Balada de Amor Ao Vento Paulina Chiziane PDF
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Balada de Amor Ao Vento Paulina Chiziane PDF
romance de autoria
feminina em Moambique:
Balada de amor ao vento,
de Paulina Chiziane
Anselmo Peres Als*
Resumo: Este artigo explora como a narrativa
moambicana questiona e redimensiona os
valores tradicionais e ocidentais relacionados ao
casamento, tomando como objeto de anlise
Balada de amor ao vento (1990), de Paulina
Chiziane, o primeiro romance de autoria feminina
publicado em Moambique.
Palavras-chave:
literatura
romance; autoria feminina.
moambicana;
star-se-ia vivendo um perodo de globalizao do imaginrio, correlativo globalizao do capital econmico e das relaes internacionais?
Ou ser que a literatura, na contramo da globalizao econmica do
planeta, estaria funcionando como um processo discursivo que, a contrapelo da
homogeneizao, insiste no carter irredutvel da diferena como capital cultural fundamental na economia das relaes humanas? O escritor moambicano Mia Couto, talvez um dos mais representativos romancistas da frica
lusfona contempornea, ao lado de outros como Germano Almeida (Cabo
Verde) e Pepetela (Angola), reconhecido pela crtica em funo do talento inventivo que expressa em seus escritos, que vai desde o nvel lexical, com a criao de neologismos inspirados nos usos populares do portugus, at a fabulao de universos que beiram o realismo mgico, como no romance O ltimo voo
do flamingo (2000). Cabe salientar, entretanto, que no apenas o apelo potico
dos escritos de Mia Couto que chama a ateno de seus leitores e crticos
mundo afora.
O poder de subverso cifrada por meio das imagens poticas narradas nas
histrias de Mia Couto extrapola os domnios da norma culta da lngua portuguesa. Por detrs das inmeras metforas e neologismos, h um profundo sen
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Doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor adjunto de Literaturas de Lngua
Portuguesa no Departamento de Letras Vernculas da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: anselmoperesalos@yahoo.com.br
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Esse senso de compromisso poltico com os processos histricos de consolidao da sociedade moambicana torna-se ainda mais saliente quando se passa
a trabalhar com a literatura de autoria feminina. Celebrada pelos crculos literrios como a primeira mulher moambicana a publicar um romance, Paulina
Chiziane vem ganhando amplitude, ao lado de nomes como o de Llia Mompl,
como uma das romancistas de maior destaque do final do sculo XX e incio do
sculo XXI, com uma obra de grande repercusso no apenas em Moambique,
mas em toda a frica lusfona. Entre seus romances, cabe destacar Balada de
amor ao vento (1990), Ventos do apocalipse (1993), O stimo juramento (2000),
Niketche: uma histria de poligamia (2002) e O alegre canto da perdiz (2008).
Balada de amor ao vento, publicado pela primeira vez em 1990 pela Associao dos Escritores Moambicanos (AEMO) e reeditado em 2007 pela Editora
Caminho, de Lisboa, como o volume 17 da coleo Outras Margens, traz baila
o conflituoso embate de certos valores tribais autctones com as diretrizes sociais ocidentalizadas. Tal embate termina por redimensionar a configurao da
organizao familiar moambicana, em especial no que toca aos papis sociais
exercidos pelas mulheres, tanto na esfera pblica quanto na privada. De acordo
com a autora, a terra a me da natureza e tudo suporta para parir a vida.
Como a mulher. Os golpes da vida a mulher suporta no silncio da terra. Na
amargura suave segrega um lquido triste e viscoso como o melo (CHIZIANE,
2007, p. 12). No vrtice dessa turbulncia, quem mais sofre so as mulheres,
impedidas de constituir identidades viveis, e mesmo de participar efetivamente
da vida pblica como cidads plenas. Papel decisivo no cerceamento da liberdade das mulheres exercido pelas supersties oriundas das religies bantu,
como afirma a prpria autora em texto posterior ao romance:
Nas religies bantu, todos os meios que produzem subsistncia, riqueza e conforto como a gua, a terra e o gado so deificados, sacralizados. A mulher, me
da vida e fora da produo da riqueza, amaldioada. Quando uma grande
desgraa recai na comunidade sob a forma de seca, epidemias, guerra, as mulheres so severamente punidas e consideradas as maiores infractoras dos
princpios religiosos da tribo pelas seguintes razes: so os ventres delas que
geram feiticeiros, as prostitutas, os assassinos e os violadores de normas. Porque o sangue podre das suas menstruaes, dos seus abortos, dos seus natimortos que infertiliza a terra, polui os rios, afasta as nuvens e causa epidemias,
atrai inimigos e todas as catstrofes (CHIZIANE, 1992, p. 12).
No confronto entre os valores da modernidade ocidental e os preceitos autctones que, ainda hoje, pautam fortemente a organizao social moambicana, a
escrita romanesca de autoria feminina ganha uma importncia fundamental no
processo de constituio de alternativas identitrias para as mulheres. Entende-se aqui a categoria identidade nos mesmos termos apresentados por Rita
Terezinha Schmidt (2000, p. 103):
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O ROMANCE DE AUTORIA FEMININA EM MOAMBIQUE: BALADA DE AMOR AO VENTO, DE PAULINA CHIZIANE, Anselmo Peres Als
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A histria de amor entre Sarnau e Mwando, permeada de encontros e desencontros, o eixo a partir do qual se aciona a memria da personagem central de
Balada de amor ao vento, que realiza uma retomada de sua conturbada trajetria a levar-lhe da riqueza e da realeza misria. O casamento poligmico ainda
na adolescncia, a traio ao marido com um homem amado desde a infncia, a
fuga da aldeia e a sobrevivncia em meio miservel Mafalala (bairro pobre nos
arredores de Maputo) encaixa-se em uma torrente de eventos nos quais a constante mais forte o permanente questionamento das convenes sociais relativas aos papis femininos no contexto familiar moambicano. A economia narrativa arregimentada pela autora, que alterna uma voz narrativa extradiegtica
com focalizao externa e uma voz narrativa intradiegtica com focalizao interna, permite sublinhar os sentimentos de Sarnau frente ao modus socialis
operandi hegemnico.
Vivendo em Mambone, Sarnau abandonada grvida por Mwando, um ex-seminarista, aps ter vivido com ele uma histria de amor extraconjugal repleta de esperanas. Mwando abandona Sarnau para casar com Sumbi, moa crist escolhida para ser sua esposa, em um casamento monogmico, de acordo
com as regas pregadas pela igreja catlica. Desesperada, ao receber a notcia de
Mwando, a jovem termina perdendo o filho em uma tentativa de suicdio. Sua
vida muda quando eleita para ser a primeira esposa de Nguila, herdeiro da
tribo dos Zucula. Tal como manda a tradio, os Zucula tm de pagar o lobolo
famlia da noiva para que ela d sua permisso para a realizao do casamento.
Cabe aqui uma breve explanao acerca do lobolo, uma vez que, apesar de
antropologicamente aparentado com a prtica do pagamento do dote, ele funciona de acordo com uma lgica cultura bastante peculiar, relativamente comum entre os povos agrrios subsaarianos. Na regio moambicana ao sul do
Save, os casamentos costumavam (e, nas regies rurais, ainda costumam) ser
tratados como uma questo privada, mas resolvida coletivamente entre dois
grupos e concluda sem interveno das autoridades, fossem elas polticas ou
religiosas. O objetivo primeiro do casamento, tal como celebrado nessas sociedades tribais e agrrias, era a produo de novos indivduos para o cl (os quais,
em um futuro prximo, deveriam assumir o papel de provedores, assegurando a
sobrevivncia desse cl, como corpo coletivo organizado). As negociaes entre
os dois grupos distintos (representados pelo noivo e pela noiva) eram conduzidas
por membros de destaque das famlias interessadas, sendo o consentimento dos
noivos para o casamento um pressuposto. A permisso para a unio era vista,
pelos dois grupos, como uma espcie de troca de servios entre cls distintos:
um deles cedia ao outro as capacidades reprodutivas de um dos seus membros
(o ventre feminino) e, a ttulo de compensao por essa perda, o cl reclamava
determinados bens (tambm chamados, em seu conjunto, de lobolo), os quais,
via de regra, acabavam sendo destinados aquisio de uma noiva para um dos
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Tive a oportunidade de lecionar, entre 2009 e 2011, em diferentes instituies de Ensino Superior em Maputo, capital de
Moambique, tais como o Instituto Superior de Cincias e Tecnologia de Moambique (ISCTEM), o Instituto Superior de
Comunicao e Imagem de Moambique (ISCIM), o Centro Cultural Brasil-Moambique (CCBM) e a Universidade Islmica Muss
Bin Bique. Conversando informalmente com minhas alunas, a grande maioria delas considerava o lobolo uma conditio sine qua
non para que se casassem, pois atribua a essa prtica a capacidade de assegurar a estabilidade e a perenidade da unio com
seus maridos. Curiosamente, o valor atribudo ao lobolo como ritual que assegurava as bnos unio entre um homem e uma
mulher tambm se fazia presente entre as alunas muulmanas e catlicas, fossem elas negras, fossem elas descendentes de
imigrantes indianos e paquistaneses.
Para consideraes mais aprofundadas sobre a prtica do lobolo em Moambique, conferir Antnio Rita-Ferreira (1967-1968),
Felizardo Cipire (1996), Henri Junod (1996) e Paulo Granjo (2005).
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O ROMANCE DE AUTORIA FEMININA EM MOAMBIQUE: BALADA DE AMOR AO VENTO, DE PAULINA CHIZIANE, Anselmo Peres Als
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Localizada na provncia de Inhambane, no sul de Moambique, Mambone carrega a reputao de ser a terra dos mais poderosos
nhamussoros (feiticeiros tradicionais) de todo o pas.
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lhe prope recomear sua vida em comum. Sarnau culpa Mwando por todas as
misrias que teve de enfrentar.
Forando a entrada na palhota4 de Sarnau, Mwando depara-se com os filhos
de Sarnau. Atendendo ao apelo dos filhos, que reconhecem Mwando como pai,
Sarnau cede e aceita Mwando em sua palhota, mesmo sabendo que muito provavelmente ter de sustent-lo pelo resto de sua vida.
Balada de amor ao vento um romance sintomtico do entrelugar da enunciao ps-colonial. Como tal, mostra-se permeado por contradies e ambiguidades. Com relao a essas ambivalncias e contradies que se entrelaam nos
ns e fios urdidos pela narradora, cabe retomar uma reflexo de Homi Bhabha
(1998, p. 201), com relao problemtica experincia da escrita da nao:
Se, em nossa teoria itinerante, estamos conscientes da metaforicidade dos povos de comunidades imaginadas migrantes ou metropolitanos ento veremos que o espao do povo-nao moderno nunca simplesmente horizontal.
Seu movimento metafrico requer um tipo de duplicidade de escrita, uma temporalidade de representao que se move entre formaes culturais e processos
sociais sem uma lgica causal centrada. E tais movimentos culturais dispersam
o tempo homogneo, visual, da sociedade horizontal. A linguagem secular da
interpretao necessita ento ir alm da presena do olhar crtico horizontal se
formos atribuir autoridade narrativa adequada energia no-sequencial proveniente da memria histrica vivenciada e da subjetividade. Precisamos de
um outro tempo de escrita que seja capaz de inscrever as intersees ambivalentes e quiasmticas de tempo e lugar que constituem a problemtica experincia moderna da nao ocidental.
Termo utilizado no portugus moambicano para designar as pequenas casas das pessoas humildes fora da zona urbana. A
palavra faz aluso cobertura de palha utilizada na construo.
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O ROMANCE DE AUTORIA FEMININA EM MOAMBIQUE: BALADA DE AMOR AO VENTO, DE PAULINA CHIZIANE, Anselmo Peres Als
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Paralelamente, relativamente distante dali, Mwando, o moambicano monogmico e cristo, assimilado pelos valores ocidentais, manipulado como uma
marionete por sua esposa, Sumbi, que assume o papel de tirnica titereira a
sugar, de maneira vamprica, as posses e a masculinidade do marido:
Mwando chegou ao cmulo de esvaziar completamente os celeiros da famlia,
para satisfazer os caprichos da esposa, filha do senhor de terras, a quem nunca
faltaram capulanas garridas e colares de luxo para dar mais graa quele corpo
talhado pelos deuses da arte, no ia ela regressar ao lar paterno por sentir-se
privada do luxo em que sempre vivera (CHIZIANE, 2007, p. 62).
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cristandade e a civilizao aos moambicanos. Durante a organizao da resistncia presena portuguesa no territrio moambicano, a prtica da poligamia
passa a ser vista como uma atvica manifestao da cultura local, enquanto a
monogamia rechaada como estrangeira. A defesa da poligamia realizada por
muitos homens moambicanos como um ato de respeito aos costumes ancestrais e aos antepassados, enquanto a monogamia, no raro, descrita como um
mal pernicioso (ou, em analogia homossexualidade, como uma perniciosa doena branca e ocidental, a debilitar a virilidade e a masculinidade dos homens
africanos)5.
O grande diferencial na maneira pela qual Chiziane conduz esse debate como
um dos fios da trama de sua narrativa o fato de que, pela primeira vez, a crtica poligamia e monogamia feita do ponto de vista da mulher moambicana.
A autora supera essa discusso, ao deslocar seu locus de enunciao, mostrando que, sob a perspectiva das mulheres, no h grande diferena entre monogamia e poligamia, uma vez que ambas so regimes que operam dentro de um
contrato heterossexual6, que tem por finalidade a submisso das mulheres
dominao masculina7.
Referncias
BHABHA, H. K. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998.
BOURDIEU, P. La domination masculine. Paris: Seuil, 1998.
CHIZIANE, P. Balada de amor ao vento. Maputo: Associao dos Escritores
Moambicanos, 1990.
CHIZIANE, P. Eu, mulher, por uma nova viso do mundo.... In: AFONSO, A. E.
de S. (Org.). Eu, mulher em Moambique. Moambique: AEMO; UNESCO, 1992.
p. 9-21.
CHIZIANE, P. Ventos do apocalipse. Maputo: Edio da Autora, 1993
CHIZIANE, P. O stimo juramento. Lisboa: Caminho, 2000.
CHIZIANE, P. Niketche: uma histria de poligamia. Lisboa: Caminho, 2002.
CHIZIANE, P. Balada de amor ao vento. 2. ed. Lisboa: Caminho, 2007.
CHIZIANE, P. O alegre canto da perdiz. Lisboa: Caminho, 2008.
Um elemento importante nesta discusso foi a tomada de posio da Frente de Libertao de Moambique (Frelimo), que se
torna o grande partido no poder moambicano aps a independncia nacional, em 1975. A vida privada de alguns dos quadros
polticos de destaque da Frelimo sintomtica do estado da arte deste debate ainda hoje em Moambique. Embora, nos primeiros anos de governo, a Frelimo tenha se colocado contra a poligamia e a prtica do lobolo, muitos de seus quadros mantinham
verdadeiros harns com vrias esposas. Nem mesmo os estandartes polticos do marxismo que eram e ainda so as bases
polticas da Frelimo conseguiram eliminar as prticas tradicionais da poligamia e do lobolo, de maneira que, na dcada de 1990,
o lobolo foi oficialmente aceito como emblema da cultura nacional, embora a poligamia reste juridicamente interditada. Cabe
ressaltar aqui que os grandes quadros Frelimo, ainda hoje, so oriundos do sul do pas (provncias de Maputo, Gaza e
Inhambane), onde as prticas poligmicas e patriarcalistas sempre foram (e ainda so) mais fortes do que no restante do territrio moambicano. digno de nota ainda o fato de que, em sua juventude, Paulina Chiziane foi uma grande entusiasta da
Frelimo, e que seu desapontamento com o partido se deu, em boa medida, justamente pelo tratamento que este dava questo
da poligamia e do lobolo (OWEN, 2007, p. 169-213).
A ideia de contrato heterossexual proposta por Monique Wittig (2002a), ao realizar uma leitura lsbica e feminista de O contrato social, de Emille Rousseau. Em outro artigo, Wittig vai mais alm, argumentando que toda a produo de conhecimento
no mundo ocidental obedece a um regime epistemolgico que no neutro, mas sim marcado pela viso da heterossexualidade
como nica postura possvel na economia do desejo e dos afetos de um mundo capitalista. A esse respeito, conferir Wittig
(2002b).
Uso o termo no mesmo sentido atribudo expresso por Pierre Bourdieu (1998).
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O ROMANCE DE AUTORIA FEMININA EM MOAMBIQUE: BALADA DE AMOR AO VENTO, DE PAULINA CHIZIANE, Anselmo Peres Als
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ALS, A. P. Womans writing in Mozambique: Love ballad in the wind, by Paulina Chiziane. Todas as
Letras, So Paulo, v. 14, n. 2, p. 78-86, 2012.
Abstract: This paper explores how the Mozambican narrative questions an resizes traditional and
western values related to marriage institution,
taking as object of analisys the novel Love ballad
in the wind, by Paulina Chiziane, the first novel
written and published by a woman in Mozambique.
Keywords: Mozambican literature; novel; womans
writing.
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