1. O documento apresenta o resumo e os agradecimentos de um livro resultante de um seminário sobre políticas de enfrentamento ao heterossexismo no Brasil.
2. O seminário reuniu ativistas, pesquisadores e representantes do governo para debater como desafiar as formas culturais e políticas do heterossexismo.
3. O livro publica artigos do seminário que refletem sobre como produz normas sociais geram desigualdade e como criticar epistemologias que legitimam exclusão.
1. O documento apresenta o resumo e os agradecimentos de um livro resultante de um seminário sobre políticas de enfrentamento ao heterossexismo no Brasil.
2. O seminário reuniu ativistas, pesquisadores e representantes do governo para debater como desafiar as formas culturais e políticas do heterossexismo.
3. O livro publica artigos do seminário que refletem sobre como produz normas sociais geram desigualdade e como criticar epistemologias que legitimam exclusão.
1. O documento apresenta o resumo e os agradecimentos de um livro resultante de um seminário sobre políticas de enfrentamento ao heterossexismo no Brasil.
2. O seminário reuniu ativistas, pesquisadores e representantes do governo para debater como desafiar as formas culturais e políticas do heterossexismo.
3. O livro publica artigos do seminário que refletem sobre como produz normas sociais geram desigualdade e como criticar epistemologias que legitimam exclusão.
1. O documento apresenta o resumo e os agradecimentos de um livro resultante de um seminário sobre políticas de enfrentamento ao heterossexismo no Brasil.
2. O seminário reuniu ativistas, pesquisadores e representantes do governo para debater como desafiar as formas culturais e políticas do heterossexismo.
3. O livro publica artigos do seminário que refletem sobre como produz normas sociais geram desigualdade e como criticar epistemologias que legitimam exclusão.
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Polticas de enfrentamento ao heterossexismo: corpo e prazer
Organizador: Fernando Pocahy
Polticas de enfrentamento ao heterossexismo: corpo e prazer Organizador: Fernando Pocahy 1 edio Porto Alegre, 2010 Polticas de enfrentamento ao heterossexismo: corpo e prazer Organizador: Fernando Pocahy Edio: nuances - grupo pela livre expresso sexual e nupsex - Ncleo de Pesquisa em Sexualidade e Relaes de Gnero (ufrgs) Este livro no pode ser comercializado. Sua distribuio gratuita. Catalogao-na-Publicao Ficha catalogrfca elaborada pelo Setor de Processamento Tcnico da BIBPSICO/UFRGS Arte: Luis Gustavo Weiller Editorao de capa: Perseu Pereira Diagramao: BHZ Design P779 Polticas de enfrentamento ao heterossexismo : corpo e prazer / organizador Fernando Pocahy. Porto Alegre : NUANCES, 2010. 176 p. Resultante do Seminrio que guarda o ttulo do livro, e que teve lugar entre os dias 6, 7 e 8 de agosto de 2008 na Faculdade de Educao da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. ISBN 978-85-60658-03-9 1. Homossexualidade. 2. Sexualidade. 3. Gnero. 4. Corpo. 5. Direitos humanos. I. Pocahy, Fernando. II. Seminrio Polticas de Enfrentamento ao Heterossexismo (2008 : Porto Alegre, RS).
CDD 306.76 Instituies parceiras Igualdade Associao de Travestis e Transexuais do RS Liga Brasileira de Lsbicas Regio Sul cesec Centro de Estudos de Cidadania e Segurana (Univ. Cndido Mendes/RJ) clam Centro Latino-americano em sexualidade e direitos humanos (ims/uerj) acadepol - Academia de Polcia Civil do Estado do Rio Grande do Sul esp - Escola de Sade Pblica do Estado do Rio Grande do Sul geerge Grupo de Estudos em Educao e Relaes de Gnero (ufrgs) nupacs - Ncleo de Pesquisas em Antropologia do Corpo e da Sade (ufrgs) nupsex - Ncleo de Pesquisas em Sexualidade e Relaes de Gnero (ufrgs) Secretaria Especial dos Direitos Humanos Agradecimentos O nuances grupo pela livre expresso sexual expressa agradecimento a todas as pessoas e instituies que se engajaram na realizao do Semin- rio Polticas de enfrentamento ao heterossexismo: Corpo e Prazer e que fzeram deste evento um espao de reencontro e novidade, cuja memria permanece viva nessa publicao. Encorajados pelo apoio da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, atravs Coordenao Geral de Promoo dos Direitos de Lsbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais lgbt, Programa Brasil sem Homofo- bia, reunimos em Porto Alegre pessoas que, cada uma a seu tempo e mo- mento, dialoga(ra)m e/ ou colabo(ra)ram com a atuao do grupo nuances e/ou que esto presentes no debate acadmico e militante sobre sexualida- de, gnero e direitos humanos. A oportunidade de realizarmos o evento e esse livro com recursos pbli- cos refete mais do que um momento poltico. Ela diz respeito aos esforos de muitas pessoas no processo de construo da democracia em nosso pas. Gnero, sexualidade e raa/etnia so mais do que temas de sociedade, eles so dimenses polticas sem as quais no podemos pensar o Brasil. Nosso especial agradecimento sedh pelo fnanciamento deste proje- to, bem como pela parceria; a Rodrigo Lopes pela curadoria da exposio Lampio da Esquina que teve lugar durante o evento; Universidade Fe- deral do Rio Grande do Sul, em particular Faculdade de Educao e ao geerge Grupo de Estudos em Educao e Relaes de Gnero que no somente acolheram e ofereceram a estrutura para a realizao do encontro, mas abriram possibilidades de dilogo com a comunidade acadmica ao sediar o evento e ao hospedar a exposio comemorativa aos trinta anos Sumrio Apresentao 11 Fernando Pocahy Uma viso da trajetria do movimento lgbt no Brasil 13 Jlio Assis Simes Direitos Humanos, Direitos Sexuais e Homossexualidade 35 Roger Raupp Rios Polticas e Direitos Sexuais no Brasil Contemporneo 45 Srgio Carrara Pouco saber para muito poder: a patologizao do gnero 61 Berenice Bento Plurais na singularidade refexes sobre travestilidades, desejo e reconhecimento 75 Larissa Pelcio Impasses contemporneos do protagonismo lsbico: para alm da inverso da sigla 85 Guilherme Silva de Almeida Polticas para lsbicas e para sapates: diversidade, diferenas e o enfrentamento ao heterossexismo 103 Regina Facchini Respostas do movimento glbt homofobia e a agenda da segurana pblica 125 Silvia Ramos Sexualidades minoritrias e educao: novas polticas? 143 Guacira Lopes Louro Educao, heterossexismo e homofobia 151 Henrique Caetano Nardi de surgimento do Jornal Lampio da Esquina; ao Setor de Apoio a Eventos da Faculdade de Educao, pelo apoio tcnico e por todas as gentilezas; e muito particularmente ao Ncleo de Pesquisas em Sexualidade e Relaes de Gnero - nupsex/ufrgs que colaborou com a edio deste livro. Nossos agradecimento a todas as instituies parceiras e suas/seus re- presentantes, sem as/os quais este evento no teria encontrado a repercus- so e a notoriedade que se produziram: Igualdade Associao de Traves- tis e Transexuais do RS, Liga Brasileira de Lsbicas Regio Sul, geerge Grupo de Estudos em Educao e Relaes de Gnero (ufrgs), nup- sex Ncleo de Pesquisas em Sexualidade e Relaes de Gnero (ufrgs), nupacs Ncleo de Pesquisas em Antropologia do Corpo e da Sade (ufrgs), clam Centro Latino-americano em sexualidade e direitos hu- manos (ims/uerj), cesec Centro de Estudos de Cidadania e Segurana (Universidade Cndido Mendes/RJ), Academia de Polcia Civil do Estado do Rio Grande do Sul e Escola de Sade Pblica do Estado do Rio Grande do Sul. A todas as pessoas que estiveram presentes nessa jornada deixamos re- gistrado neste livro imagens e vozes de um encontro animado pela tica e pala solidariedade, vigoroso em sua potncia de idias e em seu compro- misso com a democracia e a dignidade humana. Muito obrigada/o! Ativistas do nuances 13 Apresentao Apresentao O nuances tem o prazer de apresentar-lhes a publicao Polticas de En- frentamento ao Heterossexismo, resultante do Seminrio que guarda o t- tulo do livro, e que teve lugar entre os dias 6, 7 e 8 de agosto de 2008 na Faculdade de Educao da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. O evento contou com a presena de ativistas, pesquisadoras/res, estudan- tes e representantes da gesto pblica, entre outras pessoas implicadas em pensar/viver modos de desafar as formas culturais e polticas do heteros/ sexismo. Esta ao, entre tantas outras j realizadas pelo grupo nuances, refete a trajetria de um grupo de ativistas que em seus 20 anos de existncia sem- pre buscou promover amplo e radical debate sobre as formas de produo de desigualdade social, denunciando e agindo diante dos processos de nor- malizao das possibilidades de experimentao do corpo e das formas de produo de prazer (particularmente a sexualidade). O projeto deste evento foi realizado atravs de Convnio com a Secre- taria Especial dos Direitos Humanos e articulado a diversas parcerias ins- titucionais em mbito local e nacional. Este seminrio se constituiu como uma estratgia de ampliao e fortalecimento de alianas no campo acad- mico, militante e de gesto pblica. E no instante em que nos dispusemos a refetir e agir diante da imposio dos binarismos, das classifcaes e dos sistemas de oposio que determinam os lugares que uns e outros/as podem ocupar em nossa sociedade, a partir das representaes de gnero e da sexualidade (em interseccionalidade com outros marcadores sociais), acionamos coletivamente (especialmente no debate entre Universidade e Movimento Social) uma crtica s epistemologias normativas que cercam o mundo e que do garantias s diversas formas de excluso. 15 Uma viso da trajetria do movimento lgbt no Brasil Ao propormos a veiculao do conceito de heterossexismo, amplamente citado e tensionado no evento e presente nos artigos que seguem, no tive- mos a inteno de esvaziar a fora poltica que construmos no movimento lgbt atravs da palavra homofobia (e de suas particularidades l/g/b/t- fobia). No entanto, o que arriscamos nessa reviso e ampliao do conceito, foi uma forma de evidenciar ainda mais um tipo de violncia e de hierar- quizao das relaes sociais que se produz nos domnios da sexualidade - amalgamada a representaes fxas e hierarquizadas de gnero. O heteros/sexismo no diz respeito somente a lsbicas, travestis, tran- sexuais, gueis ou bissexuais. Esta forma de discriminao diz respeito ao modelo de sociedade que vivemos. Ela opera muitas vezes de forma sutil na maioria das vezes, mas por outras em gritante manifestao, trabalhando a conferir inteligibilidade social a partir da suposta naturalidade e evidente status da heterossexualidade. Esta forma compulsria atribui sentidos s formas de viver a sexualidade e o gnero, sendo construda e reiterada na- turalmente por discursos cientfcos, culturais e/ou religiosos fundamen- talistas; discursos estes que criam e favorecem condies para a banalizao da violncia que se materializa em desqualifcaes, negligncias, descaso, insultos, constrangimentos, agresses fsicas, tortura e atravs de assdios de toda ordem. No faltam violaes de direitos e, terrivelmente, a violn- cia letal nestes jogos de subordinao e de controle da vida. De uma forma mais ampla, um dos efeitos diretos desse tipo de norma e consequente dis- criminao o enfraquecimento da democracia. Resultado de um ardente e vigoroso debate, trazemos aqui nesta publicao algumas provocaes a que pensemos na multiplicidade das formas com as quais ns podemos arriscar alguma virada nestes jogos de assujeitamento- objetifcao que envolvem sexualidade e gnero. E ns podemos comear este debate revisitando a histria presente em nossas prprias lutas e os desafos sobre o reconhecimento social que desejamos, perguntando-nos como ele se produz e como negociado em termos de poltica de identidade. Tenhamos um bom (re)encontro e boas inquetaes nesta leitura. Fernando Pocahy nuances/ ppgedu-ufrgs(geerge/nupsex) Uma viso da trajetria do movimento lgbt no Brasil Jlio Assis Simes 1 Escrever sobre a histria do movimento lgbt no Brasil tarefa prazerosa e relevante, mas ao mesmo tempo temerria. Trata-se de cobrir um perodo relativamente curto, mas tambm intenso, em que os primeiros grupos de militncia homossexual, auto-sustentados e de organizao despojada, sur- gidos no fnal dos anos 1970, deram lugar ao cenrio atual de redes nacionais de entidades ativistas lgbt e seus variados vnculos com o Estado e com o movimento internacional. Hoje, o Brasil aparece como o pas que mais re- aliza Paradas do Orgulho lgbt, e o movimento lgbt parece ter-se tornado responsvel pelas maiores manifestaes pblicas de massa no Pas. Devo dizer que minha participao direta nessa histria foi bem mo- desta, como membro do grupo Somos, no remoto ano de 1979; e minha maior contribuio ao movimento talvez tenha sido coletar um punhado de assinaturas de meus professores na Faculdade de Filosofa, Letras e Ci- ncias Humanas da usp, onde eu era aluno do curso de Cincias Sociais, para um abaixo-assinado em defesa dos editores do jornal Lampio, que ento sofriam um processo na Justia por ofensa moral e aos bons cos- tumes. verdade que assisti a dezenas de longas reunies de grupo, e para isso at estava calejado, tendo em vista as outras tantas dezenas de assem- blias estudantis que j tinha frequentado naquele agitado fnal de dcada de 1970. Mas, depois desse breve perodo de militncia, apenas acompanhei de longe os esforos de vrios dos amigos que fz no movimento, alguns j no mais presentes entre ns, que prosseguiram em vrias outras frentes 1 Doutor em Cincias Sociais pela Universidade Estadual de Campinas. Professor do Departamento de Antropologia da usp. 16 Jlio Assis Simes 17 Uma viso da trajetria do movimento lgbt no Brasil de batalha, no combate pandemia do hiv-Aids e nas tentativas de recriar espaos de sociabilidade e discusso sobre homossexualidade e diversida- de sexual. Depois ainda, acompanhei o trabalho militante e investigativo de pessoas mais jovens, alguns quase alunos que viraram grandes amigos, como Regina Facchini, que se tornou uma pesquisadora de referncia no campo e com quem fui estimulado a escrever recentemente um pequeno livro sobre esse assunto 2 . Foi essa experincia e a rememorao por ela pro- porcionada que me deu alento para aceitar esta incumbncia, atendendo ao convite dos caros e caras ativistas do grupo Nuances. No possvel contar a histria inteira no espao que disponho. S po- derei apresentar contornos dessa trajetria, passando em grandes pincela- das por suas fases, e chamar a ateno para as mudanas sociais e polticas mais amplas que moldaram as formas de organizao e atuao do movi- mento. Como todo mundo que fala sobre esse assunto deixa transparecer suas prprias experincias e preferncias, vou acabar dando mais espao primeira fase do movimento, porque me sinto mais vontade para falar dela, por t-la vivido mais de perto. Ainda assim, gostaria tambm de in- cluir, mais ao fnal, algumas refexes em torno do processo contempor- neo de constituio do cidado lgbt como sujeito de direitos e dos desafos que tm sido postos ao movimento atual. Vou adotar aqui a conveno, seguida por vrios estudiosos 3 , de que o desabrochar de um movimento homossexual no Brasil se deu no fnal da dcada de 1970, com o surgimento de grupos voltados explicitamente militncia poltica, formados por pessoas que se identifcavam como ho- mossexuais (usando diferentes termos para tanto) e buscavam promover e 2 Julio Assis Simes e Regina Facchini, Na trilha do arco-ris: do movimento homossexual ao lgbt. So Paulo: Edtora Fundao Perseu Abramo, no prelo. 3 A literatura disponvel converge ao considerar o fnal dos anos 1970 como marco do surgimento de movimento homossexual no Brasil. Ver, entre outros: Peter Fry, Da hierarquia igualdade: a cons- truo histrica da homossexualidade no Brasil. In: Para ingls ver: identidade e poltica na cultura brasileira. Rio de Janeiro, Zahar, 1982, pp. 87-115; Joo Silvrio Trevisan, Devassos no paraso. 3. ed. Rio de Janeiro, Record, 2000; Edward MacRae. A construo da igualdade: identidade sexual e poltica no Brasil da Abertura. Campinas, Ed. da Unicamp, 1990; Cristina Cmara, Cidadania e orientao sexual: a trajetria do grupo Tringulo Rosa. Rio de Janeiro, Ed. Academia avanada, 2002; Cludio Roberto da Silva, Reinventando o sonho: histria oral de vida poltica e homossexualidade no Brasil Contemporneo. Dissertao de Mestrado. So Paulo, usp, 1998; James Green, Alm do carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do sculo XX. So Paulo, Ed. da Unesp, 2000; James Green, Mais amor e mais te- so: a construo de um movimento brasileiro de gays, lsbicas e travestis. cadernos pagu, 15, 2000, pp. 271-295; Regina Facchini, Sopa de letrinhas? Movimento homossexual e produo de identidades coletivas nos anos 90. Rio de Janeiro, Garamond, 2005; Glucia Elaine Silva de Almeida. Da invisibilidade vul- nerabilidade: percursos do corpo lsbico na cena brasileira face possibilidade de infeco por dst e Aids. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro, ims/uerj, 2005; Carlos Figari, @s outr@s cariocas. Belo Horizonte, Ed. da ufmg; Rio de Janeiro, iuperj. 2007. difundir novas formas de representao da homossexualidade, contrapos- tas s conotaes de sem-vergonhice, pecado, degenerao e doena. Con- siderando tais caractersticas de aglutinar pessoas dispostas a declarar sua homossexualidade em pblico e que se apresentavam como parte de uma minoria oprimida em busca de alianas polticas para reverter essa situao de preconceito e discriminao , podemos dizer que o movimento polti- co em defesa da homossexualidade no Brasil completou 30 anos. O marco consagrado nessa historiografa particular a formao do grupo Somos, em So Paulo, em 1978, mesma poca em que era lanado o Lampio, jor- nal em formato tablide que se voltava para um enfoque acentuadamente social e poltico da homossexualidade. Isso posto, devemos ter em conta que a histria das associaes de pes- soas que tm a homossexualidade como um aspecto compartilhado em suas vivncias , contudo, muito mais antiga e diversifcada no Brasil. Nem sempre essas associaes assumiram carter poltico e, muitas vezes, nem mesmo tiveram a homossexualidade como foco aglutinador, embora te- nham sido veculos importantes para sua expresso social como o caso, por exemplo, dos fs-clubes de famosas cantoras da msica popular, desde a era do rdio at hoje. No h espao aqui de retroceder tanto no tempo, e dar a essa movi- mentao homossexual do passado o lugar devido. Cabe lembrar, de todo modo, que a dcada de 1970, que se inicia no Brasil sob o jugo da ditadura escancarada e que corresponde aos nossos anos de chumbo o perodo mais violento de perseguies, torturas e assassinatos cometidos pelos r- gos da represso poltica e por seus braos paralelos que faziam cair seu peso sobre os costumes foi tambm, paradoxalmente, um tempo de gran- de efervescncia artstica e de contestao cultural no Pas, culminando no amplo movimento poltico de oposio ditadura, no seio do qual, justa- mente, ir brotar o ento chamado movimento homossexual. Trata-se de um momento marcado pela contracultura, pelo desbunde e sua concomi- tante converso em formas de consumo de massa; pelo reaparecimento do movimento estudantil e sindical; por uma intensa atividade de grupos de esquerda (ainda que na clandestinidade); e pelo surgimento e visibilidade das verses modernas do movimento feminista e do movimento negro. Foi tambm um tempo em que espaos pblicos de sociabilidade homossexual comearam a se tornar mais visveis e ruidosos, especialmente nas grandes cidades. Tempo de exploso discursiva sobre as homossexualidades, para alm dos tradicionais jornais caseiros, alcanando a grande imprensa e o 18 Jlio Assis Simes 19 Uma viso da trajetria do movimento lgbt no Brasil mercado editorial. Tempo em que as homossexualidades saram do armrio no s para ir ao bar e festa, mas tambm assemblia e reunio de pauta. Libertrios e despojados O jornal Lampio e o grupo Somos, de So Paulo, so reconhecidos hoje como expresses modelares da primeira onda de ativismo homossexual no Brasil. Formados praticamente ao mesmo tempo, tiveram ambos uma exis- tncia curta. Lampio 4 durou de abril de 1978 a junho de 1981, publicando 37 edies mensais em pouco mais de trs anos de existncia. O Somos du- rou um pouco mais, cerca de cinco anos de 1978 a 1983. Mas talvez o grande perodo para ambos tenha sido o ano e meio, que vai de fevereiro de 1979 a junho de 1980. Essas datas marcam o auge da atuao do grupo Somos. Em fevereiro de 1979 deu-se o seu aparecimento pblico numa semana de debates sobre movimentos de emancipao de grupos discriminados promovida pelos estudantes do Centro Acadmico do curso de Cincias Sociais da Univer- sidade de So Paulo, quando o grupo foi batizado como Somos nome que, alm de suas propriedades palindrmicas, evocava o jornal publica- do pela extinta Frente de Libertao Homossexual da Argentina. Na outra ponta, em junho de 1980, acontecia a principal ao pblica dos militantes homossexuais da poca: um ato pblico realizado em frente ao Teatro Mu- nicipal de So Paulo, que reuniu o j ento fragmentado Somos e represen- tantes dos movimentos feminista e negro, em protesto contra a represso policial, capitaneada pelo delegado Richetti, que atingia os principais pon- tos de prostituio e de freqncia homossexual do centro da cidade. Cerca de mil manifestantes seguiram em passeata pelas ruas do centro de So Paulo, naquela que pode ser considerada a primeira manifestao de rua do movimento homossexual no Brasil, e na qual se celebrizaram palavras de ordem inusitadas, como somos todas putas, amor, teso, abaixo a re- presso!; agora, j, queremos fechar e Ricchetti louca, ela dorme de touca! 5 . Um pouco antes, uma parte do Somos participara do ato pblico de comemorao do 1 de Maio, no Estdio da Vila Euclides, em So Ber- 4 O nome completo do jornal era Lampio da Esquina, sendo o complemento da Esquina acrescen- tado por questes de registro comercial, j que existia ento uma editora com o nome Lampio. Os exemplares, porm, estampavam a palavra Lampio em letras garrafais, e foi por esse nome que o jornal fcou conhecido. Por isso, me refro a ele aqui apenas dessa forma abreviada. 5 Joo Silvrio Trevisan, A guerra santa do Dr. Richetti. Lampio, n. 26, julho de 1980. nardo do Campo, no abc paulista, desflando debaixo de surpreendentes aplausos dos operrios presentes episdio esse que foi o estopim para a ciso do grupo. Esse ano e meio tambm talvez o melhor momento do Lampio, ape- sar do inqurito que fustigou seus editores. O jornal aumentava sua tira- gem, melhorava sua distribuio para alm de Rio e So Paulo e desenvol- via com o Somos um relao de colaborao bastante estreita, ainda que tambm tumultuada. O nmero 10 do jornal (maro de 1979) deu grande cobertura aos debates sobre os movimentos de emancipao, em que o Somos se assumiu para o mundo. Um texto relatando a experincia de um ano de existncia do Somos foi publicado com destaque nas duas primei- ras pginas da edio de nmero 12 (maio de 1979), na qual a reportagem principal, Amor entre mulheres, trazia entrevistas, textos e depoimentos produzidos em grande parte por lsbicas ativistas do Somos. Na edio de nmero 16 (setembro 1979), a reportagem de capa, Homossexuais se orga- nizam, trazia uma entrevista com integrantes do Somos e textos em que o grupo expunha suas metas, organizao e mtodos. Em contrapartida, integrantes do Somos colaboravam na comerciali- zao do Lampio nos espaos de frequncia homossexual de So Paulo, e tambm distribuindo cpias das edies que continham matrias sobre o grupo, marcadas por um carimbo de cortesia com o nmero de sua caixa postal. O grupo tambm formou uma Comisso de Defesa do Lampio, colhendo assinaturas a um manifesto em apoio ao jornal em razo do in- qurito contra o seu Conselho Editorial. O abaixo-assinado em defesa do Lampio e a participao formal do Somos no ato pblico de comemorao ao Dia de Zumbi, promovido em novembro de 1979 pelo Movimento Negro Unifcado foram, alis, as pri- meiras tomadas de posio poltica que o grupo fazia em pblico. Essa re- duzida presena pblica no se explica apenas pelas restries impostas pelo regime militar liberdade de expresso. O Somos era um movimento muito voltado mais para dentro do que para fora, construdo a partir de subgrupos de identifcao e reconhecimento, segundo um estilo confes- sional inspirado no feminismo, em que eram importantes os relatos e tro- cas de experincias pessoais entre seus membros. Foi principalmente essa experincia que fez com que o grupo adquirisse grande importncia para muitos participantes, que nele encontraram uma fonte crucial de relaes de afeto, amizade e apoio emocional, muitas das quais perduraram por largo tempo, ao longo da vida de seus ex-integrantes. 20 Jlio Assis Simes 21 Uma viso da trajetria do movimento lgbt no Brasil Lampio e Somos se assemelhavam nas novidades que representavam. Lampio era bem diferente de tudo o que lhe havia precedido em termos de imprensa homossexual no Pas at ento a comear pelo fato de que reu- nia em seu Conselho Editorial um conjunto de jornalistas, escritores e inte- lectuais de considervel peso na vida cultural brasileira, que emprestavam uma indita legitimidade empreitada. Os integrantes do Somos tampouco correspondiam aos esteretipos ento vigentes sobre homossexuais. Havia alguns intelectuais e profssionais liberais, ao lado de um nmero crescente de jovens, muitos dos quais universitrios. Trejeitos acentuados ou roupas espalhafatosas no eram a tnica. Na apresentao pessoal, indumentria, postura corporal, gestos e tom de voz, a maioria das moas e rapazes do So- mos no se distinguia do padro vigente entre sua gerao; e, nas reunies do grupo, a conduta geral no era nada muito diferente do que se via numa assemblia estudantil. Lampio se propunha a sair do gueto e ser um veculo pluralista aberto a diferentes pontos de vista sobre diferentes questes minoritrias. Isso foi posto em prtica com a publicao de matrias sobre movimento feminista, movimento negro, transexualidade, sadomasoquismo, populaes indge- nas, prisioneiros, ecologia e at mesmo uso de maconha, embora o jornal no tenha sido bem sucedido para atrair mulheres para o seu Conselho Editorial. Lampio tambm se preocupava com as condies dos que se dedicavam prostituio masculina e feminina, tendo realizado matrias e entrevistas com travestis, garotas e garotos de programa. Por outro lado, o enfoque informativo, opinativo e politizado de todas essas questes se fazia predominantemente por meio da incorporao da linguagem popular do meio homossexual, com farto uso de palavras como bicha, boneca, viado e equivalentes. O uso dessas palavras considera- das pejorativas causava mal-estar entre vrios editores e leitores do jornal enquanto outros, como Aguinaldo Silva, defendiam-no como estratgia para esvaziar seu potencial ofensivo. De modo semelhante, no Somos, muitos defendiam que as palavras bicha e lsbica deviam ser usadas, como uma espcie de senha de per- tencimento, a fm de esvaziar seu contedo pejorativo. O grupo, que era predominantemente masculino e no contava com travestis ou transexuais em seus membros, propunha que as assimetrias entre homens e mulheres deveriam ser combatidas, bem como a polarizao ativo/ passivo e os este- retipos efeminado/ masculinizada, ainda que admitindo que isso poderia ser importante no plano das fantasia erticas. Por outro lado, o uso do lin- guajar do gueto homossexual masculino no tratamento cotidiano no dei- xava de causar tenses entre os ativistas, sobretudo, mas no exclusivamen- te, com as mulheres, e era fonte de longos debates em torno do machismo das bichas. No Lampio esse tipo de discusso repercutia em textos assi- nados, entre outros, por Joo Antonio Mascarenhas, que no via com agra- do a ateno que o jornal concedia aos travestis (na poca, a palavra sempre era dita no masculino); e criticava travestis e homossexuais afeminados em geral por representarem uma caricatura da mulher objeto sexual, a mulher cidad de segunda classe, a mulher idealizada pelos machistas. Na verdade, havia desacordos e divergncias entre editores e colabora- dores do Lampio a respeito de quase tudo. Uma querela em torno dos ter- mos que seriam apropriados para se referir homossexualidade marcou os primeiros nmeros do jornal. Havia quem fosse contrrio ao uso de gay por consider-lo imperialista e alheio realidade brasileira. Para se ter uma idia, na entrevista com Winston Leyland (um ativista americano cuja visita ao Brasil, em 1977, acabou funcionando como catalisador para o surgimen- to do Lampio) feita por Joo Silvrio Trevisan e James Green, publicada no nmero 2 (junho/julho de 1978), o termo gay, que era abundantemente empregado pelo entrevistado, foi traduzido como entendido. Outros de- fendiam que a palavra fosse grafada na forma aportuguesada guei. No Somos as divergncias tambm eram muitas, e tendiam a ser con- tornadas por meio de processos de tomada de deciso; no Somos tinham por norma o consenso. Uma motivao forte em boa parte de seus inte- grantes era evitar a cristalizao de lideranas e incentivar um estilo de ao autogestionrio. As coordenaes das reunies gerais, assim como dos subgrupos de identifcao e atuao deveriam ser rotativas. Na prtica, isso implicava reunies longas, com uma profuso de debates e difcul- dades operacionais de toda sorte que, paradoxalmente, contribuam para concentrar as posies de direo em um pequeno conjunto de pessoas com interesse e disponibilidade, que se distinguiam pelo carisma pessoal e pela habilidade retrica. Com a expanso e diversifcao do grupo e o decorrente acirramento de divergncias, a exigncia de consenso passou a ser tambm um trunfo manipulado por quem se opunha a determinadas propostas ou buscava evitar mudanas de orientao para o grupo. Nessas ocasies, acusaes de machista, fascista e autoritrio, termos usados de forma intercambivel e indiscriminada, costumavam ser recursos pode- rosos para conter e calar um oponente, sob a justifcativa, um tanto irnica, de que o autoritarismo devia ser combatido em todas as suas manifesta- 22 Jlio Assis Simes 23 Uma viso da trajetria do movimento lgbt no Brasil es. Tambm se dizia, com humor, que as decises no Somos no eram realmente tomadas por consenso, e sim por cansao. 6
Um dos raros consensos entre os participantes do Somos era o prin- cpio de que o grupo deveria ser exclusivamente formado por homosse- xuais. Estabelecida uma relao de oposio entre hetero e homossexuais, que envolveria uma situao de opresso dos segundos pelos primeiros, considerava-se que os homossexuais, como oprimidos, somente poderiam encontrar a si mesmos, aceitar-se e recuperar sua autonomia estando entre iguais. O suposto, certamente muito discutvel, era o de que um ambiente formado por homossexuais seria mais igualitrio, assim como as relaes homossexuais, por se darem entre iguais, seriam menos assimtricas que as heterossexuais. Essa exclusividade homossexual costumava ter um efeito positivo nos subgrupos de identifcao e reconhecimento, contribuindo para que os recm-chegados se sentissem menos constrangidos e lidassem melhor com seus prprios sentimentos de culpa e autodepreciao. Essa experincia ad- quiriu grande importncia para muitos participantes, que encontraram no grupo uma fonte crucial de relaes de afeto, amizade e apoio emocional, que no raro perduraram fora dele. Era bastante disseminado o sentimento de ter encontrado a prpria turma, de se considerar casado com o grupo. Tambm eram questionadas a monogamia e a possessividade nos relacio- namentos estveis. Nem Lampio nem Somos tinham opinio fechada quanto s origens da homossexualidade (referida, na poca, como homossexualismo). Dis- cusses desse tipo costumavam ser desqualifcadas como perda de tempo, j que predominava a viso de que tudo o que fora produzido pela cincia e pela academia a esse respeito seria apenas uma expresso mais assptica do mesmo preconceito que contaminava toda a sociedade. Uma atitude geral era considerar que a homossexualidade de cada um era algo que dizia res- peito somente aos prprios interessados, e que ningum famlia, escola, Igreja ou Estado tinha o direito de se intrometer nisso. O princpio de que era preciso reconhecer, aceitar e assumir a prpria homossexualidade, dominante nos subgrupos de identifcao, reforava a viso de algo que de alguma maneira era parte essencial da pessoa, uma 6 Baseio-me aqui em minhas prprias memrias desse perodo, como freqentador das reunies gerais do Somos, e de parte das reunies de seu Grupo de Atuao, de maio a dezembro de 1979. O leitor pode confrontar as avaliaes opostas sobre essa dinmica organizativa, apresentadas respectivamente por Edward MacRae (A construo da igualdade, cap. 5), da qual me aproximo, e por Joo Silvrio Trevisan (Devassos no paraso, 3. ed. parte 5, cap.2). marca inescapvel e certamente incurvel, sobre a qual no se podia ter outro tipo de controle que no fosse o seu reconhecimento. Mas, se no So- mos, como observou MacRae, se costumava partir do princpio de que a humanidade estaria dividida entre heterossexuais e homossexuais (e tal- vez alguns bissexuais), havia tambm no grupo certa resistncia a crista- lizar identidades, tendncia essa que foi ganhando fora ao longo do tem- po. Afnal, como tambm ressaltava MacRae, o Somos era um inusitado e dinmico espao para discusses de sexualidade que arregimentava um conjunto consideravelmente heterogneo de pessoas onde divergncias e confitos eram freqentes, assim como as trocas de opinies e infuncias. Nesse espao atuavam vrios que adotavam uma noo mais fuida e situ- acional da identidade sexual, e lembravam que a populao homossexual no era homognea, nem do ponto de vista da sua sexualidade, nem de sua vivncia mais ampla. Pode-se compreender, assim, que o grupo tivesse concepes divergen- tes em relao a uma srie de temas: a natureza da homossexualidade, o signifcado da bissexualidade, a conduta das travestis, das bichas pintosas e das lsbicas masculinizadas. Se, de um lado, o bissexualismo era deplo- rado como identidade ou subterfgio para no assumir a homossexuali- dade, em outros momentos a prtica bissexual era elevada ao patamar da subverso suprema de todas as regras. Se travestis,pintosas, fanchas e sapates eram desvalorizadas como foco de interesse ertico e criticadas por reproduzirem padres de dominao macho/fmea, eram tambm pre- zadas por sua ousadia e autenticidade. Lampio e Somos tendiam a conceber os homossexuais como uma mi- noria oprimida e, portanto, com o interesse comum de reivindicar o direito a uma existncia no mistifcada, limpa, confante, de cabea levantada, para usar os termos de um artigo de Darcy Penteado curiosamente inti- tulado Homossexualismo, que coisa esta? pergunta qual se evitava oferecer uma resposta defnitiva. Uma posio em favor de uma estratgia efetiva de obteno de direitos homossexuais, no entanto, no era consen- sual nem entre os editores e colaboradores do jornal, nem entre os mem- bros do grupo. A incerta situao poltica da abertura, atravessada por aes localiza- das de represso policial e terror paramilitar, continha as expectativas em relao aos avanos liberalizantes, o que talvez ajude a compreender por que iniciativas mas pragmticas em favor de direitos civis pareciam distan- tes nos horizontes da poca. certo que Lampio, o Somos e os emergentes 24 Jlio Assis Simes 25 Uma viso da trajetria do movimento lgbt no Brasil grupos se esforaram por construir uma pauta de reivindicaes que vi- savam combater discriminaes sofridas pelos homossexuais na vida civil em geral. Essa pauta seria desenhada por ocasio dos encontros de grupos organizados que ocorreram em 1980. Mas havia tambm uma divergncia mais profunda, que se traduzia numa grande desconfana no s quanto aos rumos da institucionaliza- o, mas em relao ao signifcado da prpria atuao poltica nos mol- des institucionais que voltavam a ser divisados no horizonte. Os debates da poca estimulavam o questionamento das posies polticas focadas na centralidade da luta de classes, reivindicando legitimidade a lutas mais especfcas. Por conta disso, a emergente poltica de identidade posta em prtica pelos movimentos de feministas, negros e homossexuais gerava uma tenso junto a certos militantes da esquerda, vrios dos quais esta- vam aliados s tendncias progressistas da Igreja Catlica. Para estes, tais esforos minoritrios pulverizavam o privilgio que deveria caber luta maior em prol de mudanas sociais e econmicas mais amplas em dire- o ao socialismo. A esquerda brasileira dos anos 1970 talvez no fosse to moralista e defensora da famlia quanto tinha sido nos anos 1950 e 1960; no entanto, boa parte dela ainda via a homossexualidade como uma grave deformao moral. Tanto no Lampio como no Somos havia vrios que tentavam reconstituir vnculos entre as duas posies. Na virada dos anos 1980, no entanto, as divergncias se acentuaram a ponto de constituir uma polarizao extremada, deteriorando as relaes entre o Lampio e os gru- pos emergentes, como tambm dentro do prprios grupos, notadamente o Somos, que sofreu seguidas cises e foi aos poucos deixando a cena. Uni- dades auto-sustentadas e carentes de recursos, nem Lampio nem Somos se mostraram aptos a enfrentar os desafos trazidos pelos novos tempos de liberalizao, redemocratizao e crise econmica. Um dos fragmentos do Somos, o galf (Grupo de Ao Lsbica Feminista) seria um dos poucos grupos formados nessa primeira onda movimentalista a sobreviver pela d- cada de 1980 e chegar aos anos 1990 sob um novo formato de organizao no-governamental, que passaria ento a ser o modelo para as mais varia- das formas de movimentos sociais, e cuja adoo foi grandemente incenti- vada em meio ao processo de constrio das respostas sociais pandemia hiv-aids outro terrvel desafo daqueles novos tempos de 1980.
A luta diante da Aids O saudoso antroplogo e poeta Nestor Perlongher 7 ressaltou, no calor da hora, que a Aids surpreendeu o universo do ativismo homossexual brasilei- ro numa situao paradoxal. Enquanto grande parte dos grupos organiza- dos existentes se desestruturavam, crescia a expanso publicitria do espe- tculo gay, fazendo aumentar inclusive a visibilidade das travestis, no s nas ruas das cidades, mas tambm na grande mdia, para alm do carnaval. A transexual Roberta Close, vedete do vero carioca de 1984, o ano da cam- panha das diretas-j, vivia o auge de sua consagrao como modelo de be- leza feminina brasileira. Depois de estrelar o videoclipe da cano Close, sucesso do compositor popular Erasmo Carlos, seria a principal atrao da edio de maio da revista masculina Playboy. Em agudo contraste, no vero de 1985, quando a morte do teatrlogo Luiz Roberto Galizia abalou o meio intelectual e artstico paulistano, a doena j estava instaurada como rea- lidade inexorvel. Na segunda metade dos anos 1980 verifcou-se uma es- calada de matrias sensacionalistas na imprensa, que ecoavam declaraes abertamente preconceituosas de vrias autoridades mdicas e de polticos ligados a grupos religiosos, assim como aumentava a repercusso a crimes violentos contra gays e travestis 8 . Perlongher, vtima da Aids, que viria a falecer em 1992, retratou o peso da chegada da doena e de seu impacto sobre as propostas de liberao sexual, como um anncio do desaparecimento da homossexualidade 9 . Houve, decerto, um deslocamento importante. A epidemia deu ensejo a uma inusitada aproximao entre os ativistas homossexuais e as autori- dades mdicas. Cabe ressaltar a importante participao de pessoas que passaram pelo Somos e pelos outros grupos de So Paulo no processo que fez surgir a primeira ong-Aids brasileira, o Grupo de Apoio e Pre- veno Aids gapa/SP, em 1985, bem como a resposta governamental confgurada no programa estadual de So Paulo, o primeiro criado no Pas. Sob a direo do mdico Paulo Teixeira (que tivera alguma proximidade com o Somos nos seus primrdios), esse programa tornou-se um referen- cial importante de orientao no discriminatria e de defesa dos direitos dos afetados. Do mesmo modo, antigos militantes de grupos cariocas tive- 7 Nestor Perlongher, O que Aids. So Paulo, Brasiliense, 1987. 8 Para um retrato vvido desse perodo em So Paulo, ver Roldo Arruda, Dias e ira: uma histria ver- dica de assassinatos autorizados. So Paulo, Globo, 2001. 9 Nestor Perlongher, O desaparecimento da homossexualidade. In: Herbert Daniel et alii. SadeLoucu- ra 3. So Paulo, Hucitec, 1993. 26 Jlio Assis Simes 27 Uma viso da trajetria do movimento lgbt no Brasil ram papel importante na formao da Associao Brasileira Interdiscipli- nar e Aids e do Grupo Pela vidda (Valorizao, Integrao e Dignidade do Doente de Aids), este formado majoritariamente por soropositivos. Em outros estados da federao foram sendo organizados programas similares, que contavam tambm com a importante presena de ativistas e ex-ativistas de grupos organizados. A contribuio dos recursos vindos dos projetos relacionados ao com- bate ao hiv/Aids foi muito signifcativa para a expanso e diversifcao do movimento homossexual brasileiro. Esses movimentos j se notam nos anos 1980, que assistiram intensifcao de um ativismo muito menos refratria ao no campo institucional, mais voltado a estabelecer organi- zaes de carter mais formal e mais focado em assegurar o direito dife- rena. Formaram-se poucos grupos, mas mais coesos, reunidos cada qual em torno de uma liderana reconhecida, carismtica, bem articulada e, no menos importante, dotada dos recursos simblicos e materiais efetivamen- te capazes de fazer avanar metas e objetivos mais claramente defnidos e circunscritos. Joo Antnio Mascarenhas, articulador inicial do grupo de intelectu- ais que formou o Lampio e fundador do extinto grupo Tringulo Rosa, que durou de 1985 a 1988 10 ; e Luiz Mott, fundador do Grupo Gay da Bahia, formado em 1980 e ativo at o presente, tornaram-se personagens funda- mentais dessa segunda onda de ativismo homossexual, paralelamente aos vrios militantes ativos no perodo anterior que passaram a se dedicar prio- ritariamente luta contra a Aids. As propostas encaminhadas pelo ggb e pelo Tringulo Rosa, na dca- da de 1980, j haviam sido delineadas nos primeiro encontro de militantes organizados, mas ambos os grupos destacaram-se exatamente por lev-las adiante, a partir do entendimento comum que a causa homossexual vinha em primeiro lugar. O ggb foi o primeiro grupo a pr em prtica, em 1981, a campanha pela retirada da homossexualidade do cdigo de classifcao de doenas do inamps, assumindo a sua coordenao e encaminhamento concreto. A mudana foi sancionada pelo Conselho Federal de Medicina em 1985. Foi uma campanha marcante por ter mirado uma das raras ins- tncias em que se discriminava ofcialmente a homossexualidade no Bra- sil e, dessa forma, ter questionado a associao entre homossexualidade e doena que voltava com fora devido Aids. O ggb e o Tringulo Rosa 10 Sobre o Tringulo Rosa, ver Cristina Cmara, Cidadania e orientao sexual, op. cit. encabearam outra importante campanha na dcada, junto Assemblia Constituinte, pela incluso da proibio de discriminao por opo se- xual, posteriormente renomeada de orientao sexual, na Constituio. Por ocasio dessa campanha, temas inditos, referentes homossexualida- de, foram debatidos no Congresso Nacional, e Joo Antonio Mascarenhas falou aos parlamentares na condio de ativista gay. Nessa mudana de orientaes polticas, signifcativa a introduo do conceito de orientao sexual, que passa a ocupar defnitivamente o lugar de opo no discurso da militncia. Durante o processo de elaborao e da defesa da incluso da no-discriminao da homossexualidade na Consti- tuio, os militantes envolvidos, consultando acadmicos e profssionais de vrias reas, chegaram a um consenso pela utilizao da expresso orien- tao sexual. A partir dessa utilizao, a polmica entre homossexualidade como opo ou como essncia deixa de estar to presente no cotidiano dos grupos. Orientao sexual virou uma soluo de consenso que permi- tia conferir concretude e legitimidade experincia da homossexualidade, sem necessariamente entrar em questo sobre suas causas mais profundas, ainda que tenda muitas vezes a reanimar a nfase em explicaes a partir de uma essncia, inata ou revelada em tenra idade. De outra parte, com a atuao mais pragmtica por parte dos grupos ou associaes em favor dos direitos civis, a ambigidade entre a legitimidade da homossexualidade e a valorizao de sua face marginal tendeu a se desfazer. Em seu lugar, verifcou-se uma tendncia de depurar a homosse- xualidade de seus aspectos marginais de modo a dot-la de uma imagem pblica respeitvel, o que exclua uma parte signifcativa das vivncias a ela relacionadas. Isso se revelou, por exemplo, no clebre discurso proferido por Joo Antonio Mascarenhas no plenrio da Assemblia Nacional Cons- tituinte, em 1987, no qual seu autor criticava o preconceito da mdia por no fazer a distino entre o homossexual e o travesti, em termos que repetiam a posio que expressara, anos atrs, no Lampio.
Expanso e segmentao Foi por meio da ampliao das conexes com os programas estatais de combate ao hiv-aids e s doenas sexualmente transmissveis, especial- mente a partir dos anos 1990, que se forjaram as condies para expandir e segmentar o movimento. Foi tambm por meio dessas conexes que pas- 28 Jlio Assis Simes 29 Uma viso da trajetria do movimento lgbt no Brasil sou a preponderar quase defnitivamente o modelo das ongs, levando conteno do nmero de membros efetivos; criao de estruturas formais de organizao interna; elaborao de projetos de trabalho em busca de fnanciamentos; formulao clara de objetivos e objetos de interveno ou de reivindicao de direitos; preocupao com prestao de contas e resultados; preocupao em ter quadros preparados para estabelecer relaes com a mdia, parlamentares, tcnicos de agncias governamentais e associaes internacionais enfm, a tudo aquilo que consome grande parte da rotina dos atuais grupos e associaes do movimento. 11 Alm das diversas iniciativas de fortalecimento das associaes de gays, como o Pro- jeto Somos, que homenageia o famoso grupo pioneiro, os investimentos dos programas de dst e Aids abriram espao incorporao paulatina de travestis e transexuais, bem como estimularam decisivamente a organiza- o autnoma das lsbicas. Em 1993 e 1994 haviam sido realizados dois encontros de Travestis e Liberados relacionados inicialmente com as atividades desenvolvidas pela da Associao de Travestis e Liberados Astral, do Rio de Janeiro. Com o surgimento de novas associaes de travestis, esses congressos passaram a ocorrer em outras cidades do pas, passando a ser denominados Encontros de Travestis e Transexuais que Atuam na Luta e Preveno Aids, manten- do a sigla entlaids. J foram realizadas 14 edies do entlaids, nas quais representantes de travestis e transexuais tm reivindicado mudanas nas aes de segurana pblica e acesso educao e ao mercado de trabalho, alm de debaterem questes relacionadas aos servios de sade. Organiza- es de travestis estiveram representadas pela primeira vez no movimento por ocasio do vii Encontro Nacional de Gays e Lsbicas de 1995, realizado em Curitiba. A partir da, o termo travestis foi incorporado ao nome dos futuros encontros nacionais. Desde 1992, vinha ocorrendo um aumento da participao de gru- pos exclusivamente lsbicos nos encontros nacionais do movimento. O vi Encontro, realizado nesse ano no Rio de Janeiro, teve a presena de dois grupos lsbicos. O vii Encontro, em Cajamar (SP) passou a in- cluir o termo lsbicas no seu nome, tendo contado com a participao de quatro grupos lsbicos, todos tambm de So Paulo. Em 29 de agosto de 1996, foi realizado no Rio de Janeiro o primeiro Seminrio Nacional de Lsbicas (senale), a partir de iniciativa do Coletivo de Lsbicas do Rio (colerj). Desde ento, foram realizadas seis edies do senale. A data 11 Para uma anlise do movimento nos anos 1990, ver Regina Facchini, Sopa de letrinhas?, op. cit. do primeiro senale foi consagrada como Dia Nacional da Visibilidade Lsbica. A articulao com a Coordenadoria Nacional de dst e Aids foi fun- damental tambm para a ampliao da visibilidade e da organizao das lsbicas. O primeiro senale resultou da aproximao de lideranas lsbi- cas at ento dispersas, em sua maioria, em grupos mistos (formados por gays e lsbicas ou por feministas e lsbicas) da Coordenadoria Nacional, com vistas a obter maior visibilidade poltica a partir do reconhecimento da vulnerabilidade lsbica frente a dst e Aids. A demanda por sade sexual contribuiu de forma decisiva para produzir uma identidade lsbica eman- cipada da identidade homossexual, abrindo caminho para a emergncia e fortalecimento de lideranas em mbito nacional, o surgimento de novos grupos e a progressiva autonomizao do movimento de lsbicas, em torno do eixo formado por sade, visibilidade e organizao. 12 O ano de 1995 foi marcado por dois eventos signifcativos: o viii Encon- tro de Gays e Lsbicas, em Curitiba, quando se deu a fundao da abglt e a realizao da 17 Conferncia Internacional da ilga (International Lesbian and Gay Association), no Rio de Janeiro. O viii Encontro foi o primeiro a ser fnanciado com recursos do Ministrio da Sade, e que reservava uma parte especfca para a discusso de questes ligadas ao hiv/Aids, regis- trando um recorde de nmero de grupos, com presena de 84 entidades, entre elas 34 grupos gays ou mistos, trs grupos exclusivamente lsbicos e trs grupos de travestis. A Conferncia da ilga realizada no Rio (a 17. de sua histria) contou com cerca de 1.200 participantes. A lista de recursos obtidos por esse evento ilustrativa da dimenso atingida pelas conexes do movimento. Segundo os registros no Guia Ofcial da Conferncia, houve apoio do Ministrio da Sade, por meio do Programa Nacional de dst e Aids; da Secretaria Esta- dual de Sade do RJ, por meio da Diviso de Controle de dst e Aids; dos sindicatos dos Bancrios e Previdencirios, ambos do RJ, e dos trabalha- dores na Universidade Federal do Rio de Janeiro; do Centro de Filosofa e Cincias Humanas da ufrj; de duas ongs internacionais ligadas temtica dos direitos humanos; de quatro empresas privadas e de quatro associaes brasileiras: a abia e o Grupo Pela vidda (ongs-Aids sediadas no Rio); o ggb e o grupo Dignidade. Mais recentemente, outro passo na direo do fortalecimento das co- 12 Sobre o movimento de lsbicas, ver Glucia Almeida, Da invisibilidade vulnerabilidade, op. cit. 30 Jlio Assis Simes 31 Uma viso da trajetria do movimento lgbt no Brasil nexes com o Estado foi dado com o lanamento do Programa Brasil Sem Homofobia, em 2004. A partir de 2005, algumas iniciativas do Programa comearam a ser postas em prtica, com os editais para apresentao de projetos voltados ao combate e preveno da homofobia, incluindo a oferta de aconselhamento psicolgico e assessoria jurdica; e qualifcao de profssionais de educao nas temticas de orientao sexual e identida- de de gnero. Por fm, mas no menos importante, realizou-se em 2008 uma Confe- rncia Nacional glbt indita, convocada pelo governo federal, com o tema Direitos humanos e polticas pblicas: o caminho para garantir a cida- dania de gays, lsbicas, bissexuais, travestis e transexuais. A organizao dessa Conferncia foi precedida de reunies regionais e estaduais, como tem sido o procedimento em relao a outros movimentos articulados em torno de segmentos sociais ou temas especfcos. A Conferncia foi, desse modo, um momento importante por marcar uma situao em que o mo- vimento tomou decises levando em conta a um conjunto mais amplo de pessoas identifcadas como lgbt, para alm dos ativistas. Fica a expecta- tiva que isso possa ajudar a reverter uma tendncia de concentrao das informaes, debates e discusses apenas nos foros virtuais e presenciais freqentados pelos ativistas. signifcativo observar, a esse respeito, que, enquanto os encontros nacionais realizados pelo movimento realizados na segunda metade dos anos 1990, dispem de registros minuciosos e acess- veis, so bastante escassas as informaes disponveis sobre os congressos da dcada de 2000. Conquistas e desafos do presente Em sua trajetria, o movimento poltico lgbt no Brasil amealhou algumas vitrias signifcativas e se debateu com resistncias poderosas. Gostaria de con- cluir com um breve balano de antigos e novos desafos que lhe fazem frente. O movimento lgbt tem investido grande esforo na promulgao de leis e na criao de polticas pblicas governamentais. As leis estaduais e municipais contra discriminao hoje existentes no Brasil apresentam raios de alcance diferente, especifcando penalidades contra discriminao no mercado de trabalho, em contratos de aluguel ou relativas a demonstraes pblicas de afeto. Cabe destacar, nesse quadro, a formulao abrangente da lei aprovada no Rio Grande do Sul, que dispe sobre a promoo e o reco- nhecimento da liberdade de orientao, prtica, manifestao, identidade e preferncia sexual, no mbito do respeito igual dignidade da pessoa humana de todos os seus cidados. Outras demandas legais importantes do movimento receberam grande visibilidade, mas esbarraram em obstculos poderosos. O caso exemplar o do projeto de Lei no. 1.151/95, de autoria de Marta Suplicy, ento deputada federal por So Paulo, sobre a unio civil entre pessoas do mesmo sexo, apresentado na Cmara dos Deputados em outubro de 1995, na seqn- cia da fundao da abglt e da realizao da Conferncia Internacional da ilga, no Rio de Janeiro. Como se sabe, o projeto propunha a unio civil como um direito de cidadania fundamentado nas liberdades civis assegura- das pela Constituio. Embora fzesse meno a vnculos afetivos, a con- cepo de unio civil era cuidadosamente distanciada do matrimnio ou das unies estveis. O foco do projeto estava na compensao de injustias relacionadas a histrias de construo de patrimnio em comum entre par- ceiros do mesmo sexo. Mesmo com todos esses cuidados, porm, o projeto j sofreu alteraes na formulao original ao ser submetido Comisso Especial instaurada para sua anlise, substituindo unio por parceria, eliminando-se as referncias aos vnculos afetivos e adicionando o veto a qualquer implicao relativa a adoo, tutela ou guarda de crianas e ado- lescentes, ainda que fossem flhos dos contratantes. O substitutivo acabou no sendo levado votao, pois seus apoiadores concluram que no ha- veria apoio sufciente para que fosse aprovado. 13 Outra frente de combate do movimento lgbt tem sido a criminalizao de condutas repressivas e violentas contra lgbt. Est em debate no legis- lativo um projeto que visa defnir crimes resultantes de discriminao ou preconceito de gnero, sexo, orientao sexual e identidade de gnero, nos moldes da Lei n 7.716, que estabelece os crimes resultantes de preconceito de raa ou de cor. A resistncia ao projeto, expressada sobretudo por au- toridades religiosas crists em aliana com psiclogos e mdicos ligados a grupos religiosos evanglicos, tem se concentrado nas alegaes de cerce- amento da liberdade de expresso (especialmente a liberdade de expresso religiosa) e em reiterados esforos de patologizao e criminalizao da ho- mossexualidade, por meio de sua associao pedoflia. Em face das considerveis barreiras e difculdades enfrentadas no m- bito do legislativo e do executivo, o Judicirio tem-se mostrado um campo 13 Para uma anlise dos debates em torno desse projeto, ver Luiz Mello, Novas famlias: conjugalidade homossexual no Brasil Contemporneo. Rio de Janeiro, Garamond, 2005. 32 Jlio Assis Simes 33 Uma viso da trajetria do movimento lgbt no Brasil mais favorvel promoo de diretos lgbt. Marcos importantes foram al- canados no reconhecimento legal de vnculos afetivos homossexuais, para efeitos de herana e direitos previdencirios, assim como na punio de casos de homofobia. Em contrapartida, persistem difculdades sempre que as questes se encaminham para o terreno do direito de famlia. As reivindicaes pelo direito sexualidade no-procriativa, que mar- caram boa parte da trajetria do movimento homossexual, convivem hoje com lutas pelo direito adoo, guarda e cuidado de flhos. No que se refere adoo, no Brasil, a homossexualidade no um impeditivo, em princ- pio. Entretanto, a conjugao homem/homossexual muitas vezes vis- ta como incapaz de assegurar os cuidados bsicos da criana, por conta dos esteretipos de instabilidade emocional e promiscuidade sexual cola- dos homossexualidade masculina. Nesse caso, os requerentes costumam ser mais bem avaliados desde que demonstrem capacidade de maternar, tida como uma virtude feminina por excelncia 14 . A noo de maternida- de lsbica, por sua vez, pode ser vista como inerentemente confitiva, por amalgamar os esteretipos excludentes da cuidadora zelosa e assexuada e da mulher sexualizada, tida como passional e violenta. 15 A visibilidade al- canada na mdia por autorizaes da guarda de crianas a casais de gays e lsbicas ainda no redundou numa poltica defnida a esse respeito, embora tenham sido abertos precedentes importantes. A transexualidade, por sua vez, um terreno onde os discursos mdicos ainda so predominantes e normativos. O acesso a cirurgias de redesigna- o sexual, uma reivindicao do movimento lgbt, est condicionado aos critrios estabelecidos pelas resolues do Conselho Federal de Medicina em 1997, alteradas em 2002, que defnem o paciente transexual de for- ma patologizante, como portador de desvio psicolgico permanente de identidade sexual, com rejeio do fentipo e tendncia automutilao e ou auto-extermnio. Para se submeter cirurgia, alm do diagnstico exclusivo de transexualismo, preciso ser maior de 21 anos e submeter-se a acompanhamento psicolgico ou psiquitrico por pelo menos dois anos 16 . A mudana no registro civil envolve outras difculdades. Em princpio, so- 14 Cf. Ana Paula Uziel, Homossexualidade e adoo. Rio de Janeiro, Garamond, 2007. 15 Cf. rica Renata de Souza, Necessidade de flhos: maternidade, famlia e (homo)sexualidade. Tese de Doutorado. Unicamp, 2005. 16 Em agosto de 2007, o Ministrio da Sade anunciou a incluso das cirurgias de redesignao sexual entre os servios prestados pelo sus, por determinao da Justia Federal da 4. Regio (Sul). Entretan- to, o Supremo Tribunal Federal cancelou o procedimento previsto em dezembro de 2007, alegando falta de planejamento e estrutura. mente permitida uma vez, completado o procedimento cirrgico. Entre- tanto, cirurgias realizadas fora de programas considerados habilitados tm sido excludas das solicitaes de autorizao legal para mudana de nome. Nega-se, assim, um direito fundamental de identidade. Essas frentes de luta retratam no apenas a variedade de questes e demandas no universo lgbt, como tambm a importncia de perseverar na busca de reconhecimento para assegurar direitos e garantias civis fun- damentais. 17 Cabe lembrar que essa no a nica tendncia seguida pelo movimento, que tambm se pauta por vezes na reivindicao por direitos especiais, tal como expressa a polmica proposta em favor de um estatuto lgbt aprovada na recente Conferncia Nacional. Vou considerar, por fm, algumas questes internas ao prprio movi- mento. Grande parte dos progressos obtidos pelo movimento lgbt deveu- se ao seu processo recente de institucionalizao. certo que no se trata de uma institucionalizao equiparvel que desfrutam organizaes no- governamentais em outros campos de atuao social e poltica, tais como meio ambiente, crianas e adolescentes, mulheres ou preveno a dst e Aids. como se houvesse uma escala hierrquica de legitimidade e aceita- o social de temas e sujeitos de direitos, a qual pesa desfavoravelmente em relao aos lgbt. Ainda assim, a trajetria do movimento lgbt mostra de forma eloqente a interpenetrao e a porosidade entre Estado e Sociedade Civil no Brasil. Nesse campo de relaes h vantagens, mas tambm riscos. Abrem-se novos canais para presses vindas de baixo que, entretanto, po- dem tambm favorecer o desenvolvimento de novas redes de clientela e amortecer o seu potencial crtico. O acesso a recursos tem potencializado enormemente a capacidade de ao poltica das associaes de base e sua articulao produtiva em diferentes planos, mas a disputa por eles tambm esgara solidariedades e repe hierarquias. O movimento se defronta ainda com o desafo de renovar as conexes entre os diversos mundos no interior do prprio universo lgbt. As identi- dades que compem o movimento tm caminhado progressivamente para a construo de suas prprias demandas e agendas. ilustrativo disso o empenho com que se busca cunhar novas categorias de vitimizao, alm da j problemtica homofobia tais como lesbofobia, transfobia e da por diante. Nota-se, em particular, que cada vez mais complicada a arti- 17 Sob esse aspecto, cabe chamar a ateno para os importantes trabalhos de Roger Raupp Rios. Ver, por ex., Direito da antidiscriminao: discriminao direta, indireta e aes afrmativas. Porto Alegre, Livraria do Advogado Editora, 2008. 34 Jlio Assis Simes 35 Uma viso da trajetria do movimento lgbt no Brasil culao dos grandes focos de identifcao e mobilizao representados nas noes de orientao sexual e identidade de gnero. A homossexualidade deixou de ser um termo abrangente para se cindir em questes de diversi- dade sexual e questes de diversidade de gnero. Trata-se de um descola- mento que aprofunda uma tendncia desde os primrdios do movimento em defesa das sexualidades no normativas, que desestabiliza categorias de homens e mulheres e de masculinos e femininos que convencional- mente se estribaram na distino binria entre os sexos, mesmo quando esses sexos eram pensados como sendo da alma e no do corpo. um fenmeno poltico e cultural de alcance mais amplo, que transcende o mo- vimento lgbt, mas no deixa de incidir nele de forma aguda, alm de trazer uma srie de questionamentos tambm para o movimento feminista. Isso pode ser ilustrado nos esforos de autonomizao do movimento trans, por meio de sua construo como voz dissidente, tanto no campo das lutas de gnero quanto no da homossexualidade. Esse estado de coisas parece requerer esforos urgentes na reconstru- o dos vnculos esgarados com a crescente segmentao. E tambm re- quer esforos para renovar as formas de interlocuo entre o movimento e aqueles e aquelas a quem pretende representar. Nesse terreno, o movi- mento sofre uma poderosa concorrncia do mercado segmentado, que se mostra muito gil na disputa pelas representaes sociais e polticas das identidades em jogo. O mercado , hoje em dia, uma instncia central tanto para a compreenso da normatividade sexual, quanto das formas de sua contestao 18 . ilustrativo, a esse respeito, mencionar o episdio de uma campanha recente promovida por um grupo de blogueiros gays de So Paulo, pelo reconhecimento do direito herana de um amigo cujo par- ceiro de longa data havia morrido repentinamente. A campanha consistia na divulgao de um abaixo-assinado que atestava a relao duradoura do casal e que podia ser assinado em fliais de uma loja de cuecas nos Jardins e no Shopping Center Frei Caneca, bastante frequentado pelo pblico gay paulistano. O fato de essas pessoas recorrerem a uma loja de cuecas para centralizar a coleta de apoios a um abaixo-assinado e no terem pensado, por exemplo, em procurar uma entidade do movimento lgbt, parece dizer algo no muito alentador sobre a distncia desse movimento em relao a suas supostas bases de representao. Diante de desafos to formidveis, as melhores esperanas talvez ainda 18 Sobre a relao entre mercado segmentado e o movimento, ver Isadora Lins Frana, Cercas e pontes: o mercado gls e o movimento glbt. Dissertao de mestrado. So Paulo, usp, 2006. provenham das imagens das Paradas do Orgulho lgbt, onde as diferenas se mostram e convivem de forma estimulante e pacfca no mesmo espao pblico. Nelas parece se refazer a expectativa que o movimento lgbt possa atualizar permanentemente a promessa de celebrao de identidades v- vidas, diversas e porosas, sobre um terreno renovado e compartilhado de igualdade. 37 Direitos Humanos, Direitos Sexuais e Homossexualidade Direitos Humanos, Direitos Sexuais e Homossexualidade Roger Raupp Rios 1 Introduo Este texto objetiva fornecer um panorama da trajetria dos direitos sexu- ais a partir da perspectiva dos direitos humanos. Para tanto, na primeira parte, aponta os princpios fundamentais que animam o desenvolvimento dos direitos sexuais no cenrio internacional, com nfase nos direitos de liberdade, privacidade, igualdade e respeito dignidade da pessoa humana. Na segunda, indica as principais tendncias e tenses dos direitos sexuais no Brasil. O desenvolvimento dos Direitos Sexuais na perspectiva dos Direitos Humanos A relao entre o direito, entendido como ordenamento jurdico (isto , o conjunto de instrumentos normativos estatais vigente num determinado momento, englobando atos legislativos e decises judiciais) e a sexualidade no novidade. Tradicionalmente, o direito foi produzido como instrumen- to de reforo e de conservao dos padres morais sexuais majoritrios e dominantes. Vale dizer, o direito atuou confrmando determinadas relaes e prticas sexuais hegemnicas. Exemplos disto so, ao longo da histria, a naturalizao da famlia nuclear pequeno-burguesa, as atribuies de direitos e deveres sexuais entre os cnjuges e a criminalizao de atos homossexuais. 1 Juiz Federal. Doutor em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul ufrgs. 38 Roger Raupp Rios 39 Direitos Humanos, Direitos Sexuais e Homossexualidade Com a emergncia de movimentos sociais reivindicando a aceitao de prticas e relaes divorciadas dos modelos hegemnicos, levou-se are- na poltica e ao debate jurdico a idia dos direitos sexuais, especialmente dos direitos de gays, lsbicas, travestis e transexuais. O surgimento des- tas demandas e o reconhecimento de alguns direitos, ainda que de modo lento e no uniforme, inaugurou uma nova modalidade na relao entre os ordenamentos jurdicos e a sexualidade. Os direitos sexuais devem ser compreendidos no contexto da afrmao dos direitos humanos, ao invs de apart-los e conceb-los de modo paralelo aos princpios fundamentais consagrados na Declarao Universal dos Direitos Humanos de 1948. Nesta perspectiva dos direitos humanos, a trajetria dos direitos sexuais tem enfrentado desafos e originalidade. De fato, conforme a histria dos instrumentos internacionais demonstra, os direitos sexuais no foram con- cebidos originalmente de modo autnomo aos direitos reprodutivos. Ao contrario, eles foram entendidos como uma espcie de complemento da idia de direitos reprodutivos. Efetivamente, a preocupao principal que historicamente orientou a expresso direitos reprodutivos e sexuais foi a denncia da injustia presente nas relaes de gnero e a negao de auto- nomia reprodutiva. No h dvida da importncia da luta contra a injustia reprodutiva e entre os gneros. Todavia, como a refexo e a prtica dos direitos sexuais deixam muito claro, o mbito da sexualidade vai bem alm destas realidades. Esta dimenso da realidade requer a que se leve a srio a liberdade de expresso sexual, direito que desafado especialmente diante de resistncia ao reconhecimento de direitos de homossexuais, masculi- nos ou femininos, transexuais e travestis. Ademais, a afrmao de direitos sexuais vai alm da proteo desta ou daquela identidade sexual (homos- sexual ou travesti, por exemplo) e alcana, inclusive, prticas sexuais no necessariamente vinculadas condio identitria, como exemplifcam as prticas sadomasoquistas e a prostituio. O que importa, portanto, visualizar os direitos sexuais a partir dos princpios fundamentais que caracterizam o paradigma dos direitos hu- manos, criando as bases para uma abordagem jurdica que supere as tra- dicionais tendncias repressivas que marcam historicamente as atuaes de legisladores, promotores, juzes e advogados nesses domnios. A partir desta perspectiva, estabelecem-se as bases para, superando-se regulaes repressivas, concretizarem-se os princpios bsicos da liberdade, da igual- dade, da no-discriminao e do respeito dignidade humana na esfera da sexualidade. A luta pelo reconhecimento e a promoo dos direitos de homossexuais um caso emblemtico da necessidade de uma compreenso dos direitos sexuais na perspectiva dos direitos humanos. Com efeito, as trajetrias at hoje percorridas neste esforo demonstram como os mencionados princ- pios fundamentais so hbeis a proteger indivduos e grupos considerados minoritrios em face dos padres sexuais dominantes. Trata-se de afrmar a pertinncia da sexualidade ao mbito de proteo dos direitos humanos, deles extraindo fora jurdica e compreenso poltica para a superao de preconceito e de discriminao voltados contra todo comportamento ou identidade sexuais que desafe o heterossexismo, ora entendido como uma concepo de mundo que hierarquiza e subordina todas as manifestaes da sexualidade a partir da idia de superioridade e de normalidade da heterossexualidade. Ao longo dos debates sobre diversidade sexual e direitos humanos, so invocados vrios direitos: liberdade sexual; integridade sexual; segurana do corpo sexual; privacidade sexual; direito ao prazer; expresso sexual; associao sexual e informao sexual. Neste campo, os direitos humanos cuja invocao se revelou mais capaz de proteger homossexuais em face da homofobia e do heterossexismo foram, basicamente, o direito de privacida- de e o direito de igualdade. Com efeito, deciso da Corte Europia de Direitos Humanos, exami- nando a lei penal da Irlanda do Norte criminalizadora de prticas homos- sexuais consensuais entre adultos, considerou que tal tratamento viola o artigo 8 da Conveno Europia de Direitos Humanos, onde se garante o respeito vida familiar e privada (caso Dudgeon v. UK, 1981). Desde ento, predomina no direito europeu a compreenso de que o direito humano de privacidade protege homossexuais em face de discriminao em virtude de sua orientao sexual. Relacionado de modo indissocivel privacidade est o direito de liber- dade, mesmo porque a privacidade nada mais do que uma manifestao, no mbito das relaes interpessoais, do prprio direito de liberdade. Com efeito, o direito de liberdade possibilita aos indivduos, de forma autnoma, a tomada de decises quanto aos objetivos e aos estilos de vida. Diante da importncia mpar que a sexualidade assume na construo da subjetivida- de e no estabelecimento de relaes pessoais e sociais, a liberdade sexual, que tambm se expressa como direito livre expresso sexual, concreti- zao mais que necessria do direito humano liberdade. 40 Roger Raupp Rios 41 Direitos Humanos, Direitos Sexuais e Homossexualidade No ser discriminado em virtude de orientao sexual outro direito humano decisivo para a proteo de homossexuais em face da homofo- bia e do heterossexismo. Tanto na sua dimenso formal (todos so iguais perante a lei), quanto na sua dimenso material (tratar igualmente os iguais e desigualmente os iguais, na medida de sua desigualdade), o direi- to de igualdade no se compadece com tratamentos prejudiciais baseados na orientao sexual. Desse modo, restries de direitos no autorizadas em lei (por exemplo, a proibio de manifestaes de carinho entre ho- mossexuais idnticas quelas admitidas para heterossexuais), bem como preteries de direitos fundadas em preconceito (por exemplo, justifcar a excluso de gays e lsbicas da possibilidade de adotar sob o pretexto de da- nos criana), caracterizam violao do direito de igualdade, diretamente vinculada ao mbito dos direitos sexuais. A proibio de discriminao por orientao sexual, por vezes, ex- plicitamente prevista pelo direito. Exemplos disso so as Constituies de pases como a frica do Sul e do Equador e de Estados brasileiros como Sergipe e Mato Grosso. Na maioria das vezes, o que ocorre a proibio decorrente da abertura das listas de critrios proibidos de discriminao, que so expressas ao admitir, alm dos fatores previstos (raa e origem, por exemplo), quaisquer outras formas de discriminao (artigo 3, iv, da Constituio Federal de 1988). Alm disso, nunca demais salientar que a discriminao por orientao sexual uma espcie de discriminao por motivo de sexo, o que vedado textualmente pelo direito. Isto porque a discriminao por orientao se- xual uma hiptese de diferenciao fundada no sexo da pessoa para quem algum dirige seu envolvimento sexual, na medida em que a caracterizao de uma ou outra orientao sexual resulta da combinao dos sexos dos en- volvidos. Assim, Pedro sofrer ou no discriminao por orientao sexual precisamente em virtude do sexo da pessoa para quem dirigir seu desejo ou conduta sexuais. Se orientar-se para Paulo, experimentar a discrimina- o; se dirigir-se para Maria, no suportar tal diferenciao. Os diferentes tratamentos tm sua razo de ser no sexo de Paulo (igual ao de Pedro) ou de Maria (oposto ao de Pedro). Contra este raciocnio, pode-se objetar que a proteo constitucional em face da discriminao sexual no alcana a orientao sexual, pois o discrmen no se defne pelo sexo de Paulo ou de Maria, mas pela coincidncia sexual, tanto que homens e mulheres, nesta situao, so igualmente discriminados. Este argumento no subsiste a um exame mais apurado. Isto porque impossvel a defnio da orientao sexual sem a considerao do sexo dos envolvidos; ao contrrio, essencial para a caracterizao da orientao sexual levar-se em conta o sexo, tanto que o sexo de Paulo ou de Maria que ensejar ou no a discriminao sofrida por Pedro. O sexo da pessoa envolvida em relao ao sexo de Pedro que vai qualifcar a orientao sexual como causa de eventual tratamento diferenciado. A proteo da dignidade humana outro direito humano bsico com repercusses imediatas para o exerccio dos direitos sexuais por travestis, transexuais, gays e lsbicas. Compreendida como o reconhecimento do va- lor nico e irrepetvel de cada vida humana, merecedora de respeito e con- siderao, este direito humano requer que, na esfera da sexualidade, nin- gum seja vilipendiado, injuriado ou qualifcado como abjeto em virtude de orientao sexual diversa da heterossexualidade. Implica tambm que os projetos de vida, concernentes a to importante dimenso da subjetivi- dade, no sejam impostos por terceiros ao sujeito, de forma heternoma, fazendo do indivduo um meio para o reforo de determinadas vises de mundo, a este externas e alheias. A violao a este princpio to fundamen- tal no regime jurdico dos direitos humanos recorrente: basta atentar para os constrangimentos e imposies experimentados por aqueles que no se conformam a valores, costumes e tradies, de ordem secular ou religiosa, que grupos sociais empunham e reclamam submisso.
Direitos Sexuais no Brasil: tendncias e tenses
No contexto nacional, o marco mais signifcativo sobre diversidade sexual e direitos sexuais o Programa Brasil sem Homofobia (Programa de Comba- te Violncia e Discriminao contra gltb - gays, lsbicas, transgneros e bissexuais - e de Promoo da Cidadania de Homossexuais), lanado em 2004 pela Secretaria Especial de Direitos Humanos, a partir de defnio do Plano Plurianual ppa 2004-2007 (brasil, 2004). Trata-se, na suas pala- vras, de programa constitudo de diferentes aes, objetivando (a) o apoio a projetos de fortalecimento de instituies pblicas e no-governamentais que atuam na promoo da cidadania homossexual e/ou no combate ho- mofobia; (b) capacitao de profssionais e representantes do movimento homossexual que atuam na defesa de direitos humanos; (c) disseminao de informaes sobre direitos, de promoo da auto-estima homossexual; e (d) incentivo denncia de violaes dos direitos humanos do segmento 42 Roger Raupp Rios 43 Direitos Humanos, Direitos Sexuais e Homossexualidade gltb (brasil, 2004). Antes dele, as duas verses do Plano Nacional de Di- reitos Humanos (de 1996 e 2002) mencionaram o combate discriminao por orientao sexual, sem, contudo, emprestar ao tpico maior desenvol- vimento. Como dito acima, na trajetria dos direitos humanos, a afrmao da se- xualidade como dimenso digna de proteo relativamente recente, tendo como ponto de partida, no contexto internacional, a consagrao dos di- reitos reprodutivos e da sade sexual como objetos de preocupao (rios, 2007). Em mbito nacional, a insero da proibio de discriminao por orientao sexual iniciou-se em virtude de demandas judiciais, a partir de meados dos anos 1990, voltadas para as polticas de seguridade social (leivas, 2003). Seguiram-se s decises judiciais iniciativas legislativas, municipais e estaduais, concentradas nos primeiros anos no segundo mil- nio, espalhadas por diversos Estados da Federao (vianna, 2004). Um exame do contedo destas iniciativas e da dinmica com que elas so produzidas no contexto nacional chama a ateno para duas tendncias: a busca por direitos sociais como reivindicao primeira onde a diversidade sexual se apresenta e a utilizao do direito de famlia como argumentao jurdica recorrente. Estas tendncias caracterizam uma dinmica peculiar do caso brasileiro em face da experincia de outros pases e sociedades oci- dentais, onde, via de regra, a luta por direitos sexuais inicia-se pela proteo da privacidade e da liberdade negativa e a caracterizao jurdico-familiar das unies de pessoas do mesmo sexo etapa fnal de reconhecimento de direitos vinculados diversidade sexual. Alm destas tendncias, a insero da diversidade sexual, assim como manifestada na legislao existente, revela a tenso entre as perspectivas universalista e particularista no que diz respeito aos direitos sexuais e diversidade sexual, de um lado, e luta por direitos especfcos de minorias sexuais, de outro. A primeira tendncia a ser examinada a utilizao de demandas reivin- dicando direitos sociais como lugar onde se defendeu a diversidade sexual. Como referido, enquanto em pases ocidentais de tradio democrtica a luta por direitos sexuais ocorreu, inicialmente, pelo combate a restries legais liberdade individual, no caso brasileiro o que percebe a afrmao da proibio da discriminao por orientao sexual como requisito para o acesso a benefcios previdencirios. Tal o que revela, por exemplo, a su- perao no direito europeu da criminalizao do sexo consensual privado entre homossexuais adultos a chamada sodomia com fundamento no direito de privacidade, ao passo que, no caso brasileiro, desde o incio, o combate discriminao foi veiculado em virtude da excluso discrimina- tria contra homossexuais do regime geral da previdncia social, quando se trata de penso e auxlio-recluso para companheiro do mesmo sexo. Uma hiptese para a compreenso deste fenmeno vem da gnese his- trica das polticas pblicas no Brasil. Gestadas em suas formulaes pio- neiras em contextos autoritrios, nos quais os indivduos eram concebidos muito mais como objetos de regulao estatal do que sujeitos de direitos, estas dinmicas nutrem concepes frgeis acerca da dignidade e da liber- dade individuais. Alimentadas da disputa poltica entre oligarquias e do referencial do positivismo social, as polticas pblicas no Brasil caracteriza- ram-se pela centralidade da fgura do trabalhador como cidado tutelado, caracterizando um ambiente de progresso econmico e social autoritrio, sem espao para os princpios da dignidade, da autonomia e da liberdade individuais (bosi, 1992). Da a persistncia de uma tradio que privilegia o acesso a prestaes estatais positivas em detrimento da valorizao do indivduo e de sua esfera de liberdade e respeito sua dignidade, dinmica que se manifesta na histria das demandas por direitos sexuais mediados pelos direitos sociais no Brasil. A segunda tendncia a recorrncia dos argumentos do direito de fa- mlia como fundamentao para o reconhecimento de direitos de homos- sexuais. De fato, no difcil perceber que, em muitos casos, a insero de contedos antidiscriminatrios relativos orientao sexual valeu-se de argumentos de direito de famlia, o que se manifesta de modo cristalino pela extenso do debate jurdico nos tribunais e naqueles que se dedicam a estudar direitos sexuais acerca da qualifcao das unies de pessoas do mesmo sexo. A par da polmica sobre a fgura jurdica adequada a essas unies, comum associar-se de modo necessrio o reconhecimento da dig- nidade e dos direitos dos envolvidos assimilao de sua conduta e de sua personalidade ao paradigma familiar tradicional heterossexual. o que sugere, por exemplo, a leitura de precedentes judiciais que de- ferem direitos ao argumento de que, afora a igualdade dos sexos, os part- cipes da relao reproduzem em tudo a vivncia dos casais heterossexuais postura que facilmente desemboca numa lgica assimilacionista. Nesta, o reconhecimento dos direitos depende da satisfao de predicados como comportamento adequado, aprovao social, reproduo de uma ideolo- gia familista, fdelidade conjugal como valor imprescindvel e reiterao 44 Roger Raupp Rios 45 Direitos Humanos, Direitos Sexuais e Homossexualidade de papis defnidos de gnero. Da, inclusive, a difculdade de lidar como temas como prostituio, travestismo, liberdade sexual, sadomasoquismo e pornografa, por exemplo. Ainda nesta linha, a formulao de expresses, ainda que bem intencionadas, como homoafetividade, revela uma men- talidade homonormativa. Conservadora, na medida em que subordina os princpios de liberdade, igualdade e no-discriminao, centrais para o de- senvolvimento dos direitos sexuais (rios, 2007) a uma lgica assimilacio- nista; discriminatria, porque, na prtica, distingue uma condio sexual normal, palatvel e natural de outra assimilvel e tolervel, desde que bem comportada e higienizada. Com efeito, a sexualidade heterossexu- al no s dizvel como tomada por referncia para nomear o indivduo naturalmente detentor de direitos (o heterossexual, que no necessita ser heteroafetivo), enquanto a sexualidade do homossexual expurgada pela afetividade, numa espcie de efeito mata-borro. As razes desta recorrncia ao direito de famlia podem ser buscadas na j registrada fragilidade dos princpios da autonomia individual, da digni- dade humana e da privacidade que caracterizam nossa cultura. Com efeito, fora da comunidade familiar, onde o sujeito compreendido mais como membro do que como indivduo, mais como parte, meio e funo do que como fm em si mesmo, no haveria espao para o exerccio de uma sexua- lidade indigna e de categoria inferior. Uma rpida pesquisa sobre as respostas legislativas estaduais e muni- cipais revela a predominncia de duas perspectivas quanto diversidade sexual e os direitos a ela relacionados. De um lado, diplomas legais de cunho mais particularista, nos quais uma categoria de cidados identif- cada como destinatria especfca da proteo: so os casos, por exemplo, da legislao paulista sobre combate discriminao por orientao sexual, Lei n. 10.948 de 2001 (so paulo, 2001); da cidade de Juiz de Fora, Lei n. 9.791 de 2000 (minas gerais, 2000); de outro, diplomas mais universalis- tas, destacando-se a lei gacha, Lei n. 11.872 de 2002 (rio grande do sul, 2002). De fato, enquanto os primeiros referem-se a qualquer cidado ho- mossexual (masculino ou feminino), bissexual ou transgnero (conforme o art. 1 da lei mineira), o segundo, reconhece o direito igual dignidade da pessoa humana de todos os seus cidados, devendo para tanto promo- ver sua integrao e reprimir os atos atentatrios a esta dignidade, espe- cialmente toda forma de discriminao fundada na orientao, prticas, manifestao, identidade, preferncias sexuais, exercidas dentro dos limites da liberdade de cada um e sem prejuzo a terceiros (2002, art. 1). No se questiona, em nenhum momento, a inteno antidiscriminatria presente nestes dois modelos de respostas. Todavia, necessrio atentar para as van- tagens, desvantagens e os riscos prprios de cada um. Com efeito, a adoo de estratgias mais particularistas expe-se a ris- cos importantes: reifcar identidades, apontar para um reforo do gueto e incrementar reaes repressivas (basta verifcar o contra-discurso conver- sador dos direitos especiais e a ressurgncia de legislao medicalizadora curativa de homossexuais). Isto sem se falar dos perigos de limitar a liber- dade individual na potencialmente fuida esfera da sexualidade (preocupa- o expressa pela chamada teoria queer) e de requerer, quando acionados os mecanismos de participao poltica e de proteo estatal, defnies identitrias mais rgidas acerca de quem considerado sujeito da proteo jurdica especfca. Neste contexto, parece prefervel a adoo de estratgias mais universalistas. Elas parecem ser capazes de suplantar as difculdades de uma concepo meramente formal de igualdade, desde que atentas s diferenas reais e s especifcidades que se constroem a cada momento, sem nelas se fechar; trata-se de reconhecer a diferena sem canoniz-la, tra- balhar com as identidades auto-atribudas sem torn-las fxas e rejeitar a reifcao do outro. Concluso De tudo isto, conclui-se, portanto, que direitos sexuais, alm de concretiza- es dos princpios mais caros ao paradigma dos direitos humanos (liber- dade, igualdade e proteo dignidade), so desafo presente e necessrio para a consolidao da democracia, especialmente em contextos como o brasileiro, onde h fraca tradio no cultivo e na promoo destes valores. Neste sentido, a luta contra a homofobia e o heterossexismo, que en- gendram a discriminao por orientao sexual sofrida por gays, lsbicas, travestis e transexuais, arena emblemtica e decisiva. Ela permite, ao mes- mo tempo em que os direitos sexuais so desenvolvidos, superar graves injus- tias e construir padres mais democrticos e pluralistas no convvio social onde a diversidade e o respeito so valores bsicos e necessrios para todos.
47 Polticas e Direitos Sexuais no Brasil Contemporneo Referncias Bibliogrfcas BOSI, A. A Dialtica da Colonizao. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1992. BRASIL. Conselho Nacional de Combate Discriminao. Brasil Sem Homofobia: Programa de combate violncia e discriminao contra GLTB e promoo da cidadania homossexual. Braslia: Ministrio da Sade, 2004. Disponvel em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/brasil_sem_homofobia.pdf. Acesso em: 4 de agosto de 2008. FRASER, N. Iustitia Interrupta: Refexion Crtica desde la Posicion postsocialista. Colmbia: Bogot: Universidad de los Andes Press, 1997. JUIZ DE FORA (Municpio). Lei municipal n. 9.791, de 12 de maio de 2000, que Dispe sobre a ao do Municpio no combate s prticas discriminatrias, em seu territrio, por orientao sexual. Juiz de Fora, 2000. Disponvel em: http://www.jfegis.pjf.mg.gov.br/c_norma.php?chave=0000023610. Acesso em: 4 de agosto de 2008. LEIVAS, P. G. C. Os homossexuais diante da Justia: relato de uma Ao Civil Pblica. 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Disponvel em: http://www.legislacao.sp.gov.br/legislacao/index.htm. Acesso em: 4 de agosto de 2008. VIANNA, A. Direitos e Polticas Sexuais no Brasil: mapeamento e diagnstico. Rio de Janeiro: CEPESC, 2004, p. 51-62 Polticas e Direitos Sexuais no Brasil Contemporneo 1 Srgio Carrara 2 Introduo As idias fundamentais desse artigo so fruto de um trabalho coletivo, de- senvolvido no mbito do Centro Latino Americano em Sexualidade e Di- reitos Humanos (clam) 3 , da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Desde sua criao, o Centro mantm uma linha de investigao (e de ao) que gira em torno das polticas e dos direitos sexuais em diferentes pases sul-americanos. Desde o incio, a discusso privilegiou muito mais a idia de poltica sexual, conforme proposta de Jefrey Weeks (weeks 1989), do que a de direitos sexuais. H cinco anos atrs, quando da instalao des- sa linha de investigao, a expresso direitos sexuais era muito menos divulgada e seus signifcados ainda mais obscuros do que so hoje. Alm disso, parecia-nos, como, alis, ainda nos parece, que a via jurdica deva ser analisada como dispositivo especfco, entre outros, atravs do qual certas polticas se implantam e se desenvolvem. Isso quer dizer que partimos do pressuposto de que a anlise dos processos jurdicos deve sempre ter como pano de fundo o campo poltico mais abrangente no qual se desenvolvem. O projeto clam sobre polticas sexuais comeou com a elaborao de 1 Este artigo encontra-se igualmente publicado na Revista Bagoas Estudos Gays, Gneros e Sexualidades,V.4, n.5, jan./jun. 2010. 2 Doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro. Profes- sor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. 3 O clam conta com o apoio da Fundao Ford do Brasil. 48 Srgio Carrara 49 Polticas e Direitos Sexuais no Brasil Contemporneo um panorama geral que buscava capturar, no nvel mais formalizado da legislao, da jurisprudncia e das polticas pblicas brasileiras, tudo o que dissesse respeito ao que ento chamamos de (i) expresses da sexualidade; (ii) regulao das relaes sexuais, e (iii) gesto das consequncias do exerc- cio da sexualidade 4 . Interessava-nos, assim, produzir um panorama das leis, sentenas ou decises administrativas que tivessem como objeto, tanto o reconhecimento dos direitos de diferentes minorias sexuais, incluindo a o reconhecimento de diferentes formas de famlia e de conjugalidade; quanto intervenes pblicas sobre crimes sexuais, doenas sexualmente trans- missveis, aborto ou prostituio. Ao longo da realizao desse trabalho, o esquema inicial ampliou-se e, assumindo como marco legal a Constituio de 1988, a pesquisa passou a analisar a poltica sexual brasileira segundo os diferentes planos em que se produz (internacional, nacional e local), explo- rando as inter-relaes entre eles; as diferentes arenas em jogo (questes relativas reproduo/aborto, violncia sexual, Aids, prostituio ou homossexualidade) e os diferentes sujeitos polticos que se projetavam e se consolidavam em tais planos e arenas (mulheres, crianas e adolescen- tes, gays, profssionais do sexo etc.) 5 . A importncia da Constituio de 1988 para o panorama da poltica se- xual no Brasil contemporneo deve ser ressaltada. No momento em que foi elaborada, a chamada Constituio Cidad espelhou a confgurao de foras existente entre diferentes movimentos sociais que poca buscavam transportar para a esfera pblica uma srie de questes antes consideradas do mbito da vida privada, muitas delas envolvendo questes relativas ao gnero e sexualidade. Certas transformaes foram expressivas, como a formulao da equidade de gnero como direito constitucional e o reconhe- cimento legal da existncia de diversas formas de famlia, refexos claros da presso de grupos feministas e de mulheres. J a no incluso na nova Carta constitucional da orientao sexual e da identidade de gnero 6 , entre as diversas situaes de discriminao a serem combatidas pelos poderes p- blicos, evidencia quanto o contexto poltico daquele momento era desfavo- rvel para o ento chamado Movimento Homossexual Brasileiro ou, como 4 Para o primeiro fruto desse trabalho, ver (vianna e lacerda 2004). 5 Depois de realizado no Brasil, esse mesmo trabalho estendeu-se a outros pases da Amrica Latina. Ver, por exemplo, (petracci e pecheny 2007) e (dides et al. 2007). 6 Note-se que a expresso identidade de gnero atualmente veculo para as reivindicaes das cha- madas pessoas trans (travestis e transexuais). Como o movimento que as agrupa atualmente era ine- xistente no perodo em que se elabora a Constituio, poca discutia-se apenas a incluso ou no do termo orientao sexual que, supostamente, diria respeito a toda a diversidade lgbt. se designa atualmente, Movimento LGBT 7 . Contudo, mesmo com eventuais derrotas, a estrutura geral da Constituio, explicitamente comprometida com o respeito aos direitos humanos e a implementao de compromissos frmados nos tratados internacionais, tem permitido a juzes e tribunais desdobrarem os seus princpios fundamentais no sentido de garantir, de fato, certos direitos e contribuir para a criao de novas leis relativas s mi- norias sexuais. A Carta de 1988 deve ser considerada, portanto, marco fun- damental a partir do qual a sexualidade e a reproduo instituem-se como campo legtimo de exerccio de direitos no Brasil. Atualmente, em torno dela que, da perspectiva da sociedade civil, so organizadas as demandas por reconhecimento de direitos e, da perspectiva do Estado, so geradas polticas pblicas, instrumentos legais e decises judiciais para responder a tais demandas. importante ressaltar que a equipe que trabalhava no clam com tais questes sempre teve muito claro que, mesmo tomando certo distancia- mento crtico, participava ativamente da prpria construo do campo dos direitos sexuais no Brasil. Tnhamos tambm claro que, no plano poltico, tais direitos se produziam na interseo, em certos pontos, da agenda do Movimento Feminista e da agenda do Movimento lgbt, dois atores polti- cos que emergem (ou re-emergem, no caso do feminismo) nos anos 1960 e 1970. Nessa confuncia ou dilogo, eram reformuladas certas estratgias anteriores, atravs das quais tais atores buscaram indiretamente promover a liberdade sexual, valor central em seus iderios 8 . Nas ltimas dcadas do sculo xx, seja atravs das discusses em torno da sade sexual e reprodu- tiva, no caso das feministas, seja na arena de luta contra a aids, no caso dos militantes homossexuais, o ideal de liberdade sexual apareceu sempre subordinado a (e justifcado por) graves problemas sociais. No momento em que o projeto foi implantado no clam, parecia haver certo consenso quanto ao fato de que as preocupaes com a sade pblica ou com proble- mas demogrfcos, que haviam sido espcie de veculos para afrmao de valores mais fundamentais em relao ao corpo e sexualidade, tinham se tornado um caminho estreito demais. Assim, temos assistido nesses l- timos anos ao processo de crescente autonomizao da sexualidade como 7 No Brasil, a sigla lgbt refere-se a lsbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. As diferenas entre tais identidades e o modo como se expressam politicamente faz parte de um processo bastante comple- xo que no iremos abordar aqui. Basta ressaltar que as fronteiras entre elas no so ntidas e esto em constante processo de negociao. 8 No campo intelectual, essa confuncia signifcou um dilogo mais intenso entre os especialistas nas discusses sobre gnero e os especialistas na discusso sobre sexualidade. 50 Srgio Carrara 51 Polticas e Direitos Sexuais no Brasil Contemporneo plano especfco de exerccio de direitos, no mais vinculada necessaria- mente a consideraes relativas sade ou demografa. Revisitando o trabalho realizado, esse texto ir privilegiar apenas uma das arenas em que a poltica sexual brasileira se desenvolve, qual seja, a da luta pelos chamados direitos lgbt ou direitos relativos ao que se vem convencionando chamar de diversidade sexual 9 . Tais direitos lgbt, que muitas vezes nada tm a ver diretamente com a sexualidade (como ques- tes previdencirias, adoo, liberdade de movimento em espaos pblicos ou de mudana de nome e sexo em certides de nascimento), vm sendo compreendidos como direitos sexuais, dado o fato de os processos sociais e polticos de estigmatizao e discriminao que deles privam pessoas lgbt envolverem historicamente determinados valores relativos sexuali- dade. Dito de outro modo, conforme construdos contemporaneamente no Brasil, direitos sexuais referem-se a prerrogativas legais relativas ou sexu- alidade ou a grupos sociais cujas identidades foram forjadas sobre formas especfcas de desejos e de prticas sexuais. Atualmente a agenda do Movimento lgbt brasileiro envolve um con- junto muito amplo de reivindicaes: direito ao reconhecimento legal de relaes afetivo-sexuais, adoo conjunta de crianas, livre expresso de sua orientao sexual e/ou de gnero em espaos pblicos, redesignao do sexo e mudana do nome em documentos de identidade, ao acesso a polticas de sade especfcas e, ainda mais fundamental, proteo do Estado frente violncia por preconceito 10 . Tal agenda tem sido promovida atravs de uma rede complexa e mltipla de relaes, em que alguns atores sociais (ongs, agncias governamentais, partidos polticos, parlamentares, juzes, juristas, centros de pesquisa universitrios, atores do mercado, agn- cias de fomento, organizaes religiosas e profssionais etc.) atuam cons- cientemente no sentido de apoi-la, enquanto outros, lutam para neg-la ou desqualifc-la. Esse artigo privilegia somente alguns desses atores, especialmente aqueles si- tuados nos trs poderes constitudos do Estado, uma vez que nesse plano que se do atualmente os embates mais decisivos, desenhando um cenrio que no mais o de pura contestao, mas de enorme expectativa e muitos desafos. 9 Outras duas arenas cruciais, no Brasil, dizem respeito aos direitos reprodutivos/aborto e s dsts/aids, mas, estas no sero privilegiadas nesse momento. 10 A expresso violncia homofbica tem se frmado no cenrio poltico, porm, dadas as incon- sistncias e indefnies do prprio termo homofobia, preferimos aqui a expresso violncia por preconceito, conforme desenvolvida em (gmes 2006) O Estado brasileiro e os direitos lgbt Apesar de muita discusso e repercusso miditica, no plano do legislativo federal, nenhuma lei importante relativa ao reconhecimento de direitos da populao lgbt foi at o momento aprovada. De um modo geral, pode- mos dizer que o imobilismo e o conservadorismo tm marcado a ao do Congresso Nacional em relao ao tema. Procurando reverter esse quadro e impulsionar a aprovao de projetos como o da parceria civil e a propos- ta de emenda constitucional que condena explicitamente a discriminao por orientao sexual e identidade de gnero, a Cmara dos Deputados instalou ofcialmente, em outubro de 2003, a Frente Parlamentar Mista pela Livre Expresso Sexual (atualmente denominada Frente Parlamentar pela Cidadania glbt). E no manifesto de seu lanamento, em setembro de 2003, os signatrios reconheciam que a comunidade de gays, lsbicas, bissexuais, travestis e transexuais ainda no tem seus direitos assegurados pela legislao federal 11 . O impasse do Congresso no que diz respeito lei de parceria civil, em discusso desde 1995, fez com que, nos ltimos anos, os esforos ativistas se voltassem estrategicamente para a criminalizao da homofobia 12 , ou seja, para a tentativa de alterao do Cdigo Penal no sentido de tambm trans- formar em delito atos de discriminao baseados na orientao sexual e identidade de gnero. Para alguns ativistas, a mudana de nfase da unio civil para a criminalizao da homofobia se justifcava pragmaticamente. s lideranas, parecia mais fcil aprovar a criminalizao da homofobia do que aprovar uma lei de parceria civil, uma vez que, para parlamentares contrrios causa, seria mais difcil posicionarem-se contra um projeto desse tipo, sem aparecerem publicamente como favorveis violncia que cotidianamente e de modo dramtico atinge gays, lsbicas, travestis e tran- sexuais. O projeto, j aprovado pela Cmara, encontra-se atualmente em apreciao no Senado (plc 122/2006). O imobilismo do Congresso se deve em grande parte infuncia das religies crists sobre os parlamentares organizados nas chamadas banca- das evanglica e catlica. Tais bancadas atuam mais ou menos na mesma 11 Para a ntegra do manifesto, ver http://www.pt.org.br. 12 O conceito de homofobia, amplamente utilizado pelos atores polticos no Brasil, tem merecido longas discusses crticas. Para isso ver, entre outros, (borrilo, d. 2000); (herek, g. m. 2004) e (welzer- lang, d. 2001). 52 Srgio Carrara 53 Polticas e Direitos Sexuais no Brasil Contemporneo direo quando se trata de direitos lgbt. Nas atuais discusses sobre o pro- jeto de lei que criminaliza a homofobia, por exemplo, representantes das duas bancadas levantam contra o projeto a tese de que ele cercearia a li- berdade de expresso ou opinio, que, nesse caso, signifca a liberdade de condenar publicamente a homossexualidade a partir de interpretaes da Bblia. O desafo para o Movimento lgbt estabelecer claramente quais as situaes concretas que o projeto visa coibir e desenvolver argumentos no sentido de demonstrar que, a exemplo do racismo ou do anti-semitismo, o preconceito em relao homossexualidade, ou homofobia, no da or- dem das opinies, mas das paixes, no se prestando, como as opinies em geral, a uma contra-argumentao racional. 13 Alm da esperada oposio de parlamentares da bancada evanglica, o projeto tem provocado no cam- po do direito criminal certa resistncia de setores progressistas, contrrios, de um modo geral, priso (tambm prevista no projeto) como reao penal por excelncia. Embora o legislativo federal brasileiro 14 se mostre particularmente aves- so a legislar sobre questes relevantes para esses atores, a eles o judicirio vem estendendo de modo notvel, direitos antes negados. No que se refe- re aos chamados direitos de famlia, alm do reconhecimento de direitos previdencirios, os recentes casos de reconhecimento do direito de adoo por casais de mesmo sexo pela justia dos estados do Rio Grande do Sul, So Paulo, Acre, Distrito Federal merecem ser registrados. As recentes au- torizaes legais para registro do nome de dois pais ou de duas mes, ao invs de um pai e uma me, em certides de nascimento e, portanto, em carteiras de identidade, uma ruptura simblica das mais impressionan- tes no que tange aos valores convencionais relativos fliao. Quanto s relaes estveis entre pessoas do mesmo sexo, um novo cenrio abriu- se recentemente envolvendo o Supremo Tribunal Federal. Apresentada no incio de 2008 pelo governador do Rio de Janeiro, est sendo apreciada pelo STF uma Argio de Descumprimento de Preceito Fundamental (adpf- 132) que, baseada nos valores da igualdade, dignidade da pessoa, liberdade 13 Para argumento desse tipo no que tange ao anti-semitismo, ver (sartre 1999). 14 Em relao legislao, apenas na esfera estadual e municipal que algumas medidas vm sendo defnidas nos ltimos anos. Essas, porm, no abrangem necessariamente os mesmos tipos de viola- es, podendo ser mais amplas ou mais restritas. As situaes de discriminao em estabelecimentos comerciais e em negociaes para aluguel ou compra de imveis tm sido as mais contempladas nas leis estaduais. Atos discriminatrios em casos de admisso ou demisso de empregos, por sua vez, so es- pecifcados em alguns casos, como nas leis dos estados de Minas Gerais, Santa Catarina e So Paulo. As leis desses estados contemplam ainda a manifestao de afeto entre pessoas do mesmo sexo em espao pblico, sendo a sua proibio ou coibio considerada discriminatria. e segurana jurdica, busca assegurar que os tribunais do estado reconhe- am os efeitos de lei que estende s relaes afetivas entre servidores esta- duais do mesmo sexo os mesmos direitos relativos s unies estveis 15 . A concesso desses direitos tem, em alguns casos, esbarrado em decises contrrias do Tribunal de Justia do estado do Rio de Janeiro, que, interpre- tando de modo estrito o Cdigo Civil, apenas reconhece o status de unio estvel s relaes entre um homem e uma mulher. Uma eventual deciso favorvel do stf implicar no reconhecimento do status de unio estvel s relaes entre pessoas do mesmo sexo em todo o pas. A violncia letal contra homossexuais tem tambm progressivamente recebido tratamento mais rigoroso por juzes e tribunais, como no caso do violentssimo assassinato de Edson Nris, em fevereiro de 2000. Nris foi linchado por um grupo de skinheads quando passeava de mos da- das com outro homem na Praa da Repblica, em So Paulo. A relevn- cia deste caso est, em primeiro lugar, na sua caracterizao como crime de dio pelo promotor encarregado da acusao, algo que at ento no havia ocorrido no Judicirio brasileiro. Alm disso, a severa condenao dada pelo jri popular aos principais acusados em torno de 20 anos e o prprio texto da sentena, enfatizando o direito igualdade das vtimas, independente de sua orientao sexual, tornam o caso um marco emble- mtico nos debates acerca da violncia contra homossexuais. Cabe ressal- tar que embora alguns casos de assassinatos de homossexuais tenham tido destaque na mdia em momentos anteriores e sido alvo de condenaes, o exame dos processos judiciais revela uma viso bastante estereotipada da homossexualidade, condenada como um estilo de vida perigoso ou mesmo como uma patologia 16 . A justia tambm tem concedido em muitos casos de cirurgia, o direito de mudana de nome e redesignao do sexo em documento de identi- dade, mas a deciso ainda depende do arbtrio dos juzes. O fato de a mu- dana documental depender na maioria dos casos da realizao da cirurgia de transgenitalizao tanto consagra a distncia entre os diferentes saberes autorizados (mdicos, psiclogos e operadores do direito) e as experincias concretas dos sujeitos sociais, quanto marca, sob justifcativa de sanar a inadequao entre sexo e gnero, a re-instaurao de um perverso bina- rismo. queles que no conseguem ou no desejam a operao, como o 15 Lei 5034/07 de 31/05/07. Lei estadual que prev o pagamento de penso para parceiros do mesmo sexo. 16 Sobre a forma como o judicirio brasileiro tratou a homossexualidade em casos de assassinato em perodo anterior, ver (carrara e vianna 2004 e 2006). 54 Srgio Carrara 55 Polticas e Direitos Sexuais no Brasil Contemporneo caso de muitas travestis, em geral negado um direito fundamental e in- trinsecamente relacionado sua identidade 17 . H aqui a serem ressaltadas, entretanto, decises do Tribunal de Justia do Rio Grande do Sul, como a que, embora tenha autorizado mudana de nome de uma pessoa diagnos- ticada como transexual antes da cirurgia, manteve a designao original de sexo no registro civil. Na ausncia de legislao abrangente, os limites mais concretos da via jurdica fcam evidentes, sobretudo, no fato de que juzes e tribunais acabam decidindo ora em uma direo, ora em outra. De modo geral, os novos direitos vm sendo reconhecidos por deriva- o dos princpios gerais que inspiram a Carta de 1988 e os direitos sexuais tornam-se, especialmente na mo dos constitucionalistas, um caso exem- plar do modo como novos direitos podem ser criados a partir de princpios gerais, sem a necessidade de criao de novas leis. Se as chamadas minorias sexuais podem ser consideradas rfs da Constituio de 1988, o impacto da nova Carta para elas no tem, contudo, sido desprezvel, dado o nmero de importantes decises que, baseadas em seu esprito, vm sendo toma- das por juzes e tribunais. Em muitos casos, especialmente nos que envol- vem direitos previdencirios, foram aes judiciais que abriram caminho para mudanas legislativas, de modo semelhante ao que ocorreu com os direitos dos soropositivos 18 . Se alguns juzes e tribunais tm se posicionado de forma surpreendente- mente progressista no que diz respeito aos direitos lgbt, boa parte do pro- tagonismo , entretanto, reservada ao governo federal, ao chamado poder executivo que, articulando-se ao Movimento lgbt tem desenhado polticas pblicas abrangentes e mobilizado recursos simblicos e materiais cada vez mais signifcativos no sentido de tornar o prprio movimento mais visvel e de atender s suas demandas. importante ressaltar que o governo ora res- ponde diretamente ao movimento, ora indiretamente, sendo pressionado pelo poder judicirio que acolhe demandas de grupos ativistas. Iniciado por governos anteriores no mbito da luta contra a Aids, 19 a promoo governamental de polticas pblicas voltadas populao lgbt 17 Para trabalhos que tratam do tema no Brasil, ver (bento 2006) e (zambrano 2003). 18 A concesso dos benefcios encontra-se regulamentada atualmente pela Instruo Normativa 57 de 10/10/2001, que revogou as instrues anteriores, no sentido de contemplar tambm quele(a)s cujo(a) companheiro(a) tenha morrido antes da data da deciso judicial. Para detalhes, ver (golin et al. 2003). 19 Alm das polticas de combate ao hiv-aids, nos dois Planos Nacionais de Direitos Humanos, elabo- rados durante o Governo Fernando Henrique Cardoso, j constava a recomendao para que fossem produzidas polticas no sentido de combater todo tipo de discriminao, incluindo aquela que se d em razo de orientao sexual e identidade de gnero. se estende agora por diferentes ministrios e tem sido fundamental para a prpria organizao do movimento. J sob a presidncia de Luiz Incio Lula da Silva, o governo federal promoveu a elaborao de um programa de ao especfco Brasil Sem Homofobia: Programa de Combate Violncia e Discriminao contra lgbt e de Promoo da Cidadania Homossexual lanado em maio de 2004. O programa foi elaborado por uma comisso do Conselho Nacional de Combate Discriminao e pelo Ministrio da Sade, com a participao de vrios ativistas e organizaes militantes. Em seus dez itens, prev um conjunto bastante amplo de aes, com destaque para a poltica para mulheres lsbicas e a articulao do combate ao racis- mo e homofobia. Entre as aes, destacam-se: (i) as que visam capacitar o Estado, especialmente instituies escolares, policiais, judiciais, de sade e de fscalizao do trabalho, a atuar de modo no discriminatrio, seja atravs da mudana de suas prticas, seja atravs da criao de novos dis- positivos, como Disque Denncia e centros de referncia nas secretarias estaduais de segurana pblica 20 ; (ii) o incentivo participao de lideran- as do movimento nos diferentes conselhos e mecanismos de controle so- cial do governo federal; (iii) a produo de conhecimento sobre violncia e discriminao homofbica e sobre as condies de sade de gays, lsbicas, travestis e transexuais; (iv) e, fnalmente, o apoio a iniciativas brasileiras no plano internacional no sentido do reconhecimento e proteo dos direitos lgbt e criao de uma Conveno Interamericana de Direitos Sexuais e Reprodutivos. Algumas das diretrizes do programa tm sido executadas. Em meados de 2005, a Secretaria Geral da Presidncia da Repblica lanou edital aber- to a instituies pblicas ou no-governamentais para seleo de projetos de preveno e combate homofobia, atravs da prestao de assessoria jurdica e psico-social s vtimas, da orientao e encaminhamento de de- nncias, da capacitao em direitos humanos e da mediao e conciliao de confitos. Tambm a partir de 2005, o Ministrio da Educao passou a lanar editais pblicos para seleo de projetos de capacitao de profs- sionais de educao em temas relativos orientao sexual e identidade de gnero 21 . A Secretaria Especial de Direitos Humanos, por seu lado, tem 20 Essa proposta visa disseminar experincias anteriores desenvolvidas em alguns estados e municpios depois da criao pioneira do ddh (Disque Defesa Homossexual), no Rio de Janeiro em 1999. Entre os mritos de tais iniciativas esto a aproximao entre os grupos LGBT e os rgos de segurana e o estabelecimento de uma base de informao mais confvel acerca da violncia homofbica. 21 Para um balano parcial das aes do mec, ver Cadernos secad Secretaria de Educao Continuada e Diversidade, n. 4. Brasilia: Ministrio da Educao, 2007. 56 Srgio Carrara 57 Polticas e Direitos Sexuais no Brasil Contemporneo apoiado a criao de dezenas de centros de referncia em direitos humanos com o objetivo de prevenir e combater a violncia e discriminao homo- fbicas, dado apoio jurdico e psico-social s vtimas. Espalhados por todo o pas, muitos desses centros esto sendo implantados em organizaes do movimento lgbt e outros em secretarias estaduais e municipais. No mbito do Ministrio da Sade, para alm das aes do Programa Nacional de dst-Aids, medidas importantes tm sido tomadas no que diz respeito aos direitos de transexuais realizarem a cirurgia de mudana de sexo e, com isso, conseguirem a alterao de sua identidade legal 22 . A Reso- luo 1.652/2002 do Conselho Federal de Medicina, estabelece as condies para que tal cirurgia seja realizada, o que inclui, no plano prtico, que ela seja feita em hospitais universitrios ou hospitais pblicos adequados pesquisa, nos casos de adequao do fentipo feminino para masculino, ou em hospitais pblicos ou privados, independente da atividade de pes- quisa, no caso da adequao do fentipo masculino para feminino. Mais recentemente, o Ministro da Sade instituiu atravs de portaria (Portaria 1.707, de 18 de Agosto de 2008) o chamado processo transexualizador no mbito do sus. O texto da Portaria no trata explicitamente a transexuali- dade como doena ou distrbio 23 , mas apia-se na Resoluo do Conselho Federal de Medicina, segundo a qual o paciente transexual portador de desvio psicolgico permanente de identidade sexual, com rejeio do fentipo e tendncia auto-mutilao e ou auto-extermnio. Continua a prevalecer, portanto, uma representao extremamente patologizante da transexualidade. Em relao s iniciativas governamentais, o ano de 2008 assistiu a um momento nico, com a realizao, em Braslia, da primeira Conferncia Nacional glbt - Direitos Humanos e Polticas Pblicas, com a presena do Presidente da Repblica. Alm de diferentes ministros e secretrios, reu- niram-se 600 delegados de todos os estados da federao, 100 convidados e 300 observadores. Isso demonstra que o Governo Federal, alm de seus prprios recursos, mobilizou o recurso de estados e municpios no mais amplo processo poltico relativo a tais grupos de que se tem notcia. Em relao ao que acontece no nvel do poder executivo, notvel a 22 At 1997, a operao para mudana de sexo era considerada pelo Conselho Federal de Medicina como prtica no-tica e podia ser enquadrada criminalmente como leso corporal. 23 O texto da portaria considera o transexualismo como um desejo de viver e ser aceito na condi- o de enquanto (sic) pessoa do sexo oposto, que em geral vem acompanhado de um mal-estar ou de sentimento de inadaptao por referncia a seu prprio sexo anatmico, situaes estas que devem ser abordadas dentro da integralidade da ateno sade preconizada e a ser prestada pelo sus. relativa autonomia do governo brasileiro em relao aos valores veiculados pela moral crist e sua alta permeabilidade s presses da chamada socie- dade civil organizada. Essa permeabilidade se explica em parte pela traje- tria poltica do partido que lidera a coalizo atualmente no poder (pt) e, em parte, tambm pelos novos modelos de gesto pblica que foram insti- tudos com a reforma do Estado, no sentido da instalao do chamado Es- tado mnimo, a partir de meados dos anos 1980. Esses processos fzeram com que a implementao das aes do Estado passasse a depender cada vez mais da participao direta da chamada sociedade civil. No campo das polticas sociais, a Aids foi o primeiro grande experimento desse novo tipo de gesto que agora se estende para outras reas. Do ponto de vista dos gestores brasileiros, em certos momentos, parece at mesmo que o imperativo de articulao poltica com as ongs, obscurece a clara defnio do que sejam obrigaes do Estado. Assim, por exemplo, no primeiro concurso de projetos para promoo de intervenes contra a discriminao por orientao sexual nas escolas, promovido pelo mec, no foram privilegiados projetos apresentados por secretarias municipais e estaduais de educao. Ou seja, se o movimento pressiona para que o go- verno, em diferentes nveis, intervenha nas escolas, quando, motivadas pelo Governo Federal, secretarias municipais e estaduais de educao decidem faz-lo, seus projetos podem ser preteridos em nome daqueles apresenta- dos por ongs. Isso no quer dizer, entretanto, que aes mais abrangentes envolvendo universidades e secretarias estaduais e municipais no venham sendo promovidas mais recentemente 24 . No se trata aqui de oferecer um painel exaustivo do que tem acontecido na justia, no congresso e no governo brasileiro no que tange aos direitos lgbt, mas apenas apontar para a complexidade de um quadro que, revelan- do em suas diferentes dimenses inmeras inovaes e avanos, no deixa de apresentar igualmente contradies, defasagens e ambigidades. No sabemos ainda quais sero seus limites ou como se desenhar no futuro, principalmente em face das posies que resistem a qualquer mudana no sentido do reconhecimento pblico das diferentes expresses da sexualida- de e do gnero. No h dvida, contudo, que os movimentos que se desen- rolam na esfera do Estado fazem parte do profundo processo de transfor- mao da moral sexual no Brasil e sobre ele tem impacto signifcativo. 24 Um dos exemplos nesse sentido o projeto de educao distncia Gnero e Diversidade na Escola: formao de professoras(es) em gnero, sexualidade, orientao sexual e relaes tnico-raciais. 58 Srgio Carrara 59 Polticas e Direitos Sexuais no Brasil Contemporneo Linhas de fuga No sabemos ainda quais sero os desdobramentos desse conjunto de pro- cessos polticos. Contudo, nos ltimos anos temos atuado (e aqui me refro ao pensamento coletivo que temos produzido no clam) como espcies de cassandras, alertando para os inmeros perigos envolvidos em cada passo. guisa de concluso, tratarei brevemente dos que tm nos parecido mais cruciais e que, talvez, meream a ateno do Movimento lgbt brasileiro. Em diversos momentos temos apontado para as possveis conseqn- cias indesejveis de se canalizar ou formalizar a luta poltica na linguagem dos direitos e, particularmente, na dos direitos humanos, ou seja, para as possveis conseqncias dessa espcie de judicializao da poltica. in- teressante lembrar que, at pouco tempo atrs, quando o paradigma mar- xista ainda imperava nas cincias sociais brasileiras, a justia fazia parte das chamadas superestruturas e dela nada se podia esperar no sentido de uma transformao social mais profunda. Ao contrrio, a justia (bur- guesa, como se dizia ento) era parte do problema e no de sua soluo. Vivemos hoje um cenrio oposto, em que parece imperar certa utopia ju- rdica, segundo a qual espera-se da justia que resolva todos os problemas, produzindo uma espcie de terra sem males. Isso no parece razovel, caso consideremos, entre outros muitos aspectos, o fato de as prprias de- sigualdades sociais reproduzirem-se no acesso diferencial justia e sua aplicao; alm, claro, de a justia ter, enquanto estrutura burocrtica, limites evidentes para acolher todas as demandas a ela dirigidas. O recurso ao iderio dos direitos humanos deve tambm merecer certa refexo, pois, de certo modo, os direitos humanos podem ser, em certo sentido, compa- rados ao que os lingistas denominam de signifcante futuante uma es- pcie de caixa vazia que depende, na fxao de seu contedo, de defnies que so extra-jurdicas, quer dizer, polticas em sua essncia. Poderamos citar, como exemplo, a retrica da Igreja Catlica que, apoiada nos direitos humanos, defende valores como a proteo da vida ou da famlia, para, de fato, condenar o aborto e a homossexualidade. Se o direito vida faz parte dos direitos humanos e se frma no campo jurdico, o signifcado de vida (se tem incio na concepo ou no parto) se defne na arena propriamente poltica. Alm disso, na luta pelos direitos, e na prpria constituio de sujeitos que tm direito aos direitos (momento fundamental dessa luta), vem se de- senhando uma nova moralidade sexual, projetando novos sujeitos perigo- sos ou abjetos em oposio aos cidados respeitveis, ou seja, queles que merecem, por suas qualifcaes morais, a serem integrados, assimilados sociedade. aquilo que a antroploga americana Gayle Rubin chama de nova estratifcao sexual (rubin, 1993). Por exemplo, no caso da adoo de crianas por casais homossexuais, a constante referncia homoafeti- vidade parece funcionar como dispositivo de purifcao que, retirando a nfase da sexualidade, torna tais casais mais respeitveis e dignos, merece- dores, portanto, do direito a ter crianas sob sua guarda. Ainda em relao construo de sujeitos de direitos, chama tambm a ateno do uso de retricas vitimizantes, to caras a muitos militantes, sem que se avalie cla- ramente o quanto a idia de vulnerabilidade pode conjurar antigas inter- venes tutelares e paternalistas. Um outro perigo espreita parece advir da ntima relao que passa a unir sociedade civil e Estado, representados cada vez mais frequentemente como parceiros em uma empreitada comum. Atualmente, torna-se qua- se impossvel separar tais entes. Cabe ao Movimento lgbt refetir sobre o quanto, na busca por recursos e por reconhecimento, tem sido arrastado para o interior das teias administrativas. De um lado, se o estreitamento dos laos entre organizaes da sociedade civil e o Estado pode empode- rar tais organizaes, pode tambm limitar seu potencial crtico, criando situaes de clientelismo e cooptao. Se o imperativo da visibilidade no nvel das polticas pblicas fortalece certas identidades ou grupos, tambm os expe a um controle mais minucioso por parte de diferentes instncias do poder estatal. H que se discutir, fnalmente, os perigos da reifcao das identidades sexuais e de gnero em jogo nesse contexto e de seu possvel impacto sobre polticas e direitos que, por serem especiais, podem acabar sendo mais excludentes que inclusivos. Fechamentos identitrios e fragmentao social esto no horizonte, e a naturalizao de novas clivagens sociais pode conti- nuar a estabelecer fronteiras intransponveis: (heterossexuais ou homosse- xuais, homens ou mulheres, gays ou travestis) fazendo com que a balana penda cada vez mais para um modelo de justia social baseado no ideal de iguais, mas separados. Finalmente, uma palavra sobre a posio dos diferentes intelectuais e pesquisadores que, como eu, dedicam-se a analisar a instituio dos direi- tos sexuais entre ns. Parece-me importante reconhecer que, para enfrentar intelectualmente os desafos hoje colocados pelo processo de afrmao dos direitos sexuais no Brasil, novos modelos de anlise precisam ser desenvol- 60 Srgio Carrara 61 Polticas e Direitos Sexuais no Brasil Contemporneo vidos. Tenho s vezes a sensao de existir uma defasagem entre o meu ins- trumental terico ou conceitual e a nova realidade que se oferece observa- o. como se as perspectivas analticas em relao sexualidade tivessem se constitudo em um momento em que o horizonte de incluso social que hoje divisamos fosse inconcebvel, sendo, portanto, mais importante pen- sar em estratgias de resistncia do que em processos de integrao social. Da, talvez o fascnio que conceitos como ambiguidade, invisibilidade, fui- dez e marginalidade exerceram sobre boa parte da produo terica sobre o tema. Desenvolvida principalmente entre as dcadas de 1980 e 1990, tal produo continua em grande medida a orientar o nosso olhar. Em certo sentido, parece-me que quanto mais as teorias (e os acadmicos) se torna- ram construcionistas, apontando para o carter arbitrrio e culturalmente defnido das diferentes marcas ou marcadores identitrios, mais as polticas e os direitos tendem a se pautar por um marcado essencialismo. Tudo se passa como se os pesquisadores e intelectuais fossem arrastados por um processo poltico que, ao questionarem, ajudam a consolidar. Para usar aqui uma metfora, tudo se passa como na fbula do aprendiz de feiticeiro, que luta contra uma vassoura mgica que tanto mais se reproduz quanto mais ele tenta faz-la em pedaos. Espero que a continuidade e o aprofun- damento do debate entre pesquisadores e ativistas possa contribuir para que, reconfgurando a esfera poltica, possamos simultaneamente reconf- gurar nossos prprios conceitos e teorias. Referncias Bibliogrfcas BENTO, B. A reinveno do corpo: Sexualidade e gnero na experincia transexual, Rio de Janeiro, Garamond, 2006. BORRILO, D. Lhomophobie. 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O endocrinologista Harry Benjamin dedicou-se com afnco para esta- belecer as frequncias que justifcariam a diferenciao as pessoas transe- xuais. Seu livro O fenmeno transexual, publicado em 1966, forneceu as bases para se diagnosticar o verdadeiro transexual a partir de alguns in- dicadores que iro defnir se as pessoas que chegam s clnicas ou aos hos- pitais solicitando a cirurgia so transexuais de verdade. Ele defender a cirurgia de transgenitalizao como a nica alternativa teraputica possvel para as pessoas transexuais. Para evitar que cometam suicdio, as cirurgias deveriam ser recomendadas. Esta posio contrapunha-se a dos profssio- nais da psicologia, psiquiatria e psicanlise, sempre reticentes s interven- es corporais como alternativas teraputicas, consideradas por muitos 1 Verso do captulo Pouco saber para muito poder: A patologizao da transexualidade, do livro O que transexualidade. Editora Brasiliense: So Paulo, 2008. 2 Doutora em Sociologia pela Universidade de Braslia e Universidade de Barcelona. Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte ufrn. 3 A primeira cirurgia de transgenitalizao em uma mulher transexual foi realizada em Viena em 1931, no Instituto Hirschfeld de Cincia Sexual. No entanto, o primeiro caso que teve grande repercusso foi o de Christine, em 1952, que viveu at os 26 anos como George Jorgensen Jr. A primeira mulher transe- xual brasileira que realizou a cirurgia foi Jacqueline, em 1969 em Marrocos. Dois anos depois, o mdico Roberto Farina realizou a primeira cirurgia de transgenitalizao no Brasil, na cidade de So Paulo. O Conselho Federal de Medicina interpretou esse ato mdico de Farina como leso corporal, moti- vando uma ao judicial. Farina foi absolvido da acusao. 64 Berenice Bento 65 Pouco saber para muito poder: A patologizao do gnero psicanalistas como mutilaes. Benjamin, ao contrrio, afrmava que para o transexual de verdade psicoterapias eram inteis. Nesses casos, apenas as cirurgias poderiam representar a soluo para as enfermidades daque- les que tm abjeo ao corpo. Em 1969, realizou-se em Londres o primeiro congresso da Associao Harry Benjamin que passaria a chamar-se Harry Benjamin International Gender Dysphoria Association (hbigda) em 1977. A transexualidade pas- sou a ser considerada como uma disforia de gnero, termo cunhado por John Money em 1973 4 . A hbigda legitimou-se como uma das Associaes responsveis pela normatizao do tratamento para as pessoas transexuais em todo o mun- do. A hbigda publica regularmente as Normas de Tratamento (State of Care ou soc) que orientam profssionais que trabalham com transexuali- dade em todo mundo. Atualmente o soc est em sua 6. Verso. Alm desse guia, dois outros documentos so reconhecidos como of- ciais na orientao do diagnstico de transexualidade: o Manual de Diag- nstico e Estatsticas de Distrbios Mentais (dsm- 4. verso), da Associao Psiquitrica Americana (apa) e o Cdigo Internacional de Doenas (10. Verso), da Organizao Mundial de Sade. Nesses documentos h o pres- suposto de que a transexualidade, por se tratar de uma doena, tem basica- mente os mesmos sintomas em todas as partes do mundo. A patologizao caminha de mos dadas com a universalizao. O desejo em produzir um diagnstico diferenciado para transexuais, anunciado precariamente na dcada de 1960, ganha concretude nos anos de 1980. A sua incluso no Cdigo Internacional de Doenas, em 1980, foi um marco no processo de defnio da transexualidade enquanto uma doena. A incluso no dsm, no cid-10 e a construo de um diagnstico diferen- cial foram fundamentadas pelos resultados de um estudo com dez pessoas transexuais de idade adulta realizado por Leslie Lothstein (1983) , atravs de estudos clnicos que representavam uma classe muito limitada de sujei- tos. Segundo Stone (2003:27), a origem das clnicas dedicadas disforia de gnero uma viso em miniatura da construo de critrios genricos. A idia fundacional de que se partia nestas clnicas era estudar uma aberra- o humana interessante e potencialmente fnancivel. Nestes trs documentos (dsm-iv, cid-10 e soc) as pessoas transexuais 4 Para uma sistematizao da histria da institucionalizao da transexualidade no espao acadmico e hospitalar ver Castel (2001) e Bento (2006). so construdas como portadoras de um conjunto de indicadores comuns que as posicionam como transtornadas, independentes das variveis cultu- rais, sociais e econmicas. H algumas diferenas entre estes documentos. Para o soc, o transexual de verdade, tem como nica alternativa para re- solver seus transtornos ou disforias, as cirurgias de transgenitalizao. J no dsm-iv a questo da cirurgia apenas tangenciada, visto que sua pre- ocupao principal est em apontar as manifestaes do transtorno na infncia, adolescncia e fase adulta. O cid-10 o documento mais objetivo: apresenta as caractersticas gerais e o cdigo que deve estar presente em todos os diagnsticos referentes ao transexualismo. Manual de Diagnstico e Estatsticas de Distrbios Mentais (dsm) Em 1980, a apa aprovou a terceira verso dsm incluindo a transexualidade no rol dos Transtornos de Identidade de Gnero, no captulo dedicado aos Distrbios de Identidade de Gnero. Em sua quarta verso estabeleceu os critrios diagnsticos para as chamadas perturbaes mentais, incluindo componentes descritivas, de diagnstico e de tratamento, constituindo um instrumento de trabalho de referncia para os profssionais da sade mental em todo o mundo (http://www.psiqweb.med.br/cid/persocid.html, capturado em 10/03/2007). Jane Russo (2004) observa que o dsm, a partir de sua terceira verso, passou de uma viso psico-sociolgica para outra biologizante da sexuali- dade e do gnero. Esse giro medicalizante teve como desdobramento um aumento considervel no nmero dos chamados transtornos, alm da in- cluso de novos tipos 5 que passaram a ser reagrupados em novas categorias. Na parte referente Desordem Sexual e de Identidade de Gnero, h uma longa lista de tipos e subtipos. As Desordens de Identidade de Gnero subdividem-se em desordens de gnero na infncia, na adolescente, na fase adulta e transtornos de gnero no especifcados. Embora a proliferao de classifcaes possa representar uma demarca- o com um vis psicanaltico presente nas primeira e segunda verses do dsm, com a transexualidade no possvel afrmar que houve essa ruptura ou uma disjuno entre os saberes psiquitricos e psicanalticos na leitura e mtodos de interveno nos casos das chamadas desordens de gnero. 5 A autora aponta que o dsm ii apresentava uma lista com 180 categorias; no dsm iii eleva-se para 195, e no dsm iv chega a 350. 66 Berenice Bento 67 Pouco saber para muito poder: A patologizao do gnero O livro do psicanalista freudiano Robert Stoller, A experincia transexual, referncia obrigatria para psicanalistas que se aproximam da transexu- alidade, no est em desacordo com as orientaes prescritas no dsm. como se os achados clnicos do autor tomassem forma e simplicidade no manual. Stoller desenvolveu a tese de que a resposta para os desvios de gnero em crianas deveria ser pesquisada na personalidade da me. Se- gundo ele, a me dessa criana uma mulher que, devido inveja que tem dos homens e o seu desejo inconsciente de ser homem, fca to feliz com o nascimento do flho que transfere seu desejo para ele, provocando uma ligao extrema entre flho e me. Essa relao simbitica e o ocultamente da fgura do pai no permitem que o confito de dipo se instaure. A no passagem pelo confito de dipo e sua resoluo no permitem que a iden- tidade de gnero da criana se desenvolva de forma normal. O psicanalista Stoller um radical defensor do dimorfsmo. Para ele, as performances de gnero, a sexualidade e a subjetividade so nveis consti- tutivos da identidade do sujeito que se apresentam colados uns aos outros. O masculino e o feminino s se encontram por intermdio da comple- mentaridade da heterossexualidade. Quando h qualquer nvel de desco- lamento o terapeuta deve intervir no sentido de restabelecer a ordem e a coerncia entre corpo, gnero e sexualidade. esse mapa que fornecer as bases fundamentais para a construo do seu diagnstico. O dsm-iv no representa uma oposio a esta viso, ao contrrio, talvez possa ser considerado como sua operacionalizao ou um detalhamento daquilo que Stoller desenhou. A obra de Stoller no conseguiu a visibili- dade entre os operadores da sade que esto em Clnicas ou Programas de Transgenitalizao talvez por articular explicaes psicanalticas para a emergncia transexualidade. O dsm oferece o necessrio aos membros de equipes envolvidas na produo de um diagnstico s demandas de ci- rurgias. Alguns pontos fundamentais de unidade entre as concepes de Stoller e s do dsm: a defnio da transexualidade como um transtorno de identidade; no caso das crianas, se os pais procurarem ajuda podero fazer seus flhos retornar posio de gnero normal; a cirurgia no uma alternativa teraputica; a interveno do terapeuta poderia bloquear o desenvolvimento da transexualidade. Em 1994 o Comit do dsm-iv substituiu o diagnstico de Transexualis- mo pelo de Transtorno de Identidade de Gnero. Dependendo da idade, aqueles com uma forte e persistente identifcao com o sexo oposto e um persistente incmodo com seu sexo ou um sentimento de improprie- dade dos papis de gnero desse sexo passaram a ser diagnosticados como Transtorno de Identidade de Gnero na Infncia (302.6), Adolescncia e Adulto (302.85). Para as pessoas que no cumprem os critrios, o dsm-iv empregou o termo de Transtorno de Identidade de Gnero No Especi- fcado (gid-Nos-302.6). Os nmeros representam os cdigos que identif- cam internacionalmente os tipos de transtornos de gnero. De acordo com o dsm-iv, as caractersticas diagnsticas do Transtorno da Identidade de Gnero, obedecem a dois componentes que devem estar presentes no diagnstico. Deve haver evidncias de uma forte e persistente identifcao com o gnero oposto, que consiste do desejo de ser, ou a insistncia do indivduo de que ele do sexo oposto. (...) Tambm deve haver evidncias de um des- conforto persistente com o prprio sexo atribudo ou uma sensao de ina- dequao no papel de gnero deste sexo. Para que este diagnstico seja feito, deve haver evidncias de sofrimento clinicamente signifcativo ou prejuzo no funcionamento social ou ocupacional ou em outras reas importantes da vida do indivduo. Aps a caracterizao, o dsm-iv identifca a presena do transtorno por fases da vida. Na infncia: Em meninos, a identifcao com o gnero oposto manifestada por uma acentuada preocupao com atividades tradicionalmente femininas. Eles podem manifestar uma preferncia por vestir-se com roupas de me- ninas ou mulheres ou improvisar esses itens a partir de materiais dispo- nveis, quando os artigos genunos no esto sua disposio. (...) Existe uma forte atrao pelos jogos e passatempos estereotpicos de meninas. Pode ser observada uma preferncia particular por brincar de casinha, de- senhar meninas bonitas e princesas e assistir televiso ou vdeos de suas personagens femininas favoritas. Bonecas estereotipicamente femininas, tais como Barbie. (...) Esses meninos evitam brincadeiras rudes e esportes competitivos e demonstram pouco interesse por carrinhos ou caminhes ou outros brinquedos no-agressivos, porm estereotipicamente mascu- linos. (dsm-iv, http://www.psiqweb.med.br/cid/persocid.html, capturado em 10/03/2007). (negritos meus). As meninas com Transtorno da Identidade de Gnero apresen- tam reaes negativas intensas s expectativas ou tentativas dos 68 Berenice Bento 69 Pouco saber para muito poder: A patologizao do gnero pais de que se vistam com roupas femininas. (...) Elas preferem roupas de menino e cabelos curtos e com freqncia so errone- amente identifcadas por estranhos como meninos; elas tambm podem pedir aos outros que as chamem por nomes masculinos. Seus heris de fantasia so, com maior freqncia, fguras mas- culinas poderosas, tais como Batman ou Super-Homem (...) Ela pode declarar que quando crescer ser um homem. Essas meni- nas tipicamente revelam acentuada identifcao com o gnero oposto em brincadeiras, sonhos e fantasias. (negritos meus) Os sintomas apontados no dsm-iv para deixar os pais em alerta em re- lao sade de gnero de suas crianas, so os mesmos presentes no pen- samento de Stoller. Os meninos que gostam de usar roupas femininas, de brincadeiras e de brinquedos femininos devem merecer ateno dos pais e a interveno teraputica para que recuperem ou desenvolvam a masculi- nidade. O mesmo procedimento devem ter os pais em relao s flhas que apresentam comportamentos no apropriados para seu sexo. A preocu- pao principal de Stoller foi alertar os pais para os perigos dessas atitudes na infncia, pois, caso deixasse as crianas livres, seriam potencialmen- te adultos transexuais e que, provavelmente, reivindicariam a cirurgia de transgenitalizao 6 . As crianas encaminhadas s clnicas, segundo o dsm-iv, manifestam interesse pelas atividades relativa ao sexo oposto habitualmente se situa entre 2 e 4 anos de idade, sendo que alguns pais afrmam que seus flhos sempre manifestaram interesses do gnero oposto. Apenas um pequeno nmero de crianas com Transtorno da Identidade de Gnero continua apresentando sintomas que satisfazem os critrios para Transtorno da Identidade de Gnero na adolescncia tardia ou na idade adulta. Por que um pai ou me levaria sua/seu flha/o a um psiclogo? Qual o medo que habita em seu corao? Quais as tcnicas desenvolvidas no espa- o teraputico para esta criana no desenvolver transtorno de identidade de gnero na adolescncia tardia ou na idade adulta? O medo est na pos- sibilidade daquele desejo por brinquedos, roupas, cores no apropriadas para seu sexo, seja um sinal de uma homossexualidade latente. Embora se afrme que a homossexualidade no seja considerada mais 6 Stoller dedica-se com maior afnco ao estudo da transexualidade feminina. Acreditava que eram raros os casos de homens transexuais. No dsm-iv h certo equilbrio nas descries dos sintomas presentes entre as meninas e os meninos. uma doena 7 , pode-se desconfar que ainda se continua curando a ho- mossexualidade, s que agora com o nome de transtorno de gnero. A pa- tologizao da sexualidade continua operando com grande fora, no mais como perverses sexuais ou homossexualismo, mas como transtornos de gnero. Se o gnero s consegue sua inteligibilidade quando referido diferena sexual e a complementaridade dos sexos, quando se produz no menino a masculinidade e na menina a feminilidade, a heterossexualidade est inserida como condio para dar vida e sentido aos gneros. O dsm-iv continua seu trabalho de mapear os transtornos de gnero. Os adultos com Transtorno da Identidade de Gnero preocupam- se com seu desejo de viver como um membro do sexo oposto. Esta preocupao pode manifestar-se como um intenso desejo de adotar o papel social do sexo oposto ou adquirir a aparncia fsi- ca do sexo oposto atravs de manipulao hormonal ou cirrgi- ca. Os adultos com este transtorno sentem desconforto ao serem considerados ou funcionarem, na sociedade, como um membro de seu sexo designado. Eles adotam, em variados graus, o com- portamento, roupas e maneirismos do sexo oposto. Em sua vida privada, esses indivduos podem passar muito tempo vestidos como o sexo oposto e trabalhando para que sua aparncia seja a do outro sexo. (...) (negritos meus) Para alguns homens que apresentam o transtorno em uma ida- de mais tardia (freqentemente aps o casamento), a atividade sexual com uma mulher acompanhada pela fantasia de serem amantes lsbicas ou de que sua parceira um homem e ele uma mulher. (negritos meus) No dsm-iv no h uma diferenciao entre sexo em gnero. Quando para qualifcar o transtorno, utiliza o termo gnero, no entanto, em ou- tros momentos, refere-se a sexo. Sexo oposto ou gnero oposto? Para os formuladores desse manual no existe diferena entre sexo e gnero. So os deslocamentos do gnero em relao ao sexo biolgico o defnidor do transtorno, pois o gnero normal s existe quando referenciado a um sexo que o estabiliza. 7 A homossexualidade foi retirada do cid em 1975. 70 Berenice Bento 71 Pouco saber para muito poder: A patologizao do gnero Quando afrma brinquedos estereotipados como femininos, no expli- ca o que entende por esteritipo. Se o estereotipo for considerado como falseamento no teria nenhum problema de um menino brincar de boneca. Mas, no momento, em que o manual defne este desejo como um transtor- no afrma que h brinquedos que fazem o trabalho de revelao do mascu- lino e do feminino. Na adolescncia: Em adolescentes, as caractersticas clnicas podem assemelhar-se quelas de crianas ou de adultos, dependendo do nvel de de- senvolvimento do indivduo, devendo os critrios ser aplicados de acordo com o quadro clnico. Em um adolescente mais jovem, pode ser difcil chegar a um diagnstico correto, em vista de sua reserva, que pode aumentar se ele sentir-se ambivalente acer- ca da sua identifcao com o sexo oposto ou achar que isto inaceitvel para sua famlia. (negritos meus) Curso: Tipicamente, as crianas so encaminhadas por ocasio de seu ingresso na escola, em vista da preocupao dos pais de que aquilo que consideravam uma fase parece no estar sendo su- perado. (...) (...) Algumas adolescentes podem desenvolver uma identifcao mais clara com o sexo oposto e solicitar cirurgia de reatribuio sexual ou continuar em um curso crnico de confuso de gnero ou disforia quanto a este. O grande xito que dsm alcanou entre os profssionais da sade mental, a partir de sua 3. verso deve-se a reivindicar para si o carter cientfco, baseado em princpios de testabilidade e verifcao. Se estes princpios podem ser questionados em cada uma das classifcaes ali apresentadas, no caso da transexualidade ou nos chamados transtorno de identidade, a pretenso de cientifcidade no se sustenta. Na parte referente Achados laboratoriais associados, o manual afrma: No existe qualquer teste diagnstico especfco para o Transtor- no da Identidade de Gnero. Na presena de um exame fsico normal, geralmente no se indica o caritipo de cromossomas sexuais e avaliaes de hormnios sexuais. A testagem psicolgi- ca pode revelar identifcao ou padres de comportamento do gnero oposto. Por que considerar esta experincia identitria uma doena? Quem au- toriza os psiclogos, psiquiatras, endocrinologistas, e outras especialidades que fazem parte das equipes multidiciplinares, a avaliar a pessoa transexual como doente? Novamente, devo perguntar: Se no existe nenhum exame clnico que conduz a produo do diagnstico, como determinar a ocor- rncia do transtorno? Qual e como estabelecer os limites discernveis en- tre os transtornados de gnero e os normais de gnero? O nico mapa seguro que guia o olhar do mdico e dos membros da equi- pe so as verdades estabelecidas socialmente para os gneros. No existe um s tomo de neutralidade. Estamos diante de um poderoso discurso que tem como fnalidade manter os gneros prisioneiros diferena sexual. Classifcao Estatstica Internacional de Doenas e Problemas Relacionados com a Sade (cid-10) No Cdigo Internacional de Doenas (cid), a transexualidade aparece no captulo Transtornos de personalidade da Identidade Sexual (http://www. psiqweb.med.br/cid/persocid.html., capturado em 10/03/2007). A 10 Reviso da Classifcao Internacional de Doenas adotou a deno- minao Classifcao Estatstica Internacional de Doenas e Problemas Relacionados Sade (cid-10). Esta Classifcao foi aprovada pela Con- ferncia Internacional para a 10 Reviso da Classifcao Internacional de Doenas, convocada pela Organizao Mundial de Sade, realizada em Ge- nebra no ano de 1989. O cid-10 entrou em vigor em 1993. Os cdigos e a tipifcao da doena devem estar presentes em todos os diagnsticos para que tenham validade legal. O transexualismo defni- do como transtornos da identidade sexual (F64.0). A) Trata-se de um desejo de viver e ser aceito enquanto pessoa do sexo oposto. Este desejo se acompanha em geral de um sentimen- to de mal estar ou de inadaptao por referncia a seu prprio 72 Berenice Bento 73 Pouco saber para muito poder: A patologizao do gnero sexo anatmico e do desejo de submeter-se a uma interveno ci- rrgica ou a um tratamento hormonal a fm de tornar seu corpo to conforme quanto possvel ao sexo desejado. B) A identidade transexual esteve presente de forma consistente durante ao menos dois anos. C) O transtorno no um sintoma de outro transtorno mental ou de uma anormalidade cromossomtica. Alm do transexualismo, temos travestismo bivalente (F64.1), trans- torno de identidade sexual na infncia (F64.2 ), outros transtornos da identidade sexual (F64.8), transtorno no especifcado da identidade se- xual (F64.9). O cid-10 no um manual de orientao ou de indicadores diagnsticos, representa uma conveno mdica que estabelece as caracte- rsticas das doenas e seus respectivos cdigos utilizados e aceitos interna- cionalmente por mdicos/as e outros/as operadores/as da sade. O cid-10 considera o transexualismo como uma doena (um trans- torno mental) de ordem sexual. No h nenhuma problematizao das identidades de gnero ou dos sintomas que o levaram a concluir que toda pessoa transexual deseja uma cirurgia de transgenitalizao. Normas de Tratamento da hbigda (State of Care/soc) Ao contrrio do cid-10 e do dsm-iv, que se dedicam a catalogar mltiplas comportamentos considerados transtornos, o soc, da Associao Interna- cional de Disforia de Gnero Harry Benjamin, rene um conjunto de orien- taes exclusivamente sobre questes referentes transtornos de gnero 8 . As defnies da soc e do cid-10 so basicamente as mesmas. Embora a soc utilize disforia de gnero e o cid-10 refra-se a transtornos da iden- tidade sexual transexualismo (F64.0), no h divergncias dignas de nota entre os dois documentos. O propsito principal do soc articular um consenso profssional in- ternacional acerca do manejo psiquitrico, psicolgico, mdico e cirrgi- co das Desordens da Identidade de Gnero. Ao mesmo tempo objetiva 8 Para o acompanhamento dos documentos e da histria da hbigda, consultar: http://www.hbigda.org, http://www.symposion.com/ijt/benjamin e http://www.gendercare.com orientar os profssionais no entendimento dos parmetros dentro dos quais podem oferecer assistncia s pessoas com este tipo de problema. Alm dos profssionais, objetiva atingir um escopo mais amplo, pretende orientar familiares, as instituies sociais como um meio para entender o pensamento atual dos profssionais e a melhor forma de lidar com as pes- soas disfricas de gnero. Da mesma forma que o dsm-iv, reconhece as limitaes de um conhe- cimento desta rea e da esperana de que algumas destas incertezas clnicas podem resolver-se no futuro atravs da investigao cientfca. Na construo do diagnstico orienta que quando os indivduos insa- tisfeitos cumprem os critrios especifcados nas das duas classifcaes in- ternacionais ofciais (cie -10 e o dsm-iv), se pode dizer que sofrem uma de- sordem da identidade de gnero (gid). Algumas pessoas com gid possuem o desejo persistente de transformar cirurgicamente seus corpos. A nfase da cirurgia como alternativa teraputica diferencia o soc do dsm-iv. Se o dsm-iv representa uma operacionalizao do pensamento de Stol- ler, no caso do soc a fonte de inspirao Harry Benjamin. As diversas atualizaes do soc no fogem do ponto inicial formulado por Benjamin: a transexualidade uma enfermidade que tem sua origem em alguma parte do corpo e as cirurgias de transgenitalizao so as nicas terapias poss- veis para essas pessoas. Segundo ele, o transexual verdadeiro vive uma inverso psicosexual total, pode viver e trabalhar como uma mulher, mas isso no basta. O mal-estar intenso de gnero leva-o a desejar intensamente relacionar-se com homens e mulheres normais. Solicita a cirurgia, porque odeia seus rgos masculinos. (benjamin, 2001:45) Esse documento subdividido em meta do tratamento, avaliao diag- nstica, terapia hormonal em adolescentes e adultos, psicoterapia, experi- ncia de vida real e cirurgia. H uma grande nfase na importncia da ci- rurgia que faria parte da teraputica tridica composta de trs momentos: a experincia de vida real, a terapia hormonal e cirurgia. O dsm-iv e o soc tentam esgotar os indicadores das desordens de g- nero e das disforia de gnero, a partir das fases da vida e fazem as reco- mendaes e procedimentos adequados ao tratamento. O soc defende que adolescentes podem iniciar terapia tridica, pois em muitos pases eu- ropeus a idade de 16 a 18 anos a idade para ser considerado legalmente adulto para tomar decises mdicas em consentimento de famlias. A de- fesa de uma idade para iniciar a terapia e a importncia da terapia tridica 74 Berenice Bento 75 Pouco saber para muito poder: A patologizao do gnero marca as divergncias com o dsm-iv. A psicoterapia para adultos no requisito absoluto para a terapia tridica. Enquanto a psicoterapia no um requisito absoluto para a ci- rurgia de adultos, o profssional da sade mental pode requerer sesses regulares ao largo da experincia de vida real com uma freqncia mnima determinada pelo profssional. Robert Stoller e Harry Benjamin podem ser considerados pioneiros na tarefa de mapear os sintomas e apontar tratamentos adequados para a tran- sexualidade. Suas teses ainda tm importncia e esto institucionalizadas dsm-iv (Stoller) e no soc (Benjamin). No primeiro pode-se notar a infu- ncia do discurso psicanaltico e no segundo, h uma preponderncia de uma viso endocrinloga. No mbito da operacionalizao nas equipes multidisciplinares encar- regadas de produzir de diagnstico estas posies trabalham juntas: cada uma cede um pouco. O/a endocrinologista espera o dia em que a cincia descobrir as origens biolgicas da transexualidade, o que provocaria um reposicionamento do papel e do poder dos terapeutas. Atualmente, so eles os responsveis em dar a palavra fnal sobre a cirurgia. Os terapeutas, por sua vez, esperam que a pessoa transexual com a terapia reavaliem sua de- manda pela cirurgia. No entanto, a dvida dos membros das equipes multi- disciplinares como chegar verdade e no serem enganados por pseudos transexuais. Benjamin selecionou alguns indicadores que considerou constantes nas histrias das pessoas transexuais e com os quais estabeleceu os parmetros defnidores do verdadeiro transexual. Embora no soc essa expresso (tran- sexual de verdade) tenha sido questionada, ainda persiste com a imple- mentao dos protocolos nos hospitais que fazem a cirurgia, onde se busca mapear indicadores comprovadores da condio transexual. Segundo Benjamin (2001), o/a verdadeiro/a transexual fundamen- talmente assexuado e sonha em ter um corpo de homem/mulher que ser obtido pela interveno cirrgica. Essa cirurgia lhe permitiria desfrutar do status social do gnero com o qual se identifca, ao mesmo tempo em que permitiria exercer a sexualidade apropriada, com o rgo apropriado. Nesse sentido, a heterossexualidade defnida como a norma a partir da qual se julga o que um homem e uma mulher de verdade. Diante da transexualidade, a suposta objetividade dos exames clnicos no faz nenhuma diferena. Nessa experincia, o saber mdico no pode justifcar os transtornos por nenhuma disfuno biolgica, como aparen- temente se argumenta com o caso dos intersexos que devem se submeter s cirurgias para retirar-lhes a ambiguidade esttica dos genitais, conforman- do-os aos corpos-sexuados hegemnicos 9 . Em ltima instncia, o que contribuir para a formao de um parecer mdico sobre os nveis de feminilidade e masculinidade presente nos de- mandantes, so as normas de gnero. Sero elas que estaro sendo citadas, em sries de efeitos discursivos que se vinculam s normas, quando se julga ao fnal um processo se uma pessoa um/a transexual de verdade. No existe testes clinicamente apropriado e repetvel ou testes simples e sem ambigidades. O que assusta perceber que to pouco saber dito cientfco gerou tanto poder. Referncias Bibliogrfcas BENJAMIN, H. Transvestism and transsexualism. Internacional Journal of Sexology, v.7, n.1, 1953. __________ . El fenmeno transexual. (Versin espaola del Dr. J. 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Quando a primeira gerao de crianas operadas chegou idade adulta, se tornou pblico esse tipo de interveno e sua realizao comeou a ser questionada. Nos Estados Unidos a Intersex Society of North Amrica (www.isna.org) desenvolve campanhas contra as cirurgias de defnio sexual. Para uma discusso sobre intersexua- lidade, ver Cabral (2003, 2004, 2006), Colapinto (2001), Corra (2004). 77 Plurais na singularidade refexes sobre travestilidades, desejo e reconhecimento CORRA, M. Fantasias corporais. In: Piscitelli, Adriana (et al). Sexualidade e saberes: convenes e fronteiras. Rio de Janeiro: Garamond, 2004. CABRAL, M. Em estado de excepcin: intersexualidade e intervenciones sociomdicas In CCERES, C. et al. Sexualidad, estigma y derechos humanos: Desafos para el acceso a la salud en Amrica Latina, Lima: FASPA/UPCH, 2006. _______________ (org.) Sries para el debate. No. 3. Campana por la convencin de los derechos sexuales y los derechos reproductivos. Lima, 2004. ______________. 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Nenhuma das opes apresentadas contemplava os anseios de identifcao de La Raia, que gosta de se vestir com roupas femininas quando vai para a pista 3 ou para balada, mas que no dia-a-dia prefere trajes mais neutros em relao ao gnero, como cala jeans e camiseta regata, ainda que mantenha seus cabelos presos em rabo- de-cavalo, as unhas longas e sempre pintadas e no rosto no h qualquer marca do chuchu, que como as travestis se referem barba. Seu aspecto andrgeno a torna alvo de muitas miradas. Algumas desa- fadoras, outras provocativas, porm poucas respeitosas. Ela comenta que 1 Doutora em Cincias Sociais, professora da Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho. 2 Todos os nomes citados foram trocados a fm de preservar a privacidade das pessoas mencionadas. 3 Expresso muito comum entre as travestis de So Paulo para se referirem aos espaos de prosttuio rueira. 78 Larissa Pelcio 79 Plurais na singularidade refexes sobre travestilidades, desejo e reconhecimento mesmo entre o pessoal do babado 4 sua aparncia incomoda, pois parece desafar qualquer possibilidade de fxidez de uma identidade classifcvel. Viver sem um termo de classifcao que implique em reconhecimen- to inviabiliza o sujeito, e La Raia diante daquela fcha, precisava marcar um x que a torna-se vivel, reconhecvel, possvel. Assim, Daniel/La Raia resolveu se identifcar como travesti. Enquanto assinalava sua opo, Fran- cine, que tambm se reconhece como travesti, provocou: Voc t mais pra lsbica, querida! Travesti? Sei! T boa?. Emenda a essa observao um fato ocorrido durante uma reunio poltica que teve lugar em uma cidade vi- zinha que vivemos. Francine conta que uma das pessoas presentes havia perguntado a ela sobre o gnero de La Raia/Daniel, usando os seguintes termos: o que aquilo?. A indefnio de gnero de La Raia havia tirado, naquele momento, a sua prpria condio humana, transformando-a naquilo. O que torna La Raia/Daniel humanamente impossvel o fato de no atender s expecta- tivas do binarismo de gnero. At aqui no h surpresas ou novidades, a no ser o fato de todo esse questionamento sobre quem La Raia/Daniel passou-se no mbito do movimento social, justamente em um momento no qual se procura discutir a fxidez identitria e questionar o binarismo de gnero. Se La Raia/Daniel procura um termo auto-classifcatrio e no o encon- tra, o que a/o defne? Um gnero? A genitlia? Seu desejo? A tradio hegeliana enlaa o desejo com o reconhecimento: afr- ma que o desejo sempre um desejo de reconhecimento e que qualquer um de ns se constitui como ser social vivel unicamen- te atravs da experincia do reconhecimento. (butler. 2006: 14) A citao acima foi extrada de um dos textos mais recentes da pensa- dora queer 5 Judith Butler, que retoma Hegel para pensar o reconhecimento. 4 Refere-se s pessoas que se identifcam como homossexuais, travestis, simpatizantes, enfm, que cultivam uma sociabilidade em espaos nos quais pessoas que se relacionam afetivamente com outras do mesmo sexo costumam freqentar, associando essa convivncia ao fato de terem mais abertura a relaes no heterossexuais. 5 bom ter em mente o alerta que faz Marcia Ochoa: preciso ter muito cuidado: a palavra queer uma categoria local norte-americana ( como te chamam na escola quando te chateiam), que mediante a hegemonia terica que permite a publicao e circulao de textos norte-americanos por todo o mun- do, viajou muito, mas no tem a mesma ressonncia em outros lugares. (ochoa. 2004: 254). J a flsofa norte-americana Judith Butler defne o queer como uma prtica lingstica cujo propsito tem sido a Para o flsofo alemo, o processo de formao da identidade tem como pressuposto o reconhecimento recproco entre sujeitos, de modo que so- mente quando um indivduo v confrmada sua autonomia pelos demais que pode chegar a uma compreenso completa de si mesmo como sujeito social. Ser reconhecido seria, em suma, ser. Porm, como sublinha Butler, os termos que nos permitem ser, so variveis, posto que sempre so dados socialmente (butler. 2006). Assim, nem sempre aquilo que me faz reco- nhecvel o que me faz de fato ser humano. Para as travestis a questo do reconhecimento parece ainda mais desafa- dora e problemtica. Primeiro porque o prprio termo de reconhecimento e auto-reconhecimento est impregnado de signifcados depreciativos, o que tem custado s travestis um grande esforo de resignifcao; segundo porque, como discutem Don Kulick e Charles Klein (2003) as pessoas, em geral, no Brasil no conseguem defnir o que seria de fato ser travesti. Essa difculdade em localiz-las em uma defnio segura de gnero e orientao sexual as faz fascinantes e perigosas, sedutoras e poluidoras, com sensvel predominncia dos segundos termos dessas dades 6 . De fato, a indetermi- nao sempre entendida como perigo. Ainda que as travestis tambm saibam se valer disso como forma de defesa. Como pessoas que tm sido constitudas por experincias marginais, as travestis aprenderam a desenvolver respostas imaginativas para viver com recorrentes interpelaes. Algumas constroem imagens de perigo em torno de si; articulam redes de proteo que vo da casa at a rua e, ainda, que es- tas no evitem que algumas tenham fns trgicos, de alguma forma, propor- cionam meios de trnsito e defesa. Entre estas tantas estratgias, as travestis acionam o escndalo, a fm de alargar a abjeo, conseguindo, por vezes, atingir aos clientes, intimidar policiais ou ter voz em espaos de poder. Kulick e Klein analisam o escndalo como uma espcie de micro pol- tica, propondo que as travestis o utilizam como meio de estender o espao de sua prpria abjeo queles que a frequentemente as rechaam, enver- degradao do sujeito o qual se refere, ou melhor, na constituio desse sujeito mediante esse apelativo degradante (2002a.: 58). Apontar algum como estranho, anormal e, sobretudo, como aquele/aque- la que escapa da norma sexual estabelecida tom-lo/a como menos humano, cabendo a estes seres os lugares marginais. Apropriar-se de termos ofensivos que foram sempre impostos, a fm de subverter seu uso, uma estratgia de desconstruo que pretende colocar em xeque os valores que sustentam esses enunciados depreciativos estreitamente associados s prticas e desejos sexuais proscritos. 6 Barreda e Isnardi observam que esta indefnio nos leva a interrogaes para as quais no temos muitas respostas, por isso, acabamos por nos valer de categorias que nos parecem mais familiares, se- guras, estveis e menos perturbadoras e/ou questionadoras (2007: 06), a fm de, como pesquisadores e pesquisadoras, buscarmos uma realocao para as travestis para alm dessa indefnio danosa. 80 Larissa Pelcio 81 Plurais na singularidade refexes sobre travestilidades, desejo e reconhecimento gonham e oprimem (kulick e klein. 2003: 02). Essa reterritorilizao da vergonha tem um sentido transgressivo, uma vez que a travesti usa seu poder de contaminao para implicar o bom cidado aquele, que supos- tamente bom, limpo, msculo. O escndalo no uma estratgia pensada de forma organizada, mas um jeito de levar a vida enfrentando situaes de confito. Assim, algumas travestis no se valem dele, pois tentam se adequar esttica do bom cida- do para se fazerem sujeitos de direitos. Pois acreditam que para obterem esses direitos devam ser e agir como se j fossem possuidoras deles. Desta forma, pretendem tambm demarcar a distncia entre eu, a fna e a outra, a barraqueira. O que no s um jogo de foras, mas uma tentativa de dar relevo s diferenas existentes entre elas. Nesse esforo, so implacveis na avaliao que fazem umas das outras. Muitas querem chocar mesmo! No sabem se comportar, repreende uma travesti, durante reunio realizada nas dependncias do Centro de Referncia de Santo Amaro, zona Sul da cidade 7 . No h complacncia no olhar. O debate torna-se acalorado, e cada travesti presente na referida reunio tem um exemplo para dar. Porm, uma delas observa que as discretas e sossegadas so as que mais ouvem desaforos no seu cotidiano. Ao que Aline, travesti ali presente, prope: as escandalosas pem medo, enquanto as discretas no. Ou seja, o escndalo protege, ain- da que seja um elemento que refora a viso de senso comum sob o perigo das travestis. Coloca-se aqui um dos tantos paradoxos que cercam vidas travestis. Se no podemos ser sem fazer, como ser sem reforar as percepes des- prestigiosas que rebaixam as travestis na escala do humano? Como resistir abjeo sem se deixar domesticar pelas expectativas heteronormativas que vinculam o reconhecimento pasteurizao das expresses humanas numa diversidade retrica, que visa, de fato a homogeneizao das condu- tas? Enfm, como escapar das armadilhas das identidades? No pretendo discordar da importncia de nomear (ou melhor, ca- tegorizar) sujeitos, uma vez que atravs destas categorias que os seres humanos se tornam viveis, inteligveis. pela adoo, reconhecimen- to ou imputao de uma identidade coletiva que nos tornamos aptos a socializar, carregar signos e signifcados que nos moldam e nos revelam 7 Dados retirados de meu dirio de campo redigido durante a realizao da tese de doutorado intitulada Nos Nervos, na carne, na pele uma etnografa sobre prostituio travesti e o modelo preventivo de Aids. Disponvel em http://www.bdtd.ufscar.br/tde_arquivos/6/TDE-2007-11-06T11:50:38Z-1566/Publico/ TeseLP.pdf enquanto seres sociais (tosta e pelcio. 2008). Por outro lado, ter um termo de identifcao no implica que este em- preste reconhecimento humano ao sujeito designado. Pois quando o reco- nhecimento se d apenas a partir dos termos hegemnicos, o que se pode vir a ter justamente a desqualifcao daquele sujeito nomeado, desabili- tando-o para a vida social plena (goffman. 1988: 07). Ento, mais do que ampliar as classifcaes e as identidades, creio que seria mais produtivo examinar os processos que estabelecem quais vidas sero reconhecidas como viveis e quais no. Em outras palavras, talvez seja mais profcuo pen- sar a partir de estratgias transformativas e no afrmativas 8 , para usarmos os termos de Nancy Fraser, e desconstruir as identidades sociais a partir do questionamento da prpria validade do critrio produtor da diferena. nesta direo tambm que Mrcia Ochoa, pesquisadora latino-ame- ricana radicada nos Estados Unidos, volta suas discusses quando pensa nas travestis de Caracas, Venezuela. Ochoa refete sobre o que ela chama de cidadania perversa, referindo-se ao processo de excluso que envolve determinados segmentos, uma vez que estes no experimentaro o senti- mento de pertena, cabendo-lhes apenas as exigncias dos deveres e a dis- ciplinarizao que o processo de cidadania signifca. Para ter cidadania se precisa mais do que passaporte ou uma cdula de identidade, necessitamos de um sentimento de pertena (ochoa. 2004: 243), pois certos processos de incluso e excluso no so regulados pelos documentos que se tem (no caso das travestis, dos que no se tem, absolutamente, ou no se tem do jeito que se pretende), mas justamente por sentir-se parte, e no algum margem, sob suspeita, inclassifcvel ou somente reconecvel a partir de termos que o/a depreciam e/ou humilham. Em busca de uma cidadania menos perversa, encontro uma travesti em um Servio Ambulatorial Especializado (sae), no centro da cidade de So Paulo 9 . A mencionada travesti havia feito fotocpia do documento de iden- 8 Nancy Fraser prope separar estratgias afrmativas de transformativas. As primeiras esto volta- das para a reavaliao positiva das identidades injustamente desvalorizadas, mantendo intacto, todavia, o contedo dessas identidades. J estratgias transformativas voltam-se preferencialmente descons- truo das identidades sociais, na medida em que questionam a prpria validade do critrio produtor da diferena (Para uma discusso mais aprofundada ver Matos. 2004). 9 Ao longo de minha pesquisa de doutorado acompanhei a rotina de um programa preventivo chamado Tudo de Bom. O mesmo est alocado na agncia pblica de sade dst/Aids Cidade de So Paulo, da Secretaria Municipal de Sade, e voltado para trabalhadores do sexo que atuam na capital paulistana, valendo-se da educao entre pares como recurso metodolgico de interveno. Desta forma, profs- sionais de sade ligados ao projeto identifcam nas regies dos seus servios pessoas que comerciali- zam sexo, com perfl para o trabalho em campo. Estas pessoas, aps formao especfca, desenvolvem intervenes em reas de prostituio da cidade (Abate. 2003: 33). A cena que descrevo acima passou- 82 Larissa Pelcio 83 Plurais na singularidade refexes sobre travestilidades, desejo e reconhecimento tidade e colocara sobre a foto original uma outra, colorida, onde ela apare- cia como gostaria de ser vista socialmente: maquiada, com longos cabelos, boca pintada, enfm, com aparncia de mulher. Apresentou o tal documen- to a fm de se cadastrar para receber sua cota mensal de preservativos. Aler- tada pelo agente de preveno sobre a ilegitimidade daquele documento, ela se justifcou, dizendo que seus documentos originais fcaram com uma moa com quem ela fez laser (tratamento esttico para eliminao de plos). O agente de preveno explica que ela no deve andar com aque- le documento, que aquilo ilegal e pode render-lhe um B.O. (Boletim de Ocorrncia) por falsifcao ou por falsidade ideolgica. Ela se ofende, mas mantm-se calma. Procura se explicar mais uma vez. Ele, ento, senta-se ao lado da travesti e expe calmamente a questo, dizendo porque ela precisa ter cautela com aquele documento. O agente frisa que ali, para se cadastrar, no haver problemas. Ela faz cara de quem entende, mas emenda: eu vou continuar usando esse. Rafael, o agente de preveno, resigna-se. No mesmo local h outra questo envolvendo documentos. Desta vez trata-se das carteirinhas de cadastramento das travestis naquela unidade de sade. Na carteirinha fcam registrados os exames e consultas realizados, alm da anotao das camisinhas retiradas durante o ms, com o limite fxado em 400 unidades/ms (quantidade garantida naquele servio). A discusso acerca da duplicidade de carteirinhas de uma das 15 travestis que estavam presentes naquele espao. A travesti das vrias carteirinhas justifca-se: foi uma bicha que fez!. Que bicha?, pergunta Luma, a travesti agente de preveno. A bicha, a outra, l..., responde. Luma olha bem a carteirinha e acaba por constatar que a letra nas anotaes do documento de Karol, travesti agente de preveno que tambm atua naquela unidade. Conformada com a perda de uma de suas carteirinhas, a travesti levada por Rafael para tomar vacina. Faz uma expresso de quem no gostou mui- to de ter perdido a segunda carteirinha, mas no faz escndalo nenhum 10 . Mesmo sendo vistas como indocumentadas, loucas, viados, as travestis podem ser outras coisas, assemelhando-se ao que os bons cidados so. Agindo desta forma fazem fagrante a discriminao. Muitas vezes, a estratgia de resistncia justamente a de se agir ao contrrio das expectativas sociais; as travestis sabem disso. Sabem tambm que, apesar de serem cidads no so tratadas como pessoas portadoras de se durante um planto do Projeto. Isto , em um dia especfco da semana em que agentes de preveno fcam nas unidades especializadas em dst/Aids para atender profssionais do sexo, seja na distribuio de preservativos, tirar dvidas sobre sade e/ou realizar consulta e exames. 10 Toda esta descrio foi retirada de meu dirio de campo, como j referido em nota anterior. direitos, ou pelo menos no se consideram tratadas como tal. Na tentativa de o serem, por vezes, fazem como a inconformada, mas polida, travesti: cum- prem a esttica do comportamento do bom cidado (ochoa. 2004: 245). Para as duas travestis envolvidas com questes de documentos, parecia no haver qualquer implicao, nem num RG adulterado, nem na dupli- cidade de carteiras cadastrais. Distantes da lgica burocrtica que rege os servios de sade, ou buscando driblar os obstculos sociais que impedem que elas adotem um nome e uma aparncia que no aqueles determinados pelos poderes institudos no campo jurdico e mdico, muitas travestis en- frentam constrangimentos constantes. E os enfrentam como podem. Al- gumas das vezes o grito visto como a nica forma efciente de se fazer ouvir e, de no mnimo, levar o outro a sentir-se constrangido diante do no reconhecimento da travesti como um ser portador de direitos, ainda que ela no atenda s expectativas de uma cidadania bem comportada (at mesmo porque, como j foi exemplifcado, esta pode ser incua). Sobre a idia de uma cidadania perversa e suas armadilhas da igualdade, Ochoa defende que: h dois tipos de igualdade: uma em que eu sou igual a ti, a outra na qual tu s igual a mim. A partir de uma posio abjeta ou de absoluto rechao social, esta diferena implica estratgias dife- rentes se eu sou igual a ti, eu me conformo a tua esttica para me fazer sujeito de direitos; se tu s igual a mim, e eu sou uma pessoa rechaada na sociedade, ento tu tambm, no momento que me fao equivalente a ti, te sujas. (ochoa. 2004: 246) A estratgia aqui a de se alargar a vergonha e fazer um deslocamento dos termos que, classicamente, tm orientado os debates sobre direitos, ci- dadania e reconhecimento, introduzindo um lxico novo. Para promover uma poltica antinormativa, Ochoa prope que (1) se considere os propsi- tos da teoria queer, (2) se use estratgias e categorias locais e (3) e se articule uma poltica do desejo (2004: 253). Neste sentido podemos pensar na res- semantizao proposta pela teoria queer, promovendo o escndalo como expresso de uma outra esttica poltica. Penso na politizao o desejo como uma dessas estratgias para se con- ferir contorno ontolgico quelas pessoas que tm sido sistematicamente destitudas do privilgio da ontologia. Para Butler o domnio da ontologia 84 Larissa Pelcio 85 Plurais na singularidade refexes sobre travestilidades, desejo e reconhecimento um territrio regulamentado: o que se produz dentro dele, o que dele excludo para que o domnio se constitua como tal, um efeito de poder (em entrevista a Prins & Meijer. 2002: 161). Historicamente as travestis tm tido sua ontologia questionada justa- mente porque seus desejos no tm sido vistos como humanos, por isso podem ser desautorizados, ridicularizados, medicalizados, criminalizados ou todas estas coisas juntas. Na medida em que o desejo est implicado com as normas sociais, ele se encontra ligado s questes do poder e com o problema de quem rene os requisitos dos que se reconhece como humano e quem no. (butler. 2006: 15), escreve Butler no artigo j citado. Ela segue, ento, apontando para as armadilhas da inteligibilidade, pois se esta se der a partir do assujei- tamento s normas vigentes, o que se estar negando ser justamente o po- tencial transformativo do desejo, aquele capaz de alargar as possibilidades do humano. Por outro lado, Butler reconhece que viver fora das normas um fardo, por vezes demasiado pesado para ser enfrentado individualmen- te. Por isso, a relao crtica com as normas depende de uma capacidade coletiva para se articular uma verso minoritria de normas que permitam a um indivduo ser. E aqui, acho que a academia tem muito a contribuir. Pois, no se trata de expandir o nmero de classifcaes de gnero ou das siglas identitrias, mas de alargar as concepes do humano, colocando em xeque as experincias concretas que constituem os sujeitos. Enfm, como unir ao e refexo, ou como prefere Mrcia Ochoa: la rumba e el rumbo? Sendo a primeira o lugar do prazer, e o segundo o da determinao. Diz ela: A rumba [ou o carnavalesco], tanto como a loucura e o escndalo nem sempre so lugares produtivos para articular intervenes. Quando digo que tem que se imaginar uma poltica a partir da rumba no quero dizer que a poltica deve se produzir nica e exclusivamente a partir da rumba ou de uma maneira louca, mas que ele tem que transcender estas distines estticas que margi- nalizam ou provocam a auto-excluso de alguns atores. Se a idia incidir nesses graves momentos e silncios onde se violentam os direitos, temos que transformar a poltica para que se faa sentir nesses espaos e a partir dos sujeitos que os habitam (ochoa. 2004: 253). Acredito que nosso compromisso acadmico sempre poltico, portan- to, essa citao nos toca diretamente. Se quisermos contribuir na promoo de uma poltica antinormativa, preciso que pensemos na ressemantizao dos termos disponveis, buscando uma outra esttica poltica e estratgias tericas que possam desvelar o lugar do desejo na ordem social. Um projeto ambicioso, mas que precisa ser pensado na tenso entre la rumba e el rumbo.
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In Seminrio Internacional Fazendo Gnero, 8, 2008, Florianpolis. 87 Impasses contemporneos do protagonismo lsbico: para alm da inverso da sigla Impasses contemporneos do protagonismo lsbico: para alm da inverso da sigla Guilherme Silva de Almeida 1 O objetivo deste artigo ser uma breve descrio da progressiva autonomi- zao do movimento brasileiro de lsbicas e bissexuais ocorrida a partir dos anos 90 e analisar alguns dos impasses contemporneos enfrentados por este movimento no contexto mais amplo do movimento lgbt. O caminho que pretendo percorrer neste artigo no simples e j come- a com um desafo: o de precisar com alguma clareza o que venho conce- bendo como movimento de lsbicas e bissexuais. Apesar de considerar que este movimento social experimentou ao longo dos anos 90 um processo de progressiva autonomizao em relao ao movimento lgbt, no possvel conceber aquele de forma totalmente dissociada deste, pois como sabido, ambos os movimentos compartilham uma trajetria histrica em grande medida comum. Eles so, de forma semelhante, dispostos a reverso da situao de preconceito e discriminao em funo das convenes de g- nero e da sexualidade. Desta forma, pode-se conceber o movimento de ls- bicas e bissexuais como em alguma medida correlato e concorrente do movimento lgbt e, em outra direo, um brao dele 2 . Foi caracterstico dos ltimos anos o surgimento de vrios neologismos, cujo pano de fundo foi o reclame da especifcidade das identidades sexu- ais e de gnero, como lesbofobia e transfobia. Mais que outros aspectos do 1 Doutor em Sade Coletiva pelo Instituto de Medicina Social (ims) da uerj. Professor da Universidade Federal Fluminense (uff). 2 Para o aprofundamento desta discusso, ver Almeida (2005), ao discutir o surgimento do movimento de lsbicas no Brasil. 88 Guilherme Silva de Almeida 89 Impasses contemporneos do protagonismo lsbico: para alm da inverso da sigla movimento, esta progressiva diferenciao interna e seus efeitos polticos comea a ser explorada na literatura das cincias sociais 3 . A autonomizao do movimento de lsbicas/bissexuais Se desde os primrdios do ento chamado movimento homossexual 4 , as lsbicas participaram da formao dos grupos e da concretizao de dife- rentes aes polticas, tambm verdade que a relao delas com os demais sujeitos polticos abrigados sob o guarda-chuva homossexual, sempre foi marcada pela tenso (eventualmente convertida em confito), motivada quase sempre pela denncia do no-reconhecimento da especifcidade das necessidades lsbicas e do seu poder decisrio nas instituies do prprio movimento. Freqentemente, esta tenso redundou em rupturas das lsbi- cas com os grupos mistos e tambm (de forma menos freqente) na obten- o de espaos autnomos de poder no interior de grupos mistos. Assim, embora tenha havido uma origem poltica e um corpo de rei- vindicaes comum entre lsbicas e o movimento homossexual, a partir da dcada de 1990, as lsbicas atravs de grupos, aes e eventos espec- fcos passaram a forjar um conjunto de demandas especfco e um modus operandi poltico prprio, por vezes mais prximo do feminismo que do movimento homossexual. Com as feministas, a relao do movimento de lsbicas e bissexuais foi marcada pela ambigidade. Tal ambiguidade se dava porque, se de um lado, ocorria uma signifcativa identifcao lsbica com as demandas feministas, de outro havia um nebuloso contradiscurso que afrmava a existncia de um algo mais que distinguiria aquelas das mulheres em geral. Este algo mais esteve no centro de infndveis discusses e os limites da suposta diferena, at hoje, nem sempre so sufcientemente claros para o prprio movimen- to, sobretudo quando o plano da discusso o das polticas pblicas. Na cena pblica brasileira foi possvel observar a formao de dezenas de grupos exclusivamente formados por lsbicas e bissexuais a partir dos anos 90. Grande parte deles se constituiu sob a forma de ongs. A maioria vinculou-se a entidades aglutinadoras exclusivamente lsbicas, como a Liga 3 Ver Fachini (2005). 4 Utilizarei a expresso movimento homossexual sempre em referncia ao movimento histrico, des- crito por vrios autores e que nas dcadas de 1980 e 1990 se auto-referia desta forma, antes que surgisse o reclame pela especifcao das identidades. Entende-se que, j naquele momento co-existiam no mo- vimento diferentes identidades sexuais que se satisfaziam, todavia, com o termo genrico. Brasileira de Lsbicas (lbl) e a Associao Brasileira de Lsbicas (abl). Outros grupos vincularam-se a abglt 5 e a outras entidades supra-regionais mistas. Tais entidades do movimento de lsbicas e bissexuais sero aqui chama- das de ongs lsbicas 6 . Elas foram se autonomizando em resposta a freqen- tes confitos ocorridos no interior das organizaes mistas, mas tambm devido a uma variedade de condicionantes econmicos, polticos e cultu- rais 7 . Do ponto de vista econmico, a dcada de 1980 terminou com uma for- te crise a que comprometeu o conjunto das condies de vida da populao brasileira e tambm teve impactos na disposio dos diversos segmentos sociais para a ao poltica. A maioria dos movimentos sociais no perodo sobretudo os de conformao classista, como os sindicatos e partidos experimentam um refuxo naquele perodo 8 . O movimento homossexual tambm foi impactado, mas a exemplo de outros movimentos de base culturalista 9 (como os movimentos negro, fe- minista e o feminismo negro), sobreviveu graas forma que assumiram a partir de ento, a de ongs. A militncia homossexual perdeu com o novo formato, em grande medida, o carter informal e se institucionalizou em entidades civis sem fns lucrativos, com um corpo estvel de funcionrios e oramentos prprios. Elas passaram a se movimentar sob a lgica do fnan- ciamento de projetos. O cenrio da globalizao e do aumento do fuxo das comunicaes (possibilitado pela difuso da internet), tambm contribuiu para o acesso dos movimentos sociais brasileiros a experincias internacionais, possibi- litando o desenvolvimento de experincias locais tambm diferenciadas. Este foi um aspecto importante para o surgimento de ongs a partir da iden- tidade sexual 10 . Em mbito nacional, a ascenso de governos de orientao neoliberal 11
5 Associao Brasileira de Gays, Lsbicas e Transexuais. 6 Para o acesso a um pequeno histrico do fortalecimento dos grupos de lsbicas nos anos 90, ver o terceiro captulo de Almeida (2005:188-203). 7 Para uma anlise mais detida da participao das lsbicas na primeira onda do movimento homosse- xual, ver Fry & MacRae (1985) e Macrae (1990). 8 Sobre o refuxo dos movimentos sociais, ver Gohn (2000). 9 Para o aprofundamento da discusso acerca dos movimentos sociais do Brasil dos anos 90 e as prin- cipais transformaes em suas caractersticas, ver Gohn (2000). 10 Para a discusso da incorporao das diferenas pela cultura global, ver Appadurai (1990:311-327). 11 Para uma discusso acerca do neolberalismo e sua incidncia nos Estados latino-americanos nos anos 90, ver Laurell (2002). 90 Guilherme Silva de Almeida 91 Impasses contemporneos do protagonismo lsbico: para alm da inverso da sigla a partir do fnal dos anos 80, que transferiram parte das atribuies do Estado brasileiro na execuo de polticas sociais para a sociedade civil 12 , favoreceu a expanso das ongs de um modo geral, o que tambm incidiu sobre as novas ongs nascidas no movimento homossexual. A participao do governo brasileiro nas conferncias da onu e a cres- cente necessidade de incorporao da temtica dos direitos humanos pelos governos federais, especialmente os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso, proporcionaram por outro lado o reconhecimento pioneiro de novos sujeitos polticos na arena poltica brasileira, como as lideranas gays, lsbicas, travestis e transexuais 13 . O surgimento na dcada anterior da epidemia de Aids e das ongs Aids 14 , possibilitou que nos anos 90 muitas entidades do movimento homossexual inclussem entre suas atividades a preveno do hiv e a lgica de educa- o entre pares 15 . Este trabalho foi efetivamente fnanciado por diferentes instncias pblicas que subsidiaram a realizao destas atividades (em es- pecial o Ministrio da Sade, atravs do Programa Nacional de dst/Aids). Alm de contribuir para a emergncia deste novo modelo organizativo no cenrio nacional, a Aids propiciou uma discusso da sexualidade sem pre- cedentes, o que tambm favoreceu a emergncia de manifestaes polticas de sexualidades diversas da heterossexual. Reunido em torno de ongs lsbicas e a partir do trabalho de lideranas quase sempre forjadas no interior de outros movimentos (classistas e cul- turalistas), a partir da dcada de 1990, tornou-se possvel ao movimento de lsbicas e bissexuais, a obteno de fomento internacional e, sobretudo, a produo de uma estratgica interlocuo com o Estado, via Ministrio da Sade e secretarias estaduais e municipais de sade, em seus projetos de combate ao hiv/Aids. Especialmente o dilogo com o Programa Nacional de Combate Aids iniciado ainda na dcada de 1980, foi descrito pelas pr- prias ativistas do movimento de lsbicas e bissexuais como estratgico. A princpio, a ateno do referido programa foi devotada aos gays, bissexuais masculinos, travestis e mulheres transexuais mas, sobretudo por fora do empenho poltico da gestora federal Lair Guerra, as lsbicas foram em al- 12 Para o aprofundamento deste processo de transferncia de responsabilidades e o estmulo partici- pao da sociedade civil pelo Estado, ver Montao (2003). 13 Vianna & Lacerda (2004) apresentam como um marco importante da incorporao dos direitos hu- manos e da afrmao de direitos e polticas sexuais no Brasil os dois Programas Nacionais de Direitos Humanos (pndhs), o primeiro em 1996 e o segundo em 2002. 14 Sobre as ongs Aids, ver Silva (1998) e Zaquieu (2002). 15 A esse respeito ver Parker (2000). guma medida includas na discusso. O relato de diferentes ativistas algu- mas j organizadas em grupos autnomos o de que elas foram convida- das por aquela gestora federal para uma conversa. Da conversa resultaram os recursos fnanceiros para a organizao do primeiro Seminrio Nacional de Lsbicas (senale), no comeo da dcada de 1990 16 . O primeiro senale foi um marco fundamental na histria do movi- mento, pois nele as lideranas comearam a esboar um discurso comum e criou-se um campo de luta por uma poltica de sade sexual para lsbicas e bissexuais, at ento indito no Brasil. Este campo de discusso foi desen- cadeado, mesmo que na ausncia de uma literatura cientfca nacional que legitimasse cientifcamente a afrmao da vulnerabilidade lsbica. Para afrm-la, as ativistas pautaram-se na prpria experincia de militncia e nos relatos de vivncias coletados em ofcinas de discusso e preveno de dst. Algumas o fzeram tambm a partir da traduo e reproduo de li- teratura cientfca internacional (norte-americana, canadense e australiana principalmente) obtida a partir da conexo com grupos de ativistas estran- geiros. Comeou tambm naquele perodo a participao de mdicos/as, especialmente de ginecologistas, nas ongs lsbicas, em eventos, ou ainda estabelecendo convnios para o atendimento das participantes em consul- tas realizadas durante os eventos. O apoio dos programas de resposta a aids para as ongs lsbicas no se restringiu logstica dos Senales, viabilizou tambm, a partir deles a cons- tituio de fruns de debate e projetos educativos desenvolvidos por estas entidades. Por isso, em certa medida, possvel dizer que o Estado fomen- tou aquele movimento social 17 , invertendo o caminho mais comum da pro- duo de polticas sociais: nascem como resposta s necessidades sociais e acabam por se traduzir em polticas pblicas mais ou menos coerentes com as necessidades que lhes deram origem. Naquele contexto, o Estado deu uma importante contribuio na produo da necessidade social de incluso das lsbicas nas aes governamentais. A interlocuo do movimento de lsbicas/bissexuais com o Ministrio da Sade pela via da aids tornou-se mais ou menos constante ao longo de todos os governos da dcada de 1990 e dos anos 2000. Uma das formas que esta interlocuo tomou foi o trabalho do Grupo Matricial, formado por ativistas lsbicas e bissexuais de diferentes estados da Federao e por tcnicos da Coordenao do Ministrio. Aquele Grupo reuniu periodica- 16 Para o detalhamento deste processo, ver Almeida (op.cit). 17 Em seu novo formato, a partir de ongs lsbicas. 92 Guilherme Silva de Almeida 93 Impasses contemporneos do protagonismo lsbico: para alm da inverso da sigla mente ativistas e gestores durante alguns anos em Braslia e teve como re- sultado um conjunto de aes educativas na rea da preveno s doenas sexualmente transmissveis, embora de alcance quantitativa e qualitativa- mente limitado. Tais aes educativas foram principalmente a elaborao de folhetos, cartilhas e vdeos com instrues sobre sexo seguro entre mu- lheres e a distribuio por algumas ongs lsbicas de um kit de preveno (com preservativos masculinos, tesourinha e aparador de unhas, entre ou- tros acessrios que poderiam ser adaptados para uma prtica sexual mais segura entre mulheres 18 ). A interlocuo com o Ministrio da Sade, embora instigante pelo seu ineditismo, recebeu crticas em duas direes: pela modstia dos recursos econmicos dispensados (se comparados ao volume dispensado s orga- nizaes masculinas e a outros grupos). Uma segunda direo da crtica foi a preocupao do Matricial com a aids, mesmo sem estudos epidemio- lgicos que no contexto brasileiro investigassem o assunto. O formato da preveno proposta pelo Grupo Matricial tambm foi criticado, pois seria inadequado s especifcidades lsbicas. Ainda foi criticada a forma vital- cia da representao no Grupo Matricial pelas lideranas lsbicas: algumas ativistas teriam se benefciado apenas pessoalmente daquela insero pri- vilegiada. De qualquer forma, o movimento de lsbicas e bissexuais cresceu a par- tir da interlocuo com o Ministrio, adquirindo caractersticas prprias. Como parte destas caractersticas encontra-se a prtica das reunies con- fessionais ou da ajuda mtua, pela troca de experincias. Esta caracterstica propiciou o surgimento de aes um tanto tautolgicas no interior dos gru- pos: volta-se muitas vezes s mesmas discusses nos encontros promovi- dos, sem que ocorram encaminhamentos polticos de qualquer uma delas. A impresso que se tem no convvio dos grupos de lsbicas/bissexu- ais que seu potencial poltico passa prioritariamente pelo fortalecimento subjetivo dos indivduos, quase sempre pressionados por processos discri- minatrios nas famlias, nas relaes comunitrias ou em outros espaos, ou ainda, so pessoas movidas pelo desejo de entretenimento e de colises afetivo-sexuais. Em contextos assim, sobra pouco espao para aes po- lticas de mdio e longo prazo, j que a principal motivao a busca do conforto imediato das frequentadoras. 18 No consenso entre as prprias ativistas que o resultado do Grupo Matricial tenha sido satisfatrio, tanto em funo de sua limitada incidncia sobre a poltica de sade, quanto em funo da escassa distribuio do kit e da qualidade dos materiais que ele continha. O caminho dominante para garantir efccia s ongs lsbicas tem sido predominantemente a execuo de projetos com apoio fnanceiro de agn- cias de cooperao internacional e/ou de outras ongs, alm de fnanciamen- tos estatais circunstanciais. A lgica dos projetos mantm as organizaes, portanto, na dependncia dos recursos externos disponveis - abundantes ou escassos conforme a conjuntura econmica e poltica nacional e inter- nacional. Ela tambm acirra os mecanismos de competio entre os gru- pos e impe a necessidade de dar visibilidade aos trabalhos desenvolvidos, imprimindo a eles um certo pragmatismo expresso na preocupao com a qualifcao dos produtos e com a prestao de servios para o pblico- alvo 19 . Uma caracterstica forte da composio interna dos grupos e que trouxe conseqncias para a capacidade organizativa do movimento de lsbicas e bissexuais, que muitos tiveram sua origem num casal fundador, que agregava outros casais ou amigas para o empreendimento. Uma vez que a relao afetiva/sexual se esgotava (o que ocorria algumas vezes com rup- turas violentas), o grupo se dissolvia ou era fragilizado pela permanncia de apenas uma das integrantes do casal, que nem sempre estava preparada ou com condies de manter o grupo. Durante o trabalho de campo le- vado a termo na construo da tese, ouvi de uma das integrantes do casal fundador de um grupo extinto, que com a sada de sua ex-companheira e a sua do grupo, outras pessoas assumiram a liderana provisoriamente, mas no conseguiram mant-lo em atividade por muito tempo. A entrevistada a partir da sada, perdeu o controle sobre o destino do grupo, inclusive sobre o que foi feito do precioso acervo de cartas (algumas centenas) enviadas por lsbicas de todo o Brasil. As decorrncias polticas do casal fundador so potencializadas em funo do personalismo que marca o movimento. Muitas lideranas so carismticas e atraem de forma quase exclusiva para si os holofotes da causa, encarnando a identidade do grupo 20 . O personalismo visto por algumas ativistas como uma necessria com- pensao pelo nus decorrente tanto da constante exposio pblica a que so submetidas as lideranas quanto pelas difculdades inerentes posio de lder: constantes viagens, disponibilidade muitas vezes integral causa e prejuzo do tempo de lazer. 19Ver Gohn ( Ver Gohn (op.cit: 57-58) 20 O que ademais no uma caracterstica perceptvel apenas no movimento de lsbicas e bissexuais, mas pode ser observada no movimento homossexual, em alguns mbitos do feminismo e dos movi- mentos raciais. 94 Guilherme Silva de Almeida 95 Impasses contemporneos do protagonismo lsbico: para alm da inverso da sigla No entanto, o personalismo e a organizao interna dominante nas ongs no so um ponto pacfco, constituem ao invs disso, um ponto de tenso que s vezes afora de maneira abrupta nos eventos do movimento. Trata-se de um confito que, grosso modo, ope as militantes que partici- pam do movimento sem remunerao e as que participam como dirigentes e/ou parte do corpo tcnico das ongs, sendo remuneradas para o exerccio da militncia. Por este e por outros motivos existe rivalidade interna entre os grupos. Pairam no ar denncias de corrupo, bem como de promoo pessoal, de centralismo decisrio e autoritarismo nas relaes intragrupais. Foram tambm enunciadas pelas ativistas (embora como minoritrias) novas formas de organizao dos grupos, diversas do modelo do casal fun- dador. A construo de outros modelos passa todavia pela repactuao das relaes internas dos grupos numa direo mais democrtica, o que impli- ca em relaes menos hierrquicas entre a diretoria e a base. Reconhecendo pelo menos um destes elementos, o centralismo deci- srio, alguns grupos tm feito um esforo de, ofcialmente, alternar as fre- qentadoras nos cargos de direo, substituindo as lideranas mais antigas pelas mais jovens. Tambm este processo nem sempre se d tranqilamen- te: ocorrem por vezes rupturas das novas lideranas com a organizao, aps um perodo de embate com as antigas militantes. Novas lideranas s vezes ocupam o posto de direo ofcial, mas eventualmente sem poder de- cisrio de fato. Noutra direo, lideranas antigas no movimento queixam- se de no encontrar nas novas freqentadoras dos grupos, mulheres com perfl de liderana. A rivalidade entre os grupos (que s vezes transborda para um plano pessoal), no elimina um certo esprito de corpo entre eles: existe respeito entre as lideranas histricas, que se manifesta principalmente em mo- mentos em que se insinua um adversrio comum. A crise de um modelo possvel afrmar que a atualidade traz ao movimento de lsbicas e bissexuais um carter de expanso 21 . Contudo, preciso refetir sobre o al- cance desta expanso do movimento. O formato de ongs exclusivamente lsbicas baseadas na lgica de projetos, no casal fundador e na ajuda mtua, 21 Basta que se veja a crescente expresso pblica da participao das mulheres - lsbicas ou no - nas manifestaes anuais de rua do movimento lgbt. est em crise. Esta crise se expressa ao menos em dois nveis: o fnanceiro e o da reproduo interna. No plano fnanceiro, as ongs em geral experimentaram uma certa es- cassez das linhas de fnanciamento europias e norte-americanas, especial- mente do ano 2000 em diante. O recrudescimento de perspectivas con- servadoras no cenrio norte-americano que marcou a Era Bush, contribui para que especialmente as ongs que trabalhavam a sexualidade encontrem difculdades de sustentao fnanceira a partir destas fontes. A opo en- contrada pela maioria delas foi uma aproximao maior dos fnanciamen- tos estatais para execuo de projetos. Estes fnanciamentos so mais es- cassos e contribuem para um tenso e discutvel atrelamento poltico das organizaes dinmica estatal. Pode-se considerar que a irregularidade e a escassez destes fnanciamen- tos - que, no caso das ongs exclusivamente lsbicas quase um componen- te inalienvel da sua trajetria histrica - tambm tenha cooperado para que no haja no interior destas organizaes uma sufciente composio de quadros profssionais. Em contrapartida, estes so hoje indispensveis para que as ongs ocupem um lugar de conforto e de destaque na disputa por fnanciamentos em que necessariamente esto inscritas. Assim, no comum encontrar nas ongs lsbicas um corpo tcnico es- tvel, estabelecido a partir das regras do mercado de trabalho. Em tais or- ganizaes, o que prevalece a presena de voluntrias (que eventualmente tornam-se remuneradas) atradas por convergirem ideologicamente com a causa. Algumas vezes, estas voluntrias dispem de formao educacional superior e disponibilizam seus conhecimentos tcnicos para a construo e execuo de projetos, em geral de curta durao. Outras vezes, as volunt- rias tm nvel mdio, mas atuao prvia em outros movimentos sociais, o que lhes permite uma funcia no plano das relaes polticas que tambm disponibilizam s organizaes. Mas h as voluntrias que no dispem de formao tcnica ou poltica compatveis com as exigncias a que estas organizaes so submetidas e sua presena numerosa, no assegura a so- brevivncia do grupo. Especialmente esta ltima caracterstica, projeta algumas ongs lsbicas numa condio precria de sustentao. Os grupos mistos (formados con- comitantemente por gays, lsbicas, bissexuais, travestis, transexuais) pare- cem ter sido uma alternativa histrica encontrada pelas lsbicas e bissexu- ais para o enfrentamento desta fragilidade no aspecto da gesto dos grupos. 96 Guilherme Silva de Almeida 97 Impasses contemporneos do protagonismo lsbico: para alm da inverso da sigla Tal alternativa fnanceira e politicamente mais vivel (porque otimizadora do capital cultural e poltico de todas as letras da sigla) colide, entretanto, com a insatisfao das prprias freqentadoras dos grupos em dividirem o espao poltico e institucional com indivduos que se afrmam gays, bisse- xuais, travestis ou transexuais 22 . O impasse, portanto, persiste. No plano da reproduo interna dos grupos, ainda que hoje o casal fun- dador seja eventualmente posto de lado e grupos j sejam estruturados por redes de relacionamento no totalmente afetivo-sexuais, a lgica da ajuda mtua ainda permanece no centro de um paradoxo enunciado por ativistas mais antigas. Ela se manifesta sob a forma da partilha de situaes discri- minatrias, de debates sobre a produo poltica e cultural lsbica interna- cional (flmes, livros, revistas, festas) e atravs de festas que permitem es- truturar relacionamentos de amizade e/ou afetivo-sexuais. A ajuda mtua teve efccia poltica ao longo da histria do movimento, contribuindo para que os grupos pudessem surgir e se manter por algum tempo. Um dos limites da ajuda mtua, entretanto, que fndos alguns meses ou at anos, parece ser comum o esgotamento da frmula para garantir a atratividade do mesmo grupo e muito comum que quando isto acontece, o grupo se encerre ou entre numa fase de baixa freqncia e ausncia de novos quadros. A saturao da ajuda mtua no um problema se o desejo do movi- mento for manter-se em um permanente devir, mas se o desejo de muitas ativistas a estruturao de grupos e organizaes mais slidas e dura- douras, guiadas por um maior pragmatismo e continuidade nas frentes de luta estabelecidas, a ajuda mtua no d conta. Pelo contrrio, ela parece difcultar a inclinao de grupos que j tm uma trajetria mais longa em direo ao advocacy, uma prtica poltico-institucional com produtos po- lticos mais claros e objetivos. possvel observar que a chegada de novos membros (ansiosos por falarem de si e darem conta de suas questes exis- tenciais, que a dinmica da ajuda mtua refora), imprime aos grupos uma recorrente volta a temas que, embora possam ser signifcativos, permane- cem abordados de forma superfcial, subjetivista e sem que se converterem em ferramentas tcnicas e/ou polticas com objetivos claros. Em outras pa- lavras, no interior dos grupos, temas como discriminao, sade, sexo se- guro, violncia, religio, famlia, esto sempre em voga, mas evoluem com 22 Desde o tempo do Somos, as lsbicas reclamavam de uma certa hostilidade dos homens de qualquer orientao sexual no interior dos grupos mistos. Este foi o motivo inclusive que gerou a primeira rup- tura do Somos. muita difculdade para a forma de demandas e proposies. O paradoxo que a ajuda mtua foi e necessria sobrevivncia do grupo, mas esta lgica determina uma estrutura interna frgil e repelente das freqentadoras que procuram no apenas discutir suas questes subje- tivas e/ou buscar colises, mas realizar aes polticas efcazes. Pelos motivos brevemente discutidos, considero que o atual formato das ongs lsbicas vive uma crise. Todavia, considera-se que a efccia de um movimento social se mede tambm pelo seu impacto nas polticas pblicas. Pode-se afrmar a realizao de experincias regionais de ocupao dos es- paos pblicos por algumas lideranas lsbicas, em conselhos de sade, de educao, dos direitos da mulher e os fruns e cmaras tcnicas de sade da mulher. J ocorre o estabelecimento de parcerias com diferentes instncias estatais na execuo de projetos de treinamento de profssionais de sade e de educao para o enfrentamento do heterossexismo, o que tende a se am- pliar a partir da incorporao pelo Estado dos resultados das Conferncias lgbt realizadas no primeiro semestre de 2008. Cresceu no mbito legisla- tivo a aprovao de medidas de sade, previdencirias, educacionais, entre outras, destinadas garantia dos direitos da populao lgbt, assim como o esforo de alguns governos de traduzirem no nvel local o programa pbli- co Brasil sem Homofobia. No mbito judicirio, importantes conquistas tm sido obtidas e as lsbicas/bissexuais tambm tm sido protagonistas destes processos judiciais, organizadas em grupos ou no. Os impasses contemporneos Dada a crise do modelo que informa o movimento de lsbicas/bissexuais e que procuramos minimamente discutir acima, mas tendo em perspectiva a evidente e signifcativa ao poltica desse movimento, um conjunto de questes precisam ser refetidas e algumas delas tomam a forma de impasses. Quanto preveno de dst/Aids, j no possvel trat-la sem que haja mudanas no formato cotidiano das prticas de sade. No h como per- manecer na retrica de que lsbicas so mais avessas prtica do Papani- colaou e, por isso, correm mais risco de cncer cervical, se a qualidade da ateno dispensada nas unidades pblicas e privadas de sade no compatvel com o acolhimento efetivo deste pblico. necessrio ainda enfrentar com seriedade a escassez de pesquisas em sade sobre o adoe- cimento das lsbicas e bissexuais por dst/Aids no pas, que promovam a 98 Guilherme Silva de Almeida 99 Impasses contemporneos do protagonismo lsbico: para alm da inverso da sigla ultrapassagem das discusses espordicas e dos aforismos. Por outro lado, em tese desenvolvida em 2005, pude observar a neces- sidade de extrapolar o domnio da sade sexual quando o que se tem em mente o enfrentamento do heterossexismo dirigido s mulheres. Trata-se aqui de fomentar um campo de discusso sobre os efeitos da discriminao na conformao de outras expresses da vulnerabilidade em sade, mas isto difcil num contexto em que apenas a sade sexual fca em perspectiva. Para alm da poltica de sade, trata-se de enfrentar as assimetrias de poder aquisitivo e renda associadas subordinao econmica das mulhe- res, assim como os processos de desfliao e ruptura com as famlias e re- des de sustentao primrias, que muitas mulheres vivem em decorrncia da orientao sexual, com ou sem afrmao identitria. Neste sentido, h alguns anos, organizaes cariocas, por exemplo, tm realizado trabalhos no sistema penitencirio e em regies perifricas da cidade e surgem gru- pos em regies mais pobres do estado, como a Baixada Fluminense, mas, em contrapartida, durante a Conferncia Nacional lgbt surpreendeu a au- sncia de um espao de debate das propostas lgbt para a Poltica Nacional de Assistncia Social. Mediante a contestao de poucos indivduos, tais propostas foram relegadas ao grupo de trabalho e renda, o que foi um indi- cador da pouca importncia dada as mesmas pelo movimento. Um outro impasse digno de nota o que gira em torno da relao do movimento de lsbicas/bissexuais com os demais movimentos em defesa de sexualidades no-normativas as outras letras pois, se o movimento de autonomizao foi importante para questionar um certo totalitarismo gay presente desde os anos 70, ele tambm vem contribuindo para esgar- ar os vnculos de solidariedade entre as letras. O desafo colocado como reconhecer especifcidades e, simultaneamente, garantir a unidade da luta pela no-discriminao numa perspectiva plural? A estratgia de composio do movimento de lsbicas/bissexuais com o feminismo ocorreu e foi importante para ambos, mas esta proximidade por vezes vem acompanhada do aforismo um tanto ingnuo de que uma forte di- ferenciao expressa na gramtica corporal dos componentes de alguns pares lsbicos, necessariamente signifque assimetria de poder. Mais ingnua ainda a crena de que a existncia de uma esttica igualitria do casal de mulheres possa neutralizar por si s os efeitos danosos da suposta assimetria. Em certa medida associada a esta aproximao do movimento de ls- bicas/bissexuais com o feminismo, cresce o constrangimento pela existn- cia de lsbicas com uma gramtica corporal associada ao masculino, face crescente presso pelo modelo igualitrio de relacionamento 23 , mas no ocorrem discusses consistentes sobre os possveis signifcados da mascu- linizao/feminilizao nos espaos polticos do movimento. Como conse- qncia, sob a mesma rubrica, lsbica, so abrigados sujeitos que - talvez em ambientes polticos mais propcios ao debate - poderiam se identifcar de maneiras diversas, como butches, ladies, queer, fanchonas, sapatas, sapa- tilhas, bissexuais, homens transexuais e at (quem sabe?) mulheres t-lovers. desta maneira, restritiva a rubrica lsbica, por se fundar no achatamento de eventuais diferenas entre os sujeitos ou perceber tais diferenas como apenas cosmticas. Outro impasse digno de nota e que parte desta difculdade de cons- truo de uma cultura de acolhimento diversidade no prprio movimen- to de lsbicas brasileiro - a notria difculdade de incorporar as bissexuais tanto no interior dos grupos quanto nas demandas do movimento. Elas en- contram por vezes difculdades para simplesmente enunciarem seus pontos de vista nas discusses. A cultura de acolhimento das diferenas pressupe estudos e refexes que propiciem a este movimento um olhar sobre os marcadores sociais de diferenas, pois sabido que a classe social, o gnero, a gerao, a cor e a orientao sexual, recombinam-se de formas diversas, no operando de forma mecnica na histria dos indivduos e grupos, ainda que estes se apresentem sob a mesma inscrio identitria. A produo destes estudos colide ainda com uma forte resistncia cultural 24 produo de estudos sobre homossexualidade feminina que apenas nas ltimas dcadas come- ou a ser rompida por um pequeno nmero de pesquisadoras/es 25 , em sua maioria comprometidas com o movimento organizado. Sob outro prisma, um aspecto a ser ressaltado que o movimento de lsbicas/bissexuais, como outros movimentos sociais, enfrenta o dilema de ocupar a esfera pblica pela via da ao poltica, num contexto contempo- rneo em que o cidado ou cidad se exprime muito mais pelo uso do cpf (Cadastro de Pessoa Fsica) do que nos espaos tradicionais da poltica e 23 Para uma discusso de igualitarismo em dades femininas, ver Heilborn (2004) . 24 Em artigo de 1995, Carole Vance descreve a freqente desconfana que, mesmo no meio univer- sitrio, ronda os pesquisadores da sexualidade, difcultando os estudos neste campo. Os estudos da homossexualidade tornam-se assim agravantes deste preconceito. 25 Alguns pioneiros nacionais na construo de estudos acadmicos sobre homossexualidade feminina nas dcadas de 80 e 90 foram Daniel & Miccolis (1983), Mott (1987), Portinari (1988), Macrae (1990), Muniz (1992), Carvalho (1994) e Vargas (1995). 100 Guilherme Silva de Almeida 101 Impasses contemporneos do protagonismo lsbico: para alm da inverso da sigla trafega mais pela web do que nas ruas da cidade onde vive. Em outras pala- vras, trata-se do impasse de convidar ao poltica num contexto histrico em que a poltica esvaziada progressivamente de signifcado e em que as solues individualistas propostas pelo mercado so mais fortemente enfa- tizadas como via de acesso cidadania. Assim, permanece a questo: como forjar espaos polticos atraentes como os bares, as boites, as festas pagas ou o ciberespao? E ainda, como articular ajuda mtua e advocacy? Consideraes fnais Um dos fagrantes da Conferncia lgbt em Braslia foi que por fora do critrio de inscrio dos/as participantes a partir da identidade de gne- ro 26 , homens gays e bissexuais fcaram com 50% das vagas da Conferncia e mulheres, algumas travestis e transexuais femininas confnados na cota dos outros 50%. Tal questo foi discutida e aprovada em reunies preparatrias da Conferncia. Todavia, em reunio durante a Conferncia, algumas ati- vistas lsbicas e bissexuais presentes declararam seu repdio ao que consi- deraram uma manobra poltica dos gays, dada a disparidade numrica que a se desenhou entre as identidades de gnero. Sub-representadas, tudo o que as lsbicas/bissexuais conseguiram para reverter o processo, foi a inver- so da sigla no relatrio fnal. Outro episdio marcante da Conferncia Nacional foi a conquista da possibilidade de realizao de cirurgias de trangenitalizao nas unidades comuns do sus para as transexuais. Ela representou uma grande conquis- ta para o movimento lgbt, mas para as mulheres lsbicas e bissexuais foi tambm uma derrota, porque permaneceram excludos da possibilidade de realizao de cirurgias no sus, os homens transexuais. Apesar das cirurgias mais freqentemente requisitadas 27 por estes serem de fcil realizao nas unidades regulares do sus, como a mastectomia e a histerectomia, isso se- quer foi cogitado. uma perda poltica substantiva num momento em que no interior do movimento de lsbicas/bissexuais os homens transexuais 28 e 26 Feminino ou masculino. 27 O carter experimental da cirurgia de neofalo no tem sido alvo de qualquer questionamento no mbito das aes governamentais e do movimento, o que deveria ocorrer pelo menos incentivando-se pesquisas cientfcas sobre o assunto com recursos pblicos. Todavia, comum que os homens transe- xuais no faam do neofalo uma exigncia e tenham mais interesse na mastectomia, na histerectomia e na terapia hormonal. Para melhor compreenso desta questo, ver Bento (2006 e 2008). 28 Nascidos com genitlia feminina. at os homens travestis, comeam a se expressar 29 politicamente. Os episdios da Conferncia foram ilustrativos de que, tanto a dinmica interna do movimento lgbt, quanto a do movimento de lsbicas/bissexuais experimentam fortes tenses internas que precisam ser melhor avaliadas. Eles tambm contribuem para a discusso acerca de como vem se dando e vai se dar (a partir dos desdobramentos da Conferncia principalmente) a relao do movimento com o Estado brasileiro em suas diferentes instn- cias (federal, estadual e municipal). O Estado parece ter perdido, sobretudo a partir dos ltimos dez anos, o lugar de um interlocutor (para a maior parte do movimento lgbt) que pre- cisa ser interpelado, cobrado e controlado. Ele tem sido mais identifcado como fnanciador a ser atendido ou ainda, como aliado a ser preservado de qualquer crtica mais contundente. Alm disso, o reconhecimento da cida- dania lgbt precisa se manifestar no apenas no plano federal, mas na pos- tura cotidiana das secretarias estaduais e municipais de sade, educao, assistncia social, habitao etc, o que efetivamente no ocorre na maioria das cidades e estados brasileiros. Fica evidente que um dos pontos nevrl- gicos dessa conjuntura a relao com o Estado: possvel a assimilao das demandas sem perda da autonomia e sem descaracterizao? possvel interferir na dinmica das polticas pblicas sem a boa vontade dos gesto- res? possvel cooperar com as gestes sem se imiscuir? H, sem dvida, muitas possibilidades de avanos dos limites da cidadania lgbt a partir das proposies oriundas das Conferncias. Contudo, nesse contexto h tam- bm a necessidade de repensar rumos, demandas, relaes de poder internas, antagonismos, estratgias polticas e mesmo a dimenso deste movimento, a partir de suas bases. O enfrentamento crtico da relao com o Estado pode contribuir para aes mais efetivas do movimento e do prprio Estado. Este enfrentamento crtico da ao do prprio movimento de mulhe- res lsbicas e bissexuais pode contribuir para o crescimento quantitativo e qualitativo deste brao do movimento lgbt, para que nele ocorra de fato maior diversidade interna e maior efccia poltica. Isto pode contribuir para que o papel das mulheres nos movimentos em defesa das sexualidades no-normativas se traduza cada vez mais em algo menos simblico e mais efetivo do que a inverso das letras da sigla. 29 Alguns homens transexuais e travestis se apresentaram em encontro articulado na Conferncia que reuniu lsbicas e bissexuais. E outros, embora participassem da Conferncia optaram por no participar da reunio de mulheres. recente a veiculao de um instigante documentrio produzido por Mrcia Cabral, integrante de um grupo de lsbicas negras paulista sob o ttulo Eu sou homem, onde quatro homens transexuais brasileiros falam de suas vidas. 102 Guilherme Silva de Almeida 103 Impasses contemporneos do protagonismo lsbico: para alm da inverso da sigla Referncias Bibliogrfcas ALMEIDA, G. E. S. Da invisibilidade vulnerabilidade: percursos do corpo lsbico na cena brasileira face possibilidade de infeco por DST e Aids. Tese (Doutorado em Sade Coletiva), Instituto de Me- dicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2005. APPADURAI, A. Disjuno e diferena na economia cultural global. In: FEATHERSTONE, M. (org). Cultura global: nacionalismo, globalizao e modernidade. 3. ed. Petrpolis, Vozes, 1999. BENTO, B. 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No entanto, um questionamento feito quase ao fnal da fala do pesquisador, tcnico governamental e ex-ativista colocou-o em posio absolutamente oposta do ativista que falara antes dele e gerou polmica na platia: ser que o mesmo pensar polticas de preveno para gays e para bichas ou para lsbicas e sapates? Embora o tcnico e pesquisador talvez aludisse apenas diferenas rela- cionadas a gnero incorporadas nestas classifcaes, gostaria de tomar esta oportunidade como espao para aprofundar um pouco a refexo tecida naquela ocasio, explicitando um pouco mais as relaes entre diversidade 1 As pesquisas (facchini, 2005; 2008) que deram origem a este texto contaram com apoio do cnpq. Adota-se como conveno neste artigo que todas as categorias micas, sejam oriundas do vocabulrio do movimento, das polticas pblicas ou de gays, lsbicas, bissexuais, travestis ou transexuais entre- vistados para pesquisas especfcas, sero grafadas em itlico. As aspas so reservadas para citaes, conceitos e categorias aproximativas utilizadas pela autora. 2 Doutora em Cincias Sociais pela Unicamp. Pesquisadora do Ncleo de Estudos de Gnero Pagu e professora colaboradora do Programa de Doutorado em Cincias Sociais, ambos da Unicamp. 106 Regina Facchini 107 Polticas para lsbicas e para sapates: diversidade, diferenas e o enfrentamento ao heterossexismo e diferena no sentido de contribuir para o debate acerca das estratgias polticas contemporneas de enfrentamento ao heterossexismo no Brasil. Esta fala pretende, portanto, tomar em considerao a diversidade con- tida no que se convencionou chamar de populao lsbica ou de lesbianida- des. Para tanto, retoma o contexto em que se insere a relao entre Estado e movimentos sociais no Brasil ps-redemocratizao, situando a produ- o de polticas focalizadas com base em questes relacionadas s (homo) sexualidades e, em particular, s lesbianidades, passando a uma refexo sobre diversidade baseada em resultados de minha pesquisa de doutorado e composta por dois eixos. O primeiro diz respeito produo de diferena no interior do conjunto de sujeitos que poderiam se identifcar ou ser iden- tifcados a partir de uma noo de lesbianidades. O segundo diz respeito s estratgias cotidianamente mobilizadas pelos sujeitos pesquisados para fazer algo daquilo que lhes parece ter sido feito deles. No que diz respeito refexo sobre diversidade e sobre processos de produo da diferena, o material analisado proveniente de observao etnogrfca e entrevistas semi-estruturadas com mulheres que tm relaes ertico-afetivas com outras mulheres 3 , moradoras da Grande So Paulo, com idades entre 18 e 50 anos. Esse material foi produzido para minha pes- quisa de doutorado, incluindo observaes e entrevistas realizadas entre 2003 e 2008. A anlise considera: 1) a produo da diferena na distribuio dos sujeitos em espaos de sociabilidade, bem como na distribuio desses lugares na geografa poltica da cidade; 2) a produo de diferenas nas con- 3 O uso de tal referncia para identifcar o objeto emprico desta pesquisa procurou evitar os proble- mas relativos possibilidade de descompasso entre comportamentos e identidades sexuais, garantir a maior diversidade possvel na composio do conjunto de entrevistas e possibilitar que a questo mais complexa da identidade, sua relao com as prticas e seu impacto sobre o problema estudado pudesse ser compreendida a partir da perspectiva dos sujeitos sob estudo. Todavia, trata-se de uso instrumental e atento ao risco atribudo idia de hsh (homens que fazem sexo com homens): dissolver a questo da no-correspondncia entre desejos, prticas e identidades numa formulao que recria a categoria universal homem com base na suposta estabilidade fundante do sexo biolgico (carrara e simes, 2007, p. 94 - nota 35). Essa referncia s prticas/comportamento no sentido de conduta (gagnon, 2006) foi escolhida ainda levando em conta o uso que se tem feito da noo de homossexualidade na reivindicao de direitos e na defnio de polticas pblicas, tomando por base o sexo assignado ao nascer. Manter essa referncia para a busca de colaboradoras e, ao mesmo tempo, tomar por foco ana- ltico as categorias de classifcao que emergiram do campo, tambm um modo de dialogar com as tenses polticas apresentadas neste artigo. Embora este no seja um trabalho sobre transexualidade, o caso de colaborares/as da pesquisa que se identifcaram a partir de categorias como sapato, travesti, homem trans, general me ensinou lies prticas sobre a necessidade de pensar a subjetividade como algo sempre em processo (brah, 2006). Mas, principalmente, que preciso considerar que o fato de ter sido identifcada no nascimento como algum do sexo feminino no exclui uma srie de variaes nas performances e nas identifcaes relacionadas a gnero ao longo da vida. Assim, ainda que tenha entrado na pesquisa como descritivo do sexo biolgico, o termo mulher sempre opera sob rasura neste texto (hall, 2000). venes produzidas no discurso sobre sexualidade e desejo; 3) as estratgias de manejo de convenes sociais estigmatizantes. A perspectiva que orienta a anlise enfatiza as interseces entre diver- sos marcadores sociais de diferena, tais como classe, gnero, sexualidade, gerao e cor/raa. Procuro evitar o reducionismo de fazer derivar todas as diferenas de uma nica instncia determinante (brah, 2006), consideran- do que cada marcador no remete a um campo distinto de experincia, iso- lado ou justaposto a outros, mas que existe concretamente em e atravs de relaes com cada um dos outros (mcclintock, 1995). A anlise do mate- rial leva em conta a operacionalizao do conceito de interseccionalidade 4
pela idia de diferena como categoria analtica, tomando diferena de modo no essencial, mas como categoria que remete designao de ou- tros (brah, 2006, p. 331). Desse modo, os marcadores sociais de diferena no so pressupostos, mas considerados a partir do modo como aparecem nos discursos e situaes observados durante a pesquisa de campo. Em tempos de lesbofobia: polticas focalizadas, segmentos e especifci- dades O processo recente de redemocratizao, que se desdobra nos ltimos 30 anos no Brasil, tem implicado uma mudana substancial na relao entre Estado e movimentos sociais, bem como na forma de operar polticas p- blicas no pas. A partir do incio dos anos 1980, surgem as primeiras polti- cas focalizadas para mulheres e aprofunda-se um processo de participao do movimento social no processo de formulao, implementao e contro- le de polticas pblicas (farah, 2004). Processos igualmente complexos, envolvendo uma gama diversa de atores polticos em mbito nacional e internacional, se desenvolveram em relao a outros sujeitos polticos ou segmentos populacionais a partir dos anos 1990. Assim, vemos surgir na agenda poltica brasileira as primeiras refern- cias ao que, no incio deste sculo, seriam as aes afrmativas com foco em questes como a reduo das desigualdades de gnero, o combate ao racismo e as polticas de juventude. Recentemente, assiste-se a um processo de multiplicao de sujeitos polticos no campo dos movimentos sociais, 4 Avtar Brah e Ann Phoenix (2004) defnem o conceito de interseccionalidade como designando os efeitos complexos, irredutveis, variados e variveis que se seguem quando mltiplos eixos de dife- renciao econmicos, polticos, culturais, psquicos, subjetivos e experienciais se intersectam em contextos histricos especfcos. 108 Regina Facchini 109 Polticas para lsbicas e para sapates: diversidade, diferenas e o enfrentamento ao heterossexismo acompanhado no campo das polticas pblicas por uma focalizao da fo- calizao, associada ao uso de expresses como populaes mais vulner- veis. Esse contexto mais amplo compe o pano de fundo a partir do qual se colocam as questes trabalhadas nesta exposio. Os anos 1990 assistiram a um crescimento da preocupao com a ques- to da sexualidade, inclusive no campo acadmico (vance, 1995; piscitelli et al, 2004). No mbito poltico, o processo de construo e legitimao da noo de direitos sexuais 5 , iniciado na primeira metade dessa dcada, cumpre um importante papel na insero da sexualidade na agenda poltica internacional. No cenrio nacional, nesse mesmo perodo, a organizao de uma resposta coletiva epidemia do hiv/Aids e o reforescimento do movi- mento homossexual propiciam a emergncia de propostas relacionadas a uma visibilidade positiva das homossexualidades e um processo de segmentao de sujeitos polticos do movimento (facchini, 2005; frana, 2006). Embora mulheres que se identifcam como lsbicas tenham estado pre- sentes desde as primeiras iniciativas do movimento homossexual no Brasil (no fnal dos anos de 1970) e os primeiros grupos exclusivos tenham se formado a partir de 1980, o termo lsbicas passa a fgurar no nome do mo- vimento apenas a partir de 1993, com o vii Encontro Brasileiro de Lsbicas e Homossexuais (facchini, 2005). Ao analisar essa trajetria, Gulherme Almeida (2005) descreve o drama de um movimento social que, apesar de afrmar sua especifcidade e autonomia em relao ao movimento lgbt 6 e ao movimento feminista, mantm, com tais atores, mltiplas e oscilantes relaes de dependncia no que toca sustentabilidade poltica, organiza- cional e fnanceira de suas aes. Almeida sublinha, ainda, um processo recente de entrada desse sujei- to coletivo na agenda poltica brasileira. Nesse processo, a afrmao das especifcidades tomou por referncia a idia de um corpo lsbico e suas demandas no campo da sade, sobretudo no que diz respeito possibili- dade de infeco por dst e Aids, delineando um caminho que conduzia da invisibilidade afrmao da vulnerabilidade, em um contexto marcado pela feminizao e pela pauperizao da epidemia do hiv/Aids. Embora 5 Tal noo construda e politicamente legitimada no processo de realizao da Conferncia Inter- nacional de Populao e Desenvolvimento, realizada no Cairo em 1994, e da iv Conferncia Mundial sobre a Mulher, em Pequim, em 1995. 6 Refro-me aqui a movimento lgbt (que, na formulao recentemente aprovada na i Conferncia Na- cional glbt, realizada em Braslia de 05 a 08 de junho de 2008, refere-se a um movimento de lsbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais) para frisar a tendncia segmentao e explicitao de diferen- as que tem se aprofundado nesse movimento desde a dcada de 1990. Para maiores informaes sobre o incio desse processo, ver Facchini (2005). intrinsecamente relacionada necessidade de ampliar a visibilidade de uma identidade lsbica e de suas especifcidades (almeida, 2005), essa constru- o de um corpo lsbico no pode ser compreendida sem a referncia a um processo de focalizao de polticas pblicas, a partir do qual so criados programas, coordenadorias e conselhos voltados para lgbt, para diversidade sexual ou para o combate homofobia nos diferentes nveis de governo no Brasil. Nos ltimos anos, na esteira da maior insero do Brasil nos debates in- ternacionais sobre Direitos Humanos, a temtica lgbt passa a ser abordada para alm dos limites do tema sade. Se em 1996, o termo homossexualida- de aparece pela primeira vez num documento do Governo Federal, o Plano Nacional de Direitos Humanos (pndh), aps a participao da delegao brasileira na Conferncia Mundial contra o Racismo, Discriminao Ra- cial, Intolerncia e Discriminao Correlata (durban, 2001) que se d a insero formal de lgbt nas polticas brasileiras de promoo dos direitos humanos (daniliauskas, 2009; facchini, 2009). Esse processo faz com que os espaos de interlocuo entre movimento de lsbicas e Estado venham se multiplicado, com a criao da Secretaria Especial de Polticas para as Mulheres (spm), o processo de construo do Plano Nacional de Polticas para as Mulheres (pnpm) e o Programa Brasil Sem Homofobia, na Secretaria Especial dos Diretos Humanos (sedh). Em princpio, lsbicas aparecem na maior parte das vezes como mais uma das categorias que integram a sigla glbt, um sujeito poltico complexo sobre o qual os discursos oscilam entre consider-lo como um todo relativamente homogneo ou enfatizar a existncia de especifcidades que nem sempre so enunciadas. As excees dizem respeito a demandas relacionadas a sade e a violncia, setores em que se reconhece especifcidades das lsbicas (Conse- lho Nacional de Combate Discriminao, 2004). Para alm da ampliao de espaos de interlocuo entre movimento e Estado, verifcam-se, tambm, mudanas no discurso de gestores pblicos e de ativistas. Entre os gestores, embora se fale em populaes ou segmentos populacionais o que poderia sugerir que lhes seja atribuda certa homoge- neidade , o uso de noes como transversalidade e intersetorialidade tem possibilitado pensar numa diversidade de sujeitos e de demandas em cada uma dessas supostas unidades. Na prtica, nota-se que aes realizadas no mbito do Programa Brasil Sem Homofobia procuram fexibilizar a pers- pectiva essencializante e universalizante de um segmento, buscando inter- locuo com questes como raa e gerao ou mesmo criando categorias 110 Regina Facchini 111 Polticas para lsbicas e para sapates: diversidade, diferenas e o enfrentamento ao heterossexismo como contextos de vulnerabilidade, a fm de deslocar a nfase nas categorias descritivas de comportamentos ou identidades sexuais para os contextos que geram vulnerabilidade individual, social ou programtica. Sob impacto da crescente porosidade na relao entre Estado e movi- mento social (facchini; frana, 2009), conceitos como contextos de vul- nerabilidade acabam sendo traduzidos na prtica (muitas vezes, a partir de polticas implementadas por meio de editais atendidos pelas organiza- es do prprio movimento) como gays ou lsbicas pobres, adolescentes ou negros(as). Nesse contexto, noes como vulnerabilidade e transversalidade so reinterpretadas e tm seu sentido disputado por atores do movimento lgbt. Assim, a noo de vulnerabilidade, muitas vezes tomada de modo essencial, como se o que torna vulnervel fosse inerente a caractersticas de dado grupo populacional e no a uma articulao entre nveis indivi- duais, sociais e programticos. A noo de transversalidade, por sua vez, freqentemente tomada a partir de uma operao que sobrepe segmentos e soma opresses, num processo que remete a tenses na interpretao de interseccionalidade. Introduzida no vocabulrio poltico a partir da Conferncia de Durban, a noo de interseccionalidade remete tanto idia de articulaes entre a discriminao de gnero, a homofobia, o racismo e a explorao de classe (blackwell; naber, 2002) como de sobreposio ou soma entre opres- ses mltiplas que podem ser identifcadas em sujeitos especfcos, como o caso das lsbicas negras ou de adolescentes lsbicas. No encontro com a tendncia especifcao e segmentao de sujeitos polticos e com a n- fase nas especifcidades, noes como interseccionalidade e transversalidade ganham, no movimento, o sentido de sobreposio ou soma de opresses particulares e estanques. Enquanto as polticas pblicas tm operado a partir de um equilbrio tnue entre focalizao e garantia de transversalidade, ativistas parecem operar uma focalizao da focalizao, que agravada pelos processos de disputa por hegemonia poltica e pelas lutas por reconhecimento e por se fazer visvel nas prprias demandas do movimento 7 . Os debates por ocasio 7 Embora uma entidade nacional que articulasse aes do movimento fosse uma demanda antiga, o formato implicado na abglt (Associao Brasileira de Lsbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transe- xuais, fundada em 1995) contou desde o incio com objees. Assim, embora tenha construdo um lugar hegemnico no movimento, essa hegemonia faz parte de um equilbrio instvel. A partir de 2000, h um processo de multiplicao de redes nacionais. poca da realizao da Conferncia Nacional lgbt, fo- ram listadas as seguintes redes nacionais: a Articulao de Travestis, Transexuais e Transgneros (antra), criada em 2000; a Liga Brasileira de Lsbicas (lbl), criada em 2003; a Articulao Brasileira de Lsbicas (abl), criada em 2004; o Coletivo Nacional de Transexuais (cnt) e a Rede Afro-lgbt, criadas em 2005; da Conferncia Nacional glbt (Braslia, junho de 2008) revelam alguns dos impactos referentes ao modo como o movimento vem se movendo en- tre diferentes discursos. Na elaborao do regimento interno, defniu-se que a delegao de cada estado deveria contar com no mnimo, 50% de pessoas com identidade de gnero feminina (mulheres, lsbicas, bissexuais, transexuais e travestis) (brasil. Secretaria Especial de Direitos Humanos, 2008a, p. 11). Esse pro- cedimento foi defendido como estratgia para tentar conter a fragmenta- o do movimento e em suposta ateno inferiorizao e invisibilida- de a que est submetido historicamente o feminino, e obteve aprovao na comisso organizadora composta, entre outros, por vrias redes ativistas nacionais. No entanto, boa parte das mulheres e das travestis no enten- deram a medida como positiva. A realizao da Conferncia foi recortada por processos de demanda pelo reconhecimento de especifcidades, a ponto de categorias particulares para nomear a fonte da opresso que atinge cada um dos segmentos terem sido cunhadas. Assim, falou-se em lesbofobia e transfobia (brasil. Secretaria Especial de Direitos Humanos, 2008b), mas j h distines entre transfobia e travestifobia, a expresso gayfobia j vem sendo usada em alguns meios, enquanto em outros se fala em gay-lesbo- transfobia, ou em lgbtfobia 8 . A comunidade por dentro: diversidade e produo de diferenas e desi- gualdades Na trajetria acima descrita, passou-se de homossexuais uma comunidade imaginada como separada e oprimida por uma sociedade descrita muitas vezes como mundo heterossexual para um conjunto complexo de sujeitos polticos que procuram lidar com essa pluralidade e se afrmar como sujei- tos de direitos e integrantes da comunidade mais ampla, composta pelos ci- dados brasileiros (anderson, 2008). Nenhuma dessas duas comunidades o Coletivo Nacional de Lsbicas Negras Feministas Autnomas (Candace), criado em 2007; o E-Jovem, que tem se articulado desde 2001; e a Associao Brasileira de Gays (abragay), fundada em 2005. Todas as redes atualmente existentes esto implicadas numa delicada trama que envolve no apenas o reconhecimento de especifcidades, como relaes polticas que estabelecem quem pode falar em nome do movimento, ou de que parcelas dele, em qual momento. 8 A especifcao de fontes de opresso a partir de identidades polticas legitimadas no movimento como lesbofobia ou transfobia tem sido criticada tanto por se confgurar como um atalho falho para descrever a dinmica da violncia (junqueira, 2007) quanto por reduzir a inteligibilidade das deman- das do movimento para aqueles/as que no so ativistas e no acompanham o cotidiano do movimento lgbt (facchini, 2009). 112 Regina Facchini 113 Polticas para lsbicas e para sapates: diversidade, diferenas e o enfrentamento ao heterossexismo pode atualmente ser imaginada como algo homogneo e esse um fato com o qual tanto o Estado quanto o movimento procuram lidar. A seguir tomo um recorte as lsbicas desse sujeito poltico complexo os/as lgbt e procuro situar processos cotidianos de produo de diferena e, por vezes de desigualdades que devem ser pensados ao falarmos em lesbianidades e em diversidade. A observao dos locais de sociabilidade freqentados por mulheres que gostam de outras mulheres na cidade de So Paulo permitiu entrever diferenciaes de classe e gerao atuando na organizao espacial do cir- cuito de lazer comercial paulistano. A observao desses estabelecimentos comerciais de lazer e sociabilidade, cotejada com as falas das entrevistadas sobre seus itinerrios e sobre os lugares que freqentam, apontou para o modo como diferenas so produzidas na constituio de lugares nes- se circuito. Assim, delinearam-se duas reas, que se encontram em locais situados de modo distinto na geografa poltica da cidade (centro velho x bairros de classe mdia). Na regio central, mais desvalorizada e prxima ao que Nstor Perlon- gher (1987) qualifcou como bocas, o pblico freqentador de pele mais escura e mais pobre e as parcerias heterogmicas so mais freqentes do que nos estabelecimentos situados nos bairros de classe mdia. Uma anli- se mais detida revelou relaes entre diferenciaes de classe e: 1) o modo como sujeitos mais claros ou mais escuros se distribuem nesses espaos; 2) estilizaes corporais adotadas por mulheres de pele mais clara e mais escura nos diferentes lugares. Permitiu perceber, ainda, confguraes es- pecfcas no modo como classe e gerao se intersectam com gnero na produo de sujeitos e de corpos desejveis em determinados lugares. Nas entrevistas, as mulheres manejam um enorme e, muitas vezes, con- traditrio repertrio social, a partir do qual procuram compreender e si- tuar suas prticas e opinies para si mesmas e para seus interlocutores. O material privilegiado para a anlise neste item focaliza: 1) o modo como os sujeitos constituem a experincia nas situaes de entrevista; e, 2) as cate- gorias mobilizadas nos discursos em que se enuncia identidades e produz outros. Na anlise que se segue, as categorias classifcatrias so tomadas como vias de acesso s convenes sociais mobilizadas pelos sujeitos e so cotejadas com as relaes sociais referidas no decorrer das entrevistas. Uma primeira observao quanto s classifcaes, diz respeito ao fato de que os termos socialmente mais difundidos, tais como lsbica e homosse- xual, so percebidos a partir de signifcados que remetem ao estigma do- ena, coisa errada ou a uma fonte distante e no mnimo suspeita forma- lidade, politicamente correto, muito cientfco. Termos micos e estratgias de re-signifcao de termos correntes, no entanto, circulam atravs de re- des de sociabilidade especfcas e sem grande poder de difuso. O modo como as classifcaes se distribuem varia signifcativamente com relao a classe e a gerao, marcadores que tambm se relacionam com a maneira como as entrevistadas percebem suas trajetrias, prticas e desejos sexuais com homens e/ou com mulheres e com o modo como lidam com o estigma. Os maiores contrastes aparecem ao compararmos mulheres acima de 30 anos de estratos populares e mulheres com menos de 30 anos de estratos mdios e mdios altos. Entre as mais velhas de estratos populares, entendida a categoria mais usada e, diferente do que ocorre em outras faixas de idade ou estratos sociais, no se usa termos especfcos para designar mulheres que tm ou tiveram sexo com homens. Entre as mais jovens de estratos mdios ou mdios altos, ganham espao estratgias de valorizao e afrmao daquilo que estigmatizado, como no caso do uso de termos como dyke ou sapato (entre as minas do rock), sapa (corrente entre jovens de estratos mdios) e a auto-classifcao como bissexual, alm da recusa de rtulos, (especialmente entre parte das modernas). A popularizao da categoria entendida coincide com o que parece ser seu quase banimento do estrato social que lhe deu origem (os estratos mdios e mdio-altos), onde deu lugar a outras que se multiplicam. Essa multiplicao parece ocorrer a partir da lgica de diferenciao apontada por Fry (1982), na qual categorias de referncia sexualidade so tomadas como linguagem para a expresso de outras diferenas. Ao nos debruarmos sobre as categorias invocadas com a fnalidade de diferenciao ou de acusao e dirigidas a outras mulheres que gostam de mulheres, percebe-se que, ainda que entendam sua prpria sexualidade como no condenvel, as entrevistadas tendem a estabelecer limites entre a ordem e o que conformaria seu exterior constitutivo 9 , existindo certas regularidades no modo como so traados. Alguns desses limites, como a masculinizao e a bissexualidade remetem ambigidade, sendo investi- dos de poderes e associados a noes de risco e perigo (douglas, 1976). Por outro lado, as questes invocadas na atribuio de poderes ou riscos remetem s convenes do prprio grupo que as invoca mobilizando um 9 A idia de um exterior constitutivo em relao ordem ou a uma norma aparece em Butler (2002), mas, como lembram Carrara e Simes (2007), j estava presente em Douglas (1976). 114 Regina Facchini 115 Polticas para lsbicas e para sapates: diversidade, diferenas e o enfrentamento ao heterossexismo campo de questes que geram tenso: classe; atributos de gnero; atividade e passividade; ter sexo exclusivamente com mulheres ou no; e ocultar ou demonstrar socialmente suas preferncias homoerticas. Ao falar em tensores libidinais, Perlongher (1987) nos lembra que os mesmos eixos em torno dos quais se estabelecem diferenciaes sociais gnero, sexualidade, idade, raa, classe tambm orientam o desejo. Nessa direo, apesar de classe e gerao orientarem a distribuio espacial dos sujeitos no circuito e estarem relacionadas ao modo como as categorias se distribuem no conjunto de entrevistadas, so pouco referidas quando se fala de desejo. As expectativas relacionadas a relaes homogmicas e/ ou igualitrias so expressas atravs de idias como trocar experincias e ter interesses parecidos e a resistncia a diferenas geracionais aparece mar- cada pelas idias de maturidade e interesse numa relao mais estvel. H poucas referncias a questes raciais: na auto-classifcao, h uma tendn- cia ao branqueamento, exceto entre as jovens negras de estratos mdios e mdio-altos, e na referncia a parceiras desejveis h um silncio quase absoluto sobre o assunto, apontando para relaes onde cor/raa parece se combinar com outros marcadores sociais, assim como com a habilidade em se integrar a estilos e padres de beleza na constituio de diferenas racializadas. A feminilidade referida na maior parte das vezes como algo natural, por oposio masculinizao, citada sempre como algo que se agrega a uma suposta natureza , alm de muito mencionada nas falas so- bre a preferncia por potenciais parceiras, indica a importncia que ques- tes relacionadas a gnero assumem. A nfase na feminilidade x masculinizao indica ainda a importncia que questes relacionadas a gnero assumem tanto na constituio da iden- tidade por meio das vrias formulaes de uma questo vrias vezes re- petida: afnal, que mulher sou eu que gosta de transar outras mulheres? quanto na proliferao de categorias e estilos numa gradao que vai da perua sapato. Se gnero j era uma questo antes da popularizao da distino entre homo e heterossexualidade, produzindo sapates e mulhe- res, fanchonas e ladies, com a popularizao de convenes que dissociam gnero e sexualidade 10 , gnero parece assumir o lugar a partir do qual ou- tras diferenciaes so inscritas nas falas a respeito de sexualidade. 10 Edward MacRae (1990) e Guilherme Almeida (2005) apontam a rejeio da masculinizao como estratgia adotada por militantes lsbicas em dois diferentes momentos histricos, no fnal dos anos 1970 e no comeo do sculo xxi. Atitude, discrio e respeito: diferenas e diversidade no manejo de estigmas Para alm da produo da diferena no espao da cidade e na designao de outros nas falas acerca de sexualidade e desejo, a pesquisa realizada identifcou diversas estratgias no manejo de convenes sociais estigmati- zantes. Na anlise do material, o cotejo entre as categorias de classifcao mobilizadas pelas mulheres e seus relatos acerca da relao com familiares e amigos levou s categorias atitude, discrio e respeito. Cada uma dessas categorias foi predominantemente encontrada em conjuntos de entrevis- tadas que variam em termos de estrato social e gerao, mas tambm de convenes acerca de gnero e de sexualidade. Essas categorias e variaes so exploradas a seguir a partir de situaes de campo. Vamos primeira delas. cena 1: LadyFest Brasil, festival anual produzido por uma cena cultural juvenil composta pelas minas do rock: garotas entre 14 e 29 anos, de estratos mdios ou mdios altos, predominantemente brancas, que se consideram feministas e freqentam um circui- to de lazer relacionado ao rock, localizado em vias como a rua Augusta, que interligam o centro aos bairros de classe mdia. Es- truturada de modo a confrontar o machismo no meio do rock, a cena das minas do rock passou a visibilizar cada vez mais as dykes: garotas que compartilham com as outras a necessidade de respon- der presso por tornarem-se sujeitos viveis de sua cor e classe, mas que o fazem a partir do fato de gostarem de outras mulheres. Show de encerramento do LadyFest 2007 no Outs, regio da rua Augusta, resenha do site underground Banana Mecnica 11 : Luzes baixas, quatro meninas entram no palco. Posicionam- se lado a lado, de costas, l no meio. A msica comea, com di- reito a clipe no telo. Elas se viram. Playbacko na veia. Abro um vinho / mas no tenho / um porqu para brindar / A sua taa con- tinua vazia, entoa uma das vocalistas, Kerby. Dykes 4ever a pri- meira boyband assumidamente dyke. Todos os esteretipos dos fenmenos pop masculinos da dcada passada esto l: a tnica, a bela, a romntica e a whigga. Estrofes aucaradas e muita pose. 11 schimidt, Fernanda. Dykes 4ever. Disponvel em: <http://www.bananamecanica.com.br/conteudo/ index.php?op=ViewArticle&articleId=816&blogId=3>. Acesso em: 23.out.2007. 116 Regina Facchini 117 Polticas para lsbicas e para sapates: diversidade, diferenas e o enfrentamento ao heterossexismo [...] Muitas risadas do pblico, passos ensaiadinhos do grupo. A letra digna de qualquer hit nacional. [...] O repertrio do grupo composto apenas pela cano apresentada no Ladyfest, Voc para mim, escrita por Joey C e que teve clipe veiculado na mtv. O encerramento do festival foi rpido. Durante os trs minutos e pouco da msica, braos estavam para o alto, com algumas fs pedindo a ateno de sua integrante favorita e acompanhando parte do refro-chiclete. Ao fm, as quatro receberam os aplausos juntinhas em pose postada na beira do palco. Nada mais pop. Numa comunidade do Orkut, discute-se o vdeo e o show do Dykes 4ever: Garota 1 posta: Que conjunto ruim da porra!!!! srio!!! No pelo fato de sermos lsbicas q temos q ser tapadas e no perceber quando a msica e as cantoras dessa turma ai ser um lixo! Porra! Como desafnam!! E a msica??!!! Cafonerrima! Fora de tom!!! Letras imbecis!!! Gente !!! E akela integrante q uma caricatura de rapper??!!!! Gesticulando igual aos negres americanos! Rid- cula! Quer imitar um homem, faam como eu: imitem um me- treossexual como David Beckham, ao invs de pegar o pior mo- delo (rappers, Waldick Soriano, Agnaldo Timteo, Jece Valado, Reginaldo Rossi, os caminhoneiros, enfm, esse tipo de homem desengonado e desprovido de sensualidade e q nehuma mulher mais t afm!)! Vams lutar pra classe lsbica ser melhor represen- tada, gente!!! Ai, Brasil, quando irs pra frente???? Garota 2 (que tambm integrante da banda, embora com codi- nome) posta: hahahahaha elas so minhas amigas? acho que a tapada aqui vc. o mais legal que vc pensa que isso de verdade. querida, no consegue entender uma piada? da onde vc surgiu? Garota 2 posta novamente: dyke david beckham. hahaha adorei. t gatinha na fta. Garota 3 (amiga e parceira em outra banda da garota 2 e de outras integrantes do Dykes 4ever) posta: Opa David, e a bele? Olha, peguei pra mim oq vc deixou no orkut das minhas amigas,no por querer defender ningum, pq se fosse defender algum te- ria que ser voc, mas por achar que voc no est percebendo o quo toska e preconceituosa est sendo. O que voc chama de classe lsbica? oq vc est tentando provar, e para quem? No por que somos lsbicas,gays,travestis, oq for, que temos que se- guir um modelinho estipulado/sistematizado no. E viu, crticas so sempre muito importantes quando a pessoa na qual as esto colocando sabe do que est falando, seno vira uma piadinha sem gra-a. S mais uma coisa, pq voc acha que David Beckham melhor do que qualquer nego americano,como vc colocou? Por ele ser branquinho, se fazer de bonzinho pra mdia? Isso achei bizarro. Uma pessoa que sofre preconceito, to preconceituosa.. uma pena. Enfm, esto a nossas diferenas e os porques de eu e minhas amigas no sermos da mesma classe que voc,e sendo to gays quanto heim.. Se encontra gata. Bota essa sua energia, essa sua atitude e vontade de falar, em algo construtivo. Falou. Para as jovens 2 e 3, central a atitude irreverente: a banda foi cria- da apenas para compor uma nica msica e veicular um vdeo na mtv. A piada interna funciona como uma pardia reveladora: um grupo de ga- rotas revisita as masculinidades das boybands e expe o suposto carter no-marcado das masculinidades e sua fxao necessria aos corpos de homens. A atitude as diferencia. O desconforto da garota que questiona a banda vem de uma crtica de outra ordem: a associao entre ser lsbica e ter atributos associados masculinidade: agressividade, machismo, voraci- dade sexual. Ambas lutam contra convenes acerca de gnero e sexualida- de que estabelecem relaes problemticas entre lesbianidade e ser mulher ou feminina. As armas, porm, so distintas. O posicionamento da garota que critica a banda a aproxima de outras mulheres que conheci em campo e de outra cena vivida. Vamos a ela. cena 2: Atividade de comemorao da semana da Visibilidade Lsbica, roda de conversa sobre direitos das lsbicas num esta- belecimento comercial da regio central, agosto de 2007. Numa mesa extensa, estavam reunidos casais de mulheres, um casal de amigas que eram ex-namoradas, uma solteira com um amigo gay, ativistas da Associao da Parada, tcnicas da Coordenado- ria da Diversidade Sexual e o casal de donas do estabelecimento. Conversamos sobre uma variedade de assuntos, mas o que gerou maior discusso foi o tema famlia. 118 Regina Facchini 119 Polticas para lsbicas e para sapates: diversidade, diferenas e o enfrentamento ao heterossexismo Havia ali vrias mulheres de estratos mdio-baixos e basica- mente duas situaes. A primeira, a de um casal de meia idade cujas integrantes vivem cada uma na casa dos seus pais e tentam conciliar, com sofrimento e sob chantagens emocionais e amea- as, o relacionamento afetivo-sexual e a relao com a famlia de origem. Vale salientar o quanto a luta de uma delas para preservar a guarda dos flhos, questionada judicialmente pelo ex-marido, colaborou para que obtivesse maior respeito junto aos pais. A segunda situao envolve duas amigas que so ex-namo- radas. Entre elas, se desenrola todo um jogo de seduo, que en- volve forte apelo emocional: de um lado, ouvir sobre as brigas da ex com sua namorada atual e confort-la nas difculdades de ad- ministrar a vivncia de relaes afetivo-sexuais e a vida familiar; de outro: vai saber o que pode acontecer, quem sabe a gente no volta a fcar junto mesmo. Os confitos familiares so acentuados por algum, provavelmente outra mulher de suas relaes ou das relaes de sua atual namorada, que liga para a casa da me e os alimenta, denunciando anonimamente a suposta condio de pegadora da garota. A partir desse contexto de uma sexualidade vigiada, que desvela prti- cas, a discrio se impe como possibilidade de vivncia dos desejos e afetos e entrecruza marcadores de gnero, classe e gerao, de modo que pode-se estabelecer uma comparao com as jovens de estratos mdios. Entre estas ltimas, individualidade e privacidade parecem ser valores no mbito fa- miliar e a homossexualidade aparece articulada pelos familiares como um lugar social mais prximo da normalidade: o relato a respeito da sexuali- dade foi em geral melhor aceito pelos pais do que elas esperavam e, quando havia difculdades, foi comum a situao dos pais buscarem como suporte um terapeuta. Isso, sem dvidas, remete a mudanas na homossexualidade como lugar social. No entanto, para a maior parte das outras mulheres da pesquisa, h bem pouca privacidade e autonomia. Para a maioria das mulheres que acessei, essa situao manejada, tanto pelos pais (especialmente mes) quanto pelas entrevistadas, a par- tir da discrio. O tipo de relaes sociais estabelecidas com suas famlias de origem, com o ambiente de trabalho e com outros espaos sociais no marcados pela homossexualidade se caracteriza, na maior parte das vezes, menos pelo rompimento do que pelo desejo de aceitao e manuteno da convivncia. Por outro lado, as relaes ertico-afetivas com outras mulhe- res so mantidas num campo restrito aos locais de freqncia homossexual e ao grupo de amigas ou amigos que compartilham os desejos e prticas homoerticos. O prprio crculo de parceiras potenciais tambm restrito, de modo que muito comum boa parte das mulheres de um determinado crculo de amigas j terem tido algum tipo de relacionamento amoroso ou ertico entre si. A discrio crucial tanto para mulheres adultas de estratos mdios quanto para as jovens e adultas de estratos mdio-baixos e para as jovens de estratos populares que recusam relaes com as muito masculinizadas. Es- sas mulheres so grande parte daquelas que puderam ser vistas circulando pelos bares e boates e as responsveis pela maior parte das entrevistas desta pesquisa. Boa parte das convenes e dinmicas que eu e outros autores temos encontrado nas pesquisas sobre lesbianidades 12 pode ser associada crucialidade da discrio: as crticas s masculinizadas, a valorizao de parceiras discretas e femininas, o romantismo e os dramas e situaes vio- lentas na ocasio da separao. Convenes que prescindem da discrio foram analisadas entre as jo- vens modernas e minas do rock. A, o estilo apareceu como operador de diferenas a partir do qual, ao mesmo tempo, se estabelecem distines de classe e gerao e se do dilogos e/ou disputas entre as duas cenas, a das modernas e das minas do rock, em torno da melhor maneira de encontrar um lugar no gnero que no seja marcado pela discrio ou pela hiper- feminilidade. Outras convenes que prescindem da discrio vm dos arranjos cons- trudos por mulheres mais pobres e de pele mais escura, que residem nos bairros mais afastados do centro, e que, muitas vezes, ainda tm a possibi- lidade de falar de si mesmas apropriada por parentes ou vizinhos. Nesses casos, o tom acusatrio por meio do qual so apontadas ameaa at-las ao estigma de sapato e implica um rduo processo de produo de si como sujeitos viveis. Para elas, muitas vezes vistas como a encarnao da abjeo que faz coincidir masculinizao e atividade sexual num corpo assignado como fe- minino, no se trata de autonomia, discrio ou, em geral, de rompimentos mais duradouros com a famlia. A necessidade, a solidariedade e o respeito 12 Nessa literatura, ver especialmente: Muniz (1992); Aquino (1995); Heilborn (2004); Almeida (2005); Meinerz (2005); Souza (2005). 120 Regina Facchini 121 Polticas para lsbicas e para sapates: diversidade, diferenas e o enfrentamento ao heterossexismo fazem com que os laos familiares sejam de algum modo rearticulados. A inteligibilidade local conquistada por meio: 1) da formao de casais a partir da diferena entre performances de gnero e, 2) da materializao dos corpos a partir de convenes que citam a heterossexualidade, mas tambm a deslocam. O respeito conquistado a partir de rgidas distines entre pblico e privado. Materializaes marcadas por performances de gnero radicalmente distintas podem no ser conscientes e intencionais, mas sem dvida cons- tituem espao para a agncia dessas mulheres quando olhadas em conjunto com outras estratgias, como a separao entre casadas e solteiras, a criao de grupos de casadas e o respeito s regras. Por meio dessa relativa rigidez e num cenrio marcado por pobreza, violncia e famlias respeitveis, essa parafernlia que permite fazer algo a respeito do que tem sido feito delas, a partir do lugar que ocupam na interseco entre marcadores de classe, cor/raa, gnero, gerao e sexualidade. Inteligveis e respeitosas, garan- tem, no espao do bairro, a possibilidade de vivenciar seus desejos sem maiores atribulaes. Atitude, discrio e respeito emergem aqui como categorias que reme- tem a diferentes modos pelos quais sujeitos situados em dadas posies em relaes sociais de poder marcadas por eixos de diferenciao como classe, raa, gerao, gnero e sexualidade procuram agir, ou, dito de outro modo, maneiras pelas quais as mulheres acessadas em minha pesquisa procuram fazer algo daquilo que lhes parece ter sido feito delas. O combate ao heterossexismo: para seguir pensando Iniciei este texto fazendo referncia s polticas focalizadas. O olhar sobre o processo poltico remete a um processo de fortalecimento de lsbicas como sujeito poltico que se ampara na delimitao de especifcidades ao mesmo tempo em que instado a reconhecer e delimitar especifcidades na espe- cifcidade. Assinalei o fato de que esse processo se d, muitas vezes, a partir de uma operao de soma de opresses, que justape sujeitos polticos e as tenses entre os atores envolvidos no processo de elaborao, imple- mentao e controle de polticas pblicas, que tm lugar quando a lgica de afrmao identitria de sujeitos polticos no considerada. No entanto, aps a breve incurso pelo material de campo produzido a partir da cidade de So Paulo, levando em conta o fato de que termos como dyke, sapa, feminina, perua, caminhoneira, bofnho, ladynha emer- gem como mais do que grias locais ou vocabulrios especfcos de grupos, remetendo a processos de diferenciao que mobilizam outros marcadores sociais de diferena, gostaria de retomar aqui a incmoda questo referida no incio desta apresentao: o mesmo pensar polticas para lsbicas e para sapates? O material apresentado apontou que a circulao dessas mulheres pelo espao da cidade e mesmo a atribuio de categorias de classifcao re- metem a processos de diferenciao que mobilizam marcadores sociais de diferena, especialmente classe e idade, por vezes compondo determinados estilos a partir da combinao com itens de vesturio, esttica corporal, msica e ideologias polticas. Imbricadas com diferenciaes de classe e gnero, as diferenas de cor/raa seguem de modo silencioso, aparecen- do menos no discurso do que na delimitao de lugares e estilos. No caso das mais jovens, entre as de estratos mdios e mdios altos em especial, as categorias parecem referir diferenciaes de classe e gerao e disputas intraclasse entre diferentes estilos e seu potencial de responder s mais di- ferentes demandas em torno de uma questo explcita ou implicitamente formulada acerca de que tipo de mulher gosta ou pode gostar de outras mulheres. O impacto de mudanas na homossexualidade como lugar social se faz sentir nas relaes estabelecidas entre as jovens entrevistadas de estratos mdios e seus familiares: como vimos, a maior parte das garotas relatou aos pais suas preferncias por parceiras do mesmo sexo e teve um acolhi- mento, em geral, melhor do que o esperado por elas. No entanto, para as mulheres mais velhas de estratos mdios, para todas as de estratos mdios baixos e para algumas das jovens de estratos populares, a discrio continua a ser crucial para compatibilizar seus desejos e prticas erticas e relaes com familiares e com o mercado de trabalho. Nos bairros mais afastados do centro, encontramos mulheres mais pobres e de pele mais escura, que, muitas vezes, ainda tm a possibilidade de falar de si mesmas apropriada por parentes ou vizinhos. Nesses casos, o tom acusatrio por meio do qual so apontadas ameaa at-las ao estigma e implica um rduo processo de produo de si como sujeitos viveis que implica evitar rompimentos com a famlia de origem e com as pessoas no bairro, o que se operacionaliza por meio de uma srie de rgidas distines entre masculinas e femininas, casa- das e solteiras, pblico e privado. O contexto scio-poltico que descrevi no comeo desta fala remete s 122 Regina Facchini 123 Polticas para lsbicas e para sapates: diversidade, diferenas e o enfrentamento ao heterossexismo refexes tecidas por Brah (2006) acerca das relaes entre feminismo ne- gro e feminismo branco na Gr-Bretanha da dcada de 1980: Comeava a surgir dentro do movimento das mulheres como um todo uma nfase na poltica da identidade. Em lugar de embarcar na tarefa complexa, mas necessria, de identifcar as especifci- dades de opresses particulares, entendendo suas interconexes com outras formas de opresso, e construir uma poltica de soli- dariedade, algumas mulheres comeavam a diferenciar essas es- pecifcidades em hierarquias de opresso. Supunha-se que o mero ato de nomear-se como membro de um grupo oprimido confe- risse autoridade moral. Opresses mltiplas passaram a ser vistas no em termos de seus padres de articulao, mas como ele- mentos separados que podiam ser adicionados de maneira line- ar, de tal modo que, quanto mais opresses uma mulher pudesse listar, maior sua reivindicao a ocupar uma posio moral mais elevada. Afrmaes sobre a autenticidade da experincia pessoal podiam ser apresentadas como se fossem uma diretriz no pro- blemtica para o entendimento de processos de subordinao e dominao. Declaraes farisaicas de correo poltica passaram a substituir a anlise poltica. (brah, 2006: 348-9) Os debates e impasses polticos acerca da articulao entre igualdades e diferenas, bem como a multiplicidade de categorias observada nos locais de sociabilidade e lazer e na composio do sujeito poltico do movimento e as diferentes formas de manejo das convenes sociais estigmatizantes parecem, no entanto, permitir a aproximao entre a refexo aqui reali- zada e algumas das anlises elaboradas por tericas feministas que se de- pararam com processos semelhantes em outros contextos (butler, 2003; brah, 2006; haraway, 2004). Confrontadas pela crtica levada a cabo por negras, lsbicas e mulheres de diferentes origens tnicas e nacionais uni- versalidade do sujeito a mulher e noo de uma mesma opresso com- partilhada, tericas feministas tm gerado refexes que talvez possam se somar a esta nossa, no que concerne aos desafos colocados para ativistas, tcnicos, gestores e pesquisadores no que diz respeito ao combate ao hete- rossexismo. Uma primeira contribuio segue no sentido de desnaturalizar a con- cepo de que os sujeitos polticos apenas descrevem essncias previamen- te dadas e de reconhecer que todo e qualquer sujeito poltico construdo a partir de contextos especfcos e de excluses (butler, 2003, 1998; brah, 2006; haraway, 2004). No se trata de refutar a utilizao de categorias que faam referncia ao sujeito do movimento, visto que so necessrias ao poltica: manifestaes, esforos legislativos ou por acesso a polticas pblicas precisam fazer reivindicaes em nome de sujeitos determinados. Trata-se, ao contrrio, de manter um olhar atento s possibilidade e limites que se colocam no processo cotidiano de trazer dado sujeito poltico e suas demandas ao espao pblico. Para tanto, necessrio reconhecer o carter estratgico de possveis essencializaes no interior de processos polticos, bem como as excluses e apagamentos a partir dos quais se constituem os sujeitos coletivos enunciados. Desse modo, as categorias que fazem refern- cia ao sujeito poltico do movimento poderiam ser tomados como termos sempre abertos a novas incluses, acolhendo novas e diferentes demandas e questionando arranjos hierrquicos. Uma segunda contribuio, por sua vez, ressalta a necessidade de com- preender como se articulam diferentes eixos de diferenciao social e fon- tes de desigualdades, reconhecendo que o poder e as desigualdades no se articulam necessariamente por meio de operaes de soma (brah: 2006, haraway: 2004). Isso implica pensar que comunidades ou segmentos no so homogneos, mas atravessados por vrias outras comunidades. Implica ainda que diferenas no sejam concebidas de modo essencial e estanque. No se trata de contestar o sentimento de fraternidade ou a necessidade po- ltica de agrupar ou visibilizar sujeitos que se pensam como gays, lsbicas, bissexuais, travestis ou transexuais. Trata-se, antes, de enfatizar as essenciali- zaes e simplifcaes estratgicas que implicam na enunciao poltica de uma comunidade. Toda e qualquer fraternidade enunciada pode, a qualquer momento e a partir de necessidades igualmente legtimas para os que a deli- mitam, ser reconstruda em termos de outros eixos de diferenciao. Ao fnal desta refexo, a estratgia poltica que opera a partir da mul- tiplicao e da soma de sujeitos e de opresses parece implicar riscos que remetem tanto fragmentao quanto ao enfraquecimento poltico das aes em favor dos direitos sexuais e de sua compreenso como direitos humanos. Reconhecer as motivaes polticas que fazem falar numa comu- nidade e nome-la de determinado modo, e as excluses implicadas nesse processo, bem como as interseces entre diversos eixos de diferenciao social, talvez seja um caminho para que sujeitos polticos e polticas pbli- 124 Regina Facchini 125 Polticas para lsbicas e para sapates: diversidade, diferenas e o enfrentamento ao heterossexismo cas possam abranger um conjunto mais amplo de sujeitos e considerar as variadas fontes de vulnerabilidade a que esto expostos. O combate ao heterossexismo provavelmente seja mais efcaz se levar- mos em conta a diversidade presente na comunidade representada pelo sujeito poltico do movimento e o modo como o prprio heterossexismo se constitui na interseco com outras desigualdades sociais. Desse modo, talvez se descortinem possibilidades de atuao que no faam com que as diversas causas e lutas sejam hierarquizadas ou encasteladas nelas mesmas ou que sujeitos polticos especfcos sejam fragilizados pelo isolamento ou por disputas internas ao sujeito poltico. Assim, talvez seja possvel passar da soma de sujeitos e opresses que se faz acompanhar por uma poltica de identidade, no movimento social, e pela focalizao da focalizao, no campo das polticas pblicas a uma poltica de solidariedade e ao enfrentamento de vulnerabilidades contextualizadas. Referncias Bibliogrfcas ALMEIDA, G. da S. Da invisibilidade vulnerabilidade: percursos do corpo lsbico na cena brasileira face possibilidade da infeco por DST e Aids. Tese (Doutorado em Sade Coletiva) Instituto de Medicina Social, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005. ANDERSON, B. Comunidades imaginadas: refexes sobre a origem e a difuso do nacionalismo. So Paulo: Companhia das Letras, 2008. AQUINO, L. O. R. 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Ao mesmo tempo em que situarei o ativismo glbt na vanguarda dos movimentos sociais em relao a uma agenda para a polcia e a segurana pblica, procurarei identifcar o que parecem ser os principais dilemas e desafos na dcada atual. Sade e segurana pblica: diferentes mundos Em 1999 acompanhei, na Subsecretaria de Segurana e Cidadania do Rio de Janeiro, os primeiros esforos de organizaes do movimento homossexual, de lideranas do movimento negro, de ativistas ambientais e do movimento de crianas e adolescentes para infuenciar polticas de segurana. Verif- quei ento um contraste extraordinrio entre as difculdades de dilogo de 1 Parte dos argumentos deste artigo foi desenvolvida por mim e por Sergio Carrara em A constituio da problemtica da violncia contra homossexuais: a articulao entre ativismo e academia na elabora- o de polticas pblicas, Physis, Revista de Sade Coletiva, Rio de Janeiro, 16(2):185-205, 2006. 2 Doutora em Cincias, coordenadora do Centro de Estudos de Segurana e Cidadania da Universidade Candido Mendes. 128 Silvia Ramos 129 Respostas do movimento glbt homofobia e a agenda da segurana pblica ativistas de movimentos sociais e autoridades policiais e as dinmicas que eu havia acompanhado, quinze anos antes, quando organizaes da socie- dade civil procuravam infuenciar as respostas governamentais no incio da epidemia de Aids. Como se no pertencesse mesma cidade ou ao mesmo pas, o pano- rama na segurana pblica distinguia-se fortemente do cenrio da sade. Do lado desta, autoridades e funcionrios de secretarias e programas do ministrio, ainda que nos primeiros anos da democratizao, isto , na pri- meira metade da dcada de 1980, pareciam considerar rotineiro receber, dialogar e freqentemente confrontar-se com atores sociais to distin- tos como lideranas homossexuais, feministas, hemoflicos, empresrios, dirigentes de organizaes no-governamentais e jornalistas. Do lado da segurana, mesmo que j estivssemos no ltimo ano da dcada de 1990, encontravam-se gestores e policiais sem qualquer experincia ou memria de dilogo com movimentos sociais organizados. Os ativistas, por sua vez, no tinham uma agenda clara de reivindicaes para a segurana pblica. A distncia de comandantes da polcia militar e de delegados da polcia civil em relao aos movimentos sociais era to marcante que freqente- mente a primeira barreira era lingstica: palavras como homossexual ou negro podiam ser to chocantes na esfera da segurana que no eram pronunciadas por desconhecimento sobre seu eventual carter ofensivo e sobre suas diferenas quanto aos termos de uso rotineiro nas polcias para se referirem a estes grupos. A mera presena, no mesmo espao fsico em dependncias da secretaria ou em batalhes de polcia de representantes do movimento gay e lsbico e, especialmente de travestis, constitua novi- dade to extravagante que o fato em si transformava-se em signo de uma nova era na segurana (soares, 2000). 3 Tambm se verifcavam, ainda que em menores propores, difculdades de dilogo de gestores de segu- rana com empresrios, lderes comunitrios e profssionais dos meios de comunicao. Do lado dos ativistas, predominava o desconhecimento sobre atribui- es, patentes hierrquicas, jarges e o cotidiano de batalhes e delegacias. Para a maioria das lideranas sociais, aquelas experincias constituam a primeira visita a dependncias policiais. Ali as barreiras eram tambm 3 Soares (2000:167-175) faz descrio pormenorizada da inaugurao do Disque Defesa Homossexual (ddh) na Secretaria de Segurana Pblica do Rio de Janeiro, em julho de 1999, sobre as aulas proferidas por lideranas do movimento homossexual na sede da Polcia Civil e no qg (Quartel General) da Pol- cia Militar e sobre a visita de travestis ao 5
bpm (Batalho de Polcia Militar), em abril de 2000.
lingsticas, 4 mas no apenas. De fato, antes de formularem demandas e um programa mnimo de trabalho conjunto em centros de referncia que seriam criados na Secretaria de Segurana, era necessrio ultrapassar um doloroso inventrio de cicatrizes: lideranas do movimento homossexu- al ou do movimento negro listavam, uma aps outra, histrias passadas, em geral terrveis, sobre o tratamento dispensado por policiais, como evi- dncias de que entre aqueles grupos o dilogo no seria possvel. E, assim, centros de referncia, como o Centro de Referncia contra Discriminaes a Homossexuais, o Centro de Referncia contra o racismo, o Centro de re- ferncia de Proteo Ambiental, foram se construindo passo a passo e se tornaram experincias marcantes para os militantes daqueles movimentos, ainda que sua histria tenha sido breve (ramos, 2002). Em extremo contraste com o cenrio encontrado em 1999, alguns anos depois, em abril de 2007, presenciei a realizao no Rio de Janeiro o I Semi- nrio Nacional de Segurana Pblica e Combate Homofobia. O encontro reuniu cerca de 100 ativistas, 82 policiais civis e militares das 27 unidades da Federao, 45 representantes de centros de referncia de combate homo- fobia, 25 representantes de universidades e 30 representantes dos governos federal, estaduais e municipais. O objetivo do encontro, segundo seus orga- nizadores, foi a troca de experincias que vm sendo implementadas nos estados e a construo coletiva de diretrizes para a criao do Plano Nacio- nal de Segurana Pblica para o Enfrentamento da Homofobia. O semin- rio foi organizado em torno de cinco eixos temticos, entre eles, formao policial, experincias policiais e comunitrias de preveno da homofobia, modelos de investigao e registro de crimes, monitoramento, avaliao e controle social de polticas de segurana contra a homofobia. O evento foi organizado por duas ongs do movimento homossexual do Rio de Janeiro, com o apoio institucional da abglt 5 e o fnanciamento de duas secretarias do Ministrio da Justia, a Secretaria Especial de Direitos Humanos (sedh) e a Secretaria Nacional de Segurana Pblica (senasp). A iniciativa surpreendeu pelo foco muito preciso nos temas da segu- rana e da polcia, por seu mtodo de preparao, que incluiu consultas e refexes prvias sobre os tpicos que comporiam o Plano Nacional de Segurana Pblica para o Enfrentamento da Homofobia e pelo cuidado com a abrangncia e a representatividade, com ativistas e policiais selecio- 4 Como parte da populao, muitos tinham o hbito de dirigir-se a policiais como seu guarda, expres- so que agentes da lei deploram. 5 Associao Brasileira de Gays, Lsbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais. 130 Silvia Ramos 131 Respostas do movimento glbt homofobia e a agenda da segurana pblica nados de todo o pas. O encontro tambm foi pensado como um momento de vivncia, porque a maior parte dos ativistas teria a primeira experin- cia de dilogo e interao com policiais durante dois dias, e vice-versa. De fato, houve cenas marcantes, por exemplo, quando um policial, delegado de polcia civil, declarou que pela primeira vez dizia publicamente que era gay. O impacto do encontro e sua potencial importncia foi sublinhada por lideranas do movimento e por gestores. Cludio Nascimento, da abglt, resumiu: Fizemos histria com esse seminrio. Foi muito rico saber da existncia de diversas experincias de ativistas e policiais no combate homofobia de que sequer tnhamos conhecimento. Ricardo Balestreri, Se- cretrio da Secretaria Nacional de Segurana Pblica, considerou que o evento vai entrar para a histria da Segurana Pblica e dos Direitos Hu- manos no Brasil como o ponto de partida para a construo de polticas pblicas de combate homofobia [...] vai contribuir para a mudana da cultura policial [...] e ser um marco do processo civilizatrio brasileiro (www.arco-iris.org.br). O tema da violncia e o movimento homossexual Desde os anos 1980, a violncia contra homossexuais tem representado um tema central para o ativismo e, progressivamente, tambm para governos e para a mdia. A denncia de agresses e discriminaes motivadas pela orientao sexual ou sexualidade passou a ser marco importante para a trajetria do movimento homossexual brasileiro, que divulgou a expresso homofobia para caracterizar esse tipo de violncia. De fato, o tema da violncia foi estruturante para a constituio de ou- tras matrizes de identidades coletivas no Brasil, como ocorreu com o movi- mento de mulheres no fnal dos anos 70, que elegeu quem ama no mata como uma de suas bandeiras e defniu a criao das Delegacias Especiali- zadas de Atendimento Mulher como uma de suas primeiras demandas. 6
Processo semelhante ocorreu com o movimento negro, que estabeleceu o racismo e sua criminalizao 7 como a principal trincheira de luta nos anos 80 e 90. Nos trs casos, as violncias especfcas violncia de gnero, racismo e homofobia aparecem como ncoras a partir das quais outras 6 Para uma periodizao do movimento de mulheres no Brasil, ver Schumaher & BraziL (2000). 7 Essa estratgia levou ao desenvolvimento de programas de atendimento de casos de violncia racial por meio dos programas do tipo Disque-racismo em vrias cidades brasileiras. Para uma discusso das legislaes anti-racismo no Brasil, ver Telles (2003). reivindicaes se estruturam e, sobretudo, se legitimam. Entre as mais importantes fontes de informao sobre violncia contra homossexuais, destacam-se trs iniciativas distintas, que analisarei a seguir. Os dossis sobre assassinatos de homossexuais pelo Grupo Gay da Bahia, a partir da dcada de 1980, a criao do banco de dados do Disque Defesa Homossexual em 1999, no Rio de Janeiro, a investigao sobre processos penais sobre assassinatos de homossexuais, tambm no Rio de Janeiro e, fnalmente, os surveys de vitimizao realizados nas paradas do orgulho glbt, a partir de 2003. Representaes da violncia: os dossis do Grupo Gay da Bahia Criado em 1980, o Grupo Gay da Bahia antecipou o modelo que seria ado- tado pela maioria das organizaes homossexuais na dcada seguinte. Jun- tamente com o grupo Tringulo Rosa, do Rio de Janeiro, o ggb buscava uma militncia mais pragmtica, voltada para a conquista de direitos e a denncia de violncias, e j preocupada com o grau de institucionalidade dos grupos (cmara 2002, facchini 2005). No caso do ggb, isto signi- fcou a providncia de registro legal e a busca do reconhecimento como instituio de utilidade pblica. Segundo seu fundador, o antroplogo e ativista Luiz Mott, desde 1980, o ggb passou a arquivar informaes sobre violncia contra homossexuais, tendo reunido o registro documentado de assassinatos onde explcita ou indiretamente, o motivo da morte foi a con- dio homossexual da vtima 8 (mott, 2002). Esses registros, formados na sua grande maioria por notcias publicadas em jornais e secundariamente por comunicao de militantes 9 , foram divulgados por meio de dossis que se tornaram clebres e permitiram conhecer e denunciar crimes violentos contra homossexuais, principalmente a partir dos anos 1990. Em grande medida, as denncias sistemticas de assassinatos de homossexuais estimu- ladas pelo ggb ajudaram a romper o silncio sobre o assunto e permitiram que, em 1988, quando do assassinato do diretor teatral Luiz Antnio Mar- tinez Correa, no Rio de Janeiro, os grandes jornais passassem a utilizar a expresso assassinatos de homossexuais para problematizar e reconhecer a existncia de um tipo de crime que, at ento tendia a ser noticiado 8 O relatrio Assassinatos de homossexuais no Brasil: 2005, publicado no site do ggb, somava 2511 vtimas entre 1980 e 2005. (www.ggb.org.br). 9 Em 2001, dos 132 assassinatos registrados pelo ggb, 76% tinham tido como fonte os jornais; 15% a internet e 9% informaes orais, televiso ou cartas enviadas entidade. (mott, 2002, p. 56). 132 Silvia Ramos 133 Respostas do movimento glbt homofobia e a agenda da segurana pblica como episdios isolados (lacerda, 2006). Na ocasio, comeam tambm a aparecer nas pginas dos jornais as vozes de ativistas de grupos homos- sexuais, como autores de interpretaes sobre a natureza especfca dessa violncia. Ao mesmo tempo, artistas e personalidades identifcadas como porta-vozes dos homossexuais aparecem denunciando que o preconceito contra homossexuais explicaria o pouco interesse na investigao dos ca- sos pela polcia. Lacerda (2006), em seu estudo baseado em jornais cariocas de 1980 a 2000, observa que em 1992 aparece pela primeira vez a expresso homofobia, no jornal O Globo, para designar horror ao homossexual (p. 107). Na segunda metade dos anos 90, a divulgao de estatsticas, pelo ggb e pelo Grupo Atob, fundado em 1985, no Rio de Janeiro, torna-se freqente e vem acompanhando sistematicamente a divulgao de novos casos de assassinatos. A preocupao com a elaborao de um arquivo e a divulgao de re- latrios 10 contabilizando casos de assassinatos de homossexuais contribuiu fortemente para estabelecer uma das prioridades da agenda do movimento, a denncia da violncia contra homossexuais e da homofobia. Contudo, a abordagem predominantemente sensacionalista da imprensa, especial- mente durante a dcada de 1980 e em parte da dcada de 1990, favoreceu uma viso parcial da vitimizao de homossexuais que muitas vezes tendia a confrmar at mesmo para o prprio movimento representaes vigentes sobre a homossexualidade, nas quais a tragdia era, de alguma forma, efeito de fraquezas morais e de escolhas das prprias vtimas. Es- sas representaes eram particularmente fortes no caso das vtimas serem travestis e no caso de assassinatos de homossexuais de classe mdia por garotos de programa. A nfase na violncia letal, a exposio de cadveres e a reiterao da tragdia consumada pode ter contribudo para afastar, at o fnal dos anos 1990, o ativismo homossexual de uma postura mais propositiva sobre a te- mtica da violncia. 11 Diferentemente do movimento de mulheres que nos fnal dos 70 e na dcada de 80 elaborou uma agenda com a demanda pela criao de delegacias policiais especializadas, entre outras reivindicaes , o movimento homossexual permaneceu at fns dos anos 90 na perspectiva da denncia, afrmando uma representao dos homossexuais como vti- mas de uma violncia que no podiam evitar. Tambm notvel o contras- 10 Entre eles Mott (1999), Mott & Cerqueira (2001) e Mott et al. (2002). 11 Uma reao defensiva da militncia pode ter sido ainda mais acentuada pelo fato de o ativismo se constituir predominantemente por segmentos mdios e pelo fato de travestis e transexuais aparecerem tardiamente como atores polticos e sociais no movimento. te entre a postura predominantemente passiva no campo de propostas para a segurana pblica e justia e o vigor dos discursos, demandas e prticas que o ativismo homossexual produziu na rea da sade. A criatividade, a irreve- rncia (transe numa boa 12 ), as reivindicaes e principalmente a focaliza- o em certos aspectos do combate epidemia de Aids (por exemplo, acesso pblico, gratuito e universal a medicamentos), alm da participao direta de ativistas em aes de preveno, foram responsveis em grande medida pelos rumos das respostas brasileiras epidemia de Aids (galvo, 2000). O Disque Defesa Homossexual e novas relaes entre ativismo e acade- mia na formulao de polticas pblicas no panorama do fnal dos anos 90, j no contexto de multiplicao de ongs e redes, na presena das paradas do orgulho, da internet e de um mer- cado que crescia, que acontece a primeira experincia de poltica pblica na esfera da segurana, o Disque Defesa Homossexual (ddh). Criado em 1999, na Secretaria de Segurana do Rio de Janeiro, o ddh foi pensado como um programa de defesa (e no apenas de denncia). O projeto confgu- rou uma experincia de estabelecimento de parcerias diretas entre polcia e grupos de ativistas, no sentido de fazer agir com rapidez tanto dispositivos de preveno de crimes (acionando a fora policial em locais e situaes de incidncia de violncia), como de atendimento s vtimas dos crimes j ocorridos (mobilizando a polcia para investigar agressores e golpistas e articulando redes de apoio psicolgico e jurdico por parte das ongs). A experincia foi desenvolvida no contexto de um conjunto de pro- gramas na rea de segurana pblica que preconizava a democratizao e modernizao do aparelho policial, prevendo intensa participao de or- ganizaes da sociedade civil. 13 A criao do ddh foi baseada em articu- laes que envolveram diversos atores: a secretaria de Segurana, todas as entidades do movimento homossexual do Rio de Janeiro, o iser (Instituto de Estudos da Religio), uma ong voltada para a pesquisa, um mandato 12 Um dos primeiros e mais clebres cartazes da campanha de preveno de hiv/Aids, divulgado pelo gapa de So Paulo, foi criado pelo artista plstico Darcy Penteado, um dos fundadores do jornal O Lampio. 13 Uma equipe formada por pessoas oriundas de universidades e de ongs desenvolveu programas a partir da sub secretaria de Pesquisa e Cidadania da secretaria de Segurana Pblica do Rio de Janeiro, entre janeiro de 1999 e maro de 2000. Entre os programas estavam a criao da Ouvidoria de Polcia, o Programa de Defesa da Mulher e os Centros de Referncia das Minorias Sexuais, de Combate Dis- criminao Racial e de Defesa Ambiental. 134 Silvia Ramos 135 Respostas do movimento glbt homofobia e a agenda da segurana pblica parlamentar (de Carlos Minc, deputado estadual pelo pt) e dois pesquisa- dores do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (martins, 2001). Os acontecimentos defagradores das demandas do movimento homossexual secretaria de Segurana, que posteriormente motivaram a idealizao do ddh, foram sucessivas agresses sofridas por jovens gays numa rea de bares e boates gls em Botafogo, bairro da Zona Sul do Rio de Janeiro, e o despreparo da polcia para atender essas ocorrncias. Um dos diferenciais da criao do ddh em relao a experincias ante- riores de denncia violncia contra homossexuais foi a presena, como atores polticos da articulao, de pesquisadores ligados a uma ong e a uma universidade. O fato foi decisivo para que o programa fosse concebido no s como um servio de atendimento a vtimas, mas tambm como um cen- tro de produo de dados sobre violncia. 14 Uma outra diferena da expe- rincia que, at ento, os conhecimentos sobre vitimizao de homosse- xuais e a caracterizao da violncia homofbica no Brasil eram baseados em notcias publicadas em jornais. Os dados gerados pelo ddh partiam dos relatos das prprias vtimas e, portanto, passaram a problematizar varia- das situaes de agresso e discriminao associadas homofobia e no s os assassinatos 15 . A anlise dos primeiros quinhentos casos atendidos pelo programa revelou a intensidade de dinmicas cotidianas e silenciosas de homofobia. A maioria das denncias era constituda de casos de ofensas, ameaas, extorses, agresses fsicas, e uma grande quantidade de queixas de discriminaes (na escola, no trabalho, no comrcio e tambm na fa- mlia e na vizinhana), alm dos confitos de natureza interativa entre par- ceiros. Nada menos de que um tero dos casos relatados ao ddh se davam no mbito da casa ou da vizinhana, indicando a intensidade de crimes no espetaculares e no letais, gerados e vividos em escala micro-societria, na esfera da famlia e de conhecidos. Uma criminalidade, em geral, sem fns lucrativos, em que vtimas e agressores partilham as mesmas redes sociais (ramos, 2001). O estudo props uma matriz de anlise dos casos classif- cando-os como: 1) crimes interativos (agresses e discriminaes ocorridas no mbito da casa, da vizinhana e entre parceiros, das quais as lsbicas e no s gays e travestis apareciam como vtimas em propores expressi- vas); 2) crimes com fns de lucro (chantagens, extorses, assaltos e golpes 14 No prprio perodo de treinamento de voluntrios um banco de dados foi estruturado e os casos comunicados ao ddh atravs de uma linha telefnica foram monitorados a cada ms. 15 A partir de 1999, pela divulgao dos dados do ddh, jornais do Rio de Janeiro passaram a cobrir com mais frequncia notcias de violncia no-letal contra gays e travestis (lacerda, 2006, p. 43). do tipo Boa Noite Cinderela 16 , em geral praticadas contra gays e travestis); 3) crimes de dio (espancamentos, graves ameaas vida e denncias de assassinatos), na maioria dos casos contra travestis. A experincia do ddh inspirou diversas outras iniciativas apoiadas por governos de estados e prefeituras do pas. No Rio de Janeiro, o programa foi parcialmente descontinuado aps maro de 2000, quando a equipe que co- ordenava os Centros de Referncia deixou a secretaria de Segurana (mar- tins, 2001), interrompendo-se a sistemtica de coleta e anlise dos dados. Assassinatos de homossexuais no Rio de Janeiro: uma pesquisa sobre a Justia Partindo de 200 notcias levantadas a partir do dossi de recortes de jor- nal mantido pelo grupo 28 de Junho, do Rio de Janeiro, Carrara & Vianna (2001) localizaram 105 registros de ocorrncia policial sobre homicdios de homossexuais, que resultaram em 80 processos na Justia. Desses, anali- saram 57. Os resultados dessa investigao foram muito importantes por- que embora no conclusivos nem estatisticamente representativos pela primeira vez foi possvel examinar a hiptese de que predomina a lgica da impunidade no sistema de justia criminal quando as vtimas so ho- mossexuais. Uma das surpresas foi a constatao de que os crimes letais resultantes de latrocnio (em geral gays de classe mdia vtimas de garotos de programa dentro de suas residncias) constituam um universo especial, devido a caracterizaes estigmatizantes da vtima por agentes da polcia e da justia, por um lado, e pela taxa surpreendentemente alta de condena- es nos casos em que os rus tinham sido indiciados. A pesquisa concluiu que a homofobia se articula de forma mais comple- xa e sutil e afeta as representaes relativas homossexualidade mantidas por policiais, promotores, juzes e advogados, sem se materializar necessa- riamente em absolvies ou sentenas tolerantes, mas sim no uso de clichs sobre a homossexualidade e as dinmicas das relaes no mundo homos- sexual. Alm de reiterarem a idia de que as vtimas contriburam para sua morte, com uma vida de risco ou como refns de uma patologia, tais representaes determinam os rumos das investigaes e etapas dos proces- sos mesmo nos casos em que h condenao (carrara & vianna, 2001). 16 Sedao da vtima com sonferos e outras substncias narcticas com o objetivo de roubar dinheiro e bens. 136 Silvia Ramos 137 Respostas do movimento glbt homofobia e a agenda da segurana pblica O trabalho tambm concluiu que a violncia que atinge homossexuais mais heterognea e complexa do que o modelo clssico do crime de dio, marcando certa diferena em relao a abordagens anteriores, mais direta- mente vinculadas ao ativismo e a suas estratgias. As pesquisas nas paradas do orgulho glbt Em 2003, um conjunto de centros de pesquisa e instituies universitrias 17
iniciou um ciclo de pesquisas nas paradas do orgulho glbt em algumas cidades brasileiras. Abordando questes variveis sobre sociabilidade, afe- tividade, sexualidade, poltica e direitos e questes fxas sobre violncia e discriminao, a principal caracterstica do projeto a articulao entre centros de pesquisa e grupos de ativistas 18 . O projeto parte do reconhecimento de que as paradas so, alm de fe- nmeno social e poltico dos mais expressivos no Brasil urbano, eventos que renem gays, lsbicas, travestis, transexuais e bissexuais que, de outro modo, difcilmente poderiam ser alcanados por uma investigao sociol- gica, oferecendo oportunidade mpar para que sejam melhor conhecidos. Dadas, sobretudo, as segmentaes geracionais, de classe e identitrias que marcam essa populao, ela no poderia ser abordada em sua extrema di- versidade em qualquer outro espao social (seja de lazer, de trabalho ou mesmo de ativismo poltico). Alm disso, as paradas se organizam justa- mente em torno de uma espcie de denominador comum que agrega todo esse universo, a luta contra a discriminao e o preconceito que atingem diferentes minorias sexuais. Nesse sentido, a pesquisa nas paradas se ins- creve dentro dos marcos da pesquisa aplicada e representa uma nova expe- rincia de articulao entre ativismo e academia 19 . Em relao aos temas da violncia, o projeto utiliza uma estratgia de- nominada pesquisa de vitimizao, isto , a mensurao da incidncia de agresses e discriminaes em toda a populao entrevistada. Partindo ini- 17 Esto envolvidos no projeto o Centro Latino Americano de Sexualidade e Direitos Humanos (clam), do Instituto de Medicina Social da uerj e o Centro de Estudos de Segurana e Cidadania (cesec) da Universidade Mendes. Na medida em que a pesquisa se realiza em diferentes cidades, outros centros vo sendo agregados parceira.. 18 No Rio de Janeiro (2003 e 2004), a pesquisa foi realizada com o Grupo Arco-ris; em Porto Alegre (2004) com o Nuances e, em So Paulo (2005), com a Associao da Parada do Orgulho glbt de So Paulo. Em 2006, em Recife, com o grupo Papai, da Universidade Federal de Pernambuco. 19 Os pesquisadores de campo, em todas as experincias, so voluntrios recrutados nas universidades e no movimento homossexual, treinados por pesquisadores e militantes dos grupos envolvidos. cialmente das indicaes obtidas nos registros ao ddh e posteriormente do surgimento de demandas a cada rodada de entrevistas, a pesquisa na para- da passou a trabalhar com uma categorizao de homofobia que divide as experincias de violncia em duas grandes categorias: as discriminaes e as agresses. Entre as discriminaes so mensuradas as experincias de marginalizao, excluso ou mal atendimento nas situaes de traba- lho; comrcio ou lazer; escola ou faculdade; servios de sade; doao de sangue; delegacias de polcia; contexto religioso; contexto familiar; relaes com amigos ou vizinhos. Entre as agresses so mensuradas experincias que poderiam ser mais facilmente criminalizadas, nos termos do Cdigo Penal vigente: agresses fsicas; agresses verbais ou ameaa de agresso fsica; violncia sexual; chantagens, extorses e golpes como o Boa Noite Cinderela. Os resultados caracterizam a homofobia como sendo altamente varivel segundo marcadores de gnero, identidade sexual e idade (e secundaria- mente por escolaridade e cor). As pesquisas vm confrmando impresses iniciais obtidas na experincia do ddh de que violncia e homossexuali- dade mantm relaes mais complexas e contraditrias do que as imagens veiculadas pela mdia e pelo ativismo dos anos 80 faziam supor (carrara, ramos & caetano, 2004; carrara & ramos, 2005; carrara et al., 2006). Os resultados gerais que apontam que a incidncia de discriminao e de agresso muito consistente nos surveys do Rio, de Porto Alegre e de So Paulo. Surpreende que algumas experincias homofbicas, como, por exemplo, sofrer agresso verbal, so relatadas por mais de 60% de entre- vistados, independentemente de gnero, idade, cor ou orientao homos- sexual. Outro resultado que chama a ateno e que se coloca em contraste marcante com o panorama da visibilidade massiva a proporo muits- simo reduzida de denncias comunicadas aos rgos pblicos (uma parce- la prxima a 10% relata ter feito registros na polcia. Denncias imprensa e a ongs ocorrem em propores ainda menores, abaixo de 5%). Est claro o descompasso entre a alta incidncia de vivncias homof- bicas por parte expressiva da populao entrevistada (o que produz indi- cativos consistentes acerca da alta incidncia no conjunto da comunida- de glbt, considerados os resultados reiterados nas diversas rodadas) e as ainda tmidas demandas por polticas de segurana e justia voltadas para coibi-las. 138 Silvia Ramos 139 Respostas do movimento glbt homofobia e a agenda da segurana pblica Brasil sem Homofobia Segundo Vianna e Lacerda (2004), o reconhecimento da especifcidade e, ao mesmo tempo, da diversidade de formas de violncia que atingem homossexuais fundamenta a criao pelo Governo Federal do Brasil Sem Homofobia: Programa de Combate Violncia e Discriminao contra glbt e de Promoo da Cidadania Homossexual, lanado em maio de 2004. 20 Segundo as autoras, o programa foi elaborado por uma comisso do Conselho Nacional de Combate Discriminao e pelo Ministrio da Sade, com a participao de vrios ativistas e organizaes militantes, como a abglt. Em seus 10 itens, o programa prev um conjunto bastante amplo de aes, com destaque para a poltica para mulheres lsbicas e a ar- ticulao do combate ao racismo e homofobia. Entre as aes, destacam- se: (i) as que visam capacitar o Estado, especialmente instituies escolares, policiais, judiciais, de sade e de fscalizao do trabalho, a atuar de modo no discriminatrio, seja atravs da mudana de suas prticas, seja atravs da criao de novos dispositivos, como ddhs e centros de referncia nas secretarias estaduais de segurana pblica, especialmente desenhados para coibir a violncia e a discriminao; (ii) o incentivo participao de lide- ranas do movimento nos diferentes conselhos e mecanismos de controle social do governo federal; (iii) a produo de conhecimento sobre violncia e discriminao homofbicas e sobre as condies de sade de gays, ls- bicas e transgneros; (iv) e, fnalmente, o apoio iniciativas brasileiras no plano internacional no sentido do reconhecimento e proteo dos direitos glbts e criao de uma Conveno Interamericana de Direitos Sexuais e Reprodutivos. Algumas das diretrizes do Programa tm sido executadas, estreitan- do ainda mais a articulao entre Estado e sociedade civil. Em meados de 2005, a Secretaria Geral da Presidncia da Repblica lanou edital aberto a instituies pblicas ou no-governamentais para seleo de projetos de preveno e combate homofobia, atravs da prestao de assessoria jur- dica e psico-social s vtimas, da orientao e encaminhamento de denn- cias, da capacitao em direitos humanos e da mediao e conciliao de confitos. No fnal de 2005, uma das instituies selecionadas nesse concur- so o Estruturao, Grupo de Lsbicas, Gays, Bissexuais e Transgneros de 20 Brasil Sem Homofobia: Programa de Combate Violncia e Discriminao contra gltb e Promo- o da Cidadania Homossexual. Braslia: Ministrio da Sade, 2004 www.mj.gov.br/sedh/ct/004_1_3.pdf Braslia , assinou convnio com a Secretaria Especial de Direitos Huma- nos do Governo Federal, para criao de um Centro de Referncia lgbt, para prestao de servios s vtimas de discriminao. Tambm em 2005, o Ministrio da Educao lanou edital pblico para seleo de projetos de capacitao de profssionais de educao em temas relativos orientao sexual e identidade de gnero. Dos 84 projetos apresentados no prazo, 36 eram liderados por organizaes no-governamentais, sobretudo grupos glbt, 24 por rgos governamentais (prefeituras, secretarias municipais e estaduais de educao) e 6 por universidades. Desses projetos, 48 foram recomendados e 15 selecionados. Entre os selecionados, 12 foram propostos por organizaes no-governamentais, dos quais 7 de grupos glbt, 2 por universidades e apenas 1 por um rgo governamental (secretaria muni- cipal de educao). Como se v, a tendncia do Ministrio apoiar prin- cipalmente projetos propostos por grupos militantes e organizaes no- governamentais. Homofobia e polticas pblicas: perspectivas para a dcada atual O movimento homossexual tem pela frente um dilema poltico que exigi- r cuidados. Se, por um lado, a representao coletiva dos homossexuais como vtimas da homofobia encontra suporte nas pesquisas sobre violn- cia, tambm fato que as experincias so fortemente matizadas por sexo, identidade sexual, idade, classe e cor. Para a maior parte das discriminaes e agresses, travestis e transexuais encontram-se em um extremo da escala de vitimizao, e bissexuais, lsbicas e gays jovens no outro. Alm disso, um contingente estatisticamente importante da comunidade no refere qual- quer experincia de vitimizao (entre 30% a 40% dos entrevistados nas diversas paradas). Comparativamente a outros movimentos de identidade (movimento de mulheres e movimento negro), o movimento homossexual foi historica- mente lento na elaborao de demandas de polticas pblicas integradas para responder aos fenmenos da homofobia. Fixou-se durante muito tem- po em um modelo estereotipado de violncia contra homossexuais (os assassinatos) que, ao fnal, correspondia apenas a uma parte das diversas dinmicas cotidianas de violncia sofridas por gays, lsbicas, bissexuais e transgneros. Nesse sentido, o discurso do ativismo sobre homofobia produzia impacto reduzido no s junto comunidade homossexual, mas 140 Silvia Ramos 141 Respostas do movimento glbt homofobia e a agenda da segurana pblica tambm junto aos governos e mdia. As experincias do tipo do ddh e as pesquisas desenvolvidas a partir da dcada atual passaram a demonstrar que, em contraste com as dinmi- cas de violncias de gnero e de racismo (que por ser mais homogneas permitem respostas focalizadas), a homofobia opera com muitas variveis e engloba fenmenos dspares, que vo desde discriminaes na esfera do- mstica a crimes com fns de lucro. Por essa razo, as estratgias de en- frentamento desses fenmenos e os discursos produzidos pelo movimento homossexual tm que reconhecer essa complexidade e mobilizar demandas especfcas para diferentes violncias. Por exemplo, a experincia do ddh demonstrou que para responder s chantagens, extorses, golpes tipo Boa Noite Cinderela e latrocnios motivados pela sexualidade necessrio: a) incremento sistemtico das denncias polcia; b) investigao policial, priso de criminosos e de quadrilhas de golpistas, inclusive as formadas por policiais e ex-policiais; c) divulgao de casos exemplares bem suce- didos na imprensa; d) campanhas de esclarecimento lideradas pelo prprio movimento glbt voltadas para a comunidade; e) monitoramento dos re- sultados junto s secretarias de Segurana. Por outro lado, as respostas para as dinmicas de discriminao na esfera da famlia e crculos de amizade, demandam, no s campanhas especfcas de informao e mobilizao, mas atendimento individual s vtimas, por meio de uma rede de prote- o, nos moldes da experincia do movimento de mulheres em relao violncia de gnero. Os altos ndices de homofobia registrados nas escolas, por exemplo, indicam claramente a necessidade de criao de programas especiais envolvendo autoridades educacionais, professores e alunos. As violncias conjugais, especialmente graves e invisveis entre lsbicas, so temas que o prprio movimento glbt tem que enfrentar, levando em conta as especifcidades das diversas identidades sexuais. Um outro desafo so as representaes concorrentes com a idia de que a homofobia constitutiva da experincia homossexual. As imagens ligadas ao orgulho e afrmao e, no extremo, beleza, alegria e ao consumo so capitaneadas pela mdia e pelas iniciativas de mercado e disputam a hegemonia das representaes da homossexualidade, sendo possvel observar sua convivncia relativamente pacfca, com as represen- taes ativistas, at agora, nas celebraes das paradas do orgulho (ramos, 2005). Nesse sentido, tudo indica que ser necessrio, nos prximos anos, um esforo ainda maior de incorporao de organizaes de travestis e transexuais dentro do movimento glbt, na medida em que so esses gru- pos os que vivem as experincias mais crticas de violncia e que, portanto, devem exercer um papel decisivo na elaborao de demandas de polticas e na participao direta em prticas de preveno, como ocorreu no processo de respostas epidemia de Aids. Embora seja difcil prever os desdobramentos futuros do Plano Nacional de Segurana Pblica estabelecido no Seminrio de 2007, possvel com- preender que o processo de construo dessa agenda na rea da segurana deu-se por algumas razes identifcveis: em primeiro lugar, as lideranas da abglt parecem ter acumulado grande experincia durante o proces- so de elaborao do Brasil sem Homofobia e a utilizaram na criao do Plano de Segurana Pblica, como um desdobramento do programa mais amplo. Em 2008, na Conferncia Nacional de Lsbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, realizada em Braslia, e durante todo o processo de sua preparao, essa experincia pareceu ter sido a base que consolidou o processo. Em particular em relao ao tema da segurana pblica e das relaes com a polcia, provvel que lideranas do movimento tenham identifca- do o carter emblemtico de enfrentar a homofobia comeando pela pol- cia. Por considerarem que ser necessrio investir esforos na capacitao de instituies escolares, judiciais, de sade, de fscalizao do trabalho e outras, optaram por cruzar a fronteira da mais resistente das instituies do Estado em relao aos temas da diversidade sexual. No parece restar dvida de que as experincias com a segurana p- blica iniciadas no Rio de Janeiro, em 1999, a despeito de parecerem perdi- das ao longo do tempo, serviram omo ponto de apoio para o processo de criao da agenda contida no Plano Nacional de Segurana. O encontro do Rio foi liderado por duas organizaes que participaram diretamente da criao do Centro de Referncia contra a Homofobia e do ddh. Chama a ateno o fato de programas atuais de enfrentamento da homofobia em diversos estados serem nomeados centros de referncia, tal como a expe- rincia inicial no Rio. talvez possvel inferir que as trajetrias de organizaes de movimen- tos sociais no campo da segurana pblica desenham movimentos no- lineares, em que o acmulo no se d pela simples soma de experincias. O seminrio de abril de 2007 no signifca que o movimento homossexual constituiu uma agenda para a segurana, mas que seu setor mais organiza- do, mais onguizado, para usar a expresso de lvares (2000), defniu de- 142 Silvia Ramos 143 Respostas do movimento glbt homofobia e a agenda da segurana pblica mandas, est construindo discursos e comea a desenvolver prticas. O maior desafo em relao s propostas contra a homofobia continua sendo a capacidade de conexo das ongs com outros setores vitais do mo- vimento: lideranas individuais, mdia e comrcio gls e redes de sociabili- dade de cada segmento glbt, especialmente travestis e transexuais. A bandeira da criminalizao da homofobia segue em marcha acele- rada como tema de mobilizao das paradas e articula-se como lobby no Congresso. Traz os riscos de enfatizar a vitimizao como metfora da ex- perincia de ser gay, ser lsbica e de sugerir uma regulao da diversi- dade sexual. Alm deste, no est afastado o risco de o movimento glbt enveredar pela perspectiva punitiva (e encarceradora, caso opte por demandar como regra a pena de priso para autores de homofobia), tal como os grupos organizados do movimento de mulheres e do movimento negro. Para o movimento glbt, se isto ocorrer, expressar, eu creio, contribuio pouco criativa de um setor da sociedade civil que tem buscado caminhos originais para construir demandas, discursos e prticas que lhe so prprias. Referncias Bibliogrfcas ALVAREZ, S. A globalizao dos feminismos latino-americanos. In ALVAREZ, DAGNINO e ES- COBAR (orgs.). Cultura e poltica nos movimentos sociais latino americanos. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2000. p 382-426. CMARA, C. Cidadania e orientao sexual: a trajetria do Grupo Tringulo Rosa. Rio de Janeiro: Academia Avanada. 2002, 182 p. CARRARA, S & RAMOS, S. Poltica, direitos, violncia e homossexualidade: Pesquisa 9 Parada do Or- gulho GLBT Rio 2004. Rio de Janeiro: CEPESC, 2005. 115 p. CARRARA, S & VIANNA, A. R. B. Homossexualidade, Violncia e Justia: A violncia letal contra homos- sexuais no municpio do Rio de Janeiro. Relatrio de pesquisa. IMS/UERJ/Fundao Ford, 2001. 90 p. CARRARA, S & VIANNA, A. R. B. 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No assumo tambm a pre- tenso ou o propsito de fazer convergir refexes que cada um de vocs pode desenvolver sobre tais questes, apenas me disponho a trazer algumas idias quem sabe mais perguntas buscando alimentar o debate. Para comear, talvez fosse interessante expor algumas das marcas que estes dois termos tm assumido. Numa interpretao mais imediata, a expresso sexualidades minori- trias sinaliza para prticas e identidades sexuais tidas como de minorias. Mas fundamental reconhecer que minoritrio, neste caso, no remete quantidade, e , sim, indicativo do modo como um grupo dominante no- meia aqueles que dele diferem. Trata-se, pois, de prticas e identidades se- xuais que se diferenciam ou se afastam daquelas que so ditas normais. Seja como for, associada quantidade ou associada normalidade, a expresso sugere comparaes, permite pensar que h sujeitos, prticas ou espaos 1 Doutora em Educao pela Universidade Estadual de Campinas. Professora do Programa de Ps- Graduao em Educao da ufrgs. 146 Guacira Lopes Louro 147 Sexualidades minoritrias e educao: novas polticas? que servem de referncia ao estabelecimento deste carter minoritrio. Neste encontro, no parece necessrio gastar muito tempo para lembrar que a identidade masculina, branca, heterossexual de classe mdia que tomada como a identidade normal, legtima e no-problemtica. Esta a identidade referncia a partir da qual as demais so produzidas e nomeadas como diferentes. Mas talvez seja pertinente deixar claro que opero aqui com a noo de diferena como uma atribuio, e no como um dado que pr-existe nos corpos e que deve ser, simplesmente, reconhecido. Entendo que a diferena , sempre, atribuda e nomeada no interior de uma determinada cultura. Da se segue que determinadas caractersticas podem ser valorizadas como distintivas e decisivas para dividir e classifcar os sujeitos numa determina- da sociedade e no terem o mesmo signifcado em outra sociedade. Se, por um lado, fato que, ao longo dos tempos, a maioria das socie- dades vem estabelecendo a diviso masculino/feminino como uma diviso primordial e relacionando-a ao corpo; por outro lado, ser um engano supor que o modo como pensamos o corpo e a forma como, a partir de sua materialidade, ns, supostamente, deduzimos as identidades de g- nero e sexuais seja algo generalizvel para qualquer cultura, para qualquer tempo e lugar. O que pretendo enfatizar , portanto, o carter cultural das diferenas e, ainda, lembrar o quanto a nomeao da diferena se constitui, ao mesmo tempo, na demarcao de uma fronteira. Como acentuam estu- diosos tais como Kathryn Woodward e Tomaz Tadeu da Silva, no processo de diferenciao so mobilizados recursos ou marcadores simblicos, ma- teriais e sociais. Muitas vezes esses recursos conseguem disfarar ou escon- der o carter construdo deste processo e, consequentemente, conseguem ocultar as relaes de poder nele implicadas. A diferena pode, ento, apa- recer como natural, como dada. Da a importncia de se pr em questo a pretensa naturalidade das identidades de gnero e sexuais e de se acentuar o carter cultural da masculinidade, da feminilidade, da homossexualidade ou da heterossexualidade. Acompanhando Judith Butler, importante terica feminista e queer, possvel compreender sexo e gnero como efeitos das instituies, discur- sos e prticas sociais, e no como suas causas. Nascemos numa sociedade dividida, generifcada (quer dizer, marcada pelos gneros), e nos fazemos mulheres ou homens num processo interminvel, sempre incompleto, ins- tvel; nos fazemos mulheres e homens em meio s instituies, aos dis- cursos e as prticas disponveis em tal sociedade. Entre tantos outros, na nossa cultura, a escola e a famlia foram constitudas, historicamente, como espaos privilegiados e obrigatrios de formao dos indivduos. Histori- camente, tais instncias foram produtoras de diferenas: de classe, de raa, de sexo, de gnero. Por certo, muitas outras instncias tambm assumiram, ao longo do tempo, funes pedaggicas as igrejas, a justia, a medicina e a mdia em suas mltiplas expresses. Seria ingnuo supor que os dis- cursos destas diversas instncias so homogneos e convergentes. Eles se pluralizaram, muito especialmente, nas ltimas dcadas. Disputas de vrias ordens a se revelam e se constroem. Representaes distintas e divergentes de sujeitos e de prticas sexuais e de gnero circulam. Afrmar isso, ou seja, assumir que h pluralidade de representaes e de discursos, no signifca, no entanto, supor que as diferenas tenham desaparecido ou que elas te- nham sido niveladas. Essas tantas instncias que poderiam ser chamadas de pedaggicas, j que exercitam pedagogias de gnero e de sexualidade (bem como exercitam outras pedagogias) continuam a produzir diferenas, continuam a marcar e classifcar sujeitos e prticas. De modos novos, pro- vavelmente, com outras nuances ou sutilezas, mas, ainda assim, nomeados em meio a relaes de poder. As disputas por representao, os discursos divergentes devem ser sau- dados. Eles, agora, no so mais produzidos apenas a partir dos espaos historicamente autorizados, mas tambm pelos movimentos sociais e pelos campos multidisciplinares constitudo pelos Estudos feministas, os Estudos Gays, os Estudos Lsbicos ou Queer. Ainda que nos embaralhemos com a pluralidade das verdades (ditas e veiculadas por to distintas instncias culturais e campos de saber) acho que esse embaralhamento pode ou mes- mo deve ser reconhecido como provocador, produtivo. Compartilho deste movimento, tal como vocs. Temos de nos dar conta de que um encontro como este, h alguns anos atrs, provavelmente no poderia ser realizado num espao to legitimado como a Universidade Federal do Rio Grande do Sul e tambm no poderia contar com o apoio de instituies ofciais da sade e ou da segurana pblica. Mas parece pertinente acentuar que, apesar dessa multiplicao e dispu- ta de discursos, continuamos nos movendo, quase que invariavelmente, no mbito da heteronormatividade. E o que isso signifca? J observamos que a heterossexualidade no natural, e sim que , como qualquer outra forma de sexualidade, construda e aprendida ao longo da vida. Apesar disso se espera que todos sejam ou devam ser heterossexuais. 148 Guacira Lopes Louro 149 Sexualidades minoritrias e educao: novas polticas? A heterossexualidade assumiu um carter compulsrio nas sociedades oci- dentais. Este tipo de anlise j foi realizada por vrios tericos e tericas, mas possvel dizer que foi, no mbito dos estudos queer, que se radicali- zou a crtica centralidade da heterossexualidade. Judith Butler falou-nos de normas regulatrias que regem as sociedades. Tais normas supem que um corpo, ao nascer, seja nomeado, sem hesita- o, como macho ou fmea e, uma vez feita esta distino, que este sujeito assuma um dos dois gneros masculino ou feminino e experimente o desejo por algum de sexo/gnero oposto. Entendo que este suposto alinhamento (entre sexo-gnero-sexualida- de) que d sustentao heteronormatividade, ou seja, produo e rei- terao compulsria da norma heterossexual. Uma vez que se espera que todos sejam (ou devam ser) heterossexuais, segue-se que as instituies e os sistemas de sade ou de educao, a justia ou mesmo a mdia so cons- trudos, basicamente, imagem e semelhana desses sujeitos. Como todo processo normativo, a heteronormatividade onipresente. Ela , tambm, praticamente, invisvel e, de certo modo, silenciosa. Ela naturalizada. A heteronormatividade s reconhecida como um processo social, quer di- zer, como algo que fabricado, produzido e reiterado a partir da ao de intelectuais ligados aos estudos de sexualidade, especialmente aos estudos gays e lsbicos e aos estudos queer. No mbito desses estudos, constroem-se novas polticas de conhecimen- to e h espao para a problematizao da norma heterossexual. Na teoriza- o mais recente (e aqui me refro muito especialmente teoria queer) no se supe que a heterossexualidade seja um regime fechado em si mesmo, coerente e monoltico (cf. garcia, 2005). Em vez disso, entende-se que este regime (como qualquer outro) tem fssuras e incoerncias. Fazendo uso de noes desenvolvidas por Michel Foucault, podemos supor que, no mesmo espao em que se exercita o poder, tambm se construam resistncias ou, em outras palavras, podemos admitir que a subverso se faz a partir da nor- ma, ocorre no prprio interior da norma. Portanto, ser possvel dizer que , precisamente, a necessidade de repetio ou de reiterao da heterosse- xualidade que fornece as condies para que se articulem prticas de resis- tncia e para que se afrmem as identidades sexuais que alguns chamam de alternativas e outros chamam de minoritrias. Acho importante acentuar isso, porque me parece que oxigena ou areja um pouco nossa compreen- so da dinmica social. Afrmo a importncia das resistncias baseada em Foucault. Provavelmente mais do que qualquer outro pensador, ele voltou seu olhar para os espaos por onde as resistncias passam e para as mlti- plas formas que elas podem assumir. Muitos que aqui esto ensaiam coti- dianamente formas de escapar ou driblar a heteronormatividade (s vezes, recaindo, sem perceber, na mesma norma; mas, outras vezes, conseguindo, efetivamente, a ela resistir). Como sabemos, em conseqncia da poltica de identidades que vem se processando intensamente desde as ltimas dcadas do sculo xx, tor- naram-se visveis sujeitos e prticas sexuais que, at ento, mantinham seus desejos, histrias e experincias restritas a poucos e, usualmente, clandes- tinos espaos. Sujeitos e prticas sexuais minoritrias, para retomar o ttulo desta mesa. A afrmao e o orgulho de mulheres e homens no-heteros- sexuais perturbaram e continuam perturbando a pretensa harmonia dos consagrados arranjos sociais. Com suas vidas, estas mulheres e homens desmentem a garantia da seqncia sexo/gnero/sexualidade. A poltica de identidades desencadeada pelos movimentos feministas, gays, lsbicos, dentre outros, representa um dos mais signifcativos e po- derosos processos de transformao social em andamento. De fato, h es- tudiosos que chegam a afrmar que as polticas de identidade e tambm aquelas que se auto-denominam ps-identitrias, como a queer, no so apenas constitutivas da ps-modernidade, mas que so elas que tornaram (e tornam) possvel a ps-modernidade. Quero aproveitar a proposio destes estudiosos para minha argumen- tao, mas, para tanto, devo esclarecer que, quando falo em ps-moderni- dade, mais do que assinalar uma poca, pretendo sugerir uma nova epis- teme. Em outras palavras, entendo que todo um conjunto de movimentos, de prticas e de saberes vem se constituindo e vem desafando, contem- desafando, contem- poraneamente, a noo de centro em todas as suas formas. Esse conjunto de movimentos e de saberes tem chamado nossa ateno para as margens; incita-nos a repensar fronteiras de todos os tipos e seus atravessamentos. E tudo isso vem sendo experimentado, de modo muito expressivo, no mbito dos gneros e das sexualidades. Essas novas confguraes so, em geral, perturbadoras para muita gente. Minha aposta que elas so vistas como um desafo especialmente complicado no campo da Educao. Retomo, ento, questes que formulei inicialmente: Como vem sendo construda a articulao entre sexualidades minoritrias e educao? Este par tem sido reconhecido como vivel? Ser que encontramos, em nossas livrarias to cheias de receitas, algum 150 Guacira Lopes Louro 151 Sexualidades minoritrias e educao: novas polticas? manual ensinando Como criar seu flho gay? H alguns anos atrs, Debo- rah Britzman afrmava que isso no existia, mas que o que estava disponvel era precisamente o oposto, ou seja, uma proliferao de conselhos aos pais e aos educadores sobre como curar a situao de gay (britzman, 1996, p. 79). Alis agora, num momento em que livrarias e programas de tv vendem auto-ajuda de todos os tipos, provvel que encontremos vrias sugestes para empreender pedagogias de recuperao (qualquer dvida, basta acompanhar os depoimentos sensacionalistas dos canais religiosos). Por que isso acontece? Porque a Educao se constituiu, historicamente, como um campo normalizador e disciplinador. O campo da Educao ope- ra, muito expressivamente, na perspectiva da heteronormatividade. Deborah Britzman lembra alguns dos medos que assombram educado- res/as profssionais, pais e mes ao lidar com questes da sexualidade. Um deles supor que falar sobre homossexualidade pode levar garotas/os a se tornarem homossexuais; outro receio de que aquele ou aquela que fala sobre esta prtica em termos simpticos ou no preconceituosos pode vir a ser reconhecido como gay ou lsbica. Para escapar desse perigo, muitos adultos preferem dizer que no sabem nada sobre a homossexualidade, que no entendem disso, ainda que isso possa signifcar uma demonstrao de ignorncia da sexualidade. Esse tipo de atitude no tenho nada a ver com isso nega o fato de que as identidades sexuais so, todas, interdependen- tes, quer dizer, nega que as identidades sexuais (como qualquer identidade) se fazem em relao umas com as outras. Outra forma de lidar com esta questo no campo da Educao e agora penso mais diretamente nas instituies escolares consiste em dedicar um dia ou um momento especial para reconhecimento ou para incluso daqueles que, usualmente, esto fora dos currculos, dos livros didticos, da histria ofcial. Esta estratgia promovida ofcialmente atravs de datas comemorativas como, por exemplo, o dia da mulher, o dia do ndio, a se- mana da conscincia negra ou da diversidade sexual mantm a lgica que me referi antes e que eu chamaria de separatista, isto , a lgica que supe que as identidades e prticas se fazem de forma autnoma e nega que elas sejam interdepententes. Criam-se, assim, eventos que, circunstancialmen- te, destacam o diferente. J escrevi sobre esta questo em outro momento: momentaneamente, a Cultura (com C maisculo) cede um espao, no qual manifestaes especiais e particulares so apresentadas e celebradas como exemplares de uma outra cultura ou da cultura do outro. Estas so estrat- gias que podem tranquilizar a conscincia dos planejadores, mas que, na prtica, acabam por manter o lugar especial e problemtico das identidades marcadas e, mais do que isso, acabam por apresent-las a partir das repre- sentaes e narrativas construdas pelo sujeito central. Aparentemente se promove uma inverso, trazendo o marginalizado para o foco das atenes, mas o carter excepcional desse momento pedaggico refora, mais uma vez, seu signifcado de diferente e de estranho. Ao ocupar, excepcionalmen- te, o lugar central, a identidade marcada continua representada como di- ferente (louro, 2003). Se difculdades com relao homossexualidade aparecem com freq- ncia, as coisas parecem se complicar ainda mais quando lembramos que, contemporaneamente, se tornaram visveis muitas outras formas de viver a sexualidade e os gneros. Para educadoras/es parece muito complicado as- sumir que as identidades de gnero e sexuais se multiplicaram; que h su- jeitos que atravessam as fronteiras desses territrios; sujeitos que inscrevem e misturam em seus corpos, deliberadamente, as marcas da feminilidade e da masculinidade; sujeitos que aspiram a ambigidade e a ambivalncia. O campo da Educao proclama, freqentemente, ideais de integrao, in- cluso, ajustamento. Mas de que valem tais propsitos face queles/as que no esto ansiosos por serem integrados e que querem, menos ainda, ser tolerados? O que fazer com quem quer viver como diferente? Educadoras/es foram preparados para lidar com certezas, com normas, com defnies de certo ou errado. No entanto, hoje, mais do que nunca, as certezas escapam e deslizam, as verdades se pluralizam. As formas como pais e mes, educadoras/es ou produtores culturais vm lidando com todas essas novidades vo da perplexidade negao, da tentativa de correo ao acolhimento. Nem todos se mostram insensveis ou impermeveis s mudanas e tentativas ou ensaios no sentido de lidar com sujeitos ou situa- es antes impensados so empreendidos. Falo de sujeitos e situaes impensveis porque eles e elas colocam em xeque, antes de tudo, a lgica binria de nossa cultura, a lgica que sustenta nossa compreenso dos sexos e, conseqentemente, dos gneros e das se- xualidades. Uma vez que a base fundante desta lgica e desta norma bin- ria, torna-se impossvel pensar em multiplicidade de gneros ou de sexuali- dades. A idia de multiplicidade insuportvel e especialmente perturbadora no mbito da Educao. De qualquer modo, queiramos ou no, encontramos sujeitos que transgridem as tais normas regulatrias e que escapam da seq- ncia sexo/gnero/sexualidade prevista. No dispomos de receitas para dar conta disso. No tarefa fcil construir e pr em ao polticas que, no campo 153 Educao, heterossexismo e homofobia da Educao ou, mais amplamente, no campo da cultura, reconheam, efeti- vamente, distintas formas de sexualidade e de gnero. Para acolher a idia de multiplicidade, teramos de romper, de algum modo, com uma lgica muito assentada que nos leva a ter de decidir, necessariamente, se algum ou se uma situao ou prtica isso ou aquilo para, em vez disso, assumir a possibili- dade de que algum ou algo seja, ao mesmo tempo, isso e aquilo. Esse tipo de mudana no nada simples. Mas no quero concluir de modo pessimista. Quando tenho oportunidade de falar sobre estes temas, um dos pon- tos que tenho acentuado , precisamente, o quanto os movimentos sociais organizados de gnero e sexualidade e os campos multidisciplinares que a eles se articulam tm promovido novas polticas de conhecimento cultural. A partir destes campos tericos e polticos, tem se ampliado a noo do que vale a pena conhecer, quem pode conhecer, para que ou porque conhecer. No so apenas novos temas que se tornaram objeto de investigao de ncleos de pesquisa ou passaram a integrar a agenda de rgos ofciais de estado; h indicaes de outras mudanas relevantes: as questes que se fazem sobre estes temas so, muitas vezes, feitas a partir da tica de sujeitos historicamente subordinados; as formas de investigar ou de implementar tais questes incorporam estratgias e prticas que, at algum tempo atrs, no eram reconhecidas; ativistas e intelectuais ligados aos movimentos e aos campos tericos da sexualidade e dos gneros so chamados a integrar equipes de estudo e de implementao de polticas. No ignoro que, nestes espaos repetem-se ou recriam-se jogos de poder e que, freqentemente, as de- cises afnam-se ou compactuam com os discursos tradicionalmente autoriza- dos. De qualquer forma, entendo que estamos conquistando espaos para disputa e isso que d sentido a nossa presena neste e em tantos outros encontros. Referncias Bibliogrfcas BRITZMANN, D. O que esta coisa chamada amor identidade homossexual, educao e currculo. Educao & Realidade. Vol. 21 (1), Jan/jul. 1996. GARCIA, D. C. Teoria queer: refexiones sobre sexo, sexualidad e identidad hacia uma politizacin de la sexualidad. In CORDOBA, D; SEZ, J; e VIDARTE, P (orgs.) Teoria Queer. Polticas Bolleras, maricas, trans, mestizas. Barcelona e Madrid: Editorial Egales, 2005. LOURO, G. Currculo, gnero e sexualidade o normal, o diferente e o excntrico. In LOURO, G; FELIPE J, GOELLNER, S(orgs.) Corpo,gnero e sexualidade. Um debate contemporneo na educao. Petrpolis: Vozes, 2003. Educao, heterossexismo e homofobia Henrique Caetano Nardi 1 A emergncia das polticas voltadas diversidade sexual: a interface da psicologia com a educao O campo discursivo no qual se situam os programas, os projetos e aes que buscam incluir o debate em torno da diversidade sexual na escola, amplo e interdisciplinar, alm de ser marcado por uma produo de pesquisa ex- plicitamente politizada. Parte importante dos autores deste campo assume uma postura ao mesmo tempo acadmica e militante. Poderamos compre- ender esta postura no sentido proposto por Michel Foucault, ou seja, uma posio intelectual que se prope a apontar os riscos do presente e de se mobilizar para agir sobre a dinmica social estabelecendo parcerias com os movimentos sociais, assim como institucionais, encontrando aliados no seio do governo. Muitos dos conceitos criados no interior deste campo se construram em oposio e/ou conjugados aos enunciados que marcaram a emergncia do dispositivo da sexualidade e sua lgica classifcatria e nor- malizadora. Cabe, pois, lembrar a defnio ampla de Michel Foucault para o termo dispositivo: Um conjunto heterogneo, comportando discursos, instituies, conjuntos arquiteturais, decises regulamentares, leis, medi- das administrativas, enunciados cientfcos, proposies flosfcas, morais, flantrpicas, enfm: o dito como o no dito (...) o dispositivo, nele mesmo, a rede que se pode estabelecer entre estes elementos (foucault, 1994b, p. 299). 1 Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - ufrgs 154 Henrique Caetano Nardi 155 Educao, heterossexismo e homofobia A exploso discursiva que marca o dispositivo da sexualidade na mo- dernidade produziu uma srie de conceitos que transformaram prticas em identidades, a partir de um esquadrinhamento que traou as linhas divis- rias do normal e do patolgico. Objeto privilegiado dos processos de sub- jetivao na modernidade, a sexualidade se tornou objeto privilegiado da psicologia e de todo o campo psi. No decorrer do sculo xx vimos que, a partir dos termos que inicialmente designavam patologias, emergiram formas identitrias binrias. Assim, o termo homossexualidade passou a identifcar certa identidade homossexual, o termo produziu seu oposto ao nomear a posteriori o sujeito heterossexual e, neste jogo no qual os dis- cursos constituem os objetos dos quais falam, fomos colocados frente a de- fnies que nos interpelam: ser homossexual (o que implica em assumir o que se ) ou ser heterossexual (que dado como pressuposto), sendo a bissexualidade (uma oscilao presa binariedade) mantida como objeto de suspeita de todos/as aqueles/as que se identifcam com estas categorias plo (homo ou hetero). Com a emergncia da democracia sexual (fassin, 2006) a qual pode ser entendida como efeito poltico da presso dos movimentos sociais pelo direito livre expresso da sexualidade e que ganhou fora institucional aps a epidemia da aids ao buscar a igualdade de direitos independente da posio dos sujeitos no espectro da diversidade sexual ou de gnero ve- mos uma tentativa de infexo da ao do dispositivo com o surgimento de termos que denunciam a opresso da lgica binria e seus efeitos polticos e de sofrimento psquico. Estes termos so marcados por uma origem/sen- tido de carter psicolgico. O termo homofobia emblemtico neste sentido, e sem dvida um dos mais utilizados pelos diversos programas governamentais para deno- minar aes e projetos institucionais, assim como aqueles oriundos dos movimentos sociais, o que, entretanto e, at por esta razo, no o isenta de crticas. O termo foi inicialmente usado pelo psiclogo George Weinberg em um artigo da revista Time em 1969 (portanto, no mesmo ano da revolta de Stonewall em Nova Iorque) e retomado no seu livro Society and the Healthy Homosexual de 1972. Homofobia, para este autor, designava o medo irra- cional da homossexualidade que produz reaes irracionais e o desejo de destruir o estmulo da fobia ou tudo que possa se relacionar a ela. Hoje o termo tem defnies e usos mltiplos, podendo signifcar medo, aver- so, discriminao, preconceito, etc. Daniel Borillo, por exemplo, defne homofobia como uma manifestao arbitrria que consiste em designar o outro como contrrio, inferior ou anormal. Sua diferena irredutvel o coloca em outro lugar fora do universo comum dos humanos (borrillo, 2000, p. 3). Estamos aqui distantes, portanto, em ambas as defnies, dos critrios clssicos de fobia. Uma das crticas ao termo de que ele pode dar a entender que a ao discriminatria ou a violncia contra homossexuais (o termo tambm instituiu variantes que incluem a longa verso das siglas do campo como, por exemplo, lgbtttiqfobia 2 sem esgotar as letras do alfabeto neste jogo de capturas identitrias) seja derivada de um impulso irracional que se situa no campo da psicopatologia individual e no um preconceito reiterado socialmente (herek, 2004). O termo que se apre- senta como substituto ou complemento homofobia heterossexismo. Este deriva de sexismo (associado na sua origem perspectiva feminista) e implica na concepo essencialista/naturalizada de que a heterossexu- alidade superior do ponto de vista social, moral e do desenvolvimento psicolgico s outras formas de expresso da sexualidade, pois a masculi- nidade e a feminilidade, assim como os genitais defnidos como femininos e masculinos, seriam necessariamente complementares. Todas as outras combinaes/variaes possveis seriam uma perda de tempo, tanto do ponto de vista da reproduo da espcie, como da reproduo da lgica da sociedade moderna superior a todas as outras de um ponto de vista scio-evolucionista e, portanto, relegadas a um plano inferior, moral e legalmente. Assim, o heterossexismo seria a explicao e a base para uma estrutura e dinmica sociais que privilegiam a heterossexualidade do ponto de vista institucional e poltico. Neste jogo discursivo a psicologia est invariavelmente presente e serve como linha divisria (na aliana entre cincia e Estado que confgura, na modernidade, a emergncia da biopoltica em oposio aliana Estado e religio na idade mdia) nos dois argumentos que parecem ser centrais no debate poltico em torno da democracia sexual e da implantao de progra- mas de combate homofobia na educao: O primeiro deles se refere igualdade de direitos e, vai buscar na psico- logia a sustentao para a extenso dos direitos at agora restritos famlia composta por um casal de sexos distintos (em nome do desenvolvimento normal da criana, por exemplo, no caso da adoo). Aqui, cabe salientar 2 Lsbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Travestis, Transgneros, Intersexuais, Queer e o que vier a se associar a este jogo). Embora acredite que esta sigla insufciente e que o jogo das identidades perigo- so, utilizarei esta verso ampliada de forma crtica e provisria, como forma de, at pela difculdade da leitura a sigla exponha sua fragilidade. 156 Henrique Caetano Nardi 157 Educao, heterossexismo e homofobia que para a construo da igualdade de direitos foi fundamental a retirada da homossexualidade do campo da patologia (o que no o caso da tran- sexualidade). O outro argumento se refere ao sofrimento psquico asso- ciado homofobia que se evidencia por altas taxas de suicdio em jovens homossexuais e por comportamentos de risco (sexo no protegido, abuso de lcool e drogas, etc.) que estariam relacionados ao preconceito derivado da homofobia e da falta de modelos identifcatrios positivos presentes na escola e na mdia (verdier e firdion, 2003; hershberger e daugelli, 1995; savin-williams, 1994). A referncia permanente s taxas elevadas de suicdio nos jovens e dos comportamentos de risco serve de argumento central para as demandas feitas aos governos de diversos pases. Entretanto, cabe salientar que mesmo que estes dados e esta constatao sejam im- portantes como alerta e como estratgia de convencimento das instituies pblicas, a reiterao de um discurso psico-medicalizado pode contribuir para uma imagem estigmatizada e medicalizada da juventude no-heteros- sexual (mayberry, 2006). Nos argumentos que denunciam os efeitos deletrios do preconceito e da hostilidade contra a sexualidade no-heterossexual e a no conformi- dade de gnero, os saberes ligados psicologia so invocados. Entretanto, no se deve esquecer que neste jogo de verdades, no qual a construo da legitimidade uma disputa permanente, existem contra-argumentos, tam- bm derivados do campo da psicologia (e muitos outros da religio) que fazem aluso a uma perspectiva essencialista dos comportamentos e das identidades de gnero e sexuais, que justifcam uma hierarquizao entre as sexualidades, sua patologizao e a restrio de direitos. Cabe salientar que o debate em torno de uma educao para a sexualida- de que inclua a diversidade sexual e que produza refexes em torno da ho- mofobia, do heterossexismo e dos direitos sexuais recente no mundo todo e tambm no Brasil. Entretanto, mesmo sendo recente, pode-se afrmar que existe um movimento importante nas sociedades ocidentais ou, mais pro- priamente, naquelas fundadas em uma matriz democrtica e laica mesmo que a laicidade seja pouco praticada (lorea, 2006) de debate e implanta- o de programas e projetos de educao para a sexualidade que respeitem a diversidade. Brasil, Argentina, Chile, Peru, Uruguai, Mxico, muitos estados dos EUA, Canad, Irlanda, Inglaterra, Blgica, Holanda, Frana, Sucia, Di- namarca, Espanha, Itlia, Alemanha, Sua, frica do Sul, Austrlia e Nova Zelndia, para citar alguns exemplos, tm desenvolvido aes e projetos em diferentes nveis e com distintos graus de avano e maturidade. Podemos afrmar de forma sinttica que as condies contemporneas para a emergncia da incluso de um debate em torno da diversidade sexu- al na educao (no contexto brasileiro) esto associadas ao dos movi- mentos sociais ligados que defendem os direitos sexuais e que nasceram ou renasceram no Brasil no fnal da dcada de 1980 em relao direta ou indi- reta com a epidemia da aids e com a redemocratizao do pas. Esta ltima caracterizada pelo novo carter institucional idealizado na constituio de 1988 (dita cidad) e cujo marco foi a criao do sus (Sistema nico de Sa- de) e a universalizao do direito ateno. Neste cenrio social e poltico, a reao dos movimentos sociais foi fun- damental para reverter a lgica estigmatizante dos chamados grupos de risco na primeira fase da epidemia. Esta reao demonstrou a necessidade de abertura do dilogo pblico sobre a diversidade sexual como forma de combate a epidemia que se alastrava para muito alm dos denominados grupo e fez com que a sexualidade entrasse no debate poltico de uma forma distinta daquela da patologizao/categorizao que marcou a afrmao do dispositivo da sexualidade a partir do sculo xix (foucault, 1976). A aids permitiu que se discutisse a pluralidade das expresses da sexu- alidade, pois a epidemia desde seu incio foi enfrentada pelos movimentos sociais que assumiram um papel fundamental na defnio das polticas pblicas e, de certa forma, fzeram com se retomassem discusses origina- das na revoluo sexual dos anos 1960 3 . A luta pela afrmao do direito a uma sexualidade plena defendida pelo feminismo e a defesa do direito a uma homossexualidade vivida fora do armrio defendida pelo movimento gay 4 caracterizaram os embates internos relativos s formas de luta contra epidemia. No campo da sade mental, temos como marcas das transfor- maes neste campo a retirada da homossexualidade da lista das patologias mentais pela Associao Psiquitrica Americana em 1973 (fruto da conju- gao de esforos de cunho cientfco internos associao e dos movimen- tos sociais) e pela Organizao Mundial da Sade em 17/05/1990. Dia este que se tornou, a partir de 2005, por iniciativa da ong idaho International Day Against Homophobia a data que marca a luta mundial contra a homo- 3 E tambm em uma fase anterior, durante a chamada belle poque para alguns e anos loucos para outros, na dcada de 1920, at que a onda fascista dos anos trinta e a moralizao posterior II guerra mundial encerrassem momentaneamente este debate. 4 O qual tem como marco histrico a resistncia emblemtica dos freqentadores do bar Stonewall (a maior parte eram travestis e no gays) em Nova Iorque a mais uma incurso da polcia em 1969 e cuja data comemorada em boa parte do mundo por ocasio das paradas gay. Algumas paradas buscaram outra denominao, no caso de Porto Alegre a escolha foi de Parada Livre buscando demarcar a dife- rena da ong nuances em relao s polticas identitrias. 158 Henrique Caetano Nardi 159 Educao, heterossexismo e homofobia fobia. No Brasil, cabe ressaltar a deciso do Conselho Federal de Psicologia de condenar tratamentos de cura da homossexualidade. A aceitao legal da diversidade sexual e da afrmao dos direitos se- xuais (rios, 2006) tem avanado no contexto brasileiro, mais por meio da jurisprudncia (reconhecimento do direito penso e adoo por casais do mesmo sexo, etc.) que na esfera legislativa e institucional, entretanto os esforos dos governos que sucederam o perodo ditatorial no devem ser desconsiderados. Em 2004 o governo brasileiro lanou o programa Brasil sem Homofobia 5 do qual fazem parte aes no campo do direito e da edu- cao, principalmente, e que buscam a afrmao da igualdade de direitos e a proteo das minorias sexuais contra efeitos do preconceito e do estigma. Do ponto de vista da sustentao terica destas transformaes discur- sivo-polticas, os saberes associados ao campo da psicologia esto invaria- velmente presentes. O aval da psicologia est presente no que diz respeito a questes relativas partilha entre o normal e o patolgico relacionados diversidade de expresses da sexualidade; assim como na argumentao a favor ou contrria igualdade de direitos no que diz respeito legitimidade de casais do mesmo sexo para adotar crianas ou para fazer uso da repro- duo assistida (uziel, 2006; zambrano, 2006). A educao enquanto instituio que se democratizou durante o sculo xx e que apontada idealmente como um lcus privilegiado de formao para a cidadania e um espao de passagem entre o mundo privado da fam- lia e o espao pblico do trabalho 6 , se v agora confrontada com o desafo de transformar-se. As polticas educacionais que propem a luta contra a homofobia e o respeito diversidade sexual se deparam com prticas natu- ralizadas de reiterao da norma no que se refere generifcao da subjeti- vidade (louro, 1999; britzman, 1996; lelievre e lec, 2005), a afrmao de um modelo de famlia (mello, 2006) e de ocupao do espao social baseada na hierarquizao de posies e na heterossexualidade compuls- ria (rich, 1980).
5 O nome completo do programa Brasil sem homofobia: programa de combate violncia e discri- minao contra glbt e promoo da cidadania homossexual vemos bem como a questo da demo- cracia sexual se insere no programa governamental. 6 Apresentao esquemtica e criticvel sob a lente foucaultiana se questionarmos o que de pblico constitui a famlia e o que de privado constitui o trabalho, pois a lgica familista tem um impacto im- portante na organizao social, ver, por exemplo, Colbari (1995) e Mello (2006). O contexto brasileiro e internacional No Brasil, a afrmao da necessidade de uma poltica pblica de educa- o se baseia em estudos que apontam para a intensidade das formulaes homofbicas e heterossexistas presentes nas escolas. A pesquisa de maior impacto foi conduzida pela unesco (Abramovay; Castro & Silva, 2004) em 15 capitais brasileiras envolvendo 16.422 estudantes, 241 escolas, 4.532 pais e 3.099 professores e funcionrios de escolas e revela os efeitos da falta de formao no campo da sexualidade e a extenso da rejeio da homosse- xualidade (e por deduo hipottica de toda a no conformidade norma heterossexual). Os resultados da pesquisa no so homogneos, mostrando a diversidade de situaes no Brasil de acordo com a regio e o sexo do entrevistado. Por exemplo, em Porto Alegre, 42% dos jovens do sexo mas- culino afrmam ter preconceitos contra os homossexuais contra 13% das jovens. Dados que reforam a hiptese de Judith Butler (2002) em relao ao papel da exaltao da virilidade na incorporao melanclica da homos- sexualidade na cultura. Os pais de alunos tambm no fogem tendncia, em Fortaleza 47% dos pais no gostaria que seus flhos tivessem colegas homossexuais contra 22% em Porto Alegre. Em relao aos professores e funcionrios, 5,9% em Braslia e 1,2% em Porto Alegre, declaram no dese- jar ter estudantes homossexuais. Alm destes dados, a pesquisa coordenada por Srgio Carrara (carrara et al., 2003), mostra que dos 416 entrevis- tados que se auto-identifcaram como homossexuais (participantes da 8 Parada Gay do Rio de Janeiro), aproximadamente 60% denunciaram j ter sido vtima de violncia ou de algum tipo de agresso motivada por orien- tao sexual. Com relao ao local das agresses, 11,9% dos entrevistados jovens de 14 a 21 anos indica ter sido vtima de agresses graves na escola em razo da orientao sexual. Os resultados apresentados acima refetem de certa forma, o modo como a educao brasileira tem tratado a questo. A lei brasileira prev a educao sexual na escola desde 1928, entretanto, at 1950, ainda que o contedo deste programas fosse basicamente de carter higienista, havia uma importante resistncia a sua implantao marcada por uma campanha de oposio na mdia infuenciada pela igreja catlica. A situao poltica se altera nos anos 1970 quando o movimento feminista assume a reivin- dicao de uma educao sexual no sexista, no entanto, apesar de expe- rincias pontuais, no existe uma difuso desta discusso no conjunto das escolas brasileiras. somente a partir do fnal da dcada de 1980 que vamos 160 Henrique Caetano Nardi 161 Educao, heterossexismo e homofobia encontrar projetos pedaggicos dirigidos preveno da aids e da gravi- dez na adolescncia que abordam tangencialmente a sexualidade. Segundo Miriam Abramovay (2004), estes programas, baseados principalmente em uma abordagem biologizante do corpo e do sexo e centrados na idia do risco, so ainda os mais freqentes. Cabe fazer uma ressalva em relao ao trabalho de pesquisadores e pesquisadoras como, por exemplo, Vera Paiva que, ao trabalharem com a preveno da aids, afrmam a centralidade da importncia de uma cultura de respeito diversidade de orientao sexual (paiva, 1999). Em 1995, como resposta/efeito de um movimento de crtica forma pre- dominantemete medicalizada de pensar a sexualidade dos programas de educao sexual, a qual foi impulsionada em grande parte pela ao dos movimentos feministas e lgbtttiqs 7 e pelos debates em torno da vulnera- bilidade social e cultural dos jovens aids, o governo anuncia os Parme- tros Curriculares Nacionais nos quais a sexualidade anunciada como um tema transversal. O documento prev que o contedo de diversas discipli- nas integre a sexualidade de maneira articulada com outros temas como a tica, a sade, o gnero, a ecologia e a pluralidade cultural. Em relao aos efeitos desta defnio curricular, existem vises dis- tintas entre os pesquisadores deste campo (abramovay, 2004; altmann, 2001) sobre a incorporao dos parmetros cultura da escola. Segundo Altmann (2001), a motivao governamental para a incluso da temtica se deu, ainda e principalmente, com a inteno de prevenir aids/dsts e gravidez na adolescncia e no a partir de uma lgica de respeito aos direi- tos sexuais como direitos humanos. Os parmetros se inscrevem, portanto, em um modelo de educao sexual j presente e marcado pelo domnio da biologia (uma cincia da sexualidade uma scientia sexualis como dizia Foucault), dentro do qual a discusso da construo social da sexualidade e da diversidade sexual marginal ou ausente. Alm disso, mesmo os programas dirigidos pre- Alm disso, mesmo os programas dirigidos pre- veno das dsts/aids so usualmente propostos fora dos horrios de aula e representam intervenes breves e pontuais. Cabe ressaltar, ainda, que as/os professoras/es, na sua grande maioria, no receberam formao para desenvolver aes educativas relacionadas sexualidade. 7 No existe um movimento com esta amplitude e tampouco, uma unidade ou coerncia interna nas diversas parcelas desta sigla. Poderamos falar em movimentos minoritrios, mas tambm cairamos na hierarquizao dos movimentos, i.e., quais so mais minoritrios? Assim como existe o risco de apontar quais seriam as vtimas maiores do preconceito contra a identidade de gnero e/ou a orienta- o/preferncia sexual. A partir destas constataes e da presso dos movimentos sociais, o go- verno brasileiro lanou em 25 de maio de 2004 o programa Brasil sem homofobia. Dentre os objetivos do programa, destacamos a proposta de cursos de formao para professores visando a promoo do respeito di- versidade sexual como um direito fundamental para o pleno exerccio da cidadania. Para dar conta deste objetivo, o Ministrio da Educao lanou editais em 2005 e 2006 propondo o fnanciamento de projetos de forma- o de professoras/es. Quinze projetos foram escolhidos em 2005 e trinta e dois em 2006, entre estes, os projetos de duas ongs de Porto Alegre foram aprovados nos dois editais citados. O primeiro destes (Educando para a Diversidade) j est em na terceira edio e resultado de uma parceria entre a ong Nuances (a mais antiga ong no campo das lutas pelos direitos liberdade do exerccio da sexualidade de Porto Alegre), o mestrado em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e as Secretarias Municipal de Educao (Porto Alegre -smed) e Estadu- al do Rio Grande do Sul (sec-RS). A avaliao inicial dos efeitos desta formao (trata-se aqui da primeira edio em 2006) por parte dos participantes positiva (nardi e quartie- ro, 2006). O carter inovador da experincia foi ressaltado pelas/os par- ticipantes (professoras/es das escolas pblicas da rede municipal de Por- to Alegre e estudantes de diversos cursos universitrios), uma vez que a proposta do projeto foi construda a partir de uma perspectiva de trocas entre professoras/es de escolas pblicas, pesquisadoras/es e militantes dos grupos lgbttiq. Os relatos das experincias de enfrentamento do pre- conceito por parte de lsbicas, travestis e homossexuais masculinos foram particularmente valorizados pelas/os professoras/es e demais alunas/os do projeto. Entretanto, se o ganho para a aprendizagem pessoal foi considera- do importante e transformador, as/os professoras/es ainda se encontram muito receosas/os em relao s formas possveis de interveno nas suas escolas de origem. As/os participantes compreendem que no existe uma frmula nica aplicvel a todas as situaes e o receio no deriva de difculdades da or- dem das metodologias de interveno. O receio tem como origem o medo resultante de experincias vividas na escola pelo simples fato de freqentar a formao e que tem como fonte a suspeita das/os colegas; ou seja, como se o fato de intervir no campo do combate homofobia e do respeito diver- sidade sexual imediatamente produzisse um contgio. Elas/es passam a ser identifcadas/os como homossexuais. O contgio do estigma como descrito 162 Henrique Caetano Nardi 163 Educao, heterossexismo e homofobia por Erwin Gofman. Alm deste efeito de contaminao que as/os expem ao mesmo preconceito que elas/es pretendem enfrentar, existe uma sensa- o de falta de informao. Para alm do fato de muitas vezes a formao ter sido a primeira vez que estas/es professoras/es tiveram a oportunida- de de refetir mais intensamente sobre a sexualidade no contexto da esco- la, esta demanda ilimitada de informao indica um lugar de professor/a que seria aquele que tudo sabe e para a/o qual a dvida um atestado de incapacidade. Como conseqncia desta incapacidade situada no campo da informao, se anuncia a necessidade permanente do/a especialista. A psicologia particularmente demandada neste lugar e buscada pelas/os professoras/es como uma forma de legitimao, uma vez que a psicologia continua sendo identifcada como uma disciplina que integra um regime de verdades que traa linhas ntidas entre o normal e o patolgico no cam- po da sexualidade. Percebe-se, ainda nesta lgica, uma obsessiva busca de explicaes para a causa da homossexualidade (a homossexualidade, no imaginrio social, acaba sendo um termo que engloba todas as outras for- mas de experimentao da sexualidade no-heterossexual e identidades de gnero desviantes). Esta demanda explicada (pelas/os participantes) em razo da necessidade de justifcar estrategicamente as aes propostas na escola a partir da legitimidade do discurso cientfco. No resto do mundo ocidental pesquisas apontam para contextos distin- tos e programas mais ou menos institucionalizados (szalacha, 2003). A complexidade e heterogeneidade das polticas pblicas de educao podem ser exemplifcadas pela anlise de James Sears (2005). Nos quadros abaixo se pode perceber que o Brasil ocupa uma posio intermedria em relao ao clima cultural e aos programas de educao dirigidos incluso da temtica lgbtttq: Quadro I Clima Cultural Persecutrio Homofbico Heteronormativo Favorvel Proativo Egito Rssia Frana Bulgria, ndia China frica do Sul Mxico Japo Israel Brasil Inglaterra Austrlia Nova Zelndia EUA Canad Holanda Fonte: Sears, 2005 (p. xxviii) Quadro 2 - Programas de Educao integrando temas LGBT Nenhum Pouco signifcativos Marginais Moderados Importantes Egito frica do Sul Mxico Brasil EUA Frana Bulgria, ndia Israel Inglaterra Canad Russia China Japo Austrlia Nova Zelndia Holanda Fonte: Sears, 2005 (p. xxviii) Mesmo que os contextos sejam distintos, a base argumentativa dos pro- gramas no campo da educao se utiliza de enunciados oriundos do con- junto de saberes e prticas que englobam a psicologia. A educao escolar pode ser defnida como integrante do dispositivo da sexualidade e, portanto, como agenciadora privilegiada do biopoder, do controle e da normalizao ao esquadrinhar a partir dos usos dos saberes e dos enunciados oriundos de diversas disciplinas, mas com um lugar pri- vilegiado destinado psicologia o normal e o patolgico. A partir de outro olhar, entretanto, mas, ao mesmo tempo, a escola pode ser pensada como uma forma fundamental de acesso (talvez demasiada- mente idealizada nas sociedades democrticas) igualdade de direitos. Para a compreenso do lugar da educao no dispositivo da sexualida- de, um dos conceitos-chave pouco explorados o de propriedade social, tal como defnido por Robert Castel (1998), pois implica em retomar o ide- al republicano que funda a escola pblica e laica como potencialidade de construo de condies para a efetivao de direitos igualitrios para os cidados. Embora estejamos destacando estes dois componentes do dispo- sitivo da sexualidade (a normalizao e a propriedade social), importante ressaltar que no se tratam de dois lados, pois estes dois aspectos/compo- nentes so complementares; basta lembrar o quanto a noo de seguridade social, por exemplo, se construiu a partir de diviso sexual do trabalho e de uma lgica familista que pressupe a heterossexualidade. A compreenso do lugar da escola no interior do dispositivo da sexua- lidade permite tornar mais clara a noo de biopoltica/biopoder em Fou- cault, uma vez que, de forma sucinta, a biopoltica designa uma transfor- mao do poder que passa no somente a governar os indivduos atravs da disciplina dos corpos, mas tambm de se ocupar do conjunto da populao. A biopoltica, na lgica foucaultiana, vai ocupar-se da gesto da sade, da 164 Henrique Caetano Nardi 165 Educao, heterossexismo e homofobia higiene, da alimentao, da sexualidade, da natalidade etc., na medida em que estes elementos se transformam em questes polticas (revel, 2002, p. 13). Nesta direo, a escola foi transformada em lugar privilegiado de governamentalizao do Estado moderno. Naquele momento a relao famlia/Estado se inverteu; de acordo com Michel Foucault, a famlia pas- sou a aparecer como elemento interior populao, um segmento privi- legiado sempre que o Estado necessitasse obter algo da populao quanto ao comportamento sexual, demografa, ao nmero de flhos, etc. (fou- cault, 1994c, p.652). Asim, a escola (como uma continuidade-ruptura da famlia) passa a ser utilizada como lcus de aprendizagem (pela repetio reiterada) dos modelos de gnero e da higiene do sexo, tendo como obje- tivo fnal o controle da populao. Nesta funo de normalizao, a escola considerada, nas sociedades ocidentais, como uma ligao entre o mundo privado e o espao pblico (britzman, 1996); e o Estado, pela via da biopoltica que vai progressi- vamente modelar as fronteiras entre o pblico e o privado (lemke, 2001). Esta fronteira na qual se situa a escola, hoje, por exemplo, se utilizarmos como exemplo o contexto francs 8 como forma de demonstrar esta dupla face do dispositivo, um lugar de confrontao do debate entre o universa- lismo republicano e o chamado comunitarismo. Neste embate podemos ressaltar que o uso estratgico destas noes (to caras formao poltica francesa) resulta na visibilidade negativa de certos grupos; e, impor- tante lembrar, no somente com relao sexualidade, mas em relao ao lugar das/os migrantes oriundos de culturas no ocidentais ou no crists, as quais so marcadas por uma visibilidade abjeta que caracteriza a racia- lizao da questo social francesa. O carter performtico do enunciado que proclama a noo de universalismo abstrato, no caso do dispositivo da sexualidade, se traduz, de fato, pela imposio de uma cultura heteronor- mativa na escola. no interior deste jogo de verdades que por uma via instaura a igual- dade de direitos na abstrao neutra (o que equivale na sociedade con- tempornea imposio das formas consagradas da dominao masculina e da heteronormatividade) e, pela outra, que busca a igualdade de direitos respeitando as diferenas que se do os embates em torno da introduo de programas de educao para a sexualidade que contemplem a diversi- dade sexual. 8 Utilizo aqui o exemplo francs, pois foi objeto de recente pesquisa de ps-doutorado (nardi, 2008). Judith Butler sugere que a construo no espao pblico da legitimidade de um saber que integre a diversidade sexual em nossas culturas pode nos ajudar a ultrapassar o modo de assujeitamento melanclico de incorpora- o da homossexualidade. Ela afrma que: Quando certos tipos de perdas so constrangidos por um conjun- to de interditos culturalmente prevalentes, ns podemos esperar a emergncia de uma forma de melancolia culturalmente preva- lente que marca a interiorizao do luto ausente e a impossvel ligao homossexual. E l, onde no existe reconhecimento p- blico suscetvel de nomear e portar tal luto, a melancolia produz graves conseqncias culturais. No nos espantemos, evidente- No nos espantemos, evidente- mente, do fato de que quanto mais a identifcao masculina hiperblica e defensiva, mais violenta a ligao homossexual privada do luto. Neste sentido, ns podemos compreender tanto a masculinidade como a feminilidade como sendo formadas e consolidadas por meio de identifcaes que derivam em parte de um luto negado. Quando o interdito da homossexualidade cul- Quando o interdito da homossexualidade cul- turalmente dominante, a perda do amor homossexual apagada do fato de um interdito reiterado e ritualizado em toda a cultura (butler, 2002, p. 208-9). Se seguirmos a anlise de Butler, podemos afrmar que a partir do mo- mento que o reconhecimento (ou no) das/os jovens lgbtttiq na escola (e para alm dela) est relacionado a interdito cultural; assim, quando as polticas pblicas passam a reconhecer a homofobia como fonte de sofri- mento para uma juventude que tem sua existncia culturalmente negada, se produzem as condies sociais para a emergncia do que Didier Fassin (2005) chamou da biolegitimidade de um grupo face interveno prote- tora das instituies pblicas. a biolegitimidade dos jovens lgbtttiq que est no centro das rei- vindicaes de militantes e pesquisadores em relao ao papel do Estado. Como afrma Guillaume Tanhia (2005): Se os adolescentes lgbt se sentem vulnerveis no seio da escola, tambm porque eles o so face a suas famlias. Entretanto, se consideramos a escola como essencial ao desenvolvimento das 166 Henrique Caetano Nardi 167 Educao, heterossexismo e homofobia crianas; que ali passam uma parte no negligencivel de suas vi- das, e que ali devem poder se sentir em segurana e se realizar, ns temos o direito de exigir que o sistema educativo leve em conside- rao os adolescentes lgbt, os quais se encontram sem referncias, reconhecimento e/ou em sofrimento (tanhia, 2004, p.132). Terminando A biolegitimidade depende da forma assumdida pelas apresentaes pos- sveis do humano, o qual foi reconhecido idealmente, desde a modernida- de, como cidad/ao de direitos e cuja dimenso universal dos valores as- sociados humanidade/cidadania foi conquistada por meio das lutas que marcaram e marcam nosso tempo. O discurso do presidente Lula (http:// www.imprensa.planalto.gov.br/download/discursos/pr714-2@.doc) na I Con- ferncia chamada para discutir as questes relativas aos direitos dos cidados glbt 9 um bom caso para anlise de uma das derivas possveis das polticas que buscam um reconhecimento identitrio e uma afrmao na lei das bali- zas possveis para as experimentaes do que se pode ser no mundo. O discurso no coerente e tampouco homogneo, tanto do ponto de vista poltico como do ponto de vista terico. Exatamente por esta razo, ele se constri no paradoxo da situao poltica brasileira e um refexo de nossa estrutura e dinmicas sociais. Podemos encontrar no discurso desde trechos que associam todas as parcelas da populao que so compreendi- dos como demandantes de uma forma especfca de tutela, ou seja: cadei- rantes, carroceiros, cegos, etc. at uma dimenso de anlise pragmtica que afrma respeito igual para em razo do fato de todas/todos pagarmos im- postos. Certamente o discurso em vrios momentos aponta para a difcul- dade de afrmao de um Estado Laico e tambm no carter paternalista/ clientelista de nossa tradio poltica. So estes nossos dilemas e nossos desafos. Novas polticas? Sim e no! Temos certamente a questo da diversidade sexual colocada na arena p- blica e nos textos legais, mas esta circulao da palavra se encontra presa em razo das estratgias identitrias escolhidas a demandas tutelares, cujas repostas governamentais, no que tange legitimidade de direitos, ainda se associa a estratgias familistas amplamente presentes em nossa 9 Transformada simbolicamente em lgbt, para reverter o homocentrismo ou gaycentrismo das po- lticas e das lutas. histria desde o perodo Vargas (nardi, 2006; colbari, 1995). Referncias Bibliogrfcas ABRAMOVAY, M; CASTRO M. G. & SILVA, L.B. Juventudes e sexualidade. Braslia: UNESCO, 2004. ALTMANN, H. Orientao Sexual nos Parmetros Curriculares Nacionais. Estudos Feministas, 9(2): 575-585 2001. ARN, M. & CORRA, M. 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Guilherme Silva de Almeida Mestre em Sade Pblica pela Fundao Oswaldo Cruz e Doutor em Sade Coletiva pelo Instituto de Medicina Social (ims) da uerj. Professor adjunto da Faculdade de Servio Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (uerj). Henrique Caetano Nardi Mestre e Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor do Departamento e ppg em Psicologia Social e Instituticional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Jlio Assis Simes Mestre em Antropologia Social e doutor em Cincias Sociais pela Universidade Estadual de Campinas. Professor do Departamento de Antropologia da usp.
172 Larissa Pelcio Doutora em Cincias Sociais pela Universidade Federal de So Carlos e professora da Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho. Regina Facchini Mestre em Antropologia Social e doutora em Cincias Sociais pela Unicamp. Pesquisadora do Ncleo de Estudos de Gnero Pagu e professora colaboradora do Programa de Doutorado em Cincias Sociais, ambos da Unicamp. Roger Raupp Rios Juiz Federal. Mestre e Doutor em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Srgio Carrara Mestre e Doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional/ Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Silvia Ramos Doutora em Cincias pela ensp/Fiocruz e pesquisadora do Centro de Estudos de Segurana e Cidadania da Universidade Candido Mendes/RJ.
STRATHERN, Marilyn. O Efeito Etnográfico e Outros Ensaios - Coordenação Editorial: Florencia Ferrari. Tradução: Iracema Dullei, Jamille Pinheiro e Luísa Valentini. São Paulo: Cosac Naify, 2014. 576 P.