Flo Menezes
Flo Menezes
Flo Menezes
Flo Menezes
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Flo Menezes (São Paulo, 1962) é compositor, Professor Doutor LivreDocente da Unesp e Diretor do
Studio PANaroma de Música Eletroacústica.
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queria Theodor W. Adorno), maximalista (como quero eu) como sendo uma
matemática dos afetos.
Um tal definição não pretende alijar as ciências da emoção que preside a
investigação científica. Longe disso. É preciso reconhecer, contudo, que entre a
emoção difusa que se irradia na comunidade científica internacional quando da
descoberta de uma saída para uma equação para a qual não se tinha há séculos
uma solução, como ocorre de tempos em tempos na matemática, e um
arrebatamento concreto e direto advindo da audição de uma obra de gênio, a
qual adentra a psique do ouvinte receptor com tanto mais profundidade quanto
mais será perdurável, enquanto vivência passada e experiência única, no
arsenal de sua memória, há uma diferença de potencial: emocionar-se em
ciência significa ter certeza parcial de mais uma etapa conquistada em direção à
asserção de sua intuição primeira, enquanto que emocionar-se na música
significa deparar-se com a perplexidade do que será compreendido apenas com
o passar dos tempos. Neste último caso, é a intuição, agora atuante como fator
de percepção receptiva (não tanto mais ativa, como quando do próprio conceber
da música), que dá o ponta-pé inicial no jogo da experiência.
Simultaneidades
Tanto o processo de evolução dos sons da linguagem por parte da
criança batizado por Jakobson e Morris Halle de estratificação quanto a
asserção da biologia desde Darwin de que o universo poderia ser descrito como
um sistema em (r)evolução permanente de estruturas cada vez mais complexas
que se desenvolvem a partir de formas mais simples, asserção esta corroborada
pelas leis da termodinâmica em física concernentes à conservação e à
dissipação de energia em um dado processo apontam para uma apologia da
complexidade, ou, em termos musicais, a um crescente e, por sorte, inatingível
apogeu das simultaneidades.
E isto é de fato o que distingue a música especulativa das músicas
“ligeiras”, chamadas “populares”, e que se resumem, a rigor, à música de
entretenimento. Ao longo da história da música ocidental, o pensamento
compositivo trilhou um caminho de uma cada vez maior simultaneidade de
eventos. Mesmo na aparente simplicidade de elaboradas melodias, tem-se uma
busca incessante por processos evolutivos que se dão em níveis distintos,
interdependentes e concomitantes de escuta. Nisso residiu a poética, por
exemplo, de um Luciano Berio na busca de uma polifonia latente da linha
melódica em suas Sequenze. Para fazermos uso de um termo do poeta Edoardo
Sanguineti tão caro a Berio, almeja-se aqui a um “laborinto” de múltiplas
entradas e saídas, cuidadosamente entrelaçadas pelo compositor sem que se
exerça sobre o resultado perceptivo controle absoluto e unilateral, ecoando a
intuição da física das super-cordas, para a qual o tecido microscópico do
universo constitui um labirinto multidimensional ricamente urdido de cordas
retorcidas e continuamente vibrantes. Nisso residia também o potencial de
abertura tal como formulado por Umberto Eco em Opera Aperta: não nas
operações casuísticas de um pretenso “acaso”, mas na potencialidade
multilateral da experiência mesmo diante do objeto aparentemente mais
“fechado” possível. E nisso consiste a definição de uma poética maximalista em
composição (tal como eu mesmo definira em 1983).
Talvez a maior aproximação do maximalismo da composição com a física
que proclama a complexidade como seu lema seja o elo entre a relatividade
einsteiniana e àquela que preside os processos temporais em certas obras da
música especulativa. Ao contrário do entretenimento, para o qual a música
exerce função utilitária de pano de fundo amortecedor, assentada numa grade
temporal uniforme e catatônica, na música radical ausenta-se, por princípio, o
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ilusão, por outro lado, de que tais aspectos pudessem ser pensados de modo
absolutamente independente uns com relação aos outros.
O apogeu de tal desvinculação dos atributos sonoros, que se deu na fase
do serialismo integral do início dos anos 50, propiciou tanto a consciência cada
vez mais responsável e totalizante dos parâmetros do som e da composição,
quanto resultou, paradoxalmente, em obras nas quais se perdia o controle sobre
o próprio fenômeno sonoro, tal o peso da pretensa independência dos
constituintes sonoros. A ultra-articulação resultara, a rigor, em desarticulação
sintática da composição. Porém, por mais que o cálculo (ao menos
aparentemente) tenha imperado sobre a intuição, as aquisições quanto à
organização do material musical eram inquestionáveis e até mesmo no prisma
de uma música radicalmente especulativa irreversíveis: a decomposição
sonora, ainda que problemática, demonstrava-se absolutamente necessária para
a (re)composição musical.
É nesse sentido que Karlheinz Stockhausen irá definir a Dekomposition
des Klanges (decomposição do som) como sendo um dos critérios essenciais
das poéticas eletroacústicas (STOCKHAUSEN, 1978, pp.360-401). Valendo-se dos
recursos em estúdio, a composição eletroacústica almeja, de fato, essa mesma
decomposição do som a que a própria escrita musical, com meios
representacionais bem mais limitados, fez e faz recurso, para depois reorganizá-
lo e recompô-lo tendo em vista a interatividade entre seus constituintes mínimos.
Em meio a tal processo de investigação, tem-se que, em um dado momento,
toda decomposição cessa para dar lugar a dimensões distintas de um mesmo
elemento constituinte, extravasando sua potencialidade para o âmbito de
ação/percepção de um outro atributo, perante o qual se revela como
essencialmente interdependente. A extensão cartesiana que transluzia a
essencialidade da matéria revela-se, aqui, como fenômeno de transferência. E é
nesse sentido que a noção mesma de entidade ganha relevo no contexto
musical especulativo, particularmente quando se refere às possibilidades
infindáveis da harmonia: enquanto campos de interconexões, estruturados em
aglomerados ora preponderantemente sincrônicos (acordes), ora
preponderantemente diacrônicos (módulos, perfis).
Continuum
No âmago das interconexões aflora uma dúvida penetrante: em que de
fato consiste essa interdependência entre atributos pretensamente autônomos
do som?
A física einsteiniana já proclamara, quando da inserção do tempo nas três
coordenadas espaciais da tridimensionalidade, que tempo e espaço estão tão
intimamente interligados que acabam por constituir um continuum
quadridimensional denominado de “espaço-tempo”.
Tanto no universo tal como interpretado pela física quanto no mundo dos
sons tal como os percebemos, a “regionalização” dos atributos constituintes dos
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Perpetuum mobile
Seria ilusão conceitual circunscrever o caráter contínuo da percepção às
regiões perceptivas que adquirem, justamente por constituírem “regiões”, certa
autonomia. A física enuncia que quanto menor for a região de confinamento de
uma partícula subatômica, tanto mais rapidamente tal partícula será impelida a
se movimentar. A agitação proporcionalmente mais frenética da partícula em
relação à diminuição do espaço de sua atuação implica uma espécie de
exuberante “claustrofobia quântica” e, conseqüentemente, uma contínua
mobilização dos elementos mínimos da matéria.
Tal fenômeno revela que inexistem estruturas estáticas na natureza, e
que o universo organiza-se, tanto microscópica quanto macroscopicamente,
como uma contínua e ininterrupta dança cósmica, que a teoria da super-cordas
interpreta como um perpetuum mobile de cordas vibrantes.
Ainda que seja arriscada a proclamação em alto e bom tom de uma
postura estética precisa num momento em que não se trata de juízos de valor, é
evidente que, se desejarmos afinar as cordas desse amplo estado vibratório que
une naturalmente a física do universo ao universo dos sons, deve-se almejar
uma organização direcional das estruturas musicais. Toda poética circunscrita a
uma escuta de tipo estático, em que se decreta a morte da direção, distancia-se
do que há de mais atual em física e, de modo geral, em visão de mundo ou,
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Polarizações
A comprovada tese einsteiniana segundo a qual os objetos se movem
através do espaço-tempo pelo caminho mais perto possível ou, ainda mais
precisamente, pelo caminho de menor resistência, encontra paralelo e tece forte
elo com a força gravitacional exercida por certas freqüências em determinados
contextos daquilo que Edmond Costère, em harmonia, batizara de “sociologia
das alturas”. Costère fala mesmo de uma “lei do menor caminho” (COSTÈRE,
1954, p.15), apontando para o potencial atrativo de intervalos atômicos de um
dado sistema de afinação das alturas (no caso do sistema temperado, do
semitom), os quais resultam numa clara sensação de polarização, reforçando a
cardinalidade de pólos aglutinadores da escuta.
A noção de polarização foi por diversas ocasiões confundida com a
unilateralidade da tonalidade clássica, mas na verdade preside tanto os
procedimentos de gravitação em torno do tom principal do tonalismo quanto a
natural tendência da escuta em detectar tais potencialidades atrativas em
contextos harmônicos mais complexos, porém essencialmente não estatísticos.
É a partir de uma consciência do fenômeno da polarização que uma
especulação responsável e potencialmente profícua pode e deve ter lugar no
que tange à organização estrutural, sempre atual, daquele que se desvela como
atributo supremo do som, do mais puro (senoidal) quase ao mais complexo
(excetuando-se, nesse contexto, apenas o ruído branco, dada a sua estrutura
probabilística e totalizante do espaço freqüencial): a percepção de sua
localização, por mais que se trate de um som avesso a qualquer tonicidade, no
amplo registro das alturas.
ainda que sejam e que precisem ser, a cada obra, almejadas, são, humana ou
mundanamente, inviáveis. A luz plena é, pois, inatingível.
Por fortuna ou por destino, porém, uma obra iluminada não se resume à
própria luz, e em arte, os meios processuais são sempre mais significantes que
os próprios fins. Aí, são os primeiros que justificam os últimos. A intenção de
obra revela-se, no cerne da própria obra em ato, mais importante que sua
aparência desnudada, e daí decorre a importância dos gestos musicais que,
iluminadores, apontam para a perfeição inatingível pelo viés das
direcionalidades.
E é nesse contexto que o lema fragmentário de Anaxágoras
(ANAXÁGORAS, 1966, p.66), que tão sabiamente, com uma simples frase,
preconizara a fenomenologia cerca de 2500 anos antes de suas notáveis
formulações por Edmund Husserl e Merleau-Ponty e que nos remete à “escuta
reduzida” defendida por Schaeffer e pela música eletroacústica , revela toda a
sua atualidade. No mundo da vida, não há luz que possa ser plena:
“Aquilo que se mostra é apenas um aspecto do invisível”.
Bibliografia
GREENE, Brian. O universo elegante. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
PRIGOGINE, Ilya. O fim das certezas. São Paulo: Editora da Unesp, 1996.
SCHAEFFER, Pierre. Traité des objets musicaux. Paris: Éditions du Seuil, 1966.