As EXPERIÊNCIAS E SABERES Da Juventude Candomblecista
As EXPERIÊNCIAS E SABERES Da Juventude Candomblecista
As EXPERIÊNCIAS E SABERES Da Juventude Candomblecista
FACULDADE DE EDUCAO
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO
FORTALEZA
2015
FORTALEZA
2015
S238j
BANCA EXAMINADORA:
_____________________________________________________________
Prof. Dr. Celecina de Maria Veras Sales (Orientadora)
Universidade Federal do Cear (UFC)
___________________________________________________________
Prof. Dr. Eduardo David de Oliveira
Universidade Federal da Bahia (UFBA)
_____________________________________________________________
Prof Dr. Shara Jane Costa Adad
Universidade Federal do Piau (UFPI)
_____________________________________________________________
Prof. Dr. Marcelo Tavares Natividade
Universidade de So Paulo (USP)
_____________________________________________________________
Prof. Dr. Kelma Socorro Lopes de Matos
Universidade Federal do Cear (UFC)
_____________________________________________________________
Prof. Dr. Sandra Hayde Petit
Universidade Federal do Cear (UFC)
Aos(s)
jovens
candomblecistas
que
AGRADECIMENTOS
Existe um ditado malins que diz: Tudo o que somos e tudo que temos, devemos
somente uma vez a nosso pai, mas duas vezes a nossa me. Com estas palavras agradeo a
minha me, Zenaide Vieira Nascimento, a corda do meu corao, meu amor incondicional
pela pacincia, escuta e ajuda mesmo sem saber o que era uma tese.
Aos(s) jovens candomblecistas que eu encontrei no caminho desta pesquisa, em
especial aos que participaram diretamente do trabalho, pois sem eles(as) esse texto no
existiria.
minha famlia, meu pai Luciano, minha irms Cludia, Luciana e Livia, meus
sobrinhos e sobrinha pela pacincia de me aturar nos momentos bons e ruins da pesquisa.
Erlon Gadelha que esteve comigo desde o incio me ajudando e me acompanhando e
a minha filha do corao Kelly, que estudou comigo e me deu carinho nas horas que mais
precisava.
minha orientadora Celecina de Maria Veras Sales, que acreditou em mim antes
mesmo que eu entrasse no doutorado. Orientadora, amiga, minha mestre, mulher sbia,
paciente e humana.
As minhas companheiras e meus companheiros, amigos(as) desta linha de pesquisa e
do grupo de estudo em juventude, Juliana, Kssia, Raissa, Nadja, Alexandre, Lidiane, Kamila,
Cia, Aurilene, Inamb, Marcos.
Aos professores e s professoras deste programa de ps-graduao que contriburam
para a realizao desta tese.
A todos(as) amigos(as) queridos(as) desta vida e da outra que me escutaram, me
acalmaram e acalentaram (Madalena, Shyrlei, Fbio, Rafael, Susana, Janaina e tantos
outros(as)). Pessoas que amo estejam perto ou longe e que no caberiam nestas pginas.
Aos terreiros Il As Iya Omi Arin Ma Sun e Il As Olojudol e aos Babalorixs
Cleudo Junior Olutoji e Aluisio de Xang por terem me acolhido com generosidade em suas
respectivas casas para a realizao do trabalho.
Aos(s) professores(as) que me acompanharam e que fizeram parte da banca de
avaliao deste trabalho, Shara Jane Adad, Kelma Matos, Sandra Hayde, Eduardo de
Oliveira e Marcelo Natividade, agradeo por todas as contribuies.
A todos(as) os(as) colegas de trabalho que me animaram e torciam por mim.
E ao meu Deus de todos os nomes e aos orixs que me protegeram e me guiaram na
confeco dos fios de contas desta pesquisa.
RESUMO
A presente pesquisa objetiva entender como os(as) jovens candomblecistas vivem suas
condies juvenis, compreendendo o que ser jovem para o candombl, como ocorre o
ingresso deles(as) na religio bem como conhecer suas aprendizagens tecidas no terreiro. A
metodologia utilizada de base qualitativa foi a etnografia, a qual me levou ao mundo cotidiano
do terreiro Il As Iya Omi Arin Ma Sun e, posteriormente, ao Il As Olojudol. Com a
colaborao de 20 jovens foram realizadas observaes, entrevistas individuais, registros
fotogrficos e em dirio de campo num perodo de outubro de 2012 a junho de 2014. Alm
desses instrumentos acrescentei uma discusso em grupo que denominei grupo de produo e
saberes. Dessa forma problematizo categorias importantes como juventude, gerao,
candombl, hierarquia, gnero e sexualidade. Ao realizar esta investigao entendi que a
religio se constitui numa dimenso significativa na vida dos(as) jovens, contribuindo na
construo de suas identidades bem como suas cosmovises de mundo e sociedade. O
Candombl se apresenta como religio ancestral que acolhe as mais diversas pessoas,
valorizando a experincia religiosa do(a) mais velho(a). H que se salientar que o tornar-se
mais velho(a) se configura pelo tempo de iniciao na religio e no pela idade cronolgica
do indivduo. Dessa forma alguns(mas) jovens desta pesquisa so ao mesmo tempo velhos(as)
para a religio, essa condio gera funes/cargos, obrigaes, responsabilidades, poder
hierrquico, conflitos. Os(As) jovens evidenciaram uma diversidade de maneiras de
aproximao da religio, relataram suas motivaes para a iniciao e os saberes que
aprendem no dia-a-dia da roa. Para eles(as) o candombl ensina saberes que podem ser
utilizados dentro e fora dos terreiros, aprendizados para vida. Esses relatos demostraram
tambm que esta religio foi um meio de mudana de vida para esses(as) jovens e proporciona
para os que praticam durante muito tempo privilgios, independente da idade. Outro aspecto
determinante nesta pesquisa foi a relao existente entre os(as) participantes da pesquisa e as
dimenses do corpo-gnero e sexualidade. Constatei que os(as) jovens indistintamente da
identidade de gnero e orientao sexual podem ser filhos(as) de orixs femininos e/ou
masculinos, e que existe uma parcela considervel desses sujeitos - homossexuais que
atribuem comportamentos de gnero/sexuais atributos operados por suas divindades.
Contudo esses trnsitos de gnero/sexuais dos corpos sejam dos(as) jovens candomblecistas,
sejam de seus orixs e a sua relao acontecem de forma cambiante, fluida e conflitiva, pois o
terreiro est inserido nesta sociedade carregada de estigmas e preconceitos e a oposio
binria masculinidade e feminilidade permeia a distribuio hierrquica de papis e atividades
rituais. Portanto perceber que dentro de nossa realidade social existem territrios, como o
terreiro de candombl, onde os(as) jovens vivem de forma diferenciada, mas que tambm
refletem a contradio desta sociedade foi o diferencial nesta investigao.
RSUM
ABSTRACT
This following research has, as main objective, understand how Candomblecistas juveniles
live their youth conditions, comprehending how feels to be a teenager for the Candombl, the
way that occurs their insertion on the religion and to know their learning built on the yard.
The chosen methodology was the ethnography, which took me to the routine of the yard Il
As Iya Omi Arin Ma Sun and, after it, to the Il As Olojudol. With the colaboration on 20
teenagers, observations were developed, individual interviews, photographic registers and a
field diary during the period between october 2012 to june 2014. Besides these instruments, I
also putted on a group discussion called "Group of production and knowledges". In this way, I
discuss important categories as youth, generation, Candombl, hierarchy, gender and
sexuality. While realizing this investigation, I understood that the religion constitutes itself in
a signiticative dimension on the juveniles lives, contributing on their id's construction such as
their worldviews and society views. The Candombl shows itself as an ancestral religion
which receives many kinds of pleople, valuing the oldest members experiences. We have to
accentuate that the act of turning the old member configures itself by the time the person
spends practicing the religion, not for his chronological age. On this view, some juveniles that
helped on this research are, at the same time, old people for the religion. This condition
generates functions/positions, responsibilities, hierarchical power, conflicts. The juveniles
showed a diversity of manners of approach to the religion, talked about their motivations to
get into Candombl and the knowledges they learn during the day on the field. For them, the
Candombl teaches knowledges that must be used inside and out of the yeards; acquirements
for the whole life. Those reports shows also that this religion was a way of change these
juveniles lives and provides for those who practice for a long time a lot of privileges,
independent of the age. Another determinant aspect on this research was that the relationship
existent between the members of the rummage and the body-gender and sexuality dimensions.
I found that the teenagers, independent f their gender id or sexual orientation, can be children
of male or female orixs, and that exists a a considerable portion of these people - homo who
atribute gender/sexual behavior to attributes operated by their deities. Besides, these
gender/sexual transits of bodies are from candomblecistas juveniles or their orixs and their
relationship happens on a changing way, fluid and conflictive, because the yard is insert on
this society which if full of stigmas and prejudices and binary oposition to the male and
female permeates the hierarchical distribution of roles and ritual activities. So, realize that
within our social reality are territories like the Candombl, where the juveniles live on a
different way, but also reflect the society contradiction was the difference in this
investigation.
LISTA DE ILUSTRAES
SUMRIO
INTRODUO ....................................................................................................... 16
2.1
As Festas ................................................................................................................... 30
2.2
O Tempo ................................................................................................................... 35
2.3
2.4
2.4.1
2.4.2
2.5
2.5.1
2.5.2
2.6
2.6.1
2.6.2
2.6.3
2.6.4
2.6.5
2.6.6
Um jovem danarino orgulhoso de sua cor, encantado com sua religio .................. 90
2.6.7
3.1
3.2
3.3
4.1 A
4.2 A
4.2.1
4.2.2
5.1
Entre Iabs, Abors e Mets o Gnero e a Sexualidade dos Orixs ............... 186
5.3
................................................................................................................................................ 201
5.5
16
1 INTRODUO
Iba Elegba
Iba Exu Lon
Mo juba Aiy1
Honra ao senhor do poder, honra a Exu senhor dos caminhos, apresento os respeitos do mundo. (LUZ, 2002, p.
66)
2
um fio feito do puro algodo.
17
Sou uma mulher negra que na infncia tinha um grande medo do toque dos
tambores ao mesmo tempo em que me fascinava, cresci ouvindo esses tambores que minha
famlia dizia ser da macumba, coisa ruim.
Venho de uma famlia catlica que ocupava e ainda ocupa funes importantes
dentro da hierarquia da igreja. Meus pais foram do ECC (Encontro de Casais com Cristo) e da
pastoral do batismo, minha me atualmente ministra da eucaristia, tenho irms catequistas e
que cantam nas missas da parquia, tenho inclusive um sobrinho que quer ser papa. Porm
essas prticas religiosas caminham juntas com outras que acompanham os meus e as minhas
ancestrais desde sempre, como por exemplo, o hbito de benzer as crianas e at os mais
velhos, o uso de chs e banhos com arruda3, a interpretao dos sonhos.
Minha me chama as energias que existem em nosso meio de autonormal, pois
como no consegue explica-las pelo catolicismo diz no ter explicao. Tambm no posso
deixar de mencionar a Mezinha, minha av materna de 102 anos, que era parteira em
Quixeramobim e que frenquentava a Igreja do Evangelho Quadrangular e rezava o tero, ao
mesmo tempo em que tambm matinha suas prticas religiosas que chamava ser as prticas
dos mais velhos do interior.
Dessa forma percebo que as mulheres de minha famlia tinham prticas religiosas
que extrapolavam o convencional da sociedade, mas estavam interligadas num misto de
sabedoria dos seus ancestrais e aes catlicas romanas. Porm o racismo e o preconceito
religioso impediram que minhas ancestrais pudessem compreender que algumas dessas
prticas religiosas tinham uma origem africana.
Prxima a minha casa da infncia, no Bairro Carlito Pamplona, existiam, pelo
menos nesta poca, trs terreiros de Umbanda4, sempre quando eu ia comprar alguma coisa na
mercearia desviava o caminho para passar em frente essas casas que tinham imagens de
santos e muitas velas coloridas. Eu era fascinada pela decorao daquelas salas, ao mesmo
tempo em que tinha medo por conta do que minha me, que muito catlica, dizia ter nestes
lugares. Os Apelos de minha me para que eu ignorasse o universo da Umbanda no tiveram
efeito porque quando tinha festa no terreiro eu escutava os tambores e at hoje escuto da
janela de minha casa mesmo sem saber de onde vem, mas sei que a minha ancestralidade se
conecta aos tambores que no param de tocar dentro de mim.
O tambor tem um poder de fala, e esse falar pode ser entendido no sentido mais
amplo, pois dentro da cosmoviso africana a fala do tambor no leva somente a uma
3
4
18
Odu (caminhos da vida, pressgios, destinos, predestinao), um sistema de caminho que mostra vrios
aspectos dos caminhos da vida e da alma para que o ser humano encontre e supere os seus caminhos, as suas
dificuldades que aparecem ao longo da vida para que o ser humano possa prosperar em sua vida.
6
Boneca - garota propaganda do leo Paje.
19
Atualmente a PJ traz a tona para o debate na sociedade a questo do extermnio de jovens, em especial jovens
negros. Como o lema A juventude quer viver a pastoral provoca o debate sobre a violncia sofrida e praticada
pelos jovens e a bandeira da no reduo da maioridade penal.
8
O Dia Nacional da Juventude DNJ um a atividade permanente da Pastoral da Juventude no Brasil que
acontece sempre no ltimo domingo do ms de outubro.
9
Este foi o trabalho final do Curso de Especializao em Metodologias do Ensino de Histria que participei na
Universidade Estadual do Cear.
20
Meu interesse nesta pesquisa era descobrir at que ponto os(as) professores(as)
podiam produzir uma viso diferenciada dos esteretipos ou preconceitos acerca do que sejam
as africanidades, na expectativa de que essa conceituao os(as) levassem a desejar apropriarse da histria e da cultura africana e afro-brasileira no cotidiano da escola, como contedo no
apenas decretado por lei, mas necessrio e instigante para eles e elas. Outro interesse era
confrontar os conceitos que os(as) professores(as) produziram com as conceituaes
estabelecidas de autores(as) que vm se aprofundando acerca da temtica das africanidades.
As idias produzidas pelos(as) professores(as) me levaram a refletir sobre a
possibilidade de dar continuidade pesquisa sociopotica acerca das africanidades, tendo
como grupo-pesquisador os(as) jovens negros/as.
Dessa forma realizei minha pesquisa de mestrado na inteno de entender que
conceitos os(as) jovens negros(as) teciam sobre as africanidades a partir da realidade na qual
estavam inseridos(as). Como objetivo especfico queria perceber tambm a diversidade desses
conceitos, levando em considerao a pluralidade da juventude negra.
Inicialmente tinha a pretenso em trabalhar com dois grupos, um da escola e outro
do movimento negro, porm ao fazer a disciplina de Cosmoviso Africana10, durante o
mestrado, e visitar o terreiro de candombl Il As Olojudol11 tive a oportunidade de
observar a presena marcante de adolescentes e jovens no espao religioso, alguns iniciados12
no candombl h mais de trs anos e outros com funes importantes na religio, tais como
babalax13.
Desta forma os(as) jovens negros e negras do terreiro de candombl Il As
Olojudol e do grupo que participa do movimento negro Juventude Negra Kalunga formaram
o grupo-pesquisador desta investigao. Um ser coletivo que se comporta como grupo-sujeito
da pesquisa, como se fosse um nico pensador, percorrendo vrios caminhos que, s vezes so
contrrios, ou que se encontram.
A sociopotica, mais uma vez, foi o mtodo que me acompanhou neste
movimento circular de produo de confetos (conceitos perpassados de afetos). Atravs de
tcnicas estranhas, s vezes prazerosas e outras vezes no to agradveis, construmos
10
Esta visita ao terreiro levou-me a contemplar os jovens do candombl em minha pesquisa de mestrado,
formando dois grupos, que participaram da pesquisa, o primeiro composto pelos jovens, do terreiro de
candombl e do movimento negro e o segundo sendo formado por alunos/as de uma escola estadual.
11
Este terreiro tem como babalorix Pai Aluisio de Xang e localiza-se na Rua Jorge Raupp, 422, Mondubim,
Fortaleza - Cear.
12
Ser iniciado no candombl significa que a pessoa foi preparada para receber seu orix que habitar sua cabea
at sua morte. A iniciao muito importante, pois o novio ir passar por vrios rituais de limpeza,
recolhimento e renascimento durante um perodo de 07 a 21 dias.
13
Funo que est logo abaixo do pai de santo e que prepara para a sucesso.
21
Desenvolvi tambm a partir desta pesquisa um material didtico a ser trabalhado nas escolas, uma histria em
quadrinhos intitulada: Procura-se Mombaa: Territrio das africanidades. Este material foi recomendado
pelos(as) jovens como material didtico em vista da desmistificao das religies de matriz africana e de outros
aspectos da cosmoviso africana.
22
23
compor o grupo dos sem religio de forma acentuada. Nestes estudos uma srie de questes
foram levantadas tais como: a difuso da cultura miditica que oferece espiritualidades, as
novas possibilidades sincrticas e as diferentes combinaes das prticas religiosas. Esse foi o
incio do caminho, mas a estrada longa.
Pesquisar a temtica da juventude, em especial a do candombl um desafio. So
pouqussimas as experincias de pesquisa sobre esse assunto, seja no campo da juventude ou
nos estudos de religio. Existe uma diversidade de juventudes e uma realidade diferenciada de
jovens, mas estes nem sempre so contemplados nos estudos de carter acadmico.
A sociedade brasileira cristaliza e forja a juventude como o grupo etrio ideal
desta realidade, ora esses(as) jovens so tratados(as) como problema s observar os
noticirios e ler nas entrelinhas o discurso de reduo da maioridade penal, ora como fatia
privilegiada de consumo. Perceber que dentro desta realidade social existem territrios que
vivem de forma diferenciada, mas que tambm refletem a contradio desta sociedade um
diferencial nesta investigao.
Abordar essa temtica se torna necessrio, para entender o candombl como um
espao de sociabilidade juvenil e de construo de identidades. Onde os valores ancestrais
afrodescendentes so vivenciados no dia-a-dia.
Nesse sentido me encontrei com a Etnografia que me levou ao mundo cotidiano
do terreiro Il As Iya Omi Arin Ma Sun na tentativa de entender a juventude candomblecista
e a sua vivncia dentro da religio.
Esse fio emaranhado de contas tambm me levou de volta ao terreiro Il As
Olojudol, para que eu pudesse entender melhor como esses(as) jovens viviam suas
experincias religiosas como iniciados e autoridades.
Para isso efetivei, num perodo de outubro de 2012 a junho de 2014, observaes,
entrevistas, registros fotogrficos e em dirio de campo e realizei tambm discusses em
grupos.
Devo ressaltar que essa pesquisa no seguiu receitas prontas, pois o risco e as
experimentaes fazem parte da construo de uma tese. Parafraseando Peirano (2014, p. 5)
sempre temos que conceber novas maneiras de pesquisar (...). Somos todos inventores,
inovadores.
Neste sentido, exponho como captulo inicial - O Caminho se conhece andando
... -,
24
25
26
No encontrei um grupo de jovens de terreiro articulado em Fortaleza ou no estado. Existe, por parte do
terreiro que investigo, uma tentativa de articulao. No dia 09 dez. 2013, no CUCA Barra, aconteceu o Primeiro
Ciclo de Conversas com Juventude para as Comunidades Tradicionais de Terreiro em Fortaleza, que teve como
tema: Oralidade, Sade e Ancestralidade.
27
esta religio e a religio os(as) escolheu por algum motivo e, apesar da intolerncia e
violncia com as religies de matriz africana e do racismo, temos muito que aprender nesta
convivncia de comunidade-terreiro.
Para Botelho, (2005) o fato de ser iniciada e percorrer o caminho dos orixs a
possibilitou estar num lugar privilegiado em sua pesquisa. Suas reflexes e trabalho de campo
datavam desde 1997, tendo sua concluso de doutoramento em 2005.
No meu caso, o que me impossibilitou a entrada e acesso a algumas casas foi o
fato de no conhecer e poder presenciar alguns rituais da religio que so restritos para
iniciados(as), porm,o meu desconhecimento em relao religio me ajudou a fazer esta
iniciao intelectual (e espiritual tambm) acerca do candombl. Alguns balarorixs, como
Pai Valdo de Ians, Pai Linconly de Xang e Pai Junior de Oxum foram meus verdadeiros
mais velhos me iniciando na beleza da religio.
No ser iniciada no candombl no foi somente um problema para mim, enquanto
pesquisadora. Acredito que se eu fosse de alguma casa de candombl tambm teria problemas
para realizar a pesquisa. Como, por exemplo, o fato dos terreiros terem matrizes religiosas
diferentes tais como Keto, Angola, Jeje, essa diversidade de modos de candombl revela a sua
beleza, bem como as diferenas entre as mesmas. Outras dificuldades, tais como questes
internas de relacionamento entre os prprios terreiros, me deixariam visitar determinadas
casas e outras no.
Ressalto que minha inteno era fazer, no primeiro momento, uma pesquisa
exploratria16 utilizando a observao, todavia, a mesma se converteu em uma observao
participante, pois, desde o primeiro momento, estive presente neste lugar, ao dar uma carona
ou a contribuir com a bebida das festas, sendo considerada irm da casa. Tambm conversei
informalmente, pois ainda no considerava uma entrevista, com babalorixs e com os(as)
jovens candomblecistas que eu encontrava e que se permitiam falar de sua vida na religio.
Essas conversas tinham a finalidade de obter informaes iniciais que permitiram uma
aproximao qualitativa do objeto pesquisado (MATOS e VIEIRA, 2002). Todas essas
conversas foram gravadas.
Posso dizer tambm que no estou fazendo uma participao observante, como
alerta Cardoso (1986, p. 100), pois reduziria a pesquisa denncia militante e me
transformaria numa porta-voz do grupo, eliminando, assim, um dos passos importantes da
16
Segundo Rocha e Eckert (2008), essas sadas exploratrias so norteadas pelo olhar atento a tudo que acontece
no espao observado, sendo esta curiosidade substituda por indagaes acerca de como a realidade social
construda.
28
pesquisa participante, que [...] o estranhamento como forma de compreender o outro. [...] A
capacidade de se surpreender, que deve ser inerente ao trabalho do cientista, fica amortecida
quando se prope a fuso total do discurso do investigador com o do grupo investigado.
Neste sentindo, encontrei pessoas que sugeriram at que eu me colocasse como
abi de uma casa de candombl para que eu pudesse ter mais acesso religio e aos(s)
jovens, mas recusei pensar nesta possibilidade, pois no tenho, neste momento, pretenso de
praticar a religio e no seria tico de minha parte enganar as pessoas em vista de um diploma
de doutora em educao.
Laplantine (2004, p. 16) diz que [...] a presena do etnlogo no campo a nica
via de acesso ao modo de conhecimento que perseguimos. Eu precisava de um campo de
pesquisa e j estava meio aflita, pois encontrava terreiros abertos pesquisa, contudo, no
tinham jovens suficientes, ou localizava terreiros com alguns(mas) jovens, porm sem
condies de um trabalho como esse. Finalmente, depois de quase um ano de tentativas,
algumas conversas, telefonemas e jogos de bzios, encontrei o terreiro, local das minhas
observaes e aprendizagens.
Numa manh de outubro de 2012, fui ao encontro do Il As Iya Omi Arin Ma
Sun. Recebida por Pai Junior de Oxum Olutoji, babalorix da casa, conversamos por vrias
horas, tomamos caf, almoamos, conheci todo o terreiro, desde o barraco at a cozinha, e
tambm fui at a casa de Pai Junior que mora em frente, e conversamos mais um pouco e,
enfim, senti que este era o meu lugar, de que os orixs tanto falavam17, quando diziam que a
pesquisa iria ser abenoada com todo ax e que o sucesso seria garantido, apesar de algumas
dificuldades.
Lembro que quando eu j estava quase me despedindo e perguntei a Pai Junior se
ele aceitava que eu realizasse a pesquisa em sua casa, ele me respondeu de forma direta:
Minha filha, voc acha que se eu no quisesse que voc viesse fazer seu trabalho aqui eu
teria aberto minha casa para voc?. Essa foi a resposta que eu queria.
Dessa forma, inicialmente os sujeitos desta investigao foram os(as) jovens desta
casa de candombl que, na poca, tinha apenas dois anos de funcionamento. Estes tinham
entre 15 e 29 anos, a maioria era meninos das diversas orientaes e identidades sexuais,
sendo apenas duas participantes. Em mdia, tinham o ensino fundamental incompleto e no
trabalhavam, se ocupando de alguns trabalhos informais (os famosos bicos), tais como
ajudante de cozinha/padaria e domstica.
17
Aqui me refiro aos vrios jogos de bzios que fiz, onde os orixs respondiam que a pesquisa iria ser um
sucesso, e que os mesmos estavam abenoando.
29
Desta forma, concordo com Rocha e Eckert (2008, p. 05), ao afirmarem que:
18
Significa se prostituir margem de uma avenida. Nesse caso, eles faziam margem da Av. Leste-Oeste ou na
Costa Oeste Barra do Cear.
30
[...] a expresso entrada em campo possui uma rica ambiguidade. Para o(a)
etngrafo(a) entrar em campo significa tanto a permisso formal do nativo para
que ele disponha de seu sistema de crenas e de prticas como objeto/tema de me
produo de conhecimento [...], quanto o momento propriamente dito em que o
antroplogo(a) [pesquisador(a)] adquire a confiana do(a) nativo(a) e de seus grupo,
os quais passam a aceitar se deixar observar pelo(a) etngrafo(a) que passa, por sua
vez, a participar de suas vidas cotidianas.
2.1 As Festas
Uma das formas de minha insero e aproximao do terreiro e das pessoas foi
participando das festas abertas que eram realizadas na casa. Fui a vrias festas entre o final de
2012 e incio de 201419, tais como: Festa de Er (13 out. 2012); Festa de Ians (16 dez.
2012); Festa de Oxum (03 fev. 2013); Sada de Ia Oxum e Oxal (30 mar. 2013); Festa de
Caboclo (07 abr. 2013); Sada de Ia Oxossi e Logun (05 maio 2013); Festa de Exu Gira
de Exu (18 maio 2013); Onrunk festa do nome (24 ago. 2013); Festa das Iabs (20 out.
2013); Festa de Logun (08 nov. 2013); Sada de Ia Oxum (26 jan. 2014); Festa de Oxum
(22 fev. 2014); Sada de Ia (22 jun. 2014).
Estas celebraes pblicas so realizadas a partir de um calendrio especfico de
cada casa de candombl ou quando ocorre iniciao de mais um(a) filho(a)-de-santo. Nelas, o
canto, msica e dana se conectam aos orixs, que se manifestam por meio do transe em seus
adeptos. Alm disso, estas cerimnias de barraco ou toque, como so mais conhecidas, so
precedidas de uma srie de rituais que envolvem sacrifcios de animais; preparao das
carnes, comidas e bebidas rituais que sero inicialmente oferecidas aos orixs que esto sendo
celebrados e posteriormente preparados para o ajeum (banquete); cuidado com os irmos
recolhidos que estiverem cumprindo obrigaes iniciticas; arrumao das roupas e adereos
que podem ser costurados, lavados e engomados e passados (ouvi muitas vezes reclamaes
das mulheres adultas e jovens de que passavam quase um dia todo lavando e passado as
roupas de todos(as); preparao dos adereos e decorao do barraco para o momento, entre
outras atividades.
Era nas festas que eu conversava com as pessoas e os(as) jovens, observava a
disposio espacial do terreiro, bem como as suas mudanas ao longo da pesquisa, conhecia o
19
Ainda participo das festas deste terreiro, pois o lao que se construiu durante a pesquisa perdura at hoje.
31
culto, as msicas, as danas, os toques dos tambores; entendia como eram feitas as comidas e
para que serviam. Conhecia as pessoas e me tornava conhecida, ao frequent-las.
No terreiro, todos os membros participavam dos preparativos das festas, sendo
que desempenhavam tarefas especficas de acordo com a hierarquia. A maioria chegava com
dias de antecedncia e, geralmente, as mulheres traziam seus filhos, netos e agregados que, de
certa forma, ajudavam naquilo que podiam20. Ali dormiam, comiam, banhavam-se e vestiamse (com aquelas roupas branqussimas) para o grande momento pblico.
Relato abaixo trechos do meu dirio de campo de uma das festas que participei:
Domingo foi a festa das Iabs (as mulheres orixs, ou melhor, orixs femininos). J
cheguei um pouco atrasada, pois a festa estava marcada para as 16h, mas, na
verdade, iniciou somente s 18h. [...] Quanto festa, como sempre, teve dificuldade
de comear na hora por conta da falta de gua, segundo o pai-de-santo, que deu as
boas vindas a todos e todas.
Tinha um nmero considervel de convidados, pelos menos uns 5 (cinco) pais e
mes-de-santo, com seus respectivos filhos-de-santo. Tambm foram pesquisadores/
professores da UECE de Filosofia e de Servio Social, que no sei se vo fazer
pesquisa l no terreiro, mas que fizeram muitas perguntas para o pai-de-santo.
No primeiro momento da festa, todo mundo danou, depois, quando viraram
(incorporaram os orixs), foram recolhidos(as) para o quarto (runko) as pessoas que
tem orixs femininos para se vestirem com suas roupas de festa e danarem no
segundo momento.
Foi uma festa cansativa, porque comeou s 18h e terminou s 22h, mais ou menos.
Todo mundo da casa estava exausto, porque eles chegam cedo, alguns no dia
anterior para trabalhar at o horrio da festa e, durante a mesma, ainda danam e
depois ajudam na limpeza, pelo menos os que ficam no terreiro.
No intervalo, foram servidos salgadinhos e refrigerante. O pai-de-santo me pediu
para eu levar refrigereco, mas tambm vi Coca-Cola.
No segundo momento da festa, danaram com suas roupas de gala/festa,
primeiramente as Oxuns, depois as Ianss e depois as Iemanjs. Pelo menos umas
quatro a cinco msicas para cada orix.
Fotografei a casa e seus cmodos e os(as) convidados(as). interessante que at
os(as) convidados(as) me conhecem e perguntam quando eu deixo de ir a uma festa.
No fui ltima festa que foi a dos ers (inclusive nesta festa comemoro um ano de
visita a esta casa) e uma mulher que vem sempre casa, mas que de outro terreiro,
me perguntou porque eu no tinha vindo para festa dos ers.
Quando os orixs estavam danando com suas roupas de festa, a Ians do
Babakeker serviu para todos(as) os(as) convidados(as), antes das Iabs comearem
a danar, um bolinho de feijo, como acaraj, que a comida de seu orix. Somente
depois que as orixs iniciaram sua dana. O bolinho no tinha gosto, nem sal ou
acar.
Quando acabou a festa, que sempre se encerra com uma dana/msica/toque para
Oxal, o pai-de-santo agradeceu, chorou, falando que esta era a ltima festa naquele
barraco daquele formato, porque at fevereiro seria construdo outro barraco. A
casa est crescendo e por isso o salo no comporta mais o nmero de pessoas,
inclusive porque, nas festas, os(as) convidados(as) tambm participam da roda e fica
quase insuportvel se mexer e danar.
Aps a festa, tivemos o banquete, que tinha arroz, uma espcie de estrogonofe de
frango e outro de carne, muita salada e tambm estava sendo servido acaraj. Para o
acaraj tinha uma fila grande.
20
S quem era da religio podia desempenhar tarefas prprias, aqueles(as) que no eram iniciados(as) faziam
outras atividades para ajudar na preparao da festa.
32
Todo mundo se fartou e eu dei carona para a Regina e suas filhas, que vieram
comigo, a Ana, que tinha me ligado pedindo a carona. A Ia de Iemanj e o de
Oxagui, A loira e o Ogum recm-iniciado, genro da Zuleide. O carro tava cheio e
rimos bastante com as conversas da loira e o aperto do carro. (Dirio de campo da
pesquisadora Festa das Iabs 20 out. 2013).
Esse relato mostra mais ou menos um roteiro das festas que participei.
Geralmente, as festas iniciavam no final da tarde ou noite. Antes do toque, os Ogs (pessoas
encarregadas para tocar) preparavam os instrumentos musicais que eram os atabaques, e o
agog21. Estes primeiros eram reverenciados por todos, pois so eles, com a intensidade das
suas batidas, que chamam os orixs. Estes tem um lugar reservado dentro do barraco e esto
dispostos do maior para o menor. No se comea uma festa sem o cumprimento aos tambores.
O toque era iniciado com o chamamento de Exu e finalizava com cnticos para
Oxal. Entre o primeiro e o ltimo tocavam aproximadamente trs msicas para cada orix na
lngua iorub. Cada orix tem seu ritmo, suas msicas e seus prprios passos de dana.
Os cnticos, segundo Gomes (2003, p. 165), [...] no so apenas cantados, so
tambm danados, pois constituem a evocao de certos episdios da histria dos deuses, so
fragmentos dos mitos e o mito deve ser representado ao mesmo tempo em que falado para
adquirir poderes evocados.
Quanto s danas, estas iniciavam com todos(as) dispostos(as) de forma circular
em sentido anti-horrio. Quando o(a) iniciado(a) entrava em transe, geralmente as ekedis e
ebomis ficavam responsveis para levantar a cala dos homens, a cobertura da cabea das
mulheres e o calado de cada um.
Aps o transe e a vinda dos orixs, estes eram levados ao runko e preparados para
o segundo momento da festa, onde iriam danar com suas roupas de gala22. No intervalo,
entre o primeiro e o segundo momento, eram servidos salgadinhos e bebidas, como gua e
refrigerante.
Finalmente, aps a despedida dos orixs a cerimnia terminava com um banquete,
que, geralmente, eram comidas dedicadas aos orixs, pratos cheirosos, gostosos e saborosos
aos olhos. Comia-se com os olhos, e eu sempre repetia o prato.
Para Gomes (2003, p. 168), o banquete um momento de grande alegria e de
confraternizao entre as pessoas, pois, atravs do alimento todos(as) so convidados(as) a
21
Os atabaques so chamados do maior para o menos de rum, rumpi e l. E o agog um instrumento metlico
em forma de pequeno sino que tocado com uma vareta.
22
Dependendo da festa, todos(as) se vestiam ou, se era especial, em homenagem a algum orix, somente aqueles
determinados trajavam as roupas de gala.
33
participar do que mais importante na religio: [...] a comunho entre as partes [orixs,
filhos(as)-de-santo e convidados(as)] que constitui magnificamente tudo.
Durante minhas visitas, percebi que, alm das festas para os orixs e as sadas de
Ias23, existia tambm festas que no eram da nao keto, mas que reunia outros elementos
como caboclos e exus femininos e masculinos, os quais observei em festas da Umbanda.
Sbado, dia 18 de maio de 2013, fui para a festa de Exu, Gira de Exu como chamam
no terreiro. Esta festa era para homenagear a Maria Padilha da casa (que incorporava
no Babalorix) e outros Exus. Cheguei por volta das 18h e o sacrifcio (matana,
como eles dizem) dos bichos j havia acabado, mas, ao ir a cozinha as cabras e
bodes ainda estavam sendo tratados.
Todos(as) se preparavam para a festa. Os Ias recm-iniciados no puderam
participar desta festa, de acordo com o Pai Junior, eles ainda estavam de preceito.
Ento, ora ficavam na cozinha atrs do barraco, ora na cozinha frente do mesmo.
Uma coisa me intrigou, porque o Ia de Oxagui no participou da festa, apesar de
ele e os ias mais novos (recm-iniciados) estarem tratando dos bichos quando eu
cheguei?
Participaram desta festa pessoas que so de outros candombls e umbandistas
tambm, porm nenhum era jovem. Tambm estavam jovens ogans que tentavam
tocar e cantar msicas que irritaram alguns Exus que se manifestaram dizendo:
Esses ogans no deixam os Exus passarem! (Dirio de campo da pesquisadora 18
maio 2013).
23
Ressalto que as estruturas das festas de sada de ia so diferentes das festas de orixs que compem o
calendrio litrgico candomblecista.
34
Durante muito tempo, ouvi das ekedis, mulheres que seguiram iniciadas nesta
funo e tinham mais de 30 anos, reclamarem da primeira a ter esse cargo na casa e que era a
mais jovem delas. Esta, por sua vez, por mais que realizasse as funes designadas para ela,
no era valorizada nem reconhecida como a mais velha entre as ekedis. Porm, os outros
membros do terreiro e o babalorix a legitimavam como tal. A idade, nesse caso, no a
impedia de ser uma mais velha, contudo, gerava conflito com as outras que ocupavam a
mesma funo. Este fuxico levantava a questo da relao entre a tradio e a sociedade em
que vivemos, do conflito geracional.
Existiram tambm os ejs cotidianos, que so aquelas reclamaes de que fulano
se escorava e no fazia nada quando tinha funo na casa ou que comia tudo e no dividia
com os(as) irmos(s) ou at quem tinha ficado com quem. Esta ltima teve como
consequncia o afastamento de alguns filhos-de-santo, pois o acontecido estava relacionado a
interdies religiosas que foram transgredidas.
Um ltimo exemplo de fofoca se refere mxima saber poder. Presenciei
algumas vezes certas autoridades (Ekedis) fofocando sobre um ia que morava no terreiro.
Falavam que ele exercia vrias funes as ekedi e ogans, como por exemplo, matar os bichos,
cuidar de recm-iniciados (ou estar no espao onde esses eram preparados), preparar
determinadas comidas, entre outras. Um dia, em uma festa, o prprio foi confundido com um
ebomi. Conversando com o babakekere24 da casa, ele revela que, em alguns momentos, na
ausncia das pessoas responsveis, o ia ajuda em algumas atividades. Todavia, como esse
jovem vive no terreiro, ele acaba realizando todo tipo de funo, bem como sua vivncia
religiosa intensificada.
Acerca desse ltimo exemplo, concordo com Braga (1988, p. 28), ao afirmar que
o ej tambm um cdigo de tica que se coloca como [...] um discurso crtico e reprovador
daquilo que se afasta da tradio, estabelecendo certa censura.
Quanto ao portador do ej (fofoqueiro, baba ej, lngua de aff o que fala
demais, indaka kalunga kufurungoma aquele que tem a lngua to grande que pode furar
qualquer atabaque), esse uma figura muitas vezes criticada e rechaada no meio religioso.
Contudo, ele uma figura interessante para se contatar e conversar tendo, claro, que utilizar
devidamente os filtros para cada fala.
24
35
Portanto, fao minhas as palavras de Braga (1988), ao dizer que o etnlogo que
tem a tarefa de anotar, relatar e interpretar o fato religioso tambm de certa forma um baba
ej.
2.2 O Tempo
O tempo, para o terreiro, diferente de tudo que j vi. A noo de tempo pode se
ligar noo de vida e de morte, s concepes sobre o mundo (visvel) e o outro mundo
(invisvel) herdadas pelas tradies africanas.
Para Theodoro (2010), os africanos concebem o tempo a partir da relao entre o
presente, passado e alguns elementos do futuro, este ltimo podendo continuar
indefinidamente.
Tanto a autora acima citada quanto Prandi (2001) cita o trabalho de John S. Mbiti
e sua obra African religions and philosophy para esboarem o pensamento de um povo
africano acerca do tempo e de seus ritmos, um maior, que [...] inclui acontecimentos como o
dia e a noite, os meses, as estaes de chuva e seca e os acontecimentos da natureza; e outro
menor que [...] encontrado na vida das coisas que vivem na terra, assim como o homem, os
animais e as plantas, durante seu ciclo de nascimento, crescimento, procriao e morte
(THEODORO, 2010, p. 41).
Na concepo de tempo dos Povos Bantu, conforme assinala Kagame (1975, p.
116-117), o passado tem uma importncia capital por vrias razes:
Primeiramente, porque sem ele, o presente, o tempo da atual gerao no existiria.
[...] Alm disso, a cultura Bantu pe em relao estreita os ancestrais e seus
descendentes, estes estando convencidos que no continuariam a existir no presente
e no poderiam perpetuar sua linhagem sem a proteo dos ancestrais. (Traduo
nossa)25.
Dessa forma, eles no se orientam pelo tempo futuro, pois este seria [...] apenas
uma projeo do nosso esprito. E o presente, uma soma considervel do passado, sendo,
portanto, o tempo Bantu cclico, reforado pelas cerimnias como as de iniciao.
J os iorubas, segundo Prandi (2001, p. 46-47):
Antes da imposio do calendrio europeu, [...] organizavam o presente numa
semana de quatro dias. O ano era demarcado pela repetio das estaes e eles no
25
Dabord parce que, sans lui, le prsent, le temps de lactuelle gnration nexisterait ps. [...] En outre, la
culture bantu met em relation troite les ancstres et leurs descendants, ceux-ci tant convaincus quils ne
continueraient pas exister dans le prsent et ne pourraient pas perptuer leur ligne sans la protection des
ancestres.
36
conheciam sua diviso em meses. A durao de cada perodo de tempo era marcada
por eventos experimentados e reconhecidos por toda a comunidade. [...] Os iorubs
tradicionais reconheciam a existncia do ms lunar, mas lhe davam pouca
importncia, sendo muito mais importantes as pocas de realizao das grandes
festas religiosas, marcadas pelas estaes e fases agrcolas do ano que eles
chamavam de odum. O dia era dividido no em horas, mas em perodos, [...] como
de manh cedo, antes do sol a pino, com o sol na vertical, de tardinha, etc. A
noite era marcada pelo cantar do galo.
Desse modo, o tempo (Bantu e Iorub) cclico26, sendo este representado pelo
crculo que simboliza a eternidade, a continuao e a conexo do ser humano com a natureza
e com os ancestrais (nascimento, morte, renascimento).
Ainda sobre a concepo de tempo para os africanos, Parizi (2005) tambm
ressalta o passado como parte integrante dos acontecimentos atuais (consequentemente, do
futuro). E ressalta que no existe esse continuun linear do tempo ocidental que vem do
passado, passa pelo presente e desemboca no futuro.
Concordo com o autor, ao dizer que esse passado revivido no presente no se
transforma em algo esttico, como se os africanos vivessem num eterno retorno, pois [...] o
tempo social e o tempo mtico sempre se chocam, se opem e coexistem, de tal forma que no
perdem a noo de estarem vivendo em dois espaos e tempos diferentes (PARIZI, 2005, p.
53).
Assim sendo, apesar dos afrodescendentes assimilarem a ideia de tempo ocidental
brasileiro27, muitas reminiscncias da concepo africana podem ser encontradas no
candombl.
No candombl tudo tem seu tempo e cada atividade cumprida no tempo que for
necessrio como, por exemplo, ao nascer do sol, depois do almoo, de tarde, quando o
sol esfriar, de tardinha, de noite. a atividade que define o tempo e no o contrrio
(PRANDI, 2001).
O tempo do terreiro um tempo muito diferente do tempo da gente nesta sociedade.
[...] Na primeira conversa que eu tive com o pai-de-santo eu cheguei 9h30min no
terreiro e sai de l 15h ou 15h30min, foi momento de conversar, de almoar junto,
de partilhar, de mostrar a casa, enfim, de falar de orix, de candombl, do
funcionamento da casa, dos jovens, filhos e filhas-de-santo.
O tempo do terreiro um tempo lento. um tempo que as coisas comeam quando
tiver pronto, quando as comidas tiverem na mesa. [...] A festa s comeou depois
que todos tinham posto a mesa e todos tinham tomado banho, depois o Og chegou,
o pai-de-santo foi se organizando. [...] No uma coisa assim, duas horas da tarde
26
27
37
em ponto. O tempo no seguido pelo relgio, o tempo das coisas, do preparo, do
ficar pronto.
E, para quem no desse lugar, que no vive isso, s vezes no tem pacincia, a
festa demora mesmo, porque tem que chamar todos os orixs que so muitos.
(Dirio de campo da pesquisadora 13 out. 2012).
Costumo dizer para as pessoas que perguntam para onde eu vou, que vou visitar o
terreiro e no tenho hora para voltar, pois, durante esses meses que convivi com as pessoas da
religio, descobri que at tenho hora para chegar ao terreiro mas no sei quando vou sair de l.
O tempo no conduzido pelo relgio e sim por determinadas tarefas que so
cumpridas antes ou depois de outras. Em alguns casos, sejam em festas ou outras funes,
ocorrem imprevistos, como a falta de gua, ou falta de pessoas para realizarem a atividade, ou
o contrrio. Presenciei, algumas vezes, pessoas que visitavam o terreiro que incorporavam os
seus orixs no final da festa e, por conta desse fato, em respeito divindade, os atabaques
tiveram que tocar uma, duas, trs msicas para que danassem todos(as) quanto incorporavam
em seus(suas) filhos(as), independente da hora.
O tempo no candombl tambm mtico. O mito fala de um passado que explica a
vida no presente, pois os acontecimentos do passado esto vivos nas narrativas mitolgicas
que nem so datadas nem mostram coerncia ente si, no existindo a possibilidade de julgar
se uma mais verossmil que a outra.
Esse tempo mtico tambm um tempo da memria de um povo que passada de
gerao a gerao pela oralidade, tempo da tradio que ritualiza esse passado e garante a
identidade comunitria.
O autor citado anteriormente afirma que [...] o tempo do mito e o tempo da
memria descrevem um mesmo movimento de reposio: sai do presente, vai para o passado
e volta para o presente no h futuro (PRANDI, 2001, p. 49), e o candombl a religio da
ritualizao desta memria ancestral, pois [...] quando o filho-de-santo entra em transe e
incorpora um orix, assumindo sua identidade representada pela dana caracterstica que
lembra as aventuras mticas dessa divindade, o passado remoto, coletivo, que aflora no
presente para se mostrar vivo.
No Il As Iya Omi Arin Ma Sun existe uma espcie de altar para TEMPO, uma
divindade Banto que no candombl Ketu chamado de Iroko28. Esse espao foi construdo e
reverenciado curiosamente no dia do aniversrio do babalorix da casa.
Foram oferecidas algumas galinhas, danamos, cantamos, os orixs vieram para
celebrar o tempo e uma menina de mais ou menos 4 (quatro) anos foi assentada29 por
28
Iroko um orix de origem keto, que faz parte de um grupo de orixs especficos, fitoltricos e ligados s
rvores.
38
Xang como Ekeji. Todos pediam ao tempo paz, sade, amor, dinheiro, trabalho e
fomos banhados com pipoca e o pai-de-santo passou em nossa boca uma espcie de
farinha de amendoim para nos abenoar. (Dirio de campo da pesquisadora 31
mar. 2013).
Indicada pelo orix para a funo de Ekeji, porm ela est suspensa por ser criana.
39
simptico, a recebeu e comearam a conversar. Pouco tempo depois, chegou uma filha-desanto que a saudou com todas as reverncias e lhe falou de seu problema. A babalorix pediu
licena e disse que voltava j. A tarde passou e a noite caiu de repente. Todos(as) a ignoravam
e, polida, cautelosamente foi embora. Somente meses depois ela veio a saber o que acontecera
nos fundos da casa com as duas mulheres (LANDES, 2002). E, comentando sobre o tempo, a
pesquisadora escreveu:
Durante a minha permanncia na Bahia pasmava-me a liberdade que as mes
tomavam com o tempo. Menininha no voltou sala aquele dia e como soube,
subseqentemente, sempre se atrasava, sempre demorava. Era um privilgio da sua
posio, aceito como natural numa terra de aristocracia e escravido. Que era o
tempo? O tempo era o que se faz com ele e ela estava sempre ocupada. (LANDES,
2002, p. 129).
40
compreenso dos comportamentos a partir da perspectiva dos sujeitos da
investigao.
Desse modo, eu tive que exercitar o meu olhar e o meu escutar e me deslocar da
minha cultura para me situar no interior do terreiro e do candombl, participando de todas as
formas de sociabilidade que me permitiam. Compreendendo os(as) jovens e, ao mesmo
tempo, sendo modificada por eles.
30
Tenho a impresso que j estava fazendo etnografia antes de sistematizar metodologicamente este texto, pois,
quando fui ao campo, tinha poucas leituras sobre a etnografia e somente com a disciplina Metodologia da
Pesquisa no Estudo da Juventude, ministrada pelas professoras doutoras Celecina de Maria Veras Sales e Erclia
Maria Braga de Olinda, que partilhei e teorizei a respeito de minhas prticas no campo. Ressalto tambm a
disciplina de Metodologia da Pesquisa Qualitativa, orientada pelas professoras doutoras Kelma Matos e
Celecina de Maria Veras, que me ajudaram a aprofundar este mtodo.
41
Neste rito de iniciao doloroso, fazer parte do grupo no acontece por inteiro
ou de forma tranquila. Para as pessoas que participam da pesquisa, seremos sempre os(as)
estrangeiros(as), apesar de saber que existem influncias do grupo sobre o(a) pesquisador(a) e
vice-versa.
Contraditoriamente, no podemos tornarmos unicamente participantes, pois a
participao integral no concilivel com a observao intensa. Contudo, uma participao
parcial compatvel com uma observao atenta (CABRAL, 1983).
Posso dizer que meu trabalho no seguiu rigorosamente as orientaes de grandes
etngrafos como Malinowski (1997), W.H.R. Rivers (1912) ou Evans Pritchard (2013) que se
submeteram a viver durante muito tempo no campo31, aprenderam a lngua dos nativos e
deixaram-se vulnerabilizar psiquicamente pela vida local, tentando pensar ora como um
nativo, ora como membro de sua cultura.
Todavia, seus relatos me ajudaram fazer essa imerso no campo, no terreiro e
mergulhar no cotidiano dos(as) jovens candomblecistas e entender suas linguagens, quando
falavam em Iorub ou quando utilizavam suas grias bem peculiares deste territrio, levando
em considerao o ponto de vista dessa juventude, que, para a etnografia, so os(as) nativos
da pesquisa.
Igualmente aos pais da Etnografia32, tive que aprender outras lnguas a lngua do
terreiro e da homossexualidade dentro deste espao; aprendi a me vestir de acordo com os
31
No posso deixar de mencionar a sugesto do professor Marcelo Natividade de que eu dormisse no terreiro
para experimentar esse momento ntimo com os(as) jovens. Fui muitas vezes convidada a dormir e a passar a
noite l, porm, no consegui me desnudar suficiente para tal feito.
32
Aqui me refiro a Malinowski (1997), W.H.R. Rivers (1912) e Evans Pritchard (2013).
42
43
O dirio de campo um dos instrumentos mais importantes para quem vai fazer
uma pesquisa de campo, pois, ao registrar o contexto em que os dados so obtidos, permite
captar informaes que entrevistas, documentos e outros dados no transmitem.
Acredito que perdi algumas informaes por no ter registrado minhas primeiras
incurses ao campo, pois no achava fundamental ter que ficar escrevendo tudo, confesso que
at esqueci algumas coisas. No incio, gravava minhas impresses e fotografava as festas,
mas, com o passar do tempo e de apelos de minha orientadora, sempre atenta aos meus
relatos, entendi que era necessrio ter esse registro dirio, at mesmo como forma de analisar
meu progresso em campo.
Acerca dos dados de pesquisa, concordo com Peirano (1992, p. 07), ao afirmar
que estes:
44
atenta ao que se passava em minha volta e tambm desatenta, ao me deixar ser afetada pelo
inesperado, como quando fui beijada pelo Eduardo, o Ogan mirim da casa e quando a Loira
abi da casa, me disse motumb, me pedindo a beno.
Porm, o fato mais inesperado foi quando eu me senti irm-amiga do terreiro,
aceita pelo grupo. Transcrevo aqui um trecho do meu dirio do dia 31 de maro de 2013:
Cheguei no terreiro por volta das 9h [...]. Logo na chegada, o Pai Junior me
explicou que eu ia presenciar um ritual (tenho que saber o Nome dele) que acontece
no dia seguinte sada dos Ias. Os dois que foram iniciados, o de Oxal e a Oxum,
tinham que reconhecer os elementos que usamos no dia a dia, tais como pratos,
copos, talheres, desodorante, fsforo, sabo, celular, perfume, pente de cabelo, entre
outros, pois os orixs tinha nascido ontem e no conheciam esses elementos. Desse
modo, foi estendida no cho uma esteira e colocados os elementos de que falei
acima.
Os dois manuseavam como se tivesse utilizando de verdade e o Babakeker de
Xang (Pai pequeno da casa) explicava o motivo disso e dizia que eles, a partir
daquele dia, iriam se familiarizar com esses utenslios. Aps esse reconhecimento,
os ias fizeram reverncia s autoridade da casa (pai-de-santo, pai pequeno, ogans,
ekejis), como sinal de humildade e ancestralidade, respeito ao mais velho, em
seguida, fizeram o mesmo com os ias da casa e, depois, com os abis da casa e
comigo, pois fui tambm convidada a ficar na frente dos recm-iniciados para que
eles fizesse o pa para ns.
Fiquei muito lisonjeada de ser convidada para esse momento, pois o mesmo me
explicou que faz parte da iniciao e que eu no podia fotografar, pois um segredo.
Tambm me disse que essa reverncia geralmente nas casas de candombl feita
apenas com as autoridades e que nesta casa feito assim como uma forma de
aprendizado e vivncia da humildade e de comunidade. muito interessante ver um
jovem de 20 anos pedir a beno pra uma menino como ogan que tem apenas 7
anos. (Dirio de campo da pesquisadora 31 mar. 2013).
45
Meu olhar etnogrfico se deu com o corpo todo, inclusive. posso at dizer que
dancei com o caboclo numa sintonia prazerosa durante a festa do caboclo Bravo Guerreiro,
no dia 07 de abril de 2013. Apresento um trecho do meu dirio de campo que enfatiza esse
momento:
Tive uma experincia muito interessante com o Caboclo Boiadeiro que
incorporado pelo Pai Pequeno da Casa que tem orientao homossexual. Ele me
chamou para roda para danar com ele e me disse: O seu moo que recebe eu, esse
moo no gosta de mulher, mas eu gosto e gostei de voc, moa formosa, cheirosa.
(Dirio de campo da pesquisadora 07 abr. 2013).
O meu sexto sentido de pesquisadora, como diz a msica, foi ligado naquele
momento e aproveitei a experincia. De modo que concordo com Laplantine (2004, p. 20),
quando diz que a descrio etnogrfica:
Mobiliza a totalidade da inteligncia, da sensibilidade e at da sensualidade do
pesquisador. Atravs da vista, do ouvido, do olfato, do tato, do paladar, o
pesquisador percorre minuciosamente as diversas sensaes encontradas. Por
consequncia, a escrita etnogrfica no deve apenas estar atenta s formas e as cores
[...], mas tambm ao brando, rugoso, estridente, agudo, grave, sonante, dissonante,
seco, mido, cido, amargo, picante, salgado, aucarado, etc.
46
Dessa forma, posso afirmar, sem temor, que a Etnografia foi a metodologia
escolhida, dentre diversas metodologias interessantes e viveis, a que eu mais identifiquei
47
com esta pesquisa. O meu contato com o terreiro, minha insero no campo e as experincias
que tive com os(as) jovens candomblecistas em suas atividades dentro e fora do candombl
pediram que eu realizasse uma etnografia, a fim de obter meus objetivos.
Como no h etnografia sem o ponto de vista nativo (NATIVIDADE e GUSSI33,
2013), esta metodologia se atrelou aos conceitos categorias que pretendi analisar e me
ajudou a ver outras categorias a partir da fala dos(as) colaboradores(as) da pesquisa e de
minhas observaes.
Contudo, a observao participante e o uso do dirio de campo no foram as
nicas tcnicas de pesquisa utilizada. Realizei tambm conversar informais34 e entrevistas
semiestruturadas com os(as) jovens e os babalorixs.
As conversas informais se caracterizaram por dilogos entre mim e os sujeitos
pesquisados, com a finalidade de obter informaes iniciais a respeito do objeto. J nas
entrevistas, elaborei um roteiro com algumas perguntas norteadoras que suscitaram, em
alguns casos, outras questes que eu no havia levado em considerao antes da execuo da
mesma.
Conforme ressalta Matos e Vieira (2002, p. 63), [...] esta uma entrevista mais
aberta que a estruturada, o que possibilita maior flexibilidade nas respostas e a obteno de
falas que podem enriquecer ainda mais a temtica abordada.
Com o meu olhar atento e uma escuta amorosa, percebi que algumas questes que
afloravam no campo no poderiam ser problematizadas naquele territrio. Por ser uma casa
jovem (apenas trs anos de vida35), os(as) jovens do terreiro tinham uma ancestralidade pelo
tempo de iniciao, contudo, no era tempo suficiente para se questionar as relaes de
hierarquia e seus desdobramentos. Pesquisar a relao entre os(as) jovens que j so
autoridades na religio com outros(as) jovens iniciados(as) e com os(as) no-jovens era
praticamente impossvel neste terreiro, visto que o ia jovem mais velho da casa tinha dois
anos de iniciado.
Neste sentido, ao compartilhar minhas inquietaes, durante a primeira
qualificao deste trabalho, fui encorajada a procurar paralelamente outro terreiro onde
pudesse complementar36 as questes pertinentes levantadas durante minha incurso no campo.
33
48
Agradeo a professora Sandra Petit, que indicou e me incentivou a procurar o terreiro Il As Oojudol, local
de minha pesquisa de mestrado, em que a mesma foi minha orientadora. Exu se travestiu de Sandra abriu os
caminhos da pesquisa da maneira mais peculiar deste orix mostrando outros rumos nada programados.
38
Gostaria de destacar tambm que, alm da defesa de mestrado ocorrida na UFC, realizei tambm, a pedido do
Pai Alusio (sacerdote da casa) e dos jovens, uma apresentao da pesquisa dentro do terreiro em um dia de
Amal (quarta-feira), contando com a presena de vrias pessoas, entre elas os filhos-de-santo e alguns
convidados.
39
Os smbolos Adinkra so um conjunto ideogrfico com mais de oitenta smbolos estampados em tecidos,
esculpidos em pesos de ouro, talhados em peas de madeira. So utilizados em rituais, cerimnias e festivais. O
ideograma Sankofa simboliza a sabedoria de aprender com o passado para construir o futuro. (NASCIMENTO e
G, 2009).
49
jovem que confeccionava fios de conta pelo pai-de-santo. Ela me respondeu que ele
estava dormindo e perguntou o que eu queria falar com o mesmo. Expliquei que
tinha marcado naquele dia atravs do Pai Pequeno uma conversa com o babalorix
s 16h.
Algum foi ver se o Pai Aluisio ainda estava dormindo ou j tinha acordado e me
fizeram a sala, como sempre, muito atenciosos oferecendo gua e caf. Eu estava
impaciente com a demora e falava internamente como um mantra que se reza:
Pacincia histrica, Silvia! Ele vai demorar, mas vai acordar e conversar com
voc!.
[...] Depois de certo tempo (j eram mais de 17h), o Pai Aluisio aparece no jardim
onde eu o esperava e pede desculpas por ter esquecido nosso encontro.
Conversamos muito no salo ao lado do barraco, eu sentada na cadeira e ele em sua
rede. Entre um balano e outro, fomos lembrando-nos de minha estada ali e o que
havia mudado em mim e neles depois disso. A conversa era sempre interrompida por
seus filhos-de-santo alguns que eu conhecia e que haviam participado da pesquisa
do mestrado, como o Lindemberg e o Romrio que requeriam a aprovao do
sacerdote para uma atividade ou outra, ou quando chegavam ou iam se despedir.
Naquele dia, especialmente, estavam se preparando para um trabalho de limpeza
espiritual que o babalorix iria fazer em uma pessoa.
Expliquei os motivos de minha volta ao terreiro e a necessidade de dar continuidade
pesquisa, esbocei minha inteno em filmar uma festa e todo o momento da
pesquisa, em vista da edio de um curta metragem como produto da pesquisa, alm
da tese, falei tambm de todo o processo que j havia feito com a etnografia em
outro terreiro e a possibilidade de juntar os jovens das duas casas, que depois
analisei ser invivel40. Senti, nesta conversa, e quando fui ao outro terreiro falar
desta proposta, a desconfiana entre os babalorixs com esse encontro e,
principalmente, a exacerbada valorizao carregada de sutileza de cada experincia
religiosa.
Passada a tenso da apresentao da proposta, que afirmei estar suscetvel a
mudanas, o pai-de-santo chamou alguns jovens que estavam na casa e pediu para
eu conversar com eles no barraco. Mais uma vez, expliquei o que estava fazendo
ali e a pesquisa em si, os objetivos e os motivos de minha volta aquele lugar. Em
seguida, perguntei a disponibilidade de cada um em participar desses dias de
pesquisa que seria l no terreiro e todos, prontamente, responderam que sim.
Ficamos acertados que o babakeker iria avisar a data a todo mundo, mas que,
provavelmente, seria num fim de semana.
A conversa com o Pai Aluisio adentrou a noite e, chegando o babakeker,
confirmamos a data e horrio da pesquisa que seria no sbado seguinte antes da festa
de sada de ia. A festa iniciava pelas 20h e eu tinha a tarde para trabalhar com
os(as) jovens. O dia era propcio para fazer as filmagens em um dia, j que teria a
festa e antes o grupo de produo de saberes.
No dia da festa, 25 de janeiro de 2014, quando preparava o material de pesquisa,
recebi um telefonema do babakeker da casa avisando da impossibilidade de realizar
os grupos tarde por conta de um acidente que ocorreu com o local onde iria ser
realizado e que todos e todas estavam trabalhando rapidamente para resolver o
problema por conta da festa a noite. Mas que a filmagem estava confirmada e eu
podia ir logo noite. Remarcamos a pesquisa para o sbado e domingo seguintes.
(Dirio de campo da pesquisadora fev. 2013).
40
Os babalorixs dos terreiros pesquisados no tinham uma boa relao, devido a questes polticas e pessoas.
Dessa forma, achei prudente no continuar minha proposta de juntar os(as) jovens em um momento da pesquisa.
50
Do mesmo modo, pude observar duas festas (Sada de Ia/Orunko 25 jan. 2014
e Festa de Logun-Ed 19 maio 2014) e conversar informalmente tanto com o babalorix
da casa como com alguns(mas) jovens.
jovens
no
uma
tarefa
muito
fcil,
eles(as)
ficam
41
Esta situao no era regra, alguns(mas) jovens no se incomodavam diante dos equipamentos de gravao e
s ficam envergonhados no incio.
51
modo,
realizei
tcnicas44
onde
os(as)
participantes
escreveram
42
52
histria em quadrinhos, fruto de minha pesquisa de mestrado, e que foi publicada e distribuda
no terreiro, em algumas escolas e entre os movimentos sociais. Esta histria contribuiu para
discutirmos as africanidades brasileiras e sua vivncia na escola. Minha inteno, com este
filme, fomentar a discusso sobre as relaes tnico-raciais, as juventudes e suas prticas
religiosas no candombl, como forma de problematizar a intolerncia religiosa e o racismo.
Concordo com Cruz Neto (1996, p. 63), ao afirmar que as fotografia e filmagens
se apresentam como recursos de registro visual que [...] ampliam o conhecimento do estudo
porque nos proporciona documentar momentos ou situaes que ilustram o cotidiano
vivenciado.
Foram filmadas duas festas, uma de cada terreiro. No Il As Olojudol foi
filmado no dia 25 de janeiro de 2014 a sada (iniciao) de um menino de 10 anos para o
orix Oxumar e de um homem adulto para o orix Ogun. No outro, o Il As Iya Omi Arin
Ma Sun, a festa filmada, no dia 22 de fevereiro de 2014, foi a comemorao de trs anos de
abertura da casa e, consequentemente, a festa de sua protetora, Oxum. Os dias de grupos de
produo de ambos terreiros tambm foram filmados, fotografados e gravados.
Foram dois dias de grupo de produo de saberes em cada terreiro; no ltimo dia
fiz, tambm algumas entrevistas para esclarecer dvidas que apareceram durante a realizao
dos grupos.
Apresento a descrio desses dias, o roteiro, seguido de minhas impresses acerca
da dinmica estabelecida por cada grupo e seus participantes.
53
A participao foi to intensa que samos noite e ainda permanecia a euforia das
falas daquelas pessoas ecoando em ns. Foram muitas informaes partilhadas, conceitos
aflorados.
Iniciei me (re)apresentando e explicando que esta era outra pesquisa diferente do
mestrado que tinha como palavra geradora e categoria central as africanidades. Esclareci que,
no doutorado, queria saber como era ser jovem do candombl. Como eles viviam sua
juventude dentro da religio, como conheceram e o que os(as) levaram a se iniciarem, como
eram antes e depois da sua iniciao, e o que aprendiam.
Informei tambm que estava realizando esta pesquisa com jovens de outro
terreiro, onde eu iria fazer as mesmas tcnicas e perguntas a eles(as) sobre a possibilidade de
juntar os dois grupos no final.
Perguntei se eles(as) aceitavam serem filmados, em seguida, os(as) jovens e a
jovem se apresentaram dizendo o nome, a idade, o orix que pertenciam sua cabea e quanto
tempo tinham de prtica no candombl.
Aps a apresentao, iniciamos os trabalhos com a tcnica que intitulei Os
elementos das juventudes. Esta tcnica foi pensada a partir dos elementos da natureza, pois
como as outras religies ditas afro-brasileiras, o candombl tem uma forte ligao com o
fogo, a terra, a gua e o ar. Cada orix est intimamente conectado a um desses elementos ou
a mais de um, sendo esta ligao expressa atravs de seus diversos mitos.
Vrios orixs esto ligados ao Fogo, tais como: Xang, Exu, Ians, Ob e Ogum.
A gua um elemento caracterstico de Ew, Iemanj, Logun-ed, Ob, Nan, Oxal, Oxum
e Oxumar. J a Terra representa os orixs Exu, Ew, Logun-ed, Nan, Ogum, Omolu,
Oxossi, Ossaim e Oxumar. E, finalmente, o Ar elemento de Ew, Ians, Oxal e Oxumar
(PARIZI, 2005).
Para a cosmoviso africana, expressa nos mitos e rituais candomblecistas, o ser
humano isolado est morto, pois este deve viver em harmonia com outras pessoas, com
aqueles que esto vivos, animais, vegetais, com os que esto mortos, como os ancestrais e
entidades da natureza, os orixs, com os minerais e aqueles fenmenos e objetos sem vida
biolgica (DOMINGOS, 2011).
Neste sentido, considerei que os elementos da natureza serviriam como um mote
para iniciar a discusso sobre o conceito de juventude e seus desdobramentos.
Nesta atividade, todos(as) foram vendados(as) e sentavam da forma mais
confortvel que quisessem, ouviram duas msicas africanas que remetiam a sons que podiam
ou no serem conhecidos. Pedi que pensassem num elemento da natureza (fogo, terra, gua e
54
ar) que gostassem ou que tivesse relao com a msica. Em seguida, fiz as seguintes
perguntas:
a) Se a juventude fosse um elemento da natureza, que elemento seria? Por qu?;
b) Se a juventude fosse um elemento da natureza em que estado ele estaria? Por
qu?.
Eles e ela escreveram ainda vendados em folha de papel ofcio, exatamente um
lado de cada folha para responder as quatro perguntas. Depois de terem escrito, lentamente
foram desvendados e observaram como conseguiram escrever vendados.
Para esse momento, utilizei TNT preto, papel ofcio, canetas, o computador com
as msicas e a caixa de som. Todo o momento foi fotografado, filmado e gravado.
Pedi para verbalizarem suas sensaes ao serem vendados e a maioria disse ser
difcil escrever vendado porque no podia ler o que havia escrito, havia tambm o receio de
ter escrito errado ou fazer feio.
Percebi que os elementos escolhidos tinham uma ntima ligao com as
caractersticas essencialistas da juventude, tais como a fora, a irresponsabilidade, o
imediatismo, a intensidade.
Interessante que, da forma como falavam, eles e ela no se reconheciam nesse
modo de ser jovem, somente em alguns casos, quando se tratava da tecnologia, porm, nada
fora da ordem estabelecida (no havia transgresso).
Nenhuma pessoa escolheu o elemento terra, que, segundo eles afirmaram no outro
dia de pesquisa, estava ligado ao cho, calmaria, responsabilidade e ideia de ser
adulto/velho. Todavia, no segundo dia de grupo, um participante que no havia estado nesse
momento questionou e analisou a possibilidade do elemento terra ter relao com as
juventudes.
No segundo momento, que chamei de Entendendo o conceito de juventude do
candombl, propus a tcnica do Quadro dinmico/esttico. Esta tcnica consiste na
apresentao de uma cena esttica de uma temtica proposta.
Nesse caso, o grupo foi dividido e construram trs cenas estticas:
a) Cena I - Quem a juventude/O que ser jovem?;
b) Cena II - Quem so os jovens do candombl/o que ser jovem do
candombl?;
c) Cena III Quem so os jovens autoridades do candombl/o que ser jovem
autoridade do candombl?.
55
45
Refiro-me aqui s pessoas que estavam me ajudando neste dia, Fabio Mendes, estudante de pedagogia e amigo
que trabalha numa ONG que realiza projetos junto s juventudes. E os cinegrafistas Paulo Holanda e Mrio, que
estavam filmando o momento da pesquisa.
56
57
indicava a caixa para quem quisesse da roda para a prxima questo at a derradeira
indagao.
Primeiramente, os jovens e a jovem demonstraram desconhecimento quanto s
questes de orientao e identidade sexual relacionadas aos orixs, contudo, aos poucos
foram revelando algumas histrias que ouviram sobre a sexualidade dos orixs e a relao
destes com o fato de muitos adeptos terem orientao homossexual46.
A ltima tcnica da tarde foi a produo de um desenho coletivo do terreiro de
candombl, intitulada Construindo sua roa de candombl. Os participantes foram divididos
em dois grupos, conforme sua preferncia, e cada grupo desenhava sua roa levando em
considerao trs orientaes: Os elementos que no podem faltar na roa; as pessoas que
participam dela e as funes que desempenham; e a diviso espacial do lugar. Alm disso,
cada participante, na apresentao, tinha que ressaltar o seu lugar preferido no terreiro.
Finalmente, aps as apresentaes, fizemos uma avaliao final dos dois dias.
Para os(as) jovens, os momentos dos grupos foram importantes para divulgao de sua cultura
e religio em vista da desmistificao de esteretipos acerca do candombl e de seus
praticantes e do combate ao preconceito.
Como afirma a Egbomi/Yalorix de Ewa:
uma experincia boa porque a gente t ajudando a formar novos pensamentos,
aqui h algum tempo [...] pra, digamos, a gerao futura ver o que a gente passa hoje
com esse preconceito. Daqui um tempo, a gente torce que esse trabalho sirva pra
quebrar esse preconceito [...]. (Informao verbal no Grupo de Produo de saberes
08 fev. 2014).
Tambm ressaltaram que esse espao proporcionou a interao entre os irmosde-santo, j que no existe muito tempo livre no terreiro para entrosamento. Foram dias de
debates de ideias, pois nem todos pensavam do mesmo jeito, havia divergncias, todavia,
serviram para que um conhecesse melhor o outro.
Era o sbado depois do carnaval e eu tinha combinado com os(as) jovens, dias
antes, de fazer o grupo nesse fim de semana (sbado e domingo). Conversamos durante o caf
de Oxal, que foi um domingo antes da festa (dia 02 fev. 2014), e todos que estavam l e que
46
58
59
60
d) Qual a diferena entre os(as) jovens (de idade biolgica) mais novos(as) e
os(as) que j esto h mais tempo na religio (entre os(as) mais novos e os(as)
mais velhos(as) no candombl)?;
e) O que fazem no dia a dia? Quais so suas tarefas na semana dentro e fora do
terreiro?.
Este foi um momento muito rico, onde a maioria das pessoas falava de sua
experincia no dia a dia da religio. Notei que o Ia de Oxagui era menos falante, pois ele
muito tmido e, geralmente, s respondia o que era perguntado diretamente a ele, o contrrio
do Babakeker de Air, que sempre respondia tudo e s vezes monopolizava a fala. Se ele
falasse primeiro, os outros concordavam com ele e respondiam nesta direo de concordncia.
Senti que, de certa forma, ele estava conduzindo as falas e opinies.
No percebi divergncia entre as falas ou conflitos entre as pessoas ao falarem,
como se tudo tivesse numa harmonia.
No terceiro momento, que chamei de Juventude e Candombl: o Antes e Depois
(O ingresso dos jovens no candombl), trabalhamos com a tcnica do desenho. Os(as) mais
velhos(as) podiam ampliar este desenho de como eram quando entraram e depois de se
tornarem autoridades. Nesse caso, somente dois poderiam falar, que eram a Iarob/Ekeji e o
Babakeker pai pequeno, porm, esta jovem j entrou na religio com esta responsabilidade,
segundo ela, sendo o rapaz o nico a poder ampliar dessa forma seu desenho.
Durante a apresentao de cada um e seu desenho, eu acrescentava com algumas
perguntas que foram:
a) Como conheceram o terreiro?;
b) Como foi a aproximao deles neste espao religioso?;
c) De que forma entraram na religio e como foi?;
d) Por que entraram nesta religio?.
Neste momento, que foi o ltimo da manh, percebi que a maioria falava de uma
nova vida ao entrar no candombl.
Encerramos com uma rpida avaliao do dia e com o convite entusiasmado para
o outro dia. O Babakekr iria no domingo oferecer um almoo base de muito peixe quando
terminssemos todos os momentos do grupo.
Fui deixar a Iarob/Ekeji de Ogun e o Ia de Oxagui, enquanto os outros
permaneceram na casa para o outro dia. Infelizmente, no conseguimos realizar a segunda
parte da pesquisa, por conta do falecimento da minha av-mezinha. Pela manh, tive que
61
avisar a todo mundo que no iria ter e marcamos para o domingo seguinte, mas no teve
tambm por falta de articulao e acabamos fazendo num outro domingo.
O Babalorix em nenhum momento veio olhar o grupo ou dar sua opinio,
permaneceu em sua casa, que fica em frente ao terreiro. Contudo, antes de comear ele
interferiu na organizao do grupo e no espao. Perguntou se queramos ventilador, mandou
os meninos irem ao banheiro e tomarem gua.
Neste dia, me ajudaram meu amigo Fbio Mendes e os cinegrafistas Paulo
Holanda e Mrio.
O segundo dia, 30 de maro de 2014, foi atpico, pois o Babalorix resolveu ceder
o perodo da manh de funo na casa para que realizssemos o grupo de produo de
saberes. Neste domingo, a casa estava preparando as oferendas para a realizao da festa do
Caboclo Bravo Guerreiro que aconteceria em sete dias. Dessa forma, o momento foi
pressionado pelo tempo, a ponto de o pai-de-santo pedir para encerrar porque j estava
passando da hora de iniciar os trabalhos da casa.
Senti que as atividades do grupo ficaram prejudicadas pelo barulho das pessoas
que no estavam participando, mesmo que de longe, e, na minha avaliao, as entrevistas que
ficaram por ltimo foram as mais lesadas por este movimento.
Neste dia, tive a ajuda significativa de minha irm Livia Maria Vieira e sua
companheira Michele Arajo, meu companheiro Erlon Gadelha e do cinegrafista Paulo
Holanda e seu filho.
Iniciei os trabalhos fazendo uma retrospectiva do primeiro dia de grupo
lembrando as pessoas que participaram47 e das tcnicas que fizemos. Destaquei que,
igualmente o terreiro Il As Olojudol, no foi escolhido o elemento Terra como smbolo de
expresso das juventudes.
Em seguida, apresentei as atividades do dia, comeando com apresentaes
teatrais de trs orixs: Ewa, Logun-ed e Oxumar. O grupo de 10 jovens foi subdividido em
trs, sendo uma encenao para cada orix.
Antes de comearem o teatro, os(as) participantes se apresentaram, pois havia
quatro jovens que no tinham participado do momento anterior. Dessa forma, o grupo cresceu
com mais duas jovens, bem como os rapazes tiveram a participao de mais dois integrantes.
Cada grupo apresentou sua cena, porm, percebi que a construo das mesmas
passou pelo crivo do babakeker da casa. No foi uma produo espontnea dos grupos,
47
Somente uma pessoa que estava no primeiro dia no participou do segundo, Jonata Levi, visitante da casa.
62
acredito que seja pelo fato dos(as) jovens serem inexperientes na religio e desconhecerem a
histria destes orixs.
Aps a explicao de cada grupo acerca das apresentaes, passamos para a
segunda atividade, Perguntas e respostas. Conforme realizei no outro terreiro, os(as) jovens
passavam
uma
pequena
caixa
contendo
perguntas
respondiam,
podendo
ser
63
cultura. E eu acho isso importante, ento o mnimo que eu e ns temos que falar pra
ela agradecer pela oportunidade que ela est nos dando de quebrar um monte de
tabu sobre o candombl.
Iarob/ekeji de Ogum: Na primeira vez que ela veio, eu no fiquei to
envergonhada, pois eu j tinha participado disso uma vez. Mas no foi vestida como
uma pessoa do candombl foi s mesmo a fala porque ele tava digitando no
computador pra imprimir pra uma pesquisa que ele tava fazendo, meu professor de
geografia, uma vez l no colgio, a gente tava falando sobre religio a eu citei a
minha. Eu achei muito interessante o trabalho dela pra repassar isso pra outras
pessoas, j pra quebrar o tabu que as pessoas pensam da gente, que a gente s faz
mal pro povo sem conhecer a religio. Isso serve muito pra mostrar em palestra e
mostrar em outros cantos que a nossa religio no quer dizer fazer mal o prximo
nem as outras coisas que eles pensam que so. E sim abrir a cabea deles que a gente
somos iguais a todo mundo, igual a qualquer a outra religio, mas sem preconceito.
Babakeker: Agora a minha vez. E, assim, eu no sei o que vai acontecer depois
disso, mas foi muito bom ter voc perto da gente. Foi muito bom poder se abrir pra
voc at porque vai ser muito bom tambm pra gente. [...] uma visibilidade que a
gente tava precisando. Os jovens estavam precisando, os jovens do terreiro. E,
assim, eu acho que voc foi um presente. No momento que a gente tava precisando
voc caiu assim, o orix botou, pra fazer a gente aparecer, dizer que existe, que no
s o que o povo pensa, mas tambm que a gente existe. E eu queria agradecer.
Muito obrigado!
(Informaes verbais fornecidas pelos(as) jovens participantes da pesquisa).
64
25 anos de iniciado para o orix Xang Aganju, sendo este o protetor da casa. Localiza-se na
Rua Jorge Raupp, 422, Mondubim, Fortaleza CE.
O Bairro do Mondubim era inicialmente ocupado por chcaras e fazendas e, de
acordo com o perfil traado pelo Jornal O POVO48 (2013), para aonde em veraneio as
famlias se dirigiam e cujos ares tinham a mesma [...] tonicidade daquela frutinha oleaginosa
que, no Piau e outros estados no Norte, se chama mudubim e , ao final das contas, o
amendoim baiano.... Foi nesta poca em que os pais do babalorix compraram o terreno
onde hoje se localiza a casa desta liderana e o terreiro.
Acerca da estrutura fsica do lugar, interessante ressaltar que a frente do terreiro
se destaca das demais casas da rua, possui duas torres que se parecem com a frente de um
castelo medieval e, em cima do muro, est talhado em uma madeira o nome da casa de
candombl.
Passando o porto pequeno de metal, encontramos uma quartinha de gua no
canto esquerdo e, direita, encontramos os orixs Exu e Ogum, que so [...] responsveis
pelo ir e vir, pela guarda da casa, eles ficam prximos porta. E todas as pessoas que entram
devem saudar esses dois orixs (Ia de Ogum. Informao verbal). Quanto gua, [...] toda
casa de candombl vai ter a gua na porta da roa, porque quando voc vem da rua, voc vem
trazendo diversas energias, energias negativas e positivas. Mas a gente sempre despacha a
porta, como a gente chama, para que as energias negativas ficarem do porto pra l
(Egbomi/Ialorix de Ew. Informao verbal).
Em seguida, do lado esquerdo de quem entra, esto as casas49 dos orixs, Ogum,
Oxum, Oi, e Xang Agaju (o Xang do Babalorix). direita, esto alguns quartos onde
moram alguns(mas) adeptos(as) da religio e o quarto onde o pai-de-santo realiza o jogo de
bzios.
Aps este espao, direita, esto a cozinha, a despensa e um grande salo onde se
recebem convidados, pois ali que est a rede (sempre armada) do responsvel pelo terreiro.
Neste local, ainda tem os banheiros femininos e masculinos e uns pequenos quartos onde fica
a representao de caboclos, contendo objetos ligados a boiadeiros e a vaquejadas.
48
65
Do lado esquerdo, est o barraco, onde existem outras casas de orixs (Xang,
Oxal), a entrada do Aias e o Runko.
Entre o barraco e o salo, do outro lado, existem alguns quartos de orixs
(Oxossi, Oxumar, Nan) e uma rvore, que a representao do orix Ossain. Toda a
disposio espacial do terreiro rodeada por plantas e um colorido atraente, agradvel aos
olhos.
Ao visitar o terreiro, para uma conversa inicial com o babalorix a respeito da
pesquisa, identifiquei mudanas significativas no espao. Destaco um trecho de meu dirio de
campo que mostra minhas observaes.
O lugar me parecia que tinha sido modificado durante esses trs, quatro anos de
minha ausncia. O Barraco e as casas dos orixs que ficavam na entrada, assim
como Ogun e Exu, estava no mesmo lugar, porm, percebi que a cozinha e uns
quartinhos que se localizavam no lado direito da entrada do terreiro, aps os
quartos/casas onde vivem alguns candomblecistas que moram ali, sumiram, dando
lugar a outro espao.
O salo lateral onde fiz minhas primeiras pesquisas com os grupos jovens fora
ampliado e os banheiros reformados, tambm ampliados. Os quartinhos deram lugar
a uma espcie de refeitrio, cozinha e despensa. Deu uma impresso que o terreiro
tinha crescido.
No salo lateral tinha uma mesa de madeira grande ao centro, os banheiros tinham
suas entradas por ele. Tambm estavam as cadeiras para os visitantes e a rede do
pai-de-santo montada. Na parece de fundo do salo, tinha uma pintura enorme de
Xang, produzida no ltimo carnaval por conta do Afox50 que, ao desfilar, ganhou o
campeonato daquele ano. Foi um presente de um jovem, Ia de Oxossi. Esse jovem
havia participado da pesquisa de mestrado que realizei no terreiro.
Entre o Barraco e esse salo fica uma rvore muito grande, uma fonte de Oxumar
e um jardim gostoso, onde as pessoas geralmente ficam a conversar.
O Barraco no cresceu, mas a sua frente, onde ficam as cadeiras da plateia quando
tem festas abertas, ficou maior e tambm foi construdo um fumdromo ao fundo
deste espao para que os fumantes possam usufruir. (Dirio de campo da
pesquisadora 01 fev. 2014).
50
Este afox foi criado pelos membros do terreiro e se apresenta todo ano no carnaval oficial de Fortaleza.
Esta informao est de acordo com a entrevista que fiz com o babalorix do terreiro, Pai Aluisio, em 19 de
outubro de 2009.
52
Ser iniciado no candombl significa que a pessoa foi preparada para receber seu orix que habitar sua cabea
at sua morte. A iniciao muito importante, pois o(a) novio(a) ir passar por vrios rituais de limpeza,
recolhimento e renascimento durante um perodo de 07 a 21 dias.
51
66
anos e outros com funes importantes na religio, tais como yalorix53, babalax54 e
babaefun55.
A maioria frequenta a escola e est entre o ensino fundamental e o incio do
ensino mdio; alguns(mas) pararam de estudar, outros(as) terminaram o ensino mdio e
tentam ingressar na universidade. Existe uma parcela destes(as) que estudam e trabalham,
outros(as) esto em busca de emprego e at do primeiro emprego.
Os(as) adolescentes e jovens do terreiro que participaram desta pesquisa eram, em
sua maioria, meninos, quatro no total, participando apenas uma menina. A mesma realidade
vista durante a pesquisa de mestrado, quatro anos antes. Acredito que o motivo desta
disparidade seja o mesmo do passado: a existncia de mais meninos nessa faixa etria do que
meninas.
O Mondubim no o bairro residencial desses adolescentes, muitos moram em
bairros bem distantes deste, tais como: Conjunto Cear, Joo Paulo II (prximo ao
Jangurussu), Messejana ou at em outros municpios e estados, como Beberibe CE e
Teresina PI.
Alguns(mas) jovens, quando se iniciam, permanecem no terreiro durante o tempo
de recolhimento exigido pela religio e depois acabam morando, definitivamente ou por
tempo indeterminado, este o caso da maioria dos(as) jovens que fizeram parte desta
pesquisa.
O terreiro segue um calendrio de festas anuais, alm das atividades dirias e
sadas de ias, confirmaes de ekejis e ogans. Pela ordem, so elas:
1 Festa em homenagem a Exu;
2 Festa para Ogum;
3 Festa para Oxossi patrono e rei de Keto. Faz-se a festa para que ele traga
fatura;
4 Festa de Olubaje o banquete do rei. Esta festa realizada em agosto e
homenageia Obaluai o rei da terra, sua me Nan, Osan dono das folhas, Oxumar
orix que interliga os pensamentos dos homens da terra (a) para o cu (orun) e Ew a dona
da gua vertente, da gua que brota, da adivinhao, da premonio;
53
Significa me do orix, tambm conhecida como me-de-santo, pessoa que tem permisso para abrir uma casa
de candombl.
54
Funo que est logo abaixo do pai-de-santo e que prepara para a sucesso.
55
De Acordo com o jovem que recebeu este cargo e participou da pesquisa, Babaefun significa ser o pai dos
ias.
67
68
Babalax: Runko onde nasce o orix, onde tudo feito, uma funo interna onde a
gente faz nascer o orix. Aqui no (Arias), aqui onde a gente veste o orix, aqui a
gente prepara ele pra vir pro barraco.
Egbomi/Yalorix de Ew: Aqui a gente colocou a cozinha (do lado). A aqui o
sabaji das mulheres que os quartos das mulheres que vm pra c, coloca as coisas
e tal. Aqui o sabaji dos homens.
Aqui a cozinha e na cozinha a gente botou alguns itens que no pode faltar na
cozinha de candombl que o aca, o milho branco, a farinha, o dend, e a cebola.
O aca o bolinho de milho branco enrolando na folha de bananeira, que em todos
os rituais do candombl leva aca. Quando a gente vai arriar alguma coisa pro
orix leva aca, quando a pessoa vai se iniciar tem que ter aca, quando vai dar
comida pra qualquer orix tem que ter aca.
O milho branco, que comida de Oxal, que j matria tambm do aca, mas
que precisa pra eb, pra fazer eb na casa, pra diversas coisas precisa milho branco.
A farinha por conta de Exu, que tudo leva pad. Assim, antes de vrios rituais a
gente tem que oferecer a Exu a comida dele. E a a gente chama de pad, a farinha
com gua, farinha com dend, tem diversos pads diferentes.
A o dend essencial pra vrias comidas de orix. E a cebola tambm, que acaba
sendo muito essencial tambm pra cozinha, que quando a gente vai arriar alguma
coisa pra qualquer orix, a gente tem que cozinhar primeiro, fazer aquela preparao
e precisa daquela cebola, porque a gente no usa tanto tempero, o nosso tempero a
cebola.
(Informaes verbais fornecidas pelos(as) jovens participantes da pesquisa).
69
LEGENDA
1
QUARTOS DE SANTO
QUARTO DE JOGO
BARRACO
OSSAEN
ARIAS
RUNKO
QUARTO FILHOS-DESANTO
QUARTO FILHOS-DESANTO
QUARTO FILHOS-DESANTO
10
FLORESTA DE OTIM
11
CASA DO PAI
12
COZINHA
13
14
70
71
LEGENDA
1
ENTRADA DO
BARRACO
FACHADA DA CASA
EXU
OGUM
COZINHA
BARRACO
AX
ATABAQUES
RUNKO
10
CASAS DE SANTO
72
73
74
Dessa forma, como um lugar de fronteira ou terra de indgenas, este lugar, que
tem um nome de uma planta, abriga pessoas de vrias experincias religiosas, e as de matriz
africana esto presentes desde a dcada de 198056. Abrigando terreiros de naes diferentes
(Angola, Jeje ou Keto), foi neste cho que o Il As Iya Omi Arin Ma Sun veio fazer morada.
O espao fsico do terreiro extenso. Em frente casa, h um muro branco com
uma campainha bem peculiar, um sino, que serve para alertar todos que esto nos fundos da
casa ou na cozinha. Na entrada, do lado direito, tem a casa de Exu, senhor das portas, e, do
lado esquerdo, o lugar de Ogun, que tambm protege a entrada do terreiro. Alm dos espaos
dos orixs foi construda uma cozinha para os dias de festa e um alpendre coberto57.
A casa propriamente dita bem pequena, porm, foi sendo modificada ao longo
do tempo desta pesquisa e ainda est sendo transformada. Inicialmente, era composta pelo
barraco, que, em dia de festa, no comportava a quantidade de religiosos visitantes; por dois
quartos (um runko e o outro quarto de roupas e utenslios religiosos); uma cozinha que no
tinha porta e um banheiro pequeno.
A parte de trs da casa era composta por um terreno que est sendo
cotidianamente modificado por construes. Nas minhas visitas, s havia ao fundo a casa de
alguns orixs e hoje tem um altar para Tempo (divindade banto), a fonte de Oxumar, as
plantas de Osain, outra casa de Exu, as casas dos caboclos Bravo Guerreiro e do Boiadeiro,
nas quais encontramos muitas imagens de santos, a bandeira do Brasil, penas representando os
indgenas, utenslios de couro e at o chifre de um boi sacrificado na ltima festa em
homenagem ao caboclo, no dia 07 de abril de 2013, alm de velas e outros utenslios
religiosos.
Atualmente, os quartos da casa foram abertos para dar lugar a uma espcie de
espao da plateia, onde as pessoas ficam para assistir as festas, e o banheiro do runko tornouse banheiro comum. A cozinha, que ficava na parte dos fundos da casa, foi fechada e
transformou-se no runk e o banheiro que havia dentro deste compartimento passou a ser
exclusivo para pessoas autorizadas a entrar neste territrio sagrado58.
No posso deixar de citar o lugar mais ventilado deste espao, que sombra da
Mangueira. Sempre quando acontece o intervalo ou terminam as festas, os(as) convidados(as)
disputam esse espao, que tambm utilizado para os momentos de sacrifcios dos animais.
56
De acordo com o Baba Cleudo Junior, na dcada de 1980 j havia no Mucun um terreiro angola que tinha
Pai Joo como sacerdote.
57
Atualmente, o alpendre est descoberto.
58
Em minha ltima visita ao terreiro, em setembro de 2014, deparei-me com uma nova construo. Dois
banheiros na parte externa da casa que do acesso ao quintal.
75
59
No ltimo dia de pesquisa nos grupos de produo de saberes os jovens coletivamente desenharam seu terreiro
e destacaram seu lugar favorito. A apresentao do primeiro grupo foi feita por Daniel de Oxum, e o segundo
grupo pelo Babakeker da casa Demir de Xang
60
Estes desenhos sero apresentados no texto final com uma legenda a partir da fala dos jovens
61
A senzala a cozinha, um lugar de muito trabalho segundo os jovens sendo por isso chamado desse jeito.
76
LEGENDA
1
PORTO
EXUS
CENZALA
BARRACO
RUNKO
PLATIA
CASAS DE SANTO
MANGUEIRA
FONTE DE OXUMAR
10
CASA DE CABOCLO
77
Segundo olhar:
Quando a gente entra v os dois (quartos) dos Exs, a do lado tem a senzala, que a
cozinha, a tem esse espao que tem a recepo do povo, a aqui tem as plantas, o
outro quarto de Ex e o quartinho de Ians. A aqui tem o corredor, aqui tem o
barraco, que onde ns estamos, nessa estrutura, o Ariax. [...] o assentamento do
barraco. Aqui a tapera, que aqui do lado, banheiro que ali [...]. O Runk, que
onde vocs no podem entrar, que aqui atrs. [...] porque s entra iniciado.
Samos do Barraco e vamos pelo corredor, que ali do lado. Temos esses quartos
aqui, que so os quartos de santo. Aqui um poo que era pra ser um poo, mas s
t o buraco. As plantas, onde t verde planta. Aqui onde vai ser a pracinha dos
Santos, que onde a gente faz a fogueira de Xang todo ano. Vizinho aos quartos de
santo.
sim. Que t s os alicerces, a gente ainda no conseguiu levantar. A aqui tem a
mangueira, a coisa do boi, o Moro, o quartim de Osain e das Y. [...] o espao
reservado de Ians e as Ys. Aqui o Ib, que onde tem as plantas e as coisas.
Aqui so construes que tem na roa, a aldeia do Caboclo e o espao de frente pro
Caboclo e a fonte de Oxumar.
[...] eu, particularmente, a parte que eu mais gosto da casa, por incrvel que parea,
essa daqui. Essa varanda que eu pedi pra fazer. Tem uma varanda, em frente esse
quarto de santo aqui, que ningum queria fazer, mas que eu pedi pra fazer porque eu
gostava de ficar ali na frente. (Babakeker de Xang. Informao verbal).
Eu, na senzala. (Ia de Ians. Informao verbal).
O meu no Runk, porque geralmente quando eu estou muito estressada eu gosto de
sentar e relaxar e eu me sinto bem melhor. (Ia de Iemanj. Informao verbal).
embaixo da mangueira, porque eu fico l mais pra aliviar o cansao. Porque eu
trabalho e vou l pra debaixo descansar. (Ia de Ogun. Informao verbal).
O que eu conheci ontem foi na aldeia do caboco. Porque eu gosto do caboco
boiadeiro de Oxossi. Conheci ontem e gostei do caboco boiadeiro. (Iarob/Ekedi de
Ogum. Informao verbal).
78
LEGENDA
1
COZINHA (SENZALA)
BARRACO/ARIAS
PLATIA
RUNKO
QUARTOS DE SANTO
POO/PRACINHA
FONTE DE OXUMAR
MANGUEIRA
10
ALDEIA DO CABOCLO
79
62
Geralmente as festas so a tarde, porm algumas comearam no final da manh, quando entram noite adentro
porque comeou no final da tarde. As festas de iniciao de novos/as ias que eu participei iniciaram todas no
final da tarde e se estenderam at mais ou menos meia noite.
80
63
No dia 24 de agosto de 2013, entrou um novo barco com mais 6 jovens, sendo a maioria parente de algum
que j era iniciado(a) na religio, amigos(as) ou ex-namorados(as) dos(as) jovens candomblecistas.
81
ou vai modificando seu pensamento e comportamento com as pessoas e com o cosmos, pois
na comunidade que [...] concentram-se o saber e as elaboraes baseados no conhecimento
ancestral que lhes fornece um forte referencial para as suas vidas (SANTOS, 2003, p. 105).
Pai Clio, da Casa Iemanj, ao ser indagado sobre as atividades culturais
realizadas no terreiro, afirmou que as crianas e adolescentes que participam das atividades,
alm de terem melhor rendimento escolar, apresentam bom comportamento. O mesmo
discurso foi dito por uma me de um adolescente iniciado no Il As Olojudola, numa das
festas realizada pela casa.
Percebo que estas mudanas ocorrem porque esses(as) jovens encontram em seus
pares e nos demais membros da religio a aceitao de quem so. Conforme conversas com
alguns candomblecistas, o candombl uma religio que no discrimina ningum pela sua
cor, orientao sexual, poder aquisitivo, entre outras coisas. A fala desses(as) jovens revelou o
candombl como uma religio onde se permite construir amizades e fortalecer laos de
confiana, conforme ressalta Santos (2003), ao afirmar que a vida dos jovens ligados
comunidade-terreiro baseada num sentimento de irmandade e de famlia extensa, elementos
da cosmoviso africana.
Rabelo (2006), em seu trabalho sobre a juventude e as religies minoritrias,
trouxe alguns depoimentos de jovens que comungam com o pensamento acima. Como o de
Alexandre Oliveira, abi (26 anos), ao comentar que no candombl as pessoas se sentem
vontade e todos so respeitados na sua diversidade.
Com base na ideia de respeito e liberdade, os jovens encontram no candombl
orientao espiritual e festividades. Ao som dos atabaques e sob uma atmosfera
alegre, eles cantam, danam, utilizam indumentrias sagradas e, sem a ideia de culpa
ou sacrifcio pessoal, aproximam-se dos seus guias tanto em comportamento como
na personalidade. (RABELO, 2006, p. 10).
64
82
modo, percebo que existe uma relao de liberdade e tambm de respeito aos ritos dentro da
religio.
Por fim, outra caracterstica que identifiquei no Il As Iya Omi Arin Ma Sun a
marcante presena de jovens com orientao homossexual. Por conta desse elemento visvel e
das relaes estabelecidas entre os(as) jovens acerca desta temtica, preferi aprofundar em um
captulo especfico desta tese66.
66
67
83
Posso dizer que essas pessoas j sofreram, conviveram e/ou convivem com
situaes
de
violncia
(explorao,
drogadio,
prostituio,
assassinato
de
familiares/amigos).
De acordo com o Waiselfisz (2013, p. 95), esta situao no pas opera num
esquema de naturalizao e aceitao.
Por diversos mecanismos, mas fundamentalmente, pela culpabilizao da vtima,
justificando a violncia dirigida, principalmente, a setores subalternos ou
particularmente vulnerveis que demandam proteo especfica, como mulheres,
crianas e adolescentes, idosos, negros. [...] Dessa forma, uma determinada dose de
violncia, que varia de acordo com a poca, o grupo social e o local, torna-se aceita
e at necessria, inclusive por aquelas pessoas e instituies que teriam a obrigao
e responsabilidade de proteg-los.
68
Considero que esta pesquisa teve duas fases, uma antes da qualificao e outra depois da mesma.
So autoridades porque j passaram pelo processo de sete anos de iniciao na religio. Sobre esse assunto,
ver captulos dois e trs.
69
84
70
Este frum faz parte da Rede Nacional de Religies Afro-brasileiras e Sade. Desta rede, aqui no Cear,
participei do 1 encontro de Mulheres de Ax Sarava e do Primeiro Ciclo de Conversas com Juventude
Oralidade, Sade e Ancestralidade Comunidades Tradicionais de Terreiro em Fortaleza.
85
autoridade de sua famlia, contudo, segundo ele, aps trs anos como abi71, experimentando
e conhecendo a religio, reconheceu que este era seu lugar e se iniciou.
Dedica todo seu tempo ao candombl, no tendo outra atividade remunerada.
uma espcie de coordenador do terreiro e de sua casa, sendo ele o responsvel por organizar
as finanas, as compras, o reparo e construo, bem como ser o arquiteto e decorador das duas
casas. O dinheiro que o pai-de-santo recebe de doaes ou do jogo de bzios e trabalhos
espirituais, controlado por ele, nada acontece no Il As sem o crivo do Babakeker.
No estuda, e possui o ensino mdio incompleto. Durante as entrevistas, esboou
o interesse em voltar a estudar e disse que [...] sem estudo no vai nada pra frente.
Mora na casa em frente ao terreiro com seu companheiro, que o babalorix do
mesmo. Os dois oficializaram ano passado sua unio civil que j dura mais de dez anos.
Atualmente, adotaram uma menina, beb de menos de um ano de idade.
Figura 6 Ia D. de Oxum
71
Ver glossrio;
86
De cabea baixa e muito solcito, me perguntou se eu queria gua ou caf e disseme tambm: Meu pai vem j, pode esperar aqui, apontando para as cadeiras que estavam na
rea em frente ao barraco.
uma espcie de faz tudo. Todas as vezes que encontrei com este rapaz alegre
ou estava trabalhando (na maioria das vezes) em alguma construo do terreiro72 ou
cozinhando, ou cuidando dos bichos ou, ainda, em outras prendas domsticas. Contudo,
sempre fazendo piada ou rindo dos irmos, brincando com a gente, fazendo graa. Durante as
entrevistas e o trabalho de grupo, era o engraadinho e fazia todo mundo rir e de suas falas.
Este jovem de vinte e oito anos tem uma histria perpassada por sofrimento e
violncia, como bem relata. Sua me se envolveu com trfico e com prostituio, segundo ele,
para colocar comida na mesa e, com isso, teve vrios filhos e foi presa. O Ia D. de Oxum
passou alguns anos em abrigos com os irmos, morou com outras pessoas e sofreu abuso de
todo tipo, morava numa favela localizada no Grande Pirambu, em Fortaleza. Foi usurio de
drogas e traficante. E foi preso, passando seis meses na cadeia.
Frequentou a Umbanda, religio de seu antigo companheiro, e, atravs do mesmo,
conheceu este terreiro onde se iniciou h quatro anos. Filho de Oxum, ao se iniciar teve
certeza que ali era o seu lugar e decidiu morar no terreiro onde at hoje vive. Como ele
mesmo diz: Moro aqui e vou morrer aqui. Oxum hoje tudo na minha vida. Ele atribui toda
a sua mudana de vida ao candombl.
No estuda nem trabalha fora da roa, mas pretende voltar a estudar, pois no
terminou nem o ensino fundamental. Quer fazer uma faculdade e ser algum na vida. E
insiste em dizer hoje eu sou algum na vida.
72
Por muitas vezes, vi o Ia d. de Oxum levantando paredes, retelhando o teto ou rebocando alguma parede. A
cozinha mesmo, que fica do lado de fora do terreiro, foi construda, praticamente, s por ele.
73
Falo isso, mas concordo com Butler (2007), ao dizer que o sexo (biolgico) tambm construdo
culturalmente, fruto do discurso. Tema que iremos problematizar no ltimo captulo.
87
Quem no o(a) conhece, acredita que aquela pessoa que anda pelo bairro com um
shortinho curto e uma micro blusa no a mesma que dento do terreiro est de cala, blusa e
uma espcie de gorro na cabea. Apesar dos traos delicados de suas mos, rosto e silhueta,
este Ia s traja vestido ou considerada uma mulher ao ser incorporada por sua orix, pois,
afinal, Iemanj quem est danando!
Este(a) jovem de vinte seis anos, atualmente est afastado(a) do terreiro e no fez
sua obrigao de um ano de santo, conforme anunciou em sua entrevista. Seu orix de cabea
Iemanj e, ao apresent-la ressalta, caractersticas que acredita ter em comum com a
divindade e que adquiriu durante sua iniciao.
De acordo com o(a) Ia T/L de Iemanj:
Fora a beleza, n? (gargalhadas de todos), tenho a serenidade, calma, eu t bem mais
calma, eu gosto muito de... eu tenho uma preocupao muito grande com as pessoas,
por Iemanj ser me, ela cuida, ela guarda e eu tenho essa preocupao, acho que
mais como minha famlia mesmo. Meus pais-de-santo, minha me, as pessoas que
eu gosto assim, procuro ajud-las. Eu acho que isso eu no tinha antes, eu acho que
isso ela me deu, eu recebi dela.
Ao me repostar ao Ia T/L de Iemanj, utilizarei as duas iniciais ressaltando esse trnsito que ocorre tanto
dentro do terreiro como fora dele. Peo desculpas se em alguns momentos eu mesma fao confuso, pois na fala
dos sujeitos tambm h uma incerteza de como trat-lo(a).
88
aparncia. Dentro do candombl, chamado de T. Contudo, percebi uma confuso ao tratalo, seus irmos e irms-de-santo ora chamam pelo nome masculino, ora pelo nome feminino e
at nas brincadeiras apelidada de mulher, viado, bicha, apesar do babalorix insistir que
dentro da roa ele um homem conforme seu ori, sua cabea foi gerada.
estudante de jornalismo e, atualmente, trancou a faculdade por falta de recursos
financeiros. Durante a pesquisa, estava procurando emprego. Mora com a me, que no gosta
da vivncia do filho na religio.
Danava como cover da Beyonc e tambm num grupo de swingueira e ax. Ao
se iniciar, teve que parar de frequentar esses lugares, principalmente durante seu preceito.
Todavia, me disse que iria fazer o jogo de bzios e veria se os orixs aprovavam sua volta aos
palcos.
No grupo do terreiro Il As Iya Omi Arin Ma Sun participou uma jovem de outro
terreiro que namorava um menino deste. Por colaborar significativamente (naquele momento)
com o Il As, e por ter mais de trs anos de iniciada e ser uma autoridade, possuindo o cargo
de Ekeji, resolvi convid-la e entrevist-la.
Esta Iarob de Ogum, com seus dezessete anos, foi uma das mais novas
autoridades do candombl que conheci.
Figura 8 Iarob de Ogum
89
Como se diz, no candombl, uma jovem que velho respeita, pois, alm de ser
Iasob de Oxum (filha de Oxum) Iarob/Ekeji de Ogun, como ela mesmo explica: Pra
quem no sabe, Iarob me de rei ou me de rainha, todos os orixs so reis, ento todos as
orixs so rainhas, que a gente vai chamar de iarob ou ekeji, tudo a mesma coisa.
Foi iniciada aos onze anos de idade no Il As Alaketu Ogun Layor, pelo
Babalorix Alberto de Ogun e Babakeker Rodrigo de Oxum, ou seja, tem seis anos de
candombl e, desde criana, teve que aprender as responsabilidades e os segredos desta
religio.
Aprendeu a realizar as tarefas de Iarob com seu padrinho e amigo da famlia, o
babakeker de seu terreiro. O mesmo prometeu sua me que iria, pessoalmente, ensin-la e
foi assim que a cada msica escutada, a cada passo repetido se tornou quem hoje. Em
muitos, casos teve que carregar quilos de sacolas e passar dias no terreiro, perdendo aula para
ajudar nas obrigaes da casa ou numa iniciao de um irmo ou irm.
Durante a pesquisa, ela terminou o ensino mdio, seu sonho era passar no Enem75
e estudar direito, advogar trs anos e fazer o concurso para ser juza.
Tinha uma relao afetiva com o Ia E. de Oxangui do Il As Iya Omi Arin Ma
Sun que, apesar de ser mais velho, aparentava ser o mais novo da relao, pois em todos os
momentos a Iarob de Ogun mostrava-se uma garota decidida de seus sonhos e desejos e
sempre estava disponvel e frente das aes dentro e fora do terreiro.
75
76
90
Iyalorix. Ainda est se acostumando com a ideia de andar calada, com a cabea levantada,
sentar no banquinho e se chamada de irm mais velha.
Figura 9 Egbomi de Ew
2.6.6 Um jovem danarino orgulhoso de sua cor, encantado com sua religio
91
Foi iniciado h 5 anos para o orix Ogum, divindade muito conhecida no Brasil
por ser, segundo ele, [...] o orix da guerra, e um dos mais reverenciados. No sincretismo
associado com So Jorge, por ser tambm um guerreiro, senhor das armas e todas ferramentas
de trabalho que o homem precisa.
um jovem orgulhoso de sua cor de sua religio. Todavia, antes tinha vergonha
de ser negro e vivia escondendo suas origens.
Figura 10 Ia de Ogum
92
Durante esta pesquisa, encontrei poucas vezes com o Babalax de Xang, pois
geralmente estava jogando vlei pelo seu time semiprofissional em algum lugar. E, nas vezes
que nos encontramos, a conversa sempre girava em torno do esporte ou da sua escolha
profissional que estava ligada mesma.
Lembro do mestrado, ao realizar a pesquisa com este rapaz, do seu rosto infantil
que no mudou muito, contudo, de seu corpo no posso dizer o mesmo. Tornou-se um jovem
homem com face de menino e consolidou-se como autoridade77.
Este jovem de dezoito anos nasceu dentro do Il As Olojudol e se iniciou aos
nove anos de idade para o orix Xang, o mesmo de seu av e pai-de-santo. J nasceu uma
autoridade-hierarquia da religio.
77
Nas festas em que o encontrei, observei que ele estava sempre logo atrs do babalorix ocupando a sua funo
que despenhava com desenvoltura.
78
Quando ele falecer.
93
94
Quando eu era criana, minha me sempre dizia: Menina onde tem um mais velho
falando voc tem que ficar calada s escutando! Menina aprende com tua av (com os mais
velhos) que eles tm mais sabedoria para te ensinar do que teus amigos na rua! Menina pede
beno a todos que so mais velhos do que voc, pois a beno s serve pra quem pede!
Na escola cresci aprendendo que ns alunas(os) no podamos ensinar nada aos
professores porque eles detinham o conhecimento que deveria ser repassado79, como se
fssemos um recipiente vazio, ou seja, ser jovem era sinnimo de inexperincia e de busca
constante pela aprendizagem.
Bom, eu no conhecia o candombl e no sabia que nesta religio existem alguns
jovens que fogem a esse esteretipo, pelo menos da porteira para dentro do terreiro. Quem
tem pouca idade nessa religio pode tambm ter muita experincia e ser considerado velho.
Em minhas visitas aos candombls observava que, em muitos momentos, algumas
moas ou rapazes ensinavam a pessoas mais velhas (biologicamente) elementos da religio,
seja uma dana, uma comida, um it, entre outras coisas.
Percebi ento que ser jovem ou ser velho no candombl no era determinado pela
biologia ou idade, mas perpassava pelo campo da experincia, do saber, do processo inicitico
79
95
de cada pessoa. Ento quando minha me dizia que eu deveria aprender com pessoas mais
experientes, em parte80, ela estava usando o mesmo princpio do candombl.
Em minha busca de entender como era ser jovem e candomblecista ao mesmo tempo
tive um encontro feliz com Loguned (Logun- Ed). Um dia ao chegar no terreiro o pai de
santo me perguntou se eu conhecia o santo menino que velho respeita, o smbolo da juventude
no candombl81, eu rapidamente respondi que no conhecia e queria saber mais sobre esse
menino.
Dessa forma conheci Logun, uma divindade iorubana ligada aos elementos gua e
terra e que domina os rios, cachoeiras e matas. um orix filho por natureza e que carrega
vrios ttulos tais como mago caador, feiticeiro de Ed, prncipe de Ef, entre outros.
Filho de Inl82 ou Ibualama e Oxum Pand, Loguned rene as naturezas do pai e da
me sendo, segundo sua mitologia mais difundida, seis meses jovem caador e, nos
outros seis, bela ninfa dos bosques. Consoante outros mitos, sua natureza dupla no
envolve diviso sexual, sendo sua particularidade, apenas, a de viver seis meses do
ano em terra, comendo caa e, nos outros seis, sob as guas de um rio, comendo
peixe. ( LOPES 2007, p. 42)
80
Utilizo essa expresso s para destacar que de acordo com minha me pessoas mais experientes deveriam ser
necessariamente mais velhas que eu.
81
Para este babalorix, Loguned, juntamente com Ew, Oxangui e os Ibejis simbolizam a juventude.
82
Uma qualidade de Oxossi.
96
Portanto, o que quero problematizar aqui : afinal, quem so essas pessoas e onde esto ? So
jovens, jovens candomblecistas ou jovens que velho respeita ? Podem estar entre os trs
tpicos deste texto ou diludos em todos eles?
Melucci (1991), Foracchi (1972), Abramo (1994), Kehl (2004), Pais (2003), Carrano (2003), Dayrell (2003,
2007), Veras (2006), Sposito (2008), entre outros.
84
Tambm considero que no exista um tipo ideal de jovem de candombl, como uma idealizao a ser seguida
ou ser observada nesse espao religioso.
85
Para Groppo (2000), as definies de juventude passeiam por dois critrios: etrio e o sociocultural. Acredito
que se assemelha, em muitos momentos, com os critrios acima citados.
97
A corrente classista entende a juventude como categoria social marcada pelas relaes
de classe. Os jovens com diferentes posies de classe estariam sujeitos reproduo social
de gnero, de raa, de classe.
Segundo Pais (2003, p. 61):
Para a corrente classista, as culturas juvenis so sempre culturas de classe, isto , so
sempre entendidas como produto de relaes antagnicas de classe. Da que as
culturas juvenis sejam por esta corrente apresentadas como culturas de resistncia
[...]. Por outras palavras, as culturas juvenis seriam sempre solues de classe a
problemas compartilhados por jovens de determinada classe social.
98
99
pesquisa em questo: Uma jovem candomblecista pode ser considerada adulta por ter se
tornado me aos 16 anos e ter uma funo importante na hierarquia da religio? Ou um rapaz
que trabalha e estuda, mas pelo fato de morar com os pais ou com sua famlia-de-santo86
continua sendo jovem?
De acordo com Carrano (2003, p. 115), [...] as estatsticas oficiais
convencionalmente consideram como jovens os que superaram a idade de obrigao escolar e
os que ainda no conseguiram encontrar colocao no mercado de trabalho. Estas
explicaes caem por terra quando existem jovens que no se encaixam nesses critrios.
A suspenso da vida social como momento de transio para vida adulta atravs
do prolongamento do perodo escolar e o adiamento da entrada no mundo do trabalho no se
configuram realidades para a maioria da juventude brasileira. A ideia de moratria87 vital ou
social em relao ao trabalho contradiz as experincias de grande parte dessa categoria, pois
para grande parte desses(as) jovens, a condio juvenil s vivenciada porque trabalham,
garantindo assim os recursos para o lazer, namoro, consumo, estudo.
Para os jovens, a escola e o trabalho so projetos que se superpem ou podero
sofrer nfases diversas, de acordo com o momento do ciclo de vida e as condies sociais que
lhes permitam viver a condio juvenil (DAYRELL, 2007, p. 1109).
notrio observar que a temtica da juventude tem crescido ao longo dos anos no
Brasil, tanto por parte da academia como dos meios de comunicao de massa, instituies
governamentais e no-governamentais. Contudo, a maior parte da reflexo produzida versa
sobre os sistemas e instituies presentes nas vidas dos(as) jovens, poucas enfocam o modo
como estas pessoas vivem e pensam suas experincias cotidianas. S recentemente tem
ganhado certo volume o nmero de estudos voltados para a considerao dos prprios jovens,
suas percepes, formas de sociabilidade e atuao (ABRAMO, 1997, p. 25).
Nessa perspectiva, considerando os(as) jovens como sujeitos que devem ser vistos
e ouvidos, que apresentam suas prprias questes e refletem sobre sua condio juvenil, que
propus aos colaboradores desta pesquisa a tcnica intitulada os Elementos das Juventudes.
Nesta atividade, pedi para que os(as) participantes escolhessem um dos elementos
da natureza (terra, fogo, gua e ar) e relacionassem com a juventude. A ideia de relacionar os
elementos juventude surge pelo fato de que os mesmos esto profundamente ligados ao
86
No candombl, a famlia-de-santo composta pelos irmos de religio e os mais velhos, como o babalorix.
A ideia de moratria, expressa por vrios autores como Foracchi (1972), Pais (2004), Abramo( 1994), Carrano
(2003), Dayrell (2003), caracteriza o momento de suspenso da vida social dos(as) jovens como um tempo de
espera para o ensaio e erro, para as experimentaes, visto que h uma relativizao da aplicao das normas
sobre o comportamento juvenil (ABRAMO, 1994).
87
100
cotidiano religioso desses jovens, pois os orixs esto intimamente conectados aos quatro
elementos constituintes da matria88.
O fogo, como elemento dinmico e de movimento, simboliza a agilidade prpria
dos orixs regidos por ele. No candombl, vrios so orixs conectados ao fogo, sendo o
principal deles Xang, o fogo em seu estado puro. Como brasas lana fogo pela boca, um
rei poderoso que vence as guerras e conquistas todas as mulheres. Outro orix ligado ao fogo
Ogum, [...] o pai da (metalurgia) siderurgia. atravs dele que surgem todos os
instrumentos utilizados na construo da civilizao (grifo nosso) (PARIZI, 2005 p. 116).
A gua, elemento feminino com caractersticas de movimento e busca de novos
caminhos, tem Oxum como uma importante representante. Sua mistura com a terra, gerando a
lama, liga-se a Nan. J a representao das guas salgadas como smbolo materno, com suas
ondas e seu balano que podem ser calmos, mas tambm terrveis esto presentes no arqutipo
de Iemanj. Oxumar tambm se conecta gua, porque senhor do arco-ris, controlador da
chuva, e Logun-Ed, por ser filho de Oxum, o prncipe das guas.
De acordo com Parizi (2005, p. 122), o mais concreto dos elementos, a terra,
relaciona-se aos orixs civilizadores.
Oxossi, o caador; Ossaim, o senhor das plantas; Ogun, pai dos minrios que saem
de dentro da terra. A terra que fornece os elementos com os quais Ew fabrica as
tintas e cores para os homens produzirem a arte da pintura e a massa das esculturas e
a madeira a ser esculpida. [...] a terra onde a serpente de Oxumar se arrasta [...].
Que contm todas as doenas de Omolu, onde esto os vrus, bactrias e micrbios.
[...] Smbolo de intimidade de Ossaim com Oxossi, de Ew com Oxumar, de
Omolu com Iemanj.
88
Acerca da ligao dos orixs aos elementos da natureza, ver o trabalho de Parizi (2005): Encruzilhadas e
Travessias o encontro do humano e do divino na Casa de Candombl Il Ax Kalamu Funfum sob o olhar da
Psicologia Transpessoal e da potica Gaston Bachelard.
89
Parizi (2005) ressalta que o ar liga-se a Oxal pela ideia de que este seria o elemento responsvel pela criao
da vida.
90
Alguns mitos mostram Ians casando com vrios orixs e de todos retirando alguma coisa que incorpora sua
prpria essncia.
101
significativas que, a partir delas, produzi uma histria91. Esta foi pensada para articular de
forma didtica os pensamentos dos jovens acerca da relao entre os elementos da natureza e
o ser jovem. Dessa forma, os dilogos retratam a opinio dos jovens que participaram dos
grupos de produo de saberes.
Ressalto que o cenrio e os personagens so de minha autoria. Escolhi um terreiro
de candombl como ponto de encontro dos jovens orixs por ser um local onde tanto circulam
estas divindades como a juventude do Candombl, o Il de todos(as).
A histria mostra como algumas caractersticas do fogo, da gua, do ar e da terra
esto atreladas a atributos considerados prprios desta condio, tais como intensidade,
fluidez, liberdade, movimento, entre outras.
A ideia de juventude como seres impulsivos, livres, fortes, explosivos, que no
tm barreiras e vivem numa eterna contradio aparece em outras pesquisas92 que tratam
desses sujeitos, revelando que os(as) participantes so jovens como outros(as) vivendo e
convivendo em espaos diversos.
Contudo, a maior parte dos predicados juvenis falados pelos(as) participantes
desta pesquisa so projees do que a mdia e o mundo adulto dizem acerca do ser jovem.
Como afirma Pais (2003, p. 101 e 103):
[...] o que nas respostas dos entrevistados se pode entrever so internalizaes de
representaes sociais. Sendo assim, importa entrever nas respostas o que estas de
facto significam significado que pode ser oposto ao teor aparente dessas repostas,
muitas vezes influenciadas por factores emocionais subjacentes s frases idiomticas
e observncias ritualsticas. [...] o que nas entrevistas obtemos so produtos
lingusticos o que se diz. Mas o que se diz pode no corresponder ao que se pensa
ou ao que se faz.
91
92
102
estabelecer correspondncia com os planetas, os metais, as cores, dos dias da semana, os dons
do Esprito Santo, entre outros.
Para a cultura medieval, a juventude associada cor verde, que pode assumir um
significado ambivalente. Positivamente, como a cor da juventude, da esperana, do amor;
negativamente, evocando a desordem, o infortnio, a doena. Como os vrios tons desta cor,
os jovens foram considerados seres volveis, instveis e, algumas vezes, perigosos.
(PASTOUREAU, 1996). Conforme dizem alguns participantes da pesquisa: Os jovens so
verdes e no amadureceram ainda para a vida adulta!93.
Igualmente, os camponeses medievais estabeleceram uma classificao da vida.
Menos especulativos e aritmticos, pois a maioria no sabia sua idade, eles estabeleceram
uma diviso baseada nas funes sociais, sendo menos preponderantes as classes de idade.
A relao entre as fases da vida e as funes sociais tambm esto presentes na
realidade dos terreiros de candombl. Contudo, estas atribuies esto diretamente
relacionadas ao processo inicitico. Um(a) jovem iniciado(a) no candombl possui
determinadas funes diferentes que uma pessoa que j recebeu cargos e considerado
autoridade. De acordo com os(as) jovens candomblecistas, quanto maior a idade inicitica,
maior a responsabilidade.
Desse modo, as concepes e representaes da juventude na Idade Mdia no so
uniformes nem imveis, semelhante viso dos(as) jovens candomblecistas. Estes(as)
apresentaram ideias semelhantes s daquele perodo, acerca do conceito de juventude.
A ideia vista pelas autoridades e bispos da Idade Mdia, de que os(as) jovens se
inflamam, so incontrolveis, insolentes e briguentos, abusam de seu corpo, buscam o prazer
a todo custo e insultam a todos com seus atos, foi retratada tambm na histria dos jovens
elementos. Na verdade, estas so concepes que perpassam sculos desde a Antiguidade
tardia at a aurora do Renascimento e sobrevivem at os dias de hoje
Ao analisar as falas dos(as) jovens, percebi trs movimentos na produo dos
conceitos acerca das juventudes-elementos da natureza. O primeiro acena a disposio das
falas, os(as) jovens falavam respeitando a ordem hierrquica do grupo religioso, isto , o mais
velho na religio iniciava apresentando sua opinio, seguindo a ordem de iniciao do mais
velho para o mais jovem. Esta disposio foi observada em todas as conversas realizadas
durante a pesquisa94.
93
94
103
95
Segundo os jovens do Il As Iya Omi Arin Ma Sun a famlia jeje composta por Nan, Obaluai, Ew,
Oxumar
96
Informaes verbais fornecidas pelos(as) jovens participantes da pesquisa.
104
apareceram nesta relao. Apesar de terem passado por situaes de violncia ao falar do ser
jovem eles no articularam diretamente a este aspecto.
A concepo de jovens-fogo explosivos, incontrolveis, impulsivos no uma
novidade, contudo, a capacidade de intervir no mundo e pensar em sua transformao no
atribuda aos jovens de maneira habitual.
A ideia de juventude como fora foi construda nos sculos XIX e XX e
materializada no fascismo e nazismo, [...] pois os jovens eram vistos como sntese de fora,
do amor, da beleza. Portanto, [...] a sociedade formou uma imagem dos jovens pautada em
papis que lhes foram atribudos, nos valores e regras que lhes foram impostos (SALES,
2006, p. 126).
O pensamento de que o(a) jovem simboliza fora e transformao se aproxima, do
mesmo modo, das afirmaes de Mannheim (1968, p. 74); para ele, a juventude uma [...]
fora potencial de transformao da sociedade, independentemente do sentido progressista
ou conservador de sua atuao. Como ele mesmo nos afirma: A juventude no progressista
nem conservadora por ndole, porm uma potencialidade pronta para qualquer nova
oportunidade.
Os(as) participantes da pesquisa apontaram caractersticas que so cotidianamente
veiculadas a respeito da juventude e que interferem diretamente na nossa maneira de
compreender essa categoria. Uma destas ideias marcadas pelos meios de comunicao a
viso de juventude como problema, etapa de conflitos.
Concordo com Abramo (1997, p. 28), ao alegar que:
[...] parece estar presente, na maior parte da abordagem relativa aos jovens, tanto no
plano da sua tematizao como das aes a eles dirigidas, uma grande dificuldade de
considerar efetivamente os jovens como sujeitos, mesmo quando essa a inteno,
salvo raras excees; uma dificuldade de ir alm da sua considerao como
problema social e de incorpor-los como capazes de formular questes
significativas, de propor aes relevantes, de sustentar uma relao dialgica com
outros atores, de contribuir para a soluo dos problemas sociais, alm de
simplesmente sofr-los ou ignor-los.
105
Essa teoria continua a se mostrar influente no Brasil, visto que o trinmio jovempobre-marginal ainda muito utilizado pela mdia, nas instituies e, consequentemente,
reproduzido por todos(as). Parece comum, ao andarmos na rua, identificar uma pessoa como
suspeita pelo estilo de roupa, sexo, cor e tambm pelo comportamento. Alguns jovens que
participaram desta pesquisa so alvos constantes destas suspeitas visuais, por terem essas
caractersticas.
fato que, ao abrirmos os jornais, as manchetes mostram a violncia cometida
pela juventude ligada ao perfil tnico e socioeconmico. Para Kehl (2004), a violncia no
sintoma apenas da classe oprimida, mas um reflexo do conjunto da sociedade. O
adolescente sem lei, ou margem da lei, efeito de uma sociedade em que ningum quer
ocupar o lugar do adulto, cuja principal funo ser representante da lei diante das novas
geraes (KEHL, 2004, p. 96).
97
106
107
que ganhou notoriedade nos movimentos sociais dos anos 1960 e 1970, mas sem sombra de
dvida, no representava estatisticamente a maioria dos jovens daquela poca (NOVAES,
2005, p. 116-117).
A imagem da juventude da gerao de 1960 como idealista, criativa, sonhadora e
comprometida com a mudana social, fruto de uma generalizada reelaborao logo aps tais
movimentos terem entrado em refluxo100. Essa reelaborao positiva acabou, desse modo,
por fixar assim um modelo ideal de juventude: transformando a rebeldia, o idealismo, a
inovao e a utopia como caractersticas essenciais dessa categoria etria (ABRAMO, 1997,
p. 31).
Concordo com as autoras supracitadas e reafirmo que a juventude no est aptica
ou desinteressada, contrariando a fala da jovem e de demais participantes desta pesquisa.
Percebo dois movimentos: primeiramente, vivemos num momento histrico onde existe, por
parte de uma parcela da populao (de todas as idades), um desencanto com as instituies
polticas, bem como uma tmida participao poltica e social, principalmente no que se refere
poltica partidria e eleitoral, contudo, essa no a nica forma de ao sociopoltica.
Dessa maneira, os(as) brasileiros(as) aqui chamo ateno para a juventude
criam outras maneiras de reivindicao e atuao no campo poltico e social. nesse contexto
que vejo o segundo movimento, os(as) jovens, individual ou coletivamente, se manifestam,
seja atravs de grupos culturais, esportivos, religiosos, ONGs, projetos sociais, nas redes
sociais101, entre outros. Um exemplo disso a articulao de jovens de terreiro de todo o pas
pelo Facebook e dos candomblecistas do Il As Iya Omi Arin Ma Sum no grupo (GT) rede de
jovens de terreiro.
Mesmo diante dos graves problemas estruturais de reproduo da vida social, os
jovens, que no so um grupo homogneo, criam sadas para as crises sociais e constroem
aes culturais que se contrapem s normas estabelecidas pela sociedade adulta, atribuindo
novos sentidos aos espaos por eles(as) ocupados.
Tambm com relao ao fogo e juventude, apenas um jovem considerou que
os(as) jovens devem ser controlados pelos adultos, pois estes so fogueiras possveis de se
conter [...] porque, por mais que ele queira fazer e achar que est certo, ele acaba escutando
100
De acordo com Abramo (1997), os movimentos juvenis da dcada de 1960 eram vistos pelos setores de
esquerda tradicionais e promotores da contra cultura como aes pequeno-burguesas inconsequentes que
poderiam atrapalhar a possibilidade de uma transformao efetiva da sociedade. Dessa forma, somente aps a
efervescncia desses movimentos juvenis que foram reelaborados de forma positiva e cristalizados como ideais
de juventude.
101
Vimos, neste ano, uma onda de manifestaes que no foram organizadas pelos grupos polticos tradicionais
(partidos, movimentos estudantis). Uma boa parcela dessas aes foi composta por jovens que se conectaram
pelas redes sociais.
108
os pais, um adulto, mais velho e tomando conscincia do que esta fazendo. Este pensamento
contradiz os demais, que indicam que esta categoria social quer descobrir tudo ao mesmo
tempo, [...] apesar dos pais, amigos, avos, tios, diversas pessoas que dizem: a isso aqui no
assim vamos com calma, eles no querem saber102.
Pensando na fala desse rapaz, recordo o pensamento de Abramo (1997), ao
afirmar que a juventude um retrato projetivo da sociedade103, vista como um processo de
desenvolvimento social e pessoal de capacidades e ajustes aos papis adultos. Dessa forma, a
no-integrao (anomia ou disfuno do processo) ou socializao desses jovens nesta
sociedade adultocntrica constitui uma preocupao, um problema e at um risco para a
continuidade social.
Concordo com a autora acima citada, que questiona a perspectiva de que devem
ser concentrados os esforos dos adultos em cuidar e [...] pastorear os jovens para um lugar
seguro rumo a uma integrao normal e sadia sociedade (ABRAMO, 1997, p. 30). O adulto
aquele que ir conter, intervir e salvar a juventude dos seus impulsos ameaadores da ordem
social.
Percebi, nas falas dos sujeitos da pesquisa, que ao se reportarem juventude, no
se colocavam como tal. como se eles e elas no fossem jovens ou que eles(as) vivessem em
outro mundo, separados das demais pessoas de sua idade. Eles(as) sabiam o que queriam,
porm os [...] outros jovens precisavam pensar o que queriam da vida e se isso certo ou
errado, porque ser jovem no s brincar, saber viver a vida, amar e se amar, e parar pra
pensar o que quer de sua vida104. Ao passo que reproduzem as ideias que a sociedade versa
sobre o ser jovem, tambm apresentam pensamentos contrrios. Dessa forma, no existe um
discurso linear.
O elemento GUA, escolhido pelos candomblecistas, trouxe a ideia de
diversidade e adaptabilidade. Para eles(as), a juventude tem a capacidade de se adequar a
qualquer ambiente, por no ter barreiras.
Mais uma vez apareceram opinies diferenciadas sobre o mesmo elemento.
Enquanto alguns ressaltam a gua como um elemento de reflexo do jovem que analisa e
102
109
pensa na vida, nos seus erros, como uma cachoeira que para num rio, ela tambm pode
carregar a impulsividade e imprevisibilidade do jovem que no pensa no amanh.
Igualmente, relacionaram a gua com extermnio dos jovens, quando compararam
a juventude a uma lagoa que est secando.
Essa lagoa era muito cheia, teve um dia que os animais foi bebendo, foi bebendo l,
a secou, quem secou ela foi os animais e ns ficava carregando gua. Quando a
pessoa num morre? a mesma coisa do que t secando a lagoa. A lagoa quando
seca num morre tambm! como se os jovens tivessem morrendo muito rpido.
(Ia de Oxumar). (Informaes verbais fornecidas pelos(as) jovens participantes da
pesquisa).
105
Os mapas da violncia so pesquisas realizadas desde 1998, com o intuito de contribuir, de forma
corresponsvel e construtiva, para o enfrentamento da violncia por parte da sociedade brasileira. Colocado de
maneira simples, pretende fornecer informaes sobre como morrem os jovens por causas que a Organizao
Mundial da Sade qualifica como violentas. Segundo esta pesquisa, morreram 237,4% mais jovens negros que
brancos, em 2011.
106
Esta ao foi uma iniciativa do Instituto de Juventude Contempornea (IJC), desenvolvida em parceria com a
Prefeitura Municipal de Fortaleza (Assessoria de Juventude do Gabinete da Prefeitura de Fortaleza), que visava
conhecer, identificar e mapear as juventudes da cidade, suas demandas e anseios, a fim de subsidiar o poder
pblico e a sociedade civil na construo de polticas pblicas voltadas para os segmentos juvenis. A populao
objeto da pesquisa foi constituda por 636.425 jovens do sexo masculino e feminino com idade variando de 15 a
29 anos, residentes no municpio de Fortaleza. Os dados relativos distribuio da idade na faixa etria de 15 a
29 anos foram obtidos nos registros do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica IBGE. A amostra de
1.734 sujeitos e foi distribuda pelos bairros, em funo da proporo de jovens do sexo masculino e feminino,
nas faixas de idade de 15 a 19 anos, de 20 a 24 anos e de 25 a 29 anos.
110
107
108
111
- Eu acho que a menina liga pra me dela, o menino a aviciado no computador,
no jogo a, e o outro fumando maconha. (Grupo Terreiro Olojudol)
- O primeiro parece estar com raiva, o segundo preocupado e o terceiro quer fazer
alguma coisa que ainda no d pra fazer agora.
- Que ele t pensativo, o primeiro; o segundo t com medo de algo e o terceiro t
aproveitando alguma coisa.
- (Relao com as juventudes) ser inconstante, no sabe se ele t pensando, parece
que ele t pensando, mas ele t com raiva. O outro parece que t preocupado, mas
pode t acontecendo alguma coisa e aquele que parece que t planejando alguma
coisa, ningum sabe o que que eles esto pensando. (Grupo Terreiro Il As Iya
Omi Arin Ma Sun).
(Informaes verbais fornecidas pelos(as) jovens participantes da pesquisa).
Pedi tambm que intitulassem a cena e deram os seguintes nomes: armania (as
manias) os meninos aviciados (viciados) Grupo Terreiro Il As Olojudol; os
preocupados, inconstncia juvenil, solido Grupo Terreiro Il As Iya Omi Arin Ma Sun. Ao
explicarem a cena, os(as) jovens que a criaram foram enfticos ao afirmarem que a
intensificao do uso do celular e da internet pela juventude pode levar utilizao de drogas
por influncia de outros jovens ou por curiosidade.
Como retrata a fala de uma jovem: [...] alguns amigos que eu tenho eu j vi se
envolvendo com drogas, mas por amigos de internet, ento, a fulano disse que bom e tal,
vamo ali, vamo ali marca pra ir eu e tu.
Outra razo para os referidos participantes terem feito a cena foi o fato de
pensarem que o vcio est diretamente ligado juventude, se apresentando de diversas formas.
Existe diversas formas de vcio. Que a gente mostrou 3 delas, mas no deixa tudo de
ser vcio; tem gente que viciado no celular, que no pode soltar, que quando tira do
ouvido pra ficar teclando, tem gente que viciado em internet, na internet mesmo.
A gente nem v mais na rua. E o vcio da droga tambm, que tudo acaba sendo vcio
em que o jovem se encontra viciado; em tudo o jovem viciado. (Ia R. de Ogum.
Informao verbal).
Outro jovem trouxe uma ideia divergente, ao assegurar que existem outras formas
de ser jovem e diferentes usos da internet. A utilizao da tecnologia (celular, internet)
contribui para aguar a curiosidade em busca da sabedoria.
Quanto cena produzida pelos jovens do Il As Iya Omi Arin Ma Sun, pretendia
enfocar na cena o medo, a insegurana, o nervosismo e as dvidas prprias desta fase da vida.
Dvidas de saber como vai ser o futuro, dvidas de se t fazendo a coisa certa, se as escolhas
to sendo as certas, medo de fracassar, medo de dar errado, medo de lutar e no final no
conseguir109.
109
112
Tambm foi mostrada nesta cena o desespero e a solido dos jovens. Como aponta
o relato desses participantes:
Desespero, tipo, de fazer alguma coisa errada e olhar pra trs, de ter feito algo errado
e olhar pra atrs e saber que no d mais pra consertar, de entrar numa vida errada e
no poder voltar.
Entrou num beco sem sada e num achou uma maneira de ajeitar o que ele fez, ele
foi parar pra pensar e j era tarde, mas ele tava assim, essa pessoa tava procurando
de alguma forma de ter um conserto e no encontrou, teve a ajuda de algum e
ningum quis ajudar, ento ele se achou num desespero de tipo, roubar ou fazer
coisas pra se alimpar, pra ficar bem de vida, pra voltar vida dele normal.
Tipo, ningum me d credibilidade, ningum confia em mim, tal, o nico caminho
que eu tenho esse, de roubar, de usar drogas...
Como se ele tivesse s.
(Informaes verbais fornecidas pelos(as) jovens participantes da pesquisa).
110
Ver NOVAES, Regina. A juventude de hoje: (re)invenes da participao social. In: THOMPSON, Andrs
A. [et al.] (Org.). Associando-se juventude para construir o futuro. So Paulo: Peirpolis, 2005.
111
Leccard toma como proposta analtica a de Ulrick Beck (1999), que define uma Primeira Modernidade que
vai do incio da modernidade Industrial at o incio do sculo XX, como perodo de dominao dos Estados
Nacionais e da ideia de progresso associada de controle. A Segunda Modernidade marcada pelo processo de
globalizao, pluralismo dos valores e indeterminao do futuro governado pelo risco.
113
vida como se fosse o ltimo dia, no planejam o futuro, isto , diante da incerteza de um
amanh os jovens esto vivendo o presente estendido112.
Com o termo presente estendido entende-se o espao temporal que bordeja o
presente, adquirindo um valor crescente, paralelamente acelerao temporal
contempornea, favorecida pela velocidade dos tempos tecnolgicos e pela
exigncia de flexibilidade que seu corolrio. (LECCARDI, 2005, p. 45).
Estas pessoas evidenciaram que numa sociedade entrelaada pela violncia, riscos
e incertezas de horizontes os (outros) jovens utilizam o presente e no mais o futuro como o
tempo da ao.
Como eles disseram: Os jovens querem viver o aqui e o agora! Igualmente
msica do Lulu Santos (Tempos Modernos), que fala: hoje o tempo voa, amor, e escorre
pelas mos [...] vamos viver tudo que h pra viver, vamos no permitir (1982). Para os
participantes desta pesquisa, os jovens esto se permitindo viver o presente estendido.
Este pensamento se desenrola desde os fins do sculo XX e, ressalta o autor
supracitado, que o tempo presente aparece como nica dimenso disponvel para a definio
das escolhas de horizonte.
De acordo com Carrano (2003), nos fenmenos juvenis contemporneos se
evidencia uma crescente individualizao do social, ao mesmo tempo em que acontece uma
hipersocializao da experincia individual. Esse processo de individuao tem como produto
a experincia da incerteza. Dessa forma, os jovens (adolescentes), no se interessam em
construir metas para um futuro, mas na experimentao do sentido de mudana no presente.
Todavia, enfatizo que a fala destes(as) jovens no retratam sua vida, mas de
outros(as) jovens que esto na sociedade. Ao confeccionar o desenho do antes e do depois de
entrar no candombl, nas entrevistas e conversas informais durante toda a pesquisa eles
afirmaram ter projetos de futuro. Como se fossem de outro planeta ou outra categoria social,
e, mesmo diante da realidade catica que vivem, o futuro constitui, para eles, o espao do
devir possvel.
3.2 Ser jovem candomblecista ...
E afinal o que ser jovem do/no candombl? Para tentar entender porque a
condio juvenil no era considerada nas pesquisas acerca das religies de matriz africana a
no ser quando era tratada como estudante, nos estudos sobre educao e religio, ou como
112
114
homossexual, nos estudos sobre sexualidade nos terreiros procurei saber o que era ser jovem
no candombl a partir do olhar dos candomblecistas. Para tanto, entrevistei113, inicialmente,
babalorixs, e vrios membros da comunidade do candombl de Fortaleza e de outros
estados, em sua maioria, jovens, para saber o que era ser jovem no candombl.
Segundo os(as) entrevistados(as), juventude e iniciao esto interligadas, pois ser
jovem ser recm-iniciado, independente de sua faixa etria. O que conta o tempo ou a
idade inicitica114 de cada pessoa. Isso significa que uma pessoa pode ser adulta para a
sociedade, mas jovem para a religio, de acordo com o seu tempo de iniciao, ao mesmo
tempo em que um(a) jovem iniciado(a) h mais tempo pode e deve ensinar sobre a religio ao
irmo ou irm-de-santo cronologicamente mais velho e, ao mesmo tempo, mais jovem no
culto.
A pesquisadora Estela Caputo (2008), ao realizar um estudo com crianas
candomblecistas percebeu o mesmo movimento. Ela nos diz que quando um adulto recminiciado chegava para aprender a religio, uma criana j iniciada podia perfeitamente ser
responsvel para lhe passar os ensinamentos. Dessa forma, uma criana ou jovem toma a
beno a uma pessoa mais velha da mesma forma que um adulto toma a beno a criana e
jovem.
Ser iniciado ter acesso ao segredo115 e fazer parte do grupo. mais, passar a
pertencer a uma nova famlia, a famlia-de-santo. Independentemente da idade que
se tenha pode-se ser aquele que conhece, que sabe o segredo, tendo-se assim uma
relao com o grupo mesmo quando se criana diferenciada.
Na verdade, nos parece que a importncia no reside apenas no contedo do
segredo, mas tambm em seu carter ritualstico, porque saber o segredo e se
relacionar com ele que diferencia esse sujeito (que sabe e experiencia) dos outros
sujeitos, os no-iniciados, ou os abins, aqueles que pertencem ao ax, casa, mas
que ainda no fizeram o santo. Pode-se dizer que saber e experienciar o segredo
desarruma uma certa hierarquia construda no ocidente moderno em relao
criana, que determina que as novas geraes no conhecem, no sabem ainda e
esto subordinadas aos conhecimentos e aos desejos do adulto. (CAPUTO e
PASSOS, 2007, p. 97).
Concordo com as autoras, pois tanto crianas como jovens iniciados(as) h mais
tempo so tratados(as) diferentemente de outras pessoas (adultas) iniciadas h menos tempo
dentro do terreiro.
Descobri aqui a singularidade desta pesquisa, pois o conceito de juventude no
candombl difere completamente de qualquer outro inserido nos estudos especializados no
113
115
assunto. E, ao mesmo tempo vejo, uma complexidade dentro dele, podendo elencar, a partir
das conversas que fiz, quatro aspectos deste complexo conceitual.
A primeira questo sobre juventude e candombl a dicotomia entre o ser jovem
dentro e fora do terreiro. De acordo com Pai Jnior de Oxum Olutoji116, a pessoa vive sua
juventude da porta pra fora e da porta pra dentro vive sua condio de abi, ia, ekeji,
egbomi, ogan, entre outras funes hierrquicas da religio. E O Il, a casa-terreiro, o
espao da comunidade, independente da idade de cada indivduo.
Outro aspecto desta relao (juventude e candombl) a questo das hierarquias.
Para cada pessoa iniciada existe um mais velho e um mais novo, independente da idade
cronolgica que a pessoa se encontre. No Il Ax Iya Omi Arin Ma Sun existem ias mais
velhos que tm menos de 18 anos, enquanto uma das mais jovens iniciadas tem mais de 40
anos. Esta mais nova na religio (e mais velha na idade) pede a beno do orix ao mais velho
iniciado (porm de menor idade). Dessa forma, a aprendizagem no realizada apenas pela
relao adulto - ensina - jovem, o contrrio absolutamente possvel.
Transcrevo aqui o relato do Babakeker de Air, ressaltando este aspecto e
mostrando os conflitos, medos e a emoo por ser um jovem que, apesar de tudo isso,
respeitado por pessoas mais velhas na idade e novias na religio.
Assim... eu fico meio assim... ... eu tenho muito medo. s vezes, de conversar com
pessoas que, por exemplo, eu tenho uma pessoa aqui que tem... mais velha do que
minha me carnal, que a Ia de Nan, e mesmo ela sendo minha filha pequena, ela
s vezes briga comigo que eu cuido mais dela do que qualquer um outro. O povo s
vezes fica meio com cimes, mas, assim, por causa da idade. E, assim, o respeito
que ela tem por mim, eu acho gratif... muito gratificante. s vezes, assim, eu me
emociono de pessoas que so bem mais velhas, que me respeita como se eu fosse
igual deles. Ou me chamam de pai, mesmo eu tendo idade suficiente pra chamar
aquela pessoa de av. (Babakeker de Air. Informao verbal).
Cleudo Pinheiro de Andrade Junior. Babalorix do Il Ax Iya Omi Arin Ma Sun, terreiro no qual realizei a
pesquisa.
116
existem outros orixs que tm como caracterstica a jovialidade e a beleza, tais como Loguned, Ew, Ibejis.
De acordo com Parizi (2005), as qualidades de orixs mais velhos (como Oxaluf)
referem-se a elementos mais estticos e de orixs mais moos (como Oxagui) relacionam-se
a elementos dinmicos. Quanto a estas qualidades de orixs, o autor cita alguns deles como
jovens tais como:
Oxum Apar ou Opar (jovem e guerreira), Oxum Ipond ou Pond ou ainda Pand
(a mais jovem e a me de Loguned), Oxum Kar (jovem, caadora, portadora de
arco e flecha); Oi Nik (a jovem, furaco e ciclone); Xang Aganju (o mais jovem)
e Oxagui (considerado um jovem desmiolado e impetuoso). (PARIZI, 2005, p. 136,
140, 144, 146).
117
117
Ser jovem no candombl ser cobrado; ser jovem no candombl ter pacincia; ser
jovem no candombl ser obediente; ser jovem no candombl saber chegar e sair
de um lugar; ser jovem no candombl tudo isso. Porque voc pode ter mil anos de
candombl, mas se voc tiver 16 de idade, voc vai ser jovem, voc vai ser capaz de
realizar qualquer tarefa.
[...] o jovem, ele o Severino, vamos dizer assim. Ele faz tudo; no tem outra pessoa
ele t l no meio, correndo, ajudando, fazendo literalmente jovem. Jovem na idade
ou jovem na religio? Eu acho que os dois. Mais jovem na idade eu acho. (Ia R. de
Ogum. Informao verbal).
De acordo com os(as) jovens autoridades que participaram desta pesquisa, se uma
pessoa tem 16 anos de idade, mas tem mais de sete anos de candombl, ento ser uma
autoridade e realizar outras tarefas que sero prprias do seu cargo e no de um recminiciado ou qualquer outra, divergindo, assim, da fala anterior.
Todavia, concordo com o Ia R. de Ogum, que diz: [...] voc pode ter mil anos
de candombl, mas se voc tiver 16 de idade, voc vai ser jovem. De fato, ser jovem
independente do tempo de candombl ou do cargo que este ocupa na religio motivo de
conflito118. Outros(as) participantes desta investigao ressaltaram o conflito geracional e o
preconceito que os jovens candomblecistas sofrem. Tambm relacionaram a esses elementos
o fato de serem aprendizes. Como apresento a seguir:
[...] mais responsabilidade, porque eu j fui em outras casa e l tem gente mais velha
e voc acaba sofrendo um preconceito maior...
Eu acho que ser jovem no candombl hoje em dia uma superao, porque voc tem
que quebrar barreira tanto dentro da religio, que a questo de voc ter
responsabilidade dentro mesmo tendo pouca idade, e voc tem que ter a questo do
aprendizado, um foco, porque, querendo ou no, o candombl te d um foco que
aprender cada vez mais mesmo sendo muita coisa pra voc aprender, voc tem que
aprender. (Egbomi/Ialorix de Ewa. Informao verbal).
Eu acho que ter uma grande responsabilidade, porque tem um caminho ainda todo
pra seguir, e de pequeno que se aprende, a gente tem que aprender logo agora pra
num futuro j ter bem experincia. (Babalax de Xang. Informao verbal).
Porque a gente passa por muita coisa, sofre preconceito de muita gente e se voc no
tiv... se voc no for uma pessoa forte, uma cabea centrada no que voc quer, voc
no aguenta. (Ia T/L de Iemanj. Informao verbal).
Veremos mais adiante nesse captulo que existe um conflito em ser jovem candomblecista (ia ou
autoridade), apesar da hierarquia.
119
Informao verbal.
118
mais jovem da casa est a frente do babalorix, sempre h um mais novo de um lado e um
mais velho do outro, de cada pessoa. Apesar dos conflitos, os participantes desta pesquisa que
so ekedis, egbomi, babalax e babakeker, desempenham seu papel de autoridade e ensinam
aos outros candomblecistas, crianas, jovens ou adultos, os saberes cotidianos desta religio.
Em outro momento, fiz algumas perguntas sobre ser jovem e candomblecista.
Dentre elas, perguntei se existia diferena entre eles(as) e os(as) jovens que no participavam
da religio e quais seriam. Eles(as) responderam enfaticamente que se diferenciavam dos(as)
outros(as) jovens no religiosos e enfocaram quatro aspectos.
O primeiro que destaco foi o RESPEITO. De acordo com os(as) participantes da
pesquisa, dentro do candombl acontece o respeito, independentemente da idade. Respeito
entre um jovem e um mais velho e vice-versa. Fora do candombl: Uma pessoa mais velha
no vai respeitar o mais novo que ela no vai ter autoridade (Iarob/Ekeji de Oum.
Informao verbal).
A frase da jovem materializada no conto O menino que tinha muito saber120
de Me Beata de Yemonj (2008). Este conta que um menino dotado de muita sabedoria e
respeitado por todos tenta avisar ao pai de um acidente que acontecer com o mesmo,
contudo, este no se importa nem valoriza os conhecimento e poderes do filho e, desta forma,
sofre as consequncias de no ter ouvido a criana. Esta histria revela que o respeito ao saber
e ancestralidade dos jovens candomblecistas permanecem dentro do terreiro.
Nesse contexto, percebo o conflito que se instala, pois no candombl as relaes
so pautadas no respeito hierarquia, existindo uma dinmica interna que fora dos muros do
terreiro no acontece.
Eles(as) enfatizaram tambm que a juventude no-candomblecista no respeita
ningum e no se importa com nada, o contrrio que acontece no candombl, pois [...] todos
se respeitam, se prega a humildade e a simplicidade em tudo [...] no da boca pra fora, mas
de corao e puro amor. O candombl no faz pra demonstrar s pessoas que o povo melhor
que os outros, no, faz porque ama ao orix, ama o que faz (Ia L. de Oi. Informao
verbal).
Todavia, um jovem ressaltou que o respeito algo que extrapola o candombl e as
prticas religiosas. Para ele:
[...] independente de ser do candombl ou no, voc tem que respeitar todo mundo,
se voc quiser ser respeitado. No candombl, a gente respeita porque o pai, a
ekedi que cuida de voc enquanto voc t recolhido, voc tem que ter o respeito e l
120
Ver em anexo A.
119
fora voc tem que ter o respeito, porque se eu no te respeitar eu no posso te cobrar
respeito, ento, eu acho que em relao a respeito, voc tem que ter respeito
independente de qualquer religio [...]. (Ia T/L de Iemanj. Informao verbal).
120
Quando um jovem entra no candombl, a cabea dele fica mais aberta, mais ampla,
porque ele passa a entender que o que ele fizer, pode vim enfeito domin e acabar
derrubando o que t l atrs, ou cair pra frente e derrubar quem t na frente [...]. Eu
me privo disso hoje, pra no acontecer aquilo amanh com o meu irmo, comigo,
com aquele outro que ainda vai entrar, com a minha famlia. (Ia D. de Oxum.
Informao verbal).
Eu tando com meu orix incorporada, ou sem o meu orix incorporada eu vou ser
representao dela, ento, o que eu fizer de certo ou de errado sempre vai refletir em
mim e no meu orix e nas minhas irms que tambm tm o mesmo orix que eu.
(Egbomi/Yalorix de Ew. Informao verbal).
121
consumo e desejo. Ele afirma que, dentro do terreiro, ele vai adquirir experincia para viver
dentro e fora da religio e ser respeitado por seus irmos-de-santo. Trago aqui o seu relato:
[...] a nossa juventude passa e ns estamos aqui dentro envelhecendo, envelhecendo
pra ser mais importante e no ficando mais jovem pra ser mais importante...
[...] tambm a gente quer ser mais velho, por que eu passo por uma pessoa que da
mesma religio do candombl, que da mesma religio, ento, eu passo por ela na
rua e ela vai me reconhecer como uma pessoa mais velha no santo, ento, pra mim,
o importante no ser jovem. O importante envelhecer e aprender, aproveitando
da minha juventude aqui dentro e da minha experincia l fora, por que aqui dentro
eu consigo ganhar experincia de vida pra viver l fora com experincia e sendo
jovem a gente consegue aprende a conciliar as duas coisas. (Ia R. de Ogun.
Informao verbal).
Outros jovens afirmaram que ao priorizar, mesmo que em poucas vezes, o lazer, a
famlia de origem, os relacionamentos fora do candombl, eles desenvolvem um sentimento
de culpa, como se estivessem fazendo algo errado ou proibido. Tpico de toda religio que
doutrina seus adeptos a agirem conforme seus preceitos e que aparecem nos relatos a seguir:
[...] a fiquei assim pensando: poxa no era pra mim t aqui, fica, assim, aquela,
digamos, aquela coisa ruim, num era pra t aqui. [...] quando a gente meio que... ,
digamos, esquece um pouco a religio pro nosso social, fica com essa culpa,
querendo ou no, voc fica, poxa eu sabia que tinha que fazer isso. E mesmo
sabendo que eu tinha que fazer isso eu fui pra o que no era. (Egbomi/Yalorix de
Ew. Informao verbal).
[...] acaba sendo (uma espcie de culpa)... acaba, , se senti um pouco culpado de
estar l e no estar aqui. (Ia R. de Ogum. Informao verbal).
Perguntei tambm aos(s) participantes como era a relao entre eles(as) dentro da
religio como ias. Para eles e elas, os(as) outros(as) jovens candomblecistas so irmos de f
e, por esse motivo, se relacionam como tal. Essa famlia de irmos e irms se amam, so
122
123
A fala deste jovem demonstra como uma grande parte da sociedade no acredita
no jovem, percebe-se tambm que ele, mesmo sendo autoridade na religio, tem que se impor
para ser reconhecido como tal.
Um jovem traz tambm o pensamento de que existe o respeito ao jovem
autoridade mesmo entre os pares. Ele associa o respeito hierarquia.
Eu j falei mesmo pra vocs aquela histria, que eu tenho 28 anos, o pai Demir tem
25 ou 26 e eu mostrar o meu respeito por ele, por ele ser autoridade na casa, eu sou
um ia, respeito ele, respeito ela que Ekedi, mesmo ela sendo nova de idade, mais
do que eu, entendeu? o respeito da hierarquia no candombl. (Ia D. de Oxum.
Informao verbal).
Em entrevista, perguntei aos quatro jovens que eram autoridades duas moas e
dois rapazes participantes desta investigao como se sentiam sendo jovens na idade e, ao
mesmo tempo, sendo mais velhos na religio e como conciliavam isso.
A jovem de 20 anos que h pouco tempo (antes da pesquisa) recebera o cargo de
yalorix em sua festa de 7 anos, respondeu que se sente bem por estar nessa posio de ter
mais tempo de aprendizado do que outras pessoas, mas, ao mesmo tempo, se sente estranha
por ser jovem e no ter passado por situaes onde outras pessoas que a procuram passam e
121
124
pedem conselhos, tendo receio em ajud-las por esse motivo. Ela se sente desfavorecida pela
pouca experincia de vida, apesar de t-la na religio.
O sentimento desta jovem iyalorix confirma que a experincia tambm se
adquire com o tempo, apesar de ter passado por todo o processo de iniciao ela ainda no
tem a vivncia de uma pessoa mais velha biologicamente.
Para o jovem de 19 anos, que nasceu na religio e desde criana recebeu o cargo
de babalax do terreiro Il As Olojudol, o respeito acontece a partir do comportamento dele
enquanto autoridade. Se ele se comporta como uma pessoa mais velha, as pessoas iro
respeit-lo por isso. Mas, fora da roa, o mesmo pode ser um jovem como outro(a) qualquer,
brincando com os(as) outros(as) jovens, mesmo aqueles da sua religio. No seu pensamento,
devem-se separar as coisas: [...] ser jovem l fora, ser autoridade dentro da roa
(Informao verbal).
O babakeker do terreiro Il As Iya Omi Arim Ma Sun, de 28 anos, tem medo por
ter que conversar e dar conselhos a uma pessoa mais velha na idade e mais jovem na religio,
contudo, considera gratificante o respeito que essas pessoas tm por ele e se emociona quando
os mais velhos biologicamente o respeitam [...] como se fosse um igual. Ele acrescenta que
um jovem autoridade foi um ia que se calou, ouviu mais e falou menos.
De acordo com a mais jovem Iarob/Ekeji desse grupo (17 anos), ser autoridade e
ser jovem ter uma responsabilidade que algumas pessoas no entendem, pois [...] no
candombl, a gente no olha a idade da pessoa, a gente olha hierarquia, que a idade do orix
da pessoa. Ela tambm enfatiza que a autoridade conquistada quando uma pessoa,
independente de sua idade, recebe um cargo dentro do terreiro122, como ela recebeu com 11
anos de idade.
s vezes, pessoas que tm oito anos com santo deitando nos ps de uma pessoa que
tem trs anos de santo, s porque aquela pessoa contm um cargo ou um posto
dentro do il ax.
A pessoa tem... por exemplo, eu tiro por minha irm. Minha irm tem 30 anos e o
babakeker tem 26. Ela chama ele de pai, totalmente, naturalmente deita nos ps
dele pra tomar banho, respeita ele, respeita o que ele dentro da roa de candombl.
(Informao verbal).
122
Este cargo pode ser identificado atravs do jogo de bzios, quando o orix reivindica o cargo para
determinada pessoa.
125
Para o Babakek de Air, o que difere que [...] o jovem autoridade deve se
impor mais do que o jovem ia para ser respeitado. [...] se resguardar. Tem o momento de
tirar brincadeira e tem o momento de que tem que ter respeito123. Ele ressalta tambm que
um valor que o candombl ensina quando voc entra ter respeito pelos mais velhos,
independentemente da idade.
Os jovens que falaram so to habituados a essa relao de hierarquia, que ao
sarem para uma festa ou outra atividade de lazer com aqueles de sua idade que so
autoridades, no conseguem deixar o tratamento de respeito dentro do terreiro, extrapolam os
muros, gerando situaes constrangedoras para quem est acima na hierarquia. Trago dois
relatos que exemplificam essa situao.
[...] at l fora o respeito que eu tenho pelo pai Jnior o mesmo que eu tenho aqui
dentro, porque , tipo, eu no consigo tirar brincadeira com ele, eu no consigo, j
de mim. (Ia de T/L de Iemanj. Informao verbal).
Eu j sa pra farra com alguns jovens daqui, assim por querer sair e eles no
conseguir se divertir porque tava do meu lado. Me senti muito incomodado, voltei
pra casa. (muitos risos) (Babakeker de Air. Informao verbal).
123
Informao verbal.
126
127
o trnsito destes acontece da mesma forma que os vividos dentro deste espao. O limite entre
uma coisa e outra (ser jovem - ser adulto) tnue e frgil.
Nesse sentido, de acordo com Bourdieu (1983, p. 121), [...] quando o sentido
dos limites se perde, v-se aparecer os conflitos a respeito dos limites de idade, dos limites
entre as idades, que tm como objeto de disputas a transmisso do poder e dos privilgios
entre as geraes.
A Egbomi/Yalorix de Ewa afirma que, ao se tornar autoridade, o(a)
candomblecista deve se comportar diferentemente dos(as) ias, ela mesma teve que se isolar
de seu grupo etrio, tornando-se uma pessoa diferente da jovem que era. Arrisco-me a dizer
que a mesma adquiriu comportamentos do mundo adulto com a maioridade religiosa. Trago o
seu relato:
complicado pra gente, mais que a gente jovem [...] quando a gente vai fazer,
digamos, completar esse crculo, por que, assim, a gente, querendo ou no, a gente
tira brincadeira besta aqui, brincadeira besta ali, por que a gente tem a hierarquia, a
gente consegue ser amigo. [...] a gente no deixa de ser jovem, exato, a gente tem
uma liberdade a mais com um, uma liberdade a mais com outro, tem aquela
brincadeira de jovem normal, a quando a gente comea a chegar prximo aos 7
anos, a comea uma nova, tipo uma doutrinao, voc vai completar 7 anos, voc
tem que agir desse jeito, no pode ser... [...] assim, ! Voc vai ter que ter uma
postura tal, no vai poder t falando assim, poder t falando assado, num t no meio
de fofoca, no poder t no meio de rodinha. [...] se isolar. [...] exato, querendo ou
no, a gente acaba se isolando pra quando a gente completar esse crculo a gente ser
visto como, digamos, um pilar [...].
128
129
[...] s vezes, eu fico meio chateada, mas, ao mesmo tempo, eu fico feliz por mim,
a chateao do bem, digamos assim, por que eu vejo que isso, eu falo de pessoas
mais velhas, eu vejo que eu conseguir chegar, conseguir ter conhecimento, eu
conseguir chegar minha maioridade sendo jovem, ento isso quer dizer que eu
ainda tenho muita coisa pra aprender, tanto na vida como na religio. A as pessoas
fazerem isso meio que, na minha cabea, meio que recalque.
[...] por que j so pessoas com idade mais avanadas, no tiveram tantas
oportunidades como eu, que muitas vezes no tiveram tanta oportunidade de
aprendizado como eu tive, entendeu? Ento uma felicidade e uma tristeza ao
mesmo tempo, estranho. (Informao verbal).
124
130
4 JUVENTUDE E RELIGIO
O indivduo tem uma participao na religio que
comea antes de seu nascimento e continua depois de
sua morte. [...] a totalidade da existncia um fenmeno
religioso.
(THEODORO, 2010, p. 32)125
125
131
66), ou seja, atravs deles, os seres humanos vinculam-se a determinados grupos sociais e,
nesta relao, do significados a normas, valores e acontecimentos materiais e espirituais.
Esses acontecimentos esto ancorados na crena religiosa que o grupo estrutura
atravs da (re)criao dos seus mitos e ritos, e tudo que ocorre dentro do grupo (com seus
membros e suas relaes) determinado por uma interpretao simblica pautada pelo
universo sagrado (GOMES, 2003).
Desse modo, concordo com a autora citada acima, de que o smbolo a
materializao do sagrado. E posso dizer tambm que os(as) jovens, ao se apropriarem deste
universo, incorporaram sua cosmoviso elementos da religio, imprimindo, assim, um
movimento entre o sagrado e o profano.
Apesar de imersa neste universo simblico, ressalto que no tive a pretenso de
me debruar acerca do fenmeno religioso da mesma forma que no fiz grandes incurses
analticas. Decidi ousar, enfatizando, em muitos momentos, a viso dos jovens sobre a
religio (candombl) e sua experincia religiosa.
Neste sentido, inicialmente apresento um breve mapeamento do campo de estudos
da interface juventude e religio, considerando os parcos estudos que tratam do candombl.
Em seguida, trato o mesmo como religio de matriz africana e os significados que os(as)
jovens do a esta religio e suas divindades, bem como sua hierarquia, rituais, atividades e
funes.
Ainda na seo dos jovens e o candombl, analiso a experincia religiosa dessa
juventude, atravs de alguns elementos: aproximao e motivao de entrada na mesma; as
funes/cargos que so responsveis; o antes e depois de sua iniciao; e os aprendizados que
adquiram ao vivenciarem o candombl.
132
pilares basilares na construo da identidade social do jovem, bem como da sua cosmoviso
de mundo e de sociedade.
Em todas as casas de candombl que visitei, verifiquei essa presena dinmica da
juventude. Destaco aqui a Casa de Iemanj126 oficialmente, Ncleo de Cultura Afro
Brasileira Iy Ogun-T que passou, em 2005, a ser (segundo os adeptos da casa) o primeiro
Ponto de Cultura em uma casa de ax do pas, sendo considerado um centro de atividades
culturais e sociais, atendendo comunidade local e dos bairros prximos, e que tem sob sua
responsabilidade a animao do Afox Od Iy, composto, em sua maioria, por jovens
praticantes e no-praticantes da religio. No posso deixar de mencionar o Il Ax Olojudol,
que tem Pai Aluisio de Xang como sacerdote, o qual citei anteriormente, o Il Oba Oladeji,
onde Pai Linconly o sacerdote, e o Il Ax Gitofalogi, em Juazeiro do Norte, que tem Pai
Bira com seu babalorix.
Constatei, nestas visitas aos terreiros, a presena dinmica da juventude nas casas
de candombl apresentando, em alguns casos, funes importantes na hierarquia da
religio127. A religio faz a diferena na vida destes jovens.
Estudos que tratam da interface entre juventudes e religio so bem recentes no
Brasil. At a dcada de 70, os estudos sobre juventude no Brasil eram restritos juventude de
classe mdia e universitria, marcada pelo recorte geracional. A partir da dcada de 80, a
viso acerca da juventude alargada, reconhecendo a heterogeneidade dessa categoria,
porm, essa mudana nos estudos sobre os(as) jovens ainda tinham certos limites. a partir
da dcada de 90 que as Cincias Sociais, com o alargamento da ideia de juventude, vo
introduzir o tema da religio nos estudos sobre essa categoria.
De acordo com Camura e Tavares (2004, p. 19):
A partir dos anos 90 que a produo das cincias sociais sobre a juventude tem se
debruado de forma sistemtica sobre novas dimenses da experincia juvenil,
dimenses essas at ento negligenciadas porque no tomavam como eixo central
das suas preocupaes, as significaes que os prprios jovens possuam acerca da
sua condio.
126
Este terreiro tem Pai Clio de Iemanj como babalorix e localiza-se na Rua Dona Alzira Aguiar, 429, Ponta
da Terra, Macei- Alagoas. Fone: (82) 32310064, Site: www.casadeiemanja.com
127
O trabalho de Stela Guedes Caputo (2008) apresenta crianas e jovens de vrios candombls que tem funes
importantes na hierarquia da religio, tais como: Ogan, Ekedi, j.
133
128
Ver os trabalhos de NOVAES (1994); CAMURA (2004); TAVARES (2004); FERNANDES (2011);
SILVA, (2008).
129
Gostaria de destacar duas pesquisas: A pesquisa Juventude Brasileira e Democracia, realizada em 2004 pelo
IBASE/POLIS, e a pesquisa Retrato da Juventude Brasileira, realizada pelo Instituto Cidadania, no incio de
2004.
130
Instituto de Estudos da Religio. Para mais informaes, ver site: http://www.iser.org.br/site/quemsomos/iser.
131
Este artigo est inserido na coletnea de artigos organizados por Herman Vianna, chamado Galeras Cariocas,
territrios de conflitos e encontros culturais (1997).
132
Homens que transam com homens homossexuais masculinos.
134
133
Ver pesquisa realizada por NOVAES (1994). com estudantes universitrios, CAMURA e TAVARES
2004), com estudantes da educao bsica, e PEREZ,OLIVEIRA e ASSIS (2004), que pesquisaram estudantes
do 3 ano da rede pblica estadual de Minas Gerais.
134
Ver trabalhos de PAIVA (2008), SILVA (2008), SANTOS (2008), LICCIARDI (2008); RIOS
(2011).
135
coletivo e nas individualidades, que deram novo teor s culturas de origem (CUNHA, 2001,
p. 12).
A ideia de (re)elaborao explica construes inexistentes nas culturas africanas e
presentes nas africanidades brasileiras, tais como o candombl, a capoeira, os quilombos, o
samba. Porm, as bases destas novas construes brasileiras esto na diversidade cultural
africana.
Os afrodescendentes (re)elaboram o pensamento de origem africana e produzem
algo novo, realidades novas, novos olhares, transformando assim em africanidades.
Isso significa pensar que a base material e intelectual da cultura brasileira fruto da
(re)elaborao dos africanos escravizados e afrodescendentes que batizamos de
africanidades. (SANTOS, 2011, p. 128).
135
136
137
137
Conforme j explicitei no captulo metodolgico, a ideia de trabalhar tambm em outro terreiro foi
considerada e executada somente aps a primeira qualificao.
138
Ax, para os nags, e muntu, para os congos, segundo Luz (2003).
138
Santos (2008) nos alerta que o uso extensivo e simplificado da palavra orix pode
induzir a compar-los aos humanos. Esta autora afirma que alguns autores consideram os
orixs ancestrais divinizados, ou seja, chefes de linhagens que, atravs de atos excepcionais
em vida, transcenderam os limites de sua famlia ou de sua dinastia, passando a serem
cultuados nacionalmente.
Concordo com ela, que no cabe aqui tomarmos posio sobre este assunto, e
utilizo seu entendimento acerca dessas divindades. Dessa maneira, [...] os oris so os
genitores divinos [...] criadores simblicos e espirituais; [...] interiorizam no ser humano
elementos da natureza; [...] regulam as relaes do sistema como totalidade; [...] representam
o valor e um fora universal (SANTOS, 2008, p. 103-104).
Do mesmo modo, Botelho (2005, p. 48), em seu trabalho, apresenta os principais
protagonistas dos candombls, de acordo com suas naes e locais de origem.
Os orixs so divindades africanas trazidas para o Brasil pelos negros iorubs, grupo
tnico do Oeste da frica, o qual inclui pases como Nigria, Togo e Repblica do
Benin. Alm dessas divindades, ligadas cultura iorub, existem tambm os
inquices (divindades dos negros Bantos), circunscritos s regies pertencentes ao
Congo, Angola e Moambique, e os voduns (divindades relacionadas aos negros
Jjes) da regio hoje pertencente Repblica do Benin. (grifos do autor).
139
korin, e dos poemas de louvao, oriki, dos sistemas de cores, do vesturio, das jias
e emblemas, das esculturas.
Ogun
Oxossi
Ossain
ATRIBUTO/MISSO
Tem o desgnio de levar at as
outras divindades os pedidos das
pessoas.
uma
divindade
fundamental
para
o
desenvolvimento
da
religio,
porque ele o princpio dinmico
da comunicao entre as pessoas e
as divindades. a divindade do
movimento, dos comeos. Senhor
da comunicao.
Abre os caminhos, como lhe foi
determinado pelo Senhor Supremo,
e, no seu vigor heroico, possibilita a
preparao de um cenrio favorvel
para que a humanidade desempenhe
o seu papel de copartcipe do
desenvolvimento.
Senhor
dos
caminhos, da tecnologia, dos
avanos.
SIGNIFICADO PARA OS
JOVENS
SAUDAO
Laroy
guny
Ok Ar
Ew
140
Tabela 1 Atributos dos orixs e significado para os(as) jovens.
ORIX
ATRIBUTO/MISSO
SIGNIFICADO PARA OS
JOVENS
Omolu/Obalu Faz a transmutao e exerce Obaluay dono da terra, sol. Senhor
ay
influncia sobre a sade das das doenas e representado como
pessoas, controla as pestes e as So Lazaro. (Ia U. de Obaluay.
epidemias. Dono da terra.
Informao verbal).
Oxumar
Cria a grande aliana entre o cu e a Oxumar, ele representado pela
terra, reafirmando o compromisso cobra que a gente chama de Dan, ele
entre os seres humanos e as responsvel pela chuva, caminho,
divindades. a grande serpente que por longevidade, por... Esqueci a
se figura no arco-ris e transporta a palavra. Mudanas na vida. Por ser o
gua do cu para a terra
smbolo da cobra. Questo de
mudanas de pele, mudanas de vida!
Ele passa seis meses no Orum em
forma de arco-ris, e seis meses na
terra que o Ai, em forma de
homem
ou
de
cobra.
(Egbomi/Ialorix
de
Ew.
Informao verbal).
Nan
O princpio da vida, dona da lama
onde a sabedoria gestada. Indica a
energia daqueles que acumulam
muitas experincias pelos anos
vividos. Senhora das chuvas que
fecunda a terra. Me ancestral.
Xang
Com a sua opulncia justiceira,
legisla em favor dos menos e dos
mais afortunados. Divindade dos
Troves.
Iroko
Motor
do
movimento,
transformao, ancestralidade e
temporalidade. O sangue vivo da
terra, que se movimenta irascvel e
incontrolvel. No se doma o
tempo. A idade que no se mede.
Oya/Ians
Divindade guerreira dos ventos, dos Ians uma divindade, uma mulher
relmpagos e das tempestades, guerreira, senhora dos ventos,
tambm cumpre a funo de tempestade. uma mulher que vai
encaminhar os espritos mortos para luta. (Ia L. de Oy. Informao
onde for devido. A grande guerreira verbal).
dos vendavais.
Oba
Lutadora destemida, smbolo de
energia e muita fora. Grande
guerreira-caadora.
Oxum
Com sua graa e encantamento, Oxum a dona do ouro, rainha das
distribui riquezas e prosperidade. guas doces, a me que d tudo pelos
Senhora da fertilidade
seus filhos a partir de onde ele
merea. um orix muito cuidadoso,
o orix que por seu filho faz tudo que
ele precisa. De acordo como ele vai
com ela, porque se a pessoa no for
do jeito que ela quer, a garfiada dela
fatal. (Iarob de Ogum. Informao
verbal).
Logun-Ed
Partilha com a humanidade a Orix de dualidade, com o pai, astuto
alegria e a energia da jovialidade. caador, com a me, meigo e doce.
o caador menino que at velho (risos). Por isso, muitos confundem
respeita. O jovem e sedutor caador sua sexualidade. (Egbomi/Ialorix de
dos rios.
Ew. Informao verbal).
SAUDAO
Atot
Arrobobi
Saluba
Kaw-Kabiysl
Iroko i s Eer
Oba xir
Ore yeye
141
SAUDAO
Ri r
Od ya
pa Baba
Para alguns candomblecistas, Air um tipo de Xang. Na casa lcus da pesquisa, ouvi algumas pessoas da
religio se referirem ao orix do babakeker pelo nome de Xang confirmando essa opinio.
142
funes
definidos,
os
sacerdotes
sacerdotisas,
chamados
Para esta jovem, ser Iyaloris significa ser responsvel pela vida de outras
pessoas, mesmo se esta ajuda for acertada ou no. [...] como se fosse uma segunda me.
Como egbomi, tambm desempenha funes de irm mais velha, como afirma:
Eu t aqui na roa, eu sou responsvel por mim e por todos os meus irmos mais
novos. [...] Eu, por enquanto, eu t junto com o baba Domingos pra..., o babakeker,
no caso, pra aprender o mximo que eu puder. Tudo que eu aprender j vai servir pra
quando eu abrir a minha casa. A eu tenho que cuidar de cozinha, cozinha do
140
Odu eg significa maioridade, eg 7, quando o ia completa a maioridade. Quando a gente vai receber o
odu eg eles sentam a gente no barraco pra mostrar que ns chegamos a nossa maioridade, ns no precisamos
mais t sentado no cho, a gente t sentando na cadeira em frente a todo mundo, a comunidade
(Egbomi/yalorix de Ew. Informao verbal).
143
candombl, tenho que cuidar dos meus irmos quando, digamos, tem mais jovens,
a, se algum fizer uma coisa errada, a culpa no dele, a culpa minha, porque eu
sou mais velha e no disse que no podia fazer, ento, eu cuido dos meus irmos, eu
tenho que ver se a roa t limpa, eu tenho que ver se meu pai t bem, eu tenho que
conscientizar os meus outros irmos pra eles comearem a pensar como eu penso,
mesmo sendo jovens, comearem a ter uma conscientizao de egbomis, que, quanto
mais cedo voc consegue pensar como mais velho, mais melhor, melhor pra voc
quando voc completar seus sete anos. (Informao verbal).
Ser egbomi ter passado, no mnimo, sete anos de iniciao, pois, aps esse
tempo, realizada uma cerimnia (odu eg) onde o(a) ia (iywo) receber o igb-se
(alguns elementos e objetos rituais) e passar condio de egbomi (gbomi), que significa
meu mais velho, meu parente mais idoso. desse grupo que sairo as Iys e Babas do
terreiro. Ressalto tambm que sem a cerimnia o(a) ia, mesmo com mais de sete anos de
iniciado(a), no poder sair de sua condio inicial.
Outra funo importante exercida por um jovem desta pesquisa o de babalax.
De acordo com este em questo, esse o posto que se d ao sucessor da casa de candombl.
Este auxilia o babalorix nas funes internas da casa, coordena e ensina os outros adeptos.
Para Santos (2008), a Iyaloris , ao mesmo tempo, Iylse, ou seja, a me do
as. Esta a portadora do mximo de as do terreiro. Todavia, em um dos terreiros que
visitei, ao encontrar a sua verso masculina (babalas), identifiquei que eram funes
separadas babaloriss e babalass.
Igualmente ao sucessor da autoridade mxima do terreiro, participou tambm um
jovem que tem a funo intitulada pela maioria dos adeptos de Pai Pequeno, o babakeker de
Air. Para ele, o pai pequeno auxilia o pai-de-santo e, em momentos que o mesmo esteja
ausente, ele se responsabiliza por todas as funes. a segunda pessoa da casa, seria como
um vice-presidente (Informao verbal).
De acordo com Augras (2008), o pai pequeno e/ou a me pequena (iy keker)
tem a funo de presidir as iniciaes, orientar as ekedis, ogs, egbomi e ias. Quem est
nessa funo provvel candidato(a) para suceder a me ou pai-de-santo do terreiro.
Entre as pessoas que integram o terreiro esto as ekedis e os ogs; estes(as) no
incorporam os orixs, cabendo a eles e elas o cuidado com os(as) filhos(as)-de-santo cujos
orixs se manifestam. So verdadeiramente os irmos e irms mais velhos(as), autoridades no
terreiro.
As ekedis so consideradas mes e tm as funes de cuidar das oferendas,
preparar as comidas para os rituais e festas, vestir e paramentar os adeptos em transe, realizar
os atos votivos. Elas so designadas pelos orixs que as escolheram, como presenciei algumas
144
vezes no terreiro em dias de festa. A jovem Iarob de Ogun tem como orix de cabea Oxum,
mas foi designada por Ogun a exercer esta funo. Iarob a mesma funo de Ekedi.
Augras (2008, p. 187) descreve o momento em que acontece a investidura das
ekedis que da mesma forma ocorre com os ogs.
Isso costuma acontecer no dia da festa dessa divindade: o orix, manifestado em
uma das suas filhas, dirige-se, danando, at o lugar onde se encontra a pessoa da
assistncia que deseja distinguir. Sada-a, abraa-a, puxa-a para danar com ele. O
orix e a eleita do assim a volta completa do barraco. [...] A eleita ento
suspensa141 deve dizer alto e bom som se aceita o cargo de ekedi. Em caso
afirmativo, dever mais tarde submeter-se a uma espcie de processo iniciatrio,
findo o qual ser publicamente confirmada, em grande pompa e festa.
A Ekeji de Ogun, jovem filha de Oxum que participou desta pesquisa, apresenta-se
como Iarob142, porm mais conhecida como Ekeji a me dos orixs, dos ias que to
iniciando dentro da casa, dentro do Il As. Para ela:
Ekeji no s pra cuidar do orix, [...] Ekeji pode ajudar o pai-de-santo, pode ajudar
seu irmo na hora da funo da roa, [...] porque muitas coisas acontecem. [...] Mas
eu acho assim, no meu pensar, eu sou Ekeji, eu j limpei os ibs dos orixs, j
organizei a roupa dos orixs, eu no vou me sentar e ver meus irmos trabalhando,
eu vou e ajudo a eles nos servios que eles tm. Na hora do candombl, um orix de
fora virou, eu, por ser me, no s do orix do meu pai-de-santo, sim ser me de
todos os orix, que Ekeji e Iarob significa isso: me do orix. No significa qual,
daquele... dos orix que to ali presente. Ento, posso pegar orix, botar um lao pra
enfeitar, na hora do run, que a hora que ele vai danar, vou l, dano mais ele, s
vezes, a prpria pessoa no sabe danar e o orix vem e fica com dificuldade
naquela dana, eu tenho por obrigao de ter toda a pacincia, chegar e dizer como
que dana, ele, aquilo mais, como se fosse assim... entendeu?... uma criana. Que
todo orix, pra mim, uma criana, que ele vai aprendendo... como eu aprendo com
ele e ele aprende comigo. Porque, se eu disser: faa isso, ele vai l e faz, ento,
praticamente o qu? Movido quase por mim. Ele tem o respeito por mim mesmo
que eu tenho o respeito a ele ao mesmo tempo. Oxum minha me e, ao mesmo
tempo, eu sou me dela. Porque sou eu que banho ela, oc no candombl, mas na
lngua mais popular banhar, que limpar o ib. Na hora que ela vai andar sou eu
que visto ela, eu que arrumo ela, a melhor roupa pra ela e tudo. (Informao verbal).
141
De acordo com a autora (AUGRAS, 2008), a pessoa eleita suspensa numa espcie de cadeirinha feita com
os braos das ekedis. Acredito que por esse motivo que se chamam cargos suspensos. Contudo, nos terreiros
em que fiz a pesquisa, nunca presenciei tal feito. Geralmente, a pessoa ficava em frente aos atabaques sentada
numa cadeira especial.
142
Onde esta jovem foi iniciada, no Il Alaketu Ax Ogun Layor, da nao keto; este cargo era chamado de
iarob e no de ekedi.
145
De acordo com os jovens, o dia de funo quando se realizam atividades direcionadas aos orixs e que
geram festas. [...] um amal nas quartas-feiras, um eb na sexta, essas so as funes. [...] uma funo do Ogun,
funes do Ogun sete dias antes da festa comear. Comea os presentes do Ogun, da or, do Ogum na quintafeira. Que a comida? a comida do Ogun, vai pro jogo, pra ver o que o Ogun vai querer comer naquele ano,
aquelas histrias todas. A, no sbado, suspende, d os Orum dos Ex, do candombl, ou no sbado de manh d
o Orum dos Ex pra sbado noite ir festa (Informaes verbais fornecidas pelos(as) jovens participantes da
pesquisa).
144
Aqui o jovem se refere cozinha do terreiro.
146
do cdigo de barra da gente pra saber que a gente t voltando, a gente faz isso ao
entrar e ao sair da roa. como se a gente dissesse: , t voltando, t na roa, a
minha energia. A gente passa por isso, toma nosso banho de ervas, que um banho
pra purificar a energia da gente, que a gente vem da rua, trazendo muita coisa, muita
energia negativa, a gente passa por esse banho pra purificar. Em seguida, faz nossos
deveres no barraco. O barraco que o lugar onde tem as festas. A gente d de
cabea pra Xang que o dono da casa, pra dizer Xang, eu tambm estou em casa,
voltei. E a comea vrias coisas.
[...] O Ia, numa roa de candombl, ele tem que ser tudo, ele tem que ser aquele
Severino, personagem, tem que ser mil e uma utilidades, Bombril.
[...] Pode ser por iniciativa prpria ou os mais velhos, comeando pelo pai-de-santo.
O Babalorix vai dizer: , tem tal coisa a ser feita. A gente vai l e faz, e se no
souber, a gente diz: Ah! eu no sei fazer!. Ele vai dizer uma pessoa que saiba pra ir
junto com a gente e terminar a tarefa ou alguma pessoa frente da casa, como o
Babakeker ou a esposa dele que a nossa... Iarob.
[...] Por iniciativa, tambm posso chegar e ver que aqui t com esse problema de
manga e eu ver que tem telha quebrada. Eu posso chegar, por livre espontnea
vontade, e l tirar os cacos de telha e retelhar ou posso esperar tambm que algum
me mande que eu faa esse dever. (Ia de Ogum) (Informao verbal).
Para ser Ia tem que ter desprendimento, coragem e estar disponvel para
aprender. Esses(as) jovens desempenham tarefas domsticas que nem sempre fazem em casa.
Servios de construo civil, como pintar, rebocar paredes e retelhar um compartimento so
constantes atribuies destes jovens, alm das atividades religiosas. Eles aprendem fazendo
ou vendo outros fazerem, existe sempre aquele mais velho (em experincia) para ensinar o
trabalho.
Ressalto a fala do Ia de Ogum, que descreve o seu momento de chegada no
terreiro e suas obrigaes pessoais com os orixs (guardies, orix protetor, o dono da casa).
Para ele, ao passar a porta de entrada do terreiro, se conecta com essas divindades atravs da
leitura do cdigo de barra de sua energia e todas as atividades esto direcionadas a
purificao e equilbrio da mesma.
Deste modo, analisando as falas dos(as) jovens, percebo que as tarefas dirias no
terreiro no se diferenciam pela idade cronolgica, mas pela idade religiosa, pela hierarquia.
a funo hierrquica que define quais atividades cada um(a) deve desempenhar, contudo, os
depoimentos revelam que estas atividades no se superpem uma sobre a outra, mas se
complementam, pois o trabalho dos ias reflete no das ekedis e de outros cargos.
Quanto aos abis, que so os frequentadores dos candombls que no foram
iniciados(as), estes cultuam o dono da sua cabea nos dias prescritos e participam dos ritos
que so permitidos a eles, como os pblicos. Ao decidirem pela iniciao145 na religio, fazem
inicialmente o ritual do bori que significa dar comida ao ori (cabea). O objetivo desse ritual
145
De acordo com Augras (2008), a passagem para a categoria de ia no depende muito da prpria vontade,
sendo esta determinao dos orixs.
147
[...] alcanar o equilbrio para sua individuao e para seu centramento (BOTELHO, 2005,
p. 42).
Este ritual consiste em oferecer alimentos cabea preparando-a para receber,
por meio do transe mstico, a divindade protetora de cada indivduo. Apesar do bori marcar,
de certa forma, o acesso da pessoa ao universo do candombl, no significa que esta tornou-se
um(a) iniciado(a) propriamente dito, pois isso requer outras diversas obrigaes.
Para descobrir qual orix o protetor da sua cabea, necessrio a realizao do
jogo de bzios146, que feito por iyalorixs/babalorixs. Atravs deste recurso divinatrio de
comunicao com os orixs, revela-se o od (destino) do consulente e indica as suas
necessidades.
O ritual de iniciao no candombl considerado o momento em que o abi que
se torna ia morre para os valores comumente veiculados em nossa sociedade e renasce para
o mundo dos valores ancestrais dos orixs. Assim, necessrio, antes e depois da festa
pblica de iniciao, uma espcie de resguardo (tambm chamado preceito), para que o(a)
nefito(a) possa se adaptar nova vida e buscar o equilbrio, reorganizando seu mundo ao
novo contexto apresentado pela religio.
Concordo com Santos (2008, p. 38), ao afirmar que [...] atravs da iniciao e de
sua experincia no seio da comunidade, os integrantes vivem e absorvem os princpios do
sistema. E [...] esto unidos no apenas pela prtica religiosa, mas, sobretudo, por uma
estrutura scio-cultural cujos contedos recriam a herana legada por seus ancestrais
africanos.
O ritual de iniciao, bem como os demais rituais no candombl, so bastante
onerosos e muitos adeptos da religio no tm recursos para realizarem. O que acontece, e que
observei durante a pesquisa, o apadrinhamento ou a ajuda ao() filho(a)-de-santo.
Geralmente, algumas pessoas ajudam doando os animais, objetos, roupas, entre outras coisas
para a realizao da festa. No terreiro Il As Ya Omi Arin Ma Sun, era costume ver as
pessoas doando alguma coisa para as festas, eu mesma participei deste movimento.
Acerca da estrutura fsica dos terreiros de candombl, esta se configura de
diversas formas de acordo com suas naes de origem, pelas condies materiais de cada casa
ou pelo processo de urbanizao das cidades onde esto localizados.
146
Aprendi, nos diversos jogos de bzios que fiz, que o jogo indica um caminho e faz uma recomendao para o
momento em que estamos vivendo. No uma camisa de foras que deve ser seguida risca, pois temos livre
arbtrio.
148
Santos (2008) descreve que, no terreiro, existem dois espaos com caractersticas
e funes diversas: um espao urbano que compreende as construes do uso pblico
(barraco, cozinha, banheiros, conjunto de habitaes temporrias ou permanentes para os
iniciados e suas famlias) e privado (o runko, os quartos onde esto os assentos dos orixs)147;
e um espao mato onde esto as rvores, as ervas, e uma fonte de gua.
Na maioria dos terreiros que visitei, observei que esta diviso dos espaos (urbano
e mato) no algo to bem definido assim. Em muitos casos, confunde-se onde comea um e
onde termina o outro.
Cossard (2011, p. 71) apresenta um tipo de organizao espacial a partir da
tradio Ketu.
Os tipos de casas e construes de um terreiro podem variar, mas sempre
obedecero a uma estrutura determinada. Todos devem ter o Exu no porto; o
barraco; a casa de Obaluay e, pelo menos, uma casa de Orix, com um espao
reservado para Oxal; um quarto para recolher as yaws; e a cozinha onde so
preparadas as oferendas.
Alm desses espaos, ainda existem nos terreiros um barraco, que geralmente
est localizado na parte central da casa, sendo destinado para as festas que acontecem no
terreiro. Nas laterais deste espao ou de frente existem umas cadeiras ou bancos para os
visitantes e, ao fundo, localizam-se os atabaques, que tambm so considerados seres
sagrados. No centro do barraco existe uma cavidade fechada com uma tampa de cimento
que, segundo os membros da religio, onde se localiza o assentamento da casa, o seu ax.
Todas essas estruturas hierrquicas, litrgicas e fsicas esto na base das
religies afro-brasileiras, porm, no so fechadas, variam de acordo com os lugares e as
interpretaes destas tradies, pois, dentro de uma mesma nao, como Ketu, visualiza-se
formas diversificadas de se viver o candombl.
A histria do candombl no Cear bastante recente e a historiografia acerca da
temtica escassa. De acordo com Bandeira (2009), na maioria das obras dos chamados
clssicos das religies afro-brasileiras, no se constatam referncias ao nosso estado, sendo
o trabalho de Ismael Pordeus Jnior (1993)148 uma exceo.
Acredito que o motivo do desconhecimento da vivncia das religies de matriz
africana em nossas terras deve-se pincipalmente pela histria de invisibilidade que a
147
um espao, geralmente um quarto, onde se consagrado a cada oris e tambm para o oris de cada
integrante do terreiro. Contm objetos e vasilhas (quartinhas) especficos, que expressam os diversos aspectos do
oris cuja natureza simbolizam.
148
Este antroplogo cearense realizou uma pesquisa sobre a Umbanda no Cear, publicando em 1993 o livro
intitulado: A magia do trabalho: macumba cearense e festas de possesso.
149
149
Aqui, irei me deter apenas capital e regio metropolitana do estado, porm, os terreiros de candombl
esto espalhados por todo estado, de acordo com o depoimento dos babalorixs com quem conversei, com o
estudo do prprio Cludio Bandeira (2009) e outros pesquisadores, como Domingos (2011) e Sousa (2010).
150
Com o passar do tempo e o processo de hegemonia dos candombls de nao Ketu baiano, denominado
nagocracia, e, principalmente, com a instalao de candombls Ketu no estado, o Il Igba foi sendo questionado
acerca de sua real nao sendo muitas vezes taxado de ax de salada (BANDEIRA 2009, p. 70).
150
Com este fato, o candombl cearense inicia uma nova etapa. instituda no
Oloyob uma nova liderana me Maira de Ew, uma menina que foi iniciada com um ano e
nove meses, sendo preparada e educada dentro da religio dos orixs para ser a sucessora da
me. Ela fruto de uma gerao que nasceu dentro do candombl, no migrando de uma
religio a outra at ser iniciada e viver os preceitos do candombl (BANDEIRA, 2009, p.
97).
Apesar de ter uma histria relativamente nova em nosso estado, o candombl j
possui duas ou trs geraes de adeptos que nasceram na religio. Esses(as) praticantes
vivenciam e percebem sua religio diferentemente daqueles que j se iniciaram adultos?
Como se configura as relaes entre essas geraes? Como so tratados esses(as) jovens que
so considerados velhos(as) na religio?
Nos grupos de produo de saberes e nas entrevistas realizadas com alguns
colaboradores, problematizei acerca de como conheceram e se aproximaram da religio, sua
motivao de entrada na mesma, que funes/cargos so responsveis e que aprendizados
adquirem ao vivenciarem cotidianamente o candombl. Tambm foi em grupo que eles
produziram seu desenho do antes e do depois de sua iniciao ao candombl.
151
fizeram sua iniciao no perodo da adolescncia; e, por fim, os(as) jovens iniciados depois
dos 18 anos.
Dentre todos(as) os(as) jovens, o babalax de Xang foi o nico que nasceu em
uma famlia candomblecista. Seu av o babalorix do terreiro a que pertence. Foi por meio
do jogo de bzios que este jovem foi escolhido o babalax do Il Ax Olojudol.
Ao ser indagado sobre o motivo de sua iniciao ao candombl, o mesmo afirma
que foi por motivao espiritual, mas ser de uma famlia praticante do candombl influenciou
sua deciso, afinal ele [...] tambm tinha que se encaixar. [...] Sabia que ia permanecer na
religio porque faz parte de sua ideologia e de sua famlia, sabe como funciona, seu pai
educou assim dentro da religio.
Esse relato comunga com o pensamento de Rabelo (2008, p. 192), ao afirmar que
a herana um elemento estritamente ligado ideia de obrigao. Esta aparece [...] na
formulao de que a afinidade com o candombl e com os orixs no simplesmente uma
caracterstica da pessoa singular, mas um trao de sua famlia, que a distingue e singulariza
enquanto portadora de uma obrigao herdada [...]. Vem de bero.
Apesar de a famlia ter sido fundamental para a escolha da religio deste jovem,
seus planos de futuro diferem do escolhido pelo orculo de if, de sua funo religiosa e dos
ideais de continuidade da comunidade. Mesmo estando na linha de sucesso da
responsabilidade de conduzir o terreiro quando o babalorix atual fizer sua viagem151, o
jovem filho de Xang ir delegar esta tarefa ao babakeker da casa, o segundo na linha de
sucesso. Como o prprio afirma:
Eu pretendo viajar, conhecer bem o pas, conhecer fora do pas e conciliar minha
profisso com a religio. No quero trabalhar aqui. Aqui no Cear. Quero trabalhar
fora e conciliar os dois. [...] No meu caso, se eu no tiver aqui, o Domingos, que
coordena a casa, a quando eu comear, por exemplo, ter frias, ter um espao, a eu
volto, passo um bom tempo aqui, a volto, mais ou menos assim. (Babalax de
Xang. Informao verbal).
151
Expresso utilizada pelo prprio jovem para designar a morte de seu av, babalorix deste terreiro.
152
hora que eu quiser d certo, mas eu quero primeiro me estabelecer como iyalorix
dentro da minha casa. (Informao verbal).
Quando comecei a frequentar aqui a casa e foi logo quando minha me iniciou no
candombl, a no incio eu no gostava muito no, por que minha famlia toda
evanglica, catlica, tal, e quando minha me comeou a participar da casa, a minha
av ficava falando: vai beber sangue, comer galinha crua e essas coisas me
assustavam, a eu evitava at de vir aqui, vinha at no porto, deixava a roupa da
minha me, at que um dia eu resolvi ficar para uma festa, a resolvi ficar, ficar,
vinha passar final de semana, vinha, passava a semana, passei as frias, a passei um
ano, assim, digamos conhecendo, a eu peguei fiz amizade. (Egbomi de Ewa.
Informao verbal).
Eu acompanhava minha me pro centro esprita, de umbanda, quer dizer. Ela j tem
30 anos de umbanda e ela, eu sempre acompanhava, levava eu, ficava na porta
olhando, a ela macumbeira e tudo, pega do caboco e tudo, [...]. Ela s me levava
mesmo pra mim no ficar s em casa, a pegava... ela no queria, j bastava ela e
minha outra irm mais velha. Ela no queria que eu entrasse pro candombl porque
uma religio muito rgida entendeu? (Iarob de ogum. Informao verbal).
Foi quando o meu pai se iniciou no candombl [vinha com o pai dele], eu queria
aprender, curioso, [...] o candombl, eu tava frequentando aqui pra ver se eu queria
isso mesmo, a decidi. [...] Eu assisti os candombl daqui, eu achava bonito e tudo,
a eu peguei: pai, eu t a fim de entrar, eu acho muito bonito... [...]. (Jovem
oxaguian Il ax Olojudol. Informao verbal).
152
153
O primeiro e terceiro relatos mostram que os pais traziam seus filhos, que
acabaram se iniciando por causa da prtica de seus genitores, enquanto o segundo relato se
difere, pois a me (que tinha dupla pertena religiosa umbanda e candombl), levava a filha
por necessidade, mas no queria que a mesma seguisse seu caminho, por conta da rigidez da
religio.
Percebo aqui, pelas falas, que apesar de irem com seus responsveis ao terreiro, se
relacionando com as pessoas e conhecendo o universo em questo, no houve, por parte dos
parentes, doutrinao ou convocao a uma prtica candomblecista. E, em alguns casos, os
prprios pais (aqui no caso, as mes) recusavam a iniciao de seus(suas) filhos(as) na
religio.
De acordo com Rabelo (2008), o candombl visto como uma religio muito
radical que exige responsabilidade, entrega (sujeio mesmo) e sacrifcio pessoal e financeiro,
alm de produzir marcas sobre a identidade de cada candomblecista. Isso ajuda a entender a
resistncia e mesmo a recusa explcita de muitos pais a verem seus filhos envolvidos no
candombl, embora eles mesmos muitas vezes apresentem alguma forma de vnculo com a
religio (RABELO, 2008, p. 190).
Alm destas jovens, destaco tambm que, entre os sujeitos da pesquisa, h uma
heterogeneidade peculiar, pois nem todos que foram apresentados inicialmente ao candombl
atravs da famlia eram crianas. Dois adolescentes que se iniciaram com 15 e 16 anos foram
levados ao candombl pela tia e a me.
Apesar de afirmar que no incio no queria que o filho de 16 anos entrasse na
religio, a me do rapaz ficou feliz por no ter mais que se preocupar com as atividades
noturnas do filho, que no obedecia mais os horrios estabelecidos e se envolvia em conflitos
com a polcia por causa de pichaes. Mesmo tendo sido evanglico antes, ao ser indagado
sobre o motivo de sua entrada na religio, ele garante que entrar no candombl era uma forma
de deixar as atividades ilcitas que tinha, como pichar os muros nas ruas, por exemplo.
Eu conheci o candombl por causa da minha me. Ela mandou eu vir numa festa, eu
no queria vir. Eu vim, eu acabei bolando de santo. (Antes) eu fazia muita coisa. [...]
porque ela (me) me chamou pra vir e eu chamei ela pra ir pro encontro da igreja,
a ela foi, a ela me chamou pra vir pra c, eu vim. Passei mal e bolei. Ela foi pra
minha igreja e depois eu fui pra dela.
[...] porque eu achei interessante, mudei pra essa religio e tinha que sair dessa vida
(porque o candombl no compatvel com a vida que levava). (Ia de Oxagui.
Informao verbal).
Foi uma troca de religio, ele no conseguia segurar ela l, ela veio segurar ele aqui.
(candomblecista do Il As Iya Omi Ari Ma Sun. Informao verbal).
154
Dessa forma, o convite ao terreiro foi uma espcie de convocao para conhecer
esta prtica religiosa e uma possvel mudana de comportamento. Como diz a me do jovem:
At mesmo eu achei ele muito novo pra seguir essa religio, eu no sabia se ele
queria, se ele ia se arrepender mais tarde. Eu trouxe ele porque a minha me no ia
ficar com ele na noite da festa, a ento ele ia pra igreja, eu disse voc vai mais eu.
Quando eu vim, ele comeou a passar mal. E eu: Jon, v l pra fora, l pra fora.
No queria que ele ficasse, porque mais tarde ele iria me culpar que eu tinha trazido
ele e ia se arrepender, mas at a gora, graas a Deus, ele no se arrependeu no. Mas
quando eu trazia ele, ele disse: me se for esse negcio como macumba, eu no
quero; negcio de bebida, de cigarro, gargalhada ele no gosta. Porque eu
frequentava tambm a Umbanda, h 16 anos que eu sou da Umbanda e ele nunca
foi, porque ele no gostava.
A ele gostou, eu disse: no, Jon no tem bebida e voc vai pra olhar, se voc
gostar, voc fica, e no gosta, voc volta pra sua religio, mas eu no t chamando
pra voc entrar no, voc vai pra no ficar no meio da rua. A eu trouxe ele, e ele
comeou a passar mal, e eu comecei a chamar por ele. A pronto, quando eu fui
embora, ele quis ficar na casa, ele passou ainda uma semana, eu fui embora e ele
disse: no, me, vou ficar aqui. Ele gostou, ele viu que no era aquilo talvez o que
ele pensava. (Informao verbal).
153
Entrar no mesmo barco significa que entraram juntos para o runk em virtude da iniciao. Estes mantero
uma relao estreita visto que so irmos de barco. Tambm estabelecida uma hierarquia para o barco de
acordo com a ordem de sada, do mais velho para o mais novo, (a saber: Dofona, Dofonitinho, Fomo,
Fomotinho, Gamo, Gamotinho, etc ) e com a ordenao especfica dos prprios orixs. Em um barco s pode
haver at sete pessoas.
155
L perto da minha casa tinha o ogan Gabriel, conheci ele e nem sabia que ele era da
religio. [...] Eu conheci a casa por ele, mas desde pequenininho que eu j era,
frequentava canto diferente, meu pai fez santo em outra casa de candombl l na
Leila, a eu era pequenininho, num sabia de nada, eu num conhecia nada e andava
por l, a fui morar l na casa perto desse ogan, a eu conheci ele, a comecei a andar
na casa dele, a quando foi que ele me disse: ei, m, tu vai l na casa de candombl
mais eu, a eu vim aqui no primeiro dia, cheguei, conheci o pai, conheci todo
mundo, fui vindo, passei um final semana, foi, eu acho que eu passei uns 2 anos pra
fazer santo, abian, a passou 2 anos, a eu peguei e fiz santo em 2010. (Ia de
Obaluai. Informao verbal).
Eu fui me aproximando do candombl, por que justamente eu entrei no mundo da
dana, meu professor ele era abian [...] fazia parte do grupo e vim para c atravs de
um amigo do professor de dana que era percussionista, ele cunhado... presta
ateno como foi a histria, o cunhado dele j tinha feito santo na casa e trouxe ele,
ele se confirmou e trouxe meu professor de dana e o professor de dana trouxe a
gente e a gente j trouxe mais gente, e foi assim que a gente chegou aqui. (Ia de
Ogum. Informao verbal).
156
pesquisas
para os(as) filhos(as), todavia, isso no significa que os(as) jovens negavam a religio.
Estes(as) buscavam outras religies e suas escolhas passavam por vrias motivaes:
pessoais, influncia dos amigos e de agentes religiosos.
Percebo tambm com este e outros relatos155 que ouvi de alguns(mas)
participantes desta pesquisa, que o trnsito religioso no acontece apenas da sada do
candombl para as igrejas evanglica/crists, o contrrio tambm ocorre. Seria essa uma
154
Pesquisas como o Censo 2000, Perfil da juventude Brasileira (2005), Jovens do Rio (2001). Posso acrescentar
a estas pesquisas que Novaes analisou o Novo Mapa das Religies (2011) que tambm corrobora com este
pensamento.
155
Participaram desta pesquisa pelos menos trs jovens que foram evanglicos e passaram para o candombl
(Babakeker de Xang, Ia de Ians visitante e Ia de Oxagui). Todos do terreiro Il As Iya Omi Ari Ma Sun
157
As falas dos(as) jovens revelam esta busca de sentido religioso. Observo entre
eles(as) o que Novaes (2011, p. 145) identifica como um entrelaamento entre as trs
tendncias presentes na experincia religiosa juvenil, a saber: a) forte disposio para o
trnsito religioso e para novas combinaes sincrticas; b) diminuio da transferncia
religiosa intergeracional e nfase na escolha individual; c)ampliao das possibilidades para o
desenvolvimento de religiosidade sem vnculos institucionais.
Para a autora acima citada, entre os(as) jovens que integram o Grupo dos Sem
Religio esto o candomblecistas que se apresentam como tal frente aos preconceitos e
perseguies sofridas pela sua religio ou tambm pela vivncia do duplo pertencimento
religioso (at ento, antes de se declararem sem religio, eles se identificavam como
catlicos e do santo). E acrescenta:
Podemos levantar a hiptese de que esta gerao [...] pode estar engrossando as
fileiras dos sem religio sem deixar de frequentar os centros espritas, da umbanda e
do candombl. Para tanto, no que diz respeito s religies afro-brasileiras, contribui
a no-exigncia de vnculos institucionais para todos os frequentadores de terreiros e
centros. (NOVAES, 2011, p. 142).
156
De acordo com o Novo Mapa das Religies (2011) houve um aumento considervel nessas duas ltimas
dcadas de pessoas que se declararam sem religio e de evanglicos pentecostais, contudo o contingente maior
est entre os jovens.
157
Este jovem estava visitando a casa de candombl e tinha se estabelecido por um ms. Durante a pesquisa
participou do primeiro momento no dia 08.03.2014. Para no confundir com outros ias de Ians, chamarei este
de ia de Ians visitante.
158
159
muitas drogas lcitas, como bebidas alcolicas. Para ele, o candombl foi uma mudana de
vida. O ltimo jovem citado entrou na religio porque estava marcado para morrer por causa
do trfico de drogas e achou que se iniciando no candombl se afastaria da criminalidade.
interessante notar que os mesmos jovens possuem mais de um motivo para
praticarem esta religio, como no caso do Ia de Obaluai e o Babakeker de Air, que alm
das causas expostas acima, tambm se iniciaram por problemas familiares, o primeiro por
causa da separao dos pais e o segundo por no aceitarem sua orientao sexual, alm destes,
o ia de Oxagui do Il As Olojul tambm passava por problemas familiares, como brigas
entre os pais, por causa da religio.
Por fim, destaco a motivao cultural e religiosa que chamou ateno dos ias de
Ogun e de Iemanj. O primeiro afirma que se iniciou por ter se apaixonado pela religio e
pelo que ela proporcionava de conhecimento. O segundo diz ter sido conquistado por sua
orix e por ter gostado da religio.
Ouvi, algumas vezes, pessoas dizendo que no candombl ou se entra pela dor ou
por amor, contudo, percebi nas falas dos(as) jovens que existiam diversos motivos para a
iniciao na religio.
Dessa forma, para entender como vivam anteriormente os participantes
candomblecistas e como estavam depois da entrada no candombl, pedi para que os(as)
mesmos(as) desenhassem seu autorretrato, duas imagens, uma mostrando o antes, e a outra o
depois de ter se iniciado no candombl. Esta atividade teve tambm a inteno de desvelar as
mudanas ocorridas com esses(as) jovens aps sua entrada na religio.
Apresento os autorretratos de alguns jovens que considero os mais interessantes
deste momento.
4.2.2.1 Egbomi/Iyalorix de Ew
Esta jovem se sentia muito sozinha e no tinha muitos(as) amigos(as). Era meio
revoltada, de briga e gostava muito de rock (ainda gosta). Tinha depresso e, como no
desenho, aparentemente era feliz, mas escondia certa tristeza por ser diferente ou se achar
diferente. Como ela mesma fala:
160
[...] eu era assim, exatamente desse jeito, cabelo assim, eu tinha realmente muitas
questo que eu queria saber, que eu tinha muita pergunta sem resposta, digamos
assim, por que, assim, meu convvio com a minha famlia sempre foi muito bom, eu
nunca perguntei muito e nunca fui de perguntar, era mais descobrir, digamos assim,
eu descobrir as coisas do meu jeito, dava um jeito de descobrir [...].(Informao
verbal).
Figura 16 autorretrato de
Egbomi/Iyalorix de Ew (antes
do candombl)
Figura 17 autorretrato de
Egbomi/Iyalorix de Ew (depois do
candombl)
Figura 18 autorretrato de
Egbomi/Iyalorix de Ew (depois
de se tornar uma autoridade no
candombl)
158
Duas pessoas fizeram trs desenhos, a egbomi/yalorix de Ew e o babakekr de Xang, pois passaram pelo
processo de iniciao e depois se tornaram autoridades, caso que no aconteceu com a Ekedi de Ogum e o
babalax de Xang que j se iniciaram recebendo cargos de responsabilidades conforme a hierarquia da religio.
161
Para esta jovem, quando se chega nessa fase, preciso ter muita responsabilidade,
pois tem que cuidar da vida de outras pessoas que confiam nela. E ressalta:
[...] querendo ou no, um choque, ainda mais pra uma pessoa da minha idade, a
gente sonha, ah!, vou trabalhar, vou alugar um quartinho, vou botar minhas coisas e
vou viver de msica, como todo jovem pensa. Mas no, eu t vendo que minha
realidade no vai ser essa, vou abrir minha casa, vou construir uma famlia, ter
filhos-de-santo. (Informao verbal).
4.2.2.2 Ia de Ogum
Para este jovem, antes de se iniciar, ele era branco, no entendia ou desconhecia
o que era ser negro e a cultura africana/afro-brasileira. No tinha responsabilidade com nada e
no queria ter. Vivia no mundo da lua. [...] pra mim, quanto mais nada tivesse pra mim fazer
mais nada eu fazia (Ia de Ogum. Informao verbal).
Tinha planos de futuro que, segundo ele, todos os jovens tm que so: ingressar
numa faculdade, construir uma famlia, se casar. Contudo, estava vivendo o auge da
juventude e s queria namorar. Depois que se iniciou, passou a se aceitar enquanto negro e
ter orgulho da sua religio. [...] eu passei a ter orgulho de mim, do meu santo, da minha cor,
passei a ver minha cor no como uma pessoa diferente, mas como uma pessoa privilegiada, de
ser negro, [...] hoje eu sou esse negro feliz que no tem vergonha nem da cor e nem da
religio (Ia de Ogum. Informao verbal).
Em seu segundo desenho, alm do rosto de um negro feliz, ele expe sua
religiosidade e sua pertena ao candombl e ao orix protetor, Ogum.
Atualmente, alm de construir uma famlia, o jovem pretende ser um egbomi
conhecido e ingressar numa faculdade, em que o curso ainda est se decidindo entre: Histria,
Sociologia e Filosofia. A escolha dos cursos deve-se influncia da religio em sua vida.
162
Figura 19 autorretrato de Ia de
Ogum (antes do candombl)
Figura 20 autorretrato de Ia de
Ogum (depois do candombl)
163
4.2.2.4 Ia D. de Oxum
A imagem desenhada por este ia tem dois planos, um embaixo, que representa a
sua vida antes de entrar na religio, onde mostra a praia, os coqueiros, barcos, o mar. Local
onde este jovem morava, o Grande Pirambu, prximo Barra do Cear.
No plano de cima do desenho, ele criou a imagem do barraco com os atabaques,
algumas cadeiras, seus irmos de santo e o mesmo trajando as vestes de sua orix, Oxum.
Ressalto que tanto o nome do terreiro, como a ornamentao dos atabaques e sua veste, tm
dourado como cor primeira, pois este terreiro tem Oxum como orix dona da casa.
164
Seus planos para o futuro so estudar, ingressar numa faculdade, ser algum na
vida.
4.2.2.5 Ia de Iemanj
Este jovem, que utiliza dentro do terreiro um nome masculino e fora dele uma
identidade feminina, antes de ser iniciar danava em grupos de swingueira e ax e se
apresentava como cover da cantora Beyonc. No plano superior de seu desenho, ele
representa esta vida atravs do palco e de sua representao cover. Segundo ele, tinha uma
vida desregrada, [...] bebia muito e gostava de farrear de quinta a segunda (Ia de Iemanj.
Informao verbal).
No incio de sua entrada no candombl, teve vontade de desistir, [...] de jogar
tudo pro alto e retornar a vida normal (Ia de Iemanj. Informao verbal), porm, ele
afirma que ir continuar na religio para mostrar as pessoas que capaz de conseguir chegar
onde quer.
No plano inferior de seu desenho est sua imagem como Iemanj, trajando o
vestido com as cores verde (claro meio gua), exatamente as mesmas cores de seu vestido
apresentado em sua iniciao.
165
Percebo, com estes relatos, que candombl foi um meio de mudana de vida para
esses(as) jovens. Seja da apatia, tristeza, desarmonia familiar ou do mundo do crime, do
preconceito, racismo e da homofobia para uma vida de planos, alegria e aceitao.
166
Todas as falas indicam que ocorreu uma transformao positiva dos(as) jovens ao
entrarem na religio. Contudo, nem todas as regras so levadas para fora do terreiro.
Conforme a fala do Ia de Iemanj que transexual, os fundamentos que versam sobre as
funes e comportamentos de gnero (masculino/feminino) ensinados dentro do terreiro so
vividos apenas neste espao religioso. Fora dele, a identidade de gnero vivenciada de
acordo com cada pessoa.
Dessa forma, vejo que o candombl uma religio que acolhe e inclui,
estabelecendo regras bem definidas baseadas no gnero. Apesar de aceitar as pessoas e sua
diversidade sexual159, as funes religiosas so dividas entre femininas e masculinas. Porm,
quando h uma necessidade, a regra relativizada.
Destaco tambm, as falas a da egbomi/iyalorix de Ew e do babakeker de Air.
Os dois evidenciaram que esta religio proporciona para os(as) que a praticam durante muito
tempo, privilgios, independente da idade. Embora sendo jovens, so considerados(as)
autoridades em seus terreiros, possuem cargos que acarretam responsabilidades, servio e
poder.
A pesquisa evidencia que o candombl uma religio de confirmao tnica,
contribui para a valorizao do ser negro. Como religio ancestral de matriz africana, combate
o racismo e o preconceito atravs da vivncia de uma cosmoviso africana e afro-brasileira.
Outro ponto interessante que todos(as) os(as) jovens possuem planos para o
futuro direta ou indiretamente interligados ao candombl. Para a maioria, a religio dita suas
vidas.
Os relatos dos Ias de Oxum e Obaluai apresentam a religio dos orixs como
uma prtica de converso que se parece com outras que conhecemos. Destaco neste trecho:
[...] eu era uma pessoa muito errada no passado, vivia mais pro mundo do que pra minha
prpria vida (Ia de Obaluai. Informao verbal).
4.2.3 A sabedoria dos terreiros o que se aprende debaixo das mangueiras, no barraco e na
cozinha da roa?
Com os livros partilhei um pedacinho da riqueza
imensa e que nunca se esgota representada pelo
Candombl. Mas o livro apenas um pedao, tudo o
mais acontece nos terreiros e na vida, no dia-a-dia no
s dos filhos e filhas-de-santo, mas de todo aquele e
aquela que ama o candombl. na vida em comunidade
que se aprende o candombl sejam crianas, jovens ou
159
167
adultos. preciso ter vivncia. Isso o livro no ensina,
nem eu ensino nos livros.160
(Me Beata de Yemonj)
Com estas sbias palavras de Me Beata, inicio este tpico que trata dos
aprendizados que jovens candomblecistas desta pesquisa adquiriram no decorrer de sua
vivncia religiosa. Ao falar dos livros que escreveu, a importante Iyalorix ressalta um dos
primeiros fundamentos que aprendi no Candombl o saber comunitrio. E acrescento
outro que se junta ao primeiro o saber comunitrio e vivenciado no cotidiano.
No tem como aprender a cozinhar uma comida, rezar um oriki, contar um it,
conhecer os rituais e sua linguagem sem vivenciar a religio. Em todas as visitas que fiz,
festas que participei e rituais que me contaram, eu aprendia um elemento novo do candombl.
Uma palavra, uma comida, um mito, um ritual. A nica coisa que no aprendi e, com pesar,
posso dizer, foram as danas rituais. Essas, eu tinha que ir todos os dias e pratic-las, isso eu
no consegui fazer, vivenci-las, trein-las. Pois, nas coisas do santo tudo se aprende
fazendo.
Concordo com Caputo e Passo (2007), ao afirmarem que toda religio tem um fim
pedaggico, educativo, formador, instrumentalizado pelo ritual e transmitido pelos mitos para
a garantia da preservao da memria cultural ancestral.
Os mitos, estas narrativas pedaggicas so transmitidas diariamente em todos os
cantos do terreiro pelos mais velhos na religio. Neste sentido, cito Beata de Yemonj (2008,
p. 13):
A vivncia no dia-a-dia das comunidades de candombl envolve o constante contar
de histrias, a transmisso de ensinamentos aos mais novos por meio das histrias
contadas pelos mais velhos. A esse contar dos itns, os mitos sagrados do
candombl, mistura-se a troca de histrias de vida dos filhos-de-santo, recriando, em
cada troca de narrativas, a intimidade de convivncia do povo de santo. Nos
espaos mais ntimos dos terreiros, onde os filhos-de-santo se renem para a
preparao de um grande festa ou para os rituais dirios, ressoam vozes que pouco a
pouco contam os cantos dos orixs e que contam contos do candombl.
De acordo com esta Iyalorix, alm dos mitos, as histrias dos povos africanos e
afrodescendentes so misturadas e (re)atualizadas nas contaes realizadas dentro da roa,
recriando, assim, uma convivncia baseada na intimidade do povo-de-santo e na tradio.
Essa tradio do candombl (religiosa, mtica, filosfica e ritualstica) mantida,
ressignificada e vivenciada no cotidiano dos terreiros e tem na sua base o saber oral. A
160
Esta epgrafe foi tirada do texto Cultura e Conhecimento em Terreiros de Candombl lendo e conversando
com Me Beata de Yemonj, de Stela Guedes Gaputo e Mailsa Passos (2007) (ver referncia bibliogrfica).
168
Outro
saber
importante
dito
pelos
sujeitos
desta
pesquisa
foi
161
Mais da metade dos(as) jovens pesquisados(as) se reportaram aos trs primeiros elementos.
169
Tive o prazer de conhecer e estar numa mesa de discusso acerca da juventude de terreiro com Jlio Braga,
em Arapiraca, no 1 Encontro da Juventude das Comunidades de Terreiro de Alagoas, promovido pela
Universidade Estadual de Alegoas (UNEAL), no dias 12 e 13 de outubro de 2013. (Ver apndice)
170
163
171
Percebi, em meu tempo de convivncia no terreiro, que o yorub era uma lngua
presente no cotidiano da religio. No propriamente como lngua corrente, mas como lngua
ritualstica, o que revela uma forma no s de mant-la viva, mas tambm de
criar/preservar/atualizar uma pertena tnico-social (CAPUTO e PASSOS, 2007, p. 98).
Rezava-se, cantava-se, louvava-se em yorub, todos os rituais utilizavam esta lngua. At as
comidas, os artefatos utilizados no terreiro e palavras do cotidiano, como gua, comida,
cabaa, cabea, fofoca, segredo, interdies eram pronunciadas do mesmo modo. Esta lngua
tambm nomeava os cargos da hierarquia candomblecista.
De acordo com os jovens, o respeito religio, o conhecimento dos preceitos e
dos orixs foram aprendizagens fundamentais para vivenciarem o candombl. Exemplo disso
ao de se resguardar o corpo e a mente e se cuidar por causa do orix, principalmente em
momentos de obrigaes rituais.
O Ia R. de Ogum ressalta o aprendizado acerca dos orixs. Para ele, o
candombl:
[...] uma religio que quanto mais a gente sabe, menos a gente conhece e mais quer
saber. Quanto mais eu sei que existiu histrias de algum orix, tal com o orix tal,
eu gosto de ir na fonte, eu gosto de perguntar, gosto de ver e saber o porqu. Mas a
quando eu entendo o porqu dessa, uma que eu j soube dois meses antes passa a
no fazer mais sentido, porque tem essa histria agora, primeiro Ogun vestia azul,
agora ele veste vermelho, depois voltou pro azul. A eu fico: Meu Deus. A a gente
vai querer saber, a vai e pergunta aos mais velhos, pesquisa em livros e essas coisas
todas. Ento, o candombl, ele faz parte do nosso dia a dia, at porque quando a
gente passa a ter conscincia de que os orixs so elementos da natureza, a gente
sabe que est cercado pelos orixs em qualquer canto que a gente esteja. Se um
vento que bate no meu rosto, no meu corpo, eu sei que Ians que t passando por
mim; se eu vou tomar banho no mar, eu sei que Iemanj t ali presente. Ento, a
gente passa a ver que o candombl t presente no s dentro da roa mas em todo
lugar que a gente v. (Informao verbal).
Pelo menos nos dois terreiros que colaboraram com esta pesquisa.
172
da roa, contriburam para que as moas e os rapazes aprendessem desde cozinhar, arrumar
uma casa, lavar, passar, cuidar de animais, at pintar uma parede, retelhar um barraco e
servir como ajudante de pedreiro.
Os(as) que frequentam o terreiro aprendem desde cedo os afazeres da roa, eu
mesma lavei alguns pratos quando ia visitar o terreiro. Vi tambm algumas vezes a relao
que as crianas tinham com os animais, eles tratavam bem e no tinham medo de nenhum
deles, ao contrrio de mim e de outras pessoas adultas que conheo, que pulariam longe de
uma galinha ou de uma vaca. Penso que, se a relao com os bichos fosse algo do cotidiano,
como o para essas crianas e jovens, o medo no existiria.
Apresento alguns relatos acerca dessa experincia de aprendizagem domstica:
Ele tem que saber pintar uma coisa, porque tem que saber levantar um muro se
preciso, tem que saber retelhar uma casa, mas tambm tem que saber costurar, tem
que saber fazer comida, cozinhar. A gente acaba aprendendo tudo numa casa de
candombl porque em que aprender. Quando no tem uma pessoa pra fazer a gente
vai l e faz. Ento, os deveres so muitos a serem feitos. (Ia R. de Ogum.
Informao verbal).
[...] trabalho pesado. Eu no varria, no lavava loua, a hoje eu fao, carregava
tijolo pra construir a roa. (Ia E. de Oxagui. Informao verbal).
[...] eu cheguei aqui, no sabia fazer nada, fui aprendendo, o pouco que eu aprendi,
aprendi muito bem, quem me ensinou, me ensinou muito bem e hoje t aqui.
Levanto parede, reboco, eu que fao essas coisas assim, aquele telhado, fiao, de
botar instalao de fios, essas coisa, hoje, eu fao tudo.
[...] , sem ter feito nada, curso de nada, a [Ia] a parede t entortada, desmancha e
faz ela reta. Ah, [Ia] pode precisar disso assim, assim, meu pai. A, hoje, eu j sei o
que que falta, o tanto de areia, o tanto de cimento. [...] De tudo, o arquiteto daqui
s o pai pequeno, hoje ele s o arquiteto. (muitas risadas) E tudo isso eu vou
aprendendo, cada dia que se passa eu vou aprendendo cada vez mais. (Ia D. de
Oxum. Informao verbal).
Hoje, nos dias atuais de hoje, quando eu t l na roa do meu pai, eu pego a
vassoura, varro a roa, limpo a roa todinha, lavo o barraco do Ogum, enfeito o
barraco do ogum. Quando tem or de santo, se no tem ogan, eu ajudo ele a tirar o
couro do bicho de quatro p, fazer o ax, fao, quando fao espero esfriar, abanado
esfriando pra ir pra, dependendo do orix, n, principalmente oxal, oxum e iemanj
que come frio, abanando pra ir deixar aos ps do santo. (Iarob de Ogum.
Informao verbal).
173
174
O candombl parece ser depositrio de um saber tradicional, capaz de levar as
pessoas a utar pelos seus direitos mais elementares.
[...] O candombl parece ser depositrio de um saber tradicional, capaz de levar as
pessoas a recusar a humilhao venha ela de onde vier.
O candombl parece ser depositrio de um saber tradicional, capaz de levar as
pessoas a promover a resistncia cultural como razo essencial de viver na
adversidade.
175
176
Entendo agora, na pele, o que Patrcia Birman falava
sobre as relaes triangulares165 e dos conflitos entre as
mulheres e seus parceiros, entre elas e suas entidades e
entre estes ltimos e seus parceiros.
(Dirio de campo da pesquisadora 07 abr. 2013)
diversas
formas
de
ser
mulher
homem,
de
significar
sua
hetero/homo/bi/transsexualidade.
Estudar estas categorias foi um desafio, pois no tinha muitas leituras alm dos
panfletos militantes. Conhecer o que pensam Butler (2007), Louro (2007, 2008), Goellner
(2003, 2010), Birman (1997, 2005), dentre outros(as) autores(as), modificou meu olhar,
minhas verdades acerca do gnero, dos corpos, das relaes entre eles e a sexualidade, caram
por terra ou foram ampliadas. Abordar estes conceitos movimentou e ainda movimenta meus
posicionamentos conceituais e, alm disso, modifica quem sou. Posso dizer que sou outra
mulher, outra pesquisadora.
Ressalto que, a princpio, no eram temticas visveis em meus objetivos,
contudo, o prprio campo desvelou mltiplas possibilidades de se viver o gnero e a
sexualidade marcados nos corpos dos(as) jovens do terreiro. Esta epgrafe parte de meu dirio
de campo e mostra minha experincia inquieta com este movimento que escapa s noes
essencialistas, universais e trans-histricas de homem e mulher (GOELLNER, 2003).
Como um jovem pode transitar entre a homossexualidade e heterossexualidade a
partir de um elemento invisvel, uma entidade csmica religiosa afro-brasileira? Um orix ou
caboclo? Essas relaes causam conflitos dentro do terreiro? Estas questes me perturbavam,
porque eu estava engessada dentro das caixinhas dos binarismos e marcadores de gnero/
sexuais que a sociedade nos ensina.
Em minhas leituras sobre a temtica, entendi que nada natural, tudo
naturalizado, nada est dado e toda verdade parcial, possvel de ser questionada, ser mulher
ou homem, homo ou heterossexual so produes culturais e discursivas. E estes processos
165
As relaes triangulares citadas em minha fala neste dia remetem aos estudos de Birman (2005), que cita um
denominador comum entre as vrias pesquisas com mulheres que incorporam. Estas [...] envolvem humanos e
no humanos, pessoas reais e entes irreais em relaes conjugais e/ou erticas (BIRMAN, 2005, p. 409).
177
166
Tomo como base os textos dessas autoras que so consideradas feministas ps-estruturalistas, pois elas se
fundamental nas teorizaes de Michel Foucault e Jacques Derrida e privilegiam a discusso de gnero
enfocando na linguagem como [...] locus de produo das relaes que a cultura estabelece entre o corpo,
sujeito, conhecimento e poder. Afastam-se tambm da ideia de corpo como uma [...] entidade biolgica
universal (GOELLNER, 2003, p. 15-16).
167
Chamo campo movedio porque essa experincia de leitura me fez construir e desconstruir conceitos e modos
de ver o mundo, os corpos, o gnero e a sexualidade que mexem com quem sou e como minhas relaes.
178
168
Notas de aula. Palestra Corpos, feminilidade e cinema, de Guacira Louro (ao citar Butler), no seminrio Curta
o gnero, no dia 17 abr. 2015.
179
180
reconhecesse a essas comunidades as mesmas qualidades morais asseguradas aos
brancos e suas famlias.
O horizonte moral imposto por essas premissas na descrio dos cultos afrobrasileiros orientava seus estudiosos a valorizarem a face reprodutiva das
identidades femininas, o que a princpio os levava a excluir ou, pelo menos, minorar
os aspectos desviantes apontados por Ruth Landes. O ideal da maternidade e sua
perfeita adequao s relaes de gnero fazia das mulheres dessas comunidades
terreiros seres um tanto assexuados, dedicados ao trabalho domstico e
subordinados s normas da vida em famlia e a sua hierarquia patriarcal. (BIRMAN,
2005, p. 405-406).
entidades;
conscincia
e/ou
inconscincia
no
transe;
as
relaes
169
A autora cita Landes (1967), Birman (1995), Leo Teixeira (2000) e Maiory (1988), para explicar que as
escolhas tericas dos mesmos possibilitaram um alargamento dos estudos de gnero nesta rea.
181
182
170
O orix citado Oxossi, protetor das matas, da caa e dos caadores. Seus smbolos so o arco e flecha e o
espanta-mosca, emblema da realeza feito com pelos de rabo de boi ou de cavalo. Em alguns mitos, esposo de
Ians e, em outros, marido de Oxum, com quem teve um filho, Logun-de.
171
No candombl, existem qualidades de Oxossi (Akeran, Arol, Dana-Dana, Erinl ou Inl, Ibualamo, Igb,
s).
172
Abordaremos esse mito no decorrer do captulo.
173
Esta expresso encontra-se entre aspas no texto de Santos (2008), fazendo referncia a obras de outros
autores, tais como Augras (1995) e Rios (2000).
174
Neste terreiro, lcus da pesquisa etnogrfica, a maioria dos homossexuais foram iniciados com as orixs
Oxum, Iemanj e Ians.
183
Em uma das festas que observei, descrevi um fato que ressalta este pensamento.
Domingo foi a festa das Iabs (as mulheres orixs, ou melhor, orixs femininos). No
ano passado, o Babakeker da casa apresentou sua Ians, que a segunda orix da
sua cabea e foi, praticamente, a primeira vez que vi um homem vestido com sua
orix trajando as roupas femininas (saias).
Digo isso porque, em outros candombls que j fui, mesmo tendo um orix
feminino, os homens no se vestiam de saia. Mas o pai-de-santo me disse que depende de
casa para casa e da sua linhagem.
Muitos jovens homossexuais deste terreiro so ias de orixs femininas, tais como
Ians, Iemanj e Oxum e todos vestem os vestidos e usam os adereos de suas
divindades. (Dirio de campo da pesquisadora 20 out. 2013).
Ressalto tambm, desta festa e de outras que participei, a disposio das pessoas
no barraco. Todos(as) participavam da roda, homens e mulheres ias, abis e ekedis, homo
e/ou heterossexuais. Diferentemente de festas em outros candombls que tive a oportunidade
de ver, onde somente as mulheres iam para a roda e os homens s participavam quando
incorporados por seus/suas orixs.
No terreiro Il As Iya Omi Arin Ma Sun, o movimento da roda era
masculino/feminino. O primeiro se estabelecia por causa da biologia de seus adeptos e,
tambm, porque poucas mulheres ias e ekedis participavam desta casa175. O feminino da
roda se configurava pelo comportamento dos homossexuais que eram maioria, pelo fenmeno
do transe, no qual o(a) iniciado(a) cede seu corpo para que as divindades, no caso as
femininas, que so maioria neste terreiro, se manifestem com todos os seus gestos,
vestimentas, emblemas, fios de conta e objetos prprios de cada uma e pelas performances
que a relao entre ambos (iniciado(a) e orix) proporciona.
O pensamento de Landes176 (2002, p. 327) j na dcada de 1940 comunga com
esta situao, quando a autora ressalta:
As fantasias homossexuais passivas so realizveis sob a proteo do culto, pois o
homem dana com as mulheres no papel de mulher, usando saias e agindo como
mdium. [...] Este se estereotipa no estilo feminino, em especial por ser vagaroso e
sensual (dengoso), e difere muito das formas atlticas cultivadas pelos homens nas
danas profanas.
175
Durante a pesquisa frequentavam assiduamente este terreiro trs ekedis e quatro mulheres ias, num universo
de mais de vinte filhos-de-santo.
176
importante ressaltar que no pensamento de Landes (2002), os homossexuais ditos passivos eram os que
predominantemente tornavam-se lderes dos cultos da Bahia, sejam candombls nags ou de caboclos, por serem
tipicamente femininos.
184
185
Rios (2011), do mesmo modo, aborda que, apesar dos atributos pessoais
identificarem o orix de cada pessoa, no so observados do mesmo modo os alinhamentos
entre sexo/desejo do orix e sexo/desejo do(a) filho(a).
Dessa forma, acredito, pelo que observei nesta pesquisa, na possibilidade dos(as)
jovens, indistintamente da identidade de gnero e orientao sexual, serem filhos(as) de orixs
femininos e masculinos, e tambm que existe uma parcela desses sujeitos homossexuais que
atribuem comportamentos de gnero/sexuais atributos operados por suas divindades.
Contudo, esses trnsitos de gnero/sexuais dos corpos, sejam dos jovens
candomblecistas, sejam de seus orixs e a sua relao, acontecem de forma cambiante, fluida
e conflitiva, pois o terreiro est inserido nesta sociedade carregada de estigmas e preconceitos
186
desempenham
atividades
culturais
(caa,
guerra,
justia,
maternidade,
177
178
187
Este autor acrescenta a categoria de met o orix Ossaim o feiticeiro, homemfolha, homossexual masculinizado. Orix das ervas e dos preparados rituais usados nos
cultos do candombl, nenhuma cerimnia pode ser feita sem a sua presena kosi ewe kossi
oris181. Sua cor essencial o verde, ligado clorofila das plantas.
Santos (2010) afirma que alguns mitos caracterizam Ossaim (Ossayn) como uma
divindade solitria e sem descendentes, outros narram que ele teve uma relao homossexual
com o orix Oxossi182. Contudo, esse ltimo alvo de protestos entre os candomblecistas que
discordam desta caracterizao.
Compreendo, dessa forma, que as configuraes e contradies referentes
sexualidade dos orixs e suas representaes de gnero so visveis ao ler e ouvir a infinidade
de mitos183 que descrevem suas histrias e caractersticas.
Ao apresentarem um mito de Logun-Ed, os(as) jovens do Il Iya Omi Arin Ma
Sun explicaram que existem mitos que abordam a temtica de gnero/sexualidade de vrias
maneiras e que nem sempre todos os candomblecistas concordam.
Segundo o Ia D. de Oxum:
Essa pequena apresentao estava falando sobre a histria de Logun. Como ia ter
uma grande festa de Oxum, os outros orixs estavam na festa homenageando a
Oxum. Antes disso, Logun tinha dito que queria participar muito dessa festa.
Logun filho de Oxum. A ele queria muito participar dessa festa. E no sabia como
ir. A ele foi pedir a roupa da Oxum pra ele participar dessa festa. A ele pegou a
roupa de Oxum, vestiu a roupa de Oxum e foi pra festa.
Se vestiu de mulher. Ele homem, mas se vestiu de mulher, porque ele queria estar
festejando a festa da me dele. E quando, de repente, Xang observou: Nossa! Que
Oxum linda essa!!. A, quando ele olhou pra trs, que ele procurou e no viu mais,
179
188
Oxum era o Logun e j tinha sado. Ento, Logun saiu correndo com medo de
algum ver ele, com medo de algum descobrir quem ele, e a Oxossi pegou ele
pensando que era Oxum. Pegou ele e foi pros finalmente. Quando Logun olhou pra
trs, Oxossi viu que era homem. (Informao verbal).
Oxumar foi representado pela cobra porque ele foi o nico Orix, que na lenda
tambm fala que foi a lenda que eles apresentaram, que atravessou o deserto. que
ele aprendeu a atravessar o deserto vendo as cobras. Porque, se voc for pelo
deserto, voc se perde e as cobras, elas serpenteavam. Ele fez a caravana pra chegar
at Xang serpenteando e ensinou a Xang ir e voltar serpenteando no deserto. Foi
a que ele virou cobra. Quando ele passa por Keto, que quando ele vai visitar
Xang pra dizer que ele submisso a Xang, mesmo sendo prncipe, Xang diz que
ele vai ser o responsvel por levar e trazer a gua dos castelos, ou seja, ele virava
arco-ris, quando o sol batia na gua e voltava serpenteando. Oxumar s cria pernas
quando ele vai pro keto, porque at antes ele ficava preso no castelo com a me.
(Informao verbal).
Aps a apresentao dos dois mitos, foi levantada a questo de porque esses dois
orixs serem considerados ao mesmo tempo femininos e masculinos e qual a ligao dessas
histrias com a homossexualidade.
Para o Babakeker, as pessoas ligam Oxumar homossexualidade devido sua
condio de cobra, pois no tinha sexo, ningum conseguia ver o que era macho e o que era
fmea, e o arco-ris era por ser uma coisa muito delicada. J Logun seria o travesti, aquele que
se vestia de mulher (em razo do mito contado). Contudo, mesmo esta autoridade sendo
homossexual, no concordava com este pensamento porque, para ele, [...] Logun homem e
Oxumar tambm (Babakeker de Air. Informao verbal).
Rios (2011), da mesma forma, caracteriza Logun-Ed como o menino afeminado,
brincante dos atributos de gnero, e Oxumar como o deus transexual, que, de tempos em
tempos, troca de sexo e gnero.
Ao serem indagados se na mitologia existia algum orix que poderia ser homo ou
bissexual, uma jovem respondeu que existia um mito de Oxum que se envolvia com Ians. E
ela narra a histria:
Isso foi uma lenda que at depois da festa de Oxum meu pai tava lendo um livro e
leu essa lenda pra mim. Toda vida que Oxum ia lavar roupa na beira do rio, ela
ficava se rebolando, a Ians ficava olhando pro rebolado dela. E a tiveram um
romance na primeira vez. Ela quis. A no outro dia, quando Ians quis de novo. ela
no quis mais, ento correu para dentro do rio e l se encantou. No quis mais. (Ia
A. E. de Iemanj. Informao verbal).
189
Aqui me refiro a uma histria que o babalorix do Il As Iya Omi Arin Ma Sun me contou, a respeito de um
transexual em um terreiro prximo. Este havia nascido com sexo feminino e, no candombl, recebeu o cargo
religioso de ekedi, contudo, ao fazer a cirurgia de readequao de sexo, no podia ser confirmado novamente,
dessa forma, ficou sem funo, pois se fosse para roda tinha que usar saia, mas j no possua mais peito, vagina
e tinha adquirido um pnis e at um novo nome.
190
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192
Entendeu? Ento, como eles vm e eles passam a entender que eles no so
diferentes, que so normais. Eles passam a descobrir porque eles so daquele jeito,
eles tendem a procurar a levar os amigos e vo e levam o companheiro, levam todo
mundo e ento passa a ter mais homossexuais no candombl a partir disso, por causa
disso. (Ia D. de Oxum. Informao verbal).
Outra jovem ressaltou tambm que eles(as) so aceitos do jeito que so e optam
com frequncia pelo candombl, porm [...] vo ter que se adequar a certas normas
(Informao verbal).
Acredito que as normas religiosas esto relacionadas a comportamentos (o que
vestir e como vestir, como se comportar), papis e funes religiosas (femininas e
masculinas), visto que o candombl tambm uma instituio, uma religio que est
atravessada pelas construes de gnero, suas regulaes e padronizaes, assim como os
conflitos gerados por estes. Como afirma Goellner (2003, p. 18):
193
[...] as instituies sociais, os smbolos, as normas, os conhecimentos, as leis, as
doutrinas e as polticas de uma sociedade so construdas e atravessadas por
representaes e pressupostos de feminino e de masculino ao mesmo tempo em que
esto centralmente implicadas com sua produo, manuteno ou ressignificao.
Portanto, o candombl tem suas contradies, pois uma religio que menos
discrimina os indivduos por suas identidades de gnero e/ou orientao sexual, contudo, est
distante e ser um paraso das ditas minorias sexuais, visto que est marcada por esses
pressupostos de feminilidade e masculinidade. Dessa forma, cito Santos (2008, p. 07), ao
indagar: possvel uma denominao religiosa abolir todas as formas de preconceito
(sexual, socioeconmica, tnico-racial etc.) vigentes na sociedade abrangente?.
Para entendermos as Visibilidades Possveis e/ou Passveis de Regras desse
universo juvenil hetero/homo/bi/transexual candomblecista, apresento a histria de trs jovens
que se inter-relacionam e que desvelam os trnsitos possveis entre suas vivncias
afetivo/sexuais e o candombl (tradio, hierarquia, funes e papeis de gnero).
Essa histria comea quando eu fui visitar pela primeira vez o Il As Iya Omi
Arin Ma Sun e encontrei o Ia D. de Oxum , ao ir a festa de Er (2013) e conhecer o Ia T. de
Iemanj e sua famlia.
A primeira vez que fui ao Il As Iya Omi Arin Ma Sun, fui recebida por D. de
Oxum, que me ofereceu gua, caf e, sempre com a cabea baixa, me disse que o Babalorix
j estava vindo. Em toda a conversa que tive com o sacerdote da casa, percebi ao fundo a
presena deste jovem, que interrompeu nossa conversa algumas vezes, pedindo ag (licena),
para perguntar alguma coisa acerca dos trabalhos domsticos e religiosos da casa.
D. de Oxum uma espcie de faz-tudo, nunca o vi parado, passeando ou
descansando, em todas as vezes que visitei este local. Como ele mesmo diz:
[...] minha funo aqui prestar... ... servir ao meu pai, ao meu pai pequeno, fazer
servio braal, isso e aquilo outro e tambm servir aos meus irmos quando eles
tiverem precisando de mim. de ajudar e outras coisas mais (risos).
isso aqui. morar, viver, construir, derrubar aqui, levantar acol, ... viver o dia
a dia, ver o meu suor derramando na roa. Que, dependendo do que for, eu sei que
t, eu tenho que com... vo contar comigo naquela hora. Que possam dizer... pode
olhar pra mim e dizer: meu irmo, posso contar com voc?. Pode, qualquer horrio
e qualquer momento. (Ia D. de Oxum. Informao verbal).
194
adultas187, como as Ekedis, reclamam de sua desenvoltura em tudo que se refere s atividades
religiosas do terreiro?
Ia D. de Oxum, jovem homossexual, conheceu o terreiro por intermdio de seu
antigo companheiro que era Pai-de-Santo de Umbanda e iria se iniciar nesta casa quando,
de repente, fugiu e nunca mais voltou. Comentam que ele tinha envolvimento com atividades
ilcitas, como trfico de drogas.
D. de Oxum tambm era adepto da Umbanda, de onde quase todos os primeiros
iniciados vieram, e, por esse motivo e pelo seu envolvimento afetivo com este pai-de-santo
acima citado, alvo das brincadeiras de seus irmos e irms-de-santo que o chamam de Paide-Santo, ou Egbomi/Ekedi. Percebo, por parte das Ekedis, por exemplo, certo desdm ao
rotul-lo, pois acusam o babakeker da casa de atribuir-lhe funes que no so prprias de
um ia que s tem trs anos.
Na maioria das festas, sua orix Oxum dana de forma brilhante, feminina e muito
envolvente, sempre com um sorriso no rosto, como se demonstrasse a satisfao de estar ali,
mostrar-se e ser notada e reverenciada por todos e todas.
Ele geralmente frequenta a praa prxima ao terreiro e conhece pessoas, tambm
visita outros candombls acompanhando seu babalorix, mas no comenta, s se sabe por
causa das brincadeiras de seus irmos ou do babakeker, que comentou uma vez, ao dizer que
o jovem ia gostava de se vestir de mulher. Isso aconteceu com ela. Ela chega dos
candombls, a o povo acha que ela mulher (Informao verbal).
D. de Oxum se sente acolhido neste terreiro, pela histria de violncia que passou
e por ser homossexual. Acredita que vive em uma famlia, morando no terreiro com o
babalorix, o babakeker (companheiro do sacerdote) e a filha dos dois, a pequena menina de
um ano, e explica que encontrou seu lugar no mundo e que escolheria novamente o
candombl como religio.
Escolheria o candombl novamente. Porque, assim, seu for escolher... se eu sasse...
tipo assim, se eu sair do... da... dessa religio, pra ir pra uma tipo... uma igreja
evanglica, ou mesmo a catlica, eu ia t perdido no mundo. No candombl no. O
orix ensina o que o mundo. S aprende aquele que quer. (Ia D. de Oxum.
Informao verbal).
Como todo jovem, se relacionou com vrias pessoas e uma delas foi convidada
para conhecer o terreiro. E foi assim que conhecemos L/T de Iemanj, outro personagem de
nossa histria.
187
Fao referncia ao fato de serem adultas porque existe outra ekedi que jovem e que tambm alvo de ej
(fofoca e intriga) por parte das mesmas pessoas.
195
L/T de Iemanj uma jovem bonita, de traos finos e delicados, magra, negra e
sua altura destaca-se das demais pessoas da casa (exceto do babakeker). Sua silhueta e seus
dedos finos com unhas grandes completam sua performance feminina. Encontrei-a algumas
vezes antes de conhec-la no terreiro, mas no notei que era transexual, pensei mesmo que se
tratava de uma mulher, mas, ao observar mais atentamente, entendi.
Percebi uma menina nova na casa. Na verdade, eu j tinha observado seu rosto em
outra festa, mas ela nunca tinha ido para roda. O nome dela L, na verdade, ela um
travesti ou transexual (eu s soube depois). Fiquei intrigada, porque a moa estava
de cala e bata e no de saia (de baiana, como dizem no candombl) como as outras
meninas. Sendo assim, resolvi perguntar me Evinha (Ekedi mais velha da casa) o
porqu disso e ela me respondeu que a moa era, na verdade, um moo. Pois , por
mais que ela se parea com uma mulher [...], possui rgos sexuais masculinos e,
por isso, na religio no pode usar saia, foge natureza da pessoa segundo a
explicao do pai-de-santo. (Dirio de campo da pesquisadora 05 maio 2013).
Em outra festa, conversei com a L/T de Iemanj, que me contou ser ex-namorada
do D. de Oxum e que, por este motivo, conhecia e frequentava a casa, mesmo depois do fim
da relao188. Seu orix Iemanj e sua iniciao aconteceu no dia 14 de agosto de 2013.
Dentro do terreiro, exerce funes masculinas e os(as) candomblecistas tentam
trat-la como homem, digo isso, por presenciar vrias vezes brincadeiras de seus irmos e
irms na cozinha ou no quintal a tratando por mulher, bicha, irm e tambm por seu nome
feminino. Configurando-se, assim, uma grande confuso de nomes, pois ningum ao certo
sabe como chamar, apesar do babalorix explicar que, dentro da casa, segue-se a religio
baseado na tradio onde a identidade gnero definida pelo sexo biolgico dado no
nascimento.
Segundo Butler (2007, p. 155), o sexo no simplesmente uma descrio esttica
daquilo que algum tem ou do que algum , sendo tambm um construto cultural: aquilo
que qualifica um corpo para a vida no interior do domnio da inteligibilidade cultural.
Dessa forma, a tradio se baseia numa fico, uma premissa fabricada, numa
norma cultural que governa a materializao dos corpos. Algo construdo historicamente,
efeito de discursos e que est suscetvel dinmica dos tempos.
Minhas inquietaes diante desta histria ficaram mais aguadas. Como L/T se
comportava fora do terreiro? Mesmo tendo que se vestir de homem dentro do terreiro ela
deixava de ser quem ? E como se sentia?
188
Existe uma regra nesta casa que probe o namoro dentro do terreiro, ou seja, irmos-de-santo no podem
namorar, mas quando j se tem uma relao estvel, a iniciao aceita de forma alternada.
196
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198
Como L/T de Iemanj, conheci um jovem neste terreiro que sua Iemanj tambm
resplandecia feminilidade e graciosidade. Esse era T. de Iemanj, e sua histria cruza a de sua
irm-de-santo, de religio.
T. de Iemanj, primeiro ia da casa de Oxum, ficou com a Ia de Iemanj, esta
garota transexual que foi convidada a frequentar o terreiro pelo seu ex-namorado, Ia D. de
Oxum. Este jovem foi expulso deste terreiro por ser mais velho do que sua irm-de-santo,
ou, de acordo com o babalorix, irmo-de-santo, e saber que a regra da casa exige que irmos
ou irms-de-santo no podem ter relao sexual ou namorar com outros(as), salvo se j se
iniciaram nesta condio. De acordo com a tradio, isso seria um incesto e contestaria a
tradio.
Essa mesma tradio interpretada de vrias maneiras, visto que no terreiro Il
As Olojudol um caso semelhante ocorreu envolvendo, nesse caso, um casal heterossexual:
os dois irmos-de-santo comearam namorando escondido, pois era proibido. Contudo, foi
aceito pela autoridade mxima da casa, permitindo, assim, que os jovens vivessem essa
relao.
O fato de ser um casal heterossexual, segundo o Babalorix do Il As Iya Omi
Arin Ma Sun, no muda a interdio, pois o irmo de T. de Iemanj, Ogan L. C., tambm
transgrediu a norma ao se relacionar com uma Ia recm-iniciada no terreiro. E, da mesma
forma, saiu deste candombl.
Desse modo, a histria de T. de Iemanj se torna peculiar. A trama que se formou
em torno da relao com L/T de Iemanj e de outras questes que envolvem o corpo, gnero e
sexualidade, alm do motivo de sua entrada, que me levam a problematizar as performances
sexuais e de gnero dos sujeitos jovens candomblecistas.
De acordo com o Babakeker do terreiro, que primo desse jovem, foi no
candombl que ele se encontrou e mudou seus planos de querer tornar-se travesti e se
prostituir num pas da Europa.
T. de Iemanj era evanglico, como a maioria de sua famlia, ia igreja desde
criana, sendo, assim, acostumado pela me, todavia, na adolescncia no queria mais ir
igreja, pois no se sentia bem por ser homossexual, como afirma: [...] s vezes, na igreja, eles
199
criticavam muito e no paravam para estudar, no paravam para pensar (T. de Iemanj.
Informao verbal). Ento, para ter liberdade e sair dessa situao, decidiu tornar-se travesti.
Dessa forma, sua me, que tambm evanglica, desesperada, recorreu ao babalorix e ao
babakeker, solicitando ajuda para o filho. Foi assim que esse Ia se aproximou dos
sacerdotes e da religio, comeou a dormir na roa e a gostar da religio, tornando-se o
primeiro Ia deste terreiro.
Alm dele, seu irmo (Ogan L. C.) e sua cunhada (Ekedi E.), dois jovens recmcasados e com dois filhos foram morar no terreiro e, vivendo a religio, tornaram-se tambm
os primeiros Ogn e Ekedi da casa, respectivamente. Desse modo, posso dizer que este
candombl iniciou-se com a famlia do Babakeker, aqueles, como este jovem autoridade, que
no aceitavam viver a religio dos pais.
A relao entre a me evanglica e os filhos candomblecistas era bem diferente do
que vemos, pois a mesma frequentava as festas religiosas, acompanhava seus filhos e netos e,
ainda, ajudava no que precisassem na roa, como relato em meu dirio de campo.
Na festa, quando eu cheguei, eu fui muito bem recebida pelo pai-de-santo, falei com
todo mundo, com os jovens, com as mes que estavam l e que tambm so de santo
e outras que no so, inclusive uma que evanglica, mas que apoia seus filhos,
netos e nora candomblecistas, que ajuda, que faz comida, que filma e pede conselho
ao babalorix. [...] Interessante a relao que essa mulher, que evanglica, tem
com o terreiro e com os seus filhos, isso prova que a intolerncia religiosa algo
construdo ideologicamente e que os laos afetivos e de confiana esto acima disso.
(Dirio de campo da pesquisadora. 13.10.12)
Este jovem no deixou de ser homossexual por ter se iniciado no candombl, mas
modificou seus planos de tornar-se um travesti e vestir-se de mulher. Era o prximo
Babalorix da casa pela hierarquia e, por causa de um ato que transgrediu a norma, saram da
casa, ele e outras pessoas. Seria de fato esta uma religio que aceita as pessoas do jeito que
so? Ou acolhe com normas? E existe alguma instituio que fuja s normas?
200
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201
O povo de santo um povo que paquera e namora muito entre si. Quando li
essa frase, no texto de Moutinho (2004), estava to focada na hierarquia, no ser jovem e ser
velho no candombl que no levei em considerao. claro que, entre os(as) jovens
participantes da pesquisa, existiam experincias afetivo/sexuais, mas s dei conta ao ouvir e
191
Os candombls esto organizados conforme as sociedades e imprios africanos que vieram para o Brasil, pois
o legado dos valores africanos est consubstanciado nas instituies religiosas, conforme aponta Luz (2000), no
seu livro Agad. Dessa forma, destacam-se os candombls Angola, que se originam da tradio do imprio
Congo-Angola, Ketu, herdeiro da tradio yorubana, tambm conhecida como nag, e o Jeje, tambm conhecido
como Fons. Luz (2003, p. 32) afirma que os [...] yorubas e fon formaram um processo cultural conhecido com
complexo de valores jeje-nag [...] que se expressa atravs da linguagem religiosa.
202
prestar ateno s conversas que rolavam na cozinha e no barraco entre uma entrevista e
outra, uma brincadeira e um riso e tambm entre uma carona e outra que eu dava para os(as)
jovens que moravam perto da minha residncia.
Primeiramente destaco, a histria da Loira, uma jovem abi que conheci e me
contou que ficava com homens para comprar droga, sustentar seu vcio. Esta mesma garota se
afastou do terreiro e sempre a vejo perto da rua onde moro; grvida, ela anda pelas ruas do
bairro meio cambaleante e com um olhar distante. Ela j tem um filho de um jovem que foi
assassinado pelo trfico de drogas.
Outra histria se passou quando, um dia, ao visitar o terreiro Il As Iya Omi Arin
Ma Sun e entrar na cozinha, percebi a brincadeiras entre os Ias de Oxum, Iemanj e Oxossi
que falavam de quem era mais perigosa. O Ia de Oxum se identifica com a
homossexualidade, o de Iemanj reivindica sua transexualidade, e o de Oxossi, inicialmente,
visitava o terreiro como travesti e, depois de sua iniciao, enquanto morava no terreiro, se
portava como homossexual masculino, deixando de lado a travestilidade192.
O fato que ser perigosa tem vrios sentidos, como, por exemplo, ter a malcia
e facilidade de conseguir parceiros, ser causadora de intrigas e fofocas, no manter
relacionamento estvel com ningum, tendo vrios parceiros ao mesmo tempo, entre outros.
Ressalto deste episdio que a convivncia desses ias (de Oxum e Iemanj)
anterior iniciao no candombl, pois mantinham uma relao afetivo/sexual. Suas brigas e
brincadeiras eram constantes, contudo, afirmaram terem um afeto de irmos, como diz a
tradio.
Outra histria interessante a da Ia de Iemanj. Esta moa, em muitos
momentos da pesquisa, se afastava do terreiro durante uns meses e depois retornava, sempre
com uma novidade e uma namorada nova, geralmente de outro terreiro. Como ela diz: Eu
gosto de mulher, no gosto de homem no. [...] No tenho no (namorada), tenho vrias. Na
minha rua, no colgio, onde eu andar eu desenrolo uma. E pretendo no me apegar a
ningum (Informao verbal).
Percebo que, entre os homossexuais candomblecistas193, o relacionamento estvel
menos visvel e, quando acontece, assumido por casais gays adultos. No percebi, por
192
Em uma conversa com o Babalorix Junior de Oxum Olutoji soube que tanto o Ia de Oxossi como o de
Iemanj faziam a pista (se prostituam) antes de entrarem no candombl e poderiam ter recadas quando
retornavam para casa, visto que suas mes consentiam essa situao. Para o ia de Oxossi, se travestir era uma
forma de adquirir parceiros.
193
Eu s conheo dois casais de homossexuais entre os candomblecistas que visibilizam sua relao. Um deles
o babalorix do terreiro onde fiz a pesquisa etnogrfica e o babakeker, que so casados legalmente, atravs da
unio civil. O outro casal formado por candomblecistas que frequentam o terreiro nas festas.
203
parte desses(as) jovens, o desejo de manter uma relao com um(a) parceiro(a) apenas, ou
uma relao duradoura194.
Em uma conversa informal com os jovens do terreiro Il As Olojudol sobre
namoro, eles afirmaram que se relacionava com garotas que no eram candomblecistas e
contaram como conquistaram suas parceiras.
A minha foi s um fica, a pronto [...] ela vinha aqui com a irm-de-santo minha das
antigas, eu ficava s olhando pra ela e pedi minha irm-de-santo me ajeitar ela
pra mim. [...] por que minha irm-de-santo andava com ela pra trazer ela pra c
[...] comecei a ficar com ela e comecei a namorar.
S fiquei e sa sem perguntar o nome dela. [...] foi ligeiro e sa [...], ela se apaixonou
por mim (risos) [...] decidi e fiquei com ela at hoje. [...] 5 meses. (Ia de Oxagui.
Informao verbal).
Conheci ela na casa do meu pai, que tava morando l [...] foi... tava no porto da
casa l, ela chegou em mim e perguntou se eu queria a companhia dela [...] a rolou.
[...] 3 meses ainda [...] Quando eu comecei a namorar com ela eu falei logo (da
religio) e ela: nam, no tenho nada contra no. (Ia de Obaluai. Informao
verbal)
[...] ela do grupo (folclrico). [...] [Ela sabia que voc era do candombl?] Sabia,
por que ela era amiga dos meus amigos antes de me conhecer. [...] e eles j tinham
dito, feito a propaganda j. [...] A eu ia dar aula de forr pra ela [...] chegou um
certo dia que deu certo. (Ia de Ogun. Informao verbal).
J a nica jovem deste terreiro que fez parte desta pesquisa admitiu que no tinha
namorado, mas havia sido casada durante quatro anos e morado com seu parceiro na roa.
Tinham terminado a relao fazia mais ou menos um ano.
No momento da fala da jovem, percebi os olhares e risos de todos e perguntei o
motivo daquela situao e, finalmente o Ia de Oxumar, de 10 anos me esclareceu: (risos)
sacanagem, tu num sacou ainda no? esse cara a, man., me apontando que o excompanheiro da moa era o rapaz ao seu lado.
S quando o garoto me explicou, que percebi as falas dos dois jovens ora se
complementando, ora divergindo. Eles trataram de contar como foi que aconteceu e como
foram morar juntos no terreiro, j que essa relao proibida pela tradio.
Ia de Ogun: A gente foi casado quatro anos.
Egbomi/Yalorix de Ew: a se deixamos, mas somos irmo.
Ia de Ogun: proibido, mas, s vezes, acontece e a gente se apaixona, no pode
mandar e nem expulsar todos dois por que se apaixonaram. O negcio conversar e
explicar a todos dois que no pode certas coisas e tal.
Egbomi/Yalorix de Ew: primeiro, no pode envolver.
Ia de Ogun: , envolver a religio.
Egbomi/Yalorix de Ew: no pode envolver religio em relacionamento.
194
Gostaria de ressaltar que esse comportamento tambm observado entre os heterossexuais que so jovens.
204
Ia de Ogun: tipo, deixaram muito claro que quando chegasse ao fim, como chegou,
a gente no podia t aqui dentro se matando, dando piada um do outro, essas coisas,
a a gente se entendeu e agora somos irmos.
Ia de Ogun: assim, teve (proibio) no comeo, mas a gente insistiu. [Saiam
escondido?] tambm. Foi melhor aceitar do que...
Egbomi/Yalorix de Ew: , por que esse negcio de namoro e religio
complicado porque, assim, voc nunca consegue conciliar um com o outro.
(Informaes verbais).
205
coisa qualquer, eu t abrindo por outra coisa mais importante, que o pro meu
santo, que vem em primeiro lugar, e se eu for explicar isso pra uma pessoa de fora
meio complicado, a mais por que a sempre vem aquela briga... (Informao verbal).
206
Nesse sentido, a existncia a cabea, ori, o altar sacralizado pelos ritos195, sem
ele, no existiria transe e conexo com o mundo invisvel, com a energia dos orixs.
no ori que mora o Orix a que a pessoa foi consagrada. Como se diz: Orix est
no Ori. E h ainda a expresso: ori (cabea), sh (ligao). atravs da cabea que
se estabelece uma relao direta com os princpios universais to bem representados
pelas foras da natureza, e ao mesmo tempo, com os antepassados, mulheres e
homens que nos antecederam. (SOUSA JUNIOR, 2002, p. 140).
195
por conta disso que a cabea no pode ser tocada e deve ser coberta em muitas ocasies do culto
candomblecista, sendo esta uma das mais conhecidas interdies.
196
As roupas rituais so devidamente preparadas e ornamentadas de acordo com as insgnias que correspondem
ao seu orix. As cores e babados, os colares, e brincos correspondem ao grau de evoluo inicitica dentro do
terreiro. Quanto mais ornamentao e enfeite maior o tempo de terreiro. Os brincos, pulseiras e colares, as
orelhas para fora do turbante, e mesmo o nmero de voltas do turbante, tudo carregado de significado e
corresponde a uma ordem da escala hierrquica, pois devido vivncia, familiaridade e identidade com o orix
que se vai ornamentando o corpo. (GOMES, 2003, p. 168).
207
Andar descalos no cho, conforme os(as) jovens explicaram, era uma forma de ligao com a terra, com o
ay. E a cabea baixa um sinal de respeito e de que o ia est no processo de aprendizagem.
208
209
no corpo de cada um, como reagiam diante de necessidades como sede, fome, vontade de ir ao
banheiro, e porque cada um(a) apresentava um semblante diferente inscritos nas suas faces.
Para responder minha primeira forma de desejo, perguntei aos(s) jovens qual a
importncia do corpo para o candombl. Alguns responderam que era a coisa mais
importante, que o corpo tudo para a religio: [...] sem o corpo no existia a cabea e no
existia Orix (Informao verbal); que ficam muito cansados, porque tm muito trabalho na
roa, mas o trabalho recompensado. E acrescenta o Ia R. de Ogun:
O corpo da gente necessrio pra tudo. necessrio pro orix vir at a terra e
caminhar entre os filhos e entre os... devotos, n? So os adeptos da religio e pra
gente sentir a energia do nosso santo. Por exemplo, eu t com um problema grande e
eu preciso falar com Oxossi, eu vou no quarto de Oxossi, eu fao minha reverncia,
chamo Oxossi at ali, mas eu sei que ele vai t presente, mas eu no t vendo e,
quando ele possui o corpo do Lindembergue, eu sei que o Lindembergue t virado e
que Oxossi, ento, a eu vou poder dar um abrao nele, em Oxossi, eu vou sentir
ele me abraando, eu vou sentir ele passando a mo em mim. ... , mesmo sem
falar, eu vou sentir ele dizer que t tudo bem ou que t comigo, alguma coisa assim.
O corpo da gente necessrio pro orix conviver entre a gente, n... Caminhar entre
a gente, dentre outras coisas. (Informao verbal).
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211
Para Gomes (2003, p. 38), [...] a convivncia entre devoto e orix possibilita um
intenso dilogo corporal onde podemos perceber um nascer de alegria que atravs da dana
estabelece ligao e entusiasmo nos rituais sagrados.
Entre os(as) participantes desta pesquisa, unanimidade a limpeza do corpo para
que esta ligao ancestral acontea de forma equilibrada, pois se o corpo o revestimento do
sagrado, ento, esta carne simbolicamente sagrada deve estar limpa.
A Egbomi/Iyalorix de Ew do Il As Olojudol explica como preparam
(limpam) seu corpo para os rituais.
... assim, quando a gente vai entrar na funo, a gente tem que t limpo. A gente
no pode beber, no pode fazer sexo, no pode usar drogas (risos). Ento, a gente
tem que t limpo o mximo assim. Tem que tentar tirar tantos problemas da cabea.
, digamos assim, pra gente poder vim pra c, ao invs de diminuir a energia, a
gente vem pra somar, pra... pra... fazer parte daquela... daquela... daquela coisa boa,
daquela energia boa que t circulando e no diminuir, digamos assim. (Informao
verbal).
Alm de existir uma preparao corporal para participar das festas e rituais
sagrados, o Babalax da mesma casa acrescenta que se o iniciado apresentar algum problema
fsico temporrio (p, brao, joelho machucados), o orix [...] no vai vir pra forar o p da
pessoa, respeitando a condio do seu devoto.
Dessa forma, a limpeza do corpo e sua preparao para os rituais, bem como para
incorporao do orix, permeada de sutilezas e significados sagrados manifestados desde o
momento da iniciao, como afirma Gomes (2003, p. 162):
Desde os primeiros ritos de passagem, consulta dos bzios ou if, culminando na
recluso do individuo onde preparado todo o corpo para a presena materializada
de seu orix. As ervas, os sinais ou inscries e o assentamento (casa ou morada do
orix) tudo visto como preparao para o to esperado contato com o orix.
Atravs do transe e dana: manifestao nica e singular portadora de encantamento
e magia notada a comunicao, onde o sagrado torna-se imanente e participa
fervorosamente da religiosidade de seus fiis.
Para
satisfazer
meus
outros
desejos,
relacionados
ao
transe
seus
desdobramentos, perguntei aos(s) jovens o que acontecia com seus corpos quando recebiam
os orixs, o que sentiam.
Diversas foram as repostas que, em alguns momentos, se contradiziam, pois cada
depoimento remetia singularidade do momento. Alguns tremem ao incorporarem e, quando
o orix sai de seu corpo, outros apagam e no se lembram de nada, no tem noo do tempo
como se a pessoa tivesse dormindo ou tivesse largada. Voc s se lembra da parte que
voc desmaia (Informao verbal). Outros(as) jovens disseram que a incorporao retira a
dor e o cansao do corpo. Uns(umas) sentem o corpo acelerado, cimbras e falta de ar e, ao
212
entrarem em transe, suas carnes adormecem e a pessoa dorme. Um jovem ressalta que o orix
tem o poder de tranquilizar o iniciado e diminuir o estresse.
Para muitos, a dor de cabea um sinal de que o transe vai ocorrer e, em alguns
momentos, a pessoa consegue ver, ouvir, sentir, mas no tem o controle de seu corpo. Como
ressalta o Ia R. de Ogun:
Voc sentir o seu corpo e, de repente, tem uma murioca no seu rosto, voc tem
vontade de fazer assim e a mo... a mo no vai. Fica anestesiado, entendeu? E o
corao acelera e a cabea di e voc fica... consegue pensar, s vezes voc
consegue ver, s vezes voc consegue escutar, mas no consegue ter o domnio do
corpo. (Informao verbal).
Dessa forma, se, para uns uma sensao boa, de proteo, segurana e de
cuidado por parte do orix, para outros horrvel, ruim, desesperador no conseguir ter o
controle de seu corpo, principalmente na primeira vez.
A primeira sensao ruim. Principalmente quando voc entra em transe a primeira
vez. Eu no vou negar que ruim. Quem disser que bom aqui eu acho que vai t
mentindo pra agradar o santo. [...] a primeira coisa que eu pensei foi... vou dizer pra
vocs aqui: meu Deus do cu, se eu sair daqui, se eu voltar, eu nunca mais piso
nesse canto, nunca mais, nunca mais (risos). Eu tava pensando isso, porque uma
situao que voc fica: Meu Deus do cu, e agora?, me tira daqui, querendo se
mexer e no consegue, entendeu? A primeira chata, mas depois voc comea a se
acostumar. (Ia R. de Ogun. Informao verbal).
Quando voc t em p, a primeira se... a primeira se... que voc entra em transe
assim em p, a a sensao que voc tem que voc vai cair. Que d tipo um
choque, da a impresso que voc t caindo, ao mesmo tempo, voc sente seus ps
no cho e muita gente ao seu redor... assim... [...] tudo muito confuso, muito
confuso. Ah!, mas, assim, depois que voc comea a se... se adaptar, fica aquela
coisa confortvel. (Egbomi/Iyalorix de Ew. Informao verbal).
Eu j tinha ouvido de outras pessoas que esta sensao de cair com os ps no cho
era ruim e desconfortvel, como se estivesse caindo num buraco para poder dar passagem ao
orix, contudo, as pessoas no saem de seus corpos. Penso que acontece uma conexo de
energias, onde uma das partes manifesta-se mais que outra, da a sensao temporria de
imobilidade do corpo.
213
Assim, apesar de saber que para todos(as) que conversei, era uma ddiva ter o
privilgio de se ligar a estas energias, ao escutar os(as) jovens, percebi que todo o glamour
imaginado por mim acerca do momento da incorporao transformou-se em sensaes
diversas, que se alternavam entre controle e descontrole, de acordo com o orix de cada um(a)
e com seus corpos.
214
6 CONCLUSO
Orao Ao Tempo
s um senhor to bonito quanto a cara do meu filho
Tempo, tempo, tempo, tempo, vou te fazer um pedido
Tempo, tempo, tempo, tempo
Compositor de destinos, tambor de todos os ritmos
Tempo, tempo, tempo, tempo entro num acordo contigo
Tempo, tempo, tempo, tempo
Por seres to inventivo e pareceres contnuo
Tempo, tempo, tempo, tempo s um dos deuses mais
lindos
Tempo, tempo, tempo, tempo
Que sejas ainda mais vivo no som do meu estribilho
Tempo, tempo, tempo, tempo ouve bem o que te digo
Tempo, tempo, tempo, tempo
Peo-te o prazer legtimo e o movimento preciso
Tempo, tempo, tempo, tempo quando o tempo for
propcio
Tempo, tempo, tempo, tempo
Os fios de contas foram fechados, com cristal branco199, e lavados no decorrer desta
pesquisa. O tempo como compositor do meu destino testemunhou esse ritual200. Assim como
esse colar me vi imersa num universo de estranhamentos conhecidos.
199
O cristal branco aqui simboliza Oxal. Como toda festa que fui encerrava-se com homenagens a este orix,
aqui tambm encerro esta tese com uma lembrana ao mesmo.
200
O ritual da lavagem de fios de contas marca a entrada do nefito, ou candidato iniciao, no ritmo da casa e
no universo mtico e mstico do candombl. Consiste em uma imerso do colar numa mistura de folhas quinadas,
associada a alguns outros materiais. Os fios devem ser a marca inicial de um compromisso do abi com a casa e
seus integrantes.
215
Tudo era novo, mas ao mesmo tempo to familiar. As pessoas do bairro onde moro
que eram do candombl, a relao com os/as jovens, a convivncia numa famlia estendida, a
fofoca, as gargalhadas, a ajuda financeira.
Os meses que levei para encontrar o terreiro Il As Iya Omi Arin Ma Sun e
reencontrar o Il As Olojudol foram fundamentais para a minha iniciao etnogrfica e de
meu desenvolvimento como pesquisadora.
Ao mesmo tempo que Logun me levava para o mundo da magia e da beleza, Obaluai
me puxava para terra firme fazendo-me lembrar que era uma pesquisa que tinha comeo,
qualificaes e defesa.
Num movimento circular eu vi e olhei diversas coisas, ouvi mais, falei menos,
telefonei, conversei, cantei, dancei, bati palmas, dei carona, fotografei, escrevi em meu dirio
de campo, chorei, comi (como comi!) com todos os sentidos, aprendi. O tempo foi o tambor
de todos esses ritmos, desde minha busca inicial, percorrendo caminhos, atrs de um Il As
que me acolhesse, at a finalizao desse texto. Ele sabe, mas devo dizer (querido tempo) que
no ficou guardado em sigilo, apenas comigo e contigo. O acordo era socializar!
Tive dias de alegria onde minha pele no me cabia e dias difceis de completo
desespero por no saber o que faria com todo aquele material. Tornar-me uma doutora com
este trabalho me parecia to distante, como me senti s com meus pensamentos, dvidas e o
computador. Quero dizer a quem ler este texto que tive prazer e felicidade em realizar um
trabalho com este, contudo as angstias, a solido, desencontros e os lapsos de memria
foram as pedras que furaram meus ps e dificultaram o caminhar desta tese.
Do mesmo modo, tive belos encontros com pessoas, entidades, orixs, energias que
contriburam para a realizao do trabalho, seja com a pesquisa de campo, com as discusses
conceituais, os puxes de orelha, a acolhida calorosa, o sorriso sincero, a comida oferecida, o
jogo de bzios, o conselho gratuito.
Entender como os jovens candomblecistas vivem suas condies juvenis levou-me ao
mundo da etnografia e me perguntava o que era de fato essa descrio densa que Geertz
(1989) falava. O que uma coisa densa? No meu entender nem era algo lquido, nem slido,
parecia-se mais com uma descrio gelatinosa, repleta de malemolncia. Dessa forma me
permiti a realizar uma descrio malevel, nem to fluida, nem to dura. Recheada de
inquietaes, dilogos e interpretaes.
Assim como Ians andei em muitas terras, ora como ventania, ora como brisa leve,
sempre aprendendo algo, em meio aos emaranhados fios de conta das categorias juventude,
gerao, candombl, corpo, gnero, sexualidade.
216
Observei os/as jovens em suas relaes com o candombl, com os/as seus/suas
irmos/s-de-santo e com eles/as mesmos. Escrevi, transcrevi, descrevi o terreiro, suas festas,
as brincadeiras, o dia-a-dia, os conflitos. Foram realizados tambm grupos de produo de
saberes e entrevistas individuais que contriburam significativamente complementando
minhas observaes.
Esses jovens candomblecistas foram meus e minhas mestres/as do saber, me
ensinaram sobre a religio, suas regras, obrigaes, funes cotidianas, sua mitologia e seus
saberes ancestrais. Entendi que os percursos dessas pessoas esto conectados com sua prtica
religiosa, bem como seus modos de vida e viso de mundo.
O tempo em seu movimento preciso me ensinou que da porteira para dentro no h
relgios nem horas, sempre h tempo para se tomar um caf, para ouvir uma histria, para
esperar tudo ficar pronto para comear o toque, tempo mtico, tempo rtmico, tempo corporal,
tempo juvenil ancestral.
Ao entrar pela porteira, saudar os Exus e ocupar esse espao, como uma pesquisadora
aprendiz, entendi que o Candombl uma religio que acolhe as mais diversas pessoas e
valoriza a experincia religiosa do mais velho. Nesse caso ser mais velho no ddiva de
quem tem mais idade, mas de quem tem mais tempo de iniciao na religio.
Como a juventude para a religio definida pelos processos de iniciao independente
de fatores biolgicos, alguns/mas destes/as jovens so ao mesmo tempo velhos para esta
tradio religiosa. Essa condio gera funes/cargos, obrigaes, responsabilidades, poder
hierrquico, conflitos.
Ao se reportarem a juventude, os participantes da pesquisa no se colocavam como tal.
como se eles e elas no fossem jovens ou que vivessem em outro mundo, separados de seu
grupo etrio, contudo isso no significava que eles no se sentiam jovens ou deixassem de ter
comportamentos juvenis. Em muitas falas reproduziram ideias que a sociedade versa sobre o
ser jovem, todavia apresentaram tambm pensamentos contrrios no se configurando entre
eles/as um discurso linear.
Sobre ser jovem candomblecista destaco no trabalho alguns aspectos que se
relacionam a este complexo conceitual. O primeiro refere-se dicotomia ser jovem dentro e
fora do terreiro; no segundo aspecto destaca-se a relao deles com a hierarquia; tambm foi
abordada o relacionamento destes com seus orixs e suas caractersticas juvenis e/ou de
maturidade e por ltimo o movimento de ser jovem independente de seu processo inicitico.
Para os/as jovens candomblecistas existe uma estreita relao entre a iniciao, a idade
biolgica e o conflito geracional. Estes tambm se diferenciam dos demais jovens elencando
217
218
219
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227
GLOSSRIO
1.
2.
Acaa: Comida ou alimento dos Orixs. Bolo feito com massa de farinha de milho
branco ou arroz, cozido em gua, sem sal e envolto em folhas de bananeira. comida votiva
do Oxal, mas pode ser ofertada a qualquer outro Orix.
3.
4.
Adjarin: Pequeno sino de duas campnulas, feito em metal, utilizado para invocar as
entidades.
5.
Amal: Faz parte da culinria sagrada de Xang. Comida feita com quiabos. Tambm
como chamam o momento de encontro nas quartas-feiras dia dedicado a este orix
6.
Arias: Banho ritual com folhas sagradas para os iniciados. Arias tambm nome do
8.
chamados banto.
9.
Barco: o momento de recolhimento das pessoas que iro fazer a iniciao Barco de
ias a designao dada pelos adeptos a um grupo de pessoas que se inicia em conjunto.
10.
Ori. A cerimnia do bori corresponde ao ato de "dar comida cabea", visando restabelecer o
equilbrio pessoal e a conexo com as suas divindades protetoras.
11.
Ebs: Oferendas que podem abrir caminhos, restituir o ax e assim melhorar o fluxo
do destino.
12.
Ekedi: Cargo feminino de muito valor nas casas de candombl. O termo tem sua
Er: Esprito infantil que incorpora depois dos Orixs, a fim de transmitir recados aos
Yas. Esses espritos incorporam tambm para que as pessoas realizem atividades rituais
dentro da roa.
14.
16.
que varia entre sete a dezassete dias (embora alguns lugares adoptem 21). Essa recluso
228
Itan: Palavra nag que designa no s qualquer tipo de conto, mas tambm histrias de
Kel: Colar do iniciado. Gravata feita com miangas e firmas, nas cores do Orix a
que dedicado e, colocada nos Yas durante a feitura para ser usada durante o resguardo.
19.
Odu: Destino
21.
Oj: Pano utilizado pelas baianas para cobrir o peito e a cabea. Pano tambm
vida na terra, agindo de forma intermediria entre Deus e as pessoas de quem recebem uma
fora de culto e oferendas.
24.
25.
27.
Pa: (pronuncia = pa) um gesto que serve como sinal de que se preciso
comunicar alguma coisa, mas no se pode falar. usado tambm como saudao para orix, o
cumprimento do ax.
28.
Run: Dar RUN ao santo significa colocar o Orix na sala para danar as cantigas e
229
31.
Sabaji: Para a nao Jeje um quarto sagrado onde esto assentados o voduns.
Contudo para os jovens desta pesquisa so os quartos onde os filhos-de-santo guardam suas
coisas.
32.
230
Numa noite de sbado, os jovens Ogun, Oxossi, Obaluia e as jovens Ians e Oxum
decidem ir festa das Iabs num terreiro muito conhecido na cidade.
Chegaram e foram direto ao barraco, ponto de encontro de uma diversidade de
orixs, contudo o que procuravam mesmo eram o seus pares jovens. De cara esbarraram com
os/as jovens fogo (a juventude se parece um pouco com o fogo), aquela galera, tipo assim
que aquece o solo quando a terra est molhada, que impulsiva, possessiva, expansiva, e
que se alastra tornando difcil seu controle.
Encontraram com a prima de Ogun, a jovem-fogo brasa, uma menina que t
esperando um ventinho, ser abanada pra poder se tornar fogueira. Como diz o seu primo
esperando um momento pra ser incendiada
Ogun, muito rpido, querendo abrir caminho comeou a conversar com uma jovem
fogo e disse;
____ Oi gatinha voc sabia que pareo com voc? O meu fogo fora, liberdade o
que me torna uma pessoa guerreira, batalhadora.
_____ Mas voc daqueles que se espalha? Porque eu me espalho, me espalho e
acabo rpido.
Oxum susurra no ouvido de Ians:
_____ Essa garota t parecendo um incndio na floresta que vai se alastrando, e
aumentando como se fosse a vida errada!
Obaluai ouvindo a conversa interrompeu os dois e disse:
_____ Ento moa no vai dar certo. Voc precisa parar um pouco pra pensar no que
231
quer realmente pra sua vida. Ser jovem, no s brincar, ser jovem saber viver a vida,
saber amar e se amar, parar pra pensar o que quer e se isso o certo ou o errado.
Oxossi continuou:
______ Existem alguns jovens fogo que so to explosivos e se alastram com uma
fora que para conte-los meio difcil, s a calma de um adulto para conversar com eles.
______ Eu discordo, disse Ians
______ Essa juventude-fogo queimada incontrolvel, querem descobrir tudo ao
mesmo tempo por isso no escutam ningum. Tem os pais, os amigos, avos, tem tios, tem
diversas pessoas que dizem: a isso aqui no assim vamos com calma, mesmo assim eles
no querem saber. Querem saber de descobrir tudo na dor ou no amor.
Oxossi no seu momento de rplica falou:
_____ Mas existem jovens que so como uma fogueira. E mesmo uma fogueira
grande possvel conter, com calma possvel conter a fogueira e se fosse uma proporo
maior vamos dizer um incndio seria um pouco mais difcil. O jovem por mais que ele queira
fazer e acha que est certo ele acaba escutando os pais, um adulto, mais velho e tomando
conscincia do que esta fazendo.
_____ Voc acha mesmo isso? ingenuidade sua pensar assim. Rebate Ians.
Em pleno debate Ogun meio sem jeito pedi licena a jovem fogo e arrasta os amigos e
amigas pra bem longe reclamando.
_____ Poxa, parem com este j!!! Quando encontro uma garota em chamas que tem
tudo a ver comigo vocs se intrometem . . .
E Ians fala;
_____ Tambm voc t querendo descobrir tudo de uma vez atropelando o tempo das
coisas.
E completa Oxum:
_____ Interessante, jovens como voc Ogun-fogo so um paradoxo, pois podem ser
fogo, impulsivo, expansivo e ao mesmo tempo so como gua, s que gua contida, presa.
232
233
fazem no mundo, o que fazem de errado, nas burrices que cometem, na vida.
Oxossi participando da discusso diz:
_____ Eu tenho um amigo jovem-gua lquida contradio, ele imprevisvel, mas
sabe a hora certa de parar e sabe se adequar a qualquer tipo de ambiente.
De repente um grito: Ahhhhhhhhhhh Geeeeeeenteeeee
_____ O que foi? o que foi? falaram todos assustados.
Ians a dona do grito falou:
_____ Vocs no sabem quem eu acabei de encontrar na cozinha do terreiro.
_____ Quem, quem? Meninos ou meninas?
_____Garotos e garotas-ar. Como eu, Adorooooooo!! Jovens livres que no querem
ficar presos. Porque vocs sabem, o meu vento imprevisvel, no momento ele t soprando
uma brisa, ao mesmo tempo ele pode devastar tudo, levar tudo.
Para polemizar Oxum diz:
_____ Mas esses e essas jovens ar so todos alvoroados como um furaco.
Oxossi com uma flechada certeira defende a ex-namorada
_____ Na verdade existem aqueles jovens-ar furaces e aqueles calmos jovens-ar
vento. Muitos criticam o jeito de certos jovens ser, mas eu no critico porque eu compreendo
e eu acho que a juventude isso. Quer ser independente, muitos criticam, mas ningum vive
sem o ar, ningum vive sem a juventude e muito importante na vida da pessoa...
E continua Ians:
_____ Porque se a pessoa no aproveitar na juventude, na velhice que no vai
aproveitar, como aquele ditado assim: quem no faz na juventude, quando fica velho
que no faz.
_____ Eu particularmente tenho uma atrao pelos jovens-ar ciclones tornados,
extravagantes como eu. Estes adoram aproveitar a vida como se fosse o ltimo dia.
O jovem Xang ouvindo tudo, pois eles gritavam a medida que a discusso se
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acalorava, chega na roda e soltando raios pela boca e fogo pelas narinas diz:
____ Nesta discusso no existe consenso, pois a juventude-elemento da natureza
diversa como o fogo, a gua, o ar e a terra.
____ No!! Os jovens, independente de qualquer coisa, classe, hierarquia social,
religiosa, todos so iguais!!! Palpita um orix adulto desconhecido.
____ O queeeee ? Com um tom de reprovao todos olharam ao mesmo tempo.
____ Concordo com Xang ! Fala Ians
____ Eu tambm. Eu tambm. Ressaltam Oxum, Oxossi, Ogum
E complementa Obaluai
____ So como os elementos da natureza. Juventudes-elementos. gua, Fogo, Ar . . .
____ E a terra? Questiona as Iabs Oxum e Ians
O rei da terra explica:
_____ Quase no vimos jovens-terra por aqui, um ali outro acol, mas existem. Essa
galera discreta, se relaciona com todo mundo, mas quase no so percebidos. Afinal tudo
passa pela terra, gira pela terra o fogo, o ar e circulam tambm as ondas do mar. onde a
gente nasce, onde a gente convive, onde a gente pode circular.
As meninas se entreolham e cochicham:
____ Ele t puxando brasa pra sardinha dele. No t falando coisa com coisa.
____ Eu discordo de voc amigo. Disse Ogun
____ Aquele cara ali entrando no banheiro, que voc disse ser um jovem-terra, ele
muito parado. tudo que jovem no , ele t parecendo um velho. Olha s a jovem-gua, ela
muda de acordo com a forma, o jovem-ar direto se expandindo e o fogo-jovem tambm,
mas aquele terra muito parado, no se parece conosco.
____ Parece uma pedra, algo slido. como se fosse a unio de todos os elementos.
Contudo somos vrios gros de areia, teria que juntar todos para virar uma pedra. Continuou
Oxossi.
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Nome do terreiro
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Nova cozinha
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Barraco
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Fonte de Oxumar
Jovens do terreiro
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Festa de sada de Oxum e Oxal 30.03.13
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Um homem tinha um filho que era dotado de grande sabedoria. O menino era muito
respeitado por todos, mas seu pai dizia:
_____ Menino, voc para, que eu no quero ver voc envolvido nestas coisas de
adivinhao.
Mas o moleque cada vez mais adquiria poderes. Vinha gente de longe para ouvir suas
palavras e seus ensinamentos. Um dia ele acordou e disse para seu pai, que era lenhador:
______ Pai esta noite tive um sonho com um velho que me dizia que tinha visto
atravs dos bzios que hoje quinta-feira, e que o senhor no deve cortar madeira, que algo
muito ruim vai lhe acontecer.
O homem deu uns cocorotes no menino e foi para a mata trabalhar, sem se importar
com o aviso. L chegando, foi cortar um rvore. Perto desta rvore, quando ele comeou a
trabalhar, veio um vulto a espreit-lo, e que fazia:
______ ooi ! ooi!
Ele ouvia isto toda vez que ele suspendia o machado para cortar a rvore.
______ Ah! Isso iluso. Eu estou com as maluquices daquele menino na cabea. Vou
continuar meu trabalho, pois no so essas maluquices que vo me dominar.
Meteu o machado e cortou a rvore. A mesma caiu sobre as suas pernas e o machucou
bastante. O filho, que estava em casa, teve um pressentimento, pois no viu o pai chegar. Ele
andou at a mata e o encontrou desmaiado com a rvore em cima das pernas. Chamou a
vizinhana, que o levou para casa, mas o lenhador ficou paraltico. Isto o preo pago pelas
pessoas que, s vezes, no ouvem um conselho, e pensam que s elas so sbias. Todo ser que
aqui na terra habita tem a sua hora. As rvores tambm tm a sua. Elas so responsveis pelo
progresso da me natureza e no dever ser molestadas.
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BEATA DE YEMONJ, Me. Caroo de Dend: a sabedoria dos terreiros como iyalorixs e ababalorixs
passam seus conhecimentos a seus filhos. 2 ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2008.