A Eugenia No Humor Da Revista Ilustrada PDF
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A Eugenia No Humor Da Revista Ilustrada PDF
ASSIS
2014
ASSIS
2014
C331e
AGRADECIMENTOS
Com a satisfao do resultado desta pesquisa que direciono meus agradecimentos
queles que, cada um sua maneira, contriburam para este fim.
Primeiramente, agradeo minha orientadora, a professora Dra. Fabiana Lopes da
Cunha, com quem eu sempre terei uma dvida pessoal. Foi responsvel por acreditar na minha
entrada no mestrado, em uma fase conturbada de indecises e receios. Acreditou que eu
poderia comear novamente uma nova proposta e junto comigo trabalhou para atingirmos
nossos objetivos. Teve uma dedicao exclusiva com minha formao desde a redao dos
meus textos ao comprometimento terico. Abriu as portas de sua casa para que juntos
pudssemos pensar cada etapa desde o projeto ao seu produto final. Nutri um respeito e
admirao que cresce exponencialmente por uma profissional comprometida, com valioso
carter, competncia e, sobretudo, sensibilidade humana. Sem ela seria impossvel chegar at
aqui. Obrigado por me dar liberdade intelectual e confiar no meu trabalho.
Parte fundamental nesta caminhada foi a participao do professor Dr. Vanderlei
Sebastio de Souza. Souza foi minha bibliografia, meu mentor, membro da minha banca de
qualificao e defesa, tambm uma inspirao. Com pacincia e competncia possibilitou a
execuo dessa dissertao e foi pea chave para minhas aspiraes, motivaes e
prognsticos profissionais. Espero que todas as expectativas que o professor tenha depositado
em mim se concretizem nesse trabalho, pois o seu reconhecimento e respeito intelectual foi
um dos meus objetivos. Na introduo de Cidade Febril, de Sidney Chalhoub, o autor
agradece o professor Robert Slenes referindo-se a ele como minha bssola intelectual. No
meu caso, ele traduz com exatido minha considerao pelo professor Souza.
O professor Dr. Paulo Cesar Gonalves lembrado com carinho e admirao por
diversas razes. Inicialmente, por ter acreditado quando hipoteticamente sugeri o tema da
eugenia. Pacientemente sentou comigo e prestou todo apoio na minha nova empreitada,
mesmo sem nenhum tipo de vnculo com minha ps-graduao at aquele momento.
Acreditou que eu teria condies e durante toda a pesquisa deu suporte e orientaes, algumas
delas, em momentos decisivos da pesquisa. Presto gratido aos apontamentos que fez na
qualificao, pois algumas referncias foram fundamentais para que esse trabalho se elevasse
qualitativamente e rumasse para uma nova percepo da fonte.
Ao professor Dr. Jos Roberto Franco Reis, que prontamente me auxiliou na direo
de arquivos da LBHM quando fui Manguinhos e seu aceite por ler meu trabalho e participar
como suplente da defesa. Devo dizer que como bibliografia foi decisivo para o
Devo indicar outros amigos que cada um a sua maneira colaboraram para a pesquisa
em diversas fases. Estes so: Letcia Fernanda da Silva Oliveira, Wesley Salles, Vanessa
Kiara, Felipe Yera, Moises Stahl, Artur Pais, Diogo Manoel, Diego Arzoli, Otvio Erbereli,
Ricardo Sorgon Pires, Leandro Guirro, Angelo Biazi, Gerson Pietta, Roberto Negrini, Fabula
Sevilha, Danilo Ferrari, Edmar Loureno, Maurcio Martins, Auro Sakuraba, Lucelena
Alevato, sa Heuser, Regina, Clarice, Zaz, Everton Barbosa, Maria Cristina, Renan
Petersen-Wagner, Lucilene Franco, Rafael Antunes, Renan Rivaben, Eutimio Gustavo
Fernndez Nez e Fernando Frei.
Meu parceiro de quatro patas Bomber, que de maneira teraputica sua companhia e
alegria me confortaram em vrios momentos.
Minha me, Suzel Dallacqua e meu pai, Rogrio Mrcio Costa. Tambm devo
agradecer minha outra famlia que me acolheu to bem, Paulo e Meiry Shinya e todos os
outros membros.
Por fim, meu agradecimento a Thas Yumi Shinya, a mulher que escolhi para dividir
minhas glrias e sofrimentos por toda a vida. Ela me deu o completo equilbrio e paz para que
eu no tivesse outras preocupaes fora este trabalho.
CARVALHO, Leonardo Dallacqua de. A eugenia no humor da Revista Ilustrada Careta: raa
e cor no Governo Provisrio (1930-1934). 2014. 309 f. Dissertao (Mestrado em Histria).
Faculdade de Cincias e Letras, Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho,
Assis, 2014.
RESUMO
Com o incio do Governo Provisrio, em 1930, o Brasil inicia uma nova etapa poltica sob a
liderana de Getlio Vargas. Alm do rompimento com a gerncia antecessora, seu governo
ser marcado por propostas inovadoras em diversos meios sociais como, por exemplo,
trabalhista, funcionalista, educacional, economia, entre outros. Alm disso, teve como
caractersticas polticas prprias para o trato dos imigrantes, comunistas, judeus, negros, etc..
Os debates que surgiram na intelectualidade, poltica e imprensa, permitiram que questes
como cor e raa tivessem um lugar reservado nas perspectivas das discusses e aes entre os
anos de 1930 e 1934. Para ns, no que concerne a esta discusso, cabe analisarmos o lugar da
eugenia neste processo. Por meio do semanrio Careta, em circulao no pas desde 1908,
temos uma importante fonte de anlises que combina humor e crtica social realidade
brasileira. Nos anos iniciais da chamada Era Vargas, o semanrio, em diversos nmeros,
ponderou atravs de caricaturas e crnicas a situao da cor e raa no cenrio brasileiro, em
relao ao organismo social como um todo. Nosso trabalho tem por objetivo debruar-se
sobre o peridico e problematizar a viso humorstica da revista acerca da questo racial na
sociedade, bem como o debate sobre eugenia no Brasil.
Palavras Chave: Eugenia. Revista Careta. Questo racial. Governo Provisrio.
ABSTRACT
With the beginning of the interim goverment in 1930, Brazil enters a new political Era under
the government of Getlio Vargas. Besides his break with the past government, his period
would be marked by innovative proposals in different social areas, as for instance, work
rights, functionalist, educational, economic, between others. Moreover, he had some
particular political characteristics in relation to migrants, communists, jews, blacks, etc. The
debates that sparked between the intelligentsia, political sphere and press permitted that
questions in relation to color and race had their reserved space for discussions and actions
between 1930 and 1934. For us, in relation to this discussion, we analyzed the role of
eugenics in this process. Through the weekly magazine Careta, printed in Brazil since 1908,
we have an important source of data that combines humor with social critic to analyze. In the
first years of the Era Vargas, the weekly magazine, in numerous editions considered through
cartoons and cronics the color and race situations in relation to the wider social organism in
Brazil. Our work has as an objective to analyze the weekly magazine and problematize the
magazine's humoristic approach to the racial question within society, as well as about
eugenics in Brazil.
Keywords: Eugenics. Magazine Careta. Racial Question. Interim Government.
SUMRIO
Introduo
10
38
38
59
85
85
107
126
135
162
162
185
233
233
275
Consideraes finais
294
Referncias
300
10
INTRODUO
A Careta pode at ser representada como uma revista que elencou o humor e variedades como
um dos seus carros chefes, mas no deve ser entendida apenas como uma revista sem
preocupaes e com a finalidade exclusiva de entretenimento. Constataremos isso neste
trabalho, ao observarmos muitas de suas posies em Crnicas e caricaturas referente
questo da eugenia e a dinmica das relaes de cor e raa no Brasil nos anos de 1930-1934.
Uma de nossas teses est em demonstrar como a eugenia foi tomada como teoria e
ganhou grande aceitao dentro do Governo Provisrio, fazendo parte dos debates polticos e
sociais. A escolha neste recorte poltico est justamente em analisar por meio das nossas
fontes a discusso em torno da eugenia e da questo racial sob a luz do novo governo. Est em
nossos objetivos expor que esses dilogos com a eugenia continuaram em manuteno no
novo governo e as expectativas de coloc-lo na ordem do dia de leis ou debates.
Como perceberemos, diversos atores polticos, mdicos e intelectuais fizeram da
eugenia uma teoria voltil que permitiu se encaixar nas suas prprias concepes raciais e
como entendiam a questo nacional em volta de cor e raa. Para isso, observaremos
caricaturas e crnicas na tentativa de reconstruir alguns contextos do incio da Era Vargas e
debater as posies de indivduos do perodo em relao a eugenia e questo racial. Para tanto
organizamos nosso trabalho em quatro captulos que responderam as nossas necessidades de
indagaes enquanto eugenia, humor, caricatura e questo racial.
O estudo da eugenia no Brasil, ou em qualquer outra parte do mundo em que ela foi
adotada, tem suas particularidades e contextos histricos prprios. Em vista das novas
abordagens1 da temtica com autores como Mark Adams2, Nancy Leys Stepan3, Vanderlei
Sebastio de Souza4, entre outros, permitiu-nos ir alm de digresses do sculo XIX na
formulao da eugenia por Francis Galton e, por meio de suas obras, propiciar a este estudo o
1
Quando este trabalho se refere as novas abordagens sobre eugenia, no se deve confundir com o aspecto
cronolgico das publicaes, pois, no significa que estes so trabalhos apenas localizados nos ltimos anos ou
dcada. O que se justifica pela interpretao que foi feita sobre o tema, partindo de uma literatura que tem
como base olhar o movimento de formas heterogneas dependendo de onde foi inserido. Dessa forma, temos
leituras que abarcam desde a segunda metade do sculo XX, que, oportunamente, sero utilizadas em nossa
pesquisa.
2
ADAMS, Mark B. Eugenics in the History of Science. In: ______ (org.). The Wellborn science: eugenics in
Germany, France, Brazil and Russia. New York: Oxford University Press, 1990.
3
STEPAN, Nancy L. A hora da eugenia: raa, gnero e nao na Amrica Latina. Traduo de Paulo M.
Garchet. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2005; _______. Eugenia no Brasil, 1917-1940. In: HOCHMAN, Gilberto
(org.). Cuidar, controlar e curar: ensaios histricos sobre sade e doena na Amrica Latina e caribe. Rio de
Janeiro: Editora Fiocruz, 2004.
4
SOUZA, Vanderlei Sebastio de. A Poltica Biolgica como Projeto: a Eugenia Negativa e a construo da
nacionalidade na trajetria de Renato Kehl (1917-1932). Dissertao de Mestrado: Rio de Janeiro: FIOCRUZ,
2006.
11
nosso prprio olhar da eugenia como objeto heterogneo. Nosso fio condutor foi a eugenia e
para compreend-la mediante as novas interpretaes da historiografia atual, houve a
necessidade de visitar os escritos de Galton, justamente pela vastido que a temtica
compreende. Na dcada de 1980, Adams apontava para a necessidade dos novos enfoques
para os historiadores da Histria das Cincias:
In recent years eugenics has emerged as a major topic of research in the history of
science. There are both disciplinary and social reasons for this persistent and
growing interest. Over the last two decades, historians of science have sought to
integrate the so-called internalist account of the evolution of scientific ideas with the
so-called externalist account of its social context.5
Parte dessa compreenso de mtodo pode ser exemplificada com o trabalho de Fbio
Koifman sobre os imigrantes ideais no Brasil, no perodo de 1941-1945. O autor, ao tratar
da eugenia, mostra que Alm dos problemas relativos falta de cuidados com o
anacronismo, os crticos no levam em conta, justamente, as particularidades que o eugenismo
tomou em diferentes pases6. Apesar do seu perodo de anlise ser posterior ao nosso, ele
insere uma observao importante com o trato da eugenia. Por sua vez, Stepan e Souza, ao
trabalharem com a cincia de Galton e com o mdico brasileiro Renato Kehl, retrataram as
especificidades do momento eugnico no Brasil e suas singularidades na adaptao da
eugenia em contextos de tempo e espao especficos.
Nosso esforo em estudar um tema como a eugenia reflete no argumento de Stepan de
que nos estudos recentes, a eugenia latino-americana foi completamente ignorada pelos
historiadores. Mesmo se considerarmos essa negligncia como simples parte de um padro
mais abrangente de desprezo para com a cincia desta regio [...]"7. Esta constatao de
Stepan acaba sendo um convite para novas pesquisas priorizando este enfoque. Por outro lado,
a temtica nos motiva mediante a sua especificidade e adaptao em seus diversos momentos
no Brasil. Por isso, a utilizao de crnicas e caricaturas da Careta so elementos riqussimos
na visualizao deste debate no epicentro do problema de cor e raa. Nesta linha de
pensamento de Stepan, faz parte de nosso empenho um estudo da eugenia no Brasil que
estamos cada vez mais conscientes de importantes variaes dentro da tradio eugnica
anglo-saxnica devemos tambm encontrar significativos subtipos dentro da eugenia latina8.
E mais, podemos enriquecer sobremaneira nosso entendimento das origens, do estilo
12
Ibid.
SOUZA, Vanderlei Sebastio de. A Poltica Biolgica como Projeto: a Eugenia Negativa e a construo da
nacionalidade na trajetria de Renato Kehl (1917-1932). op.cit., p. 13.
11
KOIFMAN, Fbio. Imigrante ideal: o Ministrio da Justia e a entrada de estrangeiros no Brasil (1941-1945).
op.cit., p. 71.
12
ADAMS, Mark B. Eugenics in the History of Science. op.cit., p. 3.
13
REIS, Jos Roberto Franco. Higiene mental e eugenia: o projeto de regenerao nacional da Liga Brasileira
de Higiene Mental (1920-1930). Dissertao de Mestrado. Campinas: UNICAMP, 1994.
10
13
Alm da eugenia, diversas outras teorias cientficas faziam parte do convvio de alguns
intelectuais no Brasil, algumas delas avistadas desde o sculo XIX. A antropologia
criminalista, tambm reconhecida como uma cincia da sua poca esteve sob a tutela de
Cesare Lombroso e emergia nos estudos de Nina Rodrigues antes do alvorecer do sculo XX.
A antroploga Lilia Schwarcz dissertou como as teorias deterministas e climticas que tinham
muita fora nas vozes de alguns pensadores europeus ganhavam a tnica dentro do sculo
XIX para vrios intelectuais brasileiros.14
Nesse sentido, a anlise do discurso cientfico necessita ser avaliada diante do
contexto histrico a qual foi projetado. Para isso, a viso do paradigma que Thomas Khun
estabeleceu nos permite compreender os elos entre os estgios da cincia.15 Isto direciona
um elemento para compreend-la, na poca em que foi forjada mediante as suas limitaes e
conhecimentos. por estas linhas que ao utilizarmos como referncia a obra Biologia
Militante16, de Regina Horta Duarte, constatamos no Brasil uma cincia em construo,
respondendo aos conflitos do seu tempo, pensando o seu povo com as ferramentas intelectuais
disponveis naquele momento. No toa, insistimos ao analisar no primeiro captulo a criao
da eugenia e sua recepo em vrios pases, na desconstruo do termo pseudocincia que
alguns historiadores utilizam ainda hoje. Acreditamos que ao enfocar a questo conceitual
poderemos iluminar melhor o caminho da nossa pesquisa.
Nas leituras das fontes17 das obras de Renato Kehl, Roquette-Pinto, Miguel Couto,
Azevedo Amaral e tantos outros, se verificou que estes autores legitimavam cada um sua
maneira, a cincia que utilizavam. Discordantes ou no em alguns aspectos, a eugenia fazia
parte do mbito de discusses cientficas das suas disciplinas. Tal ponto foi sua validade, que
firmou-se em universidades dos Estados Unidos em prticas do governo e em congressos
especializados. Em sua tese de doutorado Em busca do Brasil: Edgard Roquette-Pinto e o
retrato antropolgico brasileiro (1905-1935), Souza salienta que em dilogo com estas
leituras, os intelectuais brasileiros do final do sculo XIX tiveram que lidar com as teorias
produzidas pela cincia europeia, das quais no podiam escapar, j que delas emanava sua
14
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetculo das raas: cientistas, instituies e questo racial no Brasil 18701930. So Paulo: Companhia das Letras, 1993.
15
KUHN, Thomas. A estrutura das revolues cientficas. 5. ed. Traduo de Beatriz Vianna Boeira e Nelson
Boeira. So Paulo: Perspectiva, 1998.
16
DUARTE, Regina Horta. A biologia militante: o Museu Nacional, especializao cientfica, divulgao do
conhecimento e prticas polticas no Brasil 1926-1945. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
17
Ao transcrever as fontes optamos por atualiz-las na norma ortogrfica atual. Dessa forma, acreditamos que
facilite a leitura dos documentos para futuras consultas.
14
18
SOUZA, Vanderlei Sebastio de. Em busca do Brasil: Edgard Roquette-Pinto e o retrato antropolgico
brasileiro (1930-1935). Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2011. Na tese de Souza, uma referncia
a Zygmund Bauman se faz oportuna para fomentar essa ideia, produto legtimo do esprito moderno, daquela
nsia de auxiliar e apressar o progresso da humanidade rumo perfeio que foi por toda parte a mais eminente
marcada era moderna (Bauman, 1999 apud SOUZA, Ibid., p. 282).
19
Ibid., p. 273.
20
DUARTE, Regina Horta. Histria e biologia: dilogos possveis, distncias necessrias. Histria, Cincias,
Sade Manguinhos. Rio de Janeiro, v. 16, n. 4, 2009, p. 937.
21
KOIFMAN, Fbio. Imigrante ideal: o Ministrio da Justia e a entrada de estrangeiros no Brasil (1941-1945).
op.cit., p. 74.
15
dilogo cientfico racial na virada do sculo XIX para o XX, tornou-se necessrio para
compreender como os discursos foram utilizados como ferramentas cientficas.
Nossa opo por trabalhar com os escritos originais de Galton segue a linha de
pensamento metodolgico de Lilian Al-Chueyr Pereira Martins, ao fazer recomendaes no
cuidado com a Histria das Cincias, pois o historiador nunca deve confiar inteiramente em
uma traduo, pois muitas vezes nela so introduzidos erros. Por exemplo, trabalhar com uma
traduo para a lngua portuguesa de Descartes no o mesmo (no tem o mesmo valor) que
trabalhar com o seu texto em seu idioma original22. No desconsideramos na totalidade a
importncia das tradues, mas exatamente pela ausncia destas nas obras de Galton para o
portugus, a afirmao de Martins possibilitou que percebssemos as peculiaridades da
formao terica e contextual da eugenia.
Nos envolver neste debate permite perceber a influncia da heterogeneidade dos
discursos eugnicos nos quatro primeiros anos da Era Vargas, um momento em que o Brasil
passou por transformaes polticas, econmicas, trabalhistas, sociais, entre outras. Assim,
cabem algumas questes: Como estaria situada a eugenia no pas nesse momento? Seus
representantes, debates, enfim, como esta eugenia dialogaria na dcada de 1930, tendo em
vista que estava a mais de dez anos sob a voz de Renato Kehl no Brasil? Como ela se
adaptaria a realidade da nossa cincia nacional? Souza responde que, no caso da eugenia:
Ao invs dos modelos deterministas que privilegiavam as reformas biolgicas de
carter seletivo e segregacionista, como ocorria nos pases de origem anglosaxnica, os brasileiros preferiram um modelo de eugenia que entrasse em
consonncia com a tradio cientfica, as prticas mdicas e a realidade social do
pas.23
MARTINS, Lilian Al-Chueyr Pereira. Histria da Cincia: objetos, mtodos e problemas. Cincia &
Educao. v. 11, n. 2, 2005. p. 311. A autora no desconsidera as tradues, mas ela recomenda que o
historiador busque se pautar nos originais, ou nas tradues mais confiveis.
23
Vanderlei Sebastio de Souza. Em busca do Brasil: Edgard Roquette-Pinto e o retrato antropolgico brasileiro
(1930-1935). Tese de Doutorado. op.cit., p. 297-298. Na pgina seguinte conclui parte da sua anlise: Na
verdade, o modo como a eugenia mendeliana foi apropriada precisa ser visto de acordo com as discusses raciais
e cientficas de cada pas, bem como com as ideologias e os projetos polticos e intelectuais defendidos por seus
adeptos. No caso do Brasil, ela serviu tanto para a defesa de projetos radicais, como se pode observar nas obras
de Renato Kehl, quanto para reafirmar a miscigenao enquanto um elemento positivo, conforme as
interpretaes elaboradas por Roquette-Pinto e Fres da Fonseca. (Ibid., p. 199).
16
da biologia, cincia e eugenia no tempo em que elas se inserem e nos trazem possibilidade de
anlises e interpretaes. Aceitamos mais uma vez o argumento de Duarte para estabelecer os
laos entre a histria e a biologia, onde, sobretudo, tanto a histria como a biologia nos
ensinam que, a cada momento, h vrias possibilidades em aberto. Tratemos de mape-las,
pois, no horizonte de nossa contemporaneidade24.
Gostaramos de trazer outro elemento para fomentar nossa discusso sobre as cincias
de seu tempo, ou melhor, o papel da histria da cincia mdica. Para tanto, adentraremos em
certa medida na histria das doenas, em especial, o trabalho de Simone Kropf sobre a doena
de Chagas. Carlos Chagas (1878-1934) encontrou a doena que leva seu nome em 1909 no
municpio de Lassance, no estado de Minas Gerais. A recepo cientfica da descoberta no
respondeu de forma homognea a todos que se envolveram no seu estudo. Chagas passou por
momentos de contestao na Academia Nacional de Medicina e, inclusive, acusado por
Afrnio Peixoto de ter [...] inventado uma doena rara e desconhecida, doena que se falasse
muito, mas quase ningum conhecesse os doentes, encantoada l num viveiro sertanejo de
vossa provncia, que magnanimamente distribures por alguns milhes de vossos patrcios
acusados de cretinos25. As dvidas com relao doena em vrios aspectos das descries
de Chagas custaram controvrsias na academia e a criao de uma comisso para revisar os
trabalhos do cientista brasileiro.26
O que estamos observando no uma comparao entre eugenia e relaes de
nosologias de doenas tropicais em estudos de contextos especficos. Nossa inteno
mostrar como o discurso cientfico pertence ao seu tempo e interpretado mediante as
indagaes dos saberes cientficos destes locais. Kropf lanar uma questo importante que
desenvolver ao longo da sua tese: Em que medida se pode considerar essa doena como um
produto da histria27. Ao substituirmos doena por eugenia estaremos tentando
responder esta pergunta enquanto produto de uma cincia que necessita de interpretaes
heterogneas. Por esse olhar que percebemos nosso material como Fruto de acordos
resultantes de um processo coletivo de negociao, no qual os atores se comportam em funo
dos interesses que os constituem como diferentes grupos sociais, a prtica e, sobretudo, os
24
DUARTE, Regina Horta. Histria e biologia: dilogos possveis, distncias necessrias. op.cit., p. 938.
KROPF, Simone Petraglia. Doena de Chagas, doena do Brasil: cincia, sade e nao. Tese de Doutorado.
Niteri: Universidade Federal Fluminense, 2006, p. 207; Cf.: COUTINHO, Marilia; FREIRE JR., Olival and
DIAS, Joo Carlos Pinto. The noble enigma: Chagas' nominations for the Nobel Prize. Mem. Inst. Oswaldo
Cruz [online]. vol. 94, suppl. 1, 1999, p. 128.
26
KROPF, Simone Petraglia. Doena de Chagas, doena do Brasil: cincia, sade e nao. op.cit., p. 208.
27
Ibid., p. 7.
25
17
contedos da cincia passaram a ser tratados como objetos legtimos para a investigao
sociolgica28.
Ao trazemos este argumento visamos a discusso desse processo de negociao no
campo cientfico por meio de seus atores e os diferentes grupos sociais. Assim, a
periodicidade de doenas e ou teorias cientficas, como a eugenia, respondem a momentos
especficos de sua juno com seus pares ou outros personagens. Portanto, substituindo
doena por eugenia, concordamos com a autora quando diz:
Com base nas diretrizes tericas dos estudos sociais da cincia, acreditamos ser
possvel ampliar estas fronteiras e afirmar que as doenas constituem objetos
histrica e socialmente construdos no que diz respeito s maneiras pelas quais os
indivduos ou grupos as percebem ou respondem a elas em termos de valores e
prticas, e tambm no que concerne sua prpria conceituao como entidades
biolgicas especficas. Em outras palavras, o desafio analisar como os fatores
sociais interferem no somente na maneira de se representar, atribuir significados e
enfrentar concretamente um fenmeno da natureza, j definido enquanto tal, mas
inclusive no processo de definio e aceitao deste fenmeno como realidade
orgnica, dotada de caractersticas especficas. Trata-se, em suma, da perspectiva de
analisar a dimenso social das doenas em seu estatuto de fatos produzidos pela
cincia mdica.29
Esta percepo de Kropf em relao ao seu estudo de Chagas nos traz uma reflexo da
abordagem da eugenia enquanto fenmeno social e pertencente a um debate acadmico que
diverge de um consenso especfico sobre o tema. A doena de Chagas respondeu a indagaes
diversas desde sua descoberta, desde questionamentos sobre sua veracidade at mesmo as
duas indicaes para o Prmio Nobel (1913 e 1921) da qual alguns autores argumentam que
o debate travado na sociedade mdica sobre a doena e as oposies descoberta de Chagas
teriam sido suficientes para Carlos Chagas no conseguir o prmio em 1921.30 Hoje, por meio
dos documentos, podemos observar os caminhos percorridos pela doena de Chagas, suas
contestaes, repercusses na imprensa nacional e internacional, na Academia Nacional de
28
Ibid., p. 8.
Ibid., p.12. Mais adiante a autora complementa: "Alm das formulaes gerais de Bloor, consideramos
pertinentes ao tratamento de nosso objeto algumas noes propostas por Bruno Latour a respeito da produo e
da validao dos fatos cientficos, enquanto processos que envolvem no apenas o mundo do laboratrio, mas
outras esferas e atores da vida social". Para este autor, o destino dos enunciados formulados pelos cientistas se
eles vo permanecer como artefatos, isto , objetos instveis, ou se estabilizar como fatos, tido como
inquestionveis e naturais dado, fundamentalmente, pelo uso concreto que outras pessoas, cientistas e no
cientistas fazem deles. Assim, a certificao do conhecimento cientfico depende de uma srie de procedimentos
e estratgias por parte dos cientistas para convencerem outros indivduos e grupos a aceitarem e utilizarem as
afirmaes e objetos por ele produzidos. Para analisar a cincia em ao, ou seja, os processos efetivos pelos
quais se estabilizam os fatos cientficos, preciso, diz Latour, seguir os cientistas sociedade afora e examinar
os recursos de que estes lanam mo para mobilizar o mundo e produzir concretamente, em circunstncias
especficas, o consenso necessrio para o fechamento das caixas-pretas da cincia (Ibid., 19).
30
COUTINHO, Marilia; FREIRE JR., Olival and DIAS, Joo Carlos Pinto. The noble enigma: Chagas'
nominations for the Nobel Prize. op.cit., p. 128-129.
29
18
Medicina e nas pesquisas em gerais. Suas aes, profilaxias e debates em diferentes governos
e instituies. Esta relao entre cincia e histria dita o ritmo do nosso trabalho em vista da
eugenia como dentro de um complexo debate cientfico do perodo.
Por sua vez, nossa demarcao temporal corresponde s delimitaes que fizemos nas
fontes. Decidimos analisar a Careta nos quatro primeiros anos do governo de Getlio Vargas.
Assim, um recorte poltico facilitou enxergarmos os dilogos que se projetavam acerca da
raa nessa nova rumada poltica que mergulhava o pas. No obstante, analisamos com
profundidade parte do movimento eugnico no Brasil e, isso se deve justamente na tentativa
de compreender as rupturas e permanncia de uma cincia que dialogou com diversos setores
sociais, polticos e cientficos, e sofreu algumas mudanas, como por exemplo, uma posio
mais dura de Kehl em relao aplicao da eugenia no final dos anos de 1920.
Sobre nossa fonte, a Careta, esta apresentou suas publicaes aos sbados,
semanalmente, entre 1908 a 1960. Nosso material, que pode ser encontrado digitalizado no
acervo on line da Biblioteca Nacional31, nos permitiu avaliar mais de 240 edies entre 1930 a
1934. Neste enfoque, foi possvel recuperar as caricaturas e crnicas que contribussem para a
nossa proposta. Houve a pretenso de considerar as caricaturas que possussem referncia a
questes raciais, cor, eugenia, de modo que a seleo contribusse para o debate em torno do
perodo. Dessa forma, das muitas caricaturas que selecionamos, estas dialogam com as fontes
bibliogrficas e historiogrficas que trabalhamos ao longo dos captulos um e dois,
possibilitando uma melhor interpretao quando efetivamente surgissem na pesquisa. Por
exemplo, quando discorremos sobre as cotas de imigrao e sua viso eugnica,
apresentamos tambm por meio de duas caricaturas no segundo captulo a visualizao desse
debate em consonncia com o governo Vargas. Por isso, as caricaturas tornaram-se uma fonte
preciosa do perodo, para literalmente ilustrar o debate racial e eugnico que estava na
ordem do dia, tanto de 1924, quanto do Governo Provisrio. E esta a proposta de debate que
tentaremos recuperar.
Alguns problemas de delimitao terica surgiram ao trabalharmos com iconografia e
caricatura. Primeiramente, entendemos que todas as nossas imagens so caricaturas e no
charges, por qu? Como trabalhar com o humor que est inserido nessas imagens? Qual sua
funo? Por fim, utilizamos ao longo da pesquisa o conceito de esteretipos culturais, sendo
asim devemos entender qual seria o seu significado para ns. Uma breve explanao desses
temas que envolvem fonte e mtodo podem evitar confuses ao longo do texto.
31
19
Inicialmente, isso nos leva a entender como a prpria caricatura vista como
representao artstica. Depois, o sentimento que ela propaga que est alm da deformao.
Pode sugerir amor, admirao, medo, ou o que seu artista pretender retratar. Assim como
pontua Gombrich, a caricatura vista como arte, sem preconceitos com sua relao com o
humor e traduz algo que seu artista deseje expressar. Com isso, fornecemos os passos iniciais
para elucidar que a pertinncia do termo caricatura vai muito alm da deformao ou da
prpria comicidade das ilustraes. Elas esto inseridas na imagem, mas so elementos e no
a essncia como um todo.
Controverso, o debate entre caricatura e charge apresenta-se mais como uma opo
dos seus respectivos usos do que um conceito formado e empregado da mesma forma por
todos os autores que a utilizaram como material de pesquisa. Para ns, optamos em seguir
como referencial, estudos que trabalharam com o conceito de caricatura a partir das suas
32
Segundo Van Gogh, Exagerei a cor clara do cabelo, usei laranja, cromo e amarelo de limo, e por trs da
cabea no pintei a parede trivial do quarto, mas o Infinito. Fiz um fundo simples com o azul mais rico e intenso
que a paleta era capaz de produzir. A luminosa cabea loura sobressai desse fundo azul forte misteriosamente,
como uma estrela no firmamento. Infelizmente, meu caro amigo, o pblico apenas ver nesse exagero uma
caricatura - mas que nos importa isso? (GOMBRICH, Ernest Hans. A histria da Arte. 13. ed. Traduo de
lvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979, p. 447).
33
Ibid.
20
anlises e que se aproxima com a nossa. Explicaremos a escolha do uso com base na
metodologia das obras de Elias Thom Saliba, Razes do Riso; Rodrigo Patto S Motta, Jango
e o golpe de 1964 na caricatura; Fabiana Lopes da Cunha, Caricatura carnavalescas:
carnaval e humor no Rio de Janeiro atravs da tica das revistas ilustradas Fon-Fon! e
Careta (1908-1921).
Antes, cabe ressaltar um expoente para os estudos sobre caricaturas. Histria da
Caricatura no Brasil, dividida em 4 volumes, de Herman Lima, foi publicada em 1963 e se
mantm at hoje como referncia para os trabalhos que envolvem caricaturas. Como o prprio
nome diz, o autor estudar caricaturas, mas nem por isso o termo charge deixa de aparecer.
O primeiro volume praticamente um tratado ao modo de como a caricatura foi concebida no
Brasil e no mundo e seria impossvel em apenas um trabalho abordar a obra de Herman Lima.
O que podemos trazer so algumas vises do autor a respeito do que entendia como
caricaturas. Contudo, alertamos que mesmo pelo seu olhar, ela possui uma amplitude de
variaes no prprio conceito:
A arma do caricaturista dos tempos modernos to poderosa que dispensa os
excessos da deformao e da distoro, desde que ele pode, muito mais do que o
escritor, como no caso de ngelo Agostini, exprimir seu pensamento, caracterizando
a verdade, ainda mais quando todo caricaturista quase sempre um intelectual,
antena vibrtil a toda solicitao exterior, para o registro tantas vezes proftico de
suas impresses da hora que passa.34
34
35
LIMA, Herman. Histria da caricatura no Brasil. 4 vols. Rio de Janeiro: Jos Olympio Editora, 1963, p. 15.
Ibid., p. 18.
21
seria algo mais crtico a pessoas e situaes especficas.36 Ainda assim, mesmo que suscite
debates de pertinncia ou no, o autor prefere utilizar o termo caricatura por ser uma
classificao genrica para as diversas formas do humor grfico e devido as suas ilustraes
configurarem-se ao estilo da caricatura, mesmo transpondo as barreiras do simples retrato
pessoal37. Para ns, este tipo de imagem tambm aparece nas caricaturas que elegemos, pois
alm do retrato pessoal h o vis poltico e a crtica social.
Outro ponto importante situa-se em estabelecer como os prprios ilustradores se viam
naquela poca. Saliba, ao retratar estes personagens que desenhavam nas revistas do perodo,
define-os no que concerne s suas atividades profissionais como caricaturistas. Assim, K.
Lixto foi descrito como caricaturista, inclusive participando como ilustrador da revista
Careta. A. Storni e J. Carlos que assinam boa parte das nossas caricaturas tambm foram
classificados como caricaturistas.38
Se pensarmos na poca em que estes personagens viviam, veremos que o tema fazia
parte do seu cotidiano profissional. Um dos mais importantes do incio do sculo, Raul
Pederneiras humorista, caricaturista e professor de Belas-Artes -, foi um dos que tentaram
legitimar teoricamente o riso. Saliba diz que ele chegou a proferir algumas conferncias
cujos temas foram, invariavelmente, o humor e a caricatura39. Sintetizando, a caricatura
parte do jargo desses homens que associavam sua produo a este conceito. Independente da
forma como se olha, buscaremos tratar seu vis aos moldes como eram entendidas no espao
de tempo que estavam inseridas40.
Fabiana Lopes da Cunha trabalhou com nosso peridico e analisou caricaturas
carnavalescas vinculadas nas revistas Careta e Fon-Fon!, entre os anos de 1908 a 1921.
Apesar do recorte temporal e da temtica abordada diferenciar-se da nossa, ao utilizar a
Careta como fonte, a historiadora estabelece as matrizes da sua anlise nos elementos
contidos nela. Assim sendo, delimita o conceito de caricatura nas ilustraes que examina, por
acreditar ser mais pertinente ao momento que esto inseridas nos debates. Cunha se apropria
da concepo de caricatura de Herman Lima, da qual utilizaremos frequentemente como
suporte terico no manejo das nossas fontes. Destarte, quando falamos aqui em caricaturas
36
MOTTA, Rodrigo Patto S. Jango e o golpe militar de 1964 na caricatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006,
p. 15. Na mesma pgina, o autor aponta que historicamente o termo caricatura parece ter surgido por volta do
sculo XVII, na Itlia.
37
Ibid., p. 15-16.
38
SALIBA, Elias Thom. Razes do riso: a representao humorstica na histria brasileira: da Belle poque aos
primeiros tempos do rdio. So Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 78-79.
39
Ibid., p. 134.
40
Talvez, tenham-se notcias de sujeitos histricos daquele perodo que se intitulavam chargistas, porm
justificamos o nosso uso com base no suporte metodolgico dos autores citados.
22
estendemos seu significado para alm dos desenhos com teor humorstico crtico, pois as
compreendemos como Herman Lima, que v a caricatura tambm nas expresses verbais de
contedo burlesco e satrico41.
Outro autor a ser lembrado nessa direo Renato Lemos. Organizador de Uma
histria do Brasil atravs da caricatura (1840-2001), Lemos utiliza no ttulo do seu trabalho
a palavra caricatura, mas na introduo se refere s imagens tanto com o termo de charge,
como de caricatura. Porm, o autor, ao longo do seu texto, opta por utilizar o termo charge nas
imagens que se apresentam.
Indo alm, se pode fazer uma pertinente comparao entre Lemos e Saliba, ao tratarem
de suas fontes. Lemos, ao abordar a Revoluo de 1930, emprega uma ilustrao de Storni na
Careta. Nela, ele assinala que a charge, baseada em fotografia da poca, mostra Vargas e
companheiros amarrando seus cavalos no obelisco da avenida Rio Branco [...]42. Por sua vez,
Saliba tambm emprega ilustraes de Storni da Careta em seu trabalho. Em uma delas
retrata uma senhora com um vestido escrito poltica questionando para um homem o que ele
acha da chapa que tem nas mos. No caso, a stira que envolve chapas polticas emprega
uma ferramenta metafrica para que a outra personagem diga que uma excelente chapa
negativa43. Lemos e Saliba usam os mesmos ilustradores, no mesmo peridico. Enquanto a
primeira diz respeito ao ano de 1930 a segunda se encontra em 1924, seis anos de
distanciamento. Ambas as imagens oferecem uma crtica poltica e social de sua
contemporaneidade permeada por um desenho humorstico. Lemos chama suas ilustraes de
charge, Saliba define Storni como caricaturista. Assim, pela prpria indefinio que o termo
sugere, acreditamos que fica a critrio do historiador como mediar o conceito em seu
trabalho. Por nossa vez, preferimos adotar a denominao de caricatura.
Em tempo, a considerao de Maria Luiza Tucci Carneiro nos ajuda a compreender a
pertinncia da utilizao dos peridicos, ao passo que No mundo do riso charges, piadas,
filmes ridicularizavam-se alguns e atribuam-se virtudes a outros. Analisando a maneira pela
qual cada personagem caracterizado, podemos identificar a mentalidade racista do perodo,
41
CUNHA, Fabiana Lopes da. Caricaturas carnavalescas: carnaval e humor no Rio de Janeiro atravs da tica
das Revistas Ilustradas Fon-Fon! E Careta (1908-1921). Tese de Doutorado. So Paulo: USP, 2008, p. 36.
42
LEMOS, Renato. Uma histria do Brasil atravs da caricatura 1840-2001. Rio de Janeiro: Editora Letras &
Expresso, 2001, p. 62.
43
SALIBA, Elias Thom. Razes do riso: a representao humorstica na histria brasileira: da Belle poque aos
primeiros tempos do rdio. op.cit.., p. 189.
23
ora apoiada, ora denunciada44. Esta observao estabelece outro elemento constante em
nosso texto, o humor.
A aplicao humorstica aparece como outra ferramenta privilegiada para a nossa
inquirio. Alm de fazer parte de toda a existncia da Careta, pois afinal, o humor era uma
de suas principais caractersticas. O cmico tornou-se uma forma diferenciada de expressar o
sentimento do que se enxergava na sociedade. Elias Tom Saliba, em uma de suas diversas
produes dedicadas a compreender a figura do humor como elemento de representao
social, distingue claramente a importncia deste componente como ferramenta de
entendimento para o historiador. Para Saliba:
Superposio de tempos, movimento constante, jogo pardico a representao
cmica parecia buscar outros domnios para falar da vida cotidiana e da vida privada
brasileira, cujas fronteiras com a vida pblica jamais se definiam, pois a
superposio e a mistura pareciam constituir parte intrnseca das prprias formas de
representao do social.45
Isto essencial para a constituio deste estudo, pois a partir do jogo caricatural que o
humorista arranjava por meio dos seus traos que podemos destacar a representao social
do seu tempo. O pblico e o privado foram instrumentos aproveitados por estes humoristas ao
passo que maximizavam em seus desenhos o retrato do que se deveria rir. Mnica Pimenta
Velloso contribui com este debate na importncia da sua pesquisa sobre modernismo no Rio
de Janeiro, por meio do uso da caricatura, ou seja,
CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. O racismo na histria do Brasil: mito e realidade. 3. ed. So Paulo: tica,
1996, p. 33.
45
SALIBA, Elias Thom. A dimenso cmica da vida privada na repblica brasileira. In: NOVAIS, F. (org.).
Histria da vida privada no Brasil 3: Da Belle poque Era do Rdio. So Paulo: Cia das Letras, 1998, p. 326.
46
VELLOSO, Mnica Pimenta. Modernismo no Rio de Janeiro: Turunas e Quixotes. Rio de Janeiro, Editora da
Fundao Getlio Vargas, 1996, p. 15. A autora se enquadra como referencial para a compreenso terica e
metodolgica da pertinncia da caricatura como fonte para o historiador.
24
CUNHA, Fabiana Lopes da. Caricaturas carnavalescas: carnaval e humor no Rio de Janeiro atravs da tica
das Revistas Ilustradas Fon-Fon! E Careta (1908-1921). op.cit., p. 84. [Grifo do autor].
48
DELIGNE, Alain. De que maneira o riso pode ser considerado subversivo. In: LUSTOSA, Isabel (org.).
Imprensa, humor e caricatura: A questo dos esteretipos culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011, p.
36.
25
BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre o significado do cmico. 2. ed. Traduo de Guilherme de Castilho.
Lisboa: Guimares Editores, 1993, p. 31-32.
50
PROPP, Vladmir. Comicidade e Riso. Traduo de Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade.
So Paulo: tica, 1992, p. 17.
51
Ibid., p. 29.
52
Ibid., p. 32.
53
Ibid., p. 88-89. Na mesma pgina o autor diz que A caricatura de fenmenos de ordem fsica (um nariz
grande, uma barriga avantajada, a calvcie) no se diferencia em nada da caricatura de fenmenos de ordem
espiritual, da caricatura dos caracteres. A representao cmica, caricatural, de um carter est em tomar uma
particularidade qualquer da pessoa e em represent-la como nica, ou seja, em exager-la.
26
Dentro da caricatura h uma srie de figuras que trazem o riso tona. Fazer algum de
bobo, o alogismo54, trocadilhos, paradoxos, alm dos elementos textuais que podem aparecer
e causar o riso por meio da ambiguidade, metfora, ironia, sentido figurado, entre outras. A
variante da insero do humor depende das possibilidades com que o humorista cria o seu
trabalho. Em nosso caso, deparamos com diversas formas do riso nas caricaturas sublinhadas
em que possvel identificar que raa e cor fazem parte deste dilogo na construo do
humor. Mais uma vez, Propp nos ajuda a pensar esta questo ao dizer que
[...] o riso surge apenas quando os defeitos so de pequena mostra e no alcanam
aquele grau de culpa ou de depravao que suscitariam dentro de ns repugnncia ou
o mximo de perturbao e de indignao. No existe aqui um limite exato, ele
depende da mentalidade de quem ri ou de quem no ri.55
Chegamos assim a uma indagao de Bergson que suscita nosso prprio trabalho no
que se referem ao humor, caricaturas e a questo racial: Porque ns rimos dum preto?56
Certamente h um embarao na pergunta, ou melhor, porque rir de uma cor de pele diferente
da sua? A questo implcita nesse tipo de humor vai alm da teoria do cmico, pois ela pede
construo que a sociedade faz atribuindo aspectos morais condio da cor. Pelas palavras
do autor, podemos anotar:
qualquer coisa como a lgica do sonho, mas dum sonho que no fosse abandonado
ao capricho da fantasia individual, um sonho sonhado pela sociedade interia. Para a
reconstituir impe-se um esforo muito especial, com o qual levantaremos a crosta
exterior de juzos bem construdos de ideias solidamente assentes, para vermos
correr, no mais ntimo de ns prprios, como uma toalha de gua subterrnea, uma
certa continuidade fluda de imagens que entram umas nas outras. Esta interpretao
das imagens no se faz ao acaso: obedece a leis, ou melhor, a hbitos que so para a
imaginao aquilo que a lgica para pensamento.57
O autor proporciona ferramentas para examinar como a sociedade forja seus prprios
mecanismos de enxergar ou reduzir o Outro. Tanto Bergson como Propp ao teorizarem
sobre o riso, nos trazem subsdios para refletir como o humor visto na sua construo e na
sociedade que est inserida. Igualmente, Saliba pensa o riso como funo social a partir de
elementos que compe a prpria sociedade.58 O autor pde identificar formas da construo
do humor na Belle poque, e estas forneceram indicaes preciosas para compreender o
humor, no apenas como ele foi concebido nesta mesma poca, mas tambm como forma de
54
Propp explica que, Ao lado do fracasso daquilo que se deseja por causas externas ou internas, h casos em
que o fracasso se deve falta de inteligncia. A estultice, a incapacidade mais elementar de observar
corretamente, de ligar causas e efeitos, desperta o riso. (Ibid., p. 107).
55
Ibid., p. 174. [Grifo nosso]
56
BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre o significado do cmico. op.cit., p. 39.
57
Ibid., p. 40.
SALIBA, Elias Thom. Razes do riso: a representao humorstica na histria brasileira: da Belle poque aos
primeiros tempos do rdio. op.cit.., p.22.
27
Finalmente, outro componente que est inserido em nossas leituras a abordagem dos
esteretipos, que no toa esto presentes nas caricaturas selecionadas. Durante a verificao
das fontes, sobretudo no captulo trs e quatro, com a revista Careta, no raramente
trabalharemos com o conceito de esteretipos culturais que se fazem pertinente nas
apreciaes de textos e caricaturas quando se diz respeito a questo racial. medida que
proporciona um discurso do Estado vigente que se apresentava com uma proposta de ruptura
de antigos preceitos da Primeira Repblica, a sociedade ainda mantm-se nas sequelas dos
paradigmas raciais que so engendrados por meio dos esteretipos culturais. Mas afinal, o
que so os esteretipos culturais que buscamos investigar? Qual o papel da questo racial
nos ditos esteretipos, principalmente quando se tem em vista o riso e o humor das
caricaturas?
A resposta pode parecer simples se levarmos em considerao seu uso pelo senso
comum, mas o contexto pressupe o contrrio. necessria uma crtica profunda das
conceituaes dos esteretipos culturais para compreendermos o lugar da raa nessa
vertente. Tentar encontrar em uma sociedade multirracial os preconceitos dela mesma, nem
sempre uma tarefa fcil, principalmente quando chamam baila o mito da democracia
racial brasileira. Mesmo assim, todos se dizem blindados desses estigmas, mesmo sabendo
que eles cercam a todos os ditos esteretipos culturais e suas construes sob aqueles que
consideram diferentes por algum aspecto fsico, religioso ou moral.
A definio que consideramos de esteretipos prxima a de Deligne, que os
considera no sentido atribudo pelas cincias sociais s representaes coletivas
estabelecidas (com duas vertentes, negativa e positiva)61. O riso do esteretipo cria um
elemento esttico em que toda vez que a imagem direcionar-se quele padro trar em sua
59
Ibid., p. 28.
Ibid., p. 29.
61
DELIGNE, Alain. De que maneira o riso pode ser considerado subversivo. op.cit. p. 30.
60
28
bagagem uma memria cmica das significaes representativas dentro da sociedade sobre a
carga do indivduo pensado coletivamente.
O ponto caricatural nos traz este esboo do humor nas cifras do exagero do
caricaturado na representao dos seus esteretipos culturais dentro da sociedade ou da
coletividade que nele faz sentido. Em outras palavras, no caso do judeu, ele ser satirizado,
por exemplo, pelos exageros dos traos da barba, o negro pelos lbios volumosos ou pelo
cabelo crespo, o japons atravs do olho, e assim sucessivamente, medida que quando a
imagem chegar sua recepo ela possa ser identificada e causar o riso atravs das suas
significaes que se compreendem dentro de um coletivo que as aceitam e as recepcionem.
No estamos com isso demonizando o caricaturista, na expressividade de como manipula seu
material caricatural em detrimento de qualquer grupo. Muitas vezes, o humor que deveria
denunciar o contraste atua como ambiguidade moral que acaba por consolidar a imagem do
esteretipo. Determinada caricatura pode expressar uma crtica insegurana social dos
roubos de propriedade privada, por exemplo. Porm, a partir de sucessivas representaes
desses roubos serem realizados por negros, que em determinado espao temporal visto como
supostamente inferior e mais propenso ao crime, isto poder deflagrar dentro do organismo
social a concluso equivocada de que o negro naturalmente um ladro.62 Dessa forma, a
construo da imagem denota os elementos que nela esto inseridas.
Rui Zink vai ao encontro a esta observao quando prope que a caricatura, anedota,
stira so os termos favoritos para apreender uma impresso global do outro63. Esse conjunto
de foras que se estabelece por esta forma de riso se torna subversiva, pois coloca a unidade
de pases, religies ou traos tnicos em constante segregao. Mas, se essas expresses
caricaturais generalizantes de esteretipos culturais so erradas, por que esto enraizadas e
tidas como uma profecia da atitude ou caracterstica de certos grupos? Talvez este seja o
ponto de consolidao desta questo. Todos ns sabemos dos equvocos das generalizaes,
mas nem por isso algumas imagens deixam de satirizar o judeu, por exemplo, como um povo
avarento. Assim, aps Segunda Guerra Mundial mesmo antes existindo a caricatura do
judeu - com os frequentes pedidos de indenizao material pelos traumas sofridos na guerra
abriu-se margem para o pblico caricatur-lo como avarentos e oportunistas. Portanto,
quando vinculada notcia do pedido de indenizao sobre as sequelas do Holocausto, por
62
Deligne nos apresenta o exemplo de Reiser que ao apoderar-se do assunto do direito ao prazer sexual da
mulher pode parecer coloc-la como promscua, porm a relao de Reiser com o jogo de poder entre a
violncia sofrida pela mulher e uma crtica a truculncia policial que enxergava 'todas umas safadas e s tem o
que merecem (Ibid., p. 42).
63
ZINK, Rui. Da bondade dos esteretipos. In: LUSTOSA, Isabel (org.). Imprensa, humor e caricatura: A
questo dos esteretipos culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011, p. 47.
29
exemplo, cair na concordncia do senso comum aliada quela ideia de avareza e que dar
legitimidade ao trao de distino do humor com relao ao judeu.
Como elegemos o judeu em nvel de comparao caricatural, por significar em escala
global seu humor satrico ligado, entre outras, a avareza, traremos como exemplo o estudo de
Marcela Gez, sobre as caricaturas de judeus na imprensa de Buenos Aires entre os anos de
1930-1940. Em um recorte sugestivo para entendermos o lugar do judeu na sociedade, a
autora estuda Clarinda, Revista Mensual de Propaganda Argentina y Contrapropaganda
Roja (1937-1945), que foi um importante instrumento que estandardizaram um tipo humano,
fixando-o na memria coletiva64. Gen pensou o contexto vivido pela Argentina neste
recorte temporal, sob a tica de grupos antissemitas que tinham um discurso poltico de
demonizar a figura do judeu no imaginrio popular e, com isso, por meio das caricaturas,
encontraram um elemento grfico que possibilitou em grande escala esse objetivo que, no
sentido da anlise da autora permitiu a caricatura como forma expressiva de propaganda de
estigmas de uma caa aos judeus65. Os elementos que envolviam a construo da imagem
desse povo davam a tnica da simbologia que deveria pairar na sua imagem negativa atravs
de representaes deste grupo como animais peonhentos ou bactrias que subentendem um
desprezo social e uma alternativa de aniquilao, assim como com o uso de inseticidas66. O
judeu era propagandeado como um grande mal a ser erradicado e a presena da populao
judaica representava para eles, segundo uma ideologia na eugenia social"67.
Maria Luiza Tucci Carneiro mostrou esta questo poltica no seu livro O Antisemitismo na Era Vargas. Apesar do nosso foco no ser a figura do judeu, ela estabelece uma
referncia para abarcarmos as outras formas de propaganda ou assimilaes dos chamados
indesejados ou mesmo do sentido de raa. A autora enfatiza como a imagem do judeu foi
forjada no mbito da Era Vargas, caracterizando-o por um elemento inassimilvel onde
carregavam consigo a imagem estereotipada do falso cristo, do judeu explorador,
agiota e ambicioso68. Carneiro ainda complementa que ao colocarem o judeu como
sinnimo de perigo nacional e ao empregarem uma linguagem antissemita estavam
64
GEN, Marcela. Construindo o inimigo da nao: caricaturas de judeus na imprensa de Buenos Aires
(1930-1935). In: LUSTOSA, Isabel (org.). Imprensa, humor e caricatura: A questo dos esteretipos culturais.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011, p. 441.
65
Ibid., p. 442.
66
Ibid., p. 447-449.
67
Ibid., p. 445. [Grifo nosso]
68
CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. O Anti-semitismo na era Vargas: fantasmas de uma gerao (1930-1945). 2.
ed. So Paulo: Brasiliense, 1995, p. 419.
30
expressando [...] uma mentalidade racista fortemente influenciada pelas teorias em voga na
Europa69.
Sobre a questo das anomalias representadas na forma do judeu como o nariz
tem tambm suas razes no desejo de tornar a figura deste grupo como repulsiva e
degenerada. Nesse momento, Carneiro cita a viso caricatural da Careta no trao do judeu.
Sobre os esteretipos do seu espectro que provinha desde a Idade Mdia como seres de cauda,
chifres e diversas anomalias, diz:
Transportados para o sculo XX, tais esteretipos ganham forma humana atravs
dos desenhos caricaturados do judeu, que passou a ocupar espaos da imprensa
compromissada com o integralismo e nas revistas ilustradas do tipo Careta, Cultura
e Vamos Ler. Unindo a ideia estereotipada imagem deturpada do judeu, os
meios de comunicao reforaram junto populao brasileira atitudes de repulsa e
desprezo pela sua figura.70
Parecidamente, Carneiro assinala no seu estudo sobre os judeus aquilo que muitas
vezes visualizamos com a temtica racial, ou seja, como a representao desses grupos, tende
a sugerir para a populao uma regra de conduta ou de pertencimento, por conta da sua
origem. Elucidando melhor, em nosso caso, a raa como explicao para aqueles que se
apropriaram da sua ideia degenerativa para esclarecer os problemas nacionais, ausncia
de progresso em relao a outros pases, degenerao hereditria, ou mesmo com uma
interpretao mpar aliada as necessidades de homogeneizar a nao.
A problemtica se insere ao passo que as caricaturas muitas vezes so recheadas de
esteretipos culturais que permitem uma generalizao de grupos ou de uma comunidade
imaginada. Isto , os conflitos que envolvem grupos ou naes so reforados nos estigmas
dos esteretipos, como mostramos no caso dos judeus, mas h vrios outros exemplos.
Gostaramos de oferecer rapidamente outros modelos para mediar nosso debate.
No so raras as associaes que o brasileiro faz com o portugus que, historicamente
foi metrpole do Brasil por sculos de colonizao e, no humor do esteretipo cultural
negativo o brasileiro traveste o portugus - todo o portugus e no um grupo de portugueses como ignorante ou intelectualmente inferior. Esta questo nacional tem como caracterstica
o humor chamado stupid person sendo
o que est em questo a relao entre quem conta a piada e quem o alvo da
piada. Quase todos os povos escolhem outro para ser o tema preferncia de suas
69
70
Ibid.
Ibid., p. 422.
31
LUSTOSA, Isabel; TRICHES, Roberta. O portugus da anedota. In: ______ (org.). Imprensa, humor e
caricatura: A questo dos esteretipos culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011, p. 266.
72
Ibid., p. 251.
73
LUSTOSA, Isabel. O nascimento da imprensa brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2004, p.
32.
74
ZINK, Rui. Da bondade dos esteretipos. op.cit., p. 50. Diz o autor: Assim, mesmo que a arrogncia contra os
poloneses no seja necessariamente uma caracterstica do povo alemo, essa a sensao que estes ltimos tm
quando constatam a maneira como continuam a ser representados no repertrio humorstico de seus vizinhos
(Ibid., p. 51).
32
de piadas. Elas so objetos visuais e materiais compostos por um indivduo especfico para
um grupo especfico de indivduos e, geralmente, s podem circular se houver um meio fsico
de reproduo, seja mecnico ou eletrnico 75.
Contudo, o caricaturista tem a autonomia de crticas perante o poltico-social para
conduzir uma ideia que vai significar um consenso editorial a partir do momento em que sua
ilustrao publicada e, assim, configura-se a bagagem ideolgica do impresso ou do
veculo da caricatura - no meio a que pertence, mesmo que a recepo da caricatura tenha um
efeito diferenciado da ideia original do caricaturista. Por esta faceta que percebemos o
campo escorregadio deste processo humorstico, arraigado sobre a questo tnica e racial.
Uma simples caricatura em que seu ilustrador pretende focar-se em um problema de
desemprego ou de roubo - que so problemas sociais - pode configurar todo o humor numa
crtica ao governo e suas ferramentas administrativas de sanar este problema. Porm, a partir
do ponto que, conscientemente ou inconscientemente, o retrato da bandidagem ou do
desemprego um negro, colocado de forma repetitiva, por exemplo, h um signo sendo
impresso para o receptor. Assim como aponta Davies O ponto de vista do cartunista sobre a
sua criao importante, embora, claro, no seja definitivo. Estamos em uma rea onde os
significados so escorregadios76. Esta repetio contribui para que o receptor sempre espere
que determinados elementos signifiquem aes especficas.
No acreditamos na neutralidade do caricaturista77, seria o mesmo que pensar nos
romances de Jorge Amado e Machado de Assis e dizer que no h elementos de crticas
sociais do espao temporal da vivncia dos autores em relao perseguio ao candombl ou
ao paternalismo, respectivamente. As obras desses autores no esto avessas ao mundo que os
cercam. Na caricatura tende-se a uma semelhana estrutural, pois h uma crtica social que
pode causar humor ou no e pode refletir a um acontecimento que envolve um coletivo. O
limiar do uso do recurso humorstico muitas vezes traz para o caricaturista a reafirmao do
75
DAVIES, Christie. Cartuns, Caricaturas e piadas: roteiros e esteretipos. In: LUSTOSA, Isabel (org.).
Imprensa, humor e caricatura: A questo dos esteretipos culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011, p.
94. Por essa questo terica que podemos compreender as facilidades de censura do material fsico para a piada
oral.
76
DAVIES, Christie. Cartuns, Caricaturas e piadas: roteiros e esteretipos. op.cit., p. 94.
77
Um bom exemplo talvez seja o caricaturista mexicano Jos Guadalupe Posada. Conhecido por suas figuras
icnicas das Calavera Catrina, seus traos buscavam retratar o social e sua viso sobre este. Denncias sociais e
preconceitos prprios so inerentes a posio desse caricaturista na confeco do seu material. Para Rafael
Barajas, que se debruou sobre o estudo de Posada, o repdio dor e ao sofrimento humano est na origem das
caricaturas em que denuncia a violncia cotidiana, os abusos patronais, os excessos da polcia, a misria do
pobre e a violncia dos revolucionrios. No entanto, o humanismo de Posada no nem de longe, perfeito, e sua
obra contm erros de apreciao e juzos enviesados: com frequncia ela reflete os preconceitos classistas,
xenfobos e machistas de seu tempo (BARAJAS, Rafael. Posada, cronista grfico da identidade popular. In:
LUSTOSA, Isabel (org.). Imprensa, humor e caricatura: A questo dos esteretipos culturais. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2011, p. 218).
33
78
34
Esta projeo dos grupos que se formam pelo esteretipo traz caractersticas prprias
de como parte do organismo social vai enxerg-los. Assim, as opinies que se construram
sobre o negro, por exemplo, somam-se ao conjunto da viso que se tem dele na sociedade.
Para integrar nosso pensamento, o autor estabelece que estes esteretipos so resultantes de
experincias anteriores, parciais e frustradas, e de uma interpretao til dessas experincias
sua consolidao e propagao dificulta a aquisio de novas experincias, pela inrcia que
ope reviso do estabelecido e aceitao de inovaes84.
Dagoberto Jos da Fonseca, no livro, Voc conhece aquela?: A piada, o riso e o
racismo brasileira, auxilia-nos a pensar a relao entre a produo do humor com os
esteretipos culturais que se aprofundam nas culturas, em nosso caso, especialmente nas
relaes etnorraciais. Ao tratar da piada, ele afirma que um discurso informal que fomenta
preconceitos, esteretipos e discriminaes etnorraciais, mas tambm denuncia a existncia
dessas distores sociais85. Elas tambm operam como denncia, pois a partir das anlises
das caricaturas percebe-se o jogo imagtico entre a realidade, construda por meio das
diferenas sociais, e como elas se legitimam nas relaes dos atores histricos ao longo dos
anos. Ilustradores como Storni e J. Carlos ao desenharem as situaes raciais esto alm do
humor, indicando aquilo que notavam no seu cotidiano. Por isso, cabe a ns confrontar o que
diz a bibliografia sobre a questo racial no Brasil, neste perodo, e tentar abranger como
estes humoristas do desenho tambm percebiam as relaes que os circundavam. Temos a
mais que caricaturas, h tambm um olhar da realidade.
82
VELLOSO, Mnica Pimenta. A mulata, o papagaio e a francesa: o jogo dos esteretipos culturais. In:
LUSTOSA, Isabel (org.). Imprensa, humor e caricatura: A questo dos esteretipos culturais. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2011, p. 369.
83
COSTA PINTO, Luiz de Aguiar. O Negro no Rio de Janeiro: Relaes de Raas numa Sociedade em
Mudana. So Paulo: Companhia Editora Nacional, 1953, p. 195.
84
Ibid., p. 199. [Grifo do autor].
85
FONSECA, Dagoberto Jos. Voc conhece aquela?: a piada, o riso e o racismo brasileira. So Paulo: Selo
Negro, 2012, p. 12.
35
Porque Storni faria uma caricatura sobre concursos de beleza e colocaria me e filha
de cor negra sob o ttulo de Doce esperana trazendo tona a impossibilidade do
reconhecimento de uma negra como padro de beleza daquela poca? Essa construo
humorstica foi feita com base em que? Como a eugenia pensava esses concursos e quem
construa esse tipo de padronizao da beleza humana, tangenciando o aspecto do
branqueamento contra a negritude ou mestiagem? Por trs dessa caricatura h um extenso
debate que iria desde Renato Kehl Roquette-Pinto. Tambm, um colquio findado nos
esteretipos culturais que se encontravam no seio de uma sociedade verticalizada na sua
formao etnicorracial. Citando novamente Fonseca,
As piadas devem ser interpretadas com base na leitura de seus cdigos e por meio da
contextualizao histrica de suas mensagens, das origens e dos fins sociais que as
fizeram emergir dos subterrneos ou do vrtice mais alto da pirmide social86.
Trabalharemos com diversas dessas imagens que fazem esta denncia nos captulos
que compe esta pesquisa Ademais, nossos captulos tentaro este esforo de compreender a
discusso da eugenia no Brasil e sua vinculao com o pensamento racial, que pairava em
uma parcela da intelectualidade, sociedade e poltica brasileira. Utilizando como fonte a
revista Careta, de grande recepo da poca, perceberemos como as caricaturas so timas
fontes do perodo que possibilita abranger um pouco mais da construo racial que se fazia
no Governo Provisrio.
Efetivamente a contruo dos nossos captulos tomam a seguinte forma. No primeiro
captulo no entramos diretamente nas fontes, pelo contrrio, buscamos fazer uma digresso
ao sculo XIX, mais propriamente a Francis Galton, o criador da eugenia. Nosso objetivo com
esse captulo possui duas vertentes. A primeira de traar a formulao da eugenia e
interpretar por meio da produo intelectual de Galton seu contexto de criao e suas posies
enquanto cientista. Isso ajudar a contribuir quando pensarmos o carter multifacetado que a
eugenia ser tomada em vrias partes do mundo, sobretudo no Brasil e, por consequncia, na
anlise da Careta. Em um segundo momento deste captulo, refletimos sobre a questo
conceitual da eugenia e da sua concepo como "pseudocincia" para a historiografia aps a
Segunda Guerra Mundial. Isso significa que pensamos o tema fora dos preconceitos e juzo de
valores das consequncias da aplicao da eugenia como medida draconiana no final do
sculo XIX e, sobretudo, nos decnios iniciais da dcada de 1930.
86
Ibid., p. 31.
Sendo assim,
36
consideramos fundamental entremear essa discusso para nos captulos seguintes o leitor
compreender "o que" e "como" entendemos a eugenia.
O segundo captulo est dividido em quatro tpicos e prope uma reflexo da eugenia
em termo de Brasil durante diferentes enfoques. Pela temtica do nosso trabalho estar
reservada a questo de cor e raa, procuramos sempre dar prioridade a este objetivo. Sendo
assim, trataremos como o mote racial foi pensado por determinados intelectuais como Silvio
Romero, Raimundo Nina Rodrigues, Manoel Bomfim e Euclides da Cunha, na virada do
sculo XIX para o XX. A posio de um dos maiores propagandistas da eugenia no Brasil,
Renato Kehl e sua ao desde o final da dcada de 1910 ser analisada no item dois, assim
como no item trs o pensamento de Edgard Roquette-Pinto, na tentativa de demonstrar a
pluralidade do pensamento eugnico no Brasil. E, no final, entrando em nossas caricaturas,
notaremos como no Governo Provisrio a questo da eugenia foi elevada na discusso poltica
e social.
O terceiro captulo nos traz dois itens que convergem com nossas fontes. No primeiro
nos debruamos sobre as questes mais tcnicas da Careta, no que compreende sua difuso,
seu corpo editorial, suas publicaes e aqueles que faziam parte em nosso perodo. Tambm
fizemos algumas discusses sobre imprensa, caricaturas e humor para embasar nossa forma de
enxergar as caricaturas. O segundo item adentramos diretamente nas anlises das caricaturas e
crnicas, em vista de perceber no recorte das publicaes da Careta no Governo Provisrio o
debate que se fazia de eugenia, cor e raa. Nesse item, sobretudo, selecionamos as caricaturas
que procuravam dar um enfoque a um "tipo nacional", algo muito debatido nesse perodo em
vista de uma padronizao do "povo brasileiro" em seu aspecto racial. Nessa mesma linha de
raciocnio ressaltamos caricaturas que elencaram o negro em nveis inferiores em suas
posies sociais e econmicas em relao ao branco.
O ltimo captulo pretende tratar de dois aspectos que consideramos essenciais para a
relao racial e a eugenia: o negativismo da cor negra e a cor relacionada criminalidade. As
caricaturas e crnicas balizam o sentido de marginalidade que a questo de cor direcionava
queles que no eram brancos. Veremos, nestes casos, a impossibilidade de uma negra
conseguir ter sua filha vencedora em um concurso de beleza, a dificuldade do negro de entrar
na poltica nacional, as piadas em relao a cor da pele, as aparies do negro marginalizado
como esteretipo do bandido, as referncias da eugenia na concepo de loiras e morenas ou
mesmo das posies matrimoniais de Hitler na Alemanha Nazista, entre outras.
Nesta pesquisa est entre nossos objetivos pensar qual a posio das caricaturas e
crnicas da Careta em relao a eugenia, cor e raa. Refletir sobre o debate no Governo
37
Provisrio de Getlio Vargas os sentidos entre identidade nacional e questo racial. Perceber
em diferentes nveis da sociedade o debate sobre eugenia, contribuir na linha da historiografia
da eugenia na nfase de mais uma evidncia do seu carter polimorfo, a partir da anlise de
produes intelectuais e das nossas fontes.
38
CAPTULO 1
FRANCIS GALTON, A EUGENIA E OS PARADIGMAS DO SEU TEMPO.
ROQUETTE-PINTO. Seixos rolados estudos brasileiros. Rio de Janeiro: Mendona, Machado e Cia., 1927,
p. 167.
88
GALTON, Francis. Memories of my life. London: Methuen & CO, 1908, p. 2. Para mais detalhes da rvore
genealgica de Francis Galton ver tambm: BULMER, Michael. Francis Galton: pioner of heredity and
biometry. Maryland: The John Hopkins University Press, 2003, p. 2; GILLHAM, Nicholas Wright. Sir Francis
Galton: From African exploration to the birth of eugenics. New York: Oxford University Press, 2001, p. 14.
89
Ibid., p. 3.
90
Cf.: Robert Schofield nos fornece outros exemplos, como: Manchester Literary and Philosophical Society, a
Derby Philosophical Society, a Literary and Philosophic Society of Newcastle-on-Tyne, and philosophic clubs in
Liverpool, Bristol, Leeds, and many other places (SCHOFIELD, Robert E. The Industrial Orientation of
Science in the Lunar Society of Birmingham. In: Chicago Journals. Isis, Vol. 48, No. 4 (Dec., 1957), p. 409).
39
Seu av, alm da cincia, era um grande empreiteiro nos negcios, com destaque
suplementao em grande escala de armas para o exrcito durante a guerra. Conhecido como o
Capito da indstria, fundou um banco de auxlio nos tempos de batalha e prosperou em suas
finanas. Essa posio, descrita pelo prprio Francis Galton, coloca-o em um grau importante
daquela localidade de Birmingham, bem como para a Inglaterra de modo geral. Notamos a
influncia do seu av no que tange a sua formao e, portanto, seu apreo e curiosidade pela
cincia.
Citamos Charles Darwin (1809-1882) em pargrafos anteriores, e no por acaso
enfatizamos o lao familiar entre ele e Francis Galton. Isso pode ser demonstrado pelo prprio
Galton em suas memrias ao transparecer o pleno orgulho em fazer parte da famlia. Do outro
lado da rvore genealgica ele cita Dr. Erasmus Darwin, - membro da Sociedade Lunar - e o
parentesco com o que ele chamava de the great naturalist. Ele ratifica como sua carga gentica
parecia ser especial, pois alm do prprio Galton teria formado outro grande cientista na
91
Ibid., p.415.
UGLOW, Jenny. The Lunar Men: The Friends Who Made the Future 1730-1810. London: Faber & Faber,
2003, p. XVI-XVII.
92
40
famlia em diversas geraes. Em suas palavras diz que: His hereditary influence seems to
have been very strong93, se referindo ao Dr. Erasmus Darwin. Uma frase que pode parecer
casual em um livro de memrias revela uma crena de Galton, que ser estudada nesse trabalho
e que motivou parte da sua vida na busca de identificar os bem-nascidos, ou conceitualmente,
a eugenia. Como notou Nicholar Gillham, Erasmus Darwin publicou vrias contribuies sobre
os estudos de plantas e foi sempre visto por Galton com grandes admiraes.94
De fato, Galton era crente na contribuio de sua famlia ao longo das geraes para a
cincia, estatstica e poesia95, e no toa, os familiares de Galton acreditavam que ele possua
certa aptido para a cincia, em especial, a medicina. Investiu em medicina no King's College
Medical School, em Londres, mas parece no ter apreciado o curso, mesmo com um timo
histrico. A mudana veio em 1840, quando se matriculou no curso de matemtica na
Cambridge University.96
Desde suas passagens na Cambridge University, at suas viagens ao Egito, Sudo e,
posteriormente, sob o auspcio da Royal Geographical Society a outros lugares da frica, como
a regio da frica do Sul, Nambia e Botsuana, relatados nos livros Narrative of an Explorer in
Tropical South Africa97 e The Art of Travel98, nos trazem tona os contatos de Galton durante o
perodo do seu amadurecimento intelectual. Um caso que chama a ateno foi do seu contato
com Herbert Spencer (1820-1903), que contribuir para o pensamento do darwinismo social e
das conceituaes do nosso trabalho, no que diz respeito s evolues das raas humanas.
Uma interessante relao entre Spencer e Galton aconteceu quando ambos escreveram em um
peridico denominado The Reader. Juntamente com Huxley, que ficou responsvel por
escrever fisiologia, e Spencer, a filosofia, Galton articulou as questes inerentes a Viagens e
Geografia, devido a sua experincia exploratria. O jornal acabou no publicando por mais de
um ano com problemas financeiros e encerrou suas atividades. A criao de um peridico,
93
41
mesmo em um curto espao de tempo e com expoentes cientficos da poca, mostra a interao,
sua insero na cincia e o reconhecimento de Galton com os pares.99
Por este contexto, percebemos parte da influncia que Galton teve, desde sua famlia at
suas atividades no incio de sua formao acadmica. Essa trajetria abrange um homem da
cincia por excelncia, dedicando-se tambm como viajante, estatstico, matemtico e
gegrafo. Parece agora o momento de entrarmos mais especificamente no contexto da eugenia,
e sua influncia propriamente dita nas formulaes cientficas que corroboram com o
pensamento acerca da raa e hereditariedade, que passou vigorar com mais nfase na segunda
metade do sculo XIX. Posto isso, optamos em adentrar nas obras mais importantes de Galton,
em que sua tese do talento hereditrio encontra-se em desenvolvimento e nos permitir
compreender suas observaes sobre a eugenia. Nesta tentativa de examinar os estudos de
Galton, nos focaremos em quatro obras que se apresentam como importantes fontes, com
espaos temporais significativos e amadurecidos da eugenia: Hereditary Talent and Character
(1865), Hereditary Genius (1869), Inquiries Into Human Faculty and its Development (1883) e
Essays in Eugenics (1909).
A escolha de trabalhar com as citadas obras, e no outras, passa por um rigor de seleo
da nossa anlise, que no tem a inteno de se apropriar na direo de uma biografia de
Galton, mas de estudar suas inquiries no que diz respeito a eugenia, hereditariedade, sua
posio enquanto cincia de uma poca e, incluso nesta redoma, a questo racial.
Sendo assim, a primeira, trata-se de artigo denominado Hereditary Talent and
Character, o qual podemos considerar como um estudo primrio de Galton sobre os traos
hereditrios. A segunda, em formato de livro, Hereditary Genius, desenvolveu e ampliou a
discusso do artigo anterior e efetiva o nascimento do pensamento do talento por meio da
hereditariedade, para muitos o ideal sobre eugenia - mesmo sem cunhar o conceito ainda - est
ali. A terceira obra, Inquiries Into Human Faculty and its Development nos interessa porque foi
neste momento que Galton cunha o termo eugenia. Apesar de trabalhar as proposies do
retrato composto, h uma maturidade conceitual na sua teoria eugnica, isto , a eugenia para
Galton comea a tomar um corpo terico mais desenhado e complementando as posies sobre
o "talento hereditrio". Por fim, a ltima obra Essays in Eugenics, que nos trar no fim da
vida de Galton um entendimento de toda a fase da sua proposta hereditria e da eugenia.
Acreditamos que ao trmino da anlise poderemos entender a importncia da eugenia para este
trabalho e sua contribuio para as pesquisas na temtica, tendo em vista a busca por
99
42
Ibid., p. 30.
DARWIN, Charles. A origem das espcies. 4. ed. Traduo de John Green. So Paulo: Martin Claret, 2004,
p. 19-22.
102
HOBSBAWM, Eric J. A era do Capital, 1948-185. 5. ed. Traduo de Luciano Costa Neto. So Paulo: Paz e
Terra, 2011, p. 383.
101
43
103
Cf.: DARWIN, Charles. Origin of species by means of natural selection, or The preservation of favored races
in the struggle for life. New York: P. F. Collier, 1902.
104
GALTON, Fancis. Memories of my life. op.cit.., p. 287.
105
Ibid., p. 162.
106
Em resposta a Galton, segue o trecho da carta de Darwin: "DowN, jan. 10, ?1855 "My dear Galton, I received
your kind present yesterday. I always thought your idea of your Book a very good one, and that you would do it
capitally, and from what I have seen my forethought is, I am sure, quite justified. I hope that your volume will
have a large sale, but what I fully expect is that it will have a long sale, and if you save from some disasters half
a dozen explorers, I feel sure that you will think yourself well rewarded for all the trouble your volume must
have cost you. Believe me, my dear Galton, yours very truly, C. Darwin (Ibid., p. 163).
44
107
BURKHARDT, Frederick; EVANS; Samanta, PEARN, Alison. A evoluo: cartas seletas de Charles Darwin,
1860-1870. Traduo Alzira Vieira Allegro. So Paulo: Editora UNESP, 2009, p. 280-281. [Grifo nosso].
108
Cf.: PERARSON, Karl. The life, letters and labours of Francis Galton. v. 2. Cambridge: University Press,
1924, p. 156.
109
KEVLES, Daniel J. In the name of eugenics: genetics and uses of human heredity. op.cit., p. 18-19.
45
Assim sendo, estamos diante da geneses das formulaes eugnicas, e que They are
only a part of much material I have collected, for a future volume on this subject113. Por isso,
a vontade em aprimorar a hereditariedade torna-se pea chave para compreendermos as
preposies dos bem-nascidos. Galton acreditou que da mesma maneira que os criadores de
animais domsticos tiveram a inquietao em dominar o aprimoramento das raas e animais
selvagens e domsticos, o ser humano tambm deveria ser motivo de estudo e preocupao
nesse sentido.114 Dessa forma, Galton sugere, inclusive, a ateno do homem para a criao de
ces preservando as caractersticas intelectuais como variante para raa.115
Stepan salienta as concluses de Galton que direcionavam para que o sucesso
intelectual seria herdado e no adquirido em outras oportunidades sociais116. O prprio
Galton seria um exemplo dessa prerrogativa. Afinal, era descendente de uma famlia de
grande prestgio, ligado a famlia Darwin desde seu av Erasmus Darwin, bem como primo
Charles Darwin, do qual considerava sua obra de extrema influncia. Somado a isso vale
lembrar sua ascendncia vitoriana e parentescos com Edwood. Enfim, justamente pela sua
110
DEL CONT, Valdeir Donizete. Francis Galton: eugenia e hereditariedade. Scientiae Studia. So Paulo, v. 6,
n. 2, 2008, p. 203.
111
GALTON, Francis. Hereditary Talent and Character. Macmillan's Magazine, vol. 12, 1865, p. 157-166.
Disponvel em http://galton.org/essays/1860-1869/galton-1865-hereditary-talent.pdf
112
Ibid., p.157.
113
Ibid.
114
Charles Darwin, principalmente nos primeiros captulos de A origem das espcies, utiliza as criaes de raas
domsticas em comparao com as selvagens para explicar a seleo natural. Este dado chama-nos a ateno ao
lermos o discurso de Galton, enquanto preocupado com uma evoluo das raas humanas.
115
GALTON, Francis. Hereditary Talent and Character. op.cit., p. 158.
116
STEPAN, Nancy L. A hora da eugenia: raa gnero e nao na Amrica Latina. op.cit.., p. 33.
46
genealogia e suas condies econmicas e sociais parecia que Galton acreditava tambm estar
entre os chamados "bem-nascidos".
Para o fundador da eugenia, os traos intelectuais e de carter poderiam ser
encontrados nas crianas e observados em qualquer um dos seus pais. Haveria, ento, casos de
que pais com grandes caracteres tenham filhos medocres, porm as caractersticas dos pais
so combinadas e pode acontecer da caracterstica benfica (intelectual ou moral) ser
neutralizada.117 Galton acreditava que esse carter ou talento especial sofre outras influncias,
mas no momento de sua publicao ainda so obscuras para ele. Dessa forma, percebemos
que a trajetria porvindoura da dedicao hereditariedade, e posteriormente eugenia, ser
fruto de desenvolvimento.
Ao se inclinar sobre dados biogrficos de alguns nomes que considerava de grandes
caractersticas hereditrias, pde concluir que that when a parent has achieved great
eminence, his son will be placed in a more favorable position for advancement, than if he had
been the son of an ordinary person118. O autor salientou que se o indivduo estiver inserido
nas classes privilegiadas pode receber mais cedo um incentivo ao estudo e ter mais chances
de prosperar. As classes mais baixas encontram-se por si s desanimadas e teriam
dificuldades para ascender-se. Como um exmio estatstico, Galton props formulaes para
identificar nesses dados biogrficos as ramificaes das geraes intelectuais dos sujeitos
estudados.119
evidente que no curso daquela cincia em desenvolvimento, indivduos como Galton
e Pearson se enquadravam como agentes produtores de cincia e de um dilogo cientfico.
Stepan nos diz que Galton encarnava posio bastante convencional em uma tradio
cientfica reconhecida e era membro de pleno direito, por assim dizer, do establishment
cientfico120. Destarte, parece equivocado julgar pr-disposies cientficas em elaborao e
em dilogos com pares do perodo, sendo frutos de pseudocincias. Galton formulava suas
pesquisas cientficas a partir dos argumentos que detinha na poca tendo em vista um vis que
considerava da evoluo humana e de suas formaes, entre elas a estatstica. Apresentando
receptividade favorvel ou contra pelos pares, ainda sim era um agente da cincia. Neste
pensar, exercia sua contribuio com a disponibilidade cientfica que tinha. Em seu primeiro
117
47
PEARSON, Karl. The life, letters and labours of Francis Galton. v.2. Cambridge: University Press, 1924, p.
VII.
122
MACKENZIE, Donald. Eugenics in Britain. Social Studies of Science. University of York-UK, v. 6, n. 3/4,
1976. p. 500.
123
Ibid., p. 165-166.
48
124
Ibid., p. 320.
MACKENZIE, Donald. Eugenics in Britain. op.cit., p. 501.
126
. Cesare Lombroso, na segunda metade do sculo XIX, defendia a tese de que a criminalidade estaria
associada a fatores como fisionomia, raa, doenas ou hereditariedade, por exemplo. Ele teve recepo por parte
da cincia na virada do sculo XIX e nas primeiras dcadas do XX, inclusive no Brasil. Ou seja, por meio da
biotipologia seria possvel identificar propensos criminosos podendo, inclusive, coibi-los. O termo
biotipologia foi cunhado por Nicolau Pende, que tambm se fez valer nos estudos da biotipologia no Brasil.
Com base nas medidas antropomtricas, saia na defesa na busca das diferenas entre os indivduos. Cf. GOMES,
Ana Carolina Vimieiro. A emergncia da biotipologia no Brasil: medir e classificar a morfologia, a fisiologia e o
temperamento do brasileiro na dcada de 1930. Bol. Mus. Para. Emlio Goeldi. Cinc. hum. Belm, v. 7, n. 3,
2012, p. 705-719.
127
Lilia Schwarcz nos lembra da faculdade de direito da segunda metade do sculo XIX no Brasil e sua
inclinao para com as questes da criminologia. Schwarcz cita a Revista Acadmica da Faculdade de Direito
que no ano de 1893 enxergava que a nova escola de Lombroso, Garofalo e Ferri representavam a modernidade
no combate desse fenmeno tenebroso conhecido pelo nome de crime (RADFDR, 1893 apud SCHWARCZ,
Lilia. O espetculo das raas: cientistas, instituies e questo racial no Brasil 1870-1930. op.cit, p. 209).
125
49
Spaniards had to enforce the common duties of humanities by positive laws. They are
strangely taciturn128.
Essa linha de pensamento levar Galton a colocar o desenvolvimento das naes em
pauta. Mas o que nao na segunda metade do sculo XIX? Como podemos interpretar as
espcies humanas e o desenvolvimento das naes com base no contexto do Galton e do
que se entende por pertencer a uma nao? Este texto introdutrio de Galton nos levou a essas
indagaes.
A historiografia acerca da temtica do nacionalismo e nacionalidade extensa, e
percorrer por esse campo pode nos levar a caminhos que ultrapassem o objetivo do nosso
trabalho, cometendo reducionismos e anlises exacerbadas de anacronismos dos quais no
fazem parte da nossa proposta. Dito isto, nos atentaremos aos modelos do sculo XIX,
buscando entender como Galton percebia o sentido de nao mediante ao contexto em que
vivia, afinal, sabe-se que para ele, os anglo-saxes detinham uma melhor hereditariedade e
produziam mais intelectuais, artistas e diversos talentos, comparados a outras civilizaes. Ao
passo que colocarmos Galton nesse debate com o termo nao, analisaremos tambm suas
afirmaes no que diz respeito ao sentido de nao e hereditariedade.
Primeiramente, nao possui seus aspectos individuais em contextos sociais,
temporais e geogrficos, o que dispe de uma compreenso mais elaborada por ns na
tentativa de traar caractersticas que compunham o tempo de Galton, e nos remeta a um
entendimento sobre seus escritos e interpretaes, mediante ao contexto da Inglaterra neste
perodo.
O historiador ingls Eric Hobsbawm debate a importncia no sculo XIX da lngua e
raa, para trazer ao ingls um sentimento de uma origem hbrida (bretes, anglo-saxes,
escandinavos, normandos, escoceses, irlandeses, etc.) e orgulhar-se da mistura filolgica de
sua lngua129. Dessa forma, a tentativa de explicar a raa arraigada ao sentido de nao tornase um sustentculo do pensamento de alguns cientistas e intelectuais. Com o advento da
Revoluo Industrial e a importncia do papel que desempenhou a Inglaterra nesse nterim
parecia evidente para alguns o esprito progressista e sobressado dos ingleses, comparado a
outras sociedades. Como ressaltado anteriormente, Galton viajou para diversos pases, entre
eles Egito e Sria, ou seja, no podemos dizer que ele apenas conhecia os seus limites
128
50
geogrficos de Birmingham ou da Inglaterra, afinal, ele fez contato com outras sociedades,
que sugestiona-nos suas impresses com relao vivncia de cada uma delas.
Hobsbawm assinala que nao e governo no estavam ligados at 1884, e sendo assim,
muito do que se entendia de nao estava atrelada a descendncia, ou seja, para o autor, o
significado de nao na poca de Galton no tinha o mesmo significado moderno. Segundo o
New English Dictionnary em 1908, o velho significado da palavra contemplava
principalmente a unidade tnica, embora seu uso recentemente indicasse mais a noo de
independncia e unidade poltica130.
Benedict Anderson131 oferece uma informao que coaduna com este sentido de
nao. Ao estudar a obra de Donald Eugene Smith, India as a secular state, e Percival Spear,
India, Pakistan and the West, depara-se com o caso de Thomas Babington Macaulay, que se
tornou presidente por volta de 1834 - do comit de educao pblica em Bengala. Macaulay
tinha a misso de implementar um sistema educacional totalmente em ingls na ndia, que
para ele, criaria uma classe de pessoas, indianas no sangue e na cor, mas inglesas no gosto,
na opinio, na moral e no intelecto132. De certo, nota-se na primeira metade do sculo XIX
uma postura sobre a influncia da hereditariedade na formao intelectual, moral ou opinio.
Havia um modelo de nao inglesa que almejavam reproduzir com o imperialismo, e sendo
eles os conquistadores, nada mais lgico do que mostrar esta superioridade. Por isso, como
expe o excerto citado, existe uma crena de que os indianos so de certa forma inferiores aos
ingleses e, para Anderson, ningum na plena posse das suas faculdades negaria o carter
profundamente racista do imperialismo oitocentista ingls133.
Para entendermos melhor o processo de reconhecimento do termo nao do sculo
XIX, e compreender suas peculiaridades com relao ao Outro, Hobsbawm aponta trs
critrios que permitiriam um povo ser firmemente classificado como nao. Em suma, so
eles:
a) associao histrica com um Estado existente ou com um Estado de passado
recente e razoavelmente durvel; b) a existncia de uma elite cultural e longamente
estabelecida, que possusse um vernculo administrativo e literrio escrito; c) a
capacidade de conquista.134
130
Ibid., p. 30-31.
ANDERSON, Benedict R. Comunidades imaginadas: reflexes sobre a origem e a difuso do nacionalismo.
Traduo de Denise Bottman. So Paulo: Companhia das Letras, 2008.
132
SMITH,1963; SPEAR 1949 apud ANDERSON, Benedict R. Comunidades imaginadas: reflexes sobre a
origem e a difuso do nacionalismo. op.cit., p. 136-137.
133
Ibid., p. 140. Cf.: ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Traduo de Roberto Raposo. So Paulo:
Companhia das letras, 2012, p. 235.
134
HOBSBWANM, Eric J. Nao e nacionalismo desde 1780: programa, mito e realidade. op.cit., p. 49.
131
51
135
52
O florescimento das cincias ocupa um espao referencial dentro do sculo XIX. Esse
avano cientfico era concomitante aos anseios da burguesia138, da qual respaldava um
suposto sucesso de sua gerncia e civilizao. No exagero pensar que esses homens da
cincia arraigados a um status prestigioso dentro dos holofotes da poca acreditavam que
viviam em um tempo de progresso contnuo. Hobsbawm nos lembra do importante fsico
William Thompson (Lord Kelvin) que pensava que todos os problemas bsicos da fsica
haviam sido resolvidos, e s alguns problemas menores ainda precisavam ser solucionados.
Ele estava, como sabemos, redondamente enganado139.
Essa gama cientfica que se desenvolvia foi evidenciada por ns por meio da
Sociedade Lunar e como o prprio Galton rememora esses eventos destacando sua
importncia no perodo. Podemos citar eminentes homens da cincia, como, por exemplo, os
naturalistas Charles Darwin, Richard Owen, Alexandre Von Humboldt e Jean-Baptiste de
Lamarck, fsicos assim como John Dalton, Franz Ernst Neumann, Pierre Curie e Michael
Faraday, na qumica podemos exemplificar os sucessos de Thomas Graham, Friedrich Whler
e Louis Pasteur, apenas para citar alguns. Hobswbanm nos lembra de outros nomes
relevantes, tal qual Thomas Robert Malthus e Adolphe Qutelet, que desenvolveram papis
fundamentais para seus enfoques nas anlises cientficas.140
Com todo o progresso cientfico em curso, no tardou para a recepo das teoriais
raciais entrarem em voga. Como dito antes, se os animais e as plantas poderiam ser
classificados em uma cadeia evolutiva, porque o homem no poderia receber uma
classificao, ou ainda, ser colocado em uma pirmide evolutiva que justificasse as diferenas
fsicas, morais e sociais? compreensvel que nesse limiar a cincia do sculo XIX buscasse
cada vez mais compreender o mundo que a cercava.
Com os estudos das classificaes humanas surgindo no contexto do sculo XIX, o
termo raa logo ganhou espao entre os estudos cientficos, inclusive para Galton. Deve-se
fazer uma observao sobre a associao entre a argumentao da questo racial. Para
Benedict Anderson os sonhos do racismo, na verdade, tm a sua origem nas ideologias de
classe, e no na ideia de nao: sobretudo nas pretenses de sangue azul ou branco, entre
as aristocracias. Assim, no admira que o reputado pai do racismo moderno seja, no qualquer
138
Cabe a seguinte nota: Havia muitos industriais inteligentes, de esprito experimentador, e at mesmo cultos,
que lotavam as reunies da Associao Britnica para o Progresso da Cincia, mas seria um erro supor que eles
representavam o conjunto de sua classe (HOBSBAWM, Eric J. A era das Revolues 1789-1848. 25. ed.
Traduo de Maria Tereza Teixeira e Marcos Penchel.. So Paulo: Paz e Terra, 2010, p. 299).
139
HOBSBAWM, Eric J. A era do Capital, 1948-185. op.cit., p. 381.
140
Cf.: HOBSBAWM, Eric J. A era das Revolues 1789-1848. op.cit., p. 445; HOBSBAWM, Eric J. A era do
Capital, 1948-185. op.cit., p. 379-416.
53
141
54
debates. Este ponto, em especial, se ramificou no andar do sculo XIX na figura das
controvrsias entre os chamados monogenistas e poligenistas.147
Os ingleses, por esse vis, estariam delimitados em sua comunidade imaginada como
uma espcie humana avanada e, por isso, ser ingls para alguns cientistas como Galton
era estar frente de outros povos dos quais consideravam inferiores. Hobsbawm lembra de
que esta inferioridade era comprovada porque, de fato, a raa superior era superior pelo
critrio de sua prpria sociedade: tecnologicamente mais avanada, militarmente mais
poderosa, mais rica e mais bem-sucedida148. Este argumento no nos traz surpresas ao ser
empregado para a colonizao, como vimos com Macaulay, isto na verdade seria uma
justificativa at mesmo de conscincia para a explorao de outros povos.
Como cita Hannah Arendt, o racismo vem antes da Alemanha Nazista e s exerceu o
poder que teve devido a um pensamento que comungavam vrios pases e refletia em uma
opinio pblica. Nesse sentido, as ideologias raciais que tiveram maior proeminncia nas
doutrinas nacionais estariam ligadas a uma luta econmica de classe ou uma luta natural entre
raas149. No que tange a chamada luta natural o sentido poltico tornou-se uma arma que
endossaria a discusso em prol de interesses prprios de um grupo ou de uma nao. Nem
Hitler, nem Galton, inventaram o racismo, ele existia na sociedade muito antes travestida de
um molde de racismo imperialista, usado na conquista de povos contra povos. A ideologia
racial foi uma arma para alguns nacionalistas e no o contrrio.
Mediante nossa proposta de contextualizar o panorama cientfico-social de Galton, no
podemos ir alm do contexto dos termos raa e nao do sculo XIX. Aps este panorama,
147
A viso monogenista dominou at meados do sculo XIX e fora pensada por aqueles que se pautavam nas
escrituras da bblia, que propunha uma existncia nica para a humanidade. Tendo em vista a prerrogativa da
criao, a partir dela a humanidade teria se desenvolvido. Na viso poligenista que surge a partir do sculo XIX,
parte da fundamentao de que existiam vrios locais de surgimento do homem, o que explicaria a diferenciao
racial. Assim sendo, ao invs de se pautarem na legitimidade bblica para uma nica formao do homem,
acreditavam que por meio da cincia poderiam enfatizar a orientao poligenista dando legitimidade a esta. Ver:
SCHWARCZ, Lilia. O espetculo das raas: cientistas, instituies e questo racial no Brasil 1870-1930.
op.cit, p. 64-65.
Para uma discusso mais elaborada sobre cincia e religio no sculo XIX, bem como a cincia contestando o
monoplio da verdade sobre as coisas que detinha a religio, ver: HOBSBAWM, Eric J. A era dos Imprios
1875-1914. 9. ed. Traduo de Sieni Maria campos e Yolanda Steidel de Toledo. So Paulo: Paz e Terra, 2011.
p. 393-416. Assim como Buffon, outros foram culminantes para o desenvolvimento da teoria poligenista, a
exemplo do jurista Cornlio de Pauw, que contribuiu com o desenvolvimento conceitual de degenerao
humana. Ressaltam-se as contribuies de Montesquieu, que ao passo que se ope ao modelo escravista, adere
s questes deterministas climticas para explicar a diferena na fora de trabalho entre os seres humanos e, por
conseguinte, formular que apesar dos homens nascerem iguais acredita que em alguns pases ela esteja baseada
num motivo natural e necessrio distinguir precisamente esses pases daqueles em que os prprios motivos
naturais os rejeitam como nos pases da Europa, onde ela foi to felizmente abolida (MONTESQUIEU, 1985
apud HOFBAUER, Andreas. Uma histria de branqueamento ou o negro em questo. So Paulo: Editora
UNESP, 2006, p. 115).
148
HOBSBAWM, Eric J. A era dos Imprios 1875-1914. op.cit., p. 402.
149
ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. op.cit., p. 233-234.
55
nos compete entrarmos mais especificamente no pensamento eugnico de Galton, que ser
formulado no livro Hereditary Genius e que pode nos ajudar a perceber o reflexo deste
sentido de pertencimento de nao, atrelado ao contexto da eugenia.
Podemos dizer que esta a obra clssica de Galton que o projeta para os estudos da
eugenia e hereditariedade, sendo uma das fontes iniciais para a compreenso do estudo
galtoniano. Stepan, enseja apropriadamente a importncia de Hereditary Genius, em que
considerado o texto seminal da eugenia150. Souza, em seu estudo sobre Renato Kehl e a
eugenia negativa no contexto brasileiro, versa que o escrito de Galton introduziu um
conjunto de ideias que, em 1883 ele denominou de eugenia, a cincia da hereditariedade
humana151. Seguiremos na mesma linha de estudos. Publicada em 1869 esta obra tornou-se
uma etapa fundamental para o entendimento das ideias de Galton e do que viria a ser
nominalmente conhecido em 1883 como eugenia. Portanto, buscaremos uma anlise mais
profunda destes escritos para prestar nossa contribuio a historiografia da eugenia.
Quatro anos aps a publicao do Hereditary Talent and Character na Macmillans
Magazine em 1865, Galton dedicou-se a aprimorar e condensar sua teoria em um livro que
no somente continua com o seu estudo sobre a hereditariedade, como complementa seu
pensamento de que seja possvel analisar as habilidades humanas derivadas de heranas
hereditrias. Em outras palavras, se as caractersticas fsicas so herdadas e poderiam ser
verificadas, a herana intelectual e moral tambm poderia. De fato, foi isso que ele pretendeu
investigar. De tal modo, por um estudo de famlias, o autor pretendeu demonstrar que um
gnio - em um nmero grande de casos - provm de genes com caractersticas notveis.
Para Galton, a prpria histria daria indcios da grandiosidade de alguns homens:
I am sure that no one who has had the privilege of mixing in the society of the abler
men of any great capital, or who is acquainted with the biographies of the heroes of
history, can doubt the existence of grand human animals, of natures pre-eminently
noble, of individuals born to be kings of men.152
150
STEPAN, Nancy L. A hora da eugenia: raa gnero e nao na Amrica Latina. op.cit., p. 30.
SOUZA, Vanderlei Sebastio de. A Poltica Biolgica como Projeto: a Eugenia Negativa e a construo da
nacionalidade na trajetria de Renato Kehl (1917-1932). op.cit., p. 9.
152
GALTON, Francis. Hereditary Genius. op.cit., p. 24.
151
56
prprio autor fundamenta sua tese da herana em seus estudos biogrficos, portanto, fica fcil
imaginar suas concluses por uma viso biogrfica de homens vitoriosos e talentosos.
Para tanto, Galton tentou mostrar nomes proeminentes nas mais diversas reas do
conhecimento, bem como seus traos familiares, para fomentar o talento hereditrio. Alguns
exemplos podem ser constatados como juzes ingleses (Heneage Finch e Robert Forster);
estadistas (Mirabeau e Cromwell); comandantes (Alexandre, O grande e Napoleo); escritores
(Irving e Bossuet); cientistas (Aristteles, Bacon, Newton e Buffon); poetas (Goethe e
Milton), Msicos (Beethoven e Mozart); pintores (Raffaelle e Bellini), entre outros. Estes
representam indivduos considerados eminentes e contidos nos anexos de Hereditary Genius,
que podem ser tomados como uma evidncia para Galton dos traos de sucessos
hereditrios.153
Agora podemos ampliar o vis de Galton para o sentido de raa e nao. Em toda a
obra evocada aproximaes naturais no quesito raa e atreladas com comparaes s raas
de animais como cachorros, por exemplo. Galton parecia acreditar que havia uma maneira de
controlar a hereditariedade em funo da busca das melhores raas humanas. Estas raas
estariam organizadas em naes, sendo cada nao peculiar de suas caractersticas
individuais. Nesse momento, a anlise percorre trilhas mais delimitadas e inicia a formulao
das comparaes raciais em prol de uma seleo do que seria a melhor espcie humana.
A comparao entre a raa negra com a raa anglo-saxo nos fornece o rumo de
nossa investigao ao examinarmos as obras de Galton. O cientista ingls foi enftico nas
comparaes das raas em destacar a variante intelectual entre negros e anglos-saxes, isto
, para ele, a raa negra muito raramente conseguiria criar homens eminentes na sociedade
ao estilo de Franois-Dominique Toussaint Louverture154. Mais ainda, na classificao de
Galton, os melhores nveis de intelectualidade negra em comparao com os anglo-saxes
seriam de nvel mdio. Um negro nvel E ou F (considerado como alta eminncia) seria nada
mais que um nvel C ou D (mdia eminncia) entre os anglo-saxes, e entendeu que a raa
negra estaria dois nveis intelectuais abaixo do anglo-saxo. Deixemos as prprias palavras
de Galton tomar forma: In short, classes E and F of the negro may roughly be considered as
153
Galton explica que, The number of cases of hereditary genius analysed in the several chapters of my book,
amounts to a large total. I have dealt with no less than 300 families containing between them nearly 1,000
eminent men, of whom 415 are illustrious, or, at all events, of such note as to deserve being printed in black type
at the head of a paragraph. If there be such a thing as a decided law of distribution of genius in families, it is sure
to become manifest when we deal statistically with so large a body of examples (Ibid., p. 316).
154
O Lder da Revoluo Haitiana. Para Galton, First, the negro race has occasionally, but very rarely, produced
such men as Toussaint I'Ouverture, who are of our class F (Ibid., p. 338).
57
the equivalent of our C and Da result which again points to the conclusion, that the average
intellectual standard of the negro race is some two grades below our own155.
Por seu estudo, Galton chegou concluso da inferioridade negra em relao a outras
raas. O livro Hereditary Genius ser tomado como leitura por aqueles que desejaram
entender ou aplicar a eugenia, inclusive neste sentido racial. No estamos afirmando que a
eugenia nos pases onde foi aplicada possua formas padronizadas, pelo contrrio, ela ter sua
particularidade em cada dispositivo social em que ser empregada. Tanto verdade que o
negro, ou a raa, nunca foi o epicentro da discusso eugnica de Galton, mas uma
consequncia do seu postulado maior da hereditariedade. Deve-se sublinhar que apesar de
Galton falar das raas e, consequentemente, do negro ela no corresponde a totalidade do
seu pensamento. Como diz Kevles, Galton was at best vague about the ethnological
inquiries. Indeed, though his African travels had confirmed his standard views of "inferior
races", racial differences occupied only a minuscule fraction of his writings on human
heredity156. Elencamos o vis racial pelo objetivo do nosso trabalho, mas entendemos a
pequena frao que isto representa para sua tese central da hereditariedade.
As viagens que o cientista ingls fez pela frica e em outras localidades podem ter
chamado a ateno na comparao dos aspectos raciais. Estas excurses trouxeram-lhe uma
viso do que ele poderia considerar como desenvolvido ou no em termos de nao, desde a
educao ao progresso dessas civilizaes. Para isso, era suficiente que Galton olhasse
atravs do que entendia como avanos de sua sociedade em comparao com as outras.
Destarte, ao compreender a relao de um viajante branco se deparar com um lder negro,
seria o estranhamento devido a sua prpria noo do branco se colocando em um grau de
superioridade ao dialogar com o negro.157 Em seguida, Galton relatou o quo impressionado
ficou com a baixa intelectualidade dos negros em suas viagens, inclusive chegando a
destacar que s vezes tinha vergonha da prpria espcie. Diz Galton, I was myself much
impressed by this fact during my travels in Africa. The mistakes the negroes made in their
own matters, were so childish, stupid, and simpleton-like, as frequently to make me ashamed
of my own species158. Ou seja, bem antes de pensar a eugenia, ele j carrega os aspectos do
sentido de raa do seu prprio tempo.
Devemos ressaltar que as diferenas entre as raas e naes no compreendem
apenas a negra e aos pases africanos, pois, Galton tambm faz comparaes com australianos
155
Ibid.
KEVLES, Daniel J. In the name of eugenics: genetics and uses of human heredity. op.cit., p. 8.
157
GALTON, Francis. Hereditary Genius. op.cit., p. 339.
158
Ibid.
156
58
e atenienses, e como a imigrao contribui para uma possvel degenerao racial. Tambm
se posicionou sobre o casamento e a importncia da seleo para o melhoramento da raa.
Em todo o escrito, o livro corrobora com a ideia que posteriormente fundamentar a tese da
eugenia. Essa primeira etapa contribuiu para a viso do seu escrito central da pangnese e o
entrelaamento das teorias de Darwin, sendo aplicadas em um sentido da hereditariedade
humana em que seja passvel de ser analisada e compreendida. Em suma, para ele, the theory
of Pangenesis brings all the influences that bear on heredity into a form, that is appropriate for
the grasp of mathematical analysis159.
Hereditary Genius demonstra-nos sua importncia na construo do pensamento
eugnico. O termo propriamente dito, s aparece pela primeira vez em 1883, na obra Inquiries
into human faculty and development, na qual Galton delinear mais especificamente o que
seria a eugenia. Alm de outras proposies, como a questo da doena mental e a
criminalidade, a eugenia acaba por ganhar seu espao e uma nomenclatura que estar
carregada com a marca de Galton acerca dos seus estudos da hereditariedade.
Entre suas pesquisas, Galton esfora-se para observar o chamado retrato
composto160, e aqui ressalta-se uma fundamentao terica criada por Galton acerca da
recm cunhada eugenia. Ao usar o termo eugenia, o autor traduz em rodap aquele que
ser um novo conceito cientfico, com um vis terico prprio que o intitularia futuramente
com o ttulo de O pai da eugenia:
That is, with questions bearing on what is termed in Greek, eugenes, namely, good
in stock, hereditarily endowed with noble qualities. This, and the allied words,
eugeneia, etc., are equally applicable to men, brutes, and plants. We greatly want a
brief word to express the science of improving stock, which is by no means confined
to questions of judicious mating, but which, especially in the case of man, takes
cognisance of all influences that tend in however remote a degree to give to the more
suitable races or strains of blood a better chance of prevailing speedily over the less
suitable than they otherwise would have had. The word eugenics would sufficiently
express the idea; it is at least a neater word and are generalised one than viriculture,
which I once ventured to use.161
A criao do termo parecia uma nsia por buscar uma palavra que sintetizasse suas
ideias que vinham sendo formuladas h quase duas dcadas, desde sua publicao na
Macmillans Magazine. Haja vista o desenvolvimento da sua teoria, ela poderia ser
159
Ibid., p. 372.
No nos cabe entrar nas especificidades do estudo do Retrato Composto de Galton tendo em vista a
objetividade do nosso trabalho com relao eugenia. Para tanto, os estudiosos porvindouros encontraro uma
rica fonte de anlise no Inquiries into human faculty and development para o estudo do bitipo na segunda
metade do sculo XIX.
161
GALTON, Francis. Inquiries into human faculty and its development. London: Macmillan and Co, 1883, p.
24-25.
160
59
entendida como o estudo de Galton sobre a hereditariedade, ou mesmo um vis dessa tese.
Ao conceituar, ele nada mais fez do que condensar seus estudos sobre os bem-nascidos e
coloc-las em um campo de uma carga terica. Assim, quando se tratar da eugenia, ela
representar a tese do talento hereditrio de Galton. Sob esse prisma enxergamos a
condio da importncia entre a linguagem e o mundo que o circunda.
EUGENIA
EM
CONTEXTO
CIENTFICO:
PARADIGMA
HETEROGENEIDADE.
A cunhagem do termo que expressasse em um nico conceito o que viria a ser a
eugenia sinaliza uma tentativa de unificar por meio da semntica sua teoria. No excerto da
apario do conceito de eugenia podemos observar que o prprio autor clama por uma
palavra que sintetizasse suas teorias hereditrias. A importncia de delinearmos e
lapidarmos o conceito de eugenia exercer uma grande influncia no seu emprego, nos
mbitos polticos e sociais do sculo XIX e XX, principalmente no que concerne ao carter
histrico-filolgico. Apesar de resgatar um termo grego162, a carga conceitual empregada
por Galton ultrapassa os padres associados Antiguidade, no s sob o rigor criterioso do
tempo, mas tambm da cincia. A histria dos conceitos de Reinhart Koselleck nos ensina
que uma palavra pode ser definida pelo seu uso, mas o conceito dever agregar o valor
polissmico em que uma palavra se torna um conceito se a totalidade das circunstncias
poltico-sociais e empricas, nas quais e para as quais essa palavra usada, se agrega a
ela163.
O que estamos propondo que o conceito de eugenia, mesmo quando pensado em
vrios momentos, denote o sentido dos bem-nascidos e seu emprego poltico-social tornase polissmico mediante ao contexto social na qual ela reproduzida. O historiador Souza
relata um relevante argumento a este respeito, pois para ele, a eugenia no foi um
movimento homogneo e singular164, pelo contrrio, ela atendeu aos interesses prprios dos
lugares onde foi aplicada e pensada. Assim, penalizar a teoria de Galton sobre a eugenia em
decorrncia as consequncias do seu uso no sculo XX por alguns pases seria um equvoco
162
No foram raros os momentos em que eugenistas citaram a antiguidade para justificar o uso da eugenia como
uma espcie de herana. Porm, os historiadores do presente no devem cair na armadilha de associar a
eugenia de Galton com qualquer comparao com prticas de seleo humana de tempos anteriores formao
da teoria. Os que se aventurarem nestas comparaes cairo inevitavelmente em anacronismos.
163
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuio semntica dos tempos histricos. Traduo de
Wilma Patrcia Mass e Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006, p. 109.
164
SOUZA, Vanderlei Sebastio de. A Poltica Biolgica como Projeto: a Eugenia Negativa e a construo da
nacionalidade na trajetria de Renato Kehl (1917-1932). op.cit., p. 10.
60
165
MARTINS, Lilian Al-Chueyr Pereira. Histria da Cincia: objetos, mtodos e problemas. op.cit., p. 314.
Ibid.
167
ADAMS, Mark B. Eugenics in the History of Science. op.cit., p. 6.
166
61
sua prpria poca168. Fica mais evidente ao usarmos o exemplo do cientista Galileu Galilei
em que para Khun, no se deve perguntar pela relao entre as concepes de Galileu e as da
cincia moderna, mas antes pela relao entre as concepes de Galileu e aquelas
partilhadas por seus grupos, isto , seus professores, contemporneos e sucessores imediatos
nas cincias169.
Da, reconhecemos o papel da Histria da Cincia na anlise das estruturas que
condicionam o saber cientfico em suas determinadas fases. Nesse sentido, Khun trouxe
contribuies interpretativas importantes para as leituras que devem ser feitas de determinadas
pocas em que as cincias so estabelecidas, padronizadas, fundamentadas, ou seus mtodos e
fontes so empregados seguindo determinada forma ou rigor. Kuhn escreve que:
Preocupado com o desenvolvimento cientfico, o historiador parece ento ter duas
tarefas principais. De um lado deve determinar quando e por quem cada fato, teoria
ou lei cientfica contempornea foi descoberta ou inventada. De outro lado, deve
descrever e explicar os amontoados de erros, mitos e supersties que inibiram a
acumulao mais rpida dos elementos constituintes do moderno texto cientfico.170
Esta perspectiva de Khun deve ser mais bem trabalhada para justificar a nossa prpria
fundamentao da eugenia, como cincia heterognea do seu tempo, e a viso do historiador
perante os processos cientficos no perodo. Assim sendo, Khun estabelece que a dinmica
aristotlica ou a qumica flogstica, por exemplo, no so apenas crenas sem fundamentos,
baseadas em mitos, e no so acientficas somente porque foram descartadas pelo
conhecimento cientfico contemporneo. Para o autor, a viso no deve ser observada apenas
cumulativa da cincia para o historiador, e sim no cumulativas.171 Podemos pensar quais
foram os benefcios de uma determinada cincia dentro de uma poca definida para queles
que pertenciam a ela. Pela eugenia, devemos indagar, a quais pontos essa cincia do seu
contexto respondia aos problemas que englobavam dvidas tericas da hereditariedade. A
partir disso podemos estabelecer que As revolues cientficas so os complementos
desintegradores da tradio qual a atividade da cincia normal est ligada172. Logo,
estabelecesse que, Se no se tem o poder de considerar os eventos retrospectivamente tornase difcil encontrar outro critrio que revele to claramente que um campo de estudos tornouse uma cincia173. Olhar para trs neste espao-tempo da construo do paradigma serve
168
62
de apoio para compreender sua aplicao cientfica e social, e a partir dele colocar o
problema do paradigma a ser resolvido.
A eugenia tornou-se uma cincia difundida no mbito acadmico, um paradigma a ser
considerado dentro das instituies. Na Inglaterra, pode-se citar o Laboratrio de eugenia na
Universidade de Londres, e em 1907 a fundao da Sociedade de Educao Eugenia como
exemplos de institucionalizao.174 A partir das fontes do estudo de Edwin Black, alguns
exemplos fazem coro forma como a eugenia estava institucionalizada. Nos escritos do autor,
metodicamente, textos eugenistas, especialmente os de Davenport, foram includos na lista
de obras das faculdades, e sem alguns casos inspiraram a criao de um currculo exclusivo de
eugenia175. Citando algumas universidades, Black evidencia que Na Harvard University,
dois cursos de eugenia eram ministrados pelos doutores East e Castle. O curso da Princeton
University era dado pelo doutor Schull e pelo prprio Laughlin176. A lista de universidades
que adotaram os cursos de eugenia eram vastas, para exemplificarmos, Na Universidade da
Califrnia, em Berkeley, um curso de sociologia ministrado pelo doutor Holmes, com um
semestre de durao era simplesmente chamado de Eugenia177. Por fim, o excerto abaixo
demonstra como a educao eugnica alm de atingir o nvel mais alto da academia, tambm
fazia presena nas escolas de curso secundrio:
A eugenia avanou feito um foguete no mundo acadmico, tornando-se de um dia
para o outro, virtualmente, uma instituio. Em 1914, cerca de quarenta e quatro
instituies importantes ofereciam instruo eugenistas. Em uma dcada, esse
nmero cresceria para centenas, abrangendo cerca de vinte mil alunos por ano.
As escolas de curso secundrio tambm adotaram rapidamente os livros didticos
eugenistas. O livro de biologia para o curso secundrio de George William Hunter
era publicado pela maior editora de livros didticos do pas, a American Book
Company. Tipicamente, o livro didtico de Hunter de 1914 se chamava A civic
Biology: Presented in Problemas [Uma biologia cvica: apresentada em problemas],
e ecoava muitos princpios de Davenport.178
Estas so algumas referncias que colaboram para os que consideram a eugenia como
no cientfica, no momento histrico em que foi empregada nos circuitos cientficos e
acadmicos por uma gama de intelectuais. Khun expe esta relao do paradigma quando
estes
174
63
no diferem somente por suas substncias, pois visam no apenas natureza, mas
tambm a cincia que os produziu. Eles so fontes de mtodos, reas problemticas
e padres de soluo aceitos por qualquer comunidade cientfica amadurecida em
qualquer poca que considerarmos.179
179
64
passado de sua disciplina183. Por isso, para os historiadores, por exemplo, possvel enxergar
alm daquele momento cientfico e analisar as rupturas e permanncias de um modelo que,
mesmo descartado, representou um contexto cientfico e social pertinente para anlise e
compreenso. Destarte, o conhecimento cientfico, como a linguagem, intrinsecamente a
propriedade comum de um grupo ou ento no nada. Para entend-lo precisamos conhecer
as caractersticas essenciais dos grupos que o criam e o utilizam184.
Queremos com isso trazer luz dos estudos da eugenia uma viso do seu conceito
como posio cientfica de um perodo em que ela exerce e se reinventa de vrias formas, no
contexto social em que foi empregada, servindo de base para discursos raciais e
relacionando-se com os contextos poltico-sociais de perodos e naes. Para ns, o conceito
de eugenia no possui neutralidade poltica e, posterior a eventos que deflagrados na
humanidade, como as esterilizaes em massa nos Estados Unidos ou a utilizao na
Alemanha Nazista, percebe-se uma tentativa de esquecimento histrico ao classificar a
eugenia como pseudocientfica, mesmo na sua gnese no sculo XIX. Dessa maneira,
concordamos com Stepan que Galton encarnava posio bastante convencional em uma
tradio cientfica reconhecida e era membro de pleno direito, por assim dizer, do
establishment cientfico185. Acreditamos no haver neutralidade na fuso entre poltica e
biologia, portanto devemos ficar atentos s redues muito comuns no trato da historiografia
da eugenia que a situam como pseudocincia ou como movimentos homogneos onde
foram empregadas. Hobsbawm alertou que Contudo, a poltica, a ideologia e a cincia so
aspectos inseparveis em reas como a biologia, pois suas vinculaes so por demais
bvias186. Alm disso, como aponta Lowy:
O fato de reconhecer que a cincia, ou melhor, as prticas dos cientistas esto
ancoradas na sociedade e na cultura torna problemtica o uso do conceito de cincia
tratada como descritora do mundo de um ponto de vista situado 'em lugar nenhum'
produtora de um saber universal, neutro e objetivo. No se pode falar de 'saber
universal' sem um exame crtico do que este termo contempla, do que ele exclui, o
que ele oculta, e sem se determinar a quem ele beneficia.187
183
Ibid., p. 209.
Ibid., p. 257.
185
STEPAN, Nancy L. A hora da eugenia: raa gnero e nao na Amrica Latina. op.cit., p. 33.
186
HOBSBAWM, Eric J. A era dos Imprios 1875-1914. op.cit., p. 355. Para complementar Suarez e Guazo
dizem que: "La revisin histrica de las diferentes clasificaciones de las razas humanas, refleje la postura
ideolgica de sus proponentes y las ideologas dominantes determinadas por factores sociopolticos, en diversas
regiones y pocas. Es importante destacar que el papel que histricamente han jugado las comunidades
cientficas nos debe llevar a eliminar el mito de la neutralidad de la ciencia; los cientficos son personas con
intereses especficos y su actividad ha tenido un valor central como reforzador y legitimador de las ideologas
dominantes" SUREZ, Laura; GUAZO, Lpez. Eugenesia y racismo en Mxico. Coyoacn, Mxico:
Universidad Nacional Autnoma de Mxico, 2005, p. 60.
187
LWY, Ilana. Vrus, mosquitos e modernidade: a febre amarela no Brasil entre cincia e poltica. Rio de
Janeiro: Editora Fiocruz, 2006, p. 400.
184
65
Loren R. Graham ainda nos anos de 1970 perceberia como a relao entre cincia e
cultura moderna no deixaria a cincia livre de valores. Mais explcito ainda quando os
grupos de cientistas esto atrelados a outros grupos que atuam diretamente em contextos
polticos e sociais. Graham explica, If both the impact of technology on values and the
influence of scientists as a political and social group are excluded from consideration, a
persuasive case can be made that science is, indeed, neutral. There is no logical bridge
between is and ought188.
Hobsbawm deixa claro que as bases que os cientistas usam, seja por mtodos, teorias,
ideias, modelos e outros, so de homens e mulheres cujas vidas, mesmo no presente, no se
restringem ao laboratrio ou ao estudo189. Isso significa que para uma anlise que englobe
um perodo cientfico ou quando determinada questo da histria da cincia est envolvida,
necessrio procurar estabelecer as vivncias do tempo em que so colocadas.
A eugenia entrar como elemento desta projeo, pois para este autor ela ser
representada como um movimento poltico, em sua esmagadora maioria composto de
membros da classe mdia e burguesia [...]190, ou seja, muitos dos adeptos que faziam parte
do jogo poltico e racial se consideravam pertencentes s estirpes nrdicas ou dominantes.
O estudo cientfico da hereditariedade poderia englobar agentes envolvidos no prprio
discurso racial, para fundamentar e legitimar sua posio como superiores dentro da
sociedade ou fora dela, na condio imperialista. As cincias podem autenticar discursos
sociais que esto se movimentado por interesses individuais, bem como ela pode ser
fomentada financeiramente e direcionada a estudos de interesses especficos. A eugenia dos
Estados Unidos, por exemplo, teve grande incentivo financeiro da Fundao Rockfeller,
Carnegie Institution - do homem do ao Andrew Carnigie191 - e da Sra. Harriman, viva do
milionrio E. H. Harriman, um famoso magnata das ferrovias.192 Pessoas e instituies
despejaram dinheiro para financiar pesquisas ou investigaes cientficas do seu tempo.
188
GRAHAM, Loren R. Science and Values: The Eugenics Movement in Germany and Russia in the 1920s. The
American Historical Review. Oxford, v. 82, n. 5, 1977, p. 1133.
189
HOBSBAWM, Eric J. A era dos Imprios 1875-1914. op.cit., p. 349. O autor cita como exemplo que o
mpeto do desenvolvimento da bacteriologia e da imunologia foi uma funo do imperialismo, pois os imprios
ofereciam um forte incentivo ao controle das doenas tropicais, como a malria e a febre amarela, que
prejudicavam as atividades dos homens brancos nas regies coloniais (Ibid.).
190
Ibid., p. 352.
191
Cf.: BLACK, Edwin. Guerra contra os fracos: a eugenia e a campanha dos Estados Unidos para criar uma
raa dominante. Op.cit., p. 83
192
Ibid., p. 104.
66
193
67
Hobsbawm inclui que o imperialismo e o surgimento dos movimentos de massa trabalhista podem ajudar a
elucidar questes de biologia, mas dificilmente tero a mesma utilidade em lgica simblica ou teoria quntica.
Os acontecimentos do mundo exterior aos seus estudos no eram, entre 1875 e 1914, catastrficos a ponto de
intervir diretamente em seus trabalhos como seria o caso aps 1914 e como pode ter sido no fim do sculo
XVIII, incio do XIX (HOBSBAWM, Eric J. A era dos Imprios 1875-1914. op.cit., p. 356). Ou seja, para o
autor, apesar dos atenuantes do mundo externo trazerem referncias para o contexto dos cientistas, eles no
devem ser colocados como foco principal das mudanas de paradigmas.
198
Cf.: GALTON, Francis. Inquiries into human faculty and its development. op.cit., p. 45.
199
Ibid., p. 317.
68
seu respeito. Para exemplificar, o debate200 entre Galton e o botnico suo Alphonse de
Candolle (1806-1893), do qual o ltimo buscou contestar a teoria de Galton atravs da sua
obra Historie sciences et des savants depuis deux sicles (1873). Este debate cientfico que
se desenvolveu na segunda metade do sculo XIX era a definio do prprio posicionamento
de Galton sobre sua teoria da herana hereditria. Deste modo, Candolle indaga a
importncia da educao e do ambiente social como fatores fundamentais para o
desenvolvimento de qualquer pessoa e que esse fato no iria ao encontro a questes do
talento hereditrio, estudada por Galton. Esta troca de farpas cientficas podem ser
vistas nas correspondncias entre Galton e Candolle nos anos de 1873.201
Em suas memrias, Galton atesta a importncia das suas teses sobre hereditariedade,
sobretudo, o livro Hereditary Genius, que independente das crticas, deixou uma marca no
tempo.202 O cientista parecia ter conscincia que suas teorias no eram uma unanimidade no
meio acadmico, mas estava convencido de que ela tinha um embasamento na constituio
da hereditariedade humana. Galton percebia a eugenia como uma cincia que deveria ser
levada em conta para a melhoria da raa humana. Essays in eugenics publicado em 1909
dois anos antes da sua morte - evidencia nossa afirmativa:
Eugenics is the science which deals with all influences that improve the inborn
qualities of a race; also with those that develop them to the utmost advantage. The
improvement of the inborn qualities, or stock, of some one human population, will
alone be discussed here.203
200
Sobre este debate e seu desdobramento, Galton foi pontual para a contribuio sobre o tema ao trat-las em
suas memrias, a saber, I had much pleasant correspondence at a later date with Alphonse de Candolle, son of
the still greater botanist of that name. He had written a very interesting book, Histoire des Sciences et des
Savants depuis deux Siecles, in which he analysed the conditions that caused nations, and especially the Swiss, to
be more prolific in works of science at one time than another, and I thought that a somewhat similar
investigation might be made with advantage into the history of English men of science (GALTON, Francis.
Memories of my life. op.cit., p. 291).
201
PERARSON, Karl. The life, letters and labours of Francis Galton. op.cit., p. 135-145.
202
Cf.: GALTON, Francis. Memories of my life. op.cit., p. 290.
203
GALTON, Francis. Essays in eugenics. London: The Eugenics Education Society, 1909, p. 35. O captulo
Eugenics: its definition, scope and aims que se encontra em Essays in Eugenics foi publicado pela primeira vez
em 1904 por Galton no The american Journal of sociology, Volume X; July, 1904 number 1 e na Nature em 26
de maio de 1904, n 1804, vol. 70. Essas informaes podem ser verificadas no site dedicado a Francis Galton:
http://www.galton.org/ (acessado em 1 de julho de 2013).
204
But while most barbarous races disappear, some, like the negro, do not (Ibid., p.39).
69
preocupava com o melhoramento racial. Essays in Eugenics aparenta ser uma espcie de
manual da eugenia, com fcil entendimento e no muito extenso. Ali, ele ofereceu as
rdeas da teoria e sua promoo em diversos meios sociais.
Quando se ouve falar da eugenia, muitas vezes tm-se atribudo um conceito errado e
sem verificar as fases que a ela correspondem. Se conferirmos a Galton o que chamado de
eugenia negativa cometeremos um erro de interpretao da sua cincia eugnica. Ele
prope um controle racial para a melhoria da espcie humana, e isto no deve ser
interpretado como estratgia de hecatombe humana por meio da eugenia. O cientista
acreditava em um controle consciente para a gerncia da espcie mais apta, mas no induz
aos que considera degenerados uma soluo final. Para ele, o homem poderia exercer
com muito mais sabedoria e rapidez aquilo que a natureza levaria um longo tempo para
selecionar.
As tentativas de controles matrimoniais nada mais eram do que ajustar os elos
positivos dos talentos, em prol de uma gerao porvindoura mais apta e que produzir nos
campos sociais sejam eles quais forem - com mais melhorias que suas espcies
antecessoras. Selecionar o mais hbil diferente de suprimir os degenerados. No se deve
colocar um aspecto draconiano nas formulaes eugnicas de Galton, sem entender o que
realmente o cientista projetava dentro da teia evolutiva e da cincia da sua poca. Esta
interpretao dentro da literatura da historiografia da eugenia conhecida como eugenia
positiva205. Positiva no por agregar um carter destrutivo aos indivduos considerados
degenerados, mas sim por fazer parte de uma gama de estudos que buscava enxergar os
sujeitos atravs de um vis biolgico e aplicado no social orientado pela eugenia.
A chamada eugenia negativa vai ao desencontro da prerrogativa anterior.206 Alguns
adeptos da eugenia acreditavam que uma soluo rpida para manter as melhores raas
seria levar a questo por este vis. Para estes, a esterilizao, eutansia, aborto, infanticdio e
genocdio poderiam acelerar o processo em torno da seleo das melhores espcies. O
termo eugenia negativa aparece no prprio Essays in eugenics, quando Galton refere-se a
denominao do Dr. Caleb Williams Saleeby (1878-1940) alertando para o cuidado em levar
205
Cf.: SOUZA, Vanderlei Sebastio de. A Poltica Biolgica como Projeto: a Eugenia Negativa e a
construo da nacionalidade na trajetria de Renato Kehl (1917-1932). op.cit.; STEPAN, Nancy L. A hora da
eugenia: raa gnero e nao na Amrica Latina. op.cit., p. 37.
206
MacKenzie define o assentamento dessas definies da seguinte maneira: On this basis a programme of
social action to improve the quality of the population was put forward. Central to this was the alteration of the
relative birth-rate (or survival rate) of the 'fit' and 'unfit'. Those with good hereditary qualities should marry with
care and have large numbers of children (this came to be called positive eugenics), while those with hereditary
disabilities should be discouraged from parenthood (negative eugenics). MACKENZIE, Donald. Eugenics in
Britain. op.cit. p. 499.
70
71
Por tudo que estamos pontuando sobre a compreenso dos paradigmas cientficos de
uma determinada poca, eles atendem ao conhecimento que se tem no momento em que so
gerados e respondem a perguntas postuladas por determinados grupos. Portanto, seria uma
m compreenso da histria da cincia desqualificar uma teoria pr-estabelecida no sculo
XIX, tendo em vista os novos paradigmas que surgiram elencando uma nova teoria ou
candidata a paradigma. Burrhus Frederic Skinner, ao dissertar da cincia e do
comportamento humano, mostra que desde muito tempo existiu a tentativa de associar
esteretipos s tendncias do comportamento humano, o que, para o autor errneo
tendendo a levar a generalizaes. Inclusive, citando nos tipos raciais, a eugenia.212 Na
busca de ferramentas cientficas para decifrar estes comportamentos e associ-los a tipos
genticos com base em raas ou estrutura corporais respondiam em muito a uma cincia
que se vislumbrava na antropologia fsica e na estatstica suas maiores possibilidades de
aceitao dentro do grupo cientfico que compartilhavam seus dados. Sendo assim, Arendt
percebe a eugenia no seu aspecto de causa e efeito social, atribuindo-a apenas ao aspecto do
seu uso poltico de coero dos tipos humanos, mas parece no percebe que a prpria
eugenia, na concepo de Galton, foi postulada para compor o melhoramento hereditrio do
homem, tendo como objetivo o aprimoramento humano, que detinha uma vertente
positiva.
Arendt ainda acredita ser provvel que o racismo tivesse desaparecido a tempo,
juntamente com outras opinies irresponsveis do sculo XIX, se a corrida para a frica e a
nova era do imperialismo no houvesse exposto a populao da Europa ocidental a novas e
chocantes experincias"213. Novamente h um reducionismo na questo eugnica e na
cincia racial do XIX. A leitura feita aps as fatdicas consequncias imperialistas e
genocidas com leis raciais no sobrepe o fato da inexistncia das mesmas experincias em
perodo anterior, levando em conta o que se tinha de conhecimento da cincia. Galton, por
exemplo, vivenciou o incio da eugenia negativa, como expressa em Essays in Eugenics e,
prontamente tratou de resgatar o pensamento fundamental a questo perante os preceitos
iniciais da eugenia. No h opinies irresponsveis do sculo XIX, e isso se torna mais
agravante sob os nossos olhos, quando enxergamos as consequncias do trmino da Segunda
Guerra Mundial e o repdio da eugenia pelo trauma da ideologia aplicada na guerra.
darwinismo social ou das aplicaes de Spencer, ou mesmo de Galton. Sobre isso, mais uma vez, torna-se
importante este primeiro captulo para compreender os contextos do conceito de eugenia, que aplicado de forma
errnea pode ser apreendida ao leitor em um balaio nico de aplicabilidade entre sculo XIX e o XX.
212
SKINNER, Barrhus Frederic. Cincia e comportamento humano. 11. ed. Traduo de Joo Carlos Todorov e
Rodolfo Azzi. So Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 25.
213
Ibid., p. 266. [Grifo nosso].
72
214
73
importante da eugenia estadunidense pode ser vista na obra de um dos maiores eugenista da
poca, o Dr. Saleeby em The Progress of eugenics:
But the United States has really done more for the progress of eugenics than any
other country in the world. Eugenists everywhere are are indebted to the initiative of
the American Genetic Association in this respect. Its Eugenics Record Office,
established in 1910, under the leadership of Dr. Davenport, has applied the
principles of a new department of knowledge to the study of human heredity, and
has added more to our exact knowledge of that fundamental subject, in the last four
years, than all preceding time could record.217
Alm dos pases europeus citados, vale ressaltar outros dois que renderam estudos
profcuos de Stepan e outros pesquisadores, a saber, Argentina e Mxico, e seus respectivos
contextos na Amrica Latina. Na Argentina, com uma populao predominantemente
branca, ofereceu uma resistncia contra a imigrao, que antes bem vinda, como mo de
obra barata, acabou sendo posteriormente interpretada por alguns como um prejuzo para a
identidade nacional. Esta preocupao dos argentinos, que a autora chama de mosaico
tnico, concerne tentativa de uniformidade do povo dando o carter dessa busca de
identidade nacional. Assim, admitir uma imigrao de povos que consideravam
degenerados iria de encontro essa procura de nacionalidade idealizada. A partir de 1910,
a eugenia ganhou espao dentro da Argentina, adaptada s necessidades tnicas e raciais
daquele espao social. A Associacion de Biotipologa, Eunesia y Medicina Social foi um
exemplo da recepo dessas ideias em prol de defender o que chamam de profundo
polimorfismo de nosso povo218.219
Andrs Reggiani oferece mais uma viso interessante para compreender a eugenia na
Argentina. Para ele, a queda da taxa de natalidade, um nmero crescente de pessoas idosas e
o declnio da demografia da populao branca, trouxeram a necessidade de medidas mais
severas para o interesse da populao nacional como, por exemplo, a coibio
imigrao.220 Muito mais que esta sntese, estamos tentando mostrar a pertinncia do estudo
da eugenia pelas singularidades e, sobretudo, seu teor cientfico nos contextos. Como
elaborou Reggiani no caso da Argentina, From a more general perspective, the history of
217
74
eugenics in Argentina further sheds light on the role of science in state-formation processes
and the ways in which medical professionals shaped the relationship between knowledge,
politics, and society221. Eduardo Zimmerman, por sua vez, chegou a demonstrar que a
influncia da eugenia na Argentina era inspirao desde o incio do sculo XX, com o
intelectual Joaqun V. Gonzlez (1863 1923) que participou do Congresso de Eugenia no
ano de 1912, em Londres, e expressaria sua satisfao na frase that new science
incorporated to the science of government... eugenic science222.
Stepan percebeu singularidades tambm na eugenia mexicana. Neste caso, h uma
investigao na acepo das teorias eugnicas em um pas que, diferentemente da Argentina,
possua uma quantidade de mestios em grande escala. A autora nos diz que intelectuais
como Justo Sierra pensaram o problema racial de forma inversa, ou seja, rejeitaram
algumas crticas do cientificismo racial europeu acerca do mestio, entre elas, as crticas de
Hebert Spencer e Gustave Le Bon. De fato, a Revoluo Mexicana foi um atenuante para a
valorizao do seu povo. O perodo estatizante de lvaro Obregn permitiu novas
maneiras de pensar a identidade nacional mexicana, inclusive, o mestio foi considerado
pelo apologista Jos Vasconcelos como um elemento primordial da vida do pas.223 O
conceito de eugenia para Vasconcelos era empregado em relao a uma eugenia csmica,
que rejeitava o modelo de eugenia cientfica e acreditava em uma eugenia espiritual, da
qual dentro das prprias raas existentes poderiam encontrar os melhores elos para a
continuao das geraes, a melhor forma do talento hereditrio224. Com exposto, a
eugenia mexicana adaptou-se as suas necessidades em termos de povo.225
Para mostrar a pluralidade de eventos que giram em torno da eugenia, Alexandra
Minna Stern discorreu como em Vera Cruz, no Mxico, a poltica de sade pblica contou
com o forte teor do movimento eugenista e, entre outras, a vigilncia contra prostitutas, que
221
Ibid., p. 318.
ZIMMERMAN, Eduardo A. Racial Ideas and Social Reform: Argentina, 1890-1916. Hispanic American
Historical Review. Duke University, v. 72, n 1, 2010, p. 43-44.
223
STEPAN, Nancy L. A hora da eugenia: raa gnero e nao na Amrica Latina. op.cit., p. 158-159.
224
Ibid., p. 160-161.
225
Certamente, o contexto que envolve a eugenia mexicana impossvel de ser delimitado em poucas linhas, por
toda problemtica que insere a questo raa-povo de uma sociedade heterognea que buscava a homogeneidade e
seu ideal comum como mexicanos. Para somar, o momento de agitaes polticas e culturais contribuam para
a gama interpretativa do contexto eugnico como um todo. A eugenia mexicana via a possibilidade de
transformar os que acreditavam inferiores (como os ndios) em seres superiores (mestios), ou seja, dentro
da hiptese eugnica deveria preservar os melhores para dar continuidade e melhorias s raas e, por assim
dizer, melhorar o indgena. No que cerne imigrao, Stepan aponta que o Mxico tomou medidas
considerveis, chegando a afirmar que imigrantes orientais e negros seriam prejudiciais ao iderio tnico (Ibid.,
p. 146).
222
75
Aqui, mais uma vez, a compreenso de Mark Adams nos sugere o curso dos estudos
da eugenia, pois para o autor, In the decades between 1890 and 1930, eugenics movements
developed in more than thirty countries, each adapting the international Galtonian gospel to
suit local scientific, cultural, institutional, and political conditions230.
226
STERN, Alexandra Minna. The Hour of Eugenics in Veracruz, Mexico: Radical Politics, Public Health,
and Latin America's Only Sterilization Law. Hispanic American Historical Review. Duke University, v. 91, n
3, 2011, p. 439.
227
Ibid., p. 443.
228
SUREZ, Laura; GUAZO, Lpez. Eugenesia y racismo en Mxico. Coyoacn, Mxico: Universidad Nacional
Autnoma de Mxico, 2005, p. 17.
229
STERN, Alexandra Minna. The Hour of Eugenics in Veracruz, Mexico: Radical Politics, Public Health,
and Latin America's Only Sterilization Law. op.cit., p. 434.
230
ADAMS, Mark B. Eugenics in the History of Science. op.cit., p. 5.
76
Outro argumento que define a pluralidade das interpretaes eugnicas que ela no
est associada apenas a conjuntura poltica da extrema direita, ou no caso mais conhecido,
da Alemanha Nazista. Graham constata isso ao dizer que observers of its early history are
frequently surprised to learn that Soviet Russia in the I920s possessed a strong eugenics
movement231. O socialismo tambm flertou, sua maneira, com a eugenia, haja vista os
estudos de Alberto Spektorowski. Nomes como A. Filipchenko (1882-1930) e Nikolai K.
Koltsov (1892-1940) faziam parte da Sociedade Russa de Eugenia. Por sua vez, o autor diz
que os Bolcheviques tiveram participaes no pensar eugnico, embora no fossem os nicos
a pens-lo232. Como exemplo da apreciao do pensamento na Rssia, Spektorowski faz
referncia ao jornal Science and Marxism, do qual:
Soviet Marxists published articles on Darwinism, genetics, and eugenics. They
admired the experimentalist, materialist, scientific, and non-religious approaches to
the human condition. What they did not like were those aspects that appeared
idealistic, which suggested therapeutic impotence, or provided no basis for action.233
O contexto particular da eugenia russa nos anos de 1920-1930 pode ser dividido em
duas fases. Na primeira, entre 1920-1925, alinharam-se as ideias eugnicas de outros pases
como a Alemanha. Na segunda, posterior a 1925, se esforaram para criar uma eugenia mais
voltada aos interesses socialistas. De toda forma, ela possuiu seu reconhecimento, sendo
legitimada em 1921, pela Unio Internacional de Eugenia, com sede em Londres.234 Esta
percepo Russa predominante para situarmos como a variao da apreenso da eugenia
pelos pases correspondeu as suas especificidades e necessidades prprias. No toa, o
conflito no campo eugnico cientfico entre Lamarckistas e Mendelianos foram to
proeminentes na discusso da eugenia.
Finalmente, devemos adentrar no emprego mais conhecido da eugenia e que mais
trouxe traumas na sua compreenso: a eugenia da Alemanha Nazista. Contudo, esta eugenia
antecede Hitler. Ela pode ser percebida ainda no final do sculo XIX com os debates da
relao do darwinismo social abrangido de maneiras pessimistas ou otimistas com Otto
Ammon (1842-1916) e Wilhelm Schallmayer (1857-1919).235
231
GRAHAM, Loren R. Science and Values: The Eugenics Movement in Germany and Russia in the 1920s.
op.cit., p. 1144.
232
SPEKTOROWSKI, Alberto. The Eugenic Temptation in Socialism: Sweden, Germany, and the Soviet Union.
Comparative Studies in Society and History. Cambridge University Press, v. 46, n 1, 2004. p. 102.
233
Ibid.
234
GRAHAM, Loren R. Science and Values: The Eugenics Movement in Germany and Russia in the 1920s.
op.cit., p. 1148.
235
Para uma discusso mais detalhada sobre o tema ver: GRAHAM, Loren R. Science and Values: The Eugenics
Movement in Germany and Russia in the 1920s. op.cit., p. 1135-1136.
77
Os autores Henry P. David, Jochen Fleischhacker e Charlotte Hohn dizem que The
German version of eugenics had its own ancestor, Ernst Haeckel (1834-1919), a highly
regarded medical zoologist, biologist, and early Darwinian. He was also a strong racist,
embraced Galton's concepts, and believed in a mystical Volk236. Posteriormente, seguindo
as ideias de Galton, Alfred Pltz, um mdico e darwinista social, fundou a German Society
for Race Hygiene em 1904.237 Assim, na prpria Alemanha as ideias de Galton fluram em
diferentes contextos cronolgicos e polticos. curioso notar que ao final do perodo de
Weimar, como explica Graham, uma coalizo de centristas, catlicos e bilogos alm de
antroplogos sociais-democratas - fizeram uma ofensiva contra a German Society for Race
Hygiene com o objetivo de mudar seu nome para a German Society for Eugenics. Esta
medida foi adotada pela crena do alarmante crescimento de sentimentos racistas entre os
especialistas em hereditariedade humana e o aumento da aliana deste grupo com a direita
poltica238.
Na dcada de 1920, Hugo Iltis (1882-1952), o bigrafo de Mendel, teceu duras crticas
ao movimento de higiene e raa. Ao mostrar o pensamento de Iltis, Graham disse que
[...] subverted science for politics and noted with regret the presence among them of
a number of prominent academic geneticists. He criticized the typological
description of races, which - displacing the populational view - attributed mental and
ethical qualities to individual races239.
Isto no significa que Iltis no apoiava a eugenia, mas como ele relacionou sua
ligao como uma arma poltica. O excerto apresenta a prpria complexidade no
pensamento da questo racial alem inserindo-a em um debate muito anterior a Hitler.
Diante deste contexto anterior, observa-se na fala de Adolf Hitler as manutenes dos
pensamentos raciais do sculo XIX luz do sculo XX. No retomaremos a ascenso de
Hitler ou sua trajetria, focalizaremos principalmente como a eugenia circundou a esfera das
suas reflexes sobre a crena de superioridade racial. De outro modo, o que faremos aqui
situar como as falas de Hitler no captulo Povo e Raa, da obra Minha Luta240, se ligam
com o que foi grafado no somente no iderio do racismo cientfico, como da eugenia
negativa, e o quo esse discurso foi sedutor para Hitler.
236
DAVID, Henry P; FLEISCHHACKER, Jochen; HOHN, Charlotte. Abortion and Eugenics in Nazi Germany.
Population and Development Review. Population Council, v. 14, n. 1, 1988, p. 88.
237
Ibid.
238
GRAHAM, Loren R. Science and Values: The Eugenics Movement in Germany and Russia in the 1920s.
op.cit., p. 1139.
239
Ibid., p. 1142.
240
Cf.: HITLER, Adolf. Minha Luta. Traduo de Klaus Von Puschen. So Paulo: Centauro, 2001.
78
Seudizdo pela noo de sangue puro, Hitler eleva o ariano ao mais alto escalo da
evoluo da espcie humana, sendo esse o responsvel pela maioria dos grandes frutos
culturais, cientficos, artsticos, tcnicos da humanidade. Para ele, os resultados colhidos da
cultura humana quase que exclusivamente produto da criao do Ariano241. Um discurso
que pode ser notado quando tratamos do conde de Gobineau e a apreciao da cultura ariana
em relao a moral do indgena na Amrica. perceptvel tambm a inclinao dessa fala
no pensamento do talento hereditrio, que no caso do ariano, pde colaborar para o
progresso da cultura humana por ser puro e mais capaz pelas leis da natureza. No
podemos esquecer que no ano de 1933, o gabinete de Adolf Hitler promulgou, entre vrias
leis242, a Lei de Esterilizao Eugnica.243
Estas leis da natureza direcionam ainda mais o sentido biopoltico estabelecido por
Hitler com base no pensamento do sculo XIX que prosperou no XX. Considerando a
mistura de raas como um pecado, o autor ajuza um retrocesso fsico e intelectual para
a miscigenao, sendo essa prtica um golpe quase mortal contra o aperfeioamento da
natureza:
Dado o fato de que o elemento de menor valor sobrepuja sempre o melhor na
quantidade, mesmo que ambos possuam igual capacidade de conservar e reproduzir
a vida, o elemento pior muito mais depressa se multiplicaria, ao ponto de forar o
melhor a passar mais um plano secundrio. Impe-se, por conseguinte, uma correo
em favor do melhor.244
Ibid., p. 215.
Stepan salienta que a legislao mais abrangente sobre esterilizao foi da Alemanha Nazista. Nesta, inclui-se
a Lei para Preveno de Prole geneticamente Doente que inclua a esterilizao de Esquizofrenia, psicopatia
manaco-depressiva, debilidade mental hereditria, epilepsia hereditria, Coria de Huntington, cegueira e
surdez hereditrias, deformidades graves pelo corpo e alcoolismo. A autora versa com base nos estudos de
Robert Proctor que as esterilizaes involuntrias at 1945 chegaram a 1% de toda a populao da Alemanha
(STEPAN, Nancy L. A hora da eugenia: raa gnero e nao na Amrica Latina. op.cit., p. 38-39).
243
Cf.: KEVLES, Daniel J. In the name of eugenics: genetics and uses of human heredity. op.cit., p. 116.
244
HITLER, Adolf. Minha Luta. op.cit., p. 212
242
79
cavalo - que serve como mo de obra. Nesse sentido, Hitler salienta o posicionamento do
negro como raa inferior para servir a raa superior e evoca "o ditado: 'o negro fez a sua
obrigao, pode se retirar', possui, infelizmente, uma significao profunda"245. E assim, o
ariano presta um favor s raas inferiores, conduzindo-os para um trabalho til, embora
duro, o ariano poupava, no s as suas vidas, como lhes proporcionava talvez uma sorte
melhor do que dantes, quando gozavam a chamada liberdade246.
Hitler acreditava no poder do Estado para a conservao da boa raa. Em outras
palavras, o Estado tinha quase que um dever de conservar os melhores elementos do seu
povo. Para ele, O Estado um meio para um fim. Sua finalidade consiste na conservao e
no progresso de uma coletividade sob o ponto de vista fsico e espiritual. Essa conservao
abraa em primeiro lugar tudo o que diz respeito raa [...]247. Mas quais seriam as formas
desta interveno? Neste momento, Hitler flerta com o discurso da eugenia negativa:
Nesse estado de paz e ordem dos dias de hoje, neste mundo de bravos
nacionalistas burgueses, a proibio da procriao de portadores de sfilis,
tuberculose e outras molstias contagiosas, de mutilados e de cretinos, vista como
um crime, ao passo que a esterilidade de milhares dos indivduos mais fortes da
nossa raa no tida como um mal ou oferea moral dessa hipcrita sociedade,
mas aproveita ao seu comodismo. Se fosse de oura maneira, eles teriam que quebrar
a cabea para arranjar meios de promover a subsistncia e conservao dos
elementos sadios da nao, que deveriam prestar esse grande servio s geraes
futuras.248
A esterilizao viria a ser uma das marcas do seu regime na Alemanha Nazista.
Segundo ele e alguns eugenistas, determinadas molstias graves que comprometeriam a
raa poderiam ser sanadas com a coibio da procriao humana. Com uma poltica
eficiente, em que Estado e eugenia entrariam em ao, o objetivo de uma raa superior
poderia ser atingido com muito mais eficcia, alm da propaganda ou orientaes. Como
expuseram David, Fleischhacker e Hohn, Eugenics was to merge with racial hygiene,
becoming the central core of Nazi population policies249.
No h como esquivar-se que o contedo cientfico, como estabelecido aqui, serviu
como fomento para atitudes polticas e totalitrias, sempre adaptadas mediante ao interesse
de quem importava essas ideias e como as utilizavam como propaganda para sua difuso no
meio das massas. Dessa vez, com base em Arendt, as massas tm de ser conquistadas por
245
Ibid., p. 218.
Ibid., p. 219.
247
Ibid., p. 300.
248
Ibid., p. 306.
249
DAVID, Henry P; FLEISCHHACKER, Jochen; HOHN, Charlotte. Abortion and Eugenics in Nazi Germany.
op.cit., p. 89.
246
80
houve a tentativa de
compreender como essas relaes entre a cincia, poltica e sociedade dialogaram em vista
das questes eugnicas e do pensamento racial, assim como entender os agentes histricos
nos seus respectivos contextos, deixando a parte os juzos de valores.
Nessa difuso de conceitos biolgicos que se formavam, entre elas, a enunciada por
Galton, as raas eram apresentadas por suas variedades fsicas e genticas que
desempenhariam aes humanas voltadas para as caractersticas do seu bitipo. Isso ajuda a
explicar, por exemplo, os trabalhos que apareceram nesse momento da compreenso
biolgica-racial associando o negro criminalidade, o imigrante fora de trabalho ou s
doenas, como forma de degenerao fsica e mental, pois segundo alguns estudiosos, a
raa agregava valores morais.
250
81
253
Cf.: RODRIGUES, Raimundo Nina. As raas humanas e a responsabilidade penal no Brasil. 3. ed. So
Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938.
254
Ibid., p.161.
255
DRIA, Carlos Alberto. Cadncias e decadncias do Brasil: o futuro da nao sombra de Darwin, Haeckel
e Spencer. Tese de Doutorado. Campinas: UNICAMP, 2007, p. 17.
256
HOFBAUER, Andreas. Uma histria de branqueamento ou o negro em questo. op.cit., p. 100-101.
82
neste conceito. Para isto, basta-nos lembrar do peso da palavra Revoluo ps a queda do
Ancien Regime, como bem estabeleceu Koselleck.257
Em uma atmosfera cientfica em que a concepo de raas tornava-se cada vez mais
delineada, o impacto da obra de Darwin, A origem das Espcies, na segunda metade do XIX,
alavancou de vez as interpretaes humanas. Mesmo o naturalista se focando em plantas e
animais (principalmente domsticos, como pombos e ces), sua obra trouxe uma gama de
alternativas para aplicar os conceitos da seleo aos seres humanos que, com pr-teorizaes
sobre suas diferenas raciais ganhavam uma importante munio para o dilogo e a
permanncia das diferenas humanas. De maneira semelhante, medida que se procurava
entender as evolues aos tipos de plantas e animais, o homem era visto sob sua forma
biolgica, onde a evoluo seria classificada por inferioridade de classe social ou tipo
racial, por exemplo. Nesse sentido, [...] essa inferioridade era comprovada porque, de fato, a
raa superior era superior pelos critrios de sua prpria sociedade: tecnologicamente mais
avanada, militarmente mais poderosa, mais rica e mais bem-sucedida258.
O trecho a seguir, demonstra como o trabalho de Darwin contribuiu para a
compreenso da interpretao do homem nos possibilitando entender a influncia do autor
para Galton e a interpretao dos estudos sobre hereditariedade que mais tarde ecoariam nas
vozes de outros cientistas:
Uma vez que consideramos que, com o passar do tempo e sob diversas condies de
vida, os seres vivos modificaram bastante muitas partes de seu organismo, o que
considero incontestvel, e tambm consideramos que, em virtude da alta tendncia
de crescimento geomtrico da quantidade das espcies, ocorre uma luta pela
sobrevivncia especialmente em determinada idade, ou em determinada estao do
ano, ou em determinados anos, o que tambm para mim no tem contestao, a
consequncia disso, dada a infinita complexidade das inter-relaes dos seres vivos
entre si e de cada um deles com suas condies de existncia, que houve uma
diversidade infinita com relao a seus hbitos, estruturas e constituies internas.
Dada essa diversidade, que lhes proveitosa, seria mesmo extraordinrio se jamais
fossem produzidas variaes teis ao homem. Mas se variaes teis a um ser vivo
qualquer se apresentam algumas vezes, certamente os indivduos que disso so
objetos tm mais chances de vencer na luta pela sobrevivncia graas ao princpio
de hereditariedade. Por esse princpio os indivduos legam a seus descendentes a
mesma variao. A isso denominei de seleo natural, ou seja, princpio da
conservao ou da persistncia do mais capaz. Esse princpio conduz ao
aperfeioamento de cada ser vivo em relao s condies orgnicas e inorgnicas
de sua existncia.259
O leitor mais atento notar a importncia dessa longa citao para nos dar alicerce ao
cuidado na elaborao do pensar as raas humanas atreladas s espcies animais e o
257
Cf.: KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuio semntica dos tempos histricos. op.cit., p.
102-103.
258
HOBSBAWM, Eric J. A era dos Imprios 1875-1914. op.cit., p. 402.
259
DARWIN, Charles. A origem das espcies. op.cit., p. 158. [Grifo nosso].
83
deslocamento hereditrio como influncia para os seres vivos. Em nossos grifos, visualizamse palavras-chave alocadas em um mesmo espao textual, que se apresentam como influncias
para a espcie humana, ou seja, chances de vencer na luta pela sobrevivncia graas ao
princpio de hereditariedade, variao, legam aos seus descendentes a mesma variao
persistncia do mais capaz, corroboram as principais ideias galtonianas e de outros
idelogos das teorias raciais que defendiam o talento seria hereditrio humano. E ainda,
que havia uma luta pela sobrevivncia que se concatena com as diferenciaes entre as
espcies humanas.
Doravante, o chamado darwinismo ganhou fora no meio cientfico e emprestando
as palavras de Hofstaldter, ele forneceu uma nova relao com a natureza e, aplicado a vrias
disciplinas sociais antropologia, sociologia, histria, teoria poltica e econmica formou
uma gerao social-darwinista260. No coincidncia o aparecimento de uma gama de
estudos da antropologia humana com o objetivo de entender as raas, a frenologia e a
craniologia que foram cada vez mais ferramentas de anlises. As raas so associadas a
princpios morais, retratos so comparados para identificar padres entre raas, escolas e
centros de estudos em vrias partes do mundo ganham laboratrios de anlise humana,
alguns estudiosos comeam a pensar as leis pelo vis cientfico racial, a medicina tenta
enxergar a doena por meio das raas, a sade e higiene so adotadas como ideal em
diversas partes do globo e, no menos importante, a eugenia ganha fora como aparato de
arrumao hereditria em diversos ciclos cientficos. Raa e cor tornaram-se cada vez mais
uma preocupao social, poltica e mdico-legal. No Brasil no ser diferente.
260
HOFSTADTER, 1975 apud SCHWARCZ, Lilia. O espetculo das raas: cientistas, instituies e questo
racial no Brasil 1870-1930. op.cit, p. 72.
84
85
CAPTULO 2
QUESTO RACIAL E EUGENIA NO BRASIL.
1. RAA E CINCIA NO BRASIL NA VIRADA DO SCULO XIX.
No se deve lanar boas sementes em maus terrenos, ou em terrenos no preparados.
RENATO KEHL.261
preocupao ociosa e anti-cientfica pretender que o Brasil seja um dia habitado
por um tipo antropolgico. S os que, erradamente, confundem raa e povo desejam
para este pas aquela utpica unidade.
ROQUETTE-PINTO.262
KEHL, Renato. Educao Moral. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1937, p. 64.
ROQUETTE-PINTO, Edgard. Ensaios de anthropologia brasiliana. So Paulo: Companhia Editora
Nacional; Braslia: INL, 1933, p.171.
263
DRIA, Carlos Alberto. Cadncias e decadncias do Brasil: o futuro da nao sombra de Darwin, Haeckel
e Spencer. op.cit., p. 38-39.
264
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetculo das raas: cientistas, instituies e questo racial no Brasil 18701930. op.cit., p. 41.
262
86
Jair Souza Ramos e Marcos Chor Maio estabelecem os indcios desse pensamento europeu que alcanasse
dentro da escala cientfica brasileira em formao um arranjo para a discusso interna. A mistura racial ganhou
formulaes prprias dentro dos estudos do pas, inclusive na tentativa de desmistificar algumas teorias
deterministas importadas. Cf.: MAIO, Marcos Chor; RAMOS, Jair de Souza. Entre a riqueza natural, a pobreza
humana e os imperativos da civilizao, inventa-se a investigao do povo brasileiro. In: ______ (org.). Raa
como questo: histria cincia e identidades no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2010, p. 25-49.
266
O nome faz aluso A Revista do Brasil: Um diagnstico para a (N)ao, de Tania Regina De Luca. A obra
que tambm parte da bibliografia desse estudo busca uma anlise sobre a Revista do Brasil e a problemtica
dos projetos nacionais no incio do sculo XX. O subttulo se faz bem vindo nesse contexto para salientar a
crena de alguns intelectuais em uma sociedade doente pela raa, e que por meio das investidas biolgicas
poderiam diagnosticar e pela ao resolverem os problemas de uma nao que almejava o progresso. Neste
sentido, no podemos esquecer o papel da eugenia como a ao e as teorias como diagnstico para a nao
brasileira.
267
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetculo das raas: cientistas, instituies e questo racial no Brasil 18701930. op.cit., p. 87.
268
Ibid., p. 95.
87
269
Ibid., p. 101.
Cf.: DRIA, Carlos Alberto. Cadncias e decadncias do Brasil: o futuro da nao sombra de Darwin,
Haeckel e Spencer. op.cit., p. 42-44. O autor faz algumas importantes consideraes sobre a viso de Ihering e a
questo indgena.
271
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetculo das raas: cientistas, instituies e questo racial no Brasil 18701930. op.cit., p.110.
272
Para citar um exemplo, o historiador Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878), foi um secretrio do
instituto que contribuiu com estudos para entender o pas na metade do sculo XIX. A lista de intelectuais que
pensaram o perodo brasileiro na questo racial e que desempenharam um profcuo estudo sobre as cincias no
Brasil vasta. Schwarcz cita Alfredo dEscragnolle Taunay, Von Martius e sua tese premiada sobre as trs
raas, Pedro Lessa e Oliveira Lima, entre outros. Por delimitarmos nosso objetivo, no podemos tratar cada um
deles da maneira merecida para a constituio das cincias no Brasil e suas discusses sobre raa e
progresso, mas vale deixar a nota registrada para no cometermos negligncias a estes atores histricos.
273
Schwarcz cita duas faculdades que desempenharam estudos importantes na conduo da questo racial. A
Faculdade de Direito de Recife, onde h a discusso de Silvio Romero, que apesar de no condenar a
mestiagem letalmente, ainda sim era um seguidor dos determinismos raciais. A autora tambm distingue a
importncia da Antropologia Criminalista na associao entre a busca do crime no criminoso, que muito
contribuiu para os estigmas sociais (Cf.: Ibid., p. 185-245). A Faculdade de Medicina na Bahia e do Rio de
Janeiro tero um importante papel no contexto biolgico na identificao das mazelas das doenas que atingiam
o pas, bem como o problema racial. Vale ressaltar dois nomes importantes que tiveram destaque na recepo e
na ao de suas ideias entre o fim do sculo XIX e o incio do XX: Raimundo Nina Rodrigues e Oswaldo Cruz,
(Cf.: Ibid., p. 247-312).
270
88
CORRA, Mariza. As iluses da liberdade: a Escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil. Bragana
Paulista, BP: EDUSF, 1998, p. 100-101.
275
DRIA, Carlos Alberto. Cadncias e decadncias do Brasil: o futuro da nao sombra de Darwin, Haeckel
e Spencer. op.cit., p. 44.
276
MAIO, Marcos Chor; RAMOS, Jair de Souza. Entre a riqueza natural, a pobreza humana e os imperativos
da civilizao, inventa-se a investigao do povo brasileiro. op.cit., p. 47.
89
dilogo entre cincia e raa na virada de sculo elegemos como referncia os estudos de
Silvio Romero (1851-1914), Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906), Euclides da Cunha
(1866-1909) e, finalmente, Manuel Bomfim (1868-1932). Tomando o argumento de Maria
Corra em sua investigao:
No deixa de ter importncia para esta reflexo observar que tanto Silvio Romero,
que tinha formao jurdica, como Euclides da Cunha, engenheiro de profisso, e
ambos absorvidos hoje pela rea de estudos literrios, pretenderam, como outros,
colocar a questo das relaes raciais dentro de um quadro de explicao
rigorosamente cientfico.277
277
CORRA, Mariza. As iluses da liberdade: a Escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil. op.cit., p. 40.
LIMA, Nsia Trindade. Euclides da Cunha: o Brasil como serto. In: BOTELHO, Andr; SCHWARCZ, Lilia
Moritz (orgs.). Um enigma chamado Brasil: 29 intrpretes e um pas. So Paulo: Companhia das Letras, 2009, p.
106.
279
SANTOS, Ricardo Ventura. Os debates sobre mestiagem no Brasil no incio do sculo XX: Os sertes e
medicina-antropologia do Museu Nacional. In: LIMA, Nsia Trindade; S, Dominichi Miranda de. (orgs).
Antropologia Brasiliana: cincia e educao na obra de Edgard Roquette-Pinto. Belo Horizonte, Editora UFMG,
2008, p. 127.
278
90
280
DE LUCA, Tania Regina. A Revista do Brasil: um diagnstico para a (N)ao. So Paulo, Fundao Editora
da UNESP, 1999, p. 156.
281
Para Sidney Chalhoub no havia um nmero suficiente dessas vilas operrias, o que no amenizou a crise de
habitaes que se agravava no Rio de Janeiro. CHALHOUB, Sidney. Trabalho, Lar e Botequim: o cotidiano dos
trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle poque. So Paulo: Editora Brasiliense, 1986, p. 92.
282
RAGO, Luzia Margareth. Do cabar ao lar: a utopia da cidade disciplinar: Brasil 1890-1930. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1985, p. 171.
283
REIS, Jos Roberto Franco. Higiene mental e eugenia: o projeto de regenerao nacional da Liga
Brasileira de Higiene Mental (1920-1930). op.cit., p. 94.
91
284
RAGO, Luzia Margareth. Do cabar ao lar: a utopia da cidade disciplinar: Brasil 1890-1930. op.cit., p. 190.
[Grifo nosso].
285
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como misso: tenses sociais e criao cultural na Primeira Repblica. 2.
ed. So Paulo: Editora Brasiliense S.A., 1985, p.32. Para o autor: Modelando-se essa sociedade, como seria de
se esperar, por um critrio utilitrio de relacionamento social, no de se admirar a condenao veemente a que
ela submete tambm certos comportamentos tradicionais, que aparecem como desviados diante do povo
parmetro, como a serenata e a boemia. A reao contra a serenata centrada no instrumento que a simboliza: o
violo (Ibid.).
286
SOUZA, Vanderlei Sebastio de. Em busca do Brasil: Edgard Roquette-Pinto e o retrato antropolgico
brasileiro (1930-1935). op.cit., 2011, p. 292.
287
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, Lar e Botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle
poque. op.cit.
288
Ibid., p. 52.
289
Ibid., p. 52-53.
290
Ibid., p. 75.
92
CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortios e epidemias na Corte imperial. So Paulo: Companhia das
Letras, 1996, p. 24. No debate que prope Chalhoub, estabelece em alguns dos argumentos de polticos da poca
os vcios ou a indisciplina do negro estar atrelada a valores de natureza. Nesse sentido, ele alude s teorias
raciais que tornariam a questo da cor algo da raa (Cf.: Ibid., p.25).
292
ARAJO, C. E. M; FARIAS, J. B; GOMES, F. S. G; SOARES, C. E. L. Nas quitandas, Moradias e Zungus:
fazendo gnero. In:______ et al. (orgs.). Cidades Negras: Africanos, crioulos e espaos urbanos no Brasil
escravista do sculo XIX. So Paulo: Alameda, 2006, p. 84.
293
SEVCENKO, Nicolau. A revolta da Vacina: mentes insanas em corpos rebeldes. So Paulo: Cosac Naify,
2010, p. 55-58.
93
sanitrias foi o convite de Oswaldo Cruz para assumir a coordenao dos esforos de
desinfeco e profilaxia da capital.294 A influncia de Oswaldo Cruz pode ser vista na obra de
Sevcenko quando o autor constata o relato do mdico para um reprter do Jornal do
Comrcio, em que podemos verificar sua influncia e autonomia nas demandas sanitaristas.
Dizia o mdico: Preciso de recursos e da mais completa independncia de ao. O governo
me dar tudo de que necessito, deixando-me livre na escolha de meus auxiliares, sem
nenhuma interferncia poltica295. Posteriormente nomeado como diretor-geral de Sade
Pblica, as imposies sanitrias tornavam-se uma realidade.296
O que se viu posteriormente foi uma poltica extrema, em que era afastado tudo que
fosse considerado ruim para longe dos centros urbanos modernizados. Vadios, mendigos,
negros, ces, nada poderia atrapalhar a vontade em se adequar os bons padres aos olhos da
viso estrangeira. Como consequncia, o entulho humano se aglomerava nas periferias e
fora das vistas dos idealistas da modernidade. Este problema das habitaes populares
tambm pode ser notado pela constituio de uma classe burguesa emergente e da sua
acumulao de capital. Em decorrncia disso, em quatro anos, milhares de pessoas tiveram
de deixar suas casinhas em cortios ou estalagens e seus quartos em casas de cmodos que
foram desapropriadas e demolidas por ordem da prefeitura297. Aos afetados restava procurar
novos locais de anexao em morros, no subrbio ou aderir aos aluguis carssimos de um
mercado imobilirio inflacionado.
A concepo do Brasil como um imenso hospital298 fez com que houvesse um
esforo na tentativa de curar estas enfermidades. Foram empregadas aes em diversos
pontos geogrficos do pas chegando, inclusive, ao serto do Jeca Tatu de Monteiro Lobato
294
A psiquiatria tambm esteve na pauta dos esforos sanitaristas. Vera Portocarrero dissertou que alm de
Oswaldo Cruz, Juliano Moreira foi destinado para a Assistncia Federal a Psicopatas: Os projetos sanitrios
caracterizavam-se fundamentalmente pela preveno. Eles foram elaborados com vistas atuao no campo da
sade fsica e mental. nessa poca que Oswaldo Cruz nomeado diretor do Instituto de Manguinhos para
pesquisa das principais endemias do Brasil, e Juliano Moreira, diretor geral da Assistncia Federal a Psicopatas,
antes Assistncia a Alienados, que, a partir de 1903, inclui os desviantes perigosos (PORTOCARRERO, Vera.
Arquivos da loucura: Juliano Moreira e a descontinuidade histrica da psiquiatria. Rio de Janeiro: Editora
FIOCRUZ, 2002, p. 101).
295
SEVCENKO, Nicolau. A revolta da Vacina: mentes insanas em corpos rebeldes. op.cit., p. 71.
296
Nomeando de ditadura sanitria, Sevcenko diz que a lei de maro de 1904 permitia invadir, vistoria,
fiscalizar e demolir casas e construes. Alm disso, a lei de regulamentao da vacina obrigatria, em
novembro desse mesmo ano, viria a ampliar e fortalecer essas prerrogativas, colocando toda a cidade merc
dos funcionrios e policiais a servio da Sade Pblica (Ibid., p. 73).
297
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, Lar e Botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle
poque. op.cit., p. 91.
298
Miguel Pereira caracterizou o Brasil, em 1916, como um imenso hospital (S, Dominichi Miranda de. Uma
interpretao do Brasil como doena e rotina: a repercusso do relatrio mdico de Arthur Neiva e Belisrio
Penna (1917-1935). Histria, Cincias, Sade Manguinhos. Rio de Janeiro, v. 16, supl. 1, 2009, p. 189); (Cf.:
HOCHMAN, Gilberto. A era do saneamento: As bases da poltica de Sade Pblica no Brasil. So Paulo:
Editora Hucitec Anpocs, 1998, p. 63).
94
(1882-1948). Por sua vez, o sertanejo que estaria estagnado na escala evolutiva e inapto
para enfrentar os desafios da modernizao299, ganhou ateno especial de mdicos
respeitados como Oswaldo Cruz, que por volta de 1912 foi aos confins dos sertes com sua
cincia sanitria resolver as mazelas desse povo vegetativo. Carlos Chagas tambm
atribua desde o incio da dcada de 1910 as doenas ao atraso do pas.300 Mota, resgatando
uma feliz citao de Sandra Jantahy Pesavento traduz este momento peculiar do sanitarismo,
poltica e raa, que estavam por tantas vezes interligados:
A cidade tornou-se burguesa, bela, moderna, higinica, ordenada e acima de tudo,
branca. No entanto, os conhecidos lugares de enclave, termo usado para designar as
ruas e habitaes dos pobres, mais particularmente dos negros, ou foram demolidos
e sua populao expulsa para os arrabaldes da cidade ou permaneceram sendo
considerados locais inspitos. Curiosamente, lugares considerados insalubres
como os becos no eram atingidos pelos melhoramentos urbanos pelos quais se
empenhava a municipalidade, ratificando tambm as escolhas mdicas de regies e
pessoas que deveriam receber essa restaurao sanitria.301
Com isso, queremos mostrar que as teorias raciais e a cincia advinda do sculo XIX
estavam em pleno dilogo com as polticas pblicas do sculo XX. Alm da cidade bela que
seduziria mais imigrantes no incio do sculo, havia tambm a cobia pelos melhores
imigrantes, isto , muitos intelectuais e polticos preferiam determinadas nacionalidades
estrangeiras selecionando-os com base nas teorias raciais. Alguns exemplos dessa seleo
foram emblemticos na imigrao. Como escreve Giralda Seyfereth, a imigrao foi objeto
de debates acirrados nos meios polticos, administrativos e acadmicos, numa espcie de
interface com o problema racial302.
Este debate sobre o imigrante ideal reluz no sculo XIX, como expressa Paulo Cesar
Gonalves. Nos anos de 1855, Lacerda Werneck (membro de uma importante famlia de
cafeicultores no Vale do Paraba fluminense) salientava que o tipo ideal dos emigrantes
deveria ser o europeu303, por se tratar de uma raa forte e robusta304. Na tese de Gonalves,
299
DE LUCA, Tania Regina. A Revista do Brasil: um diagnstico para a (N)ao. op.cit., p. 203.
S, Dominichi Miranda de. Uma interpretao do Brasil como doena e rotina: a repercusso do relatrio
mdico de Arthur Neiva e Belisrio Penna (1917-1935). op.cit., p. 189.
301
PESAVENTO, 1998 apud MOTA, Andr. Quem bom j nasce feito: sanitarismo e eugenia no Brasil. Rio
de Janeiro: DP&A, 2003, p. 35.
302
SEYFERETH, Giralda. Roquette-Pinto e o debate sobre raa e imigrao no Brasil. As leis da eugenia na
antropologia de Edgard Roquette-Pinto. In: LIMA, Nsia Trindade; S, Dominichi Miranda de. (orgs.).
Antropologia Brasiliana: cincia e educao na obra de Edgard Roquette-Pinto. Belo Horizonte, Editora UFMG,
2008, p. 148.
303
Esta posio quanto ao imigrante ideal correspondendo ao europeu variava de acordo com o contexto de
abordagem. Veremos manifestaes nacionalistas xenfobas contra os alemes ao passo que a Primeira Guerra
Mundial se encaminha, da nossa posio quanto variabilidade da viso racial do imigrante, pois ela tambm
sugere conflitos em escala global voltado a nacionalidade como pressuposto de uma viso degradante dessa ou
daquela raa/nao. Ramos aponta que com a chegada da Primeira Guerra Mundial que os imigrantes passaram
a ser vistos, mais do que nunca, tanto por parte dos governos dos pases de imigrao quanto por parte dos pases
300
95
de emigrao como extenses dos estados de que se originavam logo como instrumento das lutas nacionais.
(RAMOS, Jair Souza. Como classificar os indesejveis? Tenses e convergncias entre raa, etnia e
nacionalidade na poltica de imigrao das dcadas de 1920 e 1930. In: LIMA, Nsia Trindade; S, Dominichi
Miranda de. (orgs.). Antropologia Brasiliana: cincia e educao na obra de Edgard Roquette-Pinto. Belo
Horizonte, Editora UFMG, 2008, p. 190).
304
GONALVES, Paulo Cesar. Mercadores de braos: riqueza e acumulao na organizao da emigrao
europeia para o novo mundo. Tese de Doutorado. So Paulo: USP, 2008, p. 159-163.
305
Ibid., p.164
306
KEHL, Renato. Lies de Eugenia. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1929, p. 186.
307
LEO NETO, Valdemar Carneiro. A crise da Imigrao Japonesa no Brasil, (1930-1934): Contornos
Diplomticos. Braslia: Fundao Alexandre de Gusmo, 1989, p. 24-25.
96
qual preciso dar-se contas desde que ele as reclame. Basta advertir no que se est
passando em So Francisco...
E complementa:
... no enxergo a vantagem de se introduzir na vitalidade do nosso organismo
nacional um elemento completamente disparatado, como seja o sangue monglico,
sem falar na fealdade desta raa o que tambm um elemento a se considerar
parece-me, Senhor Ministro, que seria de avisada poltica cortar desde j as asas
ideia que est dia a dia tomando maior vulto sobre a emigrao japonesas para o
Brasil.308
Igualmente, muito mais que o trabalho nas produes agrcolas, o imigrante tinha para
alguns intelectuais e polticos, dentro do contexto do ideal nacional, uma funo de
branquear e colaborar com a melhoria da raa. Da permite entender a complexa
fiscalizao e cobias dos administradores da nao em almejar imigrantes que se adequassem
racialmente com as propostas do pas, tanto no sculo XIX e at a metade do XX. Longe de
ser um consenso, as raas humanas estariam sujeitas as interpretaes dos intelectuais da
poca, seja do alemo considerado a raa pura e superior, ou das raas degeneradas, como
negras e japonesas. A tnica destas reflexes fez com que os debates das leis da imigrao
fossem acompanhados mais de perto pelo Estado. No por acaso, veremos nos anos de 1920 a
1930 as discusses sobre a temtica e a influncia da eugenia. Propostas de leis, ou mesmo
discusses em congressos de eugenia, colocaram o imigrante como pauta da ordem do dia
para repensar que tipo de material humano deveria ser importado.
Concordamos com Jair Souza Ramos, quando o antroplogo salienta que, onde est
escrito nacionalidade ou etnia o pesquisador pode, sem problemas, ler raa e se poupar o
trabalho de explicar as relaes de oposio, convergncia e predomnio entre os termos309.
Isto deve ser sublinhado, pois so as discusses raciais em voga que levaram a olharmos pela
janela da nacionalidade e etnia. Quando se discute sobre os japoneses, asiticos,
orientais, afro americanos, srio-libaneses, judeus, etc., antes de tudo estamos
observando atravs de uma tica racial, que faz jus busca do imigrante desejvel em
contrapartida ao imigrante indesejvel. Todos eles, ressaltados pela tica da raa. Quando
Guimares olha para o japons em 1906 e cita, por exemplo, a fealdade, ele ponderou a
partir do conceito racial, e no acreditou em benefcios da incluso desta raa no organismo
nacional.
308
Seguem as informaes no qual o documento o autor se refere: AHI, ofcio n 4, 2 Seo, Reservado, de
04/12/1906, recebido da Legao em Tquio. Cf.: rodap (Ibid., p. 25). [Grifos nosso].
309
RAMOS, Jair Souza. Como classificar os indesejveis? Tenses e convergncias entre raa, etnia e
nacionalidade na poltica de imigrao das dcadas de 1920 e 1930. op.cit., p. 180.
97
Ibid., p. 188.
SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raa e nacionalidade no pensamento brasileiro. Traduo de Raul
de S Barbosa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, p. 81.
311
98
Est claro que a abolio da escravido no significou igualdade social. Como vimos
no incio do sculo XX, com as propostas sanitaristas e higienistas, a comunidade negra
tornou-se alvo da limpeza e, inclusive, a forte crena da sua eliminao por meio das
geraes.313 Era comum, como na fala do mdico e filsofo Francisco Soares Franco, ainda no
sculo XIX, algumas sugestes de como os Estados poderiam atuar para um suposto projeto
de branqueamento. Para ele, muitos so os meios, de que o Legislador se pode servir para
acelerar os casamentos dos brancos, e dos msticos314. Esse tipo de referncias de um
controle matrimonial ser uma poltica comum nos processos de eugenia no Brasil. Vale
ressaltar como exemplo desde agora e voltaremos nisso mais adiante -, a frase de Kehl, na
obra Poltica Eugnica (1932): "S motivos acidentais ou aberraes mrbidas fazem um
branco se unir com uma negra ou vice-versa"315.
Com os debates acirrados tanto na questo biolgica aplicada na sociedade como das
polticas pblicas em relao nao, no tardou para que a intelligensia brasileira
apresentasse certa dualidade nos debates acerca da raa e da cor da pele. O mestio era
um componente importante nas anlises entre as divises raciais, sendo enxergado tanto em
um carter "positivo" quanto "negativo". Deste modo, basta-nos observar certa aceitao ao
mestio em Silvio Romero, em contraponto crena a uma degenerao da raa pelos
escritos de Raimundo Nina Rodrigues. Alm de Euclides da Cunha, estes dois intelectuais
representam nesse trabalho a voga e o vigor do pensamento cientfico na questo racial e
por consequncia, suas posies na sociedade brasileira e reconhecimento como intelectuais.
Silvio Romero, era antes de mais nada um grande agitador. Autodidata e pouco
preocupado com o que chamava pura especulao, utilizou com entusiasmo a ltima palavra
312
99
em cincia e filosofia para lidar de forma direta com os problemas nacionais316. por este
olhar que procuramos entender sua participao no pensamento cientfico do pas: a sua forma
de lidar com os chamados problemas nacionais. Provocativo, avesso ao afrancesamento
brasileiro, crtico ao positivismo de Comte317, Romero esteve longe de ser uma unanimidade
entre os intelectuais do perodo. Contudo, suas posies refletem os dilogos que se
mantinham naqueles momentos. Entre embates com o historiador Capistrano de Abreu (18531927), o mdico Manoel Bomfim e Nina Rodrigues, Romero acreditava ver na mestiagem a
sada para uma possvel homogeneidade nacional318.
Ao tratar de raa e cincia vai em direo a alguns discursos em pauta do perodo,
como a diferena entre culturas das raas humanas, o evolucionismo como cincia e o
positivismo alm de debater exaustivamente em vrias de suas obras sobre questes
convergentes ao poder monrquico e republicano e a poltica nacional. Apesar de ter uma
viso distinta no que concerne ao mestio, Romero pensa as raas nas estruturas da
superioridade e inferioridade. Para ele, no deve a haver vencidos e vencedores; o
mestio congraou as raas e a vitria deve assim ser de todas trs319. O autor ainda
complementa com um vis cientfico da adaptao: Pela lei da adaptao, elas tendem a
modificar-se nele, que, por sua vez, pela lei da concorrncia vital, tendeu e tende ainda a
integrar-se a parte, formando um tipo novo em que h de predominar a ao do branco320.
Considerando a importncia da escravido para as relaes intertnicas, Romero tenta
demonstrar que o mestio um produto do Brasil e que a uno entre brancos, negros e ndios
316
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetculo das raas: cientistas, instituies e questo racial no Brasil 18701930. op.cit., p. 201.
317
As crticas ao positivismo de Comte so frequentes nas obras de Romero. Para ns, uma importante referncia
de estudo nesse sentido foi Doutrina contra doutrina (1894). Entre tantos embates sobre o positivismo, podemos
salientar uma passagem que nos chamou ateno pela agressividade com relao s posies de Comte.
Comparado-a como uma espcie de fanatismo religioso, Romero diz: Primeiramente, ele um sistema fcil,
de assimilao pronta pela semi-cultura dos espritos preguiosos, e religiosamente exige apenas a f
(ROMERO, Silvio. Doutrina contra doutrina: o evolucionismo e o positivismo na Repblica do Brasil. Rio de
Janeiro: J. B. Nunes, 1894, p. 112 - 113). Por outro lado, percebemos como este positivismo estava atrelado a
cincia dos anos de 1870 e at as primeiras dcadas do sculo XX. Luiz Otvio Ferreira destaca a importncia
dessas ideias no Brasil e complementa que Na maioria das vezes, as objees recordam o aspecto religioso e
ortodoxo assumido pela militncia do Apostolado Positivista Brasileiro ou enveredam pelo caminho da
demonstrao do anacronismo nas ideias cientficas, em particular dos conceitos fsicos e matemticos e da
filosofia e histria das cincias de Augusto Comte, com as quais supostamente estariam comprometidos os
adeptos da verso cientfica do positivismo. Desse modo, em geral, o positivismo no importando o seu matiz
ou a forma como os positivistas se manifestaram socialmente, rejeitado como fenmeno cultural a ser
considerado quando se trata de entender a institucionalizao das cincias brasileiras no incio do sculo XX
(FERREIRA, Luiz Otvio. O ethos positivista e a institucionalizao das cincias no Brasil. In: LIMA, Nsia
Trindade; S, Dominichi Miranda de. (orgs.). Antropologia Brasiliana: cincia e educao na obra de Edgard
Roquette-Pinto. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008, p. 88).
318
Ibid.
319
ROMERO, Silvio. Histria da Literatura Brasileira. v.1. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1888, p. 106.
320
Ibid.
100
algo que est inserido no sangue nacional. Emprestando as palavras de Antnio Cndido,
Romero feria de morte a iluso de brancura e fazia alarde sobre a importncia e a
generalidade da mestiagem321. O autor se coloca como defensor do mestio em um tempo
em que o evolucionismo e as teorias da hereditariedade so um componente presente no
pensar dos cientistas da poca. Contudo, fez prognsticos da crena de um branqueamento da
nao. Romero acreditava que a relao darwinista contribua para o progresso nacional,
afinal, como um homem da cincia, ele emergiu o discurso hereditrio para sua anlise da
literatura brasileira. Nota-se como as ideias da transmisso biolgica hereditria estavam
sendo recepcionadas no Brasil e faziam parte do imaginrio intelectual na anlise brasileira
das raas:
A poderosa lei da concorrncia vital por meio da seleo natural, a saber, da
adaptao e da hereditariedade, aplicvel s literaturas, e crtica incumbe
comprov-la pela anlise dos fatos. A hereditariedade representa os elementos
estveis, estticos, as energias das raas, os dados fundamentais dos povos; o lado
nacional nas literaturas. A adaptao exprime os elementos mveis, dinmicos,
genricos, transmissveis de povo a povo; a face geral, universal das literaturas.
So duas foras que se cruzam, ambas indispensveis, ambas produtos naturais do
meio fsico e social.322
CANDIDO, 1978 apud DIMAS, Antonio. O turbulento e fecundo Silvio Romero. In: BOTELHO, Andr;
SCHWARCZ, Lilia Moritz (orgs.). Um enigma chamado Brasil: 29 intrpretes e um pas So Paulo: Companhia
das Letras, 2009, p. 83.
322
ROMERO, Silvio. Histria da Literatura Brasileira. op.cit., p. 15 - 16.
323
TURIN, Rodrigo. Narrar o passado, projetar o futuro: Silvio Romero e a experincia historiogrfica
oitocentista. Dissertao de Mestrado. Porto Alegre: UFRGS, 2005, p. 164.
101
queremos dizer, no existem doutrinas, teorias ou grandes fatos novos que entrassem
para o patrimnio geral da humanidade levados pelos brasileiros.324
No toa, tece crticas severas aos trabalhos que tentam interpretar a raa e o
homem, que ao seu modelo de interpretao no convergem com suas apreciaes do meio.
Entre crticas a Comte e outros, podemos destacar no livro Histria da literatura brasileira,
um captulo exclusivo dedicado crtica do determinismo climtico de Buckle. Isso no quer
dizer que Romero desconsiderava o clima na formao racial, pelo contrrio, ele acreditava
na importncia ambiental, mas indagava-se sob sua condio essencial como meio formador
de um povo. Segue um exemplo: Pela lei darwinica da transformao dos seres, entendida o
mais largamente, as raas despontaram diferentes em climas diferentes tambm. Os climas
depois disto s tem feito conservar e fortalecer as predisposies nativas325.
Com efeito, postulamos o envolvimento do autor na dinmica dos debates cientficos
da virada do sculo XIX para o XX, se colocando como um personagem na formao do
pensamento social-cientfico do pas e um componente da discusso racial do perodo. Ao
debruar sobre estes intrpretes, o que nos interessa localiz-los no cenrio intelectual
cientfico da virada do sculo XIX nos debates de raa e cor no Brasil. Principalmente no que
tange a multiplicidade de possibilidades de entendimento do que seriam raa e cincia nesse
perodo.
Assim como Romero, o mdico maranhense Raimundo Nina Rodrigues326 pensava as
questes raciais. Este acreditava que a mestiagem era um sinnimo de degenerao para as
raas. Entre vrias possveis interpretaes dos seus estudos, concordamos com Mariza
Corra ao defini-lo como homem de cincia de seu tempo327. Esta caracterizao converge
com nossas pretenses analticas ao identificar os sujeitos que faziam cincia no Brasil
estabelecida nos paradigmas do seu espao e tempo. Nina Rodrigues, como muitos homens da
sua contemporaneidade esto contextualizados no saber das prticas mdicas que, no caso
deste autor, estiveram presentes em contribuies de estudos para a rea. Portanto:
324
102
Julgar com padres oferecidos pela cincia do nosso tempo os erros ou acertos de
sua atuao cientfica, tanto como desqualific-la ou louv-la por ser politicamente
orientada em benefcio de uma determinada ordem social, caminho frequentemente
percorrido por seus analistas, nos levaria a correr o risco de fazer uma crtica
ideolgica de sua ideologia, ingressando no mesmo crculo traado por ele ou seus
seguidores.328
Este abandono da metafsica em favor das teorias cientficas pode ser constatado ainda
na dcada de 1870, no clebre dilogo da defesa de doutorado de Silvio Romero com seu
arguente Dr. Coelho Rodrigues.332 Portanto, munido dos avanos da biologia, Nina Rodrigues
328
Ibid., p.200.
HOFBAUER, Andreas. Uma histria de branqueamento ou o negro em questo. So Paulo: Editora UNESP,
2006, p. 199.
330
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Nina Rodrigues: um radical do pessimismo. In: Um enigma chamado Brasil: 29
intrpretes e um pas / BOTELHO, Andr; SCHWARCZ, Lilia Moritz (orgs.). So Paulo: Companhia das
Letras, 2009, p. 93.
331
RODRIGUES, Raimundo Nina. As raas humanas e a responsabilidade penal no Brasil. op.cit., p. 44.
332
Schwarcz nos apresenta o dilogo que traduz um exemplo das cincias no Brasil, bem como o evolucionismo
sobreponto metafsica: A solenidade, transformada prontamente em ato poltico, tem seu pice no dilogo
tenso que se estabelece entre os dois intelectuais que, naquele momento, representavam correntes opostas de
pensamento. O estopim do rspido debate se deu quando o arguente reclamou da oposio que fazia Silvio
Romero metafsica, que desta maneira respondeu:- Nisto no h metafsica, h lgica. A lgica no exclui a
metafsica, replicou o arguente. A metafsica, no existe mais, se no sabia, o saiba, treplicou o doutorando.
No sabia, retruca esse. Pois v estudar para saber que a metafsica est morta. Foi o senhor quem a matou?
329
103
procura explicar o problema das raas no Brasil com nfase em um tom pessimista nos
mestios. Pela vertente biolgica, o autor observava o cruzamento humano entre raas da
mesma forma como nos animais uma associao comum para a poca -, o que
consequentemente acaba por gerar produtos evidentemente anormais, imprprios para a
reproduo e representando na esterilidade de que so feridos, estreitas analogias com a
esterilidade terminal da degenerao fsica333.
O mestio de Nina Rodrigues o mais pessimista possvel, assim como no
hibridismo animal que no pode gerar vida, o cruzamento entre espcies humanas gera um
indivduo psicologicamente sem valor que no presta enfim para gnero algum de vida334.
Esta espcie representaria as piores caractersticas da juno das raas, dando existncia a
um indivduo degenerado por natureza. Pautado nessas observaes, Nina procurou
estabelecer um equilbrio perante a lei, tendo em vista que os negros, mestios e ndios no
possuam a mesma noo civilizatria que o branco civilizado335. Para ele, deveriam ser
levadas em conta essas formulaes na confeco da lei. importante realar que o mdico
da escola de Recife, era um seguidor da Escola da Antropologia Criminalista Italiana e, por
isso, seguia em alguns pontos os passos de Lombroso, Garofalo, Ferri e outros. Ele acreditava
que as raas eram um dos fatores que contribuam para a criminalidade. Esta questo
elucidativa no captulo IX da obra Os africanos no Brasil:
A sobrevivncia criminal , por outro lado, um caso especial de criminalidade, que
se poderia denominar tnica, resultante da coexistncia em uma mesma sociedade,
de povos ou raas em fases diferentes de evoluo moral e jurdica, de modo que
quilo que ainda no imoral ou antijurdico para uns, deve j ser para outros. Desde
1894, insisto no contingente que muitos atos antijurdicos dos representantes das
raas inferiores, negra e vermelha, prestam criminalidade brasileira, os quais,
contrrios ordem social estabelecida no pas pelos brancos, so, ainda,
perfeitamente legais, morais e jurdicos, considerando-se do ponto de vista de quem
os pratica.336
Perguntou-lhe o professor. Foi o progresso, a civilizao (SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetculo das
raas: cientistas, instituies e questo racial no Brasil 1870-1930. op.cit., p. 194).
333
RODRIGUES, Raimundo Nina. As raas humanas e a responsabilidade penal no Brasil. op.cit., p. 172.
334
Ibid., p. 173.
335
Em vista da diferenciao do branco do negro por Nina Rodrigues, Mariza Corra diz que ambos eram
ameaas sociais e os dois deveriam ser retirados da sociedade, mas por razes diferentes: os negros porque
estavam historicamente defasados em relao a ela, os brancos por no terem se adaptados s normas de conduta
que eles prprios produziram (CORRA, Mariza. As iluses da liberdade: a Escola Nina Rodrigues e a
antropologia no Brasil. op.cit., p. 142).
336
RODRIGUES, Raimundo Nina. Os africanos no Brasil. So Paulo: Madras, 2008, p. 246.
104
no terem um cdigo tico e moral condescendente com o cdigo do branco que seria mais
evoludo. Em relao aos negros, salienta: Os negros africanos so o que so: nem melhores
nem piores que os brancos; simplesmente eles pertencem a outra fase do desenvolvimento
intelectual e moral337.
Alm das noes raciais, o autor trabalha com O alienado no direito civil brasileiro,
onde em sua formao de mdico tenta compreender como as doenas afetam na estrutura do
indivduo, levando-o a cometer crimes e, at mesmo, sugerindo formas da lei cuidar desses
alienados. Este entendimento tambm se faz presente na Escola de Antropologia Criminalista
Italiana, com os estudos de Lombroso e os epilpticos. As teorias raciais tomam forma no
discurso de Nina e pautado por um aparato cientificista enxerga pelos seus prismas as formas
de adequao entre o Estado e cincia. Esta observao valiosa, pois o miscigenado, assim
como o alienado, entra como apreciao para compreender a sociedade da qual faziam
parte. Nina, reafirma sua relao com a cincia a partir de um iderio nacional:
No meu intento de agora, entraram, todavia, por igual o amor cincia que professo
e o desejo de ver a minha ptria dotada de um Cdigo Civil, que a contribuio de
todos, ainda as escassas de valor como esta, concorram para tornar digno da cincia
e da cultura geral da sua poca.338
337
RODRIGUES, Raimundo Nina. As raas humanas e a responsabilidade penal no Brasil. op.cit., p. 156.
RODRIGUES, Raimundo. O alienado no direito civil brasileiro. 3. ed. So Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1939, p. 13.
339
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetculo das raas: cientistas, instituies e questo racial no Brasil 18701930. op.cit., p.97.
340
Com Buckle, com Spencer, a fertilidade deve mesmo ser considerada uma das condies principais das
civilizaes primitivas e para o Brasil o ponto est exatamente em saber como a sua to decantada fertilidade
pode ficar de harmonia com a ausncia de civilizao dos aborgenes (RODRIGUES, Raimundo Nina. As raas
humanas e a responsabilidade penal no Brasil. op.cit., p. 181).
338
105
341
Ibid., p. 179.
Ibid., p. 182. [Grifos nosso].
343
BOTELHO, Andr. Manoel Bomfim: Um percurso da cidadania no Brasil. In: ______; SCHWARCZ, Lilia
Moritz (orgs). Um enigma chamado Brasil: 29 intrpretes e um pas. So Paulo: Companhia das Letras, 2009, p.
120.
344
BOMFIM, Manoel. O Brasil na Amrica: caracterizao da formao brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro:
Topbooks, 1997, p. 170.
345
Ibid., p. 174.
342
106
hereditariedade era uma crena de manter a superioridade dos bem dotados. Bomfim
compreende o tema como uma obsesso das famlias aristocrticas e principescas e salienta
que a unio de parentes um perigo para a sociedade346.
Pelo seu conhecimento cientfico, Bomfim discorda que haja problemas com o
cruzamento racial e tece crticas duras queles que buscam condenar esta forma de interao
sexual no Brasil, pois os que negam valor a tais cruzamentos, e at os condenam elevam a
voz no repetir tiradas de pseudo-sbios a defenderem e exaltarem as chamadas raas puras,
consagradas na significao de teoria, para uma aristocrtica superioridade347. O autor notou
a influncia da denegao da combinao racial proeminentemente por fatores de
preconceitos que buscariam nas teorias cientficas uma forma de legitimao.
Ao tratar de Bomfim, Lowy assinala sua importncia nas interpretaes dos problemas
sociais ao direcionar suas crticas ao parasitismo social que mascarava a real situao social
do pas. Como dispe a autora ao falar do "Mal de origem", a soluo de Bomfim estaria no
rompimento "com o determinismo biolgico ou climtico em voga entre alguns penados
latino-americanos, Bomfim explica que o parasitismo social, ao contrrio do parasitismo
biolgico, no uma situao imutvel: ele curvel pela educao"348.
Andr Botelho, ao estudar as obras do autor, diz que seria na sua defesa da educao,
tomando como premissa a ideia de que os sistemas educacionais moldariam as sociedades,
implicava a prpria recusa da assimilao do social pelo biolgico como categorias
homlogas [...]349. Isto , Bomfim acreditava que no h nenhum motivo biolgico para
duvidar do futuro do Brasil como incapacidade das suas raas350. Ao discorrer sobre o autor
no prefcio da obra O Brasil na Amrica, Maria Thtis Nunes salienta a viso da espoliao
no passado colonial como passiva de superao para a construo de um Brasil nacional351.
Portanto, diferente de outros autores, no h pessimismo com relao mistura racial
346
Ibid.
Ibid., p. 173-174. [Grifo do autor].
348
LWY, Ilana. Vrus, mosquitos e modernidade: a febre amarela no Brasil entre cincia e poltica. op.cit., p.
100.
349
BOTELHO, Andr. Manoel Bomfim: Um percurso da cidadania no Brasil. op.cit., p. 123.
350
BOMFIM, Manoel. O Brasil na Amrica: caracterizao da formao brasileira. op.cit., p. 183.
351
Ibid., p. 25. Para o autor: Manoel Bomfim amadureceu sua tese dos males de origem, lanada originalmente
em A Amrica Latina, segundo a qual os problemas econmicos, polticos e culturais contemporneos do Brasil,
e de outros pases da Amrica Latina, decorriam do prprio processo histrico de colonizao e da herana
cultural e institucional ibrica dos colonizadores. Herana que, no caso do Brasil, seria acentuada pelo sistema
escravista sob o qual nos formamos e a monarquia bragantina que institucionalizou as polticas no sculo XIX.
Nossos males de origem seriam, portanto, de natureza histrico-social, e no raciais, geogrficos ou climticos
(BOTELHO, Andr. Manoel Bomfim: Um percurso da cidadania no Brasil. op.cit, p. 125).
Com pensamento similar, Roquette-Pinto tambm descreveria a escravido como um dos males para o
desenvolvimento histrico do Brasil. Cf.: ROQUETTE-PINTO, Edgard. Ensaios de anthropologia brasiliana.
op.cit., p. 50-51.
347
107
O item anterior nos permitiu identificarmos alguns passos do discurso sobre raa no
Brasil e suas recepes por alguns intelectuais nos perodos em que participavam desta
discusso. Foi-nos possvel posicionar entre paradigmas cientficos que doravante permite-nos
ir alm, na tentativa de entender a recepo da eugenia no Brasil, principalmente nas dcadas
de 1920 e 1930 e seu carter polimorfo e multifacetado353. Acerca da produo intelectual de
352
KEHL, Renato. Lies de Eugenia. op.cit., p. 173-174. Citando as palavras de Raymond Pearl e sua obra The
Eugenics Review.
353
Os termos denominados aqui como "polimorfo" e "multifacetado" no que concerne a eugenia foi observado
por Souza em sua dissertao de mestrado contribuem com a nossa viso da eugenia no que concerne a sua
108
um dos maiores se no o maior - nome da eugenia no Brasil, o mdico Renato Ferraz Kehl,
analisaremos a sua aderncia e enraizamento no discurso racial que se manteve para a
compreenso da situao da cor e raa no cenrio brasileiro. Alm deste, outros intelectuais
como Edgard Roquette-Pinto (1884-1954) e aqueles que enxergavam por outro enfoque a
condio da construo racial no pas sero chamados na discusso. A nossa reflexo
demonstrar a pluralidade dos discursos sobre eugenia e raa que vigoravam naqueles
momentos, alm da sua aderncia em uma parcela do estabelecimento cientfico brasileiro.
A situao racial no Brasil continuou sendo alvo das polticas governamentais e
com a consolidao do discurso eugnico abrangeu ainda mais interpretaes na sua essncia
hereditria. Utilizando os preceitos de Galton e tambm da chamada eugenia negativa,
corroborou para o argumento da inferioridade e a segregao entre raa e cor nas relaes
sociais. Contemplar as posies da eugenia no Brasil nos permitir entender sua posio no
mbito das relaes raciais no pas.
A escolha de trabalharmos com Kehl justifica-se pelo aporte bibliogrfico que nos
servido na temtica eugnica, bem como sua atuao no cenrio poltico-nacional. Dos mais
de 30 livros publicados, aes em comits de eugenia, peridicos como o Boletim de Eugenia,
dilogos no Ministrio do Trabalho da Era Vargas, Kehl tornou-se uma referncia da
propaganda eugenista. Com o aporte da historiografia atual, balizada por Nancy Stepan e
Vanderlei Sebastio de Souza, pretendemos nos posicionar no que concerne s
fundamentaes eugnicas de Kehl, esperanosos de que nosso trabalho produza frutos para
outros pesquisadores, principalmente nas interpretaes da eugenia no Brasil.
Tem-se notcia do termo eugenia no Brasil ainda nos anos de 1914 com a tese da
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, de Alexandre Teperdino.354 Contudo, se h a
necessidade de eleger um momento especfico para Kehl e a eugenia aparecerem no cenrio
nacional com mais proeminncia e efetividade, seria por volta de 1917 ao ser convidado a
proferir uma palestra na Associao Crist de Moos na qual versou sobre a posio dos
casamentos matrimoniais consanguneos.355 Com a fundao da Sociedade Eugnica de So
compreenso no Brasil e suas diversas forma interpretativas que foram apropriadas por diferentes personagens
do perodo. E, como veremos, isso ser consumado, inclusive, na Careta enquanto anlise das caricaturas e
crnicas. Cf.: SOUZA, Vanderlei Sebastio de. A Poltica Biolgica como Projeto: a Eugenia Negativa e a
construo da nacionalidade na trajetria de Renato Kehl (1917-1932). op.cit.
354
STEPAN, Nancy. Eugenia no Brasil, 1917-1940. op.cit., p. 335.
355
Cf.: STEPAN, Nancy L. A hora da eugenia: raa gnero e nao na Amrica Latina. op.cit., p. 55. Cabe
adicionar que para Kehl suas investidas no curso dos ensinamentos eugnicos datam por volta de 1912, como
expressa nos apndices da obra Porque sou eugenista? 20 anos de campanha eugnica (1917-1937). O eugenista
demonstra que o Congresso Internacional de Eugenia, em Londres, foi seu primeiro eco sobre a temtica (KEHL,
Renato. Porque sou eugenista? 20 anos de campanha eugnica (1917-1937). Rio de Janeiro: Francisco Alves,
1937, p. 99).
109
Paulo356, em 1918, as ideias de Galton parecem entrar diretamente no bojo das discusses
intelectuais do cenrio brasileiro. Pautado na concepo mdica que obteve respeito com o
sanitarismo e o higienismo no por acaso temos a participao de Belisrio Penna -, esta
cincia encontrou-se como mais uma vrtebra para toda discusso que se desencadeava de
traar um projeto nacional, estabelecendo debates com nomes de relevantes participantes na
intelectualidade e no iderio de nao.
A histria da eugenia no Brasil confunde-se com os avanos da cincia no pas, ou
melhor, complementa-se. Com as melhorias das vacinas, descobertas genticas, microbiologia
e sua aplicao em projetos nacionais permitiu uma consolidao da cincia, especialmente,
da biologia nos anos de 1920. Segundo Regina Horta Duarte, a importncia da biologia na
sociedade brasileira emergiu mesclada ampla recepo da eugenia357. Esta referncia
assinala os debates acalorados que se desenvolviam na sociedade e a importncia das posies
mdica e cientificas do limiar das interrogativas eugnicas e biolgicas na nao. Assim, as
grandes prticas de diversos setores mdicos cientficos, assim como as investidas nos
estudos raciais, geraram um clima favorvel no pas para o aprofundamento cada vez maior
da biologia e consequentemente da eugenia. Outra caracterstica dos anos de 1920 apontada
por Srgio Carrara no que diz respeito ao intervencionismo do governo:
Os anos 1920 testemunharam um movimento em direo a uma crescente
interveno federal em vrias reas das polticas pblicas. A organizao de
campanhas sanitrias e a expanso dos ser vios pblicos de sade deram mais
mpeto ao movimento. De um lado, os programas de reforma sanitria aceleraram o
crescimento da burocracia federal e tornaram mais importante o papel do Tesouro
junto as finanas internas de cada estado. De outro, como resultado da expanso do
setor de sade pblica, grande parte do clientelismo poltico caiu nas mos da
burocracia do governo central.358
O saber cientfico nas reas da sade estava arraigado s necessidades nacionais onde
o Brasil se mostrava eficiente nesta conjuntura. Homens como Oswaldo Cruz, Carlos Chagas,
Vital Brasil, Arthur Neiva, fortaleceram a importncia das descobertas na sade no contexto
356
Stepan faz algumas pontuaes sobre a Sociedade Eugnica de So Paulo que, dos 140 membros, apenas dois
no eram mdicos, no havia mulheres nesta sociedade e apenas oito eram de fora do estado de So Paulo. Entre
alguns membros destacam-se Arnaldo Vieira de Carvalho (diretor da nova Faculdade de Medicina de So
Paulo), Vital Brazil (bacteriologista diretor do Butant), Arthur Neiva (microbiologista do Instituto Oswaldo
Cruz), Lus Pereira Barreto (escritor mdico e positivista paulista), Antnio Austregsilo (psiquiatra e professor
da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro), Juliano Moreira (higienista mental e diretor do hospital Nacional
de Alienados, no Rio de Janeiro) entre outros. (STEPAN, Nancy L. A hora da eugenia: raa gnero e nao na
Amrica Latina. op.cit., p. 55-56).
357
DUARTE, Regina Horta. A biologia militante: o Museu Nacional, especializao cientfica, divulgao do
conhecimento e prticas polticas no Brasil 1926-1945. op.cit., p. 37.
358
CARRARA, Srgio. Tributo a Vnus: a luta contra a sfilis no Brasil, da passagem do sculo aos anos 40. Rio
de Janeiro: FIOCRUZ, 1996, p. 218.
110
histrico em que cada vez mais se procurava sanar as doenas do Brasil359. Ao passo que
ganhava mais autoridade no cenrio nacional360, tambm subsidiou os argumentos eugnicos
em torno do debate sobre a inferioridade ou no do povo brasileiro361. Assim, a projeo da
biologia e das conquistas nas reas mdicas possibilitou no quadro nacional esta aproximao
da eugenia com os meios intelectuais especializados.
Tomando como base o argumento da pesquisadora Dominichi Miranda de S, na
virada do sculo XIX para o XX, a medicina no deve ser meramente considerada
conhecimento e prtica cientfica relacionada manuteno da sade, mas discurso sobre a
sociedade e programa visando reforma social362. A ida de mdicos como Arthur Neiva e
Belisrio Penna ao interior do Brasil se apresenta como evidncia para o argumento de S.
Para tanto, como lembra Souza em anlise da preocupao da questo nacional por Neiva,
salienta a participao do mdico em diagnosticar os males que impediam o
desenvolvimento e a ascenso do Brasil no chamado concerto das naes363. Isto , a cincia
esteve atrelada no somente ao seu saber cientfico, mas aos problemas sociais do Brasil.
Nacionalistas ou no, esta intelectualidade foi um reflexo de como os saberes e prticas
cientficas se entrelaam com a forma de pensar a unidade nacional.
Outro elemento que deve ser levado em considerao no trato da institucionalizao
das cincias no pas deve-se a importncia do positivismo no debate nacional e suas
implicaes. Como expusemos, as cincias se alavancavam como autoridade na segunda
metade do sculo XIX, e o positivismo se apresentava como uma vertente para a compreenso
de mundo e busca de resoluo dos problemas nacionais. A identificao dessas apreciaes
no Brasil perdurou por algum tempo, principalmente no que tange agenda cientificista
brasileira. Com isso queremos destacar a influncia das reflexes e debates positivistas que
contriburam no campo terico da formulao cientfica e as legitimidades do
359
Skidmore escreveu sobre a importncia de Belisrio Pena e Arthur Neiva que viajaram pelo serto da Bahia,
de Pernambuco, Piau e Gois, relatando as condies de sade daquelas localidades (SKIDMORE, Thomas E.
Preto no branco: raa e nacionalidade no pensamento brasileiro. op.cit., p. 201).
360
Duarte diz que a ascenso das cincias biolgicas e todo o comprometimento a um projeto poltico no pode
ser confundido com melhorias na condio desses agentes da cincia e sade. Para ela, estes possuam um
sentimento de subvalorizao pelas autoridades pblicas e pela sociedade em geral (DUARTE, Regina Horta.
A biologia militante: o Museu Nacional, especializao cientfica, divulgao do conhecimento e prticas
polticas no Brasil 1926-1945. op.cit., p. 51). Sendo assim, muitos institutos ficaram a merc do descaso das
autoridades, mesmo estes reconhecendo sua importncia na construo nacional.
361
Ibid., p. 48.
362
S, Dominichi Miranda de. Uma interpretao do Brasil como doena e rotina: a repercusso do relatrio
mdico de Arthur Neiva e Belisrio Penna (1917-1935). op.cit., p. 184. S enfatiza outras preocupaes como a
demarcao do espao geogrfico brasileiro e as comunicaes com o telgrafo. H um projeto de integrao
nacional e a cincia est envolvida nessa dinmica.
363
SOUZA, Vanderlei Sebastio de. Arthur Neiva e a questo nacional nos anos 1910 e 1920. Histria,
Cincias, Sade Manguinhos. Rio de Janeiro, v. 16, supl. 1, 2009, p. 250.
111
364
FERREIRA, Luiz Otvio. O ethos positivista e a institucionalizao das cincias no Brasil. op.cit., p. 92.
ROQUETTE-PINTO, Edgard. Cincia e Cientistas do Brasil. In: LIMA, Nsia Trindade; S, Dominichi
Miranda de. (orgs.). Antropologia Brasiliana: cincia e educao na obra de Edgard Roquette-Pinto.Belo
Horizonte, Editora UFMG, 2008, p. 32.
366
Em torno das polticas da sade pblica no Brasil, Gilberto Hochman define, em partes, o movimento como:
Uma poltica nacional de sade pblica no Brasil foi possvel e vivel a partir do encontro da conscincia das
elites com seus interesses, e suas bases foram estabelecidas a partir de uma negociao entre os estados e o poder
central, tendo o federalismo como moldura poltico-institucional. Esse encontro foi promovido pelo movimento
sanitarista brasileiro que buscou redefinir, entre 1910 e 1920, as fronteiras entre os sertes o litoral, entre o
interior e as cidades, entre o Brasil rural e ao urbano em funo do que consideravam o principal problema
nacional: a sade pblica (HOCHMAN, Gilberto. A era do saneamento: As bases da poltica de Sade Pblica
no Brasil. op.cit., p. 16).
367
Alis, os debates estavam prximos medida que eugenizar e sanear nesta dcada de 1920 somaram-se
com a criao da Liga Brasileira de Higiene Mental, que atraa muitos eugenistas nas suas pautas (Cf.: REIS,
365
112
113
doutrinas de Darwin, de Weismann e de Mendel, etc., torna-se difcil, seno impossvel, acompanhar um curso
de eugenia (KEHL, Renato. Lies de Eugenia. op.cit., p. 51).
373
STEPAN, Nancy L. A hora da eugenia: raa gnero e nao na Amrica Latina. op.cit., p. 82.
374
Ibid., p.83.
375
Para Souza, alm do aspecto hereditrio social: Para os eugenistas brasileiros, os pressupostos
neolamarckistas autorizavam, inclusive, a investirem no aprimoramento do estado hgido e da robustez fsica da
populao. Atravs das diferentes formas de teraputicas, a cincia eugnica poderia tanto contribuir para a
purificao higinica e o melhoramento rigoroso dos progenitores como para o aperfeioamento fsico, a sade e
o embelezamento da sociedade. A eugenia se constitua, deste modo, tambm como um movimento que visava
estetizao da identidade nacional. A idia de progresso e civilizao exigia, sobretudo, a sade, a fora e a
beleza fsica (SOUZA, Vanderlei Sebastio de. A Poltica Biolgica como Projeto: a Eugenia Negativa e a
construo da nacionalidade na trajetria de Renato Kehl (1917-1932). op.cit., p. 47). Essa afirmativa corrobora
com as ideias de Kehl, que em Lies de Eugenia mostra-se um admirador dos gregos em comparao a
perfeio do corpo (KEHL, Renato. Lies de Eugenia. op.cit., p. 8).
376
Ibid., p. 46.
377
WEGNER, Robert; SOUZA, Vanderlei Sebastio de. Eugenia 'negativa', psiquiatria e catolicismo: embates
em torno da esterilizao eugnica no Brasil. Hist. cienc. Sade Manguinhos. Rio de Janeiro, vol. 20, n. 1,
2013, p. 9-10. Ver tambm: SOUZA,Vanderlei Sebastio de. Em busca do Brasil: Edgard Roquette-Pinto e o
retrato antropolgico brasileiro (1930-1935). op.cit., p. 289.
378
Para entender a relao entre eugenia e a chamada higiene mental, foi referncia para ns o trabalho de Jos
Roberto Franco Reis intitulado Higiene Mental e Eugenia: O projeto de regenerao da Liga Brasileira de
Higiene Mental (1920-1930). O estudo de Reis traz importantes colaboraes para a compreenso entre
psiquiatria e a eugenia, inclusive com relao raa. Sobre isso, diz que os negros eram tidos a como
candidatos naturais uma vaga no hospcio, posto que, segundo o discurso psiquitrico, portadores de traos
degenerativos prprios a sua condio racial (REIS, Jos Roberto Franco. Higiene mental e eugenia: o projeto
de regenerao nacional da Liga Brasileira de Higiene Mental (1920-1930). op.cit., p. 151).
114
SOUZA, Vanderlei Sebastio de. A Poltica Biolgica como Projeto: a Eugenia Negativa e a construo da
nacionalidade na trajetria de Renato Kehl (1917-1932). op.cit., p. 50.
380
REIS, Jos Roberto Franco. Higiene mental e eugenia: o projeto de regenerao nacional da Liga Brasileira
de Higiene Mental (1920-1930). op.cit., p. 25-26.
381
Ibid., p. 24.
382
Ibid., p. 40.
383
SOUZA, Vanderlei Sebastio de. As leis da eugenia na antropologia de Edgard Roquette-Pinto. In: LIMA,
Nsia Trindade; S, Dominichi Miranda de. (orgs.). Antropologia Brasiliana: cincia e educao na obra de
Edgard Roquette-Pinto. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008, p. 214.
384
ROQUETTE-PINTO, Edgard. Ensaios de anthropologia brasiliana. op.cit., p. 59.
115
esquadrinhou a grande maioria que se infringia nos debates nacionais pelo vis eugnico.
Partindo desde Galton at sua viso eugnica, pde consagr-lo como um dos mais fiis
defensores da teoria no pas. Lies de Eugenia (1929) possui este reflexo do ensinamento
eugnico onde logo na introduo salienta a dificuldade inicial na propaganda da eugenia, que
teria encontrado no pas ignorncia, incredulidade e indiferenas e, que hoje, j se ouve falar
em eugenia, em questes eugnicas, j se proclama a imperiosa necessidade de defesa
eugnica da famlia e da nacionalidade385. Este livro estabelece um manual brasileiro de
eugenia, onde Kehl, grosso modo, assemelhasse a Galton no que concerne propaganda e
disseminao do conhecimento eugnico. A eugenia tambm estava aliada aos estudos
mdicos, pois tratava do corpo humano. Rapidamente, a imagem abaixo mostra um artigo
informativo
sobre
cincia
para
os
leitores
da
revista
Careta,
em
1934:
116
ns. A matria diz: hoje, como difuso que os cientistas modernos fazem sobre a prtica da
eugenia, certos ensinamentos detidos outrora na esfera dos sbios, vo se divulgando no meio
das massas mais cultas. Vale pontuar esta relao entre a cincia e a eugenia que se fazia
vlida na compreenso mdica. A imagem oferece uma evidncia para demonstrar que
eugenia no dizia respeito apenas ao programa cientfico do Brasil e aos bem dotados, mas
era uma ferramenta mdica adotada para compreender o corpo humano.
Posto isso e diante da imensido de assuntos abordados por Galton e Kehl, nos
focaremos no que tange questo da raa e da cor. Segundo Souza e Wegner, Kehl teria
transitado no final da dcada de 20 de uma eugenia positiva para uma eugenia negativa,
pois Se at esse perodo Renato Kehl compartilhava um ponto de vista otimista sobre o
futuro do Brasil, passaria, a partir de ento, a ver com ressalvas as promessas reformadoras
propostas pela maioria dos intelectuais brasileiros386.
Aps este momento, relata-nos o historiador Souza, que Kehl teria se afastado das
postulaes da medicina social e se inclinou a um aspecto mais radical da eugenia. Segundo
o autor, seduzido pelos feitos da eugenia negativa em lugares como Estados Unidos e
Alemanha, o eugenista teria mudado consideravelmente sua forma de ver a aplicabilidade da
questo no Brasil387 - um exemplo so os meios aplicados nos casamentos pela
Reichsgesundheitsamt.388 Publicado em 1929, Lies de Eugenia representou a fase de
transio, em que percebemos o tom pessimista do autor em relao a alguns pontos que
envolvem raa e hereditariedade.389 Kehl comeava a se irritar com a confuso que se fazia
entre eugenia e saneamento390, da qual procurava distanciar nesse momento, dando uma
386
WEGNER, Robert; SOUZA, Vanderlei Sebastio de. Eugenia 'negativa', psiquiatria e catolicismo: embates
em torno da esterilizao eugnica no Brasil. op.cit., p. 3.
387
SOUZA, Vanderlei Sebastio de. A Poltica Biolgica como Projeto: a Eugenia Negativa e a construo da
nacionalidade na trajetria de Renato Kehl (1917-1932). op.cit., p. 121. Para complementar o argumento do
autor, podemos citar na obra Aparas eugnicas: Sexo e Civilizao um parntese de Kehl sobre a defesa de
esterilizao do Brasil como forma profcua de gerenciar o meio: A esterilizao, medida eminentemente
eugnica, deve ser instituda em nosso pas, como j o nos Estados Unidos da Amrica do Norte. Suas
vantagens so indiscutveis luz de razes positivas e prticas (KEHL, Renato. Aparas eugnicas: Sexo e
Civilizao. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1933a, p. 185).
388
KEHL, Renato. Lies de Eugenia. op.cit., p. 161.
389
Uma nota interessante pode ser constatada no item do livro em que Kehl refere-se a tuberculose. Adotando
um tom extremamente pessimista chega a afirmar que a doena seria algo positivo: A tuberculose, perdoemnos, talvez, o paradoxo, uma doena, at certo ponto misericordiosa, porque abrevia a visa sofredora de
incapazes e defende a espcie da sua influencia debilitadora. No fosse Ela, e estaramos esmagados pela massa
colossal das monstruosidades: - ter-se-ia criado uma sub-raa cacoplastica; no fosse Ela, e o mundo seria hoje o
teatro de uma situao muito pior, talvez, do que se d em pases onde os homens se consideram felizes com
uma nica refeio diria (Ibid., p.120).
390
STEPAN, Nancy L. A hora da eugenia: raa gnero e nao na Amrica Latina. op.cit., p. 104. Na obra
Porque sou eugenista? 20 anos de campanha eugnica (1917-1937), configura-se essa insatisfao pela
confuso dos termos, Kehl explica Ns mesmos, no inicio da campanha de propaganda em prol desta cincia,
no fomos muito claros na delimitao das suas bases e de seus propsitos! Visando despertar a ateno publica
117
autonomia ainda maior para a eugenia. Podemos ainda traar a argumentao de Kehl, ao
dizer que a eugenia positiva no seria to eficaz apenas com a propagao e sua divulgao,
pois ela no atingiria aos que realmente eram degenerados. Estes, para ele, ignoravam as
propostas e continuavam a se proliferar. Estes fatores podem evidenciar a sua migrao para
uma eugenia negativa391.
Nessas fases de Kehl estabelecemos uma possvel contradio de obra que fomenta
o estudo de Souza. Se na obra Lies de Eugenia, em 1929, ele diria, a tuberculose,
perdoem-nos, talvez, o paradoxo, uma doena, at certo ponto misericordiosa392, seis anos
antes, no livro Eugenia e Medicina Social, de 1923, Kehl acreditava que a morte no era o
melhor caminho e condenava inclusive, a eutansia: Mas no a morte com os seus mistrios,
no a soluo verdadeira para os males da vida393. Mais adiante, mostrou-se sendo contra a
eutansia at mesmo de um tuberculoso no terceiro grau394. Enquanto em 1923 vemos uma
propaganda ao higienismo, ao sanitarismo e a eugenia, em 1929 o discurso propagandista
eugnico atuou de uma forma mais negativa, no que tange s resolues dos problemas
sociais. A mudana de concepo de Kehl pode ajudar a compreender estes contrastes
explcitos em seus escritos.
Devemos lembrar que nesta poca, em janeiro de 1929, surge o Boletim de Eugenia.
Dirigido pelo prprio Kehl, ele ter periodicidade de cinco anos e encerrar suas atividades
em 1933.395 Em nossa consulta notamos a influncia de Kehl para sua vontade
propagandstica da eugenia e seu endurecimento com relao s propostas eugnicas.
Recebendo colaboradores adeptos da eugenia no Brasil e no mundo, o Boletim discutir temas
que envolveriam o melhoramento hereditrio da nao, bem como apresentar a eugenia para
quem no conhecia. Curiosamente, em seu primeiro nmero, o eugenista ratificava: O
para o assunto, inteiramente novo e, portanto, desconhecido do nosso meio, dissemos, muitas vezes, que educar
eugenizar, sanear eugenizar, sem esclarecer a razo dessas afirmativas breves e incisivas (KEHL, Renato.
Porque sou eugenista? 20 anos de campanha eugnica (1917-1937). op.cit., p. 45).
391
Sobre essa afirmativa, em 1933, discursa Kehl: pretendo ter evidenciado que a educao e as influncias
favorveis do meio no so suficientes para melhorar a situao gentica da coletividade, porque ambas afetam,
to somente, o desenvolvimento do indivduo e no a constituio da espcie humana (KEHL, Renato. Aparas
eugnicas: Sexo e Civilizao. op.cit, p. 4).
392
KEHL, Renato. Lies de Eugenia. op.cit., p. 120.
393
KEHL, Renato. Eugenia e Medicina Social. Rio de Janeiro: Francisco Alves. 1923, p. 78.
394
Ibid.
395
Entre 1929 a 1931 o Boletim ser mensal. Nos anos de 1932 e 1933 ser trimestral.
118
Kehl dialogava com os intelectuais e os problemas da sua poca e, portanto, sua fala
converge com a de vrios de seus pares do cientificismo desses primeiros anos do sculo XX.
Contudo, o problema da cor inerente na voz do eugenista e a discusso que flui no
decorrer das suas alegaes eleva-se tnica do discurso de segregao racial, principalmente
quando pauta-se na cincia pelo vis negativo. Ajustado na linha das cincias, ele busca
explicar que havia diferenas entre as raas humanas, mesmo endossando que no havia
preconceito em pensar dessa forma. As teorias raciais se adaptam sua explicao de uma
396
119
nao higienizada, medida que consideram certos tipos humanos raciais a serem
evitados. Por nossa preocupao de pesquisa ser em relao cor e raa, este ser nosso
principal vis, mas sem deixar de lado, na medida da pertinncia, outras propostas da eugenia.
As duas citaes a seguir estabelecem a contradio da cor e refletem como os
pensamentos raciais estavam inseridos no imaginrio social e intelectual para justificar o olhar
que se tinha entre brancos e negros. Os excertos a seguir, curiosamente, esto separados por
um nico pargrafo:
Dentre os elementos em desassimilao, como dissemos, contam-se os da raa negra
e silvcola. H uma verdadeira depurao desses sangues. Ningum poder negar,
que no correr dos anos, desaparecero os negros e os ndios das nossas plagas e do
mesmo modo os produtos provenientes desta mestiagem. A nacionalidade
embranquecer a custa de muito sabo de coco Ariano! 402
No temos preconceito de raa; a nosso ver tanto so dignos os brancos como os
pretos ou amarelos, quando eles so dignos. Consideramos todos os seres humanos
merecedores, igualmente, das nossas atenes. 403
120
receberem essa designao integral404. Em vista disso, argumenta que intelectuais como
Agassiz e Darwin corroboram com este fato e, por isso, acreditava que alm da preocupao
interna, era necessrio fechar as portas da imigrao405 para que negros e amarelos no
viessem para o Brasil, afinal bastam-nos os que aqui aportam espontaneamente,... e que no
so poucos!406.
Negros deveriam se casar com negros. Brancos deveriam se casar com brancos. Do
contrrio, a sociedade se esfacelaria pelo elemento mestio que nada contribuiria para o ideal
eugnico. Considerando o negro como elemento inferior, ele no estava impedindo de
procriar, desde que o fizesse com outro indivduo da mesma cor evitando assim proliferar
seus genes mal nascidos, em indivduos bem nascidos. A propaganda da bula eugnica
enftica nesse sentido: Sob o ponto de vista eugnico contra-indicamos toda e qualquer
unio de raas, isto , entre indivduos da raa branca com negra, e assim por diante407.
Kehl reafirmava constantemente que no se tratava de preconceito de cor ou raa, mas
ao mesmo tempo salientava que algumas raas esto mais adaptadas ao progresso e a
civilizao que outras. Isto, para ele, seria um postulado cientfico e de eugenia e no
representaria qualquer motivo ou preconceito de superioridade ou inferioridade408. No
pargrafo seguinte, persiste na afirmativa de que no existem povos eleitos, mas que as
raas possuem caracteres que os tornam mais ou menos civilizveis, disciplinveis,
progressistas, enquanto noutros se observa a predominncia de caracteres que os tornam mais
ou menos brilhantes, improvisadores e bomios409. Por esta perspectiva, percebemos o
discurso por trs da tentativa de legitimar as diferenas raciais pelo vis cientfico. Mesmo
que o autor enfatize que o problema no seriam as raas, ele valida que existem diferenas
entre elas, que as fazem melhores ou piores, mais civilizadas ou menos civilizadas,
mais contribuidoras ao trabalho e outras mais as boemias. Sua prpria classificao de
elementos pautados em adjetivaes maniquestas sugere o mecanismo eugnico nacional de
diferenciar pela raa e cor.
404
Ibid., p. 190.
Adiante ele reafirma a no concordncia sobre a imigrao negra por meio de um eufemismo no somos
partidrios da proibio da entrada de imigrantes pretos ou amarelos no pas. No vamos a tanto. Somo sim de
opinio, que no devemos, absolutamente, facilitar, fomentar e estimular certas imigraes - tolerando, apenas, a
entrada espontnea dos que aqui vierem para colaborar conosco no progresso do pas (Ibid., p. 195). [Grifos do
autor].
406
Ibid., p.190
407
Ibid., p. 191. [Grifos nosso]
408
Ibid., p. 196.
409
Ibid.
405
121
Basta uma breve reflexo para compreendermos melhor essa contradio de Kehl. O
mdico um seguidor assumido das ideias de Galton, admirador de Charles Davenport e
Leonardo Darwin, bem como das esterilizaes nos Estados Unidos e seus resultados. Pensar
a eugenia de Kehl trazer baila os elementos da eugenia galtoniana dos bem nascidos e
tudo o que era considerado como sinnimo de perfeio lembremos-nos do exemplo de
Galton onde destacou o negro Toussaint I'Ouverture, na revoluo do Haiti, sendo uma
exceo da cor -, e da viso da eugenia estadunidense em relao ao negro. Satisfaz-nos
estes exemplos para demonstrarmos que o pensamento eugnico agregava valores das teorias
raciais de superioridade e inferioridade que, mesmo Kehl se dizendo neutro de
preconceito racial, ele faz parte do seu discurso da cincia eugnica e nos contextos que
elas foram empregadas. A cor das raas sero pressuposies de talento hereditrio em
que estaria ligada aos sinnimos de progresso para as sociedades, sobretudo, a brasileira.
Outro item importante a ser considerado para a argumentao da inferioridade dos
negros para Kehl foi a tese do tipo ideal de eugenizado fisicamente.410 O tipo fsico ideal
para o mdico seria o de pessoas dotadas de robustez, beleza, vitalidade e longevidade411.
Para o autor, estas seriam caractersticas de seres eugenizados fisicamente. Entretanto, ao
tratar da beleza negra foi enftico ao dizer conhecem-se belas mulatas e mulatos bonitos,
mas como exceo e no como regra412. Em outras, ele relata os padres de beleza
almejados, mas quando o negro se encaixa nesse ideal, eles seriam apenas excees e no a
totalidade. H uma busca por minar qualquer tentativa de reavaliar os indesejveis, por um
mbito satisfatrio pelo prisma da eugenia.
Assim, o cuidado com o controle matrimonial eugnico perpassa pela indelvel
questo da negao do casamento entre negros e brancos. O zigoto gerado seria um mestio, ou para as concluses eugnicas um degenerado. Tratando-se da unio de um branco e um
negro, cabe-nos a pergunta: para o eugenista, quem dentro dessa unio representaria o gene
hereditrio que poderia danificar a espcie? Ou ento: nesta unio, quem estaria contribuindo
para o stock negativo? O negro possuiria o germe que no momento da unio com o
branco o degeneraria resultando o mestio. Isso pode ser comprovado no discurso de Kehl
na conferncia da Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia, em 1933, quando
salienta que s motivos acidentais fazem unir-se v.g. um homem branco com uma negra ou
410
Possuir um corpo perfeito era equivalente a ter uma mente brilhante. Os prprios eugenistas consideravam
esses elementos em suas anlises. Havia indivduos fortes, robustos e belos, porm sem um grau de
intelectualidade significativa.
411
Ibid., p. 199.
412
Ibid., p. 191. Voltaremos neste item no Captulo 4 ao analisarmos caricaturas que estabelecem essa ligao.
122
O ngulo facial exagerado do negro ratifica como a expectativa fsica era percebida
e retratada. Grafada logo em seguida como ndice ceflico quase nulo, isto , o negro
possua traos fsicos disformes e carecia no grau intelectual e, assim, era taxado como um ser
voltado para a animalidade. Isso justificaria as aes do negro na sociedade e sua concluso
como degenerado, bomio e propenso ao crime, onde seria culpado de seus traos fsicos,
intelectuais e morais, condizentes com sua raa. Por outro lado, o branco com ngulo
facial apurado e ndice ceflico exagerado, confirma a personificao da perfeio por meio
da cor, sendo este o sinnimo aceitvel dentro daquela sociedade, pois ele tinha um corpo
belo, face apurada e uma inteligncia exagerada. Estas eram algumas das afirmativas que
refletiam na autoridade mdica-eugnica na construo dos sujeitos dentro do corpo social.
Ao tomarmos a obra Aparas eugnicas: Sexo e Civilizao, estes elementos tambm
ganham espao pela degradao do negro e do mestio. Ancorado por leituras de Nina
Rodrigues e Oliveira Vianna - em que ambos respectivamente trataram da inferioridade
negra na criminalidade e sobre o branqueamento -, Kehl justificava a degenerao da raa e
suas razes ancestrais que estiveram fadadas aos vcios e s ms condutas:
O mestio brasileiro de branco e preto (mulatos), so, na maioria, elementos feios e
fracos, apresentando com frequncia, os vcios dos seus ancestrais. De grande
instabilidade de carter constituem, pois, elementos perturbadores do progresso
nacional, sob o ponto de vista tnico e social.416
413
123
124
degenerao da mistura racial e, por isso, para Kehl, formar-se-o grupos de acordo com a
constituio e temperamento e subgrupos conforme as tendncias, vocaes e valores
sociais419. O mdico-eugenista sacramenta dentro da sociedade a diviso racial existente e
diagnostica esse problema em que o remdio seria no misturar, pois os indivduos
margem poderiam degenerar os que esto saudveis. O argumento racial e de
subgrupos so inerentes cor da pele e ao negro. Apesar do eugenista por diversas vezes
expressar seus desejos pela esterilizao, no houve tanto progresso nessa questo. Contudo, a
forma como ele tratou da questo racial apresenta-se como um convite a no reproduo
dos degenerados.
Alis, as medidas mdicas sejam elas sanitrias, higienistas ou eugnicas, tinham
nfase no corpo social. Portanto, seria inimaginvel pensar que parte da sociedade no
compartilhava dos pensamentos destes intelectuais, uma vez que eram reproduzidos em
jornais e peridicos. Como no pensar que o mdico que curava a varola, que descobria
novas espcies animais, criava antdotos, uma medicina respeitada no exterior, uma biologia
crescente no teria a mesma legitimidade quando o assunto fosse as raas humanas? Parece
evidente que o discurso cientfico era comprado pelo discurso social e tinha uma ao
legitimadora na diviso da igualdade social.
Vamos um pouco alm. Se a eugenia dizia que o cruzamento entre pessoas com
doenas hereditrias era algo ruim e comprometeria a prole, podemos imaginar que no interior
dos grupos sociais as famlias teriam o cuidado em orientar seus familiares sobre as mazelas
desses relacionamentos em vista da indicao mdica-eugnica, pois poderiam ter filhos com
os mesmos problemas genticos de seus portadores. Se no era aconselhvel o cruzamento
racial, o mesmo exerccio mental se faz no exemplo da unio de negros com brancos para as
famlias brancas. Ao passo que uma famlia branca acreditava nos preceitos eugnicos, no
de estranhar que ela no veja com bons olhos o casamento inter-racial, afinal, sendo eles os
bem-nascidos o cruzamento com possveis degenerados ocasionaria como resultado a
mestiagem. Em vista disso, como anunciava Renato Kehl: a vida numa sociedade tanto
mais intensa, desordenada, prenhe de vicissitudes, de crimes, de degeneraes, quanto mais
heterozigotos os elementos que a compem..."420.
justamente pela eugenia se fundamentar na melhoria do homem que existiria a
separao de raas. Kehl um discpulo das ideias galtonianas e frequentemente cita-o em
419
420
Ibid., p. 251.
Ibid., p. 44.
125
KEHL, Renato. Melhoremos e prolonguemos a vida: a valorizao eugnica do homem. op.cit., p. 26.
KEHL, Renato. Porque sou eugenista? 20 anos de campanha eugnica (1917-1937). op.cit., p. 14.
423
Ibid., p. 17.
424
Ibid., p. 26.
425
Ibid., p. 42. [Grifo nosso].
422
126
cruzamento racial e diante sua legitimidade no campo cientfico esta recomendao serviria
para os adeptos do discurso como uma profilaxia para quem se preocupava com questo
racial. No toa, anos antes, com Nina Rodrigues e Oliveira Vianna, so postos em debate
por trazerem baila a sina do branqueamento e do problema do cruzamento heterogneo.
Quando Kehl afirmava que toda raa, seja a branca, a preta, a amarela, a bronzeada
deve defender a sua relativa pureza impedindo a intromisso de caracteres exticos426, no
entendemos que o eugenista est preocupado unicamente com as ditas purezas raciais que
ele mesmo acredita no existirem mais raas totalmente puras427 - induzindo a ideia da
valorizao de todas as raas e sua importncia, pelo contrrio, o que demonstrava a
preocupao da raa branca em preservar seus caracteres e no elevando-os para a
degradao da miscigenao. Isto pode ser comprovado no mesmo documento, em que, para
Kehl, contra a mestiagem no grande sentido, existem provas de ordem cientfica que no se
inutilizam com simples palavras, venham de onde vierem428.
A eugenia no Brasil ganhou diversas interpretaes. Ela esteve atrelada aos
movimentos sanitaristas e higienistas, pelo seu carter de revigorar a populao em um
mbito gentico humano. Mesmo para Kehl, que teve um discurso prximo de Galton, mas
tambm caminhou com a eugenia negativa, outros enxergavam esta cincia aliada a formas
diversas de aes que nem sempre se ligavam as crenas da eugenia de Kehl, o que, como
vimos, causou a insatisfao do mdico na compreenso da eugenia como sinnimo de
saneamento429. Adiante, veremos outras formas de interpretao da eugenia no Brasil.
Ibid., p. 44.
Ibid., p. 43.
428
Ibid.
429
Prova disso so os debates que se sucederam no Congresso de Eugenia de 1929. Roquette-Pinto aponta que
h pessoas, no Congresso, para quem Eugenia apenas um nome, em moda, de que se enfeita a velhssima
Higiene. Pode-se dizer mesmo que s esse mal entendido o responsvel por algumas discusses que ali se
tm verificado (ROQUETTE-PINTO, Edgard. Ensaios de anthropologia brasiliana. op.cit., p. 70).
427
127
de Americanistas, na Sucia. Viajou tambm para os Estados Unidos onde manteve contato
com Franz Boas. Suas atividades demonstram que esteve inserido em diversas discusses
sobre raa e vinculado compreenso da histria e do povo brasileiro430. H trabalhos
que se debruam sobre a trajetria deste intelectual431, mas, para ns, ele se insere no debate
acerca das raas e sua relao com a eugenia, sobretudo, com sua indicao para presidir o
Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia.
A longa tradio cientfica de Roquette-Pinto nos revela em que direo trabalhar com
este personagem. Suas mltiplas leituras despontam seu aporte bibliogrfico que passaria por
estrangeiros como Eugen Fischer432, Charles Davenport, Franz Boas e Rudiger Bilden.433
Como estudou Souza, as constataes das leituras desses tericos revelam a diversidade do
pensamento de Roquette-Pinto, uma vez que alguns deles, como Davenport, posicionaram em
suas pautas polticas e cientficas, elementos explcitos de segregao racial434.
O que queremos contribuir em nossa leitura a perspectiva mendeliana de RoquettePinto, para mostrar a multiplicidade em pensar a eugenia no pas, pois [...] um mendeliano
de primeira hora e insiste que o meio no interfere naquilo que foi constitudo segundo
determinaes hereditrias435. No Brasil podemos estabelecer que o movimento eugnico,
em toda sua amplitude e suas vozes, possua tambm a sua viso heterognea desta tradio
430
DUARTE, Regina Horta. A biologia militante: o Museu Nacional, especializao cientfica, divulgao do
conhecimento e prticas polticas no Brasil 1926-1945. op.cit., p. 54-61.
431
Cf.:Vanderlei Sebastio Souza: Em busca do Brasil: Edgard Roquette-Pinto e o retrato antropolgico
brasileiro (1930-1935). Para uma contextualizao da relao desse intelectual com instituies e atuaes vale
atentar-se novamente para o livro de Regina Horta Duarte, A biologia militante: o Museu Nacional,
especializao cientfica, divulgao do conhecimento e prticas polticas no Brasil 1926-1945.op.cit
432
Ao estudar Roquette-Pinto e Fischer, Souza percebe um argumento do antroplogo alemo que nos ajuda a
pensar a prpria formao da argumentao de Roquette, Fischer teria demonstrado tambm que os efeitos dos
cruzamentos raciais no era uma simples mistura de fatores hereditrios, muito menos a sobreposio ou a
dominncia de uma raa sobre a outra. O que haveria de fato era uma combinao de fatores hereditrios, nos
quais ocorria a dominncia de alguns fatores sobre outros, independentemente da origem racial (SOUZA,
Vanderlei Sebastio de. Em busca do Brasil: Edgard Roquette-Pinto e o retrato antropolgico brasileiro (19301935). op.cit., p. 224). Mais adiante explica o afastamento do estudioso brasileiro com o pensamento do alemo
no que concerne segregao racial. Embora as investigaes de Fischer fossem referncias constantes nos
trabalhos de Roquette-Pinto, jamais fez meno aos argumentos antissemitas, ao arianismo e, mais tarde, ao forte
envolvimento do antroplogo alemo com o tribunal eugnico nazista. (Ibid., p. 226).
433
No Brasil, Souza percebeu a influncia de Euclides da Cunha e Alberto Torres, alm da prpria tradio
antropolgica que se desenvolvera no Museu Nacional, na formao do antroplogo brasileiro. (Ibid., p. 261).
Vale salientar que Roquette-Pinto presta admirao s obras Brasil na Amrica (1929), de Manoel Bomfim, e
Casa-Grande e Senzala (1933), de Gilberto Freyre. (Ibid., p. 265). Em Anthropologia Brasiliana, Roquette
demonstra sua admirao intelectual por Alberto Torres a respeito da imigrao: A considerao do fenmeno
leva o meu pensamento para os ensinos de Alberto Torres, socilogo realmente sbio e profundo, que a nossa
cultura, em geral taful e terica, pode apresentar ao mundo. (ROQUETTE-PINTO, Edgard. Ensaios de
anthropologia brasiliana. op.cit., p. 17).
434
SOUZA, Vanderlei Sebastio de. Em busca do Brasil: Edgard Roquette-Pinto e o retrato antropolgico
brasileiro (1930-1935). op.cit., p. 208.
435
CUNHA, Olvia Maria Gomes da. Inteno e gesto: pessoa, cor e a produo cotidiana da (in)diferena no
Rio de Janeiro, 1927 1942. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2002, p. 287.
128
Vale, por exemplo, entender uma das noes de eugenia para Roquette, onde Na compreenso de alguns
eugenistas, entre eles o prprio Roquette-Pinto, investir em polticas de controle da mortalidade e da natalidade
significava pensar diretamente na sade e no aperfeioamento contnuo das populaes (SOUZA, Vanderlei
Sebastio de. Em busca do Brasil: Edgard Roquette-Pinto e o retrato antropolgico brasileiro (1930-1935).
op.cit., p. 318).
437
Ibid., p.210.
438
SOUZA, Vanderlei Sebastio de. Retratos da nao tipos antropolgicos do Brasil nos estudos de RoquettePinto 1910-1920. Bol. Mus. Para. Emlio Goeldi. Cienc. Hum. Belm, v. 7 n. 3, 2012, p. 647.
129
e hoje corrente modifica apenas o somato-plasma, a parte do ser vivo que no entra na
herana439. Para completar, expe que o problema no estaria no cruzamento, pois em geral,
tem-se o habito de considerar degenerados, mestios que so apenas doentes ou disgnicos.
No o cruzamento; a doena a causa do aspecto dbil de muitos deles440.
Roquette-Pinto esquadrinhou e energizou suas pesquisas em 1921 sobre os tipos
antropolgicos do Brasil para compreender, como resume Souza, a nossa gente441.
Pautado em uma antropologia fsica do homem, o antroplogo acreditava que era possvel
caracterizar as raas por seus bitipos, porm, desqualificava a viso de que o exame do
crnio, por exemplo, criaria caractersticas de elementos superiores e inferiores. Isto
demonstra o antagonismo de uma pressuposio notoriamente sacramentada pela eugenia no
que concerne tese de raa e miscigenao, entre outros. O mais voltado para um aspecto
cultural das sociedades atrasadas e adiantadas desconsiderava a premissa de que o atraso
brasileiro estaria arraigado inferioridade da raa pela hereditariedade. Explica o autor:
A antropologia no se limita mais a medir crnios e a calcular ndices discutveis,
na esperana de poder separar as raas superiores das raas inferiores. Hoje a
doutrina da igualdade vai ganhando terreno; superiores e inferiores so agora
adiantadas e atrasadas. As ltimas lucraram com a mudana, pois que ficou,
assim, reconhecido o seu direito existncia que a cincia bastarda andou
procurando contestar. E a antropologia, desanimando de encontrar a verdade naquele
mau caminho enveredou noutros atalhos mais felizes e agora, de maneira muito mais
promissora, procura, entre outras coisas, verificar como as raas se transformam pela
migrao, pelo cruzamento e por outras influncias.442
130
traos antropolgicos da populao. Suas pesquisas o levaram para o lado da eugenia com um
carter semelhante na instrumentalizao, mas diferente na concluso.
A eugenia era, entre outras, a representao de uma cincia que tinha um prognstico
de uma cincia do melhoramento do futuro, somada aos aditivos das pressuposies que
estavam em voga na antropologia fsica, das necessidades sociais do saneamento com a
participao de mdicos e da elite intelectual na discusso. Seria ingenuidade acreditar que o
autor ignoraria ou ficaria avesso participao desses estudos que ganharam escala poltica
nacional e mundial.
Roquette percebe a eugenia como um assunto delicado, pois envolveria paixes
humanas ou interesses particulares e reconhecia as vrias vertentes interpretativas que ela
assumia no pas, inclusive ligadas a higiene.443 Como estabelecemos no primeiro captulo, a
eugenia de Galton no parecia fundamentar o contraste da radicalizao, como se viu com a
eugenia negativa no sculo XX. Deve-se atentar a este ponto para compreendermos o
porqu da simpatia de Roquette-Pinto pelo programa galtoniano derivava, em certa medida,
do carter menos radical que seu fundador estabeleceu na segunda metade do sculo XIX444.
Isso elucidaria a posio do antroplogo brasileiro em relao ao seu posicionamento,
aderindo uma interpretao da eugenia e sua postura sob os temas da raa e da imigrao
que, de certa forma, muitas vezes entrava em coliso com as ideias de Kehl ou do mdico
Miguel Couto (1865-1934). Isto, novamente, remete heterogeneidade que a eugenia poderia
tomar nas interpretaes no Brasil por diferentes intelectuais. Em suma, a viso da eugenia
para Roquette deveria se restringir:
Em seu ponto de vista, a eugenia deveria ser vista como a biologia da herana, a
cincia responsvel por proteger as clulas reprodutoras e aperfeioar as futuras
geraes, enquanto a higiene atuaria para melhorar as condies do meio, agindo
somente sobre a sade fsica dos indivduos, e no sobre os caracteres
hereditrios.445
Sendo assim, o antroplogo percebia o atraso mediante aos fatores que constituam o
retrocesso pautado na condio social, e no apenas identificava os aspectos deterministas
biolgicos como nica suposio para o progresso ou atraso dos indivduos pertencentes
nao. Como nos mostra Souza, a eugenia por ele divulgada afastava-se diametralmente
dos pressupostos que vinculavam o aperfeioamento humano s caractersticas raciais e ao
443
SOUZA, Vanderlei Sebastio de. Em busca do Brasil: Edgard Roquette-Pinto e o retrato antropolgico
brasileiro (1930-1935). op.cit., p. 284-285.
444
Ibid., p. 287.
445
Ibid., p. 290.
131
Este excerto elucidativo para a apresentao dos estudos do autor, corroborando com
sua percepo na diferenciao da influncia do meio social para o determinismo biolgico.
Ao grifar amparo social nos anos de 1933, mostrou em seus estudos que a questo de
raas vai muito alm dos chamados determinismos hereditrios e no bastaria apenas o
talento eugnico, pois as condies sociais que condenaram os considerados disgnicos e
degenerados foram tomadas pelo organismo social e afetaram consequentemente sua
ascenso. Desse modo, entende-se porque os brancos estariam em um patamar superior aos
negros, medida das suas oportunidades dentro do esquema social. Esta realidade vista
nos estudos de Florestan Fernandes, dcadas depois, onde o autor conclui que
existe um dilema racial brasileiro e que ele possui um carter estrutural. Para
enfrent-lo e corrigi-lo, seria preciso mudar a estrutura da distribuio da renda, do
prestgio social e do poder, estabelecendo-se o mnimo de equidade econmica,
social e cultural entre brancos, negros e mulatos.450
446
SOUZA, Vanderlei Sebastio de. As leis da eugenia na antropologia de Edgard Roquette-Pinto. op.cit., p.
219.
447
Ibid., p. 219.
448
ROQUETTE-PINTO, Edgard. Ensaios de anthropologia brasiliana. op.cit., p. 156.
449
Ibid., p. 156-159. [Grifos do autor].
450
FERNANDES, Florestan. O Negro no mundo dos brancos. So Paulo: Difuso Europia do Livro, 1972, p.
105.
132
Para ilustrar este controverso debate, trazemos a fala do professor Oliveira Vianna
(1883-1951)455, que considerava que todas as raas tm a mesma chance de se desenvolver
no Brasil. Vianna categorizou a situao harmnica entre as raas no pas e professou:
Homens de raa branca, homens de raa vermelha, homens de raa negra, homens
mestios dessas trs raas, todos tm aqui as mesmas oportunidades sociais as
mesmas oportunidades polticas. Est, por exemplo, ao alcance de todos, a
propriedade da terra. Francos a todos, os vrios campos do trabalho, desde a lavra da
terra as mais altas profisses. Quanto aos direitos polticos, no figura em nossas
leis, entre as condies da sua investidura, o critrio das raas.456
451
133
457
134
Nessa multiplicidade entre as falas sobre raa e suas funes sociais no Brasil, no
se deve cair no erro de acreditar que Roquette-Pinto vislumbrava a temtica apenas pelo
carter cultural. O antroplogo brasileiro estava inserido nas discusses cientficas do seu
tempo e fazia a sua prpria interpretao da eugenia. Por este aspecto podemos entender o
uso de Charles Davenport e Franz Boas, ao passo que se distanciam no aspecto da viso
humana, complementam-se na anlise particular de Roquette-Pinto. Souza, nesse sentido
destaca o uso que fazia da eugenia mendeliana, ao contrrio do que ocorria entre os adeptos
do racismo cientfico, o possibilitava demonstrar que no havia mal algum no processo de
miscigenao463. Por outro lado, em alguns de seus trabalhos h uma tentativa de explicar a
teoria do branqueamento a partir da tica da moderna antropologia464.
Ao afirmarmos que o antroplogo brasileiro fazia suas interpretaes a partir de
figuras com pensamento antagnico no aspecto racial, como Davenport465 e Boas, isso se deve
ao uso que fazia das ideias, dos argumentos e da autoridade cientfica que estes autores
estrangeiros ostentavam implicava necessariamente em um dilogo seletivo466. Em outras
palavras, Roquette-Pinto selecionava as ideias que comportassem no seu iderio intelectual e
poltico mesmo que fosse necessrio ignorar e escamotear o conjunto ou o resultado dessas
463
SOUZA, Vanderlei Sebastio de. As leis da eugenia na antropologia de Edgard Roquette-Pinto. op.cit., p.
225.
464
Sobre isso, afirma Souza que, Apoiando-se nas anlises dos aspectos antropomtricos, ou mesmo da gentica
mendeliana, argumentava em suas Notas sobre os tipos antropolgicos do Brasil que o cruzamento racial entre
o branco, o negro e o mestio, na maioria dos casos, apresentava uma acentuada tendncia para a raa branca,
especialmente em relao estatura, natureza do cabelo, cor da pele, o ndice nasal e ceflico, o permetro
torcico, entre outros caracteres fsicos (Roquette-Pinto, 1929, p. 129). Em geral, acreditava ele, tipos brancos,
cuja av negra, podem ser perfeitamente caracterizados entre os brancos mediterrneos da Europa, sem que
se perceba a diferena. A aplicao das leis de Mendel sobre o funcionamento da hereditariedade nos
cruzamentos humanos provaria ser um erro crer que os filhos de mulatos sejam sempre mulatos (Ibid., p. 139)
[Grifo do autor]. Em muitos casos, nos cruzamentos entre brancos e negros, ou brancos e mulatos, s um perito
poder descobrir sangue negro, tal seria o retorno perfeito desses mestios ao tipo branco. Alm disso, como a
unio entre o branco e a mulata seriam mais frequentes no Brasil, acreditava ele, haveria uma tendncia ainda
mais acentuada para o nascimento de indivduos leucodermos, conforme classificava os brasilianos brancos
(Ibid). (Cf.: SOUZA, Vanderlei Sebastio de. Em busca do Brasil: Edgard Roquette-Pinto e o retrato
antropolgico brasileiro (1930-1935). op.cit., p. 275).
465
Segundo Olvia Maria Gomes da Cunha, Quanto referncia a Davenport, devia-se s pesquisas que o autor
quela poca empreendia em pases do Caribe, na sua cruzada em prol da criao de uma Federao
Internacional das Organizaes Eugnicas. Encarregado de responder ao questionrio enviado por Davenport,
Roquette se via compelido a reconsiderar as questes relativas ao papel da herana na identificao do
germino-plasma. Embora acreditasse que s os caracteres somticos poderiam ser alterados pelo meio, o
caso brasileiro o fazia colocar em relevo aspectos mais sociais. Ainda que corroborasse os dados obtidos por
Davenport quanto deficiente inteligncia dos mulatos e constituio diferencial dos negros e brancos na
Jamaica, comparando-os com o quadro observado no Brasil, comentava de maneira otimista a proeminncia das
causas sociais sobre as biolgicas (CUNHA, Olvia Maria Gomes da. Inteno e gesto: pessoa, cor e a
produo cotidiana da (in)diferena no Rio de Janeiro, 1927 1942. op.cit., p. 293).
466
SOUZA, Vanderlei Sebastio de. Em busca do Brasil: Edgard Roquette-Pinto e o retrato antropolgico
brasileiro (1930-1935). op.cit., p. 218.
135
467
Ibid., p. 218. Para o historiador podemos dizer que Roquette-Pinto fazia apropriaes seletivas de autores
como Fischer, extraindo conceitos e pressupostos cientficos que pudessem legitimar ou autorizar a sua prpria
atuao cientfica, sem problematizar aspectos polticos mais emblemticos (Ibid., p. 227).
468
Para Souza: Importava extrair destes autores mais a autoridade cientfica que emanavam de seus trabalhos
do que os pressupostos que defendiam. Apoiar-se sobre a autoridade destes autores significava legitimar, entre
seus pares brasileiros, o prprio trabalho cientfico que desenvolviam, uma vez que tanto Fischer quanto
Davenport eram figuras das mais proeminentes na antropologia internacional. (Ibid., p.235).
469
Souza relata que vrios debates ocorreram e agregaram uma diviso dos intelectuais acerca da imigrao. A
exemplo, o autor cita a conferncia de Azevedo Amaral intitulada o problema eugnico da imigrao que
acarretou em um amplo debate onde se podia perceber notoriamente as divises contra e a favor s
pressuposies de quais seriam os imigrantes ideais. Enquanto uma orientao arianista era protelada por
Renato Kehl, Miguel Couto, Xavier de Oliveira e Oscar Fontenele, do outro lado contra este discurso estavam as
lideranas de Roquette-Pinto, Belisrio Penna, Levi Carneiro, Fres da Fonseca e Fernando Magalhes. (Cf.:
SOUZA, Vanderlei Sebastio de. As leis da eugenia na antropologia de Edgard Roquette-Pinto. op.cit., p.
226).
470
STEPAN, Nancy L. A hora da eugenia: raa gnero e nao na Amrica Latina. op.cit., p. 172.
471
Outro importante trabalho que diz respeito eugenia no Brasil e refere-se participao de ambos no governo
Vargas : STEPAN, Nancy Lays. Eugenia no Brasil, 1917-1940. op.cit., p. 372-373. O texto foi publicado
originalmente em: STEPAN, Nancy Lays. Eugenics in Brazil, 1917-1940. In: ADAMS, Mark B (org.). The
Wellborn science: eugenics in Germany, France, Brazil and Russia. New York: Oxford University Press, 1990,
p. 139. O trabalho conta com outras pesquisas da temtica da eugenia organizadas por Mark Adams.
136
Este item em especial reflete o quanto a pluralidade das convices dos participantes
com relao raa tomou corpo. No documento que contm 31 itens, destacamos este pela
dualidade que expe as argumentaes, em vista ao que analisamos no acirrado e camalenico
sentido do debate singular da eugenia no Brasil. Estudando o item, podemos perceber que o
Congresso reconheceu que havia diferenas do que se quer como imigrante para o Brasil
algo difundido por Kehl em suas preferncias do europeu ao asitico ou negro, por
exemplo.475 Porm, ao julgar que o melhor elemento para identificar o imigrante seriam as
condies individuais de cada um entendemos que a discusso flui no consenso da linha de
Roquette-Pinto da no generalizao do grupo de indivduos com base no elemento racial.
Apesar da hereditariedade ser uma cincia a ser considerada no discurso da "evoluo das
raas humanas", no havia unanimidade quando o mote eram as restries com base nos tipos
raciais. Pelo contrrio, as discordncias e aprovaes tinham os argumentos cientficos dos
mais variados.
A considerao mais equitativa do documento diz respeito ao aprimoramento do
homem, o que dialoga com as duas correntes que estabelecemos, pois apesar de um
movimento mais radical por parte de Kehl e uma interpretao roquetteana mais especfica do
472
LESSER, Jeffrey. Um Brasil melhor. Histria, Cincias, Sade Manguinhos. Rio de Janeiro, v. 21, n. 1,
2014, p. 182.
473
Ibid.
474
KEHL, Renato. Aparas eugnicas: Sexo e Civilizao. op.cit., p. 260 [Grifos do autor]. Este documento
compe o referido livro com as principais resolues do Congresso.
475
O item 22 diz: O primeiro Congresso de Eugenia Brasileiro aconselha ao governo facilite o mais que for
possvel imigrao europeia para o Nordeste Brasileiro, preferentemente, de colonos agricultores (Ibid., p.
262).
137
meio, ambos aceitaram os pressupostos de que seria necessria a melhoria do povo e que o
Estado deve se esforar para este fim. Os itens 12 e 13 se referem diretamente aos doentes
mentais e criminosos, nos itens 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, ao alcoolismo. H um
apontamento por parte da ata delimitando quem deveria se evitar. Porm, quando se referem
imigrao e seus descontentamentos h apenas uma classificao subentendida como
muito desejveis, desejveis ou indesejveis. De certa forma, no havia uma nomenclatura
para quem so eles, ao menos nestes itens. Contudo, o item 22 aconselha a imigrao
europeia.
Independente das imprecises do documento, ele estabelece a perspectiva de seus
componentes em torno da ambiguidade da questo racial, que ao passo que aconselhavam
nitidamente a vinda do europeu, desaconselhavam, sem citar naes ou etnias, os
indesejveis, mas entendem a necessidade dos olhares particulares. Esse jogo duplo que
recortamos do processo eugnico entendido por Souza sendo a forma como a eugenia no
Brasil se caracterizou por seus aspectos polissmicos, por sua capacidade camalenica de
transitar entre as mais diversas tendncias do pensamento social e cientfico476.
Destaca-se aqui a importncia atribuda a eugenia no meio poltico fazendo parte de
propostas e regulamentaes de leis. Assim, a eugenia estabelece o convvio dentro da
sociedade, o que a fez ser pensada mediante as suas medidas e questionamentos. Neste
contingente poltico, possvel estabelecer que os dilogos lembrados em 1929 sobre os
problemas imigratrios que analisamos at aqui teriam reflexos nos anos porvindouros da
Assemblia Constituinte de 1933-1934, que instituiu uma lei de imigrao, em parte, aos
moldes eugnicos. Nesta lei, explica Stepan, alm das cotas raciais que eram vislumbradas
pelos eugenistas, comprovaes de carter econmico e testes de adequao fizeram para das
iniciativas do poder pblico para este controle que perdurou at 1937.477
A entrada do Governo Vargas e a crise que decorria do Crash de 1929478 deram uma
reviravolta no contexto brasileiro. A revoluo de 1930 apresentou um carter estrutural de
rompimento com as barreiras da oligarquia e a projeo de uma expectativa de um novo
projeto para o pas. Neste caso, a revoluo trouxe a quebra dos obstculos liberais que
estariam desviando o Brasil do seu curso evolutivo como nao que, somada crise de 1929,
476
SOUZA, Vanderlei Sebastio de. As leis da eugenia na antropologia de Edgard Roquette-Pinto. op.cit., p.
233.
477
STEPAN, Nancy L. A hora da eugenia: raa gnero e nao na Amrica Latina. op.cit., p. 176.
478
Acerca dos acontecimentos de 1929, Gomes diz que de maneira geral, conforme os exemplos europeu e
norte-americano demonstraram, aps a Crise de 1929 ocorreu um afastamento, mais ou menos radical, do
paradigma clssico de Estado Liberal. (GOMES, ngela de Castro. Autoritarismo e corporativismo no Brasil: o
legado de Vargas. In: BASTOS, Pedro Paulo Zahluth; FONSECA, Pedro Cezar Dutra. (orgs.). A era Vargas:
Desenvolvimento, economia e sociedade. So Paulo: Editora UNESP, 2012, p. 73).
138
agravou ainda mais os sistemas econmicos e polticos do pas. ngela de Castro Gomes
aponta que este Estado Liberal era inconsciente e inconsistente e s gerava balbrdia. Em
nosso pas tnhamos um territrio imenso e rico; um povo cheio de potencialidades, mas no
tnhamos governo479. Em tese, a revoluo romperia este sistema inerte de liberalismo
proporcionando ao Estado novas possibilidades de emergir no cenrio econmico, poltico e
social, construindo uma base slida que viabilizasse um projeto progressista para a nao.
Podemos rapidamente citar como arqutipo desse nterim econmico-poltico aliado ao
pensamento racial, a fala de Azevedo Amaral (1881-1942)480, formado em medicina e
jornalista e escritor de O problema eugnico da imigrao, de 1929. O aspecto racial
biolgico congregado aos processos econmicos justificava para ele a viso enferma do
Brasil. Nesta quebra do liberalismo prope uma viso autoritria da poltica que poderia
gerenciar melhor a nao, isto , com as tendncias que em escala global via-se
amadurecendo, como o nazismo e o fascismo. No h de se surpreender como as posies
autoritrias481 insurgiam no imaginrio de alguns intelectuais mais radicais que pensavam
determinismos e evolucionismos como fontes prodigiosas de consertar a nao. Este
pensamento evolucionista de Azevedo em prol da cristalizao de um desenvolvimento
industrial aliava-se viso do Estado autoritrio e sua administrao. Segundo Lcia Lippi
Oliveira, transparecia a tendncia pelo anglo-saxo, e isto foi expresso por Amaral como
povo ideal para os projetos da nao. Ainda, para ele, os anglo-saxes teriam um pendor
inato para aceitar sem relutncia o comando de um chefe482.
No entanto, Azevedo Amaral teve uma firme oposio no Primeiro Congresso
Brasileiro de Eugenia acerca de suas propostas da imigrao exclusiva da raa branca. Mas
isto no significou um abandono do pensamento do autor, pois como exps Endrica Geraldo,
479
GOMES, ngela de Castro. O redescobrimento do Brasil. In: GOMES, ngela M. C; OLIVEIRA, Lcia. L;
VELOSSO, Mnica. P. (orgs.). Estado Novo: ideologia e Poder. Rio de Janeiro: Zahar, 1982, p. 114.
480
A escolha de Azevedo Amaral no foi aleatria. Acreditamos que sua formao mdica e suas posies
jornalsticas contriburam para a propagao do ideal eugnico na Era Vargas. Por isso, a identificao deste
autor em nosso trabalho possui os signos da acepo eugnica na intelectualidade aliada a proposies que
coadunam de forma voraz com a poltica. Deixamos claro no somente a participao de Renato Kehl no
pensamento eugnico brasileiro, mas de tantos outros intelectuais.
481
Neste caso, Azevedo Amaral, embora retome o conceito de autoridade, diferentemente do pensamento
conservador, prope a centralizao do poder. S o governo soberano; portanto, ele que deve corporificar toda
a autoridade. (OLIVEIRA, Lcia Lippi. Autoridade e poltica: o pensamento de Azevedo Amaral. In: GOMES,
ngela M. C; OLIVEIRA, Lcia. L; VELOSSO, Mnica. P. (orgs.). Estado Novo: ideologia e Poder. Rio de
Janeiro: Zahar, 1982, p. 56). Ainda, para ele, o que legitima um governo autoritrio : - desenvolvimento do
potencial econmico e fortalecimento da segurana nacional; - robustecimento dos vnculos unificadores da
nacionalidade; - salvao da soberania e projeo internacional. (OLIVEIRA, Lcia Lippi. Autoridade e
poltica: o pensamento de Azevedo Amaral: ideologia e Poder. op.cit., p. 61).
482
AVEVEDO, 1938, apud OLIVEIRA, Lcia Lippi. Autoridade e poltica: o pensamento de Azevedo Amaral:
ideologia e Poder. op.cit., p. 66.
139
483
GERALDO, Endrica. O perigo aliengena: poltica imigratria e pensamento racial no governo Vargas
(1930-1945). op.cit., p. 58-59.
484
Ibid., p. 61.
485
Cabe a nota: Alm disso, as teorias eugenistas puderam desfrutar ainda de mais um meio de divulgao
oficial em relao questo imigratria: a Revista de imigrao e colonizao. Em 1938 havia sido criado o
Conselho de Imigrao e Colonizao, um rgo deliberativo e consultivo que estava subordinado diretamente
Presidncia da Repblica. A partir de 1940, o Conselho comeou a publicar a Revista de imigrao e
colonizao, a qual continuou aps o final do Governo Vargas com artigos que ou foram produzidos durante tal
governo, ou que mostram ainda a permanncia dessas concepes e debates. (Ibid., p. 42).
486
Ibid., p. 15.
487
Ibid., p. 22-23,
140
debates e propostas de restries na legislao imigratria, o que se tornou cada vez mais
explcito a partir de 1930488.
Aps o Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia e durante a dcada de 1930 uma
ateno cada vez maior se dava ao tema raa e imigrao. Geraldo analisou as fontes do
Boletim do Ministrio do Trabalho, Indstria e Comrcio, e constatou, por exemplo, que um
funcionrio do Departamento Nacional do Povoamento, chamado Jos Magarinos, possua
uma preocupao mdico-legal e eugnica com os trabalhadores que provinham da imigrao
no final dos anos de 1934: o fenmeno racial impera; a antropologia se nos depara como
cincia mestra; a eugenia no seu conjunto de trplice higiene e a sociologia como padro para
investigar processos que nos ponham em pleno descortino para a devida seleo.489 E mais
adiante complementa:
Sob o ponto de vista mdico-sociolgico, a deduo fcil, pois que o mau
elemento s nos prejudicar, e porque, mesmo admitido, s seria de conceber-se o
homem eugnico dentro da concepo: fsica, psquica e moral.
Ser absurdo que entre ns penetre elemento que no se disponha ao trabalho e que,
alm disso, seja portador de enfermidades transmissveis ou de estados mrbidos
que inutilizem o prprio indivduo.490
Ibid., p. 23.
MAGARINUS, 1934 apud GERALDO, Endrica. O perigo aliengena: poltica imigratria e pensamento
racial no governo Vargas (1930-1945). op.cit., p. 34.
490
Ibid., p. 35.
491
KOIFMAN, Fbio. Imigrante ideal: o Ministrio da Justia e a entrada de estrangeiros no Brasil (1941-1945).
op.cit., p. 28. O estudo de Koifman centra-se nos anos de 1941 a 1945, ou seja, no Estado Novo. Entretanto, cabe
ressaltar sua importncia de como o pensamento eugnico perdurou na seleo de imigrantes durante toda a Era
Vargas. As digresses feitas pelo autor no incio dos anos de 1930 ajudam-nos a fomentar a viso da eugenia
durante este processo.
492
Ibid., p. 43-44.
489
141
trabalho493. Ainda para Geraldo, a presena desse tipo de argumento no Boletim evidencia
o alcance que as concepes mdicas e eugnicas exerceram no debate presente no Ministrio
do Trabalho494.
Por sua vez, o Chefe do Governo Provisrio, salientava que o argumento de que a
inferioridade do trabalhador nacional em relao ao estrangeiro era originada no em seu
carter mestio, mas sim resultado de problemas educacionais, de saneamento e de sade
pblica495. Portanto, notamos que o pensamento do seu governo ainda abria caminhos para
vislumbrar aspectos da eugenia e da sade, mesmo no pertencendo exclusivamente a essa
temtica, pois havia os conflitos que eram inerentes relao dos trabalhadores, como as
concorrncias trabalhistas, valorizao do trabalhador nacional ou mesmo a Segurana
Nacional, por exemplo.496
Vargas acreditava que deveria haver controle na imigrao. Porm, mesmo com a
crena de que o problema no girava em torno do mestio, no significou um cessar do
discurso racial perante aqueles intelectuais que pensavam o problema da imigrao no Brasil.
O trabalhador foi uma preocupao da Era Vargas e a mo de obra proveniente da imigrao
fazia parte das inquietaes para a insero tanto nacional como nas dinmicas das relaes
trabalhistas. Eram diversos os debates sobre como deveriam conduzir a imigrao. Enquanto
homens da poltica, como Xavier de Oliveira, teciam fortes crticas aos japoneses, outros
como Abel Chermont, da bancada do Par, defendiam sua imigrao como indivduos
assimilveis.497
Dessa forma, indagaes envolvendo raa e imigraes perduraram por todo o
contexto do regime varguista por diferentes enfoques. Os argumentos eugenistas eram
493
GERALDO, Endrica. O perigo aliengena: poltica imigratria e pensamento racial no governo Vargas
(1930-1945). op.cit., p. 35.
494
Ibid., p. 37.
495
Ibid., p. 66; RAMOS, Jair Souza. Como classificar os indesejveis? Tenses e convergncias entre raa, etnia
e nacionalidade na poltica de imigrao das dcadas de 1920 e 1930. op.cit., p. 200.
496
Contudo, neste debate, Endrica pontua que Em 1934, o Boletim do Ministrio do Trabalho, Indstria e
Comrcio contribuiu para difundir as justificativas dessas medidas, associando a imigrao ameaa de
desemprego e apresentando uma nova definio do termo imigrante: todo o estrangeiro que desejasse
permanecer por mais de trinta dias com intuito de exercer a sua atividade em qualquer profisso lcita e
lucrativa que lhe assegure a subsistncia prpria e a dos que vivem sob sua dependncia (GERALDO, Endrica.
O perigo aliengena: poltica imigratria e pensamento racial no governo Vargas (1930-1945). op.cit., p. 69).
Isto ser mais frequente com o incio do Estado Novo, pois para a autora: De fato, a campanha contra a
imigrao japonesa pde, pelo menos at o incio do Estado Novo, reunir argumentos principalmente de teor
racial e poltico, o que at ento pouco atingia imigrantes de origem alem e italiana. Porm, o incio da Segunda
Guerra modificou essa situao, e estas trs nacionalidades, mas especialmente os estrangeiros de origem
japonesa e alem, passaram a ser investigados e analisados no tanto a partir de qualquer hierarquia racial, mas
pela situao poltica e militar de suas naes de origem e, muito especialmente, pelo que foi compreendido
como um alto grau de organizao e desenvolvimento de seus ncleos coloniais e respectivas instituies e
associaes (Ibid., p. 164-165).
497
Ibid., p. 98.
142
No estudo de Koifman verifica-se a atuao de Francisco Campos, que adepto s ideias eugnicas,
principalmente provindas da atuao dos Estados Unidos com relao imigrao, apontou em um parecer para
Getlio Vargas os problemas que aquele pas enfrentara com a questo. Campos, que foi ministro da Justia e
Negcios Interiores, afirmou que: No Paran, em Santa Catarina, e no Rio Grande do Sul, o afluxo de
aliengenas foi, igualmente, surpreendente, e tanto maior o perigo quanto mais prximos se encontram do
territrio estrangeiro e quanto mais poderoso se mostrou, nessas riqussimas zonas o processo de enquistamento
das colnias estrangeiras (KOIFMAN, Fbio. Imigrante ideal: o Ministrio da Justia e a entrada de
estrangeiros no Brasil (1941-1945). op.cit., p. 105). No entanto, Campos no adaptou as ideias eugenistas
segundo a realidade nacional que ele estava inserido. Mais ainda, essas ideias eram para ele um argumento para a
discusso e no o ponto crucial, outros elementos como a desnacionalizao, demografia, crises econmicas
tambm faziam parte.
499
KOIFMAN, Fbio. Imigrante ideal: o Ministrio da Justia e a entrada de estrangeiros no Brasil (1941-1945).
op.cit., p. 93.
500
GERALDO, Endrica. O perigo aliengena: poltica imigratria e pensamento racial no governo Vargas
(1930-1945). op.cit., p. 219.
501
Ibid., p. 217.
502
SEYFERETH, Giralda. Roquette-Pinto e o debate sobre raa e imigrao no Brasil. As leis da eugenia na
antropologia de Edgard Roquette-Pinto. In: LIMA, Nsia Trindade; S, Dominichi Miranda de. (orgs.).
Antropologia Brasiliana: cincia e educao na obra de Edgard Roquette-Pinto. Belo Horizonte: Editora UFMG,
2008, p. 164-165.
143
Contudo, como mostra o autor, o debate era to intenso e com tantas diversificaes de
compreenso da imigrao que nem mesmo o critrio de nacionalidade, base da classificao
de populaes praticadas pelos estados nacionais, era lquido e cristalino, o que dir os
critrios de raa e etnia506. Mais ainda, percebemos essa liquidez a partir dos argumentos de
agentes influentes na dcada de 1930, com Roquette-Pinto, Oliveira Vianna, Miguel Couto,
Azevedo Amaral, Renato Kehl e, porque no, do prprio Getlio Vargas. Os argumentos de
Renato Kehl e do jurista Julio de Revordo, por exemplo, so valiosos para visualizarmos os
diferentes discursos que tomavam rumo naqueles momentos.
Talvez Kehl esperasse que a simples propaganda eugnica fosse suficiente para
conscientizar a todos, mas ao passo que procurava novas estratgias impositrias, como das
leis de exames pr-nupciais e restries imigrao, notamos que o esforo propagandista
no atingia seus objetivos, principalmente sobre a seleo racial.
503
Ibid., p. 157.
RAMOS, Jair Souza. Como classificar os indesejveis? Tenses e convergncias entre raa, etnia e
nacionalidade na poltica de imigrao das dcadas de 1920 e 1930. op.cit., p. 194-195. Sobre esse ponto ele
afirma que nos debates sobre imigrao e nacionalidade pouco a pouco classificao racial deu lugar, pouco a
pouco, classificao por nacionalidades. Esse deslocamento, que culmina com a adorao de um mecanismo de
restrio imigrao na forma de quotas por nacionalidade, pode ser explicado, em parte, pelo fato de que, como
vimos, a nacionalidade era a forma fundamental de classificao de populaes no direito internacional e poltica
imigratria brasileira (Ibid., p.195).
505
Ibid., p. 195.
506
Ibid., p. 203. Para o autor: ainda que os diferentes princpios de classificao apaream confundidos
frequentemente nos discursos dos intelectuais brasileiros, importante fazer o esforo analtico de desmembrlos e recuperar seus significados e planos de atuao especficos, sem o qual acabamos por enxergar todos os
princpios de classificao e mecanismos de ao como expresso uniforme de doutrinas racialistas. (Ibid., p.
206.)
504
144
507
Ibid., p. 23.
SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raa e nacionalidade no pensamento brasileiro. op.cit., p. 212;
RAMOS, Jair Souza. O ponto da mistura: raa, imigrao e nao em um debate na dcada de 20. Dissertao
de Mestrado. Rio de Janeiro: UFRJ, 1994, p. 142; Cf.: MOTA, Andr. Quem bom j nasce feito: sanitarismo e
eugenia no Brasil. op.cit., p. 73.
508
145
a limitao da raa preta a uma cota anual de tolerncia a esta imigrao.509 Dessa forma, a
tentativa de restringir a cor negra - que para Fidlis Reis representava um elemento tnico
inassimilvel -, concatena com as formulaes dos debates raciais aliados ao poder pblico
se fazendo valer nas decises polticas e nos discursos sociais.
Ramos discutiu em sua dissertao os pontos entre raa e imigrao na dcada de 20
e estudou o caso de Fidlis Reis. O autor demonstrou as preocupaes com as imigraes de
raas indesejveis, como a negra:
Foram tais preocupaes que, concretizadas num conjunto de critrios de seleo
definiram tanto a imagem do imigrante ideal quanto os temores em relao a outros
tipos de imigrantes. Vale dizer que, tomando o imigrante como um "ingrediente"
regenerador na mistura de que deveria emergir um povo brasileiro racialmente mais
puro, as elites republicanas buscaram selecionar os tipos possveis de imigrantes
segundo pelo menos trs critrios, quais sejam: o grau de eugenia da raa imigrada,
sua disponibilidade assimilao e seu estado civilizatrio.510
Ibid., p. 213.
RAMOS, Jair Souza. O ponto da mistura: raa, imigrao e nao em um debate na dcada de 20. op.cit., p.
47 [Grifo do autor].
511
MOTA, Andr. Quem bom j nasce feito: sanitarismo e eugenia no Brasil. op.cit., p. 73.
512
KEHL, Renato. Porque sou eugenista? 20 anos de campanha eugnica (1917-1937). op.cit., p. 82.
513
KEHL, Renato. Lies de Eugenia. op.cit., p. 186.
510
146
ameaa nao a imigrao negra e asitica: o Brasil que j um melting pot de raas, ser
dominado pelo elemento xanto-negrides, se uma poltica imigratria enrgica no vier, com
presteza, por cobro a tal ameaa514. Nesta frase, percebe-se o tom negativista e quase um
apelo s leis que buscavam impedir a vinda desses indivduos para dentro da nao.
Para ilustrarmos que a questo envolve a raa e cor, Kehl demonstrou a recepo de
imigrantes indesejveis para os Estados Unidos pas que se tornou para alguns eugenistas
um exemplo no trato com o imigrante - e lamenta a imigrao em massa de outras raas:
[...] os verdadeiros americanos originrios das famlias puritanas, que constituem a
nata dos elementos nobres da Amrica do Norte lamentam, profundamente, a
situao racial do pas, que poderia ser hoje habitada pela mais nobre estirpe nrdica
existente na terra depois da Escandinvia.515
O problema racial nos Estados Unidos foi um dos motivos que levou ao projeto de
esterilizao de Davenport e, consequentemente, segregao racial que situou o negro como
inferior ao branco. Pode-se compreender a citao desse modelo como a preocupao de
Kehl com o que aconteceria ao Brasil com a flexibilidade da entrada de mais indesejveis
no pas. As concepes das polticas referentes imigrao estavam sujeitas as interpretaes
das teorias raciais, inclusive da eugenia. Estas teorias que angariaram a legitimidade das
cincias seriam a prova emprica de que as polticas pblicas poderiam resolver os
problemas sociais da nao e elev-la ao grau de superioridade.
Diversos congressos apresentaram em suas pautas o problema da imigrao
relacionado raa e suas possveis solues. Stepan relata que nesses congressos, o tema da
eugenia e imigrao era controverso e, segundo a autora, os participantes buscavam uma
legislao nacional de imigrao que restringisse a admisso no Brasil aos indivduos
considerados eugenicamente sadios, com base em algum tipo de exame mdico516. Os
discursos que eram inferidos na intelectualidade e na poltica estavam essencialmente
atrelados a sociedade e refletiam no senso comum, que dinamizava as relaes raciais no
organismo social principalmente quando relacionados vinda de imigrantes negros, orientais
e outros que em determinados momentos representassem algum tipo de perigo.
Para isso, basta-nos ater observao de Stepan, da qual os cientistas so elementos da
sociedade e fazem parte dos seus valores empregados e do contexto em que vivem.517 Eles
esto presos s suas prprias vises de mundo, que legitimam ou no suas aes e
514
147
interpretaes das suas reas de atuao quando estas esto voltadas para o meio social.
Sujeitos como Kehl, que estariam vinculados s cincias e poltica, estabeleceram diretrizes
que condiziam com o pensamento eugnico baseado na estrutura do sistema poltico da qual
faziam parte. Isto , para eugenistas legitimados com a cincia que tinha corpo presente nas
discusses, parecia normal propor reformas que refletissem ateno nas bases da eugenia e da
hereditariedade.
Em contrapartida, Julio de Revordo, um advogado paulista, possua uma viso
diferenciada no trato da imigrao. Nosso referencial, seu livro Immigrao, de 1934, analisa
por meio da viso jurdica os entraves em que o sentido da imigrao vinha sendo
estabelecida e discordando daqueles que acreditavam que a imigrao deveria ser coibida
como expressada nas leis de quotas de 1934. Pelo contrrio, ele acreditava que nossos
governos deveriam mesmo promover todas as facilidades para a organizao de companhias
de imigrao e colonizao, nos moldes das que j existem em S. Paulo518. O autor diz ainda
que as imigraes internacionais sofrem, na hora presente, uma verdadeira guerra legislativa,
no s por parte dos pases de imigrao, onde se intensifica uma poltica de seleo social,
como dos pases de emigrao519. Preocupado com a agricultura admitia que uma coibio
pudesse prejudicar a economia agrcola nacional.520
O segundo captulo, intitulado As medidas restritivas dos Estados Unidos, condiz um
esforo em debater o prprio histrico dos motivos restritivos de imigrantes nos Estados
Unidos que, no toa, muito se fez presente na leitura da imigrao no Brasil. A lei de 26 de
maio de 1924 - que aparece em nosso texto -, foi um momento importante para a compreenso
das quotas raciais e sua influncia legislativa para ambos os pases.
Apesar de desde a segunda metade do sculo XIX vigorasse uma prtica de controle
de alguns imigrantes que apresentassem alguma ameaa para os trabalhadores locais, foi com
a lei de 1924 que um determinado grupo que at ento no pertencia a Asiatic Barred Zone
foi incorporado: os japoneses. Sendo assim, com relao a estes, aquela clusula em que
ficavam formalmente proibidos de penetrar no pas os imigrantes aos quais no pudesse ser
outorgada a cidadania americana!521. Agora, uma nao que at ento contribua com um
contingente para a imigrao dos Estados Unidos, pela nova lei de 1924, estariam sujeitos a
uma quota especfica para a entrada no pas.
518
148
GERALDO, Endrica. O perigo aliengena: poltica imigratria e pensamento racial no governo Vargas
(1930-1945). op.cit., p. 16.
523
As comparaes do sistema imigratrio e raa entre Brasil e Estados Unidos provinham desde o incio do
sculo XX. Pode-se citar, por exemplo, na voz de Joo Batista Lacerda que: Enquanto que os portugueses no
149
hesitaram em misturar-se aos negros, com riscos de produzir filhos mestios, os anglo-saxes, zelosos da sua
pureza da sua linhagem, guardaram o negro distncia, e somente o usaram como instrumento de trabalho.
rucioso e digno de nota que nem a passagem do tempo nem qualquer outro fator foi capaz de alterar essa
primeira atitude dos norte-americanos, que mantm a raa negra separada da branca at os nossos dias. O Brasil
agiu diversamente. Os brancos estabeleceram uma raa de mestios, que se encontra, hoje, espalhada por uma
vasta extenso de seu territrio (SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raa e nacionalidade no pensamento
brasileiro. op.cit., p. 86-87).
524
RAMOS, Jair Souza. Como classificar os indesejveis? Tenses e convergncias entre raa, etnia e
nacionalidade na poltica de imigrao das dcadas de 1920 e 1930. op.cit., p. 196.
525
REVOREDO, Julio. Immigrao. op.cit., p. 47.
526
Ibid., p. 48-49. Vale apontar que Revordo cita Immigrao e Eugenia, de 1933 de Azevedo Amaral. O autor
o considera um especialista no tema.
527
Ibid., p. 49.
150
por provirem de mestiagens528. Nesta vertente, nota que tem florescido, ultimamente, nos
Estados Unidos, uma vasta literatura incentivando os preconceitos tnicos. Madison Grant,
com seu, The Passing of the Great Race, Lothrop Stoddard com seu The Revolt Against
Civilization529.
A obra de Grant, por exemplo, era apologtica no sentido da restrio racial da
imigrao. Souza, a respeito deste comenta: O Estado norte-americano deveria reformar
amplamente a sua poltica de imigrao, promovendo a entrada da raa nrdica e impondo
barreiras aos grupos indesejveis, inclusive aqueles vindos da Europa central, do leste e do
sul530. Para termos uma ideia da recepo do livro naquele pas e no mundo, as vendas nos
Estados Unidos chegaram 1,6 milhes. Lembremos que o prprio Adolf Hitler enviou uma
carta a Grant agradecendo-o e se referindo a obra como minha Bblia531.
Merece destaque a crtica de Revordo ao fato do Brasil ter se inspirado no movimento
de restrio dos Estados Unidos para formular sua constituio a respeito do tema. Segundo
ele, "fizeram-no, porm, infelizmente, sem um conhecimento amadurecido da situao real
dos Estados Unidos, sem um indispensvel cotejo do habitat americano com o brasileiro"532.
O jurista parece perceber as peculiaridades entre as duas naes tornando invivel apenas
utilizar do mesmo elemento jurdico de restrio.
Aqui cabe uma anlise fundamental na leitura de Immigrao no que concerne a sua
ideia de raa. Ao discordar da forma como os Estados Unidos tratam da questo racial, o
autor interpela no seu discurso traos visveis da crena de que o Brasil se difere daquele pas,
pois aqui vivermos em uma democracia racial.
Primeiramente traz um excerto de Roquette-Pinto, onde cita que para o antroplogo o
problema das raas no existe no Brasil. Negros, ndios, mestios ou brancos todos gozam
mais ou menos das mesmas consideraes sociais que s dependem do grau de instruo ou
de riqueza533. Logo em seguida faz referncia ao argentino Emilio Frers (1854-1923), e dessa
vez afirma que diz que a inexistncia de preconceitos raciais, na Argentina e no Brasil, tem
as suas origens no fato de todas as populaes ribeirinhas do Mediterrneo, donde provm os
nossos avs espanhis, italianos e lusos, terem muita mescla de sangue africano. Revordo
528
Ibid., p. 54. Entre outros motivos que levaram s restries a imigrao: Imposies das Trade Unions
(associaes de operrios americanos); Saturao de imigrantes; Decrscimo de natalidade nas famlias 100%
americanas; preconceito de raa; crise de assimilao (Ibid., p. 50).
529
Ibid., p. 58.
530
SOUZA, Vanderlei Sebastio de. Em busca do Brasil: Edgard Roquette-Pinto e o retrato antropolgico
brasileiro (1930-1935). op.cit., p. 241.
531
Ibid., p. 241-242.
532
REVOREDO, Julio. Immigrao. op.cit., p. 60.
533
Ibid., p. 67.
151
parece crer na alternativa de que no Brasil no havia preconceito racial como nos Estados
Unidos e que aqui, o povo representaria uma unidade racial solidria:
A questo da existncia ou inexistncia de preconceitos raciais fundamental no
conceito de assimilao. Pretender transplantar para o Brasil, como por exemplo, ou
modelo, o que existe nos Estados Unidos, a respeito dessa matria, constitui
verdadeiro absurdo. Os americanos, em consequncia de seus preconceitos, sofrem
uma verdadeira crise de assimilao. No nosso pas, onde tais preconceitos no
existem, a assimilao do aliengena processa-se sem grandes dificuldades. E o
problema j estaria muito prximo de uma soluo, se no fora a indiferena, a
inrcia de nossos governos.534
Este ltimo excerto conclui o trnsito desigual na anlise da matria jurdica no que
tange restrio da imigrao, por uma abordagem da comparao racial e de assimilao
entre Brasil e Estados Unidos. A posio do autor, para descontextualizar a recepo aos
moldes estadunidenses em nossa constituio, projetada por uma reflexo de igualdade
racial no pas. Citando Roquette-Pinto, inclusive, parece compreender de forma equivocada
as consideraes do antroplogo. Quando Roquette diz que no havia problemas de raas
no Brasil, seria pelo fato daqueles que utilizavam a questo racial para afirmar o atraso
nacional. Na verdade, o antroplogo brasileiro salienta que o problema no se concentraria em
raas, mas muitas vezes na estrutura social.535 Independente disso percebe-se a forte
influencia do antroplogo na argumentao de Revordo. Ironicamente, no final deste item
ele cita Oliveira Vianna para concluir que o exemplo americano no nos serve em suas
concluses que o meio americano no igual ao nosso536. Apesar das possveis
contradies do exposto, Revordo apresenta uma forma de invalidar as restries imigrao
no Brasil com bases nas quotas mediante a uma anlise das particularidades do nosso meio
social. Ele acaba por transitar em autores que mesmo pensado de maneira diferente, ajudam a
fomentar a sua viso de raas no Brasil.
Em muitos pontos, Revordo se apoiar na interpretao de Roquette-Pinto. A forte
influncia da obra Ensaios de anthropologia brasiliana se fez presente em vrios momentos
para promover sua posio em relao imigrao. Em uma delas, fez referncia ao autor
desta obra como uma autoridade de mestre antropologista indiscutvel e reproduz sua opinio
de que a Antropologia prova que o homem, no Brasil, precisa ser educado e no
534
152
537
Ibid., p. 185.
Ibid., p. 113.
539
Ibid., p. 136.
540
Ibid., p. 166-167. Em seguida, o autor chega a citar os assrios e chineses como indesejveis: Nenhum
empecilho de ordem jurdica existe para que se chiba o acesso ao territrio brasileiro de levas emigratrias
provenientes de povos de civilizao inferior a nossa, Como os assrios, ou de outros que por motivos diversos,
representam uma corrente imigratria indesejvel, como os chineses (Ibid., p. 167).
538
153
154
1933, podemos notar a nsia de Miguel Couto, ao falar da raa, prestigiando o novo
integrante da Academia, Renato Kehl:
O SNR. PRESIDENTE Meu caro colega.
A academia j h muito tempo vos esperava. Havia aqui uma cadeira no vaga, mas
vazia, a pedir quem a preenchesse. A academia precisava de uma autoridade como a
do meu nobre colega, em assumpto da maior transcendncia, que diz respeito com a
prpria nacionalidade, com a nossa gente e a nossa raa. Ou havemos de melhorar
rapidamente, ou havemos de cair vencidos pelos mais fortes e mais hbeis. Os fatos
de ordem social subordinam-se a leis to fatais com os de ordem fsica. Um dia isso
aconteceria seno tivssemos sempre alerta homens como Renato Kehl.541
Discurso de posse do novo acadmico do novo acadmico, em 20 de abril de 1933. Cf.: KEHL, Renato.
Poltica eugnica. op.cit..
542
LWY, Ilana. Vrus, mosquitos e modernidade: a febre amarela no Brasil entre cincia e poltica. op.cit., p.
173-175.
543
BENCHIMOL, Jaime Larry. Febre amarela: a doena e a vacina, uma histria inacabada. Rio de Janeiro:
Editora FIOCRUZ, 2001, p. 162
155
544
REY, Lus. Um sculo de experincia no controle da ancilostomase. Rev. Soc. Bras. Med. Trop. vol. 34, n. 1,
2001, p. 62.
545
DE LUCA, Tania Regina. A Revista do Brasil: um diagnstico para a (N)ao. So Paulo, Fundao Editora
da UNESP, 1999, p. 219.
546
GERALDO, Endrica. O perigo aliengena: poltica imigratria e pensamento racial no governo Vargas
(1930-1945). op.cit., p. 73.
547
Ibid., p. 74.
156
Miguel Couto fez uso de argumentos dos debates eugenistas para sustentar sua
crtica imigrao japonesa. Por um lado, procurava demonstrar que esses
imigrantes no poderiam contribuir para o desejado branqueamento. Por outro,
porm, fez uso de um outro elemento que passou a ganhar crescente importncia: a
questo do imperialismo e expansionismo japons como ameaa segurana
nacional.548
Em um tom sarcstico, ironiza o fato de Xavier de Oliveira lutar contra tipos raciais de
imigrantes, mas que no nenhum louro Adonis, de tez alva e cabelos encaracolados. Longe
disso552 e a seguir cita uma descrio de Agrippino Grieco sobre o deputado nordestino,
Xavier de Oliveira, Belo Brummel do Serto, detesta os japoneses e passou tambm a
548
Ibid., p. 75.
REVOREDO, Julio. Immigrao. op.cit., p. 82-83.
550
Ibid., p. 83.
551
Ibid., p. 170-171.
552
Ibid., p. 171
549
157
detestar os espelhos porque estes, provavelmente subornados pela gente nipnica, tambm lhe
mostram uma figura de japons sempre que se mira neles553.
Dedicando algumas pginas para criticar as afirmaes de Xavier de Oliveira, termina
dando-lhe um conselho: No continue a falar mal de nossa raa, no seja ingrato para com
os seus antepassados, no se humilhe tanto... E no fale muito em dolicocfalos louros554.
Percebe-se assim que os debates acalorados a respeito de raa e imigrao no ficaram
reduzidos ao mbito dos deputados. Posies de juristas, mdicos e imprensa, cada um sua
maneira, estabeleceu o dilogo sobre o conflito que perpassava sobre o tipo nacional.
Reis, a respeito de Xavier de Oliveira, aponta-o como a encarnao mxima de um
embriagamento radical555. Oliveira fazia parte dos profissionais da psiquiatria e sendo assim,
era mais uma voz ativa na rea da sade que deixava impregnadas em seu discurso conotaes
eugnicas referentes imigrao. Apesar da figura do oriental estar bastante em voga neste
momento, o historiador salienta que isso no deve sugerir uma brandura em relao aos
negros556. Isto , a questo racial era uma presena constante na seleo imigratria para
Oliveira principalmente atrelada aos fatores eugnicos.
A imigrao de asiticos e outros tipos indesejveis ainda era uma preocupao,
assim como na Ilustrao 2. Cinco anos depois, Renato Kehl, em Lies de Eugenia, iria dizer
que se o Estado favorecesse a vinda dos imigrantes asiticos logo nos tornaramos ncleo de
filhos do imprio do sol nascente, tal qual com o quisto racial com que os Americanos do
Norte tanto se preocupam557. Diferentemente do pensar de Revordo, que repudiava as ideais
raciais estadunidenses, por sua vez, Roquette-Pinto foi bem incisivo quanto imigrao
japonesa: Pode haver motivos que desaconselhem a livre recepo de japoneses sadios e
educados neste pas. Sero motivos de ordem social, poltica, religiosa, esttica... ou esotrica.
Razes eugnicas e antropolgicos cientficas no558.
Isto serve de apoio para compreendermos como o pensamento racial e eugnico
mantiveram-se tambm nos anos de 1930 e no esto reservadas apenas s dcadas anteriores.
Estas propostas corroboram com o estudo sobre eugenia de Stepan, que salienta que a grande
depresso e a queda do caf contriburam para o colapso do antigo sistema e a busca de novas
553
Ibid.
Ibid., 1934, p. 173
555
REIS, Jos Roberto Franco. Higiene mental e eugenia: o projeto de regenerao nacional da Liga Brasileira
de Higiene Mental (1920-1930). op.cit., p. 168.
556
Ibid., p. 174.
557
KEHL, Renato. Lies de Eugenia. op.cit., p. 196.
558
ROQUETTE-PINTO, Edgard. Ensaios de anthropologia brasiliana. op.cit., p. 180.
554
158
Era justamente essa a funo da Comisso Central Brasileira de Eugenia (1931). Ela
deveria formular leis e propostas que entrariam nos estatutos e projetos da legislao que
visavam os componentes da eugenia em seus mais diversos ramos. Sob a presidncia do Dr.
Renato Kehl, o secretario E. Penna Kehl, Dr. Belisrio Penna, Dr. Gustavo Lessa, Dr. Ernani
Lopes, Prof. Porto Carreiro, Dr. Cunha Lopes, Prof. S. de Toledo Piza Jr., Prof. Octavio
Domingos, Dr. Achiles Lisba e o Farm. Caetano Coutinho. Esta comisso com expressivos
nomes da eugenia do Brasil elaborou um documento que dizia logo no seu primeiro artigo
559
159
562
160
dos fatores de debate eugnico e que dentro dela a educao exerceria a funo de transformar
os sentimentos do homem.565
Nota-se tambm a preocupao da comisso nesta poca de mudanas no pas em
fazer valer suas consideraes no aspecto eugnico para o governo que surge. No por acaso,
o ano de 1933 apresentou uma sugesto para a elaborao de um anteprojeto da Constituio
Brasileira. Em 1934, uma campanha na imprensa contra a vinda de imigrantes assrios e
japoneses. Em 1935, consta um a elaborao de um estudo de Renato Kehl como membro da
Comisso de Imigrao do Ministrio do Trabalho, que tratou sobre a questo da imigrao.
Por ltimo, destaca-se no mesmo ano uma propaganda pela imprensa carioca sobre o alcance
e as vantagens da esterilizao eugnica.566 O assunto permanecia na ordem do dia do
Governo Provisrio.
No que concerne os efeitos do pensamento eugnico na educao, Kehl tem um papel
fundamental nos dilogos com intelectuais do perodo, o que potencializou a discusso
eugnica com obras que atingiram no apenas seus pares e a poltica, mas tambm o
organismo social. Assim, desde os bons modos para as crianas com o livro Educao
Moral567 at Lies de Eugenia com uma completa explicao do que era esta cincia e seu
pertencimento dentro do estudo hereditrio e da humanidade. Os programas que ligavam
eugenia e higiene mental de crianas com base na educao tambm podem ser visualizados
na Liga Brasileira de Higiene Mental.
Com relao a esta Liga, lembra-se da criao em 1932 de uma clnica nomeada como
Clnica de Euphrenia, com forte teor terico568 eugenista que, segundo Reis, no tinha como
finalidade apenas corretivas ou de reajuste psquico, mas, sobretudo, de aperfeioamento
565
SOUZA, Vanderlei Sebastio de. Em busca do Brasil: Edgard Roquette-Pinto e o retrato antropolgico
brasileiro (1930-1935). op.cit., p. 293.
566
Ibid., p. 104-105.
567
O livro Educao Moral tem entre seus objetivos ensinar os jovens a se comportarem mediante a etiqueta
dos bons modos sociais. Como escreveu para crianas, logo no incio salienta que A nossa linguagem ser
simples e clara, como convm ao caso. Nada de palavras difceis (KEHL, Renato. Educao Moral. op.cit., p.
9). nesse contexto que Kehl dar aproximadamente 24 lies de como as crianas devem se comportar, o que
devem evitar e o que fazer para serem bem vistas na sociedade. Passando por temas como obedincia, ordem
e delicadeza ele mostrar o que esta sociedade considera como preceitos para ser uma boa criana. Tambm
dar exemplos do que deveria ser evitado como o preguioso, o mentiroso, o imprudente. Apesar de no
trabalharmos a obra no corpo do texto, a leitura vlida para entendermos como Kehl esforava-se para atingir
todos os segmentos da sociedade. Afinal, educando as crianas e mostrando-lhes como deveriam agir e o que
evitar nada mais estava fazendo do que contribuindo para o desenvolvimento daquilo que considerava um ponto
do aperfeioamento humano.
568
A Liga Brasileira de Higiene Mental, assim como os diversos grupos cientficos no eram uniformes no seu
pensamento e dentro dos seus estabelecimentos havia discordncias sobre as prticas tericas e prticas que
realizavam. Um exemplo disso a presena do antroplogo culturalista Arthur Ramos.
161
569
REIS, Jos Roberto Franco. Higiene mental e eugenia: o projeto de regenerao nacional da Liga Brasileira
de Higiene Mental (1920-1930). op.cit., p. 239. O autor se remete ao documento A Clinica de Euphrenia. In:
ABHM, ano V, out-dez. de 1932, p. 66. Cf.: Ibid., p. 265.
162
CAPTULO 3
REVISTA CARETA E A RAA ILUSTRADA
1.
CARETA.
cada vez mais necessrio questionar as imagens cannicas mostrando, ao mximo,
por que e como elas foram inventadas, que necessidades coletivas elas atenderam e,
sobretudo, perguntar, juntamente com os alunos: por que, afinal, as imagens
alternativas no chegaram at ns?
ELIAS THOM SALIBA.570
Embora se diga que o caricaturista ri, ri sempre, umas vezes para atenuar a dor;
outras para acentuar a alegria; algumas, para impor ss rebeldias aos homens de
corao puro e alma nobre, o certo que a caricatura poltica ou social raramente
pode levar ao riso despreocupado, como acontece com o desenho humorstico.
HERMAN LIMA.571
A segunda metade do sculo XIX possibilitou uma guinada nos recursos de impresso
e de confeco da imagem nos peridicos. Porm, foi no final da primeira metade deste sculo
que presenciamos o nascimento do que viria ser a difuso e o aperfeioamento de novas
tcnicas. O ano de 1844, por exemplo, tornou-se notrio pelo surgimento da Lanterna
Mgica Jornal de Caricaturas que sob a orientao de Manuel Jos de Arajo Porto
Alegre (1806-1879) e o caricaturista Rafael Mendes de Carvalho (1817-1870), apresentava,
segundo Sodr, o primeiro srio avano tcnico na imprensa brasileira572. O surgimento da
caricatura como mais um elemento de crtica social reflete a mudana que a imprensa e suas
tcnicas estavam adquirindo na transmisso da informao. O autor complementa:
Em 1854, a Ilustrao Brasileira, de que parece terem circulado apenas nove
nmeros, oito nesse ano e um em janeiro de 1855, publicaria, em seu nmero
inaugural, uma pgina de caricaturas, provavelmente de autoria de Francisco
Moreau. Ainda em 1854, apareceu como caricaturas, a publicao biligue Lride
Italiana, que circulou at 1855. Mas nesse ano que, com o Brasil Ilustrado, iniciase, a rigor, a publicao regular de revistas de caricaturas, entre ns, trazendo no
prprio texto, ao lado de retratos e vistas do Brasil, desenhos humorsticos de
costumes, devidos a Sebastien Auguste Sisson.573
570
SALIBA, Elias Thom. As imagens cannicas e a histria. In: Maria Helena Capelato, et al. (org.). Histria e
cinema Dimenses histricas do audiovisual. 2. ed. So Paulo: Alameda, 2011, p. 93. Saliba discute no texto a
relao da imagem na assimilao do contedo escolar, mostrando a questo icnica pertencente a determinadas
imagens que inserem no imaginrio coletivo neste caso, os alunos -, algumas imagens cannicas de
determinados fatos histricos e elementos sociais. Para ns, o encaixe preciso, pois representa uma indagao
nossa: A que necessidades coletivas essas imagens atendem?
571
LIMA, Herman. Histria da caricatura no Brasil. op.cit., p. 26.
572
SODR, Nelson Werneck. Histria da imprensa no Brasil. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora Muad, 1999, p.
179. Este momento tambm discutido por Paula Janovitch, ver: JANOVITCH, Paula Ester. Preso por
trocadilho A imprensa de narrativa irreverente paulistana de 1900 a 1911. So Paulo: Editora Alameda, 2006,
p. 35.
573
Ibid., p. 203. Sobre a Lanterna Mgica Cf.: LIMA, Herman. Histria da caricatura no Brasil. op.cit., p. 67,
163
Sodr relata a importncia da Semana Ilustrada sob a tutela de Henrique Fleiuss, pois: Quando Henrique
Fleiuss lanou, na Corte, Em 1860, a Semana ilustrada, tinha circulado j, como ficou explicado, pequenos e
toscos jornais de caricaturas e havia litografias que tiravam estampas avulsas; o que no havia era uma revista
ilustrada: nesse sentido, Fleiuss foi, realmente, pioneiro (Ibid., p. 205).
575
Ibid., p. 204.
576
JANOVITCH, Paula Ester. Preso por trocadilho A imprensa de narrativa irreverente paulistana de 1900 a
1911. op.cit., p. 39.
577
Ibid., p. 39-40.
578
TELLES, Angela Cunha da Motta. Desenhando a nao: revistas ilustradas do Rio de Janeiro e de Buenos
Aires nas dcadas de 1860-1870. Braslia: FUNAG, 2010, p. 38.
579
A tiragem chegou a 4.000 exemplares, o maior ndice de um peridico na Amrica do Sul (SODR, Nelson
Werneck. Histria da imprensa no Brasil. op.cit., p. 217).
580
Ibid., p. 68. Para no deixar lacunas sobre o personagem Moleque, Telles diz: O moleque da Semana
Illustrada um jovem negro, que por um lado, como observou Machado de Assis (cronista Dr. Semana), um
moleque instrudo, fato que o distinguia dos demais, mas por outro, o seu lado moleque era reforado pelo
apelido e por seus atos, como suas brincadeiras com o leo, que mostram uma forma de relacionamento das
brincadeiras dos moleques das ruas do Rio de Janeiro da poca. Na ptica de Fleiuss, essa forma de
relacionamento dos moleques era representativa da nacionalidade brasileira daquele momento. O Moleque,
naquela sociedade, era visto como um elemento que transitava em diferentes esferas sociais e adquiria certa
sabedoria em ligar em diferentes situaes e meios sociais (TELLES, Angela Cunha da Motta. Desenhando a
nao: revistas ilustradas do Rio de Janeiro e de Buenos Aires nas dcadas de 1860-1870. op.cit., p. 37).
164
um contraditrio dom Pedro II, tentando fazer-se aceito pelo mundo desenvolvido
sem descartar a escravido, e o cinismo das naes ditas civilizadas, que, na prtica,
legitimava a Monarquia brasileira nessas condies.581
Na segunda metade do sculo XIX, o retrato do negro nesses peridicos condizia com
sua situao social, pois ao passo que se discute os problemas daquela sociedade, os
colocavam em suas respectivas posies dentro da dinmica brasileira. Como expressa Ana
Luiza Martins, ao tratar do tipo do brasileiro nas caricaturas do Brasil Imperial:
No seria diferente no Brasil, onde a procura do brasileiro foi uma constante,
delineada no quadro do imprio, no bojo da construo da nao, acentuada no
espao multirracial republicano e ainda hoje, questionada no territrio plural de
raas, cores, sons e classes que conformam o pas.582
581
LEMOS, Renato. Uma histria do Brasil atravs da caricatura 1840-2001. op.cit., p. 13. A imagem retirada
da Biblioteca Nacional possui as seguintes referncias: (AGOSTINI. Revista Ilustrada, Ano 8, n 347,
30/06/1883).
582
MARTINS, Ana Luiza. Desenho, letra e humor: esteretipos na caricatura do imprio. In: LUSTOSA, Isabel
(org.). Imprensa, humor e caricatura: A questo dos esteretipos culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG,
2011, p. 525.
165
A imagem desenhada por Agostini nos oferece este contraste a exemplo de Moleque,
da Semana Ilustrada. O dilogo que se sucede na imagem de Agostini aponta para a
dependncia do sistema escravista paradoxalmente na mesma proporo que a nao tenta se
modernizar e orbitar nas ditas civilizaes. Comparando com a figura do Moleque,
percebemos a mesma intensidade da representao da nao que constri seus valores por
meio da sua condio de escravos e senhores. Angela Cunha da Motta Telles, ao estudar as
imagens da Semana Ilustrada, define parte desta questo:
Isso talvez demonstre o esforo de Fleiuss em representar aquela sociedade,
mostrando o negro como parte do quadro explicativo da forma de relacionamento da
cidade do Rio de Janeiro. Na imagem criada por Fleiuss, ele incorpora os moleques
como parte daquela nao que est sendo forjada. Afirma a escravido como um
trao nacional, considerando como uma especificidade da nao imperial brasileira.
Outro aspecto que merece observao que Fleiuss utiliza o moleque escravo como
smbolo da nao e sabemos que por trs da Questo Christie havia uma presso em
relao escravido.583
TELLES, Angela Cunha da Motta. Desenhando a nao: revistas ilustradas do Rio de Janeiro e de Buenos
Aires nas dcadas de 1860-1870. op.cit., p. 74.
584
SALIBA, Elias Thom. Razes do riso: a representao humorstica na histria brasileira: da Belle poque
aos primeiros tempos do rdio. op.cit., p. 38.
585
O Abolicionista, de 1880, um exemplo do lado militante da imprensa contra a escravido. No seu Editorial:
Estudando-se a nossa produo, v-se que o trabalho escravo a causa nica do atraso industrial e econmico
do pas. [...] Parte da escravatura est nas mos de estrangeiros (SODR, Nelson Werneck. Histria da
imprensa no Brasil. op.cit., p. 235).
166
586
JANOVITCH, Paula Ester. Preso por trocadilho A imprensa de narrativa irreverente paulistana de 1900 a
1911. op.cit., p. 47.
587
Sobre a imprensa: A exaltao da poltica da poca est integralmente retratada na imprensa. At em livros,
sem falar naqueles que os monarquistas exilados escreveram l fora, criticando acerbadamente o novo regime e
suas figuras mais destacadas. (SODR, Nelson Werneck. Histria da imprensa no Brasil. op.cit., p. 263).
588
Ibid., p. 275. Acerca do termo, Tania Regina De Luca faz uma ressalva: A expresso grande imprensa,
apesar de consagrada, bastante vaga e imprecisa, alm de adquirir sentidos e significados peculiares em funo
do momento histrico em que e empregada. De forma genrica, o conjunto de ttulos que, num dado contexto,
compe a poro mais significativa dos peridicos em termos de circulao, perenidade, aparelhamento tcnico,
organizacional e financeiro. (DE LUCA, Tania Regina. A grande imprensa na primeira metade do sculo XX.
In: MARTINS, Ana Luiza; ______ (orgs.). Histria da Imprensa no Brasil. So Paulo: Contexto, 2013, p. 149).
589
FIORENTINO, 1892 apud JANOVITCH, Paula Ester. Preso por trocadilho A imprensa de narrativa
irreverente paulistana de 1900 a 1911. op.cit., p. 94. Na mesma pgina, a autora cita uma passagem da revista
ilustrada Kosmos (1904) que denotam este cenrio: Quem est matando o livro, no propriamente o jornal; ,
sim, a revista, sua irm mais moa, cujos progressos, no sculo passado e neste comeo de sculo, so de uma
evidncia maravilhosa (KOSMOS, 1904 apud JANOVITCH, Paula Ester. Preso por trocadilho A imprensa
de narrativa irreverente paulistana de 1900 a 1911. op.cit., p. 94). Sobre isso, ver tambm a discusso de
ELEUTRIO, Maria de Lourdes. Imprensa a servio do progresso. In: MARTINS, Ana Luiza; DE LUCA, Tania
Regina (orgs.). Histria da Imprensa no Brasil. So Paulo: Contexto, 2013, p. 83-102.
167
disseminao, mas como chamariz de visibilidade, a ida de vrios deles para o corpo editorial
de jornais e revistas ilustradas.
O livro, por diversos motivos, sejam eles econmicos, de disseminao - ou o que
mais poderamos qualificar como chamativo aos pblicos alvos -, estava em segundo plano
no apreo dos leitores, em vista das novas publicaes das revistas. No nos impressiona que
nesse incio do sculo comeavam a surgir as principais revistas semanais que tiveram
destaque no Rio de Janeiro590, a saber, Revista da Semana (1902), O Malho (1902), Kosmos
(1904), Fon-Fon! (1907) e Careta (1908), assim como em outras localidades.591 na Belle
poque, que veremos uma maior evoluo das revistas ilustradas. A revista Kosmos, nesse
sentido, tornou-se um marco do periodismo no incio do sculo XX592.
Mesmo contendo um carter fortemente poltico nas pginas de diversos peridicos, os
espaos para outras temticas como esporte, lazer, curiosidades, crnicas, anedotas e assuntos
diversos, configuravam um novo aspecto emergente para a busca do leitor que apreciava essas
edies. Esta configurao, digamos, mais modernizante e visando o capital, encontrava-se
em um rumo diferente do sculo XIX. De Luca comenta que enquanto os jornais da poca da
Independncia abalizavam propriamente para a discusso poltica, nesta nova era a
atualizao tecnolgica despontou rumo ao mercado.593 Assim sendo:
A preocupao fundamental dos jornais, nessa poca, o fato poltico. Nota-se: no
a poltica, mas o fato poltico. Ora, o fato poltico ocorre, ento, em rea restrita, a
rea ocupada pelos polticos, por aqueles que esto ligados ao problema do poder.
Assim, nessa dimenso reduzida, as questes so pessoais, giram em torno de atos,
pensamentos ou decises de indivduos, os indivduos que protagonizam o fato
poltico. Da o carter pessoa que assumem as campanhas a necessidade de endeusar
ou destruir o indivduo. Tudo se personaliza e se individualiza. Da a virulncia da
linguagem da imprensa poltica, ou o seu servilismo, como antpoda. No se trata de
condenar a orientao, ou a deciso, ou os princpios a poltica, em suma desta
ou daquela personalidade; trata-se de destruir a pessoa, o indivduo. virulncia
semelhante, na forma, a do pasquim da primeira metade do sculo XIX, mas
590
Como nos focamos na Careta e em seu universo, no adentraremos nas anlises profundas dos humoristas de
So Paulo, que contriburam para uma faceta das revistas ilustradas da poca no contexto marcada por
persistentes traos da memria coletiva (SALIBA, Elias Thom. Razes do riso: a representao humorstica na
histria brasileira: da Belle poque aos primeiros tempos do rdio. op.cit., p. 154). A obra de Janovitch (2006)
um referencial para aqueles que pretendem se debruar na imprensa macarrnica paulistana.
591
Ibid., p. 39. O autor comenta outros dados por todo o pas. Em So Paulo, por exemplo, estima-se a maior
produo periodstica possuindo certa de 341 peridicos em 1912, posteriormente o Rio Grande do Sul, com 124
e Rio de Janeiro (Distrito Federal, com 118). No que tange ao humor, Saliba escreve que de um total de 523
revistas publicadas entre 1870 - 1930, 62 delas (12%) consideravam-se humorsticas; 78 (15%) de
variedades; e 179 (34%) literrias (Ibid).
592
ELEUTRIO, Maria de Lourdes. Imprensa a servio do progresso. op.cit., p. 84. Para Eleutrio, na revista
encontra-se a viso de progresso material e civilizatrio que permeou aqueles tempos eufricos,
metaforizados em nossa Belle poque. Graficamente esmerada e arroada na diagramao, trazia abundncia de
cores, uso de fotografias, que exigiam reursos bastante elevados. Em suas pginas sucediam-se caricaturas
assinadas pelos mais notveis artistas do trao, como J. Carlos, Raul, Calixto, Raul Pederneiras e imprimindo
ainda as fotografias de Marc Ferrez e Guilherme Gaensly. (Ibid., p. 90).
593
DE LUCA, Tania Regina. A grande imprensa na primeira metade do sculo XX. op.cit., p. 154.
168
594
SODR, Nelson Werneck. Histria da imprensa no Brasil. op.cit., p. 277. Aqui h uma pontuao
fundamental de Saliba que nos explica este raciocnio de Sodr. Segundo o autor: Trata-se de uma produo
humorstica muito circunstanciada, ligada a dios e rancores de momento, com referncias muito
particularizadas e com os objetos de escrnio muito bem definidos (SALIBA, Elias Thom. Razes do riso: a
representao humorstica na histria brasileira: da Belle poque aos primeiros tempos do rdio. op.cit., p. 57).
595
DE LUCA, Tania Regina. A grande imprensa na primeira metade do sculo XX. op.cit., p. 156.
596
CUNHA, Fabiana Lopes da. Caricaturas carnavalescas: carnaval e humor no Rio de Janeiro atravs da
tica das Revistas Ilustradas Fon-Fon! E Careta (1908-1921). op.cit., p. 49-50.
597
COHEN, Ika Stern. Diversificao e segmentao dos impressos. In: MARTINS, Ana Luiza; DE LUCA,
Tania Regina (orgs.). Histria da Imprensa no Brasil. So Paulo: Contexto, 2013, p. 111.
169
O difcil cotidiano das classes populares ser um elemento frequente dessas revistas
que contrastaro os problemas dos esteretipos culturais, que sero reproduzidos dentro do
espao social. Afinal, expresses fisionmicas, gestos, vestes, linguajar e traos raciais, entre
outros dados coletados nas ruas, compem as cenas cotidianas599, diz Laura Nery. Este
reflexo evidenciado nas prprias ilustraes do perodo. Cunha mostra-nos em seu estudo
sobre carnaval e humor nas revistas ilustradas Fon-Fon! e Careta o tom satrico expressado
pelo caricaturista Kalixto ao analisar o carnaval na alta sociedade.600 Estas irreverncias
adotadas nas caricaturas apresentam ambiguidade no que muitas vezes era tentado passar
pelas posies dominantes, em reflexo com a contradio das suas reais posies.
Em face desta prerrogativa, Herman Lima destaca a relevncia dos dois peridicos ao
passo que paralelo ao relevo intelectual e artstico da Careta foi inegavelmente o da FonFon! [...]601, o que nos leva a perceber como estas duas revistas desempenharam um papel
importante na consolidao do material impresso e imagtico. Por sua vez, a Careta tambm
desfrutou do prestgio de perdurar por longos anos na imprensa brasileira. A revista circulou
por cerca de cinquenta e trs anos, totalizando 2.732 nmeros, sendo sua ltima apario em
05 de novembro de 1960.602 O peridico circulava aos sbados, semanalmente, no formato
18,5 x 26,7cm, e era apresentada toda em papel couch at o ano de 1916 e, posteriormente,
como mostra-nos Garcia, com suporte misto em papel jornal, dispunha os assuntos em
colunas alternadas com numerosas imagens, com duas ou mais cores.603
A revista anuncia no seu primeiro nmero, no dia 6 de junho de 1908, sua
apresentao do que viriam a ser as caretas, ou melhor, qual seria a inteno da Careta:
Ai vai a nossa Careta.
Lanando a publicidade este semanrio, preciso confessar que a Careta feita para
o Pblico, o grande e responsvel Pblico com P. grande!
(...) Faremos tudo para que as nossas, no correspondam caretas de mau humor;
preferimos, francamente, sorrisos, mesmo daqueles que mais parecem caretas.604
598
170
neste teor de apresentao humorstica que a revista fundada por Jorge Schmidt
passou a ser conhecida como um reduto de poetas parnasianos, com a contribuio de vrios
profissionais da revista Fon-Fon!, como J. Carlos, Kalixto e Basto Tigres.605 Para Cunha, o
editorial revelava o rumo que a revista pretendia seguir em suas tiragens, o das camadas
mdias e talvez o das elites, mais propensas ao que o editorial chama de jornalismo smart e,
tambm, principalmente, o masculino606.
Por esta vertente, Saliba completa que As imagens no so feitas gratuitamente, mas
por algum que ganha a vida fazendo imagens e que obedece a um certo nmero de regras e
limitaes607. A revista Careta teve como caracterstica humorstica esta abordagem. Alm
das pardias e articulaes macarrnicas franco-brasileiras608, h uma apropriao icnica e
imagtica como fundamentao de crtica social e, por isso, suas variedades que permearam
ao longo de toda sua existncia estabelecem este trao predominante da sua inteno
fundadora. Seu idealizador, Jorge Schmidt que tambm criou a Kosmos (1904) - com uma
viso empreendedora, deu Careta o toque diferenciado de variedades nas suas publicaes
e seu alto teor grfico, somado com as caricaturas polticas e sociais, mostrava o vai e vem
da vida urbana do Rio de Janeiro e do Brasil. Este engajamento publicitrio da revista
adentrava no cotidiano de praticamente toda a populao. Como notou Lima, a revista de
Jorge Schmidt se manteria por tanto tempo com aquele prestgio paradoxal que a fazia
disputada pelos fregueses de engraxates e barbeiros e pela elite intelectual do Brasil609.
A grande dimenso do semanrio na sociedade pde dialogar com os diversos
momentos dos seus problemas sociais em que o humor e as ilustraes os tornariam de fcil
compreenso e de rpido alvo todos aqueles que faziam parte daquele grande teatro social.
Nesse sentido, complementa Garcia:
Durante todo o tempo de existncia da revista, as imagens de humor no
constituram mero recurso ilustrativo, mas canais privilegiados pelos quais reflexes
605
CUNHA, Fabiana Lopes da. Caricaturas carnavalescas: carnaval e humor no Rio de Janeiro atravs da
tica das Revistas Ilustradas Fon-Fon! E Careta (1908-1921). op.cit., p. 84. A historiadora faz uma ressalva
pertinente sobre o parnasianismo. Segundo a historiadora, importante ressaltar que as denominaes dadas
a estas revistas, a Fon-Fon! como reduto de poetas simbolistas e a Careta como sendo a dos parnasianos, referese muito mais ao grupo idealizador destas publicaes do que, de fato, contribuio dos inmeros literatos no
transcorrer de suas existncias. At porque o momento de sua criao e o perodo em que estamos focando era
vulnervel a novas ideias e, muitas vezes, estas correntes estticas e seus representantes acabavam mesclandoas com outras tendncias contemporneas (Ibid.).
606
Ibid., p. 86.
607
SALIBA, Elias Thom. As imagens cannicas e a histria. op.cit., p. 92. [Grifos do autor].
608
Cf.: Ibid., p. 105-108. Mais uma vez, a forma de humor atravs da linguagem entre o portugus e o francs,
criando uma lngua humorstica hbrida, reflete no cunho social das relaes entre Brasil e Frana, mais
precisamente o afrancesamento brasileiro, na pauta da ordem do dia do humor.
609
LIMA, Herman. Histria da caricatura no Brasil. op.cit., p. 152.
171
Alis, esta qumica entre revistas ilustradas e o humor gerou bons resultados na
recepo pblica, pois alm da Fon-Fon! e da Careta, revistas como O Pirralho (1911) e
Tagarela (1915), foram exemplos de peridicos que obtiveram sucesso nessa linha de
trabalho. Talvez a Careta nesse momento represente para ns o estado atual da imprensa
ilustrada no Brasil. Ela fez muitas caretas para esta modernidade, grafando as ironias da
vida pblica e dos regimes no Brasil, ou mesmo, do que era ser brasileiro, ao passo que
buscava uma unidade de identificao nacional, que em diversos momentos inspirava-se no
exterior para sua construo. assim que aborda Saliba, medida que uma atmosfera que
ansiava por cosmopolitismo gerada a partir do Rio de Janeiro, autntica capital cultural do
Brasil na Belle poque percorre o pas uma nsia sfrega pela europeizao e pela
modernizao611.
Alm disso, Sevcenko nos oferece um curioso exemplo dessa vontade de reproduzir o
europeu - particularmente o francs. No incio da Primeira Grande Guerra era comum as
pessoas no Rio de Janeiro ao se cruzarem nas localidades centrais da cidade ao invs de
trocarem uma boa tarde ou boa noite diziam expresses como Viva a Frana612. Apesar
da Careta retratar com seu habitual humor o estilo de vida carioca, ela nem sempre agradava a
todos. O semanrio, por exemplo, foi alvo do frei Pedro Sinzig. Em 1911, Sinzig condenava a
produo caricatural do Brasil e na tentativa de separar o humor por um vis moral, criava um
maniquesmo entre revistas boas e ruins, por meio do seu contedo ilustrado.613
As transies polticas e sociais que advinham no Brasil criaram uma atmosfera que
misturavam os mais diversos sentimentos dentro da nao: sejam elas monarquistas,
republicanos,
abolicionistas,
latifundirios,
modernizadores,
positivistas,
enfim,
610
GARCIA, Sheila do Nascimento. Revista Careta: um estudo sobre humor visual no Estado Novo (1937
1945). op.cit., p. 77.
611
SALIBA, Elias Thom. Razes do riso: a representao humorstica na histria brasileira: da Belle poque
aos primeiros tempos do rdio. op.cit., p. 68.
612
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como misso: tenses sociais e criao cultural na Primeira Repblica.
op.cit., p. 37.
613
SALIBA, Elias Thom. Razes do riso: a representao humorstica na histria brasileira: da Belle poque
aos primeiros tempos do rdio. op.cit.,p. 112.
172
vorazmente esses peridicos. Para aqueles que eram satirizados, imagina-se o desconforto do
riso dos outros.
Em sua estrutura semanal, a revista era recheada de contos, humor escrito, imagens,
novelas em forma de contos, propagandas das mais variadas, artigos crticos sobre temas
diversos como os governos vigentes, episdios sociais, econmicos e polticos que o pas
estivesse vivenciando, sejam eles nacionais ou internacionais juntamente com sua habitual
irreverncia ao tratar de muitos desses assuntos. Nas edies entre 1930 e 1934 podemos
identificar tambm matrias sobre o cinema, futebol, enfim, uma enorme variedade, como se
propunha a ser. Podemos enfatizar a importncia das fotos que compunham a revista, onde se
possvel reconstruir a cada semana o que se acontecia no pas, principalmente no ento
Governo Provisrio. E, obviamente, diversas caricaturas por edio tambm vinculadas s
pocas que estavam inseridas. De forma independente, as caricaturas nem sempre
acompanhavam um texto ou uma notcia. Suas imagens, muitas vezes apareciam entre
matrias escritas e possuam sua prpria singularidade nos assuntos que tratavam. Portanto,
era possvel ler uma notcia, um conto ou uma anedota e na pgina seguinte deparar-se com
uma caricatura do mais variado tema ou acontecimento, mas em sua maioria retratando
alguma ocasio daquela semana ou perodo, que pudesse ser representada pela arte e humor
do caricaturista que a desenhava.
Na dcada de 1920, as imagens ganharam ainda mais espao juntamente com a foto
novela.
614
jornalismo propriamente informativo, Careta procurava manter vnculos com sua atualidade,
dialogando com as novas tendncias da imprensa brasileira615. Como veremos nas
caricaturas, a Careta estabeleceu dilogos com diversos setores da sociedade. Por isto, desde
a crise do caf e at mesmo a criminalidade poderiam ser inspiraes para as caricaturas do
perodo. De outra maneira, homens do poder poltico como Oswaldo Aranha e Getlio
Vargas, eram figuras caricaturadas frequentemente, podem ser notadas por diversas vezes
dialogando com a populao brasileira nas mais curiosas situaes polticas, sociais e
cmicas.
As capas igualmente merecem destaque na anlise do peridico. Eram compostas por
caricaturas daquilo que se queria destacar na semana. Chamativas, ocupavam todo o espao
da capa. Para salientar a importncia delas no peridico, selecionamos o primeiro ano
614
GARCIA, Sheila do Nascimento. Revista Careta: um estudo sobre humor visual no Estado Novo (1937
1945). op.cit., p. 36
615
Ibid., p. 37.
173
completo do Governo Provisrio, o ano de 1931. Neste ano, a revista Careta lanou 52
edies. Destas, Getlio Vargas apareceu ilustrado na capa em aproximadamente 35
caricaturas. Ou seja, alm da figura notria do chefe do Governo Provisrio presente nas
capas, a revista vinculou na maioria dos seus nmeros deste ano caricaturas voltadas
temtica do novo governo.
Em termos editoriais, os anos de 1930 e 1934, J. Schmidt atuou como diretor
proprietrio e Roberto Schmidt na posio de gerente. Essa informao encontrava-se como
cabealho da coluna que se tornaria famosa na revista, a Looping the Loop.616 Alm das
referncias aos editores, o cabealho continha a localizao fsica da revista, a saber, Rua Frei
Caneca, nmero 383, no Rio de Janeiro. Alm disso, continha preo das assinaturas e a
quantidade de pginas daquela edio.
Exemplificando melhor a estrutura da revista, tomemos por base a edio de 18 de
Junho de 1932.617 Como tradicionalmente se constitua a revista, sua capa ocupada em sua
totalidade com uma caricatura. Neste nmero, a caricatura assinada por Storni e traz como
ttulo A moderna torre de Babel. Nela aparece Getlio Vargas, de terno e cartola,
orquestrando a construo da torre de babel. Quem a constri so elementos de partidos
polticos da poca. Na legenda aparece a seguinte frase Eles no se entendem, mas o Getlio
entende a todos eles!.... Assim, o humor se constitui na liderana de Getlio ao dialogar com
todos os partidos que naquele momento no se entendiam. Para completar a analogia com a
Torre de Babel, dos contos bblicos, em que as lnguas foram confundidas, faz parte do
humor da nossa caricatura para induzir o leitor a rir sobre a dificuldade do dilogo com os
partidos na poca. Nas prximas pginas a revista traz propagandas tanto voltadas para o
pblico feminino como masculino. Aparecem pequenas notas sobre conhecimento geral,
alguns contos e humor escrito.
A seguir encontra-se o cabealho editorial e, na mesma pgina, a coluna Looping the
loop, geralmente com textos crticos e provocativos sobre momentos polticos do Brasil e do
mundo - ou mesmo voltado a assuntos do cotidiano. Nas pginas seguintes temos uma mistura
de trovas, fotos polticas, sociais, caricaturas, matrias (como de artistas de cinema), etc..
Outra coluna que pode ser observada em nossa periodicidade a chamada Block-Notes, que
assim como Looping the loop, oferece, na maioria das vezes, uma crnica mais crtica voltada
para algum assunto escolhido por seu autor. Fotos, caricaturas e propagandas continuaram a
616
617
Segundo Garcia, essa estrutura permaneceu at o segundo semestre de 1942 (Ibid., p. 51).
Careta, 18 de Junho de 1932, Ano XXV, n 1. 252.
174
fazer parte ao longo desta edio. O que podemos pontuar no curso das nossas anlises entre
1930 e 1934, que esta linha tcnica se mantm, com algumas variaes, de edio para
edio.
Estas informaes so referenciais inclusive para o aporte terico-metodolgico.
Como percebeu De Luca,
o contedo de jornais e revistas no pode ser dissociado das condies materiais
e/ou tcnicas que presidiram seu lanamento, dos objetivos propostos, do pblico a
que se destinava e das relaes estabelecidas com o mercado, uma vez que tais
opes colaboram para compreender outras, como formato, tipo de papel, qualidade
da impresso, padro da capa/pgina inicial, periodicidade, perenidade, lugar
ocupado pela publicidade, presena ou ausncia de material iconogrfico, sua
natureza, formas de utilizao e padres estticos. A estrutura interna, por sua vez,
tambm dotada de historicidade e as alteraes a observadas resultam de
complexa interao entre tcnica de impresso disponvel, valores e necessidades
sociais.618
DE LUCA, Tania Regina. Leituras, Projetos e (re)vista(s) do Brasil (1916-1944). So Paulo: Editora
UNESP, 2011, p. 2.
619
Clara Asperti Nogueira, sobre os caricaturistas, destaca J. Carlos e sua importncia para a Revista Careta:
Raul (pseudnimo de Raul Pederneiras), K. Lixto (pseudnimo de Calixto Pereira) e J. Carlos (pseudnimo de
Jos Carlos de Brito e Cunha) nacionalizaram a arte da caricatura no Brasil, alm de serem verdadeiramente as
maiores referncias do desenho satrico no limiar do sculo XX (NOGUEIRA, Clara Asperti. Revista Careta
(1908-1922): smbolo da modernizao da imprensa no sculo XX. Miscelnea. Assis: v.8, 2010, p. 70).
620
Saliba diz que o humorista no era reconhecido socialmente, e eles prprios tinham dificuldade em
reconhecer-se como humoristas. O mais notvel que quando designados publicamente como humoristas, o
rtulo colava-se a eles como uma mscara do palhao e no havia meio de tir-la (SALIBA, 2002, p.133-134).
621
GARCIA, Sheila do Nascimento. Revista Careta: um estudo sobre humor visual no Estado Novo (1937
1945). op.cit., p. 33.
175
ter desempenhado alguma outra funo empregatcia, o que nos faz acreditar que era difcil
viver apenas das caricaturas622. Para o autor, o humorista foi, assim, uma figura mltipla,
com alta capacidade de trnsito entre diferentes prticas culturais, e a trajetria de alguns dele
exemplo desta multiplicidade623. Estes homens nem sempre eram reconhecidos e aceitos na
sociedade. Muitas vezes eram descritos como bomios e no recebiam o prestgio e aceitao
pblica. Este fato pode ser estabelecido com as vrias tentativas do humorista Bastos Tigre de
adentrar na Academia Brasileira de Letras, onde, por diversos momentos, teve seu nome
denegado. Em 1934, quase como um desabafo, Tigre acreditava que a sombra que carregou de
humorista pairou sobre as decises.624
Dentre vrios caricaturistas que ilustraram a revista ao longo das dcadas, trs se
fazem presentes e merecem destaque especial em nossa anlise: Jos Carlos de Brito e Cunha
(J. Carlos), Alfredo Storni e Osvaldo Navarro. Todas as caricaturas que trabalhamos do
perodo de 1930-1934 so estes que as assinam. Em tempo, existem caricaturas onde no h
assinatura por conta da prpria forma de escolha da Careta625, ou como nos casos dos
anncios comerciais. Portanto, se faz necessrio dedicar uma pequena parte deste tpico para
os caricaturistas que utilizamos e que esto vinculados ao perodo.
626
SALIBA, Elias Thom. Razes do riso: a representao humorstica na histria brasileira: da Belle poque
aos primeiros tempos do rdio. op.cit., p. 78-79.
623
Ibid., p. 77.
624
Ibid., p. 142.
625
Garcia, em seu estudo da Careta, diz que Nesta escolha jornalstica, conforme afirma Fernando Cascais,
subentende-se uma assinatura coletiva (GARCIA, Sheila do Nascimento. Revista Careta: um estudo sobre
humor visual no Estado Novo (19371945). op.cit., p. 57). [Grifo da autora].
626
Em ordem, as assinaturas de J. Carlos, Alfredo Storni e Osvaldo Navarro.
627
Ibid., p. 34.
628
NOGUEIRA, Clara Asperti. Revista Careta (1908-1922): smbolo da modernizao da imprensa no sculo
XX. op.cit., p. 70
176
Ningum exerceu com maior dignidade profissional a sua arte do que esse
incomparvel desenhista, cujas criaes, da mais bela e escorreita execuo e do
mais fino gosto, aliados graa do motivo e elegncia do trao, encheram durante
quase meio sculo as pginas das nossas melhores revistas ilustradas.629
Mais adiante, ao tratar das revistas da qual contribuiu com sua arte, ele reafirma,
efetivamente, no foi s naquelas revistas que a sua arte se firmou entre ns, ao ponto de ser
hoje considerado com justia o nosso maior caricaturista de todos os tempos630. De certo, a
expresso das caricaturas de J. Carlos em nosso trabalho traduz o sentimento de Lima. O
caricaturista parecia ser um cronista social dos desenhos, suas representaes ilustrativas eram
elaborados textos dos quais a partir da percepo dos seus traos havia todo um jogo de
informaes que o rodeava.
J. Carlos torna-se importante, justamente, pela sua perspiccia de no deixar passar
nada na ponta do seu lpis. Entre outras caractersticas [...] sabia olhar as coisas da sua
cidade, fixando-as sempre por um prisma inteiramente original, ora num trao, ora na finura
duma legenda inesquecvel631, diz Lima. Nesse sentido, temos o privilgio de trabalhar em
nossa fonte com um dos melhores na arte da caricatura de sua poca.
Outra assinatura constante do gacho Alfredo Storni (1881-1965). Storni desenhou
ao lado de J. Carlos na Careta no inicio dos anos de 1930, mas participava do peridico desde
1922. Para Lima, Storni na Careta tinha [...] o vigor do seu trao, a larga popularidade do
vibrante magazine, de tanta influncia nos nossos costumes polticos literrios e sociais632.
Ainda segundo ele:
Caricaturista nato, votado, por vocao e pelo prprio trao, stira poltica,
Storni, no gnero, um dos nossos mais notveis artistas, no lhe tendo sido feita
ainda a justia que merece. Duma arte direta, duma linha nervosa, embora um tanto
rgida, o que no lhe vem, todavia, de qualquer deficincia artstica, mas, antes, do
seu prprio estilo incisivo e contundente, so inmeras as boas charges, na verdade,
que espalhou em perto de meio sculo, pela imprensa do Brasil.633
177
revelam sua relevncia alm deste perodo. Entendemos pelas suas caricaturas a facilidade em
trazer o povo simples da sociedade brasileira em seus desenhos. As expresses, traos e aes,
remetem quase que ao cotidiano de como percebia as manifestaes sociais da qual o
brasileiro fazia parte.
Alm dos caricaturistas, trabalhamos com alguns textos da Careta. Tendo em vista
este foco, devem-se ressaltar os nomes que aparecem e seus pseudnimos. Isso no somente
facilita a localizao dos autores no semanrio para os historiadores, como nos ajuda a
compreender quem eram eles. Para no deixar lacunas nestas assinaturas, rapidamente
traremos informaes gerais destes cronistas.
Joo Peregrino da Rocha Fagundes, ou simplesmente Peregrino Jnior (1898-1983),
foi jornalista, mdico, contista e ensasta.635 Foi o sexto ocupante da Cadeira 18, eleito em 4
de outubro de 1945, na sucesso de Pereira da Silva e recebido pelo Acadmico Manuel
Bandeira em 25 de julho de 1946. Recebeu o Acadmico Odylo Costa, filho636. Alm da
Careta escreveu para outros peridicos como O Brasil, Rio Jornal, O Jornal e A Notcia.
Voltado rea mdica, mas no se limitando a ela em suas crnicas, escreveu livros como
Vitaminologia (1936), Biotipologia e Educao (1936) e Biometria aplicada educao
(1942), entre diversas outras.
Domingos Ribeiro Filho (1875-1942) foi conhecido tambm pelos seus pseudnimos:
Dierre Effe, D. Dierre, D.R.F. ou D. R. No raro, em boa parte dos nmeros compreendidos
no perodo que selecionamos, Domingos aparece com sua assinatura em diversas crnicas. No
Jornal Diretrizes, em 16 de junho de 1942, Astrojildo Pereira (1890-1965) lana no jornal
uma nota de falecimento de Domingos. Por ela verificamos a atuao que o cronista teve na
Careta e como escritor. Pereira refere-se s suas publicaes como romancista, onde escreveu
O Cravo Vermelho (1907), Vs Tortura (1911), Uma paixo de mulher (1915) e Misere
(1919). Com referncia as suas publicaes na Careta, salienta:
Neste sentido, o melhor que ele produziu, - melhor e em muito maior quantidade
se encontra nas pginas da revista Careta, de que foi o principal redator durante 17
anos, e onde, alem da crnica inicial, sempre assinada com seu prprio nome ou
com o pseudnimo de Dierre Effe, se multiplicava em numerosas sees e notas
avulsas.637
635
178
O terceiro nome que aparece nas crnicas assinado pelo pseudnimo Micromegas.
Quando se trata de pseudnimos h uma busca temporal na tentativa de reconhec-los, porm,
nem sempre possvel. Com a mesma dificuldade, Garcia menciona:
[...] que grande parte dos artigos veiculados ou no era assinada pelos autores ou era
finalizada somente com iniciais ou pseudnimos, o que dificultou sobremaneira a
identificao dos grupos intelectuais reunidos em torno da publicao no perodo
estudado638.
Apesar de todo o esforo, no foi possvel localizar quem ou quais pessoas poderiam
estar por trs deste pseudnimo. O que de fato pode-se considerar que suas crnicas
possuem uma nfase parecida com a dos cronistas acima, o que ao menos, nesse sentido,
mostra uma qumica no direcionamento poltico-editorial da revista.
Cronistas ou caricaturistas, eles pertenciam ao grupo que, sua maneira, buscavam
interpretar o Brasil e suas narrativas da nacionalidade sobre seus enfoques de anlises.
Desenhos e palavras se complementam dentro do semanrio, estabelecendo-se como uma
fonte pertinente em nossa tentativa de descortinar a questo de raa e cor naqueles
momentos.
Mesmo dedicando-se a outras atividades, estes caricaturistas e cronistas conseguiram
dinamizar seus esforos nas revistas ilustradas na fuso do trao com o humor e,
consequentemente, faziam parte da vivncia da nao. Nelas, o Brasil foi exposto atravs do
riso e expunham os problemas nacionais, que sob a roupagem da caricatura exibiam as
contradies de um pas e seus anseios como, por exemplo, qual seria sua identidade. Ainda
no estudo de Saliba, analisar a representao humorstica da nacionalidade explorar a
enorme ambivalncia da linguagem, em todas as suas formas, na construo de um discurso
alternativo e de outras possveis narrativas das nacionalidades639.
So essas outras possveis narrativas das nacionalidades que estamos buscando neste
trabalho, pela qual a iconografia das caricaturas projeta importantes desdobramentos das
teorias raciais, eugenia, e como cor e raa eram vistas dentro do processo de idealizao
nacional. Percebemos que cada imaginao nacional, da mesma forma que produz a sua
638
GARCIA, Sheila do Nascimento. Revista Careta: um estudo sobre humor visual no Estado Novo (1937
1945). op.cit., p. 46. Fabiana Lopes da Cunha tambm colabora com a questo dos pseudnimos ao dizer que "O
humorista, o literato e o caricaturista, tambm se escondiam atrs de pseudnimos, muitos deles se utilizavam de
vrios, e em geral se sentiam constrangidos ou tolhidos em sua produo. A dificuldade em serem reconhecidos
profissionalmente ou deles mesmos se reconhecerem, fazia com que o rtulo imposto a eles pela sociedade
colasse em suas faces como a 'mscara do palhao e no havia meio de tir-la'" (CUNHA, Fabiana Lopes da.
Caricaturas carnavalescas: carnaval e humor no Rio de Janeiro atravs da tica das Revistas Ilustradas FonFon! E Careta (1908-1921). op.cit., p. 98).
639
Ibid., p. 31.
179
640
SALIBA, Elias Thom. Razes do riso: a representao humorstica na histria brasileira: da Belle poque
aos primeiros tempos do rdio. op.cit., p. 31.
641
BERGSON, Henri. O Riso: ensaio sobre o significado do cmico. op.cit., p. 32.
642
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como misso: tenses sociais e criao cultural na Primeira Repblica.
op.cit., p. 32.
643
CUNHA, Fabiana Lopes da. Caricaturas carnavalescas: carnaval e humor no Rio de Janeiro atravs da tica
das Revistas Ilustradas Fon-Fon! E Careta (1908-1921). op.cit., p. 172.
180
A questo racial far parte deste debate, afinal, ela estava no discurso da nao, era
um problema a ser resolvido, assim como o ndio. Com a disseminao cada vez maior das
644
Na imagem pode-se perceber o escrnio da situao e da atitude de Pinto retratada por meio da msica do
negro violeiro que canta: A lei indica/ Que o ndio cai/ O pinto fica/ E o ndio sai/ terra rica/ Que em leis se
esvaia/ O ndio fica/ E o pinto sai/ Ordens em bica/ Cantai! Cantai! / Pinto que fica/ ndio que sai/ S de pelica/
De luvas vai/ ndio que fica/ Pinto que sai/ Fica ou no fica/ Sai ou no sai/ De roupa rica/ ndio pintai (Ibid.).
645
LIMA, Herman. Histria da caricatura no Brasil. op.cit., p. 514.
646
A autora diz que, A presena negra no Carnaval carioca era, na maior parte das vezes, indissocivel das
diferentes brincadeiras do entrudo. Negros Ra muitos dos mascarados, os participantes dos z-pereiras, os
praticantes da guerra de gua. Uma das formas do Carnaval popular, no entanto, aparecia nas ruas com carter
negro ou africano. Refiro-me aos grupos de cucumbis, presena antiga em festas publicas no pas, que se
tornam na segunda metade do sculo XIX (CUNHA, Maria Clementina Pereira. Ecos da folia: uma histria
social do Carnaval carioca entre 1880 e 1920. So Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 41).
647
CHARTIER, Roger. A histria cultural: entre prticas e representaes. 2. ed. Traduo de Maria Manuela
Galhardo. Lisboa: Difel, 1988, p. 17.
181
teorias raciais, tanto no mbito intelectual e poltico como no social, no tardou para que o
negro fosse caricaturado atrelado s suas dificuldades e sua visibilidade nos conflitos sociais.
neste momento que enxergamos o que Garcia indaga como percepo crtica sobre os
perodos. A carga ideolgica reproduzida traz uma representao daquilo que se aspirava
observar na sociedade para satirizar ou ironizar. A Careta representar para ns essa linha de
anlise. Um material elucidativo guisa da compreenso da posio social da cor e raa, e
como este ser visto na sociedade em que participa. Nesse sentido, cabe uma referncia a
Saliba quando trata de imagens cannicas:
O choque ante uma imagem no-estereotipada pode ser revelador: s vezes, de
imediato comeamos a perceber como a imagem com a qual nos acostumamos - a
imagem cannica - coercitiva. Coercitiva porque nos impunha uma figura
reproduzida infinitamente em srie, to infinitamente repetitiva que no mais nos
provocava nenhuma estranheza, bloqueava nossa possibilidade de uma
representao alternativa, ou seja, no nos levava mais a distinguir, a comparar - em
suma, no nos levava mais a pensar".648
648
SALIBA, Elias Thom. As imagens cannicas e a histria. op.cit., p. 88. [Grifo do autor]. Sobre Emlio
Menezes e seus livros de poesia Mortalha - Os deuses em ceroulas: rene sua produo de poemas em jornais
do perodo de 1905-16, tem um total de 64 sonetos e poemas; desse total, 42 sonetos so dedicados a satirizar
alguma pessoa, geralmente conhecida da poca, porque eu a maior parte dos ttulos continha as iniciais daquele
que objeto do poema (Ibid., p. 120).
649
Lembremos-nos da diatribe entre poeta parnasiano Emlio de Menezes com o professor Hemetrio dos
Santos. O segundo, um reconhecido professor negro, ao atacar o primeiro sofre um revide em Mortalha (1904),
que expressa o humor muitas vezes voltado ao ad hominem. O trecho a seguir ilustra as ofensas onde a cor da
pele o smbolo da degradao: No pedagogium de que soberano/Diz que: - comigo a critica se lixe;/Sou o
mais completo pedagogo urbano/Pestallozi genial pintado a piche! (MENEZES, 1904 apud SALIBA, Elias
Thom. Razes do riso: a representao humorstica na histria brasileira: da Belle poque aos primeiros tempos
do rdio. op.cit., p. 93). [Grifos nosso].
182
650
LUSTOSA, Isabel. Apresentao. In:_____ (org.). Imprensa, humor e caricatura: A questo dos esteretipos
culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011, p. 23.
183
184
como o homem que reformularia a nao e ele era desenhado, muitas vezes, sob esta
roupagem. Entretanto, medida que se consolida no poder e pela demora na elaborao de
uma nova Constituio, traz tona formas diferentes de discernirem sua figura poltica nas
pginas do semanrio. Garcia, que se debruou sobre as caricaturas no Estado Novo, explica
como suas caricaturas sobreviveram por tanto tempo sem censura na revista:
A estratgia utilizada para burlar o controle governamental teria sido a escolha de
uma forma de representao que evitasse a satanizao dele, mas investisse em um
aspecto caricato ldico, quase infantil, da figura baixinha, gorducha, sorridente e de
olhos cerrados, geralmente acompanhada por seu fiel charuto.653
GARCIA, Sheila do Nascimento. Revista Careta: um estudo sobre humor visual no Estado Novo (1937
1945). op.cit., p. 83.
654
Vale notar que embora Vargas acrescentasse a sua caixa de ferramentas polticas, nunca permitiu que sua
poltica trabalhista pusesse em risco os fortes laos que o ligavam a grupos mais respeitveis, ou seja, aos
polticos profissionais, lderes do comrcio e da indstria, militares e funcionrios do governo. (WIRTH, 1970
apud BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. Getlio Vargas: o estadista, a nao e a democracia. In: BASTOS,
Pedro Paulo Zahluth; FONSECA, Pedro Cezar Dutra. (orgs.). A era Vargas: Desenvolvimento, economia e
sociedade. So Paulo: Editora UNESP, 2012, p. 106).
655
Ibid., p. 98.
185
sociedade, tanto dos que ainda consideravam a questo racial como fator degenerativo,
quanto aqueles que viam os problemas da sua populao nas querelas das desigualdades
sociais e educacionais.
O problema racial era contemporneo ao Governo Provisrio, mas agora ele
passava a ser visto sob um novo prisma de homogeneidade, em que independente de
considerarem ou no o atraso das raas, o tema deveria ser observado sob a autoridade do
Estado, e tanto o negro, mestio e o oriental faziam parte deste leque. No estamos dizendo
com isso que cor e raa ganharam seu status de igualdade. Sob a tica do progresso
evolucionista que ainda permaneceria e at mesmo nas lies de eugenia, que continuavam
em voga, o que se percebe neste novo governo uma preocupao poltico-econmica da
nao. A questo racial no giraria sob o vis exclusivamente racial, mas os interesses
econmicos para o pas seriam pea-chave para a compreenso deste processo. Quando
Vargas debruou-se para compreender as necessidades dos trabalhadores em prol da
industrializao percebe-se a comunidade imaginada que se postula ao molde de um ideal
nacional e, no caso, da cultura mestia que despontava como representao oficial da
nao656. Assim, cor e raa seriam olhadas atravs de perspectivas at ento pouco
visualizadas, mas que no podem ser interpretadas como uma guinada de direitos adquiridos
ou mudanas bruscas dos preconceitos sociais.
O que se viu foi a ambiguidade que emergia neste cenrio poltico e cultural em
transformao, onde havia a necessidade em dar ateno e valorizao do interno para uma
consolidao da comunidade imaginada, ao passo que dentro dela ainda houvesse entrelaado
valores de esteretipos culturais que enxergassem a questo racial sob a tutela da eugenia,
branqueamento e um negativismo de cor e raa que seriam responsveis pelo atraso
brasileiro. Careta traz em suas pginas quase que, semanalmente, os conflitos desse novo
governo com o social que o cercava. Mudanas de sujeitos histricos, propostas de
constituio, raa, trabalho, pobreza, tudo estava merc nas abordagens da revista,
sempre, claro, com sua irreverncia caracterstica. A seguir, nossas fontes nos permitiro
adentrar mais rigorosamente nesta discusso.
656
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Nem preto nem branco, muito pelo contrrio: cor e raa na sociabilidade
brasileira. So Paulo: Claro Enigma, 2012, p. 47.
186
RENATO KEHL.657
como num tablado de jogo das Damas, separa os brancos e os pretos e diz com
solenidade: branco com branco, preto com preto.
PROF. LUIZ L. SILVA.658
187
sempre motivo de indignao para os que escrevem nos jornais (porque os que no
escrevem no podem manifestar-se) o fato de qualquer estrangeiro, em livro, em
artigo de imprensa ou em entrevista atribuir-nos qualquer cor que no seja
puramente caucasiana.
Essa indignao evidentemente pueril. Se todos os estrangeiros que escrevem ou
falam a nosso respeito afirmassem que a grande maioria da populao brasileira
composta de gente clara e loura, ns devamos tomar a coisa como deboche. Se,
como muitas vezes sucede, os camaradas carregam demais na cor, devemos ter
pacincia.
J passou em julgado que a populao brasileira tem sangue de trs raas: o branco,
o ndio e o negro. As propores desses trs ingredientes tm variado no decurso de
quatro sculos, minguando cada vez mais o contingente branco. claro, clarssimo,
portanto, que um dia viremos a ser absolutamente brancos, talvez mesmo loiros l
pelo extremo sul.
tambm opinio corrente que devemos preferir esse lento caminhar para a
brancura segregao do elemento preto, como nos Estados Unidos, onde isso
como uma nuvem tempestuosa que se avoluma sem cessar, escurecendo o futuro.
Se fosse possvel, na repblica norte-americana, misturar subitamente as raas, a cor
resultante talvez no fosse muito mais branca do que a nossa.
Os americanos timbram, porm, em vo, misturar o caf com o leite (a no ser muito
clandestinamente) e de certo tempo para c fecharam a porta aos amarelos e s
abrem anualmente uma frestinha aos reconhecidamente brancos.
Ns temos adotado uma poltica imigratria diametralmente oposta: tudo que entra
simptico.
Certamente, no ser possvel prosseguirmos em semelhante poltica
indefinidamente. Enquanto a populao de quarenta milhes de quilmetros
quadrados: quando for mesmo de sessenta milhes, ainda poderemos ser liberais.
Depois, ser indispensvel dosar as entradas, filtrar as cores.
No nos zanguemos com o epteto de mestio, que na verdade somos. uma
verdade que aparece, a despeito de toda a propaganda que grita l fora a nossa
imaculada brancura; donde se conclui que a propaganda s eficaz quando apregoa
a verdade, com uma pequena tolerncia de exagero.
Os americanos do norte certamente no manda apregoar na Europa que tm dinheiro
ufa, que tm mais estradas de ferro que toda a Europa e que possuem os prdios
mais altos do mundo. Como essas coisas so verdadeiras toda gente as conhece.
Ns, enquanto perdemos tempo e dinheiro querendo convencer o mundo que aqui
dentro todos so brancos, deixamos de tratar de fazer o caf brasileiro aparecer nos
outros pases como procedente do Brasil e no de Costa Rica ou da Arbia. E isso
talvez seja fcil porque uma verdade verdadeira de verdade.
H uma afirmao otimista que frequentemente se faz do Brasil e que verdadeira: a
das suas possibilidades; disso, porm, no h grande necessidade fazermos
propaganda, porque h muita gente com dinheiro que procura descobrir
possibilidades e sabem onde elas podem existir.
Coisas que nos poderia ser muito til, e deveramos procurar conseguir mesmo por
alto preo, arrolhar os cabotinos que fazem a Amrica, onde colhem dados
apreciadssimos para escrever livros e artigos ou para fazer conferncias se utilizado
daqueles e destas como veculos de asneiras de todo quilate.
Confiscar essas publicaes mesmo a troco de bom dinheiro valia a pena.
A propaganda intempestiva contraproducente, como sucedeu do turismo, logo
seguida, por uma feroz ironia do acaso, de um surto de febre amarela.
Quando ns tivemos dose suficiente de brancura, juzo, ordem, dinheiro, conforto,
salubridade, cultura e outras coisas que so sugadas pelas razes de uma planta
chamada Civilizao, o mundo ver tudo isso. At l, silncio.
veiculados ou no era assinada pelos autores ou era finalizada somente com iniciais ou pseudnimos, o que
dificultou sobremaneira a identificao dos grupos intelectuais reunidos em torno da publicao no perodo
estudado (Ibid., p. 46).
661
Careta, 1 de fevereiro de 1930 ano XXIII, n 1128.
188
A extenso dessa fonte concomitante com a riqueza que ela possui para nossa
observao no trato do debate racial do Brasil. De princpio, possvel compreender que logo
no comeo da dcada de 1930 as influncias das questes raciais e eugnicas tinham um
amplo espao de dilogo, no somente no meio acadmico, mas nos peridicos. Estas
problemticas que surgiam impostas pelo problema da cor e raa eram condizentes com o
momento social que se vivia no pas.
A tentativa de branquear o Brasil ganhava visibilidade no texto em que traz uma
dualidade crtica indagada por Micromegas. Ou seja, se todos sabiam que o Brasil era
composto por trs raas, portanto, no seria mais importante preocupar-se com problemas
sociais e econmicos do que apenas a preocupao em elevar o Brasil a um povo de pele
branca? Certo que a crena de um povo branco, guiado por um controle matrimonial,
como estabelece Micromegas nos Estados Unidos na frase: Os americanos timbram, porm,
em vo, misturar o caf com o leite (a no ser muito clandestinamente) reflete na tentativa
deste pas em cessar o contingente negro dentro do seu territrio, uma prtica de cunho
eugnico que no Brasil, com Renato Kehl, estava sendo aplaudida com o mesmo nome de
controle matrimonial. Ora, no foi justamente em Lies de Eugenia que Kehl iria dizer que
"S motivos acidentais ou aberraes mrbidas fazem um branco se unir com uma negra"662.
Esta situao no se traduz apenas na viso eugenista de Kehl. No Boletim de Eugenia,
de junho de 1931, temos a publicao do professor Luiz L. Silva da Faculdade de Farmcia e
de Odontologia de Santos, com um tpico chamativo para esta abordagem: Cruzamento do
branco com o preto. Entre outras, ele reproduz o discurso das diferenas ceflicas e fsicas
entre as cores e projeta que cada elemento deve seguir o cruzamento com sua raa. Com
efeito, o incio do texto responde toda a indagao do professor: razovel o casamento do
branco com o preto? No, absolutamente no. E ainda mais, nem razovel nem decente663. A
viso da unio matrimonial das raas era parte integrante de projetos de tericos raciais e
eugenistas de longa data.
Micromegas escreve este artigo no ano seguinte ao Primeiro Congresso Brasileiro de
Eugenia, em um momento em que a eugenia negativa de Kehl tornava-se mais proeminente.
662
663
189
Sendo assim, possua uma percepo que o insere no discurso em tempo real dos problemas
que se avolumavam no processo eugnico no Brasil, entre eles, a imigrao e a raa.
O texto, situado em um momento inicial de 1930, abrange quase que toda a nossa
abordagem e nos serve como introdutrio nesta etapa de verificao das fontes. A discusso
sobre branquear, mestio, negro, controles raciais no matrimnio, raa e imigrao,
problemas polticos e econmicos vinculados com a ideia racial fazem parte de uma gama
de palavras-chave que so o arcabouo do nosso estudo complacente s caricaturas e s teses
eugnicas que procuravam se propagandear no Brasil.
A almejada identidade perpassava por problemas que estavam vigentes e precisavam
ser resolvidos na sociedade como apontou Micromegas: Quando ns tivemos dose suficiente
de brancura, juzo, ordem, dinheiro, conforto, salubridade, cultura e outras coisas que so
sugadas pelas razes de uma planta chamada Civilizao, o mundo ver tudo isso. Um
conjunto de elementos que trazem a problemtica da anlise racial, somado aos conflitos
sociais, como o dinheiro em contraponto a posio econmica que o Brasil desencadeava
pelas dificuldades econmicas do caf, a salubridade e a sim, aquela ao eugenista e
higienista que vai percorrer o imaginrio de mdicos e intelectuais ao longo de toda a
discusso racial -, tudo isso em sintonia com a almejada compreenso de civilizao. Esta
a caa interna da cor relacionada nacionalidade, e ser um assunto que o Governo Vargas
tentar dinamizar dentro das suas possibilidades de ao.
De fato, uma vertente no sincronizada s teses deterministas e da antropologia fsica
comeava a se esboar com mais proeminncia nesta poca, mas seria um erro acreditar que
ela condicionar um discurso hegemnico na revalorizao do olhar da sociedade avessa aos
critrios raciais deterministas, para refletir sobre a nao. Mostramos no captulo anterior
que o debate tornou-se ainda mais acirrado na dcada de 1930. A segunda metade deste
decnio certamente reservou um agravante da leitura racial, no por acaso, como aponta
Skidmore, em outubro de 1935:
Doze intelectuais brasileiros dos mais conhecidos, inclusive Roquette Pinto, Artur
Ramos e Gilberto Freire, preocuparam-se a ponto de lanar, em outubro de 1935, um
manifesto contra o preconceito racial, no qual advertiam que a transplantao de
ideias racistas e, sobretudo, dos seus corolrios polticos e sociais, constitui risco
particularmente grave num pas como o Brasil cuja formao tnica
acentuadamente heterognea. Anunciaram que tais perverses de ideias
cientficas baseadas em fantasias e mitos pseudocientficos, criariam no Brasil
perigos imprevisveis, comprometendo a coeso nacional e ameaando o futuro da
nossa ptria.664
664
SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raa e nacionalidade no pensamento brasileiro. op.cit., p. 225.
190
A eugenia, que at anos antes estava atrelada para alguns como sinnimo de
saneamento hereditrio e legitimada em um status cientfico como cincia, elevando Renato
Kehl como um cone da eugenia e respeitado no meio mdico, se dividia cada vez mais nas
vrias interpretaes do seu conceito aplicvel no pas. As estruturas que pautavam as
diferenas entre tipos ou raas no se apoiavam somente nas discusses internacionais,
mas a prpria sociedade brasileira em seus vrios nveis sociais se apegava nas ideologias
racistas para regular-se dentro das normas dos preconceitos raciais na nao.
O texto de Micromegas data 1930, porm o assunto referente eugenia, raa e
imigrao parecia ser uma constante no perodo, principalmente na discusso do chamado
tipo racial:
191
GERALDO, Endrica. O perigo aliengena: poltica imigratria e pensamento racial no governo Vargas
(1930-1945). op.cit., p. 84.
666
Ibid.
667
Ibid.
192
poderia degenerar-se ainda mais. Sendo assim, a fuga de compreender o Brasil como
apresentando vrios tipos se tornaria uma vertente consolidada do meio eugenista. Vianna
explica:
Essa desambio natural do ndio e essa mediocridade ingnita do negro se
transmitem aos seus mestios, da a extrema sobriedade das nossas populaes
mestias. Curibocas, cafuzos, mulatos, todos, com exceo de uma pequena minoria
de eugnicos, vivem a mesma vida dos seus ancestrais, satisfeitos na sua misria,
contentes na sua parcimnia e incapazes de realizar, espontaneamente, o mais leve
esforo para melhorar o teor da sua existncia miservel. Essa ausncia de estmulos
de melhoria na sua psique f-los elementos inertes e improgressivos, foras
negativas, que dificultam e retardam o movimento ascensional da nossa massa social
para a riqueza e para a civilizao.668
A fala de Vianna relaciona-se com o cunho idealista do que entendia por civilizao,
pois era preciso ter a nsia em ser civilizado e, neste caso, o elemento mestio, negro e
indgena, diante do seu passado, ainda possuam resqucios da falta de progresso. Este seria
um sintoma para alguns intelectuais caractersticos dessas civilizaes inferiores, em que
no se importariam com a vontade progressista que idealizavam as naes contemporneas.
A acepo de que as chamadas raas inferiores conservariam a inrcia do progresso dos
seus ancestrais pode ser constatada desde Nina Rodrigues, quando exps que o esprito
criminoso do negro seria advindo da composio de sua sociedade e de sua prematura e
infantil moralidade.669
A ilustrao 4, oferece diferentes tipo fsicos que preenchem a coqueteleira
brasileira. No por acaso, do lado esquerdo da imagem, doze padres raciais podem ser
notados. Desse modo, h o negro, o asitico, formas fsicas variadas tal qual o nariz, cabelos e
olhos, onde todos eles so ingredientes de raas estrangeiras que resultariam no almejado
tipo padro. Em outras palavras, os prprios retratados seriam um exemplo de mestiagem.
O resultado disforme estabelece para ns as linhas gerais do mestio degenerado, afinal, a
caricatura deste tipo nacional tem a tendncia a uma monstruosidade e fealdade com
resultado da mistura racial, algo defensvel pelos idealistas raciais que propagavam que
cada tipo humano deveria cruzar-se com sua respectiva espcie.
Kehl, por sua vez, mostrou-se veemente contra o cocktail racial e, em vrias
ocasies, referiu-se aos problemas da nacionalidade brasileira como sendo derivados da
miscigenao que se descontrolava no Brasil. O termo estandardizao, inclusive, dito
668
VIANNA, Oliveira. O typo brasileiro: seus elementos formadores. In: Dicionrio, Histrico, Geogrfico e
Etnogrfico do Brasil. Rio de Janeiro: IHGB, v. 1, 1922, p. 287.
669
RODRIGUES, Raimundo Nina. Os africanos no Brasil. op.cit., p. 112.
193
por Kehl em Aparas eugnicas: Sexo e Civilizao: a estandardizao humana ser, pois,
fatal, embora num futuro mais ou menos remoto. Caminhamos para isso670.
Aludindo a este cocktail como uma oficina gentium, o Brasil representava um
grande laboratrio de elementos diversos e dentro dele ter de se operar por muito tempo um
grande metabolismo racial, com a assimilao de uns e a desassimilao de outros671. Mas
para Kehl, a soluo encontra-se no pargrafo seguinte, onde a sada para este mal laboratorial
que representaria o Brasil estaria nas mos do homem branco. Ele seria responsvel pela
melhoria e o progresso nacional, mesmo com os percalos das outras raas:
Dessa qumica complexa e morosa resultar, daqui a alguns sculos apesar dos
prejuzos acarretados raa branca, uma nacionalidade melhor caracterizada, um
povo forte e varonil que, talvez, se emparelhar dignamente, com os melhores
aquinhoados.672
670
194
GARCIA, Sheila do Nascimento. Revista Careta: um estudo sobre humor visual no Estado Novo (1937
1945). op.cit., p. 16.
195
doente e necessitando de medidas mais draconianas. Talvez, para ele, com o novo governo
que surgia, suas aplicaes poderiam finalmente se transformar em leis. Na caricatura em
pauta, ao dizer que no Brasil at os imbecis so os caras inteligentes!, sinaliza que esta
viso de Kehl entre bem dotados perante os degenerados era um discurso conhecido no
meio social para outras proposies fora do mbito das teorias raciais. O dilogo entre as
personagens pode sugerir a referncia a agentes polticos ou mesmo a elementos da
populao. O que nos interessa a condio do termo eugenia, que elevado no discurso de
populares para fragmentar e separar aqueles que precisam da cura da raa, onde o
componente espacial Brasil o foco da condio eugnica das personagens.
A eugenia estava vinculada as questes raciais e, mais ainda, discutida em um pas
como Brasil dotado da pluralidade de tipos humanos. Implantada neste amplo debate, os
anos de 1930 representaram uma revalorizao do discurso oficial do termo raa em prol do
nacionalismo, o que inversamente proporcional a uma amnsia do discurso eugnico no
organismo social brasileiro. Neste sentido, Schwarcz considera que o mestio vira
nacional, ao lado de um processo de desafricanizao de vrios elementos culturais,
simbolicamente clareados674. Na Careta, em 3 de setembro de 1932, Peregrino Junior
escreve na coluna Block-Notes um sugestivo texto denominado Black and White..., que baliza
este momento de balancear entre o valor do negro e do mestio no cenrio nacional, perante a
viso degenerada e no civilizada que carregava o Brasil pela ddiva desses elementos na
nao. Sendo assim, acompanharemos este texto:
Evidentemente no Brasil no h preconceitos de raas. Em todo caso, h muita gente
que gosta de fazer praa dos seus brases e h tambm pessoas imprudentes que
falam dos nossos negros e mulatos com uma superioridade desprezadora. Uns e
outros tm, porm, contra si uma coisa terrvel: o ridculo. Porque a verdade que o
Brasil no leva a srio os pruridos nobilirquicos desses brancos de carregao.
difcil, no caos tnico da nossa sub-raa, apurar com rigor as gotas de sangue azul
que correm nas veias das pessoas importantes que possuem brases e empfia... O
melhor que no meio desses brancos de brases suspeitos e pele precria, aparece
cada sujeito gozado!...
O Sr. Alberto Rangel, por exemplo. Exemplar admirvel de branco, o Sr Alberto
Rangel no gosta de mulatos. H pouco, publicou mesmo, em Paris, um artigo
turgido de indignao e clera contra o mulatismo nacional. O Sr Alberto Rangel
v mulatismo em tudo, no Brasil, na nossa histria, nas nossas artes, na nossa
poltica. E atira-se, cheio de clera sagrada, contra os mulatos que comprometem
com o seu cabelo e seu pigmento a dignidade dos brases e da brancura da nobreza
brasileira...
Realmente no Brasil h mulatos. fato. Ningum pode negar. O que curioso,
porm, que esses mulatos se encontram at mesmo entre os indivduos de
epiderme mais branca... que aquilo que caracteriza o mulato, entre ns no tanto
o pigmento da pele, mas principalmente o carter e a inteligncia. O mulato no
674
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Nem preto nem branco, muito pelo contrrio: cor e raa na sociabilidade
brasileira. op.cit., p. 58.
196
como muita gente pensa, um tipo racial, um tipo moral. a espcie mais curioso e
caracterstico da subcultura brasileira. O mulato pernstico e sestroso. metido a
sabicho. Fala difcil e escreve empolado. o tipo do sujeito pau.675
Outras informaes contribuem para pensar o negro na posio social do Brasil que,
como aponta Peregrino Junior, sua condio de cor era ignorada quando outros fatores
socioeconmicos eram postos prova. No caso de Machado de Assis ou Lima Barreto,
parecia no haver problemas de no serem brancos. Peregrino, ao citar Ribeiro Couto, que
viria a ser, em 1934, membro da Academia Brasileira de Letras, elucida que parte da
intelectualidade da poca concordava com a quebra do paradigma racial e a uma nova
675
Careta, 3 de setembro de 1932, Ano XXV, n 1.263. Assinado por Pelegrino Junior.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Nem preto nem branco, muito pelo contrrio: cor e raa na sociabilidade
brasileira. op.cit., p. 59.
677
Careta, 3 de setembro de 1932, Ano XXV, n1.263. Assinado por Pelegrino Junior.
676
197
Por este aspecto, compreendemos que cor e raa, assim como o sertanejo, eram cada
vez mais tomadas por um discurso de defesa ao homem brasileiro de um contingente
intelectual da sociedade. O Jeca Tatu, visto pelo movimento eugnico como um doente
que precisava regenerar, agora ganhava um status de desbravador, sinnimo de brasilidade e
no deveria se curvar aos movimentos imperialistas como outras naes. Comprava-se assim
o discurso em oposio ao Jeca fraco e doente por um Jeca forte e brasileiro. O termo
sub-raas tambm ganharia destaque, afinal, fora notado desde a poca de Nina Rodrigues679,
pois haveria a crena de que o Brasil estaria repleto de condies sub-raciais. Contudo, no
texto, estes elementos seriam a fora motora da identificao nacional. verdade que o
pensamento possui uma ambiguidade, uma vez que o Jeca ainda no estava curado das
suas doenas, mas para ns, os discursos apresentaram tanto uma revalorizao interna de
raa e do sertanejo, dois elementos considerados margem da sociedade brasileira.
678
Careta, 21 de novembro de 1931, Ano XXIV, n 1.222. Assinado por D. Ribeiro Filho.
Na classificao do autor, os mestios integrariam um grupo diferenciado composto por mulatos, mamelucos
ou caboclos, curibocas ou cafuzos e os pardos (RODRIGUES, Raimundo Nina. As raas humanas e a
responsabilidade penal no Brasil. op.cit., p. 119-121).
679
198
Apesar do discurso duplo com relao raa dentro da sociedade, a manuteno dos
brases brancos, que almejava Rangel, continuaria vigorando no coletivo das caricaturas da
Careta. O determinismo do branco como sinal de posio social privilegiada mantido no
escopo das discusses sociais e reafirmava a contradio entre brancos, como privilegiados, e
negros e mestios, como marginalizados.
H outro texto vinculado na Careta na coluna Looping the Loop: E assim por
Deante..., por Domingos Ribeiro Filho, em 29 de abril de 1933, do qual no se pode
negligenciar. preciso dizer que em sua maioria, as crnicas e textos da Careta geralmente
so longos e reflexivos, esta no ser diferente. Sua importncia consiste no debate de
adentrar na questo da eugenia como reformulao moral e fsica do indivduo. Segue a fonte:
Nenhum aperfeioamento humano foi realizado, individual ou socialmente
considerado desde que a nossa espcie atravessou o difcil perodo da horda
declara o professor Armuth num longo estudo sobre O que somos e O que
pretendemos ser.
parte as suas documentaes de carter puramente cientifico, que interessam os
seus colegas, curioso examinar e seguir as dedues e concluses a que chegou
nessa tese to franca quo impressionante numa poca de inquietaes e de
regressos incrveis.
O que nos importa particularmente o animal humano, pobre ser que se adelgaa e
se amofina e que toma como aperfeioamento individual precisamente aquilo que
exprime a sua nulificao e incapacidade. Tanto mais frgil e vaso quanto mais
precioso; apenas esse preo estimativo e no real, nada representa e no vale nada.
Quem o pagaria? Nem mesmo o prprio homem.
Os seres fracos no tm se quer o valor de produo, se quer o de auxiliares da
industria cuja mecanizao no tem melhor explicao que da fragilidade crescente
dos indivduos da nossa espcie.
A domesticao dos animais, j de eras remotssimas, indica que a conscincia da
fraqueza do homem ancestral. O uso das armas outro documento; a sociabilidade
e, por fim, o industrialismo corrobora nessa documentao altamente material e
irrecusvel.
A medicina, desde os processos espontneos e empricos at a intensificao do
cientificismo acabou de aniquilar os nossos valores fsicos e mecnicos.
Mas aqui, se dir, est o aperfeioando do homem. um engano ou uma
autossugesto. A cincia no somente prova contraria a afirmao acadmica e
literria, como em si mesma ela frgil e fugaz. Muito em vez de restituir os valores
perdidos pela espcie humana, ainda ela creia o artificialismo que nos acaba de
arruinar. por ela e com ela, precisamente, que o homem deixa os seus ltimos
valores e regride e deperece.
Alguns sonhadores de perfeio e de aperfeioamentos incorporam essas iluses a
prpria mentalidade puramente pelo fato de no encontrarem provas reais do que
afirmam em recanto algum da existncia social ou pessoal. E ainda h uma classe de
gente, curiosa e impertinente, que fala em aperfeioamento morais, coisa que no
est localizada em rgo algum nem em funo alguma do nosso corpo, nem mesmo
no crebro que um rgo infeliz e passivo na sua funo de lacaio de nossas
vsceras e dos nossos tecidos.
No h, alis, modelo algum pelo qual se possa aferir ou comparar o
aperfeioamento do homem. Teramos que descer na escala do transformismo para
achar o nosso modelo ou passar alm, ao campo de animalidade pura, onde
acharamos alguns exemplares de perfeio confessada. Mas, com grave desgosto
dos intelectuais, esses modelos no tm crebro e os dispensam das iluses morais,
sociais e filosficas.
199
680
Careta, 29 de abril de 1933, Ano XXVI, n 1.229. Assinada por Domingos Ribeiro Filho. [Grifo nosso].
200
REIS, Jos Roberto Franco. Higiene mental e eugenia: o projeto de regenerao nacional da Liga Brasileira
de Higiene Mental (1920-1930). op.cit., p. 92.
201
682
202
negros687. Por esta anlise, Maior salienta que a aguardente adquirida e depois fabricada no
engenho era para o consumo dos negros, durante o inverno ou quanto estavam doentes688.
medida que caminhamos para os grandes engenhos, Gilberto Freyre aponta que
devido, sobretudo, ao banzo, era quase com frequncia que o negro entregava-se aos abusos
de aguardente, na tentativa de encontrar alguma distrao na vida sofrvel que levavam.689
Maior tambm argumentou por esta tica, pois depois de um longo dia de trabalho sob as
ordens de um feitor s vezes desumano eles se viam com o direito de afogar suas mgoas e
suas saudades africanas690. Mesmo a cachaa ganhando seu status nacional e sendo uma
bebida consumida por diversas categorias da sociedade nos dias de hoje, ela esteve atrelada ao
esteretipo cultural do negro viciado e embriagado. A cachaa muitas vezes utilizada em
rituais de religiosidade afro-brasileira acabou, por excelncia, como um sinnimo de bebida
com patente do negro e pobre. Essas sequelas permearam na consolidao de uma imagem
do negro vagabundo e preguioso que encontrou no vcio da bebida uma fuga para a vida
escravista. O usque, por sua vez, uma bebida de alto preo contrasta a diferena racialeconmica da caricatura, em outras palavras, o negro que bebe usque poderia branquear-se,
afinal, tratava-se de uma bebida cara e de branco.
Estes estigmas de um determinado tipo de bebida alcolica ligada raa merecem
destaque na anlise historiogrfica, pois muito mais que identificar os agentes que envolvem a
utilizao deste paradigma caricatural, necessrio que o historiador compreenda o
significado das drogas em cada cultura e de uma imensa rede de significados culturais, ritos
e prticas de socializao nelas consubstanciadas691. Ou seja, o que levaram os negros a
ficarem atrelados s bebidas como a cachaa, corresponde a um conjunto simblico de
permanncias histricas desde a Dispora Africana at a regulamentao da bebida dentro das
sociabilidades que, muito mais que consumo e consumidor pairam em uma rbita que envolve
agentes polticos e econmicos, bem como, para ns, as teorias raciais e a condenao do
lcool por parte da eugenia. Citando o historiador Henrique Carneiro, nesta dinmica
multifacetada das drogas ele afirma que, o surgimento do taylorismo e do fordismo foi
concomitantemente aos mecanismos puritanos da Lei Seca e a discriminao racial de
imigrantes serviu de pretexto para a estigmatizao do pio chins e da marijuana mexicana
687
Ibid., p. 34.
Ibid., p. 35.
689
FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: formao da famlia brasileira sob o regime da economiza
patriarcal. 48. Ed. So Paulo: Global, 2003, p. 554.
690
MAIOR, Mrio Souto. Cachaa. op.cit. p. 37-38.
691
CARNEIRO, Henrique. Transformaes do significado da palavra droga: das especiarias coloniais ao
proibicionismo contemporneo. In:______; Venncio, Renato Pinto (orgs). lcool e drogas na histria do
Brasil. So Paulo: Alameda; Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 2005, p. 17.
688
203
Ibid., p. 18.
KEHL Renato. Lies de Eugenia. op.cit., p. 61. Em nota, o autor ainda destaca que depois de examinar
5.736 famlias, o Dr. Laitinen concluiu que mesmo em pequenas doses, o lcool exerce uma influncia
degeneradora sobre a prole. Numa famlia de descendentes de alcoolistas, composta de 9 pessoas, o Dr. Nardelli
constatou que todas eram fsica e psiquicamente degeneradas.
694
FERNANDES, Florestan. O legado da raa branca. So Paulo: Dominus Editora, 1965, p. 125.
695
REIS, Jos Roberto Franco. Higiene mental e eugenia: o projeto de regenerao nacional da Liga Brasileira
de Higiene Mental (1920-1930). op.cit., p. 82.
696
Ibid.
693
204
Outro autor que nos possibilita entender este nterim entre cor, raa e alcoolismo
Jurandir Freire Costa, ao abordar a relao da psiquiatria e eugenia e a viso do lcool. Assim
como Reis, Costa estudou a Liga Brasileira de Higiene Mental e pde perceber que a relao
do lcool esteve ligada a condio social, pois como nessa poca os negros e brancos pobres
tinham um nvel de vida mais ou menos semelhante, pode-se supor, legitimamente, que o
alcoolismo da camada pobre da sociedade era, sobretudo, determinado por sua condio
socioeconmica698. Ele ainda soma uma anlise da dcada de 1930 para pensar que o
alcoolismo possua um teor de desorganizao moral e deveria ser sanado:
A manifestao mais marcante deste equvoco o endurecimento das campanhas
antialcolicas na dcada de 1930. Aps a Revoluo de 1930, a LBHM volta carga
contra o alcoolismo de maneira feroz e, nesse estgio, fcil perceber que o objetivo
dos programas de higiene mental no era o de curar ou prevenir o alcoolismo, mas o
de regenerar a sociedade conforme um cdigo moral particular.699
697
Ibid., p. 86.
COSTA, Jurandir Freire. Histria da psiquiatria no Brasil: um recorte ideolgico. 5. ed. Rio de Janeiro:
Garamond, 2007, p. 91.
699
Ibid.
700
Archivos Brasileiros de Hygiene Mental. Ano 1, n 2, 1925.
701
LWY, Ilana. Vrus, mosquitos e modernidade: a febre amarela no Brasil entre cincia e poltica. op.cit., p.
136.
698
205
um problema sanitrio que atinge com veemncia o campo, ele no estaria reservado apenas
populao negra, mas abrangeria tambm a populao branca.
Tambm vlido enfatizar nessa construo caricatural que desponta na drstica
condio socioeconmica no Brasil, o fato do linguajar das personagens algo que veremos
repetidamente em outras caricaturas. A personagem refere-se ao usque como wiska, uma
possvel referncia a no familiaridade do dito artigo de luxo dentro da concepo de vivncia
do negro e das classes mais pobres. O Antonho quer beber wiska (usque), uma bebida de
branco, onde at o cavalo da garrafa branco. Ser que Antonho tambm queria ser branco
como o cavalo da garrafa? Nos anos em que a eugenia exaltava o branqueamento e os
dilogos de Vianna e Kehl ecoavam dentro da sociedade, no parece improvvel que era
desejo de Antonho se eugenizar. Para estes Antonhos, Florestan traz um depoimento
revelador da poca dessa relao entre bebida e cor: Branco quando morre, / foi a morte que
levou./ Negro quando morre,/ Foi cachaa que matou702.
FERNANDES, Florestan. O legado da raa branca. So Paulo: Dominus Editora, 1965, p. 127.
206
- Ora, Marcolina, ento quem vem de banquete qu sab de resto do armoo, da vespra?!
207
Andrews ajuda a descortinar que aps a abolio as novas condies impostas pelo
capital e o trabalho deram uma indita dinmica relao de empregos, onde, muitas vezes,
permearam por implicaes raciais. Tais dinmicas nos levam concluso da preferncia
aos imigrantes.704 Com o negro marginalizado, avesso para a sociedade e aglomerando-se nas
periferias das zonas urbanas705 parecia evidente que a dificuldade em conseguir empregos
estimulou outros grupos a estereotiparem negros e mestios como componentes permissivos e
atrelados vadiagem. Este espectro se tornaria uma rotina no seu estigma do esteretipo
cultural. Os julgamentos do negro como cachaceiro, festeiro, vadio e preguioso serviram
para as elites brancas compreenderem a raa vinculada moralidade e aos padres de
trabalho. O imigrante, forte, robusto, com vontade de trabalho versus o homem de cor
703
ANDREWS, George Reid. Negros e brancos em So Paulo (1888-1988). Traduo de Magda Lopes. Bauru,
SP: EDUSC, 1998, p. 111-112.
704
Fernandes considera que A concorrncia do imigrante no s os desalojou das posies mais ou menos
vantajosas, que ocupavam; impediu que eles absorvessem, na linha do padro tradicional de ajustamento
econmico imperante sob a escravido, as oportunidades novas (FERNANDES, Florestan. O Negro no mundo
dos brancos. op.cit., p. 46).
705
Vale ressaltar que o contingente negro em sua totalidade no migrou para os centros urbanos e, muitos exescravos, porm, permaneceram nas localidades em que haviam nascido. Estima-se que mais de 60 por cento
deles viviam nas fazendas cafeeiras e canavieiras do Centro-Sul do Brasil (ALBUQUERQUE, Wlamyra R de;
FILHO, Walter Fraga. Uma histria do negro no Brasil. Salvador: Centro de Estudos Afro-Orientais; Braslia:
Fundao Cultural Palmares, 2006, p. 198).
208
MOURA, Clvis. Sociologia do negro brasileiro. So Paulo: Ed. tica, 1988, p. 80. Segundo razes
econmicas: 25 acreditavam que negro era mau trabalhador. Por razes intelectuais e morais, 19 acreditavam
que possua inteligncia inferior, degenerado, amoral, indolente, bbado e criminoso. Por razes raciais, 44
acreditavam em inferioridade congnita, dio ao branco oculto no corao do negro. Outros 9 acreditavam em
existncia de preconceito de cor e, por fim, tambm outros 9 delinearam outras razes.
707
ALBUQUERQUE, Wlamyra R de; FILHO, Walter Fraga. Uma histria do negro no Brasil. op.cit., p. 175.
209
imigrao que mesmo com baixssima precariedade teria que reorganizar todo o sistema
exploratrio. No que concerne relao entre negros e a escravido, sabe-se que ela era
recheada de conflitos, pois muitos se rebelaram, fugiram, formaram quilombos e, talvez, por
conta disso, esta seja uma das explicaes que findaram na cor uma imagem arrolada
vadiagem. Este seria mais um elemento que contribuiria para intensificar aps a escravido o
sentido da cor como degenerado ainda mais em comparao a massa integracionista.
Desse modo, o fim da escravido libertou formalmente o negro escravo, mas no foi o
suficiente para assegurar suas oportunidades igualitrias como agente social, pois agora
estavam mais uma vez luz das interpretaes das teorias raciais. Em seu turno, estas teorias
eram bem vistas pelos antigos senhores, ao passo em que mantinham definida sua posio
social entre brancos e negros.
No Rio de Janeiro, como resultado da abolio, houve um redirecionamento de boa
parte dos negros para a capital federal e, com a virada para o sculo XX, um conjunto de
pautas com enfoque no higienismo e sanitarismo ganhava cada vez mais espao. Era uma
questo de pouco tempo para que os negros se tornassem vtimas raciais das doenas que
deveriam ser extirpadas. A aglomerao em cortios para depois serem expulsos e migrarem
para as favelas simbolizou sua excluso de ambientes que deveriam ser branqueados.
Com poucas oportunidades de disputa no mercado de trabalho foram olhados como
preguiosos e revoltosos por uma recm-memria coletiva da escravido. Neste contexto, a
averso ao trabalho enraizaria na sua identidade racial. O que pode ser observado, no
entanto, que no Rio de Janeiro avistou-se uma cidade sob um aspecto mestio. Isso quer
dizer, dualidade de uma cidade branca e uma negra. A segunda no teve tanta sorte, pois
perseguir capoeiras, demolir cortios, reprimir a vadiagem o que geralmente equivalia a
amputar opes indesejveis de sobrevivncia -, era desferir golpes deliberados contra a
cidade negra,708 diz Sidney Chalhoub.
A capital carioca em formao tinha na sua essncia, alm dos problemas sanitrios, a
quantidade desproporcional de habitantes aumentando incontrolavelmente. Brevemente, nos
anos de 1890, a imigrao de estrangeiros homens era mais que o dobro em relao s
mulheres na populao total a predominncia do sexo masculino era de 56%. Jos Murilo de
Carvalho salienta que o ndice nupcial era de 26% entre os homens brancos e 12,5% entre
708
CHALHOUB, Sidney. Medo do branco de almas negras: escravos, libertos e republicanos na cidade do Rio.
Revista Brasileira de Histria. So Paulo, vol. 8, n. 16, 1988, p. 105.
210
negros, sendo assim o nmero de solteiros era relativamente alto.709 Esses dados representam
o inchao populacional da capital federal na virada do sculo, o que contribuiu efetivamente
para a manuteno do olhar do negro e do pobre para a vadiagem. Carvalho, neste sentido,
pensa que o influxo populacional foi um agravante para o descaso do trabalhador livre,
principalmente para aqueles que por uma questo racial encontrariam menos oportunidades
de trabalho:
Uma terceira consequncia do rpido crescimento populacional foi o acmulo de
pessoas em ocupaes mal remuneradas ou sem ocupao fixa. Domsticos,
jornaleiros, trabalhadores em ocupao mal definidas chegavam a mais de 100 mil
pessoas em 1890 e mais de 200 mil em 1906 e viviam nas tnues fronteiras entre a
legalidade e a ilegalidade, s vezes participando simultaneamente de ambas. Pouco
antes da Repblica, o embaixador portugus anotava: Est a cidade do Rio de
Janeiro cheia de gatunos e malfeitores de todas as espcies.710
CARVALHO, Jos Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a Repblica que no foi. 3. ed. So Paulo:
Cia das Letras, 1991, p. 17.
710
Ibid., p. 17-18.
711
RAGO, Luzia Margareth. Do cabar ao lar: a utopia da cidade disciplinar: Brasil 1890-1930. op.cit., p. 178179.
211
preocupao da moralidade e eugenia era um dos fatores a ser considerado nesse controle
habitacional. Menos vagabundos na rua, alocados em vilas especialmente higienizadas e
sob a tutela de um domnio burgus, que controlava o trabalho na mesma intensidade que
retirava seu capital dentro das prprias vilas, era uma representao concreta da tentativa de
regenerar todos aqueles que se encaixavam no modelo que deveria ser sanado, ou mesmo,
curado. Assim, nesse Congresso, reflete-se a mensagem da preocupao eugnico racial, A
habitao popular passa a ser, no discurso dos especialistas, alm de uma questo meramente
tcnica e prtica que os saberes neutros e racionais da engenharia e da arquitetura devem
resolver, uma questo de moralidade e de eugenia712.
O vagabundo permaneceria como uma inquietao do Estado como um todo e, com
isso, a preocupao de diversas medidas para tentar inspecionar estes desocupados que se
avolumavam nas cidades. Ao analisarmos a ilustrao 8 que - denuncia a cor deste
desocupados -, percebemos como a imagem do negro estava atrelada marginalizao do
homem, vista pela questo racial. O caricaturista Storni certamente observava que a
vadiagem se direcionava a certos esteretipos especficos da sociedade. Sendo assim,
caracterizando o espectro negro como este sujeito nada mais fez do que refletir quem eram
aqueles que deveriam ser associados a esta averso ao trabalho. O cigarro na orelha estabelece
a ligao entre o homem e seus vcios. Seja pela bebida ou pelo cigarro, os vcios apontavam
os cidados que no estariam ajustados a uma conduta social almejada.
Com relao metfora da qual o vagabundo se refere, esta diz respeito aos bancos
do Brasil que neste momento vinham sofrendo com a crise de 1929. Segundo o relatrio de
Otto Niemeyer, diferentemente das crises de 1920 e 1924, a atual mais extensa e profunda,
como consequncia da baixa brutal dos preos, retrao dos mercados consumidos e dos
crditos estrangeiros713. Para somar-se a esta situao, o Brasil passava por um momento de
ruptura poltica com a Revoluo de 1930 onde a dependncia do capital estrangeiro e novas
buscas de equalizar esta economia tornaram-se uma preocupao na ordem do dia do Governo
Provisrio. neste perodo que o Banco do Brasil firmava-se como entidade de descontos, na
raiz de uma tentativa de controle deste abalo econmico. Por esta crise financeira, podemos
imaginar que o feriado para os bancos da praa sugere o controle vigente dos bancos em
relao aos dficits da crise que se instauravam tambm no Brasil e, at mesmo, com relao
s taxas de cmbio. No era de se estranhar o recesso econmico nos anos de 1930 do
Governo Provisrio no esforo de controlar a inflao e a recorrente queda econmica do
712
713
212
Brasil com relao ao caf. Todo esse quadro sugeriu novas maneiras de se pensar a
economia, incluindo ocasionar modificaes aos bancos e a criao de um banco central,
estimular os crditos a injeo do povo brasileiro em aplicao de capitais internos.714
Diante desse quadro conturbado da economia do pas, a Careta mais uma vez com
suas referncias caricaturais deu um amplo enfoque s questes da crise dos bancos, em
contraste com o povo que pagava o preo de anos de m administrao pblica e que fora
presenteada com as consequncias de uma crise que tomou uma escala planetria.
O contraste social com o momento de crise dos bancos parece ser latente dentro da
reconfigurao do sistema econmico que se fazia necessrio. Na ilustrao 9, por exemplo,
visvel a dualidade entre os que ainda permaneciam com o capital e aqueles que estavam
sofrendo os flagelos da crise econmica. O dilogo entre o gordo e o magro apresenta
uma metfora da condio de poder econmico e, neste caso, o gordo simularia o excesso
714
Ibid., p.113.
213
de capital e o magro a ausncia dele.715 Isto formata o inteligente jogo de palavra entre
gordo e magro e sua representao fsica. Outro componente a ser visualizado a
quantidade de gordos para magros na figura. Isso pode estabelecer a m distribuio de
renda e a quantidade de pessoas que a crise prejudicava.
Enquanto os pobres aglomeravam-se para trazer sua economia, o rico poderia dar-se
ao luxo de emitir um cheque, um reflexo entre os picos desta sociedade economicamente
desigual no pas. Estes magros, que na figura foram reproduzidos pela maioria, podem ser
considerados como o povo brasileiro na sua totalidade de variedades de esteretipos
culturais. Na imagem, percebemos nos magros as roupas velhas, barbas em excesso, a
tristeza ou angstia nas faces. Cabe salientar a personagem negra no canto direito da
ilustrao sendo lembrada como uma das parcelas da populao que sofre diante da sua
condio econmica. Storni no desenharia essas pessoas por acaso, ele percebe a sociedade
em que vive para inserir os elementos precisos na ilustrao para ter seu sentido retratado. O
gordo, entretanto, ostenta em suas roupas esta diferena econmica, com seu traje elegante
denotando a imagem da contradio econmica que se viva naquele perodo de incertezas do
capital. A gordura representaria a fartura, enquanto a magreza a necessidade.
O titulo da caricatura, A cigarra e as formigas induz uma simbologia ao mundo
animal. Podemos compreender a ilustrao com a relao que se tem desses insetos. As
formigas so conhecidas por trabalharem coletivamente e exaustivamente - tanto para si,
quanto em prol da comunidade em que vivem -, o que configuraria a viso do povo
brasileiro na imagem. Por outro lado, podemos interpretar a representao da cigarra para o
homem gordo e endinheirado. Uma das caractersticas deste inseto o fato de serem
grandes e diferentemente da formiga, no vivenciam seu nicho ecolgico de forma coletiva. A
analogia com o mundo animal d o destaque para a relao entre os antnimos desses
grupos, onde as formigas trabalham enquanto a cigarra canta. H algumas histrias infantis
que retratam em forma de fbulas esta representao.
Outro elemento curioso diz respeito aos dois homens ao fundo da caricatura erguendo
uma meia. Entendemos que esta ao ilustra o p de meia, uma expresso popular para se
referir a quem guarda ou economiza dinheiro. comum algumas pessoas dizerem: estou
fazendo meu p de meia, ou seja, guardando dinheiro. No humor da caricatura um dos
homens tampa o nariz como se expressasse o mau cheiro que aquela meia teria. Esta
715
Deve-se atentar para a qualidade das roupas. O gordo em questo traja vestimentas que o situam como
algum da elite social. Por outro lado, existem outros personagens gordos direita, mas o que os difere do
gordo endinheirado so os trajes.
214
referncia poderia direcionar ao pobre e sua sujeira habitual que muitos consideravam como
caracterstica.
Por fim, enquanto muitos se dirigiam ao banco na tentativa de guardar suas
economias, a minoria que se mantinha com o capital teria condies em ir ao mesmo banco
para emitir um cheque. Isto expressa o carter do contraste econmico em um perodo de
crise. A personagem negra estabelece para ns a real condio da marginalidade social que
atingia uma considervel parcela da populao. Ela representa um grupo que nos traos do
caricaturista pode ser maximizada intencionalmente.
O retrato do negro dentro dos problemas sociais do Brasil sero uma constante. A
construo desses esteretipos vai ao encontro as suas vivncias cotidianas. Assim, no
localizamos, por exemplo, situaes adversas onde o negro, nesses quatro anos de anlise do
semanrio, estivesse em igualdade ou mesmo acima nas condies do branco. O postulado
representa uma evidncia da segregao e do reflexo da sociedade do perodo. Nessas
construes culturais do negro na Careta constatamos a mesma viso terica de Velloso:
Na disputa em torno das representaes da nacionalidade brasileira, a ideia de etnia,
como modeladora de temperamentos, comportamentos e atitudes, ganha
centralidade. O recorte, atravs dos tipos, oferece um rico campo de discusses,
condensando com propriedade e originalidade, a presena dos esteretipos culturais
na nacionalidade brasileira.716
Para tanto, desta simbologia do negro pobre e avesso ao trabalho no est excluda
uma viso to conhecida e caricaturada na esfera social: a malandragem e o malandro:
716
VELLOSO, Mnica Pimenta. A mulata, o papagaio e a francesa: o jogo dos esteretipos culturais. op.cit., p.
370.
717
Ibid., p. 372.
215
216
sustentam e dos golpes que aplica nos otrios, sua contra-partida bem comportada
718
. O
autor assinala que esta associao ao malandro era referncia tanto na imprensa no final dos
anos de 1920 e incio de 1930, como no senso comum, mas que existia pelo menos desde o
sculo XIX. Outro estudo que colabora com nossa investigao de Gilmar Rocha. Ele
percebe que o malandro visto como algum cuja esperteza se concretiza na lbia sedutora e
na capacidade de aplicar contos aos otrios ou, ento, algum que tem no samba um modo de
discurso social719. Rocha ainda complementa dando nfase em seu vesturio:
Sem desprezar todas estas variaes, basicamente dois tipo paradigmticos dividem
as principais representaes da personagem: e um lado, encontramos o simptico e
alegre malandro-sambista, quase sempre usando chapu de palha, camisa listrada e
sapado branco, por vezes to bem representado na pintura de Heitor dos Prazeres; do
outro lado, o malandro valente, normalmente bomio e violento, comumente visto
de terno branco, sapado de duas cores, chapu de panam, guarda uma certa
familiaridade com o antigo capoeira de palet, chapu de panam e leno no
pescoo. No difcil encontrarmos os que incorporam duplamente as
representaes do malandro esperto, simptico e cheio de gingas, e do malandro
valente, bomio, elegante e explorador de mulheres.720
Para os dois autores, o malandro tambm tem sua associao ao samba. As caricaturas
sugerem tanto elementos que direcionam a simbologia do samba como o chapu quanto
referncia a cor da pele. Muitas das caractersticas atribudas pelo autor malandragem so
correspondentes com a viso que se tinha do negro. Averso ao trabalho, promiscuidade, vcio
no jogo, golpista, entre outros, no fogem da imaginao coletiva do negro na sociedade. A
ligao malandragem ou ao samba, responde percepo deste grupo nas caricaturas. O
antroplogo Joo Batista Borges Pereira percebeu esta relao em seu trabalho. Focando-se
no rdio como fonte, ele diz que a reproduo do negro sob essas figuras vem de muito antes,
como a representao plstica da me-preta, do negro malandro, do servial ou do indivduo
com traos negrides exagerados [...]721. O autor tambm fomenta a tese que delimita o
negro conectado a malandragem e a averso ao trabalho. Por essas caractersticas com sua
vida bomia ele estaria incompatvel com as normas disciplinares722.
Quem tambm percebe as caractersticas do malandro Roberto DaMatta: [...] um ser
deslocado das regras formais, fatalmente excludo do mercado de trabalho, alis, definido por
ns, como totalmente avesso ao trabalho e individualizado pelo modo de andar, falar e vestir718
SANDRONI, Carlos. Feitio decente: transformao do samba no Rio de Janeiro, 1917-1933. 2. ed. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 156
719
ROCHA, Gilmar. Navalha no corta seda: Esttica performance no vesturio do malandro. Revista Tempo.
Rio de Janeiro, v. 10, n. 20, 2006, p. 134-135.
720
Ibid., p. 154.
721
PEREIRA, Joo Batista Borges. Cor, profisso e Mobilidade: o Negro e o Rdio de So Paulo. 2. ed. So
Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 2001, p. 180.
722
Ibid., p. 153.
217
Ainda pode ser ressaltado na figura do malandro o status da cor negra na sua
construo simblica726. Assim como apresenta Velloso, os esteretipos culturais podem vir
a adquirir outras funes727 e oferecem elementos cognitivos e identitrios capazes de
organizar ideias e produzir referencias de autoconhecimento e de ao para os diferentes
grupos sociais728. A representao do malandro em nossa caricatura traz vrios elementos
que permitem sua identificao. Esta uma constituio presente da imagem do malandro que
circulou por diversas caricaturas da Careta. Assim como o Jeca Tatu tinha seus prprios
trajes, modo de falar e se apresentar, os malandros tambm possuam suas caractersticas
peculiares.
Nesta anlise, o elemento negro funde-se com o malandro. Podemos complementar
este pensamento ao associar o calor do Rio de Janeiro e a multicolorao do povo que elegeu
723
DAMATTA, Robert. Carnavais, malandros e heris: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6. ed. Rio de
Janeiro: Rocco, 1997, p. 263.
724
Ibid. O autor expes acerca da cultura popular a personagem Pedro Malasartes, que, em suma, referencia ele
como malandro pelos seus trajes e aplicao de golpes. Cabe este apontamento para compreender como essa
figura do malandro ganha sobrevida ao longo do sculo XX e como seus trajes e sua moral se referem a um
esteretipo da malandragem.
725
CUNHA, Fabiana Lopes da. Da Marginalidade ao estrelato: o samba na construo da nacionalidade (19171945). op.cit., p. 159.
726
Costa Pinto salienta que o fcies estereotipado do malandro carioca, que o senso comum configurou a base
do qual julga e interpretam os homens e os fatos da mala vita da metrpole, encarna na figura a) de um negro ou
mestio, b) que vive num morro, numa favela. Negro, ou mulato, e morro so elementos essncias do
esteretipo do malandro e nisso refletem de modo primrio e parcialmente verdadeiro, a associao real e
objetiva que existe entre os elementos a) classe social b) condio tnica, c) situao ecolgica, e, principalmente
d) desajustamento social e econmico, que esto origem do tipo social do malandro (COSTA PINTO, Luiz de
Aguiar. O Negro no Rio de Janeiro: Relaes de Raas numa Sociedade em Mudana. op.cit., p. 211). No
consideramos apenas essas questes na figura do malandro, mas a interpretao de Costa Pinto reflete sua figura
associada a questo da cor e raa no Brasil.
727
VELLOSO, Mnica Pimenta. A mulata, o papagaio e a francesa: o jogo dos esteretipos culturais. op.cit., p.
368.
728
Ibid., p. 368-369.
218
um negro nesta caricatura para representar o malandro e o carioca, mas diante do senso
comum construdo dentro dos esteretipos culturais, parece inerente que no foi por acaso que
o aspecto da cor foi induzido malandragem. O caricaturista Storni, mais uma vez, distingue
dentro dos contrastes sociais essas pertinncias do senso comum e, a partir dos seus traos,
representa uma tica social do negro estigmatizado na malandragem.
Na histria, a malandragem, evidentemente mestia, ganha uma verso internacional
quando, em 1943, Walt Disney apresenta pela primeira vez o Z Carioca729, diz Schwarcz. A
exportao de um personagem brasileiro e a caracterizao deste, com smbolos brasileiros,
possuem duas facetas: a primeira de apresentar o brasileiro ao mundo; a segunda,
inevitavelmente de maneira intencional ou no -, a de manter os vcios dos esteretipos
culturais que ligam o brasileiro a determinados elementos internos da cultura nacional, muitas
vezes contendo fortes ambiguidades positivas e negativas. O malandro acabou assimilado
como forma de pertencimento cultura brasileira, mas tambm ganhou a conotao pejorativa
denominada de jeitinho brasileiro, como forma de burlar regras e obter favores, muitas
vezes, fora da lei.
Outro ponto a ser registrado na caracterizao do negro na ilustrao 10 no s
nesta, mas aparecer com frequncia em diversas representaes -, so seus traos faciais.
Observem que h dois sujeitos, um branco e um negro. O negro possui lbios maiores,
aparentemente sem cabelos ou quando possuem so crespos -. Enfim, caractersticas
prprias que condicionam as imagens a estabelecerem ligaes com personagens de real
interao popular a partir da maximizao de suas feies mais proeminentes. O pesquisador
Kabenguele Munanga, ao mostrar o estudo do sculo XIX do cientista francs Paul Broca
(1824-1880), embasa que traos morfolgicos, tais como o prognatismo, a cor da pele
tendendo escura, o cabelo crespo, estariam frequentemente associados a inferioridade730,
em contrapartida, a pele clara, cabelo liso e rosto ortognato seriam atributos comuns aos
povos mais elevados da espcie humana731. Complementando a relao entre caricatura e
traos fsicos, diz Gen:
Narizes e orelhas so os traos que definem com preciso o esteretipo racial. As
caricaturas descrevem, a partir do modelo lombrosiano, uma matriz fisionmica
amplamente inclusiva para a identificao de uma ampla gama de cidados que
729
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Nem preto nem branco, muito pelo contrrio: cor e raa na sociabilidade
brasileira. op.cit., p. 60.
730
MUNANGA, Kabenguele. Negritude: Usos e Sentidos. So Paulo: tica, 1988, p. 20.
731
Ibid. O quarto item do nosso captulo anterior mostrou como essas ideias de Paul Broca do rosto ortognato
se fizeram presentes nos discursos de intelectuais do Brasil.
219
732
GEN, Marcela. Construindo o inimigo da nao: caricaturas de judeus na imprensa de Buenos Aires
(1930-1935). op.cit., p. 445.
733
FLORESTAN, Fernandes. O legado da raa branca. op.cit., p. 242.
734
REIS, Jos Roberto Franco. Higiene mental e eugenia: o projeto de regenerao nacional da Liga Brasileira
de Higiene Mental (1920-1930). op.cit., p. 151.
735
Ibid., p. 152.
220
221
row as in snakes) and cranial bones (epactal bone as in the Peruvian Indians): all
these characteristics pointed to one conclusion, the atavistic origin of the criminal,
who reproduces physical, psychic, and functional qualities of remote ancestors738.
738
LOMBROSO, Cesare. Criminal Man. New York: The Knickerbockers Press. 1911, p. 7-8.
SUREZ, Laura; GUAZO, Lpez. Eugenesia y racismo en Mxico. op.cit., p. 63.
740
ALBUQUERQUE, Wlamyra R de; FILHO, Walter Fraga. Uma histria do negro no Brasil. op.cit., p. 208
739
222
Apesar das releituras raciais no escopo da era ps-eugenia e Segunda Guerra Mundial,
principalmente com as pretenses antirracismo da UNESCO, as referncias ao negro
comparado aos macacos no deixaram de existir nas relaes racistas sociais que se estendem
at a contemporaneidade. A insistncia na manuteno dos mitos raciais como na
comparao do negro com o macaco -, segundo Schwarcz, significa,
recuperar uma certa forma de sociabilidade inscrita em nossa histria que, j
presente na escravido, sobreviveu alternada no clientelismo rural e resistiu
urbanizao, em que o princpio de classificao hierrquica se manteve, sustenta
por relaes ntimas e laos pessoais.741
As manutenes dos mitos trazem baila os antigos estigmas das teorias racistas que,
mesmo reinterpretadas, tornam-se dentro da coletividade uma categoria para segregao de
grupos, ou melhor, em relao ao clich e ao lugar-comum, o esteretipo tem uma dimenso
suplementar: capaz de exprimir mais do que uma ideia; traduz um julgamento742. Isto
aparenta uma condenao ao indivduo e ao ajuizamento desses grupos, que so formados
no imaginrio popular onde a partir de qualquer ato de um indivduo isolado trar como
consequncia a generalizao para a condio do grupo idealizado. De outra forma, quando
a personagem da nossa caricatura diz meu grupo ela est especificando caractersticas do
grupo ao qual pertence ou foi segregada.
Nesses jogos de rupturas e permanncias dos esteretipos raciais foi possvel notar na
ilustrao 11, alm das caractersticas fsicas o problema classista voltado ao trabalho. A
Crioula est notoriamente servindo seu patro, o que alude a concepo do negro como
elemento inferior na escala social do branco. Outra de nossas caricaturas se mostra pertinente
para esta anlise:
741
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Nem preto nem branco, muito pelo contrrio: cor e raa na sociabilidade
brasileira. op.cit., p. 112.
742
VELLOSO, Mnica Pimenta. A mulata, o papagaio e a francesa: o jogo dos esteretipos culturais. op.cit., p.
373.
223
743
Segundo Lima, Um aspecto da vida carioca muito frequente na arte de J. Carlos o que diz respeitos aos
criados (LIMA, Herman. Histria da caricatura no Brasil. op.cit., p. 472).
224
sculo XX onde existe um abismo entre as ideologias e utopias raciais dominantes no Brasil,
construdas no passado por elites brancas e escravistas e a realidade social744.
O estudo de Fernandes coaduna-se com nossa proposta a parir da compreenso que o
autor obteve ao abordar a condio deste negro na virada de sculo e nos cinco primeiros
decnios do XX, que se estabelecem em nossa periodicidade. As discusses do autor na
amplitude das oportunidades de empregos mostram-se em uma vertente para o negro
horizontal e no vertical, ou seja, a mobilidade de atingir patamares melhor remunerados e
com posies de prestgio social parecem quase que inexistentes. Portanto, sem perigo de
generalizaes, o socilogo afirma que apesar dos negros estarem inerentes s mudanas
industriais e s conquistas do progresso, no se pode afirmar, objetivamente, que eles
compartilhem, coletivamente das correntes de mobilidade social vertical vinculadas
estrutura, ao funcionamento e ao desenvolvimento da sociedade de classes745.
Por um referencial quantitativo de ndices do ano de 1950, o autor pde identificar a
diferena entre os universos sociais entre brancos e negros. Na Bahia h uma predominncia
maior de negros e mulatos, porm os brancos apresentariam melhor posio com relao aos
empregos.746 De tal modo, no perodo de suas anlises, os brancos que representavam 1/3 da
populao estavam em melhor nvel ocupacional que negros e mulatos. As utilizaes destes
estudos em anos posteriores se apresentam como uma evidncia de continuao de um
sistema que passa pelo nosso recorte.
Ao analisarmos a cidade de So Paulo os extremos so ainda mais latentes. O branco
representaria maioria quase absoluta como empregador. Mulatos e negros juntos, mal
conseguiram somar 6,1%747. Por isto, quando os caricaturistas grafam o negro em condies
menos privilegiadas nas possibilidades de ascenso social no mundo do trabalho, nada mais
fazem do que demonstrar a linha horizontal que o negro e o mulato percorrem no mundo dos
brancos. As negociaes do trabalho ultrapassam as barreiras da competncia do homem e
744
225
caem na posio dos estigmas raciais fazendo valer a maneira como os sujeitos eram
projetados nas suas atividades econmicas em vista da sua condio racial.
Em suas pesquisas, Andrews encontrou resultados prximos aos dados de Fernandes
principalmente no que concernem aos empregados negros. Segundo ele, os trabalhos para
negros considerados relativamente bons - como em So Paulo na Treamway, Ligth, and
Power Company - no eram inexistentes, mas raros. Porm, para o autor, estas oportunidades
eram claramente limitadas, e a grande maioria dos negros eram obrigadas a realizar servios
domsticos ou ter empregos irregulares e mal pagos [...]748. A ilustrao 12 nos assegura a
imagem do negro atrelado ao servio domstico, mais agravante ainda seria se fosse uma
mulher negra. Nesse caso, complementa:
Mas assim como as oportunidades de emprego para os homens negros foram
decaindo no decorrer das dcadas de 1890 e incio da dcada de 1900, as mulheres
negras tinham poucos reursos alm de retornar ao trabalho como domsticas.
(...) um nmero suficiente de mulheres negras (e alguns homens negros)
conseguiram trabalhos domsticos, a ponto de tornar o criado domstico negro um
aspecto caracterstico da vida em So Paulo, como tambm em outras cidades
brasileiras.749
748
ANDREWS, George Reid. Negros e brancos em So Paulo (1888-1988). op.cit., p.114-115. [Grifo nosso].
Ibid., p. 116.
750
DEGLER, Carl. Nem preto nem branco: escravido e relaes raciais no Brasil e nos Estados Unidos.
Traduo de Fanny Wrobel. Rio de Janeiro: Editorial Labor do Brasil, 1976, p. 160.
749
226
tambm, uma tendncia para que seus filhos continuem nos nveis mais baixos da
economia e da sociedade pela mesma razo.751
Quem tambm observou esta estratificao do negro nos servios domsticos foi Luiz
de Aguiar Costa Pinto, em seu estudo O Negro no Rio de Janeiro. No caso das mulheres, ele
explanou que na dcada de 1940 empregadas domsticas negras eram maioria no Rio de
Janeiro. Como exemplo, este nmero chegaria a quase 50% das mulheres pretas e pardas.
Para o autor, Isso demonstra que, no Rio de Janeiro, para a mulher de cor o emprego
domstico tem sido, e ainda , a grande oportunidade de ocupao remunerada752. Este tipo
de apreciao leva a crer quem gozaria dos privilgios das profisses mais importantes no
universo do trabalho. Esboa assim, uma preferncia de cor e raa para algumas ocupaes
remuneradas especficas direcionando o negro, por exemplo, aos servios com menos
prestgio social.
Entre o dilogo das personagens aparente que a negra profere as palavras de maneira
errnea norma da lngua portuguesa da poca. Por isso, o destaque feito por J. Carlos
proposital. Isto estabelece uma referncia de posies hierrquicas do letrado para o
semialfabetizado (ou mesmo analfabeto). Enquanto o homem da ilustrao, que aparenta estar
em uma posio de empregador, diz corretamente relgio, a negra subalterna diz a mesma
palavra como relojo.
Assim, alm de evidenciar a distncia no vocbulo das mesmas palavras, ambas so
grafadas de forma diferente. J. Carlos procurou enfatizar que enquanto o homem diz relgio
empregando a letra g a mulher emprega o j, o que para ns, representa um indcio da
viso da personagem negra abaixo da classe alfabetizada. Essa condio racial nas caricaturas
remonta a tese interessante de Saliba que, a representao estereotipada, no raro, no
ressentimento, na negatividade ou na degradao, integrava a estrutural recusa das classes
dominantes em aceitar a maior da populao brasileira como parte de um mesmo universo
social753. Concordamos o autor, pois acreditamos que nestas caricaturas h uma vinculao
de denncia latente das formas como estes esteretipos se construam e se reafirmaram na
sociedade brasileira. Fonseca entende que as piadas, ou para ns, o humor inserido nos
esteretipos, discriminam, marginalizam e, s vezes, criminalizam os descentes africanos
751
Ibid., p. 152-153.
COSTA PINTO, Luiz de Aguiar. O Negro no Rio de Janeiro: Relaes de Raas numa Sociedade em
Mudana. op.cit., p. 107.
753
SALIBA, Elias Thom. Razes do riso: a representao humorstica na histria brasileira: da Belle poque
aos primeiros tempos do rdio. op.cit., p. 125.
752
227
FONSECA, Dagoberto Jos. Voc conhece aquela?: a piada, o riso e o racismo brasileira. op.cit., p. 32.
LHOESTE, Hctor Fernandez. De esteretipos vizinhos: Mmim Pingun como uma oportunidade perdida.
In: LUSTOSA, Isabel (org.). Imprensa, humor e caricatura: A questo dos esteretipos culturais. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2011, p. 145.
756
Ibid., p. 146. Ainda nesta pgina h um dado interessante da Universidade de Duke, que se dedicou s
percepes raciais no sul dos EUA. Esta apontou que Para 58,9% os negros no so bons trabalhadores; para
32,5%, as relaes com negros so difceis; e para 56,9%, os negros no so dignos de confiana (Ibid.).
757
KEHL, Renato. Aparas eugnicas: Sexo e Civilizao. op.cit., p. 86.
758
Consta nos autos do Dirio Oficial da Unio - Seo 1 - 3/10/1931, Pgina 15585 (Publicao Original). Pode
ser visto em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-20466-1-outubro-1931-560651publicacaooriginal-83760-pe.html (acessado em 10 de fevereiro de 2014).
755
228
caracterizados pelo vesturio simplrio - podemos situ-los como sertanejos. O que se faz
relevante que alm da questo da cor e raa, a caricatura ratifica o retrato das classes menos
privilegiadas e sua condio nos empregos e sua maneira de utilizar a lngua portuguesa.
759
FONSECA, Dagoberto Jos. Voc conhece aquela?: a piada, o riso e o racismo brasileira. op.cit., p. 87-88.
229
Para Angela de Castro Gomes, a criao desse ministrio deveria simbolizar o projeto
verdadeiramente inovador do governo, com a presena do Estado regulamentando e
fiscalizando as relaes entre capital e trabalho no pas761. Entre outras medidas, deu-se a
prioridade para o trabalhador nacional e a disponibilidade de um aparato jurdico amparado
em legislaes do trabalho.
O enfoque no trabalhador to caracterstico nas lembranas da Era Vargas parece uma
inquietao desde o incio do Governo Provisrio. No era de se pensar o contrrio tendo em
vista a relao dos sem trabalhos e o ambiente econmico para o desenvolvimento que se
tinha o interesse em projetar no Brasil. Com o Estado interventor, o Ministrio do Trabalho
foi uma importante criao, no apenas na tentativa de conteno de crises nos meios
trabalhistas, mas tambm em modernizar o Brasil e ceifar os ndices negativos da economia.
Esta mudana de concepo em relao ao trabalho, como dissertou Jorge Ferreira, na poca
da Primeira Repblica, no reconheciam o valor do trabalho e do trabalhador. No havia
relao entre trabalho riqueza. O trabalhador era pobre e era bom que permanecesse nesse
estado porque somente assim ele trabalharia762. Parecia que pela primeira vez o trabalhador
teria um aspecto singular dentro de um regimento governamental no pas. Este momento pode
ser consagrado ainda no Governo Provisrio, quando nos anos entre 1931 e 1934 uma srie de
reformas nesse campo foi efetuada, a saber, limitao da jornada de trabalho,
regulamentao do trabalho feminino e infantil, horas extras, frias, proteo mulher
grvida, penses e aposentadorias, entre diversas outras763.
No que diz respeito a nossa caricatura, as personagens so retratadas como
trabalhadores rurais. Esta parcela no obteve as mesmas vantagens das novas regularizaes
do trabalho da mesma forma que aqueles que se encontravam nos centros urbanos. Gomes
explica que trabalhadores rurais, autnomos e domsticos, todos muito numerosos e se
760
230
231
crianas nascidas em So Paulo, em hospitais, eram pretas e apenas 0,6% dos estudantes
universitrios o eram768. Assim, a caricatura apresenta para ns a imagem deste quadro em
que a escolaridade era um problema para o trabalhador.
Costa Pinto ponderou acerca da quantidade mnima de negros que possuam a
possibilidade de ter um diploma superior no Rio de Janeiro nos anos de 1940. Apesar de nesse
momento os negros e pardos apresentarem um ndice considervel de instruo no nvel
elementar, os nmeros decaam assustadoramente quando se tratava de conquistar um
diploma nos nveis superiores. Levantando estudos que se referem tambm ao nosso perodo,
o autor mostrou que apenas 1.09% tinham certificados de curso superiores769. O que nos
leva ao entendimento das possibilidades de ascenso profissional desses grupos em um
mercado de trabalho predominado pela superioridade de instruo dos brancos. Costa Pinto
traz um jargo popular em sua obra sociolgica que exprime a relao entre a fora dominante
sobre a oprimida: necessrio abrir escolas para todos; mas, para que diabo filho de
cozinheira quer ser doutor?770. Esta frase, sobretudo, expressa com proeminncia a
horizontalizao dos grupos menos privilegiados em busca da ascenso social.
A questo da raa est associada educao e ao desemprego, pois as oportunidades
no se demonstram as mesmas para os diferentes grupos sociais. A tentativa de controle de
imigrao na dcada de 1930 e por consequncia, uma incorporao dos negros classe
trabalhadora industrial, segundo Hasenbalg, no evitou as prticas discriminatrias sutis e
informais provaram ser eficientes no controle da penetrao de negros e mulatos na classe
mdia assalariada 771. Isso significa que a mobilidade social horizontal permaneceu dentro da
concepo elitista, afim de que o negro permanecesse na sua condio subjulgada e tendo
poucas possibilidades de ascenso trabalhista e social. Se a intelectualidade comeava a
enxergar o negro sobre outro prisma do pertencimento nao na dcada de 1930,
brancos (HASENBALG, Carlos. Discriminao e desigualdades raciais no Brasil. 2. ed. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2005, p. 294).
768
DEGLER, Carl. Nem preto nem branco: escravido e relaes raciais no Brasil e nos Estados Unidos. op.cit.,
p. 156.
769
COSTA PINTO, Luiz de Aguiar. O Negro no Rio de Janeiro: Relaes de Raas numa Sociedade em
Mudana. op.cit., p. 159. Mais adiante, o autor faz uma importante anotao sobre o no investimento de
qualificao dos negros: Por outro lado, o preo baixo e a relativa facilidade de obteno dessa fora produtiva
fez com que toda vez que se precisava produzir mais, se pensasse primeiro, em aumentar o nmero de negros no
trabalho e, s depois, em aumentar a qualificao tcnica e intelectual do trabalhador. Resultou da, para o negro
uma lamentvel homogeneidade social, o que habituou o branco no Brasil a sempre pensar nele como se fosse
um bloco indiferenciado, o que de fato foi at bem pouco tempo (Ibid., p. 162).
770
COSTA PINTO, Luiz de Aguiar. O Negro no Rio de Janeiro: Relaes de Raas numa Sociedade em
Mudana. op.cit., p. 164. [Grifo do autor].
771
HASENBALG, Carlos. Discriminao e desigualdades raciais no Brasil. op.cit., p. 243.
232
proeminentemente como parte da identidade nacional, seu reflexo no exercia a mesma fora
dentro das oportunidades na sociedade.
Apesar dos estudos que se debruaram em quantificar as amostras de que o negro ou
o mestio possuram menos oportunidade no mundo do trabalho e escolaridade, a
historiografia recente parece bastante consolidada nessa prerrogativa. Alguns trabalhos ao
tratarem do mito da democracia racial compreendem e estabelecem a lacuna entre brancos e
negros no Brasil, no que concerne a viso racial. A historiadora Emlia Viotti da Costa, ao
abordar as tentativas de equalizar as posies sociais, se refere a um recorte do que ainda hoje
perceptvel:
A maioria da populao negra permaneceu numa posio subalterna sem nenhuma
chance de ascender na escala social. As possibilidades de mobilidade social foram
severamente limitadas aos negros e sempre que eles competiram com os brancos
foram discriminados.772
772
COSTA PINTO, Luiz de Aguiar. O Negro no Rio de Janeiro: Relaes de Raas numa Sociedade em
Mudana. op.cit.., p. 366.
773
LHOESTE, Hctor Fernandez. De esteretipos vizinhos: Mmim Pingun como uma oportunidade perdida.
op.cit., p. 144.
774
Degler aponta que a excluso de pretos de clubes de classes altas e mdias feita sutilmente e sem referncia
aberta cor. Os negros simplesmente no tentam associar-se a clubes brancos exclusivos, pois sabem que as
moas brancas recusaro danar com eles, mesmo na Bahia. (DEGLER, Carl. Nem preto nem branco: escravido
e relaes raciais no Brasil e nos Estados Unidos. op.cit., p. 157).
775
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Nem preto nem branco, muito pelo contrrio: cor e raa na sociabilidade
brasileira. op.cit., p. 112.
233
CAPTULO 4
O LUGAR DO NEGRO NAS CARICATURAS.
1. A SIMBOLOGIA NEGATIVA DA COR NEGRA.
Havendo em toda parte muita casta de vadios, que cometem insultos e
extravagncias inauditas, no de admirar que no Rio de Janeiro, onde o maior
nmero dos seus habitantes se compe de mulatos e negros, se pratiquem todos os
dias grandes desordens.
D. LUIZ DE VASCONCELLOS.776
But Freedom is not enough. You do not wipe away the scars of centuries by saying:
Now you are free to go where you want, and do as you desire, and choose the
leaders you please.
You do not take a person who, for years has been hobbled by chains and liberate
him, bring him up to the starting line of a race and then say you are free to compete
with all the others, and still justly believe that you have been completely fair.
Thus it is not enough just to open the gates of opportunity. All our citizens must
have the ability to walk through those gates.
LYNDON BAINES JOHNSON.777
Faz-se o negro passar a vida a engraxar sapatos e depois prova-se a inferioridade
moral e biolgica do negro pelo fato dele ser engraxate.
GEORGE BERNARD SHAW.778
776
VIANNA, Oliveira. O typo brasileiro: seus elementos formadores. op.cit., p. 286-287. Citando a fala do vicerei D. Luiz de Vasconcellos.
777
Discurso de Lyndon B. Johnson em: Commencement Address at Howard University: To fulfill these
rights. 4 de Junho de 1965, p. 636. Disponvel em:
http://quod.lib.umich.edu/p/ppotpus/4730960.1965.002/107?page=root;rgn=full+text;size=100;view=image
(Acessado em 20/02/2014).
778
SHAW, 1916 apud COSTA PINTO, Luiz de Aguiar. O Negro no Rio de Janeiro: Relaes de Raas numa
Sociedade em Mudana. op.cit., p. 169.
234
Primeiramente, cabe-nos uma reflexo: at que ponto a cor da pele seria um desejo na
sociedade? Havia uma cultura do branqueamento? No novidade que as crianas crescem
lendo e ouvindo contos como o da Branca de Neve. Notam que todas as princesas dos
contos de fadas so idealizadas pela cor branca. Podemos conceber alm na nossa sociedade
que se diz imune aos preconceitos e imaginar qual seria a recepo do pblico ao ver uma
negra atuando em uma pea escolar como protagonista de um conto de fadas da Branca de
Neve? Raa e cor como um atributo de beleza almejada vm de longa data. Sobre isso, Degler
nos lembra de um episdio contado por Tales de Azevedo que remonta estes exemplos para a
realidade dos padres de beleza:
Tales de Azevedo, um baiano orgulhoso da tolerncia racial de sua cidade, conta a
histria de um menino mulato a quem sempre cabia representar, nas peas escolares,
papis estereotipados da baixa valorizao dos negros, tais como pescadores ou
charlates. Em certa ocasio deram-lhe um papel romntico, no qual teria que
segurar a mo de uma menina branca, porm, no ltimo momento, foi ele substitudo
por um menino branco, tendo o diretor alegado que devia dar tambm a outros a
oportunidade de representar. Mas o menino mulato estava convencido de que o
haviam retirado da pea porque no seria adequado que um mulato fizesse uma cena
de amor com uma menina branca.779
779
DEGLER, Carl. Nem preto nem branco: escravido e relaes raciais no Brasil e nos Estados Unidos. op.cit.,
p. 153.
780
Ibid., p. 154. Ainda nesta pgina o autor mostra como para personagens de teatro, rdio ou TV, so
direcionadas aos negros sempre papis de carter social inferior ou que no so cobiados pelos outros. Para
isso, indicamos tambm: PEREIRA, Joo Batista Borges. Cor, profisso e Mobilidade: o Negro e o Rdio de
So Paulo. 2. ed. So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 2001. Nesta obra o autor trata da construo
caricatural do negro no rdio. interessante notar como a representao do esteretipo do negro nos impressos
encontrou espao tambm no rdio e, posteriormente, na TV. O autor cita, por exemplo, que A estilizao deste
negro feita base de esteretipos impregnados de aluso sua esttica: feito, macaco, tio; ou ligados sua
descategorizao social e a sua frouxido de costumes: malandro, rufio, delinquente, maloqueiro, amasiado,
bbado, vagabundo, mandingueiro, pernstico, servil. (Ibid., p. 178).
235
236
Em nenhum momento a caricatura nos oferece qualquer indcio de que haja outro
tipo, especialmente aludindo beleza negra como integrante aos tipos de belezas
universais. Na imagem, ao lado dos homens que admiram o que seria o tipo ideal, h uma
escultura grega que tradicionalmente representava a preocupao com as formas fsicas e a
harmonia do corpo, algo muito comum visto por aqueles eugenistas que percebiam nas formas
gregas o sinnimo de perfeio fsica.
Este tipo de beleza ideal pode ser encontrado na prpria obra de Kehl. Ao
analisarmos Melhoremos e Prolonguemos a Vida (1922), o autor traz um forte indcio dessa
observao ao dizer que,
a concepo eugnica de aperfeioar a humanidade, favorecendo o nascimento de
seres robustos e belos, remonta, como deixei claro a muitos sculos. Lycurgo teve-a
quando determinou que se lanassem no Eurotas as crianas raquticas e
degeneradas; Plato quando pregou a necessidade do exame pr-nupcial dos
nubentes, que deviam apresentar-se diante de uma junta com o corpo nu, atestando
pelo seu estado de sade a garantia de uma prole perfeita e vigorosa; e Aristteles,
como se verifica percorrendo as pginas de sua Poltica.782
782
237
e, por isso, incentivos a atividades fsicas eram recomendadas como parte do programa de
eugenia. Intencionalmente, nesta mesma obra, Kehl dedicar um captulo para tratar de
Exerccios Fsicos783. Kehl, em especial, era um eugenista que percebia na feira um
problema social e dedicou algumas obras para falar da Cura da Fealdade (1923), onde a
esttica estaria associada ao corpo e moralidade.
Andr Luiz dos Santos Silva estudou a concepo da educao fsica no projeto
eugnico de Renato Kehl. Silva chegou concluso que o eugenista via com bons olhos os
concursos de beleza feminina e masculina, bem como as prticas educacionais do corpo, pois
seria uma forma de atingir os objetivos da perfeio eugnica784. Citando Kehl, em suma,
os concursos de beleza com a exibio honesta de corpos bem modelados, constituem, pois,
fatores indispensveis de educao esttica masculina e feminina785. O corpo consistindo um
objeto da eugenia e referenciando as formas gregas de perfeio, no nos surpreende que estes
eventos adequarem-se ao que fosse esteticamente aceito. O prprio Kehl considerava as
mulatas uma exceo quanto beleza, O mulato, o mameluco e o cafuzo so tipos
plasticamente feios na sua generalidade. Conhecem-se belas mulatas e mulatos bonitos, mas
como exceo e no como regra786.
Em seu segundo nmero, o Boletim de Eugenia787, de fevereiro de 1929, sob a direo
e propriedade de Kehl, apresentou uma matria que nos possibilita decodificar, ao menos em
partes, as vises estabelecidas pelos concursos de beleza. Alguns trechos resumem a tnica da
publicao e o que procuravam nos candidatos como: [...] a seleo muito mais rigorosa
nos concursos eugnicos, pois a sindicncia abrange a ascendncia dos candidatos788. Em
torno dessas especificaes de ascendncia, ainda complementa que no somente as
enfermidades fsicas so apreciadas como tambm as mentais. necessrio, para a
classificao, que seja perfeita e sadia a constituio do candidato e seus antepassados789. A
presena do termo denominado antepassados insere-se na contextualizao racial como
figura de anlise eugnica para ns, afinal, a vontade de uma comunidade de ascendncia
europeia no Brasil sinaliza uma das respostas das frustraes da cor nesses concursos.
783
Ibid., p. 181-189.
SILVA, Andr Luiz dos Santos. A perfeio expressa na carne: a educao fsica no projeto eugnico de
Renato Kehl (1917 a 1929). Dissertao de Mestrado. Porto Alegre: UFRGS, 2008, p. 119-120.
785
KEHL, 1927 apud SILVA, Andr Luiz dos Santos. A perfeio expressa na carne: a educao fsica no
projeto eugnico de Renato Kehl (1917 a 1929). op.cit., p. 120.
786
KEHL, Renato. Lies de Eugenia. op.cit., p. 191.
787
Boletim de Eugenia, Ano. 1, n. 2, 1929, p. 3.
788
Ibid.
789
Ibid.
784
238
O mdico Alexandre Tepedino, em 1931, publicou uma obra nomeada Alma e beleza,
em referncia s mulheres. Para Cunha, esta obra representou outra vertente da eugenia aliada
beleza, ao que concerne um compromisso com a nacionalidade. O autor dir que: Todo um
captulo especialmente dedicado beleza e nacionalidade, relao na qual a mulher bela
teria um compromisso a assumir: o fazer obra eugnica790. Ento, tambm notamos uma
associao aos valores eugnicos agrupados a representao de um tipo padro para a
nacionalidade.
Gostaramos de ilustrar este tema da beleza relacionada eugenia em outro texto. Em
1936, um pouco frente do nosso recorte temporal estabelecido pelas fontes, possui
significado importante tanto para a construo das nossas caricaturas quanto para revelar
como a ideia da beleza eugnica continuou perdurando.
CUNHA, Olvia Maria Gomes da. Inteno e gesto: pessoa, cor e a produo cotidiana da (in)diferena no
Rio de Janeiro, 1927 1942. op.cit., p. 309. [Grifo da autora].
791
Foi deslocada aqui apenas a primeira parte do texto que compete ao nosso estudo. O resto do texto voltado
ao tema da beleza feminina em Hollywood e a coloca como padro universal e preferencial.
239
vez, o texto argumenta que os padres antropomtricos so bem prximos das dimenses da
Vnus de Milo, da qual seria o modelo ideal de beleza dos antigos. Essa mxima foi levada
aos concursos, aos desejos das mulheres tanto no cinema de Hollywood, quanto na
imaginao de que somente as mulheres dotadas destes tipos prximos de curvas e medidas
poderiam ser aceitas como belas. Assim, as medidas corpreas e a Standard eugnico
seriam uma referncia por meio da esttica para a aceitao social.
Roquette-Pinto desenvolveu uma anlise sobre este tema ao indagar qual seria o tipo
de beleza nacional. Para ele, no se visa propriamente o brasileiro, mas um tipo de
brasiliense branco792 e que nessas condies o concurso das Misses toma o aspecto de
uma prova eugnica793.
Nesse percurso, a segunda ilustrao reflete o paradoxo social do que era considerado
o ideal para a esttica de beleza. Por este prisma, percebe-se como a questo racial tornouse mais uma vez, inerente aos juzos de valores da sociedade. O ttulo Doce esperana, na
caricatura, se insinua para a determinada iluso que o dilogo proporcionar. Ou seja, atravs
do ttulo, o caricaturista insinua a ironia que empregar na medida em que a mulher negra
nutriria esperanas que sua filha teria alguma condio de sair vitoriosa num concurso de
beleza. A ilustrao compe um dilogo entre um homem branco com me e filha negras, o
que remeteria a algum desses concursos do qual a me assegura que sua filha ser a rainha no
ano seguinte. Por sua vez, o homem demonstra surpresa com a afirmao, mas a me
prontamente confirma e complementa dizendo que como a morena foi rainha e a loira
tambm, agora seria a vez da sua filha, que negra. A personagem demonstra a crena na
iluso de uma negra ganhar estes concursos em que o foco eugnico so os tipos
definidos.
A surpresa do homem tem sentido para sua poca. Podemos citar, por exemplo, o
concurso de miss universo que, apesar de oficializado apenas em 1952, tem razes em dcadas
antes. Para ns, interessa analisar a mulher que se consagrou como a primeira brasileira a
ganhar este concurso, a saber, a gacha Yolanda Pereira, que conquistou o ttulo do chamado
Miss Universo, no Concurso Internacional de Beleza de 1930. O Jornal do Brasil, de
1930, confirma o resultado do evento em que alm da brasileira, a Miss Portugal, Miss Grcia
e Miss Estados Unidos estiveram melhores classificadas.794 Neste mesmo jornal, o secretrio
792
240
do jri do concurso, Navarro da Costa depe sobre a vencedora Yolanda Pereira colocando-a
como uma espcie de amostra racial do Brasil para o mundo:
Este resultado dum jri, que no podia ser parcial, que foi rigorosssimo, honesto,
me alegra, sobretudo, porque uma esplendida resposta aos que duvidam ainda das
possibilidades da nossa raa ter uma mulher capaz de ser Miss Universo, em
competio com as mais formosas representantes de vinte e seis naes.
A mais bela, a Miss Universo, ela a est confundindo o esnobismo derrotista e
alevantando em todo o mundo a gloria da mulher brasileira.795
No nos cabe julgar se Yolanda Pereira era o exemplo de nossa raa, mas
evidentemente - e a ilustrao 2 nos oferece suporte - o tipo escolhido muito diferente em
termos de composio racial. Em meio aos desejos de padres de beleza europeia, fica
difcil acreditar que a me da garotinha negra estaria correta e que, de fato, sua filha teria
chances de ganhar aquelas competies.
796
795
796
Ibid., p. 1.
Ibid. Da esquerda para direita: Miss Portugal, Miss Estados Unidos, Miss Grcia e Miss Brasil.
241
social da ilustrao 2. Afinal, a morena j foi e a loirinha tambm, ser que agora seria a vez
da negrinha?
Em uma das crnicas, identificamos uma referncia a esta questo racial em um
texto de Peregrino Junior, na coluna Block-Notes, sob o ttulo: Louras ou Morenas? O texto
longo, mas o julgamos eficaz para compreender a abordagem sobre os concursos de beleza,
eugenia e a Careta:
Foi evidentemente Annita Loss quem colocou o problema no cartaz. Publicando o
seu livro famigerado Os homens preferem as louras... (gentlemen prefer
blondes...), a escritora yankee, no obstante o ar frvolo da sua literatura sem
intenes espalhou muita inquietude entre as mulheres. Logo em seguida, para
tranquilizar as morenas, cujas inquietaes e despeitos comeavam a tomar um
carter assustador, Annita Loos fez outro romance... E casam os morenos... Entre
os homens morenos e as mulheres louras, ela ficava em situao cmoda:
demonstrava no ter preconceitos pigmentares e contentava a sua clientela literria.
E, com aquele jeito ingnuo que ela sabe dar as coisas maliciosas, Annita Loos
botou na ordem do dia um assumto positivamente grave e importante.
Retomando a tese da romancista yankee, muitos pesquisadores americanos
levaram o problema a serio e inauguraram, com gravidade e convices, uma srie
longa de demonstraes experimentais, para saber, do ponto de vista fisiolgico, de
que lado estava a superioridade: se do lado das louras, se do lado das morenas. Essas
pesquisas apaixonaram de tal forma o esprito americano, que um professor da
Universidade de Howard perdeu um ano inteiro, no seu laboratrio de Fisiologia, a
estudar as reaes nervosas e fsicas de louras e morenas. Um engenheiro da
Filadlfia chegou a construir aparelhos especiais, ultrassensveis, para medir a
sensibilidade nervosa das louras e das morenas diante de determinados reativos de
ordem sentimental. Essas experincias, realizadas com a maior serenidade, foram
publicadas nas mais austeras revistas cientficas dos Estados Unidos.
Agora, segundo informam comunicados telegrficos de Berlim, o Sr. Hitler, cujo
programa de renovao eugnica da Alemanha severo e avanado, volveu os seus
olhos inexorveis de ditador para a questo de Annita Loos observou com olhos
maliciosos de novelista, e lanou aos nazistas um ultimato inesperado.
- Nada de morenas! Para casar, s as louras!
Quer dizer: os alemes de Hitler tambm preferem as louras... O caso, porm, mais
grave: Hitler no se limitou a preferir as louras, como os homens de Annita Loos, e
indo bem mais longe, fulminou as morenas com o azedume de uma intolerncia
grosseira e intil.
Com efeito, a Revista Etnografia do terceiro Reich (Das Wissen ds Volkes)
publicou um Programa positivo para a melhoria da raa do casamento, no qual o
governo oficializa o tipo de mulher do seu agrado e que, por deciso oficial, deve ser
do agrado de todos os alemes de origem ariana.
Diz a Revista de Etnografia que a raa e a mulher no podem ficar entregues a si
prprias, devendo exercer-se uma vigilncia intensa em torno da boa raa ariana.
Exigimos, - diz o rgo oficial dos nazistas que todo heri ariano s convole
npcias com uma ariana loura, de olhos azuis, olhar rano, rosto de um oval
alongado, tez rosada, nariz afilado e boca pequena, e que em qualquer emergncia a
escolha recaia numa jovem, senhorita
J as velhas leis romanas reprovavam o casamento com vivas acrescenta a
revista. E continua: - Exigimos que nenhum homem louro, de olhos azuis, se case
com mulher morena tipo mediterrneo, de pernas curtas, cabelos pretos, nariz
adunco, lbios polpudos, boca rasgada e tendncia a adiposidade. Exigimos que
nenhum heri ariano se case com mulher morena, tipo negride, corpo esbelto e
seios elipsoides. O tipo da mulher mediterrnea o tipo da hetaira, e a monglica
um verdadeiro animal de carga. O jovem ariano deve escolher para sua esposa
ariana que o equivalha, na intacta, de passado irrepreensvel. No dever casar-se
com uma moa que goste de diverses ou de exibir-se em pblico. No dever
242
igualmente, casar-se com moa que esteja empregada, porque a vida sedentria
predispe a histeria.
E conclui a Revista de Etnografia:
A esposa de sua escolha s poder ser uma menina visceralmente pura,
rigorosamente caseira, aplicada e delicada s crianas.
No temos preocupao das morenas para defend-las das agresses eugnicas do
Sr. Hitler. Contudo, prudente no esquecer que, luz moderna da cincia, esses
tipos extremos de perfeio so, at certo ponto, anti-eugnicos. Estando longe
daquele equilbrio mdio e normal, que Grote convencionou chamar
responsividade, esses tipos extremos so frgeis e precrios, Nicoli observou a
superioridade vital dos homens mdios sobre os tipos muito altos ou muito baixos.
Examinando os pardais mortos durante uma violenta tempestade, Bumptus verificou
que todos eles eram representantes de variantes extremos de espcie. A verificao
de Lundborg interessante: os espcimes mais belos da Sucia, representantes de
variante extremos de sua raa, apresentam escassa resistncia vital e grande
mortalidade. As estatsticas de Boxyer confirmam essa tese. Entretanto, Hitler, por
uma simples questo doutrinaria de eugenia, quer casar todos os jovens nazistas da
Alemanha com tipos extremos da perfeio ariana. No estar incidindo num
deplorvel equvoco esse intolerante fantico da beleza dolico-loura das mulheres
arianas?
Alm de tudo, erro grosseiro supor que a inferioridade das mulheres morenas seja
coisa provada e indiscutvel. Ao contrrio, o que a cincia est demonstrando que
cor morena, sendo um milagre da adaptao da Natureza, antes uma perfeio do
que um defeito. Um pesquisador francs, de estatsticas em punho, chegou mesmo a
provar, no h muito, que dentro de alguns sculos, no existir na face da terra tipo
louro e puro de mulher ariana. E os testes fisiolgicos e psicolgicos dos sbios
pesquisadores yankees, falaram sistematicamente a favor da superioridade mental
e moral das morenas. Segundo apuraram os laboratrios austeros de Howard e
Filadlfia, as morenas tm uma srie de superioridades considerveis sobre as
louras: so mais sentimentais e mais sensveis, so mais saudveis, comem mais e
so mais fiis. Em compensao, as louras mentem menos, so mais inteligentes e
tm uma sensibilidade mais fina e subtil. Eis a o depoimento da cincia. Contra as
morenas? A favor das louras? No, nem uma coisa nem outra. Mas na sua serena
neutralidade, para provar que as morenas no so afinal de contas, nem to inferiores
nem to imperfeitas, quer do ponto de vista moral, quer do ponto de vista fsico,
como as pinta o arianismo dogmtico e intolerante do Sr. Hitler.
A favor da integral superioridade das louras h, porm, um argumento irrespondvel:
as morenas oxigenam os cabelos... Quer dizer: so as morenas, plagiando as louras,
que do razo a Hitler...797
O texto assinado por Peregrino Junior se insere nos debates que projetamos nas
caricaturas. E mais, como a opinio entre o tipo ideal era controversa. Peregrino, no incio
do texto, argumenta como a discusso se encaminharia na literatura e de que maneira alguns
cientistas tentaram reproduzir esta noo em laboratrio - algo nada anormal para um tempo
em que a antropologia fsica tinha sua posio firmada na sociedade. Porm, ao citar seu
contemporneo Hitler e a eugenia, o autor expe que seu fanatismo levaria os arianos a se
relacionar apenas com determinados padres estticos por acreditar na atribuio de certas
moralidades a este tipo em degradao a outros. O negro, por sua vez, o modelo de
denegao para o relacionamento. Para constar, h tambm uma referncia adiposidade,
ou seja, os padres no respeitavam quem estivesse acima do peso.
797
Careta, 30 de setembro de 1933, ano XXVI, n 1.319. Assinado por Peregrino Junior.
243
244
Micromegas ainda contesta a unio seletiva entre casais por tipos raciais e critica
estes decretos. Talvez refira-se ao atestado pr-nupcial que foi amplamente divulgado pela
eugenia.799 Alm disso, o que nos chama ateno a referncia ao negro nos Estados Unidos
e o problema segregacionista com a proibio da unio inter-racial. Esses elementos aludem
crtica dos autores da Careta a estas projees raciais e eugnicas, principalmente para os
latinos, como aponta Micromegas. As tentativas de restrio ao casamento ou aos padres
de beleza por conta da raa tornaram-se discutveis em um pas que no veria problema
algum se um jovem prussiano pendesse para a judia. Alis, a relao entre a miscigenao
levantada como positiva pelos autores. Peregrino e Micromegas vem na mistura no o
diferente, mas o complemento, pois: Alm de tudo, erro grosseiro supor que a inferioridade
das mulheres morenas seja coisa provada e indiscutvel. Ao contrario, o que a cincia est
demonstrando que cor morena, sendo um milagre da adaptao da Natureza, antes uma
perfeio do que um defeito diz Peregrino. Por meio das crnicas, a opinio do semanrio
reflete sua antipatia com relao eugenia hitlerista.
Voltando s caricaturas, dissemos anteriormente na ilustrao 2 sobre a trouxa na
cabea, uma representao simblica de objetos que inserem determinado agente em um
dado contexto, no caso da personagem negra, em categorias menos privilegiadas do trabalho,
como empregadas domsticas, lavadeiras, entre outras. Esse tipo de associao entre roupas e
personagens muito comum, inclusive, no captulo anterior visualizamos a relao entre elas
e a malandragem. Com o chapu de palha e as roupas em trapos identificamos o Jeca Tatu; O
homem de cartola e bem vestido aproximamos o status social daquele personagem no
universo da construo caricatural; Ferramentas de trabalho de empregadas como avental,
embrulhos sob a cabea ou mesmo espanadores ajudam na percepo desses agentes na
mediao do dilogo imagtico.
798
799
245
O dilogo da figura 3 contm uma conotao que est voltada a stira das mudanas
de governo da Primeira Repblica para o Governo Provisrio e apresenta uma fase de
transio entre os rompimentos das gerencias governamentais. Porm, o humor constitui-se na
ironia de uma lavadeira com a trouxa de roupas sujas sobre a cabea da qual estariam os
problemas do Brasil que deveriam ser lavados. A situao estabelece-se a partir do homem
que pensa que a roupa suja seria fruto da Republica Velha, porm, a lavadeira logo desfaz
a confuso dizendo que agora, as roupas sujas so da Repblica Nova. A caricatura induz
a crena das permanncias de antigos problemas na estrutura governamental que se iniciavam
nesses dois primeiros anos da Era Vargas.
A constituio da imagem da negra carregando a trouxa de roupas e sua nomeao
como lavadeira simulam, para o caricaturista Storni, um importante smbolo humorstico,
pois a partir dele que ele remonta o quadro social que enxerga. Segundo Ricky Goodwin,
246
igualmente
estabelece
que
aquele
grupo
pertena
determinadas
800
GOODWIN, Ricky. A monoviso dos esteretipos no desenho de humor contemporneo. In: LUSTOSA,
Isabel (org.). Imprensa, humor e caricatura: A questo dos esteretipos culturais. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2011, p. 535.
247
Nossa prxima imagem, ao que parece, estabelece um dilogo entre duas pessoas da
mesma classe social801, mas que constituem uma relao diferente segundo a cor da pele. A
edificao da caricatura compe a conexo da conversa entre as personagens mediante ao
perodo do carnaval de fevereiro de 1931. Nesse contexto, h um questionamento por parte da
personagem negro para o branco sob a marchinha denominada Com que roupa?, do
compositor Noel Rosa (1929). O negro questiona o branco se esta msica que ele est
cantando para ele. O homem branco nega prontamente, pois ele sempre soube qual a
roupa do negro: o luto. Est sempre de luto um referencial a cor da personagem negro,
afinal, o sempre, estabelece a condio de continuidade e, por ser negro, a personagem
branca no teria dvidas em identificar com que roupa ele estaria, pois tal roupa sempre
ser representada pela sua cor de luto, o preto.
A relao do luto na cultura ocidental leva-nos morte e, por consequncia,
compreender o sentido da fuso entre a cor preta e o luto nessas manifestaes. A morte
tambm material da historiografia, principalmente quando ela penetra no mbito social e
801
Aqui, mais uma vez, nos pautamos pelos referncias das roupas na construo imagtica.
248
interage na conjuntura dos sujeitos. Joo Jos Reis, em A morte uma festa, por meio de
documentos estudou o episdio chamado cemiterada, que teve como motivao central a
defesa de concepes religiosas sobre a morte, os mortos e em especial os ritos fnebres, um
aspecto importante do catolicismo barroco802. A obra de Reis , sem dvidas, uma referncia
sobre a temtica para abrangermos como os ritos fnebres modificaram as sociedades em prol
das concepes religiosas, polticas e econmicas, bem como seus enquadramentos em
tempos que o questionamento entre o morto e higienizao entrava em choque.803
Ao estudar as vestimentas dos mortos na Bahia entre 1835 e 1836, Reis evidenciou a
simbologia de uma gama de cores entre branca, preta, vermelha e colorida.804 A relao das
cores com o morto representava aspectos do sagrado religioso como, por exemplo, o branco
do sudrio ou nos africanos o traje caracterstico do candombl (e tambm a hierarquia
socioeconmica do sculo XIX).805 Um modelo era usar mortalha preta e crucifixo como
Santa Rita, para as mulheres.806 Para ns, vale a observao de Reis sobre o vesturio dos
vivos nos momentos fnebres. Em sua pesquisa, nos inventrios do sculo XIX podem-se
constatar os registros de despesas com roupas de luto, onde muitas vezes, roupas velhas eram
tingidas de preto para se adequarem ao estado de luto807. Mais adiante, apresenta a viva de
Jos Dias Andrade, que morreu em 1817, que gastou 14$720 ris s com o alfaiate que
costurou as roupas pretas de seus 22 escravos808. Apesar de outras cores fazerem parte deste
universo da morte, percebe-se como o preto desempenharia um papel simblico perante o
luto. Esta relao cristalizou-se mais ainda em nossa sociedade de predominncia religiosa
crist, pois basta irmos a qualquer velrio para presenciar a relao do preto como sinnimo
de luto e tristeza.
Por esta associao torna-se fcil compreender o humor que a caricatura 4 expressa. O
negro seria um eterno homem de luto por sua causa da sua cor. Isto induz uma associao
negativa, uma vez que presumisse que ningum v a prpria morte ou o luto com bons olhos.
Pelo contrrio, buscamos evit-la diariamente. Esta viso cogita a caracterstica ruim atribuda
cor negra que permeia no sentido de degenerao pela condio de cor e raa, em que
num universo simblico o negro representa a morte e o branco a paz. Nesse sentido, Degler
cita uma constatao interessante sobre o simbolismo da cor:
802
REIS, Jos Roberto Franco. Higiene mental e eugenia: o projeto de regenerao nacional da Liga Brasileira
de Higiene Mental (1920-1930). op.cit., p. 49.
803
Cf.: Ibid., p. 76-78.
804
Ibid., p. 119.
805
Ibid., p. 126.
806
Ibid., p. 120.
807
Ibid., p. 133.
808
Ibid., p. 133-134.
249
O preto sem dvida evoca lembranas da noite essa hora em que os homens com
sua grande dependncia viso, se sentem mais desprotegidos e em maior perigo. O
brao de outro lado a cor da luz, emanada principalmente do sol que, por sua vez,
fonte de calor e de outros elementos que tornam a vida suportvel. A noite no
apenas escura, mas tambm fria e, portanto, uma ameaa vida. por de admirar
que o branco seja visto em todo lugar como smbolo de sucesso, virtude, pureza,
bondade, enquanto o preto associado ao mal, sujeira, ao medo, ao desastre e ao
pecado?809
No podemos afirmar assim como o autor que em todo lugar estes smbolos se
traduzem em verdadeiras representaes. No entanto, em nosso trabalho, ele se faz presente
no contexto das caricaturas, por onde a cor tem esta suposio negativa e possui o simbolismo
depreciativo.
O antroplogo Victor Turner (1920-1983) percebeu que em certos grupos africanos, a
cor preta tem uma conotao m. A referncia, lembrada por Degler, diz que Entre os
mandjas, por exemplo, o preto significa a morte. O preto o smbolo da impureza e a cor
branca a do renascimento. E logo depois relata que mesmo nos seres humanos, entre os
ndembus da frica Central, eles mesmo negros, so classificados como brancos ou pretos
em termos de nuances de pigmentao. H aqui implcita uma diferena moral [...]810. Para
ns, isto constitui que a cor estabelece uma maneira de segregao mesmo em culturas
diferentes e geografias distantes. Ela se apresenta como uma possibilidade de barrar o outro
socialmente.
Essa viso negativista da cor percorre desde a ideia de problemas transcendentais,
como a morte, mas tambm orbita no sentido de algo ruim que migrou para o Brasil. Na
Careta, de 10 de novembro de 1934, o caricaturista J. Carlos retrata pertinentemente sob o
ttulo de indesejveis a situao do negro no espao nacional:
809
DEGLER, Carl. Nem preto nem branco: escravido e relaes raciais no Brasil e nos Estados Unidos. op.cit.,
p. 220.
810
TURNER apud DEGLER, Carl. Nem preto nem branco: escravido e relaes raciais no Brasil e nos Estados
Unidos. op.cit., p. 219.
250
RODRIGUES, Jaime. De Costa a Costa. So Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 45.
KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro 1808-1850. So Paulo: Companhia das Letras,
2000, p. 36.
813
Ibid., p. 45. Cf.: Tabela 1.2.
814
Ibid.
812
251
252
817
STEPAN, Nancy L. A hora da eugenia: raa gnero e nao na Amrica Latina. op.cit., p. 177.
253
Uma vez que o humor da caricatura 6 utiliza-se da cena poltica para constatar uma
ocasio em que se sugestiona que Alcantara Machado e a bancada paulista votaram apenas em
branco, direciona-se assim, o jogo de antnimos entre o votar em branco e os homens
pretos. No humor, para o Z, se a bancada vota em branco porque acham que os
homens do governo so pretos, ou seja, so contrrios a eles. Logo estamos observando um
sugestivo problema com estes homens pretos. Afinal, qual seria o problema dos homens do
governo serem todos pretos?
Apesar de Alcantara Machado negar a hiptese do Z, o dilogo entre os dois aponta
para o problema racial do Brasil onde o preto no teria o apoio do branco. No estudo de
Andrews possvel identificar uma organizao por parte dos negros na poltica quando cita,
em 1925, o jornal O Clarim da Alvorada do qual clamava pela criao de Um grande partido
poltico composto exclusivamente de homens de cor818. Isto indica que uma unificao do
negro estaria nas solues dos problemas de igualdade social aliada ao movimento poltico.
818
254
819
820
255
Outra caricatura que interliga com o tema do cenrio poltico e participao de cor e
raa, acerca da Legio Negra que tinha por caracterstica ser um grupo de oposio e
integrou o Exrcito Constitucionalista formado por indivduos negros. Muito mais que
opositores, eram um grupo racialmente definido e ideologicamente impunharam suas razes
negras na soberania da luta armada de 1932. Assumindo as palavras de Flvio dos Santos
Gomes, mostravam sua inteno: Cumprir a lei, a Constituio era o primeiro passo para
garantir aquilo que ela no deveria permitir: desigualdade entre brancos e pretos821.
A caricatura 7 situa o dilogo entre Getlio Vargas e a Legio Negra representada por
Dr. Jacarand, este, segundo Gomes, mencionado como um dos primeiros candidatos
presidncia da Repblica (o foi nas eleies de Nilo Peanha e Artur Bernardes) a adotar um
discurso explcito a sua condio social de negro822. Vinculado luta social da Legio
Negra, Dr. Jacarand estabelece uma aproximao de pertencimento a condio social do
negro e seus objetivos de ascenso verticalizada. Tanto a Frente Negra, como a Legio Negra
821
822
GOMES, Flvio dos Santos. Negros e poltica (1888-1837). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p. 73.
Ibid., p. 44-45.
256
823
257
miscigenao atingia um patamar que a unio das raas seria prejudicial. Kehl aconselha
que sob o ponto de vista eugnico, contra indicamos toda e qualquer unio de raa, isto ,
entre indivduos da raa branca com a negra [...]827, ou seja, h uma recomendao contra a
miscigenao, que sob a lente da sociedade estaria muito alm de um cruzamento racial. O
negro, nesta viso, est alheio ao branco, inclusive na poltica. Como descreve Souza Ao
longo da obra Lies de Eugenia, como podemos perceber, Renato Kehl recorreu
constantemente a estes pressupostos racistas e coercitivos como sugesto para melhorar a
constituio racial da populao brasileira828. Com isso, podemos supor a viso do Z, na
caricatura 6, numa perspectiva branca da poltica nacional.
Isto nos leva outra indagao: A que ponto a questo racial deixa de existir em prol
de um movimento de maior corpo como o de 1932? Para Domingues, as evidncias aludem
para as permanncias das diferenas raciais. No trabalhado do autor, at dezembro de 1932,
o negro fora impedido de ingressar na Guarda Civil de So Paulo. Tal impedimento s foi
superado aps forte presso da Frente Negra Brasileira em audincia com o presidente Getlio
Vargas829. Alm desta constatao, o argumento de Domingues expe um dilogo direto
entre a Frente Negra Brasileira com Getlio Vargas. Isso pode, em partes, explicar a deciso
de entrarem no campo de batalha em 1932.
Outro argumento que podemos tangenciar se refere prpria concepo da elite
paulista. O historiador Joo Paulo Rodrigues, ao trabalhar sobre a temtica de 1932, mostrou
em sua tese que muitos dos argumentos dos paulistas a respeito de outros estados eram
compostos por piadinhas, xenofobia e preconceito. Com relao ao nordestino, ele afirma que
Por conviver mais de perto com os paulistas, os nordestinos eram alvos de historinhas e
chacotas reiteradamente nas pginas de O Separatista, sendo considerados seres atrasados e,
ainda, prejudiciais ao desenvolvimento da paulicia830. Outra referncia que sugestiona o
ideal de superioridade paulista se encontra nas fontes do autor no jornal O Separatista, que
circulava na poca. Nele, dizia: O Amazonas ainda est na fase de caa e pesca; o Piau e o
Rio Grande do Sul, etc, ainda vivem em estado pastoril; o Nordeste, parte da Bahia, Minas,
etc. so Estados Agrcolas e So Paulo j penetra na fase industrial831. Por estas evidncias,
827
258
no parecia estar no discurso da elite paulistana um espao igualitrio para o negro em suas
pastas de aes polticas e sociais.
O espectro da interpretao negativa de cor e raa permeia por outros mbitos que
influenciaram na conjuntura histrica nacional, como o caso da representao nas
ilustraes do caf e do cmbio negro na dcada de 1930, que foram figuras que apareceram
nas ilustraes da Careta. Obviamente, quando analisamos estas caricaturas e suas metforas
empregadas, podemos pensar que pela cor do caf e pela palavra negro em cmbio negro
, representaria uma lgica do prprio desenho, ou melhor, das cores pertinentes para uma
imagem dessa finalidade. Afinal, no daria para colorir o caf preto da cor branca, e dessa
forma, no seria lgico com a realidade do produto para a recepo da ilustrao. Contudo,
a importncia que as imagens trazem nossa problemtica o contorno de como essas
estruturas so humanizadas nos agentes negros e colocadas sempre como modelo de negao.
Veremos esses dois exemplos, primeiramente o caf e em seguida o cmbio negro:
259
260
Para exemplificar, Carone mostra que em pagamentos de faturas de caf relativo s safras de 1929-1931
liquidaram-se at agora certa de 18.000.000 de sacas de caf, constantes de 269.075 faturas para um total de
1.026.510:798$100 (CARONE, Edgard. A segunda repblica (1930-1937). op.cit., p. 134).
836
MARTINS, Ana Luiza. op.cit., p. 243.
837
De 1931 a 1944 foram destrudas 78 milhes de sacadas, quantia trs vezes superior ao consumo mundial
anual (Ibid., p. 245).
838
SILVA, Salomo L. Quadros da. A Era Vargas e a economia. In: Maria Celina D'Araujo (org.). As
instituies brasileiras da Era Vargas. Rio de Janeiro: Ed. UERJ; Ed. Fundao Getulio Vargas, 1999, p. 144.
261
839
Ibid., p. 142.
DELIGNE, Alain. De que maneira o riso pode ser considerado subversivo. op.cit., p. 49.
841
Ibid.
840
262
842
HUNT, Tamara L. Desumanizando o outro: A imagem do oriental na caricatura inglesa (1750-1850). In:
LUSTOSA, Isabel (org.). Imprensa, humor e caricatura: A questo dos esteretipos culturais. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2011, p. 429.
843
LOMBROSO, Cesare. Criminal Man. op.cit., p. 16. [Grifo nosso].
263
264
265
O relatrio de Niemeyer pode ser anotado como um dos esforos dos primeiros anos
do governo Vargas em balancear a economia. A tentativa nacional de um funding loan da
dvida pblica era um dos objetivos para retomada da confiana do crdito internacional.845
No toa, nossa viso das caricaturas em semelhana crise financeira, se pauta em uma
vertente macroeconmica da situao. O desenrolar das possveis solues do colapso
cafeeiro, monetrio ou equilbrio cambial, exacerbam as opes tcnicas ou mecanicistas do
plano de gesto financeira. Alm disso, ela tem seus reflexos nos debates polticos, nas
modificaes nos organismos sociais e possuem sua parcela de visibilidade nos contornos da
crise.
No que diz respeito a preocupao cambial, ela possua razes no decrscimo das
finanas relativas ao caf e a Grande Depresso, que trouxe uma considervel desvalorizao
do mil-ris em relao ao dlar e libra. Para este controle cambial foram necessrias
algumas operaes do governo, como comenta Marcelo de Paiva Abreu que, nos anos de
1930 e 1931, moratrias sucessivas em relao s dividas em moeda estrangeira846. Alis,
para controlar o cmbio estabeleceram-se algumas regras de vendas cambiais de exportao
ao Banco do Brasil847, onde este foi reintroduzido como monoplio cambial848. Ainda em
relao ao sistema de controle cambial:
Permaneceu basicamente inalterado at 1932. Foi criado em 1932-33 um mercado
cinzento alimentado por mdico montante de divisas para aliviar a escassez da
oferta de divisas principalmente para remessas de lucros. Em meados de 1934 as
receitas cambiais no associadas a exportao, bem como a receita cambial gerada
por algumas exportaes no tradicionais, foram liberadas do controle cambial.849
CARONE, Edgard. A segunda repblica (1930-1937). op.cit., p. 107. Referente ao relatrio de Otto
Niemeyer no Dirio de Notcias [P. Alegre], 25/07/1931.
845
Cf.: BASTOS, Pedro Paulo Zahluth. Ortodoxia e heterodoxia econmica antes e durante a Era Vargas. In:
______; FONSECA, Pedro Cezar Dutra. (orgs.). A era Vargas: Desenvolvimento, economia e sociedade. So
Paulo: Editora UNESP, 2012, p. 207-208.
846
ABREU, Marcelo de Paiva. O Brasil e a economia mundial (1929-1945). In: FAUSTO, Boris (org.). O Brasil
Republicano. t. III. v. 4. So Paulo: Difel, 1984, p. 20.
847
Nos anos de 1940, Getlio Vargas refere-se a importncia do Banco do Brasil para a economia nacional: A
disseminao das agncias do Banco do Brasil para o fim de dar ao crdito expanso crescente, atravs de toda
as zonas de produo, constitui prova flagrante de que, pela primeira vez depois de implantado o regime
republicado, o Brasil pratica uma poltica de financiamento especializadamente executada em proveito das foras
que promovem o desenvolvimento da economia nacional. VARGAS, 1940 apud BASTOS, Pedro Paulo
Zahluth. Ortodoxia e heterodoxia econmica antes e durante a Era Vargas. op.cit., p. 180.
848
ABREU, Marcelo de Paiva. O Brasil e a economia mundial (1929-1945). op.cit., p. 20.
849
Ibid., p. 20-21.
266
267
O Brasil preocupou-se com praticamente todos os elementos que Corsi cita no excerto
acima. Contudo, ao analisarmos a projeo da caricatura com a relao cambial econmica,
uma vez mais, o negro o agente representado de forma negativa que, dessa vez, insere-se no
contexto da economia deficitria. O cmbio negro seria justamente a reproduo do
descontrole inflacionrio e desvalorizao dos mil-ris perante as moedas estrangeiras. Era
necessrio que algum tomasse as rdeas e dominasse este cmbio negro. justamente na
imagem 10, que Oswaldo Aranha tenta este feito. Ao estilo que reproduz os Cowboys do
Velho Oeste - de chapu e cavalo tenta laar um negro que seria uma referncia ao
cmbio descontrolado. As roupas adequadas s tradies gachas devem ser sublinhadas.
Na tentativa de identificar a construo dos esteretipos culturais, podemos perceber a
fala de Oswaldo Aranha com relao ao cmbio negro: ta negro! Desta vez no me
escapas!, um humor voltado ao aspecto da cor da pele para a formulao da caricatura. Ao
chamar a personagem de Negro est reconhecendo-o por meio racial. Assim,
remontado um cenrio de dominado/dominador em que o branco est na posio de
853
Este acordo procurou adequar os pagamentos s reais condies do pas, era difcil de ser sustentando, pois
consumia parte considervel dos supervits da balana comercial (Ibid.). O debate em relao a economia e a
taxa cambial foi alvo de diversos trabalhos sobre sua compreenso. A Formao econmica do Brasil, de Celso
Furtado, talvez tenha sido uma das interpretaes que geraram mais embate dentro da historiografia. Para os
interessados nestes estudos, recomendamos o texto de FONSECA, Pedro Cezar Dutra. Instituies e poltica
econmica: crise e crescimento do Brasil na dcada de 1930. In In: BASTOS, Pedro Paulo Zahluth; ______.
(orgs.). A era Vargas: Desenvolvimento, economia e sociedade. So Paulo: Editora UNESP, 2012. O autor
revisita os debates de Celso Furtado e faz as suas consideraes sobre a conjuntura econmica do incio da
dcada de 1930. Este debate torna-se importante ao passo que contrape os argumentos de que apenas a
industrializao seria responsvel pelo reavivamento da economia em crise do perodo. Fonseca frisa que [...] a
criao e as modificaes nas estruturas institucionais auxiliam decisivamente para revelar a intencionalidade e a
conscincia dos dirigentes, principalmente quando associadas anlise do discurso, o que nem sempre ocorre
com o acompanhamento das polticas monetrias, cambial e fiscal (Ibid., p. 176). A criao de diversos rgos
como do Trabalho, Indstria e Comrcio, Departamento nacional do Trabalho, Instituto do Acar e do lcool
colaboraram para o projeto que estava sendo pensado nos primeiros anos do Governo Provisrio e, portanto,
no poderamos reduzir a poltica de valorizao do caf, por exemplo, como nica justificativa para o controle
das dificuldades financeiras do perodo. Para complementar os debates na historiografia: BASTOS, Pedro Paulo
Zahluth. Ortodoxia e heterodoxia econmica antes e durante a Era Vargas. op.cit.
854
Ibid., p. 223-224.
268
O retrato de Storni nas duas caricaturas acena o quadro contnuo de uma percepo
social degenerativa do negro que, por algum motivo, precisa ser pintado ou contido nos
eventos sociais. Assim, os esteretipos compactuam com os contextos e cenrios traados
refletindo uma possvel realidade social sobre aspectos raciais. Destarte, a imagem deste
negro durante o Governo Provisrio e com base nas teorias raciais vigentes permaneceria
arraigada aos tentculos do negativismo, excluso ou modificao. Denominaes raciais e da
855
Davies trata de cartuns em tempos de guerra e as formas como so grafadas como forma de propaganda do
inimigo (DAVIES, Christie. Cartuns, Caricaturas e piadas: roteiros e esteretipos. op.cit., p. 99). Para ns,
realidade, roteiro e esteretipo tambm atuam na propagao das caricaturas da Careta estabelecendo por meio
do roteiro, a realidade em vista dos esteretipos culturais. Sendo assim, regra compreender a dimenso do
veculo de propagao das imagens e seu vinculo ideolgico.
856
FLORES, Elio Chaves. Representaes cmicas da Repblica no contexto do Getulismo. Revista Brasileira
de Histria. So Paulo, vol. 21, n. 40, 2001, p. 150.
269
857
FONSECA, Dagoberto Jos. Voc conhece aquela?: a piada, o riso e o racismo brasileira. op.cit., p. 37.
270
271
272
PANDOLFI, Dulce Chaves. Da revoluo de 30 ao golpe de 37: a depurao das elites. Rio de Janeiro:
Centro de Pesquisa e Documentao de Histria Contempornea do Brasil, 1987, p. 13.
859
RODRIGUES, Joo Paulo. Levante Constitucionalista de 1932 e a fora da tradio. Do confronto blico
batalha pela memria. op.cit., p. 17-18
860
Os fatores que culminaram o levante possuem seus desafios e problemticas prprias na historiografia que
ultrapassam os objetivos deste trabalho. Portanto, recomendamos a pesquisa de Joo Paulo Rodrigues para
complementar a questo em sua essncia do conflito poltico e da memria coletiva deste evento no Governo
Provisrio. O autor cita, por exemplo, a interpretao de Emilia Viotti da Costa ao dizer que considerando que
os mitos criados durante a luta teriam prejudicado a compreenso dos fatos (Ibid., p. 24). Assim, muito mais
que um evento estabelecido em nossas caricaturas, ele tende a reflexes na sua prpria constituio conceitual
dos mitos criados pelas conjunturas dominantes ou mesmo sob as diversas interpretaes posteriores da
historiografia.
861
Complementa-se, Deste modo, nos limiares de 1932 predomina uma esfera de amplo descontentamento
social e de sentimentos perturbadores em So Paulo, envolvendo tanto os partidos mais antigos, os comerciantes,
os industriais e os militares, quanto os trabalhadores, que, todavia, como analisado, tinham motivos para se
contrapor burguesia e ao Governo Central (Ibid., p. 62).
862
Ibid., p. 32. [Grifo nosso].
273
portanto, uma analogia ao que podemos supor sobre a vitria de Getlio Vargas. Entretanto,
por ser deflagrada uma guerra civil, tudo acabaria numa bruta feijoada nacional, ou seja,
com todas as misturas e participaes da nao, de estados, elites e intelectuais bem como
com todos os entulhos e as implicaes destrutivas de uma guerra.
Este pequeno contexto histrico da Guerra Paulista nos faz compreender o motivo da
tal churrascada. No entanto, devemos enfocar que a imagem apresenta-se com uma mulher
negra mexendo um grande caldeiro de feijoada. Em suas vestes, como na caricatura 12, est
grafada a palavra situao em referncia a cor. A feijoada, como demonstramos
anteriormente j possua um significado de comida de escravos863 e, nesse caso,
compreende-se como a mistura de vrios estados da federao na Revoluo de 1932, que
gerou uma tpica feijoada brasileira e todos os elementos culturais que nela podem ser
subentendidos. Mas, a mulher que mexe a feijoada representada pela metfora da situao
ruim fazendo meno aos efeitos do conflito e que estaria negativa para todos os envolvidos.
Neste universo popular racial, outras conotaes referentes a cor ganharam espao
na linguagem coloquial da sociedade, a saber, o gato preto que representaria o azar, um
indivduo com o passado negro, sem contar os diversos antagonismos entre o mal
representado por vestimentas pretas e o bem pelas brancas - do panteo mitolgico religioso,
podemos citar a cor de demnios e anjos, respectivamente. Na representao do preto e
no branco na sociedade brasileira perceberemos quase sempre que as aes ganharam uma
colorao.
O resultado de postular cores com significaes ser uma oportunidade da manuteno
do racismo. Com o espectro das teorias raciais to presente no Brasil, em que perduraram os
debates intelectuais com relao incgnita se o negro era ou no menos capaz que o branco,
facilita a construo dos esteretipos estipulando sentidos positivos ou negativos a eles.
Destarte, estas tendncias de julgamentos pela cor desqualificam o negro e o colocam em
alguma espcie de fator de consequncia hereditria. Em decorrncia dessas permanncias
dos estigmas raciais, Kabengele Munanga e Nilma Lino Gomes apontam que essas formas
contemporneas de racismo encontram-se em outros locais:
Nos livros didticos, tanto na presena de personagens negros com imagens
deturpadas e estereotipadas quanto na ausncia da histria do povo negro no Brasil.
Manifestam-se ainda nos meios de comunio de massa (propagandas, publicidade,
novela), que insistem em retratar o negro e outros grupos tnicos/raciais que vivem
uma histria de discriminao, de maneira indevida e equivocada.864
863
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Nem preto nem branco, muito pelo contrrio: cor e raa na sociabilidade
brasileira, p. 58.
864
GOMES, Nilma Lino; MUNANGA, Kabengele. O negro no Brasil de hoje. So Paulo: Global, 2006, p. 180.
274
Ibid., p. 182.
FONSECA, Dagoberto Jos. Voc conhece aquela?: a piada, o riso e o racismo brasileira. op.cit., p. 87.
867
DEGLER, Carl. Nem preto nem branco: escravido e relaes raciais no Brasil e nos Estados Unidos. op.cit.,
p. 131.
866
275
2. A COR DO CRIME
Nossa ltima anlise remete ao esteretipo cultural em que associa criminalidade
relacionada cor e raa. Essencialmente, o negro tem sido tarjado como um sujeito
potencialmente inclinado ao crime, como se hereditariamente respondesse a esta ao. Essa
ideia que perdurou por muito tempo nas teorias raciais - como a eugenia - pode ser explorada
nas caricaturas da Careta de 1930-1934, onde encontramos cinco caricaturas em situaes das
mais variadas inclusive em uma propaganda comercial farmacutica que agregam dentro
da ilustrao o negro aliado bandidagem. Ao final do exame das caricaturas, notaremos que
a constituio da relao entre cor e hereditariedade somada com a criminalidade vem de
longa data.
Historicamente, o pas matinha com cada vez mais frequncia o discurso das teorias
raciais no incio do sculo XX. Com a aceitao da eugenia cada vez mais proeminente trouxe
uma viso significativa para as questes raciais. Muitas vezes aliada com a psiquiatria, a
eugenia e outras teorias que visavam o debate da raa, resultou nos diagnsticos da higiene
mental racial dos chamados degenerados. Sobre esta afirmativa, Stepan diz que graas a
essa associao, a eugenia acabou ligada aos problemas da criminalidade, delinquncia
juvenil e prostituio, patologias dos pobres e, no caso do Brasil, da populao mestia e
negra869. Se os eugenistas acreditavam no talento hereditrio, nada mais lgico de que o
contrrio tambm fosse real, neste caso, o criminoso hereditrio. Tornou-se comum
mediante a este prisma caar o sujeito e no a ao estaria enquadrado nestas
fundamentaes, por exemplo, epilpticos, negros, viciados, entre outros. Alis, sobre a
hereditariedade criminosa, Kehl destaca o homem que procria sem reflexo, que aumenta um
868
276
conviva em torno de uma mesa insuficiente, que perpetua suas taras fsicas num novo ser,
um bruto ou um criminoso870.
Esta reflexo de Kehl sobre a propenso nata de ser criminoso e quase incorrigvel
pode ser vista no Boletim de Eugenia de novembro de 1930. Ao discutir sobre a
criminalidade, Kehl argumenta que o pior que a maioria dos delinquentes so incurveis ou
incorrigveis, em virtude de suas tendncias inatas para o crime, sendo necessrio mant-los,
indefinidamente sob vigilncia em estabelecimentos de recluso871. A crena na associao
entre crime e hereditariedade notava-se como preocupao real para aqueles intelectuais.
Alguns defensores da eugenia utilizavam critrios para coibir prticas criminosas
que, entre outras, receitavam a esterilizao como profilaxia. Esta foi uma prtica defendida
por Kehl em muitas de suas obras. Citando o exemplo da Sua como experincia positiva, o
eugenista chega a relatar a esterilizao de um homem de 32 anos, homossexual reincidente
e imoral872. As concluses de degenerao e criminalidade tendiam a colocar uma gama
variada de elementos sociais e, em nosso caso, o negro, em um grau de inferioridade em
que categoricamente teriam mais chances de cometer desvios criminais. Tendo o negro
carregado diversos esteretipos culturais negativos, as teorias levaram a generalizar o grupo
como um fator de risco para o crime, onde suas bases articulam-se desde a desumanizao do
negro no processo escravista. Como relata o estudo de Clvis Moura:
Em vista disto a imagem do negro tinha de ser descartada da sua dimenso humana.
De um lado havia a necessidade de mecanismos poderosos de represso para que ele
permanecesse naqueles espaos sociais permitidos, e de outro, a sua dinmica de
rebeldia que a isso se opunha. Da a necessidade de ser ele colocado como
irracional, as suas atitudes de rebeldia como patologia social e mesmo biolgicas.873
870
KEHL, Renato. Porque sou eugenista? 20 anos de campanha eugnica (1917-1937). op.cit., p. 79. [Grifo
nosso].
871
Boletim de Eugenia, Ano. 2, n. 23, 1930, p. 8.
872
KEHL, Renato. Lies de Eugenia. op.cit., p. 175. [Grifo noss].
873
MOURA, Clvis. Sociologia do negro brasileiro. op.cit., p. 23.
874
ANDREWS, George Reid. Negros e brancos em So Paulo (1888-1988). op.cit., p. 368.
277
para o Bem-Estar dos Menores, que preocupantemente traduz o julgamento do negro onde
uma criana pequena, negra e pobre , por definio, considerada perigosa875.
Assim, a abordagem criminal no estabelece os motivos que levaram determinados
grupos a cometerem delitos, pelo contrrio, a anlise resulta na explicao de que a condio
da cor seria a pressuposio inicial. Em outras palavras, a cor viria em primeiro lugar na
suspeita do indivduo. Esta relao, para Flauzina:
[...] acompanhou a trajetria da populao negra no pas, sinaliza para as disposies
inequvocas do sistema penal em dar prioridade s intervenes sob o segmento,
desde uma perspectiva que sobrepe a negritude, como elemento negativo, a todas
as outras dimenses constitutivas do indivduo [...].876
Olvia Maria Gomes da Cunha, por meio da sua obra, Inteno e gesto: Pessoa, cor e
a produo cotidiana da (in)diferena no rio de Janeiro, 1927-1942, procurou demonstrar
algo muito prximo do que estabelecemos aqui: um certo modelo de identidade pautado na
construo de tipos de criminosos. Em seu estudo, buscou entender qual foi o papel desses
saberes na formulao de uma identidade criminal construda em consonncia com uma
identidade nacional, j no mais explicitamente calcada na observao das raas, mas dos
indivduos877. Para ns, o aspecto da raa mais importante para delimitar at que ponto
essa identidade criminosa foi caracterizada tambm como sinnimo de negritude.
Em vrios momentos aliamos nossas investigaes s teorias cientficas da
antropologia criminalista em nosso trabalho878, no foi ao acaso que ela apareceu. Uma unio
entre os saberes jurdicos, mdicos e policiais, em um contexto em que os conhecimentos
mdicos/legais exerciam influncias nos aparatados de identificao dos criminosos muitas
vezes por ao antropomtrica , se faz como justificativa para pensarmos suas pertinncias.
Elas fazem parte da contemporaneidade da eugenia dialogando com ela. Suas prticas
875
Ibid.
FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro cado no cho: o sistema penal e o projeto genocida do
Estado brasileiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008, p. 153.
877
CUNHA, Olvia Maria Gomes da. Inteno e gesto: Pessoa, cor e a produo cotidiana da (in)diferena no
rio de Janeiro, 1927-1942. op.cit., p. 238. A autora anota uma proposta de tambm enxergar outras narrativas da
nacionalidade que no se limitar ao aspecto racial. Ela entende que a problemtica no se limita apenas a
raa. Sem dvida, a eugenia percorreu outros caminhos, como da esttica corporal, alcoolismo ou doenas,
como a tuberculose e sfilis, nesta tentativa de regenerao do organismo nacional. Inclusive tratamos de
alguns desses aspectos anteriormente.
878
A importncia desta abordagem reflete nas incidncias em que esses mtodos foram utilizados para
identificar criminosos. Tomando como base Alphonse Bertillon, O que ocorreria se pudssemos medir as
divergncias patolgicas que separam, segundo a avaliao dos mdicos de nossas colnias, o europeu do negro
africano? Indagava Bertillon, elogiando as possibilidades de emprego de um mtodo nascido em paris para ser
aplicado em problemas relacionados criminalidade (Ibid., p. 245). Isto mostra para ns como a forma de
enxergar negro, raa e criminalidade esto associadas em diversos estudos desta antropologia que permeou na
compreenso do negro como criminoso. Assim, muitas vezes, degenerao e inferioridade racial negros e
mestios seriam pressupostos para ms condutas morais como o crime.
876
278
estiveram no Brasil com a escola de Paul Broca desde a segunda metade do sculo XIX e
adentraram por toda a dcada de 1930. A linguagem cientfica estabelecia relaes com o
poder investigativo e coercitivo do policial na sociedade. Por vezes, mostramos que a eugenia
no s seduzia o pensamento mdico, mas diversos outros intelectuais de outras reas como
polticos, psiquiatria, direito, escritores, etc.
Afrnio Peixoto, por exemplo, nos anos de 1930, organizou o primeiro curso de
extenso sobre criminologia vinculada Faculdade de Direito da Universidade do Rio de
Janeiro. Cunha versa a maneira de abordar o tema da mestiagem e raa do autor que no o
deixou como apenas especulativo:
Mas, a temtica do mestiamento e das raas no aparecia em seus trabalhos
como um objeto meramente especulativo. Ao contrrio, com habilidade Afrnio a
tratava como um dos aspectos mais relevantes da poltica da segurana pblica. Isto
porque imaginava que o caos tnico e racial produziria efeitos perversos e
desestabilizadores da ordem social.879
Em um sentido que englobava a eugenia, Afrnio Peixoto insere a questo mdicolegal para fundamentar que havia um problema racial na moralidade do negro e do mulato.
Assim, a relao da biotipologia criminal e a questo da tentativa de identificao da
criminalidade no ficaram exclusivamente reservadas s dcadas anteriores ao nosso
perodo880. Se apropriando de Kehl, em Psicologia da personalidade, o eugenista diz que o
atraso mental desempenha, ao lado da mestiagem, que fato muitas vezes responsvel pela
maior emotividade e pela maior impulsividade, saliente papel o aparecimento dos revoltosos,
em suma, dos delinquentes881. Esta referncia estabelece uma ligao desde a virada do
sculo XIX, dos estudos entre criminalidade e raa.
Partimos disso para salientar como a noo do indivduo, enquanto um elemento
criminoso ou no criminoso, estaria alicerado nos anseios daqueles que entendiam a
biotipologia. Muitos destes estudiosos se ajustavam na hereditariedade ou em fundamentos da
eugenia para identificar um criminoso. No incio da dcada de 1930 ainda era notvel uma
tentativa de identificao entre semelhanas fsicas, anatmicas e fenotpicas, para sugerir um
criminoso em potencial. Da mesma forma, o indivduo tambm deveria ser avaliado em suas
879
Ibid., p. 265. Sobre formao de Afrnio, a autora complementa Formado na tradio da antropologia
criminal de Lombroso e Ferri, Afrnio acreditava que a observao e a descrio dos traos fsicos e
comportamentais compunham quadros analticos das individualidades. [Grifo do autor].
880
Dessa forma, Cunha aponta uma vertente neolombrosiana na dcada de 1930. A autora lembra inclusive um
debate em torno da figura de Lampio e suas medies antropomtricas do crnio. (Ibid., p. 341-343).
881
KEHL, 1956 apud Cunha, Olvia Maria Gomes da. Inteno e gesto: Pessoa, cor e a produo cotidiana da
(in)diferena no rio de Janeiro, 1927-1942. op.cit., p. 323.
279
particularidades.882 Vale lembrar que neste perodo, a discusso da degenerao racial, tanto
de negros, mestios e asiticos, somava-se aos argumentos contra a imigrao desses grupos.
Com um histrico da antropologia criminalista no Brasil e as aceitaes da criminalidade por
traos fsicos ou, em nosso caso, a raa, no de se estranhar que o negro considerado
muitas vezes incivilizvel tenha ganhando um status de delinquente nato, pois no estaria
adaptado civilizao moderna.
A interpretao de Cunha no aspecto da identificao criminal no incio da dcada de
1930 no singulariza apenas a questo da cor, mas deixa clara a existncia dela como uma
marca do indivduo:
Entre os embates em torno da eleio de critrios identificatrios, parece ter havido
a predileo por uma questo em especial. Categorias raciais e termos referentes
cor da pele foram cogitados, abandonados, retomados, revestidos de novas
abordagens tericas, e motivos de discusso no s entre especialistas, mas
utilizados indiscriminadamente pelos responsveis pelo preenchimento das fichas
identificatrias.883
280
os aparatos criminais e colaborou com a manuteno do senso comum que a cor e raa
poderiam constituir uma evidncia policial com base na biotipologia e nas cincias da poca.
A tica do negro como bandido esteve presente nos tempos do Governo Provisrio
nas caricaturas da Careta. Estas imagens so diagnsticos da comicidade sobre a situao
vigente de uma sociedade desigual, nos traos dos caricaturistas que focalizaram uma
realidade social e transfiguram-na para o riso dos outros. A primeira caricatura que
selecionamos curiosa, pois diferente de todas as outras aqui trabalhadas, se trata de uma
propaganda comercial:
281
ambiguidade da foto sugestionvel ao ponto que se preocupa com os perigos da tosse, mas
atrela a imagem de um homem negro pronto para cometer um crime. Descrevendo melhor a
ilustrao percebemos um sujeito branco, com uma pasta, possivelmente voltando do
trabalhado e, em determinado momento, um homem negro aparece com um basto, levanta-o
sobre a cabea simbolizando um ataque. Cuidado! O perigo!.
Outro indcio neste jogo de imagem pensarmos o primeiro perodo do texto da
propaganda em relao figura que diz: Muito cuidado com essa TOSSE mesmo tendo
aparncia benigna. Na caricatura a tosse seria representada por um negro criminoso do qual
se deveria tomar muito cuidado, mesmo se apresentasse uma aparncia benigna. Novamente,
complementa que, A tosse sempre prejudicial, traioeira e perigosa. Portanto, pode-se
traduzir a viso do negro como negativista e aliada a bandidagem, que reforada nesse
esteretipo cultural como uma analogia tosse, onde se apresentaria como prejudicial,
traioeira e perigosa. Assim como sugere a figura, a analogia do negro e a tosse algo que
deveria ocasionar preocupao e ser evitada.
A condio de ser negro poderia pressupor a culpabilidade e a consequncia
hereditria da condio de criminoso para a viso de alguns eugenistas e tericos raciais em
nosso perodo. Por ventura, o negro que no cometesse delitos no seria considerado exceo
deste estigma, mas o que cometesse se tornaria um parmetro estatstico que foi inserido ao
esteretipo cultural da criminalidade. De outro modo, caso um negro tenha cometido um
crime, isso era esperado por pertencer a uma raa degenerada. No o indivduo que
cometeu o crime, mas sim o grupo/tipo. Esta caracterizao atrelada ao cmico da condio
de cor e raa se finda na configurao do negro perante a viso social. Schwarcz nos apresenta
um episdio bastante elucidativo sobre esta viso racial na ltima dcada do sculo XX:
nesse pas tambm que a notcias de crimes como o que aconteceu no Bar Bodega
passam sem fazer grande alarde. A referncia uma chacina ocorrida em 10 de
agosto de 1996, num dos muitos botecos de classe mdia da cidade de So Paulo.
Os culpados logo foram encontrados em mais um ato de extrema competncia da
poltica brasileira e (por acaso) eram todos pretos. Mais estranheza do que o fato
em si causaram seus desenlaces. Cerca de dez dias depois a polcia libertou os
(agora) ex-suspeitos e apresentou os novos: todos brancos.885
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Nem preto nem branco, muito pelo contrrio: cor e raa na sociabilidade
brasileira. op.cit., p. 117.
282
886
887
Ibid.
CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. O racismo na histria do Brasil: mito e realidade. op.cit., p. 39.
283
888
284
891
285
modo que o discurso visual estabelecia a ideologia do pensar do Estado na sociedade, ela
tambm delimitava rupturas de padres e reafirmaes de outros. Carneiro destaca a
importncia dos sentidos das caricaturas, que servem como termmetro para medir esta
viso racial:
O riso, o humor e a descontrao tambm fazem parte do cotidiano. Neste sentido,
no podemos desprezar as caricaturas, charges polticas piadas e ilustraes que
circulavam pelas revistas ilustradas brasileiras. Elas tambm servem como
termmetro para medir a discriminao, reveladora dos sentimentos racistas que
dominavam o pas.892
O negro atua, para Carneiro, guisa da construo social dos padres raciais, a
servio dos traos onde surge como Pai Joo, Pai Toms ou a domstica Dona Benedita,
resqucios da escravido893. Esta representao seria o reflexo dos conflitos que pareciam
inalterveis dentro da conjuntura social e neutralizavam suas perspectivas de igualdade em
oportunidades. A bandidagem atuar nesse caminho de culpabilidade racial pela condio
da cor e raa. Podemos nos perguntar, por que a mulher branca era o sinnimo dos anncios
de cosmticos de beleza e o negro atrelado a cenas de crime? Pode-se interpretar uma latncia
esttica que delimita quem quem dentro do Brasil nesse perodo.
Nosso negro bandido em contraposio ao casal branco, a reproduo do medo
da cor na sociedade referenciada por Fernandes. O autor indaga a permanncia da
concepo escravocrata na Repblica onde, o negro encarnava um perigo pblico894.
Portanto, era quase simblica uma aluso para os caricaturistas tratarem da bandidagem social
e inseri-los no contexto da cena. As recepes destas imagens abrangem certa fatalidade ou
mesmo uma doena em ser negro, como se prognosticamente era compreensvel o fato do
negro cometer crimes. Assim, como aponta Fernandes ao tratar dos esteretipos do negro,
percebe-se uma importante sequela da fala popular sob o pensar destes grupos:
Coligimos imenso material que infelizmente no pode ser arrolado aqui, sobre os
novos esteretipos, que focalizavam a cor de forma degradante para o negro.
Nessas representaes, no s o preto era associado personalidade-status que se
pode extrair dos servios de negros, dos trabalhos braais e mecnicos mais rudes.
A focalizao das qualidades do negro sofre brusca reorientao. A vida social
desorganizada ofereceu o sistema de referncia para o processo de reavaliao.
Negro e cachaceiro ou pingueiro, negro e vagabundo, negro e desordeiro,
negro e ladro, negra e Mulher -toa, etc. tornaram-se termos alternativos. 895
892
CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. O racismo na histria do Brasil: mito e realidade. op.cit., p. 32.
Ibid., p. 34.
894
FERNANDES, Florestan. O legado da raa branca. op.cit., p. 136.
895
Ibid., p. 241.
893
286
FONSECA, Dagoberto Jos. Voc conhece aquela?: a piada, o riso e o racismo brasileira. op.cit., p. 93.
Ibid., p. 94.
898
FERREIRA, Ricardo Alexandre. Escravido, criminalidade e cotidiano: Franca 1830-1888. Dissertao de
Mestrado. Franca: UNESP, 2003, p. 126.
899
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como misso: tenses sociais e criao cultural na Primeira Repblica.
op.cit., p. 59. [Grifo nosso].
900
AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda negra medo branco: o medo no imaginrio das elites no sculo
XIX. 3. ed. So Paulo: Annablume, 2004, p. 157.
897
287
Boris Fausto tambm nos traz um dado interessante em seu estudo sobre
criminalidade. Ele destaca os desfechos de processos criminais de roubo analisados no ano de
1880 a 1924. Fausto salienta que a questo da cor exercia um fator discriminatrio no andar
dos julgamentos somados ao sentido de inferioridade dos negros e pobres em relao s
sesses judiciais. Ele entendeu que brancos foram mais absolvidos nos processos em relao
aos negros com uma margem de 27,3% para os primeiros e 20,2% para o segundo. Quando se
trata de condenaes, 57,4% dos negros foram condenados e, somente 36,4% dos brancos
tiveram condenao. Quanto ao arquivamento dos processos, brancos tiveram 36,3%
enquanto negros 22,4% arquivamentos.901 Esses dados nos ajudam a perceber a construo e
associao do medo negro com relao criminalidade.
288
902
KLINEBERG, Otto. As diferenas raciais. So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 1966, p. 215.
Ibid.
904
SUREZ, Laura; GUAZO, Lpez. Eugenesia y racismo en Mxico. op.cit., p. 29. Ainda na viso dos autores:
En Mxico, como en muchos pases occidentales, la asociacin entre la medicina y la ciencia jurdica jug un
papel relevante para el establecimiento de los sistemas penitenciarios, a partir de la dcada de los treinta. Los
mdicos, especialmente psiquiatras, y los dedicados a la medicina legal, eran considerados por los jueces como
ahora- el personal experto para resolver los aspectos relacionados con la higiene mental, porta tanto, capaces de
dictaminar acerca de la salud mental de los criminales y delincuentes, y as auxiliar a los juristas para definir la
situacin de los mismos, de acuerdo con su responsabilidad no en torno a los actos delictivos que se juzgaran
(Ibid., p. 188).
903
289
GARCIA, Sylvia Gemignani. Folclore e sociologia em Florestan Fernandes. Tempo Social; Rev. Sociol. So
Paulo, v. 13 n. 2, 2001, p. 152.
290
Aplausos gerais.
Caco de Vidro O chefe de polcia vae instalar a sede dos distritos condignamente.
Galinhola tima medida! Eu j me senti vermelho de vergonha num xadrez imundo, ao
lado vrios estrangeiros.
Partiremos agora para as caricaturas 17 e 18. Elas podem ser compreendidas na mesma
linha de anlise das anteriores, mas agora com novos personagens. Em outras palavras, nessas
imagens observamos no somente o elemento negro, mas o branco na ao da criminalidade,
o que no descaracteriza a posio de inferioridade do negro, que no deixa de estar ausente
da construo da situao. Em ambas as caricaturas, o humor estabelece o dilogo sob
aspectos referentes criminalidade, levando-nos na tentativa de entender a posio do negro
com outros agentes nestas aes.
Em ordem, a caricatura 17 rene um grupo de personagens marginalizados
socialmente em volta de um homem negro lendo um jornal. Uma das personagens, apelidado
de Caco de vidro, diz aos outros que o chefe de polcia ir instalar novos distritos. Em
seguida, a personagem comicamente nomeada de Galinhola sada o procedimento, pois se
sentia envergonhado em se ver preso ao lado de vrios estrangeiros. O sugestivo humor
subentende a entonao de que os marginalizados teriam vergonha da sua condio ao serem
291
presos com outros criminosos estrangeiros. A classe social inerente construo da figura e,
por conseguinte, a cor novamente remete a quem faz parte do grupo criminoso inserido nos
elos da corrente social. O distrito policial outro artifcio significativo pelo qual insinua
que esses indivduos esto envolvidos com a criminalidade, pois a preocupao era com um
local melhor para quando voltassem para a priso.
Posteriormente, a caricatura 18 contextualizada por dois homens espiando atrs de
um muro, projetando invadir uma residncia. Entretanto, so surpreendidos por um cachorro
feroz que est preso sob uma corrente. O riso concentra-se na corrente que imobiliza o
cachorro, pois ela auxiliar os bandidos, que podero invadir o local sem sofrer ataques do
animal. Os homens so componentes dos retratos do cotidiano social, que faziam parte do
semanrio que na maioria das vezes em tom humorstico, frequentemente aliavam o humor
aos problemas que se maximizavam no Brasil. Neste caso, uma referncia aos assaltos, roubos
de residncia e aumento da criminalidade.
Na situao ilustrada, no se nota uma predominncia exclusiva da cor. Pelo contrrio,
h um branco e um negro. O que nos cabe perguntar, porque apenas a imagem do negro
continuou a ser relacionada com esta prtica? Se percorrermos a historiografia, poderemos
encontrar em Fernandes, ao citar Roger Bastide, referente ao final do sculo XIX e incio do
XX, acerca dos ndices de criminalidade que apontam a incidncia de crimes cometidos
majoritariamente por brancos e no negros.906 Sem nos estender no que destoa da
temporalidade da nossa anlise, esta referncia serve-nos para implicar historicamente uma
condio econmica que foi na mentalidade do esteretipo elevada a cor e raa. Torna-se
importante este tema tendo em vista que muitos imigrantes tambm faziam parte da populao
contida na criminalidade, como inclusive, pode ser evidenciada na caricatura 17. Parece-nos
que as teorias raciais e a eugenia possuram um papel significativo na conservao das
construes que delimitavam quem deveriam ser identificados no mundo do crime.
Degler descreve o humor inserido no esteretipo da criminalidade do negro. Para isso,
conta uma famosa anedota do Rio de Janeiro: dois indivduos conversavam e um dizia para o
outro quando passam dois brancos correndo, penso, l vo dois atletas treinando; quando
passam dois negros correndo, j sei esto fugindo da polcia!907. Degler traz outras
evidncias:
Ainda recentemente em 1968, numa conferncia sobre o negro feita no Rio de
Janeiro, Marcos Santa Rita, jornalista e novelista da Bahia, tambm deu seu
906
292
Ainda que o autor estivesse neste excerto fazendo meno a um discurso de Marcos
Santa Rita, em 1968, no nos chama menos a ateno a constituio de um debate que se
projetava h muitas dcadas antes. Ao citar a polcia, ele identifica como a instituio
separava e julgava por meio da cor aqueles que deveriam ou no ser suspeitos em potencial.
Nessa construo social que a imagem do negro permanece como subscrita criminalidade.
Parte disso foi corroborada pela prpria imprensa. Como mostra o autor atravs de uma
queixa feita por uma mulher negra aos jornais de So Paulo: Todos pensam que s a negra
rouba sua patroa; os jornais publicam fotografias de cinco mulheres pretas ladras e apenas
uma branca. A mulher branca tambm bebe e anda pelas ruas, mas eles s acusam a mulher
preta909. O que o brasilianista constata o alarde que se faz nesta assimilao de que o negro
cometeria mais crimes que qualquer outro indivduo. A fala da mulher aos jornais sugere
justamente o entrelaamento entre os esteretipos culturais que aliam o negro ao crime. A
branca tambm rouba e bebe, mas por que somente o negro teria o destaque nas chamadas
policiais?
Degler cita ainda uma pesquisa feita por Fernando Henrique Cardoso e Otvio Ianni
sobre os esteretipos que se tem do negro, ao indagarem 552 estudantes brancos em
Florianpolis, na dcada de 1950. Eles puderam constatar que 71% consideraram negros e
mulatos como Falso, desonesto e ladro, enquanto apenas 29% atribuam essas
caractersticas ao branco.910 Ainda nesta linha, citada tambm uma pesquisa feita por Roger
Bastide e Pierre van den Berghe onde examinaram a opinio de 580 estudantes brancos em
So Paulo. Nota-se aqui, entre outras, que 76% julgaram-lhes deficientes no tocante
moralidade.911
As manutenes dos argumentos das teorias raciais to vigentes na gide social
estabelecem a relao de poder que, como afirma Evandro Charles Piza Duarte ao trabalhar
sobre a temtica do racismo e criminologia, encobre-se o fato de que a permanncia de
determinada concepo dada pela adequao s relaes do poder que ela mantm e
908
Ibid.
Ibid.
910
Ibid., p. 139.
911
Ibid., p. 140.
909
293
dinamiza912. O poder classista e racista foi um componente para que as diferenas pelo
escopo da eugenia e das diversas teorias raciais tivessem sobrevidas no imaginrio popular, a
fim de manter a horizontalidade racial e no apresentar perigo aos dominantes brancos. O
problema vai alm das teorias deterministas, ela alavanca a disputa de poder que delimitada,
muitas vezes, pela cor da pele, tendia a vetar o individuo na sua busca pela ascenso social.
Estas associaes negativas entre cor e raa, foram de certa forma, uma arma utilizada para
aqueles que queriam a manuteno de suas condies sociais e econmicas.
O reflexo da posio do negro como propenso ao crime continua sem pouca
modificao no colquio popular. As caricaturas analisadas so um espelho de um olhar de
quase 80 anos atrs, mas que possui sua manuteno na sociedade brasileira. Ao elegermos as
caricaturas da Careta, no Governo Provisrio, percebemos a dimenso da questo racial
como elemento constituinte da vida nacional. Os diversos momentos do governo que
acabamos por estudar transbordam a possibilidade de visualizar a importncia do discurso de
raa e cor na dinmica das relaes do incio da dcada de 1930.
912
DUARTE, Evandro Charles Piza. Criminologia & racismo: introduo criminologia brasileira. Curitiba:
Juru, 2002, p. 286.
294
CONSIDERAES FINAIS
295
Pinto, Renato Kehl, Miguel Couto, Julio de Revordo, Oliveira Vianna e tantos outros, foram
responsveis pela produo de pesquisas que discutiram a relao racial na constituio da
identidade nacional ou de como compreendiam ela.
Outro ponto que deve ser destacado em nossos resultados como a discusso poltica
no Governo Provisrio potencializou a questo da eugenia no pas. Mostramos diversos
trabalhos como de Stepan, Koifman, Geraldo e Souza pensaram nosso perodo ou os
caminhos que levavam a eles. Para ns, coube oferecer e apresentar o debate de polticos e
intelectuais em torno do que entendiam por raa e cor e como esses dilogos se conjecturaram
na poltica nacional e nas propostas de imigrao, por exemplo. Assim, constatamos as
turbulncias de um debate totalmente dividido do entendimento de raa e cor que demandava
a observao na trajetria de cada poltico para notarmos suas posies. Alm disso, no
devemos esquecer a posio de Vargas nesse incio de governo que se mostrou reflexivo com
o tema da eugenia, mas em nenhum momento colocou-se de maneira radical ou defendendo
posies contrrias cor e raa. Na verdade, ele conseguiu ser flexvel e orbitar por vrias
vertentes em seu governo na dcada de 1930 e 1940.
Os dilogos que circundavam a eugenia tiveram grande auge durante as dcadas de
1920 e 1930, mas no se limitaram a elas. Para ns, cabe ressaltar o perodo entre esses anos,
e, sobretudo, os anos iniciais do Governo Provisrio, sua legitimidade nas discusses entre
mdicos, polticos, intelectuais que, em diversos momentos, esteve inserida nas propostas
constitucionais e mdicas com respaldo em argumentos de raa e cor. At mesmo aqueles
que viam com bons olhos a eugenia tinham suas prprias interpretaes do conceito. Notamos
esta pluralidade de interpretaes com a de Kehl, no seu endurecimento de uma eugenia mais
branda para uma mais radical, ou mesmo suas crticas aos que percebiam a eugenia
diferentemente da sua. Nosso trabalho evidencia que a eugenia nunca teve um sentido nico e
uniforme no Brasil, nem mesmo para Kehl.
Uma das mltiplas interpretaes foi percebida no que se refere imigrao. Os
preconceitos, as vises de raa e nao se misturavam, ao passo que teorias raciais se
tornavam argumento para consolidao de leis que proibissem certos tipos no desejveis.
O reflexo dessas discusses pde ser visto na constituio de 1934, e as medidas restritivas
que se procuraram endossar contra algumas raas.
nesse emaranhado de argumentaes que envolveram a eugenia que nossa fonte se
mostrou um achado substancial para compreender o perodo e a temtica. A Careta foi um
peridico de grande recepo e tinha uma abordagem muito peculiar com relao poltica,
economia e sociedade. Constatamos por meio de suas caricaturas e crnicas o posicionamento
296
sobre cor e raa de seus profissionais, mas tambm o debate que permeava a sociedade da
poca. Com a anlise das caricaturas somadas aos contextos temticos que apresentavam
pudemos contribuir com o jogo de discusses da eugenia e da questo racial que se
apresentavam no somente nos ambientes mdicos ou polticos, mas tambm sociais. J.
Carlos, A. Storni e O. Navarro foram exemplares na abordagem medida que causavam risos
e tambm traziam reflexes sobre a horizontalizao e verticalizao da sociedade em seu
aspecto racial.
Nosso material permitiu tambm observar cronistas no mesmo espao-tempo das
caricaturas e confirmar uma posio editorial da revista tanto nas imagens quanto nos textos.
Domingos Ribeiro Filho, Peregrino Jnior ou o pseudnimo Micromegas rechearam as
pginas de boa parte de nossas 240 edies e no que tange ao aspecto racial mostraram uma
perspectiva contra a segregao, principalmente sob o escopo da eugenia.
Com esta fonte propusemos a possibilidade de enxergar a questo de raa e cor nos
enredos da vida social e poltica do pas. Ao notarmos no captulo dois Miguel Couto fazendo
um discurso com teor eugenista, abrangemos como estas discusses moviam o mundo poltico
e social. As personagens retratadas, os amarelos, o Jeca Tatu, ou mesmo Miguel Couto,
compem uma construo imagtica de situaes que delimitam uma problemtica racial e
de identidade nacional daqueles anos. Tambm pudemos observar como um jurista paulista,
Julio de Revordo, entremeava a questo produzindo um testemunho prprio de como
acreditava que o tema deveria ser tratado, inclusive na sua matria jurdica. As
particularidades das anlises dos atores do nosso recorte contribuem para a riqueza da
pluralidade de entender nossa fonte.
O cotidiano se apresentou em diversas imagens que trouxemos e permitiu enxergar a
relao de poder que cor e raa exerciam na sociedade. A vinculao de negros a
determinadas aes negativas ou de condies marginalizadas, deu a tnica da sua posio
naquele meio social que se organizavam. Sublinhamos a partir das suas representaes
caricaturais que lugares ocupavam e a quem serviam, ou mesmo que relaes hierrquicas
estabeleciam dentro do pas. Como a cor influenciava na percepo do que era sinnimo de
bom ou ruim. Mais ainda, como esta relao racial estava ligada a um discurso de eugenia no
Brasil.
Vimos, por exemplo, que Micromegas no texto A nossa cor fez uma ode a valorizao
do nosso "tipo nacional" em decorrncia daqueles que viam na miscigenao algo ruim. O
mesmo se pode dizer da crnica Black and White de Peregrino Junior. Desse autor, notamos,
inclusive, o texto Louras ou Morenas? que demonstrou com mais nfase suas crticas as
297
298
posio crtica que ia desde a eugenia de Hitler, as quotas raciais dos Estados Unidos ou ao
problema de imigrao asitica no Brasil.
Isso nos leva outra considerao importante. Em muitas caricaturas da Careta no
havia nenhuma referncia nominal eugenia. Isto no significa a ausncia dela naquele
momento. Nossa proposta projetou uma discusso cientfica presente na poca, e todas as
caricaturas que esto participando deste colquio remetem, explicitamente ou implicitamente,
condio de raa e cor no Brasil. Falar da questo racial no pas neste momento
discorrer de teorias raciais e, para ns, a eugenia. As permanncias do que Florestan
Fernandes chamou de horizontalizao ou verticalizao de grupos na sociedade pde ser
compreendida nos traos dos caricaturistas quando elegeram posies sociais mediante as
concepes raciais. O humor, muitas vezes despercebido e mascarado pelo riso, foi de
importante elemento para acusar os atores sociais que representavam o oprimido e opressor. O
riso, aliado s caricaturas, transformou-se em uma fonte no rumo do nosso trabalho.
Quando nos debruamos sobre bibliografias, como por exemplo, Nicolau Sevcenko,
Carl Degler, Florestan Fernandes, Thomas Skidmore, George Andrews e tantos outros,
notamos que, apesar de nem sempre tratarem especificamente do nosso perodo, suas
digresses em seus trabalhos e anlises da conjuntura social da posio da raa e cor no pas
permitem um dilogo entre eles que contribui com as indagaes do nosso estudo. Os elos do
debate racial se entrelaaram medida que percebemos a relao de poder que a questo
colocou dentro do pas. Procuramos evidenciar uma manuteno de posies acerca do
problema racial que vo perdurar na anlise de estudos posteriores. Entramos como uma pea
no grande quebra cabea da tentativa de compreender o lugar da cor e raa no Brasil. E mais,
ao observarmos a posio da eugenia com Nancy Stepan, Vanderlei Sebastio de Souza e
Mark Adams - para citar apenas alguns -, justificamos a fora da cincia na pertinncia da
manuteno dos conflitos raciais na sociedade como um todo.
Esteve entre nossos objetivos atribuir a importncia das fontes impressas,
principalmente iconogrficas, como as caricaturas, para o trabalho do historiador. No h
ineditismo neste tipo de abordagem, mas esta pesquisa pretende somar aos diversos estudos
que apontamos desde a introduo e que trouxeram importantes contribuies, ampliando o
leque de possibilidades metodolgicas do fazer histria. Uma chamada para aqueles que
ainda permanecem receosos sobre as pertinncias em estudar um momento da Histria
utilizando como fonte imagens e humor visual.
Ademais, esperamos que A eugenia no humor da Revista Ilustrada Careta: raa e cor
no Governo Provisrio (1930-1934) permita o dilogo com importantes questes para as
299
pesquisas que envolvem a temtica da eugenia, entre eles, a viso heterognea da cincia de
Galton e suas pertinncias em cada contexto histrico. Nosso caso mostrou que mesmo no
Brasil ela possuiu aspectos diversificados e serviu para fomentar discursos de ordem racial
para polticas pblicas ou tambm como crena de uma cincia hereditria do futuro, em
especial, no Governo Provisrio. Confiamos que esta pesquisa tenha dado a sua contribuio
na tentativa de compreender a heterogeneidade desta eugenia brasileira polimorfa e
multifacetada.
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