Narrativas de experiências docentes em classe
hospitalar: ensinar aprendendo
DOI 10.26512/lc.v24i0.18967
Maria da Conceição Passeggi
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Simone Maria da Rocha
Universidade Federal Rural do Semi-Árido – UFERSA
Resumo
Quais concepções de ensino emergem nas narrativas de docentes que atuam
em classe hospitalar? Que conteúdos escolares são ensinados nesse ambiente?
O que contam professores sobre suas experiências com crianças e adolescentes
com doenças crônicas? Tais questionamentos vêm guiando nossas reflexões na
busca de depreender nuances das práticas pedagógicas em ambiente hospitalar
pediátrico. As narrativas autobiográficas de professoras nos dão pistas concretas
sobre ensinar e aprender na classe hospitalar, mostrando a necessidade de um
posicionamento político e ético na atenção à criança hospitalizada, o cuidado
compartilhado entre profissionais que desejam um atendimento de qualidade
aos educandos em tratamento de saúde, abrindo expectativas para compreender
as “redes de atenção à saúde” como espaços instituintes do acompanhamento
enquanto lugar de dialogicidade e cooperação na escola.
Palavras-chave: Classe
Acompanhamento.
hospitalar.
Linhas Críticas, Brasília, DF, v.24 - Ahead of print, p.167-185.
Experiências
docentes.
Narrativas.
167
Narrativas de experiencias docentes en clase
hospitalaria: encinar aprendiendo
Resumen
¿Cuáles concepciones de enseñanza emergen en narrativas de docentes que actúan
en clase hospitalaria? ¿Que contenidos escolares se enseñan en ese ambiente?
¿Qué cuentan los maestros sobre sus experiencias con niños y adolescentes con
enfermedades crónicas? Tales cuestionamientos vienen guiando nuestras reflexiones
en la búsqueda de desprender matices de las prácticas pedagógicas en ambiente
hospitalario pediátrico. Las narrativas autobiográficas de profesoras nos dan pistas
concretas sobre enseñar y aprender en la clase hospitalaria, mostrando la necesidad
de un posicionamiento político y ético en la atención al niños y niñas hospitalizado.
as, el cuidado compartido entre profesionales, que desean una atención de calidad
a los educandos en tratamiento de salud, abriendo expectativas para comprender
las "redes de atención a la salud" como espacios instituyentes del acompañamiento
como lugar de diálogo y cooperación en la escuela.
Palabras clave: Clase
Acompañamiento.
168
hospitalaria.
Experiencias
docentes.
Narrativas.
PASSEGGI, MARIA; ROCHA, SIMONE. Narrativas de experiências docentes...
Narratives of teaching experiences in hospital
class: teaching learning
Abstract
What conceptions of teaching emerge in the narratives of teachers who work in
a hospital class? What school content is taught in this environment? What do
teachers tell about their experiences with children and adolescents with chronic
diseases? Such questions have been guiding our reflections in the search to
understand nuances of pedagogical practices in a pediatric hospital environment.
The autobiographical narratives of teachers give us concrete clues about teaching
and learning in the hospital class, showing the need for a political and ethical
positioning in the care of the hospitalized child, shared care among professionals,
who want a quality care for the students in health treatment, opening expectations
to understand the "health care networks" as instituting spaces of accompaniment
as a place of dialogue and cooperation in school.
Keywords: Hospital class. Teaching experiences. Narratives. Accompaniment.
Linhas Críticas, Brasília, DF, v.24 - Ahead of print, p.167-185.
169
Récits de l’expérience enseignante dans des classes
hospitalières : enseigner en apprenant
Résumé
Quelles conceptions d'enseignement émergent-elles dans les récits des enseignants
qui travaillent dans des classes hospitalières ? Quels contenus scolaires sont-ils
enseignés dans cet environnement ? Que racontent les enseignants à propos de leurs
expériences avec des enfants et des adolescents atteints de maladies chroniques ?
Ces questions guident nos réflexions dans nos recherches en éducation, dans le but
de saisir les nuances des pratiques pédagogiques dans un environnement hospitalier
pédiatrique. Les récits autobiographiques des enseignants nous donnent des indices
concrets sur l'enseignement et l'apprentissage en classe hospitalière. Ils montrent
la nécessité d'un positionnement politique et éthique dans la prise en charge de
l'enfant hospitalisé, des soucis partagés entre professionnels qui veillent à des soins
de qualité, ouvrant des attentes pour mieux comprendre les « réseaux de soins de
santé », instituant des espaces d'accompagnement comme lieu de dialogue et de
coopération à l'école.
Mots-clés:
Classes
Accompagnement.
hospitalières.
Expériences
d’enseignement.
Récits.
Introdução
No Brasil, a classe hospitalar é um direito de crianças e adolescentes
impossibilitados de irem à escola por questões de saúde. Trata-se, portanto, de
um serviço que tem por objetivo “prover, mediante atendimento especializado,
a educação escolar a alunos impossibilitados de frequentar as aulas em razão de
tratamento de saúde que implique internação hospitalar, atendimento ambulatorial
ou permanência prolongada em domicílio” (Brasil, 2001, p. 51).
O Ministério da Educação admite que a classe hospitalar é uma forma de oferecer
educação escolar às crianças hospitalizadas. Por essa razão, sugere uma adaptação
do currículo da escola regular do que considera indispensável na aprendizagem dos
conteúdos escolares pelo paciente/aluno. Define o público-alvo como educandos
em “condição clínica ou exigências de cuidado em relação à saúde que interferem na
permanência escolar ou nas condições de construção do conhecimento, ou ainda, que
impedem a frequência escolar” (Brasil, 2002, p. 15).
170
PASSEGGI, MARIA; ROCHA, SIMONE. Narrativas de experiências docentes...
Para atuar no serviço de classe hospitalar, o(a) professor(a) deverá ter,
preferencialmente, formação em Educação Especial, em Cursos de Pedagogia ou
demais Licenciaturas (Brasil, 2002). Esse profissional precisa adquirir noções das
patologias apresentadas pelos educandos e compreender os problemas emocionais
decorrentes da hospitalização. Nesse sentido, deve considerar o quadro de saúde
da criança para adaptar os materiais de ensino, planejar, diariamente, as atividades,
registrar e avaliar os processos de ensino e aprendizagem desenvolvidos.
O objetivo deste texto é refletir sobre experiências docentes narradas por duas
professoras de classe hospitalar, na tentativa de depreender os sentidos que atribuem
às suas práticas pedagógicas. Organizamos o artigo em duas partes. Na primeira,
“Caminhos da pesquisa: da entrevista narrativa às rodas de conversa”, apresentamos
as participantes, definimos os procedimentos realizados na recolha e análise das
fontes autobiográficas. Na segunda, “Ensinar no hospital: o que narram as professoras”,
apresentamos reflexões com base em três eixos temáticos: “Diálogos entre o instituído
e as práticas docentes instituintes”; “Concepções de ensino na classe hospitalar”;
“Conteúdos escolares: o que ensinar?”
Caminhos da pesquisa: da entrevista narrativa às rodas de
conversa
Participaram do estudo duas professoras das redes municipal e estadual de
educação, que atuam em hospitais pediátricos de Natal, Rio Grande do Norte.
Sophia1 e Andreia2 são pedagogas e suas experiências em escolas regulares e em
classes hospitalares ultrapassam cinco anos de atuação.
Na recolha dos dados, adaptamos para nossos interesses as orientações de
Jovchelovitch e Bauer (2002), que consideram o caráter seletivo da memória e admitem
que alguns eventos poderiam ser omitidos, ou transformados, conscientemente ou
não. Por essa razão, sentimos necessidade de traçar um roteiro mínimo que pudesse
nos ajudar na mediação da construção narrativa das duas professoras, caso se fizesse
necessário. Inicialmente, havíamos pensado em realizar entrevistas narrativas e seguir
os passos propostos pelos autores no que se refere às diferentes fases da entrevista:
Preparação; Iniciação; Narração central; Fases de perguntas; Fala conclusiva
(Jovchelovitch e Bauer, 2002). Porém, em conversa com as professoras, surgiu a ideia
de utilizar também o protocolo de pesquisa do projeto interinstitucional3 do qual
1 Nome fictício, sugerido pela professora participante do estudo.
2 A professora solicitou que fosse identificada por seu nome completo: Andreia Gomes da Silva. Ao longo do
trabalho, nos referiremos apenas ao primeiro nome.
3 Projeto “Narrativas infantis. O que contam as crianças sobre as escolas da infância?”. Financiado pelo Edital de
Linhas Críticas, Brasília, DF, v.24 - Ahead of print, p.167-185.
171
participamos para estudar as experiências de adoecimento que emergiam de narrativas
de crianças, atendidas em classes hospitalares (Rocha, 2012; Rocha & Passeggi, 2014).
Assim, optamos por entrecruzar princípios das entrevistas narrativas e das rodas
de conversas como método para a recolha das narrativas. O protocolo, utilizado na
pesquisa com crianças, criava uma situação lúdica de “faz de contas”, provocadora de
estranhamento. Trata-se de um diálogo imaginário com um extraterrestre vindo de um
planeta que não tinha hospitais. A roda de conversa se desenvolveu em três fases: no
primeiro momento, fizemos o convite às professoras para participar da pesquisa; no
segundo, recorremos ao protocolo mencionado para suscitar a narrativa; e no terceiro,
para finalizar a conversa, anunciávamos o retorno do alienígena ao seu planeta. Embora
sejam semelhantes a abertura e o fechamento das rodas de conversa, o diálogo com
cada participante gerou perguntas diferentes, e dois roteiros foram sendo elaborados
na medida em que as narrativas iam se desenrolando.
Ao narrar as suas experiências, as professoras faziam reflexões críticas sobre suas
práticas de ensino e suas aprendizagens no hospital, provocadas pelo processo de
reflexividade biográfica (Passeggi, 2011a), se permitindo escutar a si próprias e
reinterpretar suas ações docentes.
Quanto às análises, seguimos igualmente, os direcionamentos de Jovchelovitch e
Bauer (2002) acerca da compreensão hermenêutica das entrevistas narrativas. A
proposta dos autores volta-se para um procedimento gradual de redução do texto,
que chamaremos aqui de “condensação” ou de “adensamento” do texto. Entendemos
que procedimento de ir reduzindo progressivamente o texto em duas ou três séries de
paráfrases consiste num processo de interpretação do texto, que adensa o sentido, na
própria escolha de palavras que devem ser eliminadas. Ou seja, “Primeiro, passagens
inteiras, ou paráfrases, são parafraseadas em sentenças sintéticas. Estas sentenças são
posteriormente parafraseadas em algumas palavras-chave. Ambas as reduções operam
com generalização e condensação de sentido” (Jovchelovitch; Bauer, 2002, p. 107).
Na prática, distribuímos os passos em três colunas, chegando a seguinte distribuição.
Na coluna à direita, inserimos a transcrição do texto na íntegra. Operamos a primeira
condensação (redução) mediante paráfrases que inserimos na coluna do meio. Em
seguida, adensamos o conteúdo das paráfrases em palavras-chave e palavra-tema. A
partir desse movimento de adensamento do sentido do texto, construímos os eixos e
categorias interpretantes que emergiam da interpretação das professoras. Para cada
roda de conversa, criamos palavras-tema ampliadas e ordenadas em um sistema de
categorização geral para as duas rodas de conversa.
Ciências Humanas [CNPq/CAPES 07/2011-2, Processo nº 401519/2011- 2], foi desenvolvido por pesquisadores
de seis universidades: UFRN, UFPE, UNICID, UNIFESP, UFF e UFRR. Aprovado pelo Comitê de Ética [Parecer nº
168.818]. A pesquisa integra um projeto internacional “Raconter l’école en cours de scolarisation”, coordenado
pela Professora Martine Lani-Bayle (Université de Nantes), desenvolvido, em rede, por pesquisadores da França,
Polônia, Bélgica, Suíça, Brasil.
172
PASSEGGI, MARIA; ROCHA, SIMONE. Narrativas de experiências docentes...
Assumimos para a análise das narrativas o critério da categorização temática,
agrupando suas narrativas em temas que condensavam a significação e sentidos.
Seguimos as orientações dos autores, quanto às duas etapas estruturais: inventário,
ao isolarmos os elementos; e a classificação, ao repartirmos os elementos, e assim
procurar dar uma organização às mensagens.
Diálogos entre o instituído e as práticas docentes instituintes
Em suas narrativas, as professoras rememoram conhecimentos oriundos de suas
formações iniciais e continuadas. Fazem referência a conceitos que embasam suas
práticas pedagógicas em ambiente hospitalar. Elas vão, assim, dando sentido ao que
fazem e produzindo saberes no ato de narrar suas experiências. Partilharam suas
vivências, com base no que chamamos de “redes de conhecimentos e experiências”,
que foram sendo tecidas, em suas práticas pedagógicas, na classe hospitalar, ao
tempo em que vão atribuindo sentido ao que acontece e lhes acontece, como sugere
Passeggi (2011b, p. 149):
Entre um acontecimento e sua significação, intervém o processo de dar sentido ao
que aconteceu ou ao que está acontecendo. A experiência, em nosso entendimento,
constitui-se nessa relação entre o que nos acontece e a significação que atribuímos
ao que nos afetou.
A noção de “redes de atenção à saúde” vem sendo utilizada com a intenção de romper
com as fragmentações dos serviços em saúde. Para Mendes (2010, s/n), “as redes
de atenção à saúde são organizações poliárquicas de conjuntos de serviços à saúde,
vinculadas entre si por uma missão única, por objetivos comuns e por uma ação
cooperativa e interdependente [...]”. Essa noção ganhou espaço nos debates e ações
em saúde, e compreendemos que ela pode ser intercambiada com as experiências
vividas na classe hospitalar, entre professores e crianças hospitalizadas, e que temos
denominado de “redes de conhecimentos e experiências”.
Larrosa (2002) propõe que pensemos a educação com base na noção de experiência.
O autor define a experiência como “o que nos passa, o que nos acontece, o que nos
toca. Não o que se passa, não o que acontece, o que toca” (idem, p. 21). Nesse sentido,
a experiência relaciona-se a eventos/acontecimentos que foram significativos para
quem narra e que de alguma forma mobilizou, inquietou, transformou o/a narrador/a.
Larrosa se refere ao sujeito da experiência, que ele define, não por sua ação no mundo,
mas por sua “passividade”, entendida como receptividade, disponibilidade fundamental
e abertura essencial para receber e viver a vida.
Assim, o sujeito da experiência é um sujeito “ex-posto”, ou seja, aberto às ocorrências
Linhas Críticas, Brasília, DF, v.24 - Ahead of print, p.167-185.
173
de sua existência. A passividade, à qual se refere Larrosa, relaciona-se à ideia de “uma
passividade feita de paixão, de padecimento, de paciência, de atenção”. (Idem, p. 19).
Por essa razão, o sujeito da experiência se expõe, corre riscos, porque se deixa ser
tocado, e porque intui que o acolher o que o afeta ele também se auto(trans)forma.
Mas é pela narrativa das experiências e pela experiência narrativa que ele atribui
significações aos acontecimentos, que viveu, está vivendo, ou imagina que viverá no
decurso de sua vida.
A dialética entre instituído e instituinte conduz a uma realidade inacabada, um projeto
em processo de construção. Conforme, adverte Pereira (2007, s/n):
O instituinte não deve ser pensado como força que resulta em instituído, mas como
relação de forças permanente, que comporta tanto o poder como as singularidades de
resistência e produção de novos sentidos. Nas bordas do espaço instituído, debate-se
o espaço instituinte, não previsível e inexato. [...] O instituinte sobrevive encoberto no
seio de toda instituição através de seu germe transformador, o desejo, iceberg do qual
só vemos a ponta aguda, cuja parte submersa é uma potência energética.
As palavras de Pereira (2007), ao tratar o instituinte como uma relação de forças
permanentes que alcança tanto as singularidades das resistências quanto a construção
de novos sentidos dialogam com as falas das professoras. Existe compatibilidade
entre escola-educação X hospital-saúde? Ou estamos diante de relações antagônicas?
Podemos questionar o fato de a escola, historicamente, ter sido considerada lugar da
educação? Da mesma forma que o hospital foi concebido como espaço reservado à
saúde? E, portanto, que o atendimento ao ser que adoece deva ser realizado de forma
isolada pelos profissionais de saúde, professores e familiares? Ou haveria uma troca
entre espaços de aprendizagens: hospital-escola, e entre suas funções: educaçãosaúde?
Ao longo de suas narrativas, Andreia e Sophia contam as dificuldades de inserção como
professoras no ambiente hospitalar. Num lugar destinado aos profissionais da saúde,
elas adentram por descaminhos. A professora Andreia (2014) fala em camuflagem:
Então têm vários profissionais que trabalham lá. Os médicos, que são os doutores. Tem
os enfermeiros. Tem o pessoal todo de apoio: da limpeza e higienização do lugar. E tem,
também, os professores, que estão lá no meio, quase camuflados. Muitas vezes, porque
a prioridade não é a educação, é a saúde. E aí, muitas vezes, os profissionais de saúde
percebem a saúde dissociada do todo, enxergam apenas a doença, e não a criança como
um todo.
A camuflagem, à qual se refere Andreia, é a forma como ela dá sentido à figura do
professor, que entra de “contrabando”, num espaço no qual ele não tem uma função
prioritária. Ou seja, em que a educação surge como algo secundário. Para muitos, o
seu papel no hospital é de coadjuvante, ou até mesmo estranho na atenção à saúde da
criança. A narradora atribui essa secundarização ao fato de os profissionais de saúde
174
PASSEGGI, MARIA; ROCHA, SIMONE. Narrativas de experiências docentes...
apresentarem certa dificuldade em apreender a criança como um todo, não apenas
como um corpo físico em que se alojou a doença que precisa ser extirpada mediante
o tratamento terapêutico. Nos parece que, na perspectiva da professora, se a mirada
dos profissionais da saúde ocorresse de acordo com a abordagem do cuidado integral
à criança, a presença do professor no hospital não seria tão estranha. É evidente que
existem exceções. Há instituições hospitalares, no Brasil, que trabalham com esse foco.
Mas, de maneira geral, o professor ainda é visto como brinquedista e a própria classe
hospitalar como espaço lúdico, sem a compreensão de uma mediação pedagógica.
Quiçá essas representações da escola e do professor estejam na origem da ideia de
‘camuflagem’, ou disfarce do professor, que deve se tornar ‘invisível’ aos olhos dos que
cruzam com ele nos corredores do hospital. Para mudar essa imagem de si, a professora
afirma que, para adentrar no hospital, deve percorrer um longo caminho até que seu
trabalho seja compreendido, valorizado, reconhecido. Fontes (2005) lembra que se faz
necessário esclarecer, por um lado, que a educação não é função exclusiva da escola,
nem a saúde função exclusiva do hospital.
A respeito da inserção do professor no hospital, Sophia (2014) diz:
No ambiente hospitalar, o professor foi visto por muito tempo como um profissional
invasivo. Você está socialmente num universo que não é o seu. O seu lugar é a escola.
Então, assim, você tem que ter a sensibilidade de conquistar o seu espaço, porque você
sabe que a coisa não é imediata. Até a própria mãe, a própria família, quer saber da cura
do filho, não está querendo saber de estudar agora.
A narrativa de Sophia soma-se àquela de Andreia, no sentido de que ambas se referem
à imagem do professor, seja como “profissional invasivo”, para Sophia, seja pela
necessidade de “camuflagem”, para Andreia. Ora, a saúde da criança é uma prioridade.
Tanto para os profissionais de saúde, quanto para os familiares, mas, também, para
o/a professor(a) e, essencialmente, para a criança enferma. Mas essa não é uma
evidência compreensível, no hospital. Para os profissionais de saúde e à família, após
um diagnóstico de doença crônica tudo que se deseja é o reestabelecimento físico
da criança, e os pais se angustiam com a doença que acomete seus filhos. Nesse
sentido, o hospital é o lugar de cuidados onde se encontra a possibilidade de cura.
Por isso, ao dizer que o professor precisa ter a sensibilidade de conquistar seu espaço,
a Sophia sugere que eleja como guia a sensibilidade, de modo a voltar sua atenção
para a compreensão tanto do acolhimento à criança enferma, quanto à sua família no
enfrentamento do adoecimento e da hospitalização.
Aos poucos, com diálogos e ações de cooperação, as professoras passam a melhor
compreender suas vivências no hospital de forma menos dolorosa e traumática. Os
professores vão delineando seu espaço de atuação, ajudando a família a compreender
a função da escola no hospital como um direito de seus filhos à educação, e que as
atividades escolares podem colaborar com o processo terapêutico. Torna-se necessário
que a família saiba que o professor também cuida, à sua maneira, da saúde da criança,
Linhas Críticas, Brasília, DF, v.24 - Ahead of print, p.167-185.
175
e que para ele isso é uma prioridade.
Ao mencionar essa contribuição no processo terapêutico não nos referimos à
doença em si, pois precisaríamos de mais pesquisas para confirmar se as experiências
educativas no hospital colaboram efetivamente, ou não, para uma boa resposta ao
tratamento. O que queremos enfatizar é a contribuição para a compreensão do
adoecimento e das emoções, dores, mudanças físicas, parte da criança que padece
a experiência do adoecimento e hospitalização. É, nesse sentido, que a presença
de professores e da classe hospitalar contribuem para a aceitação de tratamento
invasivos, à diminuição de desconfortos provocados por medicações, permanência em
UTI, de modo a minimizar para criança o esforço de reestruturação da autoestima, e
da imagem de si. (Rocha, 2012).
Concepções de ensino na classe hospitalar
A professora Sophia, ao lembrar os atendimentos realizados às crianças na UTI,
narra a seguinte história:
[...] outra criança estava também na UTI, [ele era meu aluno] e eu levei atividades para
ele. A menina disse: ¨Não adianta, porque ele não está respondendo”. E toda vida, quando
eu chegava no COHI, eu dizia: “Diga meu amor!” E ele respondia: “Diga meu amor!”. Toda
vida, eu tive essas coisas [...] carinhosa: “Minha flor”, “Meu amor”. Então, esse menino,
eu chamava de meu amor. Uma vez, ao sair do hospital, me chamaram lá em baixo e
disseram: _ “Professora diminua, porque o menino grita quando a senhora vai embora”.
Eu sorri e disse: “Fazer o quê? Isso é amor!”. Fui para a UTI e me disseram: _ “Professora
não adianta, ele está em coma, não está ouvindo e a senhora vai perder o seu tempo”. É
sempre uma questão de tempo. Eu penso: “Meu Deus, eu estou ganhando tempo. Só em
estar do lado dele, já é uma aprendizagem muito grande”. Porque aprendizagem para
mim é troca. Eu ficar do lado dele, eu estou aprendendo muito. Mas eu ia, conversava,
contava história. Foi passando o tempo e eu indo. Resistindo. Ele não tinha uma reação,
de um dedinho mexido. (Sophia, 2014).
Na sua história, Sophia revela a concepção de ensino e aprendizagem que ampara a sua
prática pedagógica, tendo como matriz principal a noção de trocas, compartilhamentos
e que nós denominamos de acompanhamento, no sentido etimológico da palavra:
estar ao lado de, partilhar com o outro, repartir o pão. Aqui, ela torna visível que a
prioridade no seu fazer era estar com o outro, não desistir da criança, embora a situação
se colocasse como limitadora de interações, pelas condições de saúde do aluno. Chama
atenção, ainda, o fato de ela se perceber como aprendente, no processo de ensinar
no hospital. Embora, naquele momento, não parecesse existir a mínima condição de
aprendizagens por parte da criança. Mas para a professora, se fazia necessário dar
176
PASSEGGI, MARIA; ROCHA, SIMONE. Narrativas de experiências docentes...
continuidade ao “acompanhamento” que vinha desenvolvendo na enfermaria, antes
das complicações que levaram a criança à UTI. Quando dizemos “embora parecesse
não existir a mínima condição de aprendizagens por parte da criança”, fomos movidas
pelo desfecho da narrativa de Sophia:
Eu dizia: “Olhe, a professora chegou, meu amor”. E contava história e tal. Quando foi
um belo dia, eu estava saindo do hospital e vi aquela criança sentada na calçada com
a mãe. Eu disse: _ “Menino você está aqui?”. Eu tomei um susto! Como alguém, que
estava na UTI, em coma, e, de repente, estava na calçada do hospital? A mãe, disse: _
“Estamos esperando o carro do interior”. Eu falei para ele: “Você nem sabe quem sou
eu?” Ele respondeu: “Diga meu amor!”. Diga aí, se isso não é forte?! Ele lembrou, não
do meu nome, mas do que nos ligava. E eu fiquei imaginando. Veio a nuvenzinha, como
toda professora constrói da questão imaginária, a fala da enfermeira dizendo: “Ele não
vai te ouvir”. E eu pensei: “Como valeu a pena!” (Sophia, 2014).
Paulo Freire (1996, p. 30), ao discorrer sobre a consciência do inacabamento humano,
profere: “Gosto de ser gente porque a História em que me faço com os outros e de
cuja feitura tomo parte é um tempo de possibilidades e não de determinismo. Daí que
insista tanto na problematização do futuro e recuse sua inexorabilidade”. A atitude de
Sophia nos parece intrinsicamente relacionada às palavras de Paulo Freire no instante
em que ela não aceita o “não” (não aceita o determinismo do coma), e constrói a sua
história com a criança, pautada no cuidado do acompanhamento, no “estar junto com
o outro”, pela recusa de discursos instituídos. Sua atitude corrobora o que sugere
Schaller (2008, p. 69), em que a professora reinventa o hospital como “um lugar [...]
aprendente porque permite deixar marcas do conjunto das relações, das ligações, das
associações entre os atores”. Assim, todo lugar é aprendente, e, mesmo os lugares mais
improváveis, como a UTI, “os lugares se constituem e aprendem ao mesmo tempo em
que ensinam e constituem os atores que vivem nele” (ibidem).
Um lugar aprendente suscita outras maneiras de aprender e ressignificar formas de
ensinar já instituídas. O hospital, por suas características singulares, apresenta-se ao
professor como um cenário desafiador para sua criatividade pedagógica. Não basta
transferir práticas escolares para a classe hospitalar, é preciso construir novos modelos
pedagógicos. Nas falas das professoras, observamos como elas sentem a necessidade
de ressignificar os modos de ensinar, nos falam em desafios, limitações e nas condições
de aprendizagem das crianças, vejamos seus relatos:
[...] Na sala onde eu trabalho [...], elas têm um espaço cheio de possibilidades lúdicas. E
eu tenho que seduzi-las a fazer uma atividade comigo, escolar, digamos assim [...] Muitas
vezes, acontece isso, especialmente onde estou hoje, porque estou numa casa de apoio,
atuo numa brinquedoteca. A criança entra num espaço cheio de estímulos, diferente do
que é no [Hospital] Varela que a criança vai diretamente para a classe hospitalar. Onde
Linhas Críticas, Brasília, DF, v.24 - Ahead of print, p.167-185.
177
trabalho, até tem um espaço do atendimento, mas, eu raramente vou lá, ou fico lá com
as crianças, porque são cadeiras grandes, altas e as crianças que atendo, muitas vezes,
são pequenininhas. É um espaço que tem um formato muito tradicional, tanto é que
tem lousa. Tem horas que eu uso, mas tem horas que não dá. Raramente eu uso. Se eu
atendo 50 crianças por mês, duas eu levo para esse espaço. (Andreia, 2014).
No excerto acima, Andreia apresenta o cenário do seu trabalho: a brinquedoteca da
Casa de Apoio à Criança com Câncer, demonstrando que os desafios são ainda maiores
para “ensinar”, dentro da concepção tradicional de ensino, devido a estímulos lúdicos
do ambiente. Reconhece que utilizá-lo para o acompanhamento das crianças não é
uma tática muito eficaz, tanto que o número de crianças que fazem atividades na sala
é bem reduzido. Andreia (2014) conta:
Às vezes, eles querem ir pra lá, porque tem a lousa e vai remeter à questão da escola.
O que acontece, quando eles entram na brinquedoteca? É cheia de estímulos, jogos,
brinquedos modernos, televisão, livros, então, é difícil para a professora. Lá na escola,
a criança vai à escola para estudar, não tem outra escolha. Então é difícil, mas acontece.
Raríssimas vezes, você quer um não. Se a criança é muito pequena, ou se é a primeira
vez que vai lá, eu tenho que perceber e dar oportunidade daquela criança explorar
aquele espaço, antes de chegar, tomar pela mão e dizer: “Olha, agora vamos estudar”.
Se eu fizer isso, aquela criança não vai querer mais voltar, não vai gostar daquele lugar,
nem de mim. Então, quando é uma criança que a gente não conhece e que é a primeira
vez que vai ali, eu deixo ela entrar, me apresento, digo que sou professora, meu nome e
tal, que estamos estudando algumas coisas, e convido para que ao terminar de brincar
vir fazer uma atividade. Em geral, eu dou uns dez minutos, chamo – “E aí, vamos?” Eles
vêm na mesma hora, vêm felizes, querem fazer a atividade [...].
Vale destacar que a professora, ao mesmo tempo que utiliza o espaço da sala de aula,
considera o desejo das crianças em fazer, ou não, uma atividade escolar, respeitando
a sua curiosidade e o seu interesse, demonstrando-lhes sensibilidade, dando-lhes
atenção como parte do seu fazer pedagógico. Outro aspecto relevante são as táticas
que utiliza na aproximação com as crianças, considerando ser importante que cada uma
vivencie experiências lúdicas, assim, ela aguarda que a criança explore a brinquedoteca,
para apresentar-lhe as atividades escolares, como outra possibilidade de despertar
seu interesse. Andreia ressalta as diferenças entre a criança que vai à escola, sabendo
que vai estudar, e a criança que vai à brinquedoteca, imaginando que vai brincar.
Daí a necessidade de ajustes na prática pedagógica, inferindo em novos modos de
ensinar e aprender, com base no tempo da criança, no seu ritmo e não do tempo e
ritmo institucionais.
Sophia, ao contar suas experiências na classe hospitalar, fala do lugar da ludicidade em
sua prática e demonstra o respeito que dispensa à criança, colocando-a em primeiro
plano:
Nada melhor do que conhecer meu aluno e levar o currículo de uma forma bem
178
PASSEGGI, MARIA; ROCHA, SIMONE. Narrativas de experiências docentes...
lúdica, bem atrativa, respeitando. Porque eu acho que o maior defeito de uma prática
pedagógica, ou outra profissional, é não aceitar a dor do outro. Quando meu aluno diz
que não quer, porque está doendo, algumas pessoas dizem: “Não tá doendo não”. Em
você pode não doer, mas, eu olho para o meu aluno e digo: “Eu acredito que está doendo.
Dói. Pode chorar, aperte minha mão, pode chorar”. Eu tento participar o máximo desse
momento de dor também, eu fico muito junto e não explico como vai ser o decorrer,
mas tudo que ele me pergunta eu tento responder. E quando eu não sei, eu digo: “Olhe
vou pesquisar”. “Professora, eu vou sentir isso quando eu tomar esse remédio?” “Eita!
agora eu não sei. Vamos perguntar ao médico?” Então, assim, eu sempre tento estar
muito junto nas questões dos porquês dos meus alunos. (Sophia, 2014).
A narrativa da professora indica sua preocupação em conhecer o aluno, sua história e
o momento de hospitalização que ele enfrenta, antes de propor a realização de uma
atividade escolar. Outro aspecto importante a ser ressaltado é acreditar na criança,
no que ela diz, por meio de um tratamento ético e respeitoso. Para ensinar no hospital,
Sophia entende ser necessário vivenciar intensamente as experiências da criança
com a criança, sobretudo nos momentos de dores, pois considera que, para elas,
são momentos formadores da pessoa humana. Tanto para a professora, que deseja
colaborar para a segurança afetiva da criança, quanto para a criança, que aceita (pede)
essa colaboração para viver melhor no hospital. Para Sophia, legitimar a voz da criança
e dar credibilidade à sua dor perpassam o ato de ensinar e aprender. Pois para ela, as
aprendizagens se fazem mediante trocas, compartilhamento, estar junto com o outro,
no processo de acompanhamento.
Se refletirmos com as professoras, poderemos perceber que conhecer a história do
aluno, respeitar seu tempo e suas possibilidades não são questões novas nas teorias
educacionais. Autores como Vygotsky (1998), Piaget (1987), Arroyo (2008), entre
outros, apontaram essa necessidade. No entanto, a escola tem dificuldades de inserir
em suas práticas cotidianas esses aspectos. Talvez pela grande demanda de alunos,
pela carga de trabalho dos professores etc. O novo, nas falas das professoras, reside no
fato de colocarem tais problemas no centro de sua prática diária na classe hospitalar.
Conteúdos escolares: o que ensinar?
Qual seria o sentido da educação no ambiente hospitalar? As professoras
preocupam-se com a educação das crianças no hospital, e revelam os impasses
referentes aos conteúdos escolares. O que ensinar para que essa educação seja
reconhecida como continuidade do processo de escolarização da criança? Ao serem
questionadas sobre o que ensinar no hospital, as professoras dizem:
Linhas Críticas, Brasília, DF, v.24 - Ahead of print, p.167-185.
179
Eu acho assim, no ambiente que eu trabalho a criança perde muito a identidade dela, é
impressionante. A própria queda do cabelo, a própria doença que é muito discriminada.
Todo esse contexto faz ela perder muito sua identidade. Eu penso que uma das questões
mais importantes, para o professor no hospital, é trabalhar a questão da identidade.
[...] [A criança] tem direitos, e tem uma identidade. Mostrar [isso] a ele, porque graças a
Deus já mudou muito. Mas eu ainda cheguei [a ouvir]: _ “Ei menino do leito 82”; “Fulano
do leito 97”. São muitas coisas. “Esse é um menino ou uma menina?” Porque está careca
e não sabem quem é. Eles perdem muito a identidade. Por isso, acho que a base é fazer
com que esses meninos reconheçam essa identidade humana. É o ponta pé inicial: “Eu
existo!” [...] Estar junto comigo nessa busca do eu, e construir essa identidade que está
meio fragilizada. (Sophia, 2014).
A fala de Sophia mostra sua preocupação com as transformações físicas e prováveis
incidências sobre as transformações identitárias da criança doente, por vezes
mudanças radicais no seu corpo, o que acarreta mudanças nas representações que
ela tem de si mesma, suscetível de desnorteá-la, pois é colocada numa situação de
exclusão social, de violência simbólica4, de baixa autoestima, de descrença em si mesma
e no cerceamento de sua dignidade como pessoa humana. Convém lembrar que a
inquietação da professora está marcada pelos princípios da Educação Infantil (2010),
preconizados na Proposta Pedagógica e Diversidade:
A dignidade da criança como pessoa humana e a proteção contra qualquer forma de
violência – física ou simbólica – e negligência no interior da instituição ou praticadas
pela família, prevendo os encaminhamentos de violações para instâncias competentes.
(Brasil, 2010, p. 21).
Sendo assim, o problema da identidade da criança se apresenta como um aspecto
importante da preservação de sua dignidade enquanto pessoa humana. Observamos
que nas recomendações das Práticas Pedagógicas da Educação Infantil, o eixo
“Currículo” propõe que sejam garantidas às crianças: “[...] experiências de narrativas,
de apreciação e interação com a linguagem oral e escrita, e convívio com diferentes
suportes e gêneros textuais orais e escritos; como também, “situações de aprendizagem
mediadas para a elaboração da autonomia das crianças nas ações do cuidado pessoal,
auto-organização, saúde e bem-estar” (Brasil, 2010, pp. 25-26). Se ampliarmos tais
recomendações, incluídas as narrativas das experiências do adoecimento contadas
pelas crianças, ao lado das narrativas da literatura infantil e demais gêneros, é sem
dúvidas salutar pensar que as narrativas de si podem ajudar a criança a revisitar suas
experiências de mundo. Ricoeur (2010) defende a ideia de uma identidade narrativa,
que se constitui no diálogo consigo mesmo e com o outro.
4 Entendida na perspectiva de Pierre Bourdieu (1970), na qual se expressa na imposição, com a interiorização da
cultura dominante, reproduzindo as relações do mundo do trabalho. O dominado não coloca-se em oposição ao
seu opressor, já que não se percebe como vítima deste processo, mas ao contrário o oprimido considera a situação
natural e inevitável.
180
PASSEGGI, MARIA; ROCHA, SIMONE. Narrativas de experiências docentes...
Ao falar sobre os conteúdos a serem ensinados às crianças na classe hospitalar, a
professora Andreia faz as seguintes considerações:
Eu acho que depende do momento, que a criança está passando por aquela situação.
Quando você vê que a criança está, de certa forma, fragilizada. Aconteceu comigo, de
chegar no hospital e a criança está deitadinha na cama, dormindo, e eu perguntar para
a avó: “Como ela está?”. E a avó responder: - “Ela não está mais sentindo das pernas
para baixo”. E, eu dizer: - “Ela vai melhorar! “Se a gente disser isso como professor,
podem dizer: ”Que é isso?”. Professor não tem que dizer isso”. E quando eu disse: “É
isso mesmo, ela vai melhorar, a criança acordou e disse assim: “Tia Andreia, você tá
aqui? Você trouxe minha tarefa? (muita emoção). Isto não tem preço!” E se no outro
dia você souber que aquela aluna não estava mais com você? Que não iria mais vêla porque ela veio a óbito? É doloroso, difícil, mas eu tento não me preocupar muito,
quando eu falo que ensinar depende muito do momento da criança. Agora, se a criança
está esperta, naquele momento do tratamento está bem, pode se movimentar. Aí sim,
você tem possibilidades de ensinar coisas que planejou previamente, de acordo com o
projeto, se veio da escola, se não veio. Vai nas dificuldades da criança e potencializa as
possibilidades. Ensinar é difícil, o que ensinar, é do momento (Andreia, 2014).
A professora se refere à seleção dos conteúdos a serem trabalhados com as crianças
de acordo com a condição de cada uma delas, procurando perceber o que é possível,
ou não, realizar no momento do atendimento. Ela faz seu planejamento. No entanto,
são as crianças que direcionam seu fazer pedagógico. As diferentes faixas etárias, no
hospital, os diversos níveis de aprendizagem das crianças exigem do professor muita
flexibilidade e atenção aos conteúdos a ensinar, quando ensinar, como ensinar.
Os professores da classe hospitalar precisam estar atentos para verificar as
possibilidades e os limites de cada criança. Assim, quando a lógica educativa da escola
se materializa no hospital, são necessárias reflexões sobre o currículo, como recorda
Taam (2004). Para o professor, o desafio não é fazer adaptações do currículo escolar
para a classe hospital, mas antes construir modelos educativos que respondam às
peculiaridades do ambiente hospitalar onde vive a criança em sua concretude.
Considerações finais
As narrativas autobiográficas das professoras participantes da pesquisa
orientaram nossas reflexões para interpretar o que elas interpretam como o sentido
às suas práticas pedagógicas em classe hospitalar. Elas concordam que acompanhar
as crianças em classe hospitalar conduz a uma auto(trans)formação permanente
de si. Para essas professoras, trata-se de um processo realmente autopoiético,
de reinvenção de si. Tanto para elas, na busca de uma identidade profissional,
Linhas Críticas, Brasília, DF, v.24 - Ahead of print, p.167-185.
181
quanto para as crianças gravemente enfermas que sentem as transformações de
seu corpo provocadas pelo adoecimento. Ao narrar, elas sinalizam que passam a
melhor compreender o mundo do hospital, o outro e a elas mesmas. Suas narrativas
evidenciam experiências que nos ajudam a compreender os lugares de ensinar e
aprender e a problematizar práticas pedagógicas instituídas e instituintes.
As professoras nos dão pistas concretas sobre o ensinar e o aprender, demostrando a
necessidade de posicionamentos político e ético na atenção à criança hospitalizada. Um
cuidado a ser partilhado, no hospital, entre professores, profissionais de saúde, a família
e a criança, a favor de um atendimento de qualidade nos tratamentos terapêuticos de
atenção à saúde física, emocional, intelectual, experiencial que fazem parte da vida,
na complexidade de sua plenitude. Por que então não compor ‘juntos’ novas “redes
de conhecimentos” partilhados, construídos no embate diário contra ideias herdadas
e a favor de novas formas de compreender o ensinar e o aprender de forma dialógica,
na escola e na vida?
Referências
Andréia (2014). Entrevista narrativa. Natal, RN.
Arroyo, M.G. (2008). A infância interroga a pedagogia. In M. Sarmento & M. C. S.
Gouvea (Orgs.). Estudos da Infância: educação e práticas sociais. Rio de Janeiro:
Vozes.
Brasil (1996). Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei número 9.394, 20
de dezembro de 1996. Brasília.
Brasil (2001). Ministério da Educação. Diretrizes Nacionais para a Educação Especial
na Educação Básica/ Secretaria de Educação Especial. Brasília.
Brasil (2002). Ministério da Educação. Classe Hospitalar e Atendimento Pedagógico
Domiciliar: estratégias e orientações. Brasília. Recuperado em 24 janeiro 2018, de
<http://www.dominiopublico.gov.br/download/me000423.pdf >
Brasil (2008). Ministério da Educação. Política Nacional de Educação Especial na
perspectiva da Educação Inclusiva. Brasília.
Brasil (2010). Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Diretrizes
182
PASSEGGI, MARIA; ROCHA, SIMONE. Narrativas de experiências docentes...
curriculares nacionais para a educação infantil. Brasília.
Brasil (2008). Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação
Inclusiva. Brasília. Recuperado em 23 janeiro 2018, de <http://portal.mec.gov.br/
arquivos/pdf/politicaeducespecial.pdf>
Fontes, R. (2005). A escuta pedagógica à criança hospitalizada: discutindo o papel
da educação no hospital. Revista Brasileira de Educação. Rio de Janeiro, (29), 119139.
Fontes, R. (2007). Narrativas da infância hospitalizada. In M. R. Vasconcelos, & J.
Sarmento (Orgs.). Infância (in)visível. São Paulo: Junqueira&Marin.
Freire, P. (1996). Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa
(2a ed.). São Paulo: Paz e Terra.
Jovchelovitch, S. & Bauer, M. W. (2002). A entrevista Narrativa. In M. W. Bauer & G.
Gaskell. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som (2a ed). Rio de Janeiro: Vozes.
Larrosa, J. (2002). Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Tradução de
J. W. Geraldi. Revista Brasileira de Educação, (19), 20-28.
Leontiev, A.N (1998a). Uma contribuição à teoria do desenvolvimento da psique
infantil. In L. S. Vygotsky, et al. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. São
Paulo: Ícone.
Mendes, E. V. (2010). As redes de atenção à saúde. Ciência & Saúde Coletiva, 15(5),
Rio de Janeiro.
Passeggi, M. C. (2010). Narrar é humano! Autobiografar é um processo civilizatório.
In M. C. Passeggi e V. B. Silvia (Orgs.). Invenções de vidas, compreensão de itinerários
e alternativas de formação. São Paulo: Cultura Acadêmica.
Passeggi, M. C. (2011a). A pesquisa (auto) biográfica em Educação. Princípios
epistemológicos, eixos e direcionamentos da investigação científica. In M. F.
Vasconcelos & E. Atem (Orgs.). Em torno da noção de alteridade. Fotaleza: Expressão
Gráfica.
Passeggi, M. C. (2011b). A experiência em formação. Educação, 4(2), 147-156,
Porto Alegre.
Passeggi, M.C.; Furlaneto, E.C.; De Conti, L.; Gomes, M.; Chaves,I (2014). L’enfance
à l’école: Scénarios et enjeux de la recherche avec des enfants au Brésil. In M. LaniBaile; M. C. Passeggi. Raconter l’école: à l’écoute de vécus scolaires en Europe et au
Brésil. Paris: L’Harmattan.
Linhas Críticas, Brasília, DF, v.24 - Ahead of print, p.167-185.
183
Passeggi, M.C.; Rocha, S. (2014). Récits d’enfants hospitalisés sur leur accueil en
milieu hospitalier. In M. Lani- Baile; M. C. Passeggi. Raconter l’école: à l’écoute de
vécus scolaires en Europe et au Brésil. Paris: L’Harmattan.
Pereira, W. C. C. (2007). Movimento institucionalista: principais abordagens.
Estudos e Pesquisas em Psicologia, 7(1), 10-19, Rio de Janeiro.
Piaget, J. (1987). O nascimento da inteligência na criança. 4. ed. Rio de Janeiro:
Guanabara.
Ricoeur, P. (2010). Tempo e narrativa. Tradução Claudia Berliner. São Paulo: Editora
WMF Martins Fontes, Tomo 1; Tomo 3.
Rocha, S. M. (2012). Narrativas infantis: o que nos contam as crianças de suas
experiências no hospital e na classe hospitalar. 2012. Dissertação (Mestrado em
Educação). Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, Rio Grande do
Norte, Brasil.
Rocha, S. M. & Passeggi, M.C. (2013). Inclusão escolar pela classe hospitalar: o que
nos contam as crianças sobre suas experiências educativas no hospital. In E. C.
Souza; M. C. Passeggi; P. P. Vicentini (Orgs.). Pesquisa (Auto)Biográfica: trajetórias
de formação e profissionalização. Curitiba: Editora CRV.
Schaller, J.J. (2008). Lugares aprendentes e inteligência coletiva: rumo à
constituição de um mundo comum. In M. C. Passeggi & E. C. Souza (Orgs). (Auto)
Biografia: formação, territórios e saberes. Natal: EDUFRN; São Paulo: PAULUS.
Sophia (2014). Entrevista narrativa. Natal.
Taam, R. (2004). Pelas trilhas da emoção: a educação no espaço da saúde. Maringá:
Eduem.
184
PASSEGGI, MARIA; ROCHA, SIMONE. Narrativas de experiências docentes...
Maria da Conceição Passeggi é Pesquisadora do CNPq, Pq2. Professora permanente
dos Programas de Pós-Graduação em Educação da Universidade Cidade de São
Paulo e da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Doutora em Linguística
e Mestre em Letras Modernas pela Université Paul Valéry (Montpellier-França). Líder
do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa, Formação, Auto.Biografias, Representações
e Subjetividades (GRIFARS-UFRN-CNPq). Suas pesquisas tematizam as narrativas
autobiográficas e as escritas de si como método de pesquisa e dispositivos de pesquisaformação e focalizam a reflexividade autobiográfica como disposição humana,
promotora da reinvenção permanente das representações de si e do outro. E-mail:
mariapasseggi@gmail.com
Simone Maria da Rocha é Professora Adjunta da Universidade Federal Rural do SemiÁrido e docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Ensino (POSENSINO
-UFERSA/UERN/IFRN). Doutora e Mestre em Educação pela Universidade Federal do
Rio Grande do Norte. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas com Narrativas (Auto)
biográficas em Educação (GEPNAE-UFERSA-CNPq). E-mail: simone.rocha@ufersa.
edu.br
Linhas Críticas, Brasília, DF, v.24 - Ahead of print, p.167-185.
185