A Verdade Da Sombra
A Verdade Da Sombra
A Verdade Da Sombra
A verdade da Sombra
Com certeza já reparou que quando a luz do sol incide sobre o corpo humano,
este projecta uma sombra, a qual é escura. Quanto mais intensa for a luz do sol,
mais escura será a sombra projectada. Da mesma maneira, todos nós temos uma
parte da nossa personalidade que se encontra escondida, na penumbra. Quanto
mais luz possuirmos mais escura será essa parte de nós. E se não prestarmos
atenção a esta parte escura de nós ela irá ficar esfomeada, sedenta, enraivecida. E
irá aproveitar um momento de distracção para se mostrar.
Pessoalmente passei por uma fase de tristeza enorme. Foi esta tristeza que me
despertou. Ouvia uma voz que me dizia que se queria sentir‐me melhor teria
primeiro que abraçar a minha tristeza. A solução da minha tristeza encontrava‐
se na minha escuridão, na minha sombra.
A nossa cultura ocidental ensina‐nos a ser bi‐polares. Desde a infância que nos é
ensinado a criar uma dupla personalidade. Luz e sombra, bom e mau, bonito e
feio.
A tradição gnóstica diz que nós não inventamos nada, simplesmente nos
limitamos a recordar. Acredito que isso é real quando falo da sombra. Vejamos
como a nossa sombra individual é criada.
Quando tínhamos um ou dois anos de idade possuíamos aquilo a que poderemos
chamar de uma personalidade de 360º. A nossa energia irradiava de todas as
partes do nosso corpo e da nossa mente. Uma criança a correr é uma bola de
energia viva. Tínhamos em nós uma gigantesca bola de energia. Mas um dia
apercebemo‐nos que os nossos pais não gostavam de certas partes da nossa bola.
Diziam coisas como “Não podias ficar sossegado?” ou “Não é bonito querer
magoar o teu irmão!”
Às nossas costas temos um saco invisível e, as partes de nós que os nossos pais
não gostavam, íamos enfiando lá dentro. Isto para conseguirmos o amor deles.
Quando chega a idade de ir para a escola o nosso saco já começa a pesar
bastante. Depois surgem os professores, a ensinar a guardar mais aspectos de
quem somos dentro do saco. “Os meninos bonitos não se zangam!” ou “Quem
grita é feio!”. E assim pegamos na nossa raiva e guardamo‐la no nosso saco.
Quando tinha doze anos já possuía um saco com mais de 2 quilómetros de
comprimento e algumas toneladas de peso. Depois vamos para o liceu. E aqui já
não são os adultos a pedir‐nos para guardar aspectos de quem somos dentro do
saco. Aqui somos nós, uns aos outros. Apontamos o dedo aos que não são como
nós. Queremos ser iguais aos outros. e o saco vai crescendo. Quando chegamos
aos vinte anos, de uma gigantesca bola de energia ficamos com uma pequena
fatia.
Imagine agora um homem de, digamos, 24 anos, com uma pequena fatia de
energia (o resto está no saco) e vamos imaginar que conhece uma mulher.
Imaginemos que ambos têm 24 anos, e ela possui uma pequena e elegante fatia
de energia também. Unem‐se numa cerimónia, e esta união de duas fatias de
energia é rotulada de casamento. Mesmo os dois juntos não fazem uma só
pessoa, tão pouca é a energia disponível. Um casamento, quando o saco ás costas
é grande e pesado, significa uma vida de solidão que tem início na lua‐de‐mel. É
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claro que todos mentimos sobre isso. Perguntam‐nos “Então que tal foi a tua lua‐
de‐mel?” e sem sequer pensar na pergunta respondemos “Maravilhosa!”
Culturas distintas enchem o seu saco com qualidades distintas. Nas culturas
cristãs a primeira coisa a ir para dentro do saco é a sexualidade. Uma estudiosa
da sombra, Marie Louise von Franz, avisa‐nos contudo para o facto de que até
culturas ancestrais, onde impera o shamanismo por exemplo, também possuem
as suas qualidades a enfiar no saco. Por exemplo, há culturas que colocam no
saco a individualidade e a criatividade. Nós rotulamos essas culturas de tribais,
ou comunidades místicas. Soa bem ao ouvido mas pode significar que os
membros individuais sabem todos exactamente as mesmas coisas e ninguém
sabe nada novo. É possível que o saco de todos os seres humanos seja
exactamente igual em termos de tamanho.
Passamos a nossa vida, até por volta dos 20 anos, a decidir que partes de nós
devemos enfiar dentro do nosso saco, e depois passamos o resto das nossas
vidas a tentar tirá‐las para fora do saco. Muitas vezes ficamos com a sensação de
que é impossível abrir o nosso saco.
O nosso lado simpático vai tornando‐se mais e mais simpático, na nossa cultura
idealística. O homem ocidental pode ser um bom médico, que pensa sempre no
bem‐estar dos seus pacientes e possui uma moral maravilhosa. Mas a substância
dentro do saco possui uma personalidade muito própria. E não gosta de ser
ignorada. Esta substância ignorada irá saltar do saco no momento mais
inoportuno. Ela sentirá a raiva de ser ignorada.
Quando guardamos muito bem uma parte de nós no saco, essa parte irá
regressar mais cedo ou mais tarde. E regressa com um aspecto bárbaro. Imagine
um jovem que fecha o seu saco aos 20 anos e espera mais 15 ou 20 para o abrir
novamente. O que irá ele encontrar no seu saco? Infelizmente, a sexualidade, o
instinto animal, os impulsos incontrolados, a raiva e a liberdade que lá meteu
antes, mas com uma carga negativa assustadora. Não são apenas aspectos
primitivos em termos emocionais, são hostis à pessoa que abra o saco. O homem
que abra o seu saco aos 45 anos de idade, ou a mulher, irá sentir medo. Ela irá
abrir o saco e ver um monstro. Qualquer pessoa fica assustada ao ver um
monstro.
Podemos afirmar que qualquer homem na nossa cultura coloca no seu saco o seu
lado feminino, a mulher que há nele. Quando este homem começa a abrir o seu
saco, por volta dos 35 ou 40 anos, para voltar a entrar em contacto com o seu
lado feminino, este aspecto pode ser verdadeiramente hostil ao homem. Ao
mesmo tempo, este homem, poderá experienciar uma enorme hostilidade por
parte das mulheres no mundo exterior. A regra é a mesma: o exterior é sempre
igual ao interior.
Se uma mulher, que necessita de se sentir aceite pela sua feminilidade, esconde o
seu aspecto masculino no saco, poderá descobrir, 20 anos mais tarde, que o
masculino se tornou hostil a ela mesma. Mais ainda, este masculino pode ser
desprovido de sentimentos e brutal nas suas criticas. Encontrar um homem
hostil com quem viver irá dar a esta mulher alguém a quem culpar, e aliviar a
pressão no seu saco, apesar de não resolver o problema dentro do saco.
Entretanto, é provável que ela sinta uma rejeição dupla, do homem dentro dela e
do homem fora dela. Há muita mágoa nestas situações.
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Cada um dos aspectos da nossa personalidade que não amamos irá tornar‐se
hostil a nós próprios. Poderíamos ainda acrescentar que estes aspectos podem
afastar‐se para lugares distantes e começar a orquestrar uma revolta secreta
contra nós.
A raiva que um homem mete no seu saco aos 8 anos de idade, pode aparecer na
face da sua esposa aos 40 anos. Depois de 15 ou 20 anos de um casamento
aparentemente feliz, a face da raiva mostra‐se e o homem comete uma loucura.
Quantas vezes ouvimos falar do homem que apanha a mulher com um amante na
cama? Ou do homem cuja mulher se torna violenta, alcoólica ou deprimida e
frígida?
A raiva que a mulher esconde no seu saco aos 5 anos de idade pode aparecer na
face do seu marido aos 45 anos. E o herói, bom pai, honesto trabalhador,
transforma‐se no vilão que saqueou a empresa, ou violou a filha da vizinha.
Há algum tempo atrás sentia uma enorme revolta por gente que trabalhava em
televisão. Não suportava essas pessoas! Uma noite dei por mim, em frente ao
espelho, a pensar nessas pessoas. A pergunta que me ocorreu foi “que tipo de
pessoa é capaz de trabalhar em televisão?” e, vendo‐me ao espelho, sem sequer
pensar, respondi: “pessoas honestas que acreditam que podem fazer uma
diferença no mundo.”... E foi com assombro que dei por mim a falar de mim, de
algo que sentia estar em mim! Decidi continuar este o processo. Que tipo de
pessoa é arrogante? Eu sempre odiara a arrogância nas pessoas. A pessoa que se
sente insegura. Esta doeu! Quantas vezes me senti inseguro! Que tipo de pessoa é
capaz de matar outro ser humano? A pessoa completamente perdida e sem
esperança. Sim, já tive momentos em que me senti completamente perdido e sem
esperança. Afinal, todos os aspectos que não suportava nos outros estavam já em
mim! E tinha que os resgatar, caso contrário continuaria a atrair outros para me
mostrar esses aspectos há tanto tempo escondidos. Agora olho para alguém
arrogante e penso “sim, este sou eu!”
Mas adiante.
A projecção é algo maravilhoso. A psicóloga Marie Louise von Franz afirmou
“Porque motivo assumimos que a projecção é sempre algo mau? Muitas vezes a
projecção pode ser útil.” Esta afirmação é muito sábia mesmo. O conhecimento
dos nossos aspectos sombrios não pode deslocar‐se do subconsciente para a
mente consciente assim tão rapidamente. Se eu não projectasse, nunca
conseguiria conectar‐me com o mundo exterior.
As mulheres queixam‐se que os homens pegam no seu aspecto feminino e
projectam‐no nas mulheres. Mas se o homem não fizesse isto, como poderia ele
alguma vez sair de casa da mãe? O problema não é a projecção que fazemos, mas
por quanto tempo mantemos essa projecção. A projecção sem o contacto pessoal,
sem a nossa consciência, é perigosa.
Veja‐se um caso emblemático: Marilyn Monroe. Milhões de homens projectaram
a sua feminilidade nesta mulher. Se milhões de homens fazem isto, e não mudam,
o mais provável é que esta mulher morra. As projecções sem o nosso contacto
pessoal, sem a nossa consciência de que o fazemos, irão danificar a pessoa que
projecta. Podemos ainda adiantar que a Marilyn Monroe chamou a si estas
projecções como parte da sua sede de poder. E os seus distúrbios podem ter
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ocorrido como resultado da vitimização a que esteve sujeita na infância. Mas o
processo de projecção, e consciencialização, feitos de maneira delicada nas
culturas tribais, face a face, desaparece completamente numa sociedade
tecnológica como a nossa. Numa civilização de consumo imediato a sua morte
era inevitável. Nenhum ser humano consegue viver muito tempo a projectar para
milhões de seres humanos – isto é, para tanta inconsciência – e sobreviver. Daí
ser importante que cada um de nós recupere as suas projecções.
Mas porque motivo haveríamos de colocar num saco tantos aspectos de nós
mesmos? E porque motivo o haveríamos de fazer em tão tenra idade? E se
enfiámos no saco tanta da nossa raiva, espontaneidade, fome de afecto,
entusiasmo, as nossas partes agressivas e nada atractivas, como podemos então
viver? Alice Miller aborda muito bem este tema no seu livro “The drama of the
gifted child”.
O drama é este: nós vimos a este mundo numa nuvem de glória, plenos e
completos, chegámos dos recantos mais longínquos do universo. Connosco
trouxemos apetites preservados pelos mamíferos do planeta, espontaneidade
maravilhosamente preservada pelos nossos 150,000 anos de vida humana no
planeta, raivas também muito bem preservadas pelos nossos 5,000 anos de vida
tribal – em suma, com o nosso brilho de 360º. E oferecemos esta glória plena e
completa aos nossos pais. E eles recusaram‐na. Eles preferiram um bom rapaz ou
uma rapariga bonita. Este é o primeiro acto do drama. Não significa que os
nossos pais foram maus, eles precisavam de nós por algum motivo. A minha mãe,
como uma mulher que teve que abandonar Angola, precisava de uma família que
lhe mostrasse que não tinha perdido nada. Eu faria algo semelhante a um filho
meu: precisaria que ele me mostrasse que eu sou brilhante. Isto é parte do que
significa viver neste planeta. Os nossos pais rejeitaram quem nós éramos ainda
antes de podermos falar, por isso a dor da rejeição encontra‐se muito
provavelmente gravada numa parte que não sabe verbalizar do nosso cérebro.
Quando li o livro da Alice Miller caí numa depressão durante três semanas. Com
tantos aspectos de mim que desapareceram, que poderia eu fazer? Claro que
podia construir uma personalidade que fosse mais do agrado dos meus pais.
Alice concorda que nos traímos a nós mesmos mas, afirma ela, “Não te culpes
por isso, não podias ter feito diferente.” Em tempos idos as crianças que se
opunham aos seus pais eram provavelmente mortas ou abandonadas para
morrer de qualquer forma. Como crianças fizemos a única coisa sensata de
acordo com as circunstâncias em que nascemos. A atitude mais correcta ao saber
isto é sentir o luto da perda.
Vejamos agora os diferentes tipos de sacos. Quando enchemos excessivamente o
nosso saco, ficamos com muito menos energia disponível. Há pessoas que, por
natureza, possuem mais energia que outras. Mas todos possuímos mais energia
do que seriamos alguma vez capazes de consumir. Então para onde foi essa
energia? Se colocámos a nossa sexualidade no nosso saco, quando crianças, é
óbvio que perdemos muita energia com a perda desse aspecto. Quando uma
mulher coloca a sua masculinidade no saco, ela perde essa energia. Podemos
assim pensar no nosso saco como contendo energia que não se encontra
disponível. Se não nos consideramos criativos, é porque colocámos a nossa
criatividade no saco.
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Há ainda os sacos de instituições, empresas, comunidades inteiras, regiões,
países e continentes. Mas estes sacos, estas sombras, só podem ser curadas
depois de curarmos a nossa sombra pessoal.
Uma vez que os nossos sacos permanecem fechados e as suas imagens
escondidas na escuridão, só conseguimos ver o seu conteúdo atirando‐o
inocentemente para fora de nós, para o mundo exterior. Assim, as aranhas
tornam‐se nojentas, as cobras horrorosas, os coelhos são tarados que fornicam
incessantemente, as raposas matreiras e as baratas feias e sujas. Os homens
tornam‐se lineares e as mulheres fracas. Os chineses só produzem artefactos
defeituosos e os americanos são gananciosos. E todavia, só assim é que temos
uma oportunidade de aceitar e abraçar todos os aspectos que rejeitámos, que
metemos no nosso saco pessoal.
Quando nós ‘projectamos’ estamos na verdade a dar a nossa energia, ou poder,
que é nosso por direito e faz parte do nosso tesouro enquanto seres completos.
Um homem poderá dar o seu aspecto sentimental ou amoroso à sua esposa,
projectando nela este aspecto. Assim, perde‐o. E quando surge um problema que
necessita de um sentimento amoroso para ser solucionado, naturalmente ele
transfere a acção para a sua esposa.
Que outros aspectos, ou qualidades, é que um homem projecta nas mulheres?
Pode projectar a sexualidade animal, o que a pode transformar numa fera sexual,
ou mesmo torná‐la promíscua. Pode projectar a sua espiritualidade, o que fará
com que a sua esposa se sinta puritana e superior aos que a rodeiam. Pode ainda
projectar nela a sua fraqueza ou a sua insanidade. Muitos homens projectam a
sua competência na mulher com quem têm uma relação. E muitos dão o seu
aspecto de bruxa a uma ou mais mulheres à sua volta.
Por outro lado, uma mulher pode projectar o seu herói interior no seu marido.
Neste caso o marido irá sentir‐se excessivamente protector e nobre nas suas
atitudes. Pode projectar o seu poder de Saturno no marido, por forma a que ela
mesma possa permanecer divertida e solta, mas ele irá tornar‐se mais e mais
rígido. Ela pode projectar nele o seu tirano interior, ou a sua espiritualidade. E
ele irá tornar‐se excessivamente frio e distante. E muitas mulheres projectam o
seu gigante protector num ou mais homens...
Muitas coisas podem acontecer quando damos o nosso poder interior a outros.
Como exemplo vamos ver o que acontece quando um homem projecta, ou dá, a
sua bruxa interior, e quando uma mulher dá o seu gigante tirano interior.
Quando o nosso talento interior, que nos faz sentir desconfortáveis, é exilado,
tudo o que fica é uma gota insignificante incapaz de ser vista à luz do dia.
O menino começa a projectar a sua bruxa interior muito precocemente, talvez
aos dois ou três meses de idade. A mãe é o melhor anzol para esta projecção.
Muitos acreditam que o bebé, quando tem a primeira experiência da recusa da
mãe em dar‐lhe de mamar, ou qualquer outra recusa, vê na mãe um verdadeiro
monstro (literalmente), com um aspecto visual medonho. As crianças gostam
naturalmente de histórias com bruxas porque estas provam‐lhe que não é louca.
O menino (e também algumas meninas) vive com este segredo: a mãe, que todos
à sua volta afirmam ser amorosa e cuidadosa, possui por vezes cara de bruxa. E o
menino sabe que é demasiado pequeno para fazer o que quer que seja.
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Alguns homens deixam que as suas mães carreguem a projecção de bruxa toda a
vida, mas a maioria, quando se casa, transferem a sua bruxa interior, ou a maior
parte dela, para a sua esposa.
Enquanto os noivos trocam votos numa cerimónia religiosa, há uma outra troca
importante a ocorrer em simultâneo nos recessos do subconsciente. Numa outra
cerimónia, a mãe do noivo passa a projecção de bruxa, que tem carregado desde
os primeiros meses de vida, para a noiva. Uma hora mais tarde a bruxa está
devidamente instalada na noiva, apesar de demorar algum tempo até se mostrar.
Na verdade nem a mãe, nem o noivo, nem a noiva têm conhecimento desta
segunda cerimónia. No final da cerimónia religiosa, a mãe do noivo sente‐se
mais leve e a noiva sente um cansaço inexplicável. Mas depois de algumas
discussões, algumas obstinações, e lutas por causa de dinheiro, o noivo apercebe‐
se que há qualquer coisa de bruxa na sua esposa que nunca tinha visto antes.
Para a esposa é como se se estivesse a passar algo de bizarro, apesar de não
saber ao certo o que é.
Numa discussão ela sente‐se mais gananciosa, ou má. Ou bruxa. Uma cliente
minha disse‐me uma vez: “Emídio, antes de me casar eu era uma mulher
educada, simpática. Estou casada há três anos apenas, e sabes uma coisa, cada
dia que passa torno‐me mais e mais cabra!” Entretanto o marido desta cliente
estava a tornar‐se cada vez mais um verdadeiro doce, o que deixava a esposa
cada vez mais furiosa. Por sua vez isto trazia mais para a luz o lado bruxa da
esposa. Ou seja, ela estava a ser a projecção da irritabilidade impulsiva, da
ganância abrupta, da injustiça, da hostilidade inexplicável e de uma raiva
incontida que era antes da mãe do marido. E agora também do próprio marido.
Não admira que o marido aparente a calma que aparenta e tenha pena do
comportamento da esposa.
Mas durante a cerimónia do casamento ocorre uma transferência de projecções
idêntica entre o noivo e o pai da noiva. Talvez os seus espíritos se encontrem
numa garagem abandonada – uma vez que os corpos físicos estão na igreja. E o
pai da noiva passa para o futuro marido tanto quanto lhe seja possível do gigante
tirano que ele tem transportado para a sua filha. No final da cerimónia o pai da
noiva sai sentindo‐se mais leve. O noivo, por outro lado, sentir‐se‐á
inexplicavelmente cansado. O noivo irá receber do pai da noiva outras
projecções: o guia espiritual dela, o pirata interior, um aspecto bruto da sua
feminilidade. Para além da bruxa, a noiva recebe da mãe do noivo a projecção de
desamparada, desonesta e até a raiva de um guerreiro feroz.
A esta primeira fase de projecção podemos chamar de um estado de espírito em
que o material da sombra, bem manobrado por treinadores experientes (os
pais), procura descanso fora da mente do dono. E muito provavelmente irá
permanecer fora dele até ao fim. Os noivos poderão permanecer nesta fase
primária durante anos.
Mais cedo ou mais tarde uma das projecções começa a fazer barulho. Qualquer
coisa que não encaixa lá muito bem. A esta fase secundária poderemos chamar
de fase do barulho. A esposa tem atitudes de bruxa umas vezes, e outras não. E
não importa quantas asneiras o marido cometa e quantas vezes olhe para ela à
espera de ver a bruxa, ela começa a agir de maneira generosa e carinhosa. Isto
torna‐se confuso para o homem. Ele pode, inconscientemente, claro, começar a
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chegar mais tarde a casa sem avisar, ou esquecer‐se de aniversários. Na
esperança de que a esposa note este comportamento e volte ao seu estado,
projectado, de bruxa. Assim a projecção voltará ao seu devido lugar.
Torna‐se um ambiente ameaçador, quando a projecção começa a fazer barulho.
Imagine que uma mulher colocou a máscara, ou projecção, de gigante tirano no
seu marido e sente‐a como um enorme alivio – pelo menos esse aspecto dela não
está nela! Mas o que acontece se um dia o marido deixa de ser o patriarca
opressor? O que pode ela fazer? Sarilhos! Ela pode, inconscientemente, claro,
gastar mais dinheiro do que ambos têm, bater com o carro, ou sentir‐se
vitimizada de alguma forma. Age como se fosse uma menina pequena. Isto
poderá fazer com que o marido volte a ser o gigante tirano.
Estamos a atravessar uma fase em que muitas pessoas se encontram a projectar
os seus guias espirituais em gurus e mestres. Esta projecção pode durar algum
tempo. Mas eventualmente acaba por fazer barulho. Descobrem que o guru é
pedófilo, ou extremamente rico, ou tem um problema de drogas ou álcool. E aí
temos os discípulos a viver uma ansiedade para tentar aceitar estes
comportamentos dos seus mestres.
E como é esta segunda fase projectada nos filhos? Por exemplo, os pais podem
considerar demasiada criatividade e uma inteligência cinética como um
problema, hiperactividade, exibicionismo. Algo que os próprios pais já há muito
enfiaram bem no fundo dos seus sacos. E chamam os filhos de distraídos,
preguiçosos ou endiabrados. Tudo projecções! Parece que aquilo que os adultos
mais projectam nas crianças é o diabinho interior, capaz das maiores
malandrices. E o que fazem os pais? Zangam‐se com os filhos. E a ira que sai dos
pais é quase sempre desproporcional ao acto que a provoca. Talvez a criança não
faça todos os trabalhos de casa, ou parta um copo, e o pai fica louco de raiva ou
pelo menos o suficiente para punir mais do que o que é necessário. E o que pode
fazer a criança? Ter medo. É terrível olhar para os olhos de uma criança e ver
medo.
Então, quando conseguimos ver nos nossos filhos um ser endiabrado, vemo‐nos
livres de um aspecto nosso que estava escondido no nosso saco. E nós livramo‐
nos de mais um aspecto que estava no nosso saco. Que alivio voltar a ser forte!
Mas depois ocorre‐me que as crianças não são naturalmente endiabradas. E
então tenho um problema pela frente, porque passei à segunda fase da sombra. E
este aspecto ameaça regressar a mim. Este é um momento particularmente
perigoso. Nós podemos tornar‐nos violentos quando existe uma ameaça de algo
que pode regressar a nós.
Descrevi esta segunda fase como um estado da mente em que ocorre algum
barulho, alguma inconsistência preocupante. A esposa de um homem transporta
a sua bruxa interior, mas ela não age como uma bruxa o tempo inteiro. O marido
pode transportar o seu patriarca rígido, mas ele não age como tal o tempo todo. E
há dezenas de outros exemplos que poderíamos aplicar aqui. A China pode
parecer defender os direitos humanos numa específica situação, um general
pode tornar‐se carinhoso, um artista louco pode tornar‐se organizado. E isto é
preocupante. Nesta fase começamos a ficar nervosos, e tudo pode acontecer.
Qualquer imagem de exuberância, poder, inconsistência ou espontaneidade pode
tornar‐se perigosa.
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A terceira fase dá‐se quando a mente da pessoa perturbada pela falta do alvo em
quem projecta activa a sua inteligência moral para poder reparar o barulho da
segunda fase. A ideia em si é assustadora, porque nós precisamos da inteligência
moral, e, todavia, aqui transforma‐se numa ferramenta para continuarmos
inconscientes. As pessoas com uma inteligência moral activa tornam‐se muitas
vezes perigosas, porque no preciso momento em que a máscara cai elas avançam
e voltam a colocá‐la no seu devido lugar. No caso do abuso físico e/ou verbal a
crianças a regra é esta: cada acto de crueldade, consciente ou não, que os nossos
pais tomam é por nós interpretado como um acto de amor. Assim, a inteligência
moral redefine acções brutais e abusivas como actos de amor.
Vejamos como projectamos nas crianças. Quando uma criança mostra um
pequeno sinal do seu diabinho endiabrado e, contudo, nós reagimos com uma
raiva exagerada como resposta, o que fazemos? Normalmente uma vozinha
dentro de nós diz qualquer coisa como “Não te preocupes muito, estás aqui para
tornar esta criança disciplinada e obediente. Se não o fizeres ela irá tornar‐se
preguiçosa e irresponsável.”
Da mesma maneira, os seguidores de gurus e mestres que ficaram ansiosos
devido ao comportamento destes, irão em muito pouco tempo justificá‐lo. Todos
têm acesso à sua inteligência moral. Irão fazer afirmações do género “ele está a
mostrar a loucura em cada ser humano”, ou “ele está a desafiar o ego ocidental”...
Vamos recapitular as três fases iniciais da sombra. Para começar, a bruxa do
homem e o gigante tirano da mulher estão no exterior, e assim as coisas correm
bem. São projectados muitos aspectos. A Maria dá o seu herói ao Manuel, e o
Manuel dá à Maria a sua infantilidade. Depois as coisas começam a tremer um
pouco. E a Maria descobre que o Manuel ás vezes é um herói, e outras vezes não
é. Então a Maria planeia, com a ajuda da sua inteligência moral, uma crise na qual
o Manuel pode provar triunfantemente ser um magnífico herói. Não funciona.
Então surge o esforço desesperado da terceira fase para tentar colocar a máscara
de herói novamente no seu devido lugar, procurando na sua memória os perigos
da bruxa, lutando com outras mulheres contra os patriarcas abusivos e
conseguindo assim os seus objectivos. Por algum tempo.
E surge a quarta fase. Imagine que um dia, cansados, desistimos por um
momento do esforço que é necessário para manter a máscara no seu devido
lugar na outra pessoa. Nessa altura deixa de haver contacto visual. De repente
olhamos para nós mesmos e vemos o pequenos que somos. Reconhecemos o
quão pequenos temos sido toda uma vida. Esta quarta fase é a da sensação da
diminuição mental. Se um rapaz deu o aspecto interior de bruxa à sua mãe e,
mais tarde, a deu à sua esposa, irá chegar aos 40 ou 45 anos de idade e sentir‐se
frágil e diminuído de alguma maneira, em determinadas situações. Isto porque a
sua bruxa está fora de si. Poderíamos dizer que a bruxa é um aspecto de nós que
quer bloquear o nosso crescimento e, ao mesmo tempo, representa uma força
bastante positiva: ela sabe exactamente o que quer. Ela não nos pede para
consultar o tarot, ou o I‐Ching, e ver qual a melhor altura de começar um novo
negócio. Ela quer um novo negócio e é agora!
Ultimamente tenho reparado que há cada vez mais homens a abraçar o seu lado
feminino. Isto é um gesto de coragem recomendável. Mas a falha com este
abraçar é que esquecem a bruxa que existe dentro deles. Se perguntar a um
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destes homens o que gostariam de fazer, raramente sabem. Na melhor das
hipóteses respondem com uma pergunta: “E tu, o que gostarias de fazer?” ou
então “Deixa‐me ver o se a minha companheira/amiga/colega tem já alguma
coisa em mente...” Quando este tipo de homem termina uma relação amorosa é
normalmente a mulher quem põe um fim à mesma. Embora por vezes este tipo
de homem permita que a sua bruxa interior venha à luz e afirme “Basta!” Quando
a bruxa regressa poderíamos dizer que regressa ao homem uma certa
assertividade. Mas é então que estes homens, que anteriormente projectavam a
sua bruxa interior nas mulheres com quem se relacionavam, se sentem
diminuídos. E é importante que eles sintam a dor inerente tão profundamente
quanto possível. Agarrarem‐se à dor, sentirem a dor. Assim poderão descobrir
um outro aspecto deles mesmos: a empatia, serem capazes de escutar a dor do
próximo, saber fluir com a vida. E podem conseguir tudo isso. Mas o poder da
bruxa é querer aquilo que quer e querê‐lo agora. E isto é algo que estes homens
não conseguem abraçar.
Todos sabemos o quanto uma mulher que tenha dado o seu herói a um homem
mais tarde se sentirá diminuída. Mas dar o patriarca tirano não é muito melhor.
Quando se dá o aspecto negativo dá‐se também o aspecto positivo. As mulheres
que deram o poder do seu patriarca a um homem são exímias na arte do
consenso no seu dia‐a‐dia. A solução diplomática, inexistência de verdadeira
autoridade, e o lugar onde todos têm uma palavra a dizer e todos são ouvidos.
Elas acreditam que as sociedades matriarcas funcionavam assim. Esta atitude de
consenso pode ser muito boa no mundo exterior mas nunca funcionará no
mundo interior. Quando uma mulher pratica a arte do consenso no seu mundo
interior, com cada um dos seus aspectos, o critico interior pode simplesmente
avançar e despedaçá‐la.
A arte do consenso também não funciona muito bem no mundo interior
masculino, pela mesma razão.
Assim, ao insistir que o modelo de autoridade patriarcal é a fonte primária do
mal no mundo, e orgulhando‐se de não fazer parte desse modelo, uma mulher
pode condenar‐se à brutalização dela mesma pelas forças que se escondem no
seu interior, na sua sombra. Da mesma maneira que o homem que abraça a sua
feminilidade, devido à ausência da sua bruxa, não tem a força para terminar um
relacionamento que o transformou em escravo, quanto mais para terminar um
relacionamento interior com aspectos que envolvem pura escravatura.
Se nós projectámos 30 partes de nós, 30 aspectos de quem somos, então somos
diminuídos de 30 maneiras diferentes. Tanto os homens como as mulheres
recuperam o seu guia espiritual através de um mestre ou guru quando se sentem
suficientemente diminuídos. Isto não quer dizer que estavam errados quando lhe
entregaram o seu poder inicialmente, mas cada aluno deveria estar consciente da
sua diminuição antes da procura do seu poder interior.
Os nossos amigos têm um papel fundamental nesta quarta fase. O sentimento de
diminuição cria situações estranhas, bizarras mesmo. Se optarmos por contar a
um amigo sobre este nosso sentimento é importante que o nosso amigo não nos
tente animar, alegrar, na altura. Afirmar coisas como “Não! Tu não perdeste
nada, estás só cansado!” Se um homem abraça a sua bruxa interior, ou uma
mulher o patriarca tirano, é muito provável que os seus amigos não fiquem
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muito contentes. Os nossos amigos gostam de nós como somos e não como nos
queremos tornar: completos.
E o que dizer das crianças? Elas podem estar habituadas a ser diabinhos
endiabrados e congelar‐nos numa posição eticamente forte. Quando nos
sentimos diminuídos em relação aos nossos filhos é porque projectamos a nossa
criança neles. E eles, com a sua criança matreira ainda activa, conseguem
dominar‐nos.
Uma coisa importante. Nesta quarta fase ainda não se encontra completo. Na
verdade em nenhuma das fases se encontrará completo. Isto porque nos
encontramos todos simultaneamente nas cinco fases! À medida que projectamos
e somos projectados nos vários aspectos negados, poderes abandonados. Cada
um inconsciente num determinado grau ou a abraçar outros aspectos num outro
grau.
Torna‐se mais claro que a quinta fase neste longo processo se refere ao estado da
mente em que recuperamos o gigante, recuperamos a criança endiabrada,
recuperamos o nacionalista bruto, recuperamos a bruxa. E a todo este processo
poderíamos chamar de comer a sombra.
Comer a nossa sombra é um processo moroso. Não acontece de uma só vez, mas
ao longo de centenas de vezes. Foi Winston Churchill quem afirmou “Tive que
comer muitas das minhas palavras inúmeras vezes e descobri que a dieta era
muito nutritiva!”
Os puritanos, na sua persistência de que as crianças são endiabradas, impedem
muitos de abraçar a sua criança interior, a parte da sua sombra que tem um
poder endiabrado. A Igreja, ao perseguir as bruxas, que hoje sabe‐se terem sido
as mulheres da cura, causou um sofrimento atroz e muita injustiça e barrou
muitos homens de abraçar a sua bruxa interior. Um dos motivos porque ainda
hoje a Igreja se encontra tão mal alimentada.
À medida que uma pessoa vai avançando na idade torna‐se mais sábia nesta fase.
A mãe pode alimentar, mas é a bruxa que tira o alimento e o come. Por este
motivo a bruxa tem que ser resgatada para que a pessoa possa abraçar uma
parte significativa da sua sombra. Quando uma pessoa começa a abraçar a
autoridade projectada, ou rejeitada, por exemplo, entrará em cena Saturno. E
com Saturno a nossa paixão aprofunda‐se, e a melancolia, uma marca típica de
Saturno e da Sombra resgatada, traz o seu luto e com ele a abertura do espírito.
Começamos a ter a percepção nítida dos nossos limites, e estes limites começam
a mostrar‐se como uma parte natural de quem somos: vida completa.
A espontaneidade reaparece na nossa relação com os nossos filhos quando
começamos a viver a mágoa do regresso da sombra. Para melhor compreender
este relacionamento, na quinta fase, deixo‐lhe uma história que li num livro do
George Docsi.
“Quando era criança e vivia na Hungria, tive sorte de pertencer a uma família
abastada. A parte do dia que mais me encantava era o jantar. Ao fim do dia descia
as escadas e entrava na sala de jantar. A mesa estava posta, com pratos e talheres
que me pareciam gigantescos. Os adultos sentados, a conversar animadamente. O
meu avô, o patriarca, era respeitado e ouvido por todos os outros. E depois ter as
empregadas a servir‐me a sopa. Este era o momento especial. O sorriso da
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empregada enquanto me servia a sopa! Devia ter uns cinco anos de idade. Um dia
desci para me sentar à mesa, como de costume, e a casa estava cheia de
estranhos, mal vestidos, amedrontados, que tremiam. Pareciam‐me muitos.
Fiquei assustado. Fui na mesma para a sala de jantar, com medo a apoderar‐se de
mim. Soube mais tarde que tinha havido qualquer revolta na Rússia e os judeus
tinham fugido à pressa. Nós vivíamos numa cidade ao lado da fronteira com a
Rússia. O meu avô tinha ido à estação dos comboios e trouxera para casa tantos
judeus quantos lhe tinha sido possível. Quando entrei na sala de jantar fiquei
ainda mais aterrorizado. Alguém se tinha sentado no meu lugar! Na verdade
todos os lugares à mesa estavam ocupados e ninguém fazia parte da minha feliz
família! Fui ao meu lugar, peguei no pedaço de pão que me estava destinado por
direito e fugi de volta ao meu quarto. Quando ía subir as escadas ouvi o meu avô
a chamar‐me. Virei‐me e, num ataque de raiva, atirei com o pão ao chão. O meu
avô, com uma face de amor e carinho, pegou no pão e colocou um beijo tão suave
naquele pedaço de trigo. Depois entregou‐mo de volta. Sem saber o que tinha
acontecido, peguei no pão e comi‐o. O meu avô tinha‐me mostrado que era
normal eu sentir aquela raiva, e reconhecia nela a sua criança endiabrada, a qual
ele amava do mais profundo do seu coração.”
A maioria dos pais, numa situação idêntica, teriam ficado furiosos.
Provavelmente teriam gritado algo como “Apanha já o pão! Há crianças a morrer
à fome em África!”, ou qualquer outra idiotice. O avô de George passou por cima
de toda essa projecção, abaixou‐se e apanhou o pão, sem qualquer projecção da
criança. Depois beijou o pão, um acto tão belo quanto indescritível. Não acusou o
pão de ser mau, nem a criança de ser endiabrada. Um acto espontâneo, decisivo,
e no entanto cheio de autoridade e mágoa genuínas.
Assim, a pessoa que abraça a sua sombra na totalidade irradia calma, e mostra
mais mágoa do que raiva. Se os sábios da antiguidade tinham razão e a nossa
sombra contém inteligência, alimento para a alma e informação valiosa, então a
pessoa que abraça a sua sombra na totalidades será muito mais energética e
inteligente.
A questão que temos que nos colocar, então, é, como abraçar a nossa sombra na
totalidade?
O processo é simples e, em simultâneo, perigoso. Na verdade não é muito
aconselhável enveredar por este caminho sem o apoio de alguém que o tenha já
percorrido antes. Por vezes torna‐se assustador. Para quem abraça a sua sombra
e também para aqueles que o rodeiam no dia‐a‐dia.
No seu dia‐a‐dia sugeria‐lhe apurar os seus sentidos físicos: o sabor, o cheiro, o
tacto, a audição e a visão. Crie alguns buracos nos seus hábitos diários. Ouça
música e dance como se ninguém o estivesse a ver. Faça estátuas assustadoras
em barro. Toque tambores. Isole‐se por um mês e imagine‐se um criminoso
fugido genial. Se for mulher faça de conta que é um patriarca tirano em alturas
específicas do dia, mas de uma maneira divertida. Se é homem, tente ser uma
bruxa má, mas também de uma maneira que seja divertida para si. E repare
sempre como se sente nesses papeis. A mulher pode dar uma gargalhada sonora
e bater com a mão na mesa. O homem pode dar as gargalhadas típicas de uma
bruxa malvada.
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Para o homem é importante que ele descubra qual a mulher, ou mulheres, que
possuem a sua bruxa. Depois terá que confrontar essa mulher, cumprimentando‐
a cordialmente e afirmando “Eu quero a minha bruxa de volta. Dá‐ma.” O mais
provável é que a mulher sorria com curiosidade e poderá devolver‐lhe a bruxa,
ou não. Se ela recusar, o homem pode simplesmente pedir desculpa, olhar para a
sua esquerda (para a sombra real da mulher) e abrir a boca como se estivesse a
comer essa sombra. Uma mulher pode ir ter com a sua mãe e fazer o mesmo
pedido, porque são as mães as que possuem a bruxa interior de cada mulher. E
ao recuperar a bruxa interior, recupera todo o poder, toda a energia, que perdeu
ao dá‐la quando criança.
A mulher pode ir ter com o pai e dizer‐lhe “Tu tens o meu gigante tirano. Eu
quero‐o de volta.” Ou pode ir ter com um professor antigo ou um ex‐marido e
dizer‐lhe “Tu tens o meu patriarca negativo. E eu quero‐o de volta.” Mesmo que a
pessoa que carrega a projecção da bruxa ou do gigante tirano esteja já morta,
pode sempre fazer este processo mentalmente, fazendo o pedido em voz alta.
Há muitas outras formas de abraçar a sombra, ou ir buscar a projecção, ou
diminuir o peso do saco que tem nas costas. O importante é saber utilizar as
palavras correctas. Significa isto que têm que ser palavras precisas e com uma
base física. Utilizar a linguagem mais consciente é uma das formas mais
poderosas de ir buscar a nossa sombra que se encontra espalhada pelo mundo
exterior.
A energia que perdemos no processo inicial encontra‐se a flutuar à volta da
nossa mente, e uma forma de a resgatar é com uma corda feita do vocabulário
apropriado. Há palavras que são como redes, e temos que usar essas redes
activamente, atirando‐as à nossa volta e recolhendo os nossos aspectos perdidos.
Se queremos a nossa bruxa de volta, escrevemos sobre ela. Se queremos o nosso
guia espiritual de volta escrevemos sobre ele, em vez de o experienciar
passivamente noutra pessoa.
A linguagem contém a substância da sombra perdida ao longo de milhares de
anos. Se não é capaz de se expressar por palavras, experimente com a pintura, ou
escultura. Quando pintar a sua bruxa com uma intenção consciente, irá descobrir
onde é que ela se esconde no mundo exterior. Será assim mais fácil resgatá‐la.
Assim, a quinta fase envolve a actividade, a imaginação, a caça, o pedir. Chore,
como choraria uma criança, até obter aquilo que é seu por natureza.
As pessoas que são passivas em relação aos aspectos que projectam contribuem
para muitas das crises mundiais. Entregam os seus aspectos da sombra a líderes,
políticos e fanáticos. A energia das suas sombras são absorvidas por estas
pessoas e utilizada sem escrúpulos. Não se permita sentir culpado por ir atrás da
sua sombra, por reivindicar o seu poder.
Uma das coisas que temos que fazer é trabalhar bastante neste processo de
abraçar a nossa sombra. Desta forma certificamo‐nos que a nossa energia não é
utilizada por outros em situações que são perigosas para a humanidade. É o caso
do politico que ameaça um país vizinho, ou o líder religioso que viola crianças, ou
o administrador de uma grande empresa que deixa centenas de pessoas sem
emprego.
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