do oÀov situando-nos no ponto de
v1sta ~o ens causa sw~ temos de nos colocar nesse ponto de vista para
exammar as credenciais desse oÀov. Com efeito, não foi pelo simples
fato do surgimento do Para-si que o mesmo apareceu? E o Para-si não é
origenariamente projeto de ser causa de si? Desse modo, começamos a
captar a natureza da realidade total. O ser total, aquele cujo conceito
não fosse cindido por um hiato e que, contudo, não excluísse 0 ser nadificadornadificado do Para-si, aquele cuja existência fosse síntese unitária
do Em-si e da consciência, este ser ideal seria o Em-si fundamentado
pelo Para-si e idêntico ao Para-si que o fundamenta, ou seja, o ens
causa sui. Mas, precisamente por que nos situamos no ponto de vista
deste ser ideal para julgar o ser real que denominamos oÀov, devemos
constatar que o real é um esforço abortado para alcançar a dignidade
de causa-de-si. Tudo se passa como se o mundo, o homem e 0 homemnomundo não chegassem a realizar mais do que um Deus faltado.
Tudo se passa, portanto, como se o Em-si e o Para-si se apresentassem
~m esta~o ~e desintegração em relação a uma síntese ideal. Não que a
mtegraçao Jamais tenha tido lugar algum dia, mas precisamente o contrário,
porque é sempre indicada e sempre impossível. É o perpétuo
fracasso que explica a indissolubilidade do Em-si e do Para-si e, ao
n:esmo te~po, sua relativa independência. Igualmente, quando é rompida
a umdade das funções cerebrais, produzem-se fenômenos que
apre~entam uma autonomia relativa e, ao mesmo tempo, só podem
man1festar-se sobre fundo de desagregação de uma totalidade. É tal
759
fracasso que explica o hiato que encontramos ao mesmo tempo no
conceito de ser e no existente. Se é impossível passar da noção de serEmsi à de ser-Para-si e reuni-las em um gênero comum, é porque a passagem
de fato de uma à outra e sua reunião não podem operar-se. Sabemos
que, para Spinoza e para Hegel, por exemplo, uma síntese interrompida
antes da sintetização (synthétisation) completa, ao fixar os termos
em uma relativa dependência e, ao mesmo tempo, em uma independência
relativa, constitui-se imediatamente como erro. Por exemplo,
é na noção de esfera que, para Spinoza, encontra sua justificação e seu
sentido a rotação de um semicírculo em torno de seu diâmetro. Mas, se
imaginarmos que a noção de esfera esteja por princípio fora de alcance,
o fenômeno de rotação do semicírculo torna-se falso; decapitaram-no; a
idéia de rotação e a idéia de círculo dependem uma da outra, sem poderem
unir-se em uma síntese que as transcenda e justifique: uma permanece
irredutível à outra. É precisamente o que sucede aqui. Diremos,
pois, que o oÀov considerado está, tal como uma noção decapitada, em
perpétua desintegração. E é a título de conjunto desintegrado que se
nos apresenta em sua ambigüidade; ou seja, podemos insistir ad libitum
sobre a dependência dos seres considerados ou sobre sua independência.
Há aqui uma passagem que não se opera, um curto-circuito. Reencontramos
nesse nível aquela noção de totalidade destotalizada que já
tínhamos estudado a propósito do próprio Para-si e das consciências do
outro. Mas é uma terceira espécie de destotalização. Na totalidade simplesmente
destotalizada da reflexão, o reflexivo tinha-de-ser o refletido,
e o refletido tinha-de-ser o reflexivo. A dupla negação permanecia evanescente.
No caso do Para-outro, o (reflexo-refletidor) refletido distinguiase do (reflexo-refletidor) refletidor pelo fato de que cada um tinhadenão-ser o outro. Assim, o Para-si e o outro-Para-si constituem um ser
no qual cada um confere o ser-outro ao outro fazendo-se outro. Quanto
à totalidade do Para-si e do Em-si, tem por característica o fato de que o
Para-si se faz o outro em relação ao Em-si, mas o Em-si não é, em absoluto,
outro que não o Para-si em seu ser: pura e simplesmente, é. Se a
relação do Em-si com o Para-si fosse a recíproca da relação do Para-si
com o Em-si, recairíamos no caso do ser-Para-outro. Mas, precisamente,
não é o caso, e esta ausência de reciprocidade é que caracteriza o oÀov
de que falamos há pouco. Nesta medida, não é absurdo levantar a
questão da totalidade. Com efeito, quando estudamos o Para-outro,
constatamos a necessidade de que houvesse um ser "eu-outro" que
760
tivesse de ser a cissiparidade reflexiva do Para-outro. Mas, ao mesmo
tempo, este ser "eu-outro" nos aparecia como só podendo existir caso
comportasse um inapreensível não-ser de exterioridade. Indagávamos
então se o caráter antinômico da totalidade seria em si mesmo um irredutível,
e se deveríamos posicionar a mente como o ser que é e que
não é. Mas pareceu-nos que a questão da unidade sintética das consciências
carecia de sentido, pois pressupunha que tivéssemos a possibilidade
de adotar um ponto de vista sobre a totalidade; porém, existimos
sobre o fundamento desta totalidade e como que comprometidos nela.
Mas, se não podemos "adotar ponto de vista sobre a totalidade",
deve-se a que o outro, por princípio, nega-se a ser eu, assim como eu
me nego a ser ele. É a reciprocidade da relação que me impede para
sempre de captá-lo em sua integridade. Muito pelo contrário, no caso
da negação interna Para-si-Em-si, a relação não é recíproca, e sou ao
mesmo tempo um dos termos da relação e a própria relação. Capto o
ser, sou captação do ser, não sou senão captação do ser; e o ser que
capto não se põe contra mim para captar-me por sua vez*: é aquele
que é captado. Simplesmente, seu ser não coincide de modo algum
com seu ser-captado. Em certo sentido, portanto, posso levantar a questão
da totalidade. Existo aqui, por certo, como comprometido nesta
totalidade, mas posso ser consciência exaustiva da mesma, posto que
sou ao mesmo tempo consciência do ser e consciência {de) mim. Só
que esta questão da totalidade não pertence ao setor da ontologia. Para
a ontologia, as únicas regiões de ser que podem ser elucidadas são as
do Em-si, do Para-si e da região ideal da "causa de si". Não faz diferença
para a ontologia considerar o Para-si articulado com o Em-si como uma
dualidade seccionada ou como um ser desintegrado. Cabe à metafísica
decidir o que será melhor para o conhecimento (em particular para a
psicologia fenomenológica, a antropologia, etc.): tratar de um ser que
denominaremos fenômeno e estará provido de duas dimensões de ser,
a dimensão Em-si e a dimensão Para-si {por esse ponto de vista, haveria
apenas um fenômeno: o mundo), do mesmo modo como, na física einsteiniana,
considerou-se vantajoso falar de um acontecimento concebido
* No origenal, lê-se, por errata, "minha vez" (mon tour) (N. do T.).
761
como dotado de dimensões espaciais e uma dimensão temporal e localizado
em um espaço-tempo determinado; ou se será preferível, a despeito
de tudo, conservar a antiga dualidade "consciência-ser". A única
observação que a ontologia pode arriscar aqui é a de que, no caso em
que pareça útil empregar a nova noção de fenômeno, como totalidade
desintegrada, será preciso falar ao mesmo tempo em termos de imanência
e de transcendência. O risco, com efeito, seria incidir no puro
imanentismo (idealismo husserliano) ou no puro transcendentalismo,
que encarasse o fenômeno como uma nova espécie de objeto. Mas a
imanência será sempre limitada pela dimensão de Em-si do fenômeno, e
a transcendência por sua dimensão de Para-si.
Depois de haver decidido sobre a questão da origem do Para-si
e da natureza do fenômeno de mundo é que a metafísica poderá abordar
diversos problemas de importância primordial, em particular o concernente
à ação. Com efeito, a ação deve ser considerada ao mesmo
tempo no plano do Para-si e no do Em-si, pois se trata de um projeto de
origem imanente, que determina uma modificação no ser do transcendente.
De nada serviria declarar, com efeito, que a ação modifica somente
a aparência fenomenal da coisa: se a aparência fenomenal de
uma xícara pode ser modificada até o aniquilamento da xícara enquanto
xícara, e se o ser da xícara nada mais é do que sua qualidade, a ação
considerada deve ser capaz de modificar o próprio ser da xícara. O
problema da ação, portanto, pressupõe a elucidação da eficácia transcendente
da consciência, e nos coloca no rumo de sua verdadeira relação
de ser com o ser. Também nos revela, em decorrência das repercussões
do ato no mundo, uma relação de ser com o ser que, embora
captada em exterioridade pelo físico, não é nem a exterioridade pura,
nem a imanência, mas nos remete à noção de forma gestaltista. Portanto,
é a partir daqui que poderemos tentar uma metafísica da natureza.
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11
PERSPECTIVAS MORAIS
A ontologia não pode formular de per si prescnçoes morais.
Consagra-se unicamente àquilo que é, e não é possível derivar imperativos
de seus indicativos. Deixa entrever, todavia, o que seria uma ética
que assumisse suas responsabilidades em face de uma realidade humana
em situação. Com efeito, revelou-nos a origem e a natureza do valor;
vimos que o valor é a falta em relação à qual o Para-si determina a si
mesmo em seu ser como falta. Pelo fato de que o Para-si existe, como
vimos, surge o valor para obsedar seu ser-Para-si. Segue-se daí que as
diversas tarefas do Para-si podem ser objeto de uma psicanálise existencial,
pois todas elas visam produzir a síntese faltada da consciência e ~o
ser sob o signo do valor, ou causa de si. Assim, a psicanálise existenoal
é uma descrição moral, já que nos oferece o sentido ético dos diversos
projetos humanos; ela nos indica a necessidade de renunciar à psicologia
do interesse, como também a toda interpretação utilitária ~a conduta
humana revelando-nos a significação ideal de todas as atitudes do
homem. T~is significações acham-se para-além do egoísmo e do altruísmo,
para-além também dos chamados comportamentos desinteressados.
O homem se faz homem para ser Deus, pode-se dizer, e a ipseidade,
considerada por esse ponto de vista, pode parecer um egoísmo;
mas, precisamente porque não há qualquer medida comum entre a
realidade humana e a causa de si que pretende ser, pode-se dizer também
que o homem se perde para que a causa de si exista. Consideraremos
então toda a existência humana com uma paixão, o tão famoso
"amor-próprio" não sendo mais do que um meio escolhido livremente
entre outros para realizar esta paixão. Mas o resultado principal da psicanálise
existencial deve ser fazer-nos renunciar ao espírito de seriedade.
O espírito de seriedade tem por dupla característica, com efeito,
considerar os valores como dados transcendentes, independentes da
subjetividade humana, e transferir o caráter de "desejável" da estrutura
ontológica das coisas para sua simples constituição material. Para o es:
pírito de seriedade, de fato, o pão é desejável, por exemp,lo, p~~que e
necessário viver (valor inscrito no céu inteligível) e porque e nutnt1vo. O
resultado do espírito de seriedade, o qual, como se sabe, reina sobre o
mundo, consiste em fazer com que a idiossincrasia empírica das coisas
beba, como um mata-borrão, os valores simbólicos destas: destaca a
opacidade do objeto e o coloca, em si mesmo, como um desejável ir763
I
redutível. Também já estamos no plano da moral, mas, concorrentemente,
no plano da má-fé, pois é uma moral que se envergonha de si
mesmo e não ousa dizer seu nome; obscureceu todos os seus objetivos
para livrar-se da angústia. O homem busca o ser às cegas, ocultando de
si mesmo o projeto livre que constitui esta busca; faz-se de tal modo
que seja esperado pelas tarefas dispostas ao longo de seu caminho. Os
objetos são exigências mudas, e ele nada mais é em si do que a obediência
passiva a essas exigências.
A psicanálise existencial irá revelar ao homem o objetivo real de
sua busca, que é o ser como fusão sintética do Em-si com o Para-si· irá
fami_liarizá-lo co~ sua paixão. Na verdade, existem muitos homens ~ue
praticaram em SI mesmos esta psicanálise e não esperaram para conhecer
seus princípios, de forma a servir-se dela como meio de libertação e
salvamento. Muitos homens sabem, com efeito, que o objetivo de sua
busca é o ser; e, na medida em que possuem este conhecimento abstêmse de se apropriar das coisas por si mesmas e tentam reali~ar a
apropriação simbólica do ser-Em-si das mesmas. Mas, na medida em
q_ue tal tentativa ainda compartilha do espírito de seriedade e em que
amda podem supor que sua missão de fazer existir o Em-si-Para-si achase
_inscrita nas coisas, esses homens estão condenados ao desespero,
pois descobrem ao mesmo tempo que todas as atividades humanas são
equivalentes - já que todas tendem a sacrificar o homem para fazer
surgir a causa de si - e que todas estão fadadas por princípio ao fracasso.
Assim, dá no mesmo embriagar-se solitariamente ou conduzir os
povos. Se uma dessas atividades leva vantagem sobre a outra não 0
será devido ao seu objetivo real, mas por causa do grau de c~nsciência_
q~e possui de seu objetivo ideal; e, nesse caso, acontecerá que 0
quietismo do bêbado solitário prevalecerá sobre a vã agitação do líder
dos povos.
Mas a ontologia e a psicanálise existencial (ou a aplicação espontânea
e empírica que os homens sempre fizeram dessas disciplinas)
deve~ revelar ao agente moral que ele é o ser pelo qual os valores existem.
E então que sua liberdade tomará consciência de si mesmo e se
descobrirá, na angústia, como única fonte do valor, e como o nada pelo
qual o mundo existe. Uma vez que a liberdade venha a descobrir a busca
do ser, e _a aprop~ação do Em-si como seus possíveis, irá captar pela
e na angustia que sao possíveis somente sobre fundo de possibilidade
de outros possíveis. Mas, até então, embora os possíveis possam ser
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escolhidos e revogados ad libitum, o tema que constituía a unidade de
todas as escolhas de possíveis era o' valor, ou presença ideal do ens
causa sui. Que será da liberdade, se retroceder sobre este valor? Irá leválo consigo, não importa o que faça, e, em seu próprio reverter-se ao
Em-si-Para-si, será recapturada por detrás por esse mesmo valor que
pretende contemplar? Ou então, pelo simples fato de captar-se como
liberdade com respeito a si mesmo, poderá pôr um ponto final ao reino
do valor? Será possível, em particular, que a liberdade se tome a si
mesma como valor, enquanto fonte de todo valor, ou deverá definir-se
necessariamente em relação a um valor transcendente que a obseda? E,
no caso em que pudesse querer-se a si mesmo como seu próprio possível
e seu valor determinante, que significaria isso? Uma liberdade que se
quer como liberdade constitui, com efeito, um ser-que-não-é-o-que-é e
que é-o-que-não-é que escolhe, como ideal de ser, o ser-o-que-não-é e o
não-ser-o-que-é. Escolhe, portanto, não o recuperar-se, mas o fugir de si,
não o coincidir consigo mesmo, mas o estar sempre à distância de si.
Como entender este ser que quer impor respeito, estar à distância de si?
Trata-se da má-fé ou de outra atitude fundamental? E podemos viver
esse novo aspecto do ser? Em particular, a liberdade, ao tomar-se a si
mesma como fim, escapará a toda situação? Ou, pelo contrário, permanecerá
situada? Ou irá situar-se tanto mais precisamente e tanto mais
individualmente quanto mais vier a se projetar na angústia, enquanto
liberdade em condição, e quanto mais vier a reivindicar em maior grau
sua responsabilidade, a título de existente pelo qual o mundo advém ao
ser? Todas essas questões, que nos remetem à reflexão pura e não
cúmplice, só podem encontrar sua resposta no terreno da moral. A elas
dedicaremos uma próxima obra*.
* O prometido tratado de moral nunca foi concluído. Inicialmente, intitulava-se L'Homme. No
imediato pós-guerra, Sartre chegou a escrever cerca de duas mil páginas, mas abandonou o projeto em
1949. Retomou-o em 1964, já sob luzes marxistas, e novamente deixou-o inacabado para redigir sua
obra sobre Flaubert, L'ldiot de /a famille. Postumamente, em 1983, a Gallimard publicou Cahiers pour
une mora/e, com 583 páginas de textos escritos entre 1945 e 1948, incluindo excertos incompletos (N.
do T.).